ISSN
Impresso: 0104-0588
On-line: 2237-2083
V.28 - Nº 1
Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 28 n. 1
p. 1-655
jan./mar. 2020
REvista DE EstuDos Da liNguagEm
universidade Federal de minas gerais
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REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG,
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Histórico:
1992 ano 1, n.1 (jul/dez)
1993 ano 2, n.2 (jan/jun)
1994 Publicação interrompida
1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez)
1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp.
1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun)
Nova Numeração:
1997 v.6, n.2 (jul/dez)
1998 v.7, n.1 (jan/jun)
1998 v.7, n.2 (jul/dez)
1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed.
CDD: 401.05
ISSN:
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V. 28 - Nº 1 - jan.-mar. 2020
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Leo Wetzels (Free Univ. of Amsterdam, Amsterdã, Holanda)
Laurent Filliettaz (Université de Genève, Genebra, Suiça)
Leonel Figueiredo de Alencar (UFC, Fortaleza/CE, Brasil)
Livia Oushiro (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil)
Lodenir Becker Karnopp (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil)
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Luiz Amaral (UMass Amherst, Amherst/MA, Estados Unidos)
Luiz Carlos Cagliari (UNESP, São Paulo/SP, Brasil)
Luiz Carlos Travaglia (UFU, Uberlândia/MG, Brasil)
Marcelo Barra Ferreira (USP, São Paulo/SP, Brasil)
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Marcus Maia (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
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Maria Cecília Camargo Magalhães (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil)
Maria Cecília Magalhães Mollica (UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil)
Maria Cristina Figueiredo Silva (UFPR, Curitiba/PR, Brasil)
Maria Luíza Braga (PUC/RJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Maria Marta P. Scherre (UNB, Brasília/DF, Brasil)
Miguel Oliveira, Jr. (Universidade Federal de Alagoas)
Monica Santos de Souza Melo (UFV, Viçosa/MG, Brasil)
Patricia Matos Amaral (UI, Bloomington/IN, Estados Unidos)
Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP, São Paulo/SP, Brasil)
Philippe Martin (Université Paris 7, Paris, França)
Rafael Nonato (Museu Nacional-UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Raquel Meister Ko. (Freitag, UFS, Brasil)
Roberto de Almeida (Concordia University, Montreal/QC, Canadá)
Ronice Müller de Quadros (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil)
Ronald Beline (USP, São Paulo/ SP, Brasil)
Rove Chishman (UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil)
Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP, São Paulo/SP, Brasil)
Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil)
Seung- Hwa Lee (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil)
Sírio Possenti (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil)
Suzi Lima (U of T / UFRJ, Toronto/ON - Rio de Janeiro/RJ, Brasil)
Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil)
Tommaso Raso (UFMG, Belo Horizonte/MG-Brasil)
Tony Berber Sardinha (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil)
Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil)
Vander Viana (University of Stirling, Stirling/Sld, Reino Unido)
Vanise Gomes de Medeiros (UFF, Niterói/RJ, Brasil)
Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL, Londrina/PR, Brasil)
Vera Menezes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil)
Vilson José Leffa (UCPel, Pelotas/RS, Brasil)
Sumário / Contents
Elementos de coesão no Corpus de Língua Portuguesa em Tradução:
investigando a classe gramatical conjunção numa perspectiva
contrastiva linguística e textual
Cohesive devices in the Corpus de Língua Portuguesa em Tradução:
investigating conjunctions in a contrastive perspective within
a text typology
Leonardo Pereira Nunes ....................................................................
13
Identificação computacional de estruturas métricas de versificação
na prosa de Euclides da Cunha
Computational identification of versification metric structures in
Euclides da Cunha’s prose
Ricardo Carvalho
Angelo Loula
João Queiroz .....................................................................................
41
Entre letras e armas: sobre a gênese do ensino do espanhol no Brasil
Between letters and weapons: on the genesis of Spanish teaching
in Brazil
Ana Cavalheiro Recuero ...................................................................
69
Reflexões sobre a linguística galileana de Noam Chomsky
Reflexions on Noam Chomsky’s Galilean Linguistics
Gustavo Augusto Fonseca Silva ........................................................
93
O papel dos contextos e da polissemia na constituição histórica
de novos juntores contrastivos
The role of contexts and polysemy in the historical development
of new contrastive connectives
Luísa Ferrari ......................................................................................
159
A microestrutura em verbetes da área da Linguística
Microstructure in entries within the field of Linguistics
Guilherme Fromm
Márcio Issamu Yamamoto ................................................................
205
Atuação de fatores estilísticos na variação entre as formas de
tratamento de segunda pessoa em uma comunidade de fala valenciana
Stylistic factors in the variation of the performance of treatment forms
of the second person in a Valencian speaking community
José Victor Melo de Lima
Valdecy de Oliveira Pontes ...............................................................
235
O estatuto da sintaxe na fala: considerações acerca da proposta
da Language Into Act Theory
The status of syntax in speech: comments on the Language Into
Act Theory proposal
Luis Filipe Lima e Silva ....................................................................
271
De la fraseología a una perspectiva cognitivista centrada en el uso:
un debate sobre variabilidad y fijación
From phraseology to a cognitive perspective focused on use: a debate
on variability and fixation
Leandra Cristina de Oliveira
María Alejandra Godoy Roa .............................................................
331
O humor está no ar: análise comparativa da tradução de jogos de
palavras fraseológicos em texto literário
Humor is in the air: comparative analysis of idiom-based wordplays
in literary texts
Adauri Brezolin .................................................................................
359
O Tradutor Seletor: uma breve análise da “neutralidade” da tradução
na canção do Chapéu Seletor em Harry Potter
The Sorting Translator: a Brief Analysis of Translation “Neutrality”
in the Sorting Hat Song, on Harry Potter
Filipe Cianconi Rodrigues
Fábio da Silva Fortes ........................................................................
391
DossIÊ DIsCurso, MEMórIa, MIgraçõEs
Apresentação: Dossiê “Discurso, memória e migrações”
Ida Lucia Machado
Glaucia Muniz Proença Lara
Béatrice Turpin ..................................................................................
419
Sentidos de “imigrante” em enunciados verbovisuais no jornalismo
francês
Senses of immigrant in verbvisual utterances in French journalism
Grenissa Bonvino Stafuzza
Marcos Lúcio de Sousa Góis ............................................................
433
Imigrantes japoneses e a língua portuguesa: um caso de preconceito
linguístico
Japanese immigrants and the Portuguese language: a case of
linguistic prejudice
Alexandre Marcelo Bueno ................................................................
455
Memorialización y conflicto armado: la construcción de narrativas
para la paz en Colombia
Memorialization and armed conflict: the construction of narratives
for peace in Colombia
Neyla Graciela Pardo Abril ..............................................................
479
Living on the edge of African dreams: new identities for African
and African diaspora Caribbean students in Brazil
Vivendo na fronteira de sonhos africanos: novas identidades para
estudantes africanos e caribenhos da diáspora afro-caribenha no Brasil
Ricardo Gualda .................................................................................
Mémoires de l’immigration. Propositions pour une étude
sociolinguistique des parlers des jeunes des cités urbaines
sensibles de la France contemporaine
507
Memories of immigration. Proposals for a sociolinguistic study
of young people sociolects in sensitive urban cities in contemporary
France
Marie-Madeleine Bertucci ................................................................
535
Deslocamento forçado e permanência vigiada, território e fronteira:
metáforas de espaço na representação da situação de rua na Folha
de S. Paulo
Forced displacement and guarded permanence, territory and frontier:
metaphors of space in the representation
of homelessness in Folha de S. Paulo
Viviane de Melo Resende .................................................................
565
Os enquadres discursivos do acontecimento migratório:
narrativização, banalização e estigmatização
The discursive frameworks of the migratory event:
narrativization, trivialization and stigmatization
Wander Emediato ..............................................................................
597
Les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur
Twitter traitant du plébiscite pour la paix en Colombie
The allusions to armed conflict in peace plebiscite campaign
discourses on Twitter in Colombia
Yeny Serrano .....................................................................................
619
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Elementos de coesão no Corpus de Língua Portuguesa
em Tradução: investigando a classe gramatical conjunção
numa perspectiva contrastiva linguística e textual
Cohesive devices in the Corpus de Língua Portuguesa
em Tradução: investigating conjunctions in a contrastive
perspective within a text typology
Leonardo Pereira Nunes
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
leopereiranunes@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0678-7137
resumo: Esta contribuição perfaz análise de elementos de coesão em textos originais e
traduzidos, averiguando o impacto das tipologias textual e linguística na frequência de
ocorrência de itens da classe gramatical conjunção (NUNES, 2014). Dados foram obtidos
a partir do Corpus de Língua Portuguesa em Tradução, um corpus paralelo bilíngue
bidirecional no par linguístico inglês-português brasileiro composto por oito tipos de
texto: artigo acadêmico, discurso político, divulgação científica, ficção, manual de
instrução, propaganda turística, resenha e website educacional. Utilizou-se o TreeTagger
para anotação morfossintática e o ambiente de programação R para extração automática
e tratamento estatístico das frequências. Verificaram-se frequências significativamente
acima das esperadas em textos dos tipos resenha e discurso político, corroborando a
hipótese sobre a explicitação de marcas conjuntivas em textos argumentativos. Ainda,
os achados parcialmente confirmaram a hipótese da explicitação significativamente
acima da esperada nos textos traduzidos e nos textos originais e traduzidos em português
brasileiro. Também revelaram significâncias estatísticas proeminentes nas frequências
obtidas em textos dos tipos ficção e website educacional, apontando nestes tendência
à explicitação de conjunções nos textos traduzidos em inglês e naqueles a mesma
tendência nos textos originais e traduzidos em português brasileiro. Os resultados dessa
investigação sobretudo contribuem para os estudos descritivos da tradução no que tange
à descrição linguística do inglês e do português brasileiro em seus modos escritos.
Palavras-chave: Corpus de Língua Portuguesa em Tradução; tipologia linguística;
tipologia textual; conjunção.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.13-40
14
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
abstract: This contribution delves into the investigation of cohesive devices in original
and translated texts by querying the impact of text and language typologies on the
frequency of conjunctions (NUNES, 2014). Data was obtained in the Corpus de Língua
Portuguesa em Tradução, a bilingual bidirectional parallel corpus in the language pair
English-Brazilian Portuguese. The corpus is comprised of eight text types: research
article, political speech, science popularisation, fiction, instruction manual, tourism
leaflet, review and educational website. TreeTagger was used for POS tagging and R
environment utilized to perform automatic word frequency and significance testing. The
results showed highly above expected frequencies in reviews and in political speeches,
thus corroborating explicitation hypotheses as to the frequency of cohesive marks in
argumentative texts. Also, the explicitation hypothesis as to significantly above expected
frequencies of conjunctions in translated texts and in the original and translated texts
in Brazilian Portuguese was partially corroborated. Findings also showed relevance in
statistically significant frequencies in fictional and educational website texts. As to the
former, a tendency for the explicitation of conjunctions in original and translated texts
in Brazilian Portuguese was revealed. Conversely, frequencies in the latter pointed to
a tendency for the explicitation of conjunctive marks in translated texts in English.
The findings mostly contribute to descriptive translation studies concerning language
description of English and Brazilian Portuguese in their written modes.
Keywords: Corpus de Língua Portuguesa em Tradução; language typology; text
typology; conjunction.
Recebido em 26 de março de 2019
Aceito em 17 de junho de 2019
1. Introdução
Este trabalho reporta uma investigação conduzida por Nunes
(2014), e apresenta uma análise automática de elementos de coesão numa
perspectiva interlinguística e numa tipologia de textos. Pontualmente,
percorre o escrutínio da frequência de ocorrência de itens da classe
de palavra conjunção realizado no Corpus de Língua Portuguesa em
Tradução, um corpus paralelo bilíngue nas direções inglês-português
brasileiro e português brasileiro-inglês.
O estudo se insere no âmbito dos estudos da tradução puros
descritivos orientados ao produto (cf. HOLMES, 1972), uma vez que
fornece resultados de investigação de sistemas linguísticos em contato
na relação tradutória e em comparação entre distintos tipos de texto,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
15
escrutinizando características (no que toca a frequência) de elementos
coesivos estabelecidos por conjunções inseridas numa tipologia de textos.
Para tal, se vale de uma abordagem inovadora sobretudo no
que concerne recursos metodológicos utilizados para o levantamento,
processamento e tratamento de dados com fundamento estatístico.
Este artigo está organizado em 5 seções, além desta Introdução.
A segunda seção discorre sobre um breve arcabouço teórico que percorre
elementos de coesão nas línguas inglesa e portuguesa. A terceira seção
apresenta e descreve o corpus sob escrutínio. A quarta seção explicita os
procedimentos de anotação e análise automatizada do corpus, bem como a
abrangência da referida investigação. A quinta seção reporta os resultados
e discussões, e, por fim, a sexta seção tece as conclusões da pesquisa.
2. Elementos de coesão nas línguas inglesa e portuguesa
Halliday e Hasan (1976) advogam que a coesão no inglês é
estabelecida por quatro categorias, quais sejam: organização (ou coesão)
lexical, referência, substituição/elipse e conjunção. A coesão lexical
tem o léxico como elemento chave e se estabelece “através da escolha
de itens que se relacionam em um texto através de palavras isoladas ou
unidades maiores, como o grupo nominal”, por exemplo (HALLIDAY;
MATTHIESSEN, 2014, p. 606 apud NUNES, 2014). A referência, por
sua vez, “estabelece na esfera gramatical uma cadeia de elementos que
se relacionam intra e extratextualmente através de itens endofóricos e
exofóricos, respectivamente” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p.
606 apud NUNES, 2014). A substituição e a elipse também possuem
caráter gramatical e compreendem “ferramentas que permitem a exclusão
de partes de uma estrutura se estas puderem ser inferidas através de
elementos antecedentes no texto” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014,
p. 606 apud NUNES, 2014). Por fim, conjunções, foco deste estudo, são
apreciadas enquanto “instrumentos sistemáticos de conexão de orações
e complexos oracionais” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 609
apud NUNES, 2014).
Na variante brasileira da língua portuguesa, Neves (2011) discorre
sobre a coesão textual sobremaneira ao percorrer elementos sobre a
referência (situacional e textual) e sobre as conjunções coordenativas
e subordinativas adverbiais, estas vislumbradas enquanto instrumentos
sequenciadores e de amarração de blocos de textos (NEVES, 2011, p. 19).
16
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Como explicitado anteriormente, apenas elementos da classe de
palavra conjunção foram automaticamente investigados no corpus da
pesquisa, apresentado na próxima seção.
3. o Corpus de Língua Portuguesa em Tradução
O Corpus de Língua Portuguesa em Tradução (doravante
Klapt!)1 foi compilado a partir do corpus CroCo2 (Cross-linguistic
corpora) (cf. NEUMANN, 2005, 2008) por pesquisadores do Laboratório
Experimental de Tradução (LETRA)3 da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG). O intuito foi o de se investigar elementos linguísticos
numa perspectiva contrastiva e considerndo-se múltilos tipos de textos,
no par linguístico inglês-português brasileiro e em ambas as direções.
O Klapt! pode ser categorizado como um corpus multilíngue
paralelo bidirecional (GRANGER, 2003, p. 21), sendo possíveis análises
linguísticas tanto entre os textos originais e suas respectivas traduções
nas direções português brasileiro-inglês e inglês-português brasileiro.
Dado o desenho bidirecional do corpus, pode-se, ainda, investigá-lo
nas perspectivas comparáveis mono e bilíngues de textos originais e de
textos traduzidos.
A tipologia textual contemplada para a criação do corpus baseouse em processos sociossemióticos que, em síntese, resumem a maneira
como a língua, e todo o seu potencial de criação de significados, são
instanciados no contexto de cultura (cf. MATTHIESSEN; TERUYA;
LAM, 2010; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014). Esses processos
incluíram diversos tipos de texto da língua escrita definidos por distintas
1
Este acrônico foi cunhado a partir de um intertexto fonológico com verbo klappt na
língua alemã, que corresponde ao verbo funcionar na língua portuguesa (NUNES, 2010)
2
Esse projeto, desenvolvido por pesquisadores da Universidade do Sarre (Alemanha),
teve por objetivo identificar as especificidades do texto traduzido em comparação ao
texto não traduzido (incluindo a explicitação e outras propriedades da tradução) entre
o inglês e o alemão, e em ambas as direções. Página do projeto: http://fedora.clarin-d.
uni-saarland.de/croco-gecco/croco/presentation_neumann_hansenschirra.pdf. Acesso
em 12 mar. 2019.
3
O corpus está disponibilizado no Portal Min@s, um ambiente virtual que agrega
bancos de dados de laboratórios vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Estudos
Linguísticos (POSLIN) da Faculdade de Letras (FALE) da UFMG. Endereço do portal:
http://portalminas.letras.ufmg.br/. Acesso em 12 mar. 2019.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
17
comunidades de usuários, sendo contemplados oito tipos: artigos
acadêmicos, discursos políticos, textos de divulgação científica, textos de
ficção, manuais de instrução, textos de propagandas turísticas, resenhas
e textos de websites educacionais.
A Figura 1 apresenta um esquema gráfico do corpus.
FIGURA 1 – Desenho do Klapt!
Fonte: Nunes (2014, p. 73)
Quanto ao tamanho, cada tipo textual em cada um dos 4
subcorpora possui uma média de 10 textos com 3.000 palavras (tokens)4
correntes cada, totalizando amostras de aproximadamente 30.000
palavras, conforme ilustrado na TABELA 1.
4
Cumpre mencionar que as amostras selecionadas compreenderam textos na íntegra
ou excertos contendo parágrafos inteiros, de modo que a coesão textual pudesse ser
mantida.
18
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
TABELA 1 – Números de tokens do Klapt! por tipo textual e subcorpus
Tipo textual
Inglês
original
(Io)
Inglês
traduzido
(IT)
Português
original
(Po)
Português
traduzido
(PT)
Total
por tipo
textual
artigo acadêmico
30.299
30.163
30.049
31.629
122.140
Discurso político
30.178
30.587
29.813
31.080
121.658
Divulgação científica
30.664
32.749
30.790
31.010
125.213
Ficção
30.138
32.955
30.072
30.881
124.046
Manual de instrução
29.453
28.527
29.244
35.628
122.852
Propaganda turística
27.871
30.474
30.191
28.487
117.023
resenha
30.126
31.959
32.052
30.960
125.097
Website educacional
29.828
28.131
29.100
32.322
119.381
Total por subcorpus
238.557
245.54
241.311
251.997
Total geral
977.410
Fonte: Nunes (2014, p. 75)
Como mostra a Tabela 1, o Klapt! como um todo totaliza
aproximadamente 980 mil palavras, o que o caracteriza como um corpus
de extensão média, isto é, entre 250 mil e 1 milhão de palavras (BERBER
SARDINHA, 2004, p. 26).
No que tange às suas aplicações, o Klapt! pode ser utilizado
enquanto recurso para diversas pesquisas no âmbito dos estudos da
tradução (tanto puros quanto aplicados), tais como em investigações
das propriedades da tradução, em pesquisas orientadas ao processo e ao
produto tradutórios, no desenvolvimento de metodologias de anotação
multidimensional, na análise de registro, na descrição linguística e na
formação de tradutores (cf. JESUS; NUNES, 2014).
A próxima seção discorre sobre os procedimentos de anotação e
extração automática com subsídio estatístico da frequência de ocorrência
de conjunções no corpus Klapt!
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
19
4. Procedimentos de anotação e análise automática
4.1. Etiquetamento morfossintático
O software Treetagger5 foi desenvolvido por Helmud Schmid,
linguista computacional da Universidade de Stuttgart, Alemanha. Tratase de um anotador morfossintático capaz de etiquetar textos em formato
eletrônico em diversos idiomas, dentre os quais incluem-se o inglês e o
português. Como aponta Nunes (2014), para cada idioma, há um conjunto
de documentos contendo parâmetros para a identificação automática
de cada palavra (type) e/ou símbolo, a cada qual atribui-se uma classe
gramatical e correspondente termo raiz (lema).
Cada texto do corpus (previamente salvo em formato txt) foi
automaticamente etiquetado pelo programa. A Figura 2 apresenta uma
amostra de um excerto de texto de discurso político do subcorpus IO,
também gerado em arquivo de mesma extensão, após o processamento
com a ferramenta.
FIGURA 2 – Excerto de texto anotado pela ferramenta Treetagger
Fonte: Nunes (2014, p. 84)
Página com informações e instruções para download do programa: http://www.ims.
uni-stuttgart.de/projekte/corplex/TreeTagger/. Acesso em: 12 mar. 2019.
5
20
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Como marca Nunes (2014), para cada língua, há um conjunto
de etiquetas (tagset) processado pelo software para atribuição de
categorias gramaticais para cada palavra em cada um dos textos dos
quatro subcorpora do Klapt! O tagset para o inglês foi desenvolvido
no projeto Penn Treebank,6 idealizado e executado por pesquisadores
dos departamentos de Linguística, Ciência da Computação e Ciência
da Informação da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos. Já o
conjunto de etiquetas das categorias morfossintáticas nos subcorpora
de textos em português brasileiro foi desenvolvido pelo Grupo para o
Processamento de Linguagem Natural (ProLNat@GE)7 da Universidade
de Santiago da Compostela, Espanha.
Nunes (2014) também menciona que a interface e os conjuntos de
etiquetas têm como base as categorias da gramática tradicional em ambas
as línguas, considerando-se a palavra como unidade de investigação.
Quanto ao grau de exatidão para ambos os tagsets reconhecidos
pela interface, a probabilidade de correspondência palavra/símboloetiqueta varia entre 96 e 97% (SCHMID, 1994, p. 16).
Dadas as especificidades técnicas de cada tagset8 em função das
diferenças entre os sistemas linguísticos do inglês e do português, não há
correspondência direta entre várias etiquetas nas duas línguas. Destarte,
foi necessária elaboração manual de um parâmetro de equivalência
entre elas de forma que apenas as categorias gramaticais comuns entre
as referidas línguas pudessem ser contempladas para o processamento
de dados. Pode-se assim somar dez classes de palavras partilhadas
por ambas, quais sejam: adjetivo, advérbio, conjunção, determinante,
interjeição, numeral, preposição, pronome, substantivo e verbo (NUNES,
2014).
O Quadro 1 apresenta o parâmetro criado para agrupar as
etiquetas dos dois tagsets.
Página eletrônica do projeto: https://catalog.ldc.upenn.edu/. Acesso em 12 mar. 2019.
Endereço eletrônico do grupo: http://gramatica.usc.es/pln/index.html. Acesso em:
12 mar. 2019.
8
As listas completas das etiquetas do inglês e do português podem ser visualizadas
nos seguintes sítios eletrônicos: https://www.ling.upenn.edu/courses/Fall_2003/
ling001/penn_treebank_pos.html (inglês) / https://gramatica.usc.es/~gamallo/tagger.
htm (português). Acesso em: 12 mar. 2019.
6
7
21
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
QUADRO 1 – Parâmetro de correspondência entre etiquetas dos tagsets
do inglês e do português
Classe de palavra
Etiquetas do inglês
Etiquetas do
português
Adjetivo
JJ, JJR, JJS
ADJ
Advérbio
RB, RBR,
RBS, WRB
ADV
Conjunção
CC
CONJ
Determinante
DT
DET
Interjeição
UH
I
Numeral (cardinal e ordinal)
CD
CARD
Preposição
IN, IN/that, TO
PRP
PRP+DET
Pronome
PP, PP$, WDT,
WP, WP$
P
PR
Substantivo
FW, NN, NNS,
NP, NPS
NOM
Verbo
MD, VB, VBD,
VBG, VBN, VBP,
VBZ, VH, VHD,
VHG, VHN, VHP,
VHZ, VV, VVD,
VVG, VVN,
VVP, VVZ
V
V+P
Fonte: Nunes (2014, p. 89)
Como pode-se visualizar no Quadro 1, os tagsets em inglês e
português automaticamente processados pelo TreeTagger respectivamente
atribuem às marcas conjuntivas as etiquetas CC e CONJ.
22
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
4.2 Processamento e extração automática de dados
Segundo Nunes (2014), uma vez identificadas as dez classes
gramaticais comuns entre o inglês e o português e estabelecidas as
correspondências entre as etiquetas dos respectivos tagsets, criou-se
uma sequência de comandos para processamento e extração de dados
quantitativos baseada nessas combinações.
Esse parâmetro compreende uma sequência de comandos
(script)9 e foi utilizado para: 1) extração da frequência de ocorrência
de itens correspondentes às dez classes gramaticais, as quais incluem
conjunções; 2) aplicação de testes de significância estatística para a
frequência de ocorrência das conjunções. Este script foi esquematizado
para ser processado pelo ambiente R, apresentado na próxima subseção.
4.2.1 o ambiente de programação r e o parâmetro para extração de dados
Entendido enquanto uma linguagem computacional livre,10 o
ambiente R pode, dentre inúmeros fins, ser utilizado para se extrair
e manipular dados estatísticos, conforme assinala Nunes (2014).
Esse ambiente foi desenvolvido por pesquisadores do departamento
de Estatística da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, e vem
sendo paulatinamente aprimorado por contribuições provenientes de
várias instituições de pesquisa. Trata-se de uma eficiente ferramenta de
processamento e extração de dados numéricos e categóricos, sendo capaz
de processá-los a partir de vários modelos estatísticos. Também permite
aplicar testes de significância e executar funções dos mais variados tipos
e graus de complexidade.
A Figura 3 apresenta a tela de exibição inicial do ambiente R.
A sequência de comandos para a leitura automática dos arquivos, levantamento dos
dados quantitativos e aplicação dos testes estatísticos está disponível na íntegra nos
Anexos.
10
Página do projeto R: http://www.r-project.org. Acesso em: 12 mar. 2018
9
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
23
FIGURA 3 – Tela inicial do ambiente R
Fonte: Nunes (2014, p. 92)
Para a extração dos dados, foi necessária manipulação prévia
dos arquivos a serem processados pelo ambiente, bem como o
desenvolvimento de um parâmetro com comandos para serem executados
automaticamente.
Conforme descreve Nunes (2014), os arquivos contendo os textos
de cada um dos quatro subcorpora foram agrupados por tipo, somando
assim 32 (8 tipos textuais x 4 subcorpora). Em virtude de restrições
técnicas de identificação de caracteres em textos com extensão txt, cada
um destes arquivos foi convertido em planilhas eletrônicas do programa
Microsoft Excel©.
Em cada planilha, foi suprimida a coluna contendo o lema de
cada palavra etiquetada, já que esse elemento não figurou como objeto
de análise. Em substituição a essa, duas outras colunas foram criadas:
uma contendo o rótulo do respectivo tipo textual e outra explicitando o
subcorpus (IO, PT, PO ou IT) correspondente.
A Figura 4 apresenta um exemplo de planilha eletrônica
configurada no programa Microsoft Excel©.
24
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
FIGURA 4 – Configuração de planilha eletrônica para processamento
no ambiente de programação R
Fonte: Nunes (2014, p. 93)
Formatados os 32 arquivos, criou-se manualmente um script
para leitura e processamento desses pelo R. Esta sequência de comandos
não apenas teve como função extrair, por subcorpus e tipo textual, a
frequência absoluta total de itens de cada uma das dez classes gramaticais,
mas também perfazer testes de significância estatística somente para a
frequência de ocorrência das conjunções.
O parâmetro foi desenhado de forma que os dados pudessem ser
processados conforme a seguinte ordem, conforme sequência descrita
em Nunes (2014):
– Reconhecimento das 32 planilhas do Microsoft Excel©;
– Leitura e extração dos dados de cada planilha a partir do
reconhecimento de cada palavra (token) e sua correspondente etiqueta
morfossintática, bem como seu referido tipo textual e subcorpus;
– Correspondência das etiquetas morfossintáticas entre os tagsets do
inglês e do português, e agrupamento em dez classes gramaticais,
conforme parâmetro apresentado no Quadro 1;
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
25
– Extração da frequência absoluta de palavras (tokens) de cada classe
gramatical por tipo textual e por subcorpus;
– Extração da frequência absoluta da classe gramatical conjunção
por tipo textual e por subcorpus;11
– Aplicação do teste de significância estatística Qui-quadrado de
aderência (goodness-of-fit) de Pearson a partir da frequência de
ocorrência absoluta total da classe gramatical conjunção por subcorpus;
– Aplicação do teste de significância estatística post hoc Z a partir
das frequências absolutas da classe de palavra conjunção por tipo
textual (distribuídas nos 4 subcorpora).
A Figura 5 mostra uma representação do resultado (output) de
parte dos dados gerados pelo script desenhado no estudo de Nunes (2014).
FIGURA 5 – Representação dos resultados gerados na interface
do ambiente de programação R
Fonte: Nunes (2014, p. 95)
Por questões de ordem pragmática, apenas as frequências de ocorrência desta classe
de palavra estão apresentadas na seção de resultados e discussões.
11
26
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Como destaca Nunes (2014), o teste Qui-quadrado de aderência
(goodness-of-fit) e o teste post hoc Z verificaram se as distribuições das
frequências absolutas das ocorrências da classe de palavra conjunção
foram ou não estatisticamente significativas em cada tipo de texto e
subcorpus do Klapt!. Foi possível averiguar, com o primeiro teste, se
houve ou não desvios significativos da frequência de ocorrência geral
esperada para as conjunções em cada subcorpus12 ou se a frequência
observada esteve dentro do previsto. Já o segundo teste revelou se as
frequências de conjunções em cada tipo textual e subcorpus se mostraram
significativamente acima ou abaixo das esperadas.
Ambos os testes figuram como ferramentas decisivas para
verificação de hipóteses e/ou pressupostos por ventura aventados sobre
a frequência de ocorrência de palavras e suas correspondentes classes
gramaticais. Para o caso das conjunções, foi possível averiguar, numa
perspectiva interlinguística, em que medida a hipótese da explicitação
(cf. BLUM-KULKA, 1986) pode ser confirmada nos subcorpora de
textos traduzidos. Já no prisma da variabilidade de registro entre os
tipos textuais, pode-se confirmar ou não pressupostos sobre uma maior
frequência de ocorrência de marcas de coesão textual em textos de caráter
argumentativo (cf. NEUMANN, 2008) e nos textos originais e traduzidos
em português brasileiro13 (cf. VIEIRA, 1984).
Descritos os procedimentos para extração e processamento
automático de dados, estabelece-se na próxima subseção uma relação entre
a metodologia utilizada em Nunes (2014) para o escrutínio da frequência
de ocorrência de conjunções e a validade dos resultados por esta obtidos.
4.3. Investigação automática vs. investigação manual de elementos
linguísticos
Conforme exposto na seção anterior, os procedimentos de análise
de frequência do corpus da investigação de Nunes (2014) envolveram
a anotação morfossintática automática para posterior processamento de
dados através de um ambiente de programação. O autor fundamenta-se
no trabalho de Matthiessen (2009), que estabelece uma relação entre a
abrangência de 1) resultados obtidos automaticamente e de 2) achados
12
Cabe ressaltar que esta frequência de ocorrência se deu em relação ao número total
de palavras (tokens) por subcorpus.
13
Como aponta a autora, o português, em comparação ao inglês, apresenta maior grau
de especificidade e clareza ao salientar recursos de coesão.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
27
gerados manualmente em função da estratificação linguística e do
tamanho do corpus.
De acordo com o Matthiessen, investigações em corpora de
maiores extensões e que contemplam vários registros e tipos textuais
podem ser facilmente realizadas automaticamente com o auxílio de
ferramentas computacionais, o que soma para a descrição do potencial
de construção de significados de determinada língua (MATTHIESSEN,
2009, p. 53 apud NUNES, 2014). Contudo, Matthiessen também
reconhece a existência de restrições no escopo de análise semântica e
contextual, já que as ferramentas de anotação, extração e processamento
automático de um volume considerável de dados geralmente permitem
somente o escrutínio lexicogramatical.
Já a investigação manual, geralmente realizada em corpora de
menores extensões, permite maior aprofundamento de análise no que
tange todos os níveis linguísticos. Em contrapartida, em virtude do
tamanho reduzido das amostras e da variabilidade entre os registros e
tipos textuais, há limitações em termos de descrição linguística.
Nunes (2014) ilustra essa relação marcada por Matthiessen
(2009).
GRÁFICO 1 – Escopo da investigação manual e da investigação automática em
relação aos níveis linguísticos e às dimensões do corpus.
Fonte: Matthiessen (2009, p. 53). Traduzido e adaptado por Nunes (2014)
28
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Ao visualizar o Gráfico 1, pode-se afirmar que os procedimentos
metodológicos de investigação de conjunções do corpus Klapt! descritos
em Nunes (2014) produzem resultados que se situam na interseção entre
a porção central do eixo horizontal (análise automatizada) e na porção
inferior do eixo vertical (análise manual) da representação. Isso porque
os insumos para a descrição linguística gerados por esses procedimentos
são razoavelmente abrangentes em função do considerável tamanho e da
variabilidade de registros observada no corpus como um todo. Todavia, os
subsídios metodológicos resultam em achados que se restringem apenas
às unidades lexicais dos textos, em razão de limitações impostas pelas
ferramentas computacionais.
A próxima seção apresenta os principais resultados do estudo de
Nunes (2014), bem como algumas discussões que emergiram a partir da
apreciação geral desses achados.
5. resultados e discussões
Conforme exposto anteriormente, os procedimentos de anotação
e extração automática das frequências de ocorrência da classe gramatical
conjunção na investigação de Nunes (2014) produziram resultados que
apontaram em qual (ou quais) dos oito tipos de textos do corpus paralelo
bidirecional bilíngue as frequências observadas das marcas conjuntivas
foram estatisticamente significativas. Ainda, esses resultados permitiram
testar hipóteses e pressupostos sobre o impacto da variabilidade de
registro (entre os tipos de textos) e da tipologia linguística na frequência
de ocorrência desses elementos linguísticos no corpus em questão.
As frequências absolutas de conjunções distribuídas por tipo
textual e por subcorpus do Klapt! se encontram apresentadas na Tabela 2.
29
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
TABELA 2 – Frequência absoluta de conjunções no Klapt! por subcorpus
e tipo textual
Inglês
original
(Io)
Inglês
traduzido
(IT)
Português
original
(Po)
Português
traduzido
(PT)
Total
por tipo
textual
Artigo acadêmico
1.165
1.153
1.476
1.548
5.342
Discurso político
1.469
1.303
1.509
1.832
6.113
990
1.001
1.211
1.233
4.435
1.109
1.090
1.390
1.511
5.100
Manual de instrução
996
1.081
1.253
1.441
4.771
Propaganda Turística
1.456
1.132
1.369
1.521
5.478
Resenha
1.458
1.413
1.757
1.817
6.445
Website Educacional
1.242
1.359
1.525
1.404
5.530
Total por subcorpus
9.885
9.532
11.490
12.307
subcorpus
Tipo textual
Divulgação científica
Ficção
Fonte: Nunes (2014, p. 110)
Os resultados de Nunes (2014) explicitam que, numa perspectiva
interlinguística, houve uma inversão proporcional nas frequências
absolutas de conjunções nos dois subcorpora paralelos. Enquanto
existe um número superior dessas marcas em todos os tipos textuais
do subcorpus PT se comparado a todos os mesmos tipos textuais no
subcorpus IO, há um número inferior de conjunções no subcorpus IT se
comparado ao subcorpus PO. Nunes também aponta que tal inversão a
princípio poderia sugerir não ser integralmente corroborada a hipótese
de que a frequência de conjunções se mostraria acima da esperada nos
subcorpora de textos traduzidos (partindo-se da hipótese de explicitação
de elementos coesivos (cf. BLUM-KULKA, 1986). Em contrapartida,
Nunes também assinala que a hipótese de que a frequência de conjunções
nos textos em português brasileiro estaria dentro ou acima da esperada
poderia ser confirmada com base no pressuposto que a língua portuguesa
(comparando-se ao inglês) evidencia “maior grau de especificidade
e clareza ao evidenciar recursos coesivos” (cf. VIEIRA, 1984 apud
NUNES, 2014).
30
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
Observando-se pelo prisma da variabilidade de registro entre os
tipos textuais, as distribuições revelam maior frequência de ocorrência
de conjunções nos textos de resenhas e de discursos políticos. Em uma
primeira instância, ambos esses números corroboram o pressuposto de
Neumann (2008), a qual advoga que “textos argumentativos tendem a
tornar expressas conexões entre as porções textuais para que a coerência
textual seja estabelecida” (NEUMANN, 2008, p. 109 apud NUNES,
2014).
Dado que as frequências apresentadas na Tabela 2 são absolutas,
fez-se necessário testes de significância para se confirmar ou refutar
as hipóteses e os pressupostos fundamentados nas proposições das
referidas autoras. Para tal, verificou-se se as distribuições das frequências
apresentadas para cada subcorpus e tipo textual foram ou não significativas
via aplicação de testes estatísticos (NUNES, 2014).
Conforme explicado na subseção 3.2.1, o estudo de Nunes (2014)
se valeu do teste do Qui-quadrado de Pearson, aplicado para se averiguar se
a frequência total de conjunções observada em cada subcorpus se desviou
ou não da frequência esperada em relação ao número total de palavras de
cada subcorpus. A tabela a seguir mostra os resultados desse teste.
TABELA 3 – Resultados do teste do Qui-quadrado para a frequência
de ocorrência de conjunções por subcorpus
subcorpus
resultado
Inglês original (IO)
X2 = 234,5227, df = 7, p-value < 0,01
Inglês traduzido (IT)
X2 = 128,0775, df = 7, p-value < 0,01
Português original (PO)
X2 = 144,3397, df = 7, p-value < 0,01
Português traduzido (PT)
X2 = 184,5895, df = 7, p-value < 0,01
Fonte: Nunes (2014, p. 111)
Os resultados na tabela revelam um desvio significativo entre a
frequência observada e a frequência esperada em cada um dos quatro
subcorpora, uma vez que o valor de p (p-value) foi consideravelmente
inferior a 0,0514 em todos eles. Como afirma Nunes (2014, p. 112), foi
14
Na esfera dos estudos linguísticos e das ciências humanas, este valor é parâmetro
para significância estatística. (GRIES, 2012j apud NUNES, 2014)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
31
“extremamente baixa a probabilidade de essa frequência ter acontecido
ao acaso considerando-se uma distribuição uniforme para as conjunções
em cada subcorpus”.
Para se localizar os desvios significativos em cada tipo de texto de
cada subcorpus, aplicou-se o teste post hoc Z15 e observou-se os resultados
em seis perspectivas, respectivamente: duas paralelas (IO-PT e PO-IT),
duas comparáveis monolíngues (IO-IT e PO-PT) e duas comparáveis
bilíngues (IO-PO e IT-PT).
Os pares de escores Z,16 distribuídos nas duas perspectivas
paralelas e apresentados na Tabela 4, revelam a medida em que as duas
línguas (inglês e português brasileiro) originais e traduzidas impactaram
na frequência de ocorrência de conjunções no corpus como um todo.
Também mostram o impacto da variabilidade de registro entre os tipos
textuais na frequência desses elementos linguísticos.
15
Cada número nas tabelas corresponde a um escore Z, ou seja, o resíduo (variação)
acima ou abaixo de uma frequência considerada esperada (equivalente ao número 0).
Os números positivos distintos de 0 estão acima de uma distribuição esperada e os
negativos estão abaixo. Para existir significância estatística, os escores positivos devem
ser iguais ou superiores a 1,96 e os negativos iguais ou inferiores a -1,96 (BARONI;
EVERT, 2008, p. 13 apud NUNES, 2014). Nunes (2014) ainda afirma que se um escore
atingir qualquer um desses dois parâmetros mínimos de significância (um positivo e
outro negativo), a probabilidade de determinada frequência ter se desviado da frequência
esperada de forma fortuita é muito baixa. Por outro lado, se os valores estiverem entre
esses dois polos (-1,96 e 1,96), há probabilidade de que a frequência de ocorrência de
conjunções tenha acontecido por acaso.
16
No estudo de Nunes (2014), foram destacados tanto os pares de distribuições mais
estatisticamente significativos nas duas perspectivas paralelas e nas quatro perspectivas
comparáveis, cujas magnitudes dos escores Z apontaram maiores diferenças entre si.
O autor também explicita que as diferenças foram evidenciadas pelos valores que
marcam uma oposição entre 1) duas distribuições (uma estatisticamente significativa
acima da esperada e outra significativamente abaixo da esperada, ou vice-versa) ou
2) entre uma distribuição não estatisticamente significativa e outra estatisticamente
significativa. Os pares de escores mais relevantes estão em negrito em todas as seis
perspectivas de análise.
32
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
TABELA 4 – Distribuições do teste post hoc Z para a frequência
de conjunções nos subcorpora paralelos
Inglês original (Io)
–
Português brasileiro
traduzido (PT)
Português original (Po)
–
Inglês traduzido (IT)
Artigo acadêmico
-2,142626 / 0,261529
1,117886 / -1,189558
Discurso político
7,076311 / 7,974455
2,045824 / 3,444186
Divulgação científica
-7,454116 / -8,302080
-6,337658 / -5,887555
Ficção
-3,841942 / -0,74388
-1,300883 / -3,136453
Manual de instrução
-7,271953 / -2,646343
-5,155558 / -3,414615
Propaganda Turística
6,682284 / -0,47213
-1,891624 / -1,838476
Resenha
6,742905 / 7,567270
9,015954 / 6,840729
Website Educacional
0,193379 / -3,652116
2,495694 / 5,173498
subcorpus
Tipo textual
Fonte: Nunes (2014, p. 114)
Levando-se em consideração a variabilidade de registro entre
as distribuições das frequências nos subcorpora paralelos, os escores
contidos na Tabela 4 corroboram a hipótese de que tipos textuais de
caráter argumentativo (como textos dos tipos discurso político e resenha)
tendem a apresentar frequências de conjunções significativamente acima
das esperadas,17 já que esses elementos linguísticos compreendem “um
recurso coesivo retórico que comumente ocorre em textos dessa natureza
quando comparados a textos de outros tipos” (cf. NEUMANN, 2008
apud NUNES, 2014).
Pelo prisma da tipologia linguística, o autor advoga que as
distribuições das perspectivas paralelas apresentadas na Tabela 4 vão
de encontro à hipótese de que a frequência de ocorrência de conjunções
nos textos traduzidos seria significativamente acima da esperada se
comparada à frequência aos seus respectivos textos originais. Nunes
argumenta, assim, que não se pode generalizar a hipótese fundamentada
no fenômeno da explicitação (cf. BLUM-KULKA, 1986) em textos
Vale ressaltar que esses resultados se repetiram nas perspectivas comparáveis mono
e bilíngues.
17
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
33
traduzidos. Isso porque, segundo ele, nem todos os escores Z das
frequências nos textos traduzidos foram significativamente acima dos
esperados comparando-se às distribuições dos seus respectivos textos
originais. Ele ainda destaca que, ao contrário do que se poderia esperar,
alguns tipos de texto (como ficção e website educacional, por exemplo)
apresentaram distribuições significativamente abaixo das esperadas nos
textos traduzidos em inglês e em português brasileiro quando cotejados
com seus respectivos textos originais.
Nunes (2014) ainda mostra que, ao se comparar os valores de
cada par de escores na direção inglês-português brasileiro, puderam ser
notadas discrepâncias salientes nas distribuições das frequências nos tipos
artigo acadêmico, ficção, propaganda turística e website educacional,
com destaque para os dois últimos. O autor demonstra que nos primeiros
dois tipos de texto, enquanto ambas as frequências se mostraram
significativamente abaixo das esperadas nos textos originais, suas
traduções apresentaram, respectivamente, frequência abaixo e acima da
esperada, porém sem significância estatística. No tipo textual propaganda
turística, a frequência de conjunções nos originais foi expressivamente
acima da esperada, ao passo que nas traduções ela se mostrou abaixo
da esperada (contudo sem significância estatística nesta última). Já no
tipo textual website educacional, enquanto a distribuição obtida para os
textos originais foi pouco acima da esperada, nos textos traduzidos esta
frequência se mostrou consideravelmente abaixo da esperada.
Na direção português brasileiro-inglês, a comparação entre
os valores se fez relevante apenas em textos do tipo ficção, cuja
frequência nos originais esteve abaixo da esperada e, nas traduções,
significativamente abaixo da esperada.
Os resultados de Nunes (2014) para os subcorpora paralelos
foram produtivos sobretudo no que toca os textos do tipo ficção ao
mostrarem nestes 1) uma tendência de se explicitar conjunções em
português brasileiro traduzidos do inglês e 2) uma tendência de não se
explicitar esses recursos coesivos em textos em inglês traduzidos do
português brasileiro.
Conforme sinalizado anteriormente, os pares de escores Z
também foram observados pelas duas perspectivas comparáveis no
referido estudo. A Tabela 5 apresenta as distribuições nos dois subcorpora
comparáveis monolíngues.
34
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
TABELA 5 – Distribuições do teste Z para frequência de conjunções
nos subcorpora comparáveis monolíngues
Inglês original (Io)
–
Inglês traduzido (IT)
Português original (Po)
–
Português traduzido (PT)
Artigo acadêmico
-2,142626 / -1,189558
1,117886 / 0,2615289
Discurso político
7,076311 / 3,444186
2,045824 / 7,974455
Divulgação científica
-7,454116 / -5,887555
-6,337658 / -8,302080
Ficção
-3,841942 / -3,136453
-1,300883 / -0,7438762
Manual de instrução
-7,271953 / -3,414615
-5,155558 / -2,646343
Propaganda Turística
6,682284 / -1,838476
-1,891624 / -0,4721325
Resenha
6,742905 / 6,840729
9,015954 / 7,567270
Website Educacional
0,193379 / 5,173498
2,495694 / -3,652116
subcorpus
Tipo textual
Fonte: Nunes (2014, p. 115)
Os escores dos subcorpora de textos em inglês originais e
traduzidos em Nunes (2014) revelaram maior produtividade para os tipos
textuais artigo acadêmico, propaganda turística e website educacional,
sendo que estes últimos dois tipos apresentam as comparações mais
significativas. Ambas as distribuições, para o primeiro tipo textual,
apresentam valores de frequência abaixo da esperada. Porém, estas se
mostraram estatisticamente significativas apenas nos textos originais. Já
os textos de propaganda turística apresentaram escores consideravelmente
acima dos esperados nos textos originais e abaixo dos esperados (sem
significância estatística) nos textos traduzidos. O tipo textual website
educacional, por sua vez, apresentou nos textos originais escore
acima dos esperados (porém sem significância estatística) e escore
significativamente acima dos esperados nos textos traduzidos
As distribuições nos textos originais e traduzidos em português
brasileiro, por sua vez, ratificaram parcialmente a hipótese de que a as
frequências das conjunções nestes, em comparação aos textos originais e
traduzidos para o inglês, estariam dentro ou acima da frequência esperada,
considerando-se a sugestão de que “os recursos coesivos naquela língua
refletem maior grau de clareza e especificidade do que nesta” (cf.
35
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
VIEIRA, 1984 apud NUNES, 2014). Ainda, notou-se que, assim como
nos textos originais e traduzidos para o inglês, as distribuições dos escores
Z para os textos de divulgação científica e manuais de instrução no
subcorpus comparável monolíngue em português brasileiro se encontram
significativamente abaixo da frequência esperada para estes tipos textuais.
Os resultados do subcorpus monolíngue em português brasileiro
ainda indicaram que o tipo website educacional apresentou maior relevo,
já que a distribuição da frequência de conjunções foi significativamente
acima da esperada nos textos originais e significativamente abaixo nos
textos traduzidos, indicando assim uma oposição entre as magnitudes.
Se na perspectiva paralela a tipologia linguística impactou
na frequência de conjunções, sobremaneira em textos de ficção, na
perspectiva comparável monolíngue tal tipologia (língua original versus
língua traduzida neste par linguístico) também se mostrou determinante
na frequência destes recursos coesivos no tipo website educacional em
ambos os subcorpora.
As distribuições das frequências nos subcorpora comparáveis
bilíngues estão apresentadas na Tabela 6.
TABELA 6 - Distribuições do teste Z para frequência de conjunções
nos subcorpora comparáveis bilíngues
subcorpus
Inglês original (Io)
–
Português original (Po)
Inglês traduzido (IT)
–
Português traduzido (PT)
Artigo acadêmico
-2,142626 / 1,117886
-1,189558 / 0,2615289
Discurso político
7,076311 / 2,045824
3,444186 / 7,974455
Divulgação científica
-7,454116 / -6,337658
-5,887555 / -8,302080
Ficção
-3,841942 / -1,300883
-3,136453 / -0,7438762
Manual de instrução
-7,271953 / -5,155558
-3,414615 / -2,646343
Propaganda Turística
6,682284 / -1,891624
-1,838476 / -0,4721325
Resenha
6,742905 / 9,015954
6,840729 / 7,567270
Website Educacional
0,193379 / 2,495694
5,173498 / -3,652116
Tipo textual
Fonte: Nunes (2014, p. 117)
36
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
As distribuições da tabela não ratificam totalmente a hipótese
baseada no pressuposto de que, em virtude de explicitação de recursos
coesivos em línguas alvo (cf. BLUM-KULKA, 1986), os textos
traduzidos em inglês e em português brasileiro apresentariam frequência
significativamente acima da esperada se comparada às frequências dos
textos originais nessas línguas. Nesta perspectiva de análise, Nunes
assinala que, em algumas distribuições dos subcorpora de textos
traduzidos, as frequências observadas se mostraram significativamente
a) abaixo das frequências esperadas (como em textos do tipo website
educacional e divulgação científica em português brasileiro) e b)
significativamente acima das frequências esperadas, porém com valor
inferior às frequências observadas nos textos originais (como se observa
nas resenhas traduzidas em português brasileiro).
Quanto à comparação entre as distribuições nos subcorpora dos
textos originais, Nunes também aponta que houve significância para os
seguintes tipos textuais: artigo acadêmico, ficção, propaganda turística e
website educacional. Para o primeiro tipo, os números revelaram que as
frequências nos textos em inglês se mostraram significativamente abaixo
das esperadas, ao passo que estiveram acima das esperadas as frequências
nos textos em português brasileiro, porém sem significância estatística.
Nos textos de ficção, ambas as frequências se mostraram abaixo das
esperadas, mas houve relevância estatística apenas nos textos originais
em português brasileiro. A frequência nos textos de propagandas turísticas
originais em inglês, por sua vez, se mostrou significativamente acima
da esperada, ao passo que, nos textos originais em português do mesmo
tipo, a frequência esteve abaixo da esperada (porém sem significância
estatística para esta última). Por fim, a distribuição da frequência em
textos de websites educacionais originais em inglês se mostrou acima
da esperada (sem relevância estatística) e significativamente acima da
esperada nos textos originais em português brasileiro.
Já no subcorpus de textos traduzidos, os tipos ficção e website
educacional apresentaram maior relevo na comparação de ambas as
distribuições. Para o primeiro tipo textual, ambas as frequências se
mostraram abaixo das esperadas, sendo que nos textos traduzidos para
o inglês a frequência se mostrou significativamente abaixo da esperada
e nos textos traduzidos para o português a frequência se mostrou abaixo
da esperada (todavia sem significância estatística). Já no tipo website
educacional, a distribuição da frequência nos textos traduzidos para o
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
37
inglês se mostrou consideravelmente acima da esperada, estabelecendo
assim uma oposição com a frequência dos textos traduzidos para o
português brasileiro, que se mostrou significativamente abaixo da esperada.
Em termos gerais, os resultados das análises de Nunes (2014)
nas duas perspectivas paralelas e das quatro comparáveis revelaram que:
1) a variabilidade funcional de registro se mostrou como a variável com
maior impacto na frequência de ocorrência de conjunções no corpus,
em detrimento da tipologia linguística. Isso pode ser comprovado pela
hipótese baseada em Neumann (2008) ratificada na frequência dessas
marcas em textos com caráter argumentativo (resenha e discurso
político); 2) os pressupostos com base em Vieira (1984) não foram
integralmente corroborados, tendo em vista que nem todas as frequências
nos textos em português (originais e traduzidos) se mostraram dentro ou
acima das esperadas; 3) a hipótese baseada em Blum-Kulka (1986) foi
parcialmente corroborada, uma vez que nem todas as frequências nos
textos traduzidos nas duas línguas se mostraram acima das frequências
esperadas em comparação aos seus respectivos textos originais e/ou aos
seus respectivos textos comparáveis na mesma língua.
Os resultados da referida investigação ainda apontaram relevância
na frequência de ocorrência em dois tipos de texto: ficção e website
educacional. O primeiro apresentou significância das frequências nas
perspectivas paralelas e comparáveis bilíngues, revelando, em suma,
uma menor tendência de explicitação de conjunções neste tipo de
texto em língua inglesa original e traduzida (do português brasileiro)
em comparação com textos do mesmo tipo em português brasileiro.
O segundo tipo, por sua vez, revelou frequências significativas nas
perspectivas paralelas e comparáveis mono e bilíngues, sugerindo uma
tendência de menor explicitação de conjunções em língua portuguesa
brasileira traduzida do inglês, e de maior explicitação dessas marcas em
língua inglesa traduzida do português brasileiro.
A próxima seção sintetiza os resultados apresentados por Nunes
(2014), além de tecer suas implicações sobretudo para o campo disciplinar
dos estudos da tradução.
6. Conclusões
O estudo de Nunes (2014) apresentou achados de análise
automática de elementos de coesão obtidos a partir de etiquetamento
38
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
morfossintático e processamento automático de dados. Foram extraídas
frequências de ocorrência de conjunções em corpus paralelo bidirecional
bilíngue no par linguístico inglês-português brasileiro composto por
textos de oito tipos distintos. Os resultados destas frequências foram
analisados tanto pela perspectiva da tipologia linguística quanto pelo
viés da variabilidade de registro entre os tipos textuais.
Na esfera dos estudos descritivos da tradução orientados ao
produto, pode-se concluir que os achados da análise automática da
frequência de conjunções podem auxiliar na descrição linguística do
inglês e da variante brasileira do português em seus modos escritos, já
que destacaram os diferentes potenciais de explicitação de conjunções
de acordo com o tipo textual e com a tipologia texto original versus
texto traduzido. Como apontaram os resultados, textos ficcionais e de
websites educacionais foram os tipos mais produtivos dessa investigação:
nestes, evidenciou-se tendência à explicitação de conjunções nos textos
traduzidos em inglês, e, naqueles, observou-se esta mesma tendência nos
textos originais e traduzidos em português brasileiro.
No âmbito metodológico, o estudo se mostrou relevante no
sentido de apresentar ferramentas produtivas de atribuição de categorias
gramaticais (tendo a palavra como unidade de análise) para a investigação
de textos originais e traduzidos. Ainda, descreveu, de forma sequenciada,
procedimentos de extração automática e tratamento estatístico de dados
para a geração de resultados com maior confiabilidade.
Os achados da pesquisa ainda ensejam potencial de aplicação em
sistemas de tradução automática e como subsídio pedagógico na formação
de tradutores em tarefas que envolvam o par linguístico inglês-português
brasileiro e em ambas as direções.
Como principal apontamento para pesquisas futuras está a
replicação da metodologia aqui descrita para a investigação, com aporte
estatístico, da frequência de outras classes gramaticais em corpora
bidirecionais paralelos bilíngues.
agradecimentos
O autor agradece os esforços de toda a equipe de docentes e discentes
que compõe o Laboratório Experimental de Tradução (LETRA), ao
André Souza, pelo auxílio no tratamento estatístico dos dados, e também
à CAPES e ao CNPq pelo fomento financeiro.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020
39
referências
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
Identificação computacional de estruturas métricas
de versificação na prosa de Euclides da Cunha
Computational identification of versification metric structures
in Euclides da Cunha’s prose
Ricardo Carvalho
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, Bahia / Brasil
ricardo.sys@gmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7785-562X
Angelo Loula
Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, Bahia / Brasil
angelocl@uefs.br
https://orcid.org/0000-0001-7802-1731
João Queiroz
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil
queirozj@gmail.com, queirozj@pq.cnpq.br
https://orcid.org/0000-0001-6978-4446
resumo: Estruturas de versificação em prosa de língua portuguesa constituem um
fenômeno ainda inexplorado por teóricos e historiadores da literatura, e a mineração
automática de tais estruturas é inédita em Linguística Computacional. O sistema MIVES
(Mining Verse Structure) foi desenvolvido para escansão computacional de estruturas
métricas de versificação em prosa de língua portuguesa. Ele é capaz de identificar,
classificar e comparar, frequência, densidade e dispersão de estruturas heterométricas
de versificação, distribuídas em diversas escalas de observação -- de uma obra ou autor,
até períodos e movimentos literários. Apresentamos o sistema, e fazemos uma validação
preliminar dele em três obras de Euclides da Cunha (Os Sertões, À Margem da História,
Contrastes e Confrontos). Elas foram selecionadas porque constituem o corpus principal
de um dos mais importantes prosadores de língua portuguesa e porque Os Sertões foi
objeto do que Augusto de Campos chamou de “leitura verso-espectral”, uma operação
capaz de revelar “mais de 500 decassílabos na obra”. MIVES identificou estruturas
métricas em 48,18% das sentenças de Os Sertões, 48,96% de À Margem da História e
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.41-68
42
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
37,48% de Contrastes e Confrontos, uma taxa surpreendente, quando comparada aos
resultados exibidos por Augusto de Campos. Pode-se afirmar que MIVES inaugura
novos padrões de observação e análise de estruturas ainda não investigadas na prosa
literária de língua portuguesa.
Palavras-Chave: estruturas de versificação; prosa; mineração de versos; Euclides da
Cunha.
abstract: Versification structures written in Portuguese language prose are still an
unexplored phenomenon to literary theorists and historians, and the automatic mining of
such structures is still unseen in Computational Linguistics. The MIVES (Mining Verse
Structure) system was developed for computational scansion of metric versification
structures in Portuguese language prose. It is able to identify, classify and compare,
frequency, density and dispersion of heterometric structures of versification, distributed
at different scales of observation, from a work or author, to historical periods and
movements. We present the system, and a preliminary validation analysing three works
by Euclides da Cunha (Os Sertões, À Margem da História, Contrastes e Confrontos).
They were selected because they constitute the main corpus of one of the most important
Portuguese-language writers, and because Os Sertões was the object of what Augusto
de Campos (2010, p. 14) called “verse-spectral reading”, an operation able of revealing
“more than 500 decasyllables in the book, among sapphic and heroic verses, and more
than two hundred dodecasyllables. MIVES identified metric structures in 48.18% of the
sentences of Os Sertões, 48.96% of À Margem da História and 37.48% of Contrastes
e Confrontos, an unexpected rate when compared to the partial results of Augusto de
Campos. It can be said that MIVES inaugurates new patterns of observation and analysis
of structures not yet investigated in Portuguese language literary prose.
Keywords: structures of versification; verse mining; prose; Euclides da Cunha.
Recebido em 28 de fevereiro de 2019
Aceito em 05 de julho de 2019
1. Introdução
MIVES (Mining Verse Structure)1 foi desenvolvido para escansão
computacional de estruturas métricas de versificação em prosa de
O sistema está disponível em http://sites.ecomp.uefs.br/lasic/projetos/mives. Ele
resulta da colaboração entre o Laboratório de Sistemas Inteligentes e Cognitivos
(LASIC-UEFS), coordenado por Angelo Loula, e o Iconicity Research Group (IRG,
UFJF), coordenado por João Queiroz. Este sistema está relacionado à dissertação de
mestrado de Carvalho (2017).
1
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
43
língua portuguesa. Trata-se de um fenômeno inexplorado por teóricos e
historiadores da literatura, e inédito em Linguística Computacional. Uma
validação preliminar do sistema inclui a análise de três obras de Euclides da
Cunha – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos. Elas
foram selecionadas porque constituem o corpus principal de um dos mais
importantes prosadores de língua portuguesa, e porque os Sertões foram
objeto do que Augusto de Campos chamou de “leitura verso-espectral”
(CAMPOS, 2010, p. 14), uma “operação manual”2 de mineração de
estruturas de versificação “mal escondidas” sob a prosa de Euclides, capaz
de revelar “mais de 500 decassílabos no livro, entre sáficos e heróicos, e
mais de duas centenas de dodecassílabos” (CAMPOS, 2010, p. 14).
É bem conhecida a tese de que a “estrutura da poesia é um
paralelismo contínuo” (JAKOBSON, 1988, p. 102), em vários níveis
de descrição, linguísticos e paralinguísticos: paralelismos gramaticais,
sintáticos, fonológicos, rítmicos, e até tipográficos. Este fenômeno
não tem correspondência na prosa. Mas, como afirma Jakobson (1988,
p. 106), a prosa literária “ocupa um lugar intermediário entre a poesia
enquanto tal e a língua de comunicação comum, prática, não se devendo
esquecer que é incomparavelmente mais difícil analisar um fenômeno
intermediário, de transição, do que estudar fenômenos extremos”. Neste
domínio, diversas formas de paralelismo se distribuem em muitos níveis
de descrição, permitindo inclusive a identificação de estruturas métricas
de versificação sob a superfície aparentemente mais uniforme da prosa,
um fenômeno surpreendente e ainda inexplorado.
O verso é usualmente definido como a linha do poema. Ele pode
ter diversas medidas ou extensões, e pode se organizar de acordo com
diversos padrões. O metro é a medida do verso (SPINA, 2003, p. 29).
Em português, o sistema de metrificação é silábico-acentual -- conta-se o
número de sílabas de cada verso e verifica-se a alternância entre sílabas
fortes e fracas. A alternância regular cria certos padrões que, combinados às
repetições posicionais das sílabas, cria segmentos internos, estabelecendo
as regras de versificação ou metrificação (ALI, 2006). O processo de
identificação e classificação dos padrões historicamente normatizados
Trata-se, evidentemente, de uma “simplificação”, para efeito classificatório, e em
oposição à operação computacional, chamar esta operação (escansão de versos)
de “manual”. Ela resulta de uma complexa interação entre “percepção categorial”
(percepção de classes e categorias) e diversas formas de inferência analógica e indutiva.
2
44
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
pela tradição literária é chamado de escansão. Não decorre deste processo,
que atua predominantemente em poemas de versos metrificados, um
resultado inequívoco, de classificação dos padrões, livre de contexto. Um
verso pode, porque possui certos encontros vocálicos, ser escandido como
um decassílabo (dez sílabas poéticas) ou um eneassílabo (nove sílabas
poéticas). A decisão sobre como deve comportar-se depende, usualmente,
do contexto, dos versos antecedentes, e da tradição histórica.
A prosa não constitui objeto da escansão, em qualquer de suas
modalidades, inclusive literária. Entretanto, alguns estudiosos se detiveram
na identificação de estruturas métricas de versificação na prosa. Em língua
portuguesa, são pioneiros os trabalhos de Guilherme de Almeida (1946) e
Augusto de Campos (2010). Campos, em A Poética de Os Sertões, publicado
em 1997 (reeditado em 2010), retoma e amplia o “projeto de prospecção”
de Almeida, publicado originalmente em 1946, e revela estruturas deca e
dodecassilábicas “mal escondidas” sob a prosa de Euclides da Cunha. Para
Campos (2010, p. 297-298), “[Euclides da Cunha], a propósito, escrevia
poesia e conhecia bem a métrica, embora nada tivesse escrito de relevante
como poeta. Ao constatar esses padrões rítmicos definidos na sua obra em
prosa, achei que seria interessante e útil anotá-los e acentuá-los.” Se tais
estruturas resultam de uma experimentação deliberada, se são “fruto de
pura intuição ou de consciente artesania” (CAMPOS, 2010, p. 27), isso
pouco importa no domínio de descoberta empírica do fenômeno. O fato
mais relevante é que há, na prosa euclidiana, estruturas heterométricas
de versificação, de padrões rítmicos variados. Pode-se perguntar: este
fenômeno pode ser generalizado para toda obra de Euclides? Sua frequência
(e distribuição) é regular ao longo de suas obras? Há estruturas métricas
de versificação na prosa literária de outros autores, de outros períodos?
Diversos sistemas desenvolvidos recentemente em Linguística
Computacional concentram-se na automatização da escansão de poemas
em versos metrificados (MITTMANN, WANGENHEIM, SANTOS,
2018; PLAMONDON, 2006; ARAÚJO; MAMEDE, 2002; GERVÁS,
2000). Mas Oostendorp (2014), por exemplo, desenvolveu um sistema
que minera padrões de alternância de tônicas na prosa. Nosso propósito
assemelha-se ao de Oostendorp, embora seja mais geral e ambicioso.
MIVES está relacionado à concepção de um modelo computacional
sincrônico-diacrônico de análise estatística de distribuição de padrões
heterométricos de versificação na prosa, relação com o período literário
correspondente, com as obras de um autor, de diversos autores, e de
diversos períodos literários. O que vamos apresentar aqui é apenas a
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
45
primeira etapa deste projeto. Nosso propósito é analisar a frequência
e a densidade de estruturas métricas em Os Sertões, de Euclides da
Cunha, e comparar os resultados com análises de À Margem da História
e Contrastes e Confrontos, do mesmo autor.
2. Identificação automática de estruturas métricas de versificação
MIVES (Mining Verse Structure) foi desenvolvido, como
afirmamos, para identificar e classificar, na prosa literária, sentenças ou
trechos de sentenças que possuem estruturas métricas de versificação.
O sistema extrai as sentenças do texto, identifica e classifica estruturas
métricas procuradas pelo usuário, e fornece uma visualização dos
resultados obtidos. O maior desafio encontra-se no processo de
identificação de estruturas métricas, uma vez que não decorre da escansão
um resultado único, inequívoco, independente de contexto. Como
trata-se de prosa, não há uma clara demarcação do início e do fim das
estruturas, como encontramos mais facilmente nos versos de um poema
metrificado. Na prosa, a estrutura métrica pode ser formada por uma
sentença completa, ou por um trecho de sentença.
O processamento (Figura 1) tem início com a extração de
sentenças de um arquivo de texto. Cada sentença, em seguida, é
segmentada em palavras para separação silábica e identificação de sílabas
tônicas. Depois, ela é submetida à escansão, que considera variações
normativamente aceitas de separação silábica. Determina-se, então, se a
sentença, ou um trecho dela, possui um padrão métrico, e são indicadas
possíveis alternativas. O texto, cujas sentenças métricas e variações foram
identificadas, é enviado para uma interface de visualização, navegação
e análise dos resultados.
FIGURA 1 – Etapas de processamento do MIVES
46
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
Extração das sentenças
A partir da cópia digital de um texto em prosa, é feito uma
segmentação em sentenças – um segmento frásico na forma de uma
sequência de palavras que termina em um marcador. Chamamos este
marcador de “ponto final da sentença”. Ele pode ser o ponto de um
segmento, ou um ponto final, funcionando como um delimitador.
O principal desafio desta etapa é identificar pontos que não são
delimitadores, como aqueles utilizados nos pronomes de tratamento.
Além disso, é necessário considerar casos como títulos e subtítulos, que
geralmente não terminam com um delimitador e devem ser tratados como
sentenças. As fases posteriores de processamento têm foco nas sentenças,
na busca de sentenças completas, ou trechos de sentenças.
separação silábica e marcação de sílabas tônicas
Embora os protocolos de separação de sílabas poéticas e
gramaticais não produzam, necessariamente, resultados coincidentes,
a separação gramatical de sílabas é um passo inicial para realização da
separação poética. Nesta etapa, uma sentença como “Hipóteses sobre a
sua gênese.” pode ser escandida como “Hi/p#ó/te/ses/ s#o/bre a s#u/a
g#ê/ne/se”, onde / indica um separador de sílaba e # um marcador de
sílaba tônica. A separação silábica realizada pelo sistema, e a marcação
das tônicas, utilizam um algoritmo desenvolvido por Neto, Rocha e Souza
(2015), associado a um dicionário interno do MIVES, para obter melhor
desempenho e para tratar exceções e falhas do sistema de Neto, Rocha e
Souza (2015). O algoritmo de Neto, Rocha e Souza (2015) baseia-se em
20 regras fonológicas propostas inicialmente por Silva, Braga e Resende
Jr (2008). A ideia aqui é que todas as sílabas possuem uma vogal como
núcleo, que pode ser cercada por consoantes ou por outras vogais (semivogais ou glide). Segundo Neto, Rocha e Souza (2015), o algoritmo foi
testado em um extrato de 10.000 palavras escolhidas aleatoriamente na
base de dados do CETENFolha, obtendo uma taxa de acerto de 99.14%.
Como afirmamos, além deste algoritmo, o MIVES usa um dicionário com
palavras associadas a uma versão com separação silábica gramatical.
O processamento de separação silábica é lento. Assim, optamos
por armazenar palavras separadas silabicamente em uma estrutura de
dados de dicionário baseado em mapa,3 em que as chaves são organizadas
3
Um mapa é uma estrutura de dados que mantém uma coleção de chaves associadas a
um valor, em pares (chave, valor). Nesta estrutura, uma chave ocorre uma única vez.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
47
por tabela hash,4 e são armazenadas em disco para persistência.5 Para
obter a separação silábica, e marcação de tônicas, realiza-se uma busca no
dicionário. Caso a palavra não seja encontrada, é executado o algoritmo
de Neto, Rocha e Souza (2015) e o resultado é armazenado para consultas.
Além de otimizar o tempo de processamento, o dicionário é utilizado
para armazenar palavras que não são processadas adequadamente pelo
algoritmo de Neto, Rocha e Souza (2015). Por exemplo, “euforia” deveria
ser separado como “eu/fo/ri/a” e não como “eu/fo/ria”, resultado obtido
pelo algoritmo. Diversas exceções foram incluídas no dicionário do
MIVES e novas palavras podem ser incluídas pelo usuário.
Escansão e identificação das estruturas métricas de versificação
Mas a escansão não termina na fase de separação silábica das
palavras, consideradas isoladamente, e marcação das tônicas. Fenômenos
vocálicos intervocabulares (entre as palavras), ou intravocabulares (no
interior da palavra), são considerados, determinando diversas variações
aceitas. Em certos casos, os resultados de escanções podem coincidir
com resultados da separação silábica gramatical, mas não se trata de
uma norma. Esta etapa da escansão constitui o núcleo do MIVES. São
considerados fenômenos intravocabulares (crase, sinérese, diérese) e
intervocabulares (crase, sinalefa, elisão). Eles cobrem um grande espectro
de ocorrências. Outros fenômenos podem afetar a escansão, como aférese,
apócope ou síncope, mas eles são raros e de difícil especificação.
A crase intravocabular é caracterizada pela união, em uma sílaba,
de vogais idênticas tratadas originalmente como hiato; por exemplo,
“saara” (“sa/a/ra”) transforma-se em “saa/ra”. A sinérese é caracterizada
pela transformação de hiatos em ditongos; por exemplo, “magoado” (“ma/
go/a/do”) torna-se “ma/goa/do”. Menos frequente, a diérese é caracterizada
pela transformação de um ditongo em um hiato; por exemplo, “saudade”
(“sau/da/de”) torna-se “sa/u/da/de”. A crase intervocabular é a fusão de duas
vogais idênticas, ao final de uma palavra e início da palavra subsequente;
por exemplo, no verso “É/ a es/car/pa a/brup/ta e/ vi/va/ dos/ pla/nal/tos.”,
Também conhecida como “tabela de espalhamento”. É uma estrutura de dados que utiliza
chaves associadas a valores e permite consulta rápida de um valor a partir de uma chave.
5
Relaciona-se ao armazenamento de dados de forma não-volátil, permitindo que, em
qualquer momento, uma informação seja recuperada a partir de um dispositivo de
processamento de dados autorizados.
4
48
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
com crase em “escarpa abrupta”. A sinalefa é caracterizada pela passagem
da primeira vogal para semivogal, formando um ditongo com a vogal da
palavra subsequente; por exemplo, no verso “A/cu/do eu/ lo/go, e, en/
quan/to o/ re/mo a/per/to.”, o fenômeno aparece entre a última sílaba de
“Acudo” e “eu”. A elisão é caracterizada pela supressão da primeira vogal
em detrimento da seguinte; por exemplo, entre a última sílaba de “como”
e “uma” no verso “co/mo u/ma/ nó/doa am/plís/si/ma/ de/ san/gue.”.
O processo de escansão não produz resultados inequívocos. Os
fenômenos descritos (intra e intervocabulares) podem ser considerados,
ou não. A aplicação das regras é decidida pela escolha de pares de
vogais a serem considerados para cada fenômeno vocálico. A busca
por estruturas respeita as delimitações do usuário do sistema, que pode
indicar, para cada encontro vocálico (par de sílabas), quais regras de
fusão ou separação devem ser aplicadas. Além disso, o usuário decide
os limites dos metros investigados (contagem total de sílabas), com
valores mínimos e máximos. Durante a escansão, as escolhas das regras
vocálicas e os limites de metrificação indicados pelo usuário determinam
as variações a serem consideradas pelo sistema.
Neste módulo, o algoritmo de escansão realiza uma análise para
identificar possíveis ocorrências de crase, sinérese e diérese. Ao encontrar
vogais átonas, iguais e adjacentes na palavra, caracterizando uma crase,
o algoritmo é capaz de transformar, conforme instruções fornecidas pelo
usuário, duas sílabas em uma. Os casos de sinérese e diérese também
dependem de um conjunto de parâmetros fornecidos pelo usuário. Ele
informa que combinações de vogais adjacentes devem ser consideradas,
e como estas combinações devem ser utilizadas quando identificadas no
interior de uma palavra. Para a sinérese e diérese, o usuário deve informar
pares de vogais, que serão tratados como encontros vocálicos ou ditongos
e, para cada par informado, qual deve ser o comportamento do sistema
durante a escansão. Nesta etapa, “É mais um inimigo a suplantar.” tornase, por exemplo, “É/ mais/ um/ i/ni/mi/go a/ su/plan/tar.”. Como não é
produzido um resultado inequívoco, o mesmo verso pode ser escandido
diferentemente. Assim, na busca por estruturas entre dez e doze sílabas
métricas, e aceitando variações previstas, uma sentença escandida como
“Es/ta i/lu/são/ é/ em/pol/gan/te ao/ lon/ge.” (10 sílabas) torna-se “Es/ta/
i/lu/são/ é/ em/pol/gan/te ao/ lon/ge.” (11 sílabas), ou “Es/ta/ i/lu/são/ é/
em/pol/gan/te/ ao/ lon/ge.” (12 sílabas).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
49
A busca por estruturas métricas não está restrita a sentenças
completas. Trechos iniciais ou finais de sentenças podem ser avaliados,
conforme decisão do usuário. Para um trecho de início, ou final, de
sentença, sinais de pontuação tais como ponto, vírgula, ponto-vírgula,
dois pontos, reticências e exclamação, são utilizados como delimitadores.
Para a identificação de trechos, as sentenças são escandidas até que se
encontre uma estrutura métrica adequada aos padrões designados pelo
usuário. Só então é verificada a existência de um delimitador para validá-la
como um trecho aceitável. Assim, trechos iniciais de sentenças escandidas
são considerados válidos se terminados com um dos sinais de pontuação
mencionados. Depois de escandidas as sentenças, ou trechos de sentenças,
são identificadas aquelas que satisfazem as estruturas métricas designadas
pelo usuário. As versões escandidas são associadas às sentenças originais
no texto, e o texto processado é enviado para visualização e análise.
Visualização e análise de resultados
Para avaliação dos resultados, foi desenvolvida uma interface
para navegação e análise das escansões, com múltiplas visões dos
resultados (Figuras 2 e 3). As sentenças são visualmente destacadas no
texto original. Isto permite ao usuário avaliar a sentença identificada,
comparando-a com sentenças próximas. Para uma visualização somente
das sentenças identificadas, é organizada uma lista na ordem de ocorrência
do texto, e suas escansões.
Além da identificação das sentenças, o sistema gera gráficos
que permitem visualizar a dispersão das sentenças ao longo do texto
processado e a frequência absoluta dos padrões métricos classificados
em ordem decrescente (do mais ao menos frequente). Pode-se também
obter gráficos que representam as distâncias, ou intervalos, entre as
sentenças. Para sentenças que não foram identificadas como métricas, a
interface permite que o usuário verifique como foi realizada a escansão,
de modo que ele pode avaliar o motivo da exclusão de um determinado
segmento dos resultados. Para analisar os resultados através de outras
ferramentas, pode-se exportar as sentenças encontradas, escandidas e
classificadas, e a relação de todas as sentenças (métricas ou não) com a
indicação de metros escandidos.
50
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 2 – Interface do sistema
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
51
FIGURA 3 – Interface do sistema
52
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
3. resultados
Exibimos os resultados obtidos em três obras de Euclides da
Cunha – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos.
Apresentamos dois protocolos de validação: uma escansão de Os
Lusíadas, e uma comparação com os resultados obtidos por Augusto
de Campos em Os Sertões. Para processar estas obras, MIVES foi
configurado para buscar somente estruturas métricas de 10 a 12 sílabas.
Quanto à parametrização dos fenômenos vocálicos, foram consideradas
todas as fusões e separações vocálicas para todas combinações de vogais.
Validação da escansão
Para validar o processo de escansão do MIVES, porque não há uma
fonte de comparação equivalente (versos na prosa literária) além daquela
fornecida por Augusto de Campos (2010), utilizamos Os Lusíadas, composta
de 8.816 versos decassilábicos. Como ela está estruturada em estrofes de
versos, foi necessário realizar uma adequação na estrutura do texto para o
sistema reconhecer cada linha do poema como um segmento frásico. Esta
operação foi baseada na substituição de todos os sinais de pontuação, no
final de cada verso, por um ponto de final de sentença, também inserido
nos versos que não possuíam sinais de pontuação. Para validação, foram
procurados versos decassilábicos. MIVES escandiu 8.256 versos, com
uma taxa de acerto de cerca de 94%. Os 6% não escandidos resultam de
aspectos relacionados a ectlipse, erros do separador silábico gramatical,
estrangeirismos, e uso de diacríticos na obra de Camões, pouco usuais hoje.
Validação da mineração em prosa
Campos (2010, p. 14) afirma ter encontrado mais de quinhentos
decassílabos e mais de duas centenas de dodecassílabos em Os Sertões.
Entretanto, nem ele nem Almeida apresentam uma lista completa das
estruturas encontradas. Mapeamos, entre os exemplos de decassílabos e
dodecassílabos apresentados por Campos, que incluem alguns exemplos de
Almeida, os trechos de início e final de sentenças marcados por delimitadores
(ponto, vírgula, ponto-vírgula, dois pontos, reticências e exclamação), além
de sentenças completas. Resultou desse mapeamento uma base de validação
formada por 35 sentenças completas, 14 trechos iniciais de sentenças e 35
trechos finais. Processamos Os Sertões para identificação das estruturas. Os
resultados apresentaram muitas estruturas não exibidas por Almeida e por
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
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Campos. Para comparação, usamos aquelas que estão entre os exemplos
mencionados. Das 36 sentenças completas apresentadas por Campos,
35 foram identificadas pelo MIVES. A única estrutura não identificada
pelo sistema foi escandida com métrica superior a 12 sílabas poéticas. A
diferença resultou de variações não previstas pelo MIVES, como ecliptse,
síncope e apócope. “Um primor de estatuária modelado em lama.” foi
escandido por Campos como um dodecassílabo, e pelo MIVES como “Um/
pri/m#or/ de es/ta/tu/#á/ria/ mo/de/l#a/do em/ l#a/ma.”,6 com 13 sílabas
poéticas. Dois fenômenos intervocabulares foram considerados, entre as
palavras “de” e “estatuária”, e entre as palavras “modelado” e “em”. Para
considerar um dodecassílabo, em “estatuária” precisaríamos aplicar uma
sinérese entre a 3ª e 4ª sílabas, não aplicada porque o sistema preserva a
autonomia da sílaba tônica que sucede uma vogal.
Para as estruturas métricas que formam o início das sentenças,
foram considerados 14 trechos iniciais de sentenças apresentados por
Campos, delimitados por sinais de pontuação. Destes, 11 foram escandidas
com metros equivalentes aos apresentados por Campos e três com
estruturas que possuem mais de 12 sílabas. Um exemplo de estrutura não
escandida, entre 10 e 12 sílabas, é a sentença “Che/ga/vam,/ es/tro/pi/a/dos,/
da/ jor/na/da/ lon/ga,” classificada pelo sistema com 13 sílabas poéticas.
Almeida destacou a predominância de estruturas no fim das
sentenças. De 56 estruturas, delimitadas por sinal de pontuação, 50
foram classificadas entre decassílabos e dodecassílabos; 6 não foram
identificadas pelo MIVES porque suas escansões estão fora dos limites
previstos, como é o caso de “exuberando floração ridente em meio da
desordem tropical.”, que obteve 20 sílabas.
Se consideramos a taxa de identificação de estruturas métricas da
base de validação, MIVES identificou 97,22% das sentenças completas,
78,57% no início de sentenças e 88,57% nos trechos finais. O sistema
não obteve escansões entre 10 e 12 sílabas quando exigidas variações
fonológicas desconsideradas (e.g., ecliptse, síncope e apócope), ou em
estruturas maiores, como no exemplo mencionado de 20 sílabas.
Foram identificadas pelo MIVES, 4267 estruturas métricas em
Os Sertões, entre decassílabos e dodecassílabos, um número muito maior
de estruturas do que aquela fornecida por Campos e por Almeida. Entre
decassílabos e dodecassílabos não apresentados por Campos, podemos
6
O símbolo # indica o posicionamento da sílaba tônica.
54
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
mencionar os heroicos “Seguiam sucessivas, incansáveis,”, escandido
pelo MIVES como “Se/gu#i/am/ su/ce/ss#i/vas,/ in/can/s#á/veis,”, e
“Calcula friamente o pugilato”, escandido como “Cal/c#u/la/ fri/a/m#en/
te o/ pu/gi/l#a/to.”, e o alexandrino “Empanaram-se todas as vistas, de
lágrimas…” escandido pelo MIVES como “Em/pa/n#a/ram/se/ t#o/das/
as/ v#is/tas,/ de/ l#á/gri/mas…”.
Comparação entre as obras de Euclides da Cunha
Foram analisadas três obras de Euclides da Cunha – Os Sertões, À
Margem da História e Contrastes e Confrontos. O sistema foi configurado
para identificar sentenças (ou trechos de sentenças) com estruturas deca
e dodecassilábicas, considerando a possibilidade de existirem diferentes
padrões rítmicos para um mesmo segmento de texto. Um resumo dos
resultados é apresentado na tabela 1.
TABELA 1 – Comparação entre Os Sertões, À Margem da História
e Contrastes e Confrontos
Obra
Parâmetros
Os Sertões
À Margem da
História
Contrastes e
Confrontos
Total de sentenças processadas
8564
1066
1598
Sentenças completas
com estrutura métrica
(total e frequência)
652
7,61%
76
7,13%
82
5,13%
227
21,29%
282
17,65%
Início de sentenças
com estrutura métrica
(total e frequência)
1746
20,39%
Finais de sentenças
com estrutura métrica
(total e frequência)
1728
20,18%
219
20,54%
235
14,71%
Quantidade de decassílabos
(sentenças completas,
trechos iniciais e finais)
354 (18,14%)
859 (44,00%)
739 (37,86%)
Total: 1952
36 (17,14%)
93 (44,29%)
81 (38,57%))
Total: 210
43 (15,99%)
134 (49,81%)
92(34,20%)
Total: 269
Quantidade de Dodecassílabos
(sentenças completas,
trechos iniciais e finais)
360 (15,69%)
854 (37,21%)
1081 (47,10%)
Total: 2295
34 (13,28%)
106 (41,40%)
116 (45,31%)
Total: 256
40 (11,73%)
156 (45,75%)
145 (42,52%)
Total: 341
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
55
Esta tabela exibe uma estatística descritiva de frequências, cuja
regularidade podemos chamar de “comportamento métrico-versificatório
da prosa de Euclides”. Como são obras de diferentes extensões, usamos
a maior delas (Os Sertões) como referência para comparação. Os
resultados baseiam-se em frequência absoluta, para obter a quantidade
total de estruturas identificadas, e frequência relativa ao total de sentenças
processadas, para identificar o comportamento relacionado a estruturas
de versificação por sentença processada.
Ao avaliar a densidade geral de estruturas métricas, em relação ao
total de sentenças da obra (figura 4), nota-se que 48,18% das sentenças
de Os Sertões, 48,96% das sentenças de À Margem da História, e
37,48% das sentenças de Contrastes e Confrontos apresentam estruturas,
indicando alta densidade, particularmente nas duas primeiras obras. Ao
comparar os valores de frequência relativa de estruturas métricas em
sentenças completas, trechos iniciais e finais, nota-se que há grande
proximidade entre as obras analisadas, exceção feita apenas aos casos de
fins de sentença em Contrastes e Confrontos, de 14,71%. Mas esta obra
também possui frequência inferior para sentenças completas e para início
de sentenças. Ainda assim, podemos afirmar que há grande proximidade
entre as obras analisadas (ver gráfico abaixo, figura 4).
FIGURA 4 – Comparativo entre três obras de Euclides da Cunha – Frequência
relativa ao total de sentenças. Os rótulos “completas”, “início” e “final”, referem-se a
localização das estruturas métricas no segmento analisado.
56
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
Uma importante propriedade está relacionada à grande quantidade
de estruturas deca e dodecassílabicas. Os resultados observados na Tabela
1 mostram a predominância destas estruturas em relação ao total das
sentenças identificadas. Elas ultrapassam 90% do total das sentenças com
estruturas métricas identificadas pelo MIVES, na busca por sentenças
entre 10 e 12 sílabas poéticas.
Além da estatística de frequência de estruturas métricas, podemos
avaliar a distribuição de suas ocorrências ao longo da obra por uma
medida de distância (quantidade de sentenças entre uma estrutura e
outra), conforme vemos na tabela 2. As médias, e desvios das distâncias
(quantidade de sentenças não métricas entre duas ocorrências de estruturas
métricas), indicam que não existe uma regularidade na distribuição de
estruturas métricas nas obras, com estruturas adjacentes (distância zero),
e distantes entre si (alto valor de distância). Resultados relacionados à
distância e distribuição são graficamente explorados na próxima seção.
TABELA 2 – Distâncias entre estruturas – Os Sertões, À Margem da História e
Contrastes e Confrontos
obra
Parâmetros
Os Sertões
À Margem da
História
Contrastes e
Confrontos
Distância entre sentenças
12,63±12,88 (0-82) 14,62±16,89(0-77)
18,38±19,61(0-109)
(sentenças, trechos iniciais
e finais): média, desvio
padrão, mínimo e máximo
4,02±4,54 (0-46)
4,33±4,37(0-27)
4,71±5,60(0-35)
3,76±4,13 (0-30)
4,49±4,64(0-23)
5,85±6,61(0-59)
Outro resultado obtido está relacionado ao posicionamento das
tônicas nas estruturas métricas. Foram identificados diversos padrões
rítmicos, deca e dodecassilábicos; entre eles, heróicos/martelos, sáficos,
e gaita galega (Tabela 3).
57
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
TABELA 3 – Padrões Rítmicos identificados
Obra
Heroico
Martelo
Sáfico
Gaita
Galega
Alexandrino
Os Sertões
182
125
59
50
220
Contrastes e Confrontos
18
17
6
9
32
À Margem da História
30
14
3
4
29
Os valores absolutos de frequência dos padrões rítmicos de Os
Sertões são consideravelmente maiores que aqueles observados nas outras
obras. Mas é importante notar que as obras possuem extensões diferentes,
conforme observado na Tabela 1. Em Os Sertões foram processadas 8564
sentenças; em Contrastes e Confrontos, 1598 sentenças; em À Margem
da História, 1066 sentenças. Se analisarmos a frequência relativa dos
padrões rítmicos, em relação ao número de sentenças processadas em
cada obra, notamos que a frequência com que estes tipos ocorrem entre
Os Sertões e À Margem da História é similar (Figura 5).
FIGURA 5 – Frequência relativa de padrões rítmicos (Decassílabos Heroicos,
Martelos, Sáficos e Gaitas x Dodecassílabos Alexandrinos)
58
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
Mais resultados e potencial analítico
As informações obtidas pelo sistema incluem: identificação
de estruturas, frequência absoluta e relativa de ocorrência, valores de
distância entre as sentenças e valores de desvio padrão. Nesta subseção,
apresentamos outros mecanismos usados para visualização e análise de
resultados.
Embora a média das distâncias e dos valores de desvio padrão,
como apresentados na Tabela 1, permitam avaliar uma tendência
geral, e uma variação da distância entre estruturas métricas, ela não
permite visualizar sua dispersão, ou distribuição, ao longo da obra;
não visualizamos “regiões da obra” com maior ou menor frequência
de estruturas métricas. Os gráficos de dispersão (Figuras 6, 7 e 8)
permitem “situar” as estruturas métricas ao longo da obra. Nestes
gráficos, o eixo central horizontal representa a sequência de sentenças
na obra, e as ocorrências (sentenças com estruturas métricas) equivalem
aos marcadores verticais. Áreas de maior concentração de estruturas
equivalem a maior densidade de marcadores.
Os gráficos de dispersão evidenciam que as sentenças com
estruturas métricas estão distribuídas ao longo de cada obra, sem notável
concentração em partes específicas de cada uma. Como as obras possuem
um número distinto de sentenças, cada gráfico tem uma escala diferente
para o eixo horizontal. Assim, o gráfico de dispersão de Os Sertões
aparenta ter uma maior concentração de sentenças métricas ao longo
da obra, mas este é um efeito do tamanho dela, que é 8 vezes maior
(quantidade de sentenças).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 6 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de Os Sertões
59
60
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 7 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de À Margem da História
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
61
FIGURA 8 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de Contrastes e Confrontos
Adicionalmente, com o propósito de quantificar a densidade de ocorrência de sentenças com estruturas
ao longo das obras, exibimos gráficos que apresentam frequência de estruturas, em intervalos de 200 sentenças
(Figuras 9, 10 e 11). Eles representam a variação contínua de frequência em intervalos regulares, exibindo
regiões com maior e menor incidência de sentenças estruturadas, e sua variação ao longo da obra.
62
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 9 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação, em intervalos
de 200 sentenças, para Os Sertões
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 10 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação em intervalos
de 200 sentenças para À Margem da História
63
64
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019
FIGURA 11 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação em intervalos
de 200 sentenças para Contrastes e Confrontos
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
65
De acordo com os gráficos das Figuras 9, 10 e 11, são mais
incomuns, ao longo das obras, sentenças com estruturas formadas por
frases completas, quando comparadas às sentenças com estruturas
métricas encontradas em inícios e finais de segmentos frásicos. Não
deve ser tratado como uma coincidência o fato de que, nas três obras
analisadas, a proporção de sentenças completas com estruturas métricas
representam, em média, 30% do número de sentenças com estruturas
métricas de início e final de sentenças. Além disso, estes gráficos
indicam que a frequência de ocorrências de estruturas métricas não é
uniforme. Há regiões com valores mais altos, formando picos, e outras
com baixa frequência, formando vales, indicando certa alternância do
fenômeno ao longo da obra. Também nota-se, nos gráficos das Figuras
7 e 8, um comportamento similar de alternância entre os valores de
frequência das sentenças com estrutura métrica no início e no final. Outro
aspecto notável é o comportamento similar exibido pela distribuição de
frequência absoluta de estruturas entre regiões de Os Sertões e À Margem
da História. Este fenômeno não tem correspondência em Contrastes e
Confrontos (Figura 9).
4. Comentários finais
Distinto dos muitos sistemas computacionais já desenvolvidos
para escandir poemas metrificados, MIVES foi concebido para escandir
estruturas metrificadas na prosa, uma operação que Augusto de Campos
(2010, p. 14) chamou de “leitura verso-espectral”. A automatização
computacional deste processo revelou uma densidade surpreendente de
estruturas de versificação em diversas obras de Euclides da Cunha. Em
relação ao total de sentenças da obra, MIVES identificou estruturas em
48,18% das sentenças de Os Sertões, 48,96% de À Margem da História,
e 37,48% de Contrastes e Confrontos, uma taxa surpreendente, quando
comparada aos resultados exibidos por Augusto de Campos e Guilherme
de Almeida. Podemos supor que taxas tão elevadas de estruturas possam
ser encontradas na prosa literária de outros autores, outras tradições
e períodos literários? Tal fenômeno ainda não foi investigado, e é o
desenvolvimento “natural” deste projeto – uma análise de obras de
diversos períodos para avaliar comparativamente, historicamente, o uso
e o comportamento de padrões de estruturas métricas na prosa. Como
afirmamos (seção 1), o que apresentamos aqui é apenas a primeira etapa
de um projeto mais ambicioso.
66
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020
Obviamente, MIVES pode realizar escansões em quantidade
muito maior do que qualquer agente humano. Mas, ainda mais
interessante, como ferramenta, é a capacidade que MIVES inaugura para
identificar, quantificar e exibir padrões de distribuição de estruturas de
versificação ao longo do texto, numericamente, com estatística descritiva
e atributos de distância, e visualmente, através de gráficos de dispersão e
frequência ao longo das obras. Não é um exagero afirmar que o sistema é
capaz de abrir uma nova direção nas investigações sobre a prosa literária,
em língua portuguesa.
agradecimentos
Os autores agradecem a Mariana Salimena pela concepção e
desenvolvimento da interface gráfica do sistema (MIVES).
Contribuição dos autores
Ricardo Carvalho: concepção e desenho da pesquisa, desenvolvimento
da ferramenta, obtenção de dados, análise e interpretação dos dados e
redação do manuscrito. Angelo Loula: concepção, desenho e orientação
da pesquisa, análise e interpretação dos dados e redação do manuscrito.
João Queiroz: concepção, desenho e orientação da pesquisa, análise e
interpretação dos dados e redação do manuscrito.
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Entre letras e armas: sobre a gênese do ensino
do espanhol no Brasil
Between letters and weapons: on the genesis
of Spanish teaching in Brazil
Ana Cavalheiro Recuero
Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, Rio Grande do Sul / Brasil
analuciacavalheiro@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-2737-5801
resumo: Este estudo resgata o processo histórico que inaugurou e institucionalizou
o ensino do espanhol no Brasil e analisa os argumentos operados no arquivo
governamental para justificar a inclusão do idioma. Para identificar as ideologias
linguísticas e os ideologemas associados, tal retrospectiva é abordada a partir da
área das Políticas Linguísticas e através de uma perspectiva glotopolítica. Ainda que
as políticas que determinaram a inserção do espanhol tenham tido como gatilho as
geopolíticas de integração sul-americanas, os discursos analisados oscilam entre essa
memória, expressada através de uma retórica fundamentada no ideologema da grande
família continental; outra que remete a uma memória ibérica, marcada pelo ideologema
do espanhol como a língua de Cervantes; e, por fim, uma representação que mescla as
anteriores e se desvela nas figuras do aluno culto, cidadão de uma imaginada América
bilingue e do soldado letrado, integrante de um imaginado exército bilingue.
Palavras-chave: ensino do espanhol; ideologias linguísticas; políticas linguísticas;
glotopolítica.
abstract: This study recovers the historical process that established and institutionalized
the teaching of Spanish in Brazil and analyzes the grounds on which the discourse of
the government archives relied on to justify the inclusion of this language in Brazilian
education. To identify the underlying linguistic ideologies and ideologemes associated
with this process, we address such a retrospective from the viewpoint of linguistic
policies and a glottopolitical perspective. Although the policies that determined the
inclusion of Spanish teaching were triggered by South American integration geopolitics,
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.69-92
70
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
the discourses analyzed vary between this memory, expressed through a rhetoric based
on the ideologeme of the great continental family; another one that refers to an Iberian
memory, marked by the ideologeme of Spanish as the language of Cervantes; and,
finally, a representation that mixes the previous ones and is featured both in the cultured
student, citizen of an imaginary bilingual America, and in the learned soldier member
of an imaginary bilingual army.
Keywords: Spanish teaching; linguistic ideologies; language policies; glottopolitics.
Recebido em 16 de janeiro de 2019
Aceito em 19 de maio de 2019
1 Introdução
Este artigo é fruto de uma pesquisa1 que teve como objetivo
identificar e interpretar as ideologias linguísticas que fundamentam o
discurso sobre a importância do ensino do espanhol no sistema educativo
regular no Brasil. Neste sentido, apresenta algumas reflexões importantes
no âmbito das políticas linguísticas na América do Sul, haja vista que o
ensino desta língua no Brasil se inaugura determinado, majoritariamente
e em primeira instância, pelas relações geopolíticas sul-americanas, como
será mostrado no desenvolvimento do trabalho.
A partir de uma leitura inicial mais ampla, no largo período
de 1905 a 2018, foram identificados quatro momentos de inclusão do
espanhol como língua estrangeira na escola de ensino regular brasileira
(1919, 1942, 2005, 2018) – os quais podem ser designados como
acontecimentos geopolíticos-linguísticos (RECUERO, 2017) – devido
às peculiaridades de cunho político que em cada momento desvela-se.
Ditas circunstâncias pautaram-se em interesses comuns do Brasil com
países hispânicos, o que se vê registrado nos documentos analisados e
se confirma também pelo fato de que o ensino do espanhol, no contexto
brasileiro, foi se implementando de forma paralela ao ensino do português
nos mesmos países com os quais estabelecia alianças.
1
Pesquisa de Doutorado realizada no período de 2013 a 2017, sob orientação de Eliana
Sturza (UFSM) e Elvira Arnoux (UBA/CAPES). Ver: Recuero, 2017.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
71
O recorte aqui apresentado detém-se no momento em que se
inaugurou a inclusão do idioma, antecipado pelo seu ensino na escola
militar, em 1906, e analisa os argumentos operados no discurso do arquivo
governamental – documentos oficiais que integram o Relatório dos anos
de 1917 a 1918, apresentado ao Presidente da República dos Estados
Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores,
comprehendendo o período decorrido de 1 de maio de 1917 a 3 de maio
de 1918 (BRASIL, 1920).
O texto começa com a apresentação do quadro teórico e
metodológico da pesquisa realizada e, a partir de aí, procede à análise
dos dados, situando historicamente o primeiro período de inclusão do
espanhol no sistema regular de ensino brasileiro e seus antecedentes no
âmbito militar, e encerrando com considerações sobre o desfecho desta
primeira etapa. Por fim, procede às considerações finais, onde apresenta
um desdobramento dos possíveis efeitos das ideologias linguísticas
circundantes sobre o status do ensino de uma língua, no caso o espanhol,
e as implicações que podem vir a suceder sobre as práticas pedagógicas
do mesmo.
2 Marco teórico e metodológico
O aporte teórico e metodológico que fundamenta este estudo se
situa no bojo da Glotopolítica, tal como a concebe Arnoux (2000, 2013),
por sua vez integrante do campo maior das ciências da linguagem, e
que se ocupa, principalmente, de discutir as relações entre a linguagem
e o político, incluindo o elemento ideológico e englobando a área das
Políticas Linguísticas. A análise empreendida a nível discursivo detémse em marcas linguísticas operadas no fio do dizer – sintagmas de um
mesmo campo semântico – e as relaciona às ideologias linguísticas e
ideologemas, às quais se associam ou nas quais se fundamentam.
2.1 a glotopolítica
Consagrada por Louis Guespin e Jean-Baptiste Marcellesi
(1986, p. 5), nos anos 80, como uma disciplina que estuda as múltiplas
formas de intervenção ou gestão da sociedade sobre o espaço e os fatos
de linguagem, a Glotopolítica considera a linguagem e a ação sobre a
mesma como fatos políticos. De acordo Arnoux e Nothstein (2014), a
perspectiva glotopolítica pode ser definida como
72
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
el estudio de las intervenciones en el espacio público del lenguaje
y de las ideologías lingüísticas que activan y sobre las que inciden,
asociándolas con posicionamientos dentro de las sociedades
nacionales o en espacios más reducidos, como el local, o más
amplios, como el regional o el global (ARNOUX; NOTHSTEIN,
2014, p. 9).
Dentro da proposta de Guespin e Marcellesi, de acordo com
Arnoux (2000), a sociedade, além de querer determinar que língua será
falada e ensinada, trata de querer determinar também que nível de língua
será usado e por quem, e para verbalizar o quê. Um exemplo, a partir
de estudos da autora, refere-se à legislação dos estatutos atribuídos às
línguas em relação entre si, como a determinação de qual o idioma é
a língua oficial dentro de um espaço em que convivem mais de um e,
acrescentamos, a legislação e as intervenções da sociedade sobre o ensino
do espanhol, questão que interessa a este estudo. Para Arnoux,
[…] consideramos que, por un lado, la Glotopolítica no solo
aborda el conflicto entre lenguas sino también entre variedades
y prácticas discursivas; que, por el otro, atiende como marco
social tanto a las pequeñas comunidades como a las regiones, los
Estados, las nuevas integraciones o el planeta según la perspectiva
que se adopte y el problema que se enfoque; y que, finalmente,
puede considerar no solo las intervenciones reivindicativas sino
también aquellas generadas por los centros de poder como una
dimensión de su política. Desde nuestra perspectiva, el análisis
debe centrarse tanto en las intervenciones explícitas como en los
comportamientos espontáneos, la actividad epilingüística y las
prácticas metalingüísticas, más allá de que asigne importancia a las
representaciones sociolingüísticas que las sostienen (ARNOUX,
2000, p. 3-4).
Por esta via glotopolítica desenvolve-se este estudo, que mobiliza
uma questão de Política Linguística relacionada, por um lado, aos espaços
escolares públicos e, por outro, a contextos maiores e determinantes
sobre os primeiros, como as relações regionais ou transnacionais, os
interesses de governo e as Políticas Linguísticas relacionadas. Considera,
assim como indicado por Arnoux (2000, p. 4), não só o que declara
explicitamente o poder estatal, mas também as práticas metalinguísticas,
mais ou menos espontâneas, como os discursos aqui tomados como
corpus.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
73
2.2 as Políticas Linguísticas
De forma paralela, pode-se situar o campo de estudos das Políticas
Linguísticas, com o foco no ensino do espanhol, também como uma
ação revestida do político. Tal como nos princípios da Glotopolítica, as
relações políticas, portanto, a política, não diz respeito apenas ao governo
e suas ações, mas a todas as posições que a sociedade toma, mediadas
pela língua em uso nos espaços de enunciação. Neste contexto, a escolha
ou a imposição de “que língua se quer ensinar e aprender e por quê”
são algumas entre as práticas sociais naturalizadas ou normatizadas de
forma mais ou menos explícita, pelo que concebemos como Políticas
Linguísticas.
Conforme Hamel, inicialmente a área de Políticas Linguísticas
foi definida como “um campo de estudo e uma forma de intervenção”,
que teve como objeto, em primeiro lugar, “a intervenção explícita do
estado (ou de outros atores que igualmente imponham autoridade)
para alterar o curso natural dos usos ou das crenças sobre as línguas.”
(HAMEL, 2013, p. 35). No entanto, esta definição foi posteriormente
problematizada pelo autor, que verificou um possível reducionismo na
forma como originalmente foi previsto. Para o autor, aproximando-se
dos princípios glotopolíticos, além de que a condução das Políticas de
Linguagem/Políticas Linguísticas possa ser determinada pelo estado,
paralelamente põe-se em funcionamento a ação de forças da sociedade.
Pelo exposto, define-se para este estudo a concepção de Políticas
Linguísticas enquanto “um campo de estudo e uma forma de intervenção”
(HAMEL, 2013, p. 35) e, seguindo este viés, pode-se reiterar que estas
não se restringem às intervenções do estado, mas também a outras forças
sociais igualmente latentes – conscientes ou inconscientes; implícitas ou
explícitas – mais ou menos gerais ou específicas e relativas às diferentes
comunidades ou sociedades. Desta forma, seria no mínimo reducionista
outorgar ao estado o único poder determinante sobre as Políticas
Linguísticas, tal como indica Calvet, para quem mesmo havendo grupos
menores ou maiores que a nação, é em seu âmago que se encontram os
meios oficiais para desenvolver um planejamento linguístico (CALVET,
2007, p.21). A definição de Hamel se afasta, portanto, de uma concepção
calvetiana, que considera e reduz o campo a uma instância puramente
prescritiva e normativa.
74
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
2.3 as ideologias linguísticas
Sobre as ideologias linguísticas2 que o estudo busca desvelar,
segue-se a concepção definida por Arnoux:
Un sistema de representaciones sociolingüísticas, es decir, de
aquellas que se refieren a objetos lingüísticos (lenguas, variedades,
hablas, acentos, registros, modos de leer o de escribir) y que
implican evaluaciones sociales de esos objetos y de los sujetos con
los que se asocia. Dan lugar, entre otros, a actitudes, estereotipos u
opiniones y pueden ser reconocidas no solo en discursos verbales
(textos normativos o juicios de hablantes, por ejemplo) sino
también en imágenes mediáticas y en las prácticas en las que los
interlocutores negocian sus identidades sociales (ARNOUX,
2012, p. 165-166).
Arnoux e Valle complementam, indicando que ideología
linguística trata-se de uma categoria teórica que, dotada de sentido
histórico, não diz respeito somente ao âmbito das ideias, mas também
ao prático que se vincula, ou seja, que as representações linguísticas que
se põem em marcha atuam figurando “como elementos fundamentales
en la identificación y análisis de los regímenes de normatividad en
los cuales necesariamente se interpretan las prácticas lingüísticas”
(ARNOUX; VALLE, 2010, p.6). Para a compreensão de tais regimes
de normatividade se faz necessário, portanto, identificar como objeto
de análise as representações linguísticas e sociolinguísticas, as quais
adotam diferentes formas de expressão e se manifestam em diferentes
zonas discursivas, como, por exemplo:
En los textos que regulan política y jurídicamente el uso del
lenguaje (programas políticos, leyes y reglamentos), en los que
definen los objetos lingüísticos (gramáticas, diccionarios, libros
de estilo) y en los que los tematizan (artículos de opinión sobre,
por ejemplo, el uso correcto), en la imágenes mediáticas que
asocian a determinados grupos de personas con determinadas
formas de habla (cómicos que en sus imitaciones reproducen y
crean estereotipos lingüísticos) y en la propia praxis lingüística,
2
O sintagma corresponde a languages ideologies e provém da Antropologia Linguística
estadunidense, segundo Arnoux e Valle (2010, p. 4).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
75
entendida como acción en la que los interlocutores negocian sus
identidades sociales (ARNOUX; VALLE, 2010, p. 3).
Seguindo esta linha de pensamento, o estudo aborda as ideologias
linguísticas na práxis linguística dos interlocutores envolvidos na questão,
nos textos reguladores selecionados como corpus: documentos oficiais
que compõem o arquivo governamental.
2.4 os ideologemas
Relacionado ao tema das ideologias linguísticas, destaca-se o que
se concebe como ideologema, com base no que propõe Angenot (1982,
p. 8), ou seja, os condensados ideológicos. Tal noção se desenvolve
dentro do marco dos estudos argumentativos, segundo conceitos da
Retórica aristotélica (BARTHES, 1982) e atualizações propostas por
Angenot (1982). Para empreender a análise visando a compreensão da
argumentação que subsidiou o primeiro movimento de ensino de espanhol
no Brasil, apela-se também a tais bases teóricas.
O que é a argumentação? Assim a define Quintiliano ao modo
persuasivo dos argumenta, dentro da Retórica como a arte de convencer
ou persuadir: “manera de probar una cosa por otra, de confirmar lo que
es dudoso por lo que no lo es” (BARTHES, 1982, p. 48).
Vinculado a esta categoria retórica está o entimema, do grego
enthymema, que significa “toda reflexión que se tiene in mente”
(BARTHES, 1982, p. 49). O entimema está no plano do verossímil,
baseado na opinião comum (e não no científico), como conteúdo das
premissas que integram a argumentação e a persuasão. Desde aí, com
Quintiliano, de acordo com Barthes, surge uma nova definição que
triunfaria durante a Idade Média: a premissa entimemática passa a ser
concebida “por el carácter elíptico de su articulación”, “un silogismo
incompleto pero igualmente operante” (BARTHES, 1982, p. 49). Dito de
outra forma, passa ao plano do incontestável, do que não se faz necessário
dizê-lo todo, do que tem verossimilitude por si mesmo ainda que lhe possa
faltar uma premissa ou mesmo a conclusão, pois já “se tem em mente”
(o enthymema), como uma certeza humana, ante uma certeza científica.
Segundo a Retórica aristotélica, as premissas de base argumentativa
podem ser extraídas de certos lugares – o topos ou o locus, pois para
saber das coisas bastaria, segundo Aristóteles, “reconocer el lugar en
que se hallan” (BARTHES, 1982, p. 55). Sobre o lugar das premissas,
76
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
Barthes pregunta: “¿Qué es un lugar?”, “es, dice, Aristóteles, aquello en
que coinciden una pluralidad de razonamientos oratorios”, uma metáfora
de lugar de ordem mnemónica, “en donde los lugares no son, pues, los
argumentos mismos, sino los compartimientos en que esos se ubican”.
(BARTHES, 1982, p. 55).
Podemos entender que esses compartimentos aristotélicos podem
coincidir, enfim, com os sistemas de ideias e práticas, ou seja, os canais
por onde circulam as ideologias linguísticas, que por vezes se condensam
em forma de ideologemas, e se materializam nos discursos. A partir da
figura aristotélica de topos, desde uma visão contemporânea da Retórica,
Angenot (1982) formulou esta noção, definindo ideologema como “toda
máxima, subyacente a un enunciado, cuyo sujeto lógico circunscribe un
campo de pertinencia particular” (ANGENOT, 1982, p. 8), como, por
exemplo, “o valor moral” ou “o instinto materno”. Em outras palavras,
o ideologema se define como uma máxima ideológica que subjaz a um
determinado enunciado, “una especie de estructura profunda de carácter
ideológico”, que funciona “a la manera de los ‘lugares’ aristotélicos”
(ANGENOT, 1982, p. 8), ao mesmo tempo que aparentemente ausente,
está sempre ativo na instância ideológica. Nas palavras de Angenot,
com relação aos sistemas ideológicos e aos ideologemas, “los sistemas
ideológicos pueden ser tratados como un conjunto de máximas tópicas
ligadas unas a otras según paradigmas” (ANGENOT, 1982, p. 8),
esclarecendo que todo sistema de ideias é um conjunto de máximas, que
tem origem e destino vinculados ao contexto social dado. A ideologia
é concebida por Angenot não como o tradicional sistema althusseriano,
mas sim como uma bricolagem que soma, dilui e oculta a sua própria
heterogeneidade constitutiva e fundante, como espaço antagônico
de contra-discursos, onde suas unidades só podem ser isoladas para
fins de análise, observadas na sua rede de relações interdiscursivas e
transdiscursivas.
Ao tratar dos argumentos que se operaram para justificar o ensino
do espanhol no Brasil, isolando-os para fins de análise, este estudo
considerou as redes de relações geopolíticas em que se inserem e nas
quais se configuram. Desta forma, pode-se ver que se elaboram a partir de
determinados lugares – topos – por sua vez regulados por determinadas
ideologias linguísticas.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
77
3 Preâmbulo à inserção do espanhol no sistema de ensino regular
brasileiro – entre letras e armas
A inclusão oficial do espanhol no sistema de ensino brasileiro, que
começa na formação comercial e militar, tem data específica em 1905 e se
deu no nível de ensino superior. Primeiramente, com relação ao comércio,
conforme o Decreto Nº 1.339, de 09 de janeiro de 1905 (BRASIL, 1905a),
referido ao reconhecimento dos diplomas da “Academia de Commercio
do Rio de Janeiro”3 e estendido à “Escola Pratica de Commercio de São
Paulo”, ambas fundadas em 1902. O espanhol se insere vinculado, por um
lado, à necessidade de organização da economia e do comércio interno e,
por outro lado, ao comércio portuário e às relações internacionais, para
as quais era necessário o desenvolvimento da prática oral e da leitura
em línguas estrangeiras, que incluía o espanhol.
Por decreto emitido no mesmo ano, o espanhol também passava a
integrar o âmbito militar, colocando-se em prática em 1906, pelo Decreto
nº 5.698, de 2 de outubro (BRASIL, 1905b). A sua inclusão neste contexto
foi direcionada em função das relações que se estabeleciam com os países
com os quais se implementavam missões visando à modernização do
exército brasileiro ou as táticas de guerra, sejam individuais, sejam em
conjunto como forma de mútua proteção. No caso da Escola de EstadoMaior, pode-se compreender que o ensino do espanhol servia também
como subsídio para o desenvolvimento de questões que integravam o
conteúdo do curso, como a “Geographia militar, precedida de geographia
physica da America do Sul” e o “Estudo da organização dos exercitos
sul-americanos”, entre outras (BRASIL, 1905b).
As relações binacionais que se colocam em marcha nas primeiras
décadas do século XX contextualizaram e antecederam o primeiro
acontecimento de inserção do espanhol na primeira escola oficial e
modelo de ensino secundário brasileira – o Collegio de Pedro II –, quando
os Ministérios da Guerra, da Marinha e das Relações Exteriores do Brasil
e do Uruguai idealizam “um grande exército bilíngue” (RECUERO,
2017). O discurso das correspondências oficiais trocados entre os
países tiveram como palavras de ordem: as relações oficiais e sociais,
a fronteira comum, as vantagens comuns de ordem social e militar, a
Nos anos subsequentes, inúmeras instituições de comércio criadas no Brasil se
equipararam, por decreto, à Academia de Comércio do Rio de Janeiro.
3
78
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
reciprocidade, o idioma dos vizinhos, a nação amiga, o conhecimento
recíproco das duas línguas, as repúblicas irmãs, a América unida e, por
fim, a política de formação e de solidariedade americana “nas letras e
nas armas” (BRASIL, 1920).
De nota de 5 de dezembro de 1917 (BRASIL, 1920), escrita
pelo governo uruguaio, através de Manuel Bernardez, e endereçada ao
Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Dr. Nilo Peçanha, destaca-se:4
Sr. Ministro, Tenho a honra de juntar a V. E. copia traduzida de
um Decreto do meu Governo, mandando crear uma cadeira de
lingua portuguesa no 3º anno da Escola Militar do Uruguay. As
razões que servem defundamento áquella interessante medida
(necessidade de facilitar as frequentes relações officiaes e sociaes
entre os Chefes e Officiaes destacados em commissões ou serviços
de guarnição nos diversos sectores da fronteira) são tão reaes,
que parece logico pensar que ellas possam sugerir, pelos mesmos
motivos, a mesma medida ao Ministerio da Guerra do Brasil –
circumstancia sympathica para a qual tomo a liberdade de chamar
a atenção de V. E. (BRASIL, 1920, grifos nossos).
Esta nota evidencia a necessidade de compartilhar as línguas para
as relações reaes de ordem social e militar nos setores da fronteira comum.
Em fevereiro do ano seguinte, 1918, o Ministério das Relações Exteriores
do Brasil remetia uma cópia de dita resolução uruguaia ao Ministério da
Guerra brasileiro, assinado por Nilo Peçanha, destacando que
Além das vantagens de ordem social, invocadas no artigo
1º do referido Decreto, parece-me que, também do ponto de
vista militar, essa medida de reciprocidade se impõe e que
muito lucrarão em efficiencia os nossos officiaes, se tiverem um
conhecimento, tão perfeito quanto possível, do idioma de todos
os nossos vizinhos (BRASIL, 1920, grifos nossos).
Anunciavam-se, pelo exposto, as iniciativas de aproximação de
caráter geopolítico entre o Brasil e o Uruguai. A aprendizagem “do idioma
de todos os nossos vizinhos”, passava a ser um importante elemento. Estava
posta a vantagem social, mas, frente a tudo, impunha-se a reciprocidade
desde o ponto de vista militar. A resposta do Ministério da Guerra, assinada
por José Caetano de Faria, em 6 de março de 1918, reiterava:
4
Todas as citações estão mantidas em sua escritura original.
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[…] se sentia muito orgulhoso e satisfeito com a alta distincção
da Nação amiga, e que já havia resolvido incluir o estudo da
língua castelhana nos nossos estabelecimentos militares de
ensino; acrescentando que os dois exercitos terão de lucrar com o
conhecimento recíproco das duas línguas [...] (BRASIL,1920,
grifos nossos).
A questão, no entanto, ia mais além dentro do âmbito militar,
passando pela “admissão de alunos das demais Repúblicas Americanas nas
Escolas Militar e Naval e nas Academias do Brasil”, em fevereiro de 1918,
visando ao desenvolvimento de uma política de fraternidade americana.
Entre os Avisos emitidos pelos Ministérios brasileiros, destacamos:
Vou comunicar, por intermedio da nossa representação nas demais
Repúblicas da América, que [...] sendo admitidos livremente á
matricula nas nossas Academias todos quantos moços das demais
repúblicas irmãs tenham cursado os seus respectivos lyceus
officiaes instrucção. [...] cooperando para que se desdobre essa
política de formação e de solidariedade americana nas letras
e nas armas, ha de testemunhar, perante as gerações que vão
ter amanhã a responsabilidade do Governo da América, que as
gerações de hoje souberem matel-a unida diante da maior guerra
que conhece a historia, e que assim unida se manterá ella sempre,
para abrigar homens e idéias acaso em perigo nas competições
do Velho Mundo.[...] aproveitando a opportunidade, cabe-me
communicar a V. Ex. que, attendendo a que a lingua hespanhola
é, com raras excepções, a preferida no referido continente
americano, resolvi nos regulamentos das Escolas e Collegios
Militares a ser expedidos estabelecer o estudo desta lingua em
substituição á alemã (BRASIL, 1920, grifos nossos).
A aprendizagem do espanhol no Brasil e do português em países
hispano-americanos se inaugurava como uma necessidade de caráter
bélico e uma medida protetiva solidária. Colocava-se em marcha uma
política de fraternidade americana que deveria configurar-se “nas letras
e nas armas”. O argumento operado estabelece efeitos de compensação
e neutralização entre os valores literário e militar, numa retomada
quixotesca (e não por acaso) dentro “del discurso de las armas y las
letras”.5 Almejava-se uma América unida e um grande exército bilíngue
com os países mutuamente protegidos.
5
Cervantes, 1605.
80
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
Pode-se entender, a partir das marcas linguísticas destacadas
nos fragmentos de fala selecionados, que é o funcionamento de ideias
que se vinculam a determinadas representações – ideologias linguísticas
e ideologemas. Por um lado, o discurso se inscreve numa retórica
latinoamericanista, que retoma uma memória de ideais de integração
através da metáfora da família e da pátria grande. Colocava-se em
funcionamento uma representação do continente – um ideologema –
como uma grande família, que por não falar o mesmo idioma deveria
aprender o do seu fronte.
Por outro lado, observamos a indicação de que havia uma língua
preferida no continente, e eis que é a espanhola (e mais: não por acaso
vem substituir a alemã, que outrora teve sua importância outorgada). “A
língua preferida”, neste dado tempo e espaço, é a língua hespanhola, na
citação anterior designada castelhana. Analisando a retomada quixotesca
das letras e das armas, pode-se ler “A língua de Cervantes”. Entendemos,
pois, este sintagma como um ideologema que remete a uma ideologia e
representação metalinguística, no sentido de igualar, como sinônimos,
língua espanhola e Cervantes. Quando se fala espanhol, fala-se a e na
língua de Cervantes. A verdade em si, tal qual uma premissa entimemática
que dispensara argumentos: a verossimilitude estava posta. Tem-se
Cervantes funcionando como um simulacro de modelo de língua, dentro
de um regime de normatividade que já estava anunciado e cristalizado,
e que remetia a uma memória histórica do Século de Ouro da Espanha
e sua tradição e supremacia linguística e literária.
Trata-se dos antecedentes imediatos à inclusão do espanhol no
ensino médio brasileiro e as ideologias linguísticas que se acionavam
nesta circunstância.
4 o primeiro acontecimento geopolítico-linguístico: relações
binacionais entre Brasil e uruguai, no contexto da 1ª guerra e
do Pacto aBC – 1919
Os primeiros passos que incluíram a língua como elemento
integrante das relações diplomáticas desde o âmbito militar são iniciativas
do Uruguai. A esta iniciativa antecedeu uma primeira inclusão do
português no ensino secundário uruguaio, como disciplina optativa.
Da nota emitida em 11 de agosto de 1916, pela Legação do Uruguai ao
governo brasileiro, firmada pelo Ministro da Instrução Pública uruguaia,
Dr. Rodolpho Mezzera, destacam-se algumas passagens que reiteram
argumentos que foram emitidos em anos anteriores, como já apresentado:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020
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Na secção de ensino secundário e preparatório estuda-se o francez,
o inglez, o italiano e o alemão, sendo evidente a necessidade de
completar este ensino, acrescentando-lhe outro idioma igualmente
prestigioso e a favor do qual militam razões de ordem fundamental.
Existe na America um grande povo, fecundo, progressista,
apaixonado por grandes ideaes, robusto pela forte concepção
da sciencia, ao qual nos unem laços de estreita, franca e solidaria
amizade e que não falla o nosso idioma [...]. Ha alguma cousa que
melhor possa favorecer a nossa reciproca sympathia e permitir
o nosso mutuo conhecimento, que o estudo do seu idioma,
harmonioso e elegante; que permita á nossa mocidade descobrir e
avaliar as bellezas admiraveis da sua litteratura? Haverá alguma
cousa que nos approxime ainda mais na communhão de ideaes
e na obra de realizar praticamente a solidariedade fraternal de
todo o continente? (BRASIL, 1920, grifos nossos).
Os argumentos retomam o tema da solidariedade e amizade
continental (laços de estreita, franca e solidária amizade) e novamente
a metáfora da família, destacada através da fraternidade entre irmãos
continentais (solidariedade fraternal de todo o continente), atribuindo
valores de grandeza e progresso ao Brasil (grande povo, fecundo,
progressista, robusto), de estética do idioma (idioma harmonioso,
elegante), somado aos cânones da literatura (belezas admiráveis). Mesclase, portanto, o geopolítico em prol da mútua proteção continental à ênfase
aos elementos da estética e da cultura da língua. A esta nota, segue um
fragmento da solicitação do Uruguai visando à medida recíproca:
A legação do Uruguay tem a honra e a satisfacção de levar esta
nobre e espontanea homenagem da língua hespanhola, á língua
portuguesa, prestada por um povo sincero a conhecimento da
Chancellaria Brasileira; e pensa que um acto concordante do
Brasil, além da sua propria belleza moral, seria opportunissimo e
fecundo, não sómente em relação ao Uruguay, mas a toda America
que falla a lingua de Cervantes e ignora a de Camões (BRASIL,
1920, grifos nossos).
O argumento que impulsionou a inclusão recíproca dos idiomas
no âmbito militar, fundamentado no quixotesco discurso das letras e
das armas, é retomado no contexto do então ensino secundário. Agora
se explicita a língua de Cervantes. Os argumentos têm um elemento em
comum: se para a inclusão no âmbito militar foi exaltado o discurso de
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Cervantes, fazendo referência ao “soldado letrado”, no ensino secundário
fazia a referência explícita ao cânone e a toda sua representatividade de
cultura letrada. O espanhol é a língua de Cervantes, o soldado letrado e, no
contexto tratado, a língua compartida era uma arma a mais. Indiretamente,
o Uruguai resgatava a relação histórica que havia se operado entre as
duas línguas, fulminante no contexto ibérico dos séculos XVI e XVII,
quando se processara o hiato diglóssico “espanhol, língua bela”, “língua
de Cervantes”, frente a “português, língua rude”, “língua de Camões”,
dentro do contexto político de dominação de Portugal pela dinastia filipina
espanhola (DIÉGUEZ, 2008; HUE, 2007). Reafirmado pela tradição da
consagração da língua e da literatura espanhola em seu Século de Ouro,
esta circunstância havia se materializado na relação entre as línguas,
desde ultramar, como se fosse uma questão puramente de ordem estética
e não de política e ideologia linguística. Evidencia-se aí a dimensão “do
mais e do menos” do topos aristotélico: um país que tinha uma língua
mais gramatizada, uma literatura consagrada, e um poder maior, tinha
uma língua “melhor”, ou seja, uma língua dominante e “bela”, sobre uma
língua dominada e, consequentemente, “feia”.
Para elucidar o lugar a partir do qual se engendra a argumentação
e a sua inscrição na língua há que considerar toda a conjuntura histórica e
social dada, que inclui o elemento geopolítico. Neste sentido, explicita-se
que os ideologemas, seguindo a concepção de Angenot (1982), situamse historicamente, ou seja, são habitados por uma temporalidade dada,
podendo figurar com um caráter mais conjuntural ou mesmo estender-se
por largos períodos.
A partir daí, é dada a largada para a inclusão do espanhol
no ensino secundário brasileiro. Poucos dias depois da emissão da
solicitação do Uruguai, em 26 de setembro de 1917, o Brasil sugeria o
“oportuníssimo e fecundo” “ato concordante”, propondo a criação de
uma cadeira de espanhol no Colégio Pedro II. Partindo do Ministério das
Relações Exteriores e firmado por Nilo Peçanha, o pedido foi enviado
ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, endereçado ao Ministro
Carlos Maximiliano:
Tendo o Governo da República Oriental do Uruguay creado uma
cadeira da nossa lingua num dos seus estabelecimentos officiaes,
este Ministerio teria muita satisfação em que pudessemos
corresponder a esse gesto com a creação no Collegio Pedro II de
uma cadeira da lingua espanhola, que, como V. Ex. sabe, além
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de ser uma homenagem que o Brasil prestaria assim áquella
republica irmã e ás demais Nações que, neste continente,
fallam esse idioma, teria a vantagem de facilitar e desenvolver o
intercambio intellectual entre o nosso paiz e os povos hispanoamericanos (BRASIL, 1920, grifos nossos).
Os fragmentos destacados reiteram os ideais anteriormente
expressados: o intercâmbio e a união que se buscava estabelecer mostrada
na metáfora da família continental. Em outubro de 1917, o Ministro
tratava de solicitar à Congregação do Colégio Pedro II a criação da
cadeira de espanhol e literatura hispano-americana. Uma nota de imprensa
tratava de divulgar:
IMAGEM 1 – A Época – 31 de outubro de 1917 – ed. 01937.
Fonte: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/
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Um dado a ser considerado refere-se a que a inclusão da disciplina
de espanhol, neste momento, insere o ensino da literatura hispanoamericana. Esta questão merece uma atenção especial, haja vista que é um
elemento de evidência da valorização do continental que se colocava em
marcha. Em que pese a língua de Cervantes estar a integrar os argumentos
até aqui destacados – e que, como sabemos, seguirá como palavra de
ordem em outros discursos, de outras ordens e em diferentes instrumentos
–, o discurso do governo brasileiro coteja o hispano-americano, e não a
literatura especificamente espanhola.
A medida seria implementada somente em 1919, quando entra o
espanhol como disciplina optativa, com a abertura do primeiro concurso
para professor do idioma no Colégio Pedro II e a seleção do professor
Antenor Nascentes. Durante este intervalo, nas informações que foram
sendo trocadas através de Avisos e Notas entre os Ministérios do Brasil
(BRASIL, 1920), consta que a Congregação do Colégio Pedro II resolvera
incluir o espanhol “colocado em um curso suplementar”.
O movimento geopolítico que estava em marcha desencadeou na
sua efetivação mediante a Lei 3.674 de 7 de janeiro de 1919, que definia
os gastos do Brasil para este mesmo ano:
23. Subvenção a institutos de Ensino: Augmentada de 9:600$ a
do Collegio Pedro II, para attender a despezas com a creação da
cadeira de hespanhol em aquelle collegio, em reciprocidade do
acto identico da republica do uruguay (BRASIL, 1920).
Buscando interpretar o gesto do Brasil para a inclusão do ensino
do idioma, à luz do contexto político da época, alguns fatos merecem ser
destacados. Desde os começos do século XX, os dois países viviam uma
situação de reorganização de suas políticas externas. O contexto das relações
entre ambos os países se encontrava, de fato, balizado por uma política
de mútua cooperação iniciada em 1909 em prol do reestabelecimento das
fronteiras, conduzida pelo diplomata brasileiro Barão de Rio Branco. O
Uruguai praticava uma diplomacia pendular, que se definia como tender
ao país vizinho que lhe trouxesse apoio “para contrabalancear políticas
o decisiones del otro en situaciones que afectaban intereses de Uruguay”
(ALLENDE; CLEMENTE, 2014, p. 155). Subsequentemente ao Tratado
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de Rectificación de Límites,6 de 1909 – marco na história da relação
binacional, no qual se estabeleciam os limites no Rio da Prata – foram
negociados vários acordos binacionais e projetos comuns que trataram
de estreitar laços diplomáticos relativos a fatores de ordem econômica,
ambiental, científica e cultural. Destacam-se a Convención para la mejor
caracterización de la frontera entre la República Oriental del Uruguay y
los Estados Unidos del Brasil; o Tratado de Extradición de Criminales;
e a Convención de Arbitraje General Obligatorio, todos firmados no ano
de 1916; a celebração do Tratado sobre Caracterización de Fronteras e
o Tratado sobre Fijación y Liquidación de Deuda, de 1918. (ALLENDE;
CLEMENTE, 2014).
Com relação à liquidação de uma dívida histórica que o Uruguai
tinha pendente com o Brasil, viu-se paga com o pacto de que o valor
seria invertido de maneira a contemplar obras de mútuo benefício que
uniriam as fronteiras de ambas as nações, prevendo não somente a
construção da Ponte Internacional Barão de Mauá em 1930, que une os
dois países pelas cidades de Jaguarão (Brasil) e Rio Branco (Uruguai),
como prioritariamente a fundação de um instituto de trabalho ou centro
educativo, localizado justamente na fronteira, a ser ministrado por
representantes dos dois governos com o uso das duas línguas, visando
à instrução científica e profissional de brasileiros e de uruguaios, em
igual proporção, principalmente no que se referia às indústrias campeiras
(URUGUAY apud ALLENDE; CLEMENTE, 2014, p. 170). Neste
contexto, a política binacional que se desenvolvia desde o ano de 1909
motivou, sem dúvida, a criação da cadeira de espanhol no Brasil, desde o
âmbito militar, refletindo-se e estendendo-se ao ensino secundário. Pode
ser considerado o primeiro ato concreto que incluiu uma intervenção
glotopolítica de ordem da integração linguística nessa fronteira.
Uruguai recebia do Brasil uma homenagem de reciprocidade para
o desenvolvimento de um intercâmbio intelectual, amparado no idioma
que aos brasileiros, estudantes do ensino secundário do Colégio Pedro
II, ser-lhes-ia oferecido com a cadeira de espanhol e literatura hispanoamericana. De fato, estava bem caracterizado como homenagem, pois
além de ser “simbólico” o fato de a oferta ocorrer somente no Pedro II,
Por este tratado, Brasil cedeu ao Uruguai parte das águas da Lagoa Mirim e do Rio
Jaguarão: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-7992-11maio-1910-586242-publicacaooriginal-109730-pe.html.
6
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não se viu implementada a ação de maneira a ter efetivos resultados.
Por outra parte, evidencia-se que as geopolíticas naquele momento
encabeçadas pelo então Ministro brasileiro das Relações Exteriores
(1902-1912), o Barão de Rio Branco – pretendiam ir mais além das
mencionadas cordialidades com o Uruguai, incluindo as relações com
as demais nações e povos hispano-americanos. O intercâmbio, posto na
declaração do ministro com referência ao intelectual e tendo a língua
como estandarte, marcava mais um passo dado dentro das relações que
levariam ao MERCOSUL. Tratava-se, portanto, de um âmbito maior,
das políticas que se colocavam em marcha entre os países rumo à
Regionalização, mas nesse momento relativo à delimitação das fronteiras
e questões conexas. Assim pode ser entendido pela quase concomitância,
por exemplo, com o subsequente Pacto ABC ou Tratado do ABC, firmado
em 15 de maio de 1915, entre Argentina, Brasil e Chile. Oficialmente
designado Pacto de Não Agressão, Consulta e Arbitragem, o ABC se
constituiu um marco nas relações entre os países em prol da integração
latino-americana, ainda no contexto da primeira guerra, possivelmente
com o objetivo de fazer frente à influência estadunidense. O tratado,
redigido em espanhol, estabelecia que:
Los gobiernos de las repúblicas Argentina, Estados Unidos del
Brasil y Chile, en el deseo de afirmar en esta oportunidad la
inteligencia cordial que la comunidad de ideales e intereses
ha creado entre sus respectivos países y de consolidar las
relaciones de estrecha amistad que los vinculan, conjurando la
posibilidad de conflictos violentos en el porvenir; consecuentes
con los designios de concordia y de paz que inspiran su política
internacional y con el firme propósito de cooperar a que cada
día se haga más sólida la confraternidad de las repúblicas
americanas […] (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000, cap. 36, nota
161, grifos nossos)7
De acordo com os autores (2000), há opiniões divergentes quanto
a quem foram, de fato, os propagadores do Tratado8 que, no entanto,
7
Ver em: http://www.argentina-rree.com/7/7-040.htm.
De acordo com os dados que citam os autores da obra (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000),
o argentino Roque Sáenz Peña foi o propagador da ideia de uma entente argentinobrasileira-chilena, ainda que o primeiro ato desta entente foi a criação em Roma da
Academia de Belas Artes Latino-americana, iniciativa do representante do Chile ante
8
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não se concluiu. O Brasil imediatamente se lançou a uma política de
colaboração para com os Estados Unidos. O Chile não logrou aprovação
parlamentária. A política norte-americana pan-americana estava em alta.
A eles não interessava em nada a união ABC. Ao contrário, soava como
ameaça. Ao estalar a primeira guerra, o Chile e a Argentina buscaram
em vão a proteção da União Pan-americana para os países neutrais. O
Pacto ABC buscava a proteção frente às ameaças externas, não somente
militares, rearmando-se novamente em 1953.
5 o desfecho do primeiro acontecimento geopolítico-linguístico
de ensino de espanhol no Brasil: não valia nota e os alunos não
compravam o Quixote
A cadeira seria oficialmente extinta em 1925. O estudo de
Quintela e Costa (2013) acerca do lugar da atuação de Nascentes dentro da
Linguística Aplicada, relacionada ao espanhol no Brasil, traz importantes
informações relativas ao trabalho do docente, no momento em que se
suprime o ensino do idioma, no ensino secundário. Nascentes teria
proferido um Discurso, em 1952, por ocasião da homenagem recebida
como professor emérito do Colégio Pedro II, no qual declarava que
a cadeira era facultativa, o que lhe trazia certa condição de
inferioridade. Tinha os piores horários [...]: os alunos não
compravam o Quixote para os indispensáveis exercícios de
aula; não havia exame; pouco adiantava a nota. Tal situação
não podia continuar (QUINTELA; COSTA, 2013, p. 439, grifos
nossos).
o governo da Itália que contou com o respaldo dos representantes da Argentina e do
Brasil. Por sua parte, o professor Marcelo J. Rimoldi menciona antecedentes anteriores
aos já citados, e afirma que a ideia de um tratado entre Argentina, Brasil e Chile havia
sido insinuada pelo ministro das relações exteriores do Brasil, Carlos de Carvalho, e
exposta pelo ministro argentino no Brasil, Manuel Gorostiaga, em 1904. Neste mesmo
ano, o barão de Rio Branco sugeriu a Gorostiaga a ideia de unificar os três países
através de um acordo. As declarações efetuadas por Sáenz Peña em 1910, em torno à
iniciativa chileno-argentino-brasileira de criação da academia artística latino-americana,
aceleraram a constituição deste “bloco”. No entanto, a oportunidade de concretizar esta
aproximação recíproca entre as autoridades de Buenos Aires, Rio de Janeiro e Santiago
se deu recém a meados de 1914, na ocasião em que oferecia a mediação conjunta de
Argentina, Brasil e Chile no conflito entre Estados Unidos e México. Ver em: http://
www.argentina-rree.com/7/7-040.htm.
88
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Além disso, segundo o estudo de Quintela e Costa (2013), em
uma entrevista Nascentes reiterava o descaso com o ensino do espanhol
na circunstância:
Entrei para professor de espanhol em 1919. Mas sofri muitas
humilhações, porque ninguém estudava. Não havia nem
horário, nem exame. Eu só podia apanhar as sobras dos
horários. Quando surgiu o desdobramento das cadeiras de
português e latim, me deram a escolher. Optei pelo português.
(QUINTELA; COSTA, 2013, p. 439, grifos nossos).
O que podemos ver é que a inclusão do ensino do espanhol, que
se pautara em questões de diplomacia dentro de contextos políticos de
interesses comuns de outras ordens, mas inclusive lationoamericanistas,
não conduzia, de fato, ao desenvolvimento de competências linguísticas.
Uma vez mais se faz presente, por outra parte, a representação do
Cervantes como o ideal de língua materializada no Quixote, afastandose da perspectiva hispano-americana que a própria disciplina levava
como nome. A pretensa política linguística foi proposta de forma a
dar ao espanhol um status de inferioridade (não há horários, não vale
nota, é facultativa). Encerrando-se em 1925, será retomado no ensino
regular somente em 1942, quando um novo quadro de alianças políticas
entrará em vigor, entre Argentina e Brasil, através dos governos de Juan
Domingos Perón e Getúlio Vargas. Tratar-se-á do segundo movimento
de inclusão do espanhol no Brasil (RECUERO, 2017).
4 Considerações finais e implicações pedagógicas sobre o ensino de
línguas
A análise a nível discursivo realizada nos textos selecionados
pode identificar nos argumentos sobre o ensino do espanhol no Brasil
determinados sintagmas que remetem a determinadas memórias, que
se associam a determinadas ideologias linguísticas, as quais, por vezes
apresentam-se condensadas em ideologemas. Assim sendo, carregam em
si uma dimensão política, inscrita em determinados processos históricos,
que pode e deve ser rastreada e estudada, considerando as condições
socio-históricas nas quais foram produzidos. Seguindo a perspectiva
glotopolítica de Arnoux (2016), trata-se de considerar os fenômenos
abordados “como intervenciones en el espacio público del lenguaje
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que tienden a establecer (reproducir o transformar) un orden social,
modelando a la vez las identidades, es decir, construyendo subjetividades
necesarias en cada instancia histórica” (ARNOUX, 2016, p. 19). A
construção de subjetividades e de identidades, podemos concluir, de
alguma forma se projeta sobre as práticas pedagógicas de ensino de
línguas. No caso do espanhol, é premissa a importância que cumpre
Cervantes no status não somente da literatura, mas no modelo de língua
a ser seguido. Não temos notícia, também é verdade, de uma língua de
Cortázar ou de uma língua de Borges, para destacar alguns escritores
renomados. O ideologema da língua de Cervantes, portanto, naturaliza e
legitima um modelo integrante de um regime de normatividade de status.
O mote da integração continental gera, no entanto, alguma possível
desconfiança, na medida em que já se apresentou como utopia, devido
ao exacerbado exagero nas formas em que é discursivisado e, ao carregar
essas marcas, não apresenta até hoje a mesma cristalização do simulacro
da língua de Cervantes, em que pese a sua reiteração. Por fim, vemos
que coexistem, nos discursos analisados, estas duas representações: a
língua de Cervantes, como memória ibérica, e a união da grande família
latino-americana. Em 2017 vimos arriada a bandeira do Mercosul, que
é atualmente o representante legal do processo de integração latinoamericano e que se vê abalado.
Os professores de língua estrangeira devem estar atentos às
questões de cunho político e ideológico que envolvem e que se envolvem
no ensino de línguas, que não pode ser tratado, pois, somente e em
primeira instância considerando os aspectos metodológicos.
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Reflexões sobre a linguística galileana de Noam Chomsky
Reflexions on Noam Chomsky’s Galilean Linguistics
Gustavo Augusto Fonseca Silva
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
fonsecaugusto@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-7427-4504
“Antigamente (...) acreditavam firmemente que
era possível, no campo do conhecimento, chegar
ao fim (...) e elucidar todas as perguntas com uma
só resposta. ‘Há um enigma para resolver’, assim
se apresentava o fim da vida aos olhos do filósofo;
precisavam em primeiro lugar ‘decifrar o enigma’
e condensar o problema do mundo na fórmula
mais simples. A ambição sem limites e o gozo de
ser o ‘decifrador do mundo’ enchia os sonhos do
pensador; nada lhe parecia valer a pena neste mundo
senão encontrar o meio de levar a um bom fim para
ele” (Friedrich Nietzsche, Aurora, § 547).
resumo: O pressuposto metafísico de que a natureza é perfeita tem sido um dos
alicerces da física moderna desde o século 17. Devido ao sucesso dessa disciplina,
pesquisadores de outros campos do saber seguiram os seus princípios, inclusive
a ideia de que a natureza é perfeita. Um caso particularmente interessante dessa
transposição epistemológica se deu no século 20 com a gramática gerativa de Noam
Chomsky, sobretudo em seu Programa Minimalista. Nele, Chomsky leva às últimas
consequências o que chamou de “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’”,
propondo que a linguagem também é perfeita. Dado, no entanto, que igualmente se
assume no gerativismo que a linguagem é um sistema biológico, a conjectura de que
ela seja perfeita resulta na aposta altamente improvável de que ela seja única do ponto
de vista biológico. Isso porque, sendo o resultado de acidentes evolutivos, os sistemas
biológicos são caracteristicamente imperfeitos. Tendo em vista essa situação quase
paradoxal a que se chegou no minimalismo chomskiano, discute-se neste artigo até que
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.27.4.93-158
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ponto se deve emular a física em outras áreas do conhecimento, com especial atenção à
biologia e às ciências cognitivas – entre as quais se inclui a linguística. Como resultado
dessa investigação, questiona-se neste trabalho o próprio pressuposto metafísico de
que a natureza é perfeita, em consonância com as ideias de teóricos contemporâneos
como o físico Marcelo Gleiser.
Palavras-chave: Filosofia da linguística; filosofia da física; Galileu Galilei; Noam
Chomsky; Programa Minimalista; arquitetura paralela de Ray Jackendoff.
abstract: The metaphysical assumption that nature is perfect has been groundwork
for modern physics since the seventeenth century. Due to the success of that discipline,
researchers from other fields of study followed its principles, including the idea of nature
being perfect. Noam Chomsky’s Generative Grammar was a particularly interesting
case of such epistemological transposition, which took place in the twentieth century,
mainly in his Minimalist Program. In his work, while taking to ultimate levels what he
dubbed “the Galilean intuition that ‘nature is perfect’”, Chomsky proposes language as
well is perfect. However, given that in Generativism language is also seen as a biological
system, conjecture on its perfection results in a highly unlike assertion that it is unique
from a biological point of view, because biological systems are characteristically
imperfect since they are results of evolutionary accidents. Built on such almost
paradoxical situation reached in Chomsky’s minimalism, this article discusses the
limits to emulating physics in other fields of study, more specifically in biology and
cognitive sciences, among which stands linguistics. As a result of this investigation,
this work questions the very metaphysical assumption that nature is perfect, along with
ideas from contemporary thinkers such as physicist Marcelo Gleiser.
Keywords: Philosophy of Linguistics; Philosophy of Physics; Galileo Galilei; Noam
Chomsky; Minimalist Program; Ray Jackendoff’s parallel architecture.
Recebido em 09 de abril de 2019
Aceito em 04 de agosto de 2019
1. Introdução
No ensaio “Belas teorias”, publicado na coletânea Sonhos de
uma teoria final: a busca das leis fundamentais da natureza, o físico
Steven Weinberg discute como a estética tem sido utilizada há séculos
pelos físicos como um guia no desenvolvimento de suas teorias. “(...)
algo tão pessoal e subjetivo como nosso senso de beleza nos ajuda não
só a inventar teorias físicas, mas até a julgar a validade destas”, observa
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Weinberg (1996, p. 109). A seu ver, três princípios sustentam a noção
de beleza tal qual entendida pelos físicos: simetria, simplicidade e
inevitabilidade – entendida como “a beleza de uma estrutura perfeita,
de tudo se encaixando, de rigidez lógica, de nada ser alterável”
(WEINBERG, 1996, p. 120). Como não poderia deixar de ser, Weinberg
(1996, p. 123ss) destaca que na aplicação da matemática pura à física
é que a eficácia do julgamento estético mais impressiona. Para ilustrar
essa afirmação, Weinberg resgata, por exemplo, a história da elaboração
da geometria não euclidiana no século 19 por matemáticos como Carl
Friedrich Gauss e Georg Friedrich Bernhard Riemann e seu feliz emprego
por Albert Einstein na relatividade geral, já no início do século 20. “A
matemática estava ali esperando para Einstein utilizá-la, apesar de que
acredito que Gauss, Riemann e outros geômetras diferenciais do século
19 não tivessem a menor ideia de que seus trabalhos teriam qualquer
aplicação nas teorias físicas da gravitação” (WEINBERG, 1996, p. 124),
pontua Weinberg. De qualquer maneira, o fato a ser aqui destacado é
que os físicos contemporâneos seguem essa trilha estética aberta por
seus antecessores na tentativa de concretizar o sonho de uma teoria
final, que desvendaria as “leis finais da natureza” (WEINBERG, 1996,
p. 9). Mas não somente eles. Afinal, dado o extraordinário sucesso da
física-matemática moderna, teóricos de outras áreas do conhecimento
acabaram por se valer em seus estudos dos mesmos princípios que vêm
norteando as pesquisas realizadas no âmbito dessa disciplina desde os
seus estágios iniciais, no contexto da revolução científica do século 17.
Entre as ciências humanas, a gramática gerativa de Noam
Chomsky, cujos primeiros passos datam dos anos 1950, talvez seja o
exemplo mais bem acabado desse fenômeno. Recorrendo basicamente à
gramática tradicional e à linguística estruturalista americana; à filosofia
cartesiana; à lógica matemática desenvolvida a partir do fim do século
19 por nomes como Gottlob Frege, Bertrand Russell e Rudolf Carnap
e à epistemologia de gigantes da ciência como Galileu Galilei, Isaac
Newton e Albert Einstein (BORGES NETO, 1991; GUIMARÃES,
2017), Chomsky revolucionou os estudos da linguagem ao propor, em
oposição às teorias estruturalistas e behavioristas então em voga, que
o conhecimento linguístico humano é inato, havendo em nossa mente/
cérebro um componente especificamente dedicado à linguagem – isto
é, uma “faculdade da linguagem” (CHOMSKY, 1999, p. 40). Mais que
96
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isso: seguindo a “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’”1
(CHOMSKY, 2001, p. 2) e “simples” (CHOMSKY, 2014, p. 154),
Chomsky acabou por levantar a hipótese de que a linguagem mesma é um
“sistema perfeito” (CHOMSKY, 1999, p. 39), apresentando propriedades
de simplicidade e de elegância que não são características de sistemas
orgânicos (CHOMSKY, 1999, p. 69). “Depois dos primeiros anos da
década de 1980”, lembra Chomsky (2014, p. 47-48), “eu começava
quase todo curso que ministrei dizendo: ‘Vejamos se a linguagem é
perfeita’. Tentávamos então verificar se ela era perfeita, e isso não dava
certo; terminávamos com algum outro tipo de complexidade.” Sem, no
entanto, desistir da ideia de que a linguagem é perfeita em algum sentido,
Chomsky recolocaria essa hipótese nos anos 1990 em seu Programa
Minimalista (CHOMSKY, 1999), assumindo a chamada “tese minimalista
forte” (CHOMSKY, 2007a, p. 4; 2007b, p. 16; 2007c, p. 20), segundo a
qual “a linguagem é uma solução perfeita para as condições de interface”
(CHOMSKY, 2007a, p. 5; 2007b, p. 16; 2007c, p. 20).
Na segunda seção deste trabalho, volta-se à tese minimalista forte,
discutindo-se seus detalhes. Por ora, o ponto a ser sublinhado é que a
ideia de que a linguagem é um sistema perfeito remonta aos primórdios
da gramática gerativa. Conforme Chomsky (2014, p. 248), ainda nos
anos 1950, era “muito óbvio” para alguns dos primeiros gerativistas que
existiriam três fatores determinantes ao design da linguagem: 1) dotação
genética; 2) experiência (ou exposição aos dados externos); 3) princípios
não específicos à faculdade da linguagem (CHOMSKY, 2005b, p. 6;
2007a, p. 3; 2007b, p. 15). Entre esses princípios, definidos por Chomsky
(2014, p. 167) como “princípios gerais do funcionamento do mundo” – ou
seja, princípios físicos e matemáticos –, estariam “princípios de análise
de dados que talvez sejam usados na aquisição da linguagem e em outros
domínios” (CHOMSKY, 2005b, p. 6). Levando em conta tais princípios, e
tomando como referência os trabalhos clássicos do biólogo e matemático
D’arcy Thompson (1994) e do lógico e matemático Alan Turing (1952)
sobre o papel de princípios extraorgânicos no desenvolvimento de padrões
de organismos vivos, Chomsky confiantemente afirma que “alguns dos
princípios do terceiro fator têm o cheiro de restrições que valem para todas
as facetas de crescimento e evolução” (2007a, p. 3). Seguindo essa pista,
porém, Chomsky acabou por assumir no Programa Minimalista posições
1
As traduções das citações de obras não publicadas em português foram feitas pelo autor.
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empiricamente questionáveis sobre a faculdade da linguagem, como a
de que a fonologia e a morfologia não são componentes da linguagem
propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20-23; CHOMSKY,
2014, p. 96) e a de que a exteriorização do pensamento pode não ter sido
resultado de um processo evolutivo, e sim fruto de uma “brilhante ideia”
de alguém (CHOMSKY, 2014, p. 97) – ou seja, uma criação humana.
À primeira vista, essas questões talvez pareçam concernir
apenas ao quadro gerativista de estudos linguísticos. Um olhar mais
atento a elas, no entanto, permite vislumbrar as profundas implicações
epistemológicas de toda essa discussão –especialmente considerandose que foram sobretudo os desdobramentos da gramática gerativa nas
últimas sete décadas que culminaram nesta nova subdisciplina a que
se tem chamado de “biolinguística”, que é definida como “o estudo da
biologia da linguagem” (JENKINS, 2013, p. 4). Isso porque, se de um
lado a incorporação dos preceitos seguidos pelos físicos e matemáticos
se mostrou determinante para o êxito do programa gerativista, por outro,
o comprometimento de Chomsky com esses mesmos preceitos resultou
na defesa de posições absolutamente insustentáveis em seu Programa
Minimalista. A própria ideia de que o sistema orgânico da linguagem,
diferentemente de todos os outros bilhões e bilhões de sistemas orgânicos
complexos, é perfeito ou próximo da perfeição soa muito mais como um
desejo do que como uma hipótese científica. Em vista disso, bem como
de outras disformidades do minimalismo chomskiano a serem discutidas
ao longo deste texto, é imperativo em primeiro lugar levantar a pergunta
sobre os limites da transposição salutar do modus operandi de físicos
e matemáticos à investigação de um “órgão mental” (e.g. CHOMSKY,
1977, p. 58; 2009b, p. 41; 1998, p. 19; 2005b, p. 1) como a linguagem.
Além do mais, considerando-se o papel decisivo exercido pela gramática
gerativa na revolução cognitiva dos anos 1950 (GARDNER, 2003), é
igualmente obrigatório estender a pergunta às ciências cognitivas como
um todo. Nos dois casos, é claro, trata-se de um desafio monumental
que demandará a atenção de cientistas cognitivos – aqui evidentemente
incluídos os linguistas –, de físicos e de filósofos por um longo período.
Não obstante isso, é altamente positivo o simples fato de já se poder
colocar a pergunta a respeito da conveniência de tomar a físicamatemática como modelo do fazer científico na biologia como um todo
e nas ciências cognitivas em particular.
98
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Sem minimizar a complexidade dessa pergunta, este artigo
tem por objetivo não apenas formulá-la, mas também esboçar uma
resposta a ela. Na verdade, tendo por referência a situação delicada
a que chegou Chomsky em seu Programa Minimalista ao levar às
últimas consequências no estudo da biologia da linguagem pressupostos
metafísicos assumidos por físicos-matemáticos, argumenta-se neste
trabalho que não faz sentido adotar na investigação de organismos vivos
esses pressupostos – a começar pela idealização de que a natureza seja
perfeita em algum sentido. Para além disso, com base no truísmo de que
organismos vivos também são parte do mundo natural, põe-se em xeque
ao fim destas reflexões a própria concepção de que a natureza seja perfeita,
assim como a escolha da estética como guia para o desenvolvimento de
teorias científicas. Como resultado desse posicionamento, as ideias aqui
defendidas acabam no fim das contas por alinhar-se com a censura que
pensadores contemporâneos como o físico Marcelo Gleiser vêm fazendo
ao sonho que surge na Grécia Antiga e é renovado na revolução científica
do século 17 de que as leis fundamentais da natureza são dotadas de
princípios estéticos como os de simetria, simplicidade e inevitabilidade.
2. um sistema orgânico perfeito?
Logo no início do livro Why only us (Por que apenas nós?),
lançado por Robert C. Berwick e Noam Chomsky em 2016, os autores
sintetizam a concepção chomskiana da linguagem afirmando que
esta é “um sistema computacional interno que constrói expressões
hierarquicamente estruturadas com interpretações sistemáticas no nível
das interfaces com outros dois sistemas internos”: o sistema sensóriomotor para a externalização e o sistema conceitual para planejamento,
interpretação, inferência – ou seja, para o “pensamento” (p. 20). Em
relação ao primeiro sistema, Berwick e Chomsky (2017) destacam que
ele abrange não apenas a aprendizagem e a produção vocal/motora,
mas também a formação de palavras (morfologia) e sua relação com
os sistemas de som da linguagem (fonética e fonologia); a prosódia e o
reajuste na produção linguística para facilitar a carga da memória durante
a produção. Além disso, Berwick e Chomsky (2017, p. 21) ressaltam que a
estrutura hierárquica interna da linguagem não carrega a informação sobre
o ordenamento de palavras e sintagmas para a direita ou para a esquerda.
Assim, exemplificam, as combinações verbo-objeto e objeto-verbo, que
diferenciam o japonês do inglês e do francês, não são representadas na
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estrutura hierárquica interna. De acordo com Berwick e Chomsky, esse
fato sinaliza que exigências de externalização (vocal ou manual) é que
impõem a ordem temporal sequencial da linguagem.
Dando prosseguimento à diferenciação entre o sistema
computacional interno que constrói expressões hierarquicamente
estruturadas e o sistema sensório-motor, Berwick e Chomsky (2017, p. 2123) apresentam evidências de que este tem propriedades compartilhadas
entre humanos e outras espécies, enquanto aquele é exclusivamente
humano. Os dois autores chamam a atenção, por exemplo, para estudos
comparativos, neurofisiológicos e genéticos de aves canoras que
sinalizariam que a base biológica para a aprendizagem vocal parece
ter evoluído de maneira idêntica, mas independente, tanto nas aves
quanto nos humanos. Estendendo a discussão a primatas, Berwick e
Chomsky também citam um trabalho que teria mostrado que saguis bebês
“afinam” suas vocalizações de forma semelhante à maneira com que as
crianças afinam suas vozes. Com base nessas e em outras pesquisas com
conclusões semelhantes sobre as similaridades entre o sistema vocal
humano e o sistema vocal de outras espécies, Berwick e Chomsky (2017,
p. 23) afirmam: “Se tudo isso estiver correto, podemos deixar de lado
esse aspecto do sistema de linguagem para a externalização e nos focar
nos aspectos centrais restantes, especificamente humanos”. Ou seja, se
as conclusões desses estudos estiverem corretas, Berwick e Chomsky
recomendam que aspectos linguísticos próprios à fonética, fonologia
e morfologia sejam deixados de lado em favor do foco nos aspectos
linguísticos centrais, especificamente humanos – quais sejam, a sintaxe e o
mapeamento para a interface semântica (2017, p. 93), que se dá via sistema
de semântica formal (HAUSER et al., 2002, p. 1571). De fato, anos antes
da publicação de Por que apenas nós?, Hauser, Chomsky e Fitch (2002)
já haviam apresentado argumentos semelhantes com o intuito de sustentar
a hipótese de que a recursividade – conceito que será analisado na terceira
seção deste trabalho – é o único componente exclusivamente humano
da faculdade da linguagem. Sem entrar em detalhes sobre o sistema
conceitual-intencional, como tampouco o fariam Berwick e Chomsky
(2017), Hauser, Chomsky e Fitch (2002) focam-se no sistema sensóriomotor, citando evidências de que este tem propriedades compartilhadas
entre humanos e não humanos, diferentemente da recursividade.
Essa linha argumentativa, porém, vem sendo questionada há
tempos por outros pesquisadores. Steven Pinker e Ray Jackendoff (2005),
100
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por exemplo, listam uma série de estudos que mostram evidências de
que os componentes do sistema sensório-motor humano são dotados de
traços unicamente humanos, apesar de também terem traços em comum
com o sistema sensório-motor de outras espécies. Sem negar o fato
apontado por Hauser et al. (2002), e retomado por Berwick e Chomsky
(2017), de que alguns aspectos da habilidade humana para perceber a fala
não apenas são encontrados em outros animais como são anteriores ao
advento da linguagem, Pinker e Jackendoff (2005, 206-207) questionam o
pressuposto assumido por Hauser et al. (2002), e reiterado por Berwick e
Chomsky, de que não houve mudanças evolutivas específicas à percepção
humana da fala. Para justificar esse ponto de vista, Pinker e Jackendoff
(2005, p. 207) chamam a atenção para o fato de que bebês humanos
discriminam pares de sons da fala sem instrução algum, enquanto os
outros animais que conseguem realizar essa tarefa, como alguns macacos,
só o fazem após um longo período de treinamento. Pinker e Jackendoff
(2005, p. 217) também ressaltam que humanos, e apenas humanos,
distinguem naturalmente palavras individuais, identificando sem esforço
algum os limites entre elas. Além disso, sublinham que os balbucios
silábicos emergem espontaneamente em bebês humanos, o que não se
verifica em qualquer outra espécie.
Para reforçar suas críticas à posição defendida por Hauser et
al. (2002) de que o sistema sensório-motor humano é inteiramente
constituído de propriedades compartilhadas entre humanos e outras
espécies, Pinker e Jackendoff (2005, p. 210-212) incluem na discussão
a fonologia, ressaltando que esse componente linguístico não é sequer
mencionado por Hauser et al. (2002). Para início de conversa, Pinker e
Jackendoff observam que ter o potencial de articular os sons da fala por
possuir o trato vocal adequado, como o têm alguns primatas não humanos,
não é o mesmo que estar apto à produção dos sons da linguagem.
Afinal, como enfatizam Pinker e Jackendoff tendo em vista os estudos
fonológicos, os sons da linguagem são constituídos por segmentos de
fala, que são finamente articulados em sílabas, pés e frases prosódicas,
aos quais são superimpostos ainda padrões de acento (stress) e de altura
(pitch).2 A despeito porém da complexidade de todo esse arranjo, que é
aparentemente exclusivo a humanos, Pinker e Jackendoff admitem que
algumas propriedades combinatórias da fonologia encontram análogos
2
Para uma apresentação desses tópicos, ver, por exemplo, Kenstowicz (1994) e Odden
(2005).
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101
em cantos de algumas espécies de pássaros e talvez até mesmo em cantos
de determinados cetáceos, como baleias e golfinhos. Isso, no entanto,
argumentam, não quer dizer que o sistema sensório-motor humano não
tenha propriedades exclusivamente humanas. As propriedades rítmicas da
linguagem e da música, exemplificam, parecem ser unicamente humanas,
assim como as regras de emprego de tonalidade presentes na música e
em línguas tonais como o mandarim. Considerando essas e outras tantas
particularidades fonológicas que não cabem ser aqui mencionadas, Pinker
e Jackendoff concluem, em acordo com amplas evidências empíricas (cf.,
p. ex., BURTON et al., 2000; DEHAENE-LAMBERTZ, 1997, 2000;
DEHAENE-LAMBERTZ; BAILLET, 1998; DEHAENE-LAMBERTZ;
GLIGA, 2004; DEHAENE-LAMBERTZ; PEÑA, 2001; DEHAENELAMBERTZ et al. 2006; JACQUEMOT et al., 2003), que “os tipos de
constituintes, os princípios de combinação e a natureza dos processos
de ajuste em fonologia parecem ser específicos à linguagem” (PINKER;
JACKENDOFF, 2005, p. 211).3
Curiosamente, o próprio Chomsky defendeu por décadas uma
opinião semelhante sobre o componente fonológico, tendo mudado de
ideia, ao que parece, apenas nos anos 1990, já no âmbito minimalista.
Na verdade, é perceptível o esforço de Chomsky em manter a fonologia
próxima à sintaxe em modelos teóricos anteriores ao Programa
Minimalista, sendo possível traçar na história da gramática gerativa
pontos de aproximação e pontos de afastamento entre o componente
sintático e o componente fonológico até a total ruptura entre os dois
no minimalismo. Em Syntactic structures (Estruturas sintáticas), por
exemplo, de 1957, Chomsky tenta manter a sintaxe e a fonologia o mais
próximas possível, inclusive empregando o mesmo mecanismo de regras
de reescrita para descrever tanto as regras sintáticas quanto as regras
fonológicas. No livro, Chomsky sugere interpretar a regra da forma X
→ Y de (1) como a instrução “reescreva X como Y” (2015a, p. 38):
(1) (i) Sentença → SN + SV
(ii) SN → Art + N
(iii) SV → Verbo + SN
(iv) Art → The [o, a]
(v) N → man [homem], ball [bola], etc.
(vi) Verbo → hit [chutou], took [pegou], etc.
3
Para a réplica, ver Fitch et al. (2005); para a tréplica, ver Jackendoff e Pinker (2005).
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Feito isso, Chomsky (2015a) afirma que (2) seria a derivação da
sentença “O homem chutou a bola”, em que cada número à direita da
derivação se refere a uma regra de (1):
(2) Sentença
SN + SV
Art + N + SV
Art + N + Verbo + SN
o + N + Verbo + SN
o + homem + Verbo + SN
o + homem + chutou + SN
o + homem + chutou + Art + N
o + homem + chutou + a + N
o + homem + chutou + a + bola
r. (i)
r. (ii)
r. (iii)
r. (iv)
r. (v)
r. (vi)
r. (ii)
r. (iv)
r. (v)
Mais à frente, Chomsky (2015a, p. 44) observa que a descrição da
estrutura fonêmica dos morfemas de uma língua também é apresentada
por meio de um conjunto de regras da forma “reescreva X como Y” e
exemplifica:
(3) (i) walk → / wɔk/
(ii) take + passado → /tuk/
(iii) hit + passado → /hit/
(...).
Considerando-se esses exemplos, não surpreende que, referindose à fonologia desenvolvida por Morris Halle nos anos 1950, que foi
apoiada por Chomsky em seu ataque à fonologia estruturalista de Leonard
Bloomfield, Randy Allen Harris tenha afirmado que tanto Chomsky
quanto Halle insistiam que essa nova fonologia “era parte de um pacote”
e que, “se você gostou da sintaxe (...), você teria de levar a fonologia”
(HARRIS, 1993, p. 60). Sinal do poder dessa nova metodologia
descritiva, esse “pacote” permaneceria praticamente intacto no contexto
da chamada teoria padrão, que foi sintetizada por Chomsky nos Aspects
of the theory of syntax (Aspectos da teoria da sintaxe), de 1965. Na
realidade, Chomsky não só continuaria a empregar nos Aspectos o mesmo
mecanismo de regras de reescrita para descrever tanto as regras sintáticas
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quanto as regras fonológicas como explicitaria semelhanças entre os
dois componentes gramaticais na subseção “Algumas analogias formais
entre a sintaxe e a fonologia”. Nessa subseção, Chomsky inicialmente
observa que regras de reescrita da forma A→Z/X – Y são o “mecanismo
natural” para gerar os indicadores sintagmáticos representados nas
árvores gerativistas (p. 150), como exemplificado em (1) e (2). Adiante,
Chomsky afirma que a mesma regra de reescrita é “a forma típica de
uma regra fonológica” (1975a, p. 167). Para ilustrar essa regra, Chomsky
(1975a) apresenta o seguinte exemplo:
(4) [+ contínuo] → [+ sonoro] / – [+ sonoro]
Conforme Chomsky, a regra converterá, por exemplo, [sm]
em [zm], [fd] em [vd], etc., sem afetar casos como [st] e [pd]. Com
base nesse tipo de mecanismo de aplicação de regras fonológicas em
classes de segmentos especificadas por traços como [± contínuo], [±
sonoro], [± nasal], etc., Chomsky (1975a, p. 168) proporia adaptá-lo à
representação das categorias lexicais e dos seus membros, o que para
ele não só constituiria “uma solução muito natural para o problema da
classificação cruzada”, mas também contribuiria “para a unidade geral
da teoria gramatical” (grifo nosso). Assim, se o segmento fonético [s],
por exemplo, é especificado nesse modelo com os traços [+ consoante,
- vocálico, - soante, - nasal, + contínuo, - sonoro, + anterior, + coronal],
um “formativo lexical” (CHOMSKY, 1975a, p. 168) como boy teria os
traços sintáticos [+ comum, + numerável, + humano, etc.). Além disso, os
símbolos das categorias gramaticais, como N (noun, ou substantivo), V
(verbo), etc., seriam analisados em símbolos complexos, sendo cada um
desses símbolos um conjunto de traços sintáticos, assim como um segmento
fonológico é um conjunto de traços fonológicos. Veja-se a exemplificação
de Chomsky (1975a, p. 168) com a categoria gramatical N:
(5) (i) N → [+ N, ± comum]
(ii) [+ comum] → [± numerável]
(iii) [+ numerável] → [± animado]
(iv) [- comum] → [± animado]
(v) [+ animado] → [± humano]
(vi) [- numerável] → [± abstrato]
104
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Chomsky e Halle, por sua vez, em The sound pattern of English,
de 1968, não somente retomariam essa proposta como a aperfeiçoariam,
aproximando-se ainda mais de uma “unidade geral da teoria gramatical”.
O “formativo” boy, por exemplo, de acordo com os autores (1968, p.
7), fonologicamente pertenceria à categoria de elementos com inicial
oclusiva sonora; sintaticamente pertenceria à categoria “substantivo”;
semanticamente, pertenceria à categoria “animado”, à categoria
“masculino”, etc. – isto é, o formativo boy seria dotado desses traços, e
toda essa informação estaria presente no léxico, tomado como parte do
componente sintático da gramática.
Olhando retrospectivamente, pode-se afirmar que este foi o
momento de maior aproximação entre os componentes sintático e
fonológico na obra de Chomsky. Mais: pode-se afirmar que este foi o
momento culminante do programa de pesquisas para a gramática gerativa
que o próprio Chomsky havia estabelecido em 1962 no artigo “The
logical basis of linguistic theory”, no qual incluiu tanto a sintaxe quanto a
fonologia. Isso porque, como ponderam Frederick J. Newmeyer, Stephen
R. Anderson, Sandra Chung e James McCloskey no ensaio “Chomsky’s
1962 Programme for Linguistics”, de 1996, o programa sintático
estabelecido por Chomsky naquele artigo permaneceu essencialmente o
mesmo ao longo das décadas seguintes, mas não o programa fonológico.
Na opinião desses autores isso se deu “como consequência do fato de que
o próprio Chomsky não prestou muita atenção às questões fonológicas
desde a publicação de The sound pattern of English” (1996, p. 74).
Essa, porém, é uma avaliação que simplifica excessivamente a questão
toda, assim como a análise de Harris (1993, p. 79) de que Chomsky se
viu forçado a abandonar seu trabalho em fonologia por conta de suas
atividades políticas, que passaram a demandar muito de seu tempo.
Para ir além dessas duas interpretações, é preciso destacar
primeiramente que, na teoria padrão e na teoria padrão estendida,4 Chomsky
(1975a, p. 97; 1966, p. 16-17; 1977, p. 166; CHOMSKY; HALLE, 1968,
p. 6-7) afirmava que uma gramática consiste em três componentes: o
sintático, o semântico e o fonológico. Fato pouco conhecido atualmente,
ainda no contexto da teoria padrão Chomsky chegou a dividir a “gramática
4
Para uma discussão retrospectiva desses dois modelos, ver Chomsky (1981, 1994).
Para uma exposição pormenorizada de todos os modelos chomskianos, ver, por exemplo,
Guimarães (2017), Ouhalla (1999) e Radford (1997).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
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universal” (GU) – entendida como “uma caracterização [dos] princípios
inatos e biologicamente determinados que constituem (...) a faculdade
da linguagem” (CHOMSKY, 1994, p. 43-44) – em fonética universal,
semântica universal e sintaxe universal (CHOMSKY, 1967, p. 402-408).
Anos mais tarde, já no âmbito do modelo de princípios e parâmetros
(CHOMSKY, 1981), Chomsky faria um balanço do empreendimento
gerativista no livro Knowledge of language: its nature, origin and use
(O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso), de 1986. Nessa
obra, Chomsky integra a fonologia à chamada língua interna, ou língua-I
(CHOMSKY, 1994, p. 58-60), definida como “um elemento que existe
na mente da pessoa que conhece a língua, adquirido por quem aprende e
usado pelo falante-ouvinte” (CHOMSKY, 1994, p. 41); “um sistema de
regras de um certo tipo, uma realização específica das opções permitidas
pela GU, fixada pela experiência” (CHOMSKY, 1994, p. 62). No entanto,
Chomsky depois excluiria a fonologia dos aspectos centrais do sistema
da linguagem em seu Programa Minimalista, como visto acima. A razão
dessa mudança parece ter sido seu intuito de manter a qualquer custo a
hipótese de que a linguagem é perfeita em algum sentido – ou seja, sua
“tese minimalista forte”.
A fim de compreender melhor a tese minimalista forte, é necessário
retomar a coletânea The Minimalist Program (O Programa Minimalista),
de 1995, na qual Chomsky já levanta a hipótese de a linguagem ser um
“sistema perfeito” (1999, p. 39). Na introdução da obra, Chomsky afirma
que a faculdade da linguagem tem ao menos dois componentes: “um
sistema cognitivo que guarda informação” e “sistemas de performance
que têm acesso a essa informação e a usam de várias maneiras” (p. 40).
Em se tratando do primeiro, Chomsky (1999, p. 40) pressupõe que ele
interage apenas com dois sistemas “externos”: o sistema articulatórioperceptual (A-P) e o sistema conceitual-intencional (C-I) – isto é, haveria
somente dois níveis de interface: a Forma Fonética na interface A-P e
a Forma Lógica na interface C-I. Com base nessas noções, Chomsky
(1999, p. 247) afirma que uma “arquitetura minimalista” é “uma teoria
da linguagem que considera que uma expressão linguística não é mais
do que um objeto formal que satisfaz as condições de interface da
melhor maneira”. Em outros termos, numa arquitetura minimalista,
“cada expressão linguística é uma realização ótima das condições de
interface expressas em termos elementares (elo de cadeia, relações
106
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X-barra-teoréticas locais),5 ou seja, um par (π, λ) satisfazendo estas
condições e gerado da maneira mais econômica” (CHOMSKY, 1999, p.
265), sendo π interpretado na interface A-P e λ na interface C-I. A ideia
de que a linguagem é um sistema ótimo, perfeito, como explicitado na
introdução deste artigo, remonta aos primórdios da gramática gerativa,
quando, segundo Chomsky, já estaria claro para alguns gerativistas que
existiriam três fatores determinantes ao design da linguagem: 1) dotação
genética; 2) experiência (ou exposição aos dados externos); 3) princípios
não específicos à faculdade da linguagem. Em entrevista ao filósofo James
McGilvray, Chomsky deixa mais clara a sua posição quanto ao papel do
terceiro fator no design da linguagem:
Eles [os biólogos] descobriram no tipo de coisa que estudavam,
como as bactérias, que o caminho tomado pelo desenvolvimento
evolucionário parece ser surpreendentemente uniforme, fixado
por lei física. Se algo disso se aplica à linguagem, você espera
que o sistema interno, inconsciente, que provavelmente está
mapeando expressões linguísticas em sistemas de pensamento em
uma interface, esteja próximo da perfeição (CHOMSKY, 2014,
p. 99; grifo nosso).
Assim, para Chomsky (2014, p. 146), “não é impossível – e
pode-se mostrar que isso é verdade – que o formato para a gramática
na verdade envolva, em grande medida, princípios de eficiência
computacional etc. – que podem não ser apenas extralinguísticos, mas
extraorgânicos”. Essa ideia de que o formato de sistemas orgânicos talvez
tenha sido determinado, ao menos em parte, por princípios extraorgânicos
fundamentou a busca por uma explicação de como se desenvolvem os
padrões de um organismo vivo feita pelo biólogo e matemático D’arcy
Thompson (1994) e pelo lógico e matemático Alan Turing (1952). “Eles
apontaram para um papel significativo da explicação físico-química ao
tratar da estrutura e da modificação e enfatizaram que funções formais
poderiam explicar a forma e suas variações permissíveis no modo que
coloca em questão o valor das explicações adaptacionistas e seletivas”,
observa Chomsky (2014, p. 285-286). Influenciado pelo trabalho de
Thompson e de Turing, Chomsky pretendia ainda na década de 1950
estender essa pesquisa à linguagem. Isso, porém, não foi possível naquele
5
Para uma discussão desses termos e de seus correlatos, ver Chomsky (1981, 1994, 1999).
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107
momento, já que, conforme relata (2014, p. 248), o objetivo mais imediato
no início do programa gerativista era convencer a comunidade científica
da existência do primeiro fator – isto é, a existência de um componente
genético, inato, responsável pela linguagem. “Então, não havia muita
discussão sobre o terceiro fator – ele até era mencionado, mas não se
fazia nada com ele”, recorda Chomsky (2014, p. 248). Mais tarde, com
os avanços obtidos no gerativismo, passou-se a aceitar a existência do
primeiro e do segundo fator. “Então, chega-se a um ponto em que se
admite que existe um componente genético, existe experiência – que é
o resultado da maneira como nosso componente genético lida com os
dados –, e existe esse terceiro fator lá”, reforça Chomsky (2014, p. 249).
Ainda de acordo com Chomsky (2014, p. 249), o terceiro fator esteve
metodologicamente implícito por muito tempo na gramática gerativa,
como um nível de “melhor explicação”, em que se tenta elaborar um
sistema de regras que não tenha redundâncias, por exemplo. Quanto a
esse ponto, Chomsky esclarece:
(...) estamos sugerindo que existe uma propriedade do mundo –
não a linguagem, talvez nem mesmo os organismos – que diz que a
computação eficiente funciona de uma determinada maneira, seja
a linguagem ou a organização de distribuição dos neurônios (...),
ou estratégias de forrageamento, ou o que seja; existem certas leis
da natureza que estão sendo postas em prática, e elas se aplicam
de tal maneira que impõem a seguinte estrutura em sistemas que
atendem a certos critérios: ser acessível ao sistema sensório-motor,
por exemplo (CHOMSKY, 2014, p. 249; grifo nosso).
Pouco adiante, Chomsky arremata:
Pode-se ver se é assim que o mundo realmente funciona: vou
olhar para alguma outra coisa, a distribuição das artérias e veias
no corpo, e verificar se isso atende a condições semelhantes.
E também podemos ter a esperança de encontrar uma teoria
mais fundamental da eficiência que forneça alguma substância
matemática aos princípios que você detecta empiricamente em
muitas partes do mundo. Se você consegue chegar tão longe, pode
provar que isso realmente se aplica, por exemplo, à eliminação
das regras de redundância na linguagem. O.k., aí temos uma
explicação profunda e, agora, em termos de terceiro fator. Isso tem
sido difícil de fazer (CHOMSKY, 2014, p. 249-250).
108
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Além de difícil, a busca por uma “explicação profunda” sobre
o design da linguagem em termos de terceiro fator acabou por levar
Chomsky a assumir no Programa Minimalista posições empiricamente
frágeis, como a de que a fonologia tem apenas uma relevância limitada
para o estudo das propriedades computacionais da linguagem por não
ser parte da faculdade da linguagem em sentido estrito (HAUSER et al.,
2002). Em todo caso, de acordo com Chomsky (2014, p. 110), o terceiro
fator sempre esteve por trás da discussão sobre o desenvolvimento (ou
aquisição) da linguagem nos indivíduos, mas estava fora do alcance
dessa mesma discussão porque, “à medida que o conceito de gramática
universal (GU), ou de teoria linguística, é entendido como um formato
e um procedimento de avaliação para gramáticas, então você é quase
compelido a presumir que ela é altamente específica à linguagem e
altamente articulada e restrita, ou, do contrário, você não consegue lidar
com o problema da aquisição” (CHOMSKY, 2014, p. 110). Em outras
palavras, como havia afirmado o próprio Chomsky (1994, p. 24ss), a
aquisição de uma língua pelos seres humanos não se dá pela aplicação
de mecanismos generalizados de aprendizagem, mas sim por meio de
um módulo específico presente na mente/cérebro dos seres humanos, a
faculdade da linguagem, que tem propriedades e estrutura específicas,
diferentes dos outros módulos cognitivos, como o da visão. Assim, de
um lado o primeiro fator compreende esse módulo específico que é a
faculdade da linguagem; de outro, o terceiro fator refere-se às leis gerais
da natureza. Como pondera Chomsky,
isso torna quase impossível compreender como a GU poderia seguir
quaisquer princípios gerais não específicos à linguagem. Não é uma
contradição lógica, mas os dois esforços tendem a levar a direções
opostas. Se você está tentando fazer que a GU seja articulada e
restrita o suficiente para que o procedimento de avaliação precise
verificar apenas alguns poucos exemplos nos dados fornecidos pela
experiência, porque isso é tudo o que é permitido, então a GU será
muito específica à linguagem, e não haverá princípios gerais em
operação (CHOMSKY, 2014, p. 110-111).
Conforme Chomsky, só depois da elaboração do modelo de
princípios e parâmetros6 é que se tornou possível resolver esse problema:
6
Para uma exposição desse modelo, ver Chomsky (1981 e 1994).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
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Se há qualquer coisa de verdade quanto à abordagem de princípios
e parâmetros, a questão acerca do formato para as gramáticas é
completamente divorciada da questão de como se dá a aquisição;
a aquisição será simplesmente uma questão de marcação
paramétrica. Isso deixa várias questões abertas sobre o que são
os parâmetros; mas significa que as propriedades da linguagem
são seja lá o que for que sobra, isto é, que não é coberto pelos
parâmetros. Não há mais razão conceitual pela qual as gramáticas
devam ser altamente articuladas e muito específicas e limitadas.
Foi removida uma barreira conceitual para a tentativa de verificar
se o terceiro fator realmente tem algum papel na explicação das
propriedades da linguagem. Foi preciso um longo período de
investigação antes que se estivesse em condições de chegar a
algum lugar com esse tipo de questão (CHOMSKY, 2014, p. 111).
Mais adiante, Chomsky completa:
A língua simplesmente tem um formato altamente específico,
altamente articulado, e esse é o único jeito de dar conta da
aquisição da linguagem. Isso me parecia, e parecia a todos [nos
anos 1960 e 1970], um argumento convincente. Bem, quando
surgiu o modelo de princípios e parâmetros, esse argumento foi
minado. O modelo não respondia às perguntas, mas minava o
argumento porque olhava tudo com um jeito diferente. A aquisição
estava desassociada do formato da gramática. A aquisição consiste
em fixar parâmetros, e a gramática é o que quer que seja. Não
era mais parte do processo de aquisição; por isso, é ao menos
concebível que essa abordagem seja a melhor solução possível
para outras condições. Aí podemos começar a nos preocupar com
o terceiro fator (CHOMSKY, 2014, p. 251; grifo nosso).
Mas de fato já poderíamos começar a nos preocupar com o
terceiro fator nas pesquisas linguísticas após o surgimento do modelo
de princípios e parâmetros? Já se chegou a algum lugar com o tipo de
questão a respeito de o terceiro fator ter ou não algum papel na explicação
das propriedades da linguagem? Chegou-se no minimalismo chomskiano
a alguma explicação profunda sobre o design da linguagem em termos
de terceiro fator? A única resposta possível a essas três perguntas parece
ser um sonoro não. Isso porque ainda se sabe muito pouco sobre a
faculdade da linguagem em si – ou seja, o primeiro fator – para passar-se
à investigação referente ao papel do terceiro fator no design da linguagem.
110
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“Uma das poucas coisas que posso dizer com alguma segurança sobre este
tópico [cérebro e linguagem] é que estou longe de saber o suficiente para
abordá-lo da maneira correta”, admite Chomsky (2006, p. 73). Realmente,
“nós não temos a menor ideia de como mesmo as unidades linguísticas
mais elementares, como os sons da fala, podem estar implementados
neurologicamente: como os sons da fala são armazenados e como eles
são processados” (JACKENDOFF, 2007, p. 13-14). Não obstante esse
fato, Chomsky não se intimidou a estender suas reflexões ao terceiro
fator, sobre o qual declarou:
Quanto mais você pode atribuir ao terceiro fator, melhor. Esse é
o caminho que a ciência deveria tomar; o objetivo de qualquer
cientista sério interessado nesse tipo de questão é ver quanto da
complexidade de um organismo pode ser explicado em termos de
propriedades gerais do mundo. Essa é quase a natureza da ciência
(CHOMSKY, 2014, p. 223; grifo nosso).
Sem dúvidas, entender quanto da complexidade de um organismo
pode ser explicado em termos do terceiro fator é uma meta científica de
primeira importância. Antes de estabelecê-la, porém, é evidentemente
necessário ter um entendimento aprofundado do próprio organismo em
questão. Neste ponto, Chomsky encontra-se ainda muito distante de
seus precursores Thompson e Turing. O primeiro, tentando compreender
“como (...) as formas de coisas vivas, e as partes de coisas vivas, podem
ser explicadas por considerações físicas, e perceber que em geral
nenhuma forma orgânica existe senão as que estão em conformidade
com leis físicas e matemáticas” (THOMPSON, 1994, p. 10), analisou,
por exemplo, detalhes da anatomia humana; aspectos do “crescimento e
forma” de células, moléculas e tecidos de um sem-número de seres vivos;
o formato de chifres, dentes e presas de animais diversos, etc., etc. Já
Turing, ao dar continuidade às pesquisas de Thompson nos anos 1950,
também investigou células e tecidos, bem como o crescimento de um
embrião, os tentáculos da Hydra e as espirais das folhas de determinadas
plantas, como a aspérula (Asperula odorata). Em comum aos trabalhos
dos dois, está o fato de ambos terem se restringido a “coisas vivas” e
“partes de coisas vivas” das quais já se tinha um profundo conhecimento
– ao menos de seus respectivos “crescimento e forma”. Chomsky, por sua
vez, elegeu em suas pesquisas um sistema orgânico – isto é, a linguagem
– infinitamente mais complexo do que chifres, dentes e folhas, e do qual
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111
ainda se sabe muito pouco. De fato, apesar dos grandes avanços das
últimas décadas, continua válida a afirmação feita em 1967 pelo linguista
e neurocientista Eric H. Lenneberg no livro Biological foundations of
language, um dos grandes marcos da fase inicial da biolinguística, de que
os fundamentos biológicos exatos da linguagem ainda são desconhecidos
(p. viii). Por conta disso, não parece fazer sentido já iniciar discussões
sobre os fundamentos extraorgânicos da linguagem, sendo portanto
prematuro da parte de Chomsky (re)colocar neste início de século 21 a
pergunta sobre o papel do terceiro fator no design da linguagem.
Igualmente prematuro da parte de Chomsky é sustentar a tese
minimalista forte de que a linguagem é uma solução perfeita para as
condições de interface não apenas porque o que se sabe sobre a linguagem
é ainda muito pouco, mas também porque não se tem um conhecimento
aprofundado dos níveis de interface: “(...) não sabemos o suficiente
sobre os sistemas ‘externos’ na interface para chegar a conclusões firmes
sobre as condições que impõem”, reconhece Chomsky (1999, p. 311).
Assim, por exemplo, “(...) a ideia de que a articulação e a percepção
envolvem a mesma representação na interface (A-P) é controversa e
talvez mesmo fundamentalmente incorreta” (CHOMSKY, 1999, p. 41).
Para complicar, “os problemas que se relacionam com a interface C-I são
ainda mais obscuros e mal compreendidos” (CHOMSKY, 1999, p. 41).
Dessa forma, o “trabalho comparativo com a segunda interface, sistemas
de pensamento, é obviamente muito mais difícil” (CHOMSKY, 2010,
p. 60) do que o trabalho comparativo com a primeira interface, sistemas
de externalização, que já resultou em sérios problemas, alguns dos quais
serão discutidos adiante. No entanto, apesar do pouco conhecimento que
se tem sobre a linguagem e sobre os níveis de interface, Chomsky (2010,
p. 62) confiantemente reitera que a linguagem é uma solução perfeita
para as condições de interface:
Se se pudesse dar explicações de princípios a todas as propriedades
da linguagem, então nós concluiríamos que a linguagem é
perfeitamente projetada para satisfazer condições semânticas,
e que o mapeamento à interface sensório-motora – fonologia e
morfologia e provavelmente mais – é um meio maximamente
eficiente de converter expressões geradas sintaticamente em uma
forma acessível à interface (CHOMSKY, 2010, p. 62).
112
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Atento, porém, a toda a dificuldade que implica assumir essa
posição baseando-se na “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’”
e “simples” ao investigar o “órgão mental” da linguagem – isto é, atento
às diferenças epistemológicas entre a física e a biologia e ciente de toda
a dificuldade que implica adotar a hipótese de a faculdade da linguagem
ser perfeita e simples, mesmo presumindo que ela “esteja mais ou menos
pareada com sistemas de visão mamífera, navegação de insetos e outros”
(CHOMSKY, 2005b, p. 2) –, Chomsky afirma logo no primeiro capítulo
do Programa Minimalista:
Uma boa parte da investigação mais reveladora sobre a gramática
gerativa nos últimos anos tem seguido a hipótese de trabalho
de que a GU é uma teoria simples e elegante, com princípios
fundamentais que têm uma natureza intuitiva e uma ampla
generalidade. (...) Um pressuposto relacionado é que a GU é
não redundante, no sentido de os fenômenos serem explicados
por uma interação particular de princípios. (...) As ideias-guia
parecem-se com as ideias várias vezes adotadas no estudo dos
fenômenos inorgânicos, uma área com um sucesso frequentemente
espetacular desde o século 17. Mas a linguagem é um sistema
biológico, e os sistemas biológicos são tipicamente confusos,
complicados, são o resultado de acidentes da evolução, e são
moldados por circunstâncias acidentais e por condições físicas que
se aplicam sobre sistemas complexos com funções e elementos
variados (CHOMSKY, 2005b, p. 68-69).
Em vista desses fatos, Chomsky reconhece:
A redundância é não só uma característica típica desses sistemas,
mas uma característica esperada, porque ajuda a compensar
feridas e defeitos, e permite uma acomodação à diversidade
de finalidades e funções. O uso da linguagem parece ter as
propriedades esperadas: (...) é sabido que partes consideráveis da
linguagem são não usáveis, e que as partes usáveis parecem formar
um segmento caótico e sem coerência da totalidade da linguagem
(CHOMSKY, 2005b, p. 69).
Indo ao encontro dessas observações de Chomsky sobre os sistemas
biológicos, o biólogo evolucionista e cientista cognitivo W. Tecumseh
Fitch lembra que “neurônios individuais são lentos e desajustados, e
algumas vezes morrem, e esses fatos básicos frequentemente resultaram
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na evolução de circuitos paralelos redundantes, em vez de circuitos
que parecem ótimos para engenheiros elétricos, que têm disponíveis
elementos computacionais rápidos, precisos e confiáveis” (2009, p.
298). Além disso, Fitch (2009, p. 298) afirma que, “à medida que a visão
é mais bem conceitualizada como um ‘saco de truques’, em que cada
aspecto da visão (cor, movimento, percepção de profundidade, etc.) tem
suas próprias soluções únicas, talvez não haja conclusões disponíveis
sobre computações subjacentes à ‘visão’ em geral” e que “o mesmo pode
ser verdade sobre a ‘linguagem’” (FITCH, 2009, p. 298). Mas, sem se
deter pelo fato de os sistemas biológicos serem confusos e complicados
– e, portanto, ser dedutível que o sistema biológico da linguagem não é
simples e elegante, mas um “saco de truques” redundante e imperfeito
–, Chomsky lança o minimalismo com o objetivo de investigar “quão
próxima a linguagem poderia chegar daquilo que alguns superengenheiros
construiriam, dadas as condições que a faculdade da linguagem precisa
satisfazer” (CHOMSKY, 2005a, p. 38). Convencido de que essa
proximidade é muito grande, Chomsky imediatamente pondera no
Programa Minimalista logo após reconhecer que partes consideráveis da
linguagem são não usáveis e que as partes usáveis parecem formar um
segmento caótico e sem coerência da totalidade da linguagem: “Contudo,
a hipótese de que a faculdade da linguagem, na sua estrutura básica, tem
propriedades de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas
orgânicos complexos tem sido frutífera; do mesmo modo, a sua natureza
digital infinita parece ser única do ponto de vista biológico” (p. 69). No
quarto e último capítulo da coletânea, Chomsky insiste: “A faculdade
da linguagem pode ser única entre os sistemas cognitivos, ou mesmo
única no mundo orgânico, precisamente por satisfazer pressupostos
minimalistas” (CHOMSKY, 1999, p. 309). E conclui: “(...) talvez o
sistema computacional CHL [Computation Human Language] seja um
caso biológico isolado” (CHOMSKY, 1999, p. 309).7
Em palestra realizada na cidade indiana de Délhi, em 1996,
Chomsky reiteraria a hipótese basilar do Programa Minimalista de que
a faculdade da linguagem, na sua estrutura básica, tem propriedades
de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos
complexos. Na ocasião, mesmo admitindo que “os sistemas biológicos
normalmente são soluções ruins para certos problemas de configuração
7
Para uma extensa defesa dessa posição, ver Chomsky (2006, cap. 4).
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colocados pela natureza” (CHOMSKY, 2008, p. 35) e que “não há nada
na biologia que sugira a possibilidade de haver qualquer coisa parecida
com configuração perfeita (no sentido minimalista)” (CHOMSKY, 2008,
p. 38), Chomsky não se furtou a conjecturar:
Se alguma versão desse programa [minimalista] der certo, teremos
uma imagem da linguagem que é surpreendente para um sistema
biológico. Em alguns aspectos, essa imagem é mais semelhante
àquelas encontradas no estudo do mundo inorgânico, no qual,
por razões obscuras, as tentativas de demonstrar que as coisas
são configuradas perfeitamente parecem dar certo na maioria das
vezes. (...) Se algo parecido com isso se mostrar válido para a
linguagem, será extremamente surpreendente e muito interessante
(CHOMSKY, 2008, p. 52-53).
Primeiramente, deve-se observar que, por motivos que serão
detalhados na quinta seção deste artigo, é um tanto enganadora a
percepção de Chomsky de que as tentativas de demonstrar, no estudo do
mundo inorgânico, que as coisas são configuradas perfeitamente parecem
dar certo na maioria das vezes. De qualquer maneira, exatamente com o
objetivo de manter “a intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’” ao
investigar o “órgão mental” da linguagem no quadro minimalista é que
Chomsky aposta todas as suas fichas na hipótese altamente improvável
de que, diferentemente de todos os outros sistemas orgânicos complexos,
a faculdade da linguagem é simples e elegante – e portanto única do
ponto de vista biológico. Mais: justamente com o intuito de sustentar
essa hipótese é que Chomsky relega a fonologia à periferia da linguagem,
sugerindo com Berwick que esse componente pode ser deixado de lado
pelos linguistas em favor da investigação sintática. Além disso, a fim
de manter essa hipótese, Chomsky cogita a possibilidade, duramente
criticada por inúmeros pesquisadores (e.g. BEHME, 2014; BOTHA,
1999; PINKER; JACKENDOFF, 2005; TOMASELLO, 1999, p. 94),
de que a linguagem tenha surgido abruptamente, em vez de ter sido o
resultado de um longo processo evolutivo.
3. uma ideia nem tão brilhante assim
Segundo Berwick e Chomsky (2017, p. 107), o problema relativo
à evolução da linguagem foi colocado logo nos primeiros esforços dos
gerativistas para tratar a linguagem como um objeto biológico, em meados
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
115
do século passado. Nas últimas décadas, porém, esse velho problema,
que remonta ao século 19, ganhou novos contornos e novas dificuldades
no âmbito gerativista devido ao pressuposto adotado por Chomsky em
seu minimalismo de que a faculdade da linguagem é simples, elegante
e perfeita. Mais uma vez sem se esquivar das complicações empíricas
que surgem com a admissão desse pressuposto, Chomsky argumenta:
A intuição dos biólogos é (…) de que a simplicidade é a última
coisa que você procuraria em um organismo biológico, o que faz
algum sentido se você tem uma longa história evolucionária com
vários acidentes e em que isso e aquilo acontecem. Nesse caso,
você vai encontrar muito de adaptação, isto é, de aproveitamento
de velhas estruturas para solucionar novos problemas; e parece, ao
menos superficialmente, que, quando você olha para um animal,
ele é sempre adaptado. Portanto, trata-se de improvisação (...).
Isso talvez seja verdade, talvez não seja – talvez pareça verdade
porque você não compreende o suficiente. Quando você não
entende nada, tem a impressão de que está diante de um monte
de engrenagens, alavancas, e coisas desse tipo. Talvez, se você
compreendesse o suficiente, descobriria que há mais nisso. Mas
ao menos a lógica faz sentido. Por outro lado, essa lógica não
se aplica se a linguagem é um caso em que a faculdade emerge
subitamente. E é isso o que a evidência arqueológica parece
sugerir. Você tem uma extensão de tempo que é muito pequena
(CHOMSKY, 2014, p. 112).
Para entender a perspectiva de Chomsky, é preciso levar em
consideração que, para ele, a linguagem surgiu de modo abrupto há
cerca de 60 mil ou 70 mil anos, naquilo que ele chama, seguindo o
biólogo Jared Diamond (2010), de “grande salto para a frente” (great
leap forward) (CHOMSKY, 2014, p. 29-30). Trata-se de alguma pequena
modificação genética que teria reconfigurado ligeiramente o cérebro
humano, tornando possível a capacidade linguística. Para Chomsky (2014,
p. 138), “a suposição mais simples” é que com essa mutação genética
desenvolveu-se no cérebro humano a “capacidade para enumeração
recursiva” (CHOMSKY, 2014, p. 95). Mais precisamente, de acordo com
Chomsky, essa mutação genética teria ocorrido a um indivíduo da espécie
Homo sapiens, que teria transmitido essa nova capacidade à sua prole
(CHOMSKY, 2014, p. 30; CHOMSKY, 2007a, p. 14). Segundo a hipótese
de Chomsky, o que teria acontecido é que como resultado desse “grande
116
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
salto para a frente” o ser humano passou a ter Merge,8 entendido como
“uma operação que nos permite tomar objetos mentais, já construídos, e
fazer objetos mentais maiores a partir deles” (CHOMSKY, 2014, p. 30).
A estrutura unida por Merge – que “no melhor dos casos” seria a “única
operação para construir a estrutura hierárquica necessária para a sintaxe
da linguagem humana” (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 19) – consiste
de dois objetos sintáticos mais um rótulo (BERWICK; CHOMSKY, 2017,
p. 157). Assim, dado um objeto sintático X – que pode ser um “átomo
sintático” como uma palavra ou algo maior que já seja um produto de
Merge (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 19) – e outro objeto sintático
Y, forma-se por Merge o conjunto {X,Y} (BERWICK; CHOMSKY, 2017,
p. 19). A partir dos objetos sintáticos ler e livros, por exemplo, forma-se
o conjunto {ler, livros}, que recebe o rótulo dos traços do “núcleo” da
combinação: ler (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20, p. 131, p. 157).
De acordo com Chomsky (2014, p. 31), “uma vez que você
adquiriu essa técnica de construção e uma infinita variedade de expressões
estruturadas hierarquicamente para fazer uso dos sistemas de pensamento
disponíveis, você pôde subitamente pensar, planejar, interpretar, de
uma maneira que ninguém podia até então”. Além disso, prossegue
Chomsky (2014, p. 31), quando Merge surgiu no cérebro humano, já
havia nele sistemas sensório-motores, que até então eram empregados
apenas marginalmente. “Com efeito, a ideia de utilizá-los para fins de
externalização do pensamento pode muito bem ter vindo mais tarde”,
especula Chomsky (2014, p. 31). Dessa forma, para Chomsky (2007a,
p. 14), em vez de serem o resultado de um processo evolutivo ou de uma
mutação genética, modos de externalização foram na verdade elaborados
por humanos. Dito de outra maneira, para Chomsky (2015b, p. 101),
a “externalização (e consequemente a comunicação a fortiori) é um
aspecto auxiliar da linguagem, periférico a sua natureza essencial”, e
“o sistema sensório-motor não tem relação com o design da linguagem
essencial, mesmo em suas origens evolutivas” (CHOMSKY, 2015b,
p. 101). Por conta disso, arremata Chomsky (2015b, p. 101), “a maior
parte da complexidade aparente da linguagem está na externalização”,
não nos aspectos linguísticos centrais, especificamente humanos.
No Programa Minimalista, Chomsky já havia explicitado a ideia de
8
Para uma apresentação detalhada do conceito de Merge, ver, por exemplo, Chomsky
(1999, cap. 4, 2009a e 2013) e Berwick e Chomsky (2017).
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117
que a fonologia tem apenas uma relevância limitada para o estudo
das propriedades computacionais da linguagem, observando que “as
propriedades especiais da componente fonológica têm a ver com a
necessidade de produzir instruções para os sistemas sensório-motores,
para a produção e a percepção” (p. 319), e que “esta necessidade pode
ser a fonte de outras imperfeições de CHL [Computation Human
Language], sendo nesse sentido ‘alheia’ à linguagem” (CHOMSKY,
1999, p. 319). Levando a termo sua posição, Chomsky chega a declarar:
“Se os seres humanos pudessem comunicar entre si por telepatia, não
haveria necessidade de uma componente fonológica, pelo menos para
os propósitos da comunicação; e o mesmo se pode dizer relativamente
ao uso da linguagem em geral” (CHOMSKY, 1999, p. 310). “Em outras
palavras”, rebate Jackendoff (1997, p. 19), “a linguagem poderia ser
perfeita se não tivéssemos de falar. Eu pessoalmente acho essa passagem
intrigante. Minha própria inclinação seria dizer que, se pudéssemos nos
comunicar por telepatia, nós não precisaríamos da linguagem.”
A fim de compreender essa discordância fundamental entre
Chomsky e Jackendoff, é preciso ter em conta que, para este, a função
da linguagem é a expressão e a comunicação de pensamentos (e.g.
JACKENDOFF, 2003, p. 123; PINKER; JACKENDOFF, 2005, p. 223225), enquanto para aquele a linguagem é um mecanismo de pensamento e
não de comunicação (e.g. CHOMSKY, 1977, p. 88; 2005b, p. 3-4; 2007b,
p. 17). Certo de que a linguagem é um mecanismo de pensamento e que o
componente fonológico é, “em certo sentido, ‘extrínseco’ à linguagem” e
“o local onde se situa boa parte de sua imperfeição” (CHOMSKY, 1998,
p. 60), Chomsky não apenas mantém sua hipótese sobre a natureza e a
evolução da linguagem em sua entrevista a McGilvray, como cogita a
possibilidade de que a exteriorização do pensamento tenha sido inventada
por alguém:
(...) seja qual for essa primeira pessoa que sofreu a mutação, talvez
isso apenas tenha lhe dado Merge. Essa é a hipótese mais simples.
Se isso aconteceu, aquela pessoa não estaria consciente de estar
pensando; ela estaria simplesmente pensando. Seria capaz de
tomar decisões com base em planejamento interno, observações e
expectativas, e coisas desse tipo. Agora, se um número suficiente
de pessoas na comunidade passou a dispor da mesma mutação,
chegaria um ponto em que alguém teria a brilhante ideia de
exteriorizar seu pensamento, de modo que ele pudesse entrar
118
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em contato com outra pessoa. Isso pode não ter envolvido passo
evolucionário algum. Pode ter < sido apenas uma questão de > usar
outras faculdades cognitivas para resolver um problema difícil. Se
você olha para a linguagem, uma das coisas que sabemos sobre ela
é que a maior parte da complexidade está na externalização. Está
na fonologia e morfologia, e esses componentes são uma bagunça.
Eles não funcionam por meio de regras simples (CHOMSKY,
2014, p. 97; grifo nosso).9
Assim, conforme a hipótese de Chomsky, a exteriorização do
pensamento pode não ter sido fruto de um processo evolutivo – e,
portanto, algo natural –, mas sim o resultado de uma “brilhante ideia” de
alguém – e, portanto, uma criação humana, aparentemente aos moldes da
invenção da escrita. Exatamente por incluir a fonologia e a morfologia
nesse mecanismo de exteriorização do pensamento desenvolvido por
humanos (CHOMSKY, 2014, p. 96), Chomsky (2014, p. 96-97) pode
admitir que esses componentes são “desorganizados”, “uma bagunça”,
sem com isso ter de abandonar a hipótese minimalista de que a sintaxe
é um sistema “perto de ser computacionalmente perfeito” (CHOMSKY,
2014, p. 96) ou a suposição de que a gramática universal “deve ser
bastante simples em seu âmago” (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p.
111). O grande problema, porém, à hipótese de Chomsky de que a
exteriorização do pensamento talvez tenha sido inventada por alguém
e que esse aspecto da linguagem é externo, auxiliar à linguagem
propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20-23; CHOMSKY,
1999, p. 319; 2014, p. 76-77, p. 96 e p. 100), é explicar o fato, ressaltado
pelo próprio Chomsky por exemplo em palestras realizadas na Nicarágua
Dado o peso desta declaração, vale a pena citar o texto original: “(...) whatever this
first person was who had the mutation, maybe the mutation just gave Merge. That´s the
simplest assumption. If that happened, that person would not be conscious of thinking;
he or she would just be doing it. He or she would be able to make decisions on the
basis of internal planning, observations and expectations, and whatever. Now if enough
people in the community had the same mutation, there would come a point where
someone had the bright idea of externalizing it, so that they could contact somebody
else. This may not have involved any evolutionary step at all. It may have [just been
a matter of] using other cognitive faculties to figure out a hard problem. If you look at
language – one of the things that we know about it is that most of the complexity is in
the externalization. It is in phonology and morphology, and they´re a mess. They don’t
work by simple rules” (CHOMSKY, 2012, p. 52).
9
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119
nos anos 1980, de que o conhecimento da estrutura sonora de uma
língua assemelha-se ao conhecimento de sua estrutura sintática – isto
é, nos dois casos, trata-se de um conhecimento intuitivo, inconsciente
e adquirido pelo falante-ouvinte sem instrução alguma. “A pessoa que
adquiriu conhecimento de uma língua tem conhecimento bem específico
sobre fatos que transcendem sua experiência, por exemplo, sobre quais
formas não existentes são possíveis palavras e quais não são”, ponderou
Chomsky (1988, p. 25), retomando argumentos apresentados em The
sound pattern of English. Para ilustrar seu argumento, Chomsky (1988)
destaca que falantes de inglês nunca escutaram as formas strid e bnid,
por exemplo, mas sabem que a primeira é uma palavra possível em
sua língua, diferentemente da segunda. Falantes de árabe, por sua vez,
continuou Chomsky (1988, p. 25-26), sabem que bnid é uma palavra
possível em sua língua e strid não. Já os falantes de espanhol sabem que
nenhuma das duas opções é uma palavra em sua língua. Tendo em vista
esses exemplos, afirmou Chomsky:
A aquisição das regras da estrutura sonora (...) depende de
princípios fixos que regem sistemas sonoros possíveis para
línguas humanas, os elementos dos quais eles são constituídos,
o modo de suas combinações e as modificações que eles podem
sofrer em vários contextos. Tais princípios são comuns ao inglês,
árabe, espanhol e todas as outras línguas humanas e são usados
inconscientemente pela pessoa adquirindo qualquer dessas línguas
(...) (CHOMSKY, 1988, p. 26).
Ou seja, concluiu Chomsky (1988, p. 26), tais princípios
“pertencem à faculdade da linguagem inata, um componente da mente/
cérebro”. Adiante, Chomsky (1988, p. 27) observa ainda que “a precisão
de detalhe fonético vai muito além do que adultos podem perceber sem
treinamento especial e, portanto, não podem ser o resultado de qualquer
forma de treinamento”. Com isso, “a criança está evidentemente ouvindo
– não conscientemente, é claro – detalhes de nuance fonética que serão
incorporados como parte de seu conhecimento linguístico, mas que na
vida adulta não poderá mais detectar”.
Em se tratando do componente sintático, destacou Chomsky
mais de uma vez naquelas palestras (1988, p. 12ss; p. 41ss; p. 68ss;
etc.), aplicam-se os mesmos princípios válidos ao componente de
externalização. Vejam-se os seguintes exemplos dados por Chomsky
(1988, p. 41ss) para ilustrar seu argumento:
120
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
(6) (a) El hombre está en la casa.
The man is in the house.
(b) El hombre está contento.
The man is happy.
(7) (a) El hombre, que está contento, está en la casa.
The man, who is happy, is in the house.
Os falantes de espanhol e de inglês formam sentenças
interrogativas movendo o verbo para a frente da sentença, pontua
Chomsky:
(8) (a) Está el hombre en la casa?
Is the man in the house?
(b) Está el hombre contento?
Is the man happy?
Até aqui sem dificuldade alguma. Mas como formar a
interrogativa das sentenças “El hombre que está contento está en la casa”
e “The man who is happy is in the house”? Agora, prossegue Chomsky,
duas possíveis soluções apresentam-se aos falantes de espanhol e de
inglês, respectivamente:
(9) (a) Está el hombre, que contento, está en la casa?
Is the man, who happy, is at home?
(b) Está el hombre, que está contento, en la casa?
Is the man, who is happy, in the house?
Apesar de ambas as soluções serem logicamente possíveis,
explica Chomsky (1988, p. 43), os falantes sempre optam pela segunda
forma de interrogativa, na qual o verbo principal é movido para a frente
da sentença, e não simplesmente o primeiro verbo que aparece. “As
crianças nunca cometem erros sobre essas questões e não recebem
correções ou instrução sobre elas”, destaca Chomsky (1988, p. 44). Dessa
maneira, os princípios que levam a criança a mover o verbo principal
para a frente da sentença ao formar uma interrogativa são conhecidos
por ela “intuitivamente, inconscientemente e além da possibilidade de
introspecção consciente” (1988, p. 46). O mesmo se dá com os princípios
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
121
que levam a criança falante de inglês a saber que strid é uma palavra
possível em sua língua, mas não bnid; que levam a criança falante de
árabe a saber que bnid é uma palavra possível em sua língua, mas não
strid; e que levam a criança falante de espanhol a saber que nem strid,
nem bnid são palavras possíveis em sua língua.
Considerando esses exemplos sobre o conhecimento intuitivo,
inconsciente e adquirido sem instrução alguma que os falantes têm sobre
a estrutura sonora e a estrutura sintática de suas línguas – exemplos que,
evidentemente, poderiam ser multiplicados às centenas, contemplando
um sem-número de outras línguas –, é difícil admitir a hipótese defendida
por Chomsky em seu minimalismo de que a morfologia e a fonologia
são aspectos periféricos à “natureza essencial” da linguagem e que a
exteriorização do pensamento pode não ter sido fruto de um processo
evolutivo, e sim o resultado de uma “brilhante ideia” de alguém. Reforça
essa avaliação o fato de que
um recém-nascido seleciona de forma instantânea, a partir do
ambiente, dados relacionados à linguagem – o que não é nenhuma
tarefa trivial. Um macaco com aproximadamente o mesmo
sistema auditivo ouve apenas barulho. O recém-nascido humano,
entretanto, procede a um curso sistemático de aquisição que é
exclusivo da espécie e que demonstravelmente vai além do que
qualquer mecanismo de aprendizagem geral pode proporcionar,
desde a aprendizagem das palavras à estrutura sintática e à
interpretação semântica (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 116).
Ou seja:
Dada essa “prontidão para a linguagem”, para a aprendizagem
vocal e para a produção, se o cérebro primata de fato está
“sintonizado” para as propriedades fonéticas ou fonêmicas da
linguagem, mas o ouvido símio não ouve nada além de barulho,
enquanto as crianças extraem material linguisticamente relevante
do barulho, temos evidência instantânea para algum tipo de
processamento interno específico nos bebês humanos, ausente nos
outros primatas (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 166).
À luz de tudo isso – e à luz da profunda similaridade entre
as línguas faladas e as línguas de sinais (BAVELIER et al., 2003;
JACKENDOFF, 1993, cap. 9-10), que é reconhecida pelo próprio
Chomsky (e.g. 2007a, p. 13; 2007b, p. 17) –, é definitivamente mais
122
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
plausível a hipótese chomskiana, anterior ao Programa Minimalista,
de que uma gramática é constituída pelos componentes sintático,
semântico e fonológico. Pelos mesmos motivos, é difícil contestar a
afirmação de Chomsky (1994, p. 31) de que “parece não haver grande
esperança de dar conta do nosso conhecimento [linguístico] em termos
de analogia, indução, associação, processos dignos de confiança, boas
razões e justificação em qualquer sentido conveniente, ou em termos
de ‘mecanismos de aprendizagem generalizada’ (se é que tal existe)”.
Mecanismos que, aliás, seriam indispensáveis para a aprendizagem não
intuitiva, consciente e mediante instrução de um sistema de externalização
do pensamento (vocal ou manual) inventado por alguém.
4. Entre velhas e novas guerras linguísticas
Como visto na segunda seção deste texto, Newmeyer, Anderson,
Chung e McCloskey observam no ensaio “Chomsky’s 1962 programme
for linguistics” que o programa sintático estabelecido por Chomsky no
artigo “The logical basis of linguistic theory” permaneceu essencialmente
o mesmo ao longo das décadas seguintes, mas não o seu programa
fonológico. Para esses autores, como também visto, isso se deveu ao fato de
Chomsky ter deixado de lado as questões fonológicas depois da publicação
de The sound pattern of English. Contra essa avaliação simplista, e contra
a análise de Harris de que Chomsky foi praticamente obrigado a abandonar
seu trabalho em fonologia devido ao aumento de suas atividades políticas,
argumentou-se que Chomsky alterou o programa fonológico da gramática
gerativa até por fim excluir a fonologia do sistema da linguagem em seu
Programa Minimalista visando a preservar de qualquer maneira a hipótese
de que a linguagem é um sistema orgânico perfeito. Mas não é só. Ao
que parece, à medida que se tornou cada vez mais difícil manter uma
“unidade geral da teoria gramatical” porque o mecanismo metodológico
que ele havia desenvolvido nos anos 1950 para elaborar uma gramática
gerativa de uma língua não era apropriado para os componentes semântico
e fonológico – isto é, à medida que se tornou cada vez mais claro que o uso
de ferramentas técnicas da lógica matemática para descrever gramáticas de
línguas naturais (CHOMSKY, 1975a, p. 88-89)10 não era apropriado para
Para uma análise pormenorizada desse uso linguístico de ferramentas técnicas da
lógica matemática por Chomsky, ver Tomalin (2006).
10
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os componentes semântico e fonológico –, Chomsky acabou por excluir a
semântica e a fonologia da faculdade da linguagem. Dessa forma, diante
do dilema de que o mecanismo metodológico que ele havia desenvolvido,
com base na lógica matemática, para criar uma gramática gerativa de
uma língua não era apropriado para a semântica e a fonologia, Chomsky
acabou excluindo esses componentes dos aspectos linguísticos centrais,
especificamente humanos, em vez de abandonar sua metodologia – ou
restringi-la à sintaxe e assumir que a semântica e a fonologia têm uma
natureza própria, que escapa dessa metodologia. Reforça essa interpretação
a leitura do artigo “Some core contested concepts”, de 2015, no qual
Chomsky deixa clara sua intenção de incluir os estudos da linguagem na
teoria da computação:
A propriedade mais elementar da língua-I é que ela é um sistema
de infinidade discreta. O estudo da língua-I recai então na teoria
da computação (teoria de máquina de Turing, teoria de funções
recursivas).11 Uma língua-I pode ser vista (no mínimo) como um
procedimento computacional que produz uma gama ilimitada
de expressões estruturadas hierarquicamente, sendo atribuída a
cada uma delas uma interpretação em duas interfaces com outros
sistemas internos, sensório-motor (SM) e conceitual-intencional
(CI) – grosso modo, som e pensamento (CHOMSKY, 2015b,
p. 93; grifo nosso).
Assim, Chomsky parece querer manter de qualquer forma o estudo
da linguagem na esfera da lógica matemática, de modo geral, e das teorias
de máquina de Turing e de funções recursivas, em particular. Em vista do
fato de que os componentes semântico e fonológico não são recursivos – e,
portanto, não podem ser inseridos na teoria da computação –, Chomsky
exclui-os da faculdade da linguagem propriamente dita e relega-os à
periferia da linguagem. Em se tratando especificamente do componente
semântico, é notório que Chomsky a princípio se preocupou basicamente
em evidenciar a independência da sintaxe em relação à semântica (e.g.
CHOMSKY, 2015a, p. 22-23) e nunca chegou a desenvolver uma teoria
semântica expressiva. “(...) naquele tempo [da teoria padrão], virtualmente
nada era conhecido na tradição gerativa sobre semântica”, ressalta
Jackendoff (2003, p. 108), “então fazia sentido derivar o que a pequena
Para uma discussão sobre a teoria da computabilidade de Turing, funções recursivas
e temas afins, ver, por exemplo, Boolos et al. (2012).
11
124
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estrutura semântica lá poderia ser das ricas possibilidades estruturais
que emergiam da nova tecnologia sintática.” Além disso, e muito mais
importante, “os únicos aspectos do significado que ele [Chomsky] sempre
quis atacar são aqueles que podem ser contemplados (ou em alguns
casos, redefinidos) como sintáticos” (HARRIS, 1993, p. 107). No livro
O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso, Chomsky ilustra
com clareza essa situação. Após afirmar que uma interpretação mentalista
da linguagem, como a proposta no gerativismo dos anos 1950 e 1960,
incluía o estudo da sintaxe, da fonologia e da morfologia (p. 61), Chomsky
pondera que a semântica também estava incluída, ressalvando, porém,
que “muito desse trabalho não é de todo semântica, se por ‘semântica’
entendermos o estudo da relação existente entre a linguagem e o mundo”
(1994, p. 61). Anos mais tarde, na sua palestra em Délhi, Chomsky deixaria
inequívoca a sua posição:
Na minha opinião, a maior parte daquilo que se chama de
“semântica” é sintaxe. É a parte da sintaxe presumivelmente
próxima do sistema de interface que envolve o uso da linguagem.
Assim, há essa parte da sintaxe e certamente há a pragmática, no
sentido genérico daquilo que se faz com as palavras e assim por
diante. Saber se existe semântica no sentido mais técnico é uma
questão aberta. Não creio que haja qualquer razão para acreditar
que exista. Acho que isso remonta à velha e provavelmente
falsa suposição de que há uma relação entre palavras e coisas,
independentemente das circunstâncias do uso (CHOMSKY, 2008,
p. 94-95).
Em entrevista concedida a Mitsou Ronat no fim dos anos 1970,
Chomsky ainda parecia acreditar na existência da “semântica no sentido
mais técnico”. No entanto, já separava claramente a parte semântica
que, para ele, pode ser expressa linguisticamente – os quantificadores e
relações anafóricas, por exemplo12 – da parte semântica que não pode
ser assim expressa:
(...) parece razoável supor que as relações semânticas entre
palavras como persuade (persuadir), intend (ter a intenção de)
e believe (acreditar) podem ser expressas em termos puramente
Para uma discussão sobre quantificadores e relações anafóricas, ver, por exemplo,
Chomsky (1994 e 1999, cap. 1).
12
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125
linguísticos (a saber: se eu o persuado a partir, então você terá
a intenção de partir; se eu o persuado de que hoje é terça-feira,
então você acreditará que é terça-feira; são fatos de língua, não do
mundo exterior). Muito mais ainda, parece extremamente razoável
supor que as propriedades fundamentais dos quantificadores e da
anáfora podem ser expressas na parte do nível de representação
semântica que se separa das considerações extralinguísticas
(CHOMSKY, 1977, p. 130).
A essa “parte do nível de representação semântica que se separa
das considerações extralinguísticas”, Chomsky chamou na teoria padrão
estendida de forma lógica, a qual designaria “os aspectos semânticos
estritamente determinados por princípios linguísticos” (CHOMSKY,
1977, p. 133). Dessa maneira, para Chomsky (1977, p. 151), “a forma
lógica é a representação do sentido determinada pela estrutura da
linguagem”. Considerando-se essa definição de forma lógica, bem como
sua fundamentação, fica nítido que, devido ao fato de os quantificadores
e as anáforas poderem ser interpretados como “aspectos semânticos
estritamente determinados por princípios linguísticos”, Chomsky incluiuos em sua teoria gramatical. No entanto, como os aspectos semânticos
que não se separam das “considerações extralinguísticas” não podem ter
a mesma interpretação, Chomsky excluiu-os de sua teoria gramatical e
chegou a pôr em dúvida a existência da semântica relacionada a esses
últimos aspectos – isto é, a semântica tal qual entendida tradicionalmente
por filósofos, linguistas, psicólogos, antropólogos, etc.13
Quanto ao componente fonológico, como já analisado, Chomsky
emprega no modelo padrão o mesmo mecanismo de regras de reescrita
para descrever tanto as regras sintáticas quanto as regras fonológicas,
tentando manter a “unidade geral da teoria gramatical”. Depois da
publicação de The sound pattern of English, porém, a fonologia gerativa
passaria por mudanças profundas, que acabariam por enterrar de vez a
possibilidade de utilizar o mesmo instrumental metodológico no estudo
dos fenômenos sintáticos e dos fenômenos fonológicos. No último capítulo
do livro Phonology in the twentieth century, intitulado “Generative
phonology after The sound pattern of English”, Stephen R. Anderson bem
resume essa verdadeira revolução que ocorreu no gerativismo na década
Para uma reafirmação desse posicionamento, ver, por exemplo, Chomsky (2014,
p. 54-55).
13
126
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de 1970. Como esclarece Anderson (1985, p. 347), as representações
fonéticas e fonológicas em The sound pattern of English são bem
uniformes em sua estrutura formal interna, sendo que cada uma dessas
representações é formada por uma sequência de segmentos, em princípio,
independentes uns dos outros e de tamanhos uniformes. Os elementos
maiores, como morfemas, palavras, etc., eram caracterizados àquela altura
como morfológicos e não eram representados diretamente como unidades
estruturais. As sílabas, por sua vez, não tinham qualquer representação
sistemática. No início dos anos 1970, porém, continua Anderson (1985, p.
347-348), a investigação de sistemas tonais começou a minar esse modelo
teórico. Isso se deu porque foi proposto que os tons deveriam ser descritos
como traços unitários ligados a sílabas, e não a segmentos. Seguindo essa
linha de análise, John Goldsmith apresenta em sua tese de doutorado,
defendida em 1976, a chamada “fonologia autossegmental”. Com base
nela, observa Anderson, fonólogos passaram a propor que outros traços
fonológicos, como de nasalização e de harmonização vocálica, também
seriam mais bem representados não sob o escopo de um segmento apenas,
mas sim sob o escopo de uma sílaba ou mesmo de uma palavra inteira.
Para completar o quadro, lembra Anderson, Liberman e Prince publicam
em 1977 o artigo “On stress and linguistic rhythm”, no qual apresentam
sua teoria métrica argumentando que o acento deveria ser visto como uma
relação entre unidades organizadas em uma estrutura hierárquica (sílabas,
em especial), e não como um traço assinalado a segmentos. Com isso,
as sílabas passaram definitivamente a ser reconhecidas como unidades
que estabelecem uma organização hierárquica de segmentos em uma
estrutura maior.14 “Como resultado desses desenvolvimentos”, pondera
Anderson (1985, p. 348), “os fonólogos passaram no fim dos anos 1970
a considerar representações menos como uma sequência de ‘contas num
cordão’ segmental do que como análogas a uma partitura orquestral na
qual a sincronização de cada instrumento com outros instrumentos é
tanto parte da partitura como as próprias notas que cada um deve tocar.”
Numa perspectiva ainda mais ampla, Anderson conclui tendo em vista
as teorias fonológicas apresentadas depois da publicação de The sound
pattern of English:
14
Para uma apresentação detalhada dessas teorias, ver, por exemplo, Kenstowicz
(1994). Para uma discussão de todo esse quadro com análises fonológicas do português
brasileiro, ver Bisol (2001).
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127
À medida que se torna mais e mais evidente que a linguagem é
um sistema “modular”, representando a interação essencial de
um conjunto de domínios (...), não há motivo para duvidar que a
estrutura sonora também deve ser abordada por várias perspectivas
independentes simultaneamente (ANDERSON, 1985, p. 336).
E, ainda mais incisivo, Anderson completa: “Nós deveríamos (...)
reconhecer a modularidade da linguagem: o fato de que ela representa a
interseção de um conjunto de domínios distinguíveis, cada qual sujeito
a seus próprios princípios” (1985, p. 346). Chomsky, no entanto, jamais
reconheceu a modularidade da linguagem nesses termos, preferindo,
como já explicitado, excluir a semântica e a fonologia dos aspectos
linguísticos centrais, especificamente humanos, em vez de abandonar
sua metodologia ou limitá-la à sintaxe. Em consequência dessa postura,
Chomsky acabou sofrendo críticas pesadas não apenas de linguistas,
mas também de pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como
psicólogos, filósofos e antropólogos. Quanto à resistência ao tratamento
dispensado por Chomsky aos outros componentes da linguagem que
não a sintaxe, as chamadas “guerras linguísticas” (HARRIS, 1993;
NEWMEYER, 1996) são um capítulo à parte.
Em meados dos anos 1960, Chomsky e seus seguidores, de um
lado, desenvolviam a teoria padrão, apresentada pelo próprio Chomsky
nos Aspectos da teoria da sintaxe. De outro, um grupo de dissidentes
liderado por Paul Postal, James McCawley, John “Háj” Ross e George
Lakoff, todos ex-alunos de Chomsky, propunha uma nova vertente teórica,
que seria denominada de semântica gerativa. Nela, alguns dos pilares
da teoria padrão foram atacados, com destaque à hipótese da autonomia
da sintaxe em relação à semântica. Em contra-ataque, Chomsky e seus
partidários golpearam a ideia central da semântica gerativa: a hipótese
de que a estrutura profunda é a própria representação semântica.
Justamente por terem extrapolado a mera divergência científica é que as
discussões entre os dois grupos seriam mais tarde batizadas de “guerras
linguísticas”. A despeito, porém, do furor dos envolvidos, que muitas
vezes se ofendiam pessoalmente, os confrontos foram relativamente
breves. No fim dos anos 1970, já era claro à comunidade linguística
que Chomsky e seus companheiros haviam derrubado as principais
ideias dos semanticistas gerativistas – em especial sua concepção do
componente semântico – e, consequentemente, saíam vencedores do
conflito. Em todo caso, o ponto a ser aqui destacado é que o estopim
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desse embate foi a percepção de boa parte da comunidade linguística – e
também da comunidade filosófica – de que a semântica era basicamente
negligenciada por Chomsky em seus modelos linguísticos (TAYLOR,
2007, p. 573). E, apesar de Chomsky ter negado em entrevista a Mitsou
Ronat que tenha deixado de lado o componente semântico na gramática
gerativa, é indiscutível que ele nunca apresentou uma teoria semântica,
muito menos uma teoria semântica à altura das teorias sintáticas e
fonológicas desenvolvidas no gerativismo. O motivo dessa lacuna, como
dito antes, foi aparentemente a impossibilidade de tratar os fenômenos
semânticos com a mesma metodologia empregada até o modelo padrão
para descrever os fenômenos sintáticos e os fenômenos fonológicos.
Corrobora essa interpretação a leitura da conferência “Contribuições
linguísticas para o estudo do pensamento: presente”, que foi proferida
por Chomsky na Universidade da Califórnia em Berkeley, em janeiro
de 1967, e publicada na coletânea Language and mind (Linguagem e
pensamento), de 1968. Na ocasião, Chomsky reafirmou que a gramática é
constituída de sintaxe, fonologia e semântica. Além disso, como voltaria
a fazer em suas palestras na Nicarágua nos anos 1980, deu exemplos
sintáticos e fonológicos para ilustrar como o conhecimento linguístico
de um falante-ouvinte é intuitivo, inconsciente e adquirido sem instrução
alguma. Sobre o componente fonológico, em particular, que ainda não
havia sido rebaixado ao status de um sistema auxiliar, desorganizado
e periférico à “natureza essencial” da linguagem, Chomsky observou:
O trabalho dos últimos poucos anos sobre a estrutura sonora
parece-me oferecer indicações substanciais em favor da concepção
de que a forma das gramáticas particulares é determinada, de modo
altamente significativo, por um esquematismo restritivo que
especifica a escolha de propriedades fonéticas importantes, os
tipos de regras que podem relacionar a estrutura superficial com a
representação fonética e as condições de organização e aplicação
destas regras. (...) Além disso, estas pesquisas da estrutura
sonora, na medida em que asseguram a conclusão de que as
estruturas fonológicas abstratas são manipuladas por sistemas de
regras rigorosamente organizados e intrincados, são importantes
para o problema, muito interessante, de criar modelos de execução
(performance) empiricamente adequados (CHOMSKY, 1973,
p. 55; grifo nosso).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
129
Pouco à frente, após apresentar exemplos de como as estruturas
fonológicas abstratas da língua inglesa são manipuladas por “sistemas
de regras rigorosamente organizados e intrincados” – contrariando,
portanto, a posição que assumiria no contexto minimalista de que “o
sistema fonológico inteiro assemelha-se a uma enorme imperfeição”
(CHOMSKY, 2006, p. 145) –, Chomsky reassegura a proximidade entre
a fonologia e a sintaxe, claramente tentando preservar a “unidade geral
da teoria gramatical”. Com esse intuito, ponderou que as estruturas
subjacentes da estrutura sonora estão relacionadas com as representações
fonéticas por meio de uma longa sequência de regras, assim como as
estruturas profundas abstratas do componente sintático estão relacionadas
com as estruturas superficiais por meio de uma longa sequência de
transformações gramaticais (CHOMSKY, 1973, p. 61).
Passando ao componente semântico, Chomsky (1973, p. 7980) não nega que uma gramática deva conter regras de interpretação
semântica que explicitem fatos como o de que, a partir da sentença
“John has lived in Princeton” (“O João morou em Princeton”), pode-se
concluir que John é uma pessoa, que Princeton é um lugar, que John
está vivo, etc. Pelo contrário, ainda tentando manter a “unidade geral
da teoria gramatical”, Chomsky (1973, p. 80) ressalta a necessidade de
elaborar-se uma semântica universal, que completaria a trinca com uma
sintaxe e uma fonologia universais. No entanto, lamenta ser “incapaz
de discutir condições referentes a regras de interpretação semântica que
poderiam ser análogas às condições das regras sintáticas e fonológicas”
(CHOMSKY, 1973, p. 80) como as apresentadas no modelo padrão.
Assim, estando impossibilitado de lidar com as regras semânticas como
o fazia com as regras sintáticas e fonológicas, Chomsky acabou deixando
em segundo plano – ou melhor, em stand-by – o componente semântico
na gramática gerativa. Insatisfeitos com essa situação, gerativistas
como Postal, McCawley, Ross e Lakoff incumbiram-se ainda nos anos
1960 da tarefa de investigar o aspecto semântico da linguagem, sem
se deter pela metodologia chomskiana. Com os desdobramentos de
suas reflexões, acabaram por desenvolver um modelo teórico rival ao
de Chomsky – a semântica gerativa –, exemplificando a afirmação de
Thomas Kuhn (2009, p. 126) de que “as revoluções científicas iniciamse com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma
pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma
existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um
130
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aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo
paradigma”. Contudo, no caso da semântica gerativa, não se pode dizer
que tenha havido realmente uma revolução científica porque o movimento
acabou derrotado pelo paradigma chomskiano já no fim dos anos 1970.
Independentemente disso, porém, muitas das críticas e das observações
dos semanticistas gerativistas à gramática gerativa e ao próprio Chomsky
continuam pertinentes. O retrato que Ross pinta de seu ex-orientador
de doutorado, por exemplo, ajuda a compreender melhor o tratamento
dispensado à semântica desde o início da gramática gerativa e à fonologia
no Programa Minimalista:
Não há dúvida de que Chomsky é um gênio e que tenha
revolucionado a linguística, e criado um campo da matemática que
não existia antes, e que tenha ajudado na revolução da psicologia
e no renascimento do interesse por problemas como cognição e
percepção.15 Mas eu acho que ele está tão comprometido com a
verdade dessa visão em que ele cresceu que ele não consegue mais
ver onde ela é inadequada (HARRIS, 1993, p. 158).
Seguindo Ross – e parafraseando Millôr Fernandes, que teria
dito que o comunismo é uma espécie de alfaiate que faz alterações no
cliente quando a roupa não fica boa –, pode-se dizer que o gerativismo
chomskiano faz alterações na linguagem quando o modelo teórico não
fica bom. Logo em seus primeiros trabalhos gerativistas (sua dissertação
de mestrado e sua tese de doutorado), por exemplo, realizados na primeira
metade dos anos 1950 e publicados com algumas alterações em 1975
no livro The logical structure of linguistic theory, Chomsky exclui a
semântica da análise, ainda que a reconheça como um componente
linguístico (p. 57). Motivou-o a assim proceder “um sentimento de que
a teoria do significado falha em atender certos requisitos mínimos de
objetividade e verificabilidade operacional” (CHOMSKY, 1975b, p. 57).
No entanto, considerando críticas que recebeu à ausência da semântica
em seu modelo linguístico, Chomsky mais tarde, na teoria padrão,
incluiria formalmente esse componente da linguagem, associando-o à
estrutura profunda. Posteriormente, na teoria padrão estendida, vincularia
15
Para uma reconstituição histórica da revolução cognitiva dos anos 1950 e 1960, com
um capítulo inteiro sobre o papel de Chomsky e da gramática gerativa nesse movimento,
ver Gardner (2003).
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131
a semântica à estrutura profunda e à estrutura superficial. Na teoria de
princípios e parâmetros, bem como no Programa Minimalista, Chomsky
por fim atribuiria a semântica à forma lógica. Assim, conforme discutido
anteriormente, Chomsky inclui em sua teoria gramatical aqueles aspectos
semânticos que para ele são estritamente determinados por princípios
linguísticos, como os quantificadores e as anáforas. Quanto aos aspectos
semânticos ligados a considerações extralinguísticas, Chomsky não
somente os exclui de sua teoria gramatical como põe em dúvida a
existência da semântica relacionada a tais aspectos.
Em relação à fonologia, como também já explicitado, o
procedimento é essencialmente o mesmo. Até o momento em que o
componente fonológico podia receber um tratamento similar ao que
recebia o componente sintático – isto é, até aproximadamente a publicação
de The sound pattern of English –, Chomsky o incluiu em sua gramática.
No entanto, assim que ficou inviável continuar estendendo à fonologia o
método empregado na investigação sintática, devido ao desenvolvimento
da fonologia autossegmental na década de 1970, o componente fonológico
foi, a princípio, deixado de lado por Chomsky (cf., p. ex., CHOMSKY,
1981, p. 5). Anos depois, já no contexto minimalista, por ser considerado
por Chomsky como um entrave à ideia de que a linguagem é um sistema
cognitivo perfeito, a fonologia acabou relegada por ele à categoria de
um sistema auxiliar, desorganizado e periférico à “natureza essencial”
da linguagem. E esta, claro, não foi uma atitude isolada de Chomsky.
Afinal, é no Programa Minimalista que Chomsky leva a extremos suas
alterações na linguagem visando a preservar tanto o seu modelo teórico
quanto as suas intuições metafísicas – as quais ele havia de certo modo
refreado até a teoria de princípios e parâmetros, chegando a afirmar no
início dos anos 1980 que “não faz sentido adotar suposições a priori”
quanto à possível simplicidade e elegância do sistema biológico da
linguagem (CHOMSKY, 1981, p. 15), apesar de ele ter adotado essa
suposição a priori guiado por seus “julgamentos intuitivos” (CHOMSKY,
1981, p. 15). Poucos anos mais tarde, porém, Chomsky deixaria para
trás essa postura dúbia e explicitamente adotaria em seu minimalismo
a suposição a priori de que a faculdade da linguagem tem propriedades
de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos
complexos.
132
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5. Um programa de pesquisa rival ao minimalismo chomskiano: a
arquitetura paralela de Jackendoff
A “intuição chomskiana de que a linguagem é perfeita”, no
entanto, encontraria resistência por parte de muitos pesquisadores,
que não se convenceriam de sua legitimidade (e.g. CULICOVER;
JACKENDOFF, 2005; JACKENDOFF, 2011; JOHNSON; LAPPIN,
1997; LAPPIN et al., 2000a, 2000b; KINSELLA; MARCUS, 2009;
PINKER; JACKENDOFF, 2005). De certa forma sintetizando a opinião
desses autores, Maria Cristina Figueiredo Silva e João Costa ponderam
não sem razão:
(...) se a gramática universal é a representação de uma faculdade
cognitiva, é muito estranho que ela deva apresentar uma
propriedade como eficiência, uma noção claramente formulável
no domínio da engenharia, não no da biologia. Neste terreno, o
que observamos é que os organismos têm subsistemas ou órgãos
sem nenhuma função aparente, que eventualmente podem vir a
servir no caso de alguma mudança no meio. Assim, a definição do
que é eficiente (ou simplesmente útil) pode mudar, como também
pode determinar o desaparecimento do organismo. Portanto, não é
claro que eficiência ou economia seja ou deva ser uma propriedade
dos organismos ou dos órgãos que os compõem (SILVA; COSTA,
2011, p. 161).
A fim de reforçar esse ponto de vista, Silva e Costa (2011,
p. 161) citam o provocativo exercício mental proposto por Shalom
Lappin, Robert D. Levine e David E. Johnson (2000b) de imaginar um
biólogo especializado em fisiologia humana que adota os princípios do
minimalismo chomskiano em sua investigação do aparelho urinário,
sobre o qual escreve em um pretenso artigo:
Este trabalho é motivado por duas questões relacionadas: (1)
quais são as condições gerais que se esperaria que o aparelho
urinário satisfizesse? E (2) em que extensão o aparelho urinário é
determinado por estas condições, e nada além delas? A primeira
questão tem por seu turno dois aspectos: que condições são
impostas sobre o sistema urinário em virtude de (A) seu lugar no
conjunto dos sistemas fisiológicos do corpo e (B) considerações
gerais de naturalidade conceptual que tem plausibilidade
independente como simplicidade, economia, simetria, não
redundância e similares? (LAPPIN et al., 2000b, p. 876)
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Como observam Silva e Costa (2011, p. 161), parece claro
não fazer sentido perguntar quais as condições que se esperaria que o
sistema urinário satisfizesse. Por isso, argumentam, seguindo Lappin et
al. (2000b), biólogo algum sugeriria que se pode deduzir a identidade
e interconexão de tecidos da bexiga, rins ou uretra com base no
conhecimento de que as vias urinárias servem para expelir urina (SILVA;
COSTA, 2011, p. 161-162). Em vista dessa situação, Silva e Costa (2011,
p. 162) concluem que parece igualmente claro que “noções como a de
‘economia’ ou ‘elegância’ nada têm a ver com a bexiga, mas apenas com
a teoria que fazemos sobre ela”.
Atesta essa análise crítica do minimalismo chomskiano o fato,
salientado por Adriana Belletti e Luigi Rizzi em entrevista a Chomsky
sobre o Programa Minimalista (CHOMSKY, 2006, p. 130 e p. 134),
de que é fácil imaginar critérios de perfeição ou otimidade de acordo
com os quais a linguagem não poderia de modo algum ser caracterizada
como otimamente projetada por um “superengenheiro”. Um sistema
linguístico perfeito, exemplificam, não seria repleto de ambiguidades,
não teria morfologia flexional (fonte de redundâncias como a marcação
de pluralidade em inglês e italiano), nem teria problemas com o sistema
de desempenho – isto é, o sistema de externalização, de uso da linguagem
(CHOMSKY, 1975a, p. 84) –, como os originados por limitações de
memória. Sem negar essas fontes de imperfeição da linguagem, e até
acrescentando outras à discussão, Chomsky (2006, p. 131) afirma que
a pergunta apropriada não é se a linguagem em si é perfeita, mas se
ela é bem projetada para interagir com os sistemas que estão dentro
da mente, os quais teriam se desenvolvido na espécie Homo sapiens
antes da mutação que originou Merge. No entanto, o problema é que
essa redefinição da pergunta sobre a perfeição da linguagem cria sérias
distorções, incluindo a ideia de que a exteriorização do pensamento
pode ter sido o resultado de uma “brilhante ideia” de alguém, além da
necessidade de agrupar a morfologia com a fonologia e outros sistemas de
externalização e rebaixá-los a meros sistemas auxiliares, desorganizados
e periféricos à “natureza essencial” da linguagem.
Descontentes com esse cenário, alguns gerativistas vêm
desenvolvendo teorias alternativas ao minimalismo chomskiano. Entre
elas, a “arquitetura paralela” de Jackendoff (1997, 2003, 2007, 2010,
2014) parece ser especialmente promissora. Nesse modelo teórico,
a linguagem é vista como uma estrutura organizada em sistemas
134
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combinatórios semi-independentes – sintaxe, fonologia e semântica
–, cada qual com seus próprios princípios organizacionais, que geram
interfaces entre si, mas sem qualquer protagonismo sintático, fonológico
ou semântico. Com isso, Jackendoff escapa àquilo que chama de
“sintaticocentrismo” de Chomsky. Por sintaticocentrismo, Jackendoff
entende a premissa adotada desde o início do gerativismo e mantida até
o Programa Minimalista de que o componente sintático é proeminente
em relação aos componentes fonológico e semântico, que seriam tão
somente interpretativos (JACKENDOFF, 1997, p. 15). Em outras
palavras, na arquitetura sintaticocêntrica de Chomsky, “as regras de
formação fonológicas e semânticas são nulas, de modo que tudo nas
estruturas fonológicas e semânticas é determinado apenas por suas
interfaces com a sintaxe” (JACKENDOFF, 2007, p. 50). Como bem
observa Jackendoff (2007, p. 66), “uma arquitetura sintaticocêntrica
não apresenta semelhança alguma com o resto da mente/cérebro”.
Isto é, “não se conhece paralelo ao ‘sistema computacional’ mestre
que gera estruturas sintáticas, o qual por sua vez determina estruturas
fonológicas e significados” (JACKENDOFF, 2007, p. 66). A visão,
exemplifica Jackendoff (2007, p. 65) – recorrendo, não por coincidência,
ao mesmo “saco de truques” discutido por Fitch –, é um sistema cognitivo
típico: é formada por muitas áreas cerebrais independentes, cada qual
especializada em algum aspecto visual, como forma, movimento, cor
e relações espaciais. E todas essas áreas têm interfaces umas com as
outras, sem haver uma área em que tudo se centraliza para formar uma
representação completa do campo visual. “Isso tem precisamente o cheiro
de uma arquitetura paralela em linguística, em que a noção de ‘sentença’
ou ‘frase’ é distribuída entre várias estruturas, comunicando-se com cada
uma via interfaces específicas”, argumenta Jackendoff (2007, p. 65).
Cabe destacar ainda que, se Chomsky, de um lado, com seu
sintaticocentrismo, jamais reconheceu a modularidade da linguagem
como “a interseção de um conjunto de domínios distinguíveis, cada qual
sujeito a seus próprios princípios”, nos termos de Anderson, Jackendoff,
de outro, construiu seu modelo linguístico de arquitetura paralela
justamente como consequência desse reconhecimento. Mais que isso: se
os princípios a que estão sujeitos a morfologia e a fonologia e demais
sistemas de externalização acabaram levando Chomsky a empurrar
esses componentes para a periferia da linguagem em seu Programa
Minimalista, foram exatamente as particularidades da fonologia que
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inspiraram Jackendoff a elaborar sua arquitetura paralela da linguagem.
“A gênesis dessa alternativa vem de desenvolvimentos na ‘fonologia
autossegmental’ em meados dos anos 1970, os quais dividiram a estrutura
fonológica em um conjunto de subcomponentes ou camadas semiindependentes”, reconhece Jackendoff (2003, p. 111). Com base nessa
arquitetura paralela da fonologia, Jackendoff propõe uma arquitetura
paralela da própria linguagem, fundamentando-se na ideia de que esta
“engloba um conjunto de sistemas combinatórios independentes, que
estão alinhados uns com os outros por meio de uma coleção de sistemas
de interface. A sintaxe é um dos sistemas combinatórios, mas está longe
de ser o único” (JACKENDOFF, 2003, p. 111). Ou seja, repudiando o
sintaticocentrismo chomskiano, Jackendoff defende com sua arquitetura
paralela que o correto é “considerar a estrutura linguística como o produto
de um conjunto de capacidades gerativas paralelas, mas interativas – no
mínimo, uma para a fonologia, sintaxe e semântica” (2007, p. 36-38).
Assim, no modelo linguístico de Jackendoff, a sintaxe não desempenha
um papel central como no modelo linguístico de Chomsky. Muito menos
é elevada ao patamar de um sistema “computacionalmente perfeito”,
com a contrapartida da inclusão da morfologia entre os sistemas de
externalização e o rebaixamento destes ao status de “sistemas auxiliares
desorganizados”. Dessa forma, a arquitetura paralela baseia-se na
premissa de que a linguagem é estruturada em um conjunto de sistemas
combinatórios semi-independentes, cada qual com seus próprios
princípios de organização. Esses sistemas, no entanto, estão conectados
entre si por sistemas de princípios de interface, que estabelecem relações
sintático-semânticas, sintático-fonológicas e semântico-fonológicas
(JACKENDOFF, 2007, p. 64). Na arquitetura paralela de Jackendoff,
portanto, os sistemas combinatórios da linguagem – sintaxe, fonologia
e semântica – são considerados independentes por terem seus próprios
princípios de organização, mas também dependentes por estarem
conectados entre si via princípios de interface. Daí sua caracterização
como sistemas semi-independentes. A figura abaixo, reproduzida de
Jackendoff (2003, p. 6), sintetiza a arquitetura paralela tomando como
exemplo a análise da frase “The little star’s beside a big star”:
136
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Fonte: Jackendoff (2003, p. 6)
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137
A primeira estrutura, a fonológica, consiste em quatro
subcomponentes, ou tiers (“camadas”), detalha Jackendoff (2003, p.
7-8). Na parte central está a estrutura segmental (segmental structure),
na qual se encontram os fonemas, simbolizados conforme o alfabeto
fonético em representação aproximada da pronúncia em inglês americano
padrão. Cada um daqueles sons da fala, claro, é constituído por traços
distintivos. O já citado segmento fonético [s] de “star”, por exemplo, é
especificado com os traços [+ consoante, - vocálico, - soante, - nasal, +
contínuo, - sonoro, + anterior, + coronal]. Acima da estrutura segmental,
está a estrutura silábica (syllabic structure), denotando que a estrutura
fonológica não é tão somente uma sequência de fonemas. Cada sílaba,
indicada por σ, deve ter um núcleo (N). O núcleo mais o material que
se segue a ele constituem a coda e agrupam-se na rima (R). O material
anterior ao núcleo agrupa-se no onset (O). No topo da estrutura fonológica
encontra-se a estrutura prosódica (prosodic structure), que tem dois
subcomponentes. As chaves indicam a organização das sílabas em frases
entonacionais (intonational phrases). Dentro das chaves estão os x da
grade métrica (metrical grid), que indica o acento das sílabas. Uma
sílaba sem x acima dela é não acentuada; quanto mais x acima de uma
sílaba, maior o seu acento. Finalmente, na parte de baixo da estrutura
fonológica está a camada morfofonológica, que denota o agrupamento
dos fluxos sonoros em palavras (words, Wd) ou em clíticos (clitics, Cl).
Já a estrutura sintática, prossegue Jackendoff (2003, p. 9-10), está
representada como uma árvore sintática típica da teoria gerativista, ainda
que com algumas pequenas modificações, como a omissão das palavras
ao fim de cada galho e linhas duplas ligando os sintagmas a seus núcleos.
O maior constituinte, a sentença (sentence, S), divide-se em um sintagma
nominal (noun phrase, NP) e um sintagma verbal (verb phrase, VP), que
constituem o sujeito e o predicado, respectivamente. O NP divide-se em
um determinante (determiner, Det), um sintagma adjetival (adjective
phrase, AP) e o núcleo substantivo (noun, N), que carrega os traços de
3ª pessoa do singular (3rd person count singular). O VP divide-se em
um núcleo verbal (verb, V) e um sintagma preposicional (prepositional
phrase, PP). E este se divide em uma preposição (preposition, P) e um NP
objeto, o qual se divide como o NP sujeito. Liga-se ao verbo uma inflexão
(Inflection, Infl), que inclui tempo presente e os traços de 3ª pessoa do
singular (3rd person count singular), em concordância com o sujeito.
A estrutura semântica/conceitual, por sua vez, apresenta uma
constituição muito mais controversa do que as estruturas fonológica e
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sintática, alerta Jackendoff (2003, p. 11-12). Por isso, é a estrutura que
mais reflete suas convicções pessoais, em vez de posições amplamente
aceitas pelos teóricos. Conforme Jackendoff, cada par de chaves na
figura cerca um “constituinte conceitual” (conceptual constituent). O
rótulo de cada constituinte designa que ele pertence a um tipo conceitual
maior, como Situação (Situation), Evento (Event), Estado (State), Objeto
(Object), Lugar (Place) e Propriedade (Property). A figura como um
todo denota uma estrutura de função-argumento (function-argument
structure), e as estruturas dos objetos (little star e big star) denotam uma
relação de modificação – isto é, os objetos stars são modificados pelos
respectivos adjetivos, little e big. Com essa notação, representa-se na
estrutura conceitual que há uma Situação no presente, consistindo de um
Estado. Tal Estado é o de um Objeto em um Lugar. A função Ser/Estar
(Be) mapeia o Objeto e o Lugar nesse Estado. O primeiro Objeto é do
tipo (type) estrela (star), é definido (definite, DEF) e tem a Propriedade
pequena (little). Quanto ao segundo Objeto, ele é do tipo (type) estrela
(star), é indefinido (indefinite, INDEF) e tem a Propriedade grande (big).
Além disso, se o primeiro Objeto serve de argumento para a função Be,
o segundo Objeto serve de argumento para a função Atrás (Beside),
mapeando o Objeto em um Lugar – a região em que o primeiro Objeto
está localizado pela função Be.
Por fim, a quarta e última estrutura, a espacial, não é sequer
mencionada pela maioria dos teóricos, ressalta Jackendoff (2003, p. 1213). Essa estrutura pode ser entendida como uma imagem da cena que a
sentença descreve, algo como um esquema a ser comparado com o mundo
a fim de verificar a sentença – ou seja, suas condições de verdade. No
caso da sentença “The little star’s beside a big star”, observa Jackendoff,
é particularmente importante que os traços de Beside apareçam de alguma
forma, o que foi representado na figura pelas linhas pontilhadas.
Além dessas quatro estruturas, Jackendoff (2003, p. 13-15)
explicita os mecanismos de conexão entre elas – isto é, como as partes
de cada estrutura se conectam às partes das outras estruturas. As
correspondências entre as unidades da estrutura fonológica e da estrutura
sintática são assinaladas na figura em letras menores. The, por exemplo,
que é fonologicamente um clítico e sintaticamente um determinante,
recebe tanto na estrutura fonológica quanto na estrutura sintática a
letrinha c. O mesmo the, que tem o traço semântico DEF, recebe ainda o
número 3 na estrutura sintática e na estrutura conceitual. Como sublinha
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Jackendoff, essas correspondências não se dão entre os elementos
primitivos de cada estrutura, e sim entre unidades compostas. Assim, as
unidades primitivas da estrutura fonológica, como os traços distintivos
e as sílabas, são invisíveis à semântica e à sintaxe. Por isso os sons da
fala, por si sós, não têm significado, e apenas um conjunto desses sons, ao
formar clíticos ou palavras, conectam-se à semântica e à sintaxe. Unidades
sintáticas primitivas, como os traços de 3ª pessoa e de singular, tampouco
têm conexão direta com a fonologia e a semântica, precisando unir-se ao
traço de tempo presente para formar o afixo verbal do inglês -s – este, sim,
conectado à fonologia e à semântica. Conexões entre sintaxe, semântica
e fonologia, no entanto, pondera Jackendoff, não são a regra. Algumas
unidades podem se conectar a duas dessas estruturas, deixando a terceira
de fora. O verbo conjugado (V na figura), por exemplo, está conectado
à fonologia (letrinha f em V e no clítico z), mas o verbo não flexionado
e a flexão estão conectados à semântica de modo separado (números 6
e 7, respectivamente). Há ainda outras diferenças entre as conexões de
estruturas, como o fato de que o mapeamento entre sintaxe e fonologia é
linear, mas não o mapeamento entre sintaxe e semântica; o fato de que nem
todas as partes da estrutura conceitual têm correspondência na estrutura
espacial; e o fato de que um elemento relativamente insignificante numa
estrutura pode ser o elemento central em outra – o clítico z, por exemplo,
na sentença “The little star’s beside a big star”, não é sequer um elemento
fonologicamente independente, mas semanticamente denota o verbo be,
que é protagonista na estrutura conceitual.
Outro ponto a enfatizar sobre a arquitetura paralela é que, apesar
de não estar devidamente explicitado na figura acima, a sintaxe e a
semântica também são subdivididas nesse modelo teórico em camadas
(tiers) independentes, como a fonologia. A sintaxe, de acordo com
Jackendoff (2003, p. 129), é constituída por camadas como a de sintaxe
frasal (phrasal syntax) e de morfossintaxe, além de outras possíveis
camadas, como a de funções gramaticais (2003, p. 149). Já a semântica
(JACKENDOFF, 2003, p. 11; cap. 12) conta entre suas camadas com uma
descritiva (descriptive tier), que corresponde grosso modo à informação
veiculada na lógica de predicados; uma referencial (referential tier), que
denota os aspectos semânticos que são acrescentados quando se passa
de uma lógica de predicados para uma lógica quantificacional;16 e uma
Para uma introdução à lógica de predicados e à lógica quantificacional, ver, por
exemplo, Mortari (2001).
16
140
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camada de estrutura informacional (informational structure), que veicula
essencialmente conteúdo de tópico/foco e de pressuposição.
Sem dar tréguas ao sintaticocentrismo de Chomsky, Jackendoff
(2003, p. 110-111) sublinha que dois pressupostos são mantidos por
Chomsky em sua concepção linguística desde os seus primeiros trabalhos:
o de que a estrutura sintática é a única fonte gerativa na gramática e o de
que os itens lexicais entram na derivação no ponto em que a combinação
sintática acontece. Contra o primeiro pressuposto, conforme já ressaltado,
Jackendoff defende que os componentes fonológico e semântico também
têm capacidade gerativa. Contra o segundo, Jackendoff (2003, p. 425)
argumenta que o léxico é uma parte essencial dos componentes de interface
da arquitetura paralela. Uma palavra como “gato” (cat), exemplifica
Jackendoff (2003, p. 425), não é somente uma lista de traços fonológicos,
sintáticos e semânticos que se insere na sintaxe e é carregada por toda
a derivação, como se faz no gerativismo chomskiano. Em vez disso, é
uma “pequena regra de interface” que ajuda a correlacionar as estruturas
paralelas. Os traços fonológicos só aparecem na estrutura fonológica; os
traços sintáticos na estrutura sintática; os traços semânticos na estrutura
conceitual. Além do mais, a palavra é que estabelece a ligação entre as
três estruturas. Para Jackendoff (2003, p. 425), essa interpretação do
léxico como uma parte essencial dos componentes de interface é o maior
diferencial entre seu modelo teórico e os de Chomsky – desde a teoria
padrão até o minimalismo. A figura abaixo, reproduzida de Jackendoff
(2003, p. 125), ajuda a compreender melhor toda essa discussão:
Fonte: Jackendoff (2003, p. 125)
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141
Essa figura esquematiza a “teoria tripartite” da linguagem, com
seus três componentes estruturais – fonológico, sintático e semântico/
conceitual – e suas respectivas regras de formação e interfaces. A
centralidade do componente sintático, esclarece Jackendoff (2003, p.
126), deve-se a seu papel de intermediário entre o componente fonológico
e o componente semântico/conceitual, não havendo qualquer relação
com o sintaticocentrismo chomskiano. A sintaxe, aliás, é o componente
mais isolado da arquitetura paralela, já que não tem múltiplas interfaces
com outras capacidades cognitivas, diferentemente da fonologia e da
semântica (JACKENDOFF, 2003, p. 126). A estrutura conceitual, em
particular, é bastante rica em interfaces, interagindo com módulos como
o de informação auditiva, cheiro, emoção, ação e representação espacial
(JACKENDOFF, 2007, p. 44). Em se tratando das interfaces linguísticas,
é pertinente observar que elas não acontecem entre os componentes como
um todo, mas sim com subcomponentes específicos. A interface sintaxefonologia, por exemplo, dá-se na camada (tier) de morfofonologia, não
em todo o componente fonológico (JACKENDOFF, 2003, p. 126).
Isso porque somente constituintes da morfofonologia estão conectados
a constituintes da árvore sintática, não havendo relação alguma entre
as unidades silábicas (codas, núcleos, etc.) e as categorias sintáticas
(substantivos, verbos, etc.), por exemplo (JACKENDOFF, 2003, p. 118).
Perceba-se ainda que na arquitetura paralela não se segue a
divisão tradicional da linguística em fonologia, morfologia, sintaxe,
semântica e léxico. Nesse modelo teórico assume-se que a morfologia
é a extensão da arquitetura paralela abaixo do nível das palavras
(CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 19). Na arquitetura paralela,
a morfofonologia é responsável pela construção da estrutura fonológica
das palavras a partir dos temas (stems) e afixos – grosso modo, como os
sons de temas e de afixos influenciam um ao outro. Já a morfossintaxe,
na arquitetura paralela, lida com a estrutura sintática dentro das palavras,
especificando por exemplo a categoria sintática a que um afixo se aplica
e a categoria sintática resultante; o traço estrutural de paradigmas
morfológicos e os modelos (templates) morfossintáticos relacionados
no processo de múltipla afixação. Além disso, na arquitetura paralela
defende-se que a morfologia também tem um papel semântico, já
que muitos afixos produtivos, como a marcação de plural regular em
inglês, podem ser tratados como itens lexicais, que, como as palavras,
estabelecem uma interface entre pedaços de (morfo)fonologia, (morfo)
sintaxe e semântica. Assim, a arquitetura paralela é constituída por três
142
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componentes gerativos – fonologia, sintaxe e semântica – mais uma
divisão transversal em departamentos frasal e morfológico e princípios
de interface entre os vários componentes, com o léxico atravessando
todos eles (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 19-20).17
Outro ponto fundamental da arquitetura paralela de Jackendoff,
representado na figura da teoria tripartite da linguagem, é sua adequação
à direcionalidade lógica da produção e percepção da fala. Nesse aspecto,
o modelo de Jackendoff também procura superar as falhas dos modelos
sintaticocêntricos de Chomsky, que começam pela construção da frase
sintática e pela inserção lexical e só posteriormente atingem os níveis
fonológico e semântico (JACKENDOFF, 2003, p. 197). A percepção
da linguagem, porém, evidentemente se dá do som ao significado, e a
produção da linguagem se dá do significado ao som. Na figura abaixo,
também reproduzida de Jackendoff (2003, p. 197), esses três quadros
são assim esquematizados, respectivamente:18
Fonte: Jackendoff (2003, p. 197)
17
Ver Bornkessel-Schlesewsky e Schlesewsky (2013) para a apresentação de evidências
neurobiológicas de que possivelmente não haja “primitivos computacionais em
morfologia”, isto é, a morfologia não constituiria um subsistema linguístico autônomo, mas
seria essencialmente um domínio de interface com a fonologia, a sintaxe e a semântica.
18
Para uma apresentação minuciosa da arquitetura paralela, ver Jackendoff (2003).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020
143
Qual modelo teórico é mais condizente com a faculdade da
linguagem é uma questão que se esclarecerá com o tempo. Uma pergunta
mais imediata que se coloca, porém, refere-se à possibilidade de a
arquitetura paralela de Jackendoff suplantar o minimalismo chomskiano
como o principal “programa de pesquisa” (LAKATOS, 1979, 1995)
gerativista. Antes de responder a essa pergunta, vale frisar que a simples
existência da arquitetura paralela como um programa de pesquisa rival
ao programa chomskiano já é de suma importância porque alimenta o
“pluralismo teórico” e, assim, estimula o progresso científico, conforme
ressalta Imre Lakatos:
A história da ciência tem sido, e deve ser, uma história de
programas de pesquisa competitivos (ou, se quiserem, de
“paradigmas”), mas não tem sido, nem deve vir a ser, uma
sucessão de períodos de ciência normal: quanto antes se iniciar a
competição, tanto melhor para o progresso. O “pluralismo teórico”
é preferível ao “monismo teórico” (...) (LAKATOS, 1979, p. 191).
Mas na gramática gerativa nunca houve lugar para programas
de pesquisa rivais ao programa chomskiano, como bem assinala José
Borges Neto:
Chomsky sempre foi o grande líder da comunidade gerativista,
impondo avanços, redirigindo o programa, rejeitando e/
ou avalizando propostas. Chomsky age – e é visto assim pela
comunidade – como o “dono” do programa, a pessoa que tem a
última palavra sobre a validade das linhas de pesquisa propostas
pelos colaboradores, a pessoa que diz o que deve e o que não deve
ser pesquisado, a pessoa que periodicamente faz os “balanços” de
lucros e perdas (conquistas e custos teóricos) da teoria e propõe as
grandes sínteses que dão as novas direções. Sem muito exagero,
poderíamos dizer que a GG [gramática gerativa] sempre foi, e
continua sendo, essencialmente uma criação de Chomsky. Todos
os que não concordaram com Chomsky, em um ou outro momento
da história do programa, ou renderam-se ao poder do “mestre”,
retornando ao “bom caminho”, ou tornaram-se dissidentes, à
margem do programa. Por mais interessantes que sejam as propostas
apresentadas pelos colaboradores de Chomsky, elas só são, de fato,
incorporadas ao arsenal teórico do programa se explicitamente
avalizadas por Chomsky (BORGES NETO, 2011, p. 126).
144
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Diante dessa conjuntura, é improvável – para não dizer impossível
– que a arquitetura paralela de Jackendoff venha a se tornar algum dia
o principal programa de pesquisa gerativista, apesar da “reação ‘fria’”
de parte da comunidade ao Programa Minimalista (BORGES NETO,
2011, p. 126). No entanto, a arquitetura paralela parece ter boas chances
de vir a ocupar esse posto na biolinguística. E não porque a presença de
Chomsky seja menos dominante nesse novo campo de estudos, e sim
porque nele é real a possibilidade de que evidências empíricas advindas da
biologia e das neurociências levem ao abandono de seu modelo linguístico
sintaticocêntrico em favor de um modelo linguístico semelhante ao de
Jackendoff. Além do mais, não seria surpreendente caso a maioria dos
biólogos e dos neurocientistas que começam a trabalhar na biolinguística
achem inoportuna a tese minimalista de que a linguística está mais
próxima da física do que da biologia (URIAGEREKA, 1998, p. 60) e, com
isso, prefiram ajudar os linguistas a desenvolver um programa de pesquisa
– ou, se preferirem, um “paradigma” (KUHN, 2009) – fundamentado
na premissa de que a faculdade da linguagem é um sistema cognitivo
imperfeito, como todos os outros, em vez de seguir a intuição chomskiana
de que esse órgão mental tem propriedades de simplicidade e elegância
que não são típicas dos sistemas orgânicos complexos.
6. Uma realidade científica, imperfeita e assimétrica
A expectativa de que um modelo teórico com as características
da arquitetura paralela de Jackendoff venha a ocupar na biolinguística o
posto de principal programa de pesquisa é reforçada pelo fato de que o
pressuposto metafísico de que a natureza é simples e perfeita está sendo
cada vez mais questionado por filósofos e por cientistas ao longo das
últimas décadas. A propósito, alguns desses teóricos que se mostram
céticos quanto aos princípios que nortearam a revolução científica do
século 17 ressaltam que foi precisamente essa revolução que começou a
minar a ideia, que remonta à Grécia Antiga, de que a natureza é simples
e perfeita. Referindo-se a essa revolução, na qual Galileu teve papel
decisivo por demolir os alicerces da física aristotélica (GALILEI, 1988,
2011), Alexandre Koyré, por exemplo, afirma:
Pode-se dizer, aproximadamente, que essa revolução científica
e filosófica – é de fato impossível separar o aspecto filosófico do
puramente científico desse processo, pois um e outro se mostram
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interdependentes e estreitamente unidos – causou a destruição
do cosmos, ou seja, o desaparecimento dos conceitos válidos,
filosófica e cientificamente, da concepção do mundo como um
todo finito, fechado e ordenado hierarquicamente (um todo no qual
a hierarquia de valor determinava a hierarquia e a estrutura do ser,
erguendo-se da terra escura, pesada e imperfeita para a perfeição
cada vez mais exaltada das estrelas e das esferas celestes), e a
sua substituição por um universo indefinido e até mesmo infinito
que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis
fundamentais, e no qual todos esses componentes são colocados
no mesmo nível de ser. Isso, por seu turno, implica o abandono,
pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas
em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado
e objetivo, e, finalmente, a completa desvalorização do ser, o
divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos (KOYRÉ, 2006,
p. 6; grifos nossos).
Entre os físicos da atualidade, Marcelo Gleiser talvez seja o maior
defensor da “destruição do cosmos” e o consequente abandono pelo
pensamento científico das noções de perfeição, harmonia, significado e
objetivo. Em seu livro Criação imperfeita, de 2010, Gleiser reconstrói
a história de como esses conceitos passaram a fundamentar as ideias
de filósofos e cientistas ao longo dos últimos 2.500 anos para melhor
desconstruí-la. Como Koyré, Gleiser acredita que a concepção de uma
natureza perfeita começa a desmoronar precisamente na revolução
científica do século 17. Para ilustrar seu argumento, Gleiser esmiúça
o trabalho de Johannes Kepler, ressaltando como o próprio Kepler não
conseguiu abandonar sua visão harmônica e simétrica do mundo, apesar
de suas descobertas – em especial sobre a órbita elíptica dos planetas –
terem apontado nessa direção. Conforme Gleiser (2010, p. 63-65), Kepler
acreditava que Deus havia determinado a ordem dos corpos celestes
tendo em mente os cinco sólidos regulares de Pitágoras e Platão: o cubo,
a pirâmide, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro.19 Considerando o
“sonho pitagórico” de Kepler de apresentar uma solução geométrica para
o cosmos, Gleiser comenta:
É irônico (...) que justamente o homem que tanto amava a simetria
acabasse provando que o círculo – a mais perfeita das formas –
não tinha um papel central na astronomia. Cada planeta tinha a
19
Para uma ampla exposição das ideias de Kepler, ver Gleiser (2006).
146
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sua própria órbita elíptica, com uma elongação maior ou menor:
a estrutura do cosmo deixou de ser um sonho humano e passou
a ser uma realidade científica, imperfeita e assimétrica. Kepler
nos proporcionou um cosmo menos belo, mas uma ciência
mais precisa. A lição que aprendemos é tão simples quanto
essencial: para nos aproximar da verdade, muitas vezes temos
que abandonar nossos sonhos de perfeição (GLEISER, 2010,
p. 67; grifos nossos).
É igualmente irônico que Chomsky tenha fundamentado seu
minimalismo na “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’” e
“simples”, já que foi o próprio Galileu que revelou com seu telescópio
as imperfeições do Sol e da Lua (GALILEI, 1987, 2011) e defendeu que
a Terra é “dotada das mesmas condições dos corpos celestes” (GALILEI,
2011, p. 189), contribuindo assim para o abandono do cosmos ordenado
e perfeito de Aristóteles (MARICONDA, 2011, p. 62). “As manchas
[solares] são (...) consideradas por Galileu como manifestações solares
e tomadas como evidência de que os fenômenos celestes não são, como
pretendem os aristotélicos, incorruptíveis, inalteráveis e impassíveis,
mas mostram sofrer alterações”, comenta o professor Pablo Rubén
Mariconda (2011, p. 19). Fato significativo, logo na abertura da primeira
das quatro jornadas que compõem o Diálogo sobre os dois máximos
sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, Galileu explicita a doutrina
aristotélica20 de que a substância celeste, de um lado, é “impassível e
imortal”, enquanto a elementar, de outro, é “alterável e caduca” (p. 95).
“(...) Aristóteles prova a integridade e a perfeição do mundo ao mostrarnos que ele não é uma simples linha nem uma superfície pura, mas um
corpo composto de comprimento, largura e profundidade; e porque as
dimensões não são mais que estas três, tendo-as, ele as tem todas, e
tendo tudo, é perfeito” (GALILEI, 2011, p. 95), afirma Galileu por meio
de Salviati, personagem com o qual expõe seus argumentos a favor do
sistema heliocêntrico de Copérnico em detrimento do sistema geocêntrico
de Ptolomeu. Curiosamente, porém, a despeito de seu ataque vigoroso
à física de Aristóteles ao longo de toda a obra, Galileu reitera, também
por meio de Salviati, a “intuição aristotélica” de que o mundo é perfeito:
20
Para detalhes, ver em especial o tratado aristotélico Do céu.
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147
(...) concordo com ele [Aristóteles] e admito que o mundo seja
um corpo dotado de todas as dimensões e, por isso mesmo,
perfeitíssimo; e acrescento que como tal é necessariamente
ordenadíssimo, ou seja, formado de partes dispostas entre si com
máxima e perfeitíssima ordem, conclusão que não creio poder ser
negada nem por vós, nem por outros (GALILEI, 2011, p. 104).
Poucas décadas depois de Galileu, Isaac Newton agiria de
forma semelhante, mantendo suas convicções mais profundas sobre o
ordenamento do mundo apesar das evidências em contrário a que chegou
com suas próprias descobertas. Em sua entrevista a McGilvray, Chomsky
resume de forma interessante esse importante capítulo da história da ciência:
(...) por volta do século 17 a postura frente à investigação e ao
entendimento do mundo simplesmente mudou radicalmente. Na
época de Newton, houve uma mudança dramática – tão dramática
que Newton, que basicamente ajudou a criar essa mudança, não
conseguiu aceitá-la. A suposição anterior – sem que ninguém
expressasse exatamente – era que o mundo era inteligível. Deus
o criara perfeito, e se fôssemos espertos o suficiente, poderíamos
ver como Ele fez o mundo, e tudo seria inteligível para nós. Tudo
o que tínhamos de fazer era trabalhar duro. O principal efeito
psicológico das descobertas de Newton, eu acho, é que isso não é
verdade. Envolve coisas que são, para nós, intuitivamente, forças
misteriosas. Foi por isso que Newton resistiu às suas próprias
conclusões, que efetivamente minaram o que era chamado de
“filosofia mecânica” – a ideia de que o mundo trabalha como
uma máquina, com mecanismos, alavancas e coisas empurrando
umas às outras, meio parecido com um relógio medieval. Devia
ser alguma coisa do gênero. Mas o que ele mostrou é que isso
simplesmente não é verdadeiro (CHOMSKY, 2014, p. 130).
Adiante, Chomsky completa, deixando entrever que não
compartilha com Newton a suposição de que o mundo é inteligível, apesar
de presumivelmente compartilhar com ele a suposição de que é perfeito:
“Não é que o mundo vá ser inteligível (...). Então, queremos teorias
inteligíveis sobre o mundo que atendam nossos critérios epistemológicos
e funcionem com eles, que sejam apenas outros aspectos de nosso sistema
cognitivo” (CHOMSKY, 2014, p. 131). De qualquer forma, voltando à
revolução científica do século 17, é preciso sublinhar que, décadas antes
de Newton, Kepler já havia adotado postura semelhante, resistindo às suas
148
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próprias conclusões: “Para Kepler”, observa Gleiser (2010, p. 65), “a ordem,
as proporções perfeitas, a simetria refletiam a glória da mente de Deus”
e, “mesmo após ter revolucionado a astronomia, provando que as órbitas
planetárias eram elípticas e não circulares, Kepler continuou acreditando
no seu modelo geométrico” (GLEISER, 2010, p. 65). Dessa maneira,
Kepler foi forçado a abandonar o círculo devido à precisão
fenomenal dos dados de Tycho Brahe, nos quais confiava
completamente. Mesmo assim, morreu convencido de que a
perfeição geométrica do cosmo, refletindo a perfeição da mente de
Deus, seria um dia revelada em toda a sua glória no código oculto
da natureza. Para achar esse tesouro, tínhamos apenas de cavar
mais fundo (GLEISER, 2010, p. 153-154).
Essa ideia de que, para além das imperfeições da natureza com que
os seres humanos se deparam com seus sentidos e seus instrumentos, existe
um código oculto e perfeito num nível mais fundo acabou prevalecendo na
física. Assim, a concepção grega de um “Universo elegante” (GREENE,
2013) vem norteando o trabalho dos físicos desde a revolução científica
do século 17. Mais recentemente, desde meados do século 20, a intuição
de que a natureza é simples, elegante, harmônica, perfeita, guia os físicos
em seu projeto de formular uma teoria final, com a qual seriam integradas
a mecânica quântica e a teoria da relatividade geral de Einstein – isto
é, seriam unificadas as quatro forças da natureza: eletromagnetismo,
gravidade, força nuclear forte e força nuclear fraca.21 “Todas as teorias de
unificação baseiam-se na noção de que quanto mais profunda e abrangente
a descrição da natureza, maior o seu nível de simetria matemática”,
comenta Gleiser (2010, p. 14), referindo-se ao trabalho de físicos como
Kepler, Newton e Einstein. “Ecoando os ensinamentos de Pitágoras e
Platão, essa noção expressa um julgamento estético de que teorias com
um alto grau de simetria matemática são mais belas e que, como escreveu
o poeta John Keats em 1819, ‘beleza é verdade’” (GLEISER, 2010, p.14).
Cético quanto a essa posição, Gleiser pondera:
Porém, quando investigamos a evidência experimental a favor
da unificação, ou mesmo quando tentamos encontrar meios de
21
Para uma exposição detalhada deste projeto, começando pela Grécia Antiga e passando
pelos grandes cientistas modernos até chegar ao cenário atual, ver, por exemplo, Greene
(2012, 2013) e Weinberg (1996, 2015).
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149
testar essas ideias no laboratório, vemos que pouco existe para
apoiá-las. Claro, a ideia de simetria sempre foi e continua sendo
uma ferramenta essencial nas ciências físicas. O problema começa
quando a ferramenta é transformada em dogma. Nos últimos
cinquenta anos, descobertas experimentais têm demonstrado
consistentemente que nossas expectativas de simetrias perfeitas
são mais expectativas do que realidades (GLEISER, 2010, p. 14).
Contrário ao dogma de que a natureza é perfeita, Gleiser defende
que “é hora de a ciência mudar, deixando para trás a velha estética do
perfeito que acredita que a perfeição é bela e que a ‘beleza é verdade’”
(2010, p. 15). Sem prejuízo a essa posição, cabe no entanto observar que
Gleiser se equivoca ao aparentemente assumir que o dogma de que a
natureza é perfeita foi aceito na ciência como um todo. Na biologia, como
destacam Anna R. Kinsella e Gary F. Marcus (2009), esse dogma jamais
vigorou. Realmente, pareceria estranho que os biólogos, compartilhando
com os físicos a intuição de que a perfeição é bela e verdadeira,
acreditassem que sistemas biológicos, resultados de um longo processo
evolutivo, pudessem ser perfeitos em algum sentido. Mas muito mais
importante: tendo em conta a verdade autoevidente de que os sistemas
biológicos fazem parte do mundo natural, parece de fato ser hora de a
ciência considerar esquecer o sonho de uma natureza simples e perfeita...
7. Considerações finais
Quando Paul Dirac foi à Universidade de Harvard em 1974 falar
sobre seu trabalho em física quântica, lembra Weinberg na abertura do
ensaio “Belas teorias”, ele recomendou aos alunos de pós-graduação
que se preocupassem apenas com a beleza de suas equações, e não com
o que elas significavam. Na opinião do próprio Weinberg, esse não foi
um bom conselho. De fato, parece insensato que cientistas se atenham à
estética de uma teoria, relevando seu intento de desvendar algum aspecto
da realidade. Porém, exageros à parte, a história da ciência está repleta
de casos de grandes teóricos que se pautaram em suas investigações
mais por uma concepção vaga do belo do que por aquilo que suas
pesquisas lhes revelaram sobre seu objeto de estudos. Os exemplos de
Kepler, Galileu e Newton ilustram bem essa situação. Em se tratando da
linguística chomskiana, sobretudo no Programa Minimalista, verifica-se
algo semelhante. Quanto mais patentes as imperfeições da linguagem,
mais Chomsky se esforça para revelar as propriedades de simplicidade e
150
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de elegância desse sistema biológico. Mesmo que à custa das evidências
empíricas. Um tanto perplexo com isso, Talmy Givón (2009, p. 6)
afirma com razão que a ideia de que a recursividade é o traço essencial
da linguagem humana só foi levada a sério por ter o nome de Chomsky
ligado a ela. Ainda mais críticos do que Givón em relação ao minimalismo
chomskiano, Lappin, Levine e Johnson (2000a) expõem a falta de clareza
com que Chomsky atribui à linguagem a noção de perfeição e recordam
o leitor de que mesmo pensadores extraordinários, como David Hilbert
(com seu programa formalista) e Albert Einstein (com sua teoria do
campo unificado), podem estar profundamente enganados. Reiterar
essa obviedade desfazendo de vez o sonho de uma linguagem perfeita
talvez venha a se mostrar a principal contribuição epistemológica da
linguística não apenas para as novas ciências cognitivas, mas também
para as ciências mais tradicionais.
agradecimentos
Gostaria de agradecer à professora doutora Ulrike Schröder pelas
críticas, comentários e sugestões a uma versão anterior deste trabalho.
Também gostaria de agradecer à professora doutora Patricia Kauark pelas
conversas sempre generosas e esclarecedoras sobre epistemologia que
tivemos ao longo da disciplina “Filosofia das ciências”, ministrada por
ela na graduação em filosofia da UFMG no primeiro semestre de 2017.
Gostaria de agradecer ainda às observações e sugestões feitas por dois
pareceristas anônimos. Evidentemente, a responsabilidade pelas posições
aqui assumidas é de minha inteira responsabilidade.
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o papel dos contextos e da polissemia na constituição
histórica de novos juntores contrastivos
The role of contexts and polysemy in the historical
development of new contrastive connectives
Luísa Ferrari
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), São José do Rio
Preto, São Paulo / Brasil
luisa-ferrari@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0384-4781
resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar, em perspectiva longitudinal, o
processo de constituição de construções de contraste com agora (português) e de
construções de contraste com now (inglês) que expressam oposição semântica. À
luz dos percursos de mudança atravessados por essas construções e de um quadro
teórico que atribui à pragmática o papel de força motriz da mudança (TRAUGOTT;
DASHER, 2002), busca-se reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia
no desenvolvimento de novos juntores contrastivos. Para tanto, desenvolve-se um
estudo diacrônico dos contextos que fornecem condições para as mudanças de
agora e de now, que atuam originalmente como advérbios temporais. Os resultados
mostram, em conformidade com Traugott (2012), que, se o desenvolvimento de novos
juntores envolve gramaticalização, e não apenas mudança de significado, têm papel
chave contextos que aliam motivações para reinterpretação semântico-pragmática
a motivações para reanálise categorial. Além disso, a análise diacrônica permite
reconhecer um amplo conjunto de similaridades entre a trajetória de agora e a trajetória
de now, apontando para a produtividade translinguística da fonte temporal como canal
de derivação para significados contrastivos.
Palavras-chave: contextos; polissemia; contraste; gramaticalização.
abstract: This paper aims to investigate, in a longitudinal perspective, the historical
development of contrastive constructions with agora (Portuguese) and of contrastive
constructions with now (English) that express semantic opposition. In the light of the
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
paths of change undergone by these constructions and of a theoretical framework
that assigns to pragmatics the role of the chief driving force in change (TRAUGOTT;
DASHER, 2002), the paper searches for evidence of the role of contexts and of polysemy
in the development of new contrastive connectives. For this purpose, the research
develops a diachronic study of contexts that provide conditions to the changes undergone
by agora and by now, which are originally temporal adverbs. The results show, in
accordance with Traugott (2012), that, if the development of new connectives involves
grammaticalization, and not only meaning change, contexts that ally motivations for
semantic-pragmatic reinterpretation and motivations for categorial reanalysis play a key
role. Moreover, the diachronic analysis shows a great amount of similarities between
the path of change undergone by agora and the path undergone by now, pointing to
the productivity, across languages, of the temporal source as a derivation channel for
contrastive meanings.
Keywords: contexts; polysemy; contrast; grammaticalization.
Recebido em 26 de março de 2019
Aceito em 04 de agosto de 2019
1 Introdução
Este trabalho1 focaliza duas trajetórias de mudança, instanciadas
em duas diferentes línguas, que partem de fontes temporais e dão
origem a novos juntores2 contrastivos, mostrando um conjunto de
similaridades em seu desenvolvimento. Percorrem essas trajetórias os
(originalmente) advérbios temporais agora, do português, e now, do
inglês, que apresentam, no português e no inglês contemporâneos, uma
complexa rede de polissemias, caracterizada pela coexistência entre os
Este trabalho resulta de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), nas modalidades Bolsa no País/Mestrado
(processo nº 2015/21358-6) e Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (processo nº
2017/01933-1). Parte dos resultados é também produto de um projeto de pesquisa em
andamento, financiado pela FAPESP na modalidade Bolsa no País/Doutorado (processo
nº 2019/01411-0).
2
Por juntores, entendo conectores em geral, que podem ser membros de categorias
gramaticais diversas, tais como conjunções propriamente ditas (coordenativas e
subordinativas), perífrases conjuncionais, preposições e advérbios juntivos.
1
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significados temporais primitivos e significados contrastivos.3 Tanto as
relações contrastivas articuladas com agora quanto as articuladas com
now podem expressar duas nuanças: oposição semântica (baseada em
predicados antônimos) e quebra de expectativa (fundada em conclusões
direcionadas a orientações argumentativas distintas). Os exemplos (1) e
(2), abaixo, ilustram os usos temporais de agora e now, respectivamente,
e os exemplos de (3) a (6) ilustram os usos contrastivos, sendo (3) e
(4) representativos do contraste por oposição semântica, e (5) e (6), do
contraste por quebra de expectativa. As ocorrências4 foram extraídas de
dados provenientes de textos falados e escritos do português e do inglês
contemporâneos.
(1) Mas eu gostaria de fazer referência para um trecho desta rodovia
que inicia em São Ludgero, passa por Braço do Norte e se estende
até a cidade de Gravatal, que se encontra numa situação caótica
e desesperadora, estando desde 1994 somente com aquelas
operações tapa buraco, que não adiantam para nada. E agora
estão instalando somente neste trecho escalavrado duas lombadas
eletrônicas que já se encontram em sua fase final de conclusão.
(CAPH20-2/21)
(2) His wife interested me somewhat: in face and in character
she reminded me of one who now lies beneath the ground.
(CACL19:1, 172)
A esposa dele me interessou um pouco: pela aparência e pelo
caráter ela me lembrou de alguém que agora está debaixo da terra.
(3) EU saio de(i)xo ele fala::n(d)o num...num implico com ele agora
as meninas já gostam de retrucá(r). (TFII20:2/21, 67, C1)
3
Também fazem parte do quadro de polissemias apresentado por agora e now usos
em que os itens atuam como marcadores discursivos que sinalizam transição textual
(cf. FERRARI, 2018). Em função dos objetivos deste trabalho, tais usos não são
abordados aqui.
4
Para todos os exemplos do inglês apresentados ao longo do trabalho, proponho
traduções para o português que buscam preservar o texto original o tanto quanto possível.
162
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(4) S2: You used to get all these reprint requests, they’ve all
disappeared because of email and the rest of it?
S1: Most people xerox stuff, now I get stuff from overseas.
L2: Você costumava atender a todos os pedidos de reimpressão,
eles todos desapareceram por conta do email e de tudo o mais?
L1: A maioria das pessoas tira cópia dos materiais, agora eu os
trago do exterior. (UNMI20:2/21)
(5) L2: cê... acha que é...uma falta de interesse por falta dos homens...?
L1: Eu acho que...
L2: o que que é?
L1: não... eu não sei...vai ver que os homens não tem um grande
interesse ... olha nós temos...uhm...uhm..tem um (lado) mais
feminino no Museu na verdade...agora...os diretores SEMpre
foram homens... (TFCS20:2/21, C2, 251)
(6) The bourgeoisie has created a world market, now it’s not like
people weren’t trading across national boundaries before.
Remember for example Marco Polo (...). (TFCM20:2/21, C2, 35)
A burguesia criou um mercado mundial, agora não é que as
pessoas não faziam comércio além das fronteiras nacionais antes.
Lembrem por exemplo de Marco Polo.
Evidências empíricas de mudança, extraídas de diferentes línguas
do mundo, mostram que tempo é canal de derivação produtivo para
contraste (KORTMANN, 1997; MAURI; RAMAT, 2012). Partindo da
hipótese de uma relação de derivação histórica entre os usos temporais
e os usos contrastivos de agora e now, o objetivo deste trabalho é
investigar, em perspectiva longitudinal, o processo de constituição das
construções5 de contraste com agora e das construções de contraste com
now, focalizando, neste texto, o desenvolvimento daquelas que expressam
5
Neste trabalho, entendo construção à maneira de Mauri e Ramat (2012, p. 5), que
concebem construção como a associação de significados particulares a propriedades
distribucionais, sem filiação à abordagem construcional da gramática. Ao falar em
“construções com agora e now”, tenho em vista o pressuposto, assumido já nas obras
clássicas sobre mudança gramatical (HEINE et al., 1991; HOPPER; TRAUGOTT,
2003), de que reanálises semântico-pragmáticas e morfossintáticas se dão no nível
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oposição semântica. Assumindo um quadro teórico que concebe a
pragmática como a principal força que instiga mudança (TRAUGOTT;
DASHER, 2002), no sentido de que novos significados se desenvolvem
a partir de inferências disparadas por arranjos contextuais específicos, o
foco da investigação das mudanças semântico-categoriais atravessadas
por agora e now está nos contextos que, fomentando polissemia
entre tempo e contraste, dão condições para a emergência e contínuo
fortalecimento do valor de oposição semântica e da função juntiva.
Assim, entendendo que elucidar o processo de constituição das
construções em foco implica explorar os contextos em que esse processo
se desenvolve, o objetivo principal do trabalho se desdobra em dois
objetivos mais específicos: (i) explicitar fatores contextuais de natureza
semântico-pragmática que fornecem condições, na história de agora e
now, para a constituição gradual de relações de oposição semântica; (ii)
explicitar fatores contextuais de natureza morfossintática que, aliados
às condições semântico-pragmáticas, favorecem o trânsito categorial
de advérbio para juntor, com consequências para toda a construção.
Em conformidade com a perspectiva teórica de mudança assumida
no trabalho, admito que a especialização de agora e now em duas
nuanças contrastivas (oposição semântica e quebra de expectativa) tem
relação direta com a singularidade dos contextos de desenvolvimento,
que favorecem determinada nuança e não outra, motivo pelo qual são
focalizadas neste trabalho as trajetórias rumo à oposição semântica. Em
busca das especificidades de cada desenvolvimento, dedicarei outro
trabalho à investigação das trajetórias que dão origem às construções
de quebra de expectativa com agora e now.
O interesse do trabalho pelas histórias de constituição de agora
e now como juntores contrastivos tem em vista uma questão maior.
Além da hipótese de derivação entre tempo e contraste, o trabalho
também parte da hipótese de que, se a mudança se processa em contextos
altamente específicos e se tanto o português quanto o inglês desenvolvem
juntores contrastivos a partir de advérbios temporais similares, existem
similaridades entre os contextos de desenvolvimento que atuam em cada
língua. Tais similaridades podem fornecer evidências de regularidades
no processo de mudança que dá origem a novos mecanismos de junção
da construção, dependendo de sua reconfiguração como um todo, e não apenas de
alterações do item em mudança.
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contrastiva. Nesse sentido, a questão maior perseguida pelo trabalho a
partir da investigação da emergência das construções de contraste com
agora e now está em reunir evidências do papel dos contextos e da
polissemia no desenvolvimento histórico de novos juntores contrastivos,
buscando respostas para três questões mais específicas:
(1) De que modo os contextos condicionadores que atuam nos
percursos de agora e now contribuem para o desenvolvimento
de construções de contraste similares nas duas línguas?
(2) Admitindo o peso da fonte para o gatilho e para os desdobramentos
da mudança, no sentido de que não é qualquer significado
temporal que habilita inferências de contraste, que aspectos de
singularidade da fonte de mudança em cada língua são decisivos
para a emergência do valor de oposição semântica?
(3) Que estágios evolutivos se delineiam a partir dos contextos
condicionadores em cada língua e que similaridades podem ser
capturadas entre os estágios envolvidos em cada trajetória?
O texto está organizado em cinco seções. Na seção 2, apresentase o quadro teórico que fornece as bases da concepção de mudança e da
concepção de contraste assumidas no trabalho. Na seção 3, é descrito o
corpus de investigação e os procedimentos metodológicos da análise. Na
seção 4, desenvolve-se a análise longitudinal, com a caracterização dos
contextos de uso originais de agora e now, dos contextos de polissemia
entre tempo e contraste e dos contextos exclusivamente contrastivos.
Dados os objetivos e as questões do trabalho, a análise dedica maior
atenção aos contextos polissêmicos. Na seção 5, são sistematizados
os estágios de mudança de ambas as trajetórias investigadas, à luz dos
contextos envolvidos. Por fim, são expostas as considerações finais, com
a retomada das questões da pesquisa.
2 Fundamentos Teóricos
2.1 a perspectiva teórica de mudança
A investigação das mudanças que dão origem às construções
de contraste com agora e às construções de contraste com now se
fundamentará em uma perspectiva teórica de mudança que atribui à
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pragmática o papel de força motriz do processo. A Invited Inferencing
Theory of Semantic Change (IITSC, daqui em diante), conforme
sistematizada em Traugott e Dasher (2002), busca explicar como se
desenvolve a mudança semântica, admitindo que novos significados
emergem primeiramente como significados pragmáticos convidados por
contextos específicos. De acordo com o modelo da IITSC, esses contextos
habilitam inferências do novo significado, que passam a coexistir com
o significado original da construção em mudança, instaurando-se um
cenário de polissemia entre significado fonte e significado alvo. Contexto
e polissemia, portanto, são eixos centrais do modelo.
Ao dar destaque para o contexto e para a polissemia, a IITSC
coloca em foco a metonimização, mecanismo de mudança através
do qual material linguístico presente no contexto sugere significados
adicionais e habilita sua contínua associação com os significados
primitivos. Tal mecanismo opera na mudança de maneira complementar
com o mecanismo de metaforização, que leva ao trânsito entre domínios
conceituais, tendendo a partir de significados mais concretos em direção
a significados cada vez mais abstratos. Uma vez que a compreensão dos
processos metonímicos permite uma aproximação da gradualidade da
mudança, o foco da IITSC, em virtude de seus objetivos teóricos, incide
sobre tais processos. Neste trabalho, na medida em que se pretende
reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia na emergência
de novos juntores contrastivos, também se dá prioridade aos processos
inferenciais, de natureza metonímica, que contribuem para a emergência
das novas construções de contraste.
Traugott e Dasher (2002, p. 7) argumentam que, na constituição
de novos significados, o falante/escrevente tem papel proeminente,
configurando-se no negociador principal de significados. Isso permite
compreender o pressuposto central da IITSC de que as inferências de
novos significados são inferências convidadas: são contextos específicos
que convidam a inferências, e quem produz contextos, manipulando o
material linguístico em função de suas intenções comunicativas, é o
usuário da língua enquanto produtor de significados, e não como receptor.
Nessa perspectiva, o modelo assume que o falante/escrevente evoca
implicaturas e convida o ouvinte/leitor a inferi-las.
A IITSC prevê dois estágios principais para a mudança semântica:
um estágio de pragmatização, em que inferências convidadas passam
por um contínuo fortalecimento, e um estágio de semantização, em que
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os significados antes inferidos ganham o primeiro plano dos sentidos,
tornando-se independentes dos traços contextuais que lhes deram origem.
O fortalecimento pragmático é essencial para a mudança, uma vez que
inferências convidadas podem surgir e permanecer como implicaturas
restritas aos contextos de uso em que emergiram (TRAUGOTT; DASHER,
2002, p. 35). Para se tornarem novos significados codificados, é preciso
que ganhem saliência na comunidade linguística e que se espalhem para
outros falantes/escreventes e outros contextos linguísticos, passando,
na terminologia da IITSC, a inferências convidadas generalizadas, de
impacto pragmático maior.
A mudança linguística pode alcançar apenas o domínio
do significado ou apresentar uma complexidade maior, ao afetar
tanto o significado quanto a morfossintaxe e se desenhar a partir
de uma conjugação de processos, configurando-se em instância de
gramaticalização. Tendo em vista que as trajetórias de mudança aqui
investigadas atravessam transformações tanto de forma (advérbio >
juntor; soma-se a esse trânsito a reorganização de toda a construção de que
agora e now participam) quanto de significado (tempo > contraste), este
trabalho também se fundamenta no quadro teórico da Gramaticalização
(BYBEE, 2010, 2015; HEINE et al., 1991; HOPPER; TRAUGOTT,
2003), que se sustenta em pressupostos convergentes com a IITSC, tal
como a atribuição de papel fundamental ao contexto.
Dada a importância do domínio contextual para a investigação
de fenômenos de mudança, modelos de contextos são propostos em
Heine (2002) e Diewald (2002). Tais modelos permitem operacionalizar
a apreensão dos fatos de mudança, que não são discretos, de modo que
fornecem instrumentos metodológicos para uma aproximação de como
as mudanças ocorrem. Neste trabalho, conduzo a investigação à luz do
modelo de Diewald (2002), por razões explicitadas ao longo da análise.
Tanto Heine (2002) quanto Diewald (2002) estabelecem uma
correlação estreita entre tipos de contextos e estágios evolutivos, pensando
essa correlação especificamente para processos de gramaticalização.
Diewald (2002) prevê três tipos de contextos e sustenta que a
gramaticalização atravessa dois tipos de estágios de polissemia, um
em que há apenas condições para o novo significado e outro que alia
as condições para o novo significado a condições para a mudança
morfossintática. O primeiro tipo, que seria correspondente ao primeiro
estágio da mudança, é denominado pela autora untypical e se caracteriza
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por implicaturas conversacionais do significado alvo, que convivem em
relação polissêmica com o significado fonte. O segundo tipo, denominado
critical, é o que de fato dispara o processo de gramaticalização,
na proposta da autora. Aqui as ambiguidades são tanto semânticopragmáticas quanto morfossintáticas. Posteriormente, no estágio mais
avançado do processo, surgem contextos isolating, em que o primeiro e o
novo significado estão associados, enquanto valores semânticos distintos,
a diferentes arranjos contextuais. Conforme o modelo da autora, quando
se observa a especialização de contextos que excluem o significado fonte
e de contextos que excluem o significado alvo, pode-se considerar que o
processo de gramaticalização está completo (DIEWALD, 2002, p. 103).
Traugott (2012), ao discutir o papel dos contextos para a mudança
linguística, reúne evidências, extraídas de estudos de caso do inglês, de
que é particularmente importante, em processos de gramaticalização, a
distinção proposta por Diewald entre dois tipos de contextos de polissemia.
Segundo a autora, as inferências pragmáticas são fundamentais para o
gatilho da gramaticalização, mas é esperado que elas estejam aliadas a
mudanças estruturais, em conformidade com os contextos critical que
Diewald propõe (TRAUGOTT, 2012, p. 243). Conforme discuto na
seção de análise, contextos que agregam inferências do novo significado
a condições favoráveis à reanálise categorial têm papel primordial para
as instâncias de mudança investigadas neste trabalho.
2.2 a perspectiva teórica de coordenação e de contraste
As construções de contraste com agora e com now, conforme
exemplificadas de (03) a (06) na seção anterior, configuram construções
complexas que se aproximam de um modo coordenativo de composição.
A identificação do estatuto coordenativo de construções não é óbvia e
requer, na perspectiva teórica de coordenação aqui assumida, análise
baseada em critérios sobretudo de ordem semântico-pragmática, que não
será desenvolvida aqui, em função dos objetivos do trabalho. No entanto,
como a análise dos contextos de polissemia favoráveis às mudanças
investigadas envolve o pressuposto de que as construções de contraste
com agora e now estão desenvolvendo estatuto coordenativo e esse
estatuto é critério de distinção entre contextos polissêmicos (cf. seção
4.2), é importante delimitar o posicionamento teórico acerca da noção de
coordenação contrastiva, que é pouco consensual na literatura linguística.
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Parte das definições de coordenação oracional se pautam em
critérios essencialmente estruturais (cf., por exemplo, CULICOVER;
JACKENDOFF, 1997; LEHMANN, 1988), não suficientes para a
compreensão da complexidade das relações coordenativas. Admitindo
essa complexidade, assumo uma perspectiva teórica de coordenação
orientada a seus aspectos universais, que viabilizam uma abordagem
translinguística desse tipo de relação (MAURI, 2008a, b). Esses aspectos
são de ordem semântica e pragmática, pois, conforme Mauri (2008a, b),
relações coordenativas podem ser expressas a partir de uma diversidade
de estrutruras morfossintáticas, diversidade que dificulta a observação
de seu alcance translinguístico. Em contrapartida, do ponto de vista do
significado, segundo a autora, é possível definir a coordenação, para
um amplo conjunto de línguas, como um cenário conceitual em que
dois estados de coisas6 (EsCos, daqui em diante) exibem paralelismo
funcional, no sentido de autonomia semântica e pragmática. A análise de
paralelismo funcional se baseia, na proposta de Mauri, principalmente
na presença de força ilocucionária em ambas as orações relacionadas.
Entendo contraste, neste trabalho, à luz de Lang (1984, 2000),
que particulariza o papel da estrutura gramatical e da pragmática na
constituição de relações contrastivas. O autor sugere que a interpretação
de contraste envolve um dispositivo de busca pautado em uma relação
entre uma fonte e um alvo: a fonte está na segunda oração, que contém
indicações lexicais de que um contraste deve ser estabelecido, e o
alvo reside em uma suposição que atende às condições para a leitura
contrastiva. Nessa concepção, a construção coordenada contrastiva
apresenta uma estrutura gramatical que dispara a busca pela relação de
contraste (tal como predicados antônimos), mas o elemento essencial
para a consolidação da relação – a suposição lida ou inferida – não está
na estrutura gramatical, sendo fornecido pela pragmática.
Além do postulado da suposição, Lang também sustenta que é
característica fundamental da relação contrastiva (bem como de qualquer
relação coordenativa) a presença de um integrador comum, isto é, uma
entidade conceitual que é compartilhada pelas orações em relação. Os
juntores que articulam construções coordenadas contrastivas, desse modo,
6
Mauri (2008a, p. 145) utiliza a expressão estado de coisas como um hiperônimo de
situações, eventos, processos e ações. Ao longo do trabalho, empregarei o termo no
mesmo sentido.
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têm o papel, segundo o autor, de indicar que as orações estão combinadas
enquanto instâncias do integrador. Na seção 4.3, ilustra-se a noção de
integrador comum a partir das construções contrastivas com agora e now.
3 Material e Metodologia
Dados os objetivos e questões da pesquisa, o viés metodológico
da análise é longitudinal. Para a investigação dos percursos de mudança
atravessados por agora e now, foram constituídos corpora diacrônicos
do português e do inglês o mais similares possível no intuito de prevenir
enviesamentos nos resultados obtidos para cada língua. Essa aproximação
foi buscada a partir de critérios qualitativos e quantitativos, descritos
nesta seção.
No corpus do português, o recorte temporal tem início no século
XVIII e se estende até o XXI; no corpus do inglês, compreende o período
do século XVII ao XXI.7 Na busca pela maior aproximação possível do
quando das mudanças, associei os intervalos de cinquenta anos de cada
século a um estado de língua. O pouco tempo transcorrido do século
XXI foi incorporado à segunda metade do século XX. Desse modo, a
investigação se pauta em um recorte longitudinal que contempla seis
sincronias de análise para o português (XVIII-1, XVIII-2, XIX-1, XIX2, XX-1, XX-2/XXI) e oito para o inglês (XVII-1, XVII-2, XVIII-1,
XVIII-2, XIX-1, XIX-2, XX-1, XX-2/XXI).
Do ponto de vista qualitativo, dois critérios nortearam a
constituição dos corpora: a natureza dialógica dos textos e sua diversidade
tipológica. Conforme Schwenter (2000) e Traugott (2010), contraste é
significado essencialmente dialógico, entendendo-se dialogicidade
como a evocação de diferentes pontos de vista. Ancorada em evidências
empíricas, Traugott (2010) argumenta que novos significados dialógicos
tendem a emergir em contextos caracterizados por dialogicidade
acentuada. Com base na autora, admito que textos favoráveis à marcação
7
A diferença no recorte temporal de ambos os corpora se deve ao fato de que este
trabalho foi desenvolvido no âmbito de uma pesquisa maior (cf. FERRARI, 2018),
que também investigou a emergência de usos de agora e de now como marcadores
discursivos. Os dados mostraram ocorrências de now como marcador já no século
XVIII, o que levou à decisão de um recuo maior no tempo para o corpus do inglês, em
busca dos estágios mais incipientes dessa trajetória.
170
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de múltiplos pontos de vista configuram um lugar propício para a
depreensão de pistas das motivações para o desenvolvimento de agora
e now como juntores contrastivos. A diversidade tipológica, por sua
vez, foi critério considerado relevante para que os resultados não se
restringissem a determinados tipos de texto. Assim, na constituição de
ambos os corpora, foram selecionados textos diversos que favorecem
a configuração de contextos dialógicos. Considerando a importância de
simetria entre os corpora das duas línguas, busquei o quanto possível a
equivalência entre os gêneros textuais. Embora ela não tenha sido sempre
possível, entendo que o critério de natureza dialógica permitiu que a
proximidade dos textos de cada corpus se mantivesse. Os textos que
compõem os corpora diacrônicos compreendem peças teatrais, romances,
cartas pessoais e oficiais, notícias, processos criminais, inquéritos, aulas
universitárias e entrevistas. Tanto os textos do português quanto os do
inglês foram extraídos de bases de dados eletrônicas, elencadas a seguir.
QUADRO 1 – Bancos de dados do português
BDPT
Biblioteca Digital de Peças Teatrais
http://www.bdteatro.ufu.br/
gPD
Grupo de Pesquisas em Dramaturgia
http://www.fclar.unesp.br/#!/pesquisa/grupos-de-pesquisa/dramaturgia-gpd/o-judeu/
PHPP
Projeto História do Português Paulista
http://phpp.fflch.usp.br/corpus
PHPB
Projeto para a História do Português Brasileiro
https://sites.google.com/site/corporaphpb/home
BBgJM
Biblioteca Digital Brasiliana Guita e José Mindlin
http://www.bbm.usp.br
CHPTB
Corpus Histórico do Português Tycho Brahe
http://www.tycho.iel.unicamp.br/corpus/index.html
VarPorT
CDMa
CE-DoHs
oTE
Projeto Análise Contrastiva de Variedades do Português
http://www.letras.ufrj.br/varport/
Coleção Digital Machado de Assis
http://machado.mec.gov.br/
Corpus Eletrônico de Documentos Históricos do Sertão
http://www.tycho.iel.unicamp.br/cedohs/corpora.html
Oficina de Teatro
http://oficinadeteatro.com/
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
TPT
Teatro para Todos
http://www.teatroparatodosufsj.com.br/
NurC
Projeto Norma Linguística Urbana Culta
http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/
PEuL
Programa de Estudos sobre o Uso da Língua
http://www.letras.ufrj.br/peul/
aLIP
Amostra Linguística do Interior Paulista (IBORUNA)
http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/index.php
gCL
Grupo Companhia das Letras
https://www.companhiadasletras.com.br/
PPP
Projeto PorPorpular (Padrões do Português Popular Escrito)
http://www.ufrgs.br/textecc/porlexbras/porpopular/index.php
171
QUADRO 2 – Bancos de dados do inglês
oTa
The Oxford Text Archive
https://ota.ox.ac.uk/
PL
Penn Libraries
digital.library.upenn.edu/
Pg
Project Gutenberg
http://www.gutenberg.org/
Ia
Internet Archive
https://archive.org/
PoB
The Proceedings of the Old Bailey Lond’s Central Criminal Court, 1674 to 1913
https://www.oldbaileyonline.org//
TNP
The Newton Project
http://www.newtonproject.ox.ac.uk/
rrBP
From Revolution to Reconstruction and beyond’ Project
http://www.let.rug.nl/usa/
CLo
The Carlyle Letters Online
http://carlyleletters.dukeupress.edu/
MICasE
BsC
The Michigan Corpus of Academic Spoken English
https://quod.lib.umich.edu/cgi/c/corpus/corpus?page=home;c=micase;cc=micase
The Buckeye Speech Corpus
http://buckeyecorpus.osu.edu/
Além da simetria do ponto de vista qualitativo, busquei também
a simetria quantitativa, por meio de uma distribuição o mais balanceada
possível dos textos tanto entre as diferentes sincronias de análise quanto
172
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entre os diferentes tipos textuais no interior de cada sincronia. Para essa
simetria, o critério adotado foi o número de palavras, sendo definida a
quantia aproximada de 200.000 e 150.000 palavras8 para cada sincronia
no corpus do português e no corpus do inglês, respectivamente. Na
Tabela 1 e na Tabela 2, abaixo, apresento o número de ocorrências de
agora e de now obtido a partir da quantidade de palavras coletada para
cada sincronia.
TABELA 1 – Número de ocorrências de agora por número de palavras
sincronia
Nº de palavras
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/XXI
204.015
204.380
208.540
203.945
208.925
209.830
206
158
140
142
238
259
Nº de ocorrências
TABELA 2 – Número de ocorrências de now por número de palavras
XVII-1
XVII-2
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
Nº de palavras
148.620
150.700
150.540
150.220
149.630 150.210 150.350 150.790
304
229
170
160
Nº de ocorrências
228
XIX-2
164
XX-1
XX-2/
XXI
sincronia
141
146
À luz do modelo de contextos proposto em Diewald (2002), a
análise dos dados envolve a identificação e caracterização, na trajetória
de cada língua, de três tipos de arranjos contextuais: contextos fonte,
em que apenas os significados temporais primitivos de agora e now
estão disponíveis, contextos polissêmicos, em que há convivência entre
os significados fonte e alvo, e contextos alvo, em que apenas o novo
significado, oposição semântica, é acessível. Em virtude da perspectiva
teórica de mudança assumida, o foco da análise incidirá sobre os
contextos de polissemia, em busca dos fatores que predispuseram o
desenvolvimento dos novos juntores contrastivos.
A diferença entre a quantidade de palavras por sincronia em cada corpus se justifica
pela constatação de uma maior frequência de uso de now no inglês do que de agora
no português e não compromete a simetria pretendida entre os dois corpora, tendo
em vista que há similaridade entre eles do ponto de vista qualitativo e que cada um
apresenta equilíbrio interno em termos de distribuição dos textos.
8
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
173
A descrição longitudinal dos contextos conjuga dois vieses de
análise: qualitativo e quantitativo. As análises qualitativas implicam
a descrição das ocorrências de agora e de now em termos de tempo
(contextos fonte), tempo/contraste (contextos polissêmicos) e contraste
(contextos alvo), associando-se cada padrão semântico a correlatos
morfossintáticos que o singularizam. Já as análises quantitativas buscam,
a partir da apuração das frequências de cada tipo de contexto, pistas do
gatilho e da generalização das mudanças, tendo em vista tendências
reconhecidas acerca do papel da frequência, sobretudo dos contextos
de polissemia, para a propagação de novos significados, tendências
que indiciam uma provável correlação entre aumento de tais contextos
e disseminação da mudança (MAURI; RAMAT, 2012; TRAUGOTT;
DASHER, 2002).
4 o processo de constituição de agora e now como juntores
contrastivos
Nesta seção, descrevo os contextos relevantes para a reconstrução
diacrônica dos percursos de constituição de agora e now como juntores
contrastivos. Dada a primazia dos contextos de polissemia para os
objetivos e questões do trabalho, a caracterização dos contextos fonte
e dos contextos alvo é mais breve, sendo dedicada uma análise mais
circunstanciada aos contextos de polissemia entre tempo e contraste.
Os contextos envolvidos na trajetória de agora e aqueles envolvidos
na trajetória de now mostraram-se altamente similares, confirmando as
hipóteses iniciais (cf. seção 1), motivo pelo qual são aqui apresentados
de maneira conjunta.
Nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2, abaixo, é apresentada
a frequência longitudinal dos três padrões semânticos que são
relevantes para as trajetórias de mudança investigadas neste trabalho,
correspondentes aos contextos fonte, fonte/alvo e alvo: tempo, tempo/
contraste e contraste. A Tabela 3 e o Gráfico 1 mostram os dados relativos
à trajetória de agora e a Tabela 4 e o Gráfico 2, os dados relativos à
trajetória de now.
174
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
TABELA 3 – A trajetória de tempo à oposição semântica de agora
em perspectiva longitudinal
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/XXI
Tempo
189/206
(91,7%)
121/158
(76,6%)
124/140
(88,6%)
115/142
(81%)
188/238
(79%)
155/259
(59,9%)
Tempo/Oposição
semântica
17/206
(8,3%)
37/158
(23,4%)
15/140
(10,7%)
24/142
(16,9%)
44/238
(18,5%)
48/259
(18,5%)
Oposição semântica
0/206
(0%)
0/158
(0%)
1/140
(0,7%)
3/142
(2,1%)
6/238
(2,5%)
56/259
(21,6%)
GRÁFICO 1 – A trajetória de tempo à oposição semântica de agora
em perspectiva longitudinal
TABELA 4 – A trajetória de tempo à oposição semântica de now
em perspectiva longitudinal
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/
XXI
XVII-1
XVII-2
XVIII-1
XVIII-2
Tempo
286/304
(94,1%)
205/229
(89,5%)
160/170
(94,1%)
148/160
(92,5%)
207/228 152/164 132/141 119/146
(96%) (92,7%) (93,6%) (81,5%)
Tempo/Oposição
semântica
18/304
(5,9%)
24/229
(10,5%)
10/170
(5,9%)
12/160
(7,5%)
21/228
(4%)
12/164
(7,3%)
9/141
(6,4%)
22/146
(15,1%)
Oposição
semântica
0/304
(0%)
0/229
(0%)
0/170
(0%)
0/160
(0%)
0/228
(0%)
0/164
(0%)
0/141
(0%)
5/146
(3,4%)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
175
GRÁFICO 2 – A trajetória de tempo à oposição semântica de now
em perspectiva longitudinal
As tabelas e os gráficos mostram que os usos temporais tanto de
agora como de now predominam ao longo de todos os estados de língua
analisados. Em ambas as trajetórias, é importante notar sua redução
na última sincronia, ainda mais significativa na trajetória de agora.
Essa redução é acompanhada, no percurso de agora, por um aumento
expressivo dos usos exclusivamente contrastivos e, no percurso de
now, pelo surgimento das primeiras ocorrências de contraste. Os dados
indiciam, nesse sentido, que as construções contrastivas com agora e
com now são relativamente recentes no português e no inglês, sobretudo
as contrastivas com now, que têm uma frequência ainda baixa nos dados
(3,4%). Ainda que baixa, essa frequência – que pode ser resultante da
própria concorrência de now com outros tantos juntores contrastivos – já
permite atestar um processo de mudança em desenvolvimento. No caso
das construções de contraste com agora, os dados também sugerem que
se trata de um processo ainda em desenvolvimento, embora em estágio
provavelmente mais avançado do que as construções com now.
Para os objetivos e questões deste trabalho, mais importante do
que os graus de desenvolvimento das mudanças é o fato de os dados
revelarem construções em mudança, que, portanto, estão sob o alvo de
forças pragmáticas que aqui interessam investigar. Assim, a frequência
longitudinal dos contextos de polissemia entre tempo e contraste é de
grande importância para a identificação de fatores que, há séculos, estão
fornecendo condições para a constituição de agora e now como juntores
contrastivos. Estudos empíricos sugerem a tendência de um aumento dos
176
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
contextos polissêmicos em intervalos de tempo próximos à emergência
das primeiras ocorrências do significado alvo (MAURI; RAMAT, 2012;
RAMAT; MAURI, 2011; TRAUGOTT; DASHER, 2002), o que não se
verifica nas trajetórias atravessadas por agora e now, segundo os dados,
que parecem revelar um papel diferente da frequência de uso para as
mudanças. Conforme se observa nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2,
todos os estados de língua mostram o padrão tempo/oposição semântica,
indicando que, já desde o século XVIII, há, no português e no inglês,
contextos favoráveis à mudança. Desse modo, os dados não mostram
picos elevados de frequência dos contextos polissêmicos em geral, mas
mostram uma constância de tais contextos ao longo do tempo.
A análise qualitativa dos contextos de polissemia, conforme a
seção 4.2, coloca em evidência tipos específicos de contextos polissêmicos
que teriam maior peso para as transformações de forma e significado, de
modo que revela como mais importante do que a frequência longitudinal
de todos os contextos polissêmicos envolvidos nas trajetórias a frequência
longitudinal de arranjos contextuais particulares, que seriam mais
favoráveis à associação de agora e now ao sentido de oposição semântica
através de gerações de falantes/escreventes.
A seguir, apresento a análise qualitativa dos contextos que
exprimem os significados temporais primitivos, dos contextos
polissêmicos e dos contextos exclusivamente contrastivos.
4.1 os contextos temporais primitivos
Nos contextos fonte, agora e now participam, juntamente
com outros dispositivos gramaticais (tal como a morfologia verbal),
da construção de diferentes relações temporais entre o momento da
enunciação e o EsCo descrito. Ambos os advérbios se caracterizam,
assim, por uma polissemia temporal, sendo três as nuanças de tempo
identificadas nos dados: simultaneidade, em que há correspondência
entre o tempo do EsCo enunciado na oração que agora e now integram
e o momento da enunciação; anterioridade imediata, em que agora e
now indiciam proximidade entre um EsCo já finalizado e o momento da
enunciação; e posterioridade imediata, em que agora e now contribuem
para aproximar um EsCo futuro do momento da enunciação. Verifica-se,
dessa forma, que todas as nuanças estão de algum modo ancoradas na
situação de comunicação.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
177
Do ponto de vista morfossintático, agora e now, enquanto
advérbios dêiticos circunstanciais, exibem a flutuação sentencial típica
dos advérbios, podendo ocupar diversas posições na oração e participar de
uma variedade de construções. As ocorrências de (7) a (12) exemplificam
os usos temporais primitivos de agora e now. (7) e (10) ilustram as
construções em que os itens atuam na expressão de simultaneidade
temporal, (8) e (11) ilustram aquelas em que veiculam anterioridade e
(9) e (12) mostram as que expressam posterioridade.
(7) Essa fortuna devo estimar para o melhor acerto da nossa
correspondência; e, porque agora falamos de amor, escuta, Filena,
a frase das melhores expressões. (PTVE18:1, 08, C1)
(8) Isto me faz desesperar! Tu podes negar o que eu vejo e o que
agora te ouvi? (PTVE18:1, 01, C1)
(9) Velhaco insolente, tantas me tens feito, que agora te mandarei
enforcar. (PTVE18:1, 57, C1)
(10) His wife interested me somewhat: in face and in character
she reminded me of one who now lies beneath the ground.
(CACL19:1, 172)
A esposa dele me interessou um pouco: pela aparência e pelo
caráter ela me lembrou de alguém que agora está debaixo da terra.
(11) Craik and I went as far as the extremity of the Regent’s Park; I
have dined and had tea, and now set to work again. (CACL19:1,
301)
Craik e eu fomos até a extremidade do Regent’s Park; eu jantei
e tomei chá, e agora me sentei para trabalhar novamente.
(12) No: not when a Roman slays an Egyptian. All the world will now
see how unjust and corrupt Caesar is. (PTCC19:2, 109)
Não: não quando um romano mata um egípcio. O mundo todo
verá agora o quão injusto e corrupto César é.
4.2 os contextos de polissemia entre tempo e contraste
Os dados revelam uma diversidade de arranjos contextuais que
habilitam polissemia entre tempo e oposição semântica, ao longo de
178
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
todos os estados de língua analisados. Nessa diversidade, foi possível
reconhecer quatro tipos de contextos, que se mostram mais e menos
próximos dos contextos alvo prototípicos (cf. seção 4.3). Proponho que
eles refletem diferentes estágios evolutivos, mais e menos avançados a
depender de sua proximidade em relação aos contextos alvo. Nesta seção,
caracterizo cada tipo de contexto polissêmico encontrado, buscando
mostrar de que maneira cada um contribui para as mudanças. Na seção
5, os contextos aqui descritos são retomados e sistematizados em termos
de estágios de mudança, e avalia-se se a gradualidade identificada entre
eles é apenas de natureza qualitativa, em termos de maior ou menor
conjunto de condições para as mudanças, ou se ela tem correlação com
estados de língua particulares.
Em todos os contextos de polissemia, foi identificada uma mesma
nuança de tempo que é base para a emergência de inferências de contraste
por oposição semântica: sequencialidade temporal. O que leva à distinção
entre quatro tipos de contextos são os fatores semântico-categoriais
(presentes na construção linguística de que agora e now participam) que
habilitam a interpretação de uma relação temporal-contrastiva.
No padrão polissêmico I, as inferências de contraste ainda são
bastante sutis e altamente canceláveis. Admito que aqui a sequencialidade
entre um EsCo anterior e um EsCo posterior ainda não alimenta uma
relação contrastiva de fato, mas uma relação de desigualdade temporal. A
natureza altamente sutil do significado alvo nesse tipo de contexto se deve
ao fato de apenas um dos EsCos que participam da relação sequencial
estar presente na construção linguística que agora e now integram. O
EsCo anterior pode ser, por inferência, recuperado no contexto mais
amplo, que extrapola as fronteiras da construção de que agora e now
fazem parte. Os exemplos (13) e (14) são ilustrativos.
(13) D. Quixote. Com que, vossa mercê é cavaleiro andante? Ora
ajunte- se comigo, e falemos na matéria, que, como professor
dela, estimo muito estas práticas.
Criado*. Enquanto nossos amos lá praticam sobre os seus amores
e valentias, vamos dando à taramela e fazendo pela vida.
Sancho. Meu amigo, agora fico mais consolado nos meus
infortúnios, pois mal de muitos consolo é. Até aqui, cuidava que
só eu era desgraçado, em ser escudeiro de cavaleiro andante;
mas já vejo que vossa mercê nasceu debaixo da minha estrela.
(PTDQ18:1, 78, C2)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
179
(14) SCENE XII.
Lettice. I’m now a Lady indeed. A fine House, fine Cloaths, and
Servants to command. And this Sir John is the finest, handsomest
Gentleman. Not that I care for him, any more than I should for
any Body else, that would but make a Gentlewoman of me.
(PTCB18:1, 54)
Lettice. Eu sou agora uma dama de fato. Uma casa elegante,
roupas elegantes e servos para comandar. E esse senhor John é o
cavaleiro mais elegante e bonito. Não que eu ligue para ele, não
mais do que eu devo ligar para qualquer pessoa que faça de mim
uma dama.
Em (13), é possível inferir, a partir da oração que agora ocupa,
uma relação de desigualdade entre o momento presente, em que o
locutor alimenta uma atitude avaliativa mais positiva em relação a
seu trabalho, e um momento anterior, em que acreditava ser o único
a exercer a atividade profissional em pauta. É importante notar que o
descontentamento prévio do locutor não está explícito na construção
coordenada de que agora participa, podendo ser inferido, sobretudo, pela
associação do valor temporal de agora com o valor de intensificação do
advérbio mais, que indicia diferença por comparação de superioridade.
No contexto mais amplo, a relação de desigualdade que pode ser apenas
inferida na construção que agora integra já se apresenta como uma relação
propriamente contrastiva, a partir da construção coordenada com mas
que aparece na sequência do texto.
Já em (14), a relação de desigualdade se mostra ainda mais
obscura no contexto. A oração que now ocupa inicia uma nova cena em
uma peça teatral, não havendo, assim, contexto linguístico imediatamente
anterior em que poderia haver pistas de um EsCo precedente. Nos
enunciados seguintes, o EsCo anterior também não é explicitado. A oração
que now integra está em relação com todo o contexto anterior da peça,
em que a locutora busca adquirir hábitos de comportamento cultivados
por mulheres de classes sociais mais altas. Now, ao fazer referência ao
momento presente, em que a transformação almejada pela locutora se
completou, alude também, por inferências habilitadas pelo contexto
maior, a todo o intervalo de tempo que antecede a mudança, em que a
locutora se caracteriza por um comportamento distante daquele assumido
como padrão para mulheres da elite social da época. Indeed é traço
180
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
importante no contexto. Segundo Traugott (1995), pode atuar como um
advérbio sentencial de valor adversativo, em que o item “refuta ou um
argumento anterior ou um argumento que se pressupõe estar na mente
do ouvinte”9 (TRAUGOTT, 1995, p. 8, tradução nossa). No contexto em
que está inserido, esse parece ser justamente o papel de indeed, uma vez
que um dos principais aspectos de desenvolvimento da peça é a dúvida
constante acerca da transformação da locutora em uma “lady”. Nesse
sentido, indeed tem o papel de evocar vozes que, sendo pressupostas
pela locutora, colocariam em questão a mudança de seu comportamento.
A partir do padrão polissêmico II, os dois EsCos em relação
sequencial estão explícitos na construção linguística de que agora e now
participam. Nos contextos associados a esse padrão, o principal tipo de
construção, encontrado nos dados, em que se instaura sequencialidade
entre um EsCo anterior e um EsCo posterior se constitui de uma oração
nuclar e uma oração relativa, que pode ser de natureza determinativa
ou explicativa. Os traços contextuais que, invariavelmente, no padrão
polissêmico em foco, alimentam a sequencialidade são a correlação modotemporal entre as orações relacionadas e a marcação explícita de tempo
por agora e now. Os dados exibem duas possibilidades de correlação
modo-temporal, passado-presente ou passado-futuro. Em ambas, agora
e now veiculam sempre tempo presente ou tempo futuro, isto é, sempre
fazem referência ao EsCo que é posterior na relação sequencial, esteja
ele em relação de simultaneidade ou de posterioridade imediata com o
momento da enunciação. Há contextos no padrão polissêmico II em que
se configura uma correlação entre agora e now (que marcam o tempo
posterior) e outras expressões adverbiais, que indicam o tempo anterior, o
que torna a sequencialidade no tempo ainda mais evidente na construção.
Apenas a relação de sequencialidade não é suficiente para
a emergência de inferências de contraste. À desigualdade no tempo
(tempo anterior X tempo posterior), se soma uma desigualdade entre
os EsCos em relação temporal, a partir de elementos contextuais que
permitem reinterpretar a relação temporal como uma relação contrastiva.
Para analisarmos a natureza desses elementos e os demais traços que
caracterizam o padrão polissêmico II, apresento os exemplos de (15) a
(18).
“(…) to refute either an earlier argument, or one presupposed to be in the hearer’s
mind” (TRAUGOTT, 1995, p. 8).
9
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
181
(15) Esta jovem cheia de encantos, que a pouco vos atrahia pela sua
modestia, por suas maneiras doces, mas, graves, e reportadas, por
certo acanhamento pudibundo, e por isso mais gracioso, agora a
vereis desgranhada, como huma Bachante, destemida como huma
furia, ensopada em cantaros d’agua, salpicada de lama, investindo
a todos, e arcando com homens igualmente desassisados, e loucos.
(CAPH19:1, 131, C2)
(16) Na largura do gradeamento da porta, e pelo seu comprimento, se
estende huma Rua, que ao longe vejo adornada em meio, com
hum formoso Obelisco em fôrma pyramidal, o qual logo hiremos
ver , e notar de mais perto. Que maravilhosa mudança vejo eu da
parte da Serra! Efte terreno que eu vira inculto, cuberto de aspero,
rasteiro, e esteril Tojo, agora se mostra a meus olhos ondeando
todo com a larga Seara, e do meio dela brotaõ milhares, e milhares
de viçosas Oliveiras, que aformoseaõ, e enriquecem esta agradável
encosta. (DEQB18:2, 102, C2)
(17) Sure it was the same ill spiritt that posessed Saul which hath
governed mee lattly, of which I am now free I blesse God and
this weeke past have had good health. (CADM17:1, 406)
Certamente era o mesmo espírito doentio que tomou posse de
Saul que tem me governado ultimamente, do qual eu estou agora
livre eu agradeço a Deus e essa semana passada tive boa saúde.
(18) His wife Octavia, Driven from his house, solicits her revenge; And
Dolabella, who was once his friend, Upon some private grudge,
now seeks his ruin. (PTAL17:2, 189)
Sua esposa Octavia, tirada de sua casa, solicita sua vingança;
E Dolabella, que era outrora sua amiga, por conta de algum
ressentimento particular, agora busca sua ruína.
Em todas as construções apresentadas, é possível observar a
morfologia verbal direcionando a uma leitura de sequencialidade entre
a oração que agora e now integram e a outra oração em jogo: atraía X
vereis, em (15); vira X mostra, em (16); has governed X am, em (17);
was X seeks, em (18). Em (15), (17) e (18), há ainda a correlação entre
agora e now com outras expressões adverbiais que explicitam o tempo
anterior, reforçando a leitura de tempo sequencial: há pouco X agora
(15), lately X now (17), once X now (18).
182
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
Nas orações nucleares e nas orações relativas, há expressões
lexicais, ou mesmo predicados inteiros, que adquirem estatuto de opostos
semânticos, em virtude de crenças subjetivas fundamentadas em modelos
de mundo socialmente construídos, que habilitam a interpretação de que
os EsCos em relação sequencial estão também em relação contrastiva.
Em (15), encantos, modéstia, doces, reportadas, pudibundo, gracioso são
nomes que caracterizam o comportamento anterior de esta jovem como
um comportamento socialmente avaliado como “bom”, “direito”. Em
contrapartida, desgranhada e bacante, além de predicados inteiros que
também operam na descrição do comportamento, evocam uma imagem
de desordem, de um comportamento distante daquele esperado de uma
mulher na sociedade da época. Esses nomes atuam como enunciadores
lexicais (DUCROT, 2009), expressões que carregam um ponto de vista
intrínseco a seu significado.
Em (16), também se verifica expressões que funcionam como
enunciadores de ponto de vista. Inculto, áspero, rasteiro e estéril indicam
um cenário de improdutividade, ao passo que viçosas, aformoseiam,
enriquecem, agradável, na oração que agora integra, caminham em
direção argumentativa contrária e sugerem beleza e fertilidade. É
importante notar que uma atitude avaliativa do locutor em relação à
mudança que observa no tempo está explícita no enunciado imediatamente
anterior à construção de que agora participa (que maravilhosa mudança
vejo eu da parte da Serra!).
No exemplo (17), os elementos lexicais que evocam inferências
de oposição entre os EsCos, para além da oposição no tempo, são as
próprias proposições (has governed me e am now free). Modelos de
mundo concebem oposição entre estar sob o controle de algo/alguém
e estar livre, tendendo a avaliar qualquer processo de libertação como
uma mudança positiva.
Em (18), o enriquecimento da relação temporal com inferências
de contraste depende de uma suposição que emerge da oração relativa.
Em diferentes sociedades, existe a crença subjetiva de que amigos
compartilham sentimento de afeição e, por isso, buscam o bem recíproco.
Em vista dessa suposição, modelos de mundo habilitam a interpretação
de que o comportamento atual da personagem em pauta é incompatível
ao comportamento anterior.
É possível observar, a partir dos exemplos analisados, que os
contextos associados ao padrão polissêmico II contêm mais traços
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
183
favoráveis às mudanças do que os contextos caracterizados pelo padrão
polissêmico I, já que os dois EsCos em relação sequencial estão explícitos
na construção linguística que agora e now integram.
Os dados mostram contextos ainda mais favoráveis, em que a
polissemia entre tempo e contraste está expressa através de relações
coordenativas, de modo que são contextos mais próximos dos contextos
alvo. Ao organizarem os EsCos sequenciais em uma construção
coordenada, esses contextos reúnem maior conjunto de condições tanto
para as mudanças de significado, já que se configura, entre as orações
relacionadas, o integrador comum que é típico da relação coordenativa
(cf. seção 2.2), quanto para as mudanças categoriais, pelo fato de que
agora e now passam a integrar uma estrutura binária paratática, que é a
estrutura típica das construções coordenadas em português e em inglês.
Tais contextos, portanto, exibem a ambiguidade tanto semântica quanto
categorial que, segundo Diewald (2002) e Traugott (2012), é essencial
para processos de gramaticalização.
Dentre os contextos em que a relação temporal-contrastiva está
expressa a partir de construções coordenadas, há aqueles em que agora
e now figuram em diferentes posições sentenciais, sempre no segundo
segmento coordenado, e aqueles em que os itens ocupam a posição inicial
desse segmento. Sendo a posição inicial típica de juntores contrastivos
(KORTMANN, 1997; QUIRK et al., 1985), os contextos do segundo
tipo representam um ganho importante para a mudança, no âmbito da
morfossintaxe. Em posição inicial de uma relação coordenativa, admito
que agora e now passam a atuar como advérbios juntivos, adquirindo
traços da categoria alvo. Dessa forma, associo esses dois conjuntos de
contextos aos padrões polissêmicos III e IV, respectivamente.
No padrão polissêmico III, assim como no padrão anterior,
as inferências de oposição semântica têm em sua base uma relação de
sequencialidade temporal que se alia a outros traços do contexto. O fator
crucial para a construção de sequencialidade entre os EsCos é a correlação
modo-temporal que se estabelece entre as orações relacionadas, aqui
através de coordenação. Em muitas ocorrências, expressões adverbiais
que expressam tempo anterior se combinam com agora e now, tornando
a sequencialidade ainda mais explícita. Nos contextos que exibem esse
padrão polissêmico, a relação coordenativa é sinalizada por um juntor
(contrastivo ou não) ou pode também se dar por justaposição, nas
construções com now.
184
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
Os ganhos categoriais que os contextos em foco representam para
as mudanças não se restringem à configuração de uma estrutura binária,
mas também se devem à própria posição de agora e now no interior
da construção coordenada. Embora possam ocupar diferentes posições
na oração de que participam, agora e now sempre integram o segundo
membro da construção coordenada, que, conforme Ducrot (1977), é
reservado, nas construções contrastivas, para o argumento mais decisivo.
De tal maneira, a posposição de agora e now na construção
coordenada se revela um traço morfossintático que coloca em evidência
a substancialidade da nuança temporal que fornece as bases para as
inferências de contraste. Uma vez que agora e now ajudam a constituir
relações de sequencialidade e, nessas relações, indiciam o tempo posterior,
o princípio de iconicidade (HAIMAN, 1985) permite compreender que o
EsCo posterior tenda a ocupar posição posterior também na construção
linguística. Segundo Haiman (1985), a sucessão temporal tende,
nas línguas do mundo, a ser iconicamente representada na estrutura
linguística. Desse modo, a relação temporal fonte das mudanças tem papel
singular não só para as transformações de significado, ao se combinar
com outros elementos contextuais que habilitam sua reinterpretação como
relação contrastiva, mas também para as transformações categoriais, na
medida em que predispõe uma disposição morfossintática de agora e
now que é altamente favorável ao desenvolvimento de funções juntivas.
Os exemplos de (19) a (21) ilustram ocorrências de agora em contextos
que veiculam o padrão polissêmico III, e os exemplos de (22) a (24),
ocorrências de now representativas de tais contextos.
(19) Como o imbú na varzea era o coração do guerreiro branco na terra
selvagem. A amizade e o amor o acompanharão e sostiverão algum
tempo; mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentiu-se
em um ermo. (ROIR19:2, 44, C2)
(20) A primeira operação do affedador he corcovar, ou’ bater o
Canamo: isto se fazia primeiramente à mão e ainda se faz em
alguns lugares; mas em Suffolk servem-se agora de hum moinho,
que levanta dois, e algumas vezes três pezados maços, os quais
cahem fobre o Canamo, que hum homem , ou rapaz conduz à
roda para fer regularmente maçado. (MCMI18:2, 85, C2)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
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(21) E no que toca aos indios naõ digo a Vossamerce nada, pois de tudo
tem noticia que Veviam e[rasurado]morriam Como ereges e agora
ja parecem emparte Christaos, e naõ digo mais porque Vossamerce
como vezinho Sabera detudo melhor de que eu. (CAAI18:1, 74, C1)
(22) At my first coming in, and finding her arms about him, tickling him
it seems, I was half jealous, but now I see my folly. (PTCW17:2,
165)
Na primeira vez que eu entrei e encontrei os braços dela sobre ele,
fazendo cócegas nele parece, eu fiquei com um pouco de ciúmes,
mas agora eu vejo minha estupidez.
(23) When I was working full time even with my child at home just the
frustration of getting home I was so stressed with work and now
being part time I’m so much more relaxed. (CEBC20:2/21, 304)
Quando eu estava trabalhando período integral mesmo com meu
filho em casa só a frustração de chegar em casa eu ficava tão
estressado com o trabalho e agora sendo meio período eu estou
tão mais relaxado.
(24) James Hargrave. I am the landlord of the Crown at Kitts Inn. I
have known Mr. White about a year and three quarters. He did
live next door to me: he lives now in our parish, the parish of
South Mims. (PROB18:2,25)
James Hargrave. Eu sou o proprietário do Crown em Kitts Inn.
Eu conheço o senhor White há mais ou menos um ano e nove
meses. Ele realmente morava na casa vizinha: ele mora agora em
nossa paróquia, a paróquia de South Mims.
Os exemplos mostram que diferentes mecanismos de junção
podem atuar nos contextos associados ao padrão em análise. Além
de mas e e, no português, e de but e and, no inglês, outros juntores
aparecem nos dados, tais como porém, entretanto, whereas e however.
Entendo que os contextos que exibem juntores contrastivos explicitando
a relação coordenativa são os contextos do padrão polissêmico III que
mais favorecem a assimilação, por agora e now, do significado de
contraste, visto que, ao estar presente na construção uma marca explícita
de oposição semântica, esse significado não é apenas pragmático, mas
está de fato codificado no contexto. Os exemplos (19), (20) e (22)
186
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
são representativos. Em (19) e (22), soma-se à presença de um juntor
contrastivo a contiguidade de agora e now a esse juntor, o que se mostra
uma condição ainda mais favorável à associação com o significado alvo,
pois a proximidade morfossintática levaria a uma proximidade conceitual,
no sentido de que tornaria mais evidente a afinidade semântica entre
tempo e contraste. Nas construções em que a relação coordenativa é
sinalizada por e, em português, ou por and, no inglês, tal como vemos em
(21) e (23), e nas construções em que há coordenação por justaposição,
como em (24), o valor de oposição semântica tem novamente estatuto
pragmático e sua interpretação é altamente dependente do contexto.
Nos contextos em que juntores contrastivos explicitam a relação
de coordenação, a relação de sequencialidade temporal que agora e
now ajudam a veicular ainda é significado saliente na construção, pois
a relação contrastiva que o juntor explicita não se restringe apenas aos
EsCos, mas é também pautada nos intervalos de tempo em que cada EsCo
se desenvolve. Isso porque o contraste se instaura, nesses casos, a partir
da comparação entre EsCos em diferentes tempos. A relação temporal,
portanto, ainda é um dos pilares da relação contrastiva.
Em (19), ambas as orações em coordenação descrevem o modo
como um personagem se sentia durante algum tempo, no passado, e
como se sente agora, no momento presente. As circunstâncias temporais
são essenciais para que a relação contrastiva seja plausível, na medida
em que, no contexto, a oposição entre estados afetivos encontra
justificativa em diferenças entre as circunstâncias de cada momento: no
momento anterior, o indivíduo desfrutava da companhia de familiares,
ao passo que, no momento posterior, as circunstâncias são diferentes,
caracterizando-se pela ausência da família. Em (20), ambas as orações
tratam do método utilizado para a fragmentação do cânhamo, cada uma
descrevendo o método aplicado em determinado intervalo de tempo. A
oposição entre realizar o processo manualmente e através de um moinho
está entrelaçada com a oposição entre tempos. Em (22), por sua vez,
está em jogo o comportamento do locutor em relação a uma mesma
situação, mas em diferentes períodos de tempo, de modo que a oposição
temporal é fundamental para a legitimidade do contraste entre os EsCos.
Os exemplos mostram, assim, que, nos contextos em análise, apesar de
já existirem juntores contrastivos tornando explícito o significado alvo,
agora e now ainda têm papel importante para sua expressão, por estarem
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
187
entre os elementos contextuais que fomentam a relação sequencial, que,
por sua vez, é um dos componentes da relação contrastiva.
Em (21) e (23), construções em que a relação coordenativa está
sinalizada pelos juntores e (português) e and (inglês), a interpretação de
contraste é mais dependente do contexto pelo fato de que tais juntores
não têm semântica contrastiva, sendo juntores multifuncionais que, a
depender de traços contextuais, são habilitados à expressão de contraste.
Em (21), a chave para a leitura contrastiva, a partir da relação temporal,
está nos nomes hereges e cristãos, que, sobretudo no contexto religioso,
são concebidos como instâncias de oposição. Considerando os objetivos
de catequização dos índios, é provável que entrem na constituição do
contraste atitudes avaliativas em relação à mudança de hereges para
cristãos, que pode ser compreendida como uma espécie de progresso.
Em (23), observa-se um contexto, muito produtivo nos dados,
em que o intervalo de tempo anterior é codificado por uma oração com
valor adverbial (when I was working full time). As inferências de oposição
podem ser evocadas sobretudo a partir dos termos stressed e relaxed, que,
atuando como enunciadores lexicais, veiculam significados socialmente
concebidos como contrastivos. Verifica-se, nesse exemplo, paralelismo
semântico e morfossintático, traço dos contextos polissêmicos que
se mostrou frequente nos dados, em todos os padrões de polissemia.
Diversos estudos mostram a presença de paralelismos como um traço
contextual favorável à emergência de contraste por oposição semântica
(cf., por exemplo, LONGHIN, 2016; LONGHIN; SONCIN, 2018;
MAURI; RAMAT, 2012), já que essa nuança se baseia em pares de
opostos semânticos que tendem a ser dispostos de maneira paralela em
cada oração (LAKOFF, 1971). No exemplo, os paralelismos estão na
presença de orações semanticamente equivalentes no início de ambos os
segmentos coordenados (when I was working full time e being part time)
e na constituição das orações nucleares de cada segmento, que contêm o
mesmo sujeito (I), o mesmo verbo (be, com diferentes flexões em cada
segmento para a codificação da sequencialidade) e sintagmas adjetivais
similares, que se iniciam pelo mesmo advérbio intensificador (so) e
que têm como núcleo nomes pertencentes ao mesmo campo semântico
(stressed e relaxed).
Na construção em (24), em que a coordenação se estabelece por
justaposição e, portanto, o contraste é altamente pragmático, o paralelismo
é traço fundamental no contexto para a emergência de inferências de
188
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oposição. Ambas as orações justapostas exibem o mesmo sujeito (he),
a mesma forma verbal (live, com diferentes flexões contribuindo para
marcação de tempo sequencial) e complementos circunstanciais de
significado locativo, que se configuram nos principais elementos do
contexto que evocam inferências do significado alvo (next door to me
X in our parish).
Em um último tipo de contexto polissêmico encontrado nos
dados, que configura o padrão polissêmico IV, identifica-se, como já
mencionado, o maior conjunto de condições semântico-pragmáticas e
morfossintáticas para o desenvolvimento de agora e now como juntores
contrastivos, na medida em que há uma condição ainda mais propícia
à reanálise categorial: agora e now encabeçam o segundo membro da
relação coordenativa e, portanto, ocupam a posição típica de juntor.
Do ponto de vista do significado, as inferências de contraste emergem,
assim como nos padrões anteriores, da conjugação de uma relação de
sequencialidade temporal com outros traços contextuais que levam à
interpretação de opostos semânticos, instaurando-se polissemia entre
tempo e contraste em uma construção coordenada. De (25) a (28),
observam-se exemplos representativos.
(25) Noutro tempo ninguém se retirava dos amigos, sem que dissesse
adeus. agora é moda sairmos dos congressos em segredo.
(POCC18:2, 44, C2)
(26) Os teus ataques me honram muito. O senhor Torteroli tambem
não te vê. Quando elle corrigia os teus escriptos era bom. agora
o despresou, é bandalho. Ladra rafeiro, que nenhum homem de
bem te ouve. (CAPP19:2, 148, C2)
(27) Gonzallo. I remember You did supplant your Brother.
Prospero. True: And looke how well my Garments sit vpon me,
Much feater then before: My Brothers seruant’s Were then my
fellowes, now they are my men. (PTTT17:1, 228)
Gonzallo. Eu lembro que você realmente suplantou seu irmão.
Prospero. Verdade: E olhe como minhas roupas ficam bem em
mim, muito melhores do que antes: Os servos de meu irmão eram
meus companheiros, agora eles são meus homens.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
189
(28) Corrig Myles, you have come down in the world lately; a year
ago you were a thriving horse-dealer, now you are a lazy, ragged
fellow. (PTCB19:2, 129)
Corrig Myles, você decaiu no mundo ultimamente; um ano atrás
você era um próspero comerciante de cavalos, agora você é um
sujeito preguiçoso, maltrapilho.
Em (25), as orações relacionadas focalizam comportamentos a
partir de um mesmo viés: a maneira de se retirar de encontros com amigos.
Esse é o integrador comum (LANG, 2000) que subjaz a relação de
coordenação em foco. O que está em oposição são tanto comportamentos
quanto intervalos temporais. As inferências de oposição semântica, nessa
construção, são fortemente baseadas no contexto pragmático, referente às
práticas sociais. É importante observar a contribuição dos paralelismos
presentes na construção para a interpretação contrastiva. Ambas as orações
se iniciam com expressões adverbiais que abrem o quadro temporal em
que cada comportamento é observado (noutro tempo/agora). Embora
as formas verbais não sejam as mesmas, seus significados pertencem ao
mesmo campo semântico e têm como argumento sintagmas que fazem
referência a encontros entre pessoas (dos amigos/dos congressos). Ambas
contêm, ainda, expressões adverbiais que exprimem o modo de se retirar
dos eventos (sem que dissesse adeus/em segredo).
Em (26), os paralelismos têm novamente papel relevante. São
colocadas em oposição atitudes avaliativas de um indivíduo em diferentes
intervalos de tempo. As orações que iniciam cada segmento coordenado
têm valor temporal e apresentam circunstâncias que justificam cada
avaliação. Em cada segmento, segue as circunstâncias temporais a atitude
avaliativa do indivíduo em pauta. A correspondência entre as formas
verbais é mais um aspecto de paralelismo, e os nomes bom e bandalho
evocam pontos de vista, configurando-se, assim, em enunciadores lexicais
(DUCROT, 2009). Entram em jogo não apenas as avaliações do indivíduo
que está sendo referido pelo locutor, mas também atitudes avaliativas
do próprio locutor, que faz um julgamento negativo da mudança de
opiniões descrita.
(27) e (28) são construções que habilitam oposições similares,
visto que, em ambas, são colocados em contraste estatutos sociais que se
modificam de um momento anterior para um momento posterior. Em (27),
190
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
a oposição estabelecida entre fellows e men não indica apenas a mudança
da relação social entre os homens em questão e o locutor (de amigos
do locutor a seus servos), mas sobretudo a mudança de estatuto social
do próprio locutor. A construção exibe paralelismo entre os enunciados
em coordenação: os sujeitos são correferenciais, ambos os segmentos
apresentam o verbo be (sendo suas diferentes flexões em cada segmento,
were X are, fator importante para a relação sequencial) e os predicativos
do sujeito são introduzidos por my. Os únicos aspectos de distinção entre
os dois segmentos residem justamente nos circunstanciais de tempo (then
X now) e nos nomes que caracterizam my brother’s servants (fellowes X
men). Em (28), a oposição no tempo (a year ago X now) também se alia
à oposição entre estatutos sociais (horse-dealer X lazy, ragged fellow),
havendo correspondência entre os sujeitos das orações (you) e a forma
verbal (be).
Nos exemplos (25), (27) e (28), é possível observar que a exclusão
de agora e now implicaria em um comprometimento da relação entre as
orações, o que parece representar evidência do papel juntivo dos itens
em tais contextos, somado a seu papel adverbial primitivo.
Nesta seção, foram descritos os contextos que disparam
polissemia entre tempo e contraste e que são, portanto, substanciais para
o desenvolvimento de agora e now como juntores contrastivos. Verificase que, a partir dos contextos correspondentes ao padrão polissêmico II,
agora e now participam de construções que habilitam a interpretação de
dois pares de opostos semânticos, um concernente a intervalos temporais,
que abrangem sempre um tempo anterior e um tempo posterior, e outro
concernente a EsCos, que se associam aos dois intervalos temporais em
jogo e se tornam, na construção, instâncias de oposição, via elementos do
contexto linguístico e do contexto pragmático. Agora e now contribuem
para o preenchimento de um dos pares da oposição, aquele referente
aos intervalos temporais, indiciando sempre o momento posterior da
relação sequencial. Apesar dessa característica comum a todos os tipos
de contextos polissêmicos, foi possível identificar diferentes padrões do
significado temporal-contrastivo, a partir da maior ou menor proximidade
dos diferentes tipos em relação aos contextos alvo prototípicos.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
191
4.3 os contextos contrastivos com agora e now
Nas construções de contraste prototípicas, os significados
temporais de agora e now são bloqueados pelo arranjo contextual, e
apenas uma interpretação em termos de contraste está disponível. Como
é típico das manobras contrastivas, segundo Schwenter (1999) e Mauri
(2008a), essas construções envolvem uma comparação, que evidencia
a forte presença da perspectiva do falante/escrevente na formulação de
relações contrastivas. Conforme Mauri (2008a, p. 160), essas relações
se caracterizam pela combinação de dois EsCos coexistentes com foco
em suas propriedades conflitantes, de modo a compará-los pelo viés de
suas diferenças. Schwenter (1999, p. 126) concebe contraste como uma
noção não estritamente linguística, mas como uma habilidade cognitiva
mais geral que alimenta a percepção de diferença entre duas entidades
que são comparáveis em alguma dimensão.
A comparação subjacente às relações contrastivas está entrelaçada
com outra característica que também é típica das construções de contraste
com agora e now e que fornece pistas acerca de seu modo de composição.
Comparações implicam a análise de dois ou mais elementos à luz de um
parâmetro comum, a partir do qual semelhanças ou diferenças entre eles
são destacadas. Lang (1984, 2000) argumenta que orações coordenadas
em geral, o que inclui orações em coordenação contrastiva, compartilham
um integrador comum, que pode ser entendido como o elo de sentido
existente entre as duas orações (cf. seção 2). É à luz desse integrador que,
nas construções contrastivas com agora e now, assim como nas construções
contrastivas prototípicas, uma comparação entre EsCos se estabelece.
A nuança contrastiva tradicionalmente conhecida como oposição
semântica, conforme Lakoff (1971) e Mauri (2008a), é habilitada
pela percepção de alguma incompatibilidade entre os enunciados em
relação, indiciada por expressões que, na construção, ganham o estatuto
de antônimos semânticos. Lang (2000) apresenta questionamentos
à abordagem consensual do contraste por oposição semântica,
particularmente no que diz respeito à concepção de que se trata de um
contraste fundamentalmente baseado em predicados constituídos de
opostos semânticos. O autor postula10 que predicados antônimos não
10
Lang (2000) elabora os pressupostos para compreensão de contraste a partir da
análise das construções contrastivas com aber e com but, do alemão e do inglês,
respectivamente, correspondentes em português ao juntor mas.
192
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
são tão decisivos, como em geral se admite, para esse tipo de contraste e
argumenta que o fator principal que o sustenta é uma suposição que está
explícita em contexto prévio ou que pode ser inferida a partir dele. À
maneira de Lang, entendo que a formulação de oposição semântica está
ancorada em suposições derivadas da percepção e avaliação subjetiva
dos falantes/escreventes, que concebem relações de oposição, não préexistentes no mundo real.
Os exemplos (29) e (30) ilustram, respectivamente, as construções
de contraste com agora e as construções de contraste com now que
veiculam oposição semântica.
(29) Doc.: [mas] estragô(u) muito as motos?
Inf.: as duas motos ficô(u) qua::se em oitocentos reais a minha e
a dele mas a dele do que a minha... que a dele... estragô(u) bem
mais a minha só foi a parte da frente que teve que alinhá::(r)...
um espelho que teve que trocá::(r)... num foi quase nada só
alinhamento e::... uns negocinho da roda... agora a dele estragô(u)
bastante. (TFII20-2/21, 410, C2)
(30) S2: You used to get all these reprint requests, they’ve all
disappeared because of email and the rest of it?
S1: Most people xerox stuff, now I get stuff from overseas.
L2: Você costumava atender a todos os pedidos de reimpressão,
eles todos desapareceram por conta do email e de tudo o mais?
L1: A maioria das pessoas tira cópia dos materiais, agora eu os
trago do exterior. (UNMI20:2/21)
Em (29), o parâmetro comum da comparação reside em danos
causados em veículos envolvidos em um acidente. Esse é, portanto, o
integrador comum compartilhado pelas orações em relação, o elo de
sentido que legitima a junção. Sob o viés desse integrador comum,
configuram-se, a partir da avaliação subjetiva do locutor, dois pares de
opostos: a minha X a dele/poucos danos X muitos estragos. Em (30),
o integrador comum que é base para a comparação que alimenta o
contraste está em maneiras de se obter determinado material de trabalho.
Novamente estão em jogo dois pares de opostos: most people X I e xerox
stuff X get stuff from overseas.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
193
A constatação de um integrador comum a partir do qual uma
comparação se consolida, com foco em propriedades conflitantes, é
indício de que, em termos das relações de significado, as construções de
contraste com agora e now se aproximam das construções coordenadas.
Do ponto de vista da morfossintaxe, essas construções também exibem
características que as aproximam da arquitetura estrutural típica de
construções coordenadas. Como se observa em (29) e (30), agora e now
mobilizam em tais construções uma estrutura binária, na qual encabeçam
o segundo membro da coordenação. Nesse sentido, tanto em termos de
forma quanto em termos de significado, as novas construções de contraste
com agora e now parecem estar caminhando em direção a um modo
coordenativo de composição, que investigo em outro trabalho.
5 Estágios de mudança à luz dos contextos condicionadores
A seção 4.2 mostrou a diversidade de contextos polissêmicos
encontrada nos dados e discutiu a maior ou menor proximidade dos
diferentes contextos em relação aos contextos alvo prototípicos. Proponho
que os diferentes arranjos contextuais identificados refletem diferentes
estágios de mudança e que aqueles mais próximos dos contextos alvo
correspondem a estágios evolutivos mais avançados. Foi também
mostrado que os contextos polissêmicos se desdobram em contextos que
fornecem condições apenas para as mudanças de significado e contextos
que somam condições morfossintáticas às condições de significado,
em conformidade com o modelo de contextos proposto por Diewald
(2002). Tendo em vista essa distinção e todos os contextos envolvidos
nos percursos de mudança atravessados por agora e por now, apresento,
no Quadro 3, abaixo, uma proposta de reconstrução diacrônica para tais
percursos, à luz da correlação entre contextos e estágios evolutivos e dos
tipos contextuais sugeridos pelo modelo da autora.
194
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
QUADRO 3 – Estágios evolutivos das mudanças atravessadas por agora e now
Tipo
contextual
Contextos
originais
Estágio
Características
Exemplo
Agora e now atuam como advérbios
circunstanciais que expressam relações
temporais entre EsCos e o momento da
enunciação, podendo ocupar diferentes
posições sentenciais.
Essa fortuna devo estimar
para o melhor acerto da nossa
correspondência; e, porque
agora falamos de amor, escuta,
Filena, a frase das melhores
expressões. (18:1)
_________
His wife interested me
somewhat: in face and in
character she reminded me of
one who now lies beneath the
ground. (19:1)
Estágio I
Contextos
untypical
Estágio II
O contexto maior de que agora e now
fazem parte habilita inferências sutis de
desigualdade entre um EsCo que ocorre
no momento referido pelos itens e um
EsCo ocorrido em momento anterior.
Apenas um dos EsCos está localmente
codificado.
Maldito de todos os diabos,
agora estás mudo? Dize-lhe
alguma cousa, com que se
desenfade e se alegre. (18:1)
O contexto dispara inferências de
contraste entre dois EsCos explícitos
na construção linguística de que agora
e now fazem parte. Configura-se uma
relação de sequencialidade temporal
entre os dois EsCos, e elementos do
contexto (tais como enunciadores
lexicais) indiciam oposição entre eles.
Esta jovem cheia de encantos,
que a pouco vos atrahia
pela sua modestia, por suas
maneiras doces, mas, graves,
e reportadas, por certo
acanhamento pudibundo, e por
isso mais gracioso, agora a
vereis desgranhada, como huma
Bachante, destemida como
huma furia (...). (19:1)
I’m now a Lady indeed. A
fine House, fine Cloaths, and
Servants to command. And
this Sir John is the finest,
handsomest Gentleman. (18:1)
And Dolabella, who was once
his friend, Upon some private
grudge, now seeks his ruin.
(17:2)
195
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
Estágio III
A polissemia entre tempo e contraste
se manifesta através de uma relação
coordenativa entre as orações que
expressam os EsCos em relação
sequencial, de modo que há ganhos
semântico-pragmáticos, pois agora e
now ajudam a constituir uma relação
de oposição baseada em um integrador
comum, e ganhos morfossintáticos,
uma vez que participam de uma
estrutura binária e paratática, ocupando
nessa estrutura o segundo membro da
coordenação, que é justamente o mais
decisivo nas manobras contrastivas.
Noutro tempo ninguém se
retirava dos amigos, sem que
dissesse adeus. agora é moda
sairmos dos congressos em
segredo. (18:2)
Estágio IV
O contexto, assim como o anterior,
apresenta o significado temporalcontrastivo expresso em construção
coordenada, mas há aqui uma condição
singular para as mudanças: agora
e now não só integram o segundo
membro coordenado, mas também o
encabeçam, ocupando a posição típica
de juntores. Trata-se, portanto, do
contexto mais favorável à reanálise
semântico-categorial.
Passam a existir contextos que
bloqueiam a leitura temporal e são
compatíveis apenas com o novo
significado (oposição semântica). Esses
contextos coexistem com os contextos
originais, de modo que se configuram
restrições contextuais específicas para
significado fonte e para significado
alvo.
Agora como na época do
inverno a gente consegue,
vamos assim dizer, que a
orquídea pegue, agora a flor,
muito raro, é muito difícil,
inclusive pela doença e pela
formiga também.
Contextos
critical
Contextos
isolating
Estágio V
A amizade e o amor o
acompanharão e sostiverão
algum tempo; mas agora longe
de sua casa e de seus irmãos,
sentiu-se em um ermo. (19:2)
When I was working full time
even with my child at home just
the frustration of getting home
I was so stressed with work
and now being part time I’m so
much more relaxed. (20:2/21)
My Brothers seruant’s Were
then my fellowes, now they are
my men. (17:1)
Most people xerox stuff, now I
get stuff from overseas.
Como discutido, a identificação de quatro tipos de contextos
polissêmicos, conforme expostos em 4.2, sugere que desempenham
diferentes papeis nas mudanças de agora e de now, a depender de suas
propriedades de forma e de significado. Considerando a questão maior
196
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
deste trabalho, que está em reunir evidências do papel dos contextos e da
polissemia no processo de constituição de novos juntores contrastivos,
foi apurada a frequência longitudinal dos contextos de polissemia
correspondentes aos estágios II, III e IV, conforme o Quadro 3, que são
aqueles que contêm dois EsCos, explícitos na construção, em relação de
sequencialidade, com elementos que disparam inferências de oposição
entre eles. Vimos que há uma gradualidade entre tais contextos em
termos de maior peso para as mudanças, do ponto de vista qualitativo.
A apuração de sua frequência longitudinal buscou analisar se também é
possível identificar aqueles que teriam maior peso nas trajetórias do ponto
de vista quantitativo, no sentido de que, sendo mais frequentes ao longo
do tempo, teriam sido mais favoráveis à associação de agora e now com
o novo significado. A Tabela 5 e a Tabela 6 apresentam, respectivamente,
a frequência dos contextos correspondentes aos estágios II, III e IV na
trajetória de agora e a frequência de tais contextos na trajetória de now.
TABELA 5 – Frequência longitudinal dos estágios contextuais favoráveis
à emergência das construções de contraste com agora
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/XXI
Estágio II
10/17
(58,8%)
11/37
(29,7%)
7/15
(46,7%)
11/24
(45,8%)
08/44
(18,2%)
10/48
(20,8%)
Estágio III
5/17
(29,4%)
09/37
(24,3%)
3/15
(20%)
6/24
(25%)
20/44
(45,4%)
14/48
(29,2%)
Estágio IV
2/17
(11,8%)
17/37
(46%)
5/15
(33,3%)
7/24
(29,2%)
16/44
(36,4%)
24/48
(50%)
TABELA 6 – Frequência longitudinal dos estágios contextuais favoráveis
à emergência das construções de contraste com now
XVII-1
XVII-2
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/
XXI
Estágio II
2/16
(12,5%)
4/24
(16,7%)
3/10
(30%)
3/12
(25%)
6/20
(30%)
1/12
(8,3%)
1/9
(11,1%)
5/22
(22,7%)
Estágio III
11/16
(68,7%)
19/24
(79,2%)
5/10
(50%)
9/12
(75%)
10/20
(50%)
9/12
(75%)
7/9
(77,8%)
14/22
(63,7%)
Estágio IV
3/16
(18,8%)
1/24
(4,1%)
2/10
(20%)
0/12
(0%)
4/20
(20%)
2/12
(16,7%)
1/9
(11,1%)
3/22
(13,6%)
197
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
Verifica-se nas tabelas que, em ambas as trajetórias, os três
estágios contextuais em pauta estão presentes em todos os estados
de língua analisados. Isso revela que a gradualidade atestada entre
eles não é acompanhada por uma progressão temporal, isto é, não há
correspondência entre estágios contextuais polissêmicos e intervalos
de tempo particulares. No percurso de agora, é notável um aumento
importante dos contextos critical associados ao estágio IV (os que
reúnem maior conjunto de condições para as mudanças) de XVIII-1 para
XVIII-2. A partir de XVIII-2, entretanto, a frequência de tais contextos
é bastante variável. São também variáveis as frequências dos contextos
associados aos estágios II e III, nessa trajetória. Já no percurso de now,
apesar de também haver alta variabilidade nas frequências dos três
estágios contextuais, é possível observar uma regularidade: em todas as
sincronias, o tipo contextual mais frequente é aquele associado ao estágio
III, que já apresenta a polissemia tempo/contraste expressa a partir de
relações coordenativas.
Levando-se em consideração que os padrões polissêmicos III e IV
são similares, já que ambos se caracterizam por agora e now participando
de construções coordenadas que veiculam tempo/contraste, distinguindose apenas pela posição inicial de agora e now no padrão IV, delineia-se
uma via de análise que permite propor hipóteses explicativas sobre o papel
dos contextos na emergência de construções de junção contrastiva com
agora e now. Agregando as frequências dos contextos correspondentes
aos estágios III e IV, conforme as Tabelas 7 e 8, abaixo, constata-se um
importante fato de mudança: os contextos critical (estágios III e IV) são
mais frequentes do que os contextos untypical (estágio II) ao longo do
tempo em ambos os percursos de mudança.
TABELA 7 – Frequência dos contextos untypical e critical na trajetória de agora
XVIII-1
XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/
XXI
Untypical
(estágio II)
10/17
(58,8%)
11/37
(29,7%)
7/15
(46,7%)
11/24
(45,8%)
10/44
(22,7%)
11/48
(22,9%)
Critical
(estágios III e IV)
7/17
(41,2%)
26/37
(70,3%)
8/15
(53,3%)
13/24
(54,2%)
34/44
(77,3%)
37/48
(77,1%)
198
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
TABELA 8 – Frequência dos contextos untypical e critical na trajetória de now
XVII-1
XVII-2
XVIII-1 XVIII-2
XIX-1
XIX-2
XX-1
XX-2/
XXI
Untypical
(estágio II)
2/16
4/24
(12,5%) (16,7%)
3/10
(30%)
3/12
(25%)
6/20
(30%)
1/12
(8,3%)
1/9
5/22
(11,1%) (22,7%)
Critical
(estágios III e IV)
14/16
20/24
(87,5%) (83,3%)
7/10
(70%)
9/12
(75%)
14/20
(70%)
11/12
8/9
17/22
(91,7%) (88,9%) (77,3%)
Como mostram as tabelas, na trajetória de agora, apenas no
primeiro estado de língua analisado os contextos untypical têm frequência
maior do que os contextos critical. Já na trajetória de now, em todos os
estados de língua, os contextos critical têm frequência consideravelmente
maior.
Diante disso, entendo que os percursos de mudança experimentados
por agora e now mostram uma via diferente para a generalização das
inferências do novo significado. Conforme sinalizado na seção 4, estudos
empíricos verificam que um aumento dos contextos polissêmicos em
geral tende a estar associado à generalização de inferências e propagação
do novo significado na comunidade linguística. Nas mudanças de agora
e now, conforme vimos nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2, não se
observam picos significativos dos contextos polissêmicos em geral,
de modo que parece ter maior peso, nessas instâncias, a constância da
polissemia ao longo do tempo. Para além disso, o desdobramento dos
contextos de polissemia encontrados nos dados em diferentes tipos de
padrões polissêmicos, aliado à análise da frequência longitudinal dos
tipos mais relevantes para as mudanças (II, III e IV), sugere que, nos
processos aqui investigados, têm maior peso, tanto de um ponto de vista
qualitativo quanto quantitativo, os contextos que aliam fatores semânticopragmáticos favoráveis às mudanças a fatores morfossintáticos. As
evidências mostradas pelos dados, portanto, vão ao encontro da hipótese
formulada por Traugott (2012) de que, em processos de gramaticalização,
têm maior relevância contextos que agregam condições pragmáticas,
semânticas e estruturais.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
199
Considerações Finais
À luz da análise das mudanças experimentadas pelas construções
com agora e pelas construções com now, é relevante retomar as questões
de pesquisa que nortearam o trabalho. A questão maior esteve em reunir
evidências do papel dos contextos e da polissemia no processo de
constituição de novos juntores contrastivos. As mudanças atravessadas
por agora e now, conforme o que mostram os dados investigados, ao
corroborarem Traugott (2012), sugerem um papel singular dos contextos
de polissemia no processo de constituição de novos juntores contrastivos:
se esse processo envolve gramaticalização, é mais provável que tenham
maior peso, qualitativa e quantitativamente, os contextos que fornecem
tanto condições para a emergência de inferências de contraste quanto
condições para a reanálise categorial do item em mudança como juntor.
No âmbito dessa questão maior, três questões mais específicas
foram perseguidas ao longo do trabalho (cf. seção 1). Para a questão
(1), que buscou respostas para como os contextos favoreceram o
desenvolvimento de construções de contraste similares no português e
no inglês, a análise mostrou que, em ambas as línguas, atuaram tipos
contextuais similares e que, dentre eles, em ambas as trajetórias tiveram
maior peso, tanto qualitativa quanto quantitativamente, contextos que não
apenas disparam inferências de oposição semântica, mas que também
favorecem a reorganização morfossintática de toda a construção de que
agora e now participam em uma construção coordenada e a reanálise de
agora e now como juntores contrastivos.
Para a questão (2), que buscou reconhecer aspectos de
singularidade do significado fonte que teriam sido decisivos para a
emergência, particularmente, da nuança de oposição semântica, os
dados mostraram que se alia a outros traços contextuais e alimenta
inferências de oposição a nuança de sequencialidade temporal, em ambos
os percursos de mudança. A relação sequencial entre EsCos instaura
uma oposição entre tempos, que é acompanhada pela oposição entre os
EsCos. Isso pode contribuir para maior compreensão das similaridades
entre arranjos contextuais que levaram a trajetórias de mudança similares.
Traugott e Dasher (2002, p. 17) postulam que, se línguas diferentes
compartilham estruturas conceituais similares,11 inferências convidadas
Os autores definem estruturas conceituais como estruturas de significado altamente
abstratas e relativamente estáveis na espécie humana (tais como MOVIMENTO,
LUGAR, TEMPO, CONDIÇÃO) (TRAUGOTT; DASHER, 2002, p. 7).
11
200
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020
similares podem surgir. Nesse sentido, proponho que o fato de tanto
agora como now estarem com frequência, em suas respectivas línguas,
associados a estruturas conceituais de tempo similares (conforme a seção
4, que mostrou que ambos são amplamente utilizados em relações de
sequencialidade temporal, sempre fazendo referência a um momento
posterior) contribui para a configuração de contextos similares, que
são gatilho para inferências convidadas de oposição semântica e,
consequentemente, para a associação de ambos a essa nuança contrastiva.
Dessa forma, o significado temporal que alimentou as mudanças também
ajuda a compreender, no âmbito da questão (1), a contribuição dos
contextos para a emergência de construções de contraste similares.
Por fim, para a questão (3), o trabalho mostrou que estágios
evolutivos similares se delineiam a partir dos contextos atuantes em cada
trajetória e que, em ambos os percursos, todos os estágios de polissemia
estão presentes em todos os estados de língua analisados, não havendo
correlação entre estágios contextuais e intervalos de tempo particulares.
Em ambas as histórias de mudança, foram atestados cinco estágios
evolutivos, distribuídos em contextos untypical, critical e isolating, em
conformidade com o modelo de contextos proposto por Diewald (2002).
Nessa perspectiva, o trabalho aponta para um outro papel da
frequência de uso na mudança e, por consequência, para uma outra via de
generalização do novo significado. Para além do aumento expressivo da
frequência dos contextos polissêmicos em geral, há também evidências,
nas instâncias que foram investigadas, do favorecimento da generalização
a partir da constância, ao longo de vários estados de língua, de tipos
polissêmicos específicos, aqueles que condicionariam a gramaticalização
propriamente dita.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
a microestrutura em verbetes da área da Linguística
Microstructure in entries within the field of Linguistics
Guilherme Fromm
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), Uberlândia, Minas Gerais / Brasil
guifromm@ufu.br
https://orcid.org/0000-0001-5654-0135
Márcio Issamu Yamamoto
Universidade Federal de Goiás, Regional Jataí (UFG/REJ), Jataí, Goiás / Brasil
marcioiy@ufg.br
https://orcid.org/0000-0001-9792-8187
resumo: A Lexicologia, a Lexicografia, a Terminologia e a Terminografia, todas
subáreas da Linguística, abarcam os estudos teóricos e a produção de dicionários,
de vocabulários e de glossários. Este artigo objetiva o estudo da microestrutura de
verbetes de especialidade em dicionários de Linguística e a proposta de um paradigma
definicional para os termos linguagem e Linguística Descritiva. Para tanto, definimos
o que são as microestruturas conforme as normas da ISO 1087 e as contribuições
de Rey-Debove (1971), de Hartmann e James (2002), de Béjoint (2010) e outros.
Abordamos as definições de outside matter, middle matter e back matter. Em seguida,
exploramos os paradigmas informacional, definicional e pragmático, sem deixar de
considerar o paradigma de formas equivalentes para dicionários bilíngues. A seguir,
baseamo-nos nas normas ISO 1087 e na teoria de Barbosa (1995, 2001) para definir o
que é um dicionário, um vocabulário e um glossário. Depois, fizemos um breve estudo
comparativo entre alguns dicionários de especialidade pertencentes à área da Linguística.
Nessas obras, fizemos a análise da microestrutura: dos enunciados lexicográficos e dos
paradigmas definicionais, focando nos verbetes linguagem e fraseologismos do termo
signo, e diferenciamos o que é a microestrutura de um dicionário e a de um glossário.
Finalmente, após a exposição dos conceitos e análise das obras, propusemos padrões
de microestrutura e definitórios, em diferentes áreas da Linguística, cujo público-alvo
seria o alunado leigo dos Cursos de Letras.
Palavras-chave: terminologia; terminografia; dicionários de especialidade;
macroestrutura; microestrutura.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.205-234
206
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
abstract: Lexicology, Lexicography, Terminology and Terminology, all sub-areas of
Linguistics, encompass theoretical studies and the making of dictionaries, vocabularies
and glossaries. This article aims to study the microstructure of specialized entries
in dictionaries of Linguistics and the proposal of a definitional paradigm for the
term language and sign phraseologies. To that end, we defined the microstructures
according to ISO 1087 norms and the contributions of Béjoint (2010), Rey-Debove
(1971), Hartmann and James (2002) and others. We approach the definitions of
outside matter, middle matter and back matter. Next, we explore the informational,
definitional and pragmatic paradigms, while considering the paradigm of equivalent
forms for bilingual dictionaries. Then, we rely on ISO 1087 and Barbosa’s theory
(1995, 2001) to define what a dictionary, a vocabulary and a glossary is. Afterward, we
carried out a brief comparative study among some specialty dictionaries in the area of
Linguistics. In these works, we analyzed the microstructure: lexicographic statements
and definitional paradigms, focusing on the entries language and sign phraseologies, and
we distinguished what the microstructure of a dictionary and a glossary is. Finally, after
the exposition of the concepts and analysis of the works, we proposed a microstructure
and a definition standard for the entries language and descriptive linguistics, in the area
of Historical Linguistics, whose target audience would be the freshmen from Language
and Literature courses.
Keywords: terminology; terminography; specialized dictionaries; microstructure.
Recebido em 26 de abril de 2019
Aceito em 30 de outubro de 2019
1. Introdução
O objetivo deste artigo foi estudar a microestrutura de verbetes na
área de Linguística em alguns dicionários/glossários de especialidade e
propor uma microestrutura e um paradigma definicional para uma obra
terminográfica na área da Linguística.
O interesse pelo tema surgiu a partir da seguinte pergunta:
podemos distinguir um glossário (ou vocabulário, dependendo da linha
teórica adotada1) de um dicionário a partir da microestrutura de seus
verbetes? Encontramos algumas problemáticas quando verificamos
verbetes de dicionários/glossários: a microestrutura de ambos não se
diferencia de obra para obra; a microestrutura varia dentro de uma mesma
obra lexicográfica e/ou terminográfica. Será que só a macroestrutura,
1
Como a divisão tripartite adotada por Barbosa (1995): dicionário, vocabulário e glossário.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
207
com a quantidade e os tipos de verbetes selecionados, poderia nos indicar
uma diferença entre um e outro? Nossos objetivos são, primeiramente,
analisar como são arquitetadas as macroestruturas dessas obras a partir da
proposta de Hartmann e James (2002). Em segundo lugar, definir o que são
as microestruturas de obras lexicográficas e terminográficas e, através de um
estudo comparativo entre alguns dicionários de especialidade e glossários na
área de Linguística, achar, se possível, o que é específico numa microestrutura
de dicionário e o que é específico numa microestrutura de glossário.
A fim de embasar nossa proposta, descreveremos as definições da
macro e da microestrutura baseados das seguintes fontes: (i) ISO 1087,
(ii) Rey-Debove (1971), (iii) Hartmann e James (2002) e (iv) Béjoint
(2010). Ademais, tratamos dos tipos de padrões de definição segundo
Bevilacqua e Finatto (2006).
O corpus de análise selecionado enfoca quatro dicionários na
área de Letras, pertencentes à área de Linguística:
(i)
(ii)
(iii)
(iv)
o Dicionário de Linguística e gramática, de Mattoso Camara
Jr. (1986);
o Dicionário de Linguística e Fonética, de Davis Crystal,
tradução e adaptação de Maria Carmelita Pádua Dias (2000);
o Dicionário de Linguística, de Dubois et al. (2004); e
o Dicionário de Linguística da Enunciação, de Valdir do
Nascimento Flores et al. (2009).
Para analisar a microestrutura, decidimos trabalhar com dois
verbetes, um substantivo comum em todos eles: linguagem e fraseologias
envolvendo o termo signo. Acreditamos, por experiência na área, que
essa classe gramatical, a dos substantivos, seja a mais comum, recorrente
em obras terminográficas, dado registrado também pela literatura na
área de Terminologia (SILVA, 2006). Analisamos fraseologias do termo
signo considerando a afirmação de Aubert (2001, p. 66), a partir da qual
entendemos que termos compostos por mais de uma unidade lexical são
mais frequentes na terminologia que na Lexicografia.2
“Com efeito, diferentemente do que ocorre na descrição lexicográfica (vide Cap. I, item
2.2), em que a grande maioria dos verbetes é composta de unidades monovocabulares,
as designações descritas pela terminologia abarcam, com extrema freqüência (não raro
2
208
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
2. Dicionário, Vocabulário e glossário
O primeiro passo foi a diferenciação dos conceitos relacionados aos trabalhos terminográficos. Dentre as obras que fazem parte do
corpus, encontramos quatro títulos, todos denominados dicionários
(aqui englobando os dicionários de especialidade nas áreas de Linguística, Fonética e Linguística da Enunciação).
Adiante, discutiremos neste artigo as definições de (i) dicionário,
(ii) vocabulário e (iii) glossário. Para tanto, apresentaremos dois modelos
teóricos: um pertencente à norma ISO 1087 (AUBERT, 2001, p. 41) e
o outro proposto por Barbosa (1995, 2001).
A normal ISO 1087 define dicionário da seguinte forma:
“6.2.1 dicionário: coleção estruturada de unidades lexicais
com informações linguísticas acerca de cada item.” (tradução nossa).3
Já a definição de um dicionário terminológico (ou técnico)
apresenta-se conforme exposto abaixo:
“6.2.1.1 dicionário terminológico (termo admitido: dicionário
técnico): Dicionário (6.2.1) no qual há dados terminológicos (6.1.5) de
um ou mais campos científicos específicos (2.2).”4
As definições previamente expostas são distintas daquela para
vocabulário:
“6.2.1.1.1 vocabulário (termo admitido: glossário): dicionário
terminológico (6.2.1.1) no qual há a terminologia (5.1) de uma área
específica (2.2) ou de áreas de temas relacionados (2.2) e baseado em
trabalho terminológico (8.2).”5
acima de 50% do inventário total), formas compostas de duas, três ou mais palavras”
(AUBERT, 2001, p. 66).
3
6.2.1 dictionary: Structured collection of lexical units with linguistic information
about each item ISO 1087, p.10 (essa e as duas próximas definições).
4
6.2.1.1 terminological dictionary (admitted term: technical dictionary): Dictionary
(6.2.1) containing terminological data (6.1.5) from one or more specific subject fields (2.2).
5
“vocabulary (admitted term glossary): terminological dictionary (6.2.1.1) containing
the terminology (5.1) of a specific field (2.2) or of related subject fields (2.2) and
based on terminology work (8.2)”
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
209
De acordo com a NORMA ISO 1087, é possível observar
uma objetividade na forma de definir dicionário. Contudo, ao definir
o dicionário técnico ou terminológico e o vocabulário ou glossário, a
norma não distingue os limites claramente. Observamos que o diferencial
entre o dicionário técnico e o vocabulário é que este é concebido a partir
de um processo terminológico. Diante do exposto, os questionamentos
que permanecem são: para a concepção de um dicionário técnico também
não se faz necessário um trabalho terminológico prévio? Em realidade,
as obras glossário e vocabulário são distintas ou não (neste contexto
concebidas como sinônimos6)?
Tendo em vista essas dúvidas e os títulos dos dicionários
analisados, resolvemos trabalhar com o modelo proposto por Barbosa
(1995, 2001), o qual consideramos mais coerente.7
Barbosa (1995, 2001) enquadra as obras lexicográficas e
terminográficas de acordo com os diferentes níveis de atualização da
língua. As obras que lidam com o léxico manifestado nos lexemas, ao
nível do sistema, são os dicionários. Aquelas cujo objeto são os conjuntos
vocabulários (ou terminológicos), manifestados nos vocábulos ou termos,
e abrangem o nível da norma são os vocabulários (técnico-científicos e
especializados). Por fim, as obras que respondem pelo conjunto de itens
provenientes de um texto específico, manifestados pelas palavras no nível
da fala são os glossários. Essas informações estão melhor apresentadas
no Quadro 1.
Podemos esquematizar essas e outras informações apresentadas
pela autora no Quadro 1:
6
Pelo menos na entrada em inglês da norma, o que parece não se repetir na versão
em francês.
7
De um modo geral, a maioria dos autores não se preocupa em inserir seus
trabalhos dentro de alguma concepção teórica de tipologia das obras lexicográficas
ou terminográficas. Eles costumam classificar seus trabalhos como glossários ou
dicionários especializados, mas não indicam o padrão que estão seguindo e nem porque
os nomearam desta ou daquela maneira.
210
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
QUADRO 1 – Diferença entre obras que trabalham com o léxico
Dicionário
Nível do sistema
Vocabulário
Nível da norma
glossário
Nível da fala
Engloba o léxico
Engloba conjuntos pertencentes Engloba itens extraídos de um
disponível de forma geral a uma área de especialidade
texto específico
Unidade: lexema
(significado abrangente;
frequência regular)
Unidade: vocábulos/termos
(significado restrito; alta
frequência)
Unidade: palavras (significado
particular; aparição única)
Apresenta todas
(teoricamente) acepções
de um mesmo verbete
Apresenta todas as acepções de
um verbete dentro de uma área
de especialidade
Apresenta uma única acepção
do verbete (dentro de um
contexto determinado)
Fonte: sistematizado e adaptado a partir de Barbosa (FROMM, 2002).
3. Estruturas das obras e verbetes
É importante sabermos igualmente como se constituem
estruturalmente as obras lexicográficas e/ou terminográficas. De um modo
geral, essa estrutura está dividida em duas grandes partes: a macro e a
microestruturas. Expomos, a seguir, suas características.
3.1 a macroestrutura
A macroestrutura representa a estruturação geral das obras
lexicográficas ou terminográficas. Segundo Rey-Debove (1971, p. 21),
esta macroestrutura também pode ser denominada “nomenclatura”. Já de
acordo com a definição de Hartmann e James (2002), a macroestrutura
de um dicionário é a estrutura generalizada de acesso a uma obra de
consulta dicionarística. Isto implica em como as entradas são organizadas,
geralmente na forma alfabética. Além dessa forma, os autores mencionam
as entradas organizadas por campos semânticos, por dados cronológicos
ou pela frequência. Hartmann e James (2002) trazem uma descrição mais
detalhada para definir os componentes de uma macroestrutura. Ela seria
constituída de três componentes:
(i)
outside matter (front matter), constituindo-se do prefácio,
o guia do usuário, a página como dados bibliográficos, os
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
(ii)
(iii)
211
agradecimentos e a dedicatória, a lista de colaboradores, a lista de
abreviações e as ilustrações. Simplificando, poderíamos chamar
este primeiro componente da introdução de um dicionário;
middle matter, cuja composição seria de painéis, páginas
ilustrativas, mapas, diagramas, esquemas, dados enciclopédicos,
classificação de termos gramaticais, imagens e campos semânticos;
e
back matter, composta pela lista de nomes próprios, dados
geográficos, classes militares, tabelas de pesos e medidas,
abreviaturas, tabela de elementos químicos, fraseologias, notas
musicais etc. Resumindo, a parte final de uma obra lexicográfica.
À junção desses três componentes: a front/outside matter, a middle
matter e a back matter, os autores dão o nome de megaestrutura. Para
Béjoint (2010) a macroestrutura, também chamada de lista de palavras,
representa “o grupo de entradas sistematizado em ordem específica,
utilizado parcialmente para uma leitura vertical, quando da busca por
informações específicas por parte dos consulentes”, equivalente ao termo
inglês word-list. Essa estrutura corresponde ao conjunto de itens lexicais
presentes na mente dos consulentes de forma virtual.
Resumindo, podemos dizer que, no dicionário, a macroestrutura é
composta pelo inventário lexical de uma língua determinada. Na próxima
seção descrevemos a composição da microestrutura.
3.2 a microestrutura
A microestrutura, para a norma ISO 1087, é a “organização de
dados de cada entrada de um dicionário”.8 Ela disponibiliza dados sobre
as entradas e é composta de um número específico de informações ou
campos que podem ser alterados, de acordo com a tipologia do dicionário,
trazendo dados como: pronúncia, etimologia, sinônimos, ortografia etc.,
ou seja, ao nos referimos à microestrutura, estamos considerando o verbete
per se e os dados sobre ele (BÉJOINT, 2010, p. 13).
De acordo com Andrade (2000), a microestrutura de um verbete
seria composta, basicamente, por: artigo + enunciado lexicográfico. A
composição desse enunciado se dá em quatro possíveis níveis:
“6.2.2 Microstructure: Organization of data in each entry (6.2.2.2) of a dictionary (6.2.1)”.
(ISO 1087).
8
212
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
•
•
•
•
Paradigma Informacional (PI): englobando
abreviaturas, categoria gramatical, gênero, número,
pronúncia, conjugação, homônimos etc.;
Paradigma Definicional (PD): composto pelos semas
ou unidades de sentido;
Paradigma Pragmático (PP): disponibiliza dados
provenientes de contextos reais de língua (como
corpora) ou literários (abonações).
Paradigma de Formas Equivalentes (PFE):
basicamente, a tradução da entrada.
Exceto pelo Paradigma Definicional, consensualmente
considerado como essencial na composição de uma microestrutura, os
outros podem apresentar uma composição variável, de acordo com a linha
teórica adotada, o público-alvo, as diretrizes de publicação da obra etc.
Uma possibilidade de microestrutura básica se apresentaria, portanto,
da seguinte maneira:
artigo= {+ entrada9 + enunciado lexicográfico (+ definição)}10
Poderíamos, porém, criar um verbete com a seguinte
microestrutura:
Artigo= {+ entrada + enunciado lexicográfico (+/- PI1+ PD +/- PP)}
Como em qualquer obra lexicográfica ou terminográfica, uma
pesquisa com o público-alvo é o que indica a forma de elaboração das
estruturas (macro e micro) do trabalho. Sem um estudo prévio desse
público-alvo, a obra de referência pode “falhar” em sua proposta. Campos
(1994) já chamava a atenção para esta questão: “...o problema da clareza
da definição está diretamente ligado a um questionamento anterior: quem
é o público-alvo do dicionário”.11 Ele destaca o trabalho de elaboração
do dicionário Cobuild, com uma microestrutura diferenciada:
artigo= {+ entrada + enunciado lexicográfico (+ PP [+ entrada] + PD)}
O verbete, ou a entrada do dicionário/glossário.
Onde o sinal + representa a obrigatoriedade e o sinal +/- a opcionalidade.
11
“El problema de la claridad de la definición está estrechamente ligado con una cuestión
previa: a quién está dirigido el diccionario”.
9
10
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213
Fica claro, na estrutura acima, que a entrada aparece duas vezes
no artigo: como entrada em si e repetida dentro da microestrutura,
entre o paradigma pragmático e o definicional. Campos (1994) também
cita a preocupação dos autores da obra no uso de um vocabulário o
mais básico possível na construção da definição, facilitando sua leitura
e evitando a circularidade dentro do dicionário.
Continuando com noções sobre a microestrutura, Hartmann e
James (2002) dizem que ela está relacionada ao formato dos verbetes,
em como os paradigmas definicionais são apresentados, e qual é o seu
nível de adequação, levando-se em consideração o seu público-alvo.
Outro aspecto a se considerar na microestrutura é como a organização
dos significados dos verbetes é construída. A microestrutura disponibiliza
dados específicos e pormenorizados sobre o verbete, especificando traços
semânticos e estruturais citados previamente tais quais, a pronúncia, a
classe gramatical, a ortografia, a etimologia etc. Nos casos em que há
mais de uma acepção para um dado verbete, diferentes definições são
concebidas para cada uma delas.
A exemplificação de uma microestrutura com seus componentes
é feita por Hartmann e James (2002), como mostra a Figura 1 a seguir.
FIGURA 1 – Uma microestrutura segundo a proposta de Hartmann e James (2002)
Na estrutura presente na Figura 1, observamos que há o verbete,
a entrada ou o lema (headword/lemma); em seguida, são apresentados os
dados referentes à ortografia, à pronúncia e à gramática; na sequência,
encontramos a definição propriamente dita, com as acepções possíveis,
separadas por ponto e vírgula, a etimologia e o possível uso do lema,
neste caso como arcaísmo linguístico.
214
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
Além da estrutura apresentada na Figura 1, os autores propõem
que à microestrutura também podem se juntar a entrada ou o verbete, o
conceito pertencente aquele termo, o registro da primeira aparição ou uso
(em geral acompanhado da definição em uma obra de referência). Além
desses dados, há a possibilidade de se estabelecer as correspondências
entre o termo e seu conceito.
Béjoint (2004) é outro autor que trata da microestrutura, definindo-a
como o conjunto de dados disposto horizontalmente nas obras lexicográficas
e/ou terminográficas. Na microestrutura podemos encontrar as definições,
as classificações gramaticais dos termos, as informações enciclopédicas,
os exemplos etc. Em um dicionário ou vocabulário, é esperado que essa
estrutura seja recorrente para que o manuseio da obra, pelo usuário, seja
facilitado. Outra razão para tal recorrência estrutural é a necessidade de
padronização, e também o fato de revelar os traços identitários da obra.
Diante disso, há a expectativa de que os dicionários modernos tragam em
sua elaboração, constituição e apresentação a uniformidade de suas entradas
em termos de conteúdo, organização e formatação.
3.3 Microestrutura x Macroestrutura
Ao compararmos as propostas de estruturas levantadas
por Hartmann e James (2002) e Béjoint (2004), constatamos que a
macroestrutura é um componente constituído de certa maleabilidade,
o que significa que é possível adicionar ou subtrair um verbete de um
dicionário sem prejudicar a qualidade da mesma. De igual modo, não
se pode conceber uma obra lexicográfica sem sua macroestrutura; na
ausência de tal componente, a obra falha em ser classificada como um
dicionário. O que identifica um dicionário é a interação que há entre
a macro e a microestrutura: todos os verbetes fazem parte de uma
macroestrutura e, consequentemente, apresentam uma microestrutura,
e todos os itens lexicais constitutivos da microestrutura devem, em
geral, ser contemplados na macroestrutura, isto é, os dicionários são
estruturas “fechadas” (BÉJOINT, 2004, p. 12, 13).
O aspecto fechado de uma obra lexicográfica é em partes diferente
do que encontraremos em obras terminográficas. Segundo Bevilacqua e
Finatto (2006), o fazer lexicográfico, por objetivar o registro do léxico
de uma língua, em geral privilegia o princípio da frequência para o
registro das unidades lexicais. Em contrapartida, as obras terminográficas
tenderão a partir do princípio da relevância do termo para uma área
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
215
específica a fim de decidir pelo seu registro ou não. Como analisamos
obras intituladas Dicionários, esse paradigma norteador será considerado
para o enquadramento da obra como sendo de caráter mais lexicográfico
ou terminográfico.
4. Elaboração da definição
O terceiro passo que detalhamos aqui, para a análise das obras, é
a construção da definição. Existem três grandes paradigmas de definições
usados para a organização dos conceitos em uma obra: (i) a definição
enciclopédica, (ii) a definição lexicográfica e a (iii) terminológica,
definidas a seguir.
A definição enciclopédica é mais detalhada e abrangente,
reunindo em si informações sobre o referente e sobre a descrição de
coisas; a definição lexicográfica disponibiliza predominantemente as
informações linguísticas dos verbetes/palavras; e, finalmente, a definição
terminológica, disponibiliza dados formais sobre “coisas” ou fenômenos
(FINATTO, 1998, p. 2).
Além desses padrões, as informações podem ser organizadas
de acordo com o padrão GPDE (também denominado aristotélico),
gênero próximo, diferenças específicas (FINATTO, 2001). Esse padrão
estabelece que as informações usadas para construção da definição do
termo sejam hierarquizadas, partindo-se da relação de hiperonímia para
a de hiponímia dos elementos usados na construção da definição final.
No próximo item, apresentamos o corpus usado para análise das
micro e macroestruturas e sua descrição.
5. Dados analisados – microestrutura
São apresentadas, no Quadro 2, as estruturações dos verbetes
(por uma questão de espaço, descreveremos apenas o Enunciado
Lexicográfico; suas versões na íntegra se encontram no anexo) do termo
linguagem e de fraseologismos12 para o termo signo dentro de cada obra,
a fim de analisarmos suas respectivas microestruturas.
12
Entendemos por fraseologismo unidades lexicais constituídas pela polilexicalidade
(combinações de duas ou mais UL, formando um sentido único), a fixação e a
convencionalidade (proveniente do uso repetitivo), como proposto por Monteiro-Plantin
(2014).
216
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
QUADRO 2 – Microestrutura – Enunciados lexicográficos
DICIONÁRIO
Dicionário de
Linguística e
gramática
TERMOS
Linguagem
Fraseologismos terminológicos
com signo
{[PD + PP]}
Unidades sintagmáticas
Signo linguístico: acepção de dêixis
[PD]
Dicionário de
[PD + PP]
Signo linguístico: acepção de signo
Linguística e Fonética Unidades sintagmáticas [PD]
[ PI + PD]
Dicionário de
Linguística
Dicionário de
Linguística da
Enunciação
[PD + PI]
signo-símbolo
[PD]
{[PI (categoria gramatical +
Signo ideológico
autor) + PD]}
{[PI (categoria gramatical + autor)
[PP (Outras denominações)]
+ PD]}
[PD]
[PP (Fonte da definição + Nota
[PP (Fonte da definição +
explicativa + Fonte da nota +
Nota explicativa + Fonte da
Leitura recomendada + Termos
nota + Leitura recomendada +
relacionados)]
Termos relacionados) ]
Fonte: elaborado pelos autores a partir dos dicionários selecionados
No caso do Dicionário de Linguística e gramática (MATTOSO
CAMARA JR., 1986), primeiramente observamos que a obra não
dispõe de um paradigma informacional: não traz informações como
classificação gramatical dos termos, o gênero, o número, a pronúncia
etc. (tanto para o termo em si quanto para o fraseologismo). Em segundo
lugar, o paradigma pragmático aparece apenas no termo linguagem, mas
não no fraseologismo terminológico (doravante FT) signo linguístico;
o paradigma informacional não aparece em nenhum momento. O autor
marca as remissivas de duas formas diferentes: (1) verbete em caixa alta
ou (2) com a letra v entre parênteses: (v.). Finalmente, constatamos, a
partir dos exemplos, que há uma circularidade na obra como um todo.
Por exemplo, para definir o termo signo, o autor recorre às remissivas
símbolo e dêixis. Na entrada símbolo o autor define o termo signo e
na entrada dêixis ele define o FT signo linguístico (que é definido no
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
217
formato de acepção13). Dentro deste PD, o autor insere a definição de
signo linguístico por meio de um contexto explicativo, no qual o signo
é marcado por dois constituintes: o símbolo e o sinal.
No Dicionário de Linguística e Fonética (CRYSTAL, 2000),
para o termo linguagem encontramos os paradigmas definicional e
o pragmático. A palavra ver introduz o paradigma pragmático e, na
sequência, há a citação das referências: o autor e o ano, dois pontos
e o capítulo sugerido para leitura. Ex.: Ver Robins (1979, Cap. 1).
Encontramos o FT signo linguístico como elemento constituinte da
microestrutura do termo signo, ou seja, ele não é apresentado como um
verbete à parte e sim como acepção. O paradigma definicional de signo
linguístico é construído de forma explicativa, no qual o autor o contrapõe
às outras categorias do signo.
Na obra Dicionário de Linguística (DUBOIS et al., 2004), o
verbete linguagem apresenta os paradigmas definicional e pragmático;
o paradigma informacional disponibiliza dados como: etimologia e
classificação gramatical para alguns verbetes de forma não padronizada.
Os autores explicam os conceitos de signos a partir da perspectiva da
Semiótica. Dessa forma, eles associam o conceito de signo aos conceitos
pré-existentes da Semiótica; essa é a razão pela qual os FT signo-indício,
signo-sinal, signo-símbolo e signo(s) linguístico(s) fazem parte do
paradigma definicional do verbete signo. Escolhemos o FT signo-símbolo
para fazermos a análise de seu paradigma definicional. Primeiramente,
Dubois et al. (2004) associam o signo ao conceito de símbolo, ressaltando
sua predominância na forma visual figurativa. Depois, os autores definem
o FT e ressaltam o traço semântico abstrato existente entre o signosímbolo e sua representação, exemplificado pela ideia de justiça associada
à balança (DUBOIS et al., 2004, p. 541).
No Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et al.,
2009), a macro e a microestrutura disponibilizam um padrão mais atual
de definições ao usuário, no qual há campos diferentes para as estruturas.
Nestes campos, como no termo linguagem, há a (1) classificação
gramatical, o (2) autor, (3) outras classificações (termos e FT), o (4)
padrão definicional conciso e objetivo (padrão GPDE com oração única),
13
Neste caso o FT signo linguístico não aparece no formato tradicional de entrada, mas
sim como acepção (também num formato não tradicional). De um modo geral, a obra
de Mattoso apresenta o problema de circularidade.
218
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
a (5) fonte da definição, a (6) fonte das notas, as (7) notas explicativas,
os (8) termos remissivos e a (9) sugestão de leitura. Nesta obra, o FT
signo ideológico é apresentado, seguindo a padronização da obra, com
o PI, o PD e o PP. No PI, os autores trazem a categoria gramatical
(s.m.) e o autor a partir do qual o conceito para definição foi extraído.
Em seguida, há o PD, de perfil terminológico, seguido pelo PP, no qual
consta a fonte da definição, a nota explicativa, de caráter enciclopédico,
a fonte da nota (BAK95b), as leituras recomendadas (BAK95b; CLA98;
FAR03) e, finalmente, os termos relacionados (remissivas) acento de
valor, refração e sinal.
Na próxima seção apresentaremos a análise dos paradigmas
definicionais de cada obra. Posteriormente, faremos a análise desses
paradigmas, considerando o padrão GPDE.
6. Análise dos paradigmas definicionais
A seguir, apresentamos a descrição dos paradigmas definicionais
das obras analisadas, como os autores construíram esses paradigmas, os
itens que os compuseram, e se enquadraram mais nos padrões de definição
lexicográfica, enciclopédica ou terminográfica.
No Dicionário de Linguística e gramática de Mattoso Camara
Jr. (1986), o autor constrói um paradigma definicional com acepções
sucintas, além de referenciar e conceituar o termo a partir da perspectiva
de outros autores (cita o autor e ano da obra). Essa organização dos
conceitos é sistematizada em forma de itens. Para os verbetes, observamos
a existência de um paradigma definicional parcialmente lexicográfico,
enciclopédico e terminológico. Mattoso Camara Jr. inicia a definição
seguindo o padrão GPDE; depois observamos uma certa circularidade
na construção, retomando informações previamente registradas.
Faculdade que tem o homem de exprimir seus estados mentais
por meio de um sistema de sons vocais chamado língua (v.), que
os organiza numa REPRESENTAÇÃO compreensiva em face
do mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior. [...]
A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama
entre o FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a
pessoa a quem ela se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela
de representação mental que nela se consubstancia), mas na
manifestação psíquica o ouvinte não é levado diretamente em
conta. (MATTOSO CAMARA JR., 1986, p. 158 – grifo nosso).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
219
É possível observar a circularidade de ideias na definição anterior,
perfil que difere da definição terminográfica, mais concisa e objetiva.
No Dicionário de Linguística e Fonética (CRYSTAL, 2000),
observamos uma microestrutura unificada, na qual grande parte dos
verbetes são definidos com: termo utilizado/usado por/na etc. Como
na obra de Mattoso Camara Jr. (1986), as microestruturas são de cunho
enciclopédico, terminológico e lexicográfico. O paradigma definicional traz
diagramas e esquemas para ilustrar os conceitos, além de indicar autores e
obras por meio de remissivas. Se os verbetes existentes no dicionário são
encontrados na obra, eles são grafados com letras maiúsculas, sinalizando
aos consulentes que há a possibilidade de explorá-los na obra como uma
remissiva. A segunda opção de encontrar as remissivas é a marcação em
(cf. REMISSIVA). Nesse dicionário notamos o padrão GPDE com um
paradigma de caráter não só definicional, mas também explicativo. Este
perfil explicativo torna as definições mais longas e foge do perfil mais
sucinto proposto pelo padrão da definição terminológica. Ademais, o
autor se preocupou em fornecer dados sociolinguísticos do uso do termo,
tendendo mais ao padrão enciclopédico: “A aplicação popular do termo
se concentra nos modos de comunicação que não são fala ou escrita (a
“linguagem do corpo”, a “linguagem dos olhos”). Pode ser aplicado
ocasionalmente à comunidade animal natural [...]. Pode ser igualmente
usado para indicar a “língua” ou o “dialeto”. Finalmente, observamos que
no paradigma definicional, o autor insere várias remissivas, destacadas
no texto, escritas com letras maiúsculas.
O Dicionário de Linguística, de Dubois et al. (2004),
disponibiliza os paradigmas definicionais de cunho enciclopédico,
lexicográfico e terminológico. Podemos observar que a definição de
caráter enciclopédico é prevalente neste dicionário, de forma que o padrão
GPDE é usado para construir as definições do termo (sublinhadas no
excerto). Os autores partem de um dos conceitos usados nessas definições
e buscam definir esse segundo termo; isso gera a explicação de um
termo segundo dentro do paradigma definicional de um termo primeiro:
“Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por
meio de um sistema de signos vocais (ou língua*), [...] Esse sistema de
signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade linguística)
determinado constitui uma língua particular (DUBOIS et al., 2004,
p. 387). Em suma, podemos dizer que há um conjunto de definições,
dentro do mesmo paradigma definicional, o que pode confundir o leitor,
dependendo de seu nível de conhecimento na área da Linguística.
220
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
No Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et
al., 2009), constatamos que há a presença dos padrões definitórios de
caráter lexicográfico e enciclopédico nas notas explicativas, e o de caráter
terminológico nas definições. Nas definições, há a prevalência de uma
oração inicial e final com a definição de cunho terminológico da entrada.
Observamos também a preocupação em padronizar a apresentação dos
verbetes e paradigmas definicionais de forma acessível aos leigos. Nesse
dicionário, o padrão GPDE é usado para as definições de forma objetiva,
segundo cada autor específico (Bally, Benveniste, Culioli, Jakobson):
“conjunto dos sistemas estrutural e de uso da língua.” Além de seguir o
padrão GPDE, os autores usam o padrão terminológico para construção
do paradigma definicional. Este perfil adotado pelos atores difere das
obras anteriores, já que nelas observamos definições longas, marcadas
pela circularidade, às vezes enciclopédicas, outras lexicográficas.
7. Por uma proposta de microestrutura
Nesta seção, a partir do apanhado geral da microestrutura e dos
PDs das obras analisadas, apresentamos uma proposta de construção
de microestrutura que atenda ao público de estudantes de Linguística
e Letras.
Considerando que, em geral, as obras terminológicas objetivam
a comunicação especializada entre um grupo de especialistas para um
grupo de aprendizes, a estrutura apresentada pela maioria das obras falha
em atender a esse objetivo. Isto acontece porque as estruturas escolhidas
pelos autores exigem um conhecimento prévio da Linguística, o que
impede que a maioria das obras analisadas sirva ao propósito de capacitar
o aprendiz quanto à terminologia e conceitos da área da Linguística. Para
que este objetivo seja atingido, a proposta feita por Flores et al. (2009)
pode ser um modelo a ser seguido. Sua definição objetiva e concisa,
seguindo o padrão GPDE e com um viés terminológico, auxilia o leitor
a entender melhor os conceitos linguísticos e as notas explicativas
(com um caráter mais enciclopédico) ajudam aqueles que buscam um
aprofundamento na especificidade dessa área.
Após a análise dessas estruturas, propomos padrões de
microestrutura e definitórios para um vocabulário de Linguística, que
apresentem estruturas semelhante àquelas do Dicionário de Linguística
da Enunciação. Buscamos construir uma definição alinhada ao padrão
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
221
terminológico, com informações de caráter lexicográfico e enciclopédico
registradas em um campo denominado NOTA. O público alvo a ser
atendido seriam alunos iniciantes de Curso de Letras e estudantes de
Linguística em geral. Apresentamos, a seguir, dois esboços para os
padrões discutidos, em formato bilíngue (português/inglês):14
QUADRO 3 – Verbete “linguagem/language”
linguagem. Linguística Histórica. s.f.s. sistema de sinais, escrito ou falado,
usado pela humanidade para comunicação de ideias, marcado pela variabilidade,
considerado uma ciência moral e histórica. Nota: forma de expressão linguística
do pensamento, de nível consciente e abstrato. Ex.: Para Coutinho (1938: 16), a
“Glotologia” (“denominação italiana”), “Linguística” (“termo preferido pelos
franceses”) ou “Glótica” (“termo da escola alemã”) é a “ciência que estuda
a origem e o desenvolvimento da linguagem. Sinônimos: ciência histórica e
moral. Hipônimo de: humanidade; ideias; pensamentos; espírito; criação social;
Glotologia. Hiperônimo de: sinais; sincronia; diacronia; sistemas linguísticos;
vocábulos; linguagem escrita; linguagem falada. Veja Também: analogia, léxico.
Córpus: Posição na Ordem de Frequência: (210); Nº de Ocorrências do termo:
(439). Informações Enciclopédicas: Linguagem pode se referir tanto à capacidade
especificamente humana para aquisição e utilização de sistemas complexos de
comunicação, quanto à uma instância específica de um sistema de comunicação
complexo. Em: Linguagem – Wikipédia.
language. Historical Linguistics. n.m/f.s. system used to produce meaning, reference, naming
and used by different groups of people for communication. Note: types of language comprise
philosophical, sacral, baby, hunters’, legal, children’s, thieves’ and wooers’. Ex.: (Thieves
using filchmans were popularly called anglers; -man, more often -mans, was a Common
suffix in thieves’ language: H. Webster [1943:232].). Hypernym of: words; language; term.
See Also: lexicon. Corpus: Frequency order position: (29); Term number of occurrences:
(2686). Encyclopedic Information: any means of expressing or communicating, as gestures,
signs, or animal sounds: body language. In: Language – Wikipedia.
Fonte: elaborado pelos autores.
Importante notar, aqui, que as versões em português e inglês não são exatamente
as mesmas. Como nossa proposta se baseia na elaboração das estruturas a partir dos
exemplos selecionados em corpora equivalentes (textos sobre a mesma área, mas não
necessariamente originais/traduções), exemplos e definições variam entre as línguas.
Nesta proposta, temos dois vocabulários monolíngues em contraste; o que os une é a
macroestrutura, onde a equivalência conceitual é a chave para unir os termos.
14
222
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Como pode ser observado no Quadro 3, listamos o termo, a
subárea a qual ele pertence, sua classificação gramatical, a definição
terminográfica, a nota, os exemplos de co-texto no qual se insere, as
relações de sinonímia, hiponímia, hiperonímia (caso existam no corpus),
os termos remissivos, os dados no corpus e as informações enciclopédicas
(ligadas por link à Wikipédia). No Quadro 4, apresentamos uma proposta
de definição de fraseologismos terminológicas na área da Linguística.
QUADRO 4 – Verbete “linguística descritiva/descriptive linguistics”
linguística descritiva. Linguística. m.s. subárea da Linguística, de método
sincrônico, que documenta e analisa as línguas do mundo, fundamentada em dados
concretos cujo intuito é compreender o processo estrutural da língua. Ex.: Os
linguistas nunca deixaram de afirmar a importância do aspecto histórico das línguas.
Dentre estes, destacamos Maurer Jr. que concebeu a linguística composta em dois
setores: a linguística descritiva (sincrônica) e a linguística histórica (diacrônica).
Segundo o autor, a LH “constitui um complemento imprescindível para que essa
ciência seja completa, pois interpreta e explica os fatos que a primeira (sincronia)
colige.” (MAURER JR., 1967, p. 40). Co-hipônimos: Linguística Aplicada;
Linguística Histórica; Linguística Estrutural; Linguística Histórica-Comparatista;
Linguística Contrastiva. Veja Também: linguística. Córpus: Posição na Ordem
de Frequência: (66); Nº de Ocorrências do termo: (7434). Nº de Ocorrências do
fraseologismo: (18). Informações Enciclopédicas: estudo do mecanismo pelo
qual uma dada língua funciona, como meio de comunicação entre seus falantes.
Em: Linguística Descritiva – Linguística em foco.
descriptive linguistics. Linguistics. n.m./f.s. subarea of Linguistics that
describes languages grounded in systematic empirical observation, rejecting
the normative prescription of one specific style. Ex.: In this way, tone interval
theory greatly increases the phonetic transparency of the description of English
intonation as compared to the paradigmatic framework. That theory, by contrast,
treated significant turning points with inconsistency, even when we assumed that
its input-output relations operated as they have been presumed to in descriptive
linguistics. In contrast, tone interval theory formalizes a relationship between
phonology and phonetics such that every significant turning point is assumed to
arise from a tone. Hyponym of: discipline. Hypernym of: American structuralism;
intonation; phonetics; phonology; language; grammarians; lexicographers. See
Also: linguistics. Corpus: Frequency order position: (5924); Term number of
occurrencies: (113). Phraseologism number of occurrences: (20). Encyclopedic
Information: the work of objectively analyzing and describing how language is
actually used (or how it was used in the past) by a group of people in a speech
community. em: Linguistic description – Wikipedia.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
223
A microestrutura do termo Linguística Descritiva/Descriptive
Linguistics, retratada no Quadro 4, é semelhante àquela do Quadro 3,
portanto, salientamos as diferenças presentes neste último se comparado
ao anterior. A primeira diferença é que no Quadro 4 não há Notas, pois o
corpus não trouxe informações suficientes para tal informação adicional.
Neste padrão encontramos co-hipônimos (Linguística Aplicada;
Linguística Histórica; Linguística Estrutural; Linguística HistóricaComparatista; Linguística Contrastiva). Finalmente, a outra distinção é
quanto ao número de ocorrências do termo e do fraseologismo no corpus.
O número do termo é referente ao termo-base, neste caso linguística, e
o número de fraseologismos, relacionado a quantas vezes a fraseologia
aparece no corpus. Neste exemplo, temos o termo linguística recorrendo
7434 vezes no corpus em português e 113 vezes no corpus de inglês.
Os termos fraseológicos linguística descritiva e descriptive linguistics
recorrem 18 e 20 vezes, respectivamente.
Esses modelos são apenas dois, dentre vários possíveis, na
construção de uma microestrutura terminológica. Como já citado
anteriormente, essa microestrutura deve levar sempre em conta o
público-alvo desejado. Tendo esta questão em mente, a elaboração da
definição, por exemplo, deveria ser pensada a partir de uma pesquisa
com esse público-alvo, para que ele decida qual tipo de definição é a
mais apropriada para seu entendimento.
8. Conclusão
Neste artigo definimos os conceitos de dicionário, glossário e
vocabulário a partir da perspectiva da Terminologia, e desenvolvemos um
estudo analítico da macro e microestrutura de verbetes de especialidade
em dicionários de Linguística, de Fonética e Linguística da Enunciação.
Na análise da microestrutura de dicionários, definimos outside matter,
middle matter e back matter. Exploramos os paradigmas informacional,
definicional, pragmático e de formas equivalentes (obras bilíngues)
e propusemos um padrão de microestrutura para um vocabulário de
Linguística, direcionado para alunos iniciantes do Curso de Letras como
público-alvo.
Como resultado da análise dos dicionários, observamos que as
obras não compartilham de um mesmo padrão quanto à microestrutura
nem quanto aos paradigmas definicionais. Há obras com perfil mais
enciclopédicos e outra de cunho mais terminológico, revelando que o
224
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
nível de estrutura das informações, às vezes, é de obras que comunicam
de especialista para especialista (Dicionário de Linguística e Gramática
– Mattoso Camara Jr., Dicionário de Linguística e Fonética – David
Crystal, Dicionário de Linguística – Dubois et al., 2004).
Obras de autores mais antigos da área da Linguística parecem
nos mostrar que não havia uma preocupação pormenorizada com a
taxonomia da área. Atualmente, é possível observar que as obras já
são mais específicas, concebidas a partir de um olhar proveniente de
subáreas da Linguística, como o Dicionário da Linguística e Fonética e
da Linguística da Enunciação.
Concluímos que há algumas obras no mercado que buscam servir
como dicionários ou vocabulários de Linguística, mas reconhecemos que
a maioria delas não atende a necessidade dos alunos leigos, no que tange
à definição dos termos linguísticos. Logo, ressaltamos essa necessidade e
buscamos trazer uma alternativa de obra que possa atender esse públicoalvo, aproximando-os da linguagem de especialidade, do conhecimento
técnico, responsável pelo processo de denominação, nominalização
e padronização dos termos. Propusemos uma microestrutura mais
completa e, especificamente, um paradigma definicional dentro do
padrão GPDE, de perfil terminológico, direcionado para alunos
iniciantes como público-alvo.
Esperamos ter contribuído para despertar a discussão entre
profissionais da área de Linguística, bem como estabelecer possíveis
padrões que podem ser adotados na pesquisa terminográfica no contexto
de falantes de língua portuguesa e inglesa.
Declaração de autoria
Este artigo foi produzido de maneira colaborativa pelos autores: Guilherme
Fromm e Márcio Issamu Yamamoto. Primeiramente, a introdução foi
elaborada por ambos. Em segundo lugar, a seleção das obras analisadas
constitui parte do doutorado em andamento, intitulado Vocabulário
bilíngue de Linguística, conduzido por Yamamoto, sob a orientação de
Fromm. Em seguida, o item 2, de Dicionário, Vocabulário e Glossário foi
um aprimoramento dos conceitos apontados por Fromm em sua tese de
doutorado; a fundamentação teórica da macro e microestrutura foi redigida
por Yamamoto. Finalmente, a seção de Dados analisados, da microestrutura
e dos paradigmas definicionais foram elaborados pelos autores, bem como
a proposta de microestrutura, a conclusão e as referências.
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225
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
227
aNEXos
DICIoNÁrIos DE EsPECIaLIDaDE
DICIoNÁrIo
Dicionário de
Linguística e
gramática
TErMos
LINguagEM - Faculdade que tem o homem de exprimir seus
estados mentais por meio de um sistema de sons vocais chamado
língua (v.), que os organiza numa REPRESENTAÇÃO1 compreensiva
em face do mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior.
Pela atividade da linguagem ou FALA, - 1) faz-se a comunicação
entre os homens – a) para transmissão de conhecimentos (função
de informação), ou b) numa atuação de influenciamento psíquico
de uns sobre outros (função de apelo); ou - 2) dá-se a exteriorização
das paixões humanas sem intento direto de comunicação (função de
exteriorização ou manifestação psíquica) (cf. Camara, 1959, 13s). A
função da informação cria a linguagem intelectiva pura, enquanto as
do apelo e manifestação psíquica utilizam a representação linguística
para a expressão do que se chama, em sentido lato, os “afetos” em
contraste com a atividade de compreensão mental ou inteligência,
criando a LINGUAGEM AFETIVA (cf. Bally, 1926).
A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama entre o
FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a pessoa a quem
ela se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela de representação
mental que nela se consubstancia), mas na manifestação psíquica o
ouvinte não é levado diretamente em conta. Por outro lado, falante
e ouvinte coincidem na mesma pessoa na atividade de linguagem
chamada solilóquio (v.).
A linguagem é uma faculdade imensamente antiga da espécie humana
e deve ter precedido os elementos mais rudimentares da cultura
material (Sapir, 1954, 23).
LINGUAGEM AFETIVA [...]
LINGUAGEM ESCRITA [...]
LINGUAGEM INTELECTIVA [...]
LINGUAGEM ORAL [...]
LINGUAGEM SILENCIOSA [...]
sIgNo – v. símbolo; dêixis.
sÍMBoLo – [...] SIGNO, que é a essência da linguagem e
corresponde à significação (v.) de formas linguísticas.
DÊIXIs – [...] Podemos dizer que o signo linguístico se apresenta em
dois tipos – o SÍMBOLO, em que um conjunto sônico, representa ou
simboliza, e o SINAL, em que o conjunto sônico indica ou mostra (v.
símbolo). [...]
228
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
aNEXo
DICIoNÁrIos DE EsPECIaLIDaDE1
DICIoNÁrIo
TErMos
Dicionário de
Linguística e
gramática
LINguagEM - Faculdade que tem o homem de exprimir seus estados
mentais por meio de um sistema de sons vocais chamado língua (v.),
que os organiza numa REPRESENTAÇÃO15 compreensiva em face do
mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior. Pela atividade da
linguagem ou FALA, – 1) faz-se a comunicação entre os homens – a)
para transmissão de conhecimentos (função de informação), ou b) numa
atuação de influenciamento psíquico de uns sobre outros (função de apelo);
ou – 2) dá-se a exteriorização das paixões humanas sem intento direto
de comunicação (função de exteriorização ou manifestação psíquica)
(cf. Camara, 1959, 13s). A função da informação cria a linguagem
intelectiva pura, enquanto as do apelo e manifestação psíquica utilizam
a representação linguística para a expressão do que se chama, em sentido
lato, os “afetos” em contraste com a atividade de compreensão mental ou
inteligência, criando a LINGUAGEM AFETIVA (cf. Bally, 1926).
A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama entre o
FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a pessoa a quem ela
se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela de representação mental
que nela se consubstancia), mas na manifestação psíquica o ouvinte não é
levado diretamente em conta. Por outro lado, falante e ouvinte coincidem
na mesma pessoa na atividade de linguagem chamada solilóquio (v.).
A linguagem é uma faculdade imensamente antiga da espécie humana e
deve ter precedido os elementos mais rudimentares da cultura material
(Sapir, 1954, 23).
LINGUAGEM AFETIVA [...]
LINGUAGEM ESCRITA [...]
LINGUAGEM INTELECTIVA [...]
LINGUAGEM ORAL [...]
LINGUAGEM SILENCIOSA [...]
sIgNo – v. símbolo; dêixis.
sÍMBoLo – [...] SIGNO, que é a essência da linguagem e corresponde à
significação (v.) de formas linguísticas.
DÊIXIs – [...] Podemos dizer que o signo linguístico se apresenta em dois
tipos – o SÍMBOLO, em que um conjunto sônico, representa ou simboliza,
e o SINAL, em que o conjunto sônico indica ou mostra (v. símbolo). [...]
15
No Dicionário de Linguística e Gramática, as remissivas são marcadas com verbetes
em caixa alta.
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Dicionário de
Linguística e
Fonética
229
Linguagem Termo de sentido abstrato que se refere à faculdade
biológica que possibilita aos indivíduos aprender a usar a sua
LÍNGUA – uma capacidade implícita na noção de “dispositivo de
AQUISIÇÃO da linguagem” da PSICOLINGUÍSTICA. Ainda em
nível abstrato, a “linguagem” é uma característica do comportamento
humano – as propriedades UNIVERSAIS de todos os sistemas de
fala/escrita, especialmente quando caracterizadas por “traços do
esquema” (como PRODUTIVIDADE, DUALIDADE, CAPACIDADE
DE APRENDIZADO) ou “universais da língua” – (FORMAIS,
SUBSTANTIVOS, etc.). A aplicação popular do termo se concentra nos
modos de comunicação que não são fala ou escrita (a “linguagem do
corpo”, a “linguagem dos olhos”). Pode ser aplicado ocasionalmente à
comunidade animal natural (cf. ZOOSEMIÓTICA). Pode ser igualmente
usado para indicar a “língua” ou o “dialeto” usado por uma comunidade
específica, como sinônimo de jargão: “linguagem científica”, “linguagem
médica”, “linguagem médica”, “linguagem econômica”, etc. Ver Robins
1979: Cap. 1; Bolinger e Sears 1981: Cap. 1
Linguagem de assobios [...]
Linguagem formulaica [...]
Linguagem telegráfica[...]
SIGNO (significante, significado) Diversas aplicações restritas do termo
geral são encontradas nos estudos LINGUÍSTICOS e filosóficos da
SIGNIFICAÇÃO. A filosofia discute especialmente os tipos de contrastes
possíveis que existem nas noções como “signos”, “símbolos”, “sintomas”
e “sinais”. Às vezes, “signo” é usado em sentido abrangente, como
quando se diz que a SEMIÓTICA é a “ciência dos signos”. Na discussão
linguística, no sentido mais difundido, as expressões linguísticas
(PALAVRAS, SENTENÇAS, etc.) são consideradas “signos” das
entidades, dos acontecimentos, etc. a que remetem (ou frequentemente,
dos conceitos envolvidos). Esta relação entre signo e coisa, ou signo e
conceito, é tradicionalmente conhecida como significação. A expressão
signo linguístico é usada quando se faz necessária uma distinção
com outras categorias do signo (visual, táctil, etc.). O linguista suíço
Ferdinand de SAUSSURE introduziu uma distinção terminológica que
exerceu considerável influência sobre a subsequente discussão linguística:
significante (ou “significans”) se opunha a significado (ou “significatum”)
e ele enfatizava a ARBITRARIEDADE da relação entre a FORMA e a
SIGNIFICAÇÃO dos signos. Ver Lyons 1977b:Cap. 4.
230
Dicionário de
Linguística
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
Linguagem
Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar
por meio de um sistema de signos vocais (ou língua*), que coloca em
jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função
simbólica e de centros nervosos geneticamente especializados. Esse
sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade
linguística) determinado constitui uma língua particular. Pelos problemas
que apresenta, a linguagem é o objeto de análises muito diversas, que
implicam relações múltiplas: a relação entre o sujeito e a linguagem, que
é o domínio da psicolinguística; entre a linguagem e a sociedade, que
é o domínio da sociolinguística; entre a função simbólica e o sistema
que constitui a língua; entre a língua como um todo e as partes que a
constituem; entre a língua como sistema universal e as línguas que são
suas formas particulares; entre a língua particular como forma comum
a um grupo social e as diversas realizações dessa língua pelos falantes,
sendo tudo isso o domínio da linguística. Esses diversos domínios são
necessária e estreitamente ligados uns aos outros.
A melhor definição que se pode dar da linguística como ciência da
linguagem (englobando, então, psicolinguística e sociolinguística) e
ciência da língua e das línguas, ao mesmo tempo em seu funcionamento
e desenvolvimento (ou transformação), é fornecida pela lista dos verbetes
mais importantes contidos neste dicionário. [...]
signo
O signo, no sentido mais geral, designa, assim como o símbolo, o índice,
ou o sinal, um elemento A – de natureza diversa – substituto de um
elemento B.
1. Signo, inicialmente, pode ser um equivalente de índice; o índice* – ou
o signo – é um fenômeno mais frequentemente natural, imediatamente
perceptível, que nos faz conhecer qualquer coisa em relação a um
fenômeno não imediatamente perceptível: por exemplo, a cor sombria
do céu é um signo – ou o indício – de uma tempestade iminente; [...]
2. Em segundo lugar, o signo pode ser um equivalente de sinal. Neste
sentido, o signo – ou sinal – faz parte da categoria dos indícios; ele
possui as características do signo-indício (como o signo-indício, o
signo-sinal é um fato imediatamente perceptível que permite conhecer
qualquer coisa em relação a outro fato não imediatamente perceptível);
mas duas condições são necessárias para que um signo seja considerado
como sinal:
a) é necessário que o signo tenha sido produzido para servir de
índice. Portanto, ele não é fortuito, mas produzido com uma
intenção deliberada;
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
231
b) é necessário, por outro lado, que aquele a quem é destinada a
indicação contida no sinal possa reconhecê-la. Um signo-sinal é,
portanto, voluntário, convencional e explícito. Combinado com
outros sinais da mesma natureza, ele forma um sistema de signos
ou código. Num mesmo código, os signos podem ter diferentes
formas:
̶ forma gráfica: letras, cifras, [...]
̶ forma sonora: sons emitidos pelo aparelho vocal [...]
̶ forma visual: sinais gestuais, [...]
3. signo, enfim, pode ser um equivalente de símbolo*. O signo-símbolo
é mais frequentemente uma forma visual (e mesmo gráfica) figurativa.
O signo-símbolo é o signo figurativo de uma coisa que tem aquele
sentido; por exemplo, o signo figurativo que representa uma balança é
o signo-símbolo da ideia abstrata de justiça.
4. No Curso de Linguística Geral de F. de Saussure, o termo signo adquiriu
outra acepção: a de signo linguístico. F. de Saussure faz distinção entre
símbolo e signo (tomado agora com o sentido de signo linguístico):
ele pensa, [...], que existem inconvenientes em admitir que se possa
utilizar a palavra símbolo para designar o signo linguístico. O símbolo,
ao contrário do signo, tem por característica jamais ser arbitrário, isto é,
existe um laço rudimentar entre significante e significado. [...] Com F.
de Saussure, o signo linguístico foi instaurado como unidade de língua.
Passa a ser a unidade mínima da frase, susceptível de ser reconhecido
como idêntico num contexto diferente, ou de ser substituído por uma
unidade diferente num contexto idêntico.
5. Os signos linguísticos, essencialmente psíquicos, não são abstrações.
O signo – ou unidade – linguístico é uma entidade dupla, produto
da aproximação de dois termos, ambos psíquicos e unidos pelo laço
de associação. Une, com efeito, não uma coisa a um nome, mas um
conceito a uma imagem acústica. [...] O signo linguístico, é, portanto, o
que F. de Saussure denomina uma entidade de duas faces, a combinação
indissolúvel, no interior do cérebro humano, do significado e do
significante. [...]
6. O signo linguístico, tal como o definiu F. de Saussure, apresenta certo
número de características essenciais:
a) Arbitrariedade do signo. [...]
b) Carácter linear do significante. [...]
c) Imutabilidade do signo. [...]
d) Mutabilidade do signo. [...]
7. [...]
8. Com o nascimento da teoria da comunicação e a influência direta
desta sobre as pesquisas linguísticas, o signo linguístico adquire nova
dimensão: ele se torna sinal, integrando o código de sinais que é a
língua, considerada daí por diante como um sistema de comunicação.
Os signos deste código linguístico são os fonemas ̶ [...]
232
Dicionário de
Linguística da
Enunciação
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
linguagem (1) s.f. Bally
outras denominações: linguagem natural.
Definição: conjunto dos sistemas estrutural e de uso da língua.
Fonte da definição: BAL51; BAL65; BAL67
Nota explicativa: A linguagem é o conjunto formado pela união do
sistema de símbolos linguísticos e pelo sistema de unidades expressivas. O
primeiro conjunto é constituído por associações e oposições de elementos
na consciência dos sujeitos. Como os símbolos dificilmente correspondem
às unidades de pensamento, os sujeitos, em seu meio social específico,
criam o sistema expressivo, de fatos de expressão, isto é, um grupo
de unidades que têm relação com a afetividade e com a subjetividade,
atualizando-o constantemente a partir do uso. O termo linguagem está
estreitamente ligado ao uso da língua e consta na primeira fase da obra de
Bally, a Estilística. [...]
Fonte da nota: BAL51; BAL65; BAL67.
Leitura recomendada: CH185; DUR98; MED85.
Termos relacionados: língua (1), sujeito falante (1).
linguagem (2) s.f. Benveniste
Definição: faculdade de simbolizar inerente à condição humana.
Fonte da definição: BEN95: 27
Nota explicativa: assim entendida, a linguagem está diretamente ligada
à intersubjetividade uma vez que, como uma faculdade de simbolizar, ela
é a condição de existência do homem e como tal é sempre referida ao
outro. A linguagem é constitutiva do homem na justa medida em que a
intersubjetividade lhe é inerente. Dessa forma, pode-se considerar que a
vinculação entre linguagem e intersubjetividade constitui uma espécie de
a priori da teoria benvenistiana. Em testemunho disso, cabe lembrar o
texto “Da subjetividade na linguagem”, de 1958, em que Benveniste diz
que “Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando
conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no
mundo, um homem falando com outro homem. E a linguagem ensina a
própria definição do homem” (BEN95:285).
[...]
Fonte da nota: BEN89; BEN95; FLO07.
Leitura recomendada: FLO07.
Termos relacionados: língua (2), língua-discurso.
linguagem (3) s.f. Culioli
Definição: capacidade humana de construção de representação,
referenciação e regulação passível de ser apreendida na diversidade das
línguas.
Fonte da definição: FRA98.
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Nota explicativa: A linguagem, como uma atividade cognitiva de
construção e reconhecimento de formas, é responsável pela constituição
dos enunciados e pela construção da significação. Por ser cognitiva, essa
atividade somente pode ser apreendida a partir daquilo que produz, ou
seja, dos enunciados, partindo-se deles e a eles retornando. O conceito
culioliano de linguagem pressupõe, portanto, uma contínua atividade
epilinguística (atividade metalinguística não-consciente) que supõe a
relação entre um modelo (competência) e a sua realização (performance).
Desse modo, Culioli, cuja teoria tem por objeto de estudo a relação entre a
linguagem e as línguas, toma por objeto de análise aquilo que é acessível
ao linguista e passível de observação, ou seja, os enunciados e seus
valores interpretativos. Desse modo, a linguagem, atividade significante
de representação, referenciação e regulação, somente é acessível através
dos textos, isto é, dos arranjos de marcadores.
Fonte da nota: FRA98.
Leitura recomendada: FRA98; FUC75; FUC84.
Termos relacionados: enunciação (5), enunciador (4), linguística.
linguagem (4) s.f. Jakobson
Definição: sistema de signos linguísticos que tem seu funcionamento
baseado nos processos de seleção e combinação.
Fonte da definição: JAK69b.
Nota explicativa: Em Jakobson, linguagem é sinônimo de funcionamento.
Segundo o autor, “falar implica a seleção de certas entidades linguísticas
e sua combinação em unidades linguísticas de mais alto grau de
complexidade” (1969: 37). Essa possibilidade de arranjo se dá através
da metáfora (seleção) e da metonímia (combinação). Tendo em vista
que a linguagem é operacionalizada dessa forma, o autor apresenta suas
diferentes funções (fática, conativa, metalinguística, referencial, emotiva
e poética), que se fazem presentes de maneira hierárquica na fala do
interlocutor, dependendo de fatores externos. Ou seja, “a diversidade de
interlocutores e sua mútua adaptabilidade constituem fator de importância
decisiva na multiplicação e diferenciação de subcódigos no âmbito de
uma comunidade de fala e dentro da competência verbal de seus membros
individuais” (1970: 27). [...]
Fonte da nota: EJA06; JAK69b; JAK70.
Leitura recomendada: JAK69b; JAK70.
Termos relacionados: língua (3), metáfora, metonímia.
Linguagem natural s.f. Bally
V. linguagem (1)
234
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020
signo ideológico s.m. Bakhtin
Definição: forma variável e flexível da comunicação discursiva.
Fonte da definição: BAK95b: 93.
Nota explicativa: O signo ideológico não só existe como parte de uma
realidade, mas também reflete a refrata uma realidade que lhe é exterior,
apreendendo-a de um ponto de vista específico. Na relação signo/
ideologia, pode-se dizer que sem signos não há ideologia. Todo signo é
considerado ideológico e está sujeito a critérios de avaliação (verdadeiro,
falso, correto, justificado, bom etc.), o que permite afirmar que não existe
signo neutro. [...]
Fonte da nota: BAK95b; 31-32, 34-36, 93.
Leitura recomendada: BAK95b; CLA98; FAR03.
Termos relacionados: acento de valor, refração, sinal.
Fonte: elaborado pelos autores a partir dos dicionários selecionados.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
atuação de fatores estilísticos na variação
entre as formas de tratamento de segunda pessoa
em uma comunidade de fala valenciana
Stylistic factors in the variation of the performance of treatment
forms of the second person in a Valencian speaking community
José Victor Melo de Lima
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Canindé, Ceará / Brasil
Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará / Brasil
victor.lima@hotmail.es
https://orcid.org/0000-0001-9831-6705
Valdecy de Oliveira Pontes
Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará / Brasil
valdecy.pontes@ufc.br
https://orcid.org/0000-0002-8183-9259
resumo: Neste artigo, analisamos a atuação de fatores estilísticos na variação entre
as formas de tratamento de segunda pessoa, tú e usted, em 36 entrevistas extraídas
do corpus PRESEVAL (Proyecto para el Estudio Sociolingüístico del Español de
Valencia). As 1.286 ocorrências coletadas, sendo 1.185 relativas à variante tú e 101
à variante usted, foram analisadas estatisticamente no programa Goldvarb (2005).
Serviram-nos, como embasamento teórico para tratar da questão da variação estilística,
três diferentes abordagens que aportam uma visão multidimensional desse tipo de
fenômeno (LABOV, 2001, 2008; BELL, 1984; ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES
2002). No que tange às variáveis estilísticas analisadas, obtivemos os seguintes
resultados: (i) os dados evidenciaram um propenso uso de tú nos estilos expositivos e
argumentativos (0.890 e 0.751, respectivamente); (ii) a presença da variável assuntos
menos complexos favorece a ocorrência da variante tú, como evidencia o peso relativo
atribuído (0.639); (iii) os dados indicam uma porcentagem relativamente alta de uso da
variante tú nos três fatores, encabeçada pela proximidade alta (95.1%). Ao observamos
a aplicação da variante usted em nossos dados, essa apareceu de forma mais saliente
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.235-270
236
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
(59 ocorrências) entre os indivíduos caracterizados por uma relação de distanciamento
com o entrevistador, frente aos de proximidade intermediária (38 ocorrências) e alta
(4 ocorrências), respectivamente.
Palavras-chave: formas de tratamento de segunda pessoa; espanhol de Valência;
variação estilística.
abstract: In this paper, we analyze the performance of stylistic factors in the variation
of treatment forms of the second person, tú and usted, in 36 questionnaires take from
thecorpus PRESEVAL (Proyecto para el Estudio Sociolingüístico del Español de
Valencia). The 1.286 occurrences collected, with 1.185 related to the variant tu, and
101 to usted, were statistically analyzed by Goldvarb Program (2005). As theoretical
background to address the question of stylistic variation, three different approaches
were taken to show a multidimensional view of this phenomenon (LABOV, 2001, 2008;
BELL, 1984; ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES, 2002). Concerning the stylistic
variables analyzed, we have got the following results: (i) the data showed an inclined
use of tú in the expository and argumentative styles (0.890 e 0.751, respectively); (ii)
the presence of the variable less complex subjects favors the occurrence of the variant
tú, as evidenced by the relative attributed weight (0.639); (iii) the data have showed
a relatively high percentage of the use of the variant tú in the three factors, headed by
high proximity (95.1%). By observing the use of the variant usted in our data, it has
appeared more prominently (59 occurrences) among subjects characterized by a relation
distance with the interviewer, compared to those of intermediate (59 occurrences), and
high (4 occurrences) proximity respectively.
Keywords: Treatment forms of the second person; Valence Spanish; stylistic variation.
Recebido em 17 de agosto de 2019
Aceito em 30 de setembro de 2019
1 Introdução
Há mais de cinco décadas, Brown e Gilman (1960) propunham
sua teoria pioneira sobre a semântica do poder e da solidariedade que,
desde então, tem rendido um número considerável de pesquisas na
área do tratamento. Em espanhol, Morín, Almeida e Rodríguez (2010)
são categóricos ao afirmar que os estudos que analisam as formas de
tratamento pronominal e nominal, principalmente os primeiros, são de
especial interesse para os sociolinguistas, nesse idioma. Orozco (2010),
Díaz-Campos (2014), Silva-Corvalán e Enrique-Arias (2017) corroboram
essa visão ao assegurar que essas formas integram uma área de estudo
bastante produtiva dentro da Sociolinguística.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
237
Na segunda metade do século passado, Brown e Gilman (190)
postulavam que as línguas europeias como o francês, o alemão, o italiano
e o espanhol, mantinham ativas duas formas de tratamento, no singular,
para se dirigir a um interlocutor e as quais estavam associadas a duas
dimensões: a do poder e a da solidariedade. De acordo com os autores
supra, essas formas tinham origem no tu e no vos do latim, em que a
primeira forma (T) designava relações pautadas pela familiaridade, e a
segunda (V) indicava polidez no tratamento. Em espanhol, tais pronomes
resultaram no tú e no vos1 e este, posteriormente, no usted.
Ainda consoante a esses autores, a dimensão do poder é marcada
por uma relação assimétrica em que um indivíduo exerce poder sobre
outro, por exemplo, a relação entre pais e filhos, patrão e empregado.
Nessa semântica, o indivíduo superior utiliza a forma de tratamento T e
recebe V. Por outro lado, na dimensão da solidariedade, há uma relação
de simetria em que um indivíduo usa T e recebe T, por exemplo, no
tratamento entre irmãos; ou V – V, nas relações em que não há diferenças
relacionadas com o poder, por exemplo, o tratamento entre duas pessoas
de famílias distintas, mas ambas de grande status social.
Ao investigarem os usos das formas de tratamentos nessas línguas
europeias, Brown e Gilman (1960) revelaram uma mudança nos tipos de
relações partindo da assimetria para a simetria. Segundo esses autores, a
dimensão da solidariedade começava a se expandir em vários contextos
sociais, estabelecendo uma reciprocidade através do uso de T mútuo.
No tocante ao uso feito dessas formas em língua espanhola, tal asserção
tem sido comprovada por inúmeros trabalhos (cf. HUMMEL; KLUGE;
VÁZQUEZ LASLOP, 2010).
Além disso, Carricaburo (1997) assevera que as formas de
confiança têm se sobreposto às formas de respeito em grande parte do
1
Conforme Lapeza (2008, passim), na primeira metade do século XVI, vos passou por
momentos de coexistência com vosotros para referir-se a várias pessoas. No entanto,
vos ainda se utilizava para designar indivíduos no singular em usos reverenciais ou de
cortesia. Essa relação, obviamente, causava conflitos. Dessa forma, passou a dar-se
preferência pelo pronome vosotros, uma vez que era inequívoco para fazer referência
a várias pessoas. Vos, então, é eliminado de forma gradual. Ao desvalorizar-se o uso de
vos, para mostrar cortesia no tratamento, usava-se vuestra merced ou vuestra señoría.
De vuestra merced, a repetição deu origem a vuesa merced, vuesarced, vuesançed, etc.
e, finalmente, a voacé, vucé, vuced, vusted, usted. No século XVII, essas últimas formas
eram usadas por criados e, apenas depois, usted generalizou-se.
238
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
mundo hispano. Silva-Corvalán e Enrique-Arias (2017) atestam que o
tuteo – nome dado ao fenômeno que consiste no emprego de formas
verbais e pronominais da segunda pessoa do singular tú, em língua
espanhola – tem avançado em mais situações de uso, inclusive entre
indivíduos que não se conhecem, mas possuem idades similares.
A despeito do número expressivo de trabalhos variacionistas
sobre as formas de tratamento na literatura disponível sobre essa
temática, ainda é perceptível, em muitas pesquisas, que as metodologias
empregadas na análise da alternância entre essas formas são ainda pouco
diversificadas. Ao nos debruçarmos sobre esses estudos, percebemos
que o uso de questionário como instrumento de coleta de dados; análises
pautadas apenas em variáveis de caráter social como: sexo, idade e
escolaridade ou até mesmo pesquisas que consideram, tão somente, a
perspectiva teórica de Brown e Gilman (1960), são lugar-comum nos
estudos sociolinguísticos.
Além disso, ao elaborarem o estado da arte sobre as formas de
tratamento no âmbito da Península Ibérica Espanhola, Calderón Campos
(2010) expõe a reduzida bibliografia sobre os pronomes tú e usted, nesse
contexto. A visão desses autores corrobora a nossa percepção inicial, pois,
além de evidenciarem a escassez de trabalhos nas variedades do espanhol
falado na Espanha, admitem que o referencial teórico e a metodologia
utilizada são bastante homogêneos.
É imperioso ressaltar que, de forma alguma, queremos tirar
prestígio à teoria epistemológica proposta por Brown e Gilman (1960).
Ela foi fundamental para o desenvolvimento das pesquisas na área das
formas de tratamento. No entanto, apesar de também recorremos a essa
teoria, em alguns momentos, para explicarmos determinados padrões de
variação, ponderamos que apenas o seu uso não é suficiente para dar conta
de um sistema pronominal bastante complexo e que depende, inclusive,
de fatores ligados ao próprio indivíduo como o estilo linguístico.
Dito isso, o presente trabalho busca examinar algumas das
lacunas apresentadas e propõe uma análise da variação entre as formas
de tratamento tú e usted em uma comunidade de fala da cidade de
Valência, situada na costa sudeste da Espanha. Ademais, como possíveis
condicionadores desse fenômeno variável, selecionamos alguns fatores
de ordem estilística, como: estilo discursivo, complexidade do assunto e
relação de proximidade entre os interlocutores. Consideramos ser o estilo
uma dimensão que, se no início era uma área marginalizada nos estudos
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
239
sociolinguísticos, como observam Macaulay (1999) e Hora (2014), já há
algumas décadas, constitui uma vertente na área da pesquisa linguística
em que importantes trabalhos têm sido desenvolvidos e oferecem aporte
teórico para a explicação de fenômenos de variação, conforme aludem
Aijón Oliva e Serrano (2010).
2 o estilo em sociolinguística
Antes de tudo, convém salientar que o estilo é o objeto de estudo
da Estilística, disciplina que se volta para os fenômenos da linguagem
(MARTINS, 2012). Definir esse objeto não é tarefa fácil, haja vista que
tem sido discutido em diversas perspectivas teóricas, e sua classificação
dependerá, portanto, do tipo de abordagem adotada. Para Crystal e Davy
(1969), por exemplo, a Estilística é um ramo da Linguística que estuda
certos aspectos ligados à variação linguística.
Ao distinguir alguns conceitos de “estilo”, os autores anteriormente
mencionados revelam que o seu entendimento sobre esse termo se
aproxima de algumas definições apresentadas por estudiosos da
Estilística. Por exemplo, a visão do estilo como um objeto de estudo que
se refere a alguns ou todos os hábitos linguageiros de uma pessoa ou às
formas linguísticas que particularizam um indivíduo. Por outro lado, de
modo semelhante, esses autores apresentam a noção de estilo como um
objeto que pode se referir aos hábitos linguísticos referentes a um grupo
de pessoas de uma só vez ou em um mesmo período de tempo.
Ao buscarmos uma definição para estilo no Dicionário crítico
de sociolinguística, organizado por Bagno (2017), encontramos uma
compreensão bastante similar ao exposto no parágrafo anterior. De
acordo com esse autor:
Em seu sentido mais amplo, estilo se refere a um modo distintivo
de falar ou escrever. As pessoas adotam diferentes estilos em
diferentes contextos (por exemplo, no caso da fala, a depender
de com quem se está falando, o tema da conversa, o local físico
da interação etc.). Os estilos podem diferir em vários níveis
linguísticos (léxico, gramática, pronúncia). As escolhas estilísticas
são significativas por representarem contrastes: a escolha de uma
palavra ou de uma pronúncia, por exemplo, em lugar de outra que
poderia ter sido usada. (BAGNO, 2017, p. 122, grifo do autor)
240
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
Bagno expõe, ainda, que:
Na Sociolinguística variacionista, estilo é um termo técnico que se
refere à formalidade relativa de uma situação. Neste caso, o estilo
da fala poder ser analisado em termos de um continuum estilístico
que vai do menos formal ao mais formal, de acordo com o grau
de atenção prestado pelo falante ao próprio discurso. (BAGNO,
2017, p. 122, grifos do autor)
Essa maneira de perceber o estilo refere-se à perspectiva
laboviana dentro dos estudos sociolinguísticos. Em outras palavras, é a
Labov (2008), com seu estudo pioneiro em Nova York, que se atribui a
inserção do estilo como variável que pode revelar padrões de variação.
Para Eckert e Rickford (2001, p. 1), “Style is a pivotal construct in
the study of sociolinguistic variation.”.2 Para esses autores, o trabalho
laboviano supramencionado colocou em uma posição central a teoria
e a metodologia referentes ao estilo. Sobre essa dimensão da variação,
conforme Schilling-Estes (2002) e Görski e Valle (2014), três principais
abordagens caracterizam os estudos dessa área desde a década de 60.
São elas: i) Attention paid to speech, proposta por Labov (2001, 2008);
ii) Audience design, desenhada por Bell (1984) e iii) Speaker design
(ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES, 2002).
Ao estabelecer as bases para uma análise estilística da variação,
modelo Attention paid to speech ou, em português, “grau de atenção à
fala”, Labov (2008) estava interessado em chegar ao vernáculo do falante.
Dito de outra forma, o linguista pretendia observar a fala mais espontânea,
isto é, os trechos de fala em que havia menos monitoramento, pois era
no vernáculo que se poderia registrar os processos de mudança. Desse
modo, como a coleta de dados partia do estilo do falante, Labov (2008)
desenhou a entrevista sociolinguística, a partir da qual lhe possibilitaria
obter uma extensa amostra de estilo; desde a fala mais formal a menos
formal (ECKERT; RICKFORD, 2001).
Para Labov (1972), o estilo do falante abarcava um contínuo
socioeconômico, pois, segundo esse autor, as variações linguísticas
estavam relacionadas a uma estratificação socioeconômica. Desse modo,
o linguista estabelece um continuum estilístico para cada falante no
“O estilo é um constructo fundamental no estudo da variação sociolinguística.”.
(ECKERT; RICKFORD, 2001, p. 1, tradução nossa).
2
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
241
qual, no topo, está a fala mais cuidada, mais formal e de prestígio e, em
um nível mais baixo, registra-se a fala menos cuidada, mais informal
e estigmatizada. No entanto, como a entrevista sociolinguística é um
método de coleta relativamente formal, isso poderia impedir o linguista
de chegar ao vernáculo do falante, isto é, a fala mais natural.
Para resolver o “paradoxo do observador”, como Labov chamou
a problemática acima, a solução foi controlar os tópicos de conversa. A
entrevista é, então, segmentada em níveis de formalidade e informalidade
e o linguista percebia as variações de estilo a partir do grau de
monitoramento que o falante exercia sobre a fala. Essa forma de analisar
os estilos distribuídos em uma única dimensão ficou conhecida como
isolamento de estilos contextuais, que compõe o desenho metodológico
elaborado por Labov (2008) entre os anos 60 e 70, conhecido como
modelo de análise contextual.
Os níveis de formalidade e informalidade, conhecidos como
“estilos contextuais”, estabelecidos por Labov (2008) e segmentados na
entrevista, foram os seguintes:
i)
ii)
iii)
iv)
v)
vi)
vii)
viii)
ix)
contexto A1: fala fora da entrevista formal – compreende a fala
que está fora da entrevista propriamente dita, por exemplo, uma
interrupção ou quando o falante oferece alguma bebida;
contexto A2: fala com uma terceira pessoa;
contexto A3: fala que não responde diretamente a perguntas, isto
é, digressões, interrupções rápidas ou retóricas etc.;
contexto A4: parlendas e rimas infantis;
contexto A5: risco de vida;
contexto B: é a parte principal da entrevista e constitui o estilo
identificado como fala monitorada;
contexto C: estilo de leitura. O informante realiza a leitura de textos
padronizados nos quais se concentram variáveis fonológicas em
parágrafos sucessivos ou pode haver trechos justapondo pares
mínimos;
contexto D: leitura de listas de palavras com as variáveis que se
pretende analisar;
contexto D’: leitura de listas de palavras com pares mínimos que
marcam, como diferença, apenas um elemento fonêmico.
242
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
Posteriormente, Labov refina o modelo de isolamento de estilos
contextuais e propõe outro modelo de análise conhecido como árvore
de decisão. Nele o linguista ainda admite que as alternâncias de estilos
são determinadas pelo grau de monitoramento à fala e apresenta duas
dimensões para captação do estilo: uma com fala mais casual (casual
speech) e é caracterizada pela ausência de monitoramento por parte do
falante; e uma de fala mais cuidada (careful speech) em que há um estilo
de fala mais formal.
A cada dimensão correspondem quatro subcategorias, ou
contextos estilísticos, associados a situações que atravessam a entrevista.
São elas: narrativa – narrativas orais de experiência pessoal; grupo – fala
direcionada a outros interlocutores fora da entrevista formal; infância –
narrativas de infância; tangente – são as digressões, trechos de fala do
entrevistado que fogem ao núcleo temático por interesse dele; e resposta
– o primeiro enunciado que segue a fala do entrevistador; língua(gem) –
falas que abordam aspectos linguísticos; soapbox – quando o entrevistado
opina de maneira genérica, dirigindo-se não diretamente ao entrevistador,
mas como se fosse para um público mais amplo, e residual – consiste
em todas as falas da entrevista que não se encaixam em nenhum dos
outros contextos.
Para a análise estilística, o sociolinguista deve associar os
trechos de fala do informante a um desses contextos. Ao associar, se
houver correspondência, a análise termina. Por outro lado, não havendo
correspondência, segue-se associando às outras subcategorias até chegarse ao residual, contexto estilístico que, como vimos, acolhe os trechos
de fala em que não foi possível estabelecer uma correspondência com
os demais estilos contextuais.
O modelo laboviano para análise da variação estilística foi alvo de
críticas por vários estudiosos. Dantas e Gibbson (2014) e Coelho e Nunes
de Souza (2014), por exemplo, questionaram o fato de Labov focar no
grau de atenção à fala, algo que, como observa Eckert e Rickford (2001),
contribuiu para que mais estudos sobre o estilo não fossem replicados na
década de 70. Além disso, estes autores afirmam que havia dificuldades
em isolar a fala mais casual da fala mais formal através dos contextos
presentes na entrevista. Bell (1984), sociolinguista neozelandês, criticou o
método através do qual Labov (2008) separava a fala mais casual. Como
se sabe, este linguista utilizava, por exemplo, a leitura de textos, listas
de palavras e pares mínimos para apreender esse tipo de estilo.
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243
Para Bell (1984), esse tipo de estilo do falante era considerado
“artificial” na entrevista, pois, em um contexto comunicativo espontâneo,
seria difícil o indivíduo produzi-lo. Isto é, o estilo captado quando
o informante lesse uma lista de palavras só seria possível quando o
falante lesse uma lista de palavras. Dessa forma, nos anos posteriores à
proposição do modelo de análise contextual laboviano, há uma mudança
de foco nos estudos do estilo. Se antes centravam-se no âmbito do
falante, depois passa a estar na influência que o interlocutor exercia na
variação estilística. Surge, então, em 1984, a proposta metodológica de
Bell: Audience Design.
Bell (1984) defende que a dimensão estilística deve estar
correlacionada aos atributos de um indivíduo, tendo em vista que ela
deriva da dimensão social e essa, conforme alguns sociolinguistas, está
relacionada às características do falante como sexo e idade. Contudo,
para ele, há de considerar as características do ouvinte e não do falante.
Assim, a variação estilística é explicada a partir da influência que a
audiência, ou seja, o interlocutor projeta sobre o falante. Bell (1984, p.
159) assume: “[...] persons respond mainly to other persons, that speakers
take most account of hearers in designing their talk”.3 Esse constitui o
axioma principal do modelo supracitado.
Em seu desenho metodológico, Bell (1984) estabelece uma
relação de causa e efeito em três níveis que sustenta o seu foco no ouvinte.
O primeiro nível, de caráter sincrônico, refere-se a um único falante que,
em determinadas situações, altera o seu estilo para soar, linguisticamente,
como outro falante. O segundo nível, de caráter diacrônico, diz respeito a
um falante individual que, no curso do tempo, altera o seu discurso para
se assemelhar a outros grupos, por exemplo, quando o falante se muda
para outra região com dialeto diferente. O último nível, mais próximo
do segundo, aponta para todo um grupo de falantes que altera a sua fala
para se aproximar à fala de outro grupo.
Ademais, Bell (1984) designa diferentes categorias de audiência
cuja influência sobre a variação estilística dependerá da distância que o
público mantém do falante. Em outras palavras, quanto mais próximo
deste, maior será a influência em seu estilo. Para Bell (1984), a principal
“As pessoas respondem, principalmente, a outras pessoas, ou seja, o que os falantes
levam mais em conta são os ouvintes, ao projetarem suas falas.” (BELL, 1984, p. 159,
tradução nossa).
3
244
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audiência é a segunda pessoa, isto é, o destinatário, o qual é reconhecido
e ratificado. A categoria que inclui esse tipo de audiência foi denominada
de adresse. No entanto, Bell não considerou apenas a segunda pessoa,
mas, também, as terceiras pessoas. A categoria conhecida como auditor
agrega as pessoas presentes, conhecidas e ratificadas, porém, não
diretamente endereçadas. Em overhearer, o falante tem consciência da
sua existência. No entanto, são participantes não ratificados. Na última
categoria, eavesdropper, estão as pessoas cuja presença é desconhecida.
Sendo assim, de acordo com Bell (1984, p. 159), “These four audience
roles are implicationally ordered according to whether or not they are
addressed, ratified, and known.”.4
Assim como o modelo de Labov (2008), a proposta de análise de
Bell (1984) também foi alvo de críticas. Para HernándezCampoy (2016),
assim como o modelo anterior, Audience Design é ainda unidimensional,
nesse caso, com foco no ouvinte. Além disso, entre outras críticas, o
autor questiona o fato de esse modelo não especificar, exatamente, quais
fatores da audiência motivam a mudança de estilo no indivíduo. Desse
modo, para ele, Bell subestima o papel do falante. Contudo, Hernández
Campoy (2016) reconhece que essa abordagem fornece uma descrição
mais completa da variação estilística do que a abordagem laboviana de
atenção à fala. De modo análogo, sobre o trabalho de Bell publicado em
1984, Ecker e Rickford (2001, p. 4) afirmam:
This paper not only introduced a coherent view of style-shifting, it
also integrated a wide range of previously disparate sociolinguistic
findings, and posited a number of novel theoretical generalizations
and testable predictions about the relation between social and
stylistic variation.5
Em conformidade com Shilling-Estes (2002), com o progresso
nos estudos da variação estilística, houve um deslocamento de abordagens
unidimensionais para abordagens multidimensionais que incluem vários
Essas quatro funções da audiência estão implicitamente ordenadas de acordo com
o fato de serem ou não endereçadas, ratificadas e conhecidas.” (BELL, 1984, p. 159,
tradução nossa).
5
Este artigo não apenas introduziu uma visão coerente da mudança de estilo, mas
também integrou uma ampla gama de achados anteriormente díspares, e propôs uma
série de novas generalizações teóricas e previsões testáveis sobre a relação entre
variação social e estilística.
4
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245
fatores motivadores desse tipo de variação (tópicos, cenários, grupos
sociais etc.). Para a autora: “Because the focus is now on how speakers
use variation to fashion themselves and their surroundings, current
approaches to stylistic variation can be classified as SPEAKER DESIGN
approaches.”6 (SHILLING-ESTES, 2002, p. 339, grifo da autora).
Ainda em fase inicial no Brasil, o modelo Speaker Design centra
seu estudo na comunidade de prática e não na comunidade de fala, como
nas abordagens anteriores. Aquela é entendida como um grupo de pessoas
que possuem perspectivas em comum e que se engajam em projetos
comuns. Dessa forma, como o indivíduo integra a matriz social, é nela
que ele constrói a sua identidade através da prática estilística (ECKERT,
2001). O foco desse modelo está em saber como o indivíduo se vale da
variação estilística para construir essa identidade, assim como estabelecer
interações interpessoais e criar identidades de grupo (SHILLING-ESTES,
2002).
Destarte, quando o falante realiza combinações para produzir
diferentes maneiras de falar, este trabalha na construção da persona. É
esse processo que é entendido como estilo. Nessa fase dos estudos sobre
a variação estilística, Shilling-Estes (2002) afirma que há um uso criativo
dos recursos linguísticos. A autora ainda expressa que, finalmente, os
estudos nessa área passam a considerar tanto a percepção do ouvinte
como a produção do falante, uma vez que, para que haja significado
social, depende-se do que o falante quer transmitir e de como os ouvintes
interpretam o que esse diz.
Vale ressaltar que, de acordo com a autora supra, as três
abordagens, anteriormente apresentadas, podem correlacionar-se às três
ondas classificadas por Eckert (2012) quando esta analisou os estudos
variacionistas desde o trabalho seminal de Labov (2008). Ademais,
Shilling-Estes (2002) chama atenção para o fato de essas três abordagens
não serem, claramente, separáveis. Eckert (2012), por sua vez, exprime
que uma abordagem não invalida a outra, mas se complementam entre si.
“Como o foco agora está em como os falantes usam a variação para moldar a si mesmos
e seus arredores, as abordagens atuais da variação estilística podem ser classificadas
como abordagens SPEAKER DESING.” (SHILLING-ESTES, 2002, p. 339, tradução
nossa.).
6
246
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
3 Metodologia
A fim de viabilizarmos a proposta de análise deste trabalho,
recorremos a um corpus oral previamente elaborado do âmbito do
espanhol peninsular. Nossa escolha por esse tipo de corpus pautou-se
pelas questões levantadas na seção introdutória, isto é, a relativa escassez
de trabalhos sobre as formas de tratamento, nessa variedade do espanhol.
Ademais, objetivamos diversificar o método de coleta que, como
expusemos, são majoritariamente questionários e textos literários. Desse
modo, empreendemos uma pesquisa sobre os corpora já compilados e
publicados que atendessem esses nossos objetivos.
Sendo assim, recorremos ao Proyecto para el estudio
sociolingüístico del español de España y de América (PRESEEA) por
abrigar equipes de vários países do mundo hispano, empenhadas em
constituir uma grande amostra sociolinguística que viabilizem pesquisas
sob diversas perspectivas em língua espanhola. Destarte, dentre os
corpora disponíveis relativos a cidades espanholas, optamos por trabalhar
com o corpus da cidade de Valência em virtude do desenho metodológico
de suas entrevistas. Nessas o conjunto de módulos temáticos foi gravado
considerando diferentes tipologias textuais (narrativa, argumentativa,
descritiva, expositiva, dialogada), as quais, dependendo do propósito
comunicativo, podem apresentar certa variação estilística. Desse modo,
considerando a abordagem da dimensão estilística da variação proposta
neste trabalho, pareceu-nos oportuno o uso do corpus intitulado Proyecto
para el estudio sociolingüístico del español de Valencia (PRESEVAL).
Desenhado em 1996 e finalizado em 2006, o corpus PRESEVAL
seguiu os critérios estabelecidos na metodologia desenhada pelo
PRESEEA, assim como as demais equipes que integram este macrocorpus.
A amostra original do material com o qual trabalhamos é constituída pelas
entrevistas de 74 informantes, estratificados nas seguintes variáveis:
sexo, agrupados em homens e mulheres; idade - faixa etária 1 (de 20
a 34 anos), faixa etária 2 (de 35 a 54 anos) e faixa etária 3 (acima de
55 anos); escolaridade - nível baixo, nível médio e nível alto e língua
habitual dividida em castelhano-falantes e bilíngues.
Para este estudo, selecionamos 36 entrevistas, estratificadas a
partir das variáveis sexo (homem e mulher), idade (faixa etária 1, 2 e
3) e escolaridade (alta e baixa). Essa amostra encontra-se publicada
em dois volumes (GÓMEZ MOLINA, 2001, 2007). No que se refere a
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
247
essa última variável, alguns estudos evidenciam que os indivíduos que
tiveram um maior tempo de escolarização produzem mais variedades
consideradas padrão do que aqueles que estiveram menos tempo de
ensino formal (COELHO et al., 2015). A fim de verificarmos se esse
comportamento se repete no estudo em questão, optamos por trabalhar
apenas com os extremos do grupo de fatores escolaridade, ou seja, com
os níveis alto e baixo.
Isso não significa que o nível de escolaridade médio não seja
relevante para revelar padrões de variação e possa ser descartado. Mas,
de acordo com os trabalhos consultados (cf. HUMMEL; HKLUGE;
VÁZQUEZ LASLOP, 2010), percebemos certa polarização no uso de
uma variante ou outra no que se refere às formas tú e usted relacionada
à escolaridade. O índice de uso dessas formas pelos falantes com
escolaridade mediana, nesses estudos, tem, geralmente, se aproximado de
um dos extremos mencionados anteriormente. Desse modo, acreditamos
que isso possa viabilizar a nossa pesquisa no que tange à escolha pela
exclusão do nível médio de escolaridade.
Neste ponto, também é imperioso ressaltar que formaram parte da
nossa amostra apenas as formas tú e usted em posição de sujeito oracional.
Consideramos, igualmente, as formas implícitas e explícitas desses
pronomes. Adotamos essa perspectiva em virtude de, segundo Matte
Bon (2008), diferentemente de outras línguas, o pronome sujeito, em
língua espanhola, nem sempre vir explícito no contexto. Esse gramático
esclarece que o verbo já carrega as marcas pessoais, inclusive na língua
falada, e é categórico ao afirmar: “[…] en español, el pronombre sujeto
aparece solo cuando al hablante le parece indispensable para la correcta
comprensión de sus intenciones comunicativas”.7 (MATTE BON, 2008, p.
249). Esse aspecto possibilita, pois, a comutação das formas pronominais
de tratamento por seus respectivos paradigmas verbais.
Posterior à análise do corpus e coleta, categorizamos esses dados
com as seguintes variáveis estilísticas: estilo discursivo, complexidade
do assunto e relação de proximidade entre os interlocutores. Esses dados
passaram por um tratamento estatístico oportunizado pelo programa
Goldvarb (2005), do conjunto de programas computacionais VARBRUL,
“[...] em espanhol, o pronome sujeito aparece somente quando, ao falante, parece-lhe
indispensável para a correta compreensão de suas intenções comunicativas” (MATTE
BON, 2008, p. 249, tradução nossa).
7
248
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
do inglês, Variable Rules Analysis. Consoante a Guy e Zilles (2007),
esse software é bastante utilizado nos estudos sociolinguísticos porque
foi projetado para lidar com fenômenos variáveis e possibilitar uma
análise multivariada.
Para o estilo discursivo narrativo, a nossa hipótese é de que
haverá maior uso de tú que nos outros estilos não narrativos. Ancoramonos no estudo de Silva (2016), que atesta que as sequências narrativas,
em especial as que envolvem experiência pessoal, têm certa influência
positiva na expressão de formas linguísticas consideradas informais.
Por outro lado, ponderamos que, no estilo argumentativo, haverá
predominância de usted, supondo que, nessa sequência, o falante fará
uso de uma fala mais cuidada. A equipe do PRESEVAL selecionou, para
essa sequência, alguns temas mais delicados, que possivelmente exijam
um maior conhecimento do informante. Desse modo, acreditamos haver
maiores condições de monitoramento da fala. Em seguida, apresentamos
os fatores que compõem essa variável de controle com seus respectivos
exemplos:
a) Narrativo
(1) […] yo digo bueno/ YO HAGO LA PAELLA/ si me traéis
aquí lo que yo os pida// y la suegra/ de mi mu- de mi hija/ lo
que uste(d) quiera/ lo que uste(d) pida le traemos// mira lo
primero que tiene que hacer es// los animales/ caseros// si ahí
en el corral tenemos de todo/ pato conejo y pollo// vale// para
cuántos/ son- vamos a ser// pues treinta y tantos/ treinta y tres
treinta y cuatro/ según// pues quiero esto esto esto y esto (eu
digo bom/ EU FAREI A PAELLA/ se me trouxerem aqui o que
eu lhes peça// e a sogra/ da minha mu- da minha filha/ o que
você quiser/ o que você pedir lhe trazemos// olhe o primeiro
que deve fazer é// os animais/ caseiros// se aí no quintal temos
de tudo/ pato coelho e galinha// ok// para quantos/ somos// pois
trinta e tantos/ trinta e três e quatro/ segundo// pois quero isto
isto e isto)
(ENTREVISTA 19 – VAL01913HB05)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
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b) Expositivo
(2) […] hombre depende dee- dee- dee- de la cantidad de gentee/ o
de- de cómo lo quisieras hacer/ si quieres hacer un bautizo// por
todo lo alto dee- dee- de- de gente/ o que quieras hacer una cosa
familiar (rapaz depende dee- dee- dee- da quantidade de gentee/
ou de- de como queiras fazê-lo/ se queres fazer um batizado//
para muitas pessoas/ ou se queres fazer uma coisa familiar)
(ENTREVISTA 06 – VAL00613MB01)
c) Descritivo
(3) […] las berenjenas rellenas/ las berenjenas rellenas puess/
yo las cojo cojo las pieza(s)/ y la- la berejena la abro así/ a la
mitad ¿no?/ a lo largo/ la pongo en dos partes/ yy le vacías lo
de dentro/ ¿sí?/ y eso de dentro lo cocinas con cebolla/ con
carne picada/ y con condimentos así// yy cuando está todo eso
lo vuelves a meter/ en la berenjena/ y lo metes al horno// (as
berinjelas recheadas/ as berinjelas recheadas pois/ eu as pego
pego as partes e a- a berinjela a abro assim/ à metade né?/
durante/ coloco-a em duas partes/ e tiras o que tem dentro/
certo? e isso que tem dentro o cozinhas com cebola/ com carne
picada/ e com temperos assim// ee quando está tudo isso voltas
a meter/ na berinjela/ e o metes no formo//)
(ENTREVISTA 21 – VAL02111HC06)
d) Argumentativo
(4) […] los principales problemas pues/ eel- el básico// desde
que prohibieron pegar el cachete/ la falta de educación// ¿me
comprende?/ y falta de ideas/ si ahora- si los padres ya dee/
hablo- mis hijos mismo que ya con treinta y siete o treinta y
ocho años// ¿eh?// llega a los chiquillos y le compran doscientos
juguetes// ¿me comprende?/ el chiquillo no piensa na(da) más
que en jugar/ ¿eh?/ es quee al chiquillo no se le puede pegar
uun cachete porquee- porquee ha tira(d)o una pedrá(da)/ pues
si no le pegas un cha- cachete ahora después noo- no le podrás
decir nada/ y ese es el problema que veo yo cara la juventud (os
principais problemas pois/ oo- o básico// desde que proibiram
dar palmadas/ a falta de educação// me entende?/ a falta de
ideias/ se agora- se os pais já dee/ falo- meus filhos mesmo que
250
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
já com trinta e sete ou trinta e oito anos// eh?// você chega às
crianças e lhes compram duzentos brinquedos// me entende? o
menino não pensa em outra coisa a não ser em jogar/ né?/ é que
não se pode dar umas palmadas na criança porquee- porquee a
jogado uma pedra/ pois se não lhe das uma pal- palmada agora
depois nãoo- não poderás dizer-lhe nada/ e esse é o problema
que eu vejo diante da juventude)
(ENTREVISTA 02 – VAL00213HB01)
e) Dialogal
(5) […] se dijeron mira si tienes otro hijo y no lo puedes/ criaar
y tú no lo puedes criar/ me lo criaré yo/ (se disseram olha se
tens outro filho e não o podes/ criaar e tu não podes criá-lo/
eu o criarei/)
(ENTREVISTA 24 – VAL024333MB00)
No que tange à variável complexidade do assunto, na visão de
Freitag (2003), avaliar essa complexidade em mais complexo e menos
complexo é uma tarefa delicada, pois o grau de complexidade de um
assunto é aferido por cada falante. Falar sobre política, por exemplo,
pode ser menos complexo para um vereador e mais complexo para uma
dona de casa, conforme ilustra a autora. No entanto, Freitag (2003)
assume que a distinção entre assuntos mais complexos e assuntos
menos complexos pode dar-se no fato de o falante ter experienciado
ou não o assunto. Dessa forma, assuntos que foram experienciados ou
presumidamente experienciados devem apresentar menos complexidade
do que os assuntos não-experienciados. Sendo assim, optamos por
controlar o núcleo temático abordado nos estilos discursivos a fim de
verificar se há alguma correlação com o tipo de assunto abordado e a
forma pronominal utilizada. Para isso, adotamos o refinamento desenhado
por Freitag (2003), estabelecendo os seguintes fatores:
a) Assuntos mais complexos
(6) […] ¡oiga! mientras han esta(d)o en mi casa/ mientras han esta(d)o
en mi casa/ ¿eh?/ mi hijo yoo lo veo en la televisión que ha esta(d)
o haciendo caballitos/ con cascos y tal/ y no le digo nada porque
no me parece bien/ pero ¡vamos! a los veinte años se hacen esas
tonterías/ ¿me comprende?/ a los veinte o veinticinco/ peroo/ lo
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que ¿sin casco?/ el mío no/ yo le quemo la moto (olhe! enquanto
estiverem em minha casa/ enquanto estiverem em minha casa/ meu
filho eu o vejo na televisão que esteve fazendo acrobacias com
a moto/ com capacete e tal/ e não lhe digo nada porque não vejo
bem/ mas claro! aos vinte anos eles fazem essas estupidezes/ me
entende? aos vinte ou vinte e cinco/ mass/ o que sem capacete?/
o meu não/ eu queimo-lhe a moto)
(ENTREVISTA 02 – VAL00213HB01)
b) Assuntos menos complexos
(7) espaguetis aa/ la carbonara/ pues cueces los espaguetis/ mientras
tanto cortas el champiñón a trocitos// ee/ fríes el champiñón/ luego
echas el beicon porque tarda menos en freírse que el champiñón//
le pones la nata por encima// y luego toda esa mezcla se la pones
a los espaguetis ya hechos y/ limpios/ y ya está (espaguetes àà/
à carbonara/ pois cozinhas os espaguetes/ enquanto isso cortas
o cogumelo em pedacinhos// ee/ fritas o cogumelo/ em seguida
colocas o bacon porque demora menos a fritar que o cogumelo//
colocas a nata por cima// e em seguida toda essa mescla colóca-la
nos espaguetes já feitos e/ limpos/ e pronto)
(ENTREVISTA 24 – VAL02411MB06)
Em nossa pesquisa, consideramos assuntos mais complexos, por
exemplo, temas como: problemas sociais atuais, conflitos geracionais,
vantagens e inconvenientes do serviço militar, problemas da juventude
atual, massificação universitária, imigração, persuasão aos filhos
sobre drogas, cigarro e bebidas, insegurança cidadã. Por outro lado,
estabelecemos como assuntos menos complexos os seguintes temas:
infância, escola, primeira comunhão, jogos, festas daquela época,
férias passadas, como conheceu o(a) companheiro(a), a casa, o bairro,
os domicílios anteriores, o lugar de veraneio, as reformas na moradia.
Portanto, defendemos que o falante fará o uso da variante usted,
quando trate de assuntos considerados mais complexos (exemplo 6).
Havendo a necessidade de se posicionar sobre um tema, muitas vezes
não experienciado, acreditamos que haverá um maior monitoramento
da fala. Por outro lado, ponderamos que tú será predominante quando
houver maior familiaridade com o tema, sendo, portanto, assuntos menos
complexos (exemplo 7).
252
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Quanto à variável relação de proximidade entre os interlocutores,
Valle e Görski (2016, p. 39) chamam a atenção para a possibilidade de
os interlocutores possuírem um maior vínculo, na entrevista, quando
possuem o mesmo sexo, idade e grau de escolaridade próximos. Desse
modo, para conceber essa variável, adaptamos o instrumental de análise
elaborado por essas autoras, considerando, assim como essas, os seguintes
critérios para medir o grau de proximidade entre o entrevistador e
o(a) entrevistado(a): simetria de idade, simetria de sexo e simetria de
escolaridade.
Para cada critério arrolado acima, estabelecemos dois níveis
de proximidade e, para cada nível, atribuímos uma pontuação a partir
da qual indicamos haver uma maior ou menor proximidade entre
entrevistador e entrevistado. Desse modo, determinamos o valor de (0,5)
quando houvesse uma maior proximidade, entre esses indivíduos, nos
critérios supra, e (0) quando a proximidade fosse menor. Foi a partir
do somatório desses valores que construímos a variável complexa em
questão. Observemos o quadro 1 para uma melhor compreensão.
QUADRO 1 – Pontuação dos critérios para construção da variável complexa
relação de proximidade entre os interlocutores
simetria de idade
0,5 -
Entrevistado pertencente à mesma faixa etária do entrevistador
0-
Entrevistado de faixa etária diferente
simetria de Escolaridade
0,5 -
Entrevistado pertencente ao mesmo nível de escolaridade do entrevistador
0-
Entrevistado com nível de escolaridade diferente ao do entrevistador
simetria de sexo
0,5 -
Interlocutores com mesmo sexo
0-
Interlocutores com sexo diferente
O resultado da somatória desses critérios varia de 0 a 1,5 pontos.
Assim, tais valores foram transformados em fatores que nos ajudaram
a controlar a variável mencionada. São eles: distanciamento, quando o
valor após a somatória tenha sido (0 – 0,5); proximidade intermediária,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
253
quando os valores somados chegassem a (1,0) e proximidade alta,
com (1,5) de pontuação. No exemplo (8), abaixo, o entrevistado não
pertence à mesma faixa etária, nem ao mesmo nível de escolaridade
que o entrevistador, aproximando-se, apenas, no critério sexo, pois
são ambos do sexo masculino. Desse modo, a pontuação atribuída a
esse entrevistado foi apenas de 0,5, classificando-se, assim, como uma
relação de distanciamento com o entrevistador, segundo o instrumental
de análise acima descrito. Em (9), o entrevistado distancia-se no critério
escolaridade, mas possui o mesmo sexo e encontra-se na mesma faixa
etária que o entrevistador, estabelecendo-se, portanto, uma proximidade
intermediária com (1,0) de pontuação. Já em (10), entrevistador e
entrevistado estão no mesmo nível de escolaridade, idade e sexo. Esse
indivíduo obtém, assim, 1,5 no somatório final e enquadrando-se em
uma relação de proximidade alta com o entrevistador.
Isso posto, assim como as autoras supramencionadas,
hipotetizamos que os contextos de maior proximidade entre os
interlocutores sejam favorecedores da variante tú em detrimento de usted,
pressupondo que esta última é mais esperada em contextos em que há
uma assimetria nas relações.
a) Distanciamento
(8) […] pero yo cogí al alcalde y digo/ bueno/ señor alcalde// que
era un tal don/ mm Salvador Grancha/// en la República/ señor
alcalde/ ¡bueno!// ya está todo claro/ ¿no pasa nada?/ ¿no es
...?// nada// bueno pues/ ahora devuélvale usted el revólver
a mi padre/// ¿cómo voy a devolver el revólver yo y tal?/ mi
padre/ calla tal/ no/ ¡usted es un ladrón!/ usted me ha roba(d)o
el revólver a mí/ y el revólver es de mi padre y usted se lo tiene
que devolver// bien así pasó la cosa/ pero// nada más (mais eu
peguei o prefeito e digo/ bom/ senhor prefeito// que era um tal
de Salvador Grancha/// na República/ senhor prefeito/ bom!// já
está tudo claro/ tudo bem?/ não é ...?// então// bom pois/ agora
você devolva-lhe o revólver ao meu pai/// como eu vou devolver
o revólver e tal?/ meu pai/ cala tal/ não/ você é um ladrão!/ você
me roubou o revólver/ e o revólver é do meu pai e você tem de
devolvê-lo// bem assim aconteceu/ mas// nada mais)
(ENTREVISTA 05 – VAL00513HB01)
254
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b) Proximidade intermediária
(9) […] no puedes emplear dos horas aa cuatro mil pesetas la hora/
si la pieza nueva vale nueve mil// aunque le cueste un poco más/
se le pone una pieza nueva que siempre es nueva/ no tienes
que andar reparándosela/ (não podes empregar duas horas aa
quatro mil pesetas a hora/ se a peça nova vale mil// ainda que
lhe custe um pouco mais/ põe-lhe uma peça nova que sempre
é nova/ não tens que andar concertando-a/)
(ENTREVISTA 09 – VAL00912HC02)
c) Proximidade alta
(10) […] me gustaría criar animales// y hacer bien a los demás/ o sea/
pero para hacer bien a los demás primero tienes que ofrecerte/
y después tener POSIBILIDADES/ claro/ si no tienes tampoco
puedes hacer mucho (eu gostaria de criar animais// e fazer bem
aos demais/ ou seja/ mas para fazer bem aos demais primeiro
tens que oferecer-te/ e depois ter POSIBILIDADES/ claro/ se
não tens também não podes fazer muito)
(ENTREVISTA 15 – VAL01532HB99)
Conforme é possível notar, disponibilizamos a tradução dos
trechos selecionados para a língua portuguesa. No entanto, ressaltamos
que abstraímos questões pragmáticas quanto ao uso dos pronomes nessa
língua e mantivemos a equivalência pronominal e verbal das formas
que aparecem nos trechos de fala em língua espanhola, quando da
tradução. Somos cientes de que o processo tradutório não é uma simples
passagem de uma língua para outra, mas, conforme Hurtado Albir (2011),
requer do tradutor uma “competência tradutora”. Contudo, como o
fenômeno em análise é oriundo da língua espanhola e trabalhamos com
o sistema pronominal de tratamento de segunda pessoa dessa língua,
desconsideramos os contextos de uso dos pronomes tu e você, bem como
o seu paradigma verbal.
4 análise dos resultados
Após a etapa de rodagem dos dados, obtivemos um total de 1.286
dados referentes às variantes tú e usted. Desse quantitativo, 1.185 foram
de uso de tú (92,1%) e 101 de usted (7,9%). Tendo em vista a expansão
255
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
do fenômeno tuteo em vários territórios em que o espanhol é língua
oficial, estabelecemos a variante tú como regra de aplicação e, a partir
disso, o programa estatístico selecionou as seguintes variáveis como
significativas para a variação em questão: complexidade do assunto e
estilo discursivo, nessa ordem de significância. Por outro lado, para a
nossa surpresa, a variável relação de proximidade entre os interlocutores
não demonstrou significância estatística. Em seguida, procederemos à
análise e discussão dos dados das variáveis significativas e, por último,
discutiremos a variável descartada pelo programa Goldvarb (2005).
TABELA 1 – Atuação do grupo de fatores complexidade do assunto
no uso da variante tú versus a variante usted
grupo de fatores
aplicação/Total
Percentual (%)
Peso relativo
Assuntos menos complexos
933/1001
93.2
0.639
Assuntos mais complexos
252/285
88.4
0.119
Fonte: Elaborada pelos autores.
Pela ordem de significância, a variável complexidade do assunto
foi o primeiro grupo de fator selecionado pelo programa estatístico.
Como podemos observar na Tabela 1, os resultados corroboram a
nossa hipótese inicial, segundo a qual, em temas considerados mais
complexos, os informantes apresentariam maior uso da variante usted
frente ao uso feito de tú. Por outro lado, em assuntos menos complexos,
o uso de tú seria imperativo, uma vez que, indo em direção contrária
ao outro uso, os falantes produziriam uma fala menos monitorada. O
peso relativo atribuído a cada tipo de complexidade do assunto foi
bastante significativo. Em assuntos mais complexos, chegou-se a (0.119),
conforme a tabela acima. Sabemos que, quanto mais próximo de 0,0,
menor é a influência da variante selecionada como regra de aplicação,
na presença do fator analisado. Nesse ponto, acreditamos que o falante
exerce um maior monitoramento da fala, pois, em alguns momentos,
precisa posicionar-se sobre assuntos que não foram experienciados, como,
por exemplo, o uso de drogas feito por um filho. Ademais, ao ter de se
posicionar, essa mudança de estilo pode ser uma reação à audiência ali
presente. De acordo com Bell (1984), o falante adequa o seu discurso em
função dos seus interlocutores, nesse caso, o entrevistador que, no corpus
256
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
PRESEVAL, é um professor do Departamento de Filologia Espanhola
da Universidade de Valência.
Em outro extremo, na presença do fator assuntos menos
complexos, a variante tú exerce considerável influência, como evidencia
o peso relativo atribuído (0.639). No exemplo apresentado em seguida, a
informante afirma que a primeira coisa com a qual se preocupa em uma
festa é a comida. Isso deixa claro que se trata de um tema experienciado
por ela, e, portanto, quando o entrevistador pede que lhe explique a
elaboração de um prato, essa tarefa não parece exigir esforço algum por
parte da entrevistada. Apoiando-nos em Freitag (2003), acreditamos
que assuntos experienciados ou presumidamente experienciados devem
ser menos complexos para o falante do que assuntos que não foram
experienciados, conforme expomos anteriormente.
(11) es/ poner leche/ si lo quieres con leche poner la leche en el
fuegoo y cuando estáa yaa calentiita vas echando el chocolatee
lo vas movieendo movieendo/ que no se apelmace/ yy- y queda
espesito espesito y muy bien/ puede ser también con agua/
pero ya no está tan bueno/ ssi te parece que está poco dulce
el chocalate lo pruebas y p- pones um poquito más/ pero
¡bueeno! los chocolates siempre estánn/ muy muy ricos (risas)
(é/ colocar leite/ se o queres com leite colocar o leite no fogoo
e quando jáa estáa quentiinho vais colocando o chocolate e o
vais mexeendo mexeendo/ não é para deixar endurecer/ ee- e
fica grossinho grossinho e muito bem/ pode ser também com
água/ mas já não fica bom/ se te parece que está um pouco doce
o chocolate prova-o e c- colocas um pouquinho mais/ maaas/
os chocolates sempre estão/ muito muito gostosos (risos))
(ENTREVISTA 24 – VAL024333MB00)
Os usos dessas variantes, nesses contextos, também evidenciam
uma variação no estilo de fala. Lucca (2005), por exemplo, atribui o uso
realizado em temas menos familiares ao contexto soapbox da categoria
de fala monitorada de Labov (2001). Para a pesquisadora, nesse tipo de
fator, o informante sente a necessidade de se posicionar em relação a um
determinado tema, de ser convincente. Consequentemente, essa atitude
o aproxima do uso da variedade padrão, pois sua fala tende a ser mais
planejada e, portanto, fará maior uso da variante de prestígio.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
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Semelhante a Lucca (2005), podemos atribuir os trechos de fala
dos informantes às categorias e subcategorias elaboradas por Labov
(2001) ao propor o modelo de árvore de decisão. Se observamos,
quando o falante discorre sobre suas experiências de vida, narrativas de
infância, o que envolve temas como primeira comunhão, festas e jogos
da infância, casa, férias etc., registra-se um estilo de fala mais casual
típico das subcategorias narrativa e infância. Por outro lado, quando o
falante opina de maneira genérica sobre algum tema e não direciona o
discurso diretamente para o entrevistador, mas a um público mais amplo
(subcategoria soapbox), faria uso de uma fala mais cuidada. No entanto,
em vários momentos das entrevistas, flagramos o uso do tuteo impessoal,
mesmo em assuntos em que o informante teria de opinar sobre temas
considerados, por nós, como mais complexos, como podemos observar
no exemplo abaixo:
(12) [...] cuando van hacer oposición/ se desalientan muchísimo
porque resulta que/ hayy cantidad de gente que se presenta/
yy hay poquísimas plazas/ entonces de entrada ya van un poco
vencidos/ yy- y tienes que (chasquido)/ no sé/ mm/ darles una
fuerza moral para que sigan adelante/ (quando eles vão prestar
concurso/ se desanimam muitíssimo porque acontece que/
há muitos concorrentes/ ee há poquíssimas vagas/ então já
começam um pouco vencidos/ ee- e tens que (estalo)/ não sei/
mm/ dar-lhes força moral para que eles continuem adiante/)
(ENTREVISTA 10 – VAL01033MB98)
Nesse trecho, a informante é interpelada sobre quais são os
problemas enfrentados pela juventude. Através de marcas linguísticas
como “no sé” e repetições como “yy- y”, “mm” sobre as quais a
informante se apoia para planejar o discurso, percebemos certa
insegurança ao opinar, o que pode tratar-se de um assunto mais complexo
para ela. Apesar da relação utilizada entre entrevistador e entrevistada ser
de iguais não solidários, ou seja, usted – usted, registra-se na fala dessa
o uso de tú impessoal. Assim como afirma Lucca (2005), ponderamos
que esse uso pode estar atrelado ao fato de, em consequência do assunto
abordado e mesmo sem ter consciência disso, o falante alterna o estilo
indeterminando o referente para generalizar o discurso.
258
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
TABELA 2 – Atuação do grupo de fatores estilo discursivo no uso da variante
tú versus a variante usted
grupo de fatores
aplicação/Total
Percentual (%)
Peso relativo
Expositivo
104/105
99.0
0.868
Argumentativo
327/348
94.0
0.721
Dialogal
190/201
94.5
0.519
Descritivo
218/230
94.8
0.436
Narrativo
346/402
86.1
0.230
Fonte: Elaborada pelos autores.
A variável estilo discursivo ocupa o segundo lugar na ordem
de significância estabelecida pelo programa estatístico Goldvarb
(2005). Como podemos observar na Tabela 2, os estilos expositivos,
argumentativos e dialogal, apresentam o peso relativo 0.868, 0.721
e 0.519, respectivamente. Em seguida aparecem o estilo descritivo
e narrativo, com os pesos relativos 0.436 e 0.230, respectivamente.
Os dados contrariaram as nossas expectativas, pois esperávamos, por
exemplo, que o estilo narrativo liderasse com o uso de tú, já que, em
narrativas pessoais, as formas tidas como informais são mais expressivas
(SILVA, 2016). Por outro lado, hipotetizamos que estilos cuja exigência
de conhecimento fosse maior por parte do falante, como o estilo
argumentativo, o uso de usted seria predominante. Isso se justificaria
porque, nesses contextos, o falante, ao ter de se posicionar sobre
determinado assunto, teria um estilo de fala mais cuidada.
Os dados apresentados causaram-nos bastante surpresa. Portanto,
acreditamos que outros fatores possam ter influenciado tais resultados
quando da rodada multivariada. Nesse tipo de análise, a atuação de um
fator é controlada ao mesmo tempo em que se controlam a atuação dos
demais fatores elencados na pesquisa (GUY; ZILLES, 2007). Desse
modo, para checar a influência de outros fatores sobre os resultados para
a variável analisada em questão, decidimos pelo cruzamento estatístico,
a fim de encontrarmos dados que nos ajudassem a explicar o panorama
apresentado na Tabela 2.
Ponderamos que o tema abordado na entrevista possa ter exercido
influência no índice de uso do tuteo. Em outras palavras, consideramos
que se o falante opina ou expõe sobre um assunto que é, por exemplo,
259
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
mais pessoal, mais familiar, mais experienciado, a tendência seria o
uso da variante tú. Por outro lado, ao ter de argumentar sobre algo mais
formal como política, economia, etc., a preferência seria pela variante
usted, conforme explicitamos anteriormente. Dessa forma, a escolha
entre uma variante ou outra estaria mais vinculada ao assunto abordado
do que ao estilo discursivo. Na Tabela 3, apresentemos os resultados
desse cruzamento.
TABELA 3 – Cruzamento entre os grupos de fatores estilo discursivo
e complexidade do assunto
Tú
Percentual
(%)
Usted
Percentual
(%)
Assuntos menos complexos
342
88
46
12
Assuntos mais complexos
4
29
10
71
Assuntos menos complexos
93
99
1
1
Assuntos mais complexos
11
100
0
0
Assuntos menos complexos
107
99
1
1
Assuntos mais complexos
220
92
20
8
Assuntos menos complexos
218
95
12
5
Assuntos mais complexos
0
0
0
0
Assuntos menos complexos
173
96
8
4
Assuntos mais complexos
17
85
3
15
grupo de Fatores
Narrativo
Expositivo
argumentativo
Descritivo
Dialogal
Fonte: Elaborada pelos autores.
Ao observamos a tabela 3, de fato, quando comparamos o
uso feito da variante tú nos assuntos menos complexos, verificamos o
seu percentual de uso sempre acima do percentual nos assuntos mais
complexos, apesar de esses serem igualmente elevados. No entanto,
precisamos olhar com cautela para esses resultados, pois, em alguns
contextos com assuntos mais complexos, percebemos a ausência de uso
da variante usted, como no estilo expositivo e em ambos os contextos
no estilo descritivo. Resguardado esse aspecto, também observamos
o percentual de uso mais saliente, dessa variante, nos contextos com
assuntos mais complexos do que em assuntos menos complexos.
260
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
Ao olharmos, separadamente, para os percentuais de uso da
variante tú e usted nos estilos narrativo e argumentativo, e se levarmos
em consideração a quantidade de uso dessas variantes, percebemos que,
neste estilo, usted apareceu mais que nos outros estilos (20 dados) e,
justamente, em contextos com assuntos mais complexos. Obviamente
notamos, como exceção, o estilo narrativo. Esse é um estilo em que há
maior produção de fala do informante. Portanto, a possibilidade de essa
variante emergir nesse estilo era superior aos demais. Isto é, contexto
com mais dados, maiores são as chances de uma variante ocorrer. Por
outro lado, observamos que, nesse estilo, o uso da variante tú é maior
que o uso realizado em todos os demais estilos (342 dados). Dessa forma,
parece-nos que os resultados não contrapõem o que aporta a literatura,
mas a contrariam em função do tipo de assunto abordado na interação
comunicativa.
Por fim, é interessante abordarmos outro aspecto da variação entre
essas formas, relacionado ao nível de consciência do falante. Seguindo
a Schilling-Estes (2002), sabemos que a mudança de estilo pode dar-se
tanto de modo consciente como de modo inconsciente, ou seja, o falante
usa determinadas variantes sem ao menos perceber que as está usando.
Ao longo da coleta dos dados, notamos que ambas perspectivas sobre o
estilo (SCHILLING-ESTES, 2002; BELL, 1984) parecem permear as
entrevistas e podem, também, explicar os resultados em questão. Por
um lado, observamos uma mudança de estilo que parece ser consciente
onde o falante adapta a sua fala tendo em vista o seu interlocutor, o que
nos remete ao modelo de Audience Desing proposto por Bell (1984).
Lembremos que, para esse autor, o falante alterna o seu estilo de fala para
se assemelhar ao seu interlocutor. Nos exemplos (13) e (14), a informante
que, no início da entrevista, refere-se ao entrevistador utilizando usted
alterna para tú a partir da metade da entrevista. Vale ressaltar que o
tratamento utilizado pelo entrevistador foi, desde o início, tú. Confiramos
os exemplos8 que, apesar de ser utilizado o paradigma pronominal dessas
formas, evidenciam sua alternância:
8
Advertimos que os exemplos, por ora apresentados, foram analisados apenas
qualitativamente a fim de ilustrar a alternância pronominal realizada pela entrevistada.
Tais exemplos não participaram das rodadas estatísticas por serem pronomes que não
assumem a posição de sujeito na oração, perspectiva essa que adotamos para esta
pesquisa, conforme expomos na seção referente à metodologia.
261
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
(13) si yo le fuera a vender mi piso/ hombre pues yoo lo primero
que diría es su situación/ [...] (se eu fosse vender-lhe o meu
apartamento/ rapaz pois euu a primeira coisa que eu diria era a
sua situação/ […])
(ENTREVISTA 14 – VAL01431MC99)
(14) yo- yo ya te he dicho/ que sólo voy a dos o tres sitios (risas)/
(eu- eu já te disse/ que só vou a dois ou três lugares (risos)/)
(ENTREVISTA 14 – VAL01431MC99)
Como podemos observar, a alteração de uma relação assimétrica
para uma simétrica, operada pela informante, não nos parece aleatória,
mas ela tem consciência de sua fala tendo em vista um interlocutor que
lhe tutea. Por outro lado, em vários inquéritos, a relação estabelecida entre
os interlocutores, desde o início das entrevistas, é simétrica com o uso de
tú – tú. Também podemos supor que possa haver aí um uso inconsciente
dessa forma, oriundo das transformações sociais contemporâneas que têm
dado grande pujança ao uso do tuteo nas comunidades de fala espanhola.
Uma vez apresentados os dados e as discussões das variáveis que
mostram significância para o fenômeno variável em estudo, teceremos
comentários acerca do grupo de fatores descartado pelo software por
não ser estatisticamente significativo na presença da variante tú como
regra variável. Optamos por inclui-la neste estudo, pois, de acordo com
Guy e Zilles (2007), não discutir os dados negativos da análise é um
procedimento que não contribui para o avanço da ciência.
TABELA 4 – Distribuição dos pronomes tú versus usted de acordo com a relação de
proximidade entre os interlocutores
grupo de fatores
aplicação/Total
Percentual (%)
Proximidade alta
77/81
95.1
Distanciamento
705/764
92.3
Proximidade intermediária
403/441
91.4
Fonte: Elaborada pelos autores.
A hipótese inicial era a de que os contextos em que houvesse
maior proximidade entre os interlocutores fossem favorecedores da
262
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variante tú. Por outro lado, a variante usted seria mais utilizada nas
relações marcadas pelo distanciamento. No entanto, tivemos nossa
expectativa frustrada pela falta de insignificância estatística evidenciada
pelo programa Goldvarb (2005). Somos sabedores de que o peso relativo
tem destaque em delinear padrões de variação e mudança, no entanto, a
frequência de uso também participa desse processo. Desse modo, como
podemos observar na Tabela 4, há uma porcentagem relativamente alta
de uso da variante tú nos três fatores, encabeçada pela proximidade alta
(95.1%). Ao observamos a aplicação da variante usted em nossos dados,
esta apareceu de forma mais saliente (59 dados) entre os indivíduos
caracterizados por uma relação de distanciamento com o entrevistador,
frente aos de proximidade intermediária (38 dados) e alta (4 dados),
respectivamente.
Sabemos que as formas utilizadas pelos falantes para se referir ao
seu interlocutor constituem um fenômeno bastante complexo e dinâmico.
A teoria de Brown e Gilman (1960) joga luz sobre o modo como esses
indivíduos utilizam esses elementos que, como sabemos, é inegável que
sofrem pressão tanto de fatores próprios do indivíduo (sexo, idade, nível
de escolaridade etc.) como de fatores intrínsecos à relação estabelecida
entre os falantes (familiaridade, distância, proximidade etc.). Contudo,
as escolhas operadas sobre as formas de tratamento são condicionadas,
principalmente, pelo contexto sociocomunicativo e pelas características
da comunidade de fala (MEDINA LÓPEZ, 2009).
Ora, se as formas linguísticas são um reflexo das estruturas sociais
e essas, por sua vez, mudam no curso da história, uma interpretação
mecanicista das formas de tratamento baseada apenas nos eixos do poder
e da solidariedade ou mesmo uma visão pautada nos usos descritos pelas
gramáticas normativas, parece-nos insuficiente para explicar alguns
resultados, principalmente, diante do alto uso da variante tú em relações
marcadas pelo distanciamento, no nosso caso. Como assevera Medina
López (2009, p. 89), “Esta actividad del habla, sujeta a la negociación
entre los participantes y el contexto, tampoco puede presentar una única
dirección.”.9
“Esta atividade de fala, sujeita à negociação entre os participantes e o contexto,
tampouco pode apresentar uma única direção.” (MEDINA LÓPEZ, 2009, p. 89,
tradução nossa).
9
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
263
No âmbito dos estudos da cortesia espanhola, fenômeno que
tem contribuído com profícuos trabalhos sobre os usos das formas de
tratamento nesse idioma, alguns autores, como Medina López (2009) e
Carrasco Santana (1999), têm evidenciado uma simplificação no sistema
de tratamento motivada pelas transformações que essa sociedade tem
experimentado. Em palavras de Carrasco Santana (1999, p. 33-34):
[...] hay una tendencia en la sociedad española, desde hace unos
años, a simplificar los usos lingüísticos con el fin de hacer más
flexible la estratificación social y procurar que resulten más fluidas
las relaciones humanas, que no son sino la expresión del deseo
de una mayor igualdad entre los individuos. Esta tendencia se
manifiesta en una menor utilización de fórmulas convencionales
y ritualizadas de cortesía, en la progresiva desaparición de las
fórmulas de tratamiento, en la extensión del tuteo en situaciones
en que no existe familiaridad, etc., lo que está produciendo un
progresivo cambio cualitativo en las selecciones corteses que
hace que se evite, cada vez con más frecuencia, exteriorizar
verbalmente la subordinación al otro por razón de autoridad.10
O fato de os informantes se reportarem ao entrevistador utilizando
uma forma de tratamento mais próxima, isto é, tú, ainda que com este
não comparta nenhuma característica que os coloque em uma relação
mais ou menos igualitária, não nos parece uma transgressão do contexto
comunicativo, um tratamento descortês, ou mesmo uma vontade de
demonstrar familiaridade. O informante alterna o seu estilo em função da
adequação nos usos dos estilos de cortesia experimentada pela sociedade
espanhola. A explicação para a variação estilística no indivíduo, de
acordo com Bell (1984), é produto da variação que existe na dimensão
“[...] existe uma tendência na sociedade espanhola, faz alguns anos, a simplificar os
usos linguísticos com a finalidade de flexibilizar mais a estratificação social e deixar
mais fluidas as relações humanas, que não são mais do que a expressão do desejo
de uma maior igualdade entre os indivíduos. Esta tendência se manifesta em uma
menor utilização de fórmulas convencionais e retualizadas de cortesia, no progressivo
desaparecimento das fórmulas de tratamento, na extensão do tuteo em situações
nas quais não existia familiraridade, etc., o que está produzindo uma progressiva
mudança qualitativa nas seleções corteses que faz com que se evite, cada vez com mais
frequência, exteriorizar verbalmente a subordinação ao outro por razão de autoridade.”
(CARRASCO SANTANA, 1999, p. 33-34, tradução nossa.)
10
264
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
social. No que tange ao contexto de uso de tú, Blas Arroyo (1994, p. 21)
revela-nos que:
[...] el progreso que el empleo de tú ha experimentado en la
mayoría de las comunidades de habla hispánicas, podría ser
analizado como un reflejo de la tendencia creciente en sociedades
modernas y democráticas, cada vez más permisivas, a limar
prejuicios y jerarquizaciones sociales, lo que ha contribuido a
una valoración crecientemente positiva del tuteo como forma de
tratamiento adecuada —incluso cortés, como estamos viendo— en
situaciones cada vez más numerosas.11
Quanto aos resultados apresentados, precisamos olhar com
reserva para o não favorecimento da variável em questão, pois, conforme
explicitam Guy e Zilles (2007), existem muitos motivos que podem
incidir na insignificância estatística de grupo de fatores, por exemplo, a
insuficiência de dados. Além disso, esses autores ressaltam que o resultado
para um determinado grupo pode ser significativo sozinho, mas perde
significância diante de outros grupos quando da rodada multivariada. Desse
modo, ponderamos que uma variável dessa natureza, cujo refinamento
metodológico é bastante inovador, deva ser replicada e testada em estudos
posteriores. Além disso, algumas pesquisas (cf. FREITES BARROS;
OROZCO, 2010; ZAMBRANO CASTRO, 2010) têm demonstrado a sua
influência na variação das formas de tratamento em espanhol.
5 Conclusão
Procurando investigar se o assunto abordado na entrevista era
determinante para a variação entre tú e usted, analisamos a variável
complexidade do assunto, adotando o refinamento estabelecido por
Freitag (2003). Essa autora controlou esse grupo de fatores em termos de
assuntos mais complexos e assuntos menos complexos e, assim, também
“[...] o progresso que o emprego de tú tem experimentado na maioria das comunidades
de fala hispânica, poderia ser analisado como um reflexo da tendência crescente nas
sociedades modernas e democráticas, cada vez mais permissivas, a limar preconceitos
e hierarquizações sociais, o que tem contribuído com uma valorização crescentemente
positiva do tuteo como forma de tratamento adequada – inclusive cortês, como estamos
vendo – em situações cada vez mais numerosas.” (BLAS ARROYO, 1994, p. 21,
tradução nossa.)
11
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
265
o fizemos. Ponderamos que, ao tratar de assuntos mais complexos, o
falante monitoraria mais a sua fala e faria mais uso de usted. Por outro
lado, em assuntos menos complexos, pela familiaridade com o tema e
muitos serem experenciados, o falante tenderia ao uso de tú. Os resultados
corroboraram a nossa hipótese inicial, revelando que, na presença daquele
fator, tú é desfavorecido, conforme peso relativo de (0.148). De fato, nesse
contexto, usted apresentou mais ocorrências. Já no contexto em que o
tema abordado era menos complexo, a forma de tratamento tú mostrou
ser favorecida (0.622).
Assumindo que o estilo discursivo, presente na entrevista,
pudesse influenciar o falante quanto à escolha da forma de tratamento
para se reportar ao seu interlocutor, analisamos os estilos expositivo,
argumentativo, dialogal, narrativo e descritivo. Acreditávamos que a
variante inovadora seria predominante no estilo narrativo mais do que
nos outros estilos, pois, conforme Silva (2016), as sequências narrativas
fazem emergir formas linguísticas consideradas informais. Por outro
lado, em estilos como o argumentativo, em que há ocorrências de temas
que exigem um maior conhecimento do falante, acreditávamos que isso
desencadearia uma fala mais cuidada, e, portanto, haveria destaque da
variante usted. Para a nossa surpresa, os dados evidenciaram um propenso
uso de tú nos estilos expositivos e argumentativos (0.890 e 0.751,
respectivamente) e um desfavorecimento nos demais estilos: (0.394) no
estilo dialogal; (0.341), no estilo narrativo e (0.251), no estilo descritivo,
contrariando, assim, o que esperávamos para essa variável.
No que tange à variável relação de proximidade entre os
interlocutores, refinamo-la em três fatores: distanciamento, proximidade
intermediária e proximidade alta. Em uma primeira rodada, essa variável
não mostrou significância para a variação entre tú e usted na comunidade
de fala estudada. Acreditamos, então, que a amostra presente nos dois
últimos fatores, que era menor no primeiro fator, pudesse ter alguma
influência nesse resultado. Desse modo, decidimos amalgamá-los,
pautando essa decisão em aspectos teóricos e quantitativos. Rodamos os
dados novamente e, curiosamente, o programa selecionou essa variável
como significativa. No entanto, ainda que em um primeiro momento
tivéssemos hipotetizado que os contextos de maior proximidade entre
os interlocutores favoreceriam o uso de tú em detrimento de usted, os
resultados revelaram o contrário. O fator distanciamento favoreceu
a forma tú com (0.622) de peso relativo, e os fatores amalgamados
266
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020
proximidade intermediária/alta desfavoreceram-na (0.326). Esse
resultado corrobora a visão de Blas Arroyo (1994), sobre a valorização
do tuteo em mais contextos de uso, inclusive, em situações em que há
uma hierarquização social, isto é, em relações regidas pela semântica do
poder de Brown e Gilman (1960).
Por último, como é sabido, abordamos a variação entre as formas
tú e usted, na comunidade de fala valenciana, considerando apenas
as formas que estivessem em posição de sujeito na oração. Portanto,
recomendamos a análise das supramencionadas formas para além dessa
posição, abordando, por exemplo, as formas que aparecem como adjetivo
ou pronome possessivo e pronomes oblíquos átonos ou tônicos. Um
trabalho que assumisse essa perspectiva ofereceria, sem dúvida, uma
amostra considerável e um mapeamento bastante relevante do uso dessas
formas, nessa comunidade.
Contribuição dos autores
Os autores em questão trabalharam, conjuntamente, em todas as seções
que compõem o referido trabalho. Este, como fruto da dissertação de
José Victor Melo de Lima, foi, também, elaborado sob a orientação de
Valdecy de Oliveira Pontes, orientador daquele na ocasião do mestrado.
Destarte, nesta oportunidade, o olhar e a escrita de ambos os autores
se entrelaçam durante todo o movimento retórico do artigo, desde a
introdução, a seleção e resenha da teoria de base, o desenho metodológico,
a análise dos resultados e a conclusão.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
o estatuto da sintaxe na fala: considerações
acerca da proposta da Language Into act Theory
The status of syntax in speech: comments
on the Language Into Act Theory proposal
Luis Filipe Lima e Silva
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
luisf.1397@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0188-2861
resumo: A Language into Act Theory (CRESTI, 2000) é uma teoria pragmática
corpus-driven da fala espontânea. Ela individualiza o enunciado como a unidade de
referência da fala, sendo este definido como a menor unidade linguística que possui
autonomia pragmática e interpretabilidade em isolamento. Essa teoria considera que
a prosódia é responsável por delimitar não só o enunciado, mas também as ilocuções
(AUSTIN, 1962) e a estrutura informacional, que se desenvolve a partir de unidades
tonais. Cada unidade tonal, a princípio, corresponde a uma unidade informacional, no
nível pragmático. De acordo com Cresti (2014), o domínio de atuação da sintaxe estaria
restrito às unidades informacionais, resultando na formação do que a autora denomina
como ilhas sintático-semânticas. Neste trabalho, apresenta-se uma discussão acerca
dessa abordagem. Através da exposição de dados empíricos oriundos de corpora, bem
como de dados de línguas tipologicamente variadas, é desenvolvida uma argumentação
que aponta para a possibilidade de que as relações sintáticas entre os elementos
distribuídos ao longo de duas ou mais unidades informacionais possam ultrapassar
as fronteiras dessas unidades. Dados de predicação, subordinação, coordenação,
negação e marcas de caso servem para ilustrar essa assunção, na medida em que essas
relações não são interrompidas devido à presença de uma quebra prosódica com valor
informacional. Busca-se distinguir, portanto, dois níveis em interface, mas não em
isomorfia: o prosódico-pragmático e o sintático. Defende-se que a sintaxe da fala seria
melhor explorada por meio de critérios de análise probabilísticos.
Palavras-chave: sintaxe da fala; categorias sintáticas; prosódia; pragmática.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.271-330
272
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
abstract: Language into Act Theory (CRESTI, 2000) is a pragmatic corpus-driven
theory of spontaneous speech. The utterance is individuated as the reference unit
of speech. It is defined as the smallest linguistic unit with pragmatic autonomy and
interpretability in isolation. This theory states that prosody delimits the utterance,
illocutions (AUSTIN, 1962) and information structure, that develops from tonal units.
Each tonal unit corresponds in principle to an information unit at the pragmatic level.
According to Cresti (2014), the domain of syntax would be constrained to the information
units, resulting in the establishment of what the author calls syntactic-semantic islands. In
this paper, we present a discussion about this approach. Through exposition of empirical
data from corpora, as well as from languages of typologically varied languages, we
argue on the possibility that the syntactic relations between the elements distributed
along two or more information units may exceed the boundaries of such units. Data
on predication, subordination, coordination, negation, and case markers illustrates this
assumption, insofar as these relationships are not disrupted by the presence of a prosodic
break carrying information value. Therefore, two interface levels must be distinguished,
but they are not isomorphic: the prosodic-pragmatic and the syntactic levels. We argue
that spoken syntax would be better studied by means of probabilistic criteria.
Keywords: spoken syntax; syntactic categories; prosody; pragmatics.
Recebido em 11 de abril de 2019
Aceito em 11 de outubro de 2019
Introdução
A variedade oral espontânea do discurso é, sem dúvidas, um campo
fértil de pesquisas. Isso se deve ao fato de que seu estudo seja recente –
considerando a evolução e o desenvolvimento dos estudos linguísticos
ao longo dos séculos. A compilação de corpora orais só é possível com
o avanço tecnológico que permita realizar o registro da fala. E é somente
na segunda metade do século XX que surgem os chamados corpora de
fala espontânea, representando inicialmente a língua inglesa (cf. MELLO,
2012, 2014). Consequentemente, o estudo da sintaxe da fala tem início
nesse período, embora num primeiro momento a prosódia – componente
crucial na produção da fala – não tenha sido explorada efetivamente para
a compreensão da interação que existe com o componente sintático.
Neste trabalho, analisar-se-á a abordagem da Language intro
Act Theory [L-AcT] (CRESTI, 2000; MONEGLIA; RASO, 2014) para
a sintaxe da fala. Essa teoria considera que a prosódia é responsável por
delimitar a unidade de referência da fala, as ilocuções (AUSTIN, 1962)
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e a estrutura informacional do enunciado. O postulado-chave da proposta
da L-AcT é o de que há uma isomorfia entre a forma como a estrutura
informacional se desenvolve e as unidades sintáticas distribuídas dentro
desse modelo, ou seja, a localidade sintática operaria apenas dentro
das unidades pragmáticas que compõem a estrutura informacional do
enunciado. Tal postulado será analisado com base em uma ampla discussão
embasada num conjunto de dados oriundos de corpora e de trabalhos
já publicados, a fim de que seja verificado empírica e tipologicamente.
Este trabalho está organizado da seguinte forma. Na seção 1,
os pressupostos teóricos elementares da L-AcT são introduzidos. Na
seção 2, apresenta-se a abordagem dessa teoria para o estudo da sintaxe
da fala. Em seguida, na seção 3, tal abordagem é problematizada com
vários dados que constituem contraexemplos à proposta. Na seção 4,
complementam-se à análise qualitativa conduzida na seção anterior
reflexões relacionadas aos problemas encontrados na proposta da L-AcT,
defendendo-se a alternativa probabilística de análise da sintaxe da fala.
Por fim, as considerações finais são apresentadas.
1 a Language into Act Theory
A Language into Act Theory (L-AcT) é uma teoria pragmática
corpus-driven da fala espontânea (CRESTI, 2000; MONEGLIA;
RASO, 2014). Suas assunções teóricas são oriundas da observação e
da investigação de dados empíricos extraídos de corpora comparáveis:
o projeto C-ORAL-ROM (CRESTI; MONEGLIA, 2005), que compõe
corpora das principais línguas românicas faladas na Europa – espanhol,
francês, italiano e português; e o projeto C-ORAL-BRASIL, que compõe
corpora do português brasileiro (RASO; MELLO, 2012). De acordo
com essa teoria, o enunciado é a unidade de referência da fala e se define
como a menor unidade linguística da fala interpretável pragmática e
prosodicamente em autonomia. Ele deve também veicular, por definição,
um ato de fala (AUSTIN, 1962). A identificação do enunciado no fluxo
da fala se dá através da percepção de um tipo de fronteira de unidade
tonal (CRYSTAL, 1975) denominado por quebra prosódica terminal
(MONEGLIA; CRESTI, 1997). A autonomia pragmática é conferida pela
junção da veiculação de um ato de fala e da realização de uma unidade
tonal com perfil terminal. Essa junção corresponde, no nível pragmáticoinformacional, à principal unidade do enunciado – o Comentário. É
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preciso mencionar que existem unidades tonais não autônomas que
podem compor parte do enunciado. Nesse caso, essas unidades não
veiculam uma ilocução, elas estão relacionadas à estrutura informacional
do enunciado (cf. TABELA 1). Também há casos em que uma sequência
que veicula uma ilocução não apresenta um perfil prosódico terminal.
Esses últimos casos se referem às unidades de Comentário Múltiplo e de
Comentário Ligado, que serão explicadas ainda nesta seção.
No fluxo da fala, há variações de ordem prosódica que marcam
quebras prosódicas. Essas quebras podem ter um valor percebido como
conclusivo ou não (KARCEVSKY, 1931; CRYSTAL, 1975). Caso uma
quebra apresente um valor conclusivo, ela será denominada como uma
quebra terminal. Caso ela não apresente um valor conclusivo, ela será
chamada de quebra não-terminal. As quebras terminais indicam o fim
do enunciado, ao passo que as quebras não-terminais segmentam o
enunciado em unidades internas. Dessa forma, todo enunciado possui uma
quebra terminal, contudo nem todos possuirão quebras não-terminais.
Considere os seguintes exemplos:1
Exemplo 1.1 – bfamcv01
*GIL: [33] esse que é o ponto //
Exemplo 1.2 – bfamdl02
*BAL: [14] as recarregáveis / tão aqui //
Exemplo 1.3 – bfamdl02
*BAL: [36] a Estefânia /
Acima, é possível observar em 1.1 um enunciado com apenas
uma quebra percebida como terminal, chamado de enunciado simples, em
Os exemplos que contam com áudio são extraídos dos corpora da família C-ORAL.
Eles são seguidos pelo nome texto e pelo número do enunciado entre colchetes. O nome
do texto é uma abreviatura que informa a língua (a = inglês americano; b = português
brasileiro; i = italiano), o contexto (fam = familiar/privado; pub = público), a tipologia
de interação (cv = conversação, isto é, mais de dois participantes; dl = diálogo; mn =
monólogo) e o número do texto. A abreviatura que segue o asterisco indica o participante.
As barras simples marcam quebras prosódicas não-terminais e as barras duplas marcam
quebras prosódicas terminais.
1
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1.2 um enunciado dividido em uma quebra percebida como não-terminal
e uma quebra percebida como terminal no fim, denominado enunciado
complexo, e em 1.3 um trecho que não constitui um enunciado, pois não
apresenta uma quebra percebida como terminal.
No escopo teórico da L-AcT, as unidades delimitadas por quebras
prosódicas correspondem a unidades tonais, no nível prosódico, e a unidades
informacionais, no nível pragmático. Assim, todo enunciado apresenta pelo
menos uma unidade tonal, que corresponde a uma unidade informacional.
As unidades informacionais são unidades pragmáticas de organização do
enunciado, sendo que cada uma realiza determinada função. A estrutura
informacional do enunciado é, portanto, veiculada pela prosódia. A força
ilocucionária do enunciado está localizada na unidade de Comentário (COM)
– única unidade necessária e suficiente para a realização de um enunciado.
Sua distribuição é livre dentro do enunciado, sendo que as outras unidades
informacionais têm sua posição definida com relação a ela. A forma prosódica
do COM varia em função do tipo de ato de fala ou ilocução veiculada. Um
mesmo conteúdo locutivo pode introduzir diferentes ilocuções, o que mostra
que as ilocuções não estão necessariamente relacionadas a expressões
linguísticas específicas. Por exemplo, dependendo da prosódia realizada,
ao nome João podem ser atribuídas ilocuções distintas, como asserção,
desaprovação, ameaça, advertência etc.
A correspondência biunívoca que existe entre unidade tonal e
unidade informacional e entre enunciado e ilocução é quebrada em três
circunstâncias. Uma mesma unidade informacional pode ser realizada
em mais de uma unidade tonal quando ocorre fenômenos de escansão
e retracting (cf. Seção 2). Adicionalmente, um enunciado pode ser
composto por mais de uma ilocução, casos em que ocorrem as unidades
informacionais de Comentário Múltiplo (CMM) e de Comentário
Ligado (COB). Há CMMs quando mais de um Comentário, geralmente
dois, é realizado de forma padronizada retoricamente, o que gera uma
interpretação holística por parte do interlocutor. Esses Comentários são
separados por uma quebra prosódica não-terminal, criando um padrão
ilocucionário entendido como um todo holístico, e não como a soma de
dois enunciados diferentes. Ou seja, sua interpretação é diferente daquela
em que há a sucessão de dois COM que realizam as mesmas ilocuções.
Há COBs quando ocorre o que a L-AcT denomina como Estrofe (Stanza).
A Estrofe é uma sequência de vários Comentários ligados por meio de
um sinal prosódico que indica continuidade. Esse sinal mostra que a
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sequência ainda não foi concluída, isto é, existem mais sequências a
serem ainda adjungidas. Diferentemente dos CMMs, os COBs, não
apresentam uma relação padronizada. Ao contrário, eles são justapostos
numa sequência que exibe um andamento processual de um pensamento
em curso, por isso as ilocuções realizadas ao longo da cadeia de COBs
não são interpretadas de forma holística ou como uma sucessão de atos
de fala de enunciados diferentes.
Há dois grandes grupos de unidades informacionais – as textuais
e as dialógicas. As primeiras têm a finalidade de compor o texto do
enunciado, já as segundas têm por objetivo se dirigir ao interlocutor a
fim de regular a interação. As unidades textuais podem ser de natureza
ilocucionária (COM, COB e CMM) ou não ilocucionária (APC, APT,
TOP, INT e PAR). A definição de cada uma é mostrada na tabela abaixo.
TABELA 1 – Unidades informacionais e suas respectivas funções
Unidades
textuais
Nome
Etiqueta
Função
Comentário
COM
Carrega a força ilocucionária do enunciado.
Tópico
TOP
Identifica o domínio de aplicação da força
ilocucionária do enunciado.
Apêndice de
Comentário
APC
Conclui o enunciado integrando o texto de COM.
Apêndice de
Tópico
APT
Fornece uma informação atrasada integrando a
informação dada em TOP.
Comentário
Múltiplo
CMM
Faz parte de uma cadeia de dois ou mais Comentários
que são interpretados holisticamente devido ao seu
padrão prosódico.
Comentário
Ligado
COB
Faz parte de uma sequência de dois ou mais
Comentários (Estrofe), produzida por adjunções
progressivas que seguem o fluxo do pensamento do
falante, enquanto ele está construindo seu discurso.
Parentético
PAR
Insere uma informação metalinguística dentro do
enunciado.
Introdutor
locutivo
INT
Tem a função metalinguística de introduzir discurso
reportado, pensamento falado e exemplificação
emblemática.
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Unidades
dialógicas
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Alocutivo
ALL
Especifica para quem a mensagem é direcionada.
Fático
PHA
Serve para garantir a manutenção do canal
comunicativo, mantendo-o sob controle.
Conativo
CNT
Incita o falante a tomar parte na interação.
Incipitário
INP
Abre o canal comunicativo.
Expressivo
EXP
Funciona como um suporte emocional dentro
da interação, enfatizando uma afiliação social
compartilhada.
Conector
discursivo
DCT
Conecta diferentes partes do discurso, marcando sua
continuidade; é típico de textos monológicos
Adaptado de Moneglia e Raso (2014)
As unidades informacionais constituem um ponto crucial na
proposta de domínio e de análise da sintaxe da fala na proposta de Cresti
(2014). A seguir, será apresentada a abordagem da L-AcT para o estudo
da sintaxe da fala.
2 a abordagem da sintaxe da fala segundo a L-acT
De acordo com a L-AcT, a prosódia organiza a fala em enunciados
e também atua na composição da estrutura informacional de cada um
deles. Por meio do componente prosódico, a fala se estrutura em unidades
tonais (relativas ao nível prosódico) que, em princípio, correspondem
a unidades informacionais (relativas ao nível pragmático). Exceto em
casos de Escansão (SCA), cada unidade tonal corresponde a uma unidade
informacional. A Escansão (SCA) é a divisão da unidade informacional
em duas ou mais unidades tonais devido a questões de performance.
Ela não possui valor informacional, sendo sempre composicional do
ponto de vista sintático. O outro caso em que uma unidade tonal não
corresponde a uma unidade informacional corresponde ao fenômeno
denominado retracting, isto é, quando o falante retrata o que acabou de
pronunciar podendo ou não haver a repetição de uma ou mais palavras.
Para a L-AcT, a unidade informacional se comporta como uma ilha
278
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
sintático-semântica.2 A esse respeito, Cresti (2011) diz que “as unidades
informacionais concebidas para a realização de uma determinada
função informacional identificam a unidade linguística como uma
configuração sintática local e uma ilha semântica”3 (CRESTI, 2011,
p. 56). Dessa forma, é possível notar que o nível sintático não só está
vinculado ao nível prosódico-pragmático, como também se encontra
numa relação de hierarquia, tendo em vista que a estruturação sintática
deve se adequar à estruturação informacional. É importante mencionar
que quando se diz nível prosódico-pragmático, deve-se entender o nível
informacional (portanto, pragmático), que é veiculado e estabelecido por
meio do componente suprassegmental, ou seja, por meio da prosódia. As
estruturas sintáticas podem ser realizadas de forma cindida, isto é, uma
única estrutura apresentando uma parte correspondente a uma unidade
informacional específica, e o restante da estrutura distribuída em outra
unidade informacional. Nesse caso, cada parte da estrutura que se distribui
entre duas ou mais unidades informacionais constitui um fragmento
próprio com ausência de composicionalidade sintático-semântica. Dessa
maneira, as estruturas sintáticas são dominadas pelas diferentes unidades
informacionais. Essas unidades têm a função de interromper ou barrar as
relações sintáticas que outrora poderiam apresentar composicionalidade.
As ilhas sintático-semânticas são, portanto, domínios de restrição
de relações sintáticas e semânticas que se estabelecem a partir das
unidades informacionais que, por sua vez, se desenvolvem por meio
da prosódia. Cada ilha se estabelece por meio da realização de uma
unidade informacional. As unidades informacionais são veiculadas pela
prosódia. Dessa forma, a interação entre o componente informacional que
é realizado por meio de configurações prosódicas específicas desempenha
um papel crucial no postulado das ilhas sintático-semânticas.
Estudar a sintaxe da fala no quadro teórico da L-AcT significa,
desse modo, considerar a combinação das ilhas, que estão diretamente
relacionadas às unidades informacionais e ao padrão informacional do
enunciado. Cresti (2014) afirma que a estrutura informacional é realizada
O termo ilha utilizado por E. Cresti não possui o mesmo significado daquele
introduzido por Ross (1967) comumente mencionado nos estudos gerativistas.
3
Tradução nossa do original: “(…) the information units conceived for the
accomplishment of a certain information function identifies the linguistic unit like a
local syntactic configuration and a semantic island”.
2
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
279
simultaneamente de acordo com dois requisitos: (i) a interface prosódica,
que é o componente que organiza tal estrutura em unidades discretas e (ii)
o ato locucionário, que, por meio do empacotamento prosódico do fluxo
da fala, ativa as ilhas sintático-semânticas, realizando linguisticamente
cada unidade informacional de modo a combiná-las dentro do enunciado,
caso esse enunciado seja complexo.
Segundo um levantamento dos tipos de enunciados do corpus
C-ORAL-ROM (CRESTI; MONEGLIA, 2005), relatado em Cresti
(2014), há uma predominância de enunciados complexos (60%) sobre
enunciados simples (40%). Esse resultado reflete a importância de uma
explicação da sintaxe dos enunciados complexos, formados por ilhas
sintático-semânticas. A L-AcT lança mão de dois construtos teóricos para
explicar as relações “objetivas” e as “idiossincráticas” do comportamento
sintático, mais precisamente do comportamento da subordinação e da
coordenação, em enunciados complexos. As relações aqui chamadas
“objetivas” são aquelas que não apresentam problemas quanto a sua
análise dentro de um quadro tradicional. No enunciado “O Joaquim
ama o atual prefeito //=COM=”, o NP o prefeito seria o objeto do verbo
amar. As relações chamadas aqui “idiossincráticas” são aquelas que
apresentariam dificuldades do ponto de vista tradicional. Considerando
o enunciado “O atual prefeito /=TOP= Deus me livre //=COM=”, parece
não haver nenhuma relação sintática entre o conteúdo locutivo do TOP e
o do COM. A L-AcT não postula qualquer tipo de movimento sintático,
nem qualquer categoria flutuante, por isso seria descartada a hipótese de
que o NP o atual prefeito saiu de uma posição mais baixa da sentença e
foi alçado à posição de TopP localizada na periferia esquerda. Além do
fato de que, para a L-AcT, cada unidade informacional constitui uma
ilha sintático-semântica que não apresenta composicionalidade com
outras unidades.4 Os construtos propostos pela L-AcT para lidar com
essa questão são divididos em duas noções: a sintaxe linearizada e a
sintaxe padronizada.
De acordo com Cresti (2014), a sintaxe linearizada (linearized
syntax) constitui o ambiente onde ocorrem estruturas próprias de
subordinação e de coordenação, sempre dentro de uma mesma unidade
informacional textual, já a sintaxe padronizada (patterned syntax ou
4
A seção 3.1 relata com maior detalhe o caso do TOP.
280
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
patterned construction 5) corresponde a construções realizadas ao
longo das unidades informacionais textuais, ou seja, por mais de uma
unidade informacional textual (e também, em alguns casos, ao longo
de dois enunciados distintos), sendo que cada uma desenvolve uma
função informacional diferente. A configuração linearizada corresponde
a um molde prosódico composicional e a configuração padronizada
corresponde a um molde prosódico de combinação, resultando na
realização de diferentes unidades tonais. Note-se que é apenas no
molde composicional que as relações de subordinação e de coordenação
ocorrem, no molde combinatório essas relações simplesmente não se
estabelecem. A justificativa para que no molde combinatório os elementos
fiquem impossibilitados de estabelecer relações sintáticas com outros
itens de uma unidade posterior reside em que a unidade informacional
constitui uma barreira de isolamento ou, nos termos propostos pela
L-AcT, a unidade informacional constitui uma ilha sintático-semântica.
Para ilustrar as configurações sintáticas linearizada e padronizada,
são apresentados abaixo dois exemplos. Em investigação sobre as orações
adverbiais no PB, Bossaglia (2015a) mostra que a grande maioria dessas
orações ocorre em padronização, embora haja casos de linearização, como
o do exemplo 2.1, que constituem apenas 6% dos dados do minicorpus
do português brasileiro [PB] (cf. PANUNZI; MITTMANN, 2014).
Exemplo 2.1 – bfammn05
*CAR: [58] não falo porque acho muito pesado //=COM=
A autora explica que, neste dado, a oração adverbial causal
introduzida pela conjunção porque é realizada na mesma unidade
informacional da oração principal, o que exemplifica um caso de
linearização. Esse exemplo mostra com clareza uma oração subordinada
adverbial propriamente dita (proper adverbial clause).
Em investigação sobre as orações completivas no PB, Bossaglia
(2015b) mostra que tais orações ocorrem em seis tipos de configurações
padronizadas, sendo uma delas o padrão CMM-CMM, ou seja, um
enunciado composto por duas unidades de valor ilocucionário que são
interpretadas de forma holística devido a sua característica prosódica.
5
É preciso salientar que o termo construção utilizado por E. Cresti não possui relação
com a noção de construção apresentada no arcabouço teórico da Gramática de
Construções (cf. HOFFMANN; TROUSDALE, 2013).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
281
Exemplo 2.2 – bfamdl03
*LAU: [275] tá vendo /=CMM= como é que mudou //=CMM=
Esse exemplo ilustra um caso de padronização, já que o enunciado
é complexo, formado por duas unidades tonais/informacionais. Bossaglia
(2015b) argumenta que a possível relação de dependência entre a
principal e a completiva não é levada em consideração pela organização
prosódico-pragmática do enunciado. Segundo a autora, as duas orações
se encontram no mesmo plano pragmático, tendo em vista que elas são
realizadas em unidades ilocucionárias idênticas, o que confere a elas a
mesma função. No entanto, isso não significa que elas realizam a mesma
ilocução. Segundo a autora, a primeira oração trata-se de um pedido
de confirmação, ao passo que a segunda trata-se de uma repetição. O
padrão prosódico de realização dos CMMs proporciona que elas sejam
interpretadas como uma única sequência terminada. Ambas as orações
possuem valor ilocucionário, o que demonstra que elas ocupam o mesmo
plano pragmático.
2.1 o papel da modalidade na formação de ilhas semânticas e seu impacto
na sintaxe
De acordo com Cresti (2014), uma definição clássica de modalidade
remonta a Bally (1950), em que ele define o fenômeno como Modus on
Dictum, ou, em outras palavras, a atitude do falante sobre o seu próprio
enunciado. É preciso mencionar que outros termos ou conceitos – tais
como ilocução, atitude, emoção etc. – atribuídos dentro do escopo da
modalidade devem ser distinguidos, pois são efetivamente objetos distintos
(cf. MELLO; RASO, 2011, para uma discussão sobre essas categorias). A
modalidade dentro do quadro teórico da L-AcT atua na dimensão do ato
locucionário e se limita a um significado estritamente semântico. Já Bally
(1950) considera o Dictum como uma proposição inteira.
Para a L-AcT, a modalidade seria o modus sobre um dictum
que é preenchido apenas pelo conteúdo locutivo expresso nas unidades
informacionais. Assim, cada unidade informacional textual exibe um
valor modal distinto, exceto as unidades de APT e de APC que, por serem
dominadas pelas unidades de TOP e de COM, respectivamente, herdam
o valor modal de suas unidades dominantes. Portanto, os Apêndices
não formam ilhas sintático-semânticas. O sentido de dominância entre
282
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
as unidades de COM e de TOP em relação às unidades de APC e APT,
respectivamente, se refere ao fato de as últimas apresentarem um perfil
prosódico que não pode ser realizado sem a ocorrência das primeiras.
O dictum, contudo, nem sempre será uma proposição completa, tendo
em vista que variados tipos de sintagmas, fragmentos ou classes de
palavras podem compor uma unidade informacional. Além disso, a
modalidade nem sempre é expressa por marcadores modais codificados
linguisticamente (cf. MELLO, 2016, para discussão sobre diferentes
estratégias modalizadoras no PB).
Cresti (2014) estabelece dois postulados teóricos que devem ser
levados em consideração no estudo da modalidade dentro do quadro da
L-AcT:
(a) a modalidade pertence ao nível semântico dentro do ato
locucionário, por isso ela deve ser distinguida da ilocução, que
pertence justamente ao nível pragmático; e
(b) o valor modal de cada unidade informacional textual – assim como
na sintaxe – não é composicional dentro do enunciado.
Disso decorrem duas considerações:
(i) cada unidade informacional textual corresponde a uma cena
cognitiva, que forma um domínio semântico (cf. FAUCONNIER,
1985); e
(ii) se um enunciado contar com mais de uma unidade informacional
textual, ele apresentará diferentes modalidades (exceto em casos
de unidade de Apêndice).
As unidades informacionais formam, desse modo, ilhas
semânticas. Segundo Mello (2016), “as diferentes ilhas semânticas,
entretanto, não se compõem em sua modalidade; restando observáveis
cenas que se combinam como ‘janelas perceptuais’ com diferentes
perspectivas” (MELLO, 2016, p. 166). O impacto das ilhas semânticas
na sintaxe se estabelece na medida em que apenas aquilo que determina
um âmbito modal estará sujeito a receber um correspondente sintático –
essa é uma das razões de a sintaxe não atuar nas unidades dialógicas, já
que nelas não existe modalidade. Em outras palavras, as ilhas semânticas
constituem âmbitos modais que incidem sobre uma estruturação sintática
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283
formada a partir dessas ilhas. Pode ser depreendido, a partir disso, que
a ideia de ilhas semânticas fortalece, de certo modo, a noção de ilhas
sintáticas atuantes dentro das unidades informacionais.
3 Problematização a respeito da abordagem da sintaxe na L-acT
Esta seção busca mostrar alguns problemas teóricos acerca da
concepção da sintaxe na abordagem da L-AcT. Esses problemas surgem
a partir da observação de dados empíricos, extraídos de trabalhos que
utilizaram os minicorpora de dados do PB (PANUNZI; MITTMANN,
2014) e do inglês (CAVALCANTE et al., 2018), e analisados segundo
o critério teórico da L-AcT.
Conforme exposto, o modelo teórico da L-AcT para a delimitação
e análise da sintaxe da fala postula que cada unidade informacional
corresponde a uma ilha sintático-semântica, ou seja, não haveria nenhuma
relação sintática entre o conteúdo locutivo de uma unidade como o
TOP e o conteúdo locutivo do COM. Em outras palavras, o que ocorre
locutivamente no TOP não estabelece nenhum tipo de relação sintática,
seja de subordinação, de coordenação, de adjunção etc., com o que ocorre
no COM. Isso vale para outras unidades, como INT, PAR, CMM e COB.
Além disso, o enunciado é a unidade de referência da fala e não pode
haver dependência sintática entre um enunciado e outro adjacente a ele.
Todas as relações sintáticas ocorrem dentro do nível composicional. No
nível combinatório, não há qualquer relação sintática entre o conteúdo
locutivo das unidades informacionais.
O que se pretende mostrar nesta seção é que há pelo menos
duas formas de se estudar a sintaxe da fala: uma seria considerar que a
organização prosódico-informacional subordina a organização sintática,
justamente o que a L-AcT propõe ao localizar as chamadas ilhas
sintático-semânticas dentro da estrutura informacional. Outra opção seria
considerar que a organização prosódico-informacional e a organização
sintática da fala não estão direta e exclusivamente correlacionadas, ou
seja, a estruturação informacional pode revelar aspectos da sintaxe, sem
que essa esteja estritamente subordinada em forma de ilhas àquela.
284
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
3.1 o caso do Tópico
Cresti (2011) relata que 51% dos enunciados do corpus IPIC6
do italiano são constituídos por mais de uma unidade informacional,
ou seja, são enunciados complexos. Desse total de enunciados, 23%
apresentam o padrão TOP-COM. A autora argumenta, então, que o
padrão informacional básico do enunciado em italiano é o de TOP-COM.
Segundo Cresti, a relação entre o Tópico e o Comentário tem sido tratada
como uma relação de aboutness semântica. Dessa forma, o conteúdo
expresso nessas unidades é tratado como uma única entidade semântica,
estabelecendo uma relação proposicional.
A abordagem da L-AcT é divergente das visões comumente
adotadas, pois essa teoria parte de uma perspectiva pragmática, e não
semântico-sintática. Para a L-AcT, o Tópico (TOP) é uma unidade
informacional que tem a função de servir como o campo de aplicação
cognitiva da força ilocucionária que a unidade de COM carrega. Se não
há TOP no enunciado, o COM deve se referir ao contexto e aplicar sua
força ilocucionária de uma forma referente ao seu tipo ilocucionário.
Ou seja, se a força ilocucionária do enunciado for a de uma ordem, o
COM será realizado com um perfil prosódico correspondente ao tipo
ilocucionário que marca essa ilocução.
Considere os exemplos abaixo adaptados de Cresti (2011):7
Exemplo 3.1
feche a porta //COM
%ill: ordem
%sit: o ouvinte reconhece a ordem em seu sentido pleno, incluindo a
denotação semântica do seu objeto de intervenção.
6
O corpus IPIC é formado por textos da seção informal dos corpora C-ORAL-ROM
(italiano), C-ORAL-BRASIL (português brasileiro) e C-Or-DiAL (espanhol). Os textos
que formam esse corpus foram manualmente anotados em unidades informacionais. Ele
é disponibilizado através da plataforma DB-IPIC (PANUNZI; MITTMANN, 2014).
Para mais informações, cf. <http://lablita.dit.unifi.it/ipic/>.
7
Os símbolos %ill e %sit indicam, respectivamente, ilocução e situação comunicativa.
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285
Exemplo 3.2
feche-a //COM
%ill: ordem
%sit: o ouvinte reconhece a ordem, mas deve procurar a proeminência
pragmática adequada no contexto correspondendo ao pronome a. Nesse
caso, a ordem se refere deiticamente no contexto.
Exemplo 3.3
a porta /TOP feche-a //COM
%ill: ordem
%sit: o ouvinte reconhece a ordem, mas foi fornecida a ele informação
relevante para a adequada proeminência contextual ser levada em
consideração na sua intervenção, através da expressão linguística do Tópico.
Os três exemplos ilustram uma ilocução de ordem, cujo objetivo
é realizar uma mudança de mundo. Desse modo, é esperado que haja uma
referência contextual para que a ilocução de ordem se aplique de forma
adequada. No primeiro exemplo, essa referência já é dada no próprio
conteúdo locutivo do COM, sendo que o argumento do verbo fechar denota
semanticamente a que objeto contextual a ordem deve ser aplicada. No
segundo exemplo, a referência deve ser identificada através do contexto
pragmático, uma vez que ela não está expressa diretamente no conteúdo
locutivo do COM. O pronome a poderia se referir, por exemplo, à janela, à
cortina, à persiana etc. Portanto, é necessário que o interlocutor reconheça
pragmaticamente que o objeto contextual a que a ordem se refere seja a
porta. No terceiro exemplo, a referência é dada no TOP. Portanto, essa
unidade fornece, em termos linguístico-informacionais, um âmbito para
que a ilocução de ordem se aplique. A relação entre TOP-COM é, dessa
maneira, de aboutness pragmática, ou seja, o NP a porta não é o objeto
semântico-sintático do VP feche-a. Não há uma relação de predicação
entre o conteúdo do TOP e o do COM, portanto essas duas unidades
informacionais não podem constituir uma proposição. A única relação
existente entre o TOP-COM é a de que o TOP representa linguisticamente
um domínio cognitivo adequado para a aplicação da força ilocucionária
que o COM carrega. Consequentemente, não há relação sintática entre o
TOP e o COM. O TOP, como outras unidades informacionais, é uma ilha
sintático-semântica, conforme discutido na seção 2.
286
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Não obstante, a noção do TOP como uma ilha sintática parece
ser desafiada por vários dados do PB e do inglês. Os dados do PB que
serão apresentados nesta seção foram extraídos do trabalho de Mittmann
(2012) e os do inglês foram retirados do trabalho de Cavalcante (2015).
Nos exemplos abaixo, o conteúdo locutivo do TOP seria o sujeito do
verbo das sentenças que se encontram no COM. Isso mostra que seria
possível, desse modo, haver relação sintática entre o conteúdo do TOP
e do COM.
Exemplo 3.4 – bfamdl03
*LUZ: [87] mas o antônio /=ToP= &he /=TMT= cobrou muito dela isso
//=COM=
Exemplo 3.5 – bfamcv02
*TER: [298] os pajem /=ToP= vai ser mesmo a Giovana e o Tetê /=COM=
né //=PHA=
Exemplo 3.6 – bfammn02
*DLF: [29] a senhora /=ToP_r= é de Itabira /=COB_r= &he /=TMT=
com um pai com esse nome /=COB_r= que que ele é do Carlos Drummond
de Andrade //=COM_r=
É possível argumentar que o PB é uma língua pro-drop e que,
portanto, os verbos cobrou, ser e é, dos enunciados acima, podem ser
usados sem um sujeito sintático, podendo, de fato, referir-se a quase
todas as pessoas pronominais – como tu/você cobrou/é/vai ser, ele/
ela cobrou/é/vai ser, nós/a gente cobrou/é/vai ser, vocês cobrou/é/vai
ser, eles/elas cobrou/é/vai ser – ainda que seja contraintuitivo pensar
que os NPs o Antônio, os pajem e a senhora não sejam o sujeito dos
verbos. De qualquer forma, a ideia do TOP como ilha sintática poderia
continuar válida se esse argumento for considerado. No entanto, como
explicar os exemplos de uma língua não pro-drop como o inglês, em que
é obrigatório que cada verbo receba um sujeito? Os exemplos abaixo
ilustram o problema:
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287
Exemplo 3.7 – afammn02
*ALN: [51] Marcia /=ToP= had a relative in Mexico /=COB= or something
/=COB= but they’d been down there /=COB= many times //=COM=
“Marcia /=TOP= tinha um parente no México /=COB= ou algo
assim /=COB= mas eles tinham estado lá /=COB= muitas vezes //=COM=”
Exemplo 3.8 – apubmn01
*KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM=
“os [/1] os pinguins /TOP= estão numerados//=COM=”
Exemplo 3.9 – afammn01
*LYN: [84] and your horse’s foot /=ToP= is just really wide or something
//=COM=
“e a pata do seu cavalo /=TOP= é muito larga ou algo assim
//=COM=
Não só é contraintuitivo pensar que os NPs Marcia, the penguins
e your horse’s foot não são sujeitos, respectivamente, dos verbos had, are
e is, como também é fato que essa consideração violaria uma regra basilar
da língua inglesa e de outras línguas não pro-drop, qual seja, a de que
essas línguas precisam de um sujeito expresso na sentença. Esse sujeito
deve ser realizado mesmo em verbos que não “exigem” semanticamente
um sujeito, como é o caso de verbos intransitivos que indicam fenômenos
da natureza (cf. It rains).
3.2 o caso das orações subordinadas
As subordinadas são orações que se encontram encaixadas
na matriz, mantendo assim uma relação sintática de dependência. Há
vários exemplos, tanto no inglês quanto no PB, que mostram orações
subordinadas em unidades informacionais diferentes. A prótase
(subordinadas) das condicionais abaixo se encontra na unidade de TOP,
e a apódose (matrizes) está na unidade de COM.
288
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Exemplo 3.10 – bfamcv04
*BRU: [283] <se for> uma palavra composta /=ToP= né /=PHA= por
exemplo duas palavras /=INT= cê faz assim //=COM=
Exemplo 3.11 – afammn01
*LYN: [6] and /=DCT= if you wanna go on in it /=ToP= you [/1]=EMP=
then /=AUX= you can go on /=COM= you know //=AUX=
“e /=DCT= se você quiser continuar /=TOP= você [/1]=EMP=
então /=AUX= você pode continuar /=COM= sabe //=AUX=”
Segundo Cresti (2014), as relações de subordinação caem dentro
de cada ilha sintática, ou seja, dentro de cada unidade informacional.
Contudo, tanto nos exemplos das condicionais, quanto nos exemplos de
orações subordinadas adverbiais temporais abaixo, existe uma relação
de subordinação entre o conteúdo locutivo das unidades de TOP e de
COM. As orações subordinadas estão no TOP e as principais se encontram
em COM. Esses exemplos reforçam o fato de que o TOP não pode ser
considerado um anacoluto sintático.
Exemplo 3.12 – afamdl03
*ALC: [117] I mean /=AUX= when you’re used to doing that all the time
/=ToP= you /=SCA= get up a system //=COM=
“digo /=AUX= quando você está acostumado a fazer isso o
tempo todo /=TOP= você /=SCA= cria um sistema //=COM=”
Exemplo 3.13 – bfamdl02
*BEL: [243] quando eu cheguei aqui /=ToP= todas as minhas calças
tinham ficado lá hhh //=COM=
Abaixo é apresentada outra subordinada – a adverbial causal.
Nesse exemplo, o enunciado é realizado através de CMMs. A subordinada
se encontra no segundo CMM, o que mostra que essa oração está em
outra unidade informacional, embora de mesmo valor pragmático – isto
é, ambas unidades com valor ilocucionário – que aquela que a antecede.
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289
Exemplo 3.14 – bfamcv048
*CEL: [164] mas cê nunca vai adivinhar nenhuma minha /=CMM= porque
eu nũ tenho a mínima noção //=CMM=
Outro tipo de subordinada é a oração completiva, mostrada nos
exemplos abaixo. No primeiro exemplo, a matriz se encontra em TOP e
a subordinada em COM. No segundo exemplo, a matriz se encontra em
INT e a subordinada na articulação TOP-COM.
Exemplo 3.15 – bfamdl03
*LUZ: [181] porque eu acho que no mesmo concurso /=TOP= cê nũ pode
fazer duas //=CoM=
Exemplo 3.16 – bpubmn01
*SHE: [101] então /=INP= eu vejo que /=INT= é [/1] /=EMP= querendo ou
não /=TOP= gente /=ALL= a organização /=TOP= é a alma do negócio
//=CoM=
A oração do TOP abaixo é classificada tradicionalmente como
uma subordinada substantiva predicativa reduzida de infinitivo. A
principal se encontra na unidade de COM.
Exemplo 3.17 – bpubmn01
*SHE: [21] &estu [/1]=EMP= &he /=TMT= trabalhar no Estado /=ToP=
com língua estrangeira /=APT= é lutar contra a maré //=COM=
O que todos os exemplos acima mostram é que o postulado de
que as relações de dependência sintática se localizam apenas dentro de
cada unidade informacional não se sustentaria. As relações sintáticas de
subordinação ultrapassam a unidade informacional.
A princípio, esses casos ainda poderiam ser contornados com
o postulado da sintaxe padronizada. No entanto, Cresti (2014) afirma
que a padronização atua somente como um nível de combinação de
unidades informacionais com o intuito de dar o output final e de fornecer
a interpretabilidade adequada ao enunciado. A sintaxe padronizada não
prevê nenhum tipo de relação sintática entre as unidades. A L-AcT postula
8
O exemplo 3.14 foi extraído de Bossaglia (2015a) e o 3.16, de Bossaglia (2014).
290
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
que, nesse nível, as estruturas não assumem as relações tradicionais de
dependência sintática.
Na sintaxe padronizada o nível sintático é “deposto” em razão
de o conteúdo locutivo estar vinculado a unidades informacionais
que desempenham funções pragmáticas específicas. Por exemplo,
uma possível oração subordinada em TOP é combinada com uma
possível oração matriz em COM sem estabelecer nenhuma relação de
dependência. A “subordinada” em TOP se combina com a “matriz”
em COM para que o enunciado tenha seu output realizado de forma
completa e adequada. Contudo, a oração em TOP não é uma verdadeira
subordinada, ela é somente o campo de aplicação da força ilocucionária
que está em COM. Cresti (2014) efetivamente distingue as verdadeiras
orações subordinadas (sempre linearizadas – proper subordinate clauses)
das orações subordinadas aparentes (sempre padronizadas – apparent
subordinate clauses).
Em virtude do que foi exposto, pode-se inferir que parece
haver um problema teórico de transposição de níveis de análise na
L-AcT. Considerando os exemplos 3.10 e 3.11 das condicionais acima,
depreende-se que a prótase perde sua condição morfossintática de oração
subordinada por ser realizada na unidade informacional de TOP. Em
outras palavras, a prótase deixa de ser uma subordinada para exercer a
função do âmbito de aplicação da força ilocucionária. O que isso significa
é que um elemento perde seu potencial morfossintático tão somente por
exercer certa função pragmática. A combinação da prótase em TOP e
da apódose em COM – sem que não haja uma relação sintática entre
o conteúdo locutivo dessas duas unidades – se dá por meio da sintaxe
padronizada, que busca, conforme discutido acima, fornecer a realização
completa do enunciado.
Na concepção da sintaxe padronizada da L-AcT, é possível notar
que o nível pragmático-informacional suplanta o nível sintático. E é
justamente isso que permite postular tal conceito teórico. Infere-se a
partir desse postulado que a morfossintaxe perde seu estatuto potencial
para assumir funções pragmáticas. Ou seja, a função (pragmática)
determina qual deve ser o papel da forma, sendo que esse papel não é
morfossintático, e sim pragmático. Isso pode gerar alguma incongruência
teórico-analítica, como mostram os dados apresentados acima. Para ficar
mais claro, será apresentado o exemplo 3.8, repetido aqui como 3.18:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
291
Exemplo 3.18 – apubmn01
*KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM=
“os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM=”
Segundo a L-AcT, o NP the penguins e o VP are numbered não
possuem relação sintática, pois se encontram em unidades informacionais
diferentes. Essa é, portanto, uma construção padronizada. O NP the
penguins (forma capaz de desempenhar um papel sintático) não é o sujeito
do VP are numbered porque esse NP se encontra numa unidade de TOP,
servindo à função de âmbito de aplicação da força ilocucionária. Por meio
da sintaxe padronizada – que não é capaz de atribuir relações sintáticas –
essas unidades são combinadas de modo a prover a realização completa
do enunciado. O raciocínio subjacente a essa concepção parece ser o de
que qualquer elemento morfológico que se alocar na unidade de TOP
perderá sua potencialidade argumental (no caso de um NP em posição
de sujeito, por exemplo) ou clausal (no caso de uma oração subordinada,
por exemplo), ficando, assim, incapaz de estabelecer qualquer relação
sintática com elementos do COM ou de outras unidades informacionais.
Isso ilustra o fato de que o conteúdo locutivo que seja realizado em TOP
deve necessariamente receber o papel de servir a uma função pragmática
específica, qual seja, a de constituir o âmbito de aplicação da força
ilocucionária. Parece, portanto, que na proposta da L-AcT existe uma
transposição de níveis analíticos gerando certa incompatibilidade entre
o postulado teórico e a inspeção empírica dos dados.
3.3 o caso das orações coordenadas
A coordenação é uma estratégia usada para unir duas unidades
sintáticas, sejam elas palavras, sintagmas ou orações. Em exemplos
canônicos, tais elementos devem apresentar o mesmo status, podendo
ser unidos por um repertório de conjunções de que a língua dispõe.
Considere os exemplos extraídos de Mello (2016):
Exemplo 3.19 – bpubdl01
*ROG: [8] eu vou &coloc [/3]=EMP= eu vou suspender mais um pouquim
aqui /=CMM= vou pegar a linha /=CMM= e vou colocar por cima //=CMM=
292
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
Exemplo 3.20 – bpubcv01
*MAR: [301] <congela /=CMM= mas é mais lento> //=CMM=
Exemplo 3.21 – bfamdl04
*SIL: [161] ou é vinho bom caro /=CMM= ou é cerveja //=CMM=
Todos os exemplos de coordenação elencados acima estão
divididos informacionalmente entre unidades de CMM. O primeiro
indica uma sentença coordenada aditiva, o segundo, uma coordenada
adversativa, e o terceiro, uma coordenada alternativa. O que pode ser
notado é que a relação de coordenação entre orações permanece sem
alteração mesmo que cada oração esteja dentro de uma única unidade
informacional de CMM. Observe que no exemplo 3.19, a conjugação do
verbo auxiliar ir garante que as orações coordenadas sejam correferentes
entre si e entre a oração precedente em que o sujeito pronominal eu é
realizado. Dessa forma, isso atesta a efetiva relação de coordenação entre
as orações vou pegar a linha e e vou colocar por cima divididas em duas
unidades informacionais.
3.4 o caso da negação
O PB apresenta três tipos de negação verbal: a pré-verbal, a dupla
e a pós-verbal, conforme ilustram, respectivamente, os exemplos abaixo
extraídos de Silva (2016):
Exemplo 3.22 – bfamdl23
*BAR: [173] eu não estou sendo gravada //
Exemplo 3.23 – bfamdl23
*JAN: [14] cê nũ toca guitarra não //
Exemplo 3.24 – bfamcv02
*JAE: [45] <conheço> ela não / <uai> //
De acordo com Schwegler (1991), quando há casos de negação
dupla em sentenças que apresentam período composto por subordinação,
a negação que ocorre em posição pós-verbal na oração subordinada
necessariamente tem escopo sobre o verbo da oração principal, exceto
em casos em que já há uma negação pré-verbal na subordinada.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
293
Em pesquisa sobre a negação verbal no PB, Silva (2016) 9
apresenta o seguinte dado, em que há um caso de negação dupla em uma
sentença formada por período composto por subordinação:
Exemplo 3.25 – bfamdl04
*SIL: [136] nũ é igualzim de casa de pobre /=CMM= que tudo que tem põe
pra fora não //=CMM=
Esse dado é bastante ilustrativo com respeito à contraargumentação das premissas teóricas da L-AcT. O exemplo acima
mostra que, mais uma vez, a subordinação pode ultrapassar as fronteiras
das unidades informacionais. Isso fica demonstrado pelo fato de que a
negação em posição pós-verbal da oração subordinada tem escopo sobre
o verbo da oração matriz. Ou seja, se não houvesse relação sintática entre
o conteúdo locutivo das duas unidades de CMM do exemplo acima, a
negação em posição pós-verbal da segunda unidade teria necessariamente
que negar os verbos ter ou pôr, o que é barrado pelas regras de escopo
da negação dupla no PB, conforme propõe Schwegler (1991). A leitura
dessa sentença deve ser parafraseada como (a) e não como (b) ou (c):
a. Não é igualzim de casa de pobre não, que tudo que tem põe pra fora.
b. Não é igualzim de casa de pobre, que tudo que não tem põe pra fora.
c. Não é igualzim de casa de pobre, que tudo que tem não põe pra fora.
Ou seja, o segundo advérbio de negação nega o verbo ser
da oração matriz, e não os verbos das dependentes. Caso a unidade
informacional fosse uma ilha sintático-semântica, o advérbio de negação
que ocorre no final do enunciado deveria necessariamente ter escopo
sobre o verbo de alguma oração da unidade em que se encontra. Portanto,
a unidade informacional não é capaz de barrar a relação de escopo que
se estabelece entre o advérbio de negação da última unidade de CMM
e o verbo ser presente na primeira unidade de CMM. Os falantes de PB
não interpretam o enunciado do exemplo 3.25 como as orações em (b)
e (c). Isso significa que qualquer enunciado do PB que seja composto
por dupla negação tendo distribuídos os advérbios em duas unidades
9
Cf. também Silva e Mello (2016a, 2016b, 2017).
294
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
informacionais diferentes sempre haverá composicionalidade sintáticosemântica, já que existe uma regra sintática que delimita o escopo do
segundo advérbio de negação. E essa regra não pode ser restringida pela
segmentação informacional do enunciado.
3.5 outros casos em línguas tipologicamente variadas10
Os exemplos que serão analisados nesta seção não constituem
dados de fala. A princípio, haveria um problema metodológico nessa
exposição, uma vez que a crítica desenvolvida nas subseções acima se
baseia no estudo da sintaxe da fala, e não em dados criados. Contudo,
a argumentação que será feita nas subseções abaixo se baseia num
princípio de predição que é possível extrair da L-AcT – embora deva ser
mencionado que tal princípio não está explícito nos textos de E. Cresti, ou
seja, é algo que fica subentendido. De acordo com a L-AcT, o enunciado,
a estrutura informacional e as ilocuções são veiculados pelo componente
suprassegmental da fala denominado prosódia. Considerando que toda
língua apresentaria prosódia, logo seria esperado haver enunciado,
estrutura informacional e ilocuções em todas as línguas.11 Isso é reforçado
de certa forma por Hirst (2013) no trecho abaixo:
A prosódia é universal no sentido trivial de que todas as línguas
possuem prosódia. Claramente, todos os enunciados têm prosódia
porque suas formas prosódicas sempre podem ser caracterizadas
como um padrão de mudança da duração segmental, da altura e
do pitch (HIRST, 2013, p. 150, grifos do autor).12
As glosas dos exemplos tipológicos das subseções abaixo são, em ordem alfabética,
1 = classe 1, 5 = classe 5, 9 = classe 9, ABS = absolutivo, ACC = acusativo, ASP =
aspecto, DIS = marcador de forma verbal disjuntiva, DS = sujeito diferente, ERG =
ergativo, FV = vogal final, LOC = locativo, NOM = nominativo, PAST = passado, PL
= plural, PRES = presente, REL = marcador de oração relativa, SG = singular, SM =
marcador de sujeito, SS = mesmo sujeito e TAM = tempo, aspecto e modo.
11
Evidentemente, as línguas de sinais não apresentam som, portanto a prosódia não
é veiculada da mesma forma que se realiza nas línguas orais-auditivas. Não obstante,
suas funções aparentemente permanecem as mesmas (cf. NESPOR; SANDLER 1999;
SANDLER, 2010).
12
Tradução nossa do original: “Prosody is universal in the trivial sense that all languages
possess prosody. Of course, all utterances have prosody because their prosodic form can
always be characterized as a changing pattern of segmental duration, loudness and pitch.
10
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
295
É preciso reconhecer que os pressupostos da L-AcT foram
aplicados e constatados até o momento em apenas seis línguas: espanhol,
francês, italiano, português, inglês e japonês. Contudo, conforme
mencionado acima, a prosódia parece ser um universal que veicularia as
funções constitutivas da fala assumidas pela L-AcT. De qualquer modo,
ressalta-se que os exemplos que serão apresentados abaixo constituem,
no momento, hipóteses, com exceção do exemplo 3.29 efetivamente
atestado em alemão.
3.5.1 as marcas de caso
O caso é uma categoria gramatical que possui a função de
expressar relações sintático-semânticas por meio da morfologia. As
línguas que não possuem marcação de caso empregam outras estratégias
para organizar e explorar as relações sintáticas, tais como a ordem dos
constituintes e as adposições, por exemplo.13 O sistema de caso constitui
um paradigma em que para cada relação sintática haverá geralmente
uma marcação morfológica distinta. Evidentemente, é possível que haja
dois casos diferentes com a mesma marca morfológica, bem como que
um mesmo caso exiba duas formas alternantes, que sofrerão variação
de acordo com regras de harmonia vocálica, por exemplo. Tal marcação
incide majoritariamente sobre os nominais e pode variar ainda de acordo
com as categorias de número e gênero, constituindo assim diferentes
declinações.
O finlandês é uma língua extremamente rica na marcação de
caso. A literatura mostra certa variação no que se refere ao número de
casos que essa língua pode apresentar. De acordo com Karlsson (2008), o
finlandês exibe quinze casos. Numa língua em que as relações sintáticas
são explicitamente marcadas na morfologia, não se pode ignorar o
papel da categoria de caso na interface entre a sintaxe e a estrutura
informacional. Dessa forma, o princípio da unidade informacional como
uma ilha sintático-semântica se enfraqueceria se as línguas de caso
entrassem no arcabouço argumentativo de análise. Observe o exemplo
abaixo do finlandês:
Uma língua de caso pode exibir concomitantemente adposições, como o latim, o
mongol, o finlandês etc.
13
296
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
Exemplo 3.26
Poja-t
tapa-si-vat
tyttö-i-en
garoto-NOM.PL encontrar-TAM-3PL garota-PL-ACC
“Os garotos encontraram as garotas”
O nominativo plural – caso do sujeito – é marcado pelo sufixo -t
no nome poja- (garoto) e o acusativo – caso do objeto direto – é marcado
pelo sufixo -en no nome tyttö- (garota). Levando em conta o papel da
marcação de nominativo em 3.26, como seria possível considerar que
pojat não constitui o sujeito sintático da oração caso esse nome fosse
empacotado na unidade de TOP numa articulação TOP-COM?
Exemplo 3.27
pojat /=TOP= tapasivat tyttöien //=COM=
“os garotos /TOP= encontraram as garotas //=COM=”
É importante mencionar que Cresti e Moneglia (2010) assumem
a universalidade da unidade de TOP, conforme pode ser observado na
seguinte passagem quando os autores apontam uma das propriedades
dessa unidade:
Fornecendo o domínio de relevância para o ato ilocucionário, o
Tópico permite distanciar o Comentário do contexto direto do
enunciado e, ao fazê-lo, ele torna a interpretação do enunciado
autônoma do contexto em si. Essa estruturação informacional
[TOP-COM] parece ser muito ‘primitiva’ e ocorre em todas
as línguas (...) (CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 18, grifo dos
autores).14
Além disso, considere o exemplo 3.29 do alemão extraído do
corpus Datenbank für Gesprochenes Deutsch (SCHMIDT, 2014) e
adaptado segundo os pressupostos teóricos e as normas de transcrição
da L-AcT.
Tradução nossa do original: “Providing the domain of relevance for the illocutionary
act, the Topic allows to distantiate the Comment from the direct context of the utterance
and, in doing so, it makes the interpretation of the utterance autonomous from the
context itself. This information structure seems to be very ‘primitive’ and occurring
in every language (...)”.
14
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
297
Exemplo 3.29
*XYZ: und den
Kerl /=TOP= habe i c h i m m e r n o c h n i c h t
//=COM=
e
o-SG.ACC garoto
ter-1SG.PRS.IND eu ainda não
“e o garoto /=TOP= eu não tenho ainda //=COM=”
De acordo com a proposta das ilhas semântico-sintáticas, cada
unidade informacional tem modalidade própria e autonomia sintática, o
que se traduz no postulado de que os elementos morfossintáticos de uma
unidade informacional são incapazes de estabelecer relações sintáticas
com os elementos de outra unidade informacional, exceto nas unidades
de Apêndice, que herdam a modalidade das respectivas unidades a que se
referem. O exemplo do alemão acima desafia tal postulado na medida em
que mostra um sintagma com um morfema acusativo exigido pelo verbo,
algo que já evidencia uma relação sintática com o conteúdo posterior.
Ademais, é interessante observar como os sintagmas estão distribuídos
na oração em COM. Como o alemão é uma língua V2, o constituinte que
se encontra na primeira posição força a ocorrência do sujeito para uma
posição pós-verbal para resguardar o verbo em sua posição canônica,
visto que a posição do sujeito já está ocupada por um sintagma acusativo
(cf. MÜLLER, 1995). Na ordem canônica, o sujeito ocorre sempre
em posição pré-verbal: Ich habe den Kerl immer noch nicht. Portanto,
o fenômeno em questão evidencia que as relações sintáticas podem
ultrapassar as unidades informacionais também em línguas de caso.
3.5.2 o sistema de switch-reference
Várias línguas apresentam um sistema de referenciação de sujeitos
gramaticais conhecido por switch-reference (cf. JACOBSEN, 1967;
AUSTIN, 1981; HAIMAN; MUNRO, 1983, entre outros). Tal sistema
consiste de um processo sintático em que ocorre o emprego de uma
marca morfológica no verbo de uma oração coordenada ou subordinada
indicando se o sujeito do verbo de uma oração é correferencial ou não
com o sujeito do verbo da outra oração, ou seja, esse morfema afixado
ao verbo indica se o sujeito de uma oração é idêntico ou diferente do
sujeito da oração seguinte. Observe abaixo os exemplos do sistema de
swtich reference em orações coordenadas:
298
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
Exemplo 3.30 – Koita
a. daka oro-go-i
eu vir-SG-SS
“eu vim e o vi”
era-ga-nu
ver-SG-PAST
b. daka oro-go-nuge auki da era-ga-nu
eu vir-SG-DS
ele me ver-SG-PAST
“eu vim e ele me viu”
(DUTTON, 1975 apud LYNCH, 1983, p. 210)
Na língua koita (família trans-neoguineana, Papua Nova Guiné),
o período composto por coordenação recebe a marcação morfológica de
switch reference no verbo da primeira oração. O sufixo -i, glosado como
SS (same subject) indica que o sujeito da primeira oração é o mesmo
da segunda, ao passo que o sufixo -nuge, glosado como DS (different
subject), indica que o sujeito da segunda oração é diferente do sujeito
do verbo da primeira oração.
Observe abaixo o fenômeno da switch reference agora em orações
subordinadas:
Exemplo 3.31 – Diyari
/ ŋani
piti-yi
a. ŋatu
kanta
kuly akulya tayi-na
eu(ERG) grama(ABS) verde(ABS) comer-REL(SS) eu(ABS) peidar-PRES
“quando eu como grama / eu peido”
nani
/ naka-lda nawu
wakara-nani
b. kanytyi mindi-ya
poder correr-PAST ela(ABS) lá-LOC
ele(ABS) vir-REL(DS)
“ela poderia ter corrido (a distância) / se ele voltasse novamente”
(ANDREWS, 2007, p. 176-177)
Na língua diyari (família pama-nyungan, Austrália), a marca
morfológica de switch reference é um sufixo que se afixa ao verbo da
oração subordinada. No primeiro exemplo, o sufixo -na ocorre no verbo
tayi- (comer) da oração subordinada e indica que o sujeito é idêntico
ao da oração principal. No segundo exemplo, o sufixo -nani ocorre no
verbo wakara- (voltar) da oração subordinada e indica que o sujeito não
é o mesmo da oração principal. O fenômeno da switch reference nas
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
299
duas línguas mostra que, caso as orações se articulem em TOP-COM ou
CMM-CMM, por exemplo, a proposta da unidade informacional como
ilha sintática não se aplicaria.
Exemplo 3.32
daka oro-go-nuge /=CMM= auki da era-ga-nu //=CMM=
“eu vim /=CMM= e ele me viu //=CMM=”
Exemplo 3.33
ŋatu kanta kuly akulya tayi-na /=TOP= ŋani piti-yi //=COM=
“quando eu como grama /=TOP= eu peido //=COM=
A marca morfológica de switch reference é uma indicação de que
as duas orações mantêm uma relação sintática, seja de coordenação ou
de subordinação. Esse fato é evidenciado morfologicamente no nível do
sujeito, seja ele idêntico ou diferente nas duas orações. Tal marca está
ausente em orações simples em que ocorre apenas um sujeito. Dessa
forma, esse fenômeno só é empregado em sentenças complexas que, via
de regra, estabelecem relação sintática.
3.5.3 as marcas de sujeito em línguas bantu
As línguas bantu apresentam um sistema específico em sua
morfologia nominal indicando determinadas classes por meio de prefixos.
Cada classe comporta um conjunto de nomes que compartilham os
mesmos prefixos e o mesmo padrão de concordância. De acordo com
Rego (2012), a distribuição das classes é semântica, binária15 e seu
número pode variar de acordo com cada língua bantu.
Tais classes são responsáveis por engatilhar concordância com
o sujeito por meio de um prefixo no verbo. Esse prefixo é denominado
na literatura dos estudos sobre línguas bantu como marca de sujeito
(cf. CREISSELS, 2005; ZELLER, 2008a, 2008b; LANGA, 2012;
15
Essa propriedade diz respeito a que as classes 1 e 2 estão relacionadas pelas mesmas
propriedades semânticas e pelo fato de a primeira indicar o singular e a segunda o plural.
Essa relação da indicação da categoria de número está presente entre as classes 3/4,
5/6 etc. É preciso dizer que há também algumas exceções nessa propriedade binária
(cf. REGO, 2012, para mais informações).
300
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
NGUNGA, 2014, entre outros). Para cada classe haverá uma marca de
sujeito, que pode ser diferente ou pode coincidir com o prefixo da classe
correspondente (cf. NGUNGA; SIMBINE, 2012).
Abaixo é possível observar a concordância que é estabelecida
entre os prefixos de classe e a marca de sujeito em exemplos de algumas
línguas bantu:
Exemplo 3.34 – Changana
a. Xingove xiwile
‘o gato caiu’
b. svingove sviwile
‘os gatos caíram’
(NGUNGA, 2014, p. 72, grifos do autor)
Exemplo 3.35 – Kinyarwanda
Umugoré a-teets-e
inyama
mulher1 SM1-cozinhar-ASP carne9
“a mulher está cozinhando carne”
(ZELLER, 2008a, p. 407)
Exemplo 3.36 – Zulu
Ikati li-ya-gul-a
gato5 SM5-DIS-estar.doente-FV
“o gato está doente”
(ZELLER, 2008b, p. 1)
Caso o enunciado se articulasse numa configuração TOP-COM, a
relação de sujeito-predicado não se alteraria. O prefixo no verbo marcando
concordância mostraria que não há possibilidade de considerar que a
relação sintática entre os elementos está ausente nesses casos.
Embora os argumentos tipológicos apresentados nesta seção
careçam do áudio disponível para verificação, a problematização não deve
ficar de fora por não poder ser comprovada no presente momento. Os
fenômenos tipológicos listados, bem como aqueles efetivamente atestados
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
301
nos minicorpora constituem, dessa maneira, um arcabouço robusto de
contraexemplos à proposta da L-AcT para o estudo da sintaxe na fala.
3.6 sobre as evidências para o postulado das ilhas sintático-semânticas
Cresti e Moneglia (2010) apresentam sete evidências para
o postulado das ilhas, que giram em torno de uma hipótese sobre a
inexistência de composicionalidade entre as unidades de TOP e de
COM. Essas evidências serão discutidas nesta seção. Ressalta-se que as
objeções apresentadas não dizem respeito necessariamente às descobertas
dos autores, mas sim às generalizações que são extraídas a partir de
tais descobertas. A primeira evidência que os autores apresentam diz
respeito à interpretação não composicional do padrão TOP-COM que
acontece em enunciados sem verbos e que mostram uma suposta relação
de modificação nominal.
Exemplo 3.37 – ifamdl14
*TAM: [41] le mele /=TOP= fatte a cigno //=COM=
“(em relação às) as maçãs /=TOP= (a forma correta deve ser) como um
cisne //=COM=”
O contexto de 3.37 refere-se a uma conversa entre mãe e filha
sobre a organização de uma festa surpresa. Elas discutem quais pratos
serão preparados. Um desses pratos constitui-se de maçãs esculpidas em
formato de cisne. O enunciado de TAM especifica em qual formato as
maçãs devem ser esculpidas. A leitura de 3.37 não deve ser de modificação
nominal, pois o significado do enunciado não comportaria essa análise.
O argumento para uma leitura não composicional é a hipótese de que
caso o mesmo conteúdo fosse realizado apenas na unidade de COM, sua
estrutura sintática seria alterada de um NP + AdjP para um NP complexo,
em função de haver uma alteração na interpretação semântica evocada
pelos diferentes padrões informacionais. Nesse caso, ocorreria de fato
uma relação de modificação nominal.
Exemplo 3.38
le mele fatte a cigno //=COM=
“as maçãs semelhantes a cisnes //=COM=”
302
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
Esse dado ilustra a propriedade que a prosódia tem de atribuir
diferentes sentidos a uma sequência potencialmente ambígua, podendo
consequentemente alterar sua estruturação sintática. O fenômeno
mostrado é muito estudado em Psicolinguística. Contudo, casos como
o do enunciado de 3.39 não se aplicam a esse padrão, uma vez que a
estrutura só pode possuir a leitura de modificação nominal, isto é, quando
não há uma potencial ambiguidade, a leitura do padrão TOP-COM deve
ser composicional, preservando assim a estrutura de modificação nominal.
Exemplo 3.39 – bfamcv02
*RUT: [319] Zé Levi /=TOP= também //=COM=
O contexto do trecho acima refere-se a uma conversa entre
três amigas sobre o casamento da filha de uma delas. TER estava em
dúvida a respeito do envio do convite do casamento de sua filha. RUT
diz que o convite poderia ser enviado para todos, mas em relação aos
padrinhos, TER deveria escolher com mais cuidado, tendo em vista
que algumas pessoas estavam passando por certos problemas e não
poderiam participar. RUT então menciona que Guilherme era uma delas,
bem como Zé Levi, ou seja, Zé Levi também não poderia participar
como padrinho. O enunciado 319 não comporta a possibilidade de duas
leituras, logo a leitura do padrão TOP-COM deve ser composicional,
isto é, o advérbio também modifica o nome Zé Levi e sua leitura é a
mesma independentemente de ter sido realizado em TOP-COM ou em
COM. Tanto padronizado em TOP-COM quanto linearizado em COM,
o enunciado não teria sua estrutura sintática alterada. Isso não significa
que pragmaticamente seriam sinônimos, já que há uma diferença
informacional entre TOP-COM e COM. O fato é que essa diferença não
se estenderia para o nível sintático. Além disso, em outros contextos onde
também não existe uma ambiguidade em potencial, a leitura deve ser
igualmente composicional, como é o caso de 3.40. Nesse exemplo, o NP
the penguins não pode ter outra interpretação além de sujeito.
Exemplo 3.40 – apubmn01
*KIR: [335] the [/1] the penguins /=TOP= are numbered //=COM=
“os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM=
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
303
Não há outra leitura sintática para a oração acima. Se ela
tivesse sido produzida de forma linearizada em COM, sua estrutura
sintática seria idêntica. O que mudaria evidentemente seria o nível
informacional, conforme já mencionado. Uma evidência para essa
análise seria a possibilidade de haver um pronome resumptivo que se
refere anaforicamente ao NP. Ou seja, em 3.41, o pronome sujeito they
só pode se referir ao NP the penguins. Isso significa que na ausência do
pronome they, o NP só pode ser o sujeito.
Exemplo 3.41
the penguins /=TOP= they are numbered //=COM=
“os pinguins /=TOP= eles estão numerados //=COM=”
O mesmo raciocínio se aplica ao exemplo 3.25 da seção 3.4.
Não há uma ambiguidade em potencial nesse dado, ele constitui um
caso típico de negação dupla no PB. O que fica mais evidente é o
fato de que se a leitura composicional não for assumida, gera-se uma
interpretação agramatical da sentença. Nenhum falante do PB entende,
por conseguinte, que o escopo da negação dupla seja restringido pela
unidade informacional. Dessa forma, quando não existe a possibilidade
de duas leituras diferentes, a prosódia não altera a estrutura sintática da
oração e, portanto, a leitura é obrigatoriamente composicional.
A segunda evidência que os autores apresentam para o postulado
das ilhas é o fato de existirem anacolutos sintáticos no padrão TOP-COM,
sendo que as expressões em TOP são independentes da regência do verbo
em COM em dados como 3.42.
Exemplo 3.42
*APR: mensile /=TOP= costa un po’ di più //=COM=
“mensalmente /=TOP= custa um pouco mais //=COM=”
Os autores argumentam que uma leitura composicional não é
possível tendo em vista a natureza de anacoluto do AdjP em TOP. Eles
dizem que, para serem interpretados, os anacolutos requerem o padrão
TOP-COM. Todavia, a possibilidade de haver anacolutos sintáticos
apenas ilustra que a unidade de TOP, nesses casos específicos, tem a
função de abrigar dentro de seu domínio um item independente. Mas isso
não impede que haja elementos não anacolutos em TOP. De qualquer
304
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forma, como os anacolutos são justamente elementos que não estabelecem
relação sintática, o postulado da ilha ainda não é plenamente justificado,
já que em dados como 3.40, o NP não pode ser um anacoluto devido à
relação de sujeito que mantém com o verbo, conforme discutido. Isso
significa que a existência de anacolutos em TOP não constitui uma
justificativa para os demais casos serem classificados dentro dessa
mesma classe.
A terceira evidência para o postulado das ilhas é a impossibilidade
de uma leitura composicional caso se considere que a relação entre TOPCOM seja de aboutness pragmática, e não semântica. Os autores dizem
que a relação de aboutness semântica corresponde a uma proposição e é
necessariamente composicional. Esse argumento é problemático porque
o próprio conceito de proposição é bastante questionado em Filosofia (cf.
QUINE, 1970). Entretanto, para fins argumentativos, não será adotada
aqui a linha que nega a existência da entidade proposição. De acordo com
os autores, a interpretação do TOP em termos de aboutness semântica
equivaleria a uma proposição, contudo a interpretação pragmática
mostraria algo distinto. O exemplo e as explicações abaixo são de Cresti
e Moneglia (2010).
Exemplo 3.43
*UO1: e quando un uomo politico si commuove /=TOP= è un cretino
//=COM=
“e quando um homem político se comove /=TOP= é um idiota
//=COM=”
Semântica: É desaprovado que a propriedade de ser um idiota seja
sobre os eventos em que um político se mostra emocionado. A paráfrase
é uma proposição.
Pragmática: O ato de desaprovação “ele é um idiota” é sobre o
domínio de relevância identificado por “quando um político se mostra
emocionado”. A paráfrase corresponde ao enunciado, mas não é uma
proposição.
Segundo os autores, a interpretação de aboutness pragmática
explicita a que se refere o ato de fala no devido contexto, já a interpretação
de aboutness semântica gera uma proposição que pode ser apropriada
ao contexto, mas não especifica seu domínio de relevância, uma vez que
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
305
sua leitura é composicional. Devido a isso as duas paráfrases não seriam
equivalentes. Esse argumento mostra que o nível lógico-proposicional é
distinto e não equivale ao nível pragmático. Sabendo que na fala o domínio
de relevância é fornecido exclusivamente por meio da prosódia, espera-se
que a paráfrase em termos proposicionais não especifique esse domínio,
já que a proposição é uma entidade abstrata, sem correlato acústico. Não
obstante, mesmo que se aceite que o enunciado possa ser parafraseado
por uma proposição, isso não justifica o postulado de que o TOP seja
uma ilha sintática. O nível pragmático não entra em conflito com o nível
sintático na medida em que ser o domínio de relevância de uma ilocução
não diz respeito, por exemplo, a que um NP possa ou não ser sujeito de
um verbo qualquer. Isso se deve ao fato de que o nível informacional
não pré-especifica a escolha das palavras nem pré-determina a natureza
categorial dos itens como pertencentes a uma determinada classe de
palavras. Logo, o que decidirá se um NP em TOP possa ou não ser sujeito
será a função sintática que ele estabelece com o verbo. De outro modo,
qual seria a motivação para que uma ilocução impeça que o conteúdo
lexical de seu domínio de relevância fique impossibilitado de estabelecer
uma relação oriunda de outro nível linguístico? Em que medida ser o
domínio de relevância implica não poder tomar parte numa relação
sintática cuja motivação está relacionada ao potencial argumental do
verbo (em casos de relação sujeito-predicado)? Essas questões não são
esclarecidas pelo argumento dos autores. Adicionalmente, eles afirmam
que a noção de aboutness semântica não se aplicaria ou, pelo menos,
geraria proposições sem sentido nos exemplos em que o TOP apresenta
anacolutos, como 3.42. Nesse caso, o argumento mostra mais que a noção
de proposição não possui validade empírica do que constitui propriamente
uma justificativa para que o TOP seja uma ilha, tendo em vista que essa
unidade pode igualmente abrigar elementos que não são anacolutos.
A quarta evidência que os autores apresentam constitui um
argumento cumulativo, isto é, ele só é valido caso se aceite que o TOP
nunca possa ter uma leitura composicional, que ele seja sempre um
anacoluto e que sua função de especificar o domínio de relevância
para a ilocução não seja especificado por uma proposição. Os autores
postulam que a identificação e diferenciação entre TOP e sujeito se baseia
306
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
exclusivamente na prosódia.16 O TOP teria um perfil prosódico do tipo
prefixo (prefix), ao passo que o sujeito sempre estaria linearizado no
enunciado. O fato é que, da forma como o TOP é definido pela L-AcT,
não há uma verdadeira restrição para que um NP como the penguins em
3.40 seja impedido de estabelecer a relação sintática de sujeito. Não sendo
uma categoria sintática própria que se sobreponha a outras categorias,
a unidade de TOP permite que exista um NP sujeito em seu domínio
desde que haja as condições sintáticas necessárias para a sua ocorrência.
O perfil prosódico de tipo prefix difere um enunciado complexo de um
enunciado simples, mas não diz respeito necessariamente à possibilidade
de existência ou não da categoria sujeito em seu domínio, tendo em
vista que a natureza sintática de um NP é determinada por princípios
gramaticais.17 O argumento dos autores é válido em apenas uma direção,
isto é, um NP sujeito quando linearizado não pode ser um TOP, já que a
prosódia específica de TOP está ausente. Mas isso não torna verdadeiro
o fato de que um NP que ocorra em TOP não possa constituir o sujeito
da oração, já que um sujeito não é definido exclusivamente com base
em características prosódicas. O sujeito é uma categoria sintática e sua
identificação se baseia em propriedades gramaticais dos termos da oração
(cf. BARÐDAL, 2006). É por isso que em 3.40 existe um NP sujeito
mesmo que ele seja realizado com a prosódia de TOP.18
A quinta evidência é baseada em restrições semânticas no padrão
TOP-COM. Segundo os autores, pronomes pessoais anafóricos, pronomes
indefinidos, NPs negativos e NPs indeterminados não podem ocorrer
em TOP porque eles não especificam uma informação linguística que
permita a individuação (individuation) da entidade referida no nível
Nas palavras dos autores: “(…) assuming the formal distinction between Topic and
Subject on the basis of stress and prosodic features, corpus based investigations provide
results that confirm their differential nature” (CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 34).
17
Note que não é possível determinar qual NP é o sujeito das seguintes orações com
base apenas no fator prosódico que marca a linearização: a. o Pedro matou o Paulo
//=COM=; b. apita o final de jogo o juiz //=COM=
18
Observe que falta uma justificativa à proposta de Cresti e Moneglia (2010) para que
ela deixe de constituir um argumento ad hoc: “Given that obviously a Subject cannot be
a Topic, we must also consider that, conversely, if one expression positively conveying
the information function of Topic cannot for this reason also play the role of Subject
and that this relation cannot be interpreted in the frame of sentence compositionality”
(CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 34).
16
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
307
cognitivo, ao passo que como sujeito essas categorias poderiam ocorrer
livremente. Contudo, algumas dessas categorias ocorrem na unidade de
TOP. Em PB, é possível haver NPs indeterminados em TOP e em inglês
é possível haver pronomes pessoais anafóricos também nessa unidade.
Exemplo 3.44 – bfamcv02
*TER: [21] mas /=INP= gente velha /=TOP= já prometeu o [/1]=SCA= os
presente /=TOP= <já /=SCA= pode> garantir que ganhou //=COM=
Exemplo 3.45 – bfamdl01
*REN: [145] desinfetante /=TOP= a gente precisa //=COM=
Exemplo 3.46 – afamcv03
*TOC: [128] he /=ToP= absolutely /=APT= was /=INT= so incredibly
upset /=CMM= I couldn’t believe this //=CMM=
Note que o fato de os autores não encontrarem esse tipo de
dado no corpus analisado não significa que ele esteja ausente em outros
corpora. Portanto, é preciso rever o alcance das possíveis restrições.
Esse é um tema que merece uma investigação mais aprofundada. Dessa
forma, o argumento apresentado ainda não justifica plenamente o estatuto
do TOP como uma ilha sintática.
A sexta evidência se refere a uma diferença entre TOP e sujeito
baseada numa restrição das relações fóricas de clíticos no italiano. Nessa
língua, seria agramatical dados em que o objeto de um verbo, em TOP,
ocorra sem a presença de um clítico em COM:
Exemplo 3.47
a. il pane/=TOP= *ho già comprato //=COM=
“o pão /=TOP= já comprei //=COM=”
b. il pane /=TOP= l’ho già comprato //=COM=
“o pão /=TOP= já o comprei //=COM=”
Segundo os autores, o TOP não toma parte na configuração
sintática do VP e, por conseguinte, não satura o argumento do verbo em
COM. Logo, o TOP é independente e não composicional com o restante
do enunciado. Esse argumento é forte para o italiano, mas não se aplica
308
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
a todas as línguas. Em PB, existe a possibilidade de que o argumento do
verbo seja saturado sem a necessidade de um clítico ou mesmo de um
pronome forte em COM, conforme ilustra 3.48. Portanto, o TOP ainda
não pode ser considerado uma ilha com base nesse argumento.
Exemplo 3.48 – bfamdl02
*BAL: [13] as pilhas /=ToP= eu coloquei aqui //=COM=
Ainda nessa mesma linha argumentativa, os autores dizem que
não foram encontrados no corpus dados de uma relação catafórica entre
um clítico em TOP e o seu referente em COM.
Exemplo 3.49
quando li’ho guardato /=TOP= Marioi ha voltato la testa //=COM=
“quando olhei para elei /=TOP= Marioi virou sua cabeça //=COM=”
Por esse tipo de fenômeno ser possível em dados escritos, isso
constituiria uma justificativa para uma diferenciação entre a organização
da informação na fala e na escrita. A explicação para que esse fenômeno
não ocorra na fala seria a de que o domínio de referência para o COM
depende de sua identificação em TOP. Como na catáfora o clítico ocorre
antes em TOP, o referente em COM deveria achar sua identificação
no próprio COM. Salienta-se que uma investigação diacrônica seria
necessária para verificar o percurso desse fenômeno na língua, sendo
que ele poderia constituir apenas a conservação de um padrão restrito a
alguns gêneros textuais da diamesia escrita que não encontrou lugar na
fala por questões extralinguísticas. Ademais, é de se esperar que algumas
estruturas da escrita não ocorram na fala, tendo em vista que não falamos
como escrevemos, e vice-versa. De qualquer modo, é importante observar
que a ausência desse tipo de dado na fala não decorre necessariamente
da hipótese de que o referente deve estar disponível em TOP para que o
pronome em COM ache sua identificação. Em outros ambientes sintáticos
esse fenômeno também não ocorre mesmo se linearizado no enunciado:
Exemplo 3.50
*Elei disse que Márioi viaja sempre //=COM=
*Sei considera Márioi inteligente //=COM=
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
309
A sétima evidência relaciona-se à ausência de composicionalidade
no padrão TOP-COM em função da distribuição de índices modais no
enunciado. Segundo Cresti e Moneglia (2010), se um enunciado apresenta
índices modais em unidades informacionais diferentes, cada unidade
mantém sua própria modalidade, ou seja, o escopo da modalidade não
pode ultrapassar a fronteira da unidade informacional. O que sustentaria
esse posicionamento seria a falta de sentido da paráfrase, em termos
proposicionais, gerada através da interpretação composicional de um
enunciado que apresenta dois índices modais em unidades diferentes.
Exemplo 3.51 – ifamcv01
*MAX: [191] secondo me /=TOP=
ne dimostrava di più //=COM=
“na minha opinião /=TOP= ela parecia mais velha //=COM=”
De acordo com os autores, a paráfrase proposicional gerada
através da interpretação composicional do enunciado não faria sentido:
eu subjetivamente avalio que eu afirmo que ela parecia mais velha. Isso
justificaria a impossibilidade de uma leitura composicional do padrão
TOP-COM e, portanto, marcaria a independência sintático-semântica das
unidades informacionais. A paráfrase correta, segundo os autores, deveria
ser eu afirmo que ela parecia mais velha, mas é minha avaliação atual.
Essa paráfrase é composta por duas orações coordenadas modalizadas
em que cada uma mantém sua própria modalidade. Eles argumentam
que se TOP e COM mostram independência em relação à modalidade,
não sendo possível analisá-la composicionalmente, os itens desse padrão
não poderiam ser partes de uma mesma estrutura sintática. Contudo,
há casos em que a modalidade pode ultrapassar a fronteira de TOP. As
orações subordinadas condicionais (“se p, então q”) representam um
conjunto de dados bastante robusto que invalida esse argumento, porque
nelas a prótase “atua como um angulador, que estabelece as condições
de validação do discurso subsequente” (ÁVILA, 2014, p. 139).
Exemplo 3.52 – bfamcv04
*BRU: [268] <e se for uma palavra composta /=TOP= cê faz assim>
//=COM=
Segundo Mello (2016), nas orações condicionais, como 3.52,
“o escopo da modalidade por elas expressa pode ultrapassar o limite
310
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
da unidade informacional” (MELLO, 2016, p. 191). Desse modo, a
modalidade não justifica plenamente o estatuto de TOP como uma ilha.
Por fim, os autores concluem dizendo que as seguintes relações
sintáticas e semânticas podem ocorrer linearizadas no enunciado, mas são
barradas quando se desenvolvem no padrão TOP-COM. Não obstante,
para cada relação elencada pelos autores, apresenta-se um contraexemplo
correspondente que ilustra a possibilidade de uma leitura composicional.
1. Modificação (NP: Núcleo nominal-Modificador)
Exemplo 3.53 – bfamcv02
*RUT: [319] Zé Levi /=TOP= também //=COM=
2. Regência (VP: Verbo-Objeto direto e objeto indireto19)
Exemplo 3.54 – bfamdl02
*BAL: [13] as pilhas /=ToP= eu coloquei aqui //=COM=
3. Predicação (Sentença: Sujeito-Predicado)
Exemplo 3.55 – apubmn01
*KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM=
“os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM=”
4. Modalização (Proposição: Composicionalidade de índices modais)
Exemplo 3.56 – bfamcv04
*BRU: [268] <e se for uma palavra composta /=ToP= cê faz assim>
//=COM=
Da discussão apresentada nesta seção, é possível levantar as
seguintes considerações:
19
Embora numa varredura preliminar não se encontraram exemplos de objeto indireto,
acreditamos não ser agramatical esse tipo de ocorrência. Em PB, a preposição geralmente
é omitida quando ocorre em TOP, cf. exemplo 3.45.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
311
(i) a leitura composicional do padrão TOP-COM não só é possível
como também é obrigatória em alguns casos;
(ii) nem todo sintagma em TOP é um anacoluto;
(iii) as relações sintáticas e semânticas podem ultrapassar a fronteira
da unidade informacional.
Isso indica que nem todos os dados obedecem às generalizações
assumidas por Cresti e Moneglia (2010), portanto elas devem ter seu
escopo reduzido. Isso implica, por sua vez, que o postulado das ilhas
sintático-semânticas precisa ser revisto.
4 Discussão sobre a abordagem da L-acT para o estudo da sintaxe
da fala
Nesta seção, alguns pontos sobre a abordagem da L-AcT serão
retomados e outros ainda não mencionados serão explorados. Será
apresentada uma visão crítica a respeito desses pontos, tendo por objetivo
contribuir com o debate a respeito do que foi proposto inicialmente nos
trabalhos de Cresti (2011, 2014).
Segundo Miller (2011), “todo trabalho sintático envolve teoria,
embora não necessariamente modelos formais” (MILLER, 2011, p. 1).20
Há nessa passagem duas importantes considerações que mereceriam
uma reflexão. Todavia, focar-se-á aqui apenas em uma delas. De acordo
com o autor, não existe um estudo sintático ateórico. Essa observação
é importante, pois permite desconsiderar possíveis abordagens que
pretendem ser baseadas numa descrição sem que esta esteja relacionada
a algum aspecto teórico de base. Ou seja, o tratamento dado a qualquer
observação a respeito da sintaxe passará necessariamente por um
posicionamento teórico, seja o das categorias mais tradicionais até o
das representações mais complexas ou abstratas possíveis. Portanto, é
preciso que o seguinte (provável) raciocínio seja evitado: se a prosódia é
um componente natural da fala – e considerando que ela esteja alinhada
à estrutura informacional do enunciado, que pode ser composto por
diferentes unidades informacionais – logo haverá um caminho natural por
Tradução nossa do original: “all syntactic work involves theory, though not necessarily
formal models”.
20
312
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
qual devem passar os constituintes que se encontram entre as unidades
informacionais, sendo este caminho constituído única e exclusivamente
pela noção de ilhas sintático-semânticas. Em outras palavras, os conceitos
de linearização e de padronização propostos pela L-AcT são tão teóricos
quanto as categorias tradicionais de sujeito ou de objeto indireto, por
exemplo. E na condição de construtos teóricos – e não na de uma
suposta relação natural amparada pelo componente prosódico – eles são
inteiramente passíveis de verificação empírica, podendo, dessa forma,
ser atestados ou refutados, sobretudo por terem sido elaborados a partir
de uma perspectiva corpus-driven.
A verificação da plausibilidade desses construtos deve ser
encarada, portanto, com o intuito de se obter uma otimização de recursos
teóricos. Admite-se, por conseguinte, que a noção de ilha sintática não
reflete uma relação natural entre os elementos, relação esta que poderia
ser recuperada ou evidenciada por meio de um componente natural da
língua, isto é, a prosódia. A proposta da insularidade permanente entre
os constituintes que se encontram entre unidades informacionais é um
construto teórico e merece ser investigado a fim de que seja atestado ou
refutado. Nesse sentido, não há uma equivalência entre os construtos
teóricos de linearização e de padronização com o estatuto natural
encontrado no componente prosódico da linguagem.
Refletir sobre o raciocínio apresentado acima é importante não
só para separar o que é natural da linguagem do que é individualizado
teoricamente, mas, sobretudo, para desvincular a ideia de que a prosódia
determina necessariamente ilhas sintático-semânticas por meio da
realização de unidades informacionais, o que está na base da abordagem
da L-AcT, como pode ser verificado na seguinte passagem: “Na
perspectiva da L-AcT a ‘redução’ sintática da fala é feita em favor de sua
funcionalidade pragmática” (CRESTI, 2014, p. 375).21 A funcionalidade
pragmática, evocada por cada unidade informacional, está diretamente
relacionada ao componente prosódico, uma vez que o componente que
segmenta a fala em unidades informacionais é justamente a prosódia.
Logo, esse componente fundamental torna-se um veículo natural para
que a noção de ilha seja justificada.
Tradução nossa do original: “In the L-AcT perspective, the syntactic ‘reduction’ of
speech is done in favour of its pragmatic functionality”.
21
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
313
A prosódia teria o controle para individualizar o que é de natureza
sintática daquilo que é de natureza pragmática, conforme pode ser
observado em passagem do trabalho de Mittmann (2012), baseado na
perspectiva da L-AcT: “as características prosódicas funcionam como
marcas linguísticas que assinalam a escolha do falante por realizar um
certo sintagma como Tópico, sujeito ou outro constituinte” (MITTMANN,
2012, p. 155). Não obstante, o que os dados parecem mostrar é que o
objeto definido pela L-AcT como Tópico permite que haja constituintes
que são sintaticamente sujeitos gramaticais da oração. Não há algo que
barre gramaticalmente os constituintes dos exemplos abaixo em unidade
de TOP constituírem elementos pertencentes à categoria de sujeito:
Exemplo 4.1 – apubmn01
*KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM=
“os [/1] os pinguins /=TOP estão numerados //=COM=”
Exemplo 4.2 – afammn01
*LYN: [84] and your horse’s foot /=ToP= is just really wide or something
//=COM=
“e a pata do seu cavalo /=TOP= é muito larga ou algo assim
//=COM=”
Segundo Cresti (2014), “(...) o conteúdo linguístico realizado
em mais de uma unidade informacional (isto é, padronizado) não pode
desenvolver uma configuração sintática hierárquica através dos limites da
unidade informacional” (CRESTI, 2014, p. 374, nota 14).22 Contudo, já
foi mostrado que essa proposta não se aplica em todos os casos. Considere
os exemplos abaixo:
Exemplo 4.3 – bpubmn01
*SHE: [21] &estu [/1]=EMP= &he /=TMT= trabalhar no Estado /=ToP=
com língua estrangeira /=APT= é lutar contra a maré //=COM=
Tradução nossa do original: “(…) the linguistic content performed for more than one
information unit (i.e. patterned) cannot develop a syntactic hierarchical configuration
across the information unit boundaries”.
22
314
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
Exemplo 4.4 – bfamcv04
*BRU: [269] <e se for uma palavra composta /=ToP= cê faz assim>
//=COM=$
As estruturas em negrito são amplamente documentadas na
literatura como orações subordinadas, portanto é contraintuitivo assumir
que elas estejam flutuando sem apresentar alguma relação sintática com
suas correspondentes orações matrizes. Essa análise desconsideraria
a natureza de dois tipos diferentes de dados, ou seja, aqueles que
apresentam relação sintática e os que de fato não apresentam. Tais
orações subordinadas mostram ainda traços gramaticais que de alguma
maneira caracterizam seu estatuto convencional de subordinação, ou seja,
o uso de verbos no infinitivo e no subjuntivo, respectivamente. Nesse
sentido, a proposta da L-AcT confere à prosódia um papel que ela não
exerceria, isto é, a ação de determinar a potencialidade categorial de
um dado elemento elencado dentro de uma unidade informacional. Isso
ocasiona uma destituição do nível linguístico que organiza os elementos
em termos de hierarquia em favor de um nível que ocupa outro lugar
na organização da cadeia da fala. À estrutura informacional veiculada
pela prosódia não caberia o papel de estabelecer o que seja ou não um
sujeito ou uma oração subordinada dentro de um enunciado, mesmo que
ela comporte funções pragmáticas específicas no texto.
Seguindo essa linha de raciocínio, a prosódia veiculando uma
unidade informacional não cumpriria a função de quebrar um aspecto
constitutivamente sintático e processualmente morfológico, como ocorre
na marcação de caso, na concordância ou no sistema de switch-reference,
por exemplo. Nesse sentido, se a abordagem da L-AcT for levada em
consideração para as línguas de caso – esclarecido o fato de que os
elementos podem alocar-se em unidades informacionais diferentes – a
prosódia teria de adentrar a estrutura interna da palavra – formada por
um processo morfológico de afixação de caso – e extirpar a propriedade
primordial do componente sintático revelado, nessas línguas, pela
morfologia – isto é, a hierarquia. Em vista disso, a anulação do nível
sintático ou da hierarquia de constituintes seria uma função concedida
à prosódia para que ela exerça o papel de organização informacional
no nível pragmático, resultando no que Cresti (2014) atribui como “a
redução sintática da fala”. Sem embargo, não seria razoável conceber
que a prosódia carregue uma propriedade que confira a ela certa função
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
315
(ou que exerça o papel) de anular o significado sintático de um morfema
dentro de um sistema altamente convencional, como é o da marcação
de caso, por exemplo.
A proposta da L-AcT se aplica de forma adequada a certos casos
que, inegavelmente, compõem um conjunto considerável de ocorrências
na fala, mas que não justificariam a integralidade da proposta. Considere
os exemplos abaixo:
Exemplo 4.5 – ifamdl02
*LID: [86] i’mi’ bisnonno /=ToP= Pietro //=COM=
“o meu bisavô /=TOP= Pietro //=COM=”
Exemplo 4.6 – bfamdl03
*LAU: [148] departamento /=ToP= Artes Plásticas //=COM=
Nesses enunciados, não é estabelecida efetivamente uma relação
sintática entre os elementos alocados nas unidades de TOP e de COM. A
esse respeito, Cresti (2014) argumenta que “(...) o que é ‘perdido’ numa
abordagem sintática composicional é mantido na L-AcT por funções
pragmáticas que veiculam o padrão informacional do enunciado”
(CRESTI, 2014, p. 374).23 De fato, essa proposta é adequada a esse
tipo de dado. Mas, o fato é que nem todos os dados são dessa natureza,
isto é, nem todas as ocorrências obedecem à organização verificada nos
exemplos acima. Observe o seguinte exemplo:
Exemplo 4.7 – afammn02
*ALN: [51] Marcia /=ToP= had a relative in Mexico /=COB= or something
/=COB= but they’d been down there /=COB= many times //=COM=
“Marcia /=TOP= tinha um parente no México /=COB= ou algo
assim /=COB= mas eles mas eles tinham estado lá /=COB= muitas vezes
//=COM=”
Considerando a proposta da L-AcT, a interpretabilidade dos
enunciados que apresentam elementos sem ligação sintática, como nos
Tradução nossa do original: “(…) what is ‘lost’ from a syntactic compositional
framework is maintained within L-AcT by pragmatic functions performing an
utterance’s information pattern”.
23
316
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
exemplos 4.5 e 4.6, é compensada ou recuperada pela função pragmática
exercida pela unidade de TOP. Nesse caso, é preciso esclarecer, então,
o que determinaria que o NP Marcia, no exemplo 4.7, não esteja
sintaticamente ligado ao restante do enunciado. O raciocínio da proposta
da L-AcT parece se desenvolver do seguinte modo: se em alguns casos
(4.5 e 4.6 acima, por exemplo) os elementos da unidade de TOP não
estabelecem relação sintática com os elementos da unidade de COM,
logo nenhum outro elemento em TOP estabelecerá, e isso valeria para
outras unidades informacionais textuais. No entanto, essa proposta teórica
acarretaria uma interpretação incorreta para os dados que não obedecem
ao padrão de 4.5 e 4.6, o que gera, por sua vez, uma incompatibilidade
analítica entre os dois casos. Dessa forma, se esse raciocínio não for
levado em consideração, o que se constatará é que nem todos os dados
atestarão a proposta da L-AcT das ilhas sintático-semânticas. Argumentase, portanto, que o postulado exibido na passagem abaixo não se aplica
à totalidade dos casos encontrados nos dados dos corpora:
De acordo com a L-AcT, cada unidade informacional de um
padrão (identificado por uma unidade prosódica) determina o
limite do respectivo chunk semântico/sintático correspondente
a ela na ativação locucionária. Dado que cada chunk linguístico
é concebido a fim de desenvolver uma função pragmática,
a combinação deles dentro de um enunciado não segue
necessariamente regras sintáticas, gerando uma sentença
bem formada: a sintaxe do enunciado não corresponde a uma
configuração hierárquica unitária, mas à combinação de orações,
sintagmas ou fragmentos sintáticos locais (CRESTI, 2014, p. 368,
grifo nosso).24
Algo que deve ser observado nessa passagem é a explicação que
Cresti (2014) apresenta para justificar a noção de ilha e fragmentar o
Tradução nossa do original: “According to L-AcT, each information unit of an
information pattern (identified by a prosodic unit) determines the boundary of the
respective semantic/syntactic chunk corresponding to it in the locutionary activation.
Given that each linguistic chunk is conceived in order to develop a pragmatic function,
their combination inside an utterance does not necessarily follow syntactic rules,
generating a well-formed sentence: the syntax of the utterance does not correspond to
a unitary hierarchical configuration, but to the combination of local syntactic clauses,
phrases, or fragments”.
24
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
317
papel da sintaxe na composição do enunciado. Segundo a autora, o fato
de que o conteúdo locutivo seja destinado a desempenhar uma função
pragmática dentro de cada unidade informacional resulta na formação de
um enunciado sem relações sintáticas entre seus elementos. Entretanto,
os dados parecem não sustentar essa assunção. Uma pergunta que
pode ser feita nesse sentido é por que considerar que há ilhas sintáticas
em enunciados como 4.1. A justificativa giraria em torno do fato de
que seus constituintes estão dispostos numa articulação TOP-COM
e, dado que cada constituinte está alocado dentro de uma unidade
informacional que desempenha determinada função, isso implicaria
uma consequente ausência de relação sintática entre eles. Ou seja, the
penguins e are numbered são chunks linguísticos que se encontram em
unidades informacionais diferentes e devido ao fato de que cada unidade
desempenha uma função pragmática diferente, chega-se à conclusão de
que os chunks desse enunciado não estabelecem relação sintática. Não
obstante, faltaria um elo baseado numa evidência empírica para que essa
explicação não caia numa ideia circular como a seguinte: the penguins
não é sujeito de are numbered porque se encontra em TOP, já que NPs em
TOP – respeitadas certas condições morfossintáticas para sua realização
– não podem ser sujeitos sintáticos de elementos em COM – algo que
necessita de evidência – então the penguins não pode desempenhar a
função de sujeito. Em outras palavras, qual seria a justificativa para que
uma função pragmática determine uma ilha no nível da sintaxe e da
semântica? Por que há a pressuposição de que elementos que recebam
o estatuto de chunks dentro das unidades informacionais configurem
necessariamente ilhas sintático-semânticas?25
Acreditamos que o trecho do texto de Cresti (2014) acima pode
dar margem a certa confusão do nível da argumentação feita aqui.
Portanto, é preciso esclarecer e separar dois objetos de inquirição. O
fato de que a unidade de referência da fala seja individualizada pela
prosódia e que esse componente também organize o enunciado em
unidades internas não faz com que sejam anuladas possíveis relações
sintáticas entre os elementos alocados dentro de tais unidades. Esse é o
ponto que está sendo desenvolvido neste texto. Não se pretende discutir
qual é o lugar da sintaxe ou da prosódia na produção e na organização
dos enunciados, isto é, não compete discutir, neste momento, se a L-AcT
25
A exceção ficaria com as unidades de Apêndice, conforme mencionado na seção 2.1.
318
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
fornece evidências para afirmar que a prosódia preceda a sintaxe na
estruturação da fala. Esse tipo de discussão não é nosso foco e tampouco
é algo investigado por Cresti (2014). Trata-se, com efeito, de examinar até
que ponto a proposta da L-AcT em seus postulados esteja sendo orientada
pela natureza dos dados empíricos, naquilo que se refere ao componente
sintático da linguagem em interação com a estrutura informacional.
Esse é um fator que interfere no julgamento e na análise dos dados e
precisa, portanto, ser avaliado. A sintaxe em interação com a estrutura
informacional do enunciado é um ponto específico e argumentos a favor
da precedência da prosódia sobre a sintaxe na organização do enunciado
é outro ponto distinto.
No que Cresti denomina como “provas da composicionalidade
sintática”, a autora apresenta uma aplicação de testes clássicos de
validação de sintagma ou de oração, tais como clivagem, coordenação
negativa e coordenação positiva depois de uma resposta positiva. Esses
testes constituem a demonstração da proposta. Segundo Cresti (2014),
apenas em dados que apresentam linearização a aplicação de tais testes
não resultará em estranhamento semântico-sintático26. A autora pretende
demonstrar que os dados em que ocorre padronização não passam nos
testes supracitados. Para isso, ela seleciona dados de subordinação
sintática em italiano e busca mostrar, por meio da aplicação dos testes,
que o que ela denomina como “orações subordinadas aparentes”
(apparent subordinate clauses) não constituem estruturas governadas
por uma real subordinação sintática, ou seja, seriam ilhas dominadas pela
configuração informacional do enunciado. A aplicação desses testes não
será reproduzida aqui devido à limitação de espaço, o leitor interessado
pode consultar Cresti (2014, p. 393-402). Limitar-nos-emos, assim, a
alguns comentários gerais a seu respeito.
Acreditamos que um problema em potencial é que os tradicionais
testes de identificação de sintagmas ou de orações atuam num nível
que a L-AcT não explora, isto é, a sintaxe do ato locucionário interna à
unidade informacional, aquela concernente às ilhas. Isso mostra, por sua
vez, alguns fatos interessantes. Os testes ignoram a prosódia, a principal
via de exploração e sustentação da proposta de Cresti (2014). Isso não
Ao passo que, segundo a autora, dados que apresentam padronização “(...) the
application of tests is stopped or produces odd outputs with unnatural meanings”
(CRESTI, 2014, p. 400).
26
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
319
é, obviamente, um impeditivo para sua aplicação. No entanto, mostra a
clara delimitação da governabilidade dos níveis prosódico e sintático,
bem como um segundo fator caro à teoria: a omissão da exploração do
já referido nível sintático interno à unidade informacional, ou seja, a
sintaxe interna das ilhas.
Conforme mencionado acima, para atestar a existência das ilhas,
recorre-se a testes que omitem o componente prosódico. Considerando
que a prosódia ocupa uma posição importante na proposta, pressupõe-se
que tal componente deveria servir também como base para demonstrar o
estabelecimento das ilhas sintático-semânticas, no sentido de constituir
algo a ser explorado como suporte à proposta. Em outras palavras,
na abordagem da L-AcT, a sintaxe da fala é ancorada no componente
prosódico, que atua na construção das ilhas sintáticas, mas na
demonstrabilidade desses construtos teóricos, esse componente é omitido,
voltando-se assim a uma visão mais tradicional da sintaxe, o que revela,
por outro lado, a fundamental importância do estudo da sintaxe interna das
ilhas, isto é, a sintaxe localizada no nível lexical. Provavelmente, para a
efetiva atestação da noção das ilhas sintático-semânticas, seria necessário
o desenvolvimento de outros tipos de demonstração, seguindo a adoção
de diferentes metodologias, sobretudo na esfera da experimentação.
Cresti (2014) posiciona sua abordagem numa perspectiva do
ponto de vista da produção, desconsiderando uma análise do ponto de
vista interpretativo, conforme indica o trecho abaixo:
(…) a hipótese de mecanismos sintáticos governando a regência
sintática entre os enunciados e para além da atividade do falante
é uma análise do ponto de vista do ouvinte. A L-AcT não está
interessada numa reconstrução a posteriori de possíveis ligações
sintáticas no texto falado que não consideram como a fala é
realizada (CRESTI, 2014, p. 407, grifo da autora).27
A crítica de Cresti (2014) relatada nessa passagem diz respeito às
análises que tentam recuperar ligações sintáticas inexistentes em dados
que apresentam, por exemplo, uma articulação TOP-COM, mas que
Tradução nossa do original: “(…) the hypothesis of syntactic mechanisms governing
regency across utterances and beyond speaker activity, is an analysis from the point of
view of the hearer, L-AcT is not interested in the a posteriori reconstruction of possible
syntactic links in spoken text which do not consider how speech is performed”.
27
320
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
não exibem elementos que evidenciem tais relações, como no exemplo
4.6, em que não se pode reconstruir uma preposição entre os nomes.
Contudo, mesmo que a análise não seja direcionada a reconstruir elos
sintáticos que não foram realizados no momento da produção, a proposta
de demonstração acerca do postulado que foi analisado segundo o ponto
de vista da produção segue um critério de validação de um ponto de
vista interpretativo do ouvinte, que busca recuperar, por meio de seu
julgamento como falante nativo, a gramaticalidade de uma construção
sintática transformada, sem o auxílio da prosódia. Esse fato revela, como
já discutido, o reconhecimento de dois níveis muito distintos que estão em
interação. Todavia, a interatividade que é estabelecida entre esses níveis
não constituiria uma base para assumir que haja uma relação isomórfica
em que um atua para anular a potencialidade do outro.
Em uma passagem interessante, Cresti (2011) reconheceria que
a sintaxe interna das ilhas pertence a um domínio de atividade cognitivo
ao afirmar que
[q]uando o falante coloca em ação algum material linguístico com
certa função informacional, ele se comporta de forma pragmática
e seu input fundamental é um sentimento para com o destinatário;
essa atividade pertence ao ato ilocucionário. Quando o falante
realiza uma configuração sintática e uma composição semântica, ele
desenvolve uma atividade cognitiva e computacional que pertence
ao ato locucionário. Mesmo que a ilocução e a locução sejam
simultâneas à realização do mesmo ato de fala, elas se referem a
faculdades diferentes (CRESTI, 2011, p. 55, grifo nosso).28
De um lado, a autora se alinha a uma posição de extensa e notória
tradição, reconhecendo que o nível das relações constitutivas da sintaxe
tem na sua base uma atividade cognitiva, por outro lado falta um modelo
teórico que dê sustentação a uma proposta de análise e esclarecimento de
fenômenos relacionados a esse nível de elaboração, tendo em vista que a
Tradução nossa do original: “When the speaker puts in action some linguistic material
with a certain information function, he behaves in a way pragmatically motivated and
his fundamental input is an affect toward the addressee; this activity belongs to the
illocutionary act. When the speaker performs a syntactic configuration and a semantic
composition, he develops a cognitive and computational activity which belongs to
the locutionary act. Even if the illocution and the locution are simultaneous in the
performance of the same speech act, they concern different faculties”.
28
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
321
L-AcT é um modelo restrito a um âmbito específico e distante de questões
relativas ao processo de elaboração e de construção da localidade sintática.
O estatuto que a sintaxe recebe na L-AcT está condicionado pela
pragmática via componente prosódico, que instaura as chamadas ilhas
sintático-semânticas. A pragmática é, por definição, um componente não
só essencial mas também parte constitutiva do processo comunicativo
oral, isto é, não é possível desvincular os aspectos pragmáticos da
comunicação entre dois ou mais interlocutores compartilhando o hic
et nunc. Deste modo, a pragmática via componente prosódico fornece
a interpretabilidade do enunciado, algo que está na base explicativa
das unidades informacionais como veículos, por parte do locutor, de
construção pragmática e de transmissão do enunciado e, por parte
do interlocutor, de interpretação da unidade de referência da fala
conjuntamente com suas unidades internas. A sintaxe, por seu turno,
fornece a gramaticabilidade do nível locucionário do enunciado,
organizando-o em unidades hierárquicas. Logo, o estatuto da sintaxe
não deveria ser condicionado por um componente que determina a
interpretabilidade, e não a gramaticabilidade, do enunciado. São dois
âmbitos distintos na esfera da organização linguística, onde atuam
diferentes subcomponentes a fim de regular o uso efetivo e adequado do
enunciado na cadeia da fala. À medida em que se desloca o âmbito da
interpretabilidade para se definir o estatuto de um componente responsável
pelo âmbito da gramaticabilidade, tornando-o impossibilitado de exercer
seu papel, gera-se certa irregularidade conceitual.
Toda a discussão feita até aqui mostra que o componente sintático
ocupa um nível altamente governado pela prosódia e pela estrutura
informacional. O ganho desse posicionamento se reflete numa abordagem
coerente com a diamesia da fala. Ou seja, a L-AcT mostra que a unidade
de referência da fala não é regida por princípios sintáticos, mas pela
prosódia, portanto o ganho se reflete em considerar esse aspecto em
detrimento de uma abordagem que considere o enunciado como uma
sentença falada, por exemplo. A perda, entretanto, fica mais evidente
quando se analisam dados em que a prosódia e a estrutura informacional
não dirimem a dependência sintática entre os constituintes. Na L-AcT,
contudo, esses casos são contornados com um postulado que permite não
a recuperação de uma relação sintática, mas a realização da articulação
completa do enunciado ou o seu output final – casos em que ocorre a
chamada padronização. Contudo, o fato de que a prosódia governe o
322
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estabelecimento da estrutura informacional e da unidade de referência
da fala não faz com que esse componente assuma automaticamente o
papel de marcar níveis de dependência sintática.
Uma relação de interface entre os componentes informacional
e sintático seria uma saída mais viável para o problema em questão.
Tal relação, por definição, não envolve a completa subordinação de
um componente sobre o outro. Numa relação de interface há uma
interconexão entre os níveis, sem que estejam necessariamente numa
relação isomórfica. É uma relação de interface entre aspectos sintáticocognitivos que permitiria, por exemplo, que haja alguma restrição lexical
no TOP (cf. KUMASHIRO; LANGACKER 2003). Ressalta-se que pode
haver alguma indagação a esse respeito, isto é, considerando que haja
alguns elementos barrados em TOP, haveria assim uma justificativa para
o estatuto de ilha atribuído a essa unidade. Sem embargo, é preciso dizer
que um fator não está correlacionado ao outro, ou seja, haver elementos
que aparentemente são barrados em TOP não seria uma justificativa
para considerar essa unidade como uma ilha. Observe que a restrição
que implica que alguns elementos não ocorram em TOP se deve à
função cognitiva que essa unidade estabelece com o COM, que envolve
a formação de um domínio de relevância, conforme apontam Cresti e
Moneglia (2010). A prosódia não constitui uma barreira articulatória para
a realização de qualquer elemento barrado nessa unidade, ao contrário,
por exemplo, das unidades dialógicas, em que não só funcionalmente,
mas também prosodicamente seria impossível realizar uma articulação
sintaticamente complexa em seus domínios, no sentido da elaboração
de uma sentença completa com argumentos e adjuntos, por exemplo.
O isomorfismo que a L-AcT propõe entre a unidade informacional
e o componente sintático na fala ressalta a ideia de que há um alinhamento
completo entre a sintaxe e a estrutura informacional. Nesse tipo de análise,
o componente sintático é governado pela organização informacional sendo
veiculada pela prosódia, de onde emergem as unidades informacionais no
enunciado, que, por sua vez, restringem o conteúdo locutivo em forma
de ilhas sintático-semânticas. A sintaxe é concebida, por conseguinte,
como um nível de fragmentos sintagmáticos locais que têm sua natureza
hierárquica determinada pelo componente pragmático que se desenvolve
em termos de estruturação informacional. Contudo, buscou-se mostrar
os problemas que essa concepção pode trazer, considerando a gama de
contraexemplos que ocorrem na fala espontânea.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
323
Ademais, a abordagem da L-AcT para o estudo da sintaxe da
fala apresenta um caráter determinístico em seu núcleo teórico, tendo
em vista que considera, por exemplo, que sempre que houver elementos
em unidade de TOP, eles necessariamente não estabelecerão relações
sintáticas com os elementos subsequentes do enunciado. Contudo, a
natureza da linguagem e de sua estrutura sintática não parece obedecer,
em sua totalidade, a critérios determinísticos. Vários estudos têm
mostrado que uma abordagem probabilística seria mais coerente com
a investigação dos aspectos sintáticos oriundos de dados empíricos de
corpora tanto de fala quanto de escrita (cf. MANNING, 2003; VOGELS;
VAN BERGEN, 2017; SZMRECSANYI et al., 2017, entre outros).
A abordagem probabilística traz diversas vantagens e procura refletir
uma interpretação coesa com a natureza dos fenômenos. Acreditamos,
portanto, que esse seja um caminho interessante para a investigação da
sintaxe da fala.
Considerações finais
Foi investigada, neste estudo, a abordagem da L-AcT para o
estudo da sintaxe da fala. A inspeção dos dados apresentados abriu
caminho tanto para críticas relacionadas aos postulados teóricos
estabelecidos por E. Cresti, quanto para a proposta de uma nova
abordagem metodológica no âmbito da L-AcT. Submetida a uma análise
qualitativa dos dados empíricos e tipológicos, verificou-se que a proposta
da L-AcT deixa de interpretar informações importantes sobre a relação
estrutura informacional-sintaxe. Um ponto que se mostrou crucial nesse
sentido é o fato de que as relações sintáticas são capazes de ultrapassar as
fronteiras das unidades informacionais, o que conduz ao reconhecimento
da relação não isomórfica entre a estrutura informacional e o componente
sintático da linguagem. Isso nos levou a defender que a sintaxe da fala
seria melhor explorada por meio de análises probabilísticas.
Acreditamos que considerar que a sintaxe da fala obedece a
critérios probabilísticos pode ajudar a esclarecer vários fenômenos
envolvendo a interface entre a estrutura informacional e os elementos
morfossintáticos distribuídos ao longo das unidades informacionais,
uma vez que as relações sintáticas podem ultrapassar as fronteiras de
tais unidades, conforme argumentado neste estudo. Um exemplo seria
determinar qual a chance de que NPs em TOP sejam sujeito sintáticos
324
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020
do conteúdo de COM ou de que sejam anacolutos, não participando
assim de uma relação de predicação direta com o elemento em TOP.
Para isso, é preciso selecionar as eventuais variáveis que estariam
incidindo sobre o fenômeno, bem como o(s) método(s) estatístico(s)
para o cálculo da probabilidade. A partir dos resultados, seria possível
estabelecer generalizações e explicações teóricas sobre o fenômeno,
podendo fazer-se uso adicionalmente de outros arcabouços teóricos
para o enriquecimento da argumentação. Dentro dessa perspectiva, uma
gama de fenômenos podem ser explorados também em complementação
com outras metodologias que permitam o uso de métodos estatísticos,
como a abordagem experimental. Dessa maneira, torna-se possível uma
compreensão mais robusta dos fenômenos linguísticos que envolvem a
interface entre prosódia e sintaxe.
agradecimentos
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), a
quem o autor agradece. O autor também agradece os comentários e as
sugestões dos dois pareceristas anônimos.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
De la fraseología a una perspectiva cognitivista centrada
en el uso: un debate sobre variabilidad y fijación
From phraseology to a cognitive perspective focused on use:
a debate on variability and fixation
Leandra Cristina de Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil
leandra.oliveira@ufsc.br
https://orcid.org/0000-0002-6099-9093
María Alejandra Godoy Roa
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil
marialejandragodoyr@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0001-9548-9651
resumen: El análisis aquí propuesto sobre la variabilidad verbo-temporal en el uso
de las construcciones fraseológicas (CFs), fundamentado en los campos teóricos de la
Fraseología, de la Gramática del uso y de la Lingüística Cognitiva, tiene como objetivo
central poner en discusión el criterio de la fijación, reconocido en el campo teórico
de la Fraseología como un nivel de estabilidad al cual se vincula la propiedad de la
idiomaticidad. Para tanto, se emprende un estudio basado en corpus para el análisis
de la frecuencia de uso de las CFs tirar la toalla, poner el grito en el cielo y echar
leña al fuego. Los datos analizados a partir del tratamiento estadístico aplicado por el
Programa RStudio respaldan los argumentos a favor de la variabilidad en detrimento
de la fijación, puesto que el núcleo verbal de las tres CFs puede aparecer conjugado
en diferentes tiempos y modo verbales.
Palabras Clave: construcciones fraseológicas; fijación; variabilidad morfológica.
abstract: The analysis proposed here about the verb-temporal variability in the use of
phraseological constructions (CFs), based on the theoretical fields of the Phraseology,
used-based theory of grammar and Cognitive Linguistics, has as a central objective to
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.331-358
332
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
discuss the criterion of fixation, recognized in the theoretical field of Phraseology as a
level of stability to which the property of idiomaticity is linked. Therefore, a corpusbased study is undertaken to analyze the frequency of use of CFs tirar la tolla, poner el
grito en el cielo and echar leña al fuego. The data analyzed from the statistical treatment
applied by the RStudio Program support the arguments in favor of the variability to the
detriment of the fixation, since the verbal core of the three CFs can appear conjugated
in different times and verbal mode.
Keywords: phraseological constructions; fixation; morphological variability.
Recibido el 3 de junio de 2019
Aceptado el 17 de octubre de 2019
1 Introducción
La propuesta de este trabajo es sintetizar parte de los resultados del
estudio de Godoy Roa (2017) a partir de la consideración de la flexibilidad
morfológica de construcciones fraseológicas (CFs) castellanas en lo que se
refiere a los tiempos verbales. Partiendo de los conceptos de la Fraseología
(CORPAS PASTOR, 1996; RUIZ GURILLO, 1997; GARCIA-PAGE,
1999), de la Gramática del uso y de la Lingüística Cognitiva, (CROFT;
CRUSE, 2008; BYBBE 2003, 2006, 2010, 2016), se describen los tiempos
verbales más frecuentes en el uso de tres construcciones fraseológicas
específicas: tirar la toalla, poner el grito en el cielo y echar leña al fuego.
La presente investigación parte de los siguientes intereses: (i) verificar la
aplicabilidad del criterio de la fijación, en lo que concierne a la morfología;
y (ii) identificar usos morfológicos prototípicos, en términos temporales,
en cada una de las tres construcciones.
Entre los problemas que impulsan esta investigación se destaca
la escasez de trabajos dedicados al análisis gramatical, es decir, que
vayan más allá de los límites de la semántica, centrada en la propiedad
de la idiomaticidad. Por lo general, las investigaciones se direccionan a
estudios sobre la traducción de este tipo de construcción, su significado,
la forma como están registradas en diccionarios bilingües o en los libros
didácticos para la enseñanza del español, como se puede verificar en
Xatara et al. (2001), Noimann (2007), Beckhauser (2014), Costa (2014),
entre otros. En este contexto, a partir de este trabajo, con base en corpus
y que se centra en la descripción morfológica verbo-temporal, se busca
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
333
contribuir al estudio analítico de las CFs, considerando los límites
gramaticales y cómo ellos se comportan en el marco de la lengua en uso.
En términos metodológicos, cabe mencionar que el recorte de las
referidas construcciones fraseológicas se justifica por su alta frecuencia
en los corpus considerados en el estudio de Godoy Roa (2017): Corpus
del Español, de la Universidad de Brigham; y el CREA, de la RAE, a
saber.1 En la referida investigación, Godoy Roa analiza la variabilidad
de cinco CFs,2 considerando las categorías tiempo y aspecto. Por los
límites de espacio de este artículo, se recortan las tres construcciones
más frecuentes en el análisis de la autora, considerando la morfología
temporal para el cuestionamiento del criterio de la fijación. En atención
a los propósitos de verificar la aplicabilidad del criterio de la fijación y
de cotejar usos morfológicos prototípicos, se analizan cuantitativamente
los datos a partir del uso del Programa RStudio.
Asimismo, importa contextualizar la forma como se organizan
las demás secciones de este artículo. Le sigue a esta breve introducción
una sección dedicada a los campos teóricos accionados, básicamente: la
Fraseología (CORPAS PASTOR, 1996; SINCLAIR, 1991) y la Gramática
del uso (BYBEE, 2003; 2006; 2010; 2016). Posteriormente, se presentan
el análisis y la discusión de los datos, seguidos por una sección dedicada
a las consideraciones finales. El artículo se cierra con la presentación de
las referencias citadas a lo largo del texto.
2 Debates teóricos
2.1 El objeto desde la perspectiva de la Fraseología
Con vistas a la necesaria contextualización teórica del objeto
de estudio en discusión, importa discutir brevemente la Fraseología,
1
Dado que el español es una lengua con muchas variedades, interesa analizar CFs
compartidas entre hablantes de distintas regiones hispánicas. De este modo, tras haber
considerado los diccionarios Colombianadas. Colombian english diccionary (QUINTERO,
2012) y Hablar por los codos. Frases para un español cotidiano (VRANIC, 2004) los
cuales representan el español andino y peninsular, respectivamente, la investigación de
Godoy Roa (2017) considera un conjunto de cinco CFs presentes en ambos materiales.
2
Las CFs analizadas por Godoy Roa (2017) son: tirar la toalla, poner el grito en el
cielo, echar leña al fuego, hablar por los codos y pagar los platos rotos.
334
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
disciplina lingüística que define las unidades fraseológicas3 como
construcciones formadas por una combinación fija de dos o más palabras.
Según Corpas Pastor (1996, p. 20), las UFs son “unidades
léxicas, formadas por más de dos palabras gráficas, en su límite inferior
y cuyo límite superior se sitúa en el nivel de la oración compuesta”.
Para clasificar las UFs es importante tener en cuenta tres propiedades
específicas: fijación, institucionalización e idiomaticidad, de las cuales
trata la subsección que sigue.
2.2 Propiedades de las UFs: fijación, institucionalización e idiomaticidad
La principal característica de las UFs es la institucionalización,
que se refiere al comportamiento lingüístico de los hablantes frente al
uso repetido de combinaciones ya creadas. La institucionalización, que
en este estudio se trabaja como fijación, puede ocurrir en tres niveles:
(i) el nivel sintáctico, que comprende las variaciones y las posibilidades
de combinalidad de los elementos que componen la UF; (ii) el nivel
semántico, que observa las relaciones entre la expresión y su significado;
(iii) el nivel pragmático, que dice respecto a los comportamientos
y a las situaciones sociales en que los hablantes usan las UFs. La
institucionalización puede ser entendida, en consecuencia, en términos
de fijación y de especialización semántica.
La fijación o estabilidad formal – característica a la que se dedica
con más profundidad este estudio – es la propiedad que tienen determinadas
expresiones para ser reproducidas en la forma de combinaciones
El lector observará que en este estudio se sustituye el término unidades fraseológicas
por construcciones fraseológicas, a razón de la interfaz que se establece en este
estudio entre la Fraseología y la Língüística Cognitiva. Entendemos que el fenómeno
fraseológico (modismos) es el punto de partida de la corriente cognitivista, ya que es
en el afán de encontrar un lugar para él en la gramática que comienza a formarse la
perspectiva construccional de la gramática cognitiva, marco en el que se define que
la gramática no funciona solamente a partir de unidades léxicas, sino también de su
abstracción; y esta abstracción puede realizarse como una extensa gama de posibilidades
que van desde palabras y frases idiomáticas hasta oraciones altamente esquemáticas. En
otras palabras, los fraseologismos son construcciones en el sentido pleno del concepto
ya que aparecen como una representación del conocimiento enciclopédico y gramatical,
reuniendo información en todos los niveles del lenguaje: fonológico, morfosintáctico,
semántico y pragmático.
3
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
335
previamente hechas, lo que puede ser visto como el resultado de un
proceso histórico-diacrónico, evolutivo y de transformación lenta en
que una construcción libre y variable se convierte en una construcción
fija. Puede manifestarse por medio de la inalterabilidad del orden de
sus componentes; de la invariabilidad de alguna categoría gramatical
(número, género, tiempo verbal, etc.); de la inmodificabilidad del
inventario de los componentes; y de la insustituibilidad de los elementos
componentes.
La otra propiedad que se suele tener en cuenta para el análisis de
las UFs es la idiomaticidad, que, según teóricos en Fraseología, como
Corpas Pastor (1996), ocurre después de la fijación. Sin embargo, en el
desarrollo del presente trabajo se cree que la especialización semántica
ocurre de forma paralela a la fijación, es decir, que el grado máximo de
cristalización de una UF se da en dos vías que tienen un camino paralelo:
la vía morfosintáctica y la vía semántica. Así pues, la idiomaticidad
puede entenderse como la propiedad semántica en que el significado
total de la UF no es deducible del significado aislado de cada uno de
los elementos que la componen. Se trata, de una propiedad de orden
pragmático, ya que aquellas expresiones que presentan esa propiedad
se usan en determinados contextos comunicativos.
De la misma forma que la fijación, se analiza la idiomaticidad
por medio de los siguientes parámetros: (i) los criterios de idiomaticidad,
en los que se considera la combinación estable de por lo menos dos
términos que funcionen como elemento oracional y cuyo significado
no se justifique por la suma de los significados de cada elemento que la
compone; (ii) la idiomaticidad, al igual que la fijación, es gradual, o sea,
existen combinaciones con idiomaticidad total y existen combinaciones
que son fijas pero no idiomáticas; (iii) existe el llamado principio de
idiomaticidad, en el que el usuario de la lengua tiene disponible un
gran número de frases semiconstruídas previamente que constituyen
elecciones únicas, aun cuando parezcan analizarse en segmentos
(SINCLAIR, 1991, p. 51).
Teniendo en cuenta las características y propiedades anteriormente
descritas, se clasifican las UFs en tres grandes grupos: colocaciones,
locuciones y enunciados fraseológicos (CORPAS PASTOR, 1996, p. 51).
La atención del presente trabajo se centra en las locuciones verbales que
tienen algún contenido idiomático.
336
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
Las locuciones son definidas por Corpas Pastor (1996, p. 88)
como UFs del sistema de la lengua que presentan rasgos de fijación
interna, unidad de significado y fijación externa. Según la autora, son
unidades que no constituyen enunciados completos y que funcionan
como elementos oracionales, como por ejemplo las locuciones verbales
acostarse con las gallinas o hablar por los codos.
Las colocaciones, por su parte, son sintagmas prefabricados que
carecen de libertad combinatoria. Aun cuando no tienen una fijación ya
establecida, se diferencian de las locuciones por no tener carga idiomática,
aunque en ocasiones, pueden presentar un significado conjunto, como
en deuda externa o paquete bomba.
Por último, encontramos los enunciados completos que
constituyen actos de habla y que presentan fijación tanto interna como
externa, denominados como enunciados fraseológicos. Se clasifican en
paremias y fórmulas rutinarias. Las primeras son unidades completamente
lexicalizadas y cristalizadas, como refranes del tipo más sabe el diablo
por viejo que por diablo, y proverbios como no hay mal que por bien
no venga. Las segundas son oraciones exclamativas e/o imperativas
que aparecen como unidades organizadoras del discurso y en ocasiones
pueden expresar sentimientos o estados mentales del emisor, como por
ejemplo ¡Virgen pura! o con mucho gusto.
Tras contextualizar el objeto a la luz del campo teórico en que
más frecuentemente se insieren las investigaciones sobre UFs, del cual
se recuperan conceptos básicos para el estudio del fenómeno, interesa
retomar las bases teóricas que sostienen el cuestionamiento que aquí
se instaura sobre el criterio de la fijación – tema al que se dedica la
subsección a continuación. Antes, cabe destacar que, a partir de este
punto, se sustituye el término Unidades fraseológicas, utilizado en la
Fraseología, por el término Construcciones fraseológicas, el cual Godoy
Roa (2017), a partir de una orientación cognitivista, delinea al asumir los
fenómenos lingüísticos como procesos que nunca se presentan estables/
fijos, sino siempre en construcción (CROFT; CRUSE, 2008; CUENCA;
HILFERTY, 2007; BYBEE, 2007; 2016).
2.3 La perspectiva del uso: frecuencia y rotinización
Considerando que el punto de partida del presente estudio está
en la concepción del lenguaje desde la perspectiva de la Lingüística
Cognitiva, inscribimos en esta sección los postulados que cobijan la
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
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acepción de la lengua como una estructura variable y mutable, teniendo
en cuenta la premisa cognitivista de que el conocimiento sobre el
lenguaje surge de su propio uso. Nos centramos principalmente en la
teoría cognitivista de Joan Bybee (2003), llamada Gramática del Uso,
que considera la lengua como un sistema adaptativo complejo en el
cual el lengiaje es maleable y presenta sus cambios en el ámbito de la
pragmática. Por esta razón, la autora resalta el papel de la frecuencia del
uso de las diferentes estructuras de la lengua y afirma que esa propiedad
tiene un papel fundamental en la gramática.
Según Bybee (2003, p. 603), la pragmática es la recurrencia en la
frecuencia de uso, que se puede caracterizar como el proceso mediante
el cual una secuencia de morfemas o palabras usadas frecuentemente se
automatiza. De esta manera, vemos que las principales características de
las CFs dentro del ámbito de la fraseologia – fijación e institucionalidad
– se dan por la repetición de la automatización de esas construcciones.
Cabe señalar que la corriente cognitivista tiene sus orígenes a partir
del desentendimiento de las ideas generativistas de los años 70 respecto
al tratamiento del fenómeno en estudio. La teoria generativa creía que la
estructura de lo que en este trabajo llamamos Construcciones Fraseológicas
era totalmente arbitraria, razón por la que siempre se ha dejado el fenómeno
en la periferia de la gramática, enfocándose en que las reglas de las
diferentes lenguas naturales consisten en escoger determinados valores
para ciertos parámetros haciendo desaparecer el sentido de construcción
y resaltando una visión modular del lenguaje en el que componentes
diferentes al componente sintáctico solo existen para servir a las sintaxis.
De esta manera, como una forma de contraposición surge el
abordaje construccional de la lingüística cognitiva, que retoma esas
estructuras de la perifeira para explicar que el léxico, la sintaxis y la
semántica no constituyen módulos rigidamente separados, sino un
continuum de construcciones, llegando a problematizar el fenómeno de
los modismos4 a partir de esquemas abstractos generales que constituyen
unidades simbólicas basadas en un pareamento entre forma y significado
(FERRARI, 2014, p. 129). En esos esquemas abstractos generales es que
se explica la regularidad de la gramática, así como su representación en
la mente del hablante.
4
Término utilizado por la corriente construccional de la Lingüística Cognitiva para
referirse al fenómeno fraseológico del que trata el presente estudio.
338
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
Los modismos/CFs son unidades gramaticales más extensas
que una palabra y que tienen características indiosincrásicas, siendo
altamente frencuentes en el uso de las diferentes lenguas naturales. En
otras palabras, se trata de construcciones que aparecen como producto del
conocimiento enciclopédico incorporado en nuestro sistema conceptual, y
no, como afirma el generativisto, una combinación arbitraria de palabras.
Vemos así, que, dentro de la teoria basada en el uso, la cognición
se pone como el elemento central y su enfoque está en el proceso de
regularización. Por esta razón, autores como Bybee (2016) asumen
que las motivaciones más pragmáticas del inicio de una estructura
se van perdiendo y esta pérdida se va haciendo rutinaria, es decir, se
va convencionalizando y haciéndose recurrente. De esta manera, la
cognición establece ciertos dominios a partir de la recurrencia motivada
pragmaticamente, a la que se vincula la idea de dinamismo que refleja
el proceso de interacción lingüística, en el cual el hablante y el oyente
negocian y adaptan formas y funciones, lo que lleva al surgimiento de
nuevos patrones de uso que se van volviendo recurrentes, ‘rutinizándose’,
y pasando a formar parte de la gramática de la lengua.
Es importante aclarar que, cuando se habla de nuevos patrones
de uso, estamos hablando del uso y de la formación de construcciones,
entendiendo el término ‘construcción’ como el apareamiento directo
forma-sentido, que tiene una estructura secuencial y que puede incluir
posiciones fijas y posiciones abiertas (BYBEE, 2016, p.14). Para la
lingüista, este proceso, del cual surgen los nuevos patrones de uso,
sucede a partir de cuatro dominios cognitivos: categorización, chunking,
memoria enriquecida y asociación transmodal.
La categorización es el proceso cognitivo que estructura la
información en la mente humana, mapeando las representaciones
almacenadas y estableciendo las unidades de la lengua, su significado y
su forma. Ocurre a través de la semejanza y la frecuencia, es decir que la
mente humana organiza en forma de categorías aquellas construcciones
que son más frecuentes – construcciones que, a su vez, sirven para
categorizar nuevos ítems.
Después de categorizar, ocurre en la cognición humana el
proceso de chunking, que se encarga de agrupar todas las construcciones
almacenadas en secuencias de unidades que se van combinando en el uso
para formar unidades más complejas. Es debido a este proceso que se
forman las Construcciones Fraseológicas, ya que las secuencias repetidas
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de palabras se almacenan de forma conjunta en la cognición, de modo
que el hablante las procesas y las accede como unidades simples, o sea,
se almacenan en la cognición como un bloque y los hablantes acceden
a ellas de la misma manera. Sin embargo, este hecho no significa que
cada CF sea un único chunk sin estructura interna; todo lo contrario, al
almacenarse como chunks independientes, las CFs tienen como base
asociaciones formadas entre aquello que es prefabricado y otros tóquenes
de palabras que aparecen dentro de una construcción prefabricada.
Una vez categorizadas y agrupadas las construcciones en la
cognición, la memoria enriquecida entra en escena como el proceso que
hace que todo tipo de construcciones se almacene las formas fonéticas y
fonológicas, así como también los morfemas que forman las palabras de
los componentes que, a su vez, forman una determinada construcción.
Por último, la mente humana entra en el proceso de analogía y
asociación, en el cual ocurre la creación de enunciados nuevos a partir
de enunciados de experiencias previas. Este último proceso es el que
permite que las posiciones esquemáticas en las diferentes construcciones
se utilicen de una forma productiva, es decir, que se utilicen junto a
nuevos ítems lexicales, generando el cambio y el crecimiento de estas,
así como también la conexión entre forma y significado por experiencias
co-ocurrentes que tienden a ser cognitivamente asociadas (BYBEE,
2016, p. 27).
Teniendo en cuenta los dominios cognitivos y sus procesos
explicados anteriormente se puede vislumbrar la importancia de la
frecuencia de uso en la compresión del lenguaje. Se trata de poder
entender que las relaciones cognitivas entre diferentes construcciones
(desde un morfema hasta una construcción mucho más compleja)
pueden formarse en diferentes niveles a lo largo de muchas dimensiones,
creando grandes redes de asociación y cadenas de palabras en las que
los ejemplares de ítems más frecuentes serán siempre los más fáciles
de acceder. La frecuencia y la repetición son las responsables por la
formación y/o modificación de las representaciones cognitivas de los
hablantes, ya que los ejemplares se fortalecen cada vez que se mapea
una nueva ocurrencia de uso, ejemplares de alta frecuencia serán siempre
más fuertes que los de baja frecuencia (BYBEE, 2016, p. 50).
340
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2.4 Variación vs. Fijación
En términos generales se puede afirmar que investigadores del
fenómeno fraseológico han considerado la fijación como la principal
y más importante característica de lo que estamos tratando como
Construcción Fraseológica. Sin embargo, esas consideraciones están
siempre acompañadas por la importancia de la idiomaticidad como rasgo
relevante para la descripción de las CFs como un conjunto.
Considerando la posibilidad de variación en los elementos
integrantes de determinadas CFs sin que se comprometa la idiomaticidad,
esta investigación se dedica a identificar las variaciones temporales
posibles en su uso. En este sentido, la idiomaticidad no será analizada
como propiedad inherente a las CFs, sino solamente será considerada
como límite de variación permitida, es decir, será mencionada en los
casos en que el empleo de ciertos tiempos verbales comprometa el
significado total de la CF. En ese orden de ideas, se analiza la variación
en contraposición a la propiedad de la fijación; estos dos son elementos
que expresan las particularidades morfosintácticas que determinan la
estabilidad de las CFs en diversos grados.
Así pues, la variación puede ser analizada como el elemento
que pone a prueba la autenticidad de la fijación, ya que algunas de las
CFs presentan una variación léxica en alguno de sus componentes. Eso
significa que el fenómeno lingüístico no va a presentar diferencias de
sentido y que la sustitución no sería realizada en toda la expresión, sino
solamente en una parte de ella; sustitución que también es considerada
como fija al representar una variante de la expresión a nivel de la
estructura, es decir, en los niveles lexical y morfosintáctico. A título
de ilustración, sería el caso de expresiones como el que menos corre
vuela, que, en algunas regiones hispanohablantes, se construye a partir
de la sustitución del adverbio de comparación menos por el adverbio de
negación no, formando así la variante el que no corre vuela.
Las posibilidades de variación expuestas a continuación son
aquellas en las que se centra el análisis del presente trabajo y que
constituyen variaciones estructurales y transformaciones morfosintácticas,
a partir de las cuales se puede sugerir que determinadas CFs no son
expresiones totalmente fijas.
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341
2.5 algunas variaciones estructurales
En referencia a las mudanzas morfológicas, las más comunes
son las que ocurren en el núcleo del predicado verbal de una CF de
la categoría de las locuciones verbales. De forma general, los núcleos
sufren variaciones en las desinencias de tiempo, modo, persona, número,
género y aspecto, según las necesidades de cada hablante en el discurso.
De esa forma, la CF acostarse con las gallinas, que analizamos en
otra investigación (GODOY ROA, 2017), aparece en las muestras
consideradas morfológicamente codificada por diez de los quince tiempos
verbales del español, permitiendo diferentes realizaciones temporales,
por ejemplo: se acostaban con las gallinas, se acuesta con las gallinas,
se acostó con las gallinas, se ha acostado con las gallinas, acostémonos
con las gallinas, se había acostado con las gallinas, entre otros.
Además, es común encontrar variaciones de tipo nominal en las
locuciones verbales. Como ejemplo, podemos citar la variación en el
morfema de género y número, como en el caso de hacer castillos en el
aire, cuya modificación implicaría la inclusión del cuantificador un en la
formación de la unidad hacer un castillo en el aire. También es posible
encontrar CFs con una fuerte resistencia a cualquier tipo de variación
nominal, como ocurre en la CF con fijación en plural hablar por los
codos – su variación al singular, inexistente en los corpus analizados,
cabe decir, comprometería su contenido idiomático, *hablar por el codo.
Otras CFs tienen la particularidad de permitir variaciones de
carácter derivativo, específicamente de derivación apreciativa, que
corresponde a cambios en afijos como aumentativos, diminutivos y
superlativos que afectan, a su vez, el componente nominal de la locución
verbal: dormir como un ángel permite la variación a partir del diminutivo:
dormir como un angelito.
Las CFs pueden también sufrir modificaciones a nivel sintáctico,
como aquellas caracterizadas básicamente por la inserción de un nuevo
componente o la supresión o sustitución de un componente ya existente en
la estructura. Si tomamos como ejemplo una CF que permite una amplia
variación temporal sin alterar su contenido idiomático, como volverse
un ocho, podemos observar que en el momento de realizar cambios de
orden sintáctico como un ocho me he vuelto o me he convertido en un
ocho, la idiomaticidad de la construcción se ve comprometida.
Con vistas a los límites de espacio de este texto, se discuten
ciertas variaciones estructurales a partir de la síntesis y de las ilustraciones
342
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anteriores con el fin de sustentar, desde la óptica cognitivista centrada
en el uso, la posibilidad de la variación sin perjuicio de la idiomaticidad.
Como mencionado, en este recorte de una investigación más amplia, se
considera la variación morfológica del tiempo verbal, desde la perspectiva
de la frecuencia en una discusión de carácter cuantitativo y cualitativo.
3 análisis de datos
En las subsecciones a continuación, se discute la frecuencia de
uso con base en corpus de las tres CFs elegidas para este estudio en
diferentes tiempos verbales, en atención a los objetivos mencionados
en la sección 1.
3.1 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF tirar la toalla
En los corpus considerados – Corpus del Español, de la
Universidad de Brigham, y el CREA, de la RAE, como se mencionó
anteriormente – la frecuencia total de la CF tirar la toalla es de 184
ocurrencias, de las cuales 173 fueron encontradas en el CREA y 11
en el Corpus del Español. En este conjunto, se verifica que el uso más
frecuente de la CF tirar la toalla es con el verbo en la forma nominal de
infinitivo, es decir, se observa una alta preferencia por el empleo de estas
CFs en contextos de secuencias verbales complejas o perífrasis verbales
(modales y aspectuales).5
A continuación, presentamos la frecuencia de uso de la referida
CF, conforme la codificación morfológica del tiempo verbal, presente
en los corpus.
Estamos considerando como “secuencias verbales complejas” las combinaciones
verbales que no funcionan en conjunto, es decir, que “no actúan como segmentos
unitarios nucleares, sino como reunión de núcleo y adyacente” (ALARCOS LLORACH,
2007, p. 259), por ejemplo: “desistió de presentarse”. No se trata, de ese modo,
de perífrasis verbales, ya que estas consisten en una combinación de unidades que
funcionan en conjunto como lo hace un solo verbo, por ejemplo: “podemos salir” y
“sigue estudiando”, en las cuales la forma infinita es responsable por la información
semántica y el auxiliar que las acompaña aporta una información gramatical – la
modalidad y la aspectualidad en “podemos” y “sigue”, respectivamente.
5
343
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TABLA 1 – Frecuencia de la CF tirar la toalla en formas verbales6 7
Formas verbales conjugadas1
Modo Indicativo
Forma
Pretérito perfecto simple (Pretérito)
Tiré la toalla
Pretérito imperfecto (Copretérito)
Tiraba la toalla
Presente
Tiro la toalla
Futuro simple (Futuro)
Tiraré la toalla
Futuro perifrástico (Futuro)
Voy a tirar la toalla
Condicional simple (Pospretérito)
Tiraría la toalla
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
He tirado la toalla
Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito)
Había tirado la toalla
Pretérito anterior (Antepretérito)2
Hube tirado la toalla
Futuro Compuesto (Antefuturo)
Habré tirado la toalla
Condicional compuesto (Antepospretérito)
Habría tirado la toalla
Modo subjuntivo
Pretérito imperfecto (Pretérito)
Tirara/tirase la toalla
Presente
Tire la toalla
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
Haya tirado la toalla
Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito)
Hubiera/hubiese tirado la toalla
6
Frecuencia
23/184
(12,5%)
5/184
(2,7%)
26/184
(14,2%)
3/184
(1,6%)
10/184
(5,5%)
0/184
(0%)
15/184
(8,1%)
5/184
(2,7%)
0/184
(0%)
0/184
(0%)
0/184
(0%)
4/184
(2,2%)
10/184
(5,5%)
2/184
(1,1%)
1/184
(0,5%)
La nomenclatura adoptada es de la RAE, seguida de la nomenclatura funcional de
Andrés Bello (1972).
7
Tiempo verbal en desuso en español.
344
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Modo Imperativo
Afirmativo y negativo
0/184
(0%)
Formas Nominales
Infinitivo
Participio
gerundio
Total
77/184
(41,8%)
0/184
(0%)
3/184
(1,6%)
184
(100%)
En la Tabla 1 es posible observar que, entre las formas conjugadas,
la CF tirar la toalla presenta frecuencia nula en los tiempos condicional
simple y compuesto, pretérito anterior y futuro compuesto. En este mismo
conjunto, tiene frecuencia mayoritaria la construcción conjugada en el
tiempo presente del indicativo (14,2%). A la forma en presente le siguen
las formas simple y compuesta del pretérito perfecto, con el 12,5% y el
8,1% de las ocurrencias, respectivamente. Aun considerando las formas
de indicativo, importa destacar la productividad de la construcción tirar
la toalla en la forma perifrástica de futuro, con el 5,5% de las ocurrencias.
Sobre este punto, la consideración de usos como “voy a tirar la toalla”
en el cuadro de los tiempos verbales y no en el cuadro de las perífrasis
se justifica por la reconocida funcionalidad de esta construcción en el
campo de la temporalidad, es decir, “voy a + infinitivo” es una construcción
gramaticalizada en diferentes lenguas, entre ellas el español, en el dominio
temporal de futuro, conforme la amplia discusión en el ámbito de la
Teoría de la Gramaticalización, (FLEISCHMAN, 1983; AARON, 2006;
OLIVEIRA et al., 2015).
Respecto al modo subjuntivo, el mayor número de ocurrencias se
encuentra también en el uso del presente, con el 5,5% de las ocurrencias,
seguido de la forma de imperfecto con un porcentaje del 2,2% de los datos.
Los resultados presentados en la Tabla anterior indican una
notable frecuencia de uso de la CF tirar la toalla en formas de pretérito;
sin embargo, se observa mayor tendencia a configurarse en tiempo
presente, tanto en el modo indicativo como en el modo subjuntivo. A
continuación, traemos una ocurrencia de cada forma verbal contemplada
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en la Tabla, partiendo de la forma verbal más frecuente a la de menor
frecuencia.
(1) Puede que, al principio, le cueste desconectar, pero si no tira la
toalla a la primera, lo logrará. (presente indicativo)
(2) No podían seguirle pagando a los principales jugadores y se
desmantelaron lentamente hasta que “tiraron la toalla”. (pretérito
perfecto simple)
(3) Incapaz de lograr que los británicos impongan orden en su
colonia, el Gobierno español ha tirado la toalla, conformándose
con la creación de un tinglado burocrático. (pretérito perfecto
compuesto)
(4) Estamos preocupados. Pero no vamos a tirar la toalla. (futuro
perifrástico)
(5) Se ha puesto muy difícil. Mas soy el primero en animarte para
que no tires la toalla. Sería una lástima. (presente subjuntivo)
(6) La leyenda indica que el chileno salió en medio de una ovación
del estadio de Queensboro, luego de que sus asistentes tiraran
la toalla debido a un pisotón “casual” que le propinara el propio
árbitro. (pretérito imperfecto subjuntivo)
(7) Pero después de trece agónicos días, Maccanico tiraba la toalla al
no lograr poner de acuerdo a las dos formaciones que más
discrepaban. (pretérito imperfecto indicativo)
(8) Oleart también había tirado la toalla ante la impotencia de sus
jugadores y los cerca de quince mil espectadores. (pretérito
pluscuamperfecto)
(9) Si cede dejará de creer en lo que hace y entonces sí que tirará la
toalla. (futuro)
(10) por el hecho de que no haya tirado la toalla y haya acudido antes
a la consulta electoral anticipada. (pretérito perfecto compuesto
subjuntivo)
(11) aunque cada día son menos los integrantes. Otro ya hubiera
tirado la toalla. (pretérito pluscuamperfecto subjuntivo)
En el análisis de la CF se observó que además de la distribución
temporal expresa morfológicamente, las ocurrencias del verbo principal
346
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
de la locución se presentaron también en las formas nominales,
principalmente en infinitivo, formando perífrasis verbales o secuencias
verbales complejas.
Como se puede observar, 77 de las 80 ocurrencias que presentan
el verbo tirar en forma nominal están en la forma de infinitivo, mientras
que tres están en gerundio y ninguna aparece en la forma nominal de
participio8. Se verifica, además, un uso prototípico de esta CF en la forma
nominal de infinitivo. Entre ese grupo de ocurrencias, identificamos
diferentes posibilidades: perífrasis verbal modal, perífrasis verbal
aspectual, secuencia verbal compleja y uso nominal sin presencia de
otros verbos, conforme ilustran los datos a continuación, en el orden
correspondiente.
(12) Esto aún no ha terminado y no podemos tirar la toalla. La
clasificación nos dejará donde nos merezcamos.
(13) Rodrigo Paz, presidente del CONAM, estuvo a punto de tirar la
toalla y de retirarse del cuadrilátero.
(14) Investigados por corrupción han decidido tirar la toalla o bien
han sido «animados» por sus propios partidos.
(15) ¿Exorcizando el vértigo? ¿Tirando la toalla? ¡Qué no se diga!...
Los datos de (12) a (14) ilustran diferentes construcciones en
que la CF tirar la toalla se insiere con su verbo principal en la forma
finita. En (12), la construcción finita aparece acompañada del modal
poder, formando por consecuencia una perífrasis verbal de modalidad
deóntica. En (13), la construcción estar a punto de añade a la CF el
sentido de aspecto inceptivo, constituyendo de este modo una perífrasis
verbal aspectual. El dato en (14) ilustra una combinación que aquí se
define como secuencia verbal compleja, puesto que, diferente de los datos
inmediatamente anteriores, no funcionan en conjunto como lo hace un
solo verbo. La CF en este caso funciona como complemento exigido
por el verbo decidir, se trata de la reunión entre núcleo y adyacente, y
la evidencia es la posibilidad de sustitución de la CF por un pronombre
complemento (lo han decidido) – sustitución imposible en el caso de
perífrasis modales y aspectuales. Finalmente, el dato en (15) ilustra el uso
8
Cabe destacar que se consideran los contextos de participio antecedido del auxiliar
haber en el análisis de los tiempos compuestos, cuantificados en las CFs conjugadas.
347
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en la forma nominal de gerundio, actuando independientemente en forma
de pregunta, sin relacionarse con verbos o construcciones próximas.
Como síntesis de los resultados referentes a tirar la toalla se
observa la alta productividad de esta CF en la forma infinita inserida
en contextos de perífrasis y secuencias verbales complejas, totalizando
el 41,8% de los usos identificados en los corpus. En atención a las
cuestiones que se plantea en este estudio, tal resultado sugiere que el uso
prototípico de tirar la toalla sería en la forma infinita. Entre los empleos
con el verbo conjugado, la CF puede ocurrir en diferentes tiempos y
modos verbales, lo que señala su alta variabilidad y baja fijación en lo
que concierne a la morfología temporal. Referente al tiempo, parece
haber (i) una preferencia por el empleo en contextos de presente, (ii)
amplia productividad de la construcción en el contexto de pasado y (iii)
relativamente baja frecuencia en contextos de futuro.
3.2 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF poner el grito en
el cielo
Otra CF con expresiva productividad en los corpus considerados
es poner el grito en el cielo, con un total de 217 ocurrencias: 176 presentes
en el CREA y 41, en el Corpus del Español. Del total de 217 ocurrencias,
se observó que la mayor frecuencia está en la expresión de pasado,
seguida de la expresión de presente, con 130 y 38 datos, respectivamente.
La Tabla a continuación muestra la distribución de las ocurrencias de
acuerdo con la morfología verbal de las formas encontradas.
TABLA 2 – Frecuencia de la CF poner el grito en el cielo en formas verbales
Formas verbales conjugadas
Modo Indicativo
Forma
Pretérito perfecto simple (Pretérito)
Puse el grito en el cielo
Pretérito imperfecto (Copretérito)
Ponía el grito en el cielo
Presente
Pongo el grito en el cielo
Futuro simple (Futuro)
Pondré el grito en el cielo
Frecuencia
80/217
(37%)
16/217
(7,3%)
30/217
(13,8%)
7/217
(3,2%)
348
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Futuro perifrástico (Futuro)
Voy a poner el grito en el cielo
Condicional simple (Pospretérito)
Pondría el grito en el cielo
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
He puesto el grito en el cielo
Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito)
Había puesto el grito en el cielo
Pretérito anterior (Antepretérito)
Hube puesto el grito en el cielo
Futuro Compuesto (Antefuturo)
Habré puesto el grito en el cielo
Condicional compuesto (Antepospretérito)
Habría puesto el grito en el cielo
Modo subjuntivo
Pretérito imperfecto (Pretérito)
Pusiera/pusiese el grito en el cielo
Presente
Ponga el grito en el cielo
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
Haya puesto el grito en el cielo
Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito)
Hubiera/hubiese puesto el grito en el cielo
Modo Imperativo
4/217
(1,9%)
1/217
(0,5%)
25/217
(11,5%)
0/217
(0%)
0/217
(0%)
0/217
(0%)
2/217
(0,9%)
Afirmativo y negativo
1/217
(0,5%)
5/217
(2,3%)
8/217
(3,7%)
1/217
(0,5%)
3/217
(1,3%)
Formas Nominales
Infinitivo
Participio
Gerundio
ToTaL
27/217
(12,4%)
0/217
(0%)
7/217
(3,2%)
217
(100%)
La Tabla 2 muestra que la CF en debate presenta mayor frecuencia
de uso cuando está conjugada en el pretérito perfecto simple, con el 37%
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349
de los datos, seguido de la forma verbal de presente (13,8%). Las formas
del pretérito anterior y del futuro compuesto no presentaron ninguna
ocurrencia y se identificó un único dato en el imperativo. Enseguida, se
ejemplifican cada uno de los tiempos cuantificados en la Tabla anterior.
(16) Churchill puso el grito en el cielo sobre las intenciones de Hitler,
pero nadie quiso escucharlo. (pretérito perfecto simple)
(17) La oposición pone en el grito en el cielo porque la conducta del
jefe de gobierno corrobora sus peores temores. (presente)
(18) Asimismo, cuando se les ha informado que la tasa ascenderá a
120.000 pesetas anuales han puesto el grito en el cielo. (pretérito
perfecto compuesto)
(19) Pues lo que venía ocurriendo era que los nacionalistas catalanes
se distanciaban del Gobierno cuando les parecía, pero ponían
el grito en el cielo si el Gobierno votaba distinto a ellos. (pretérito
imperfecto)
(20) Y los cuatro tontos de siempre pongan el grito en el cielo. Me hace
pensar que vivo en el país más impresentable de la tierra. (presente
subjuntivo)
(21) Con la esperanza de que pusieran el grito en el cielo si los militares
destruían el cadáver. (pretérito imperfecto subjuntivo)
(22) Si Paula acaba en la cárcel, la gente del toro – y específicamente
los gitanos – pondrán el grito en el cielo. Serán gritos perdidos
porque la justicia no entiende de honores mancillados. (futuro
simple)
(23) (…) un numeroso grupo de creadores de virus va a sentirse aludido
y va a poner el grito en el cielo. (futuro perifrástico)
(24) La abuela pondría el grito en el cielo, y el abuelo saldría del
cuarto de baño en albornoz para saber lo que estaba pasando.
(condicional simple)
(25) De no haber sido el causante el hijo del Alcalde, el pobre Manquillo
habría puesto el grito en el cielo al descubrir el portillo por donde
se le escapan ahora cabras y gallinas. (condicional compuesto)
(26) Cualquier otro hombre hubiera ya puesto el grito en el cielo, y el
hecho de que Indalecio no lo ponga no se debe a que sea menos
hombre. (pretérito pluscuamperfecto subjuntivo)
350
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(27) Organizaron los actos, que se celebraron bajo el lema “Pon tu
grito en el cielo por Etiopía”, la Cruz Roja, la rueda de emisoras
Rato, (…). (imperativo)
(28) La Comisión Presidencial de Derechos Humanos -encabezada
por la licenciada Marta Altolaguirre, que hace apenas unos años
hubiera puesto el grito en el cielo por este asesinato – tampoco
ha demostrado mayor interés en esclarecer el hecho de sangre.
(pretérito pluscuamperfecto)
(29) No es extraño, pues, que la industria del cine haya puesto el grito
en el cielo y la vista en los códigos. (pretérito perfecto compuesto
subjuntivo)
Aunque la mayoría de las ocurrencias de la CF poner el grito en
el cielo presenta el núcleo verbal de la locución en formas conjugadas,
la búsqueda en los corpus arrojó también datos que muestran que en
algunas ocasiones lo hablantes hacen uso de esa construcción en formas
nominales, sea en perífrasis verbales o en secuencias verbales complejas.
La Tabla 2 muestra que, referente a las formas nominales, la
tendencia es el uso del infinitivo, más que del gerundio y participio. La
frecuencia de uso muestra que, entre esas 29 ocurrencias en infinitivo,
20 hacen parte de perífrasis verbales, al igual que tres de los siete datos
encontrados en gerundio. Referente a los usos perifrásticos, encontramos
ocurrencias de perífrasis modales y aspectuales, secuencias verbales
complejas y uso nominal, ilustradas, en el orden correspondiente, a
continuación.
(30) Los academicistas pueden poner el grito en el cielo. Imagino que
algunos ya lo habrán hecho.
(31) Tu familia comenzará por poner el grito en el cielo, pero después
comprenderá la razón y callará.
(32) El Gobierno español no está dispuesto a “poner el grito en el
cielo” sino la «palabra en la tierra» por la presencia de Bossano
en Madrid.
(33) Ya de paso, declaró la abuela que no fuese María del Carmen una
ignorante y una bruta poniendo el grito en el cielo por sandeces,
que parecía de pueblo.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
351
En (30), se ejemplifica la CF en el ambiente perifrástico con
valor modal expreso por el verbo poder. Enseguida, en la ocurrencia
(31), se puede interpretar el valor aspectual de la perífrasis a partir de
semántica inceptiva del verbo comenzar. En los pasos de la descripción
propuesta por Alarcos Llorach (2007), se clasifica el dato en (32) como
una secuencia verbal compleja por tratarse de la reunión de un núcleo y
su adyacente. El dato en (33) exhibe el uso nominal del verbo principal
de la CF sin pertenecer a una perífrasis como tampoco a una secuencia
verbal compleja.
En los términos de la reflexión sobre la fijación morfológica, a
partir del análisis del uso de la CF poner el grito en el cielo, se puede
argumentar a favor de la variabilidad sin perjuicio de la idiomaticidad,
observando la distribución de usos en casi todas las celdas de la Tabla 2.
Un poco diferente de los resultados obtenidos con el análisis de tirar la
toalla, la construcción aquí en debate no es prototípicamente empleada
en contexto nominal, sino más comúnmente conjugada en la forma del
pretérito perfecto simple, con frecuencia que corresponde a un poco más
de la tercera parte de los datos totales.
3.3 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF echar leña al fuego
En el análisis de la frecuencia de uso de la CF echar leña al fuego,
se observa que, en la mayoría de los datos, el verbo de la locución aparece
en la forma nominal de infinitivo, antecedido de un verbo conjugado –
resultado semejante al que se encuentra en la CF tirar la toalla. En la
frecuencia total, se identificaron 101 ocurrencias: 21 en el Corpus del
Español y 80 en el CREA.
En la primera etapa del análisis, se considera la distribución
temporal de las ocurrencias, codificada en las formas verbales del español,
tal y como se muestra en la Tabla a continuación:
352
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
TABLA 3 – Frecuencia de la CF echar leña al fuego en formas verbales
Formas verbales conjugadas
Modo Indicativo
Forma
Pretérito perfecto simple (Pretérito)
Eché leña al fuego
Pretérito imperfecto (Copretérito)
Echaba leña al fuego
Presente
Echo leña al fuego
Futuro simple (Futuro)
Echaré leña al fuego
Futuro perifrástico (Futuro)
Voy a echarle leña al fuego
Condicional simple (Pospretérito)
Echaría leña al fuego
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
He echado leña al fuego
Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito)
Había echado leña al fuego
Pretérito anterior (Antepretérito)
Hube echado leña al fuego
Futuro Compuesto (Antefuturo)
Habré echado leña al fuego
Condicional compuesto (Antepospretérito)
Habría puesto el grito en el cielo
Modo subjuntivo
Pretérito imperfecto (Pretérito)
Echara/echase leña al fuego
Presente
Eche leña al fuego
Pretérito perfecto compuesto (Antepresente)
Haya echado leña al fuego
Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito)
Hubiera/hubiese echado leña al fuego
Modo Imperativo
Afirmativo y negativo
Frecuencia
16/101
(16%)
3/101
(3%)
4/101
(4%)
0/101
(0%)
0/101
(0%)
1/101
(1%)
2/101
(2%)
0/101
(0%)
0/101
(0%)
0/101
(0%)
0/101
(0%)
1/101
(1%)
6/101
(6%)
0/101
(0%)
0/101
(0%)
1/101
(1%)
353
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Formas Nominales
Infinitivo
Participio
gerundio
ToTaL
58/101
(57%)
0/101
(0%)
9/101
(9%)
101
(100%)
Como se observa en la Tabla 3, entre las formas conjugadas,
la CF echar leña al fuego aparece con mayor frecuencia de uso en
el pretérito perfecto simple (16%) y presente de indicativo (4%). Se
verifica, además, frecuencia nula (i) en las formas indicativas del futuro
simple, pretérito pluscuamperfecto, pretérito anterior, futuro compuesto,
condicional compuesto; y (ii) en las formas del subjuntivo: pretérito
perfecto compuesto y pretérito pluscuamperfecto. A continuación,
ilustramos los resultados de la Tabla 3 con los datos organizados de la
forma verbal más frecuente a la de menor frecuencia.
(34) El mago echó más leña al fuego9 porque la pira estaba agonizando
y el poeta aprovechó la pausa para comentar la cruzada del
tartamudo. (pretérito perfecto simple)
(35) El resto de los participantes, paseantes inocentes, hacen la vista
gorda, ignoran la situación o echan más leña al fuego por malicia o
para aprovecharse de la destrucción de un colega más cualificado.
(presente)
(36) En este período electoral con tanta tensión, con problemas que
empiezan a acumularse -me cuentan- en varias organizaciones
musicales, no voy a ser yo esta semana quien eche más leña al
fuego. (presente subjuntivo)
(37) Cada vez que le iban mal las cosas a ETA, surgía algo que
echaba leña al fuego dando nuevos argumentos a los violentos.
(pretérito imperfecto)
9
Cabe destacar que en algunos ejemplos se observa el uso del adverbio de cantidad
“más”, ítem lexical que en algunas regiones hispanohablantes hace parte de la CF, o
sea, es una variación diatópica que no cambia el sentido idiomático de la locución.
354
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
(38) Hoy paradójicamente, con sus declaraciones sobre el tema ha
echado leña al fuego, en su conflicto que alienta la discordia entre
los ecuatorianos. (pretérito perfecto compuesto)
(39) Estaba buscando una salida que no echara más leña al fuego,
cuando recibí otro golpe que me volvió a desequilibrar (pretérito
imperfecto subjuntivo)
(40) Mientras, todos se preparan para la segunda vuelta en medio
de una nueva elección, la de los candidatos parlamentarios, que
echaría más leña al fuego. (condicional simple)
Así pues, se puede señalar que la variación en la flexión verbal
de la CF se da en siete de las quince formas verbales del español. Sin
embargo, como se menciona al inicio de esta subsección, el mayor número
de ocurrencias presenta la CF con la forma nominal de infinitivo, por
lo cual, pasaremos a exponer el análisis de la presencia de las formas
nominales en los datos analizados.
Como muestra la Tabla 3, de las 67 ocurrencias en formas
nominales, 58 están en la forma de infinitivo, 9 en gerundio y ninguna en
participio. De esas 58 ocurrencias, 44 presentan el verbo echar antecedido
de algún verbo conjugado, o sea, hacen parte de perífrasis verbales, ya
sea modales o aspectuales, y de secuencias verbales complejas, tal y
como ilustran los datos a continuación.
(41) “Hay una línea del gobierno de Felipe Sapag que busca resolver
el conflicto y no seguir echando leña al fuego”, dijo Maffei.
(42) Al dejar de echar leña al fuego, a medida que ésta se consume,
la atmósfera vuelve naturalmente a la oxidación.
(43) “Piensa como yo, pero no quiere echar leña al fuego... ¡Ni falta
que hace, ya arde bastante!”
(44) Lo cual en un momento de tanta revolución no hace otra cosa que
echar más leña al fuego.
La CF presentada en (41) trae la unidad seguir como auxiliar
aspectual que refuerza la semántica de duración del evento expreso por
el verbo principal conjugado en el gerundio – forma nominal que, por
definición, marca aspecto durativo. Además de la perífrasis aspectual
con gerundio, se verifica en (42) el empleo de la CF en perífrasis
aspectual con infinitivo denotando el punto final de un evento. En (43),
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
355
la clasificación del uso perifrástico modal se justifica por la presencia del
auxiliar deóntico querer. En (44), la CF se configura en una secuencia
verbal compleja, como complemento adyacente del verbo hacer.
Como síntesis de los resultados referentes a la CF echar leña
al fuego, se verifica que su uso prototípico sería en construcciones con
infinitivo, sea en contextos perifrásticos sea o en contextos de secuencias
verbales complejas. La Tabla 3 señala que más de la mitad de los datos se
encuentra en contextos de infinitivo. Con respecto al tiempo morfológico,
se nota (i) expresiva preferencia por el pretérito, (ii) relativamente baja
presencia en el presente y (iii) ausencia absoluta en el futuro.
Palabras finales
El análisis propuesto en este artículo buscó arrojar un poco de luz
sobre el fenómeno de las construcciones fraseológicas desde un enfoque
dinámico de la lengua en uso, deseando avanzar hacia un estudio centrado
en la descripción morfológica verbo-temporal.
El interés en verificar la aplicabilidad del criterio de la fijación, en
lo que concierne a la morfología, y en identificar los usos morfológicos
prototípicos nos condujo al tratamiento cuantitativo de las tres
construcciones fraseológicas – tirar la toalla, poner el grito en el cielo y
echar leña al fuego – presentes en dos corpus representativos de la lengua
española. Los datos apuntan para una expresiva variabilidad morfológica
verbo-temporal en los tres casos sin perjuicio de la idiomaticidad. Los
resultados discutidos en la sección anterior nos permiten argumentar
a favor de la variabilidad morfológica verbo-temporal, puesto que las
tres CFs se distribuyen en diferentes tiempos y modos verbales. Las
construcciones tirar la toalla y echar leña al fuego tienen comportamiento
semejante en lo que se refiere a su uso prototípico, dado que ambas
tienen frecuencia mayoritaria en construcciones con infinitivo, ya sea en
contextos perifrásticos o en contextos de secuencias verbales complejas.
En el caso de la CF poner el grito en el cielo se verifica la preferencia
por la forma conjugada en el pretérito perfecto simple, totalizando casi
el 40% de la frecuencia total.
En los pasos de Bybee (2016), asumimos en este estudio que la
organización cognitiva de la lengua se establece en la experiencia con la
lengua misma, de ahí nuestro interés en analizar la variación morfológica
de las construcciones fraseológicas a partir del uso, analizando el
356
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020
fenómeno con base en diferentes corpus. Desde una perspectiva
cognitivista, abogamos por la variación sin dejar de reconocer que la
fijación es, en cierta medida, un criterio que se debe considerar en el
tratamiento del fenómeno analizado. Más conveniente nos parece situar la
realidad más estática de la fijación en el ámbito de la lengua y la realidad
más dinámica de la variación en el ámbito del uso, arriesgándonos a
reproducir un modelo dual tradicionalmente practicado en la Lingüística.
Declaración de autoría
Las dos autoras participaron de la construcción y formación de este
estudio que nace de la investigación de maestría de una de las autoras,
correspondiéndole, así, a la Autora 2 la colecta de datos y la escritura de
las secciones teóricas y del objeto de estudio, bien como la cuantificación
de los datos en el programa estadístico Rstudio. La contribución de la
Autora 1 se dio en el análisis e interpretación de los datos, ayudando en
la redacción del texto y en las palabras finales.
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o humor está no ar: análise comparativa da tradução
de jogos de palavras fraseológicos em texto literário
Humor is in the air: comparative analysis
of idiom-based wordplays in literary texts
Adauri Brezolin
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), São Bernardo do Campo, São Paulo
/ Brasil
brezolinadau@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-4990-0224
resumo: Neste artigo, discutimos a tradução de jogos de palavras criados a partir de
fraseologismos em textos literários, valendo-nos, sobretudo, das ideias de Veisbergs
(1997). Analisamos excertos traduzidos do inglês para o português brasileiro, em sete
diferentes traduções de Looking through the mirror (Carroll) e The Picture of Dorian
Gray (Wilde), com o objetivo de verificar como os jogos de palavras foram gerados
e, posteriormente, traduzidos, considerando sua natureza estilística, idiomática e
pragmática. Nossos resultados apontam a prevalência das seguintes estratégias de
tradução: transformação em fraseologismo equivalente, tradução por empréstimo e
transformação em fraseologismo análogo. Concluímos que os tradutores tentaram, de
algum modo, preservar os jogos de palavras e seu efeito, conferindo-lhes, em alguns
casos, graus menores de idiomaticidade e naturalidade.
Palavras-chave: fraseologismos; jogos de palavras; tradução; humor.
abstract: In this article, we discuss the translation of wordplays generated from idioms
in literary texts, by means of Veisbergs’ ideas (1997). We analyze excerpts translated
from English into Brazilian Portuguese, in seven different renderings of Looking through
the mirror (Carroll) and The Picture of Dorian Gray (Wilde), aiming to verify how the
wordplays were created, and, afterwards, translated, considering their stylistic, idiomatic
and pragmatic nature. Our results demonstrate the prevalence of equivalent idiom
transformation, loan translation, and analogue idiom transformation. In conclusion, the
translators somehow tried to preserve the wordplays and their effect; however, some
solutions showed lower degrees of idiomaticity and naturalness.
Keywords: phraseologisms; wordplay; translation; humor.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.359-389
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020
Recebido em 06 de junho de 2019
Aceito em 04 de outubro de 2019
1 Introdução
Este artigo teve como inspiração a proposta de Veisbergs (1997),
em que analisa traduções do inglês para o letão, o alemão e o russo, de
trechos com jogos de palavras de obras de Lewis Carroll e Ocar Wilde,
bem como o artigo de Viégas-Faria (2004), em que aplica as ideias
de Veisbergs e investiga a tradução de provérbios em Júlio César, de
Shakespeare. Se Viégas-Faria, por um lado, aplica o modelo “num texto
de extrema tensão psicológica e social” (2004, p. 198) para analisar um
único tipo de expressão, o provérbio; nosso artigo, por outro, concentrase em jogos de palavras criados a partir de diferentes fraseologismos e,
em geral, caracterizados pelo humor.
Embora nem todo jogo de palavras tenha como função causar
um efeito cômico, parece-nos que a combinação de fatores linguísticos
e pragmáticos tenha relegado sua análise a segundo plano em virtude de
uma dificuldade inerente, algo que possa ter fomentado a ideia de sua
suposta intraduzibilidade. Admitimos, no entanto, como Chesterman,
que “tudo possa ser traduzido de algum modo, até certo ponto, de um
jeito ou de outro, − até mesmo jogos de palavras podem ser explicados”
(1997, p. 11, tradução nossa).1
Assim, pretendemos apresentar as ideias de Veisbers (1997)
sobre transformações e possíveis estratégias de tradução detectadas nos
excertos de Looking through the mirror e The Picture of Dorian Gray e,
em seguida, verificá-las nos mesmos trechos, traduzidos para o português
brasileiro, em sete diferentes traduções, Alice no país do espelho e O
Retrato de Dorian de Gray. Nossa discussão abrange, portanto, aspectos
relacionados aos fraseologismos, aos jogos de palavras, aos efeitos do
emprego desse tipo de combinação e à sua tradução.
Citação original: “(...), everything can be translated somehow, to some extent, in some
way − even puns can be explained”. (CHESTERMAN, 1997, p. 11).
1
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2 Fraseologismos e jogos de palavras
Fraseologismo, aqui, é tratado, como:
... a coocorrência de uma forma ou de um lema de um item lexical e
um ou mais elementos linguísticos adicionais de diversos tipos que
funciona como uma unidade semântica numa oração ou período
e cuja frequência de coocorrência seja maior do que a esperada
em termos de probabilidade (GRIES, 2008, p. 5, tradução nossa).2
As várias possiblidades de combinações nos levam à ideia de
que os fraseologismos jazem sobre um continuum que abarca uma
ampla gama de expressões complexas cujos elementos formadores se
relacionam segundo diferentes graus de idiomaticidade e de fixidez.
Podem, assim, ser acomodadas, numa extremidade, estruturas linguísticas
consagradas e altamente metafóricas, cujo significado não é facilmente
apreendido pelo simples somatório de seus constituintes, como, “pagar
o pato”; e, na outra extremidade, estruturas com elementos formadores
mais transparentes, portanto, mais fáceis de serem compreendidos,
“brutalmente assassinado”, por exemplo. (VEISBERGS, 1997; TAGNIN,
2005a)
Essa grande variedade de fraseologismos, segundo Tagnin
(2005a), pode incluir combinações como: coligações, colocações, phrasal
verbs, expressões idiomáticas, ditos populares, citações, provérbios,
marcadores conversacionais, estruturas de polidez, fórmulas de rotina,
fórmulas situacionais, entre outras.
Em vista disso, coocorrência e frequência se complementam,
pois, para que possam ser reconhecidas como fraseologismos, certas
expressões linguísticas devem ser suficientemente recorrentes. Desse
modo, os dois aspectos mostram-se bastante relevantes para nossa
discussão, pois, em geral, representam parâmetros de caracterização e
identificação de um fraseologismo. Veisbergs (1997), no entanto, adverte
que os fraseologismos nem sempre são empregados em sua forma
dicionarizada e que, sobretudo na linguagem jornalística, aparecem com
algum tipo de transformação.
Citação original: “... the co-occurrence of a form or a lemma of a lexical item and
one or more additional linguistic elements of various kinds which functions as one
semantic unit in a clause or sentence and whose frequency of co-occurrence is larger
than expected on the basis of chance”. (GRIES, 2008, p. 5)
2
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Para nossa análise, é exatamente essa forma não-canônica que
nos interessa, uma vez que os fraseologismos, ao sofrerem determinadas
transformações, criam os jogos de palavras, propriamente ditos.
Se, por um lado, os fraseologismos compreendem vários tipos
de combinações linguísticas, por outro, um jogo de palavras também se
refere a vários tipos de fenômenos linguísticos. Para Delabastita,
(j)ogo de palavras é o nome genérico para vários fenômenos
textuais nos quais características da língua utilizada são exploradas
com a intenção de provocar um confronto comunicativo
significativo de duas (ou mais) estruturas linguísticas com formas
mais ou menos similares e sentidos mais ou menos diferentes
(1996, p. 128, tradução nossa).3
Neste artigo, discutimos um tipo particular de jogos de palavras:
idiom-based wordplays,4 ou jogos de palavras fraseológicos5 (JPFs),
os quais, segundo Veisbergs (1997), são resultantes de transformações
contextuais, isto é, de algum tipo de modificação que ocorre de modo
intencional e subjetivo, em geral, motivada por questões estilísticas por
parte de um autor, privilegiando o contexto em que o fraseologismo está
inserido. São, dessa forma, fenômenos efêmeros e individuais, mas que,
ainda assim, mantêm traços linguísticos gerais de uso idiomático.
Segundo Veisbergs (1997), as transformações contextuais
produtoras de JPFs subdividem-se em duas categorias: transformações
estruturais e transformações semânticas.
Citação original: “Wordplay is the general name for the various textual phenomenon in
which structural features of the language(s) used are exploited in order to bring about a
communicatively significant confrontation of two (or more) linguistics structures with
more or less similar forms and more or less different meanings”. (DELABASTITA,
1996, p. 128)
4
Embora Viesbergs (1997) mencione que o vocábulo idiom corresponda a termos mais
abrangentes como phraseological unit ou phraseologism, ele o emprega ao longo de
seu trabalho. Da mesma maneira que Viégas-Faria (2004) destaca esse uso e opta por
“unidades fraseológicas”, optamos aqui por “fraseologismos”, por acreditarmos que,
como a autora, referem-se a “todas as estruturas frasais que exibem algum grau de
idiomaticidade” (p. 196).
5
Há vários trabalhos sobre a classificação de jogos de palavras: Delabastita (1997),
Gottlieb (1997), Tagnin (2005 b), Dore (2010), Giorgadze (2014), Silva (2015), dentre
outros.
3
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As transformações estruturais são modificações que afetam a
estrutura e o significado do fraseologismo. Resultam, normalmente,
de recursos tais como: adição, inserção, alusão, elipse ou substituição.
Veisbergs (1997) os exemplifica por meio do provérbio a bird in the hand
is worth two in the bush. Para elucidarmos esses recursos, apresentamos,
no Quadro 1, o provérbio em inglês seguido de uma tradução do
correspondente em português “mais vale um pássaro na mão do que
dois voando”:
QUADRO 1 – Transformações estruturais, segundo Veisbergs (1997, p. 158)
Transformação
estrutural
Exemplo original
Tradução
Adição
So priceless a bird in the hand is
worth two in the bush.
(Mais vale um pássaro valioso na
mão do que dois voando.)
Inserção
A bird in the hand is worth two in
the economic bush.
(Mais vale um pássaro na mão
do que dois voando no mercado
financeiro)
Alusão
Why chase the two birds when one
is up for grabs?
(Por que atirar em dois pássaros
voando se um já está garantido?)
Elipse
A bird in the hand, I thought, and
accepted his offer.
(um pássaro na mão, pensei, fui
logo aceitando a oferta.)
Substituição
(Mais vale um ministro
A competent minister in the hand is
competente na mão do que muitos
worth many generals in the bush.
generais voando.)
A nosso ver, os exemplos de adição e inserção do autor não
parecem revelar transformações muito distintas, uma vez que os
vocábulos são praticamente sinônimos. No entanto, se observarmos as
alterações necessárias nas soluções em português, veremos que há uma
pequena diferença, o que justificaria as duas categorias.
Viégas-Faria (2004, p. 199), em seu estudo, detectou mais dois
recursos: substituição sinonímica (não oferece exemplo) e inversão
(“Mais vale dois pássaros na mão que um voando”, ênfase da autora).
As transformações semânticas de Veisbergs, por sua vez, referemse a casos em que a estrutura do fraseologismo permanece intacta e o
significado sofre alguma modificação. Os recursos empregados incluem
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metáfora estendida/ampliada, zeugma6 e dupla significação, conforme
Quadro 2, com exemplos de nossa autoria.
QUADRO 2 – Transformações semânticas, segundo Veisbergs (1997, p. 158)
Transformação semântica
Exemplo
Metáfora estendida: metáfora que continua
a comparação ao longo da oração ou das
orações que se segue(m).
“Nem sei o que dizer, se o médico não vem,
perdi a viagem e quem vai pagar minha
passagem de volta?”
Zeugma: omissão de palavras ou partes de
frases expressas anteriormente no discurso
ou no texto.
“Ela perdeu a viagem e eu, a paciência.”
Dupla significação: caracterizada pela
ativação de uma interpretação literal e de
outra idiomática.
“Estava tudo preparado para nosso cruzeiro,
por causa do congestionamento na estrada,
chegamos atrasados ao porto e perdemos a
viagem.”
Veisbergs destaca que todos esses tipos de transformações
encerram algum traço de jogo de palavras, ou seja, certa manipulação do
fraseologismo no texto, a qual pode ser mais facilmente percebida quando
os recursos são substituição, alusão, inserção, adição e, em especial, dupla
significação. Além disso, em todos esses casos, há confronto de duas
estruturas linguísticas com outras formas mais ou menos semelhantes e
significados mais ou menos distintos. Mesmo quando um fraseologismo
é transformado, sua forma padrão, ou dicionarizada, é preservada em
termos formais e semânticos, a ponto de o leitor/ouvinte detectá-lo,
embora percebendo que o resultado não condiz com sua expectativa. Para
o autor, esse seria o objetivo do JP, atrair a atenção do leitor/ouvinte para
um determinado ponto do texto, gerando um efeito cômico.
3 Jogos de palavras fraseológicos e humor
O uso desses recursos estilísticos chama, assim, a atenção do
leitor/ouvinte ao contrapor o uso preferido/consagrado de uma expressão
ao uso novo/inesperado, acarretando uma quebra de expectativa.
Veisbergs esclarece:
6
Em seu estudo, Viégas-Faria (2004) sugere a categoria eliminação de zeugma.
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(j)ogos de palavras a partir de fraseologismos fossilizados
produzem um forte efeito estilístico ao criar um contraste entre
a leitura ‘normal’ do fraseologismo com base em sua forma
inalterada, desse modo, desafiando a expectativa do leitor ou do
ouvinte (1997, p. 157, ênfase do autor, tradução nossa).7
Essa ruptura na expectativa gerada pelo confronto entre
os sentidos literal e figurado, provocado por transformações nos
fraseologismos, leva-nos à ideia de incongruência (MORREALL, 1983),
ao conceito de ambiguidade (GOTTLIEB, 1997) e à teoria de oposição
de scripts (ATTARDO; RASKIN, 1991), subjacentes a diversas teorias
sobre humor.
Neste artigo, optamos por abordar a questão do humor,
supostamente contido em JPFs, enfatizando a ideia de incongruência e
o conceito de ambiguidade.
Fundamentada no aspecto cognitivo, a teoria da incongruência,
segundo Morreall (1983, p. 15), pressupõe que as pessoas sejam induzidas
à uma resposta mental diante de uma situação “inesperada, ilógica ou
inapropriada”. O autor associa esse cenário ao humor, uma vez que a
ideia subjacente à essa teoria é que vivemos num mundo tão organizado,
segundo determinados padrões, que, caso sejam quebrados, as pessoas
acharão isso engraçado. Se aqui estamos considerando o âmbito geral
das relações entre os indivíduos, podemos associar a incongruência ao
contexto linguístico.
Trazemos, assim, à discussão o conceito de ambiguidade, também
chamada de anfibologia, que se refere a situações em que palavras,
expressões ou locuções de um texto suscitam duplicidade de sentidos.
Para Gottlieb (1997), é um conceito central aos jogos de palavras,
dada sua natureza pragmática, pois a dupla interpretação, resultante da
existência de uma estrutura linguística e de seus possíveis significados
diferentes, advém da relação do leitor/ouvinte com o texto, ao perceber
que ele permite mais de uma leitura.
Desse modo, incongruência e ambiguidade se complementam
para a criação do humor; Tagnin o explica da seguinte maneira:
Citação original: “Wordplay on such fossilised idioms produces a strong stylistic effect
by creating a contrast with the ‘normal’ reading of the idiom and its unchanged form
and so defeating the reader’s or the listener’s expectation. (VEISBERGS, 1997, p. 157)
7
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(...) o humor é obtido quando há incongruência entre o que é
esperado e o que de fato ocorre. Se entendermos “aquilo que é
esperado” como o convencional na linguagem, ou seja, aquilo
que foi consagrado pelo uso, podemos afirmar que o humor pode
ser obtido através da quebra da convencionalidade (2005b, p. 247,
ênfase da autora).
Em vista disso, considerando que a geração de um jogo de
palavras implique algum tipo de manipulação do uso convencionalizado
de uma estrutura linguística, atribuindo-lhe uma nova roupagem, ou seja,
um aspecto inesperado, ele está, portanto, causando um efeito cômico.
Passamos, agora, às considerações sobre a tradução de JPFs, de
acordo com o modelo de Veisbergs (1997).
4 Tradução de jogos de palavras fraseológicos
Veisbergs acredita que, considerando os JPFs como um recurso
estilístico amplamente empregado em diversos tipos de textos e idiomas,
eles possam ser transpostos de modo semelhante de uma língua para
outra. Ele sintetiza da seguinte maneira: “se há fraseologismos numa
língua, podem ser transformados” (1997, p. 162).
A seguir, suas estratégias de tradução:
QUADRO 3 – Estratégias de tradução segundo Veisbergs (1997, p. 164-171)
1
Tradução por fraseologismo em que os itens lexicais coincidem e o
Transformação
em fraseologismo sentido figurado é mantido. Por exemplo, to play with fire/brincar
com fogo.
equivalente
2
Tradução por
empréstimo
Tradução literal do fraseologismo da língua de partida. Por
exemplo, to call a spade a spade/ “chamar uma pá de pá”, o que
corresponde a “dar nomes aos bois”, em português.
3
Extensão
Em geral, trata-se de uma tradução por empréstimo seguida de
informação explicativa adicional. Por exemplo, They make the
beds too soft – so that the flowers are always asleep./, Os canteiros
são tão fofinhos que até parecem camas, por isso as flores vivem
dormindo.
4
Tradução por fraseologismo semelhante na forma e equivalente no
Transformação
em fraseologismo sentido. Por exemplo, to kill two birds with one stone/matar dois
pássaros com só uma pedra.
análogo
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5
Substituição
Tradução por fraseologismo diferente na forma e equivalente no
sentido. Por exemplo, to spill the beans/ dar com a língua nos
dentes.
6
Compensação
Um fraseologismo é inserido no texto da língua de chegada onde
não havia um.
7
Omissão
O trecho inteiro em que se encontra o fraseologismo é omitido, ou
o fraseologismo é omitido, porém, o sentido figurado é mantido no
trecho.
8
Comentário
metalinguístico
Notas de rodapé, notas de fim de texto, notas explicativas são
adicionadas para explicar o fraseologismo.
Sobre essas estratégias, Veisbergs (1997) alerta que há casos em
que a situação se torna razoavelmente mais simples quando a tradução
ocorre entre línguas historicamente relacionadas e o fraseologismo
faz parte de um repertório internacionalmente conhecido. Exemplifica
com “play with fire/brincar com fogo”, que parece figurar em várias
línguas. Essa situação representa o ideal em qualquer tradução quando
podemos, assim, lançar mão da estratégia (1). O autor, porém, logo
reconhece que se trata de casos bastante raros. As estratégias (2) e
(3) poderão causar certo estranhamento ao leitor/ouvinte, porém, não
deixariam de resgatar o sentido do texto de partida. As estratégias (4)
e (5) também representam soluções desejáveis, no entanto, pode haver
perda na língua de chegada, caso a alusão aos elementos da fraseologia
sejam importantes ao contexto mais amplo da obra. As estratégias (6) e
(7) são autoexplicativas. Acreditamos que (7) seja admissível quando o
fraseologismo não compromete o desenvolvimento do texto. A estratégia
(8) é um recurso bastante comum em alguns tipos de texto, sobretudo,
no literário, porém, seu uso excessivo pode desviar a atenção do leitor
ou tornar a leitura entediante. Veisbergs salienta que poucos foram os
casos da estratégia (8) em suas pesquisas.
Viégas-Faria (2004, p. 203) sugere outra solução encontrada
em suas análises, suplementação retórica: emprego de uma expressão
idiomática, estrutural, semântica e estilisticamente coerente com o caráter
literário do texto-alvo, que se mostra como uma solução tradutória
adequada para uma dada sequência linguística do texto-fonte.
Além dessas, mais quatro estratégias de tradução foram
detectadas por nós e serão explicitadas nas análises. Nossas propostas
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são: transformação em fraseologismo equivalente com modificação
morfológica; transformação em fraseologismo análogo e por extensão;
transformação em fraseologismo análogo com adição e substituição por
unidade não-fraseológica.
5 análise dos dados
Nosso corpus é composto por nove passagens: cinco de Through
the Looking-glass (CARROLL, 1994) e quatro de The Picture of Dorian
Gray (WILDE, 1990), mencionadas em Veisbergs (1997), seguidas de
suas respectivas traduções para o português brasileiro.8 Nos dois casos,
as traduções serão identificadas pelo ano de sua publicação.
Apresentaremos os dados na seguinte ordem: trecho de origem;
fraseologismo que gerou o JPF, seu significado e um possível equivalente
em português. Na sequência, por meio de quadros, apresentamos as
respectivas traduções, as estratégias de tradução, as respectivas análises
e uma sugestão de tradução, quando oportuna.
Os trechos de 1 a 5, a seguir, referem-se à obra de Carroll.
Trecho 1: Alice attended to all these directions, and explained, as well
as she could, that she had lost her way. ‘I don’t know what
you mean by your way,’ said the Queen: ‘all the ways about
here belong to me – but why did you come out here at all?’
(1994, p. 37)
– Colocação verbal – to lose one’s way (to become confused
or uncertain about where one is; to become lost) – perder
o norte/caminho, errar o caminho (ficar desorientado)
Notemos que aqui a interpretação literal de apenas um dos
elementos constituintes do fraseologismo (way) está intimamente
associada ao uso do pronome possessivo, que faz parte da expressão
Em nossas pesquisas, verificamos que há mais de dez traduções para cada uma das
obras, a de Carroll recebeu diferentes títulos, Através do espelho (e o que Alice encontrou
do outro lado), Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, Aventuras de Alice
através do espelho, Alice no país dos espelhos e Alice no país do espelho (3), a, de
Wilde apenas um (O retrato de Dorian Gray). Dois critérios básicos determinaram a
escolha das sete traduções: diferentes anos de publicação e disponibilidade.
8
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“to lose one’s way”. O jogo de palavras reside no fato de que a Rainha
compreende way como espaço físico e não como direção; inferindo que
esteja insinuando que aquele “caminho” (“propriedade”) lhe pertença,
embora a garota tenha desejado dizer que ficou perdida (“errara/perdera
o caminho”). Essa interpretação literal ocorre exatamente por causa do
uso do pronome possessivo, obrigatório na expressão em inglês.
TRECHO 1 – Traduções em língua portuguesa
Alice desculpou-se, dizendo que havia perdido seu caminho.
− Não sei o que você entende por seu caminho. Todos os caminhos aqui são meus, disse a
Rainha. Mas donde vem, afinal de contas? Repetiu em tom mais amável. (1962, p. 25)
Alice obedeceu as (sic) ordens e explicou-se como que pôde, dizendo que havia perdido o
seu caminho.
− Não sei o que você quer dizer por seu caminho! − retrucou a Rainha. – Afinal, todos os
caminhos aqui pertencem a mim! Mas que você veio fazer aqui afinal? – perguntou em
tom mais brando. (1986, p. 21)
Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou, o melhor que podia, que tinha perdido o
seu caminho.
− Não sei o que você quer dizer com seu caminho – observou a Rainha. – Todos os
caminhos aqui são meus. Mas, como é que você chegou aqui afinal? – acrescentou, num
tom mais delicado. (1987, p. 32)
Alice obedeceu a todas estas instruções e explicou da melhor forma possível que tinha
perdido o seu caminho.
− Não sei o que você pretende dizer com seu caminho – retorquiu a Rainha. – Todos os
caminhos por aqui pertencem a mim. Mas por que você resolveu aparecer por aqui? –
acrescentou ela, com um pouco mais de gentileza. (2004, p. 44)
Alice obedeceu a todas aquelas ordens, e explicou, da melhor maneira que pôde, que “errara
o seu caminho”.
− Não sei o que chama seu caminho; aqui todos os caminhos me pertencem. Mas que veio
fazer aqui afinal? – perguntou a Rainha, já mais abrandada. (2007, p. 34)
Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou, o melhor que pôde, que perdera seu
caminho.
“Não sei o que você quer dizer com seu caminho”, disse a Rainha; “todos os caminhos
aqui pertencem a mim ... mas afinal, por que veio até aqui?” acrescentou, num tom mais
afável. (2010, p. 181)
Alice obedeceu a todas essas ordens, e explicou, tão bem quanto conseguiu, que não
encontrava o seu caminho.
− Eu não sei o que você quer dizer com SEU caminho – disse a Rainha –, todos os caminhos
aqui pertencem a MIM. Mas por que veio até aqui, afinal? – acrescentou, num tom mais
gentil. (2012, p. 38)
370
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Nas traduções desse trecho, observamos as seguintes ocorrências:
“havia/tinha perdido (o) seu caminho”, “errara/perdera o seu caminho”
e “não encontrava o seu caminho”. Segundo nossa compreensão, nas
soluções em que há “perder o caminho”, ocorreu transformação em
fraseologismo equivalente; em que há “errar o caminho”, transformação
por fraseologismo análogo, e em que há “não encontrar o caminho”,
substituição por unidade não-fraseológica (fraseologismo omitido/
sentido mantido).
Nossa sugestão: Alice obedeceu a todas as ordens e explicou:
– Mandei mal e acabei me perdendo pelo caminho. / “Como assim
“mandei”?, indagou a Rainha; “quem manda aqui sou eu, mas afinal,
por que veio até aqui?” acrescentou, num tom mais amigável.
Ao interpretarmos que o jogo de palavras tenha sido criado para
reforçar a autoridade e a arrogância da Rainha, ocorreu-nos a expressão
“mandar mal”, “fazer algo de forma inadequada”; com isso, criamos a
possibilidade de duas leituras, “governar” e “sair-se mal”. Essa solução
poderia ser classificada como compensação (inserção de fraseologismo
onde não havia um), no entanto, o motivador inicial do jogo de palavras
ainda seria resgatado “acabei me perdendo pelo caminho”). Dessa forma,
o efeito cômico deixa de ser causado pelo jogo com os pronomes, recaindo
sobre a pessoa que “manda” ali.
Trecho 2: ‘In most gardens,’ the Tiger-lily said, ‘they make the beds too
soft— so that the flowers are always asleep.’ (1994, p. 85)
– Colocação verbal – to make the bed (to neatly arrange
the sheets, blankets, and bedspread on the bed) - fazer
a cama (arrumar a cama)
A dupla significação de “bed” (“cama” ou “canteiro”) é perfeita
para a produção de um jogo de palavras em inglês, porém, tornando sua
transposição para outros idiomas bastante difícil.
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TRECHO 2 – Traduções em língua portuguesa
− Na maior parte dos jardins, explicou o Lírio, os jardineiros afofam a terra. Isso faz que as
flôres (sic) vivam dormindo a gôsto (sic) – e quem dorme não fala. (1962, p. 22)
− Na maioria dos jardins os canteiros são fofos − explicou o Lírio – Por isso que lá as flores
estão sempre dormindo. (1986, p. 19)
− Na maior parte dos jardins – disse o Lírio-Tigrino – fazem o canteiro tão fofo que flores
estão sempre dormindo. (1987, p. 27)
− Na maioria dos jardins – respondeu o Lírio-tigrino – eles deixam a terra dos canteiros tão
fofa que flores dormem o tempo todo. (2004, p. 40)
− Na maior parte dos jardins – disse o Lírio – fazem canteiros muito fofos; pois as flores,
naquelas camas, estão sempre dormindo. (2007, p. 31)
“Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio-tigre – “fazem os canteiros fofos demais... por
isso as flores estão sempre dormindo. (2010, p. 178)
− Na maioria dos jardins – disse o Lírio – deixam a terra muito fofa, então as flores estão
sempre dormindo. (2012, p. 35)
Todas as traduções tentam de alguma forma associar “canteiro”
a “cama”, porém apenas a de 2007 deixa isso evidente ao inserir os dois
vocábulos no texto. A associação é favorecida pelo contexto ao destacar
tanto a maciez dos canteiros, onde as flores “dormem”, quanto a atribuição
de características humanas a seres inanimados (flores), fazendo com que
a relação canteiro/cama fique subentendida, criando, assim, o jogo de
palavras, configurando dessa forma a estratégia extensão.
Nossa sugestão: “Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio –
“fazem uns canteiros tão fofinhos que até parecem camas ... por isso
as flores estão sempre dormindo.
Acreditamos que essa solução, semelhante às dos outros
tradutores, mostra-se eficiente, do ponto de vista pragmático, pois
é exatamente a associação “canteiros fofos”/”flores dormindo” que
desencadeia o efeito cômico, uma vez que flores não dormem.
Trecho 3: You’ll be catching a crab directly.’ ‘A dear little crab!’
thought Alice. (1994, p. 87)
– Expressão idiomática metafórica – to catch a crab (to fail
to raise nacce clear of the water on recovery of a stroke
= to get it wrong) – enforcar um remo, afogar/enterrar
o remo (deixar um remo pressionado contra o costado,
devido ao descontrole da remada = fazer uma bobagem,
falhar, fracassar)
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O uso dessa expressão, originária do remo, é bastante curioso,
pois, se for empregada no esporte, seu caráter figurado é reduzido,
uma vez que os adeptos dessa modalidade esportiva a compreendem
quase que de forma literal, isto é, “houve falha na remada”. Porém, se a
empregarmos em outros contextos em língua inglesa, seu caráter figurado
é realçado e seu sentido nos remeterá a uma falha em termos gerais, não
apenas relacionada ao esporte. Na obra de Carroll, Alice está fazendo
usos de remos e caranguejo aparece em outras partes da história, situação
que torna a tarefa do tradutor mais desafiadora.
TRECHO 3 – Traduções em língua portuguesa
(...) Você vai pegar um caranguejo.
− um caranguejinho! Exclamou Alice contente. Que bom, que bom! (1962, p. 73)
− Você vai pegar um caranguejo!
“um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Bem que eu gostaria!” (1986, p. 55)
(...) − Você vai terminar apanhando um caranguejo nesta caranguejola!
“Caranguejinho!, pensou Alice. “Bem que eu gostaria.” (1987, p. 82)
(...) − Você vai pegar um caranguejo em seguida!
“um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Bem que eu gostaria de pegar um.”
(2004, p. 100)
(...) − Você vai apanhar já um caranguejo.
− Eu gostaria disso! – pensou a menina. – um belo caranguejinho!1
1. A expressão “apanhar um caranguejo”, na gíria inglesa do remo, significa um movimento
errado dos remos que pode resultar em um contragolpe que desequilibra o remador. (N.
do E.) (2007, p. 85-86)
“Já, já vai acabar enforcando o remo.”
“Por que faria isso?” pensou Alice. “Tão cruel.” (2010, p. 232)
− Você quer pescar caranguejos?
“um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Eu bem que eu gostaria!” (2012, p. 98)
Como podemos notar, a maioria dos tradutores optou por manter
a imagem criada pelo fraseologismo de origem: “pegar (3)/apanhar (2)
um caranguejo” ou “pescar caranguejos”. Essa estratégia, tradução por
empréstimo, segundo Veisbergs (1997), que privilegia os aspectos formal
e semântico da expressão, para a qual não há correspondente direto na
língua de chegada, acaba privando o leitor/ouvinte da possibilidade de
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reconhecer a estrutura-base geradora do jogo de palavras. Desse modo,
a interpretação é apenas literal e não se cria, portanto, qualquer jogo de
palavras. Podemos entender que tais soluções se justifiquem pelo fato
de que, como dissemos, crab, o crustáceo, aparece em outros momentos
da história. A tradução de 2007, além da estratégia tradução por
empréstimo, contém também comentário metalinguístico, por meio
de nota do editor, em que o fraseologismo é explicitado. A estratégia
transformação em fraseologismo análogo é observada na tradução
de 2010, em que o tradutor opta por uma tradução ligada ao esporte
(“enforcar um remo”/“falhar na remada”), ocasionando, assim, um
jogo de palavras, (“enforcar um remo”/“matar um remo”), segundo a
interpretação e reação de Alice, o que acaba sendo engraçado.
Nossa sugestão: “Assim você acaba afogando o remo.” “Eu?
Imagine, jamais faria tal crueldade”, pensou Alice.
Como é possível perceber, nossa sugestão assemelha-se ao que
aparece na tradução de 2010, classificada como transformação em
fraseologismo análogo; a nosso ver, uma estratégia recomendável de modo
geral. No entanto, em ambos os casos, nos perguntamos se o fraseologismo
ligado ao esporte suscitaria, de fato, duas leituras, uma vez que é restrito a
um público-alvo específico. De qualquer modo, ao optarmos por “afogar o
remo”, imaginamos que, mesmo que a expressão não remeta ao significado
técnico (“perder o controle da remada”), ela causa um jogo de palavras em
virtude da atribuição de uma característica humana a um objeto, Alice a
entende literalmente e reage de modo divertido.
Trecho 4: ‘I’m as certain of it, as if his name were written all over his
face.’ It might have been written a hundred times, easily,
on that enormous face. (1994, 93)
– Expressão idiomática: (to be) written all over someone’s
face (showing or evident by a person’s expression) –
(estar) na cara; (estar) escrito na testa (ser evidente, óbvio)
Nesse caso, como ocorre com a maioria dos jogos de palavras,
a interpretação literal do fraseologismo pressupõe que a combinação
(written all over someone’s face) não seja fixa e que, portanto, seus
constituintes possam ser empregados de forma dissociada.
É possível notarmos, abaixo, que algo semelhante ocorre nas
traduções; no entanto, a maioria deixa de: a) empregar o fraseologismo
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em sua forma “pura” (“estar na cara” e “estar escrito na testa”), em
que não há a necessidade do uso de pronomes possessivos; b) mescla
as duas combinações (“estar escrito na cara”) e c) mantém a estrutura
do fraseologismo, mas lança mão de um sinônimo (“escrito no rosto”).
TRECHO 4 – Traduções em língua portuguesa
“Tenho a certeza de que é êle! Pensou a menina. Tanta certeza como se o seu nome estivesse
escrito em sua cara.”
E o nome de Humpty poderia ter sido escrito cem vezes em sua cara, tamanha era ela.
(1962, p. 79)
“Não pode ser outro!” – pensou. “Tenho certeza de que é ele mesmo! É como se tivesse o
nome escrito no rosto!
Na verdade, o nome poderia ser mesmo mil vezes, naquela cara, tão grande para ela. (1986,
p. 59)
“Estou tão certa disso que é como se o nome estivesse escrito na cara dele!”
Poderia ser escrito centenas de vezes, facilmente, em cara tão enorme. (1987, p. 87
− Não pode ser ninguém mais! – disse a si mesma. – Tenho tanta certeza disso como se seu
nome estivesse escrito em sua testa.
Naquele enorme rosto havia lugar para escrever tal nome, facilmente, umas cens vezes.
(2004, p. 106)
− Não pode ser outro – disse ela consigo –; tenho tanta certeza de que é ele, como se
trouxesse o nome escrito no rosto!
E na verdade podia estar escrito, até cem vezes, naquela face enorme. (2007, p. 91)
“Não pode ser mais ninguém! Disse para si mesma. “Tenho tanta certeza quanto se ele
tivesse o nome escrito na cara.
Teria sido possível escrevê-lo uma centena de vezes, facilmente, naquela cara enorme.
(2010, p. 237)
− Não pode ser ninguém mais! – disse para si mesma. − Eu tenho certeza, como se o nome
estivesse escrito na cara dele.
E podia estar escrito cem vezes, fácil, naquela cara enorme. (2012, p. 105)
Entendemos que todas essas traduções possam ser classificadas
como transformação em fraseologismo equivalente, porém de maneira
parcial, uma vez que a característica de fixidez é “rompida” com o
acréscimo de itens lexicais (pronomes possessivos) ou a substituição
de sinônimos, alterações que, a nosso ver, comprometem o sentido
metafórico do fraseologismo, ou seja, “estar evidente”, que não se revela
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em “estar na face/no rosto/no semblante”. O efeito cômico surge de dois
aspectos: a personagem é um ovo, portanto, o rosto é que sobressai (ou
seja, “Tá na cara que é um ovo e Humpty Dumpty é um ovo”) e Alice
entende a expressão literalmente, a ponto de concluir que se poderia
escrever o nome da personagem em rosto tão evidente.
Nossa sugestão: “Tá na cara que ele!”, concluiu Alice. “Tenho
tanta certeza, pois seu nome parece estar escrito na testa. Também com
aquela cara enorme, daria para escrevê-lo umas cem vezes ali”.
Nesse caso, há o emprego de dois fraseologismos, porém, o
segundo “escrito na testa” já permite uma leitura menos metafórica
que é, então, complementada pela continuação da sentença, na qual
“cara” é usada de maneira literal, tanto que poderia, nesse momento,
ser substituída por “rosto” ou “face”, sem comprometer o entendimento.
Com isso, sugerimos que casos como esse possam ser classificados de
transformação em fraseologismo análogo e por extensão. Tratase de uma de nossas sugestões que revela, como dissemos, tradução
por fraseologismo semelhante na forma e equivalente no sentido com
informação adicional associativa em parte subsequente do trecho.
Trecho 5: ‘They gave it me,’ Humpty Dumpty continued thoughtfully,
as he crossed one knee over the other and clasped his hands
round it, ‘they gave it me— for an un-birthday present.’ ‘I
beg your pardon?’ Alice said with a puzzled air. ‘I’m not
offended,’ said Humpty Dumpty. ‘I mean, what is and unbirthday present?’ (1994, p. 99)
– Marcador conversacional – I beg your pardon! (used
as a question when one has not heard or understood
something clearly) – Como?, Desculpe-me, … (para
expressar pasmo, surpresa, ou indignação, ou para pedir
explicação ou repetição)
Diferentemente do trecho anterior, aqui o jogo de palavras se
realiza por meio de uma interpretação equivocada do fraseologismo
todo. Segundo Veisbergs (1997), trata-se de um jogo de palavras vertical,
quando a estrutura toda, e não apenas um ou mais de seus constituintes,
é vista como uma unidade de sentido. Isso se deve ao fato de que o
interlocutor entende que Alice “roga pelo seu perdão”, ou seja, uma
leitura composicional, não metafórica, da expressão e, assim, diz que
não se sente ofendido.
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TRECHO 5 – Traduções em língua portuguesa
− Êles (sic) me deram esta gravata como presente de in-aniversário (...)
− Desculpe-me, mas não entendi bem, disse Alice intrigada. Que quer dizer presente de
in-aniversário?
− Quer dizer um presente dado num dia que não é de aniversário. (1962, p. 85)
− Sim, eles me deram isto – (...). – Foi um presente de não-aniversário.
− Desculpe! – murmurou Alice espantada.
− Não há do quê!
− Quero dizer, desculpe porque não entendi essa de não-aniversário?
− Ora, trata-se de um presente dado no dia em que não é o dia do seu aniversário. (1986, p.
64)
− Eles me deram isto – (...) – como presente de não-aniversário.
− O quê, desculpe-me – indagou Alice, perplexa.
− Não estou ofendido – disse Humpty Dumpty.
− Quer dizer, o que é um presente de não-aniversário?
− Um presente dado quando não é nosso aniversário. (1987, p. 94)
− Isso mesmo... Foram eles que me deram – (...) – Deram-me esta bela gravata como
presente de desaniversário!
− Por favor, me perdoe... – disse Alice, muito confusa.
− Não estou ofendido, e você não precisa se desculpar – disse Humpty Dumpty.
− O quero dizer, senhor, é que ... o que é um presente de desaniversário?
− Um presente oferecido quando não é seu aniversário, naturalmente. (2004, p. 113)
− Eles me deram isto... como um presente de desaniversário.
− Perdão... – ia dizendo Alice com ar espantado.
− Não, eu não estou ofendido.
− O que vem a ser um presente de não-aniversário?
− Um presente dado quando não é nosso aniversário, ora essa. (2007, p. 96)
“Deram-me a gravata”, (...) como um presente de desaniversário
“Perdão?” Alice perguntou, perplexa.
“Não estou ofendido”, disse Humpty Dumpty.
“Quero dizer, o que é presente de desaniverrsário?”
“Um presente dado quando não é seu aniversário, é claro.” (2010, p. 243)
− Eles me deram... (...) de presente de desaniversário.
− O quê? − disse Alice, com cara de confusa.
− Uma gravata – disse Ovaldo.
− Não, eu quis dizer, o que é um presente de desaniverrsário?”
− Um presente que você ganha quando não é seu aniversário, é claro. (2012, p. 111)
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Na tradução de 1962, o tradutor recorreu a um fraseologismo
(“Desculpe-me, mas ...”) e, pelo fato de haver a complementação (“...
não entendi bem ...” e “Que quer dizer presente de in-aniversário?”), ele
é, por conseguinte, compreendido metaforicamente como um pedido
de explicação e não de desculpas. Algo semelhante ocorre na tradução
de 2012, em que o questionamento é transferido a outros elementos
do diálogo, sem a produção de algum jogo de palavras. Em nosso
entendimento, trata-se, assim, de dois casos de omissão do jogo de
palavras. Nas outras traduções (1986, 1987, 2004, 2007 e 2010), aparecem
as expressões (“Desculpe”, “Desculpe-me”, “me perdoe”, “Perdão (?)”,
todas interpretadas de modo literal, como se o interlocutor estivesse
querendo que o desculpem ou perdoassem; portanto, causando um jogo
de palavras, por meio da estratégia transformação em fraseologismo
análogo. O efeito cômico é, assim, criado pela ingenuidade da
personagem que fez uma interpretação literal e equivocada da expressão.
Acreditamos que as cinco escolhas se mostrem como soluções bastante
adequadas, portanto, não apresentamos sugestão.
Os trechos de 6 a 9, a seguir, referem-se à obra de Wilde.
Trecho 6: I can stand brute force, but brute reason is quite unbearable.
There is something unfair about its use. It is hitting below
the intellect. (1990, p. 43)
– Expressão idiomática metafórica – to hit below the belt (to
unfairly target another nacce’s weakness or vulnerability.
The phrase refers to boxing, in which hitting an opponent
below the waist is nacceptable) – dar um golpe baixo
Ao que concerne à criação do JPF, Wilde recorreu ao recurso
de substituição, outro subgrupo de transformação estrutural, em que a
forma da expressão (to hit below the ...) permanece inalterada e um de
seus elementos constituintes (belt) é substituído (intellect). O jogo de
palavras é criado quando o que se esperaria fosse, embora figurado, algo
físico (força bruta/concreto); no entanto, aparece algo mental (razão bruta/
abstrato), deixando o fraseologismo transformado ainda mais metafórico.
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TRECHO 6 – Traduções em língua portuguesa
− Que horror! – clamou Lorde Henry – posso admitir a força brutal, mas a razão brutal é
insuportável! Há qualquer coisa de injusto no seu império. Confunde a inteligência.
(1923, p. 67)
− Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso suportar a força bruta, mas a razão bruta
é insuportável. Há algo de desleal no seu emprego. É como dar um golpe baixo na
inteligência. (1933, p. 52)
– Mas, isso é terrível! Exclamou Harry. Em rigor, admito a força bruta, mas a razão bruta é
intolerável. É desleal recorrer a ela. É ferir o adversário abaixo da linha da inteligência.
(1946, p. 41)
− Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso suportar a força bruta, mas a razão bruta
é insuportável. Há algo de desleal no seu emprego. É como dar um golpe baixo na
inteligência. (1996, p. 51)
− Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso conceber a força bruta, mas a razão bruta é
intolerável. Há algo de injusto em seu uso. É um feio golpe abaixo do intelecto. (1998, p.
51)
− Que barbaridade! – exclamou Lorde Henry. – Admito a força bruta; mas a razão bruta é
intolerável. Usá-la é deslealdade, é rebaixar a inteligência. (2005, p. 44)
− Horrível! – exclamou Lorde Henry. – Sou capaz de aturar a força bruta, mas a razão bruta
é por demais insuportável. Há algo de injusto em seu uso. É como um golpe baixo no
intelecto. (2010, p. 59)
Na tradução de 1923, entendemos que houve omissão do jogo
de palavras. Em outras (1946 e 2005), detectamos uma estratégia em
que o JPF é, de certa forma, explicado sem a presença de qualquer
elemento formador do núcleo do fraseologismo, nesse caso “golpe
baixo” (colocação lexical adjetiva), que isoladamente também tem
sentido figurado. Casos como esse, denominaremos de substituição
por unidade não-fraseológica, ou seja, tradução por unidade nãofraseológica com sentido equivalente, em que o jogo de palavras é
explicado, portanto, eliminando o recurso estilístico. Nas traduções em
que aparece, pelo menos, o sintagma “golpe baixo”, seguido ou não de
“dar um”, a contraposição (força bruta/razão bruta) é reiterada e o jogo
de palavras (físico/mental) se realiza, mesmo que à combinação fixa
seja adicionado um elemento presente no jogo de palavras da línguafonte: “dar um golpe baixo no intelecto”. Nesses casos, sugerimos que
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020
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tenha ocorrido a estratégia, transformação em fraseologismo análogo
com adição, isto é, tradução por fraseologismo semelhante na forma e
equivalente no sentido com acréscimo de algum elemento constituinte
do jogo de palavras da língua-fonte.
Nossa sugestão: − Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Força
bruta ainda passa, mas a razão bruta é insuportável. É meio injusto fazer
uso dela. É como dar um golpe baixo no intelecto.
Trecho 7: From her little head to her little feet she is absolutely and
entirely divine. (1990, p. 53)
– Binômio – from head to foot/feet (completely) – da cabeça
aos pés; dos pés à cabeça (totalmente)
Wilde, ao empregar o binômio from head to foot e acrescentar
o adjetivo little diante dos substantivos, ao que tudo indica, desejava
realçar positivamente as características da mulher em questão. Em se
tratando de estratégias de criação de jogos de palavras, encontramos a
inserção, quando, ao fraseologismo canônico, algum outro elemento é
acrescentado. Este é um exemplo de jogo de palavras horizontal, em que
algum elemento constituinte do fraseologismo é modificado. Trata-se,
assim, de um JPF facilmente perceptível e, portanto, mais fácil de ser
transposto a outras línguas.
TRECHO 7 – Traduções em língua portuguesa
De sua cabecinha aos pés minúsculos, ela é absolutamente divina. (1923, p. 81)
Ela é absoluta e inteiramente divina. Do alto da cabecinha ao pequenino pé. (1933, p. 69)
Desde a pequenina cabeça aos pequeninos pés, tido nela é absolutamente divino. (1946, p. 53)
Ela é absoluta e completamente divina, do alto da sua cabecinha aos pequeninos pés.
(1996, p. 67)
Desde a cabecinha até a ponta dos pezinhos, ela é absolutamente divina. (1998, p. 67)
Da sua cabecinha mimosa aos seus pés miúdos, ela é absoluta e inteiramente divina. (2005,
p. 55)
Desde a pequenina cabeça, até os pezinhos, ela á absolutamente divina. (2010, p. 77)
380
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Com relação às traduções, podemos observar que, para compensar
a dupla inserção do adjetivo (little), todos os tradutores lançaram mão
do grau diminutivo, recurso gramatical da língua portuguesa para
indicar diminuição de tamanho ou intensidade, intenção depreciativa,
ou envolvimento afetivo, como este parece ser o caso. Considerando a
estratégia de tradução, podemos, a princípio, pensar em transformação
em fraseologismo equivalente, uma vez que, para a geração do jogo
de palavras, foram usados vocábulos como “cabecinha” (5), “pequenina
cabeça” (2), pés minúsculos/miúdos, pequenino(s) pé(s) (3) e “pezinhos”
(2), que, mesmo alterados, claramente nos remetem ao consagrado
binômio em português “da cabeça aos pés”. Embora, nesses casos,
o fraseologismo de origem, como em toda transformação estrutural,
permaneça praticamente intacto, seus elementos constituintes sofrem
modificação em algum nível gramatical. Inferimos que esse tipo de
estratégia de tradução seja um tipo de transformação em fraseologismo
equivalente, seguida de modificações léxico-morfológicas, em virtude do
acréscimo de preposições, pronomes, adjetivos e outras sintagmas (nível
lexical) e, em especial, do emprego do diminutivo (nível morfológico).
Nossa sugestão: Da cabecinha aos pezinhos, ela é simplesmente
divina.
Imaginamos ser uma solução que, de imediato, evoca o
binômio original e soa natural; a denominamos de transformação em
fraseologismo equivalente com modificação morfológica, ou seja,
tradução por fraseologismo em que um ou mais itens lexicais sofrem
modificação morfológica e o sentido figurado é mantido.
Trecho 8: I should have fallen madly in love with you … and thrown
my bonnet right over the mills for your sake … As it was,
our bonnets were so unbecoming and the mills so occupied
in trying to raise the wind, that I never had even a flirtation.
(1990, p. 134)
– Expressão idiomática metafórica – to throw one’s bonnet
over the windmill (to act in a deranged, reckless, or
unconventional manner) – fazer loucuras; perder a cabeça
(dizer ou fazer coisas impensadas; proceder loucamente)
A expressão, empregada por Wilde, segundo diversos dicionários,
refere-se a uma passagem do célebre romance de cavalaria espanhol,
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Dom Quixote de La Mancha, em que o protagonista, Dom Quixote,
ao confundir um moinho de vento com um gigante, o desafia atirando
o chapéu em sua direção. Hoje em dia, seu sentido é “agir de modo
impensado, não convencional”. No trecho em destaque, a personagem
emprega a expressão para revelar o que teria feito caso tivesse conhecido
o homem em questão quando ela era jovem. Consideramos que o JPF
é criado pelo processo de metáfora estendida, ou seja, metáfora que
continua a comparação ao longo da oração ou das orações que se
segue(m), como ocorre no excerto.
TRECHO 8 – Traduções em língua portuguesa
− Porque, meu caro amigo, estou certa de que me teria perdidamente apaixonado e faria
loucuras. (1923, p. 203)
– Tenho certeza, meu caro, de que me teria apaixonado loucamente por você – costumava
dizer –, e teria saltado por cima de tudo por seu amor. (1933, p. 208)
Sem dúvida, meu caro, eu ficaria louca por si, explicava e teria atirado o meu boné por
cima dos moinhos. (1946, p. 150)
– Tenho certeza, meu caro, de que me teria apaixonado loucamente por você – costumava
dizer –, e teria passado por cima de tudo pelo seu amor. (1996, p. 202)
“Sei perfeitamente, meu caro, que teria ficado apaixonada por você”, costumava dizer, “e
teria feito loucuras por sua causa. ...” (1998, p. 199-200)
− Porque naturalmente, meu caro, eu me apaixonaria por você e perderia a cabeça. Por
sorte, naquele tempo, você não era gente. (2005, p. 143)
“Bem sei, meu querido”, ela costumava dizer, “que teria me apaixonado loucamente por
você, que por você, teria jogado todos os meus chapéus aos moinhos. (2010, p. 224)
Nas traduções de 1946 e 2010, percebemos a estratégia tradução
por empréstimo, que, como já vimos, é a que prioriza uma tradução
linear e composicional da expressão de origem. Nesse caso, supomos que
o leitor/ouvinte não reconheça ali nenhum fraseologismo da língua de
chegada; portanto, dificultando sua compreensão, a não ser que consiga
relacioná-la à personagem homônima do romance espanhol. Nas outras
traduções, classificadas por nós, como substituição, fraseologismo
diferente na forma e equivalente no sentido, parte da metáfora pode ser
percebida por meio de “fazer loucuras” e “saltar/passar por cima de tudo”,
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porém, como as duas soluções anteriores, deixam de estender a metáfora
em segmentos subsequentes; portanto, apagando o jogo de palavras.
Nossa sugestão: − Porque com certeza, meu caro, teria me
apaixonado perdidamente por você, teria perdido a cabeça por sua
causa e assim não haveria onde colocar meu chapéu, aliás, para o
que mais serve uma cabeça?
Essa proposta é inspirada em sugestão dada por um tradutor
letão que Veisbergs analisou e traduziu literalmente para o inglês como:
... I would lose my head because of you and there would be nowhere top
ut my hat on, and what else is the head needed for … (1997, p. 168).
Desse modo, trata-se de um caso de transformação em fraseologismo
análogo em que o fraseologismo e a imagem são modificados e, ainda
assim, a fluência e o jogo de palavras são preservados.
Trecho 9: The man who call a spade a spade should be compelled to
use one. It is the only thing he is fit for. (1990, p. 147)
– Expressão idiomática metafórica – to call a spade a spade
(to call something by its right name; to speak frankly about
something, even if it is unpleasant) – dar nomes aos bois
(identificar pessoas, situações etc. antes só genericamente
mencionadas); pão, pão; queijo, queijo (falar com toda a
franqueza); chamar as coisas pelo nome.
Wilde cria aqui um JPF por meio de metáfora estendida, em que
parte da expressão to call a spade a spade, é, mais adiante, aludida, por
meio de um pronome. Como ocorre na maioria dos jogos de palavras,
o confronto de significados, nesse caso, é realizado quando um dos
elementos constituintes da expressão metafórica é mencionado de modo
literal. Seu sentido é “falar francamente sobre alguma coisa, sem se
importar se é agradável ou não”, não se trata, portanto, de uma ferramenta
a ser manuseada. Como em outros casos, notamos um confronto entre o
abstrato e o concreto. Podemos entender que Wilde deprecia o Realismo
por meio das palavras da personagem. Para o escritor, como o movimento
preconiza, entre outras coisas, retratar a realidade como ela é, então, as
pessoas deveriam chamar as coisas pelo nome, sem fazer rodeios.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020
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TRECHO 9 – Traduções em língua portuguesa
O homem que dá a uma enxada este nome deve ser forçado a carregar uma; é o único
instrumento que lhe convém. (1923, p. 222)
O homem que dá uma a uma enxada o nome de enxada deveria ser obrigado a utilizá-la.
Só poderia servir mesmo para isso. (1933, p. 232)
Um homem capaz de chamar uma enxada uma enxada deveria ser condenado a servir-se
dela. Só para isso é que êle [sic] serviria. (1946, p. 166)
O homem que dá uma a uma enxada o nome de enxada deveria ser obrigado a utilizá-la.
Só poderia servir mesmo para isso. (1996, p. 222)
O homem que chama pá a uma pá deveria ser obrigado a usá-la. É só para isto que ele
serve. (1998, p. 220)
O indivíduo que chama “pá” a uma “pá” deveria ser condenado a manejá-la. Só serve para
isso. (2005, p. 156)
O homem que consegue chamar a espada de espada deveria ser compelido a usá-la, pois é
para isso, apenas isso, que serve. (2010, p. 247)
A estratégia tradução por empréstimo foi empregada em todas
as traduções. Como vimos no trecho anterior (8), este recurso prioriza
uma tradução linear e composicional da expressão de origem, cujo
resultado nem sempre é reconhecido como uma expressão fixa na língua
de chegada. Se, eventualmente, o fraseologismo de origem parecer lógico
e transparente, o empréstimo pode soar como uma metáfora original na
língua de chegada; até mesmo compensando a perda do jogo de palavras.
Poderá, porém, parecer uma solução forçada demais por tentar preservar
as estruturas do texto de partida (VEISBERGS, 1997).
Nossa sugestão: O homem que dá nome aos bois tem a obrigação
de montar um. Afinal de contas, não lhe resta outra coisa a fazer.
Essa solução, transformação em fraseologismo análogo, como
já vimos, afasta-se da expressão da língua de partida do ponto de vista
estrutural e aproxima-se do ponto de vista semântico. Como o próprio
nome diz, trata-se de uma combinação análoga, não idêntica. No contexto
da obra, as personagens estão discutindo que todas as coisas deveriam
ser chamadas pelo nome correto. Percebemos certa provocação de
Wilde, quando insinua que deveríamos, então, agir com franqueza e dar
o devido nome às coisas e às pessoas, mesmo que isso causasse algum
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constrangimento ou desagradasse alguém. Aquele que assim o fizesse,
no entanto, deveria arcas com as consequências.
Diferentemente dos excertos de Carroll em que o efeito cômico
aparece de forma mais conspícua, denotando a ingenuidade das
personagens, por exemplo; nos trechos analisados de Wilde, ele é mais
sutil, mascarando a ironia ou o escárnio com que as personagens se tratam.
Após nossas análises das traduções, com a aplicação dos
processos de transformação e estratégias de tradução de Veisbergs, foi
possível verificar como os diferentes tradutores reagiram ao desafio de
transpor JPFs para outro idioma.
Nossos resultados demonstram que as estratégias mais comuns
foram: transformação em fraseologismo equivalente, tradução por
empréstimo e transformação em fraseologismo análogo. Por meio
dessas três possibilidades, os tradutores tentaram preservar, de algum
modo, os jogos de palavras. Comparando-os por meio desses parâmetros
(equivalência, empréstimo e analogia), fica evidente que resultam em
diferentes graus de naturalidade. As soluções por empréstimo carregam
traços estruturais visíveis do fraseologismo de origem, podendo causar
estranhamento no leitor/ouvinte. Soluções como essas são semelhantes
às detectadas por Veisbergs (1997) em suas análises; repetidas vezes, os
tradutores, talvez pela dificuldade de encontrar correspondentes mais
apropriados na língua de chegada, mantiveram os elementos estruturais do
fraseologismo de origem, criando um jogo de palavras, não tão vigoroso,
tampouco facilmente perceptível pelo leitor da obra traduzida. Por outro
lado, as soluções por equivalência (ideal, porém mais rara) e por analogia
(recomendável, e mais frequente) imprimirão fluidez e familiaridade ao
texto, tanto do ponto de vista estrutural quanto idiomático.
De modo geral, acreditamos que todas as traduções aqui
analisadas, como ocorre com a tradução de qualquer tipo de texto,
foram realizadas segundo diferentes leituras e interpretações. Inferimos,
assim, que alguns tradutores não tenham notado a presença de um
jogo de palavras no texto e, ao omiti-lo, produziram uma tradução que
deixa a desejar, privando o leitor de desfrutar de um recurso estilístico
elaborado pelo autor da obra de origem. Outros tradutores, por sua vez,
perceberam o jogo de palavras e tentaram reproduzi-lo na língua de
chegada, estabelecendo prioridades em nível estrutural, idiomático e
pragmático, cujos resultados, são dignos de mérito.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020
385
Para nossa discussão, as estratégias de Veisbergs mostraramse bastante válidas. No entanto, frente a algumas soluções detectadas
em nossas análises, sugerimos estratégias tradutórias (anteriormente
discutidas) que são frutos de nossa interpretação do referido modelo.
6 Considerações finais
Como já dissemos, a transposição de JPFs a outro idioma impõe
aos tradutores desafios maiores que surgem bem antes de sua tradução
propriamente dita, visto que, em primeiro lugar, é necessário que o
jogo de palavras seja percebido. Nossa seleção de JPFs foi facilitada
pelo trabalho de Veisbergs, porém, nem sempre isso acontece. Segundo
Viégas-Faria (2004, p. 200), quando um tradutor não dispõe de meios para
reconhecer o “intertexto fraseológico”, em virtude da difícil recuperação
do fraseologismo original, uma maneira de se familiarizar com as
características da obra que estiver traduzindo será recorrer a estudos de
especialistas do autor em questão.
Sobre a recolha de dados para subsequente análise de jogos de
palavras, Philip (2008) salienta que esse processo pode ser facilitado
quando formas não-padrão aparecem de modo bastante óbvio, por
exemplo, em textos jornalísticos ou publicitários. Sugere, então, que
possamos fazer buscas em grandes corpora eletrônicos. O emprego de
princípios da Linguística de Corpus pode parecer contraditório, num
primeiro momento, visto que tal metodologia privilegia a regularidade
e a consistência de combinações fixas e recorrentes. Esclarece o autor,
no entanto, que é a ocorrência de formas não-canônicas que linguistas
de corpus têm encontrado com maior frequência. Sugerimos, assim, que
outras pesquisas sobre este tema possam fazer uso dessa metodologia.
Concordamos com Veisbergs (1997) que o emprego de jogos
de palavras fraseológicos possa produzir um efeito marcante no texto,
funcionando, a nosso ver, como artifícios estilísticos de embelezamento
ou enriquecimento. De modo geral, apesar de corroborarmos a ideia
do efeito cômico inerente aos jogos de palavras, acreditamos que ele
seja latente, isto é, que se manifeste em graus maiores ou menores,
dependendo do tipo de texto, do contexto e do canal de comunicação.
Conforme notamos nos excertos literários analisados, o efeito cômico
mostra-se mais acentuado quando há clara oposição ou incongruência de
sentidos entre um ou mais elementos linguísticos. Isso foi observado em
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020
vários trechos da obra de Carroll, em que, por exemplo, a ingenuidade das
personagens era exibida ou reforçada. Nos trechos extraídos de Wilde,
percebemos que os jogos de palavras são mais sutis e, por sua vez, fazem
transparecer relações envolvendo crítica, provocação ou intolerância,
não necessariamente comicidade.
Essa suposta diferença de efeito parece estar diretamente associada
ao tipo de jogo de palavras: horizontal ou vertical. O primeiro tipo envolve
sobretudo transformações estruturais bastante evidentes no fraseologismo,
portanto, mais facilmente perceptíveis pelo leitor/ouvinte; o tipo vertical,
cujas transformações ocorrem em nível semântico, leva o leitor/ouvinte a
fazer associações ou inferências mais elaboradas. Nos dois casos, exige-se
do leitor/ouvinte esforço cognitivo. Nos jogos de palavras horizontais,
como a situação de dubiedade é explícita, esse esforço é menor e o leitor/
ouvinte reage prontamente ao inesperado e o acha engraçado. Como nos
horizontais, o esforço cognitivo é maior, o leitor/ouvinte demora mais
tempo para processar as associações; por isso, talvez, o efeito não seja
cômico, ou até seja, porém, não tão vigoroso ou imediato.
Nosso tipo de estudo, cotejo de várias traduções de um mesmo
texto, mostra-se bastante apropriado ao ensino de tradução, pois, além
de revelar aos aprendizes como diferentes pessoas reagem ao desafio
de traduzir JPFs, ele reforça duas capacidades que um tradutor deve
desenvolver. Uma, já mencionada, é a capacidade de perceber a existência
do jogo de palavras num determinado texto. A outra é a capacidade
de reproduzir esse recurso linguístico criativo na língua-alvo. Como
sabemos, as transformações em estruturas linguísticas são, normalmente,
motivadas pelo estilo de um autor, o qual privilegia o contexto em que
elas estão inseridas. Tal motivação também deve servir de inspiração
aos tradutores, em geral, lembrando-os de que podem fazer algo
semelhante ou até mesmo melhor do que aparece no texto de partida.
Ao compreendermos que tradutores sejam “agentes de transformação”
(CHESTERMAN, 1997, p. 2), estamos reforçando a ideia de que, se
jogos de palavras são criados por meio de algum tipo de modificação,
ela deva ocorrer na língua de chegada também. Assim, ao perceber um
jogo de palavras e reproduzi-lo, fazendo as devidas alterações, o tradutor
está respeitando o autor, a obra e os futuros leitores da tradução.
Para finalizar, nossa recomendação é: traduzir fraseologismo por
fraseologismo e JPF por JPF. Como aparece em nosso título, “o humor
está no ar”, então, basta ao tradutor descobrir onde e como reproduzi-lo.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020
o Tradutor seletor: uma breve análise da “neutralidade”
da tradução na canção do Chapéu Seletor em Harry Potter
The Sorting Translator: a Brief Analysis of Translation
“Neutrality” in the Sorting Hat Song, on Harry Potter
Filipe Cianconi Rodrigues
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil
filipecianconi@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0002-3947-2748
Fábio da Silva Fortes
Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil
fabiosfortes@yahoo.com.br
https://orcid.org/0000-0003-4411-7115
resumo: A teoria logocêntrica vê o significado de um texto como fixo, imutável,
a depender somente das intenções conscientes do autor que o escreveu. Entretanto,
na tradução é comum que o tradutor insira aspectos de seu contexto sociocultural,
modificando aspectos do texto fonte para adaptá-lo à língua de chegada. Dessa forma,
este artigo tem o objetivo de demonstrar, através da análise e comparação em três
idiomas (inglês, português e latim) da canção do Chapéu Seletor, em Harry Potter e a
Pedra Filosofal, que o ponto de vista desconstrutivista – que traz a ideia da mutabilidade
do sentido – tem mais a oferecer e se encaixa melhor na perspectiva tradutória do que
a noção do significado imutável.
Palavras-chave: desconstrução; tradução; logocentrismo; Harry Potter.
abstract: The logocentric theory takes the meaning of a text as established, unchanging,
depending on the conscious intentions of the author who wrote it. However, in
Translation, it is common the translator to insert aspects of his/her sociocultural context,
modifying aspects of the source text to adapt it to the target language. Therefore,
this article aims at demonstrating, through the analysis and comparison among three
languages (English, Portuguese and Latin) of the Sorting Hat song, in Harry Potter
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.391-416
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020
and the Philosopher’s Stone, that the deconstructive point of view – which brings the
meaning mutability idea – has more to offer and fits better in the translation perspective
than the notion of immutable meaning.
Keywords: deconstruction; translation; logocentrism; Harry Potter.
Recebido em 3 de junho de 2019.
Aceito em 17 de outubro de 2019.
1. Introdução
Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai
sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o
tempo e a história de seu realizador. Toda tradução por
mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma
perspectiva, de um sujeito interpretante e, não meramente,
uma compreensão “neutra” e desinteressada ou um
resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos
significados supostamente estáveis de um texto de partida.
ARROJO, 2003a, p. 68
O ato tradutório tem sido praticado desde as épocas mais
remotas da humanidade, das quais se tem notícias. Por volta do século
III AEC, por exemplo, os judeus haviam se espalhado pela área do
Mediterrâneo, como afirma Scatolin (2011, p. 9), chegando “ao Egito, à
Síria, à Mesopotâmia, a cidades da Ásia Menor, às ilhas do Mar Egeu, à
Grécia continental, a Creta, Chipre e Cirene”. Com toda essa dispersão
pelos continentes, muitos dos judeus já não possuíam domínio sobre o
hebraico – eles tinham liberdade religiosa e podiam manter-se ligados
aos seus textos religiosos. Contudo, como fariam a leitura de um texto
escrito em hebraico sem dominar o idioma? A Septuaginta era a tradução
em grego dos livros da Bíblia que compunham o que a tradição cristã
compreende como o Antigo Testamento, cuja finalidade era permitir a
leitura dos textos por cidadãos que dominavam o idioma grego, mas
pouco conheciam de hebraico. Essa tradução teria sido realizada por
setenta e dois monges que foram dispostos em salas separadas e, por
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020
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inspiração divina, teriam traduzido os livros do hebraico para o grego
exatamente iguais uns aos outros. O nome Septuaginta, que significa
“setenta” em latim, surgiu fazendo referência ao número de monges que
fizeram esta tradução (SCATOLIN, 2011, p. 16).
No mundo romano, de acordo com Kelly (1995, p. 420), Lívio
Andronico – um escravo grego, capturado em Tarento – produziu uma
versão latina da Odisseia, obra do grego Homero, utilizada nas escolas
romanas. Os dramaticistas Plauto e Terêncio aproveitaram-se dos dramas
gregos de Menandro e Aristófanes, por exemplo, e compunham obras
adaptadas e traduziam os textos gregos para o latim, causando um melhor
aproveitamento do público latino. Ainda segundo a autora, a maior
contribuição dada pelo orador Cícero foi criar uma terminologia científica
em latim para as traduções do grego, isto é, ele ajudou na composição
de termos latinos para equivaler, de certa forma, aos termos usados em
textos gregos. Dessa forma ilustramos, com alguns exemplos, períodos
da história da tradução ainda na Antiguidade – atividade praticada há
mais de dois milênios.
O termo português “tradução” tem sua origem na língua latina,
oriundo de duas palavras: a preposição trans, através de + ducere, guiar,
levar, transportar, isto é, etimologicamente, seu sentido seria o de guiar,
transportar algo através de outra coisa. Por extensão, o ato de traduzir
ilustra perfeitamente a conotação latina, uma vez que se transporta alguma
mensagem de determinada língua para outra durante uma tradução. Em
termos gregos, contrastamos a paráfrase, metáphrasis, usada nos meios
tradutórios para identificar uma tradução mais “literal”, ou seja, palavra
por palavra, com aπαράφρασις, paráphrasis, mais utilizada hoje em
estudos literários, cujo significado seria se expressar de maneira mais
extensa sobre uma coisa em relação a algo que já fora dito antes.
Na Antiguidade, a tradição oral foi sendo substituída pela tradição
escrita e, conforme as eras se passavam, mais se confiava no texto grafado
(HAVELOCK, 1986, 1994; SMALL, 1997). Durante muito tempo, a
ideia da tradução (e percebe-se isso nos métodos1 de ensino de línguas
Trata-se dos métodos Gramática-Tradução que acreditavam que conhecer aspectos
gramaticais e utilizá-los em traduções descontextualizadas era o suficiente para se
aprender uma língua estrangeira. Tal concepção fornece suporte para a ideia de que
a correspondência entre os significados entre as línguas é fixo, não dependendo do
contexto – pois até mesmo frases fora de contexto manteriam seus significados,
1
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estrangeiras, por exemplo) era apresentada como uma metáphrasis, isto é,
as palavras deveriam corresponder entre si, em duas ou mais línguas, de
forma que o tradutor sempre permanecesse ligado ao que estava escrito
no texto fonte e o transmitisse para a língua alvo exatamente da mesma
forma como estava registrado na língua estrangeira.
No presente artigo, pretendemos fazer uma breve análise da
versão latina da “Canção do Chapéu Seletor”, presente no primeiro
volume da série Harry Potter, de J.K. Rowling. Para isso, apresentaremos
considerações teóricas preliminares sobre o ato tradutório que esclarecem
a nossa perspectiva e, na sequência, passamos para a análise do excerto
selecionado, tendo em vista o texto em inglês e a versão em latim,
cotejando-os também com a tradução para o Português do Brasil (de
Lia Wyler).
2. a perspectiva tradutória
Durante algum tempo, esteve em voga uma teoria linguística
logocêntrica. Λόγος, lógos, em grego é um vocábulo amplo – e que
hoje ainda gera muito imprecisão aos tradutores de textos gregos,
principalmente os filosóficos, em que esta palavra aparece recorrentemente
– que pode significar tanto a palavra em si, como aquilo através do qual
o pensamento é expresso, bem como pode significar também o próprio
pensamento ou até mesmo discurso (CASSIN et al., 2013, p. 581-593).
Jacques Derrida (1975, apud ARROJO; RAJAGOPALAN, 2003, p. 48)
aponta como foco da teoria logocêntrica o significado transcendental, no
qual um objeto se mantém estável no continuum espaço-tempo, isto é, o
significado de um texto é imutável, permanente e independe do sujeito.
Esta crença na estabilidade do significado – que Derrida
chama de logocentrismo –, supostamente, geraria uma oportunidade
de, conhecendo as intenções conscientes do autor, chegar, através da
tradução, à literalidade de um texto – à metáphrasis, o sentido literal,
independente de qualquer contexto histórico-social e de qualquer
interpretação de seu tradutor (ARROJO, 2003c, p. 100). Entretanto, essa
ideia de que o significado de um texto é estável se desfaz se pensarmos na
independente de qualquer interferência. No caso do ensino de latim, particularmente,
tal perspectiva, em que pese ser questionada há mais de três décadas, ainda parece
permanente em algumas práticas (FORTES; PRATA, 2012, p. 167-185).
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língua(gem) como um fator cultural de determinado povo que, de acordo
com as necessidades dos falantes, vai se modificando conforme o tempo
– gerando neologismos, construções distintas e resignificando palavras.
Arrojo (2007, p. 40) afirma que seria impossível resgatar as intenções e
o universo de um autor, porque estas intenções são sempre “nossa visão
daquilo que possam ter sido”, justamente por conta do fator de evolução
das culturas e da própria língua. Não se pode afirmar, com total certeza,
que determinada palavra x que, por exemplo, tenha sido usada por um
autor do século XIX, seja usada da mesma forma por um autor hodierno,
cujos contextos socioculturais são completamente distintos.
Arrojo (2003b, p. 35) diz que as teorias logocêntricas
compartilham um pressuposto de que a origem dos significados de um
texto está fora do sujeito (leitor ou “receptor”), sendo localizada ou
no próprio texto ou nas intenções conscientes do autor. Isto é, para se
entender um texto, deve-se estar a par das intenções do autor e tiram-se
conclusões apenas com relação àquilo que está escrito diante de si. Esta
ideia traria duas possibilidades para a compreensão dos textos, segundo
a autora (ARROJO, 2003b, p. 35-36): a noção da literalidade – de que
o sentido estaria subordinado à letra, ou seja, seria anterior a qualquer
interpretação feita pelo leitor – e a noção de que a origem do significado
estaria vinculada e projetada no autor – gerando a conhecida pergunta
mas o que o autor quis dizer?.
Embora seja uma pergunta instigante, é praticamente impossível
conceber todas as intenções de um autor ao escrever determinado texto.
No momento da tradução, o tradutor, que pode não estar ciente dos
propósitos do autor do texto fonte, vai aplicar na sua tradução a leitura
que ele fez do texto. Entretanto, ainda que o acesso às intenções do
autor fosse possível, o que indica que, ao traduzir, um tradutor seria fiel?
Johnson (2005, p. 29) mostra, por exemplo, como que, filosoficamente,
a fidelidade é uma pretensão tão quimérica quanto a originalidade de um
texto. Em se tratando de línguas não somente afastadas geograficamente,
mas também temporalmente, como o é o caso de uma língua moderna
(como o inglês), contraposta a uma língua antiga (como o latim), tanto
mais se torna impossível uma perspectiva em torno de uma presunção
de originalidade/fidelidade tradutória.
Tal fato nos retorna para o trecho citado em epígrafe no início
deste trabalho, no qual podemos perceber que toda tradução carrega
em si traços do seu tradutor, bem como do contexto sociocultural no
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qual ele está envolvido. Escolhas são feitas no ato tradutório – dessa
forma, nenhuma tradução é neutra. Tomemos como exemplo a série
animada cômica (Des)Encanto, criada por Matt Groening (criador de
Os Simpsons e Futurama), em que, no oitavo episódio da primeira
temporada, intitulado “Os limites da imortalidade”, os personagens
principais vão até o deserto em busca de um frasco valioso. Eles descem
até as catacumbas de uma pirâmide e encontram o frasco. Na subida de
volta à superfície, um dos vilões, que também estava tentando alcançar
o frasco, é deixado no andar inferior, enquanto os protagonistas sobem,
escapando. Os protagonistas começam a empurrar as areias do deserto
pelo alçapão por onde eles escaparam. Então há o seguinte diálogo:
Luci: Let’s see how you like getting bottled up.
Odval: You’ll never be able to fill this whole room with sand.
Luci: Uh, sure we will. There’s a whole desert up here.2
No momento da tradução, os tradutores/dubladores preferiram
aumentar o grau de comicidade do desenho animado, trazendo para os
telespectadores brasileiros um tom mais jocoso com o diálogo que se
segue:
Luci: Vamos ver se você gosta de ser enterrado.
Odval: É isso mesmo que eu estou vendo? Vai me enterrar na areia?
Luci: Não, não. Vou atolar.
O tom cômico do diálogo só é captado por aqueles que conhecem o
funk, cuja letra foi referenciada no diálogo acima. As escolhas do tradutor
refletem, então, seu contexto, a função que o texto traduzido tem, bem
como são adaptadas para se encaixarem melhor na língua alvo. Assim,
como diz Arrojo (2003d, p. 78), qualquer tradução traz consigo os vestígios
de sua realização, seja ele o tempo, as circunstâncias nas quais o tradutor
se encontra, os objetivos deste, ou mesmo sua perspectiva. Snell-Horby
(1995, p. 51-52) define a perspectiva como o ponto de vista do falante,
narrador ou leitor no que concerne à cultura, ao tempo ou espaço, isto é,
o termo abarca uma relação entre o texto fonte com os fatores externos,
2
O diálogo poderia ser traduzido da seguinte maneira, seguindo o texto fonte:
Luci: Vamos ver como você gosta de ser engarrafado
Odval: Vocês nunca vão ser aptos a preencher este local todo com areia.
Luci: Uh, claro que vamos. Tem um deserto todo aqui em cima.
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sociais e culturais dos indivíduos que estão em contato com o texto na
língua de chegada. Assim, o conceito ganha um entorno sociocultural,
uma vez que o tempo e o espaço do texto fonte são distintos. Dessa forma,
as escolhas tradutórias são informadas pela perspectiva sociocultural
assumida pelo tradutor, com base no seu ponto de vista do texto a ser
traduzido, como ilustrado pelas escolhas feitas no diálogo supracitado.
Esta noção de que a tradução não precisa ser literal está contida
na teoria da desconstrução, que se desenvolveu na França, no fim da
década de 1960 e, na qual os teóricos passam a pensar a tradução de forma
diferente da visão logocêntrica e trazem, conforme cita Gentzler (2009,
p. 186), questões como a sobrevivência do texto original sem a tradução,
bem como a mudança de sua identidadea cada tradução feita daquele texto,
entre outros. Segundo Gentzler (2009, p. 184), “os descontrucionistas
chegam a sugerir que talvez seja o texto traduzido que nos escreve [grifos
do autor], e não nós que escrevemos o texto traduzido”, pois como já foi
supracitado, o texto apresenta características do seu tradutor, mas estas
escolhas tradutórias são feitas levando em consideração o texto em si.
Jacques Derrida, ressoando através da voz de Gentzler (2009, p.
185), sugere que o conceito da desconstrução está intimamente ligado
ao ato de traduzir, indicando que o que o autor chama de différance pode
ser visível. O neologismo criado por Derrida origina-se do verbo latino
differe (verbo polissêmico que pode significar tanto atrasar – sugerindo um
horizonte temporal – como divergir – sugerindo um horizonte espacial),
porém com uma alteração gráfica: o vocábulo francês seria escrito em “e”,
différence, mas Derrida o escreve com “a”, différance, soando parecido,
embora grafados de forma distinta. Tal fato contribui para a significação
do neologismo, uma vez que ele não se refere ao que existe (a língua), mas
sim o que não existe, o inaudito (assim como a letra “a” se passa por “e”
na pronuncia da palavra), questionando qualquer abordagem ontológica
que baseia a noção da tradução na presença de algo contido explicitamente
naquele texto (GENTZLER, 2009, p. 197). Jacques Derrida
Desafia o leitor (e principalmente o tradutor) a pensar e repensar
cada momento em que uma solução de tradução é apresentada, um
item denominado, uma identidade fixada ou uma oração inscrita. A
cada gesto de dominação, Derrida sugere que uma nota de rodapé,
uma nota à margem ou um prefácio também servem para invocar
aqueles sutis significados suplementares divergentes e noções
tangenciais perdidas no processo de transcrição (GENTZLER,
2009, p. 185)
398
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Com efeito, uma nota de rodapé para cada mudança/escolha
que o tradutor fizesse cobriria a página com informações demais e,
provavelmente, cortaria a leitura do texto em diversos níveis, uma vez que
o receptor teria que interromper seu exercício para conferir as notas sobre
as decisões do tradutor.3 Como o tradutor interpreta e lê aquele texto com
seus olhos (imagine-se um tradutor de textos antigos: é uma tarefa árdua
desprender-se dos olhos contemporâneos para se inserir na cultura de um
povo que viveu há milênios e evitar cometer anacronismos indesejados),
algumas decisões, que estariam em um nível maior de mudança do
texto fonte, careceriam mais de notas explicativas do que aquelas mais
sutis. Estas notas, referentes às mudanças realizadas pelos tradutores,
reforçam a ideia de que “os textos originais estão constantemente sendo
reescritos no presente e cada leitura/tradução reconstrói o texto-fonte”
(GENTZLER, 2009, p. 188). Hönig e Kussmaul (1982), segundo SnellHornby (1995, p. 44), consideram o texto como “a parte verbalizada de
uma sociocultural”.4 Assim, a tradução seria dependente de sua função
como um texto que foi implantado na cultura-alvo, função pela qual
pode-se preservar a função do texto fonte em sua própria cultura ou
mudar sua função para adaptá-la às necessidades específicas da cultura
alvo, como foi o caso da série (Des)Encanto, citada acima.
Dessa forma, a ideia do significado transcendental, imutável
através dos tempos, se guia para finalidades que não sucedem bem.
Como as línguas são diferentes entre si – embora tenha características
semelhantes também –, nem sempre uma construção utilizada em
determinado idioma x vai ser traduzido da mesma forma na língua-alvo
y. Arrojo (2003c, p. 103) diz que nenhuma tradução consegue preservar
intactos os significados originais de um texto. Se voltarmos um pouco
no tempo, mais precisamente no século I AEC, encontramos na obra De
optimo genere oratorum, do orador romano Cícero (2011), uma ideia
oposta àquela do logocentrismo. Em sua obra, composta em 46 AEC,
Cícero cita a necessidade não de verter os termos gregos para o latim
Existem, porém, traduções comentadas de textos, com o intuito de descrever e explicar
as referências contidas nos escritos daquele texto. A questão de cobrir a visão do leitor
com informações demais se encaixaria melhor em uma leitura de um romance, por
exemplo.
4
Der verbalisierte Teil eine Soziokultur, traduzido pela autora como the verbalized
part of a socioculture.
3
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399
literalmente, mas, sim sopesá-los, isto é, “equilibrá-los”, para que os
falantes de latim entendessem as referências de acordo com sua cultura:
Traduzi, então, dos áticos dois discursos notáveis e contrários
entre si, um de Ésquino, outro de Demóstenes, autores dos mais
eloqüentes. E não os traduzi como um tradutor, mas como um
orador, usando os mesmos argumentos, tanto na sua forma quanto
nas suas figuras de linguagem, em termos adequados à nossa
cultura. Para tanto, não considerei necessário verter palavra por
palavra, mas mantive inteiro o gênero das palavras e sua força
expressiva. Não julguei que fosse apropriado contabilizar as
palavras para o leitor, mas como que sopesá-las.5 (CICERO.
O melhor dos gêneros de oradores, 5, 14)
Para Cícero, dessa forma, o significado de um texto não seria
imutável e sua tradução não deveria ser feita literalmente, indicando que
o conteúdo daquele texto fosse estável, mas ao contrário, ele adaptou o
texto para que os falantes de latim entendessem sobre o que se tratava
aquele texto, tomando como referência aspectos do seu mundo. Nida
(1975, apud ARROJO, 2003c, p. 102) declara que o fundamental no
processo de tradução é que os componentes significativos da língua de
partida (no caso de Cícero, o grego) alcancem a língua alvo (o latim),
de forma que seus receptores possam se beneficiar das informações. O
tradutor, portanto, precisa aprender a ler o texto de partida e, dessa forma,
“aprender a produzir significados, a partir de um determinado texto, que
sejam ‘aceitáveis’ para a comunidade cultural da qual participa o leitor”
(ARROJO, 2007, p. 76).
2.1. sentido literal x sentido metafórico
Arrojo e Rajagopalan (2003, p. 47) comentam que as teorias que
orientam o estudo da linguagem se fundamentam sobre o pressuposto
5
CICERO. De optimo genere oratorum, tradução de Brunno Vinicius Gonçalvez Vieira
e Pedro Colombaroli Zoppi: [14] Conuerti enim ex Atticis duorum eloquentissimorum
nobilissimas orationes inter seque contrarias, Aeschini et Demostheni; nec conuerti
ut interpres, sed ut orator, sententiis isdem et earum formis tamquam figuris, uerbis ad
nostram consuetudinem aptis. In quibus non uerbum pro uerbo necesse habui reddere,
sed genus omne uerborum uimque seruaui. Non enim ea me adnumerare lectori putaui
oportere, sed tamquam appendere.
400
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de que há a crença na oposição entre um sentido literal e um sentido
metafórico, figurado. Aquele é associado à estabilidade dos significados,
inerente à palavra ou ao enunciado e que, supostamente, preservaria
a linguagem de quaisquer interferências causadas por contexto ou
interpretações; este é caracterizado como um “desvio”, uma “derivação” e
até mesmo como um “parasita” em relação à metáphrasis, permitindo-se
a criatividade, a invenção, a ruptura de normas e, ainda, a interferência
dos contextos em que os leitores/interpretantes estão inseridos.
Snell-Hornby (1995, p. 50) salienta que o principal foco de seu
estudo é remover esta rígida divisão entre uma linguagem literária e outra
linguagem mais comum (aplicando-se também à tradução literária e a
“comum”). A autora nos informa (p. 49) que Coseriu (1970), ao pensar
ser inadequada a dicotomia saussuriana langue x parole, adicionou a ela
o conceito de norma. Entretanto, recentemente, linguistas viram esta
norma como uma linha de demarcação rígida e prescritiva, na qual as
metáforas teriam sido designadas como uma linguagem desviante, pois
não aderem às regras de restrições que a língua seleciona. Snell Horby
se opõe a essa ideia, dizendo que
A linguagem literária está relacionada com a exploração da
capacidade total de um sistema linguístico [...] e envolve – não um
mero desvio de uma norma estática e prescritiva –, mas a extensão
criativa de uma norma linguística, no sentido flexível de um
potencial governado por regras (SNELL-HORBY, 1995, p. 51).6
Sendo a linguagem literária, metafórica, por extensão, a
exploração da capacidade total de um sistema linguístico, as decisões
de um tradutor no processo tradutório de um texto deste gênero não são
simples, uma vez que as decisões tomadas não podem infringir as regras
de aceitabilidade da língua alvo e, ainda assim, devem trazer consigo
significados coerentes, para que seu público possa compreender de forma
que não se percam sentidos do texto durante a leitura. Existem dois
conceitos, que envolvem o texto e que podem ser de grande auxílio aos
tradutores quando se trata de linguagem literária. São eles a dimensão
6
Literary language is concerned with the exploitation of the entire capacity of a language
system […] and involves – not merely deviance from a static and prescriptive norm –
but the creative extension of the language norm, in the flexible sense of rule-governed
potential. Tradução nossa.
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401
e a perspectiva. Aquela foca em aspectos internos da linguagem, como
orientações em itens lexicais, artifícios estilísticos ou estruturas sintáticas
– se estendendo aos níveis de mudança de foco, como em metáforas e
jogos de palavra; esta foca na relação do texto com os fatores externos
socioculturais, isto é, se relaciona com o ponto de vista do falante,
narrador ou leitor – no que diz respeito à cultura, atitudes, tempo e espaço
(SNELL-HORNBY, 1995, p. 51).
Para exemplificar tais conceitos, Snell-Hornby compara o
texto, em termos de dimensão e perspectiva, a um filme ou fotografias,
exatamente como fez Horácio em sua Ars Poetica, também conhecida
como Epístola aos Pisões, comparando a poesia à pintura:
Como a pintura é a poesia: coisas há que de
perto mais te agradam e outras, se a distância
estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e
aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante
dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela,
dez vezes vista, sempre agradará
(HORÁCIO. Ars poetica, p. 361-365)7
Assim como a comparação de Snell-Hornby, Horácio diz que de
acordo com a dimensão e perspectiva, algumas coisas podem te agradar
mais se estão perto ou longe. A autora (1995, p. 52) diz que os itens de
um filme ou de uma fotografia ganham proeminência de acordo com o
foco dado sobre eles, bem como seu relacionamento com aquilo que está
ao seu redor. Assim também é a tradução, na qual o tradutor coloca no
seu texto seu ponto de vista; gira a lente, proporcionando o foco; nos
absorve de várias dimensões diferentes; nos apresenta seu tempo, sua
história – deixando para trás a ideia de um sentido único e imutável.
Afinal se setenta e duas pessoas forem colocadas em cabines diferentes
e forem pedidas para traduzir A Sociedade do Anel, de J. R. R Tolkien,
é bem provável que tenhamos setenta e duas traduções completamente
diferentes. E nas palavras de Arrojo e Rajagopalan (2003, p. 54), “a
7
Vt pictura poesis; erit quae, si propius stes,
te capiat magus, et quaedam, si longius abstes;
haec amat obscurum, uolet haec sub luce uideri,
iudicis argutum quae non formidat acúmen;
haec placuit semel, haec deciens repetita placebit. Trad. R. M. Rosado Fernandes.
402
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literalidade (a neutralidade, a razão, o puramente objetivo) é a grande
metáfora, a metáfora primordial, criada pelo homem que precisa se
esquecer de que a inventou para não se lembrar de sua finitude e suas
limitações humanas”.
3. análise do corpus
Como material ilustrativo das questões teóricas sobre tradução
apresentadas em linhas gerais previamente, analisaremos um trecho
do primeiro livro da saga de Harry Potter, escrito por J. K. Rowling
e lançado no ano de 1997. A obra conta a história de um menino que
vivia em péssimas condições na casa dos seus tios. Seus pais foram
assassinados por um bruxo das trevas, cujo nome ninguém gostava de
pronunciar. Quando ele completa 11 anos de idade, ele recebe uma carta
da Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts, convidando-o a estudar lá, uma
vez que ele era, hereditariamente, um bruxo. Ao chegar na escola, os
alunos passavam por um processo de “distribuição”, em que um chapéu,
ao ser posicionado em suas cabeças, decidia para qual das quatro casas
da escola estes alunos seriam enviados. Após Harry Potter e seus dois
melhores amigos, Hermione Granger e Ronald Weasley serem colocados
na mesma casa, o primeiro ano dos alunos se torna repleto de aventura e
magia, na caça da pedra filosofal. Daí o título do primeiro livro da saga:
Harry Potter e a Pedra Filosofal.
Para nossa análise, utilizaremos um corpus paralelo multilíngue,
consistindo de um texto fonte (originalmente escrito em inglês: Harry
Potter and the Philosopher’s Stone, 2017) e duas versões traduzidas
(uma em português, Harry Potter e a Pedra Filosofal, 2015; e uma em
latim, Harrius Potter et Philosophi Lapis, 2013),8 fazendo contrastes das
traduções, indicando a presença do tradutor em seus textos. A versão em
Embora a pedra filosofal, ligada ao mito que circunda a vida de Nicolau Flamel, cuja
finalidade permitiria a transmutação de metais de menor valor em ouro ou a criação do
Elixir da Vida, dentre outros, tenha sido conhecida em latim comolapis philosophorum
(a pedra dos filosósofos), Needham em sua versão escolheu lapis philosophi (a pedra
do filósofo) para acompanhar o nome do personagem principal no título da obra. Tal
fato nos fez refletir se a escolha feita por ele foi, simplesmente, para acompanhar
a nomenclatura pela qual a pedra ficou conhecida em inglês (philosopher’s stone),
mantendo assim o singular ou se a decisão tem relação com o fato de a pedra pertencer
a um único personagem na obra de Rowling – o alquimista Nicolau Flamel.
8
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403
português brasileiro foi traduzida por Lia Wyler (1834-2018), conhecida
principalmente pelas traduções da saga de Harry Potter (que conta
com sete livros e alguns spin-off). A versão latina da obra foi feita por
Peter Needham,9 professor de línguas clássicas por mais de 30 anos na
Universidade de Eton e traduziu outras obras infantis para o latim.
Ao invés de analisar um capítulo inteiro das versões da obra,
resolvemos recortar nosso corpus, composto somente de um trecho
do capítulo sete do primeiro livro, chamado The Sorting Hat, O
Chapéu Seletor e Petasus Distribuens, em inglês, português e latim,
respectivamente. O trecho escolhido foi justamente a canção que o
Chapéu Seletor (utilizando dos termos de Wyler) entoa antes de distribuir
os alunos entre as casas da escola de Hogwarts. Separamos em colunas os
textos, facilitando, na medida do possível, a leitura e comparação entre as
versões. A versão latina contará com um guia justalinear à parte, com a
contribuição de um glossário, para auxiliar aqueles que não leem o idioma
na comparação com os demais. Este guia trará a tradução dos vocábulos
latinos e a ordenação da frase latina como seria na leitura do português
– desta forma, o leitor saberá qual a tradução de determinado termo e a
ordem em que ele aparece, para uma leitura fluida. Tomamos esta decisão,
uma vez que a língua latina é casual, ou seja, a ordem na qual as palavras
aparecem na frase não é fixa – são as terminações que indicam as suas
funções sintáticas. Portanto, para um melhor aproveitamento da leitura, o
léxico contará com a tradução para o português dos vocábulos como eles
aparecem no texto latino, por exemplo, amat, em latim significaria “ele/a
ama”. Dessa forma, no vocabulário, o verbo amat teria como tradução
“ele/a ama” e não o verbo no infinitivo, como seria de costume. O guia
se encontra no Anexo B, seguido do vocabulário, no Anexo C.
Dessa forma, nossa análise consiste, basicamente, em explicitar
excertos das traduções apresentadas abaixo, em confronto com o texto
fonte, nos quais há certa diferença em comparação com o original.
Desse modo, podemos corroborar a ideia segundo a qual o ato tradutório
9
Como Needham não é um falante nativo de latim, entende-se que o que ele fez foi
uma versão do texto inglês para o latim. Entretanto, etimologicamente, “tradução” dá
a ideia de algo conduzido através de outra coisa; assim, a mensagem contida na obra
de J.K. Rowling foi conduzida através da visão de Needham para o idioma latino.
Então preferimos nos reter ao verbo “traduzir” e seus derivados para nos referirmos
ao ato de Needham.
404
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pode ser compreendido como uma operação de desconstrução de um
sentido transcendental – já que se assim o fosse, ambas as traduções, de
Wyler e Needham, seriam estruturalmente iguais, ainda que em idiomas
diferentes. As análises comparativas serão feitas em grupos de quatro
versos, seguindo o texto fonte. Logo, verificaremos os quatro primeiros
versos, em seguida os próximos quatro e assim sucessivamente.
Já no primeiro verso, Needham acrescenta discipuli (alunos,
discípulos), não presente no texto fonte. Mais abaixo, Rowling escreve
I’ll eat myself if you can find/A smarter hat than me; Wyler se aproxima
bastante dos escritos de Rowling, acrescentando um tom jocoso com a
expressão “mais inteligente do que o papai aqui”; Needham faz círculos,
pretendendo alcançar o mesmo sentido, porém com versos diferentes:
nam petasus nusquam toto si quaeritis orbe/me melior vobis inveniendus
erit (pois se procurarem no mundo todo, em lugar algum um chapéu mais
esperto do que eu será encontrado por vocês). Ele mantém o sentido da
frase original, mas sem se prender fielmente à disposição do texto fonte.
Os sintagmas bowlers Black e top hats sleek and tall nos versos
seguintes de Rowling são traduzidos por Wyler da seguinte maneira:
“chapéus-coco bem pretos” e “cartolas altas de cetim brilhoso”. Esse é
um tipo de vocabulário que o latim usado na Roma Antiga não conhecia.
Needham, por sua vez, resolveu essa questão com o simples substantivo
lautitias (luxuosidade, luxo, fausto). Em seguida, o tradutor optou por
tentar elencar os tipos de chapéus tratados no texto fonte de acordo
com seus formatos rotunda (redondo) e cylindratos (cilíndricos). Logo
abaixo, Rowling faz um trocadilho no verso And I can cap them all e
Wyler utiliza mais uma vez uma expressão comum em português na sua
tradução: “E dou de dez a zero em qualquer outro chapéu”.
Observando os próximos versos, podemos conferir a perspectiva
tradutória de Wyler e seu papel como autora do texto que está traduzindo:
ela optou por traduzir os nomes das casas que compunham a Escola
de Hogwarts, a saber Gryffindor, Ravenclaw, Hufflepuff e Slytherin.
A tradutora preferiu adaptar os nomes para Grifinória, Corvinal, LufaLufa e Sonserina, respectivamente. No que diz respeito a Needham, ele
manteve os nomes como no texto fonte, em inglês. Constata-se aqui a
dificuldade de verter este texto, repleto de termos que não existem em
latim – o que aponta mais uma vez para a ideia da desconstrução de um
significado transcendental, em que o tradutor deve se apoiar em suas
decisões para manter a o texto na língua alvo fluido, sem brechas por
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405
conta de palavras que não puderam ser recuperadas, com a ajuda de
um dicionário de latim. Além disso, nota-se que Needham, no trecho
analisado, não realizou neologismos latinos que poderiam configurar um
neolatim ou latim extemporâneo, preferindo manter coerência com os
modos de expressão dessa língua em sua variedade clássica, ainda que,
do ponto de vista lexical, precise inserir palavras estrangeiras, medida,
entretanto, seguida por tradutores de outras línguas. Com efeito, enquanto
muitas traduções, para as mais variadas línguas, deixaram tais nomes
como no original, Lia nos apresentou sua leitura do texto e adaptou os
nomes – o que pode ter gerado certo desconforto para alguns fãs da saga,
mas foi uma atitude tomada com base no seu ponto de vista – talvez para
facilitar a leitura e referenciação dentro da própria obra.
Sobre a Lufa-Lufa, Hufflepuff, Needham jogou com as palavras
e dividiu o nome da casa, em inglês em duas partes, em gentibus a iustis
et fidis Huffle tenetur Puff (A Hufflepuff é representada por pessoas justas
e leais). A ideia por trás desta divisão da palavra é incerta, talvez algum
trocadilho que falantes nativos de inglês possam entender melhor – o que
ilustraria a noção de que o contexto sociocultural do tradutor fosse um
fator a se levar em consideração no momento da tradução. No final da
descrição desta casa, Needham acrescenta ao seu texto a seguinte frase:
erit vestra secunda domus (será esta sua segunda casa), trecho que falta
no texto fonte.
A próxima casa a ser descrita é a Corvinal, nos termos de Wyler.
Needham já inicia a descrição desta casa adicionando tertia restat
adhuc Ravenclaw nomine dicta (ainda resta a terceira [casa], chamada
Ravenclaw), enquanto no original, Rowling apenas diz Or yet in wise old
Ravenclaw [...]. Dois versos abaixo, temos, na versão de Needham, sunt
lepus hic hominum cultorum artesque Minervae. Este segmento do texto
parece um tanto quanto obscuro – adentrando algum sentido metafórico do
qual o tradutor estava ciente durante seu processo de tradução. Iniciemos
com o substantivo lepus, -i, que significa em português “lebre” e seria
hare, em inglês. Nem no texto fonte, nem no texto alvo α encontramos
quaisquer referentes a este termo. Uma tradução em português, tentando
manter o conteúdo da versão em latim seria “existem aqui a lebre dos
homens cultos e as artes de Minerva”. Metaforicamente, é compreensível
a inclusão da deusa Minerva, uma vez que ela era a deusa romana da
sabedoria (contraparte da Atena grega) e a Corvinal é a casa representada
pela sapiência e agudez da mente. Entretanto, fazendo uma busca no
406
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Oxford Latin Dictionary (1968), percebemos a presença do vocábulo
lepos, -oris que, embora possa parecer semelhante ao termo utilizado
na versão de Needham, seu significado é totalmente diferente: dentre
as suas acepções, encontram-se charm or cleverness of language, wit,
humour. No texto fonte, Rowling aponta Where those of wit and learning
[…], levando-nos a inferir que o uso de lepus, -i tenha sido um erro de
impressão. Assim, o trecho sunt lepos hic hominum cultorum artesque
Minervae poderia ser melhor entendido como “há aqui, a sagacidade dos
homens cultos e as artes de Minerva”
No que diz respeito a descrição de Slytherin, enquanto o texto
fonte traz those cunning folk use any means/to achieve their ends, Wyler
foi um pouco além e escreveu “homens de astúcia que usam quaisquer
meios para atingir os fins que antes colimaram”, mudando um pouco a
estrutura, mas mantendo o sentido. Já Needham acrescenta improbus
es? Fallax? Haec erit apta domus. O adjetivo improbus, a, um pode
significar “ávido”, “insaciável”, “desleal”, entre outros; nos levando a
uma tradução aproximativa como “és insaciável/ávido/desleal? Falaz?
Esta será a casa apropriada”, embora no texto fonte a formulação é
bastante diversa; a apresentação em forma de questionamentos também
representa uma importante inovação.
Os quatro últimos versos da canção do Chapéu Seletor/Sorting
Hat/Petasus Distribuens trazem algumas diferenças entre as versões: no
texto de Rowling, ela escreve You’re in safe hands (though I have none)/
For I’m a Thiking Cap!; na tradução feita por Wyler, ela modifica um
pouco o texto fonte, colocando “(Mesmo que os chapéus não tenham pés
nem mãos)/Porque sou único, sou um Chapéu Pensador!”: ela acrescenta
os pés em sua tradução e demonstra a exclusividade do chapéu com o
adjetivo “único”; tais versos na versão latina, de Needham, são colocados
como discurso direto, a saber “incolumes eritis petasi tutamine” dicunt,
“cum careat manibus, cogitat ille tamen”. O tradutor mantém o sentido
do texto, modificando, porém, a estrutura – visto que no texto fonte, a
fala é em primeira pessoa, isto é, é o Chapéu Seletor quem está falando
sobre ele mesmo, enquanto Needham transforma um discurso reportado
por uma terceira pessoa, demonstrado pelo dicunt (eles dizem) e as aspas.
Com isso, uma tradução aproximada das palavras de Needham ficaria
“‘vocês estarão a salvo pela proteção do chapéu’ eles dizem, ‘ainda que
não tenha mãos, entretanto ele [o chapéu] pensa’”.
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Embora nossa análise tenha se restringido a apenas um excerto
das obras, percebe-se, ainda assim, que as traduções não estão livres de
conter as influências dos tradutores, como dissemos acima e, retomando
nossa epígrafe
Toda tradução por mais simples e breve que seja, revela ser
produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não
meramente, uma compreensão “neutra” e desinteressada ou
um resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos
significados supostamente estáveis de um texto de partida.
(ARROJO, 2003a, p. 68)
Este exemplo desmistifica a noção de um significado fixo, através
dos tempos: a língua é um meio de comunicação e é adaptada pelos
falantes de acordo com suas necessidades. Dessa forma, o significado
contido nas palavras e nas expressões construídas com estas nem sempre
se mantém estável. Apenas a ideia da polissemia das palavras (quando
se busca um vocábulo no dicionário, por exemplo, encontra-se diversos
significados para ele, dependendo do campo semântico que se deseja
utilizar) já desconstrói a noção da estabilidade/literalidade dos textos.
Outro detalhe que pode ser incômodo à primeira vista, na versão de
Wyler, é a tradução do nome James para Tiago, como no nome do pai
do personagem principal da série. Entretanto, etimologicamente, Tiago
(e seu derivado Thiago) proveio do espanhol Sant’Iago, por aglutinação
de Santo e Iago, nome que, por sua vez, tem sua origem no hebraico
Ya’akov, e gerou em português também Jacó (versão brasileira de James).
Logo, o contexto em que o tradutor se encontra e suas escolhas tradutórias
fogem à ideia de que a tradução deva ser logocêntrica, fundamentada
em um sentido apenas.
4. Considerações finais
Com a passagem da tradição oral para a escrita, na Antiguidade,
o foco e a confiança no texto escrito aumentaram gradativamente.
Assim, uma das teorias da tradução, a qual Jacques Derrida chamou de
logocentrismo, via o significado de um texto como algo transcendental,
ou seja, esse significado permaneceria intacto, imutável, através dos
tempos – sem qualquer interferência do leitor/receptor e seu contexto
de vida. Entretanto, tentamos, através da análise e comparação do texto
408
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de partida Harry Potter and the Philosopher’s Stone com dois textos de
chegada, a tradução para o português da obra, Harry Potter e a Pedra
Filosofal, e a versão latina da obra, Harrius Potter et Philosophi Lapis,
mostrar que as intenções do tradutor, seu contexto sociocultural e sua
perspectiva, para tomar decisões no ato tradutório, podem interferir no
logocentrismo que se acreditava antes.
Toda tradução contém traços de seu tradutor, seja na escolha
lexical, na mudança de estruturas, na inclusão de informações que
poderiam facilitar a leitura do leitor ou mesmo na tradução de nomes
que, à primeira vista, seriam apenas criações na língua de partida e
permaneceriam assim. A tradução nada mais é do que um produto de
uma perspectiva em que o tradutor compreende e interpreta os sentidos
que, supostamente, são estáticos do texto fonte, trazendo para a cultura
alvo sua leitura – traduzida utilizando sua perspectiva – do texto para
que aqueles que não falam/leem determinado idioma possam aproveitar
ao máximo a oportunidade de desfrutar das obras.
Declaração de autoria
O presente artigo é resultado de uma disciplina cursada no Programa
de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Juiz de
Fora e escrito pelo aluno bolsista CAPES de Mestrado Filipe Cianconi
Rodrigues, sob supervisão e orientação de Fábio da Silva Fortes, que fez
a revisão final e apresentou contribuições na discussão teórica.
referências
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411
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020
aNEXo a10 11 12
Quadro de comparação do corpus trilingue.
Texto fonte por J.K. Rowling:
The Sorting Hat10
“Oh, you may not think I’m
pretty,
Texto alvo α por Lia Wyler:
O Chapéu Seletor11
Texto alvo β por Peter Needham:
Petasus Distribuens12
Ah, vocês podem me achar pouco discipuli, pulchrum si me non
atraente,
esse putatis,
But don’t judge on what you see,
Mas não me julguem só pela
aparência
I’ll eat myself if you can find
Engulo a mim mesmo se puderem nam petasus nusquam toto si
encontrar
quaeritis orbe
A smarter hat than me.
Um chapéu mais inteligente do
que o papai aqui.
extema specie plus valet
ingenium.
me melior vobis inveniendus erit.
You can keep your bowlers black, Podem guardar seus chapéuscoco bem pretos,
lautitias odi: nolo tegmenta
rotunda,
Your top hats sleek and tall,
neve cylindratos tradite mi
petasos.
Suas cartolas altas de cetim
brilhoso
For I’m the Hogwarts Sorting Hat Porque sou o Chapéu Seletor de
Hogwarts
Distribuens Petasus vobis
Hogvartius adsum
And I can cap them all.
E dou de dez a zero em qualquer
outro chapéu.
cui petasos alios exsuperare
datur.
There’s nothing hidden in your
head
Não há nada escondido em sua
cabeça
Distribuens Petasus scrutatur
pectora vestra,
The Sorting Hat can’t see,
Que o Chapéu Seletor não
consiga ver,
quodque videre nequit nil latet
in capite.
So try me on and I will tell you
Por isso é só me porem na cabeça in caput impositus vobis
que vou dizer
ostendere possum
Where you ought to be.
Em que casa de Hogwarts
deverão ficar.
quae sit, vaticanans, optima
cuique domus.
You might belong in Gryffindor,
Quem sabe sua morada é a
Grifinória,
vosforsan iuvenes Gryffindor
habebit alumnos;
Where dwell the brave at heart,
Casa onde habitam os corações
indômitos.
hanc semper fortes incoluere
domum.
Their daring, nerve, and chivalry
Ousadia e sangue-frio e nobreza
gens hominum generosa illa est
fortisque feroxque;
Set Gryffindors apart;
Destacam os alunos da Grifinória illi nulla potest aequiperare
dos demais;
domus.
10
ROWLING, 2017, p. 125-126.
ROWLING, 2015, p. 89.
12
ROWLING, 2003, p. 95-96
11
412
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You might belong in Hufflepuff,
Quem sabe é na Lufa-Lufa que
você vai morar,
gentibus a iustis et fidis Huffle
tenetur
Where they are just and loyal,
Onde seus moradores são justos
e leais
Puff. adversa tarnen scit domus
illa pati.
Those patient Hufflepuffs are true Pacientes, sinceros, sem medo
da dor;
hic homines animisque piis
verique tenaces
And unafraid of toil;
Ou será a velha e sábia Corvinal,
invenietis. erit vestra secunda
domus.
Or yet in wise old Ravenclaw,
A casa dos que têm a mente
sempre alerta,
tertia restat adhuc Ravenclaw
nomine dicta;
If you’ve a ready mind,
Onde os homens de grande
espírito e saber
est vetus et sapiens ingeniisque
favet.
Where those of wit and learning,
Sempre encontrarão
companheiros seus iguais;
sunt lepus hic hominum cultorum
artesque Minervae;
Will always find their kind;
Ou quem sabe a Sonserina será a
sua casa
discipulos similes hic habitare
decet.
Or perhaps in Slytherin
E ali fará seus verdadeiros
amigos,
forsitan in
Slytherinveriinvenientur amici;
You’ll make your real friends,
Homens de astúcia que usam
quaisquer meios
improbus es? fallax? haec erit
apta domus.
Those cunning folk use any
means
Para atingir os fins que antes
colimaram.
ut rata vota habeant scelus omne
patrandum est
To achieve their ends.
Vamos, me experimentem! Não
devem temer!
gentibus his; quaerunt nil nisi
lucra sua.
So put me on! Don’t be afraid!
Nem se atrapalhar! Estarão em
boas mãos!
verticibus iubeo me vos
imponere nec non
And don’t get in a flap!
(Mesmo que os chapéus não
tenham pés nem mãos)
pectoribus firmis rem tolerare
velim!
You’re in safe hands (though I
have none)
Porque sou único, sou um
Chapéu Pensador!
‘incolumeseritispetasitutamine,’
dicunt,
For I’m a Thinking Cap!”
‘cum careat manibus, cogitat ille
tamen.’
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413
aNEXo B12
Guia tradutório justlinear para o texto alvo β,
por Peter Needham: Petasus Distribuens
discipuli, si putatis me non esse pulchrum13
ingenium valet plus externa specie.
Nam si quaeritis petasus toto orbe nusquam
melior me inveniendus erit vobis.
lautitias odi: nolo tegmenta rotunda,
neve tradite mi cylindratos petasos.
Distribuens Petasus Hogvartius adsum vobis
cui datur petasos alios exsuperare.
Distribuens Petasus scrutatur pectora vestra,
quodque nequit videre nil latet in capite.
impositus in caput vobis ostendere possum
quae sit, vaticanans, optima cuique domus.
forsan Gryffindor habebit vos, iuvenes alumnos;
fortes semper incoluere hanc domum.
illa gens hominum generosa est fortisque feroxque;
nulla domus potest aequiperare illi.
HufflePuff tenetur a gentibus iustis et fidis
tamen scit illa domus adversa pati.
hic invenietis homines tenaces animisque piis verique
erit vestra secunda domus.
adhuc tertia restat nomine dicta Ravenclaw;
est vetus et sapiens et favet ingeniis.
sunt hic lepos14 hominum cultorum et artes Minervae;
O primeiro verso traz uma construção que as gramáticas latinas chamam de oração
infinitiva. Os verbos latinos que indicavam pensamento/declaração eram formados
através deste tipo de oração, em que o verbo complemento do principal (putatis) vem
no infinitivo (esse, ser) e o sujeito do verbo no infinitivo aparece no caso acusativo (me
pulchrum, eu bonito/belo/formoso). Em português temos este tipo de construção, ainda
que não muito utilizado pelos falantes – como, por exemplo, “você acredita existir um
Deus?” em contraste com “você acredita que existe um Deus?”.
14
Preferimos utilizar aqui o termo lepos,oris, que parece se encaixar melhor no contexto,
como tratado acima.
13
414
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decet discipulos similes hic habitare.
forsitan in Slytherin invenientur veri amici;
improbus es? fallax? haec erit apta domus.
ut habeant rata vota patrandum est scelus omne
gentibus his; quaerunt nil nisi lucra sua.
non iubeo vos me imponere verticibus nec
velim tolerare rem pectoribus firmis!
‘eritis incolumes tutamine petasi,’ dicunt,
‘cum careat manibus, tamen cogitat ille.’
415
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aPÊNDICE C
Vocabulário
Discipuli: alunos, discentes, discípulos
Si: se
Putatis: vocês pensam, acham, julgam
Me: eu; me (oblíquo)
Esse: ser (infinitivo)
Ingenium: talento, inteligência, engenho
Valet: prevalece, é eficaz
Plus: mais
Externa: externa; do lado de fora; estranha;
estrangeira
Specie: espécie; esplendor; beleza; aparência
Nam: pois, porque
Quaeritis: vocês buscam, procuram;
Petasus: chapéu
Toto: em todo, no todo
Orbe: orbe; círculo; mundo, terra
Nusquam: em lugar algum; em nenhuma ocasião
Melior: melhor
Invenienduserit: será encontrado; será achado
Vobis: por vocês; para vocês
Lautitias: luxo, luxuosidade; elegância, suntuosidade
Nolo: não quero, não desejo,
Tegmenta: proteção; qualquer coisa que se coloque
na cabeça, chapéus
Rotunda: redondo
Neve: nem
Tradite (imperativo): entreguem; desistam; cedam
Mi: para mim, a mim
Distribuens: que distribui; destribuidor
Adsum: estou presente; estou aqui
Cui: o qual
Datur: é dado; é dito; é falado
Alios: outros, os demais
Exsuperare: exceder; ser superior; valer mais
Scrutatur: explora, busca, procura
Pectora: peito; tórax; coração, sentimentos; alma,
mente
Ostendere: revelar, mostrar, apontar
Quaesit: qual seja
Vaticans: eu anuncio, eu proclamo
Cuique: para quem
Domusoptima: a melhor casa
Forsan: talvez, por acaso
Habebit: terá
Vos: vocês
Iuvenesalumnos: jovens alunos
Fortes: os fortes, vigorosos, firmes, corajosos,
bravos
Semper: sempre
Incoluere: habitar, morar, permanecer
Hancdomum: nesta casa
Illagensgenerosa: esta casa nobre
Hominum: de homens
Est: é (3ª pessoa singular de “ser”)
Ferox: feroz, selvagem
Nulladomus: nenhuma casa
Potest: pode, é capaz de
Aequiparare: igualar, alcançar, ser igual a
Illi: a eles, em relação a eles
Tenetur: é ocupada, é representada
A gentibus: por pessoas
Iustis: justas, corretas; louváveis
Fidis: fiéis, leais
Tamen: entretanto, contudo, todavia
Scit: sabe-se, conhece-se
Adversa: contrária a, adversa
Pati: ao sofrer; à dor
Hic: aqui, para cá, para aqui
Invenietis: encontrarás, acharás
Homines tenaces: homens
tenazes/resistes/obstinados
Animisquepiisverique: de almas pias/bondosas
e verdadeiros [homens]
Erit: será, estará
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Vestra: de vocês, vossos
Quodque: e que
Nequit: não pode; é incapaz
Videre: ver (infinitivo)
Nil: nada
Latet: oculto, escondido
Incapite: na cabeça, na mente
Impositus: colocado, posto;
artesque: e as artes
Minervae: de Minerva;
Decet: Convém, deve, é conveniente
Similes: semelhantes, iguais
Habitare: habitar, morar, residir
Forsitan: Talvez
Invenientur: serão encontrados, serão achados
Possum: eu posso
416
Secunda: segunda
Adhuc: ainda
Restat: resta, sobra
Tertia: terceira
Nomina dicta: dita de nome, com o nome
Vetus: velho, longevo, vetusto
Sapiens: que sabe, sábio, inteligente
Favet: favorece, interessa a,
Ingeniis: aos engenhosos, sábios, talentosos
Sunt: estão; são
Lepos: elegância; sagacidade;
Hominum cultorum: de homens cultos/sábios
Veriamici: os verdadeiros amigos
Improbus: mau, perverso; ávido, insaciável
Es: és? (2ª pessoa singular de “ser”)
DossIÊ
DIsCurso, MEMórIa E MIgraçõEs
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020
apresentação
Dossiê “Discurso, memória e migrações”
Ida Lucia Machado
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte. Minas Gerais / Brasil
idaluz@hotmail.fr
https://orcid.org/0000-0003-1550-9523
Glaucia Muniz Proença Lara
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte. Minas Gerais / Brasil
gmplara@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-3813-1850
Béatrice Turpin
Université de Cergy-Pontoise, Cergy-Pontoise / França
beatrice.turpin@free.fr
https://orcid.org/0000-0003-3659-6603
Para os integrantes do Núcleo de Análise do Discurso – NAD
da FALE/UFMG, o termo “discurso” é ligado às interpretações ou,
mais precisamente, às análises feitas por diferentes pesquisadores,
dentro da disciplina que se convencionou chamar Análise do Discurso
(abreviadamente, AD). Mas, desde a fundação do NAD, cujas atividades
remontam há mais de 25 anos, sempre levamos em conta que não há
uma única metodologia de AD, mas sim várias. Ainda que o NAD conte
com a presença e a influência marcante de Patrick Charaudeau e de sua
teoria Semiolinguística em seus primeiros 10 anos de funcionamento,
consideramos, como ele, que todas as teorias que trabalham o discurso
no âmbito da Linguística são boas e devem ser respeitadas. Não existe
no NAD uma vertente que despreze esta ou aquela teoria. Isso tem
contribuído bastante para o crescimento do Núcleo e, sobretudo, para a
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.419-432
420
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020
efetivação de um dos principais objetivos que propusemos em nossos
dois projetos aprovados pelo Programa CAPES/COFECUB (1994/1998;
2000/2004): transformar a Faculdade de Letras da UFMG em um polo
de importância para o ensino e difusão da AD, no país e fora dele. Esse
é um dos motivos de orgulho dos membros do NAD: a AD (ou, mais
especificamente, as ADs) que praticamos e divulgamos por meio do
referido Núcleo e de nossa pós-graduação em Estudos Linguísticos
tornou-se bastante forte não só em Minas Gerais, mas também em
vários outros estados do Brasil e é muito bem vista pelos nossos colegas
franceses, portugueses e latino-americanos.
Estamos conscientes de ter tomado uma posição um tanto quanto
ousada ao sugerir um dossiê para a Revista de Estudos da Linguagem da
FALE/UFMG que contemplasse três pontos nevrálgicos dos fenômenos
sociais nos dias de hoje: discursos, memórias e migrações. Os três pontos
geralmente imbricam-se, mas podem também dar origem a estudos que
privilegiem mais um ponto do que outro. Nossa ideia de base foi, então, a
de sugerir a nossos colegas, autores dos artigos que compõem este dossiê,
que, ao submeter seus trabalhos à revista, tomassem os três elementos
citados em sua conjugação, continuidade ou descontinuidade.
Talvez o leitor sinta falta da menção explícita de uma dada teoria
da AD em algumas das contribuições que apresentaremos mais adiante.
No entanto, pedimos-lhe para considerar que o trabalho teórico de leitura/
interpretação – próprio da AD em seu todo – está inserido em cada um
dos artigos, mesmo que nas entrelinhas.
Antes de passar à apresentação desses trabalhos, gostaríamos
de aqui deixar nossas considerações sobre os pontos que destacamos
para constituir o dossiê em pauta. Comecemos pelo “discurso” ou, mais
especificamente, pela “Análise do Discurso”. Trata-se de uma teoria
interdisciplinar e, por isso mesmo, suscetível de convocar diferentes
conceitos vindos de outras disciplinas. Ao considerar que os estudos e
interpretações analítico-discursivas não podem ser monolíticos, fechados
em uma única disciplina, postulamos que eles são atravessados ou se
deixam atravessar, de modo consciente ou não – para o sujeito-enunciador
ou para aquele que toma a palavra em determinado discurso – por uma
multidão de signos e conceitos provenientes de outros lugares, para
além daqueles postulados pelas Ciências da Linguagem. Os textos que
interpretamos, enquanto analistas de discursos, carregam, pois, um
dialogismo de base que faz com que busquemos, muitas vezes, opiniões
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020
421
partilhadas por outras disciplinas e entre elas, aquelas vindas das Ciências
Humanas, como a História, a Filosofia, a Sociologia e a Antropologia,
entre outras.
Dentro desse modo de conceber a AD, não podemos deixar
de citar aqui parte de um dos escritos de Charaudeau, que enfatiza,
justamente, essa “reunião e troca de saberes” que julgamos essenciais
em todas as análises que tomam o discurso como seu objeto de estudo.
Assim, ao discorrer sobre a interdisciplinaridade, o teórico chega à
seguinte conclusão:
Mas penso, aqui, mais na necessidade de usar uma abordagem
dialógica (intertextual ou interdiscursiva) para interpretar
os resultados de certas análises de discurso. Por exemplo,
quando analisamos um corpus composto de textos políticos, não
podemos fazê-lo sem recorrer aos escritos da filosofia política
[...]. Outro exemplo: quando analisamos a maneira pela qual
as mídias transmitem os conflitos armados ou as controvérsias
sociais, [sentimos] a necessidade de buscar em outros escritos
os imaginários que circulam, como no caso de guerras, da
bioética, da laicidade etc. O movimento, aqui, é o de observação,
de comparação [...], cuja pertinência depende das escolhas do
sujeito analisante, em um trabalho interpretativo e de natureza
subjetiva. Mas tal trabalho é a condição para a produção de uma
interpretação que consiste, segundo o princípio hermenêutico,
em destacar o que está escondido, o que é invisível à observação
empírica. Essa é a função crítica de qualquer análise das ciências
humanas e sociais, função não restrita a uma única teoria em
particular. (CHARAUDEAU, 2013, p. 39-40)
O pesquisador que se interessa por discursos sabe que o
importante na interdisciplinaridade reside no fato de se observar como
um conceito, uma noção que parece ter nascido na AD é, na verdade, algo
já utilizado em outras disciplinas e procurar entender/identificar/explicar
esse jogo de empréstimos e reutilizações, pois, “qualquer uso de noções
ou hipóteses vindos de uma outra disciplina sem questionamentos pode
gerar críticas recíprocas” como o afirma Charaudeau (2013, p. 42). Em
suma: empréstimos/trocas sim; mas desde que sejam explicadas as suas
origens e sua imbricação com a AD.
Em outras palavras, ao sugerir o termo “discurso” como um dos
elementos do dossiê em pauta, buscamos enfatizar como ele recobre,
422
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020
nos dias atuais, uma vasta gama de teorias diferentes, cada uma delas, é
claro, com suas especificidades. Assim, o que tínhamos em mente seria
oferecer ao leitor um panorama diversificado do modo pelo qual alguns
autores (no Brasil e em outros países, como França e Colômbia) observam
e analisam diferentes discursos, cada um deles recorrendo a diferentes
categorias e metodologias mas, tendo como ponto comum o debruçar-se
sobre o discurso como objeto de averiguação e estudo.
Mas, afinal, o que seria o “discurso”? Sem a pretensão de esgotar
a definição de um objeto tão complexo como esse, podemos apontar
algumas de suas características, de acordo com Maingueneau (2001, p.
169-172). Segundo ele, a) o discurso é uma organização situada para além
do frase, o que significa que ele mobiliza estruturas de uma outra ordem
que as da frase; b) o discurso é uma forma de ação sobre o outro e não
uma mera representação do mundo; c) o discurso é, fundamentalmente,
dialógico, ou seja, é uma “troca” entre parceiros, sejam eles virtuais ou
reais. Nesse sentido, toda enunciação é marcada por uma interatividade
constitutiva; d) o discurso é contextualizado, não sendo possível atribuirlhe um sentido fora do contexto em que é produzido e no qual intervém;
e) o discurso é assumido por um sujeito, um EU que se coloca como
fonte de referências pessoais, temporais e espaciais e, ao mesmo tempo,
assume atitudes em relação ao que diz e em relação a seu coenunciador
(questões ligadas à modalização), não sendo, porém, o senhor de sua fala,
que é regulada pelo dispositivo comunicativo de onde ela provém; f) o
discurso, como todo comportamento, é regido por normas; g) o discurso
só adquire sentido na sua relação com outro(s) discurso(s), isto é, ele
se inscreve no bojo do interdiscurso, não devendo ser tomado de forma
isolada, como um todo fechado em si mesmo.
Assim, os discursos produzidos em um dado grupo social são
o produto de atores histórico-sociais que se dirigem a outros atores
histórico-sociais. A AD volta-se, pois, para a problemática da alteridade:
o sujeito só fala e só se define quando se dirige a um outro. Nesse sentido,
podemos falar de um “contrato de comunicação” que rege as relações que
se instauram entre os parceiros da troca discursiva. Mas a comunicação
só se produzirá – é preciso destacar – se esses parceiros compartilharem
o mesmo sistema de valores, o que faz com que essa AD, tomada em
sentido amplo ou assumida no plural (ADs), busque identificar, nos
textos que examina, as forma de representação desse saber comum. A(s)
AD(s) situa(m)-se, pois, numa problemática do reconhecimento, ou seja,
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a de identificar as marcas enunciativas da superfície dos textos para, a
partir delas, retirar interpretações sobre os sistemas de significação (os
discursos) que são subjacentes a esses índices.
Vejamos agora o segundo elemento dos três que propusemos. A
“memória” implica tempo, temporalidade. Como explicar tal noção? Para
Ricœur (apud GRONDIN, 2016, p. 100), o tempo reenvia à narrativa
e esta reenvia ao tempo; há uma circularidade em torno desses dois
elementos, ou seja: “O tempo torna-se um tempo humano quando é
articulado de maneira narrativa, e a narrativa torna-se significativa na
medida em que ela desenha os traços de nossa aventura temporal” (ib.).
E esse recuo no tempo, que todo pesquisador toma ao escrever
um artigo, é gerenciado pelo recurso à memória: memória dos livros já
lidos, memória dos estudos já feitos. E quando o pesquisador, enquanto
autor, escreve sobre um outro, ele se torna, de certa maneira, “dono” do
modo de pensar desse outro quando descreve e narra suas ações ou os
acontecimentos que pontuaram a vida desse terceiro. Mas, no âmbito da
AD, ao unir discurso e memória, como bem o lembram três pesquisadores
dos estudos discursivos:
[...] desde Courtine (1981), não se trata de retomar o trabalho do
historiador para “recontar” a história. A pesquisa em Análise do
Discurso, tanto para esse autor quanto para Michel Pêcheux, é
um empreendimento que se faz ao lado da história, orientandose, contudo, para um outro caminho: o discurso – aspectos
situacionais de sua emergência, a configuração e efeitos possíveis
dos gêneros, os sujeitos e suas intencionalidades, e as estratégias
de encenação discursiva. Essa corresponde também à perspectiva
semiolinguística, de Patrick Charaudeau, para quem a memória
discursiva pode ser percebida em três dimensões: uma memória
de situações – ritual religioso, escrita jornalística, eleições
municipais etc.; uma memória de signos – signos verbais e
não verbais em uso na comunicação cotidiana; uma memória
de discursos – os discursos sociais efetivamente circulantes e
compartilhados numa determinada época e local. (MENEZES;
FLAUSINO; MARQUES MENEZES, 2015, p. 25)
Os referidos autores enfatizam também que a memória não deve
ser vista como um acesso que sinaliza a “essência do acontecido, mas
traços e flashes que nos permitem perceber interações entre objetos
distintos, pois, mesmo os semelhantes, serão outros no tempo e no espaço”
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(MENEZES et al., 2015, p. 25), opinião com a qual concordamos. A
memória não é uma ponte direta para o que absorvemos ou vivenciamos.
Ela toma, por vezes, desvios inesperados.
A memória, aliás, tem sido objeto de inúmeros estudos nesses
últimos vinte anos pelo que pudemos observar. Como ela age? Onde
ela se situa? Eis algumas questões que que têm feito parte de pesquisas
não somente de analistas de discurso, mas também de neurologistas e
filósofos, entre outros. Assim, Chapouthier (2014), em um de seus vários
escritos sobre o assunto, explica que há memórias e memórias. Algumas
inconscientes, outras implícitas ou procedurais, conforme o contexto
vital daqueles que as utilizam.
Entre as procedurais, ele menciona os hábitos decorrentes de
um estímulo, os condicionamentos que adquirimos (andar de bicicleta,
digitar etc.). E entre as memórias declarativas – que interessam mais
de perto aos pesquisadores de AD –, a memória semântica (a que nos
leva a aprender/memorizar várias regras de comportamentos sociais); a
memória episódica – que é a que chamamos comumente de “memória”,
ou seja, a que nos advém com a lembrança de certos fatos do passado.
E, finalmente, o neuro-filósofo cita a memória autobiográfica, que,
segundo ele, “permite, ao longo de nossas vidas, nos lembrarmos de
quem somos. Ela nos dá uma identidade individual ao longo do tempo
e combina elementos semânticos com episódicos”. (CHAPOUTHIER,
2014, p. 37, tradução nossa).
Chegamos, finalmente, ao terceiro (sub)tema: o fenômeno social
(e universal) das migrações. Como já se sabe há grupos de seres humanos
que relutam em sair do lugar onde nasceram e cresceram. Sentem-se mal,
inseguros, fora de casa e mesmo de seus bairros, de suas cidades, de seus
países. Contrariamente a eles, existem aqueles que são, por natureza,
nômades: citemos entre eles, os ciganos, os peregrinos, os vendedores
ou viajantes comerciais, os turistas (mais ou menos afortunados) etc.
No entanto, nos últimos tempos (desde a Segunda Guerra
Mundial) assistimos ao deslocamento de populações inteiras como a dos
sobreviventes da Shoah que fundaram um Estado (Israel). Mas, antes
deles, na Idade Média europeia vários grupos também migravam para
escapar a perseguições várias e a epidemias (fome, peste). Avançando
um pouco no tempo, o século XVI assistiu à descoberta de novos
mundos, empreendida sobretudo por navegadores portugueses, italianos
e espanhóis. Evidentemente, isso motivou grandes deslocamentos de
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populações que fundaram novos Estados, como os ingleses na América
do Norte, os portugueses no Brasil etc.
Nos dias de hoje, presenciamos outra leva de grupos que buscam
atingir a Europa, que se sente mais ou menos incomodada, mais ou menos
clemente com essas chegadas em massa de seres humanos que fogem
das lutas e da miséria em seus países de origem. Vários migrantes subsaharianos já morreram ao largo da ilha de Lampedusa na Itália: entre
eles, jovens, mulheres, crianças... Há muitas crises que agitam o planeta,
vindas de países em guerra (como a Síria), de povos perseguidos (como
os Curdos), sobreviventes de conflitos e governos como os muitos que
há na África. No Brasil, lembramos a recente migração em massa de
venezuelanos que sofrem os efeitos do regime ditatorial iniciado, em seu
país, por Hugo Chávez e intensificado por Nicolás Maduro.
Esses aspectos são mais do que suficientes para atestar que temos
visto, nos últimos anos, um recrudescimento da chamada “migração
de crise” (CLOCHARD, 2007) como reflexo de uma série de guerras
e crises econômicas, sociais, políticas e étnicas que assolam o planeta.
Assistimos, assim, a uma mobilidade de grandeza jamais vista que,
com suas especificidades e contradições, “reformata” o nosso mundo,
causando-nos perplexidade como fenômeno ainda não completamente
compreensível. Se as motivações que levam a esses deslocamentos
podem interessar-nos como seres humanos e pesquisadores, também os
movimentos contrários à mobilidade devem chamar nossa atenção, na
medida em que eles geram reflexões, de um lado, em torno dos direitos
humanos e, de outro, acerca dos discursos nacionalistas e xenófobos.
Nessa perspectiva, muitos pesquisadores, de diferentes áreas
(Ciências Políticas, História, Sociologia, Antropologia e, claro, AD),
têm desenvolvido trabalhos relevantes sobre o fenômeno mundial das
migrações, explorando aspectos que vão de suas causas e consequências
aos discursos (favoráveis ou desfavoráveis) que ele engendra, entre tantos
outros aspectos passíveis de ser estudados.
Sabendo, pois, que a situação política, econômica e/ou cultural
é um fator determinante para o deslocamento, parece-nos normal que
jovens ou grupos de jovens se mobilizem e mudem de seus países de
origem nos dias de hoje, realizando uma moderna Odisseia, se pensarmos
no modelo clássico do mitológico Ulysses. Mas, além das migrações
que constituem as notícias de destaque nas mídias, existem outras, mais
dissimuladas, como a de grupos que vivem em determinado local de uma
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cidade e que “são convidados” por autoridades em nome do progresso
(construção de edifícios, de shoppings etc.) a se mudarem, a realizar uma
espécie de deslocamento em nome desse progresso imobiliário.
Enfim, reunindo os três conceitos: discurso, memória e migrações,
tentamos organizar um pequeno painel que possa mostrar os pensamentos
e ideias de diferentes colegas sobre a questão.
Cabe-nos ainda dizer que este dossiê surgiu como um dos
resultados das Cátedras Franco-Brasileiras da UFMG. Em 2018, tivemos
um projeto centrado nessa mesma temática que foi contemplado pelo
referido edital. Pudemos, desse modo, contar com a presença, na FALE/
UFMG, da Profa. Béatrice Turpin (Universidade de Cergy-Pontoise França) como professora convidada, tendo como anfitriã, na UFMG,
a Profa. Ida Lucia Machado, com o apoio da então coordenadora do
Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PosLin), Profa.
Glaucia Muniz Proença Lara. A vinda da Profa. Béatrice Turpin resultou
também em um acordo de cooperação entre a UFMG e a UCP, o que, com
certeza, vem somar-se a outros esforços em busca da internacionalização
de nossa Universidade.
Passemos, então, à apresentação dos artigos que compõem o
dossiê. A ordem que adotamos é aleatória, dada a diversidade dos textos,
dos conceitos mobilizados e das metodologias utilizadas pelos autores.
No artigo “Sentidos de ‘imigrante’ em enunciados verbovisuais
no jornalismo francês”, Grenissa Bonvino Stafuzza e Marcos Lúcio
de Sousa Góis analisam duas charges, publicadas no jornal francês Le
Monde e compartilhadas pelo blog francês GalliaWatch, cujo tema é
o episódio de salvamento de uma criança empreendido pelo imigrante
malinês Mamoudou Gassama, em Paris, em maio de 2018. Tomando esses
enunciados verbovisuais na perspectiva dialógica da linguagem proposta
pela teoria bakhtiniana e, portanto, situando-se numa perspectiva mais
ampla da Análise do Discurso, os autores buscam resgatar a memória
do imigrante (re)construída pelo discurso midiático/jornalístico atual em
um diálogo histórico com a relação entre a França e suas ex-colônias (no
caso, Mali). Se, de um lado, o imigrante aparece como um herói ou, pelo
menos, como alguém útil para a sociedade que o acolheu, permitindo
a “espetacularização” política de seu ato, de outro, não se apagam os
sentidos que o relacionam a um “ser menor” que, com sua situação
regularizada ou não, será sempre imigrante, o que não raro está atrelado a
ideias como a de clandestinidade e a de fora da lei. Assim, considerando
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o que já foi enunciado sobre o imigrante e o que poderá ser ainda, o que
vemos são sentidos que se deslocam de herói a criminoso, apontando
para uma memória não una, mas plural, polissêmica.
Já Alexandre Marcelo Bueno em seu artigo, intitulado “Imigrantes
japoneses e a língua portuguesa: um caso de preconceito linguístico”,
apresenta, à luz da Semiótica Discursiva francesa, considerações de
como os imigrantes asiáticos e seus descendentes no Brasil ainda sofrem
preconceito linguístico. Analisando reportagens publicadas da segunda
metade do século XX – revistas O Cruzeiro (1958) e Realidade (1966) –
até os dias atuais – jornal Folha de S. Paulo (2002) – observa a constante
sanção negativa que sofrem, direta ou indiretamente, imigrantes japoneses
e estudantes de origem asiática em relação ao seu uso “particular” da
língua portuguesa, mesmo que, por outro lado, eles sejam avaliados
positivamente como trabalhadores qualificados (no passado) e como
estudantes dedicados e disciplinados (no presente). Ressaltando que a
língua é um dos principais elementos para a construção da identidade
do indivíduo e de seu grupo social, assim como para a percepção da
alteridade, o autor mostra como, a partir daí, ela (a língua) pode ser
igualmente utilizada como forma de preconceito, sendo o imigrante
em foco considerado como mau cumpridor de um suposto contrato
estabelecido entre ele e o país que o acolheu (no caso, o Brasil): o contrato
do “bom uso” da língua nacional.
Em “Memorialización y conflito armado: la construction de
narrativas para la paz en Colombia”, Neyla Graciela Pardo Abril propõe,
à luz dos estudos críticos do discurso multimodal e multimidiático
(ECDMM), uma reflexão e uma aplicação teórico-metodológica sobre
narrativas midiáticas (storytelling), formuladas em El Tiempo.com
e publicadas nas edições especiais do jornal, que se voltam para a
construção da paz na Colômbia, posteriormente ao acordo com as FARC/
EP. Trata-se, segundo a autora, da narrativa que as mídias produzem como
caminho para a reconstrução do tecido social. No artigo apresentado,
Pardo analisa, como estudo de caso, a narrativa “A qué sabe la paz”,
publicada em 09/06/2017, no referido jornal, sob a responsabilidade da
jornalista Perla Toro Castaño. A reflexão empreendida sob a égide dos
ECDMM mostra que as memórias coletivas são práticas discursivas
múltiplas, nas quais as representações sociais sobre um passado comum
são usadas para construir e manter a coesão e a identidade de grupos
situados sócio-historicamente em um momento presente e que projetam o
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futuro pautados em marcos como direitos, dignidade, respeito e bem-estar.
Nessa perspectiva, as representações sociais da história descrevem, com
frequência, os conteúdos da memória coletiva como se fossem únicos e
homogêneos, oficializando uma versão que não contempla, especialmente,
os setores mais marginalizados da sociedade. A pesquisa apresentada
baseia-se no princípio de que as mídias e seus suportes tecnológicos
elaboram modos, gêneros e representações (entre eles a storytelling) que
criam e comunicam concepções do passado. Quanto ao texto de Toro
Castaño examinado, percebe-se a storytelling como uma narração de
eventos da vida de uma pessoa, ou seja, uma narração subjetiva que, ao
ser expressa e ressignificada, torna-se intersubjetiva. Assim, a história
contada pela jornalista é a de Daniela Delgado Portila, tomada como
“sujeito modelo”, na medida em que, superando os obstáculos próprios
da realidade colombiana, torna-se, graças a seus esforços pessoais, uma
empresária de sucesso na área da gastronomia, alcançando uma vida
digna dentro do sistema econômico vigente (neoliberal). A construção da
axiologia neoliberal se propõe e se socializa, portanto, como a condição
para que a paz seja alcançada.
No artigo “Living on the edge of African dreams: New identities
for African and African Diaspora Caribben students in Brazil”, Ricardo
Gualda trata dos estudantes de países africanos e do Caribe que vêm para
o Brasil por intermédio do Programa PEC-G. Esses estudantes, em sua
maioria (75%), já falam português em seus países de origem e, portanto,
são encaminhados diretamente para as universidades onde farão seus
estudos de graduação em um período de, pelo menos, 4 anos. O restante
(15%) passa, em primeiro lugar, por um curso intensivo de português
de aproximadamente 8 meses, que é oferecido por 20 universidades no
Brasil, entre as quais a UFBA, com vistas à sua aprovação no exame
Celpe-Bras. O artigo em foco analisa as experiências desses jovens
africanos e caribenhos no seu processo de adaptação ao Brasil e de
aprendizagem do português. Uma primeira parte do artigo é dedicada
à descrição do curso de português da UFBA, cujas linhas mestras são:
“aprender a partir da diversidade”, “aprender a aprender” e “aprender
com base em experiências reais”. Nesse sentido, o curso não se pauta
em livros, testes ou ensino de gramática e vocabulário, mas em projetos,
visando, principalmente a que os estudantes desenvolvam suas próprias
estratégias de aprendizagem. A segunda parte do artigo volta-se para
entrevistas feitas pelo autor, que é também coordenador do curso,
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com 25 estudantes de países da África e da diáspora africana (Gana,
Namíbia, Jamaica e Kênia) que são originalmente falantes de inglês.
Essas entrevistas foram registradas, transcritas e examinadas a partir
dos métodos da Análise Crítica de Discurso e da análise psicossocial.
Pautada no eixo língua, nacionalidade e raça, a análise empreendida por
Gualda buscou identificar como tais estudantes percebem as questões
de identidade e alteridade e como se integram à nova cultura, sem
perder seu próprio senso de identidade. Em seguida, o autor apresenta
e discute as respostas dadas pelos entrevistados às questões propostas.
Entre outros aspectos, chama a atenção, por exemplo, o fato de que
eles, vendo-se numa posição de relativo privilégio e por terem como
referência o Apartheid da África do Sul, tendem a tomar o racismo no
Brasil de forma mais branda, chegando mesmo a desculpá-lo. Aparece
também, no conjunto de respostas analisadas, a imagem estereotipada do
brasileiro cordial e prestativo, aspecto enfatizado por todos os estudantes
participantes da pesquisa, o que, de certa forma, mostra-se incoerente
com o medo que muitos dizem ter do crime e da violência tão presentes
no cotidiano de nosso país.
Marie Madeleine Bertucci, no artigo intitulado “Mémoires de
l’immigration. Proposition pour une étude sociolinguistique des parlers
des jeunes des cités urbaines sensibles de la France contemporaine”
examina dois corpora. O primeiro, formado por excertos de um estudo
feito pela autora ao examinar respostas formuladas por alunos do
ensino médio (Lycée) de duas escolas de formação profissional, ambas
localizadas em Saint-Denis, município francês situado no departamento
de Seine-Saint-Denis, na região da Île-de-France. Os alunos responderam
à pergunta lançada no título de um programa de pesquisa do Ministério
da Cultura e da Comunicação da França: Mémoire de l’immigration: vers
un processus de patrimonialisation? O segundo corpus é formado por
excertos retirados do livro Ma part de Gaulois (CHERFI, 2016). Tomando
por base esses escritos, Bertucci tenta definir o que chama “processo
de redução” que atinge comunidades formadas por migrantes. Assim,
ela mostra como essas comunidades são estigmatizadas, segregadas e
discriminadas, o que fatalmente contribuirá para a criação de territórios
demarcados, situados na periferia, onde esses grupos se concentram,
falam e vivem. Como é de se esperar, esse confinamento aberto acaba
gerando situações não favoráveis aos habitantes. A autora não esconde
seu receio de que tais discriminações/separações fatalmente irão gerar/
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aumentar a marginalização e a exclusão dos migrantes que, no entanto,
deveriam ser melhor integrados à vida francesa em geral.
O título “Deslocamento forçado e permanência vigiada, território
e fronteira: metáforas de espaço na representação da situação de rua na
Folha de S. Paulo”, do artigo de Viviane de Melo Resende, tem o poder
de já enviar o leitor para o difícil tema que nele será apresentado. Tratase dos resultados de um projeto de pesquisa, cujo objetivo maior foi o
de identificar, no jornalismo online, mais especificamente na plataforma
digital do jornal Folha de S. Paulo (folha.uol.com.br), durante um
período de três anos, representações das ações e políticas públicas (APP)
voltadas para a população em situação de rua (PSR). Como metodologia,
a pesquisadora adotou a teoria dos estudos críticos do discurso e a
análise interdiscursiva de políticas públicas. Pôde, assim, verificar as
recorrências e padrões de representação metafórica das APP dirigidas
à PSR nos textos jornalísticos estudados. Melo Resende tomou como
foco especial as metáforas espaciais ali utilizadas, que lhe mostraram o
porquê de tantas mudanças de grupos de PSR na cidade de São Paulo.
Essas pessoas são obrigadas a se deslocarem de uma parte para outra
da cidade por causa da perversa desculpa, vinda de órgãos poderosos,
de que os locais onde habitam serão “revitalizados”, logo devem ser
desocupados. Os verdadeiros sentidos de muitas APP são ocultados.
O artigo em pauta é fruto de uma reflexão cuidadosa e válida sobre a
desigualdade do/no país.
No artigo intitulado “Os enquadres discursivos do acontecimento
migratório: narrativização, banalização e estigmatização”, Wander
Emediato aborda o tema da imigração. Coloca-o, em primeiro lugar,
sob o crivo da História, examinando a questão tanto no Brasil quanto na
França e realizando, assim, um estudo comparativo, que é caro à Análise
do Discurso Semiolinguística. Para tanto, conduz o leitor a uma viagem,
por meio da qual ele pode assistir à chegada dos imigrantes europeus no
Brasil, no século XIX. Emediato lembra, em uma crítica bem colocada,
como o imaginário social da imigração no Brasil foi erroneamente
assumido por narrativas históricas romantizadas e como, nos dias de hoje,
uma nova narrativa – mais realista – se delineia. O autor ressalta dois
pontos importantes ligados à questão das (i)migrações: a banalização do
imigrante e a sua estigmatização no país que o acolhe. As mídias – tanto as
brasileiras quanto as francesas – têm-se amparado no assunto, tratando-o
algumas vezes de modo convergente, outras, de modo divergente. Por
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exemplo, o problema da ameaça à identidade nacional ainda não é visto
de forma tão exacerbada no Brasil como acontece na França. O artigo
coloca o leitor face a face com a questão migratória – a do passado e a
atual – ou seja, com o problema dos grandes deslocamento de grupos que
são obrigados a buscar um novo país ou local de acolhida, suscitando as
mais diversas reações ao ser tratados pelas mídias e pelas instituições
do Estado.
Yeny Serrano é a autora do artigo “Les allusions au conflit armé
dans les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite pour la
paix en Colombie”. Ela analisa discursos em que o povo colombiano,
usando a plataforma Twitter, manifestou-se (sim/não) em referência
ao plebiscito pela paz, proposto pelo governo da Colômbia em 2016.
Segundo as análises de Serrano, o discurso do plebiscito acabou por se
inscrever em uma continuidade própria dos discursos de guerra ou, no
caso, do discurso advindo do confronto armado que ocorreu na Colômbia
em luta contra as FARC. A autora explicita que os que disseram “sim”
serviram-se da supracitada plataforma, principalmente para anunciar ou
comentar os acontecimentos que envolveram a campanha. Ela lembra
também que, após a assinatura do acordo de paz, a violência política e
armada aumentou e só se acalmou nos últimos meses das negociações de
paz. Mesmo se a proposta desse acordo foi aclamada internacionalmente,
ela suscitou bastante controvérsias, ameaças, ataques e mesmo mortes
na Colômbia. O artigo discorre também sobre a popularidade do Twitter,
acessível a atores sociais das mais diferentes classes. De modo geral,
o dispositivo foi aproveitado pelas duas facções, tanto por aqueles que
queriam a paz como pelos que eram contrários a ela. A autora termina o
artigo com uma crítica às mídias sociais que, segundo ela, não podem nem
devem se colocar no mesmo patamar que os discursos jornalísticos, já que
estes têm uma deontologia que é respeitada e regras que são seguidas.
Com o conjunto de artigos aqui apresentado, esperamos ter
trazido ao leitor uma rápida visão de algumas maneiras de analisar
discursos hoje nas universidades e centros de pesquisa do Brasil e do
exterior. Agradecemos a nossa colega Heliana Mello, editora-chefe da
Revista de Estudos da Linguagem, a oportunidade que nos foi dada com
a publicação deste dossiê.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020
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CHAPOUTHIER, G. Jusqu’à la famille nous conditionne-t-elle ?
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GRONDIN, J. Paul Ricœur. Paris: PUF, 2016. (Coll. Que sais-je?)
CLOCHARD, O. Les réfugiés dans le monde entre protection et illégalité.
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Discurso, identidade e memória na Região dos Inconfidentes: temas
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Gráfica Editora, 2015. p. 15-34.
RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983-1985. t. I, II et III.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020
sentidos de “imigrante” em enunciados verbovisuais
no jornalismo francês
Senses of immigrant in verbvisual utterances
in French journalism
Grenissa Bonvino Stafuzza
Universidade Federal de Goiás (UFG), Catalão, Goiás / Brasil
grenissa@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-9077-0652
Marcos Lúcio de Sousa Góis
Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, Mato Grosso do Sul
/ Brasil
profmarcosgois@gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-0328-1509
resumo: Propõe-se neste trabalho analisar discursos sobre o imigrante,
tomando-se como fundamento teórico a perspectiva bakhtiniana dialógica
da linguagem, especialmente sobre a concepção de memória de futuro e
estudo do enunciado. A partir de diálogos construídos na mídia jornalística
sobre o imigrante, consideram-se para a análise duas charges publicadas
em 2018 no jornal francês Le Monde e compartilhadas pelo blog francês
GalliaWatch, que trazem como tema o episódio de salvamento de uma
criança realizado pelo imigrante malinês Mamoudou Gassama em maio
de 2018, na cidade de Paris.
Palavras-chave: enunciado verbovisual; memória de futuro; imigração;
charge; Le Monde.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.433-454
434
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abstract: It is proposed in this paper to analyze discourses about the
immigrant taking as a theoretical basis the bakhtinian perspective of
dialogic language, especially on the conception of future memory and
study of the utterance. From the dialogues constructed in the journalistic
media on the immigrant, two charges are considered for the analysis.
They were published in 2018 in the french newspaper Le Monde and
shared by the french blog GalliaWatch. Both charges bring as a theme the
episode of rescue of a child performed by malian immigrant Mamoudou
Gassama in May 2018, in the city of Paris.
Keywords: verbvisual utterance; future memory; immigration; cartoon;
Le Monde.
Recebido em 28 de abril de 2019
Aceito em 21 de junho de 2019
1 Introdução
Propõe-se neste trabalho analisar discursos sobre o imigrante
a partir de diálogos construídos na esfera midiática, pontuando
entrecruzamentos de sentidos (e seus deslocamentos) e de discursos na
alteridade do enunciado verbovisual “charge”. Para tanto, a materialidade
de base para investigação é composta por duas charges publicadas em
2018 no jornal francês Le Monde e compartilhadas pelo blog francês
GalliaWatch, trazendo como tema o episódio do imigrante malinês
Mamoudou Gassama, que em maio desse ano escalou até o quarto andar
de um prédio parisiense para salvar um menino de quatro anos, também
de família de imigrantes,1 pendurado na sacada de um apartamento.
Desde esse acontecimento, Mamoudou Gassama, até então
invisível aos olhos da sociedade parisiense, recebe atenção das mídias
francesa e internacional e, consequentemente, do governo francês.
Compreende-se que não é possível analisar o caso como um momento
isolado acerca do descaso e, ao mesmo tempo, da dívida histórica que a
França tem com diversos países, em especial, as ex-colônias africanas.
O garoto estava em Paris há três semanas – havia se mudado para a capital francesa
vindo da Ilha Reunião, território ultramarino francês a leste de Madagascar. Disponível
em: https://www.bbc.com/afrique/region-44292446. Acesso em: 22 abr. 2019.
1
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Para pensar os enunciados verbovisuais em estudo, considerase sua ação responsiva de diálogo com a história e a sociedade no que
diz respeito ao tema da imigração. Entende-se que, dos enunciados que
compõem uma determinada comunicação discursiva, ecoam diálogos
e sentidos que apontam para uma memória do objeto que se enuncia.
Nesse sentido, as respostas possíveis a respeito do imigrante, ou seja,
os enunciados por vir, reverberam os processos históricos e sociais que
apontam que todo e qualquer enunciado se vincula a um acontecimento
social de linguagem. Assim, neste trabalho, apoia-se, com base nos
estudos dialógicos bakhtinianos, na ideia de que a comunicação discursiva
verbal, que envolve as diversas posições enunciativas (atos de fala de
todos os tipos, enunciados concretos, produções escritas etc.), encontra-se
relacionada às outras possibilidades de realização do diálogo (produções
sincréticas, visuais, sonoras, musicais etc.).
Sob essa perspectiva, a comunicação discursiva acontece pelo
compartilhamento de elementos que possuem existência cultural e
são de conhecimento dos interlocutores, sejam ou não vivenciados, e
engloba todo tipo de linguagem (vocal, visual, imagética). Configurado
enquanto elo da cadeia de comunicação discursiva (BAKHTIN, 2016),
ao responder a outros enunciados também situados sócio-historicamente,
o enunciado indica uma determinada situação de linguagem que se
encontra atrelada às condições materiais da vida social dos sujeitos da
comunicação discursiva. De modo mais complexo, o aspecto autônomo
de acabamento do enunciado compreende sentidos que apontam para a
singularidade da produção dialógica na comunicação discursiva; por isso
o enunciado, nos escritos de Bakhtin e seu Círculo, apresenta-se como
único e irrepetível, pois seus sentidos atuam em um movimento incessante
entre cultura, história e sociedade em um ato específico de enunciar.
Entende-se que a noção de enunciado é basilar nos estudos de
Bakhtin e do Círculo e aparece no conjunto dos escritos do Círculo
em dialogia autoral, ou seja, o conjunto de textos produzidos de 1920
a 1930, período em que o grupo se reunia, sendo os textos posteriores
bakhtinianos; assim, respeita-se a autoria e a história do Círculo de Bakhtin
no contexto político e cultural da Rússia soviética de regime stalinista.
Desse modo, Stafuzza (2018, p. 138) aponta que “o enunciado é
resultante de uma ‘memória discursiva’ [...] repleta de enunciados que
já foram proferidos em outras épocas, em outras situações interacionais,
as quais o locutor inconscientemente toma como base para formular seu
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discurso” e, ainda, considera que “o extrato verbal e o extrato visual
formam fundamentalmente uma amálgama na composição do enunciado
em estudo, que também responde em uma perspectiva estética, e somente
assim opera dialogicamente na discursividade midiática na qual se
realiza” (STAFUZZA, 2018, p. 139).
O campo linguístico, por exemplo, conceitua e analisa os
enunciados com um foco que privilegia a língua. Nos escritos de Bakhtin e
do Círculo, o conceito de enunciado estabelece um percurso metodológico
considerando a premissa de que o enunciado é uma unidade analítica que
responde a um enunciado anterior e suscita uma resposta subsequente,
gerando outro enunciado. Nesse sentido, metodologicamente é importante
que se estabeleça a correlação entre os enunciados em análise, pois, por
meio da correlação, os sentidos emergem e acionam a dialogia da e na
linguagem, configurando o projeto de dizer em questão, seja ele qual for.
De acordo com Volóchinov (2017, p. 205), “a palavra é um ato
bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto
por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o
produto das inter-relações [...]”. Assim, a noção de enunciado na obra
de Bakhtin e seu Círculo aponta uma ruptura com a Linguística ao
fazer emergir a interação discursiva entre sujeitos ou entre sujeitos e
enunciados, de caráter social e singular ao mesmo tempo, para a produção
e circulação de discursos. Logo, neste artigo, considera-se o enunciado
como uma unidade semiologicamente complexa e correlacionada a outros
enunciados para a e na produção de sentidos do/no gênero charge sobre
imigração.
Ao focar o caso Mamoudou Gassama, portanto, aborda-se um
processo de embate histórico mais amplo, de memória secular, entre a
França e suas ex-colônias, como é o caso do país Mali, processo que se
manifesta em uma sequência de atos com o passado e, para além, com o
futuro,2 com outros atos perversos que perpetuam práticas de colonizar no
contemporâneo, como a instauração de políticas que vetam a imigração,
especialmente, políticas advindas de países colonizadores para países
colonizados ou ex-colônias.
“Tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a
história, mas um dos seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração
histórica.” (LE GOFF, 2013, p. 51).
2
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2 Memória em perspectiva bakhtiniana: o outro imigrante em análise
[...] uma obra não pode viver nos séculos futuros se
não reúne em si, de certo modo, os séculos passados.
Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em
sua atualidade), não desse continuidade ao passado e
não mantivesse com ele um vínculo substancial, não
poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas
ao presente morre juntamente com ele.
(BAKHTIN, 2017, p. 363, grifos do autor)
A citação bakhtiniana em epígrafe aponta a temporalidade como
uma dimensão fundamental para o estudo da memória. É a temporalidade
que permite que uma obra se torne permanente no futuro, em outro tempo e
espaço, mantendo seus diálogos com o passado. O movimento entre passado
e futuro faz com que as posições enunciativas de hoje tenham sentido no
fio dialógico da história e interpelem o devir, assim como as posições
enunciativas do passado podem (re)aparecer em determinados discursos
hodiernos, como uma ressonância discursiva (re)significada. Desse modo,
a construção do sentido de um enunciado apresenta-se nesse movimento
entre passado e futuro em tempos e espaços diversos que dialogam e ecoam
em outros tempos e espaços e neles produzem sentidos outros, mas que
também continuam a se relacionar com o enunciado que o antecede. É desse
movimento incessante que se constroem os sentidos do enunciado, bem
como sua memória, os discursos que o constituem na relação com a história
e com a sociedade, quem o enuncia, para quem o enuncia: amalgama-se a
temporalidade com o processo de interação discursiva.
Um exemplo desse diálogo entre discursos é o próprio tema
do presente estudo que analisa, a partir da perspectiva bakhtiniana,
enunciados verbovisuais situados na esfera midiática jornalística sobre
o caso Mamoudou Gassama. Como já foi dito, não é possível analisar
o episódio apenas como um momento isolado acerca do descaso e
ao mesmo tempo da dívida histórica que a França tem com diversos
países, em especial, países africanos em relação à colonização de terras,
pessoas, culturas, línguas. Desse modo, apesar de o caso em questão ser,
aparentemente, pontual, há a construção de uma memória do imigrante no
discurso midiático jornalístico que aborda uma complexidade outra, de
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memória secular entre a França e suas ex-colônias, como é o caso do país
Mali, manifestada em uma sequência de atos com o passado e, para além,
com o futuro, com outras ações que se diluem no processo de interação
discursiva quando se traz o enunciado verbovisual para a análise: tornar
o outro imigrante assemelha-se ao processo de servidão sobre esse outro
que só tem sua ruptura em casos extremos como o heroísmo.
O problema da memória aparece diluído no conjunto da obra
do Círculo de Bakhtin e, no presente estudo, aborda-se a memória de
modo constitutivo às noções de enunciado, interação e gênero. Sob
essa perspectiva, verifica-se na charge do cartunista Plantu (Figura
1), uma denúncia do comportamento espetaculoso da administração
pública da França e de Paris, com a representação do Presidente e da
Prefeita, respectivamente, Emmanuel Macron e Anne Hidalgo, diante
das câmeras da mídia jornalística na cobertura do salvamento da criança
por Mamoudou Gassama:
FIGURA 1 – Mamoudou Gassama, por Plantu
Fonte: Blog GalliaWatch3
3
Disponível em: http://galliawatch.blogspot.com/2018/06/macronism-avoid-essentialalign-with.html. Acesso em: 12 fev. 2019.
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O enunciado verbovisual anuncia que “Um maliano escala
um prédio para salvar uma criança” (tradução nossa), apontando que,
enquanto Mamoudou Gassama o escala por amor para salvar o menino,
o presidente da França, Emmanuel Macron, e a prefeita de Paris, Anne
Hidalgo, competem de modo sensacionalista com Mamoudou diante
das câmeras – a dificuldade e o medo que encontram ao escalar o prédio
apresentam-se em suas faces e nos sinais transpiração – em busca do foco
dos jornalistas, em uma espécie de competição pela atenção midiática.
Todo este “movimento” é observado por um rato ou camundongo,
que espreita a cena. Na charge, ele pode ser considerado sob um olhar
simpático, pois o cartunista Plantu o emprega frequentemente em seus
desenhos, como se se tratasse de seu “alter-ego”: o ratinho que denuncia
é Plantu.4 Todavia, no simbolismo ocidental, o rato é um animal de
conotação negativa, muitas vezes associado a pessoas de caráter duvidoso
ou a entidades maléficas, como o diabo (BIEDERMANN, 1993). Esse
roedor, animal de hábitos noturnos, sorrateiro e de enorme apetite e
capacidade de se reproduzir, é frequentemente utilizado para representar
o político corrupto, interesseiro, furtivo.
A charge reforça, portanto, todo um processo de espetacularização
das ações políticas, que se manifesta, quase sempre, em acontecimentos
heroicos, muito mais do que na relação com um tema específico. O
impacto da mídia televisiva na vida pública já foi e ainda é objeto de
estudos de vários autores. A esse propósito, por exemplo, Umberto Eco
afirmava
Nos últimos dez anos, [...], a transmissão ao vivo apresentou
mudanças radicais no que se refere à encenação: das cerimônias
papais a muitos acontecimentos políticos e espetaculares, sabemos
que eles não teriam sido concebidos da maneira que foram, se não
tivessem existido as telecâmeras. (ECO, 1984, p. 197)
O espetáculo que se encena no enunciado verbovisual aponta para
a espetacularização da ação política, amparada pelo aparato midiático,
sobretudo televisivo, que cerca os acontecimentos dessa natureza.
Assim, menos do que uma preocupação com o tema imigração e/ou
com o imigrante, ou mesmo com políticas para a imigração, o que se
4
Ver mais charges de Plantu com o ratinho em seu blog no Le Monde: http://plantu.
blog.lemonde.fr/. Acesso em: 30 abr. 2019
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observa é o embate entre a administração federal da França e a da cidade
de Paris no sentido de quem capitalizará mais com o ato promovido
por Mamoudou Gassama. A charge reforça certa lógica produtora de
espetáculos da atualidade política, muito mais do que outra possibilidade
de ação política. É a política midiatizada.
A memória do imigrante como o herói destemido que coloca
em risco sua própria vida para salvar a de outrem, que ressoa no/do
enunciado verbovisual em análise, tem sua construção especialmente na
literatura, concebida aqui como campo de diálogo. Por exemplo, temse nas obras Ilíada e Odisséia, de Homero,5 a personagem Ulisses (ou
Odisseu, em grego) como destaque: é o herói estrangeiro o responsável
por salvar pessoas e situações, demonstrando habilidade e inteligência
estratégica para a luta, de modo a se destacar em terras estrangeiras, fora
do seu espaço de pertencimento: por vezes é aceito no espaço do outro
pelo seu conhecimento, por ser bravo, audacioso, guerreiro e, sobretudo,
por suas utilidades extraordinárias. Essa memória do imigrante como
herói, um ser útil, aparece dialogicamente no enunciado verbovisual em
estudo, uma vez que ele destaca o rosto do herói imigrante Mamoudou
Gassama, dotando-o de um semblante amoroso, acentuando o ato ético
de um sujeito responsivo para com uma sociedade que, no entanto, havia
anulado a sua existência até o episódio do salvamento.
Essa questão ressoa em duas manchetes e nos títulos auxiliares
de uma matéria e uma crônica publicadas pelo Le Monde nas seções
“Société” (Sociedade) e “Idées” (Ideias), respectivamente, que trazem
como destaque Mamoudou Gassama e a promessa do governo francês, a
partir da repercussão internacional do ato heroico de salvamento infantil,
de legalizar sua documentação, acelerando o processo de regularização
migratória de modo a naturalizá-lo cidadão francês.6 As manchetes
dialogam com a charge em foco e apresentam parte do funcionamento
da memória do imigrante no discurso midiático jornalístico:
5
A data de criação dessas obras não é certa. Alguns pesquisadores mencionam que
provavelmente sua criação tenha sido realizada em meados do século VI a.n.e.
6
A presidência francesa informou que o jovem maliano ganharia a nacionalidade
francesa e faria parte dos serviços cívicos dos bombeiros da cidade de Paris, se esse
fosse o desejo de Mamoudou Gassama. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=2CoD0cFmhrw. Acesso em: 7 mar. 2019.
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Primeira manchete com título auxiliar da matéria publicada na
seção “Société”:
Mamoudou Gassama, le Malien sans papiers qui a sauvé un enfant,
va être régularisé. L’homme qui a escaladé quatre étages pour
sauver un enfant accroché à un balcon parisien samedi devrait
intégrer le service civique des sapeurs-pompiers.7
Segunda manchete com título auxiliar da crônica publicada na
seção “Idées”:
Mamoudou Gassama, révélateur d’un paradoxe démocratique. Le
“héros” malien est devenu français non pas pour son mérite réel,
mais parce qu’il a pu jouer un rôle dans le “récit républicain”,
analyse le professeur de philosophie Thomas Schauder.8
A memória do imigrante apresenta-o como aquele que é
desprovido de documentos para habitar um determinado país (“sem
documentos”) e, portanto, seu destaque na mídia nacional e internacional
revela contradições do governo francês (“paradoxo democrático”),
diante do seu “papel na narrativa republicana” francesa, que oferece
regularização da sua situação de imigrante (“será regularizado”), não por
ter “salvo uma criança” e consequentemente “por seu mérito real”, mas
sim porque, enquanto imigrante, ele possui uma função social utilitária
para o governo, que detém a autoridade para legislar sobre sua vida: dar
visibilidade à questão da imigração como uma questão no âmbito das
políticas públicas ou tratar o caso de Mamoudou Gassama como uma
“Mamoudou Gassama, o maliano sem documentos que salvou uma criança, será
regularizado. O homem que escalou quatro andares para salvar uma criança pendurada
em uma sacada em Paris no sábado deve integrar o serviço cívico do corpo de
bombeiros” (tradução nossa). Notícia publicada em 27 de maio de 2018 no jornal
Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/societe/article/2018/05/27/aparis-un-homme-escalade-un-immeuble-pour-sauver-un-enfant-suspendu-dans-levide_5305507_3224.html. Acesso em: 10 mar. 2019.
8
“Mamoudou Gassama, revelador de um paradoxo democrático. O ‘herói’ maliano
tornou-se francês não por seu mérito real, mas porque pôde desempenhar um papel na
‘narrativa republicana’”, analisa o professor de filosofia Thomas Schauder” (tradução
nossa). Notícia publicada em 06 de junho de 2018 pelo jornal Le Monde. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/06/06/de-zero-en-heros-un-paradoxedemocratique_5310390_3232.html. Acesso em: 10 mar. 2019.
7
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premiação pelo ato de heroísmo, engrossando o espetáculo midiático,
conforme se apresenta no enunciado verbovisual da charge de Plantu,
de forma apartada do viés de políticas públicas.
Diante disso, observa-se que a palavra, por ter memória cultural,
é carregada de sentidos que oscilam a depender de sua construção e de
seu uso histórico-social. A palavra “imigrante”, por exemplo, apresentase de modo bastante complexo em diversos discursos (político, da
administração pública, jornalístico, midiático, literário) e possui uma
variação de sentidos. O imigrante pode apresentar-se como o herói no
discurso literário, mas também como um invasor. Esse mesmo sentido de
invasor para imigrante pode ser disseminado e legitimado pelo discurso
político, ou pelo discurso da administração pública, por exemplo, no
caso de o país adotar uma política de intolerância à questão da imigração.
O termo imigrante pode ainda relacionar-se a trabalhador, sendo
esse sentido construído historicamente quando se pensa a história mundial
como uma história de migrações: no Brasil, por exemplo, no final do
século XIX, trabalhadores de diversas comunidades internacionais – com
destaque para as comunidades italiana e alemã – chegaram ao sul do país
para trabalhar nas lavouras e na agropecuária em condições sub-humanas
que se assemelhavam à escravidão. A situação do imigrante, que oscila
entre um “estado de direito” e um “estado de fato”, já fora observada
por Sayad (1998). Segundo o autor, o imigrante está condenado a uma
dupla contradição, flutuando “circunstancialmente” entre o que o define
de direito e aquilo que o caracteriza de fato: “não se sabe se se trata de
um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente” ou “se
se trata de um estado mais duradouro mas que se gosta de viver com um
intenso sentimento do provisório” (SAYAD, 1998, p. 3).
Assim, os sentidos que emergem da palavra imigrante, entre
eles, infortunadamente, o vocábulo “escravo” reverbera nos discursos
político e jornalístico. Desse modo, observa-se que, apesar das diversas
possibilidades de sentido da palavra imigrante, o imigrante é visto
socialmente, sobretudo, pela perspectiva do país que o acolhe com
políticas públicas de imigração ou o despreza com projetos antiimigração. Se, para Bakhtin, a palavra não pode ser isolada como unidade
da língua, nem de seu próprio significado, então, o sentido da palavra
evoca, ainda conforme o filósofo russo, uma “determinada realidade
concreta em condições igualmente reais de comunicação discursiva”
(BAKHTIN, 2017, p. 291). Logo, os sentidos da palavra imigrante –
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sejam eles positivos ou negativos – são produzidos pela/na interação entre
sujeitos, circulam socialmente a partir dos diferentes usos que se faz da
palavra, sendo a memória constitutiva de sentidos da palavra em pauta
nos diversos discursos: em suma, os sentidos produzidos pela memória do
imigrante no discurso midiático jornalístico têm seu lugar na cultura, na
história e na sociedade e são também modificados, atualizados por essas
instâncias. Sob essa perspectiva, a memória revela-se intersubjetiva, pois,
As tradições culturais e literárias (inclusive as mais antigas) se
conservam e vivem não na memória individual e subjetiva de um
homem isolado em algum “psiquismo” coletivo, mas nas formas
objetivas da própria cultura (inclusive nas formas linguísticas e
verbais), e nesse sentido elas são intersubjetivas e interindividuais
(consequentemente, também sociais); daí elas chegam às obras
literárias, às vezes quase passando por cima da memória individual
subjetiva dos autores. (BAKHTIN, 2010, p. 354, nota de rodapé)
Entende-se, diante dessas considerações, que a memória, vista
na perspectiva bakhtiniana, por ser intersubjetiva, é, logo, culturalmente
coletiva, constitutiva de valoração, uma vez que ela resulta daquilo que se
transmite entre os sujeitos ou entre sujeitos e enunciados. De outro modo,
“A memória é um enfoque construído do ponto de vista do acabamento
axiológico; em certo sentido ela é inviável, mas por outro lado só ela
é capaz de julgar a vida finda e toda presente, independentemente do
objetivo e do sentido” (BAKHTIN, 2017, p. 98). A memória opera, assim
sendo, em uma ótica de valores culturais e de acabamento sobre a vida,
pois, “A mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais,
mas o outro me é dado integralmente” (BAKHTIN, 2017, p. 383). Nesse
sentido, compreendem-se a cadeia e os elos constitutivos da interação
discursiva: o acabamento valorativo sobre o imigrante atua como um fator
que ajudará a constituir as memórias que se instauram sobre o imigrante
e sobre as imigrações. A respeito dessa questão, sublinha-se que a palavra
possui, tal qual o enunciado, memória por ser produto cultural.
A charge de Plantu dialoga com as manchetes e seus títulos
auxiliares publicadas pelo Le Monde sobre o caso Mamoudou Gassama,
ao focar o imigrante como o herói que, por seu ato de heroísmo no
salvamento espetacular de uma criança, ganha grande repercussão
nas mídias nacional e internacional e, somente por isso, acaba sendo
recompensado pelo governo federal com a regularização de seus
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documentos na França e com a nova função de membro da corporação
de bombeiros da cidade de Paris, o que legitima sua permanência no
país. Ao oferecer a Mamoudou Gassama a regulamentação de seus
documentos, juntamente com trabalho formal, a política francesa explora
midiaticamente o acontecimento, tratando com excepcionalidade o caso
do jovem maliano e mesmo a questão da imigração.
Na mesma época, a título de contraponto, tramitava no parlamento
francês um polêmico projeto de lei, que teve sua aprovação em 01 de
agosto de 2018: trata-se da Lei n.o 2018-778, de 10 setembro de 2018,
que visava controlar a imigração, estabelecer direito efetivo de asilo e a
integração bem-sucedida9. É uma lei bastante criticada e controversa que
desconsidera o processo histórico das imigrações na França, e, ao que
parece, especialmente concebida para agilizar a expulsão de imigrantes.
Diante desse contexto, a charge do cartunista Plantu explicita em
seu enunciado verbovisual que o espetáculo torpe do governo diante da
mídia, por meio da escalada no prédio, faz emergir sentidos que apontam
para o fato de que, ao iniciar rapidamente o processo de regularização dos
documentos de Mamoudou Gassama, oferecendo-lhe também trabalho
formal, o governo federal o transforma de herói midiático em algo útil,
ou seja, um trabalhador francês naturalizado, o que coloca em diálogo:
i) as várias possibilidades de sentidos da memória sobre o imigrante:
herói, trabalhador, invasor; ii) a destreza midiática do político (no caso,
Emmanuel Macron), denunciada pelo/no enunciado verbovisual como
aquele que, para chamar (e apagar) a atenção da mídia, oferece, ao
personagem maliano, regulamentação da condição de imigrante no país,
ao mesmo tempo em que tramita e é aprovada no parlamento francês a
lei n.° 2018-778, que enrijece as normas de imigração na França e faz
avançar a deportação de imigrantes.
O enunciado verbovisual em análise carrega sentidos e memórias
possíveis do imigrante no discurso midiático jornalístico e opera na
contemporaneidade com a temporalidade do discurso colonizador que,
se no período colonial operava pela força, agora, se encontra amparado
pela legislação do país, que aciona a memória de que o imigrante é um
invasor.
Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEX
T000037381808&dateTexte=20190310. Acesso em: 10 mar. 2019.
9
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A segunda charge (Figura 2), do cartunista Aurel, apresenta no
enunciado verbovisual o jovem Mamoudou Gassama em uma situação
ambivalente quando se aciona a memória do imigrante.
O enunciado “menor ou maior?”, provavelmente dito por um
oficial de imigração para Mamoudou Gassama, que se encontra de costas
para o leitor, sentado em uma cadeira com uma postura retraída, de
frente para uma mesa com diversos objetos (computador, documentos,
carimbos, luminária), permite inferir o local em que a cena se desenvolve.
Mamoudou Gassama tem uma mochila aos pés, o que aponta para a
questão da busca diária por realização (emprego, estudo), denunciando
a memória do imigrante como aquele que é “menor”, que participa da
“minoria” justamente por ser, ao olhar do outro, quem é: imigrante.
Nesse sentido, o enunciado verbovisual faz emergir também o diálogo
da maioridade civil (“menor ou maior?”), que contrapõe a ideia de
que o imigrante pode ser visto como um “menor de idade” por não ser
responsável por si em sua permanência no país e, por tal razão, depender
de políticas públicas de imigração.
FIGURA 02 – Menor ou maior
Fonte: Blog francês GalliaWatch10
10
Disponível em: http://galliawatch.blogspot.com/2018/06/macronism-avoid-essentialalign-with.html. Acesso em: 12 fev. 2019.
446
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A memória do imigrante como aquele desprovido de documentos
reaparece no enunciado verbovisual em análise. Apesar de a charge de
Aurel poder indicar o momento de regularização da documentação,
é possível que o estigma do imigrante “menor” persista mesmo com
a documentação de imigração regularizada, uma vez que há sentidos
cristalizados que apontam que um imigrante sempre será, com ou sem
documentos, um imigrante. Outro possível sentido que emerge da charge
diz respeito à palavra “menor”, também no sentido de desvalorização
do sujeito imigrante.
Bakhtin, ao abordar a tese do romance polifônico de Dostoiévski,
sinaliza que:
A categoria fundamental da visão artística de Dostoiévski não
é a de formação mas a de coexistência e interação. Dostoiévski
via e pensava seu mundo predominantemente no espaço e não no
tempo. [...]
Ao contrário de Goethe, Dostoiévski procura captar as etapas
propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e
contrapô-las dramaticamente e não estendê-las numa série em
formação. Para ele, interpretar o mundo implica em pensar todos
os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhe as inter-relações
em um corte temporal. [...].
Essa tendência sumamente obstinada a ver tudo como coexistente,
perceber e mostrar tudo em contiguidade e simultaneidade,
como que situado no espaço e não no tempo leva Dostoiévski a
dramatizar no espaço até as contradições e etapas interiores do
desenvolvimento de um indivíduo. [...] (BAKHTIN, 1981, p. 2223, grifos do autor)
A característica da literatura de Dostoiévski diz respeito, para
Bakhtin, à sua percepção artística do mundo: o romancista percebe
e representa o mundo exclusivamente por meio das categorias de
coexistência e interação. Ao considerar que Dostoiévski concebia o
mundo predominantemente no espaço (e não no tempo), Bakhtin aponta
que a literatura do autor russo cinde com o romance de formação, no qual
o tempo colocava-se à frente da narrativa. Em Dostoiévski, o princípio
dramático da unidade do tempo por meio da rapidez das ações, do
dinamismo narrativo, resulta na superação do tempo pelo próprio tempo
que coexiste no espaço.
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A charge de Aurel apresenta em seu enunciado verbovisual,
considerando a discussão a respeito da coexistência e da interação, uma
ambivalência espacial que coexiste e interage com a temporalidade
do imigrante: o espaço nela mostrado pode sugerir: uma entrevista de
Mamoudou Gassama realizada por um oficial de imigração e, nesse caso,
o desenho sugere um momento em que o imigrante estaria em vias de
ser naturalizado; mas, a charge também permite inferir um inquérito
policial que tem como suspeito Mamoudou Gassama, sempre visto como
imigrante clandestino. A ambivalência da charge, ao não mostrar mais
elementos que autorizem uma conclusão precisa, promove duas leituras:
no caso específico do imigrante pobre, o “agente da imigração” é também
(funciona como) agente de uma política contrária à imigração. Se fosse
um outro tipo de migrante, por exemplo, um ator estadunidense ou
canadense, e não um negro africano pobre, esse “mistério” provavelmente
não aconteceria: o agente seria revelado. Em filmes do tipo policial, por
exemplo, são comuns cenas de interrogatórios, nos quais raramente o
interrogado vê quem o interroga.
O movimento entre as possibilidades de o espaço ser um espaço
para naturalizar ou um espaço para penalizar o imigrante interage
com a própria memória para a (co)existência do imigrante no mundo:
independentemente do local em que o imigrante aparece, um posto de
imigração ou uma delegacia policial, o enunciado verbovisual aponta
para discursos que inserem o sujeito imigrante na relação com a história e
com a sociedade, por meio de um discurso conservador e/ou do discurso
policial no qual aparecem ainda vestígios de má vontade quanto à
regularização do imigrante, presentes nas vozes tipicamente policiais
que indagam “menor ou maior?”.
Os sentidos mencionados ressoam em outras duas manchetes
(e em seus títulos auxiliares) de matérias publicadas pelo Le Monde na
seção “Les Décodeurs” (Os Decodificadores). Nelas, focam-se boatos
e montagens de tweeters, disseminando a ideia de que Mamoudou
Gassama (o imigrante herói da primeira charge aqui analisada) seria um
farsante, um manipulador que teria encenado o salvamento para obter os
documentos de naturalização francesa e que, por ele ser um imigrante
clandestino, o país não deveria tratá-lo como herói, mas sim deportá-lo
para seu país de origem. O discurso de ódio e de intolerância nas redes
sociais em relação ao imigrante teve repercussão em vários jornais
franceses e, em especial, no Le Monde. As manchetes dialogam com o
448
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enunciado verbovisual em análise e apresentam outros sentidos para a
memória do imigrante no discurso midiático jornalístico:
Terceira manchete com título auxiliar da matéria publicada na
seção “Les Décodeurs”:
Après le sauvetage d’un enfant par Mamoudou Gassama, plusieurs
tweets fallacieux et citations déformées
De nombreux internautes s’en sont pris à Nicolas Dupont-Aignan,
à Marine Le Pen et à la journaliste Elisabeth Lévy pour des tweets
ou des phrases qu’ils n’ont jamais écrits ou prononcés. 11
Quarta manchete com título auxiliar da matéria publicada na
seção Les Décodeurs:
Des théories complotistes sur Mamoudou Gassama refont surface
Plusieurs sites Internet se sont fait l’écho d’un supposé “rapport”,
affirmant que le sauvetage d’un enfant par le Malien de 22 ans,
le 26 mai dernier, était une mise en scène. Mais il s’agit d’un
canular.12
As manchetes e seus títulos auxiliares mostram que as matérias
publicadas no Le Monde abordam manifestações de usuários em redes
sociais, mesmo em se tratando da montagem de tweeters, utilizando a
falsa identidade de personalidades públicas conservadoras que possuem
posicionamentos bastante duros em relação ao tema da imigração, como
o político Nicolas Dupont-Aignan, a política de extrema-direita Marine
Le Pen e a jornalista Elisabeth Lévy, que esteve envolvida em diversas
“Após o resgate de uma criança por Mamoudou Gassama, vários tweets enganosos e
citações distorcidas. Muitos internautas atacaram Nicolas Dupont-Aignan, Marine Le
Pen e a jornalista Elisabeth Lévy por tweets ou frases que eles nunca escreveram ou
proferiram”. Notícia publicada em 31 de maio de 2018 no jornal Le Monde. Disponível
em: https://www.lemonde.fr/les-decodeurs/article/2018/05/31/apres-le-sauvetaged-un-enfant-par-mamoudou-gassama-plusieurs-faux-tweets-et-autres-citationsdeformees_5307780_4355770.html. Acesso em: 11 mar. 2019.
12
“Teorias da conspiração sobre Mamoudou Gassama ressurgem. Diversos sites ecoaram
um suposto ‘relatório’, dizendo que o resgate da criança pelo maliano de 22 anos, em 26
de maio, foi uma encenação. Mas isso é uma farsa” (tradução nossa). Notícia publicada
em 18 de julho de 2018 pelo jornal Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/
les-decodeurs/article/2018/07/18/des-theories-complotistes-sur-mamoudou-gassamarefont-surface_5333076_4355770.html. Acesso em: 10 mar. 2019.
11
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020
449
polêmicas sobre o feminismo13 e a imigração, especialmente a islâmica14
na França. Essas três personalidades se posicionaram, contestando as
publicações compartilhadas por usuários, contestando tais montagens
com suas identidades, muito embora o conteúdo dessas reproduções
dialogava perfeitamente com seus posicionamentos políticos e sociais
no que toca ao tema da imigração. Após esses compartilhamentos em
rede, insinuações duvidosas a respeito do caráter de Mamoudou Gassama
se multiplicaram nas redes sociais, visando, particularmente, reforçar a
ideia de que o resgate realizado pelo maliano não poderia ser real, que
seria impossível para um humano; por isso, tratava-se de um cenário
montado, um espetáculo midiático.
Sob essa perspectiva, a memória do imigrante como clandestino,
farsante, impostor circula fortemente na internet, em diversos jornais e
redes sociais, possibilitando que tais sentidos dialoguem com o enunciado
verbovisual em análise. A charge de Aurel, na contramão da inferiorização
do imigrante, denuncia o tratamento social que se apresenta legitimado
pela política do governo federal: o imigrante, mesmo que naturalizado
francês, não deixará nunca de ser imigrante sob o olhar de seu outro, o
francês nativo.
O enunciado verbovisual pode produzir, ainda, sentidos que
apontam Mamoudou Gassama da charge de Plantu também na condição de
criminoso, pois seria improvável, para os cidadãos parisienses, de acordo
com a visão conservadora mostrada, que um imigrante tenha tamanha
habilidade para escalar um prédio. Logo, o enunciado verbovisual pode
indicar uma avaliação policial diante de um imigrante que é tomado
por delinquente: “menor ou maior?”. E o imigrante na charge de Aurel,
13
No controverso manifesto, em que acusam o feminismo de puritano e incitador
de ódio contra os homens, inspirado em declarações feitas pela atriz Catherine
Deneuve e publicado pelo Le Monde em 9 de janeiro de 2018, foram colhidas 100
assinaturas, entre elas, a da jornalista Elisabeth Lévy, que denuncia o “assédio
das mulheres contra os homens”. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/
article/2018/01/09/nous-defendons-une-liberte-d-importuner-indispensable-a-la-libertesexuelle_5239134_3232.html. Acesso em: 11 mar. 2019.
14
Elisabeth Levy defendeu ao vivo na BFM TV o jornalista Eric Zemmour, que lhe
concedeu uma entrevista bastante polêmica. A referida entrevista rendeu a Zemmour
uma investigação por parte do Ministério Público para o crime de “Apologia ao
terrorismo”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fB_2Jv0BKAM.
Acesso em: 11 mar. 2019.
450
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020
se encolhe na cadeira, pois sua resposta, seja qual for, possivelmente
resultará em prisão e deportação. Afinal, o que está em questão não é sua
idade civil, mas, sim, tratar-se de um imigrante africano pobre.
Essa memória do imigrante como marginal, farsante, impostor
é controversa, ainda mais quando se aciona a história da colonização
francesa com suas diversas usurpações de obras de arte, estátuas,
peças, tesouros, em países africanos. A restituição de objetos saqueados
por potências coloniais da África para a Europa é tema de debate
internacional, desde a convenção da Unesco, em 1970, contra a retirada
ilícita de bens culturais. Além de diversas tentativas em variados
momentos, a África voltou a pressionar a Europa em 2018 para que
seus tesouros fossem restituídos à origem: a maioria das obras africanas
adquiridas de maneira bastante questionável pelos países colonizadores
encontram-se em museus espalhados por toda Europa, por exemplo,
no Louvre e no Quai Branly, de Paris (França); no British Museum, de
Londres (Inglaterra); no Museu Real da África Central, de Tervuren
(Bélgica), para mencionar alguns.15
Diante disso, ao fazer emergir também a memória do imigrante
como fora da lei, a charge de Aurel revela que os discursos conservador
e policial silenciam o processo histórico das imigrações, uma vez que
funcionam no apagamento das ações saqueadoras da França em relação
aos países africanos. E não apenas isso. Apaga-se o fato de que a França
ainda mantém uma forte política militar-intervencionista em países
africanos,16 sendo que, em Mali, a última aconteceu em 2013 (PENNA
FILHO; BADOU, 2014). Essa relação (in)tensa que a França ainda
Para maiores informações sobre o assunto, acessar o link: https://www.dw.com/pt-br/
fran%C3%A7a-abre-caminho-para-devolver-arte-africana-da-era-colonial/a-46413723.
Acesso em: 22 abr. 2019.
16
“A França é, das antigas potências coloniais europeias, a que mais intervém nos
assuntos africanos. Desde o processo de descolonização até hoje, os franceses já
promoveram mais de cinquenta intervenções militares em países africanos (SIRADAG,
2014, p.119), ajudando a depor ou sustentando governantes de acordo com os seus
interesses. Trata-se, portanto, de um país que pratica uma ativa política intervencionista
no continente africano, sobretudo nos Estados que outrora estiveram sob o julgo do
colonialismo francês, e onde mantém ainda diversas bases militares” (PENNA FILHO;
BADOU, 2014, p. 157)
15
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020
451
mantém com países africanos ficou conhecida pelo termo Françafrique.17
Em síntese: os apagamentos promovidos por esses discursos resultam
no simulacro de diálogo construído pela/na charge de Aurel: “menor
ou maior?”, que, no todo arquitetônico do texto, pode significar
responsabilidade civil em relação à idade de Mamoudou Gassama tanto
para o discurso político conservador quanto para o discurso policial,
como também revelar a isenção da própria responsabilidade da França
colonizadora em relação à África.
Assim, o enunciado remonta a momentos históricos e sociais,
fazendo ecoar, pelo uso da linguagem verbovisual, vozes de grupos
sociais e suas filiações ideológicas que nem sempre coincidem com as
vozes autorais e críticas dos cartunistas Aurel e Plantu. Tais momentos
e inscrições revelam posicionamentos, constituem embates, conflitos e
contradições, e isso acontece porque o signo não encerra em si mesmo
um sentido único, nem é neutro no movimento enunciativo, pois revela
posições ao mesmo tempo em que responde a outras posições discursivas.
3 Considerações finais
A concepção arquitetônica, construída no conjunto das obras de
Bakhtin e do Círculo, deve ser tomada de modo relacional com outras
concepções e conceitos tratados pelo grupo de pensadores russos,
situando, especialmente, o funcionamento das relações dialógicas no
mundo da cultura. Bakhtin (2017) concebe a arquitetônica por meio
da relação tríade composta por espaço, tempo e sentido: ela é, pois,
responsável pela organização do sentido em relação ao “todo que
significa” um objeto estético. Mesmo que se trate de uma situação de
comunicação discursiva específica, como é o caso do estudo de discursos
sobre o imigrante em duas charges produzidas por cartunistas para um
“Entre as antigas potências coloniais, a França é a única que realmente procurou
e conseguiu manter, muito além da independência, sua influência sobre suas antigas
posses. Esse sistema de relações entre a França e a maioria de suas ex-colônias na
África tomou recentemente o nome de Françafrique [...]. O termo emprestado de Félix
Houphouët-Boigny foi desviado do seu significado original, dando-lhe uma conotação
polêmica e pejorativa por François-Xavier Verschave. Não é por essa razão que o termo
deva ser desqualificado, pois pode ser usado de uma maneira mais neutra e analítica
para designar e nomear este sistema de relacionamento muito específico que constitui
Relações franco-africanas”. (MÉDARD, 2002, p. 2, tradução nossa).
17
452
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jornal francês, a arquitetônica organiza o sentido no todo englobante e só
pode ser pensada em relação ao todo da cultura, com seus fundamentos
éticos e estéticos, que se concretiza nas e pelas interações sociais/
discursivas.
Os sentidos produzidos sobre o imigrante (herói, vilão, criminoso)
compreendem tanto a questão do ponto de vista autoral sobre a história
da França imperialista por meio da situação imediata de comunicação (o
episódio de salvamento do garoto por Mamoudou Gassama, veiculado
em diversas mídias no mundo todo), que gera os enunciados verbovisuais
em estudo, como também revelam a produção de diálogos entre diversos
discursos como o literário, o midiático, o político, o conservador, o
policial etc., que se constituem na e pela interação artístico-social do
enunciado sobre o imigrante. Isso implica que os sentidos possíveis
de serem produzidos sobre determinado objeto ou tema encontram-se
vivos na dinâmica do universo cultural e não há espaço ou tempo que
os aparte do enunciado.
Desse modo, as charges analisadas encontram-se plenas de
sentidos ambivalentes que acionam a memória de futuro, caracterizada
pela intersubjetividade: considerando-se o que já foi enunciado e o que
poderá ser ainda enunciado sobre o imigrante, entende-se que parte das
interações sociais/discursivas com o mundo vivo e (in)tenso da cultura
identifica, vai dotá-lo de identidade. Logo, o sentido e o fazer sentido só
podem ser construídos em relação de diálogo com a cultura.
A ambivalência manifestada nos enunciados verbovisuais em
estudo constituem um suporte de valoração para os sentidos, que nem
sempre coincidem; por isso as relações dialógicas apresentam sentidos
para imigrante que se deslocam de herói a criminoso em um embate sobre
o acontecimento imigração: dialogicamente, na construção de um projeto
de dizer dos cartunistas Plantu e Aurel, os enunciados verbovisuais se
chocam com o discurso político conservador, pela via de representação
da memória do imigrante, que não é una, mas plural e polissêmica no
âmbito da cultura. Os enunciados em relevo constituem, assim, atos
responsáveis, de construção ética e estética, de modo a instaurar sentidos
no todo arquitetônico, denunciando e, mesmo tempo, rompendo com a
visão imperialista, de construção secular, sobre o imigrante.
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453
Contribuição dos autores
Grenissa Bonvino Stafuzza contribuiu com o tema da imigração, com
foco no evento ocorrido em maio de 2018 com o imigrante maliano
Mamoudou Gassama na cidade de Paris, para ser trabalhada na esfera
jornalística a partir de reportagens publicadas no jornal francês Le Monde
e escreveu a fundamentação teórica de perspectiva bakhtiniana. Marcos
Lúcio de Sousa Góis contribuiu com as charges sobre a imigração para a
análise de discursos sobre o imigrante, escreveu a fundamentação teórica
que embasa as discussões e realizou o trabalho de revisão e correção
teórica e textual do artigo.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
Imigrantes japoneses e a língua portuguesa:
um caso de preconceito linguístico
Japanese immigrants and the Portuguese language:
a case of linguistic prejudice
Alexandre Marcelo Bueno
Universidade de Franca (Unifran), Franca, São Paulo / Brasil
alexandrembueno@gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-0798-3615
resumo: A língua está envolvida nos processos de construção da identidade e da
alteridade. Por isso, ela pode também ser utilizada para diferenciar negativamente o
outro a partir de processos de julgamento da fala alheia. O presente artigo apresenta
algumas considerações a respeito do preconceito linguístico contra os imigrantes
asiáticos e os seus descendentes no Brasil. Trata-se de um trabalho de viés histórico e
que utiliza a semiótica discursiva francesa para analisar textos jornalísticos publicados
a partir da segunda metade do século XX até os dias atuais. A partir do exame das
reportagens, observou-se a constante sanção sobre o mau uso que os imigrantes
japoneses e os estudantes de origem asiática fazem da língua portuguesa, a despeito
do destaque igualmente constante das qualidades de trabalhadores e de estudantes que
eles comportam nesses discursos. Desse modo, mesmo com uma imagem atualmente
positiva perante a sociedade brasileira, permanece o preconceito linguístico contra os
indivíduos de origem asiática no país.
Palavras-chave: preconceito linguístico; imigração japonesa; semiótica discursiva;
identidade; alteridade.
abstract: Language is involved in the processes of identity and alterity construction.
Therefore, it can also be used to differentiate negatively the other from processes of
judgment of the speech of others. This article presents some considerations regarding
linguistic prejudice against Asian immigrants and their descendants in Brazil. It is a
work of historical bias and that uses French discursive semiotics to analyze journalistic
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.455-478
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texts published from the second half of the twentieth century until the present day.
From the examination of the reports, the constant sanction on the misuse that Japanese
immigrants and students of Asian origin do of the Portuguese language was observed,
in spite of the equally constant prominence of the qualities of workers and students that
they carry in these speeches. Thus, even with a currently positive image for Brazilian
society, linguistic prejudice remains against individuals of Asian origin in the country.
Keywords: linguistic prejudice; Japanese immigration; discursive semiotics; identity;
otherness.
Recebido em 18 de junho de 2019
Aceito em 17 de agosto de 2019
1 Introdução
Apesar de há muito tempo ser considerada encerrada, a imigração
japonesa continua a ter algumas repercussões na sociedade brasileira,
sobretudo por meio das gerações que já nasceram no Brasil. Uma das
marcas dessa relação ocorre por meio da linguagem e, especificamente,
pelo modo como supostamente esse grupo ainda continua a usar mal a
língua portuguesa. Em uma perspectiva histórica, isso pode ser explicado
por alguns fatores, como a falta de escolas nas colônias para o ensino do
português entre os imigrantes, a diferença estrutural das línguas – o que
poderia dificultar o aprendizado e deixaria marcas que são comumente
conhecidas como sotaque – e pelo isolamento forçado das antigas
colônias de imigrantes japoneses no interior de São Paulo e do Paraná,
o que dificultaria o processo de aquisição da língua portuguesa pelas
novas gerações que nascessem nestes e em outros estados da federação.
De qualquer maneira, tais fatores não justificam a permanência,
para esses indivíduos, da imagem de mau usuário do português, sobretudo
quando se percebe que a sociedade brasileira passou por mudanças
sociais profundas, como a urbanização e a escolarização em massa
no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A manutenção de tal
imagem indica a presença de um preconceito linguístico derivado da
falta de compreensão das condições do processo de assentamento das
colônias japonesas no passado. Além disso, a título de hipótese, pode-se
especular se a questão linguística não serve para demarcar negativamente
uma diferença em relação a um grupo social que comporta vários traços
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
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positivos perante a sociedade brasileira, sem, contudo, se confundir
completamente com ela por conta de uma suposta “niponicidade inerente”
aos sujeitos desse grupo.
Este trabalho tem como objetivo apresentar elementos que
corroboram a manutenção do preconceito linguístico como distinção
negativa permanente em uma perspectiva diacrônica a partir de textos
publicados em veículos de comunicação de massa (como jornais e
revistas). Observaremos como o imigrante japonês e mais recentemente
seus descendentes são sancionados negativamente por meio do seu uso
“particular” da língua portuguesa.
As reportagens a serem examinadas são as seguintes: a) “O sol
também nasce no Ocidente”, publicada na revista O Cruzeiro em 1958; b)
“Vale a pena ser brasileiro?”, publicada pela revista Realidade em 1966;
c) notícias do jornal Folha de S. Paulo (“Ameaça Amarela: Brincadeira
entre alunos é ‘preconceito positivo’” e “‘Asiáticos’ procuram mais a
área de exatas na Fuvest”, ambas publicadas em 5 de setembro de 2002).
O primeiro texto é uma homenagem aos cinquenta anos da
imigração japonesa no Brasil. A reportagem é permeada por histórias
particulares de imigrantes e de sua relação com brasileiros. De um modo
geral, a reportagem constrói uma imagem bastante positiva dos imigrantes
japoneses. No entanto, de modo esparso, apresenta uma crítica ao modo
como o japonês utiliza a língua portuguesa. A segunda reportagem critica o
excesso de exigências burocráticas do processo de naturalização e mostra
os prejuízos causados ao Estado brasileiro pela lei de naturalização, que
impede o imigrante naturalizado de atuar em campos como a política e a
burocracia estatal. Nessa reportagem, chama a atenção a maneira como
se representa o modo de falar português do japonês. As duas reportagens
finais apontam para situações de preconceito linguístico contra estudantes
estrangeiros e estudantes de ascendência estrangeira mais evidente (como
os de origem asiática) no processo seletivo para ingresso em universidades.
Esperamos, assim, apontar a permanência de um preconceito
linguístico difuso que tem sua origem na chegada dos imigrantes
asiáticos no Brasil (em primeiro lugar, os japoneses, mas em décadas
seguintes, também chineses e coreanos). A despeito de uma imagem
positiva que eles têm perante a sociedade brasileira (a de trabalhadores
e estudantes qualificados), é preciso continuarmos alerta em relação a
formas de preconceito e de segregação contra populações consideradas
minoritárias em relação a uma suposta normatividade que sustenta a
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ideia de uma sociedade brasileira ainda homogênea e unitária. A seguir,
desenvolveremos algumas considerações sobre o preconceito linguístico
e sobre como os estudos discursivos podem contribuir para explicar o
funcionamento desse fenômeno.
2 algumas considerações sobre o preconceito linguístico
A língua é um dos principais elementos para a construção
da identidade do indivíduo e de seu grupo social, assim como para a
percepção da alteridade. O uso de uma variante linguística insere o
falante em um determinado grupo social, ou pelo menos o faz parecer
pertencer a esse grupo, ao mesmo tempo em que forma a sua identidade
e demarca-a em relação a indivíduos que compõem outros grupos sociais.
Por essas relações entre identidade e alteridade estarem fundadas
na linguagem, e só existirem por causa dela, percebemos que a língua
pode igualmente ser utilizada como uma forma de preconceito e de
discriminação. Para começarmos a entender a noção de preconceito
linguístico, é preciso fazer uma primeira distinção. De um lado, há um
preconceito produzido pela linguagem, ou seja, manifestado linguística e
discursivamente, como é o caso do racismo, da homofobia, da xenofobia,
entre outras formas. De outro, há um preconceito gerado pela linguagem
do outro, ou seja, um preconceito linguístico a partir do qual o outro é
julgado pela linguagem de quem é preconceituoso (BARROS, 2015,
p. 62). É sobretudo essa última forma que examinaremos nos casos
apresentados a partir da próxima seção.
Além disso, é preciso distinguir o preconceito, seja ele linguístico
ou não, da intolerância. Leite (2008) apresenta a seguinte distinção que
nos parece bastante produtiva pelas oposições que estabelece:
O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o
indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um nãogostar, um achar-feio ou achar-errado um uso (ou uma língua),
sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o
que viesse a ser o bonito ou correto. É um não-gostar sem ação
discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário,
é ruidosa, explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um
discurso metalinguístico, calcado em dicotomias, em contrários,
como, por exemplo, tradição x modernidade, conhecimento x
ignorância, saber x não-saber, e outras congêneres (grifos da
autora, LEITE, 2008, p. 24-25).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
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O preconceito linguístico está relacionado, assim, a uma imagem
negativa formada por uma opinião errônea e irrefletida. Já a intolerância
linguística apresenta uma formulação mais elaborada a partir do momento
em que estabelece oposições que vão rebaixar ou, em seu limite, excluir
determinado indivíduo que não se adapta a um determinado padrão
linguístico imposto.
Ademais, o preconceito linguístico pode incidir sobre variantes
desprestigiadas da língua portuguesa e sobre determinadas línguas
estrangeiras, a depender também da relação com a classe social do
brasileiro ou com a origem do estrangeiro. Em relação aos imigrantes,
pensamos em um preconceito linguístico que incide no uso de determinado
idioma estrangeiro em solo brasileiro ou ainda no uso do português pelos
estrangeiros. No primeiro caso, a representação positiva ou negativa de
determinada língua está associada à valorização ou à desvalorização de
determinados países estrangeiros. Uma língua estrangeira pode, assim,
ser mais bem vista e valorizada em relação à língua nacional (como
no caso do inglês e do francês), assim como outra língua estrangeira
pode não gozar do mesmo prestígio perante a sociedade, a depender da
imagem que se tem dos países estrangeiros. As línguas desprestigiadas
em relação à língua nacional no Brasil são, por exemplo, as línguas
africanas, indígenas ou asiáticas, nesse último caso principalmente de
países cujas imagens remetem a uma avaliação negativa (como a China
apresentava até pouco tempo atrás).
Mesmo utilizando a língua do país que o “acolheu”, o imigrante
mantém algo que o distingue: o sotaque.1 Esse fenômeno não se limita ao
aspecto fonético da língua, mas repercute no campo da interação social.
Assim, o sotaque do estrangeiro será sempre apontado como diferença
produzida e percebida, na qual o falante do grupo de referência não
reconhece o outro como sendo de sua própria comunidade ou grupo
socioletal.
Essa falta de reconhecimento surge por meio de uma espécie de
parâmetro linguístico, a partir do qual o desempenho linguístico de quem
sofre o preconceito é avaliado. Um dos parâmetros já foi mencionado:
“Chama-se sotaque ao conjunto dos hábitos articulatórios (realização dos fonemas,
entonação etc.) que conferem coloração particular, social, dialetal ou estrangeira à fala
de um indivíduo (sotaque ou pronúncia caipira, nordestina, alemã etc.)” (DUBOIS et
al, 2007, p. 565).
1
460
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são as línguas dos países estrangeiros considerados econômica e
culturalmente mais desenvolvidos, como EUA, França, Inglaterra, entre
outros. O outro parâmetro, já interno à língua portuguesa, é a chamada
norma culta, que serve igualmente para se examinar o modo como os
imigrantes utilizam o português (com mais ou menos sotaque, com
sotaques mais bonitos ou mais feios, com supostos erros gramaticais
etc.).
A norma culta é produtora de preconceitos e pré-juízos linguísticos
pelo fato de o grupo social em geral ser tomado a partir de uma “posição”
social privilegiada e que possui acesso maior aos bens materiais e
simbólicos. O seu conceito correlato é o de norma linguística, entendida
como o uso comum da língua por determinado grupo. Consequentemente,
a norma linguística é o elemento de identificação e distinção do grupo,
incluindo certas práticas e expectativas linguísticas internas que definem
o grupo. Porém, como os grupos não estão isolados, mas em constante
e permanente contato, as normas acabam por se influenciar (FARACO,
2002, p. 38-40). Assim, a norma padrão não se confunde com a norma
culta, mas está mais próxima dela do que das demais normas. No caso
brasileiro, no século XIX, a norma foi construída tendo por base um
padrão lusitano de escrita e não a norma culta praticada naquele momento
pela elite letrada da sociedade brasileira.
Essas críticas em relação ao modo de falar de certos indivíduos,
que se “desviam” de um padrão previamente determinado, pressupõem
interpretações e avaliações que homologam a variação linguística e a
posição social ocupada pelos falantes “julgados” (LUCCHESI, 2002,
p. 64). Nessa perspectiva, os imigrantes ocupavam, e ainda ocupam,
uma posição inferior dentro da sociedade brasileira, apesar de serem
funcionalmente privilegiados pelo trabalho que realizam na agricultura
ou no comércio.
É no ponto de julgamento que a semiótica contribui para o
entendimento do discurso preconceituoso. Segundo Barros (2015, p. 6368), o preconceito faz parte do discurso intolerante, cuja característica
principal é a de ser um discurso de sanção.2 Em outras palavras, os sujeitos
2
A sanção é a última etapa do esquema narrativo. Ela se caracteriza pelo ato de julgar a
ação do sujeito do fazer, cujas consequências são, de um lado, seu reconhecimento como
sujeito competente e cumpridor de sua parte do contrato fiduciário (sanção cognitiva) e,
de outro, como uma retribuição realizada pelo destinador-julgador (sanção pragmática)
(GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 426-427).
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que sofrem a ação de um sujeito intolerante são aqueles considerados
maus cumpridores de contratos sociais diversos, dentre eles o contrato
linguístico do uso da língua nacional do país de acolhimento do imigrante
ou do bom uso da língua nacional, seguindo a norma culta como padrão
desse contrato3 de uso linguístico. Quando esses sujeitos não se mostram
bons usuários da língua nacional, eles se tornam foco de preconceitos
e de intolerâncias de diversas ordens, que podem segregar e excluir a
alteridade. Não vamos aqui nos deter em explicações detalhadas da
proposta de Barros (2015, 2016), a cujos trabalhos remetemos o leitor
interessado. No entanto, vamos explicar rapidamente a parte referente
ao preconceito, uma vez que todo sujeito intolerante é também um
sujeito preconceituoso, enquanto nem todo sujeito preconceituoso se
torna intolerante. Além disso, não se justificaria nos alongarmos nas
explicações sobre a intolerância linguística pelo fato de não analisarmos,
no presente artigo, nenhum caso que se enquadra em suas características.
O preconceito surge, para a semiótica, quando há paixões
malevolentes4 envolvidas no discurso, como as paixões do ódio, da
antipatia, da raiva, da xenofobia. Estas são paixões do querer fazer
mal a um sujeito que não cumpriu sua parte do contrato social. Assim,
são paixões que ainda não levaram o sujeito a fazer, efetivamente,
mal ao outro, mas apenas a desejar esse mal de alguma maneira, seja
por meio de uma exclusão, seja por meio de uma avaliação negativa
que é generalizada a todo um grupo social. Em geral, os discursos
preconceituosos apresentam, ao lado da paixão malevolente, paixões
benevolentes, ou seja, do querer fazer bem, que são direcionadas aos
seus iguais, como o amor à pátria, a fraternidade de sua religião, a
solidariedade linguística daqueles que utilizam uma forma peculiar da
língua (são, então, considerados autênticos) etc.
Em suma, veremos como essas configurações do preconceito
linguístico surgem em relação aos imigrantes japoneses e aos seus
3
Em semiótica, o contrato é o ato fundante da solidariedade entre destinadormanipulador e destinatário-sujeito. É por meio desse ato que se funda a confiança de
cumprimento da ação proposta por ambas as partes e é o que faz desencadear a etapa da
performance, ou seja, da ação propriamente dita, entendida como uma transformação
de estados do sujeito (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 99-101).
4
Paixões malevolentes se referem aos estados de alma que se organizam modalmente
como um querer fazer mal a um outro (BARROS, 2002, p. 67).
462
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descendentes. Além disso, observaremos ainda que o preconceito contra
os imigrantes japoneses se estende, de alguma forma, para os demais
grupos imigrantes asiáticos, muitas vezes, inclusive, encarados de modo
indistinto pela sociedade brasileira.
3 Dois tipos de sanções sobre o português usado pelo trabalhador
imigrante japonês
Nesta seção, examinaremos duas reportagens que representam
modos distintos de a sociedade brasileira se relacionar com os imigrantes
no Brasil. O primeiro discurso é da revista O Cruzeiro, que publicou uma
reportagem em homenagem aos 50 anos de imigração japonesa para o
Brasil em sua edição de 14 de junho de 19585 (“O sol também nasce no
Ocidente”).
O texto constrói uma imagem bastante positiva do imigrante
japonês e de seus descendentes. O foco de tal distinção recai, sobretudo,
na contribuição desses imigrantes para o desenvolvimento econômico
brasileiro, figurativizado6 pelo árduo esforço nas lavouras paulistas e
paranaenses. A reportagem em questão começa com um texto em japonês
que é, logo em seguida, traduzido para a língua portuguesa. É a tradução
que reproduzimos abaixo:
Com esta reportagem, ‘O Cruzeiro’ está prestando sua homenagem
à colônia japonesa do Brasil, pelo meio século de imigração que,
de mãos enlaçadas com as nossas, nestes dias comemora. Em
junho de 1908 chegava às terras brasileiras o primeiro contingente
de imigrantes do Japão; em junho de 1958 relembramos aquele
primeiro grupo para dizer-lhe uma única palavra pelo caminho que
abriu: obrigado. Não fossem os que chegaram há 50 anos e hoje
talvez não pudéssemos publicar esta reportagem que se escreve
em números e dados, mas também em sentimentos, porque nela
se conta o muito, o inacreditável quase, que os japoneses têm
A data oficial de início da imigração japonesa é 18 de junho de 1908, quando chegou
ao porto de Santos o navio Kasato Maru.
6
Figurativização é o procedimento de se revestir uma determinada estrutura abstrata de
elementos semânticos que remetem ao mundo natural. A figurativização ancora, assim,
o discurso em uma espécie de simulacro da realidade, tal como é construída por um
texto-objeto (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 210-212).
5
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feito pelo desenvolvimento econômico do Brasil. Nossa alegria
é que tivemos participação ativa nessa lição de fraternidade que,
juntos, hoje podemos transmitir ao mundo. Nosso pesar é não
poder publicar em caracteres japoneses, para os nossos irmãos
novos que ainda não leem o português, tudo quanto se conta nestas
páginas. A esses dedicamos estas palavras. A eles, aqui fica o nosso
agradecimento (PAGOTE; MORAES, 1958, p. 21).
O agradecimento aos imigrantes japoneses é uma forma explícita
de sanção positiva realizada pelo enunciador. De um lado, a sanção
cognitiva se refere ao reconhecimento da competência do trabalhador
imigrante japonês. De outro, a sanção pragmática se refere, na reportagem,
ao trecho escrito em japonês, como uma forma de retribuição para que eles
compreendam o que está sendo dito e, principalmente, o que o enunciador
(e a sociedade em geral) pensaria sobre a presença do imigrante japonês.
Há, assim, uma espécie de solidariedade linguística quando o
enunciador lamenta não poder prosseguir o texto em língua japonesa.
Contudo, essa lamentação também comporta o reconhecimento de
que existem ainda imigrantes que, por alguma razão, não tiveram a
oportunidade ou o interesse em aprender o português. De qualquer
modo, a questão linguística fica em segundo plano porque o discurso
da reportagem é predominantemente positivo em relação a esse grupo
estrangeiro, sobretudo por meio de uma isotopia temática7 econômica que
atravessa quase toda a reportagem e cuja estratégia é mostrar as vantagens
dessa imigração para o país. Em um segundo plano, a reportagem constrói
a imagem positiva do imigrante japonês como uma forma de se tentar
influenciar o governo brasileiro a incentivar e a incrementar a entrada
de mais japoneses no país.
Junto à isotopia econômica, a reportagem reitera temas e figuras
associados às dificuldades de adaptação dos imigrantes, à honestidade
e ao caráter dos japoneses, à disposição para se integrarem (incluindo
7
Isotopia, segundo a semiótica, é a reiteração de elementos semânticos em um discurso.
Ela é responsável pela manutenção da coerência discursiva. No caso da isotopia temática,
a repetição de elementos ocorre em um nível mais abstrato, com elementos semânticos
que conceituam o mundo. No caso da isotopia figurativa, a sequência semântica que
mantém uma linha semântica coerente se refere a elementos que remetem à constituição
“concreta do mundo” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 275-278).
464
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mudar de religião), entre outras qualidades. Apesar de a reportagem
flertar com uma gratidão excessiva a um povo discursivamente construído
como competente para o trabalho e que tem a honestidade como um
de seus pilares éticos fundamentais, parece haver um único defeito a
ser considerado no que o texto sugere como política imigratória para o
governo brasileiro, como se observa no trecho abaixo:
Depois da guerra, a aculturação dos japoneses processou-se em
ritmo acelerado e deixou de existir o problema dos quistos raciais
nipônicos. As universidades estão cheias de ‘niseis’ que, de
oriental, possuem apenas os olhos oblíquos. Em todos os setores
da vida brasileira, inclusive na política, os imigrantes nipônicos e
seus descendentes participam ativamente. Alega-se com frequência
que os japoneses fazem questão de se reunir em grupos fechados
para o desempenho de atividades artístico-culturais. Em primeiro
lugar, esses grupos não são fechados. E, em segundo lugar, uma
forma magnífica de demonstrar sentimento de brasilidade é
introduzir no nosso meio os elementos de uma cultura milenar
que sempre causou inveja ao Ocidente. O Deputado João Sussumu
Hirata constatou que a grande maioria de japoneses budistas ou
sintoistas estão batizando seus filhos em igrejas cristãs. Que maior
demonstração de boa vontade pode dar um imigrante quando
sacrifica sua crença pessoal em favor da religião predominante no
país que adotou como pátria? Já é tempo de o Instituto Nacional de
Imigração e Colonização compreender a desvantagem de insistir na
vinda para o Brasil de desajustados8 que somente têm contribuído
para agravar os nossos problemas urbanos. Em vez de persistirmos
numa política imigratória errada, intensifiquemos a vinda de
imigrantes japoneses. Eles, como registra o anedotário popular,
estropiarão o idioma português, mas não há a menor dúvida de que
estenderão por todo o Brasil, o milagre de São Paulo e do Paraná
(PAGOTE; MORAES, 1958, p. 24-26).
O trecho retoma alguns dos temas reiterados na discussão sobre
a “qualidade” da imigração japonesa no começo do século XX. Assim,
a reportagem recupera o tema de que os imigrantes japoneses tinham
a tendência de se isolarem da sociedade brasileira, em um processo de
Quando a reportagem menciona os “desajustados”, ela está se referindo aos refugiados
e deslocados de guerra.
8
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465
formação dos quistos étnicos, cuja isotopia biológica não entrará em
nossas considerações, mesmo porque o trecho da reportagem destaca
que o mais importante são as provas de assimilação e integração que os
imigrantes japoneses e seus descendentes davam à sociedade brasileira,
como a conversão ao catolicismo, a presença nas universidades e ao já
mencionado desenvolvimento econômico na área da agricultura nos
estados de São Paulo e do Paraná. Essa oscilação entre isolamento e
integração fazia parte das discussões a respeito da qualidade da imigração
japonesa e esteve presente desde o início da imigração japonesa para
o Brasil, ora nos meios de comunicação de massa, ora no discurso da
elite acadêmica ou burocrática brasileira. Nessa etapa da imigração
japonesa no final da década de 1950, o trabalhador japonês se mostraria
disposto (“boa vontade”) a interagir com os brasileiros porque queria ser
considerado também um brasileiro, ou seja, desejava ser visto como um
estrangeiro assimilado, segundo o ponto de vista do enunciador.
É na parte final da reportagem que aparece o preconceito em
relação à capacidade e à competência linguística do imigrante japonês.
Apesar de ser considerado um problema menor, o preconceito linguístico
mantém, como uma suposta verdade, a ideia de uma incompetência do
imigrante japonês para desenvolver adequadamente o uso da língua
portuguesa nas condições mais elementares da vida cotidiana.
A língua é, assim, relegada a um segundo plano social – o das
anedotas –, enquanto o plano mais pragmático é usado para a construção
positiva da integração do imigrante japonês à sociedade brasileira. Nessa
etapa histórica, o que interessa ao país e à sociedade é um trabalhador
imigrante competente, esforçado e honesto. A questão linguística e,
consequentemente, cultural, é preterida, apesar de também ser alvo de
um julgamento e, por isso, ser marcada.
Diante de um trabalhador imigrante que parece beirar a
perfeição, segundo o discurso, a única saída parece ser a de “brincar”
com a dimensão linguística para apontar ao menos um defeito, por mais
irrelevante que possa parecer. É justamente a questão linguística que
veremos desenvolvida de uma outra maneira, mas também de modo
irônico, em relação ao modo de falar do imigrante japonês na próxima
reportagem a ser examinada.
A revista Realidade publicou, em 1966, a reportagem intitulada
“Vale a pena ser brasileiro?”. Apesar de claramente defender a existência
466
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da naturalização no país, o texto é uma crítica ao modo como ela era
realizada naquele momento. O enunciador opta por apresentar elementos
que indicam que a naturalização era ainda uma opção desvantajosa para
o imigrante que decidiu fixar residência no país.
A reportagem mostra como muitos imigrantes naturalizados
contribuem em diferentes áreas (econômica, esportiva e cultural) para o
desenvolvimento do Brasil. A vida desses imigrantes, tomada como um
exemplo, serve também para salientar que o país ainda precisa perceber
que está perdendo a oportunidade de se desenvolver ainda mais no campo
econômico por não demonstrar interesse e reconhecimento aos que, a
despeito das dificuldades em se tornar brasileiro, ajudam o país a crescer
e a melhorar em suas áreas de atuação.
Por conta das dificuldades para se naturalizar e das proibições a
algumas atividades, o imigrante fica em uma espécie de encruzilhada:
continuar imigrante ou transformar-se em um cidadão brasileiro de
segunda classe? Segundo o texto, a primeira opção é a escolhida pela
maior parte dos imigrantes. Para explicar essa situação, a reportagem
exemplifica com a entrevista de um imigrante italiano:
– Como estrangeiro, munido de carteira modelo 19, toco
normalmente minha vida. Continuo sendo cidadão de primeira
classe de um grande país, com o qual não tenho hoje ligação
alguma, mas que também não me aborrece. Em qualquer
emergência, tenho o Consulado à disposição, para falar em
meu favor. O Brasil não criou, em nenhum momento, qualquer
incentivo, mesmo psicológico, nem manifestou o menor interesse
em que eu me naturalize. Não peço a cidadania brasileira porque
sei que, com ela, vou me tornar um homem com direitos limitados,
um semicasado, um meio cidadão. Então nem duvido: continuo
italiano (MARIANI apud RIBEIRO, 1966, p. 51).9
O relato acima mostra as duas opções para o imigrante:
permanecer com sua nacionalidade de origem ou se tornar brasileiro. O
texto indica que a primeira opção é mais interessante para o imigrante.
Dentre as vantagens, ele lista as seguintes: ser “cidadão de primeira
classe”, ou seja, continuar sendo um cidadão pleno em termos de
direitos (seja como imigrante, seja como cidadão italiano); ausência de
9
Carteira 19 é o documento de identificação do registro do estrangeiro no Brasil.
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467
aborrecimentos, ou seja, de tudo o que pode incomodar ou atrapalhar sua
existência e sua vida cotidiana; saber que tem uma instância burocrática
(o Consulado) que pode socorrê-lo em qualquer momento de “perigo”,
ou seja, o imigrante continua a ter um destinador em que confia. Além
disso, esse mesmo imigrante mostra que faltam incentivos (materiais ou
psicológicos) e interesse do Estado brasileiro, além da já citada limitação
de direitos. Dessa forma, a fala do imigrante mostra que o Estado não
se mostra disposto a manipular (por tentação, pois há uma doação de
objeto de valor representado pelo léxico “incentivo”)10 o imigrante a
se naturalizar. Em outras palavras, o Estado brasileiro não apresenta
qualquer interesse em propor um novo contrato para transformar a
nacionalidade desse imigrante.
O ponto de vista é do imigrante entrevistado, e seu movimento
é o de sancionar o governo brasileiro negativamente. Um dos aspectos
mencionados por ele é a falta de um contrato social de naturalização
vantajoso, por meio de algum incentivo ou ao menos a demonstração
de um certo interesse que pudesse levá-lo a se considerar um cidadão
completo e pleno de direitos no país. Ao mesmo tempo, o imigrante
sanciona o Brasil negativamente, como um todo, por meio de uma sanção
positiva de seu país de origem, mesmo que, no seu caso, ele não tenha
mais nenhum tipo de contato ou aproximação.
Podemos entender que o Estado brasileiro não apresentou
nenhum tipo de sinalização para o que se pode chamar de assimilação
(LANDOWSKI, 2002), ou seja, um regime de interação no qual a
identidade (no caso, o Estado brasileiro) se configura como um ponto de
integração em que a alteridade (no caso, o imigrante) precisa abrir mão
de alguns de seus elementos constitutivos para ser aceito e para deixar
de ser considerado como outro. Assim, a reportagem procura manipular
o governo brasileiro para que a lei de naturalização seja revista e, assim,
possa integrar adequadamente todos os imigrantes que queiram obter a
nacionalidade brasileira.
A manipulação é a primeira etapa do esquema narrativo. Ela é definida pela semiótica
como um fazer-fazer, ou seja, por um fazer o outro fazer algo em uma atribuição de
competência modal. Há quatro formas de manipulação, que se diferenciam pela sua
organização modal: a tentação, a intimidação, a provocação e a sedução. A tentação,
que nos interessa nesse caso, é definida por um destinador-manipulador que tem a
modalidade do poder-fazer o outro (o destinatário) querer-fazer (BARROS, 2002, p. 38).
10
468
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De qualquer forma, o que nos interessa mais de perto nesta
análise é a questão linguística, que não aparece no trecho acima. Ela
aparece quando a reportagem instaura discursivamente o representante
da imigração japonesa – Hiroshi Saito, agricultor –, a partir de uma
peculiaridade: a forma como ele se expressa. Vejamos:
No supermercado, uma senhora compra frutas. Fica encantada
quando vê aquelas uvas brancas, imensas, cada uma do tamanho
de uma noz. Pensa no preço e pergunta:
– São uvas do estrangeiro, não?
O vendedor diz que sim. A freguesa ainda vai dizer qualquer coisa,
mas um japonês de óculos se intromete:
– Entarandgero non. Uva barasirêro, garantido. Uva chama Itaria
mas é parantada aqui, colhida aqui. Uva barasirêro cem por cento
(SAITO apud RIBEIRO, 1966, p. 55).
Em toda a reportagem, o imigrante japonês é o único a ser
representado com uma transcrição que supostamente apresentaria o seu
sotaque. Os demais imigrantes, de origens muito distintas (como o italiano
anteriormente mencionado), não apresentam esse tipo de representação
da fala, que nada mais é do que uma tentativa de marcação do sotaque
que os imigrantes japoneses quase sempre carregam. A partir dessa
diferenciação, marcada no plano da expressão da revista, uma primeira
pergunta se impõe: os demais imigrantes não possuem qualquer tipo de
variação fonética digna de ser representada textualmente por meio de um
simulacro como o do imigrante japonês? Pelo que se observa em todos
os depoimentos transcritos na reportagem, a resposta seria não. Uma
segunda pergunta se coloca, a partir da resposta da primeira: então, o
que faz com que o enunciador marque o sotaque do imigrante japonês?
Talvez seja a peculiaridade ou alguma graça que ocorre a partir de uma
sanção em relação ao fazer linguístico do imigrante japonês, o fato de ele
poder “estropiar” o idioma, como observamos na reportagem anterior.
De qualquer forma, nenhuma das duas respostas explicam o porquê de,
em seguida, o enunciador voltar a dar voz ao imigrante japonês, mas já
sem as marcações de seu sotaque, como vemos a seguir:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
469
Saito diz apenas:
– A melhor maneira de se viver e de se produzir, não é em
liberdade? Eu escutava a uva e a deixava fazer o que quisesse,
procurando entender sua natureza, sem forçá-la (SAITO apud
RIBEIRO, 1966, p. 55).
Não é possível afirmar categoricamente que há, nesse exemplo,
um caso de preconceito linguístico, mas fica uma representação que
destaca linguisticamente o modo de falar do imigrante japonês, em um
simulacro talvez jocoso, aspecto não encontrado em outros imigrantes
presentes na mesma reportagem. Todos os imigrantes são construídos
discursivamente de maneira eufórica, ou seja, positiva, com a ressalva à
marcação linguística que aparece no caso do imigrante japonês.
Como visto, a imagem do imigrante naturalizado é elaborada
positivamente pela reportagem. São, de um modo geral, sujeitos bemsucedidos em sua área de atuação e que apresentam uma ligação afetiva
com o Brasil. Dessa forma, a reportagem mostra que o país só tem a
ganhar com um maior número de imigrantes naturalizados e, para que isso
se torne realidade, basta o governo reformar a lei de naturalização com
o intuito facilitar a integração do imigrante à sociedade nacional. Apesar
da menção linguística trabalhada no plano da expressão da reportagem,
nada sobre a questão educacional é mencionado na reportagem, nem
sobre o ensino da língua portuguesa, nem outras formas de acolhimento
que deveriam ser pensadas e aplicadas pelo Estado brasileiro.
Essa falta de uma política imigratória que previsse igualmente
maneiras de acolhimento e de permanência dos grupos imigrantes ainda
se reflete atualmente, uma vez que a educação não é uma prioridade
para o Estado brasileiro. No entanto, esse encontro entre o programa
narrativo dos imigrantes e a ausência do Estado também cria situações
de permanência de um certo preconceito linguístico contra os estudantes
dessa origem. É esse aspecto que desenvolveremos na próxima seção.
4 Estudantes brasileiros de origem asiática: perpetuação do
preconceito linguístico?
Para analisar a construção da imagem dos estudantes de origem
japonesa nos chamados cursinhos, utilizamos duas reportagens do
jornal Folha de S. Paulo (“Ameaça Amarela: Brincadeira entre alunos
é ‘preconceito positivo’” e “‘Asiáticos’ procuram mais a área de exatas
470
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na Fuvest”, ambas publicadas em 05 de setembro de 2002). Ambas
as reportagens tratam do estereótipo dos descendentes de imigrantes
asiáticos no contexto escolar (nesse caso, principalmente na situação
de vestibular) e em como esse estereótipo determina a relação com os
demais vestibulandos.
É comum encontrarmos os seguintes ditados nos cursinhos:
“enquanto você respira, tem um japonês estudando” ou “mate um japonês
para garantir sua vaga na USP”. Esses ditados, de tom jocoso e usados
em uma chave irônica – como se todo esforço de um estudante de origem
ocidental não fosse o suficiente para competir com um estudante de
origem asiática para ingressar nos cursos mais concorridos –, decorrem
de uma imagem cristalizada dos descendentes de japoneses (e de outros
asiáticos) na sociedade brasileira. Essa imagem associa os estudantes
“orientais” a uma grande dedicação e disciplina para os estudos, não
apenas nessa fase de ingresso em uma universidade, mas em qualquer fase
da vida escolar. Podemos ver isso claramente no trecho a seguir, tirado
da reportagem: “‘Enquanto você está aqui, há um japonês estudando’ ou
‘morte aos japoneses’ são pichações comuns em banheiros de cursinhos
pré-vestibulares” (NICOLETTI, 2002c, p. 3).
As frases pichadas nos banheiros revelam dois aspectos do
estereótipo do estudante de origem asiática. De um lado, a dedicação
aos estudos; de outro, a tentativa de “eliminação” desse estudante por
ele ser considerado um competidor mais bem preparado para entrar na
universidade. A dedicação ao estudo pode ser mais bem explicada na
reportagem, como vemos abaixo:
No imaginário dos vestibulandos, “olhos puxados” costumam
ser associados à inteligência e à capacidade de estudo, logo a um
melhor desempenho nas provas e à ameaça na disputa por uma
vaga na universidade. Os números do último vestibular da Fuvest
mostram que, de fato, estudantes de origem asiática tiveram
melhor aproveitamento nos exames – a taxa de aprovação dos que
se declaram amarelos é de 9,8% e a de brancos é de 6,7%.
A explicação para as boas notas não se deve a nenhuma característica
genética dos orientais, mas sim pode estar relacionada, segundo
especialistas, à cultura de valorização da educação – o que muitas
vezes significa cobrança dos pais e longas horas de estudo.
O pai de Aldo Miike, 20, sempre exigiu o bom desempenho
escolar do filho. “Agora, ele não pressiona tanto como antes,
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
471
mesmo porque já estou acostumado a estudar muito”, disse o
estudante, que vai tentar uma vaga em relações públicas na USP
(NICOLETTI, 2002a, p. 1).
O trecho utiliza dados da Fuvest (maior vestibular do país)
para comprovar a imagem de alunos inteligentes e competentes dos
asiáticos no momento da seleção para ingresso na maior universidade
do país (o número de estudantes de origem asiática na universidade é
proporcionalmente maior em relação aos demais grupos que compõem a
sociedade brasileira). Ao mesmo tempo, a reportagem deixa claro que essa
competência do estudante de origem asiática não pode ser explicada em
termos “raciais”, ou seja, como uma predisposição genética que os faria
mais inteligentes que os demais estudantes. O fato de esses estudantes se
destacarem no vestibular pode ser explicado pela dedicação aos estudos
imposta pela família, como vemos no último parágrafo do trecho citado.
Justamente por haver uma manipulação de seus pais (por intimidação e
por provocação),11 o estudante de origem asiática se reveste da modalidade
do /dever-saber/ para ter o desempenho esperado pelos seus pais.
As características dos estudantes de origem asiática podem ser
compreendidas como hábitos ou comportamentos adquiridos no seio
familiar, com a diferença de que não se trata mais de um traço inerente
ao /ser/ do estudante de origem asiática, mas sim a alguma forma de
“estilo de vida” da família desse estudante. Em outras palavras, a “fatores
culturais”, como se afirma no trecho a seguir:
O fator cultural pode caracterizar a maneira como alguns
descendentes de orientais estudam. Segundo o professor Santos,
eles costumam valorizar a disciplina, a ordem e a concentração.
“Nós [ocidentais], quando estudamos, ouvimos música e nos
expomos a outras fontes de dispersão. O oriental concentra-se
totalmente no estudo” (NICOLETTI, 2002b, p. 3).
Dessa forma, o texto constrói dois simulacros distintos: de
um lado, o estudante de origem asiática com traços de disciplina,
ordem e concentração; de outro, o estudante “ocidental” disperso.
11
Em termos modais, a intimidação é organizada por um destinador dotado de poderfazer o outro dever-fazer (destinatário). Já a provocação é da ordem do saber-fazer o
outro dever-fazer (BARROS, 2002, p. 38).
472
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Consequentemente, o discurso mostra que as características do estudante
asiático são mais valorizadas no momento do estudo, enquanto o
estudante “ocidental” apresenta traços negativos para o sucesso do fazer
previsto no momento do vestibular, sanção essa presente no horizonte de
expectativas de vários estudantes nessa etapa da vida. É interessante ainda
observar como foi colocado pelo enunciador, entre colchetes, a palavra
“ocidentais” para marcar a diferença entre estudantes não asiáticos e os
descendentes de imigrantes asiáticos.
Essa diferenciação é ainda observada no subtítulo da própria
reportagem: “Estereótipo não deve levar vestibulando a temer
concorrência com ‘orientais’”. Em certa medida, o enunciador mostra
como os estudantes de origem asiática são identificados pelos demais
estudantes: a partir do gentílico de seus antepassados. Isso, levando-se em
conta que a grande maioria desses estudantes “orientais” são brasileiros.
O discurso estabelece, assim, outra oposição (falsa, na realidade):
os estudantes “brasileiros” e os estudantes “orientais”. Vemos, assim, a
força com que a imagem dos estudantes de origem asiática é construída
a partir dessa diferença de aparência (desvio do estudante branco,
ocidental). Consequentemente, a oposição leva à construção do
estereótipo do estudante de origem asiática.12
Ainda com base no enunciado anteriormente destacado, observamos
que a reportagem tem claramente como enunciatário os estudantes
“brasileiros”, ou seja, os de origem não asiática. O texto do jornal procura
desconstruir, parcialmente, o estereótipo do estudante de origem asiática
como forma de eliminar um possível “temor” dos estudantes em relação
aos seus “concorrentes” por um lugar na universidade.
A capa do caderno especial, voltado para alunos no período
pré-vestibular, apresenta o título, sem aspas, da “ameaça amarela”,13
Precisamos, contudo, deixar claro que o estereótipo não é uma figura construída
somente por essa reportagem. Na verdade, a reportagem “veicula” o estereótipo do
estudante de origem asiática encontrado frequentemente nos cursos pré-vestibulares.
13
Antes mesmo do início do processo imigratório japonês para o Brasil, já existiam
discursos que associavam os imigrantes japoneses a temas como “perigo amarelo”,
“formação de quistos étnicos” e “caráter inassimilável do nipônico”. O discurso
antinipônico teve seu ponto culminante nas primeiras décadas do século XX, quando uma
série de trabalhos acadêmicos, artigos de opinião e outros discursos contra os imigrantes
japoneses surgiram nos EUA, no Peru e no Brasil (DEZEM, 2005, p. 185-204).
12
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retomando, assim, o discurso da suposta ameaça nipônica no Brasil.
Esse discurso remete, frequentemente, à ideia de invasão nipônica e
do Estado dentro do Estado14, muitas vezes ligado também à noção de
que os imigrantes japoneses e seus descendentes são um grupo social à
parte porque não se integraram à sociedade brasileira. Retoma-se, assim,
um discurso produzido durante a Segunda Guerra Mundial, quando
Brasil e Japão estavam em lados opostos no conflito bélico. Dessa
forma, a reportagem parece se preocupar em desfazer o estereótipo dos
estudantes de origem asiática para tranquilizar o estudante “brasileiro”
e não porque o estudante “oriental” pode vir a ser vítima do preconceito
alheio.
Mesmo com essa imagem altamente positiva na competição por
uma vaga nos cursos mais concorridos, há espaço para a construção do
preconceito linguístico contra os estudantes de origem asiática. Assim,
o aspecto negativo de tais sujeitos está relacionado a outra marca desse
estereótipo: a de que os descendentes de asiáticos seriam bons alunos
na área de ciências exatas por supostamente não dominarem a língua
portuguesa de modo considerado apropriado. Essa questão do estereótipo
em relação ao uso da língua portuguesa aparece de forma implícita no
seguinte exemplo:
Segundo Francisco Hashimoto, professor de psicologia da
Unesp de Assis, os imigrantes orientais, ao chegarem ao Brasil,
tinham dificuldades com a língua, o que impunha obstáculos ao
aprendizado das matérias de humanas. “O cálculo matemático é
uma linguagem universal e, por isso, não causa problemas”, disse
ele, que estudou a imigração japonesa. Isso teria sido mais forte nas
primeiras gerações, diminuindo com a vida no Brasil. Outro fator
que pode explicar a preferência pelas exatas, segundo Hashimoto,
é a personalidade mais introvertida de parte dos orientais, o que os
faz preferir, muitas vezes, profissões em que não seja necessário um
maior contato com o público (NICOLETTI, 2002b, p. 3).
As reportagens mencionadas parecem, então, reduzir a figura
dos descendentes de imigrantes asiáticos a apenas duas características
14
A imigração japonesa era considerada, nesse tipo de discurso, um projeto de domínio
político e militar do Japão, que utilizaria seus cidadãos como imigrantes em outros países
para construir as condições materiais e simbólicas para criar um Estado autônomo em
regiões como a América Latina.
474
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principais que definiriam todos os membros desse grupo: a dedicação
aos estudos e a dificuldade com o uso da língua portuguesa, essa última
responsável pela preferência dos estudantes de origem asiática por
disciplinas da área de exatas.
Um dos problemas do estereótipo é o de associar os traços já
mencionados de dedicação e disciplina aos estudos a todo e qualquer
indivíduo identificado como “oriental”. Apesar de não ter sido
mencionado pela reportagem, precisamos lembrar que o estudante
dedicado e disciplinado, independentemente de sua origem, é muitas
vezes considerado “tolo” e “ingênuo” pelos demais alunos. Dessa forma,
essa outra imagem – a de um estudante inocente e parvo – também pode
ser associada ao estudante de origem asiática. Desse modo, o estereótipo
do estudante de origem asiática não carrega apenas traços positivos. Há,
na constituição de sua imagem, elementos que podem ser considerados
negativos ou ao menos limitadores na caracterização desse grupo,
relacionados, por exemplo, à sua competência linguística.15
As duas reportagens analisadas tentam ainda minimizar a
discriminação contra estudantes de ascendência asiática por meio de
justificativas (históricas e psicológicas) para o comportamento e as
escolhas desses estudantes. Porém, essas reportagens recuperam marcas
históricas do preconceito contra os asiáticos e não vão além da retomada
e da fixação do estereótipo, sendo que a relativização dessa imagem fixa
dos estudantes “orientais” serve apenas para, como já foi mencionado,
acalmar os estudantes “brasileiros” no árduo trabalho para ingressar na
universidade de seus sonhos.16
De qualquer forma, resta uma dúvida: se os estudantes “asiáticos” são tão dedicados
ao estudo, como eles podem não ter o domínio da língua portuguesa?
16
Indo um pouco além do que a análise nos permite, entendemos que uma forma possível
de se desfazer o estereótipo do estudante de origem asiática estaria na apresentação de
exemplos de descendentes que se interessam pelas áreas de Humanidades e Biológicas.
Além disso, outros exemplos poderiam ser apontados, como os descendentes de asiáticos
que são pintores, músicos, atores etc. para mostrar a diversidade de atividades existentes
no âmbito desse grupo.
15
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
475
5 Considerações finais
Os textos analisados oscilam entre uma imagem extremamente
positiva do trabalhador japonês (no passado) e do estudante oriental
(no presente) e um preconceito linguístico. No entanto, o preconceito
linguístico tem duas funções distintas em relação a esses sujeitos. De
um lado, no tema econômico, o que interessava era aproveitar o que o
imigrante japonês podia fazer em relação ao desenvolvimento econômico
brasileiro, mesmo que a língua portuguesa fosse “sacrificada”, ou
seja, que eles continuassem a usar mal o português, contanto que
continuassem sendo excelentes trabalhadores. De outro, no contexto
dos estudos atuais, o preconceito linguístico marca um “defeito” do
estudante de origem asiática, que supostamente se voltaria aos estudos
da área de exatas para evitar o uso constante da língua portuguesa, que
ele dominaria precariamente. Assim, a reportagem pode utilizar tal
característica para diminuir a pressão dos estudantes “brasileiros” no
momento de competir com os outros estudantes por uma concorrida
vaga na universidade.
Entendemos que há um preconceito linguístico explícito ao se
reforçar a imagem do imigrante japonês que “estropia” a língua portuguesa
ou, no melhor dos casos, que “arranha” o português. Há também um
potencial medo ou ressentimento gerados pela competência do imigrante
japonês no trabalho, pois, ao mesmo tempo em que a primeira reportagem
analisada constrói a imagem positiva do trabalhador japonês, deixa-se
implícito que o trabalhador brasileiro não possui a mesma competência
para a atividade laboral. Essa comparação é encontrada, ainda, no caso
dos estudantes, em que os asiáticos são considerados competentes
enquanto os brasileiros ainda possuem problemas de concentração,
disciplina e vontade para estudar.
Neste artigo, vimos, basicamente, o seguinte em relação aos
imigrantes e seus descendentes:
a)
Uma valorização dos trabalhadores imigrantes (os japoneses e os
naturalizados), nas duas primeiras reportagens; e uma valorização
da disciplina e da dedicação aos estudos da parte dos estudantes
de origem asiática.
476
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020
b)
Exemplos de preconceito linguístico contra o imigrante japonês:
na primeira reportagem, com a metáfora que se refere ao
“arranhar” ou “estropiar” a língua portuguesa; na segunda, por
meio da transcrição do sotaque do japonês, fato não registrado na
fala dos demais imigrantes; e nas reportagens sobre o estereótipo
do estudante de origem asiática, cujo traço negativo é o de ele
não dominar bem o idioma.
c)
A existência de diferenças culturais entre estudantes, representada
pela postura nos estudos e por uma dificuldade linguística que
seria inerente aos descendentes de imigrantes asiáticos.
De um modo geral, nenhuma reportagem apresenta argumentos
contra a presença de imigrantes no país. A ideia de uma presença
indesejada, ao menos aplicada ao grupo asiático, não faz parte do
horizonte de perspectivas da sociedade brasileira desde ao menos o final
da Segunda Guerra Mundial. Todos os imigrantes e seus descendentes
são considerados bons trabalhadores ou estudantes dedicados que podem
auxiliar a sociedade brasileira a se desenvolver. Logo, há uma perspectiva
de que a sociedade aceita essa presença da alteridade e a respeitaria em suas
especificidades, mesmo que construídas em estereótipos. Teríamos, então,
uma predominância do regime de admissão, conforme propõe Landowski
(2002, p. 20), no qual há um reconhecimento das diferenças constitutivas
da alteridade (no caso, os imigrantes asiáticos e seus descendentes)
e um certo respeito que possibilitaria a convivência da sociedade de
acolhimento (brasileira) e esses imigrantes e descendentes. Ao mesmo
tempo, as reportagens não mostram uma preocupação em assimilar o
outro, tal como também estabelece suas bases Landowski (2002, p. 5-6)
no sentido de provocá-lo a deixar de lado seus traços constitutivos para
ser integrado como um só, em uma suposta homogeneidade que não
encontra mais abrigo nos discursos sociais brasileiros. Evidentemente,
trabalhos futuros voltados a outros grupos imigrantes ou de refugiados,
como os bolivianos e os haitianos, respectivamente, podem indicar o
contrário, uma vez que sujeitos preconceituosos estão constantemente à
procura de novos alvos para diminui-los, culpá-los por algo, entre outras
posturas que não devem ser aceitas em uma sociedade dita democrática.
Procuramos evidenciar, assim, a persistência histórica de um
preconceito linguístico ligado aos imigrantes asiáticos e aos seus
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descendentes brasileiros. Apesar de ser socialmente considerado pouco
grave, não podemos nos esquecer de que essa forma de preconceito pode
revelar algum tipo de preconceito mais grave, mas ainda camuflado.
Desse modo, espera-se que os estudos discursivos, e a semiótica em
especial, possam contribuir para desfazer tal postura que parte do gesto
de julgar o outro pelo que ele é, como se houvesse apenas uma maneira
de ser o que se é.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
Memorialización y conflicto armado:
la construcción de narrativas para la paz en Colombia
Memorialization and armed conflict:
the construction of narratives for peace in Colombia
Neyla Graciela Pardo Abril
Universidad Nacional de Colombia, Bogotá / Colombia
ngpardoa@unal.edu.co
https://orcid.org/0000-0003-4206-9690
resumen: Se propone una reflexión y aplicación teórico-metodológica desde los
estudios críticos del discurso multimodal y multimedial (ECDMM), en la investigación
de las memorias colectivas y los procesos de memorialización que se exploran en el
proyecto SPEME en Colombia. En esta reflexión, las memorias colectivas son prácticas
discursivas múltiples, en las cuales las representaciones sociales sobre un pasado
común se usan para construir y mantener cohesión e identidad de grupos situados
socio-históricamente en un momento presente y que proyectan futuro en marcos de
derechos, dignidad, respeto y sentido de bienestar. Las representaciones sociales de
la historia describen con frecuencia, los contenidos de la memoria colectiva como si
fuesen homogéneos y únicos, oficializando una versión que no recupera, especialmente,
a los sectores más marginalizados de la sociedad. Esta disertación se centra en las
representaciones que se formulan en un medio de comunicación digital y la forma de
distribuir el sentido de las memorias colectivas. Desde la perspectiva de los principios
teóricos de los ECDMM, se parte del principio de que los medios de comunicación y
sus soportes tecnológicos elaboran modos, géneros y representaciones que comunican
y crean concepciones del pasado. Se elabora un marco adecuado para el abordaje de un
corpus constituido por narrativas mediáticas para la construcción de paz en Colombia,
en las ediciones especiales del periódico El Tiempo.com. Para el análisis, se estudia el
storytelling que los medios producen como ruta para la reconstrucción del tejido social.
Palabras-clave: memorias colectivas; estudios críticos del discurso multimodal y
multimedial; storytelling; memorias; representaciones sociales.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.479-506
480
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
abstract: We propose a theoretical-methodological reflection and application of
multimodal and multimedia critical discourse analysis (ECDMM), in the investigation
of collective memories and the memorialization processes that are explored in the
SPEME project in Colombia. In this reflection, collective memories are multiple
discursive practices, in which social representations about a common past are used
to build and maintain cohesion and identity of socio-historically situated groups in
a present moment and to project future regarding rights, dignity, respect and sense
of well-being. The social representations around history often describe the contents
of the collective memory as if they were homogeneous and unique, formalizing a
version that does not take into account, especially, the most marginalized sectors of
society. This dissertation focuses on the representations that are formulated in a digital
communication medium and their way of distributing the sense of collective memories.
From the perspective of the theoretical principles of the ECDMM, we base the research
on the principle that the media and their technological supports elaborate modes, genres
and representations that communicate and create conceptions of the past. An adequate
framework is elaborated for the approach of a corpus constituted by media narratives
for the construction of peace in Colombia, in the special editions of the newspaper El
Tiempo.com. For the analysis, we study the storytelling that the media produces as a
route for the reconstruction of the social fabric.
Keywords: collective memories; multimodal and multimedia critical discourse analysis;
storytelling; memories; social representations.
Recebido em 20 de fevereiro de 2019
Aceito em 09 de maio de 2019
1. La cognición social en los medios de comunicación. La distribución
social del saber.
Waggoner (2015) señala que las representaciones sociales hacen
posible que las memorias colectivas tengan una presencia significativa en
los grupos humanos; organizan la experiencia y garantizan la permanencia
y cohesión de los grupos en condiciones socio-históricas específicas, al
recordar u olvidar. En esta perspectiva, las memorias se corporizan, son
expresiones simbólicas; es decir, producen significados y se espacializan.
Las corporalidades al producir representaciones y expresarlas en prácticas
sociales constituyen formas de incorporación en las que, siguiendo a
Bourdieu (1990) la memoria social no solo representa cognitivamente
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el pasado, sino que fundamentalmente recupera las relaciones de
desigualdad, a través de las representaciones en las prácticas sociales
donde se formulan los rituales y las creencias.
En los estudios sobre la memoria es usual que se reconozca el
papel que desempeña la capacidad humana para el lenguaje y su expresión
en sistemas sígnicos. Halbwachs, Bartlett y Vygotsky señalan que los
procesos de memoria devienen esencialmente del proceso comunicativo
humano, y que es en los géneros, los modos y las especificidades propias
de las tecnologías, donde la performatividad de la comunicación da paso
a formas del decir que socializan la experiencia de diversas maneras.
Así, como la escritura transforma las memorias, en la era digital se hace
desde la web. Los grados de hegemonía sobre las memorias se articulan
a la capacidad organizativa de los grupos para formular alternativamente
memorias y silencios. El carácter interactivo o monológico de las
memorias formula tensiones sobre las mismas y hace evidentes sus
marcos, perspectivas y anclajes socioculturales.
La teoría de las representaciones sociales ha propuesto que los
contextos humanos producen significados y axiologías, donde los actores
sociales se definen y crean sus propios condicionamientos espaciotemporales, haciendo del proceso de memorialización un lugar para
articular el grupo y su cultura. De esta manera, la memoria objetiva el
entorno y lo define en su expresión material y simbólica. Los espacios
con sus condicionamientos, son un recurso para articular pasados y
presentes que gestionan transformaciones en los saberes y haceres. Por
lo tanto, las dimensiones que integran el significado de espacio crean
sistemas de sentido social, cuya conexión con la cotidianidad y los rituales
elaboran espacios para las memorias (HALBWACHS, 2004). Así, los
contextos con sus marcos se construyen creativamente y se apropian en
la vida cotidiana, para ponerlos al servicio material y simbólico de la
memorialización.
Los procesos de memoria se formulan concretando y encarnando
recursos materiales, un jardín de flores, por ejemplo, para construir
y asignar sentidos que pasan por las corporalidades y las narrativas
que elaboran. En esta interrelación se estabiliza la cognición social y
se establecen formas de ser y proceder que pretenden un lugar en la
temporalidad y una huella para la regulación. Es en esta dinámica espaciotemporal donde el proceso creativo del saber social alcanza formas de
transformación.
482
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
Los procesos de memorialización contemporánea encuentran para
América Latina y, en particular para Colombia, un espacio simbólico y
material, atravesado multi-signicamente y soportado multi-medialmente
por las herramientas que proporcionan nuevas formas de socialización
y distribución del conocimiento. Jenkins (2006) señala cómo en las
sociedades actuales, los flujos de contenidos se distribuyen mediante
el uso “de múltiples plataformas mediáticas, la cooperación entre
múltiples industrias mediáticas y el comportamiento migratorio de las
audiencias mediáticas” (p. 14), dando cuenta no sólo de la presencia de
las tecnologías capaces de soportar y distribuir tejidos sígnicos, sino de la
potencialidad del recurso tecnológico para ubicar espacio-temporalmente
las historias y los relatos humanos. Al tiempo que propone consumo
simbólico en las marcas, formula rutas imaginarias y crea tácticas para
distribuir los saberes propuestos en los medios articulados a la economía,
la política, las fronteras, la vida cotidiana, entre otros ámbitos posibles.
En este marco, los procesos de memorialización contemporáneos asumen
los cambios culturales que se derivan de los condicionamientos que
imponen el acceso y discontinuidad; la conjunción y dispersión de los
saberes mediatizados.
Los ciudadanos elaboran creativamente formas de interacción y
asumen activamente formas de participación alternativa para construir
sus propias narrativas, tejerlas con otras o fragmentarlas de maneras
diversas, configurando así, los sentidos que orientan su cotidianidad.
Esto sin desconocer la presencia de las voces hegemónicas, cada vez más
vinculadas a las multinacionales de la industria mediática, interesadas en
mantener una cultura anclada al interés político-económico que las define.
De este modo, la cognición social construye saberes en las operaciones
propias de recolectar, cortar, tejer, recomponer conocimiento, que en el
proceso articula recursos y potencialidades humanas para coexistir con
el poder que se deriva de los accesos privilegiados a las tecnologías.
Las memorias mediatizadas en sus diversas expresiones dan paso
a la construcción de unidades simbólicas comunes que contribuyen a
gestionar pertenencia grupal. Integrando los planteamientos de Assmann
(2008), los procesos de memorialización implican activar la memoria
episódica o experiencial y la memoria semántica o de aprendizaje.
En esta misma línea teórica los estudios críticos del discurso y, en
particular, Van Dijk (2016) establece que: “La Memoria de Largo Plazo
contiene, por una parte, recuerdos de experiencias autobiográficas y
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conocimiento, almacenados en la Memoria Episódica (ME) y, por otra,
de manera más general, conocimiento, actitudes e ideologías socialmente
compartidas almacenados en la Memoria Semántica (MS)” (p. 142).
Al mediatizar las memorias, por lo tanto, se activan dos procesos
cognitivos esenciales, por un lado, se socializan experiencias y saberes
básicos que se organizan sígnicamente a través de diversas formas de
narrativización y, por otro lado, se estructuran relatos mediáticos que
se proponen para ser colectivizados, poniendo en relación la capacidad
humana para recordar, olvidar, transformar e intervenir en la pretensión
de modificar condicionamientos sociales y emocionales en el proceso
de memorialización. En esta perspectiva, la memoria mediatizada crea
el marco interpretativo en el que coexisten las experiencias subjetivas y
las aproximaciones intersubjetivas capaces de construir marcos sociales
de memorialización.
Los marcos sociales de memorialización insertan la vivencia
subjetiva y los condicionamientos sociales a través de los cuales se
estructuran las formas de saber, pensar, creer y representar, optando
posiciones o puntos de vista mediante los que se crean las narrativas.
En este nivel el proceso de memorialización cobra significado y sentido,
articulando actores múltiples, espacio-temporalmente ubicados y
posicionados para la interpretación de la realidad narrada. La narrativa es
una práctica semiótico-discursiva en cuya complejidad se reconstruyen,
evalúan y asignan significados a los acontecimientos que se representan
mediáticamente en el contexto de las prácticas sociales colectivizadas. Al
respecto, De Fina y Gore (2017) señalan que la narración contemporánea
soportada en las tecnologías de la comunicación, articula intereses y
prácticas en las que se adoptan formas múltiples de construir historias,
interlocutores y recursos semióticos; de lo que se implica la semiotización
de la narrativización.
Las narrativas mediáticas construyen y describen meta-narrativas
(narrar lo narrado), en cuyo proceso aparecen nuevos significados o
formas de resemiotización. En el proceso comunicativo que gestionan las
narrativas, la narrativa de origen se mantiene para dar paso a una nueva, de
suerte que un significado se incorpora a otro. Desde este punto de vista, las
narrativas no conservan los pasados intactos, ya que particularmente en los
procesos de mediatización se recrean sistemáticamente. De manera que,
en el proceso de socialización el narrador no se independiza de su pasado,
si se tiene en cuenta que la esencialidad del ser se formula como imagen
484
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que se instaura significativamente, y que el proceso de mediatización se
colectiviza. La memoria subjetiva se reformula intersubjetivamente y se
interpreta culturalmente en los condicionamientos socio-históricos que
determinan lo que se narra. En este marco, la coexistencia del recuerdo y
el olvido adquiere un nuevo sentido, en la medida en que la experiencia
narrativizada pasa del proceso vivencial a un proceso comunicativo,
donde se reelaboran emociones, valores y posicionamientos para la
compresión de la realidad.
El estudio de las narrativas aborda la actividad comunicativa,
por lo que incide en todos los ámbitos de la sociedad. En su núcleo
se encarnan los problemas y asuntos humanos relevantes para la
comprensión del ser y de su realidad. Como todo acto de comunicación,
las narrativas hacen explícito el propósito de construir el ser y el hacer
social. Las narrativas se anclan en las experiencias socioculturales, se
transforman permanentemente para dar cuenta de las maneras como la
realidad social se modifica y se define en relación con las condiciones
sociopolíticas, históricas y culturales que la determinan.
La función socio-comunicativa de las narrativas implica las
formas de conocer, de generar sentido de cohesión social, de legitimar
la acción política y, esencialmente, de orientar y garantizar la acción
colectiva. Este fenómeno ocurre en razón de que las narrativas encarnan
axiologías, visibilizan expectativas, deseos, actitudes y aspiraciones
individuales y colectivas. Las narrativas, particularmente las que se
mediatizan a través de las instituciones sociales tienden a viralizarse y,
como lo indica Shiller (2017) tienen la potencialidad para resignificar
y reconstruirse en el proceso de su distribución social y propagación.
Si bien hay pocos estudios sobre el fenómeno de la propagación
de las narrativas mediáticas, históricamente la narrativa ha sido fuente
colectiva para la estabilización de saberes, como cuando se universaliza
el mito de la creación. En este sentido, se explica que la distribución
social del conocimiento es un punto de referencia para explicitar la acción
colectiva e implicar que los ciudadanos actúan en concordancia con las
narrativas disponibles en su cultura. La narrativa mediática construye el
argumento de la vida saludable, la crisis financiera o política, el terrorismo
y la seguridad, o como lo indica Shiller (2017) la narrativa de la recesión.
Desde su punto de vista, la mediatización de las narrativas ha dado paso
a construir en términos de los intereses económicos-políticos de un
momento determinado de la historia, el sentido de comunidades de ahorro,
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de comunidades “saludables”, de las comunidades del riesgo y contra
riesgo o las comunidades del deseo, entre otras; haciendo plausible una
“racionalidad” que se aplica a la acción que consecuentemente procede de
la narrativa que se encarna entorno a estos intereses, creencias y actitudes.
La tendencia contemporánea a construir narrativas con capacidad
de crear contenido engañoso es un asunto nuclear en los estudios sobre
las formas de distribuir el saber colectivo en una sociedad. Por ahora,
carecemos de los recursos de control del Estado para garantizar la
información al servicio de la construcción de una sociedad más digna,
justa, incluyente e informada dentro de los marcos del sentido de
servicio al bien común. Las noticias falsas, alcanzan un punto crítico
en las elecciones de 2016 en EE. UU. La hipótesis que se ha venido
desarrollando en la academia, señala que esta estrategia persuasiva
apropia todos los sistemas sígnicos disponibles para construir terror,
miedo y sensación de inadecuación individual, a través de recursos
como los marcadores emocionales; el proceso de mediatización y la
construcción espectacular de narrativas que circulan viralmente mediante
las tecnologías de la comunicación y la información. Desde esta mirada,
los mass media desestructuran la confianza social, crean realidades que
no son verificables y atentan contra el sentido de realidad al que debe
acceder el ciudadano cuando pretende apropiar, explicar y comprender
sus condicionamientos socio políticos y culturales (ALBRIGHT, 2017).
En este marco se estudia el Storytelling producido por la prensa
colombiana, en tanto expresión semiótico-discursiva de los relatos
mediáticos articulados al postacuerdo. Las narraciones pueden o no
vincular hechos históricos o fácticos que tienen un papel fundamental en
la construcción del relato o de los acontecimientos. Quien narra, incluso
desde su experiencia vital, gestiona la función ficcionalizadora de lo que
representa de manera explícita, por lo que al narrar se gestionan una
multiplicidad de instancias narradoras que impregnan el objeto semiótico
de valores y creencias. El narrador formula un punto de vista mediante
el recurso de focalización, generando la perspectiva de la narrativa. Así,
se establece la relación entre el sujeto que ve, la realidad representada
y visualizada –la cual se establece y determina en el grado de saberes o
enciclopedia que el narrador despliega sobre lo narrado– y la estrategia
que implementa para socializarla (SOBEJANO-MORÁN, 2003).
El Storytelling se entiende en este documento como un tipo
de narrativa formulada desde la lógica mercantil, que se propone de
486
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
carácter interactivo y estratégico, con el propósito de establecer un
sentido de participación del interlocutor – lector, para formular y crear
una experiencia inmersiva y orientadora de la acción que aspira a ser
parte de la cognición social. En el proceso de su diseño y producción se
construye desde el propósito persuasivo, articulado a la emocionalidad
humana. Su distribución y socialización apropia todos los recursos
tecnológicos disponibles para potenciarla. Por lo tanto, tiene carácter
multimodal y multimedial. En la perspectiva de Salmon (2011) el
storytelling es una unidad de sentido que parte de fenómenos propios
de la realidad social para construir unos relatos artificiales, a través de
los cuales se genera una red de sentidos que, sin tener el propósito de
articularse a experiencias pasadas, orienta conductas y emociones por
medio del proceso de socialización mediática.
Las narrativas mediáticas expresadas como storytelling pueden
ser observadas e interpretadas desde una perspectiva crítica, mediante las
categorías clásicas de la semiótica como el relato, el espacio-tiempo, la
focalización y el actor discursivo. El relato es una unidad de significado
que sintetiza el sentido de lo historizado. La historia, asumida desde
la propuesta narratológica, es una organización estructurada y lógica
de eventos producidos o gestionados por actores situados espaciotemporalmente. Las relaciones espacio-temporales que proponen
las narrativas estructuran el concepto de cronotopo, que incluye las
dimensiones de la espacialidad y de la temporalidad, entrecruzadas para
dar sentido al mundo que construye el acto de narrar (BAJTÍN, 1989).
Lo que se narra adopta puntos de vista que ponen en relación
el acto de ver y el acto de percibir lo visto, de suerte que se configura
un proceso focalizador. Sobre este aspecto Bal (1990) señala que la
focalización pone en relación “la visión, el agente que ve y lo que se
ve” (p. 108). Los actores discursivos son seres que, en su condición
de agentes o pacientes, participan en la construcción de las acciones
sociales representadas discursivamente. Desde esta perspectiva, los
actores discursivos se diferencian del actor social en la medida en que
el actor discursivo se propone como constructor de un mundo narrativo,
en el que transitan saberes y relaciones político-culturales, a través de las
cuales se construye un ‘yo’ y un ‘otro’. Los actores discursivos se hacen
responsables de las voces que se configuran discursivamente otorgando
significado cuando se expresan, en el propósito de estructurar redes de
sentido. Estas redes de sentido actualizan, formulan y transforman el
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acto de decir o silenciar una realidad que es subjetiva, pero que al ser
expresada y resignificada se intersubjetiviza.
Los actores sociales en la era digital se definen en términos de
ser agentes constructores del “yo” y de formular al “otro” en el marco
de las acciones colectivas en la sociedad actual. Se formulan desde
diferentes niveles del sistema de relaciones sociales, usan la web y las
potencialidades de sus recursos como las redes sociales para organizarse,
comunicarse y construir su identidad, gestionando formas acción
colectiva. Los actores sociales contemporáneos son diversos y múltiples
y sus posiciones abarcan el interés de propender por el mantenimiento
del status quo, y los que se oponen y resisten. Así, los actores sociales
elaboran y crean prácticas que se han trasformado tipificando la tensión
que se desarrolla en torno al control de los recursos simbólico-culturales y
sociales. De esta manera, no solo inciden en la estructura social, sino que
se proponen para incidir en las formas de saber y conocer la realidad. La
apropiación del capital simbólico y el acceso a los recursos tecnológicos
posibilita a los actores sociales incidir en la cultura, en la construcción de
la identidad y en la definición de la acción colectiva (GAINZA, 2006).
2. rutas posibles para la comprensión del Storytelling. La apuesta
por la estrategia del engaño.
El proceso que va de la descripción, análisis e interpretación
del storytelling formulado por el periódico El Tiempo.com, incluyó los
criterios de relevancia para la selección del corpus: narrativas mediáticas
– storytelling, para la construcción de paz en Colombia, publicadas en
las ediciones especiales del periódico. Se trata de la narrativa que los
medios producen como ruta para la reconstrucción del tejido social. Se
recopilan narrativas entre el 24 de noviembre de 2016 y los dos años
que han transcurrido desde la firma del acuerdo con las FARC-EP para
formular un estudio de caso. En el proceso de selección se definieron
como palabras clave: proceso de paz, memoria y conflicto armado, y
sus distintas interrelaciones. En este caso se explora “A qué sabe la
paz” publicada el 9 de junio de 2017 bajo la responsabilidad social del
periódico El Tiempo y la periodista Perla Toro Castaño.
En la primera fase se verifican el conjunto de las características
propias del tejido semiótico que constituyen la narrativa mediática. Se
determina, desde el posicionamiento temático, cómo se representa el
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problema sociocultural del fenómeno del postacuerdo y el proceso de
construcción de paz. El corpus permite identificar el problema social,
actualizado en el especial “Treinta encuentros con la paz”, sección
“Ideas para recibir la paz” donde a través de 30 narrativas, periodistas de
distintos medios del país, escriben storytelling bajo patrocinio nacional
e internacional. Se toma como punto de referencia el periódico El
Tiempo, que por su trayectoria comunicativa y político-económica en
el país, propone a la población colombiana formas de representación
de las problemáticas sociales, en este caso, las acciones a seguir en el
posacuerdo.
El carácter multisígnico y multimedial del discurso que sirve para
el estudio de caso, permite identificar el conjunto de representaciones
que se construyen a propósito del proceso de paz en Colombia y las
acciones en el posconflicto, para reconocer en la narrativa mediática los
aspectos que de esa problemática se derivan y las maneras como se orienta
discursivamente la acción en la comunidad. El proceso metodológico
propuesto pretende identificar en el storytelling, las especificidades que
vinculan la narrativa con el conjunto de representaciones procedentes de
los distintos procesos históricos y sociales en Colombia. Se explora el
sistema axiológico que entraña la narrativa y se explican las relaciones
que van de las formas de saber a la propuesta emocional y a la concreción
de la acción social, para verificar las implicaciones socioculturales y
políticas que se derivan de la propuesta mediática. Se apela a la riqueza
sígnica del material objeto de análisis y a la pertinencia en la indagación
sobre la representación de la construcción de paz.
Del conjunto de relaciones categoriales y el proceso inferencial
que se aplica, se deriva un proceso interpretativo en el que se formulan las
relaciones que van del discurso a los condicionamientos sociohistóricos
y políticos colombianos y, la manera como quedan representados
discursivamente en un tipo de narrativa que, en su lógica interna, pretende
el éxito de poner a circular en el mercado un producto simbólico, para
ser consumido “masivamente”. El Tiempo atiende de esta manera los
principios básicos de la política neoliberal y se ajusta a los requerimientos
del mercado global.
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3. Los sentidos del Storytelling: de las representaciones a las memorias
El storytelling objeto de esta indagación se define como una
narración de los eventos en la vida de una persona con los que se
tematiza al contar. Tiene el propósito comunicativo de generar un tipo
de orientación sobre las formas de conocer una realidad social y actuar
en concordancia de lo que se propone y representa. En este sentido, la
narración es una técnica utilizada para presentar relaciones dinámicas
entre nodos de historias, a través de la interacción. Como expresión
de la comunicación y la interacción se formula como un espacio de
autodescubrimiento que construye modelos, principios éticos, y expresa
formas de regulación y control social.
Siguiendo los planteamientos de Jelin (2017), la historia de
los procesos sociales y políticos, fundamento para la elaboración y
transformación de las memorias, es un fenómeno en el cual se reconocen
actores sociales con sus producciones y sus tensiones expresadas
discursivamente, materializadas y visibilizadas de múltiples maneras.
Este proceso adquiere su verdadero sentido cuando se comunica, por lo
que las memorias ponen en interrelación indisoluble el presente que es
construido desde el sentido del pasado, que se actualiza y reelabora para
formular futuros esperables y deseables. De acuerdo con Jelin (2017) las
memorias traen “el espacio de la experiencia” al presente que contiene
y construye la experiencia pasada y las expectativas futuras” (p. 18). En
este marco, es posible pensar los requerimientos para la construcción
de una paz duradera en Colombia, debido a las implicaciones que
tiene para una sociedad, que entra en un proceso de transformación
de sus formas de convivencia, gestionar evoluciones cognitivas desde
las distintas instituciones socializadoras que la constituyen; en este
caso, narrativizándolas. Interesa, por lo tanto, verificar qué tipo de
representación se propone en los medios de comunicación masivos
colombianos para articular memorias narrativizadas y socializadas con
el propósito de ejecutar la acción política de construir paz.
“¿A qué sabe la paz?” es una narrativa que se formula a través
de un agente social, Perla Toro Castaño, quien al contar adopta recursos
y estrategias semiótico-discursivas que dan identidad a la unidad
de significado a través de un rol, formulándola responsable de la
creación de lo que expresa. Desde esta posición se dirige a un colectivo
anónimo a quien proyecta como usuario-consumidor, de un medio de
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comunicación con el cual se compromete a analizar visualmente datos y
fenómenos de la realidad, para generar visualizaciones posibles; utiliza
los recursos semióticos disponibles para elaborar secuencias de sentido
convincente y comprensible para su interlocutor, afectando e implicando
su emocionalidad a través de la historia, que estructura y le da contenido.
La elección de estrategias semiótico-discursivas, el uso de los recursos
semióticos con la función retórica articulada a la construcción del sentido
de evidencia, le da carácter a lo que se narra y define la función socio
comunicativa de lo que se expresa.
¿A qué sabe la paz?
En Nariño brotan semillas para dioses que, entre plantas y frutos,
dibujan la esperanza.
FIGURA 1 – Construyendo un modelo de actor social
Para Daniela, el chocolate es parte fundamental de su vida y de sus sueños.
Foto: Perla Toro Castaño (ElTiempo.com, 2017)
“¿A qué sabe la paz?
En Nariño brotan semillas para dioses que, entre
plantas y frutos, dibujan la esperanza”. (¿A qué
sabe la paz? El Tiempo, 9 jun. 2017)
Y en el pie de foto: “Para Daniela, el chocolate es parte
fundamental de su vida y de sus sueños” la autora formula una manera
de construir la historia a partir de la definición del espacio, los eventos
y los personajes centrados en un actor social: Daniela Delgado Portilla.
En las transiciones articula evento1s, que para la apertura de lo que
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se narra la tierra– lugar fértil– no se hace necesario cultivar – “brotan
semillas”, activando lo extraordinario y primigenio, que dentro de lo
narrado se dirige a los “dioses”, lo mítico. En la historia que inicia,
aparecen las claves que garantizan el flujo de lo que se expresa. La
primera transición se elabora asociando “semillas (…) plantas y frutos”
con el sentido abstracto de “dibujar esperanza”, activando el sentido de
deseable, alcanzable y probable. En el diseño propone para este punto de
inicio narrativo factores que sirven de punto de referencia para construir
la coherencia general, dando sentido de lo plausible, extraordinario y
axiológicamente positivo y jerarquizado.
El proceso de construcción y creación que se implica se extiende
desde su inicio a un proyecto individual y exitoso, el de Daniela,
marcado por el sentido de la subsistencia económica sobre la acción de la
autogestión, y se extiende a otros ámbitos de la vida social, que incluyen
escenarios como el político y sus nexos con los condicionamientos
sociales, anclados a la memoria. La fotografía recupera al actor principal
identificado plenamente, como un agente de su desarrollo personal,
que se ubica idealmente en un lugar de trabajo, atribuyéndole desde la
omnisciencia: “Para Daniela, el chocolate es parte fundamental de su
vida y de sus sueños”, donde ‘vida’ y ‘sueños’ promueve un ideario de
desarrollo previsto para quienes cuentan con valores como “el esfuerzo
personal, el éxito, la individualidad, la competencia y la eficiencia”,
entre otros.
La distribución espacial de la imagen fija siguiendo a Kress,
Leite-Garcia y Van Leeuven (2001), tiene su correlato en la estructura
semiótico-discursiva, implicando temáticamente la información dada o
conocida y la información nueva que, a su vez, determina y soporta la
relación semántico-pragmática de complementariedad de la expresión
verbal a la visual gráfica. Daniela es representada verticalmente abajo –
arriba – derecha. Esta posición está marcada ontológicamente, mientras
que la distinción derecha-izquierda está definida por el espacio que
idealmente es ocupado por Daniela y que se articula a los ideales culturales
de lo marcado positivamente: pulcra –vestida de blanco– actitud servicial
y activa en un espacio limpio y moderno. La construcción idealizada
del entorno, una cocina tipificada como moderna, amplia y funcional, y
el espacio como luminoso, limpio y con vistas a un paisaje natural. El
plato que porta Daniela se distribuye jerárquicamente, de manera que
los postres ocupan mayor espacio del lado izquierdo, formulando el
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carácter real y conocido del producto. La imagen fija estructura, por lo
tanto, el sentido ficcional de lo representado donde el tema y el rema no
se expresan y, se genera en torno a la imagen el sentido de tematización.
La relación semántico-pragmática de la expresión verbal a la
imagen incluye entre otros aspectos la descripción del lugar de trabajo de
Daniela, donde se resalta la precariedad que se supera cuando se poseen
las características del sujeto individualizado y competitivo:
Lo logró entrenando en un microondas, en una cocina donde caben
unas seis personas, pero donde entrenan más de 40 nariñenses.
Sin mesón de mármol e incluso, sin luz. “En la primera fase de la
competencia se fue la luz, era en Atlántico. Nos tocó terminar las
competencias nacionales en Bogotá”. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
Pastusa de nacimiento, Daniela viajó a Perú en el 2013 gracias a un
premio que le otorgó el Sena para aprender de pastelería avanzada;
pero, como cuenta su maestro Pablo, fue “su destreza artística,
pasión dedicación y disciplina” los ingredientes que la llevaron
a representar a Colombia en una competencia internacional. (El
Tiempo, 9 jun. 2017)
La relación de complementariedad propuesta implica que el
emprendedor es un ser que procede de la precariedad y que debe apropiar
competitividad, individualidad y eficiencia para alcanzar el éxito que le
propone el sistema; adoptando los estándares de alta cocina, en la que
se consumen y disponen de recursos de alta calidad.
La pretensión de estructurar la narrativa a través del recurso
retorico de la comparación o símil, lleva a la narradora a formular el
núcleo conceptual de lo que pretende instalar como saber [Construir
paz] al afirmar:
Para describir la paz hay que ser inmoderadamente subjetivo. En
vez de hacer todo lo posible por racionalizarla, por volverla una
casilla –como suelen hacer aquellos que buscan precisión en un
molde–, hay que cosecharla, seleccionarla, saborearla, degustarla
y, por qué no, cocinarla. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
En primer lugar, la paz es un asunto del absoluto privilegio del
individuo, lo que le permite asignarle, en un grado superlativo al proceso
social expresado, la elisión del carácter definitivamente colectivo.
Esto implica que la construcción de paz en Colombia, en el marco del
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postacuerdo, elide y suspende la resolución conjunta de tensiones en
una comunidad, la relación interactiva entre sus miembros, la búsqueda
sistemática de acuerdos y metas comunes, entre otras acciones de orden
simbólico-político-social, que garantiza formas de convivencia entre los
seres humanos.
En segundo lugar, la narrativa autoproclama en el storytelling la
idea central de cambiar o transformar el carácter colectivo de la acción
social, para posicionar y formular el ideario neoliberal con sus valores
como fuente de la convivencia social. El saber, en este caso, es el
producto simbólico encarnado en el storytelling, para lo cual se apropia
de un discurso multimedial y multimodal, construido con recursos como
la focalización y el uso de marcadores emocionales, proponiendo en
abstracto la retórica de la esencialidad global y neoliberal: “semillas para
dioses que entre plantas y frutos dibujan la esperanza” “Inmoderadamente
subjetivo”; “De cacao, paz y, como si fuera un tercer ingrediente, de
esperanza también sabe Daniela Delgado Portilla (…)”; “Campeona
colombiana”; “(…) esperanza de futuro”; “satisfacción personal”;
“hazañas tan arriesgadas”.
La definición liberal del sujeto social como un individuo que se
define por su capacidad de poseer, se expresa en la forma de establecer la
relación del actor social consigo mismo, sus capacidades y sus bienes; la
actividad humana es económica y se desarrolla en el mercado. Esta forma
de entenderse determina sus funciones en el mundo: poseer, intercambiar,
acumular y consumir. Con este ideario se fundamenta que maximizar el
beneficio y tener en el horizonte ético el respeto por la propiedad privada
es un valor esencial. En este sentido, se explican los usos discursivos
que formulan el modelo de individuo neoliberal: ser “inmoderadamente
subjetivo”, ser “campeona”, disponer de “satisfacción personal”. La
realidad humana, personal y social, está determinada por la mecánica
economicista y en esta relación se insertan las decisiones: “hazañas tan
arriesgadas”. La desigualdad de orden político-económico-social procede
de la desigualdad natural, por lo que, en esta racionalidad, el acceso a los
bienes simbólicos y culturales se definen en la desigualdad ética, política
y jurídica (HAYEK, 2008).
Las acciones solidarias, la distribución igualitaria del producto
y del trabajo en común desaparecen, y la potencialidad humana para la
acción colectiva se desvanece. Dentro de estos idearios la libertad es
un valor abstracto y económico, centrado en las acciones de producir,
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acumular y consumir. La libertad es la capacidad de entrar o no en
relaciones de mercado. Así, la libre competencia genera desigualdades
entre los sectores de éxito, que pueden disponer de mayores excedentes
para invertir, y consumir a través de las garantías que ofrece la libre
empresa. Finalmente, los idearios globales y neoliberales propenden
por sostener que, en la libertad, el ser humano se ajusta a normas y
tradiciones. De suerte que el orden social que procede del hacer humano
es débil e inestable, y las tensiones graves o las crisis solo se superan en
el ejercicio de las normas y las tradiciones, de modo que, si hay rupturas
o transgresiones se produce el caos social (BERGER, 1971).
De la relación que se establece entre los principios neoliberales
aplicados a la economía se infiere que, los discursos distribuidos
socialmente construyen la imperante necesidad de que los ciudadanos
estén creando constantemente metas e ilusiones, en las cuales, como lo
señalan Van Dijk (1998) y Žižek (2009) el bienestar y la dignidad humana
no proceden de la “libertad” y el “éxito” prometido. En este proceder
la ilusión define el proyecto de vida y su alcance se limita a los logros
irrisorios que le permiten el mercado y la estructura política rígida, con
lo cual alcanzar la ilusión impone una nueva meta. De esta forma, elidir
los saberes sobre lo alcanzable y lograble constituye una secuencia de
acciones infinitas. Se perfila entonces, en el neoliberalismo “sujetos
modelo” con logros irrisorios y parciales. Este es el caso que referencia el
Storytelling objeto de este análisis, para formular un ser individualizado
que pretende objetivar el éxito y persigue la ilusión de alcanzarlo, creando
falsos reconocimientos que, al visualizarlos socialmente, adquieren el
carácter heroico o sublime. De esta manera, los idearios se subjetivizan,
para desarticularlos de las ideologías imperantes, desarraigándolos de
las relaciones de dominación que gestan y reproducen.
En el Storytelling ¿A qué sabe la paz?, si bien el formato no se
auto propone como vinculado con alguna idea de persuasión comercial
o institucional, tiene su cotexto dentro del medio de comunicación que
posee su propio branding y requiere pauta comercial. El especial “treinta
encuentros con la paz” contó además con financiación internacional y
nacional, y se construyó sobre criterios preestablecidos inherentes al
género. El sistema axiológico que se deriva de la narrativa propuesta
aquí analizada, se apropia del sentido de éxito como parte de la axiología
neoliberal, construido a través del “protagonista modelo”, concebido
como un sujeto que, superando los condicionamientos propios de la
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realidad colombiana, gestiona a través del esfuerzo individual, unas
condiciones socioeconómicas que le imponen ser autosuficiente en
el proceso de alcanzar la vida digna dentro del modelo económico
imperante.
La “protagonista modelo” se propone como un sujeto con
talento, con formación técnica resultado de su esfuerzo personal, capaz
de desarrollar grados de competencia para su trabajo y su producto, con
voluntad de sobreponerse y superar situaciones de adversidad de orden
social y personal, y de ubicarse funcionalmente en el sistema económico.
La construcción de la axiología neoliberal en este caso se propone y
socializa como la condición para, en el marco del postacuerdo, construir
paz. La ruptura epistemológica y ética se deriva de proponer a los
ciudadanos que los derechos individuales proceden del sujeto que aspira a
disfrutarlo, y no, del ciudadano de derecho que comparte colectivamente
los condicionamientos propios de una sociedad democrática, donde el
Estado asume responsabilidades propias de un Estado social de derecho
definido en la constitución política de Colombia. Las políticas del
modelo neoliberal se privilegian sobre el deber ser del sistema político
latinoamericano.
Entre los recursos semiótico-discursivos que interesa desentrañar,
por las significaciones político-sociales que encarnan, se destaca la
tendencia sinestesica del discurso, a través de la cual se construye una
sensación perceptual a un fenómeno, objeto o entidad que efectivamente
no lo tiene.
Si fuera necesario pintar la paz con un color, empezaría por el
amarillo y terminaría, contrario a lo que dicen los libros y las
palomas, en un café tan oscuro que a primera impresión parecería
negro. De ese negro se desprenderían aromas, algunos tan amargos
que costaría comprenderlos. (¿A qué sabe la paz? El Tiempo, 9
jun. 2017)
La propuesta discursiva, formulada para conceptualizar “Paz”
en tanto fenómeno político, social y cultural abstracto y articulado al
concepto de convivencia, se propone como una acción físico-creativa
“(…) pintar la paz”, en donde un sujeto individual, la narradora, decide
sobre la materia, los saberes y las propiedades asignables, de manera
que, le atribuyen al color negro la capacidad de pasar perceptivamente
de su propiedad visual a una propiedad olfativa que no existe. Además, lo
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relaciona perceptualmente con el sistema sígnico gustativo, estableciendo
la relación entre amargo y negro. La alegoría como recurso semiótico
sirve para transformar perceptualmente el conocimiento que debe tener
una sociedad sobre el concepto de paz. En esta perspectiva, la narradora
propone individualmente, “(…) darle forma a la paz (…)” naturalizando
el fenómeno sociopolítico y cultural en un ser vivo –biologización–. El
“árbol” es caracterizado y cuantificado para sobreponer artificialmente
otro ser vivo como es el “árbol de cacao” generando una ruptura en el
proceso de desarrollo natural del ser vivo propuesto.
Para consolidar esta relación se utiliza tanto la cuantificación
como la voz directa. En cuanto a la cuantificación, el objetivo es indicar
que el cacao ha logrado ganar un lugar en el sistema económico por la
cantidad de toneladas producidas. La legitimación del cacao hasta el
punto de mencionar que a su alrededor debe haber un “crecimiento en
los compromisos estatales y empresariales para fortalecer la industria
y la cadena productiva”. Esta legitimación numérica del cacao se
complementa con una deslegitimación de la coca.
A partir del Programa Nacional Integral de Sustitución de
Cultivos de Uso Ilícito (PNIS) que se inicia en el marco del posacuerdo,
el país implementa una estrategia de desarrollo alternativo, el cual tiene
entre sus antecedentes el CONPES 3218 de 2003. En este documento se
establecieron proyectos agroforestales que incluían el cultivo del cacao,
café, caucho, palma y plantaciones forestales, entre otras. El programa
actual cuenta con la intervención directa de instituciones nacionales y el
apoyo internacional de la Agencia de Estados Unidos para el Desarrollo
Internacional (USAID). En cuya propuesta se expresa la necesidad de
fortalecer los diferentes eslabones de la cadena de valor para alcanzar
competitividad y sostenibilidad, incidiendo en la calidad de vida de
las comunidades afectadas por el conflicto armado colombiano. A la
fecha USAID afirma que cuenta con 9,547 asociaciones productoras,
distribuidas en los departamentos de Nariño, Tolima, Antioquia, Meta,
Bolívar, Sucre, Caquetá, Córdoba, Cesar, Magdalena y Guajira; estos
son 12 departamentos del país localizados en distintas zonas geográficas.
El proceso de diversificación productiva ha venido incidiendo en
la transformación del paisaje rural y, en general del territorio, además,
en las maneras de gestionar procesos de cohesión social, en donde se
pretende articular la producción de cacao con los procesos de “desarrollo”
del país. Desde esta posición, el proceso de sustitución ha afectado el
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medio ambiente colombiano, si se tiene en cuenta que los proyectos
agroindustriales, como el de palma, están causando graves daños al
ecosistema. Estos proyectos también han sido la razón para el despojo
de territorios victimizando grandes sectores de la población colombiana
y la intervención sobre la tierra, gestionando “desiertos verdes”, sequías
y la eliminación de la flora y fauna nativa. A esto se adicionan las
consecuencias socioculturales que se derivan de la precarización del
trabajo rural, la acumulación atribuible a multinacionales y capitales
extranjeros, que captan de manera ilimitada los recursos nacionales y los
recursos que se derivan del trabajo de la tierra, la ausencia de condiciones
de bienestar básicas para la población campesina como salud, educación
e infraestructura. En consecuencia, el PNIS en Colombia muestra
un aumento significativo en términos de áreas de tierra cosechadas e
incremento en los procesos de producción y sus ganancias, las cuales
no se ven, necesariamente, reflejadas en la población campesina ni en
el trabajador rural, actores sociales a los que se dirigía el programa
originalmente.
Según el especial ‘La Coca y la Paz’, hecho por la Unidad de Datos
de El Tiempo, solo tres de los 32 departamentos de Colombia están
libres de coca: La Guajira, Caldas y Cundinamarca. En los últimos
tres años, el número de hectáreas de cultivos de coca se duplicó,
con un crecimiento del 99 %. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
“Colombia pasó de 69.000 hectáreas de coca en el 2014 a 96.000
en el 2015. El equivalente a ocho parques temáticos al estilo
Disney o un poco más de la mitad del área de Bogotá”, señala la
investigación. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
Para el 2016, en Nariño había 29.755 hectáreas de coca sembradas.
Solo en este departamento del sur del país podía encontrarse más
coca que en Bolivia, país latinoamericano que tiene 20.200
hectáreas. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
En el marco de estos condicionamientos sociopolíticos,
económicos y culturales, el storytelling se propone funcional al proceso
de “desarrollo económico” propio del neoliberalismo, en concordancia
con la acumulación de capitales y la desestructuración del concepto de
desarrollo del conjunto de condiciones que garantizarían la vida digna
para la mayoría de los ciudadanos. Hay, por lo tanto, en esta propuesta,
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una defensa a los intereses de las grandes industrias y de los grandes
capitales, incluido el Estado, abandonando los colectivos sociales y los
distintos grupos humanos que con su trabajo sostienen la mecánica del
sistema productivo. El recurso semiótico discursivo que se apropia para
reproducir el sistema económico hegemónico, se propone a través de
la cuantificación de la cantidad de territorio que se encuentra utilizado
para el cultivo de coca, con el objeto de que el interlocutor-lector infiera
que existe la necesidad de que ese territorio se ponga al servicio de los
proyectos agroindustriales.
Dado el carácter incontrovertible de la cuantificación, el recurso
estadístico sirve para construir formas de ocultamiento, las cuales
invisibilizan las causas estructurales, reales y determinantes de las
condiciones de empobrecimiento y marginalización que el storytelling
nominaliza y atribuye a zonas específicas, y a poblaciones concretas:
En Tumaco las poblaciones son muy pobres, pese a que es ‘la
gran ciudad’ que recoge el mayor número de personas entre los
municipios de la zona. Más del 70 % de la población no tiene
trabajo y la falta de oportunidades hace que el campesino caiga
fácil en la ilegalidad […] (El Tiempo, 9 jun. 2017)
En esta cita directa atribuida a un empresario del ‘turismo
sostenible’ se resaltan las condiciones socio-económicas negativas de
Tumaco y de sus pobladores, los cuales son asociados con fenómenos
como la carencia de fuentes laborales, la ilegalidad y la pobreza. La
asociación y la inferencia que se busca producir es que, en una zona como
Nariño, es necesario reducir el cultivo de coca por el de cacao, un cultivo
que es más productivo para los intereses estatales, la agroindustria y las
inversiones internacionales: “En Tumaco saben de drogas, sí. Pero, con
el tiempo y pese a que la coca crece más rápido que el cacao, también se
han vuelto expertos en chocolate.” La descontextualización socio-política
e histórica de lo que se expresa, desconoce las razones por las cuales el
país y algunas regiones en particular, asumen el cultivo de la coca como
una alternativa para la supervivencia, en regiones abandonadas por el
Estado y con presencia del conflicto armado y las violencias vigentes.
Consecuencia de políticas históricas de exclusión y marginalización
social, y la ausencia sistemática de inversión básica en infraestructura y
servicios para la población.
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Parte fundamental del proceso de la descontextualización se
produce al ocultar, que cuando se propone la experticia en chocolate,
corresponde al país en la cadena de producción, el cultivo del cacao como
materia prima que se exporta en cantidad significativa y regresa al país
procesado. El producto final no es de acceso para los campesinos que
trabajan el proceso generador de la industria– el cultivo–, sino que se
restringe a sectores como el ‘mesón gastronómico’ y los hoteles, donde
el consumidor es el turista. De acuerdo con el Informe de la Federación
Nacional de Cacaoteros, Fondo de estabilización de precios del cacao
– FEP cacao 2017, Colombia exporta 11.926 toneladas frente a una
producción equivalente a 60.535.
“La inocencia sonriente del cacao” cierra el storytelling
propiciando la reflexión que va de la construcción de la emocionalidad
con sus implicaciones, a la construcción del engaño mediático, a
través de la apropiación de un saber especializado. Los marcadores
de emocionalidad en el discurso desempeñan funciones semántico
pragmáticas que como se ha señalado sirven, por una parte, para promover
en el interlocutor, experimentar emociones intensas, que se formulan en el
relato proponiendo grados de relevancia a lo que se expresa, aun cuando
se trata de eventos intrascendentes y, por otra parte, narrar formulando
relevancia cognitiva, para ocultar saberes de interés para la sociedad
lecto-interpretadora de la narrativa propuesta.
La influencia de las emociones, como lo ha señalado la ciencia
cognitiva, influye sobre procesos como la atención, la memoria, el
razonamiento, la toma de decisiones o la atribución (BLANCHETTE;
RICHARDS, 2010; ISEN, 2010). En esta línea, la construcción mediática
del miedo o la formulación de condiciones de ansiedad son producidas por
el temor a ser percibido socialmente, a través de estereotipos negativos
o a ser ubicado por fuera de los parámetros valorados socialmente; es
decir, ser inadecuado. En esta construcción mediática se determina el
funcionamiento cognitivo, cuyo efecto es reducir los recursos de la
memoria, disminuir el trabajo cognoscitivo y reducir o eliminar tareas
de evaluación (BLANDÓN-GITLIN; LÓPEZ; MASIP; FENN, 2017).
Desde el punto de vista crítico discursivo se propone verificar
mediante los marcadores semiótico discursivos, apropiados y
seleccionados por el narrador, el reconocimiento y la explicitación de
los recursos cognitivos, los mecanismos y los procesos representados,
para interpretar correctamente las claves que explicitan las formas
500
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
de construir el engaño mediático, claves que dan cuenta del esfuerzo
cognitivo realizado para funcionalizar la construcción discursiva que
efectúa el narrador. El Storytelling, objeto de esta indagación, se formula
en torno a tres unidades cognitivas y conceptuales: una historia de vida
individual, un reporte mediático y un reporte técnico oficial.
En el primer caso, la historia de vida se formula activando la
memoria sensorial, centrada en marcadores emocionales, por lo tanto, se
espera que la información propuesta mediante los sentidos sea automática
y desarticule formas de racionalidad o conexiones lógicas. Esto explica
el carácter ejemplar y exitoso en la construcción del “actor modelo”, que
sirve de punto de referencia para eliminar la inadecuación y el temor de
no ser como el “modelo”.
El segundo caso es el reporte mediático articulado como
intertexto, que activa la memoria de trabajo para actualizar pequeñas
unidades de información, que pueden funcionalizarse al integrarse con el
carácter viral del medio; de esta manera se reitera y replica, sin análisis
previo, fragmentos de información. Este proceso de memoria de corto
plazo, permite transformación y usos de la información disponible;
además, es en donde pueden aparacer narrativas – narradas, que vinculan
información auditiva-sonora; visual-espacial y, en general, las formas
materiales del sentido, en tejidos sígnicos.
El tercer caso es el reporte técnico, que se asocia más a la
activación de memoria de largo plazo, en la que se recurre a volúmenes de
información poniendo en relación la memoria episódica, más articulada
con eventos y la semántica que atañe a información factual. En este caso,
la memoria de largo plazo propende por la estabilización de saberes,
aunque esta pueda transformarse, distorcionarse u olvidarse. En este
punto, quien produce el discurso asume la decisión de formular para su
interacción el grado de coherencia, verosimilitud, propósito e intereses
que construye y socializa para su interlocutor. Por lo tanto, del sistema
decisional adoptado depende de que el discurso represente la realidad
narrada, mintiendo, ocultando y en general engañando (Van DIJK, 2016).
Es a partir de esta posición epistémica que podemos entender
las circunstancias que determina el engaño mediático que como se
ha señalado, requiere de un trabajo cognitivo. Por lo tanto, se implica
explorar la información y los recursos semióticos que la materializa en
las rutas cognitivas que se formulan desde el trabajo de las memorias.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
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IMAGEN 2 – Colombia cultiva cacao. Otros lo procesan y lo consumen
Cultivador de cacao en fruto en Tablón Dulce, Tumaco. Antes de que comenzara
los diálogos, campesinos decidieron probar el sabor de la paz reemplazando sus
cultivos de coca por el cacao.
Foto: Mauricio Dueñas (El Tiempo, 9 jun. 2017)
La imagen, una fotografía en plano medio, se encuentra en
relación semántico pragmática de complementariedad con el texto (pie de
foto), tematizando al agricultor-cultivador, el cual determina el encuadre
de la imagen. La fotografía construye que, el fruto del cacao en un primer
plano sobredimensionado, es la garantía para la transformación social.
La relación de complementariedad se expresa también en el storytelling:
tanto los nariñenses como los gremios esperan que la producción
del cacao aumente, pero con esta también un crecimiento en los
compromisos estatales y empresariales para fortalecer la industria,
la cadena productiva y las garantías que le permitan a la paz ser
como el cacao. (El Tiempo, 9 jun. 2017)
Se elide la información relacionada con el papel de Colombia en
la cadena productiva y se establece que el aumento del cultivo de cacao,
502
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
atiende compromisos “intereses” del Estado y el sector empresarial,
eliminando el interés del colectivo “los gremios – los nariñenses”.
Poco a poco, el cacao colombiano ha logrado ganarse un lugar en
el mundo. Según la Federación Nacional de Cacao (Fedecacao),
en el 2016 la producción aumentó en 3,6 %. “Mientras que en el
2015 se sembraron 54.798 toneladas, en el 2016 fueron 56.785”,
según lo expresó su presidente Eduardo Banquero López, en un
comunicado publicado en febrero de 2017. (El Tiempo, 9 jun.
2017)
En el informe que sirve de referente en esta parte final del
Storytelling, se establece el intertexto como recurso semiótico discursivo,
el cual posibilita verificar el esfuerzo cognitivo implicado para dar sentido
de verosimilitud. Este intertexto se formula desde la activación y uso de
la información fáctica, para crear el sentido de que, lo expresado, debe
ser creído y está sustentado, en este caso, desde la autoridad, el rol y la
institucionalidad que se propone.
El siguiente recurso semiótico discursivo se estructura desde la
información que procede de la memoria de trabajo y la articulación con
la memoria sensorial para la construcción del símil: “permitan a la paz
ser como el cacao: estimulante para el amor, un regulador natural para
el estrés y una forma de aliviar la depresión”. Además, se hace intertexto
con saberes sociales expresados en la vida cotidiana y la literatura, con
el propósito de mantener el sentido de lo incontrovertible, en virtud de
su permanencia en la cognición social:
Para el 2017, tanto los nariñenses como los gremios esperan
que la producción del cacao aumente, pero con esta también un
crecimiento en los compromisos estatales y empresariales para
fortalecer la industria, la cadena productiva y las garantías que le
permitan a la paz ser como el cacao: estimulante para el amor, un
regulador natural para el estrés y una forma de aliviar la depresión.
(El Tiempo, 9 jun. 2017)
Ahora, si se trata de no ser inmoderadamente subjetivo, podría
decirse entonces que en Nariño la paz sabe a cacao y que, como
en una frase famosa del escritor irlandés George Bernard Shaw,
es mejor que los cartuchos. “¿Para qué sirven los cartuchos en la
batalla? Yo siempre llevo en su lugar chocolate”. (El Tiempo, 9
jun. 2017)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
503
Conclusiones preliminares
La exploración analítica formulada desde los ECDMM e
integrada al carácter semiótico discursivo del Storytelling, por una
parte, ha permitido recuperar los sistemas ideológicos formulados con
sus anclajes y compromisos de orden económico-político y social. Por
otra parte, posibilita ilustrar desde los recursos semiótico-discursivos,
los mecanismos y procesos cognitivos que se implican en el diseño,
producción y socialización del discurso mediático. Este discurso se ha
caracterizado por construir el engaño, el ocultamiento y la elisión de la
información que el ciudadano común requiere para la comprensión de su
realidad socio-política y cultural. La detección de las formas de construir
el engaño mediático, socializado a través de un especial que se propone
para formular rutas y acciones políticas tendientes a la construcción de
paz en Colombia, demuestra que los interlocutores – lectores confían en
los recursos semiótico discursivos usados por el narrador y se verifica
la influencia persuasiva que el medio potencializa y pone al servicio del
sistema socio-político vigente. En este marco se correlaciona el hacer
político con los saberes que se distribuyen para legitimar la acción socioeconómica y política neoliberal con los principios de la globalización.
En el estudio exploratorio del Storytelling se ha verificado su
capacidad para captar la atención del interlocutor, mediante recursos y
estrategias semiótico-discursivas, articuladas a las formas de activar la
memoria y gestionar emociones, intertextos, nominaciones, entre otras.
También, la potencialidad que tiene en la formulación de axiologías,
normas y principios orientadores de la acción social, legitimadores
del orden socio político imperante; la narración está al servicio de los
intereses del mercado y de quienes ejercen el control de los capitales.
En la exploración analítica:
se ha permitido recuperar los sistemas ideológicos formulados
con sus anclajes y compromisos de orden económico-político y
social.
se ilustra desde los recursos semiótico-discursivos, los mecanismos
y procesos cognitivos que se implican en el diseño, producción y
socialización del discurso mediático.
504
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020
el discurso se ha caracterizado por construir el engaño, el
ocultamiento y la elisión de la información que el ciudadano
común requiere para la comprensión de su realidad socio-política
y cultural. La detección de las formas de construir el engaño
mediático, socializado a través de un especial que se propone para
formular rutas y acciones políticas tendientes a la construcción
de paz en Colombia
se infiere que los interlocutores – lectores confían en los recursos
semiótico discursivos usados por el narrador y se verifica la
influencia persuasiva que el medio potencializa y pone al servicio
del sistema socio-político vigente.
se correlaciona el hacer político con los saberes que se distribuyen
para legitimar la acción socio-económica y política neoliberal con
los principios de la globalización.
se verifica su capacidad para captar la atención del interlocutor,
mediante recursos y estrategias semiótico-discursivas, articuladas
a las formas de activar la memoria y gestionar emociones,
intertextos, nominaciones, entre otras.
se determina la potencialidad que tienen los storytelling en la
formulación de axiologías, normas y principios orientadores de
la acción social, legitimadores del orden socio político imperante
se establece que la narración está al servicio de los intereses del
mercado y de quienes ejercen el control de los capitales.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
Living on the edge of african dreams: new identities for
african and african diaspora Caribbean students in Brazil
Vivendo na fronteira de sonhos africanos: novas identidades
para estudantes africanos e caribenhos da diáspora afrocaribenha no Brasil
Ricardo Gualda
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Salvador, Bahia / Brazil
rgualda@ufba.br
https://orcid.org/0000-0003-1925-1435
abstract: This article presents the results of a survey among African and AfroCaribbean diaspora students in Brazil. They are participants of the federal PEC-G1
program, which grants tuition-free undergraduate spots in Brazilian universities. Before
starting their undergraduate programs, however, they come to UFBA for linguistic
and cultural instruction for a period of 8 months. The survey and the discussion of the
results encompass interviews with 25 students about their cultural experiences and their
intercultural development over the initial period of 6 months. They present a complex
interaction of an originally middle-class background with professional aspirations in
their home countries to a lower social status in a country with a history of slavery and
racism. Many stories illustrate the conflicts they experience and the coping mechanisms
they develop to navigate a new environment in which they will be immersed for a long
period (at least 4 more years) while retaining as much of their original affiliations and
identity as possible, especially considering that they are expected to return to their
home countries after graduation.
Keywords: Portuguese as a second language, identity and language acquisition,
immersion and language learning, racism in Brazil.
resumo: Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa com estudantes africanos
e da diáspora afro-caribenha no Brasil. São participantes do PEC-G, um programa
1
PEC-G, Programa Estudante Convênio de Graduação, Undergraduate Exchange
Student Program.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.507-534
508
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
do governo federal que oferece vagas em cursos de graduação gratuitamente em
universidades brasileiras. Antes de começar a graduação, no entanto, eles vêm à
UFBA para um curso de língua portuguesa e cultura por um período de 8 meses. A
pesquisa e os resultados apresentados cobrem entrevistas com 25 estudantes sobre as
suas experiências culturais e o seu desenvolvimento intercultural nos seus primeiros 6
meses. Aqui se revelam interações complexas entre sua situação social de classe média
com ambições de ascensão social trazida dos países de origem em contraste com um
status social diminuído em um país com uma história de escravidão e racismo. Muitos
relatos ilustram os conflitos vivenciados e os mecanismos desenvolvidos para navegar
um ambiente novo em que eles estarão por um longo período (no mínimo mais 4 anos)
ao mesmo tempo em que conservam o máximo possível de suas afiliações e identidades,
particularmente considerando que o programa prevê o seu retorno ao final da graduação.
Palavras-chave: português como segunda língua, identidade e aquisição linguística,
imersão linguística, racismo no Brasil.
Submitted on August 12th, 2019
Accepted on October 17th, 2019
1 Introduction2
Every year, the Universidade Federal da Bahia (UFBA), in
Salvador, Brazil, receives about 30 students from over 20 African
countries and a handful of African Diaspora students from Englishspeaking Caribbean nations. They seek mandatory Portuguese language
instruction at UFBA for approximately 8 months before heading to other
Brazilian cities to pursue their undergraduate studies, where they live
for at least 4 more years until graduation.
Those international students arrive at UFBA under the federal
PEC-G program, by which they are granted tuition-free spots at over 100
Brazilian universities. Either their home governments or they themselves
must fund air travel and personal expenses while studying in Brazil.
PEC-G is a 50-year old international cooperation program aimed at
providing educational opportunities for students from countries where
access to higher education is limited. It was originally designed to serve
Ethics Committee approval CAAE: “Construindo projetos possíveis: itinerários
formativos de jovens africanas/os não falantes de português no Programa Estudante
Convênio de Graduação”, 91829418.9.0000.5505.
2
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
509
students from Cape Verde, Guine Bissau, and Sao Tome e Principe. Today,
according to the Ministry of Education, about 75% of approximately
3000 students come from Portuguese-speaking countries in Africa, and
land directly at the university of their undergraduate degree. Around
10% come mostly from Latin America and may fulfill their language
requirement in their home countries. The rest, around 15% who do
not speak Portuguese and come mostly from non-Portuguese speaking
countries in Africa, must first attend an intensive language course at 20
universities in Brazil – UFBA being one of them. In late October, they
must pass the official language proficiency examination Celpe-bras3
before moving on to their undergraduate studies elsewhere. The students
who come to Brazil for language instruction come from countries where
the exam is not offered.
At UFBA, they are at the initial and most intense, critical stage
of their very long stay in Brazil, at an also critical stage of their lives,
as young adults. They are also under enormous pressure, having to pass
the Celpe-bras exam in a mere 8 months. This chapter analyzes the
experiences of these young African and Caribbean pre-undergraduate
students as they try to adapt to life in Brazil and learn Portuguese,
knowing they will spend the next few years in the new country.
Coming to Salvador, Bahia, these African and African Diaspora
Caribbean students arrive at the most African city in Brazil, with a
population between 70% and 90% of African Brazilians. The African
presence in Salvador da Bahia is present in the bodies of its people, in the
colorful headscarves on women’s heads, in the acarajé4 stalls that occupy the
city and infuse it in palm oil scent in the late afternoons, and Candomblé,
the African religion that Brazilians share with other diaspora communities
in Latin America and the Caribbean, as well as with people in West Africa.
Salvador is also a stronghold of African pride and the AfroBrazilian cultural-political movements. As such, several communities
in the city project the social representations of ancestral Africa, as all
Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros, Portuguese
Language Proficiency Certificate for Foreigners.
4
Kidney-bean bun, which is deep fried in palm oil. It is cut in half and filled with
Caruru (an okra-based paste) and Vatapa (a starchy paste made with several ingredients
and palm oil), tomato and onion salad, and dried shrimp, also very common in parts
of West Africa.
3
510
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
communities do. These, naturally, bear relative resemblance with the
realities experienced by many present-day Africans. Also, as a former
slave-based society, Salvador’s racial relations are also the basis of the
distribution of resources, privileges, and power.
In that sense, people in Salvador see in the bodies of these African
students both myths of an ancestral Africa as well as the stereotypical
places reserved to current African Brazilians, typically in the lower
echelons of society. These are new roles for them, and they struggle to
adapt to a new cultural background and a social order that may differ
from their home experiences.
They also bring to Salvador their own dreams and expectations
about life in a foreign country, adventures, adulthood, university, and
their future in general. Not only that, they also carry the expectations of
their families and friends, as well as from their national governments,
which, in many cases, award them scholarships to enable them to pursue
their studies in Brazil. In Salvador, they must confront their dreams with
the reality of their experiences.
Their presence in Salvador is no coincidence. UFBA defines how
many PEC-G students it admits yearly for the Portuguese language course
and their origin. It is currently the university in Brazil that receives the most
students under the language phase of the program, nearly all from Africa
and the Caribbean. Given the local history and demographic makeup, the
university sees international students from Africa and the African diaspora
as a priority. The idea is that it is important to establish a dialogue with
people from regions which share a common history albeit from different
perspectives under the umbrella of the university. In that sense, the
Portuguese language course and their cultural training is centered on the
premise of that cultural exchange as a basis for intercultural dialogue.
2 The Portuguese language course at uFBa
In 2014, the various tuition-free Portuguese language courses
offered to international students were unified under the Profici-PFL
(Portuguese as a Foreign Language) program at UFBA. It currently
welcomes a total of around 100 international students year-round,
mostly from West Africa, Western Europe, and Latin America. At UFBA
they attend courses under several institutional programs: PEC-G, the
Organization of American States (OAS) PAEC, semester abroad exchange
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
511
agreements with universities around the world, Fullbright Foundation
language assistants, Fiocruz research assistants, and many others.
This article focuses exclusively on PEC-G students and their
experiences, but they share their classes with undergraduate and graduate
students from all over the world. This is an important element of the
program, as I believe that they gain invaluable experience and insight
from their contact from students from different countries and also with
Brazilians, all at different stages of their university education. The main
guidelines of the course are: ‘learning from diversity’, ‘learning to learn’,
and ‘learning from real experiences’.
The Profici-PFL was designed as an experimental program and
it undergoes frequent evaluation and redesign. It is currently taught by
4 undergraduate and graduate students under my coordination, with a
student-centered, project-based, multi-level learning approach. Unlike
traditional approaches in which students are divided by personal
characteristics, ‘learning through diversity’ means that all students are
grouped together, regardless of Portuguese language proficiency, country
of origin, language(s) spoken, age, etc. Classes are as diverse as possible,
with a mix of students from each background.
Fundamentally, the program aims at helping students to become
independent learners. That means that they are led to go through gradually
structured real-life experiences and reflect on them so that they learn to learn
independently from the immersion situation. In that sense, they are led to
seek interactions, build relationships, and always reflect on their experiences.
In that process, they achieve linguistic proficiency and intercultural skills
on their own, according to their individual learning styles and needs. My
hope is that they then learn the strategies they need to continue to learn
independently through their long stay in Brazil and afterwards.
That means that the course proposes projects, which offer a
progression of real cultural and linguistic interactive experiences in
the immersion environment. Students learn language and culture from
interactions in their new environment, and ultimately succeed in building
relationships. No books, tests, grammar and vocab, etc. The project is
the class and the class is the project.
Projects are structured as preparation, execution, discussion,
and reflection, in one-week cycles. In preparation, the structure of the
project is presented and thoroughly discussed in class, with the necessary
instructions and training – both linguistically and culturally. Then, there
512
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
is execution. Projects are long, complex, and time-consuming. They
also present great variety, so that students are encouraged to explore,
interact and have meaningful, varied experiences. Sometimes they
are done individually, sometimes in pairs, and sometimes in groups.
Finally, in discussion, they present the results of their project and talk
about the experiences during execution. There is linguistic instruction,
but intervention is always individual, contextualized, and focused on
immediate and practical questions and difficulties.
Here are some examples of projects done in the first 8 weeks of
2016:
Treasure hunt
My country, my history
Field interviews on public services in Salvador
My Brazilian friend
Cooking fest
Music and dance in Brazil and in my country
Work and career
Events and cultural life in Salvador
Film
My career and my sojourn in Brazil
Traditional festivities
Projects present much variation, but, as an example, here is an
outline of the first project (in line with STOLLER, 2006), “The
Treasure Hunt”:
Step 1 – Preparation: In-class activities about Salvador, its
neighborhoods, public transportation; asking for
directions, asking for help, asking prices;
Step 2 – Execution: Students lay out a plan for covering the
tasks in groups of 3. They visit 6 sites around the city
by bus and take selfies at each one;
Step 3 – Discussion: Students prepare a picture presentation of
the neighborhoods they visited; they prepare a laundry
list of difficulties and incidents; they present their
experiences and discuss them in class;
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Step 4 – Reflection: Finally, they write about any aspect of the
experience on their blog.
Step 4 – Shows that students write a blog through the course,
discussing their immersion experiences. They also
keep a diary, which is a simpler, more formal task. In
the diary, they take notes or write a paragraph about
their linguistic and personal experiences. On Fridays,
class is based on the discussions of the themes in their
blogs and diaries.
One important aspect of ‘learning from diversity’ is that students
are not divided by level of proficiency. As such, there is an expectation
that they learn to work as a team, helping each other and learning in a
diverse environment, as is the case in the real world. In that environment,
students with a higher level of proficiency do more linguistically
sophisticated projects. Students with a lower level of proficiency present
projects at a simpler linguistic level. All learn something and they learn
together as a team.
The main objective of the course is for students to develop their
own individual learning strategies, to ‘learn to learn’. Some prefer more
analytical, structured learning, most tend to be spontaneous and learn
from everyday interactions and media, they ‘learn from real experiences’.
Through observations and qualitative analysis of interviews with students,
I have identified 5 stages in the development of language-learning
strategies: resistance, exploration, formalization, specific-purposes, and
independence, which will be outlined in more detail in a future article.
These stages are based on and roughly coincide with Vande Berg’s stages
in intercultural development, as described in Bennett (2012).
The Portuguese course at UFBA, therefore, establishes a very
close between cultural exploration, personal interaction, and language
learning. For that reason, understanding the experiences of the students in
Salvador, which is guided by the language course, is an essential element
in the success of the course and individual students.
3 Methodology
Every year the Ministry of Education sends us a different
combination of students from different countries. In 2018, there were
514
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students mostly from Ghana, Namibia, and Jamaica. There was also one
from Kenya, one from Togo, and two from East Timor. For this chapter, I
have conducted 30-minute interviews with 25 students: 11 from Ghana,
9 from Namibia, 4 from Jamaica, and 1 from Kenya. All PEC-G students
were invited to participate in the study, but some were not interested or
excluded from this survey (the East Timorese and a graduate student from
Benin). I preferred to focus on English-speaking students from Africa
or the African diaspora.
The interviews were recorded, transcribed, and analyzed,
employing methods of Critical Discourse Analysis, especially Van Dijk
(1998, 2008) and psychosocial analysis, as in Camino et al. (2001),
Ferreira (2002), Lima and Vala (2004), and Pereira et al. (2003). Other
than trying to seem receptive and make students feel comfortable, I stuck
to the questions and tried not to react to their responses. The script of
the interviews varied slightly according to the responses, but all covered
the following questions:
1)
Name, age, country of origin, languages spoken, undergraduate
program to be undertaken after the Portuguese course, PEC-G
university after the Portuguese course, source of funding for stay
in Brazil;
2) Where did you live in your home country? In what city? Did you
live with your family?
3) Tell me about your family (family members and occupations).
4) How did you find out about PEC-G?
5) Did you also apply to other undergraduate programs in your
country or abroad?
6) When you found out you were admitted, what preparation, if any,
did you undertake (language and culture)?
7) Did you come directly to Salvador?
8) Where did you stay in your first few days? How did you find that
place?
9) What was your first impression of the city?
10) Do you still live there? When did you move? How did you find
the new place? Do you live with Brazilians or with other foreign
students?
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
515
11) Today, after 6 months in Salvador, what do you think are the
positive and negative aspects of life here?
12) Do you have Brazilian friends? How did you meet them? What
social activities do you lead with them?
13) Do you feel at home in Salvador/Brazil?
14) Do you feel welcome in Brazil?
15) What do you think Brazilians think of you when they see you?
16) Do you think there is racism in Brazil?
17) Have you ever had any experiences with racism in Brazil?
18) What do you do when you want to improve your Portuguese?
19) Do you think course projects helped you in learning Portuguese?
20) Do you feel confident about your chances in the Celpe-bras exam?
Questions 18-20 are not directly pertinent to this chapter but were
important as an evaluation of students’ perception of the course and its
results. Also, questions 16-17 were not initially part of the interview, but
since all students brought up the issue of racism in the first 5 interviews
and it revealed itself to be a key element of their experience in Brazil, I
incorporated it into the script. In fact, the issue of racism was so salient that
it guided my analysis of their understanding of the subtleties of Brazilian
culture in Salvador and the local social order. As I describe below, the more
elaborate their responses about racism, the more students also showed to
be integrated into Brazilian culture and fluent in Portuguese.
Students were allowed to do the interview in either Portuguese
or English, but all showed great pride in answering the questions in
Portuguese. It is indeed a great accomplishment to be able to conduct a
30-minute interview of such complexity in a foreign language after just
6 months of study. Only two students asked to revert to English halfway
into the talk. Of course, they all know me as the course coordinator, but
they are very familiar to listening to me speaking in English, as I also
recorded cultural training videos, which I distribute via YouTube.5 I also
exchange emails with them initially in English and French.
The focus of the analysis was on aggregate content analysis.
I tried to articulate the content of the responses as to how students
5
Videos are available at: https://www.youtube.com/user/rgualda71.
516
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
understood: (1) a perceived Brazilian social order; (2) their place in that
order; (3) how they developed strategies to find a comfortable place
in that order. Fundamentally, the idea of this study is to analyze how
they perceive the issues of identity and otherness, and how to blend
themselves into a new culture without losing their own sense of identity.
In the discussions, 3 points were key in their perception of those issues:
language, nationality, and race.
4 Some key concepts
Thus, the key concepts that are relevant to the discussion of the
interviews, from a discourse perspective, are: identity, social groups,
and racism. The first two are very closely related, while the latter is a
more specific one, especially in the Brazilian context, where I show that
racism is very distinct from other societies, such as South Africa or the
United States.
In any given society, individuals associate themselves in groups,
sharing cultural markers that contrast to other individuals who lack those
markers. Lawler (2008) explains that some identity categories may be
combined (gender and ethnicity, for example), but markers normally
present a binary distinction (homosexual versus heterosexual) and are
exclusive (2-3). Therefore, identity in the individual is revealed in layers
of markers, corresponding to social groups.
In terms of identity, Jenkins (2008) suggests that sameness and
difference are therefore dialectically opposed but are essentially two
sides of the same phenomenon. The features that make two individuals
recognize themselves as members of the same group are also the markers
that differentiate them from individuals of a different group. Discussing
similarity and difference, he posits that “neither makes sense without
the other, and identification requires both” (p. 21). Consciously or not,
identity occurs at the deepest affective and cognitive levels. In the case
of the PEC-G students in Salvador, they always mention Portuguese
proficiency, or lack thereof and skin color as key social markers, thus as
factors of integration or differentiation in Brazilian society.
There is a distinction between identity and identification. Lawler
(2008) states that: “identity needs to be understood not as belonging
‘within’ the individual person, but as produced between persons and within
social relations” (p. 8), while Jenkins (2008) focuses on identification, a
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
517
process that comes from the outside. In our discussion here, identification
is related to social categories (gender, ethnicity, age, kinship), in which
the whole process is disorganized and unconscious, yet inevitable.
However, categorization is a social, discursive phenomenon, and
it may evolve as conditions change, as is the case of PEC-G students in
Salvador. Upon arrival, they perceive themselves as sharply distinct from
Brazilians, and thus project a perception of otherness from Brazilians
towards them. As they understand the subtle features shared in Brazilian
society, its social categories, and a broader social order, they create
strategies to integrate, and feel ‘at home’, ‘welcome’, indistinguishable
from the locals.
At the same time, society also associates hierarchies within
groups and individuals. Lawler (2008), thinking of identification as a
social process that is imposed on the individual, contends that power is
ever present in the assignment of identities and the prestige (hierarchy)
that comes with it: “an identity is imposed and there is no ‘official’ space
allowed where this may be contested or a different identity affirmed”
(p. 145). This is a key element in the discussion of perceived racism,
since without an accompanying sense of social status associated with race,
racism is not realized as an oppressive force, but rather as a superficial
folkloric marker without much consequence, as we discuss below.
Here it is important to understand that the identity of a foreign
student is not fully reinvented as if the past in their home country is
completely forgotten. It is rather a blended identity, as they only partially
adhere to local values, beliefs, and attitudes (as defined by VAN DIJK,
1998), negotiating the difficult combination of a home identity and a new
identity within a new map of interrelated social groups and categories,
which differs from what they know from home. As the process evolves and
they integrate into the new society, often they also move away from their
original identity, living in a blended state, neither in Africa nor in America,
rather somewhere in the imaginary ocean between the two continents.
The point here is that being dark skinned in Soweto, Salvador,
Accra, or Paris is not the same. The commonsense idea is one that
fetishizes the body as an immutable, durable, unchangeable entity. The
fetish of the body represents the belief that one is universally recognized
by his essential and immutable self, identified in a material shell. Yet,
the perception of what is dark or light skin changes according to each
518
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
society, and values, beliefs, and attitudes toward social categories, which
may be defined in terms of race vary wildly from one society to another.
Van Dijk’s (1998) argues from a multidisciplinary approach,
which is based on a conceptual triangle of discourse, cognition, and
society (p. 7). That triangle explains how social groups (society) are
formed and managed discursively (discourse), while the perception as
values, beliefs, and attitudes of individuals (cognition) are negotiated
within groups. That process is dialogic and discursive in nature, standing
in opposition to other groups which are also in dialogic discourse.
Van Dijk (1998) deals with organized groups, but his framework
also applies to social categories, if one understands that then the process
is unconscious and disorganized. It is also important to note that in the
model, values, beliefs, and attitudes are articulated in discourse in terms
of schemata, as built on a chain of topics (or themes) (p. 263-274). Thus,
the job of the analyst is to reconstruct the relevant social categories that
manifest themselves in the discourse as a correlated set of values, beliefs,
and attitudes, which are articulated discursively in schemata.
This is where the perception of race becomes central. Sure,
students understand that they initially are outsiders in Brazil, as any
foreigner would be. As time passes, they become more and more
integrated and indistinguishable from the locals (insiders), both culturally
(especially in terms of visible icons, such as clothing and hairstyles) and
linguistically (even if Portuguese proficiency is perceived to lag other
markers).
Yet, they are fully aware that they arrive in a very diverse society,
in which race is a fundamental marker. They are not just any other, they
are a particular type of other, the African, and more consequentially,
the black other. Interestingly, as they do not recognize racism as a
fundamental marker in their own home countries, their perception, while
very refined, is not accompanied by a sense of injustice or insult, even
when they have personal experiences with racism, as discussed below.
Holanda (2015) is one of the pioneers in the topic of race in
Brazil, having authored the classic ‘Roots of Brazil’ in 1936. The main
argument in the book is that the Portuguese colonizers, being explorers,
having come to Brazil without family members, and of a more adaptable
culture, largely interbred with the local Amerindians and Africans they
oppressed. As a basically agricultural and rural colonial enterprise with
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519
close, yet strongly hierarchical relationships, the local culture was based
on family and personal relations rather than mediated by law and the state.
As such, that very hierarchical society with extremely close daily
family and personal ties had to develop mechanisms of attenuation,
especially a paternalistic structure of exchanging personal favors and a
pattern of cordial, highly affective interpersonal treatment. According to
Holanda (2015), it is that perceived friendliness and personal attachment
is the glue that kept together a system of extreme social stratification of
groups of people living in extreme proximity, thus avoiding conflict. The
basis of that complex hierarchical system is race, with a high degree of
miscegenation, therefore, multiple intermediary loci.
That is a fundamentally different pattern of social organization
than what is observed in places like the United States of America or
South Africa under Apartheid. In those places, European colonizers of
fundamentalist protestant beliefs emigrated to the new territories, not only
with their families, but often with groups of people to establish the first
colonial settlements. While the Portuguese dreamt of getting rich in the
new world and coming back to Europe, the Dutch settled South Africa
for good. The former had a very oppressive view of colonization, but
desperately needed the locals and African slaves to explore the riches of
the colonies, as well as to socialize, while the latter had no use for the
natives. Their policies varied between complete segregation (Apartheid)
and genocide, developing an ideology of racial purity. In everyday
interactions, Apartheid was a system of explicit oppression, despise/
hatred, and extreme segregation. The levels of social inequality in Brazil,
the United States, and South Africa are quite similar, but here a highly
hierarchical, racially based social structure came with a friendly face, soft
words, close social interaction and ties, interpersonal empathy, and a smile.
Currents studies explore the nature of Brazilian racism and
highlight some interesting modern developments. Lima and Vala (2004)
confirm the typical Brazilian pattern of cordial racism. They also point
out that in the last few decades, overt racism has declined sharply in
the Americas and Europe, but new stereotypes of people of color have
emerged. The discourse, which in the early 20th century stressed them
as being dirty, lazy, superstitious, stupid, and criminal has shifted to a
covert system of stereotypes: prone to the sports and arts, strong, joyful,
exotic, poor, undereducated, unskilled, dependent on welfare, involved in
criminal activities, with social, family, and personal problems. There is
520
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
also a strong belief that there is no more racism and that either individuals
themselves bear the responsibility for not thriving in society, or that the
social environment of poverty and moral deficiency hampers their fortunes.
Camino et al. (2001) further discuss the issue of covert racism,
showing that a vast majority of Brazilians (89%) consider that there
is racism in Brazil, but that they themselves are not racist. Meanwhile
respondents sustained the new stereotypes of people of color, as prone
to the sports and the arts, as well as active in less prestigious and less
skilled occupations. Pereira et al. (2003) reach similar conclusions,
showing that people rationalize racist attitudes with discourses related
to social class and professional skill.
Discussing a long tradition of racism studies in Brazil, Guimaraes
(2004) stresses how that affective attitude not only an oppressive social
order, but also masked the very existence of racism as a fundamental
element of the organization of Brazilian society and the distribution of
privilege in the context of a capitalist, class-based society. In that sense,
a unique form of social order ensues, that combines class and race, with
cordiality as an element of attenuation.
Racism, then, is not only an attitude from whites towards blacks,
but a shared set of values, beliefs, and attitudes, by which all prize and
strive for whiteness. Lima and Vala (2004) and Camino et al. (2001) show
how ambiguous self-classification can be, as people of color use different
terms to describe themselves, often preferring to pass as whites or to selfdescribe with intermediate terms rather than ‘black’ or African Brazilian,
a strategy not shared by whites. In that context, Ferreira (2002) points out
the importance of Afro-Brazilian activism as a means to recreate and prize
a local African identity, fostering a sense of pride and political action.
5 The experiences of african and afro-Caribbean students in
salvador
25 students were selected for this study, all between the ages of
18 and 26, of which 11 are male and 14 are female. They are all English
speakers, but all speak other regional languages or Jamaican patois.
The largest group is that of 11 students from Ghana. There are also 9
Namibians, 3 Jamaicans, and 1 Kenyan.6 Among them, 5 students (two
6
In several sections of this chapter, I will not refer to the Kenyan student to preserve
their anonymity.
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521
from Namibia, two from Ghana, and 1 from Jamaica) have previously
studied at the undergraduate level but decided to come to Brazil through
the PEC-G program.
5.1 a professional, middle-class perspective
In their interviews, students revealed that their parents led
professional, middle-class careers in their home countries. They either
own small businesses or have careers in the public or private sectors that
require a university degree. Seeking one is a common feature in their
families, in both their parents’ generation as among their siblings. So is
going abroad for an education; in fact, 4 had siblings living in Brazil, of
which 3 are participants in the PEC-G as well.
Among the reasons for choosing to come to Brazil for their
education, students mentioned already having a family member here, the
quality of higher education in Brazil being superior to their home country,
financial reasons, as PEC-G is a tuition-free program (Namibians also
receive a stipend from their national government to study abroad), and
an interest in learning a new language and/or experience other cultures.
So, while these students share a solidly middle-class status, they are not
rich and financial considerations do matter.
In that context, a university diploma is the key to maintaining/
improving social status and being granted prized opportunities at
home and abroad. The careers they have chosen bear evidence of that:
Engineering, Architecture, Business Management, Tourism, Medicine,
Nursing, International Relations, Physiotherapy, Biomedicine, and
Biochemistry. That helps explain why UFBA has never experienced any
attrition, and that students, while being young and inexperienced, prize
their education and are highly motivated.
The professional, middle-class perspective is an important feature
in their perception of the host country and of their experiences, although
there are variations based on their nationalities. In general, students view
a foreign university diploma as an important asset in their pursuit of social
status and value indicators of Western-style urban living, development,
and prosperity.
In that sense, students feel glad when their expectations of Brazil
being a more developed country than their own are met as well as feel
disappointed when confronted with the opposite situation. So, when asked
about their first impressions of Salvador, Jamaicans generally mentioned
522
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
the weather as a negative (too hot and humid) and the beaches as a
positive. In general, they said that they thought the city is very beautiful,
especially the coastal areas.
The Namibians and the Ghanaians mostly found housing through
two senior African students in Salvador. Initially going to a workingclass neighborhood near the city center, all the Namibians mentioned
they were saddened by the slums they saw and they quickly sought
new accommodations. Ghanaians mentioned that the city is very large
and modern, with lots of high-rises. They often mention that the city is
clean and students of all nationalities praised public services – especially
public transportation, but also healthcare and education – to the surprise
of many Brazilians.
While Namibians state that they later got used to poverty in Brazil
and it did not affect their generally positive view of the host country,
the unanimous negative aspect of Brazilian life for all students in the
study is crime and violence, with scattered comments about graffiti,
protests/demonstrations, noise, and drug/cigarette consumption. One
student witnessed a police chase in front of her home, having even heard
a gunshot during the event. Two others were pickpocketed themselves.
Of course, all students are in daily contact, and all knew those stories.
Several students stated that they were afraid in some situations (at night,
walking by themselves), reflecting fears that ordinary Brazilians also
hold about public spaces.
Their professional, middle class perspective is very important
in understanding students’ experience in Brazil. On the one hand, it
explains the strong commitment to the PEC-G program and their studies,
especially their focus on passing the Portuguese language exam. It also
shapes their social relationships, which, as presented below, are based on
institutions that cater to people in their social strata – church, university,
the mall, the gym, etc.
It also has a strong influence on how they perceive the central
issue of racial relations in Brazil, as I discuss below. On the one hand,
they realize the lower social status of African Brazilians in Salvador. On
the other, they strive to retain/improve their own social status as university
students. They also have a relative acceptance of racism, since it is a new
feature in their lives, unlike African Brazilians, who must deal with it for
their entire lives. As foreigners, they also are relatively uncommitted to
Brazilian life and culture, and therefore, may be less affected by social
conflicts in the host country.
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523
5.2 social life
Social life is a central element in the outcome of immersion
programs, especially at UFBA. If students do not feel integrated,
supported, and happy, how can they possibly devote themselves to
learning Portuguese? Also, if they do not actively participate in Brazilian
life, have rich interactions, and build relationships with Brazilians, how
can they possibly effectively learn Portuguese in such a short time?
So, as described above, several class projects aim at helping students
overcome their fears and explore the city, the university and social life
in general. Students also receive cultural training and support through
online videos, face-to-face sessions, and programs, such as tandem
sessions, tutorials, etc.
In fact, as is typical in an immersion situation, students who
early on take the plunge and actively seek a variety of interactions and
relationships with locals tend to do much better linguistically. Most
students eventually find a housing situation that involves either living
with a Brazilian family or sharing an apartment with other students (some
or all Brazilian), except for 3. Those 3 expressed regret for not having
sought to live with locals. In general, by their own accounts, students
who live with Brazilians exclusively do better. And students who move
into a home with Brazilians early do better.
All students highlight emphatically that Brazilians are
surprisingly, exceedingly friendly and helpful. 3 Jamaican students even
mentioned that they are too friendly, referring to close physical contact
(especially hugging and kissing on the cheeks as a form of greeting).
As one student from Ghana put it “you can always count on Brazilians
to help you out, regardless of the situation”. Tales of helpful strangers
abound, from giving directions to riding to the hospital on a bus with
a sick student. Several students stated that they spend part of the day
studying on campus, and when they have questions, they often sought
help from unknown Brazilian students, who tutored them on the spot for
extended periods of time (up to two hours).
All but two students state that they feel at home in Salvador,
even as a total of 4 said that they sometimes feel homesick. Several
mentioned that they did not like Brazilian food (bland). All said that they
feel welcome in Brazil, with 5 Ghanaians and 1 Jamaican believing that
the cultures were very similar. The strongly African ethnic and cultural
makeup of Salvador and general diversity were pointed out as a positive.
524
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
When asked if they have Brazilian friends, only 3 (one for each
nationality) said that they had only a few or none. The vast majority have
built relationships with other students, 3 were very close to families,
and one became very good friends with a university staff member.
They meet their friends in a variety of settings: pre-arranged tandem
sessions, the university campus (waiting in line, the student restaurant,
the library, just walking around and greeting people…), neighbors, the
beach, soccer groups, the mall, social networks (especially facebook),
the gym, and church.
In fact, all students attend Evangelical churches (Jamaicans less
enthusiastically than Africans), and most point it as one of the central
aspects of their social interaction with Brazilians and social integration
in the host country. Through church, they make friends, meet families
with whom they keep in touch for celebrations and festivities, find
accommodations (with other students or families). Several students also
volunteer at church or attend bible study groups.
While students praise locals for being very friendly and helpful,
3 students mentioned that they declined approaches by Brazilians to
socialize “to focus on the test”. That answer is puzzling for two reasons.
First, as intensively as they may study, it is very unlikely that they have
no “time” to go out and socialize occasionally. Also, socializing with
Brazilians is probably the best way to integrate in the new country and
learn Portuguese.
In general, it seems that students have a hard time building deeper
relationships with Brazilians. It is true that they resort to strangers for
help and support, but their contact with locals seem superficial and
occasional – once-weekly church activities, once-weekly soccer matches,
once-weekly tandem sessions, and so on. Their best friends and confidants
seem to be fellow PEC-G students. Many students heeded my advice to
live with Brazilians, but all but 3 live jointly with Brazilians and other
PEC-G students. None of them mentioned their Brazilian roommates
when asked about their friends or social life, meaning that their contact
at home is probably superficial and that they rather relate more closely
to their countrymates at home.
Maybe because of the personal face-to-face setting of the
interviews and my position of authority, no student mentioned dating
in Brazil. In fact, several African students stated with amusement that
Brazilians at university date very freely, without interference from their
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525
families and with no intention to marry – “just for fun”. But, in fact, not
dating at that age in Brazil may restrict social life, because romantic
relationships are an important topic of conversation and a driver of social
interaction (going out, meeting people, gossip, etc.).
Also, probably because of conservative social views, no student
commented on the very salient issue of LGBTQ. That is a widely
discussed issue nationally and in the Portuguese language course. Samesex marriage has been legal since 2013, soap operas on television always
portray a couple of LGBTQ characters (openly displaying affection),
and transsexual models were featured in the 2016 Rio Olympics opening
ceremony and were the topic of Sao Paulo fashion week, just to name a
few examples. More importantly, LGBTQ students at the university are
very visible and widely supported by the university community.
In short, their conservative moral views and excessive focus on
the exam as much as religion and family as the focal points of social
life are limiting factors in building deeper relationships with Brazilians,
either romantic or friendly. Those are deep cultural differences that are
difficult to bridge, especially in the short period of six months, which is
when interviews took place. Also, students plan to and are supposed to
return to their home countries after graduation, so that they have a longterm commitment to Brazil, but it is still temporary. Therefore, it makes
sense to resist change in deeper cultural norms, especially regarding such
an important aspect of life as social relationships.
5.3 Being a foreigner in Brazil
People in Salvador are used to foreigners. As one of the main
tourist destinations in the country, there is a steady stream of visitors from
all over the world, but mainly from neighboring countries and Europe.
There are also small immigrant communities, mostly from Argentina,
Western Europe, and China. People from Africa and the Caribbean are
rare. In that sense, PEC-G students do not meet other countrymates
during their stay here other than each other and the program in its many
editions is the only source of people from those countries.
Here there are many factors at play. First, Brazilians may be a
little indifferent to foreigners. The element of surprise and curiosity,
so common in less visited places, may not be present. However, since
students come from nations that are generally underrepresented in the
526
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local foreign population, there may be at least some degree of curiosity.
Finally, locals generally deal with visitors from hegemonic countries
(Europe), a factor that usually sparks their interest. Students from African
and Caribbean nations do not have that advantage and may be overlooked.
On the other hand, the strong African Brazilian heritage in Salvador
should certainly work toward making Brazilians feel closer to them.
In fact, students report that interest in their home countries varies
quite substantially. According to them, in interactions with Brazilians,
most people ask them about their experience in Brazil, why they are
here, what they are doing here, how they like it, and generally comment
on this being a good experience for them. That is a clearly hegemonic
position in that instance of intercultural contact.
Many Brazilians, in the perception of the African students,
ask them about their home countries, particularly about its location,
languages, religion, food, and culture, in general. But some traditional
media discourses and stereotypes arise on occasion, and were reported
in the interview with humor, such as the belief that Africa is one country,
questions about war, poverty, disease (Ebola and AIDS), Boko Haram,
and wildlife.
There were also unusual instances of Brazilians asking whether
there are busses, cars, television, huts, and even cake (!) in Africa. Some
asked how the student arrived in Brazil (as in the mode of transportation).
In general, Ghanaians and Namibians stated that Brazilians generally
do not know much about their countries, rather think that Africa is a
country or refer to Tanzania or South Africa. Jamaicans are usually met
with references to Bob Marley, Usain Bolt, and marijuana. Besides the
usual questions about language, culture, and food, Brazilians have asked
them about its location in Africa.
Clearly, those are clear indications that Brazilians have much
to learn from contact with students from Africa and the Caribbean,
especially considering the historical Atlantic ties of the people. In fact,
most students said that the Brazilians they met have expressed the wish
to visit their home countries, but that it would be very expensive to do
so. Well, one can learn from the foreigners who are already here, too,
and the Portuguese program is trying to establish contacts with different
programs at the university and society at large, which would be beneficial
to both students and locals.
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527
Being a foreigner is often uncomfortable, as it distances one
from the local population. But it may also be comforting to the extent
that one does not need to confront unpleasant cultural phenomena – I
am not from here, so I do not need to learn the language, eat the food,
interact with them, act and be like them. In that sense, foreignness is to
some extent a measure of social integration.
When asked how they thought they were perceived by Brazilians,
7 students declared that they think most locals realize that they are
foreigners, either by their physical appearance (being tall or having a
darker skin tone), clothes, or by the way they carry themselves. It is
important to note that Brazil is a very diverse country, and students
generally dress in generic Western clothes (jeans and T-shirt), so that
objectively they may all pass for Brazilians. That perception most likely
reflects their self-image and their feeling as foreigners than the perception
of Brazilians themselves. In any case, most students (19) either say that
they have always passed for Brazilian or now do, unless when they speak
with locals, who then realize that they have a foreign accent.
In that sense, it is important to notice that students build their
identity based mostly on their home country, which is understandable,
since interviews took place only after 6 months in Brazil. They also place
importance on their language proficiency levels, which is the reason why
they are in Salvador in the first place. It is interesting that the question
was ‘how do you think Brazilians perceive you?’, which could have led
to different answers (student, man/woman…), but rather was met with the
issue of foreigner versus Brazilian. And only in 2 cases did students say
that individuals actually asked them if they were foreigners before any
linguistic interaction. Many Brazilians were also indifferent to the fact
that the student is foreigner, and the conversations revolved around their
circumstances in Brazil or other topics. In that sense, being a foreigner
is more important to some students as a matter of their identity and
the degree in which they feel integrated in Brazil rather than people’s
perceptions of them.
5.4 Meeting racism in Brazil
As discussed in section 4 of this chapter, race is a central element
in the Brazilian social order, and people cannot ignore it. For PEC-G
students, it is usually their first encounter with racism. Not that there is
528
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social stratification in their home countries and distribution of privilege
according to social group, but usually not based on race. Also, many
students associate racism with South African Apartheid, which is different
from what is observed in Brazil. That is certainly the case of Namibians,
who are very close and connected to South Africa, but it is also mentioned
as a reference by some Ghanaian students. For Jamaicans, it is similar,
since they are familiar with the situation in the United States, which in
many ways historically resembled Apartheid (open racism) but may be
viewed currently as more akin to Brazil’s veiled racism.
As mentioned above, 5 Ghanaians and 1 Jamaican stated that
diversity is a positive aspect of life in Brazil. Students move to other
parts of the country after the Portuguese course, and several pointed out
that they preferred to stay in Salvador because of the ethnic and cultural
makeup of the city, one even asking me to intervene with the Ministry
of Education to relocate his assignment (that is not legally possible).
They confided that they were apprehensive about going to other parts
of Brazil, where there are fewer African Brazilians, believing that there
may be higher levels of racism there.
In general, 7 female students (1 from Jamaica, 2 from Ghana, and
4 from Namibia) plainly declared that they did not think there is racism
in Brazil and that they never witnessed any situations that they could
describe as racist. 9 students believe there is racism in Brazil but have no
personal experience with it, mainly quoting reports from their colleagues,
and 10 students had direct experiences that they interpreted as racist.
Here it is important to note that I am not disqualifying or
questioning their experiences as racist, but since there was never
an epithet or an obvious racist remark (as may be the case of racist
encounters) and I was not a witness to the event, there might be other
factors at play. In any case, they are all plausible. What it is important,
however, is that they feel that the way they were treated was racially
motivated because that shapes their self-image, their perception of Brazil,
and the relationship that they build with Brazilian culture and Brazilians.
Most students who do not perceive any racism did not elaborate
on their remarks. But one student from Ghana said that Brazil is a country
of great opportunity. In her words, “there are lots of scholarships for
Brazilians, university is free, even I as a foreigner have a scholarship,
if people do not take advantage of these opportunities it is because they
do not want to study”.
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529
Female students (3) usually do not perceive racism as much as
their male counterparts, but they all feel afraid of violence and crime.
One Jamaican student said that shopkeepers at the mall watch her and
follow her around, believing she is going to steal merchandise. One
student from Ghana, said that once in church, a lady who was sitting
next to her changed seats. Another, said she cannot tell precisely, but she
thinks people “look at you differently”. Finally, one Ghanaian said that
a stylist at a hair salon was criticizing her hair in Portuguese thinking
she would not understand. She complained with the owner, who said she
would talk to her employee.
For male students (6), racist encounters are more frequent and
often involve other people’s perception of safety. One student reported
that his friend (who was not interviewed) was not allowed to enter
the student restaurant at the university because he lacked the proper
documentation. Another said that while waiting to be helped in a Bank
that used an electronic line (clients pick a number that is showed on a
screen), a white lady without a number went ahead of him. 3 students
told about events in which as they were walking by themselves on the
street females crossed to the other side with no apparent reason. And 3
students had the experience of being stopped by police and frisked, one
said it happened to him twice in one day.
One student mentioned that police officers in their neighborhood
got used to them and the stop and frisk occurrences ceased. Another
mentioned that the police officer later in the day came to talk to him
and explained he was compelled to search him for weapons or drugs.
According to the student, they became friendly and chat frequently. For
all of them, the experience of being stopped by heavily armed police
officers is shocking and they generally said that after they noticed that
the students were foreigners, officers’ attitude changed.
Those stories of racism also often came with attenuation (i.e., for
instance ‘it was ok’), hedging (for example, ‘I don’t know…’), and were
rationalized (‘I understand why’). Especially when talking about their
encounters with the police, male students often said that they understand
that there is a lot of crime in Brazil and security is the priority, so that is
why they are stopped. 2 even said that, in their words, they “understood
that blacks commit more crimes than whites, so that is why they are
stopped by the police”. Several students also mentioned South Africa as
a counterexample as to why Brazilians are not (as) racist.
530
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
Many students expressed that there is racism, but not much, and
that there probably is more racism in areas of Brazil (the south) where
there is a lower proportion of African Brazilians (which they have never
been to, or only very shortly). And all the students who believe there is
some racism talk about a ‘general feeling’. An interesting aspect about
the perception of racism is that students probably discussed it among
themselves, as many students told stories about what happened to their
colleagues. I heard the hair salon story by 4 students who did not witness
it, and all the students who think there is racism mentioned stop and frisk
encounters their friends had with the police.
It is noteworthy that students positioned themselves in a dual
situation, that of being very concerned about crime and at the same
time victims of racism, especially police encounters. Often, they told
their stories lightly, and countered them with attenuation, hedging,
rationalization, or by saying how friendly and helpful Brazilians are.
Several students also deny that there is racism at all.
To a degree, they are foreigners. Racism as they experience it
in Brazil is new, so they do not carry the trauma of a lifelong series of
encounters with it, as African Brazilians do. Also, they are trying to adjust
to a new culture, which is never going to be fully theirs, even if they are
going to live in Brazil for an extended period. In that sense, they keep a
distance, knowing that the situation is temporary, which certainly makes
conflict more manageable. Many stories ended with “and then they heard
us speaking English and realized we were foreigners”.
Finally, there is also the issue of the professional, middle class
perspective. Not only they do not recognize these experiences from
home, but they come from a place of relative privilege. Some accounts
included “then they realized that I am a student”. In fact, one student
said he perceived more racism in the beginning when “they walked in
large groups” or “without a backpack”, which, to him, denotes that he is a
student. Those lines both reaffirm their difference from African Brazilians
and their social status as university students (in opposition to criminals).
At the same time, racism in Brazil, as discussed in section 4, is
subtle. It is often in the realm of perception and second-hand stories, and
very strongly correlated with opportunity and privilege. Not having a
clearly discriminatory encounter does not mean that society is not racist
(1) in the way people treat each other, (2) in the way opportunity and
privilege is distributed, (3) in the way it is organized.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020
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In most cases in Brazil, as discussed in the literature, racism is
correlated with social class and attenuated with mild-mannered, friendly
attitudes, or ‘racism with a smile, a kiss, and a hug’. As students see
themselves in a position of relative privilege (from their social status at
home) and distance (as foreigners), and having the reference of Apartheid
in South Africa, they often see racism in Brazil as benign and tend to
dismiss or excuse it. They are, after all, not victims of racism to the extent
that poor African Brazilians are. Besides, that is also the attitude of many
Brazilians, which only reveals that they are sensitive to the discourses
that permeate society around them.
6 Conclusions
Analyzing the experiences of PEC-G students in Salvador is
important to understand their experience in the immersion situation that
we provide them. It is essential so that adjustments can be made to the
language program, so that they will adjust more quickly and deeply to
life in their host country. In fact, many changes have been made for the
2019 class. The PEC-G students arrived one month earlier than previously
and had a 4-week preparation course before being merged with arriving
students from other programs. They also had a twice weekly class on
specific topics centered on social issues (racism, women’s issues, LGBT
in Brazil, etc.) and social interactions with Brazilians.
The analysis also offers important parallels to the experiences of
students from other parts of the world, revealing what is universal about
the foreign student experience here and what is specific to a subset of
African and Caribbean students. It is also interesting as a parallel to the
experience of African and Caribbean (Haitians) refugees and immigrants,
that started arriving in Brazil in the last few years. It is likely that the
numbers of foreign students, refugees, and immigrants in Brazil will
increase in the future, so different agents from the public sector, civil
society, and academia must engage in the issues that pertain them.
As to the research questions students discuss: (1) a perceived
Brazilian social order; (2) their place in that order; (3) how they
developed strategies to find a comfortable place in that order. In that
sense, they present themselves and their identities in the duality of
sameness and difference under the markers of language, nationality, and
race. Integration in a new language/culture is always tense and involves
532
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negotiating different values, beliefs, attitudes, and artifacts. Students
have multiple interactions with Brazilians and certainly understand the
social hierarchies that permeate those social markers and try to elaborate
their discourse as to position themselves in more advantageous positions.
In the case of the class that was analyzed in this chapter, some
issues in their interviews come to the fore. First, their social status in their
home countries, which is largely maintained in Brazil, since they are in
a university environment, supported by different institutional programs.
They are aware of their social status and strive to maintain/improve it,
which supports their values, beliefs, and attitudes.
They universally manage to build a safety base and a broad
social network, integrating themselves in Brazilian life. That involves
the university and its integration programs, church, friends, roommates,
sports, and other social activities. However, at least up to the 6-month
mark, their relationships with Brazilians are generally scattered and
superficial, even if they see themselves as happy, at home in Salvador,
and adjusted, with the occasional bout of homesickness and complaints
about minor details of everyday life.
Their worldview, by which social life has a strong focus in family
and church, and by avoiding dating Brazilians, distances themselves
from fuller integration. In that sense, their temporary (albeit long term)
status promotes accommodation in their situation as foreign observers
also limits their integration and is difficult to tackle from an institutional
viewpoint.
Their status as representatives of smaller peripherical countries
in a hegemonic culture also limits the interest that Brazilians have in
them and their cultures, despite the very strong historical bonds that
exist between Africa, Brazil, and the Caribbean. That is regrettable, as
both Brazilians and the students themselves would greatly benefit from
a closer and more qualified contact with each other. In that sense, the
university is trying to mediate avenues for academic dialogue, which
would be an enormous benefit to Brazil and specifically to the broader
society in Salvador in particular, as the country already devotes significant
resources to the PEC-G program and these foreign students are already
here. It would also greatly benefit students in their integration process
in the country.
Finally, there is the difficult issue of racism. Students become
sensitive to the issue during their stay here, most likely as a result of
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discourses that circulate in society around them and certainly due to
their personal experiences. While there are clear instances that illustrate
racial discrimination in their accounts, students generally dismiss and
rationalize them because of different factors.
First, as foreigners they are not full stakeholders in Brazilian
societies and its problems. As long as they can be managed, move along.
Second, not having been systematically discriminated their whole lives
and protected by their middle-class social status and present situation as
students, it is easy to see how racism only affects them in relative terms,
particularly in the absence of open, offensive encounters on a systematic
basis. The ever-present reference of brutal segregation in the pre-Civil
Rights Southern United States or Apartheid South Africa makes the more
veiled instances of racism in Brazil not seem as bad. Especially because of
their everyday interactions with ordinary Brazilians, genuinely perceived
as very friendly and helpful.
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
Mémoires de l’immigration. Propositions pour une étude
sociolinguistique des parlers des jeunes des cités urbaines
sensibles de la France contemporaine1
Memories of immigration. Proposals for a sociolinguistic
study of young people sociolects in sensitive urban cities
in contemporary France
Marie-Madeleine Bertucci
Université de Cergy-Pontoise, Cergy-Pontoise / France
marie-madeleine.bertucci@u-cergy.fr
https://orcid.org/0000-0003-2439-8191
Résumé : L’article fait l’hypothèse que les parlers des jeunes des cités urbaines sensibles
dans la France contemporaine nécessitent pour être appréhendés une approche globale
et pluridisciplinaire en raison de leur complexité. À partir de deux corpus, l’article met
en place dans un premier temps un cadre théorique général pluridisciplinaire destiné à
appréhender l’environnement social des jeunes dont il est question puis dans une seconde
partie centrée plus spécifiquement sur une étude sociolinguistique de ces parlers, il tente
de montrer que les pratiques langagières étudiées sont emblématiques des interactions
sociales à l’œuvre dans ces espaces minorés. Les deux corpus présentés s’inscrivent
dans une construction identitaire et une mémoire sociale collective, enracinée dans les
cités urbaines sensibles. Ces deux corpus reflètent la vie dans les cités ségréguées et
en particulier ce qui a trait à la présence des communautés migrantes. Ils contribuent
à l’instauration d’un processus de patrimonialisation caractérisé par l’altérité, fondé
sur des solidarités communautaires et une forme de mémoire originale qui exprime
un vécu collectif.
Mots clés : migrants ; sociolinguistique ; parlers jeunes ; cités urbaines sensibles.
1
Ce texte reprend partiellement des informations et des éléments contenus dans les
références de l’auteure citées en bibliographie.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.535-564
536
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
abstract: The paper hypothesizes that young people sociolects in sensitive urban
cities in contemporary France require a global and multidisciplinary approach to be
understood because of their complexity. Based on two linguistic corpora, the article
first sets up a general multidisciplinary theoretical framework designed to understand
the social environment of the young people in question and then, in a second part, more
specifically focused on a sociolinguistic study of the nonstandard varieties of French
those young people speak, it attempts to show that those sociolects are emblematic of
the social interactions at work in these minority spaces. Both corpora presented are part
of an identity construction and of a collective social memory, rooted in sensitive urban
cities. They reflect life in segregated cities and in particular the presence of migrant
communities. They contribute to the establishment of a process of patrimonialization
characterized by otherness, based on a community solidarity and an original form of
memory that express a collective experience.
Keywords: immigration ; sociolinguistics ; young people sociolects ; sensitive urban
cities.
Submitted on June 21st 2019
Accepted on August 24th 2019
0. Introduction
L’article fera l’hypothèse que l’objet de recherche énoncé dans
le titre : « parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France
contemporaine » nécessite pour être appréhendé une approche globale
et pluridisciplinaire en raison de sa complexité.
En se fondant sur deux corpus, l’article construira dans un premier
temps un cadre théorique général pluridisciplinaire2 destiné à appréhender
l’environnement social des jeunes des cités urbaines sensibles puis dans
une seconde partie centrée plus spécifiquement sur l’étude des parlers
des jeunes, il s’efforcera de montrer que les pratiques langagières
convoquées sont emblématiques par leur matérialité linguistique même
des interactions sociales à l’œuvre dans ces espaces minorés. Les deux
corpus présentés participent à une construction identitaire, à l’élaboration
d’une mémoire sociale collective, enracinée dans des lieux bien précis,
les cités, qui ne sont pas des « territoires sans histoire […] » « noyés
sous le béton » (BÉGHAIN, 1998, p. 88). Dans cette perspective, on fera
2
Restreint néanmoins aux sciences humaines et sociales.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
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l’hypothèse que ces pratiques langagières contribuent à leur manière à la
production symbolique de lieux exemplaires (MICOUD, 1991, p. 7) dotés
d’une efficience historique (GADAMER, 1996). Aptes à susciter une
interprétation, elles constituent des objets sémiotiques analysables dans
le cadre d’une économie des biens symboliques3 (BOURDIEU, 1977).
Les deux corpus proposés mettent en mots la vie dans les cités
ségréguées et ils illustrent en particulier ce qui a trait à la présence de
communautés migrantes. De ce fait, ils participent à la constitution d’une
partie du patrimoine d’une altérité minorée fondée sur des solidarités
communautaires (BERTUCCI, 2010 ; 2011) et une forme de mémoire
originale dont la dimension patrimoniale tient aussi à ce qu’elle exprime
un vécu collectif (BERTUCCI, 2014). Le patrimoine sera défini ici
comme « l’héritage qu’un groupe humain cherche à transmettre aux
générations futures » (GRAVARI-BRABAS, 2005, p. 11).
Le premier corpus (BERTUCCI, 2009 ; 2017), dont on proposera
des extraits, est formé de 181 écrits d’élèves de deux lycées professionnels
de Seine-Saint-Denis, 4 situés sur le territoire de la communauté
d’agglomération de Plaine Commune. Il a été constitué en réponse à un
programme de recherche intitulé Mémoire de l’immigration : vers un
processus de patrimonialisation ? lancé par le Ministère de la Culture et
de la communication5 et la Cité Nationale de l’Histoire de l’Immigration
en 2007-2008. Ce corpus a été inclus dans un rapport déposé en 2009
par le Ministère à la Bibliothèque Nationale de France. Il a été mis en
ligne sur le site6 du Ministère en 2017 dans le cadre de la valorisation
de l’ensemble des projets réalisés dans le programme Mémoires de
l’immigration. Il sera signalé dans l’article sous l’intitulé Corpus d’écrits
d’élèves de lycées professionnels. Il s’agit de documents bruts restitués à
l’identique, dans l’état où ils ont été écrits. On a utilisé pour transcrire les
textes du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels les principes
de Grésillon (1994, p. 126). Rien n’est modifié en termes d’orthographe,
de syntaxe, de ponctuation ou de signes divers (BERTUCCI, 2009, 2017,
p. 25). La graphie d’origine est donc respectée. Le second (BERTUCCI,
3
Les objets patrimoniaux n’étant pas consommés réellement mais symboliquement.
Département 93.
5
Mission à l’ethnologie.
6
www.culture.gouv.fr/.../version/.../Ethno_Bertucci_2009. consulté le 21 août 2019.
4
538
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2019) est extrait du roman de Cherfi7 Ma part de Gaulois, publié en
2016. La référence au roman sera mentionnée lorsque ce second corpus
sera évoqué.
On s’attachera dans un premier temps de la première partie à
définir le processus de minorisation qui affecte les communautés de
migrants. D’un point de vue théorique, l’étude part de l’idée que ces
communautés sont en situation de minorité et qu’elles sont mises dans une
situation d’altérité. Puis il s’attachera à montrer qu’elles connaissent des
situations de stigmatisation, ségrégation, discrimination. Ces dernières
les conduisent à marquer un territoire qui est celui de la banlieue,
mais non exclusivement et sans que celui-ci se limite à cette situation.
Ces phénomènes se produisent dans un processus de disqualification
sociale, doté de formes de sociabilité spécifique, desquelles la violence
n’est pas absente. Celles-ci se constituent dans un cadre où la notion de
communauté joue un certain rôle qu’il faudra déterminer. On avancera
néanmoins que ces territoires courent le risque de l’ethnicisation et de la
désaffiliation et qu’ils sont potentiellement susceptibles d’être victimes
de certaines formes de marginalisation et d’exclusion.
1. La minorisation
1.1 La notion de minorité : les minorités au plan politique et juridique
En sociologie, indique le Dictionnaire de l’altérité et des relations
interculturelles, une minorité est constituée ou susceptible de se constituer
quand les membres d’un groupe possèdent une identité socialement
infériorisée ou dévalorisée. Le statut peut être assigné de l’extérieur ou
revendiqué par la minorité (FERREOL ; JUCQUOIS, 2003). Certains
chercheurs posent même la question de savoir si la minorité est une
réalité en tant que telle ou une construction idéologique (MARTINEZ ;
MICHAUD, 2006), ce qui confirmerait le caractère assigné du statut de
minorité. D’une manière générale, la notion renvoie à une situation de
désavantage relatif, démographique, politique ou culturel, qui est celle
des groupes approchés. Le critère principal est le statut d’infériorité
Magyd Cherfi a été le parolier et le chanteur du groupe toulousain de rap, Zebda avant
de commencer une carrière de chanteur en solo. Il a vécu à Toulouse dans la cité des
Isards qu’il évoque dans son récit.
7
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
539
par rapport au groupe dominant dont les causes peuvent être dans
des combinatoires variables : économiques, linguistiques, politiques,
démographiques, culturelles… La minorité peut désigner un groupe
ethnique ou religieux, vivant au milieu d’un groupe plus nombreux,
et faisant l’objet de discriminations ou d’oppression mais ce n’est pas
toujours le cas. On notera que certains individus relèvent de l’expérience
majoritaire et minoritaire à la fois.
Les individus participant à l’expérience majoritaire peuvent être
convaincus qu’il n’y a pas de processus de domination. Les membres
de la minorité ont une expérience sociale commune. Les signes qui
distinguent une minorité sont problématiques parce que leur interprétation
est délicate, et peut dépendre du contexte politique et social. La notion
ne se laisse pas réduire à des traits identifiables et généralisables et on
peut même se demander si l’exercice de définition ne participe pas du
processus de minorisation.
Au plan politique, la définition proposée par l’ONU, fait souvent
référence :
Un groupe numériquement inférieur au reste de la population d’un
État, en position non dominante, dont les membres – ressortissants
de l’État – possèdent du point de vue ethnique, religieux ou
linguistique des caractéristiques qui diffèrent de celles du reste de
la population et manifestent même de façon implicite un sentiment
de solidarité, à l’effet de préserver leur culture, leurs traditions,
leur religion ou leur langue (CAPOTORTI, 1991, p. 568).8
Cette définition a été élaborée en 1986 par Deschênes, pour la
Sous-Commission des Nations Unies dans sa « Proposition concernant
une définition du termes « minorités » » :
Un groupe de citoyens d’un État, en minorité numérique et en
position non dominante dans cet État, dotés de caractéristiques
ethniques, religieuses ou linguistiques différentes de celles de la
majorité de la population, solidaires les uns des autres, animés,
fût-ce implicitement, d’une volonté collective de survie et visant
à l’égalité en fait et en droit avec la majorité (DESCHÊNES,
1986, p. 291).
8
Rapporteur Spécial pour les Nations Unies.
540
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Si ces deux définitions améliorent la compréhension du concept
de minorités, elles présentent des inconvénients. La question de la
minorité numérique notamment, pose problème quand il n’y a pas de
claire minorité ou majorité numérique. Ensuite, un groupe ethnique
distinct peut former une majorité numérique sans être dans une position
dominante, et certaines minorités sont oligarchiques.
L’intérêt de la définition de Deschêsnes est qu’elle induit le
principe d’auto-identification dans la détermination du statut de minorité.
Elle n’insiste pas néanmoins sur l’idée que la minorité est construite
dans une négociation éventuellement conflictuelle avec la majorité. La
perception qu’a le groupe de se sentir dans une position minoritaire
devient dès lors prépondérante.
En même temps, le critère de la citoyenneté exclut les
communautés migrantes du statut de minorité. C’est l’application du
régime juridique de la nationalité, fondé sur le jus soli ou droit du sol,
qu’on connaît en France selon lequel la citoyenneté dépend du pays
de naissance (FERREOL ; JUCQUOIS , 2003).9 Ensuite, la définition
de Deschênes interroge le sens et l’extension des adjectifs, ethnique,
religieux et linguistique dont la définition reste délicate. L’évocation de
la différence enfin par rapport à la majorité pose la question de savoir ce
qu’est une majorité, s’il existe des majorités stables et ce qu’on fait des
cas finalement nombreux où les acteurs vivent à la fois une expérience
majoritaire et minoritaire. La question linguistique et la pratique ou
non de la langue d’origine est éclairante à cet égard, notamment dans
le rapport que les locuteurs migrants entretiennent avec leurs langues
(BERTUCCI ; CORBLIN, 2007). On peut être citoyen français, avoir
comme langue maternelle le français et être d’une minorité, sans avoir
pour autant forcément le sentiment d’être minorisé. En fait, ce sont les
processus de minorisation de certains groupes qui posent problème, plus
que le fait d’appartenir à une minorité. Ils coïncident avec les processus
de mise en altérité et contribuent aux phénomènes de marginalisation
qu’on verra plus loin. Les perspectives politiques et juridiques ne
prennent pas assez en compte, semble-t-il, ces questions. En revanche,
l’analyse sociolinguistique trouve toute sa pertinence ici du fait de la
critique qu’elle propose de la minorisation, qui permet de construire la
notion au plan théorique.
9
Article Minorités (droits des).
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541
1.2 Minorations, minorisations, minorités
Les trois notions en présence ne sont pas superposables ni
interchangeables. On reprendra rapidement les définitions proposées
par Blanchet (2006) s’appuyant sur des recherches effectuées sur le
lexique dans le Trésor de la Langue Française Informatisée (désormais
TLFI) et dans différentes disciplines. « Minoration » renvoie plutôt à
« majoration » au sens mathématique et comptable, « minorisation » est
utilisé dans des problématiques de sciences humaines et sociales, les
emplois sont quantitatifs. Le TLFI évoque la minorité pour l’individu non
adulte, le sens moderne n’apparaît qu’au XIXe siècle. « Minoration » est
surtout employé dans le contexte de la finance, « minorer » comporte un
sens qualitatif et quantitatif. « Minoriser » est vu comme un synonyme de
« minorer » : « diminuer la valeur ou l’importance de quelque chose » dans
le contexte de la finance et aussi dans d’autres contextes. « Minoritaire »
est adjectif, le sens est principalement quantitatif et vu ensuite comme
« relatif à une « minorité ».
Les sens de « majorité, majoritaire, majorer » sont symétriques et
possèdent des valeurs qualitatives et quantitatives. Si « minoration » paraît
avoir des emplois orientés vers le sens quantitatif, on note une relative
confusion dans les usages des autres termes du champ (BLANCHET,
2006, p. 21). Selon le même théoricien, en sociologie et en anthropologie,
il y a fluctuation entre la primauté accordée au quantitatif ou au qualitatif.
L’évocation des processus est moins importante que celle des états, le
terme de minorité est le plus fréquemment employé (BLANCHET, 2006,
p. 22). En sociolinguistique, c’est le critère qualitatif qui l’emporte, et
donc la notion de subordination, de domination liée à l’organisation
sociale, la « minorité » étant la plupart du temps numériquement
plus petite.10 Dans cette perspective, les processus dominent et sont
plus souvent mentionnés (minoration, minorisation) que les états
(minorité, minoritaire) (BLANCHET, 2006, p. 25). On peut donc dire
que généralement minorité est employé au sens de groupe dominé ou
inférieur. Minoration est présent sans définition dans des contextes où
l’on trouve aussi « diglossie, dominant-dominé, conflit, subordination,
marginalisation qui relèvent plutôt du qualitatif avec aspects quantitatifs
associés » (BLANCHET, 2006, p. 27). « Minorisation » apparaît peu et
surtout dans une perspective quantitative (BLANCHET, 2006, p. 24-25).
10
Mais pas toujours. On a pu le voir en Afrique du Sud pendant la période de l’Apartheid.
542
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
« Minoration » sera donc employé pour désigner des aspects qualitatifs
et « minorisation » des aspects quantitatifs. (BLANCHET, 2006, p. 28)
La notion de minorité est la plupart du temps liée à celle de
majorité à travers l’idée d’opposition et de conflit. On reviendra sur ce
point en posant la question de savoir s’il existe une complémentarité entre
statuts majoritaire et minoritaire, et si l’on peut parler de la coexistence
d’une valorisation / dévalorisation (BLANCHET, 2006, p. 26). On citera
pour illustrer la situation de minorisation des communautés concernées
et introduire la notion de recherche compréhensive abordée plus bas
les lignes suivantes de Sofian 11extraites du Corpus d’écrits d’élèves de
lycées professionnels à propos de la cité Les Presles-La Source située à
Epinay-sur-Seine (93).
Le lieux qui me tient particuliérement à cœur c’est le locale de mon
quartier, c le est l’endroit ou se rejoin tous le soire apre les cour.
Pour mois personellement c’est un endroit de divertissement, on
peut etre a 10 maximume.
il y a un canapé, 3 feuteuille, une television, une console de jex.
le gardient de l’immeuble, ce […] locale nous empeche de galeré
dans les halle de l’immeuble qui est en ce moment ilegale interdi
son je ne de une on monde ( ?) s y on i reside pas.
Cette endroit ce situe dans la ville d’epinay sur seine dans le
quartier (les Presles, la source) au … rue du CDT Bouchet.
Si vous voulez nous rendre visite il n y a pas de probleme, vous
etes les bienvenue (SOFIAN, 2009, 2017, p. 61).
Pour conclure, on peut dire que le champ des notions
de « minorité, minoration, minorisation » suppose des critères
quantitatifs, bien que ceux-ci méritent d’être nuancés, des critères
qualitatifs : inégalité, subordination, marginalisation, conflit mais aussi
complémentarité minoritaire / majoritaire (BLANCHET, 2006, p. 27).
Qualitatif et quantitatif sont largement associés. Ce dernier semble une
modalité particulière du qualitatif. Les chiffres sont à la fois subjectifs
(BLANCHET, 2006, p. 27) et réflexifs, les objets ou catégories mesurés
par le chercheur sont en fait construits par lui, de même que les
méthodologies et les interprétations.
11
L’origine des données a été anonymisée pour la protection des données personnelles
des élèves de lycées professionnels concernés. Par ailleurs, les patronymes n’ont pas
été utilisés.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
543
1.3 Méthodologie de la recherche : la perspective compréhensive
Les objets abordés dans la recherche ont à des degrés divers
des contours plus ou moins délimités. La notion de banlieue se réduit
difficilement à la définition classique de l’objet scientifique de par son
caractère protéiforme justement. Elle n’en est pas moins un objet d’étude,
qu’on construit comme tel (BERTUCCI ; HOUDART-MEROT, 2005).
Or, elle illustre bien la démarche scientifique à laquelle on se référera
qui est celle de la perspective compréhensive, qui part du terrain en
inversant les stades de la construction de l’objet : « Le terrain n’est plus
une instance de vérification d’une problématique préétablie mais le
point de départ de cette problématisation » (KAUFMANN, 1996, p. 20).
Outre la place spécifique qu’occupe le terrain, cette analyse ne rompt
pas totalement avec le savoir commun. Elle postule même une rupture
relative, qui nuance la présentation que donne la tradition de la rupture
épistémologique, l’opinion commune étant toujours présentée comme
un non savoir, une illusion. Or, Kaufmann insiste sur l’idée que ce savoir
commun peut receler des informations et apporter des connaissances.
Place du terrain et intérêt porté au savoir commun amènent à se situer
dans le cadre des démarches qualitatives et de la nature spécifique du
terrain et de son foisonnement.
La théorie se construit peu à peu et naît de la construction d’un
terrain, qui permet d’élaborer les hypothèses d’analyse, notamment
dans le cadre de l’étude de la variation linguistique. On est proche ici
de l’école de Chicago et des travaux sur les récits de vie et la migration
(THOMAS ; ZNANIECKI ; WISZNIEWSKI, 1998), sur les gangs ainsi
que de la perspective de la Grounded Theory, ou théorie venant d’en bas
(STRAUSS, 1992).
La démarche de Strauss est inductive, le mouvement va de la
recherche empirique à l’élaboration de modèles théoriques. Elle vise
essentiellement à mettre en place des hypothèses, une théorie sans
forcément chercher à produire une théorie causale à l’origine de ces
phénomènes. On retiendra surtout la notion d’ordre négocié et l’approche
de la vie sociale en termes de réseau d’acteurs en coopération et conflits,
indispensable pour approcher la question des banlieues. Jusqu’à quel
point cependant peut-on transposer la théorie sociologique et jusqu’où ce
modèle est-il opératoire en sociolinguistique ? Au bout du compte quel
est le degré de porosité entre les disciplines, particulièrement dans le cas
d’une construction cloisonnée de celles-ci, qui exclut l’interdisciplinarité
544
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
– ce qui n’est pas la perspective de cet article – ? La réponse à ces
questions excède ce travail dont l’objectif premier n’est pas le débat
épistémologique et nécessiterait beaucoup plus d’amplitude d’écriture.
On notera que la méthodologie de Strauss se prête particulièrement bien
à l’analyse de terrains spécifiques et qu’elle est bien adaptée à celui
de la banlieue comme on a essayé de le montrer modestement avec la
constitution du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels. On
retiendra également la souplesse que la démarche qualitative confère
à la recherche, notamment à la perspective compréhensive abordée ici
(BERTUCCI, 2006).
On considère généralement que l’écueil de la démarche
qualitative est celui d’une dérive subjectiviste liée au mode de formulation
des hypothèses au fur et à mesure de la confrontation avec le terrain,
souplesse qui peut donner l’impression d’un manque de rigueur. La
force de cette démarche réside surtout dans ce qu’elle donne un statut
nouveau au chercheur, qui n’est plus extérieur à son objet mais qui est
présent dans la recherche. Ce dernier est conscient de sa subjectivité (de
ce qu’il est et d’où il vient) et revendiquant une réflexivité productive,
sans être séparé du social pour autant. Il n’y a pas d’opposition ici entre
la réflexivité individuelle et la réflexivité sociale. Les deux sont intriquées
et s’alimentent mutuellement (KAUFMANN, 2001, p. 208-209) dans
le cadre d’une construction de la notion d’altérité. Leur rapprochement
au plan méthodologique et théorique se justifie par la référence à l’unité
multiplexe (MORIN, 1990) et à la notion de valuation.
1.4 L’approche de la complexité : l’unité multiplexe et la valuation
L’unité multiplexe, constituée de pôles différents mais
inséparables, est le lieu d’une tension dynamique entre l’unité et la
multiplicité, entre la recherche de l’homogénéité et la présence de la
diversité. Par le principe d’homéostasie, réorganisation et réajustement
constant, cette tension dynamique s’équilibre non de manière statique,
mais dans un processus en mouvement, un équilibre dynamique
(BLANCHET, 2006, p.29). On insistera sur la dimension sociale de
l’unité multiplexe qui souligne l’intrication entre les faits sociaux et les
faits linguistiques dans laquelle se joue un élément important, celui de
la valuation sociale.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
545
La question de la valuation est essentielle, cette dénomination
permet d’éviter les connotations négatives du mot évaluation. L’intérêt
de cette analyse est qu’elle montre – en sortant de l’explication par
le conflit et l’opposition binaire – que les processus majoritaire et
minoritaire sont interdépendants, sans que la péjoration soit toujours
exclusivement du côté du minoritaire. Ces deux caractéristiques illustrent
le caractère construit et non « inné » ou « naturel » des traits attribués
aux faits sociaux. Il s’agit d’un processus dynamique dans lequel les
valuations sont intriquées et sans cesse réactivées, sans que cela exclut
forcément pour autant la présence d’éléments stables. Cette notion
dynamique complexe (BLANCHET, 2006, p. 32) se développe selon les
périodes temporelles, les configurations spatiales, les différents types
d’organisation sociale et les interactions des acteurs sociaux. On peut
donc substituer à la notion statique de minorité, la notion dynamique
complexe de minoritarisation / majoritarisation / valuation sociale :
Seraient ainsi considérés minoritaires un groupe ou une pratique
sociale dont la valuation négative (= la minoritarisation) l’emporte
sur la valuation positive (= la majoritarisation), et inversement le
cas échéant. (BLANCHET, 2006, p. 34).
Le processus de valuation se joue dans une tension entre major
et minor. Les mouvements de minoritarisation / majoritarisarion se font
en face à face. La stigmatisation de la banlieue conduit à valoriser le
centre des villes. La satellisation est une caractéristique majeure de ce
processus, compte tenu de la force d’attraction des groupes majoritaires,
qui conduit les minoritaires à perdre leur indépendance.
Une des conséquences de la mise en altérité et du processus de
minorisation réside dans la ségrégation et la disqualification sociales
qu’on illustrera par l’extrait suivant du Corpus d’écrits d’élèves de lycées
professionnels :
La France : est un endroit important pour moi, mais j’aime pas
la ville paris à part mon quartier de Clichy sous bois. Ya trop de
rasiste, on nous regard toujours de travers, on se fait toujours
interpeler pour rien, on nous fait perdre notre temps à nous
interpeler. Voilà c’est pour sa que j’aime pas la ville de paris
(ABDULAYE, 2009, 2017, p. 49).12
12
Voir supra pour la question de l’anonymisation.
546
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
2. Altérité et minorisation : la ségrégation : vers des formes de
disqualification sociale
La problématique initialement proposée part d’une réflexion
triangulaire sur l’altérité, la minorisation et la ségrégation et de ce fait
elle met en évidence les conséquences sociales de la minorisation.
On a postulé qu’il existait un processus de stigmatisation qui
touchait les migrants et qu’il en résultait une disqualification sociale
(PAUGAM, 2005, p. 56).
2.1 Stigmate et quartier : les « cités de banlieues »
On admettra que la stigmatisation est une conséquence de la
minorisation et qu’elle s’attache à un ensemble social où la langue, et ce
particulièrement dans les situations diglossiques, est indissociable des
locuteurs, qui eux-mêmes sont assignés à un espace. La cité ou grand
ensemble fait l’objet de représentations symboliques fortes en termes
d’unité et de clôture liées à une architecture spécifique : les « barres »
(LEPOUTRE, 1997, p. 54 et suiv.).
La notion de stigmate (GOFFMAN, 1975, p. 12) a pour but
d’approcher les signes sociaux du handicap à partir de l’étude des
interactions. Le stigmate est un signe ou un ensemble de signes, qui
marquent l’individu de façon négative. Il désigne une différence perçue
négativement et discrédite celui qui le porte. Les stigmates construisent
ou contribuent à construire une identité sociale virtuelle potentiellement
disponible et différente de l’identité sociale réelle (GOFFMAN, 1975). En
situation de pauvreté et de précarité, les migrants portent des stigmates et
les transfèrent à leur tour aux lieux qu’ils occupent. En cela, on observe
un fonctionnement attendu de la norme, qui se construit en définissant
les usages à prescrire et en en prohibant d’autres (DUBOIS et al., 2002).
On supposera que vivre ou occuper tel lieu constitue un élément décisif
de l’identité sociale et concourt à la formation d’un faisceau de signes
convergents. Cette rupture apparaît à travers les perceptions de l’espace.
L’espace est ici l’espace social, c’est-à-dire un lieu qui est
socialement produit et dans lequel ont lieu des relations codifiées
(CONDOMINAS, 1977, p. 5). L’espace est donc à la fois le lieu où
se produit l’activité humaine, mais aussi le mode d’expression et de
manifestation de la société dans son ensemble. La frontière peut paraître
parfois mince dans les discours stigmatisants entre marginalité et
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
547
déviance, lesquelles sont renvoyées vers une altérité soumise au soupçon.
La représentation dominante, souvent stéréotypée et parfois démentie par
la réalité des lieux est celle d’un espace dévalorisé cumulant les handicaps
(LEPOUTRE, 1997, p. 40).13 La banlieue est en effet d’abord « un sujet
d’opinion » avant d’être un « objet scientifique » (VIEILLARD-BARON,
2005, p. 32). Elle incarne la dissociation contemporaine entre « un espace
virtuel de très haute fréquence et un territoire réel de fréquence nulle ou
incertaine, celui de la quotidienneté difficile » (VIEILLARD-BARON,
2005, p. 32).
2.2 D’un espace stigmatisé à une catégorie de pensée
Par sa seule mention, l’espace de la banlieue évoque des problèmes
sociaux, violence urbaine, communautarisme, fanatisme religieux,
difficultés scolaires, relégation, habitat dégradé, déficit culturel et aussi
plurilinguisme et pratiques langagières stigmatisées… L’habitat contredit
la vision socialement admise de la normalité et de l’acceptabilité, qui
résulte de l’amalgame entre des faits divers ayant eu lieu en périphérie et
qui contribuent à construire « une catégorie de pensée et de désignation :
celle de « banlieue » et un espace (BAUDIN ; GENESTIER, 2002, p.
8). On postulera donc que la banlieue devient une notion à part entière,
une catégorie conceptuelle faisant la synthèse d’un certain nombre de
problèmes sociaux, politiques et aussi linguistiques. Ceci ne va pas sans
susciter d’ amalgame et même si le caractère protéiforme de la notion
peut conduire à douter que la banlieue soit un terrain de recherche.
Le terme désigne dans le discours commun une réalité sociale et
linguistique, qui induit une perception du réel. La première tâche que l’on
s’est assignée a été de désévidencier la notion (LAHIRE, 1999, p. 24) et
de tenter de lui restituer sa complexité. Cette représentation de l’altérité
se déploie sur une approche par l’espace qui amène à poser en ces termes
des problèmes sociaux. Cette démarche spatialiste – production par
l’espace de problèmes sociaux – et localiste – confusion de l’espace et des
attitudes et identités de ceux qui s’y trouvent – (BAUDIN ; GENESTIER,
2002, p. 11) renvoie au fait que parler de la banlieue conduit à évoquer
inéluctablement un problème social tout en l’euphémisant pour éviter
d’évoquer des questions problématiques (BERTUCCI ; HOUDART13
On utilise le terme d’espace comme étant humainement investi dans une perspective
socio- géographique en suivant Vieillard-Baron (2005, p. 32).
548
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
MEROT, 2005). C’est également la raison pour laquelle on a proposé
les développements précédents sur la minorisation et sur la question de
l’unité multiplexe, afin de construire un cadre théorique préalable.
2.3 Ségrégation et discrimination : la notion d’ethnicité
2.3.1 L’ethnicité
Isabelle Clair (2015, p. 113) souligne que « le terme « race »
souvent perçu comme une importation nord-américaine, fait débat en
France. Ses détracteur(trice)s, qui ne nient pas l’existence de groupes
sociaux racisés, lui préfèrent souvent « ethnicité » : terme moins connoté
et dépourvu de référence au biologique ». La notion d’ethnicité constitue
le produit d’un certain nombre de « constructions sociales à l’instar
d’autres catégories comme le genre ou la classe (DORLIN, 2008), par la
mise en exergue de caractéristiques chargées d’emblématiser de soi-disant
différences entre des groupes d’individus et de les réifier comme minorités
naturelles » (COGNET, 2010, p. 103) du fait de l’essentialisation et de
la réification de leurs caractéristiques. Cognet, à ce propos, souligne
que le discours commun comprend la notion d’« assignation ethnique »
comme « une différence de pratiques culturelles » et celle d’ « assignation
raciale » comme « une différence inscrite dans le biologique, reliée plus
ou moins explicitement à des attributs phénotypiques » (COGNET, 2010,
p. 103). Elle précise que :
Ces constructions sociales de différences procèdent de la
racisation des individus qui n’est autre que l’instruction d’une
altérité radicale par essentialisation de toutes sortes de traits
culturels ou biologiques attribués, nolens volens, à l’ordre de la
nature des choses (COGNET, 2010, p. 103)
Cette catégorie qu’est l’ethnicité fonctionne comme une
« prophétie autoréalisatrice » (COGNET, 2010, p.103) et s’impose comme
une « injonction de conformité » et un « rôle » (COGNET, 2010, p.103)
aux individus assujettis à ce type de regard social. Les extraits suivants
du corpus tirés du roman de Cherfi, Ma part de gaulois, illustrent la
dimension de l’ethnicité à travers le jeu sur les effets de variation des
dénominations des différentes catégories ethniques ou le juron « sa race ».
Le substantif Arabe semble y fonctionner comme un terme non marqué
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549
disséminé dans le texte à travers des énoncés souvent sentencieux sur le
modèle « Nous les Arabes » (CHERFI, 2016, p. 93).
Effets de variation des
dénominations des différentes
catégories ethniques
Pour les Arabes : reubeus p. 96 ; bicots p. 91 ;
bougnoules p. 112
Pour les Gitans : gitan p. 92 ; manouche p. 94
Pour tous les non Gitans, on rencontre le
générique raclos : « vous, les raclos » p. 92
Les jurons
Sa race : « Sa race, là si j’y vais c’est la latche »
(honte) p. 91
2.3.2 L’ethnicité territoriale
Un des aspects de la stigmatisation des espaces de banlieues
coïncide, sans en être la résultante, avec l’arrivée des familles immigrées.
Leur installation dans les quartiers populaires de la périphérie a contribué
à ce qu’on désigne comme l’ethnicisation des classes populaires. Il est
difficile pour les populations concernées d’aller vers une autonomisation
sociale du fait de cette stigmatisation et de cette minorisation spatiales,
qui les placent dans une altérité génératrice d’exclusion. On a pu parler
à cet égard de « quartiers d’exil » (DUBET ; LAPEYRONNIE, 1992)
du fait de la « concentration » de populations non autochtones dans
certaines villes ou quartiers défavorisés sur le plan économique et social
(LORCERIE, 2009, p. 64) comme l’indique l’extrait du texte de Grâce14
(2009, 2017) à propos de la ville de Saint-Denis :
Je suis à Paris et j’habite tout précisément à Saint-Denis, dans
une ville comme à Abidjan justement. Ici, on peut croire que l’on
est en Afrique, on voit surtout des Noirs et des Arabes, c’est rare
de voir des Blancs alors que c’est dans leur pays qu’on est même
(GRÂCE, 2009, 2017, p. 52).
Cette concentration est génératrice de ségrégation, c’est-à-dire d’un
« creusement de distances entre populations autochtones et populations
vues comme d’origine différente » (LORCERIE, 2009). Elle note à ce
sujet que le recours au critère ethnique pour désigner l’autre sous-entend
« une auto-définition ethnique de soi – assumée ou non (en France, c’est
l’idée de « Français de souche ») » (LORCERIE, 2009, p. 65). En plus, elle
14
Voir supra pour la question de l’anonymisation.
550
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
analyse le lien entre l’espace stigmatisé et la présence au sein de cet espace
de populations non autochtones comme une forme de ce qu’elle nomme
l’« ethnicité territoriale » (LORCERIE, 2009, p. 65) comme l’illustrent
les propos suivants :
Pour résumer, l’« ethnicité territoriale » renvoie à la formation
d’une configuration sociale15 inscrite dans un espace où des
facteurs sociaux (concentration de populations démunies,
manque d’emploi, dépréciation du lieu pour diverses raisons)
sont combinés aux facteurs intersubjectifs de la visibilité ethnique
(réactions identitaires diverses) (LORCERIE, 2009, p. 65).
Les lignes qui suivent illustrent le processus d’assignation à
résidence producteur de l’ethnicité territoriale à la cité Arago à SaintOuen (93) :16
Le lieu qui me touche particulièrement a cœur avec lequel ou je
me sens le mieux c’est ma cité. Une cité qui se trouve a Saint Ouen
près de Clichi-la-Garenne et Paris. La cité s’appelle ARAGO une
cité la ou j’ai grandit, c’est une cité près des grandes entreprise.
C’est la ou je me sens le mieux car il y a tout mes amis qui habites
dans la cité, en plus on ce conné depuis tout petit. Dans la cité je
conné tout le monde et tout le monde me conné il y a des famile
malienne, sénégalaise, algérienne, marocaine, tunisienne et plein
d’autre nationalité mais cela sont les principale. Quand je suit dans
ma cité avec mes amis c’est comme si j’était chez mwa quand je
sort de la cité c’est une autre chose. Dans la cité on peu s’amuser
car il y a un terrain de foot, un parc, un terrain de tennis, et de
On proposera la définition suivante de la notion de configuration sociale : « Le terme
configuration a plusieurs acceptions en sociologie. […] Le terme renvoie cependant,
d’abord, à la théorie élaborée par le sociologue allemand Norbert Elias. Ce concept
signifie que la société est un réseau d’interdépendances entre individus. […] Largement
supplantée par le concept de champ élaboré par Bourdieu pour décrire un système de
relations dans lequel la domination est première et s’impose aux dominés sans qu’ils
s’en aperçoivent, la façon dont Elias pense le jeu concurrentiel connaît un renouveau
d’intérêt en France depuis les années 1990. Son approche est notamment mobilisée par
des sociologues comme Bernard Lahire, plus soucieux de ne pas écraser la réflexivité
des acteurs tout en maintenant la contrainte du monde social (Duvoux, 2015, p. 52-54) ».
16
93 est le numéro de département de la Seine-Saint-Denis. Ce département est situé
en banlieue au Nord-Est de Paris dans la Petite Couronne. Celle-ci se trouve dans la
proche périphérie de Paris.
15
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551
basket. C’est le lieu ou je peux rester des journées entière sans
le moins de problème avec mes amis, avec les gens de la cité on
s’entend bien avec tout le monde A part quelque s’un qui nous en
merde. Dans la cité depuis la primaire au lycée je suis dans cette
cité.17 Mais sinon c’est le seul lieu est l’endroit que j’aime le mieux
particulièrement (CAMARA, 2009, 2017, p. 52-53).
La relégation n’est pas un phénomène nouveau mais les émeutes
de 2005 ont révélé les difficultés de certains citoyens français, qui se
perçoivent et qui sont amenés à se percevoir comme illégitimes du fait
d’une société à laquelle pourtant ils appartiennent, dont ils sont citoyens,
mais qui continue à les voir comme différents. Fassin (2006) montre que
la loi française ne reconnaît pas la notion de race, n’impose pas de barrière
à la circulation et n’organise pas le découpage ethnique de la population
comme cela a pu être le cas en Afrique du Sud par exemple. Cela
n’empêche pas néanmoins qu’existent en banlieues des concentrations
communautaires de populations pauvres dans les cités (FASSIN, 2006).
À quels critères faut-il attribuer ces processus de discrimination, cette
mise en altérité, qui essentialisent la différence ? Nationalité, couleur
de peau, patronyme, variété de français, pratiques linguistiques ? Fassin
pose la question de savoir si le critère implicite mais puissamment actif
n’est pas une forme de discrimination liée à l’origine qui ne se dit pas.
Ces discriminations n’impliquent pas nécessairement de racisme mais
lorsqu’elles se manifestent, elles font porter aux personnes concernées
la responsabilité de la discrimination, ce qui évite d’aborder la question
en termes politiques et économiques.
On peut l’expliquer par l’absence de cohérence démographique,
d’unité culturelle et d’organisations représentatives fortes, ce que
Wacquant décrit comme « l’absence de parallélisme institutionnel »
(2006). La déprolétarisation, qu’on abordera plus bas, est aussi une
modalité d’explication. La déstructuration née de la déprolétarisation
aurait permis des modalités d’organisation communautaire, caractérisées
par une endogamie et un repli sur des traditions culturelles, notent certains
observateurs. Force est de constater que les points de vue sont variés et
dépendent de la perspective dans laquelle on se place, ils reflètent aussi
l’absence de consensus social sur la question.
17
Les textes ont été transcrits de manière identique à leur version originale. C’est l’auteur
lui-même qui a barré le texte. Voir la présentation des deux corpus dans l’introduction
de l’article supra.
552
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3. Désaffiliation, déprolétarisation
On distinguera cependant les banlieues françaises par trois traits
majeurs : la désaffiliation et, au-delà l’esprit de scission qui anime certains
groupes, l’ethnicisation qu’on a déjà évoquée et la difficulté d’aller vers
une autonomisation sociale.
La désaffiliation (CASTEL, 1995) résultante des difficultés
économiques et du chômage définit la marginalisation qui en résulte
(chômage et précarité des travailleurs pauvres). Cette précarité et
la segmentation de l’espace aboutissent à une spécialisation et à un
appauvrissement du logement social en banlieue, souvent dégradé.
Elles contribuent à assigner à résidence des familles qui n’ont aucun
autre choix résidentiel (SINTOMER ; BACQUÉ, 2002, p. 102). Les
mêmes auteurs (2002, p. 107) soulignent que, de là peut naître un esprit
de scission, notamment chez certains jeunes, sans qu’on puisse parler
d’une contre-affiliation globale en l’état actuel des choses, qui aurait pour
conséquence l’adhésion à d’autres systèmes de valeurs, islamistes par
exemple. On observe cependant des solidarités primaires fondées sur des
regroupements communautaires, qui se sont construites avec l’arrivée
des familles migrantes et leur installation dans les logements sociaux.
Un des aspects de la stigmatisation des espaces de banlieues
coïncide avec l’arrivée des familles de migrants. Leur installation dans
les quartiers populaires de la périphérie a contribué à l’ethnicisation
des classes populaires. Il devient dès lors difficile pour les populations
concernées d’aller vers une autonomisation sociale du fait de cette
stigmatisation et de cette minorisation, qui les placent dans une altérité
génératrice d’exclusion, notamment linguistique.
Par ailleurs, on peut se demander si la conception française de
l’intégration en maintenant l’assujettissement aux modèles institutionnels
n’est pas contre-productive et ne contribue pas au maintien des
phénomènes de stigmatisation / minorisation.
Décrite par Lorcerie (1994) comme nationaliste-républicaine,
cette position a créé un consensus général, mais a empêché toute
expression de la différence, perçue immédiatement comme dissidente et
portant les germes du communautarisme (BAUDIN ; GENESTIER, 2002,
p. 115). On peut donc se demander si, au fond, cet idéal d’intégration au
nom de l’assimilation, n’a pas frappé de manière normative toutes les
manifestations de différenciation, en privant les individus concernés de
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553
toute marge de manœuvre et d’autonomie (RUDDER, 2002, p. 116) et
en stigmatisant toute expression de l’altérité.
3.1 La déprolétarisation
Elle se manifeste dans les années soixante-dix et se caractérise
par la dilution de la classe ouvrière, du fait de la déprolétarisation et
de l’affaiblissement des liens sociaux fondés sur l’identification à une
communauté de destins, qui caractérisaient les faubourgs ouvriers
(WACQUANT, 2006, p. 279). La déprolétarisation se définit comme la
sortie durable du marché du travail salarié d’une fraction importante de
la classe ouvrière, qui a de fortes difficultés à retrouver un emploi stable
(RIFKIN, 1996 ; WACQUANT, 2006).
La déstabilisation de la classe ouvrière est liée aux transformations
du travail, au poids du chômage et à l’apparition d’une forte proportion
de travailleurs pauvres, qui ont désorganisé son mode de reproduction
et ont contribué à l’augmentation de la fragmentation sociale et de
la précarité. Wacquant (2006, p. 274-275) parle même de salariat
désocialisé, notamment en raison de l’affaiblissement des mécanismes de
protection sociale et de la désorganisation de ce nouveau salariat, liée à la
disparition du cadre social et temporel commun fourni par l’emploi. On
ne peut donc plus parler dans ce contexte d’homogénéité sociale, sinon
de manière faible, par un trait négatif : la marginalité. Celle-ci ne permet
pas une organisation et des actions communes, du fait de la divergence
des intérêts mais permet néanmoins le partage d’une position commune
face aux « autres ». C’est la raison pour laquelle, définir l’espace de la
banlieue comme la concentration territoriale des personnes les plus
pauvres (MAURIN, 2004, p. 15) peut sembler significatif.
Ce long détour par l’évocation des problèmes sociaux a pour objet
d’inscrire dans une thématique sociale les questions linguistiques. En
effet, on peut penser qu’une reconnaissance de la diversité linguistique
passant par une prise en compte des particularités linguistiques serait
un début de solution.
Au plan linguistique, répond la stigmatisation des pratiques
langagières et notamment de l’obscénité et de la grossièreté (LEPOUTRE,
1997, p. 153 et suiv.), qui sont l’emblème de cette violence dans le
discours commun (BERTUCCI ; DAVID, 2003 ; BERTUCCI ; DELAS,
2004) sans que soit perçue la dimension ludique. Cette question des
pratiques langagières illustre le fonctionnement du processus de mise
554
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
en altérité par le biais de la radicalisation d’une rupture entre un eux
et un nous (FATTIER, 2004). Cet ensemble de phénomènes concourt
à la formation d’une image négative du quartier, participant parfois
de l’imagerie traditionnelle des mauvais lieux. Ces représentations
péjoratives résultent largement de l’incompréhension et de l’absence de
perception du mode de fonctionnement propre à cette population qu’on
va aborder maintenant.
4. Français populaire / français des banlieues
La question linguistique renvoie aux phénomènes identitaires
précédemment évoqués et les met en mots. Elle relève d’un processus
de patrimonialisation qui s’inscrit dans l’ordre du patrimoine immatériel.
L’identification de la variété de français en jeu est importante car elle
contribue à renouveler la définition de la variété dite du français populaire
au sujet de laquelle on fera l’hypothèse qu’on peut lui adjoindre ce qui
est désigné comme le français des cités (GOUDAILLIER, 2001) ou
encore le français des banlieues (BERTUCCI ; DELAS, 2004). D’un
point de vue normatif, le français populaire constitue « un classificateur
déclassant » (GADET, 2003a, p. 1). Comme tel, il s’inscrit dans le
contexte de minorisation-stigmatisation qui nous occupe.
4.1 Un ensemble hétéroclite de formes hétérogènes
Il désigne « un ensemble de formes non standard » et correspond
à « un construit social hétéroclite » porteur d’une « fonction déclassante
implicite » (GADET, 2003a, p. 1). La notion d’hétérogénéité sociale est
importante ici et elle correspond sur le plan linguistique à des pratiques
langagières marquées par la variabilité et l’instabilité18 comme l’indique
le commentaire métalinguistique suivant qui souligne un fait de français
non normé : « Il parlait comme tous les Manouches à la première personne
du pluriel » (CHERFI, 2016, p. 94). De ce point de vue, la notion de
français populaire est plus englobante, que celle de langue des jeunes.
Les exemples relatifs à la morphologie présents dans le roman de Cherfi
qu’on va proposer illustrent le caractère hétéroclite et l’hétérogénéité
mentionnés :
18
On notera que c’est le fait de toutes les « variétés » avant que la cohérence n’en soit
montrée par les linguistes (AUROUX, 1994).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
555
19
Morphologie verbale à l’imitation du tzigane
selon l’auteur
« tu tournons l’dos et y te plante » p. 9119
« Vous f’zons des photos » p. 92 ; « y vous
donnons d’largent » p. 94 ; « et l’école à
quoi ça servons » p. 94
Morphologie du pronom personnel sujet
Y pour il / ils se caractérisant également par
une non discrimination du singulier (il) et du
pluriel (ils)
singulier : Y pour il, anaphorique de
Henri
« juste Henri quand y chante » p. 68
« Les gars y chante juste » p. 71
Pluriel : Y pour ils, anaphorique de ces
bâtards
Tu crois que tous ces bâtards y vont faire
le docteur, c’est que de la racaille, tu
tournons l’dos et y te plante p. 91
Morphologie des pronoms démonstratifs
Pas comme célass (ceux-là p. 92)
4.2 Le verlan et l’hybridation
La question de savoir si la langue des jeunes constitue
« une variété indépendante de la description traditionnelle des traits
populaires » (GADET, 2003a, p. 1) repose sur l’existence potentielle de
traits distincts. La langue des jeunes se caractérise par la courbe intonative
et l’accentuation (GADET, 2003a, p. 1 et 2003b, p. 86 ; FAGYAL, 2003)
et par le lexique. En revanche, au plan grammatical, elle ne se distingue
guère du français populaire, manifestant des traits caractéristiques
des variétés orales (GADET, 2003a, p. 2). Sans pouvoir observer
de bouleversements majeurs, force est de constater que l’innovation
cependant est présente dans la langue des jeunes à travers deux traits
qui se démarquent des éléments héréditaires : le verlan, l’hybridation
(GADET, 2003a, p. 10) et les faits de contacts de langues qu’on présente
ci-après. On observe dans le corpus extrait du roman de Cherfi une
incrustation de termes arabes et kabyles avec un effet de traduction et
de reproduction des accents : « Ti va à la sucrriti, ti monti troi mitaj et ti
donn li cachi di disser » […] (Traduction.) Tu vas à la Sécu, tu montes
trois étages et tu donnes le casier judiciaire ! »20 (CHERFI, 2016, p. 23).
19
La pagination est celle de l’édition de 2016 du roman.
Cherfi illustre par la figure de la traduction les effets de distance intra familiales qui
viennent à l’appui des remarques suivantes qui figurent avant les propos de la mère
du narrateur cités supra : « À l’intérieur des maisons fallait, entre un fils et sa mère,
20
556
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020
Les faits de contacts de langues illustrent la dimension véhiculaire
interethnique de ce parler.
4.3 Un parler véhiculaire interethnique
La notion de parler véhiculaire interethnique s’avère
particulièrement opératoire ici pour caractériser le parler des jeunes
de banlieues. Il est un we code (GUMPERZ, 1989), c’est la langue des
Céfrans21 (SEGUIN ; TEILLARD, 1996 ). C’est un véhiculaire, marqué
par l’alternance des langues qui s’oppose à la fois à la langue de l’école
et à celle de la famille où les langues d’origine sont plus présentes
(BILLIEZ, 1993, p. 117). Opératoire, cette notion de parler véhiculaire
interethnique l’est aussi pour désigner l’hybridation et le métissage,
qui renvoient à la dimension pluriethnique du groupe de pairs, et à
l’hétérogénéité de ce parler comme l’indiquent les citations suivantes
extraites de Ma part de Gaulois :
« Li cachi di disser », m’a fallu quinze ans pour comprendre qu’il
s’agissait du « casier judiciaire » ! » (CHERFI, 2016, p. 23) ;
« Que Dieu te brûle la langue ! (En kabyle bien sûr, Aké seurgh
reubi ilsikh ! ») (CHERFI, 2016, p. 79) ; « C’est hrraâm (péché) »
(CHERFI, 2016, p. 101).
Cette volonté de produire une coloration arabe déjà signalée
par Billiez à travers l’exemple de l’articulation constrictive sourde et
forte du [R] (BILLIEZ, 1993, p. 120) observable chez des locuteurs de
parlers des cités urbaines sensibles reflète la composition pluriethnique
du groupe des pairs, mais aussi celle du quartier. Le recours au procédé
de l’emprunt dans le roman de Cherfi, ici un mot tzigane, possède aussi
cette fonction : « ce que t’as tchouré la veille » (CHERFI, 2016, p. 94).
Cet exemple tiré du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels
illustre également la diversité ethnique :
un traducteur des hautes écoles orientalistes » (2016, p. 23). On soulignera que ce
commentaire explicite également le titre de l’œuvre Ma part de Gaulois car il met en
lumière « la part de gaulois » du narrateur.
21
Verlan de français.
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557
La où j’habite, à Montfermeil, c’est grand et j’ai pas l’habitude,
mais là au moins je me suis fait des amis, il y a Medine, un
Algerien [Le« A » majuscule a été réécrit par-dessus le « a »
minuscule], Rodrigues, le Congolais et enfin Sophia, l’Italienne
(JEAN-MARC, 2009, 2017, p. 51).22
C’est à ce stade que le trait populaire mérite d’être analysé. La
notion de français populaire n’est pas claire, dans son opposition avec
le français familier : « usage de toutes les classes dans des contextes
peu surveillés » (GADET, 1992, p. 122). Elle est plus interprétative que
descriptive et relève du stéréotype social. Le terme ne peut se débarrasser
de sa fonction déclassante et l’objet qu’il désigne est mal identifié,
cependant la notion résiste, ce qui signale son caractère problématique
(GADET, 2003a, p. 11). La coexistence dans le lexique utilisé de faits
lexicaux relevant de diverses variétés non normées ou archaïques
illustre l’hétérogénéité de la notion de français populaire. Les exemples
observables dans le roman de Cherfi se déclinent des archaïsmes aux faits
avérés de parlers des cités en passant par des traces d’argot classique
ou de parlers jeunes passés dans le français familier courant, comme on
peut le voir dans les faits langagiers suivants :
Archaïsmes
Daronne : p. 91
Le gueux p. 100
Argot classique
« Je crois ne pas avoir moufté… » p. 37
« Tu l’as pas affranchi, le poète » p. 68
« Un père français visiblement thuné, cultivé,
fringué comme un bijoutier » p. 68
Faits de parlers jeunes datés et perçus comme « Mes parents sont complètement flippés… »
passés dans le français familier
p. 59«
Faits de parlers des cités incluant des termes
d’origine tzigane ou à consonance tzigane
(finale en ave)
22
Voir supra pour l’anonymisation.
« Je lisais depuis quelques minutes quand
trois lascars […] se sont approchés de
moi… » p. 31
« Ma part de Gaulois » p. 64
« c’est que de la racaille » p. 91
je l’ai déjà guintchave (sollicitée) p. 91
c’est la latche (honte) p. 91
558
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5. Conclusion. une culture interstitielle
Les parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France
contemporaine interrogent et remettent en cause la notion de français
populaire pour plusieurs raisons. La première tient au delà des éléments
formels aux pratiques langagières, c’est-à-dire à l’étude de la parole en
tant que phénomène culturel, le principe étant que l’usage de la langue
est au moins aussi important que sa structure.23 Au centre de l’analyse, on
trouve la communauté linguistique, ses ressources verbales et ses règles de
communication, normes sous-tendant le fonctionnement des interactions
dans un groupe donné. L’étude ethnographique de la langue vise à décrire
le savoir dont ont besoin les participants à une interaction verbale et
qu’ils utilisent pour communiquer l’un avec l’autre, leur compétence
de communication (HYMES, 1984). La culture des rues, son code de
conduite s’apprennent en partie à travers ces catégories linguistiques.
Ludiques, initiatiques, cryptiques, ces parlers ont une fonction identitaire24
qui a été largement signalée et ce dès le début des années quatre-vingt
(BACHMANN ; BASIER, 1984 ; BILLIEZ, 1993 ; LEPOUTRE, 1997).
On y retrouve aussi une forme de provocation générationnelle revendiquée
« C’est intéressant, c’est du langage et il en vaut un autre » (CHERFI,
2016, p. 96). Celle-ci contraste avec le style des adultes, tant par le registre
que par l’exubérance, la volubilité, ou la théâtralisation de la parole mise
en scène et exposée au jugement des pairs.
On fera l’hypothèse, pour conclure que ces pratiques langagières
participent d’une culture interstitielle (CALVET, 1994 ; LEPOUTRE,
1997) développée dans quatre directions à partir des années quatrevingt-dix : musicale : le rap, graphique : les tags,25 vestimentaire : tenues
ostentatoires et linguistique, on l’a vu au cours de cet article. Ces pratiques
ne se limitent pas à des procédés formels qui inverseraient la norme
sociale dominante. Ils se distinguent très nettement des argots à clés
ou argots d’école par leur lexique et leurs fonctions. Si les adolescents
les plus experts sont peut-être les plus déviants par rapport aux normes
sociales, ils sont aussi les mieux intégrés au groupe des pairs dont on
connaît l’importance dans la socialisation des jeunes et dans leur culture
23
Cela est vrai également du standard scolaire.
Ce qui ne signifie pas que ces jeunes n’ont qu’une identité et qu’ils n’ont que le
verlan à leur disposition.
25
On peut se demander si l’affichage de l’inintelligible n’est pas le dénominateur commun.
24
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559
(BILLIEZ, 1993). Ces pratiques langagières sont aptes à exprimer le
vécu et l’expérience de la rue. Nourries d’emprunts, elles reflètent les
communautés pluriethniques des banlieues.
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Deslocamento forçado e permanência vigiada,
território e fronteira: metáforas de espaço na representação
da situação de rua na Folha de S. Paulo
Forced displacement and guarded permanence, territory and
frontier: metaphors of space in the representation
of homelessness in Folha de s. Paulo
Viviane de Melo Resende
Universidade de Brasília (UnB), Brasília, DF / Brasil
resende.v.melo@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-7791-5757
resumo: Este artigo apresenta resultados de projeto de pesquisa que objetivou
identificar representações no jornalismo online a respeito de ações e políticas públicas
voltadas à população em situação de rua. A pesquisa, realizada no âmbito dos estudos
críticos do discurso (VAN DIJK, 2009; FAIRCLOUGH, 2010; VIEIRA; RESENDE,
2016) e da análise interdiscursiva de políticas públicas (RESENDE, 2018; FISCHER,
2016), considerou a Folha de S. Paulo (em sua plataforma digital, em folha.uol.com.
br) para compor um corpus abrangente das notícias publicadas sobre a população em
situação de rua em um período de três anos. A composição do corpus considerou as
palavras-chave ‘(morador)(a)(es)+(de rua)’, ‘(pessoas)(população)+(em situação)/
(de rua)’, aplicadas ao buscador do veículo jornalístico. A categoria analítica que
orientou o mapeamento dos dados no software NVivo foi a metáfora (CHARTERISBLACK, 2004). Neste recorte, o foco específico são metáforas espaciais utilizadas
para representar os deslocamentos e permanências da população em situação de rua
na cidade em textos tratando de ações e políticas públicas. As análises apontaram que
sentidos metafóricos nesse corpus têm efeito de justificativa para ações e políticas
públicas desumanizantes da população em situação de rua.
Palavras-chave: população em situação de rua; jornalismo online; metáfora espacial;
ação e política pública.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.565-596
566
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
abstract: This paper presents results of a research project aimed to identify
representations in online journalism regarding actions and public policies towards the
homeless population. The research, carried out within the context of critical discourse
studies (VAN DIJK, 2009, FAIRCLOUGH, 2010, VIEIRA; RESENDE, 2016) and
the interdiscursive analyses of public policies (RESENDE, 2018; FISCHER, 2016),
considered Folha de S. Paulo (in its digital platform), to compose a comprehensive
corpus of the published news about the homeless population in a period of three
years. The composition of the corpus considered the Portuguese language keywords
‘(morador)(a)(es)+(de rua)’, ‘(pessoas)(população)+(em situação)/(de rua)’ applied to
the journalistic vehicle search tool. Metaphor (CHARTERIS-BLACK, 2004) was the
analytical category that guided the mapping of data in NVivo software. In this paper,
the specific focus are metaphors used to represent the displacements and permanences
of the homeless population in the city, in texts thematizing actions and public policies.
The analyzes pointed out that metaphorical meanings in this corpus have a justification
effect for dehumanizing actions and public policies aimed at the homeless population.
Keywords: homeless population; online journalism; spatial metaphor; action and
public policy.
Recebido em 14 de maio de 2019
Aceito em 09 de outubro de 2019
Introdução
“nunca las percepciones y concepciones de
los diseños espaciales, de la experiencia
del lugar y de los apegos territoriales son
independientes de la emergencia de un sujeto,
individual y colectivo, en su lecho discursivo.”
(Rita Segato)
Este artigo apresenta alguns dos resultados de um projeto de
pesquisa que, no âmbito dos estudos críticos do discurso (VAN DIJK,
2009; FAIRCLOUGH, 2010; VIEIRA; RESENDE, 2016) e da análise
interdiscursiva de políticas públicas (RESENDE, 2018; FISCHER, 20161),
1
FISCHER, F. Where Does the Argumentation in the Design Processes of Policy
Instruments. Conferência proferida. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento,
Sociedade e Cooperação Internacional, Universidade de Brasília, 2016.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
567
teve como objetivo identificar representações que circulam no jornalismo
online a respeito de ações e políticas públicas (APP) voltadas à população
em situação de rua (PSR).2 Foi considerado o principal jornal da cidade
de São Paulo, e de tradicional circulação em âmbito nacional no Brasil:
Folha de S. Paulo (em sua plataforma digital, em folha.uol.com.br), do
qual se compôs um corpus abrangente das notícias publicadas sobre a
população em situação de rua em um período de três anos.
Com relação direta ao projeto mencionado, desenvolvi, entre
2015 e 2017, o projeto de pesquisa “Representação midiática da violação
de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua no jornalismo
online”.3 Nesse projeto, a equipe que coordenei, no Laboratório de
Estudos Críticos do Discurso e no Núcleo de Estudos de Linguagem
e Sociedade da Universidade de Brasília, analisou 750 textos de três
jornais eletrônicos (Correio Braziliense, O Globo e Folha de S. Paulo).4
Paralelamente, também venho desenvolvendo o projeto de pesquisa
“Análise Interdiscursiva de Políticas Públicas”. Isso me levou ao interesse
especial de investigar a representação das APP dirigidas à Psr, expresso
nos projetos de pesquisa a que se vincula este texto.
Este artigo responde especificamente ao objetivo de, em um
corpus de 105 textos da Folha de S. Paulo (FSP) pautando APP dirigidas
à PSR, investigar, por meio de análise subsidiada por software, as
recorrências e padrões de representação metafórica de APP dirigidas à
PSR nesses textos jornalísticos, neste caso tomando foco específico nas
metáforas espaciais que representam as permanências e deslocamentos da
PSR na cidade.5 Pretendi, então, por meio de análise discursiva assistida
por computador, compreender como metáforas espaciais relacionam APP
e PSR nos textos jornalísticos publicados entre 2011 e 2013 no portal
online da FSP.
Projeto “Representação de políticas públicas para população em situação de rua
como gestão do território: metáforas espaciais na Folha de S. Paulo” (CAPES
88881.172032/2018-01).
3
CNPq 304075/2014-0.
4
Sobre o Correio Braziliense, ver Resende (2016), Resende e Ramalho (2017), Resende
e Gomes (2018), Ramalho e Resende (2018); sobre O Globo, ver Resende (2018); sobre
a Folha de S. Paulo, ver Resende e Mendonça (no prelo).
5
Em pesquisa anterior, cujos resultados parciais estão em Resende e Mendonça (no
prelo), já apresentamos recorrências de avaliação e intertextualidade nesse mesmo corpus
de 105 textos pautando APP voltadas à PSR na produção discursiva da FSP online.
2
568
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
O artigo foi organizado em três seções. Na primeira, discuto
noções de espaço e território, e o conceito de cidade revanchista. Na
segunda, discuto os estudos críticos do discurso, associando a análise
de discurso crítica e os estudos discursivos de metáfora. Na terceira,
apresento a análise favorecida pelo uso de software QDA no mapeamento
de categorias vinculadas à análise de metáfora. Por fim, apresento algumas
considerações finais sobre a representação metafórica das permanências
e deslocamentos da PSR no território da cidade de São Paulo.
A escolha por abordar especificamente dados da FSP justifica-se
por ser a cidade que (des)abriga a maior população em situação de rua
no país, e por nosso estudo anterior ter mostrado ser este o veículo, entre
os estudados, que mais noticia APP ligadas a questões territoriais, o que
nos interessa investigar pela via da categoria discursiva da metáfora.
O interesse em investigar metáforas espaciais nesses dados decorre da
ausência de abordagens cruzando os temas das políticas públicas dirigidas
a pessoas em situação de rua e da gestão territorial do espaço urbano
pela via discursiva. Embora haja textos em geografia crítica (SANTOS,
2006; ROLNIK, 2016; SMITH, 2012), em urbanismo (DELGADO, 2015;
GARNIER, 2006), em sociologia (WACQUANT, 2005) que discutem a
gestão política e policial da pobreza nas cidades, ainda não se exploraram
os padrões discursivos desta relação.
1 Território e cidade revanchista: espaço simbólico
Um pressuposto bastante compartilhado no Brasil e repetido
tantas vezes na mídia burguesa trata a situação de rua como se fosse um
problema pessoal, alguma desordem da pessoa, contrariando a evidência
de que a crise habitacional é um problema estrutural. Nesse discurso,
a falta de moradia parece ser vista como “um fato desafortunado” que
pudesse ser abordado por meio de “políticas ad hoc para as pessoas
em situação de rua”, sem que se enfrente a questão estrutural da falta
de moradia adequada que atinge de forma muito mais abrangente as
populações empobrecidas (SMITH, 2012, p. 343).
Isso inclui retiradas violentas de pessoas em situação de rua, seu
encaminhamento compulsório, explícito ou velado, a instituições, seu
deslocamento forçado e o constrangimento a sua permanência no espaço
público, muitas vezes justificados pela ideologia da civilidade. Em nome
do bem-estar de “classes civilizadas”, as “classes incivilizadas” são
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
569
constrangidas em seus direitos e forçadas a esconder-se. Assim a cidade
revanchista volta-se contra essas parcelas da população cujas condições
de vida jamais são postas em questão, desde que ocultas nas periferias
distantes, ou invisíveis aos olhos da elite. Seu retorno ao centro da cidade,
contudo, parece intolerável.
Sobre essa “centralidade periférica” na cidade de São Paulo,
Nakano, Campos e Rolnik (2004) discutem a perda de peso econômico
relativo do centro histórico de São Paulo, em decorrência do deslocamento
desse eixo de dinamismo produtivo ao vetor sudoeste da cidade, com
consequente desvalorização dos edifícios sem garagem do centro da
cidade. “O centro passa, então, a ser utilizado por uma população de
menor poder aquisitivo e seus espaços, ocupados pelas estratégias de
sobrevivência dos segmentos empobrecidos – sem-teto, ambulantes,
desempregados, moradores de rua e demais setores excluídos dos
circuitos produtivos formais” (NAKANO et al., 2004, p. 138). Ao
discutir as dinâmicas dos subespaços centrais da cidade de São Paulo,
contudo, Nakano, Campos e Rolnik (2004, p. 154) recusam o suposto
esvaziamento econômico e demográfico da região, apontando que, em
que pese “o inquestionável deslocamento da centralidade dominante
(pelo menos em seus setores mais visíveis) para o vetor sudoeste da
cidade”, isso não determinou o “esvaziamento do centro histórico, mas
sim uma mudança no perfil de seus usos e usuários, configurando novos
focos de dinamismo”.
As classes empobrecidas, antes afastadas do centro no processo
de periferização da pobreza (CALDEIRA, 2004) e gentrificação (SMITH,
2012), retornam forçadas pelos altos custos do transporte público e pelo
desemprego, e ocupam setores do centro abandonados pelas elites em seu
movimento ao vetor sudoeste de São Paulo. Assim se tornam visíveis e
são consideradas incômodas, intoleráveis a certos setores sociais ávidos
por vocalizar suas demandas, às quais os jornais burgueses tratam de
conceder espaço midiático.
A relação entre o espaço urbano e o simbólico midiatizado
é relevante para Rita Segato (2006) quando lembra que o cânone
antropológico define espaço em referência a um plano simbólico de
ordenação de sentido, em que o espaço a um só turno é a pré-condição
para nossa existência (e, podemos agregar, para o transcurso do tempo)
e é também essa realidade inalcançável, indefinível e indecifrável:
“comprovando ser ao mesmo tempo rígido e elástico, contido e
570
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
incontenível, narrável e inenarrável, comensurável e furtivo” (SEGATO,
2006, p. 129). Na geografia radical, Dorren Massey (2009) coincide com
Segato sobre a complexidade da definição, sustentando que o conceito
teórico de espaço importa à vida social e política, sendo mais complexo
do que poderia parecer à primeira vista. Ela propõe três características
para uma conceituação adequada de espaço: primeira, que o espaço, como
produto de relações – o que inclui, ela lembra, a ausência de relações
– é uma complexidade de conexões e trocas; segunda, que o espaço é a
dimensão da multiplicidade, no sentido da coexistência de diferenças na
simultaneidade; terceira, que o espaço está sempre em processo, sempre
em construção, nunca finalizado – “há sempre relações por fazer, desfazer,
refazer” (MASSEY, 2009, p. 16), e nesse sentido o espaço está sempre
aberto, já que a produção do espaço é uma tarefa política.
As concepções de Segato e de Massey, então, põem em xeque
a separação de tempo e espaço, abrindo uma complexidade em que
o espaço é temporal, e o tempo só pode ser concebido no transcurso
de uma espacialidade móvel. O espaço já não se concebe como mero
cenário, como fixo e dado, como campo do já realizado; ao contrário,
é continuamente em processo, produto mutável de relações e trocas, e,
portanto, também de sentidos e de atribuições simbólicas.
Sobre isso, em livro que homenageia a influência de Doreen
Massey na definição de espaço, Saldanha (2013) relembra que as
fronteiras de um lugar sempre são definidas pelas práticas físicas para
o deslocamento, por representações (por exemplo em jornais como
a FSP) e por objetos materiais como muros, grades ou (relembrando
a canção popular) “cercas embandeiradas que separam quintais”. O
espaço como território pressupõe as fronteiras, físicas e simbólicas, e a
própria noção de território é dependente da representação, ou seja, da
“apreensão discursiva do espaço” – uma apropriação política que se
define em sua “delimitação, classificação, uso, distribuição, defesa e,
muito especialmente, identificação” (SEGATO, 2006, p. 129). Território,
nesse sentido, é o espaço fixado em uma representação que inclui a
ação e a existência de sujeitos: por isso, “não é qualquer lugar, é espaço
apropriado, traçado, recorrido, delimitado (...) marcado por identidade e
presença, e, portanto, indissociável das categorias de domínio e poder”
(SEGATO, 2006, p. 130), e da própria ideia de fronteira, de negação,
de alteridade.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
571
Tudo isso faz do território um cenário de reconhecimento e de
negação. Quando a cidade se contempla em suas dimensões territoriais,
trata-se dos pertencimentos, das autorizações de trânsito e permanência,
e sobretudo, talvez, das negações que se lhe opõem. A ideologia do
cidadanismo é muitas vezes conclamada quando se trata de justificar
desautorizações de uso da cidade a certos grupos, e diria mesmo que se trata
da principal ideologia de que a FSP lança mão para tratar as permanências e
deslocamentos da PSR na cidade, como sugerem os dados da pesquisa aqui
discutida. A oposição contra grupos sociais avaliados como ‘incivilizados’
serve de justificativa para sua segregação, seu deslocamento forçado, a
restrição de sua liberdade. É quando a cidade revanchista se volta contra
parcelas da população cujo direito à cidade parece um absurdo impensável:
só podem ser enxergadas como usurpadoras de espaços pertencentes a
outros grupos. Para Smith (2012, p. 325),
Este antiurbanismo revanchista representa uma reação contra o
suposto “roubo” da cidade, uma desesperada defesa da falange
de privilégios desafiados, envolta na linguagem populista da
moralidade cívica, dos valores familiares e da segurança do
bairro. A cidade revanchista expressa, acima de tudo, o terror
de raça/classe/gênero sentido pelos brancos da classe média
dominante (...) A cidade revanchista augura uma feroz reação
contra as minorias, a classe trabalhadora, as pessoas sem teto, os
desempregados.
Para expressar esses sentidos de oposição – de um lado todos
os direitos, ao outro apenas os deveres, de um lado todo privilégio, ao
outro sempre desconfiança – e de controle, a mídia burguesa lança mão
de variados recursos discursivos. No caso da FSP, vamos nos ater neste
artigo aos sentidos metafóricos de base espacial mapeados no corpus de
105 textos que tematizam ações e políticas públicas dirigidas à população
em situação de rua.
2 Estudos críticos do discurso e estudos de metáfora
Já disse antes que a análise de discurso crítica (ADC) não constitui
uma teoria ou um método para o estudo crítico da linguagem na sociedade,
mas um corpo heterogêneo de abordagens que, embora surgidas no
contexto europeu, foram amplamente aprofundadas nas incursões que
572
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
pesquisadores/as latino-americanos/as têm feito nesse campo. Muito
foi feito na América Latina na direção da ampliação do escopo dos
estudos críticos do discurso e no refinamento de abordagens teóricas e
metodológicas associadas a essa interdisciplina (PARDO ABRIL, 2007;
PARDO, 2010), e uma característica fundamental dos trabalhos latinoamericanos é seu comprometimento no debate de relações entre discurso
e abuso de poder.
Discutir poder como controle exige uma apreensão do
funcionamento da linguagem na sociedade, e esse argumento sustenta a
relevância dos estudos críticos do discurso (RESENDE, 2017). Grupos
sociais particulares são detentores de maior poder quando são aptos a
controlar ações de outros grupos (VAN DIJK, 2001), isto é, quando são
capazes de definir as bases relativas para a ação social, por exemplo,
controlando instituições do aparato de governança.
A consolidação de esfera pública no debate da situação de rua
e na instituição de políticas públicas para sua abordagem é questão que
deve ser urgentemente tratada, incluindo discussão da representação
preconceituosa de pessoas em situação de rua nos meios massivos de
comunicação, e seus potenciais efeitos sociais e políticos. Com base
em pesquisas anteriores, sabemos que a chamada ‘grande mídia’ (a
mídia grande) tende a representações preconceituosas da população em
situação de rua (por exemplo, ver PARDO ABRIL, 2008; ver também os
capítulos publicados em PASCALE, 2013 e em MONTECINO, 2018, e
os artigos publicados nos Cadernos de Linguagem e Sociedade, vol. 13,
número monográfico). Reconhecida a ação midiática para a consolidação
de formas de representar e interpretar a realidade, essas representações,
muitas vezes repetidas em diferentes tipos de textos, também têm
efeitos potenciais nos modos como agimos em relação à situação de
rua, e principalmente como compreendemos as APP dirigidas à PSR. A
repetição de representações pejorativas e sua aceitação pela sociedade,
servindo de base para preconceito, poderiam explicar, ao menos em
parte, a ausência de políticas eficazes na superação da situação de rua e
a aceitação social de políticas violentas?
É no discurso que se exercem as pressões que atuam na definição
de uma agenda pública; em ambientes discursivos – da mídia, da política,
dos movimentos sociais – constrói-se e reconstrói-se essa agenda e os
embates discursivos que promovem a avaliação de suas possibilidades.
Assim, os modos como se orienta e se organiza o debate público em
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
573
torno de um problema são questões discursivas, que, portanto, podem
ser adequadamente abordadas por meio dos estudos discursivos.
Nos termos de Souza (2006, p. 30), uma pesquisa em políticas
públicas pode se perguntar “como se constrói a consciência coletiva
sobre a necessidade de se enfrentar um dado problema”. A percepção/
construção de uma questão social – como a situação de rua – na
agenda política é fator primordial para que se considere a relevância da
abordagem política dessa questão, e a natureza dessa abordagem – pelo
viés da assistência, da participação ou da repressão – também é decorrente
da compreensão social da questão.
A “consciência coletiva” de que nos fala Souza (2006) também
remete ao que van Dijk (2009, p. 6) discute como dimensão intersubjetiva
derivada das experiências de socialização que compartilhamos como
grupos sociais, e que levam a “vários tipos de conhecimento compartilhado
e outras crenças”. Esse compartilhamento de sentidos estabiliza modos
de compreensão das questões sociais, incluída a situação de rua e as APP
julgadas adequadas como respostas a ela, o que pode ser investigado
pela via discursiva, por meio de mapeamentos discursivos em distintos
campos sociopolíticos, como a lei, a mídia, os movimentos sociais e
políticos. No caso da pesquisa de que este artigo se recorta, os dados
de um jornal de circulação massiva, em sua plataforma de distribuição
online, são tomados como elementos chave para a compreensão de
sentidos que modelam a percepção da PSR na cidade de São Paulo, e
consequentemente impactam sobre as respostas públicas à situação de
rua. Com um corpus de notícias tematizando APP dirigidas à PSR, o
acesso a esses sentidos é ainda mais privilegiado.
A análise de notícias como material empírico para a abordagem
de problemas sociais como as representações de APP voltadas à situação
de rua justifica-se também porque, nos estudos críticos do discurso,
entende-se que a notícia reorganiza séries de eventos relatados fora de
sua ordem lógica e cronológica, e por isso é uma forma de regulação
social. Assim, para Fairclough (2003), a produção de histórias em notícias
é reconstrução de acontecimentos fragmentários como eventos distintos
e separados, incluindo certos acontecimentos e excluindo outros, assim
como organizando esses eventos construídos em relações particulares.
Sobre relações entre grupos minorizados e a produção de notícias, van
Dijk (2005, p. 42) destaca que
574
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as atitudes a respeito de alguns grupos e as opiniões sobre fatos
específicos podem influir na escolha léxica de palavras (...) as
minorias são frequentemente representadas em um papel passivo
(as coisas se decidem, se fazem etc. para ou contra elas), a não ser
que sejam agentes de ações negativas, como delinquência, entrada
ilegal, violência ou consumo de drogas. Neste último caso, sua
responsabilidade será enfatizada.
A produção de notícias, portanto, é um processo interpretativo e
construtivo, e não simplesmente um relato ‘dos fatos’. Notícias também
podem ter “uma ‘intenção explanatória’ relacionada à ‘focalização’: dar
um sentido a eventos colocando-os em uma relação que incorpora um
ponto de vista particular” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 84-85). Nos estudos
críticos do discurso, portanto, textos noticiosos são compreendidos como
parte do aparato de governança, porque notícias são orientadas para a
regulação e o controle de eventos e da maneira como as pessoas reagem
a eventos.
Na realização das práticas em eventos, como sustenta
Fairclough com base em Bhaskar (1998), pessoas carregam sua
prévia compreensão das práticas – fruto de sua socialização e dos
conhecimentos compartilhados resultantes, como sustenta van Dijk. A
abordagem relacional e a abordagem sócio cognitiva, a meu ver, não se
contradizem, ao contrário, se complementam mutuamente, permitindo
uma compreensão mais complexa das dinâmicas estruturais e interativas
que só são possíveis, obviamente, porque pessoas de carne e osso,
mente e espírito interagem de forma estruturada, num movimento em
que constroem e reconstroem formas de compreensão do mundo e das
coisas. Essa possibilidade de diálogo teórico entre as duas perspectivas
discursivo-críticas é possível porque o realismo crítico de Bhaskar, que
serve de base à abordagem dialético-relacional proposta por Fairclough
(2010), não nega a construção discursiva da realidade, não recusa o fato
de que as coisas sociais são afetadas pelos processos de construção do
conhecimento, e a abordagem cognitiva de que se serve van Dijk (2009)
tampouco é radical numa postura mentalista, pois entende que a cognição
é um processo social. Assim, sendo as duas abordagens moderadas em
suas posturas realista (crítica) e (sócio) cognitiva, mantêm entre si a
coerência necessária para sua articulação, o que é útil à complexidade
da análise de metáfora.
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A categoria analítica central aqui tomada como foco para
mapeamento em software é a metáfora. Em estudo clássico sobre o
tema, Lakoff e Johnson (1980) sustentam que nosso sistema conceitual
é metafórico por natureza: os conceitos que estruturam os pensamentos
estruturam também o modo como percebemos o mundo, a maneira
como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos
com outras pessoas de acordo com nossa experiência física e cultural.
Metáforas realçam ou encobrem certos aspectos do que representam –
Fairclough (2001) registra que, quando significamos algo por meio de
uma metáfora, filiamo-nos à maneira particular de representar aspectos
do mundo traduzida na imagem metafórica produzida. Daí a relevância
do foco na análise de metáforas, no caso específico deste estudo,
especialmente quando consideramos, com Charteris-Black (2004, p. 23),
que as metáforas “são cruciais no processo de influenciar o caminho em
que problemas sociais são conceituados”.
A metáfora sempre foi de interesse dos estudos de linguagem,
desde a retórica clássica, e também chamou atenção da estilística e dos
estudos literários. Para a ciência linguística, tornou-se objeto sistemático
de interesse apenas no último quarto do século XX. Um marco dessa virada
no estudo linguístico de metáforas, extrapolando seus aspectos retóricos
e estéticos, foi a realização do simpósio “Metáfora: o salto conceitual”,
em 1978, na Universidade de Chicago. Reconhecendo a metáfora como
conceito “essencialmente controverso e polêmico” (COWAN; FEUCHTHAVIAR, 1992, p. 7), a universidade recebeu pensadores como Donald
Davidson, Paul Ricoeur, Nelson Goodman, Max Black, entre outros,
que conduziram acalorado debate a respeito do conceito e seus aspectos
linguísticos (cognitivos, semânticos e pragmáticos).
Com seu livro de 1980, Lakoff e Johnson lançaram bases para
a mais influente teoria de metáfora na linguística desde então: a teoria
da metáfora conceitual (TMC). Segundo Dancygier (2016), desde essa
obra a metáfora tem sido discutida em termos de mapeamento conceitual
conectando dois domínios, o que permitiria a abordagem de fenômenos
abstratos ou emoções em termos de experiências concretas ou corpóreas.
Ela explica:
o conceito de domínio (...) se refere a um pacote conceitual,
incluindo uma série de elementos conectados (...). Por exemplo,
um domínio de Guerra inclui uma série de componentes, como
oponentes, armas, ataque e defesa, vitória e derrota. Esses
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componentes podem ser usados como base para uma série de
expressões metafóricas representando, de modo geral, o domínio
da Discussão (uma troca de pensamentos assumindo alguma
discordância inicial, e vários procedimentos e resultados desses
procedimentos). Ao falar sobre uma discussão em termos de
guerra (atacar a posição de alguém, ganhar uma disputa etc.), o
domínio da Guerra é a fonte da estrutura, enquanto a Discussão é
o domínio alvo. Com base nisso, um mapeamento metafórico pode
ser definido como uma relação entre dois domínios conceituais
(o domínio fonte e o domínio alvo) que estabelece ligações
(mapeamentos) entre elementos específicos das duas estruturas.
(DANCYGIER, 2016, p. 29)
Assim, nessa perspectiva conceitual e cognitiva, trata-se de um
domínio mais abstrato da experiência ser compreendido em termos de
um domínio mais básico ou mais concreto, que fornece as bases para
a interpretação da experiência, e também para sua expressão simbólica
na linguagem. Em diversas teorias, mais ou menos radicais nessa
conceituação da experiência em termos de domínios, é relevante a noção
de corporificação da experiência (embodiment), em que conceitos mais
abstratos são construídos com base em experiências corpóreas.
Lakoff e Johnson (1980) distinguem entre metáforas ontológicas e
orientacionais; estas últimas “associadas à corporeidade e à maneira como
nosso ser biológico permite a estruturação de nosso ser social”, de modo
que a “noção de espacialidade – dentro/fora, acima/abaixo, [na] frente/
[a]trás – e de como ocupamos com nossos corpos essa espacialidade,
como a experienciamos, constrói espaços de significação pelo movimento
metafórico” (ACOSTA, 2018, p. 24).
Li (2016) chama atenção para tensões entre a TMC e a ADC, pois
a primeira argumenta que a metáfora seria uma questão de linguagem e
cognição, enquanto a ADC se ocupa centralmente com questões sociais e
políticas do discurso. Além disso, conforme Li (2016), a TMC contradiz
a ADC porque para esta as metáforas têm um aspecto pragmático
central, vinculado a propósitos comunicativos situados em eventos
discursivos e seus efeitos potenciais. Mendes e Nascimento (2010, p. 96)
também reconhecem essas tensões, sugerindo que a TMC, ao analisar
processos metafóricos como operações cognitivas de estruturação de
certos domínios em termos de outros, não se interessa diretamente pelos
aspectos de “processamento discursivo e de suas variáveis situacionais,
pragmáticas”.
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A análise de metáfora, então, parece exigir uma maior complexidade
teórica, em que o aspecto cognitivo não deve ser ignorado, mas tampouco
explica todo o processo. Se as metáforas expressam atitudes em relação
aos domínios mapeados – no que concordam todas as teorias de metáfora
estudadas – e se “atitudes são essencialmente sociais” e, portanto, “não
devem ser confundidas com opiniões pessoais”, porque são “compartilhadas
por membros de grupos sociais” com suas “identidades, ações, normas e
valores, relações com outros grupos e recursos” (VAN DIJK, 2014, p. 129),
então os aspectos cognitivos e os pragmáticos, vinculados aos interesses
em jogo, precisam ser considerados em sua relação.
Para Charteris-Black (2004, p. 7), “a metáfora é um conceito
relativo, que não pode ser definido a partir de apenas um critério
aplicável a todas as circunstâncias, e sua definição precisa incluir critérios
linguísticos, pragmáticos e cognitivos”. Por isso, para ser útil aos estudos
críticos do discurso, a abordagem semântica cognitiva formulada por
Lakoff e Johnson precisa ser complementada com uma análise de fatores
pragmáticos, que não perca de vista o fato de as metáforas serem usadas
em situações discursivas que definem seu papel.
Apesar das tensões teóricas, Li (2016) reconhece na TMC
a relevância da distinção entre metáforas conceituais (ou conceitos
metafóricos) e metáforas linguísticas (ou expressões metafóricas). Em suas
palavras, “a metáfora [conceitual] é um modo de pensar, e as expressões
metafóricas são sistematicamente motivadas por metáforas conceituais
subjacentes” (LI, 2016, p. 93). Isso implica que, teoricamente, “uma única
ideia [metáfora conceitual, nos termos de Lakoff e Johnson] explica um
número de expressões metafóricas” (CHARTERIS-BLACK, 2004, p. 9), o
que pode significar uma economia explicativa para a análise de metáforas
realizadas em textos. Em sua proposição de uma análise crítica da metáfora,
Charteris-Black (2004) sustenta um nível conceitual hierarquicamente
organizado em chaves conceituais, metáforas conceituais e metáforas.
Em seus termos, indo do mais concreto ao mais abstrato,
metáforas são representações linguísticas resultantes de alguma
mudança no uso de uma palavra ou frase em contexto específico,
causando tensão semântica – ou seja, trata-se de expressões metafóricas
situadas; metáforas conceituais referem-se a afirmações que resolvem
a tensão semântica de um conjunto de metáforas, mostrando que estão
relacionadas a uma mesma compreensão, de modo semelhante ao que
Lakoff e Johnson (1980) propõem; e chaves conceituais, por sua vez,
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explicam conjuntos de metáforas conceituais em relação a discursos
particulares. Na definição de Charteris-Black (2004, p. 244, destaques
acrescentados), apropriada neste estudo:
metáforas conceituais e chaves conceituais são inferências
abstratas a partir da evidência linguística fornecida por metáforas
particulares. Não há realidade para elas, a não ser como modelos
de trabalho [...]. O objetivo de inferir metáforas conceituais a
partir de metáforas de superfície é permitir identificar padrões
de inter-relação entre metáforas que explicam seu significado.
Da mesma forma, inter-relacionar metáforas conceituais através
da identificação de chaves conceituais pode ajudar a avaliar a
coerência de discursos particulares. A identificação e descrição
desses níveis conceituais aumenta nossa compreensão de seu
papel ideológico.
Assim, Charteris-Black (2004) sustenta o argumento da economia
analítica, quando defende a vantagem de se considerarem muitas
metáforas particulares (expressões linguísticas metafóricas) em sua
referência a um menor número de metáforas conceituais e a um número
ainda menor de chaves conceituais. Essa é a perspectiva escolhida para
o estudo, e por isso na estrutura de nós de codificação que construí para
a organização dos 105 textos da FSP no software, esse argumento foi
considerado, como discutirei na próxima seção.
3 situação de rua e território: um olhar para os dados
Para explorar representações metafóricas de APP voltadas à PSR
na FSP, foi conduzida uma investigação documental que incluiu a análise
discursiva com auxílio de pacote QDA – software para análise qualitativa
de dados, neste caso o NVivo11 Pro, conforme explicamos em Resende
e Ramalho (2017). A pesquisa documental utiliza, como principal
material empírico, dados de natureza formal, como textos midiáticos,
cuja elaboração demanda competência de conhecimento especializado
(tecnologias discursivas). Nos termos específicos da pesquisa, o foco
foi a representação de APP dirigidas à PSR, conforme representadas em
textos publicados pela FSP em seu portal online. Nas três subseções a
seguir, explico como foram realizadas as análises de metáforas sobre
APP e sobre a PSR nos 105 textos que compõem esse recorte de corpus
da FSP e pontuo alguns dos resultados dessas análises.
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3.1 Mapeamento de metáforas no corpus
Com base nas palavras-chave ‘(morador)(a)(es)+(de rua)’,
‘(pessoas)(população)+(em situação)/(de rua)’, aplicadas ao buscador
do veículo jornalístico, foram mapeados e coletados todos os textos
publicados sobre a PSR no período de três anos compreendido entre
2011 e 2013 que retornaram nessa busca. Da FSP, foram coletados 456
textos publicados sobre a PSR no intervalo considerado, e todos eles
foram organizados na plataforma do software. Os textos da FSP foram
classificados em 11 temáticas, e deles 105 pautam a temática de APP
(uma discussão pormenorizada dos procedimentos no corpus da FSP
poderá ser acessada em Resende e Mendonça, no prelo).
O uso do software teve como propósito a organização qualitativa
dos dados e a primeira análise do corpus, além de orientar a realização
dos recortes de dados a serem submetidos à análise discursiva crítica
mais fina, considerada a impossibilidade de se submeter um corpus
extenso ao escrutínio analítico da ADC. A vantagem de se trabalhar
com recortes decorre de que as formulações para análise textual da
ADC referem-se a “um trabalho intensivo que pode ser produtivamente
aplicado a recortes de material de pesquisa mais que a corpora extensos”
(FAIRCLOUGH, 2003, p. 6). Assim, as ferramentas do NVivo foram úteis
para a classificação temática dos 456 textos coletados, para a percepção
de padrões e recorrências representacionais da ação pública no corpus
de 105 textos tematizando APP e, no interesse específico deste trabalho,
para o mapeamento amplo das metáforas sobre a PSR e sobre as APP
presentes nesse corpus, incluídas as metáforas espaciais que são o foco
bem específico deste artigo.
Esclareço que no mapeamento de metáforas que passo a
apresentar não foram consideradas as chamadas metáforas convencionais,
ou ‘metáforas mortas’. De acordo com Charteris-Black (2004, p. 17),
metáforas convencionais estão “em algum ponto intermediário entre usos
literais e metafóricos – refletem um processo diacrônico pelo qual o uso
que era originalmente ‘metafórico’ se torna estabelecido como ‘literal’
dentro de um idioma”. Assim, são metáforas ‘automáticas’, que embora
possamos reconhecer como metáforas em um sentido amplo, acrescentam
pouco à análise representacional, por seu caráter automatizado de uso
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em colocações.6 Um segundo esclarecimento quanto ao mapeamento de
metáforas nesses 105 textos é que foram mapeadas apenas as metáforas
referentes à PSR ou às APP a ela dirigidas. Metáforas referentes a outros
temas no corpus não entraram, então, em nosso mapeamento. Essas duas
decisões visaram preservar nossa atenção no foco específico, favorecendo
a composição de um corpus de metáforas homogêneo e relevante aos
fins da pesquisa.
O primeiro passo para a utilização do pacote QDA escolhido
foi criar uma estrutura de nós (categorias) para codificação inicial dos
dados. Os nós analíticos iniciais foram de dois tipos: os nós temáticos
de preenchimento indutivo sequencial à leitura dos textos, e os nós
motivados pelas teorias de metáfora estudadas. Os nós analíticos
teoricamente motivados foram, na categoria de Metáfora, domínio
básico, esquema de imagem e metáfora complexa; na categoria Outros
tropos, metonímia, ofuscação/ eufemismo, personificação e símile; e,
na categoria Modificação, criação de novo sentido e modificação por
adjetivação.
Das categorias motivadas por teorias de metáfora, neste artigo
abordarei apenas as metáforas de esquema de imagem. Os esquemas de
imagem poderiam ser interpretados como tipo mais específico de metáfora
básica,7 em que a fonte de mapeamento para domínios abstratos deriva da
interação corporal cotidiana no mundo físico, gerando interpretações de
experiência baseadas em esquemas de contenção (entrada/ saída; dentro/
fora; centro/ periferia), esquemas de orientação (embaixo/ em cima; na
frente/ atrás) e esquemas de movimento (fonte, meta, caminho). Esses
foram os mapeamentos metafóricos mais relevantes no corpus.
Um exemplo de metáfora convencional retirado do corpus poderia ser o trecho “A
Prefeitura de Ribeirão Preto (313 km de São Paulo) fará um recenseamento do número
de moradores de rua do município, mas já admite a alta dessa população”. Embora
“alta dessa população” seja evidentemente uma metáfora orientacional, baseada em
esquema de imagem alto/baixo, seu caráter convencional limita sua relevância analítica.
7
Lembremos com Dancygier (2016, p. 37) que “[m]etáforas primárias são diretamente
enraizadas em nossa experiência básica e servem de base para metáforas mais
complexas, socialmente motivadas e culturalmente específicas”. Assim se distinguem as
metáforas de domínio básico e as metáforas complexas, tipologia em que as metáforas
de domínio básico dizem respeito à experiência básica concreta, com sensações ligadas
ao espaço, à matéria, à temperatura –, e essas experiências servem como input para
mapeamentos de experiências mais abstratas.
6
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O software utilizado não faz análises automáticas, sendo uma
ferramenta qualitativa. Assim, foi necessário proceder à leitura cuidadosa
de todos os 105 textos e a sua codificação foi feita manualmente. Nesse
processo, foram indutivamente levantados os nós temáticos, com o
objetivo de depois poder cruzar os temas representados por metáforas
e os tipos de metáforas discutidos nas teorias e mapeados no corpus.
Numa segunda etapa de leitura dos trechos codificados, as temáticas
foram refinadas e reduzidas às 10 consideradas nas análises, apontadas
no quadro a seguir:
QUADRO 1 – Nós temáticos indutivamente atribuídos, em sua visualização
na tela do software
Os temas mais representados por meio de mapeamentos
metafóricos, tanto por número de textos em que ocorriam quanto por
número de ocorrências, foram a chamada “cracolândia” e o consumo de
álcool e outras drogas (79 ocorrências de metáforas em 35 textos), os
serviços assistenciais governamentais ou comunitários (79 ocorrências em
33 textos), e os deslocamentos da PSR na cidade (65 ocorrências em 35
textos). Na próxima subseção, mostrarei um panorama representacional
dessa última temática, seguindo a ferramenta nuvem de palavra, baseada
na densidade lexical em recortes de dados, e complementarei com dados
da representação metafórica da permanência de PSR em espaços urbanos
(23 ocorrências de metáforas em 18 textos).
582
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3.2 Densidade lexical em recortes temáticos: deslocamentos e permanências
da Psr na cidade
As nuvens de palavras geradas a partir de codificações temáticas
são elucidativas das abordagens de temas em um corpus. Para a composição
das nuvens de palavra a seguir, foram consideradas as trinta palavras mais
frequentes nos recortes temáticos ‘deslocamentos da PSR na cidade” e, na
nuvem seguinte, “permanências da PSR na cidade”. O tamanho e disposição
mais central ou mais periférica de cada palavra na nuvem é indicativo de
sua densidade proporcional no recorte. Tendo sido consideradas apenas
palavras com no mínimo quatro letras, a palavra ‘rua’ não aparece, mas é
o padrão de colocação mais frequente com morador(es).
O princípio da apreciação da nuvem não é quantitativo – se
assim fosse, seria mais indicada uma simples contagem de ocorrências,
o que o pacote QDA utilizado também entrega facilmente. Uma nuvem
de palavras favorece visualização da densidade relativa de palavras
relevantes num conjunto de dados – a nuvem em si não produz análise,
pois as palavras estão isoladas; contudo, a partir da visualização na nuvem
e da ferramenta “Resumo”, também possibilitada a partir da pesquisa
de frequência de palavras no software, é possível acessar as colocações/
situações em que certas palavras ocorrem, e aí está o interesse analítico.
Vejamos a primeira nuvem:
FIGURA 1 – Nuvem das 30 palavras mais frequentes na temática
“Deslocamentos da PSR na cidade”
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A palavra mais frequente nesse recorte é ‘moradores’, que
aparece em colocação com “de rua” em todas as ocorrências. É seguida
por ‘prefeitura’, termo principalmente utilizado como Ator de processos
materiais – como em “Prefeitura faz operação para retirar moradores de
rua acampados no MASP”, “A Prefeitura de São Paulo realizou ontem
uma operação para a remoção de moradores de rua acampados na praça
da Sé”, “A Prefeitura do Rio de Janeiro, acompanhada pela Polícia Militar,
realizou na manhã desta sexta-feira uma ação de combate ao crack e de
retirada de moradores de rua na região de Madureira”, “Nesta semana, a
prefeitura e a Polícia Militar iniciaram ações para retirá-los das calçadas
do Brás” – e como Dizente em processos verbais – como em “governo do
Estado e a Prefeitura de SP discutem a ideia de enviar frequentadores da
cracolândia”, “A Prefeitura de Belo Horizonte esclarece que não existe
e jamais existiu de sua parte nenhuma orientação voltada para a prática
de remoção compulsória”, “A prefeitura reagiu com nota lacônica ao
surgimento da ‘favelinha’”, “Prefeitura promete tirar moradores de rua
acampados no MASP” (destaques acrescentados).
No primeiro caso, o dos processos materiais, o padrão é bastante
estável, com ‘fazer/ realizar/ iniciar’ + ‘ações/ operações’ + ‘em um
território definido’. O caso dos verbos de dizer é mais diverso, incluindo
atos de justificativa, explicação e promessa – em todos eles, contudo, é
possível depreender um sentido de resposta à sociedade a respeito de ações
questionadas ou exigidas pela sociedade, sendo, portanto, atos de resposta
a que a FSP cede espaço. Os casos apresentam metáforas recorrentes de
‘retirada’ e ‘remoção’, que compreendem uma possível ‘solução’ para a
questão da situação de rua baseada na noção de espacialidade dentro/fora:
a PSR estando ‘dentro’ de um espaço que se configura como problema,
deve ser posta ‘fora’, retirada, removida deste espaço.
A alta densidade de ‘foram’ nesse recorte temático lembra a
análise da representação de APP em textos publicados em O Globo,
também parte do projeto que origina este artigo (RESENDE, 2018). Aqui,
como lá, trata-se de um padrão de colocação em que pessoas em situação
de rua são representadas como alvo de ações realizadas por outros atores:
na representação da FSP, sofrem a ação de serem recolhidas, tiradas,
encaminhadas, retiradas e até removidas e devolvidas, em expressões
que não apenas as representam de forma passiva, mas também as
desumanizam, ao utilizar em sua referência léxico reservado a objetos
(como ‘devolver’).
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O foco no espaço nesta nuvem também se realiza nos termos
‘cidades’ (por exemplo, “devolver andarilhos às suas cidades de origem”),
‘região’ (quase exclusivamente “região central”), ‘local’ (por exemplo,
“em local bem longe da vista”), ‘centro’ (mormente centro de São Paulo
e centro da capital), ‘cracolândia’ (“não resolve a questão da cracolândia.
Ela vai para outro submundo”, “nova esperança para que a cracolândia
não seja removida só geograficamente”, “circular a qualquer momento
na cracolândia”, “polícia expulsou os viciados da cracolândia e eles
passaram a perambular”) e ‘retirada’ (“de comunidades carentes”, “de
moradores de rua”, “compulsória de pessoas que vivem nas ruas”, “de
mendigos das ruas”).
As representações de deslocamentos da PSR na cidade são
representações de um movimento forçado, vigiado, operado por outros
atores, associado centralmente às ações do executivo municipal. Quanto
a sua permanência em um local, vejamos a nuvem das 30 palavras de
quatro ou mais letras com maior densidade nessa temática:
FIGURA 2 – Nuvem das 30 palavras mais frequentes na temática
“Permanências da PSR na cidade”
Aqui também a palavra mais frequente é “moradores”, que na
maior parte de suas ocorrências está em colocação com “de rua”, havendo
apenas três exceções: dois casos (em um mesmo texto) em que o item
“moradores” sem complemento serve de referência a pessoas em situação
de rua (“intensificar as ações das rondas e abordagens sociais nos pontos
de maior concentração de moradores para tentar diminuir o número de
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pessoas nessa situação” e “A limpeza dos pontos de concentração de
moradores é outra estratégia para tentar dispersar esse público”) e um
caso de referência a moradores locais (“moradores relatam que com a
chegada da tenda a sensação de insegurança aumentou”). No primeiro
caso, é de notar que as duas instâncias em que “moradores” se separa de
“de rua” na referência à PSR a colocação seja com “concentração de”, o
que deixa uma pista de leitura capaz de mitigar a possível ambiguidade.
Concentração, nesse recorte temático, é a segunda palavra
em densidade. É a metáfora mais produtiva no corpus para referir a
permanência da PSR em um local. Todas as ocorrências da palavra
seguem o mesmo padrão: ‘concentração de’ + ‘item nominal de referência
à PSR’, como em “local de concentração de pessoas que se drogam”,
“Concentração de morador de rua ‘assusta’”, “grande concentração de
usuários de crack”, “pontos de maior concentração de moradores”, “um
dos pontos de concentração de moradores de rua”, “A concentração de
pessoas em situação de rua” e “A limpeza dos pontos de concentração de
moradores é outra estratégia para tentar dispersar esse público”. Neste
último caso, a metáfora química de concentração guarda coerência com
a de dispersão. É recorrente a presença do foco espacial com “ponto
de concentração” ou “local de concentração”, o que pode sustentar a
interpretação de que a situação de rua seja percebida como problemática
em relação a certos espaços específicos, não como questão social.
Outra metáfora produtiva, esta de ordem biológica (e animalizante),
é a de atração. Nos casos em que ocorre a palavra “atrair”, observase a colocação com “moradores de rua”, “mendigos” ou “pessoas
indesejáveis”. Quando a ação de atrair tem como origem a prefeitura,
refere-se a serviço disponibilizado, como em “tentar atrair os moradores
de rua para albergues da prefeitura, desocupando assim praças e ruas” – e
é notável que essa ‘atração’ tenha por objetivo justificado a desocupação
de praças, e de novo o foco é espacial, não social. Mas quando a ‘atração’
referida tem polo negativo, trata-se de referir ações de impedimento que
são sempre expressas em articulações intertextuais da voz de moradores
e trabalhadores locais, como em “Para o jornaleiro Fabio Filgueira, 28,
que trabalha próximo à estação Carandiru, a rua fica mais bonita com o
gradil e as plantas que foram colocadas ali. ‘Eu mesmo não reformo o
toldo da minha banca para não atrair mendigos à noite.’” ou em “Acho
louvável a atitude da igreja em ajudar os pobres, e a gente colabora
sempre que possível, mas aqui ao lado vai atrair pessoas indesejáveis”
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(sobre as avaliações presentes em articulações intertextuais de vozes de
moradores e trabalhadores locais, ver análises em Resende e Ramalho,
2017, e em Resende e Mendonça, no prelo).
Se juntarmos a isso as ocorrências de “cracolândia”, “usuários”
e “crack” nesse mesmo nó temático – também palavras de nossa nuvem
–, observamos sentidos de expulsão (como em “Desde que a polícia
expulsou os viciados da cracolândia e eles passaram a perambular”),
também expressos pela metáfora da migração (“há uma grande
concentração de usuários de crack no local que migraram da cracolândia,
também na região central”). Metáforas desumanizantes nesses casos são
por exemplo as de ‘espalhar’ (“Moradores de rua e usuários de crack se
espalharam pelo centro desde o início do ano”) e seu contrário ‘agrupar’
(“Era lá que centenas de usuários se agrupavam para consumir a droga”),
que interpretam a PSR como objetos.
Assim, as metáforas produtivas na temática de permanências da
PSR são de fato formas de argumentar em favor de seu deslocamento
forçado ou de sua inadmissibilidade em certos espaços urbanos.
3.3 Metáforas conceituais e chaves conceituais
Realizado todo o mapeamento de expressões metafóricas no
corpus de 105 textos da FSP tematizando APP dirigidas à PSR, o passo
subsequente foi sua organização em metáforas conceituais. Segui a
conceituação de Charteris-Black (2004), que considera metáforas
conceituais como afirmações que resolvem a tensão semântica de um
conjunto de metáforas, estas últimas sendo as expressões linguísticas
que têm existência real em textos. Desse modo, as metáforas conceituais
não coincidem com as metáforas mapeadas, pois são instrumentos
epistemológicos para sua ordenação e análise.
Nos 105 textos do corpus, consideradas todas as temáticas
delimitadas, foram mapeadas 431 expressões metafóricas, ordenadas
em 48 metáforas conceituais, a saber:
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
QUADRO 2 – As 48 metáforas conceituais no corpus organizadas
por domínio metaforizado
A CIDADE É
SER VIVO
ÁLCOOL OU DROGA É
ESPAÇO
AÇÃO OU POLÍTICA PÚBLICA É
BASE DE APOIO
CAMINHO
ENGRENAGEM
OÁSIS NO DESERTO
SEDUÇÃO OU ATRAÇÃO
SER VIVO
VITRINE OU MAQUIAGEM
APP OU SITUAÇÃO DE RUA É
GUERRA OU DESAFIO
CRACK É
EPIDEMIA
CRACOLÂNDIA É
CIRCULAÇÃO
CONCENTRAÇÃO
ESCURIDÃO
ESPETÁCULO OU JOGO
FENÔMENO
OBJETO
SER VIVO
SOM
SUBMUNDO
TERRITÓRIO
MÁQUINA
FECHAR CENTRO SOCIAL É
DAR AS COSTAS OU CRUZAR BRAÇOS
GENTRIFICAÇÃO É
REVITALIZAR
O OLHAR DO OUTRO É
AMEAÇA
O SOCIAL É
UM LUGAR DE ONDE SE PODE ENTRAR E SAIR
PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA É
DONO DA RUA
GASTO
OBJETO
PERIGO
PROBLEMA
PSR OU SITUAÇÃO DE RUA É
INVISÍVEL
SUJEIRA
PSR OU USUÁRIO DE CRACK É
ANIMAL
587
588
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SITUAÇÃO DE RUA É
ABANDONO SOCIAL
CONCENTRAÇÃO
DEGRADAÇÃO
DOENÇA
ESCONDERIJO
ESPAÇO
ESTAR SEM RUMO OU PERDIDO
HOSPEDARIA, MORADIA, ALUGUEL
INVASÃO HUMANA
JAULA OU CORRENTE
LIBERDADE
MARCA
USUÁRIO DE CRACK É
OBJETO
INIMIGO A SER COMBATIDO
Para chegar a essas metáforas conceituais, o que fiz foi abrir uma
por uma as 431 expressões metafóricas e, relendo-as, agrupei-as de acordo
com as metáforas conceituais que resumiam as tensões semânticas que
provocavam, conforme os domínios mapeados em cada caso.
No caso do nó de interseção ‘deslocamentos + permanências
da PSR na cidade’ x ‘esquema de imagem’, e lembrando que para um
mesmo texto diversas expressões metafóricas e metáforas conceituais
podem ter sido mapeadas, o cruzamento dos casos da interseção com os
levantamentos de metáforas conceituais mostra que, nesse conjunto de
dados, as metáforas conceituais mais recorrentes, considerando apenas
as interseções com valores iguais ou superiores a cinco, são:
TABELA 1 – Consulta em matriz de codificação: células de interseção
mais produtivas (>5) em Metáforas conceituais x
(Deslocamentos + Permanências x Esquema de Imagem)
Interseção: Deslocamentos +
Permanências / Esquema de Imagem
“CRACOLÂNDIA” É CONCENTRAÇÃO
8
POLÍTICA PÚBLICA É CAMINHO
12
POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA É OBJETO
37
SITUAÇÃO DE RUA É CONCENTRAÇÃO
5
SITUAÇÃO DE RUA É ESPAÇO
6
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589
Quando se trata dos deslocamentos e permanências da PSR na
cidade, o tipo preferencial de metáfora, como vimos, é o esquema de
imagem, e a representação de APP voltadas para a PSR nesse corpus
da FSP tende a uma representação em que a população em situação
de rua é objeto sobretudo de políticas de encaminhamento. Seus
movimentos representados são mais que nada movimentos forçados,
que se repetem e se justificam exaustivamente na FSP, também pelo
recurso da representação de suas permanências com avaliação negativa.
Se considerarmos os resultados de metáforas conceituais nesse nó de
interseção, temos algumas justificativas que nesses textos se expressam
para ações repressivas, tomadas em termos de territorialidades.
Na proposta metodológica de Charteris-Black (2004), de que me
aproprio aqui conforme a necessidade apontada nos dados que analiso,
chaves conceituais ajudam a explicar conjuntos de metáforas conceituais
em relação a discursos particulares, o que, segundo ele, permite avaliar
a coerência desses discursos e favorece a compreensão de seu papel
ideológico. Cameron e Stelma (2004, p. 115) sustentam que cada
discurso inclui grupos (clusters) de metáforas, e que esses agrupamentos
metafóricos “assumem um papel importante no desdobramento
discursivo”.
É possível agrupar em seis chaves as 48 metáforas conceituais
levantadas a partir das 431 expressões metafóricas mapeadas nos
105 textos do corpus, e dessas seis chaves, cinco retornam na matriz
com a interseção ‘deslocamentos + permanências da PSR na cidade’
x ‘esquema de imagem’,8 sendo bastante mais produtivas as chaves
física e territorial:
A chave conceitual ausente nesse corte temático é a chave sensorial. Esta chave é
bastante concentrada na temática da chamada ‘cracolândia’, o que permite sugerir
que é o aspecto drogadição ligado à PSR que se representa como algo a ser percebido
sensorialmente. Isso será discutido em outro artigo.
8
590
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
TABELA 2 – Consulta em matriz de codificação: células de interseção em
Chaves conceituais x (Deslocamentos + Permanências x Esquema de Imagem)
Interseção: Deslocamentos +
Permanências / Esquema de Imagem
CHAVE BIOLÓGICA
7
CHAVE CONFLITO
6
CHAVE FÍSICA
40
CHAVE INCÔMODO
5
CHAVE TERRITORIAL
36
Mesmo considerado o corpus total de 105 textos e suas 431
expressões metafóricas nas 10 temáticas, a chave física está bastante
concentrada na temática de deslocamentos da PSR na cidade, e a chave
territorial é a mais relevante no corpus, sendo recorrente nas 10 temáticas.
Esse espraiamento permite concluir que a questão territorial é um aspecto
central à representação metafórica de APP dirigidas à PSR na FSP. As
temáticas de território ligam-se às de conflito, como nas metáforas que
interpretam a situação de rua como invasão humana e como esconderijo.
O principal efeito dessa chave é interpretar a situação de rua como uma
questão territorial: trata-se do espaço que ocupa, trata-se de ‘apropriação
do espaço público’, e é isso o que se representa como questão. Nessa
chave interpretativa, as APP dirigidas à PSR são uma questão de
encaminhamento – a pessoa estando “sem rumo”, “enjaulada” em seu
problema interpretado como individual, deverá ser ‘encaminhada’. A
chave física complementa esse sentido, pois quando se associa a discurso
desumanizante da PSR, a reifica e não a reconhece como sujeito de
direitos, e daí seu deslocamento forçado pode ser naturalizado.9
Quanto às outras três chaves conceituais identificadas nesse recorte temático, a chave
biológica pode ser associada a discurso de defesa da (saúde da) cidade (entendida como
ser vivo) de uma ameaça representada como sendo a situação de rua e a drogadição a ela
associada (epidemia, doença) – portanto, a discurso de risco (epidemiológico, na lógica
metafórica); a chave conflito, sendo de natureza bélica, reforça a interpretação da defesa
da cidade; a chave incômodo, ligada a discursos higienistas, reifica a situação de rua.
9
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591
Já sabemos que as atitudes sociais a respeito de grupos
minorizados influenciam as escolhas semânticas e lexicais apropriadas
em sua representação discursiva (VAN DIJK, 2005), e esta por sua vez
retorna a influência sobre as atitudes sociais (FAIRCLOUGH, 2001).
Nosso corpus de metáforas reproduzidas nos textos da FSP confirma
uma representação objetificante da PSR, representada em papel passivo
como alvo de APP de encaminhamento, que restringem ou forçam seus
movimentos e permanências na cidade, exceto quando são agentes de
ações interpretadas como inconvenientes ou ameaçadoras, quando sua
responsabilidade individual é enfatizada em termos de incômodo ou risco.
Considerações finais
Charteris-Black (2004, p. 10) reforça que para entender por
que uma metáfora é preferida a outra, precisamos necessariamente
considerar os contextos específicos em que são produzidas e os propósitos
comunicativos que podem a elas ser associados, pois “as metáforas não
são uma exigência do sistema semântico, mas são questões de escolha
da/o falante”. Assim, para compreender as escolhas da FSP ao representar
a PSR e as APP a ela dirigidas, quando se trata de seus deslocamentos e
permanências, precisamos atentar para escopos editoriais e interesses a
que essa empresa de mídia se conecta. Olhar para textos que representam
interesses do mercado imobiliário, por exemplo, pode ajudar.
Na FSP, em textos relacionados a APP dirigidas à PSR, lê-se algo
como “O Nova Luz é para a cidade recuperar área degradada, repleta
de equipamentos fundamentais, com baixa densidade e localização
privilegiada. É a primeira grande revitalização na cidade”. Ao atribuir
“baixa densidade” à região, ignora-se toda uma população, que é orientada
a “procurar outro lugar, porque a área está sendo revitalizada”. A isso
se somam os sentidos da situação de rua como usurpação voluntária do
espaço público (“manter o espaço público livre de usurpadores”). Ocultase a natureza social perversa da questão, quando se decide responsabilizar
apenas o indivíduo, como se a situação de rua (sempre) fosse mesmo
algo que se escolhesse diante de um cardápio de outras possibilidades.
Sobre isso, Ávilla e Molina (2017, p. 61) sustentam que “a naturalização
da situação de rua é parte de uma estratégia das políticas neoliberais,
dado que permite legitimar a exclusão e justificar medidas políticas
592
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
assistencialistas ou expulsivas que não levam em conta as determinações
estruturais e históricas”.
Esses sentidos servem para justificar APP desumanizantes, que
possam, o mais rápido possível e ao menor custo, liberar uma área para
exploração comercial, o que se chama comedidamente “revitalização”.
Isso se realiza mediante a ‘internação’ de pessoas em locais inadequados
para o tratamento de seus problemas de saúde, ou sua simples expulsão
para outros territórios comercialmente menos relevantes. Pouco se
questiona a qualidade dos abrigos ofertados, mas repetidas vezes se
questiona a decisão das pessoas de não usarem os albergues. Por isso,
concordo com Charteris-Black (2004, p. 247) quando reforça o caráter
ideológico das escolhas metafóricas em muitos casos, chamando atenção
para sua natureza pragmática, já que “[a]s mesmas noções poderiam ter
sido comunicadas utilizando-se metáforas diferentes, que carregassem
ideologias diferentes, e as mesmas metáforas também podem ser
empregadas de diferentes maneiras, de acordo com a perspectiva adotada”.
Entendendo que o uso dessas metáforas tem força persuasiva
não transparente – uma “função persuasiva subjacente”, nos termos de
Charteris-Black (2004, p. 9), vinculada à opacidade do discurso, nos
termos de Fairclough (2010) –, sua relevância ao propor ao debate certas
chaves interpretativas não deve ser minimizada. E isso ainda se soma à
vantagem de as coisas não serem ditas abertamente, reduzindo o risco
de se expressarem explicitamente sentidos como os decorrentes das
metáforas conceituais que mapeamos. Além de atribuir à PSR sentidos tão
crus como o de ser animalizada ou considerada coisa, inimigo, doença,
as metáforas, escolhidas nesse contínuo movimento de reforço de um
texto depois do outro, também ocultam outros sentidos – como o de ser
humano, o de ter direitos, o de ser cidadão pleno. Ocultar esses sentidos é
também o que permite defender as APP repressivas e violentas, noticiadas
de forma naturalizada um dia depois do outro.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020
593
agradecimentos
Agradeço ao CNPq (PQ 304075/2014-0, PQ 301809/2017-8 e Universal
408220/2018-0) e à CAPES (PVEX 88881.172032/2018-01) o apoio
aos projetos relacionados. Também à Universidad Pompeu Fabra por
acolher o projeto “Representação de políticas públicas para população
em situação de rua como gestão do território: metáforas espaciais na
Folha de S. Paulo” em estágio pós-doutoral, e muito especialmente ao
Dr. Teun A. van Dijk por sua supervisão. Registro meu agradecimento às
colegas e alunas da Universidade de Brasília, sobretudo às pesquisadoras
que se vincularam (Dara Abreu, Lygia Vaz) e que se vinculam (Carolina
Araújo, Daniele Mendonça, Ingrid Ramalho, Larissa Silva e Gabriella
Rodrigues) ao grupo de pesquisa em torno desses projetos.
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os enquadres discursivos do acontecimento migratório:
narrativização, banalização e estigmatização
The discursive frameworks of the migratory event:
narrativization, trivialization and stigmatization
Wander Emediato
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horionte / Minas Gerais / Brasil
wemediato@hotmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1480-7019
resumo: Buscou-se abordar o tema da imigração sob a perspectiva de sua historicidade
(do acontecimento migratório) e da dinâmica dos estudos discursivos na França e no
Brasil com o objetivo de observarmos como o contexto histórico do acontecimento
migratório influencia o tratamento da questão e aponta para a banalização da imigração
e a estigmatização dos imigrantes. No Brasil, ainda que a imigração constitua um forte
componente histórico da formação da sociedade brasileira, os estudos sobre a imigração
como um “problema” e associada a uma “crise” – como foi o caso na França – são
recentes e estão relacionados com acontecimentos pontuais, como o fluxo migratório do
Haiti, da Venezuela, da Bolívia e da Síria. O imaginário social de imigração no Brasil,
até então, estava relacionado a uma narrativa histórica e romantizada da experiência
vivida e discursiva dos imigrantes europeus que vieram ao Brasil entre os séculos XIX
e XX. Atualmente, uma nova narrativa se delineia, motivada pelo imaginário da crise e
do problema migratório, do invasor perigoso e miserável que ameaçaria a estabilidade
do “nacional”. As formas de tratamento midiático da questão têm o potencial de pautar
o debate político e social sobre a imigração, silenciando ou tirando o relevo de outras
perspectivas possíveis de se tratar e ver o assunto. Elas “fazem ver” de uma certa
maneira o acontecimento histórico ao enquadrá-lo em suas esquematizações discursivas
estigmatizantes do imigrante.
Palavras-chave: discurso; imigração; banalização; estimagmatização.
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.597-618
598
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
abstract: We sought to address the issue of immigration from the perspective of its
historicity (of the migratory event) and the dynamics of discursive studies in France
and Brazil in order to observe how the historical, political and social context of the
migratory event influence the treatment of immigration and the stigmatization of
immigrants. In Brazil, although immigration is a strong historical component of the
formation of Brazilian society, studies of immigration as a “problem” and associated
with a “crisis” – as was the case in France – are recent and are related to events such as
the flow of migrants from Haiti, Venezuela, Bolivia and Syria. The social imaginary of
immigration in Brazil until then was related to a historical and romanticized narrative
of the lived and discursive experience of European immigrants who came to Brazil
between the nineteenth and twentieth centuries. Nowadays, a new narrative is outlined,
motivated by the imaginary of the crisis and the migratory problem, of the dangerous
and miserable invader that would threaten the stability of the “national”. The media’s
ways of dealing with the issue have the potential to guide the political and social
debate about immigration, silencing other possible perspectives of addressing the
issue. They “see” the historical event in a certain way by framing it in its stigmatizing
schematizations of the immigrant.
Keywords: discourse ; imigration ; trivialization ; stigmatization.
Recebido em 19 de julho de 2019
Aceito em 01 de outubro de 2019
Introdução
A imigração no Brasil é um tema antigo que mobiliza memórias
sobre a própria constituição do povo brasileiro. Situada em diferentes
épocas e com origem diversa, o tema da imigração, ao mesmo tempo que
constitui um problema (político, identitário, midiático, etc.) sempre foi
também motivo de celebração e de construção de produtos e referências
culturais: telenovelas, filmes e documentários diversos já foram
realizados sobre o tema da imigração no Brasil. Não é incomum encontrar
sobre esse tema expressões como “O Brasil é um país de imigrantes”,
“a miscigenação cultural brasileira” (esta expressão pode incluir tanto
os imigrantes como a mistura de etnias constitutivas do povo brasileiro,
como a indígena e a africana), “terra de acolhimento”, etc.
Diferentes povos imigraram para o Brasil ao longo de sua história,
deixando marcas em sua cultura, demografia e economia. A imigração
de origem européia se deu principalmente entre os séculos XIX e XX:
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a italiana a partir de 1880, a japonesa no início do século XX, a alemã
nos séculos XIX e XX, poloneses e ucranianos entre 1869 e 1920, a
espanhola também no final do século XIX, a árabe, principalmente
libanesa e síria, por volta de 1880. A maior parte desses imigrantes foi
destinada às regiões sudeste e sul do Brasil para atividades ligadas à
lavoura, como as plantações de café no estado de São Paulo. Outros
tiveram como destino centros urbanos, em particular São Paulo e Rio de
Janeiro. Estima-se que entre 1884 e 1959 entraram, no Brasil, cerca de
cinco milhões de imigrantes. A imigração européia é a mais lembrada,
idealizada e romantizada. Os chamados povos originários, indígenas,
também teriam vindo de fora, provavelmente da Ásia, através do estreito
de Bering, ainda na Idade do Gelo. À época do descobrimento do país por
Portugal entre 1,8 milhão a 6 milhões de indígenas viviam no território. A
partir de 1500 até 1822, data do fim do Brasil colônia, cerca de 700 mil
portugueses se deslocaram para o Brasil. No mesmo período, em função
do tráfico negreiro, cerca de 5 milhões de africanos foram trazidos ao
Brasil na condição de escravos.
Na década de 1960, o Brasil deixou de ser um grande receptor de
imigrantes, passando a ser um país expulsor de trabalhadores, a partir da
década de 1980, sobretudo para os Estados Unidos, o Paraguai, a Europa
e o Japão. Essa tendência manteve-se constante até recentemente, uma
vez que vem sendo observado o crescimento da imigração para o Brasil,
em particular de países como Portugal, Bolívia e Haiti.
Atualmente, a diáspora, a migração de pessoas fugindo de
guerras, perseguições políticas, catástrofes naturais, pobreza e problemas
econômicos mobilizam novos pontos de vista sobre o tema da imigração
e da migração de pessoas, constituindo as bases de uma polêmica global
sobre o assunto. No cenário brasileiro, em decorrência dos fenômenos
migratórios globais, especialmente na europa ocidental, e no próprio
Brasil, em razão da catástrofe natural (e também econômica e política)
do Haiti, o tema foi bastante amplificado, justificando diferentes tipos
de pesquisas em ciências humanas e sociais, e também em análise do
discurso. O termo “refugiados” ganha o espaço institucional e midiático,
torna-se também um problema de estado, com dispositivos jurídicos
sendo criados para tratar o assunto e os indivíduos situados no interior
dessa designação.
600
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1. Estudos sobre imigração e linguagem
Em comparação com outros países, notadamente europeus,
como a França, a Inglaterra, Itália e Alemanha, os estudos sociológicos e
discursivos sobre o “problema da imigração” no Brasil são bem recentes.
No âmbito da análise do discurso, só passaram a ganhar relevância
e visibilidade nos últimos anos, especialmente em razão do fluxo de
refugiados do Haiti, das questões de fronteira com a Venezuela e do
debate global sobre a guerra na Síria. A questão Síria fez surgir sobretudo
um olhar pra fora, ou seja, uma reflexão exofórica sobre o modo como
países europeus tratam o problema. Isso foi reflexo do próprio tratamento
midiático, pois a grande mídia brasileira, sobretudo televisual, tratou o
assunto “refugiados” relatando – e julgando – o modo (negativo) como
os europeus trataram o assunto numa dinâmica do imaginário dos direitos
humanos.
Aos olhos dos estudos discursivos franceses, um dossiê temático
de periódico sobre o tema da imigração, como é o caso desta publicação,
poderia até parecer anacrônico. O apogeu desses estudos na França se
deu nos anos 1990. Bem datados, os estudos franceses se multiplicaram
em razão dos acontecimentos que mobilizaram a população de origem
árabe e negra nas periferias de Paris e em outros centros urbanos
franceses (Vaux-en-Vélin, Minguettes, Mantes-la-Jolie, Saint-Denis,
Barbès, etc.). O assunto estava então no centro da atualidade, com o
foco sobre a identidade dos imigrantes, a integração – difícil – de jovens
pertencentes à segunda geração, ou seja, nascidos ou crescidos na França,
a discriminação racial e espacial (as periferias e les quartiers chauds ou
difficiles). A designação dessas comunidades e desses espaços diz muito
sobre a conjuntura histórica: naquela época, o foco era sobre a imigração.
Atualmente, não são tanto mais os imigrantes, mas os refugiados, que
alimentam o debate.
2. Estudos discursivos sobre a imigração na França.
Merecerão destaque aqui o dossiê publicado pela revista MScope:
Images de l´immigration dans les médias, de 1993, e a tese de Simone
Bonnafous, de 1990, L´immigration prise aux mots. Essas publicações
constituirão uma referência sobre o tratamento do tema, pois reúnem os
principais elementos constituintes do “problema” da imigração.
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O discurso sobre os imigrantes e a imigração de 1974 a 1984
foi o centro do estudo desenvolvido por Simone Bonnafous em sua tese
defendida em 1990 (BONNAFOUS, 1991). Para ela, o debate sobre o
assunto se tornou a peça central da decisão política e do debate sobre a
imigração na França. Seu estudo tomou como base de análise um conjunto
de textos jornalísticos dos jornais franceses « políticos » – Militant,
Le National (futuro National Hebdo), Minute, Le Quotidien de Paris,
Le Figaro, Le Nouvel Observateur, L’Unité, Libération, L’Humanité,
Dimanche et Lutte Ouvrière. Servindo-se de estudos quantitativos do
vocabulário na linha da lexicometria da Ecole Normale Supérieur de
Fontenay-Saint-Cloud, Bonnafous investigou o sentido das formas
discursivas variantes e invariantes agenciadas no discurso da imprensa
sobre o tema. Ela se apoiou sobre o método de análise das especificidades,
descrevendo sistematicamente a repartição de formas lexicais simples
e de segmentos repetidos para, em seguida, colocar em evidência os
elementos da designação pronominal e nominal e a evolução histórica dos
vocabulários ao longo de 10 anos. Para a pesquisadora, especialmente a
partir de 1980, verifica-se uma banalização do discurso sobre a imigração
na imprensa política e uma homogeneização do discurso midiático
sobre o tema, fazendo surgir laços discursivos entre crise e xenofobia
e uma dialética entre o “eles” e o “nós”. A tese aborda as modalidades
do estabelecimento de um “consenso progressivo das formas” que
opera na base de uma caracterização dos referentes e das formas de
designação, construindo, aos poucos, a banalização progressiva das
teses extremas, sobretudo da extrema direita, se servindo da fragilidade
e inconsistência do discurso dos partidos tradicionais. Desse modo,
o discurso das correntes políticas majoritárias, da esquerda à direita
republicanas, é marcado pela banalização referencial. O imigrante passa a
ser designado e descrito como uma comunidade de classe e como origem
de testemunhos que reforçam teorias (sociais, políticas, identitárias)
desenvolvidas pela imprensa. O ser imigrante é construído como uma
classe exterior em relação a uma comunidade nacional ou racial e passa de
uma categorização como trabalhador ao delinquente, evoluindo para um
sentido de coabitação difícil – ou mesmo impossível – com os nacionais
franceses. Surgem os termos e perspectivas em torno da “assimilação”
e da “integração”. Bonnafous demonstra que, de 1974 a 1984, se passa
de um discurso “social” sobre os imigrantes a um discurso de “crise”,
de constrangimento cotidiano e de “culpabilidade das culturas”. A
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autora ressalta ainda a relativa vitória da extrema direita sobre o tema da
imigração e o fracasso dos jornais de esquerda que, a partir de 1980-1983,
retomaram a problemática e o terreno impostos pela extrema direita que
passou a pautar o assunto na França. Bonnafous mostra, em se tratando
do tema da imigração na França, como o discurso fabrica o imaginário.
Sua tese constitui uma obra incontornável sobre o tema da imigração na
análise do discurso.
Um dossiê (LAMBERT, 1993) dedicado ao tema da imigração,
publicado pela revista francesa MScope, em 1993, merece também
destaque pela variedade de perspectivas tratando o mesmo objeto e
por mostrar como a imigração constituiu um verdadeiro problema de
sociedade na França nesse período, ao ponto de fundar um imaginário
social sobre o tema. O dossiê mostra também como o tema atraiu o
interesse de analistas do discurso e outros pesquisadores das ciências
humanas. Embora os artigos da revista, em sua totalidade, possuam
relevância e grande interesse, irei destacar apenas alguns, salientando
aspectos que me parecem essenciais à discussão.
O artigo assinado por Frédéric Lambert, o organizador do
dossiê temático para a revista MScope, mostra como as “images reçues”
respondem visualmente às “idées reçues”. O estudo focaliza a circulação
de imagens sobre os imigrantes e os estereótipos que se deixam notar: o
imigrante seria um adolescente negro ou árabe, amante de rap e pixador,
com suas imagens associadas ao desemprego, à violência, à periferia e
aos bairros violentos. Já a imagem do bom imigrante é de um trabalhador
negro ou magrebino, com roupa de operário em um canteiro de obras,
servente em um hospital, lixeiro correndo atrás de um caminhão de lixo
ou limpando as ruas de Paris. Por detrás da função social que ele ocupa,
ele se torna inofensivo, ele está no lugar onde a sociedade que o acolhe
deseja que ele esteja. Seriam esses os uniformes do bom imigrante. Em
outros espaços, como nos anúncios publicitários, o imigrante é uma
criança Benetton,1 um jovem amarelo, um negrinho, um arabezinho,
emprestando seus rostos a um pequeno branco, discurso publicitário que
se pretende universal, fraternal, multicultural. Para Lambert, o imigrante
A campanha publicitária construída pela agência de Oliviero Toscani nos anos
1990 para a marca Benetton inovou no tratamento de questões polêmicas de ordem
humanitária e política, investindo em imagens e temáticas delicadas como o racismo,
a miséria, a guerra, a exploração da criança, entre outros temas sensíveis.
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em imagens é uma representação social que não tem nada a ver com a
realidade, assim como o ocidente é um espaço mental que nada tem a
ver com a geografia. Pensando nos diferentes suportes visuais da cultura
de massa em que circulam as imagens de imigrantes – a publicidade, o
cinema, a televisão, os canais de informação – a questão que Lambert
coloca é a de saber quem modela nossos modelos. Questão crucial
para quem pretende compreender os imaginários que fundam nossas
representações sobre imigrantes, imigração e os excluídos em geral.
Tahar Ben Jelloun (1993) segue essa linha de questionamento
abrindo uma problematização: os imigrantes são fotogênicos? A imagem
do imigrante, especialmente em contextos em que eles se tornam o
centro de um debate político e de uma “crise”, significa um incômodo,
já que eles aparecem nas páginas de jornais em situações de tristeza
ou de penúria. Para Jelloun, o drama cola de maneira irreversível à sua
existência, embora sejam pessoas comuns, cuja origem lhes cola na
pele. O imigrante, nesses contextos, se tornou sinônimo de problema.
Ainda que a realidade seja plural e não se submeta à homogeneização
da mídia e dos discursos públicos, o autor ressalta a dificuldade para o
imigrante de ter um “direito de resposta” e mostrar outras faces e outras
perspectivas que não a da vítima ou do agressor, ou do trabalhador, não
tendo nenhum recurso para retificar ou mudar as suas imagens.
Ahmed Boubeker (1993), sociólogo da universidade de Lyon II,
percorre no dossiê uma história das representações públicas da imigração
na França nos anos 1980 e 1990, se interrogando sobre as relações que
os profissionais da imprensa mantêm com o tema, concluindo que,
de maneira geral, as mídias possuem um papel de regulação que eles
próprios subestimam. Para o autor, a imigração permanece à margem
da sociedade francesa e os pressupostos evidenciados nas cenas da
informação contribuem para ampliar essa distância. Um silêncio sobre a
presença irreversível das populações estrangeiras na sociedade francesa
amplia a base cênica das representações públicas no terreno das explosões
de periferia, do islamismo, da polícia, do “problema da imigração”, do
racismo, e das manifestações pela igualdade. Tal cenário é amplificado
sobretudo a partir da guerra israel-árabe de 1973 (Guerra do Kippour),
e do choque de petróleo, mas, no caso francês, possui ainda contextos
anteriores, como o da guerra da Argélia, entre 1952 e 1962, que culminou
com a independência argelina e produziu uma divisão extrema na
sociedade francesa entre nacionais franceses e pessoas de origem árabe.
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Jean-Barthélemi Debost (1993), ao analisar os estereótipos
publicitários sobre a imagem do negro, ressalta que as representações
mais atuais sobre o negro são relativamente recentes e surgem após
os anos 1960, quando não comportavam as mesmas noções. Embora
já houvesse a presença de africanos, ela não interferia no conjunto da
sociedade francesa, reduzida a noções associadas ao cosmopolitismo
ou ao apátrida. Após a guerra de independência da Argélia, o contexto
irá se transformar orientando-se para representações mais negativas
e extremistas. A chegada mais massiva de africanos na França em
decorrência de fatos geográficos e políticos (seca, crise petrolífica,
guerras, etc.) irá contribuir para essa transformação. Um movimento de
resistência aos discursos extremistas de rejeição ao negro e ao imigrante
se faz notar, com o surgimento de associações como o SOS Racismo e a
criação na França, em 1991, de uma Secretaria de Estado da Integração,
o que contribui para a proliferação de imagens sobre o tema da imigração
e de uma França multicultural. Se antes de 1991 a representação do
negro na publicidade era ínfima, como mostra o autor, ela se tornará
mais dinâmica a partir daí. Do fim do século XIX até os anos 1960, as
imagens publicitárias de negros focalizavam basicamente o “servidor”, o
personagem trabalhador: serventes, carregadores, motoristas, operários da
construção civil, expressando uma situação de desejo entre o comprador
(o cliente) e um personagem inferior. A partir dos anos 1960 a situação
irá se transformar e a representação publicitária do trabalhador negro
irá declinar significativamente, provocando uma raridade de imagens
de trabalhadores servidores, apesar da realidade material atestar essas
situações. Um silêncio se mostra evidente em relação à representação do
negro nessas situações, e uma outra começa a surgir: o negro (o Black)
passa a figurar na publicidade de roupa e de moda, explora-se mais o seu
corpo e sua estética, sua sensualidade (Black is beautiful), os modelos
negros aparecem com seus atributos, sua cultura FM e Hip Hop. São
os imigrantes da segunda geração. Ao público jovem contemporâneo,
oferece-se a imagem do Black beautiful; às damas do fim do século
XIX, o motorista negro. O autor nos mostra a relação entre as imagens
e os imaginários, os contextos culturais e a história, muitas vezes em
detrimento da própria realidade social e política.
Fora do contexto francês, vale destacar o artigo assinado por
Catherine Humblot (1993) para o dossiê de MScope sobre o “exemplo
britânico”. A autora mostra como a televisão britânica, a partir de 1965,
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passa a produzir programas específicos destinados à comunidade de
imigrantes, deixando o tom paternalista e pedagógico e operando o que
seria uma pequena revolução no tratamento do tema, em especial com
a chegada de Channel Four e, em seguida, de vários outros canais de
televisão desenvolvendo programas destinados aos imigrantes. Humblot
relata a aparição de uma verdadeira produção étnica que vai de programas
militantes a comédias para o grande público e grandes documentários
(história, meio-ambiente, geografia, etc.), além de ficções e séries com
grande repercussão e audiência. Essa produção televisual irá impor uma
nova face e uma nova e dinâmica representação dos negros, paquistaneses,
indianos, entre outros, na comunidade britânica, trazendo outra visão do
terceiro mundo, da cultura negra, do humor étnico.
Toda essa produção de estudos sobre a imigração nos mostra o
interesse que o tema despertou e sua relação com os contextos histórico,
político e cultural da França e da europa, especialmente nos anos 1980
e 1990. Tais estudos podem nos servir de base para uma reflexão crítica
sobre o lugar dos estudos brasileiros sobre o tema e a sua relação histórica
específica e bastante recente. Se procurarmos estudos sobre o tema no
Brasil dos anos 1980, dificilmente encontraremos um movimento tão
significativo, o que mostra que naquele período não havia, no Brasil, o
“problema” da imigração.
3. o Brasil, a narrativa histórica e os imaginários da imigração
No Brasil, a termo imigração faz surgir sentidos distintos do termo
refugiados. A imigração no Brasil remete a uma narrativa histórica sobre
povos que vieram ao país – italianos, alemães, portugueses, japoneses,
libaneses, etc. O imaginário social é o do Brasil, terra de acolhimento e
da diversidade multicultural. Já o termo refugiados atualiza o presente
em um sentido de barbárie, de fome, de miséria, algo da ordem do
incontrolável, da invasão alienígena, da ameaça – não identitária, mas
econômica, social, de território. Essa nova perspectiva aliena a memória
da imigração como componente fundador da sociedade brasileira e abre
um novo movimento discursivo vinculado ao imaginário da imigração
como “problema”. De certa forma, essa alienação é influenciada por
imaginários externos, especialmente europeus, sobre o tema. É importante
ressaltar, porém, que apesar das forças que influenciam o pensar atual
sobre o assunto, o aparente anacronismo brasileiro está relacionado ao fato
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de que o contexto atual é de um país que superou a imigração como um
problema no tempo histórico de sua emergência e passou à representação
narrativa da experiência nacional que, em grande medida, é escrita como
uma narrativa de sucesso: os imigrantes constituíram a nação e grande
parte de sua riqueza e de sua força. Decorre disso que o imaginário da
imigração se tornou positivo ao longo da narrativa histórica, razão pela
qual uma nova narrativa se inicia agora sob a perspectiva dos refugiados,
e não propriamente dos imigrantes.
Se fizermos uma breve busca no google com o sintagma “a
imigração no Brasil”, encontraremos, em destaque, o imaginário narrativo
da imigração como sucesso histórico. Vejamos alguns exemplos apenas
a título de ilustração.
A enciclopédia livre Wikipedia já nos traz a narrativa integral,
como mostra o texto inicial: “A imigração no Brasil refere-se ao conjunto
de povos que imigraram para o Brasil ao longo de sua história. Ela deixou
fortes marcas na demografia, na cultura e na economia do país”.2 Uma
tal perspectiva só é possível uma vez vivida a experiência narrativa
do mundo, no caso, da imigração e seu desenvolvimento histórico.
Certamente, essa perspectiva não era a adotada no início do movimento
migratório no Brasil. Sabe-se o quanto sofreram italianos, japoneses,
eslavos e outros povos que aqui vieram antes de obterem o salvo conduto
e a legitimidade no âmbito da “integração à brasileira”, em grande parte
assimilacionista, ou seja, quem aqui chega, após algumas gerações,
assume a identidade brasileira, ainda que festejem suas origens sob os
aplausos dos brasileiros genuínos que também fazem dessas festividades
parte de si. Com efeito, existem diferentes temporalidades na construção
do sentido discursivo da imigração: há o tempo da imigração “problema”,
na sua origem, e o tempo da narrativa da imigração, que pode se abrir
a uma diversidade de resultados e experiências, tanto positivas quanto
negativas, dependendo de cada caso. Poderíamos falar de um “tempo
que traz” os imigrantes para a a convivência difícil de um presente, e de
um “tempo que leva” embora os imaginários de origem, para retomar
uma segunda fase do “tempo que traz” a narrativa histórica, com seus
resultados e a experiência vivida construída pelo discurso social.
Se continuamos nossa navegação pela busca do sentido do
sintagma “A imigração no Brasil”, encontraremos a regularidade. O
2
https://pt.wikipedia.org/wiki/Imigração_no_Brasil
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site Brasil Escola, traz a mesma narrativa histórica do Wikipedia. Com
o título Imigração no Brasil, a matéria traz a contextualização já no
subtítulo “O processo de imigração no Brasil intensificou-se a partir de
1808, quando um número expressivo de imigrantes europeus chegou ao
país”. A foto de capa nos convoca para uma visualização bem conhecida,
instalada na memória, do romantismo da imigração e da imagem positiva
do imigrante:
FIGURA 1 – Foto de capa da matéria “Imigração no Brasil” do site Brasil Escola
Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/brasil/imigracao-no-brasil.htm
A visualização é típica do cinema e da representação novelística
televisual. O imigrante é um personagem limpo, elegante e estereotipado,
o trem ao fundo evoca a memória histórica desviante de outras imagens
históricas conhecidas, como a do navio abarrotado de gente desembarcando
no porto ou das multidões caminhando a pé às margens das estradas,
diferentes formas visuais de representação épica dos imigrantes. Aqui,
não é mais o invasor, nem o delinquente, nem o sujo, nem o maltrapilho,
mas um personagem que chega para dar origem a um destino histórico
grandioso. A narrativa histórica e épica se desenvolve e pode ser sintetizada
no enunciado abaixo da matéria da revista Brasil Escola:
A marca da imigração no Brasil pode ser percebida especialmente
na cultura e na economia das duas mais ricas regiões brasileiras:
Sudeste e Sul. A colonização foi o objetivo inicial da imigração no
Brasil, visando ao povoamento e à exploração da terra por meio
de atividades agrárias. A criação das colônias estimulou o trabalho
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rural. Deve-se aos imigrantes a implantação de novas e melhores
técnicas agrícolas, como a rotação de culturas, assim como o
hábito de consumir mais legumes e verduras. A influência cultural
do imigrante também é notável. (Fonte: https://brasilescola.uol.
com.br/brasil/imigracao-no-brasil.htm)
Três pontos de vista essenciais a destacar nessa síntese: o ponto
de vista histórico no enunciado “A marca da imigração no Brasil pode
ser percebida...”; o ponto de vista do actante acolhedor, no caso, o
Brasil/brasileiro, no enunciado “A colonização foi o objetivo inicial da
imigração no Brasil, visando ao povoamento e à exploração da terra
por meio de atividades agrárias. A criação das colônias estimulou o
trabalho rural”. Nota-se, nesse trecho, o ponto de vista do brasileiro, do
planificador da imigração, utilitarista, aquele que, intencionalmente, criou
a imigração, pois ela se integrava aos seus planos. Em seguida, o ponto
de vista do actante imigrante, no enunciado “Deve-se aos imigrantes a
implantação de novas e melhores técnicas agrícolas, como a rotação de
culturas, assim como o hábito de consumir mais legumes e verduras.
A influência cultural do imigrante também é notável”. O elemento
integrador, o brasileiro, narrado como o interessado pela imigração; o
elemento imigrante narrado como se integrando perfeitamente aos planos
do integrador. Simbiose perfeita. A imigração não é representada como
um “problema”. A narrativa histórica se construiu através de textos e
imagens, fotografias, visualizações televisuais e cinematográficas, assim
como também nos nomes de logradouros, de escolas, de personalidades,
de famílias, no folclore nacional e em festividades, de personalidades
políticas, conjunto de formas ritualísticas que vão constituindo o
imaginário social da imigração no Brasil.
Ainda há uma repartição identitária e geográfica na formação
do imaginário da imigração no Brasil. O Brasil recebeu imigrantes
de diferentes nacionalidades, como Portugal, Itália, Alemanha, Japão,
Espanha, Suíça, China, Coreia do Sul, Polônia, Ucrânia, França, Líbano,
Israel, Bolívia e Paraguai. No entanto, o imaginário da imigração no
Brasil, nos termos que comentamos acima, é constituído majoritariamente
pela referência aos imigrantes europeus. É essa narrativa que constitui
o essencial do imaginário. Dela estão silenciados os chineses, os sulcoreanos, os bolivianos, os paraguaios e os libaneses. Estes últimos são
tão numerosos no Brasil quanto no próprio Líbano, seu país de origem,
mas eles não integram ainda o imaginário romântico que a narrativa
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histórica construiu, embora haja tantas personalidades libanesas atuando
na indústria, na política e em outras áreas da economia e da cultura
brasileiras. Os venezuelanos iniciaram suas narrativas mais recentemente,
assim como os haitianos e os “novos” sírios, portanto, é ainda cedo para
saber como serão os imaginários sociais resultantes da experiência vivida
e construída pela discurso da presença deles em terras brasileiras.
4. alguns estudos discursivos brasileiros sobre imigração
É a partir das décadas de 2000 e 2010 que se nota um aumento
significativo dos estudos discursivos sobre imigração. Esse período
coincide com o acontecimento migratório como problema, pois a
narrativa histórica da imigração não suscita tal interesse entre analistas
do discurso. O acontecimento migratório é o da crise dos refugiados na
Síria e a imigração de pessoas vindas do Haiti, da Bolívia e da Venezuela.
Vale destacar o artigo publicado por Ilana Mountiana e Miriam
Debieux Rosa, ambas da psicologia, respectivamente da USP e da
PUC de São Paulo, que fizeram um estudo fundamentado na análise
crítica do discurso com interdisciplinaridade com a psicologia social
(MOUNTIANA; ROSA, 2015) e com foco na questão de gênero. Esse
artigo desenvolve uma análise crítica de discursos sobre imigração e
a posição que imigrantes ocupam no discurso social. O foco é dado
nos processos de minorização de alguns grupos, destacando a questão
de gênero sem deixar de considerar as intersecções entre sexualidade,
raça e classe social. As autoras estudaram casos de imigrantes recémchegados em São Paulo. Coincidente com a questão central colocada por
Bonnafous sobre a banalização no tratamento da imigração na França, os
autores apontam para a naturalização das diferenças sociais como traços
individuais patologizados quando não criminalizados, ressaltando, ainda,
a reiteração dos enquadramentos dos imigrantes em posições de vítimas,
ameaças ou seres exóticos.
Ainda em 2006, a dissertação de mestrado de Tani Jacobsen
Prellvitz, intitulada Estrangeiro ou Imigrante: o discurso da imprensa
construindo a (in) aceitabilidade, trata da designação, pela imprensa, de
imigrantes e a força que tais designações exercem sobre a construção de
significações imaginárias sobre os estrangeiros que chegam para viver
no Brasil. O autor também foca seu estudo no acontecimento migratório
como problema, e o seu corpus de trabalho traz fragmentos de matérias
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da imprensa versando sobre imigrantes provenientes principalmente da
América do Sul, como os bolivianos, e africanos. Com fundamentação
na análise do discurso pêcheutiana, as designações estudadas permitem
ao autor discutir o problema da ideologia e das formações discursivas
nesses processos de designação que constroem os imigrantes de forma
marginal.
A tese de Bruna Lopes Dugnani (2017) também percorre o
caminho da imigração como problema, especialmente no que tange
aos imigrantes contemporâneos. No entanto, a tese faz um percurso
mais amplo, ao investigar as formas de representação do imaginário
brasileiro da receptividade, especialmente em relação à narrativa histórica
da imigração europeia no final do século XIX e início do século XX
(imigrante bem-vindo, adaptado, integrado), contraposta aos movimentos
discursivos que operam sobre o acontecimento migratório contemporâneo
(imigrante problema, inadaptado, sobrecarga do Estado, contraventor,
mercadoria). A autora se serve de conceitos bakhtinianos e foca sua
atenção do fenômeno do dialogismo na imprensa.
Não foi a minha intenção fazer uma ampla revisão de estudos
discursivos sobre imigração, o que não caberia neste artigo, pois são
muito numerosos e, como mostrei, datados historicamente. Assim como
fiz nos estudos franceses, a intenção foi mostrar como o acontecimento
histórico mobilizou o interesse de analistas do discurso e disciplinas das
ciências humanas, na França nas décadas de 1980 e 1990, e no Brasil,
nas décadas de 2000 e 2010. Além disso, desejei colocar em evidência
que os resultados das análises são bastante aproximados e o fenômeno
estudado aponta para uma dinâmica discursiva regular, especialmente
no discurso da imprensa: a banalização e a naturalização da imigração
como “problema” e como “crise”, que alimentam o debate político e as
suas decisões, os enquadramentos dos imigrantes como vítimas, como
populações miseráveis, inadaptadas e problemáticas, enquadramentos
que fundam imaginários sociais e narrativas cujos resultados não são
previsíveis no momento do acontecimento. Como toda narrativa, depende
das sequências e da evolução dos personagens no interior da trama
discursiva que os contrói e desconstrói continuamente.
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5. o início de uma narrativa sobre imigração?
Farei agora uma breve análise de um fragmento de narrativa
contemporânea sobre o acontecimento migratório recente. Analisarei
um artigo publicado em um jornal brasileiro. Trata-se, portanto, de
uma análise sucinta que buscará colocar em evidência aspectos que já
mencionamos acima e constituem a regularidade discursiva no tratamento
do tema.
Notícia publicada no site G1, em 25/06/2016,3 sobre o tema da
imigração-problema, destaca, em seu título, que em 10 anos o número de
imigrantes no Brasil cresceu em 160%, a maioria proveniente do Haiti
e da Bolívia. A fonte utilizada pelo jornal é a Polícia Federal. Ressaltese que o Brasil se mantém abaixo da média mundial em matéria de
recebimento de imigrantes e envia mais brasileiros (emigrantes) para o
exterior do que recebe estrangeiros.4
Vou abordar dois espaços diferentes do tratamento do tema: a
perspectiva adotada pelo jornal ao construir a sua matéria sobre o tema
da imigração e, em seguida, uma análise das reações de alguns leitores
sobre a matéria e sobre o tema. Essa dupla e breve análise nos permitirá
ver, ao mesmo tempo, como um discurso instituído como o da imprensa
enquadra o tema e o desenvolve através de estratégias textuais, descritivas
e narrativas, e visuais, de um lado, e como um discurso não instituído,
o dos leitores, que reagem espontaneamente ao texto e ao tema, tratam
o assunto e incorporam pontos de vistas vinculados ao senso comum.
Meu objetivo, aqui, não foi o de estudar a circulação de falas
sobre o tema da imigração no Brasil, especialmente nos últimos anos, nem
o de mapear o conjunto de pontos de vistas e de posturas enunciativas
circulantes em torno do tema. Tal objetivo é o de uma pesquisa mais
ampla sobre o tema e não poderia se desenvolver aqui nesta breve análise
ilustrativa.
Analisemos, em primeiro lugar, alguns elementos constituintes
da matéria jornalística e, em seguida, os comentários dos internautas,
postados em reação à matéria jornalística publicada pelo G1 sobre o
tema da imigração no Brasil.
3
http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-numero-de-imigrantesaumenta-160-no-brasil-diz-pf.html
4
https://www.uol/noticias/especiais/imigrantes-brasil-venezuelanos-refugiados-mediamundial.htm#o-brasil-tem-pouco-imigrante
612
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
5.1. A matéria jornalística e seus enquadramentos: rumo à banalização?
Já no título da matéria do G1, nota-se que o enquadramento é o
da imigração como “problema”, podendo constituir, como nos exemplos
que relatamos dos estudos franceses e brasileiros, uma base para o debate
político sobre o tema.
EM 10 aNos, o NÚMEro DE IMIgraNTEs
auMENTa 160% No BrasIL, DIZ PF
Só em 2015, quase 120 mil estrangeiros deram entrada no
país. Haitianos lideram o ranking atual, seguidos pelos
bolivianos.
A quantificação (160%) é uma forma de enquadramento
(EMEDIATO, 2013) importante, pois tem o efeito de dar relevo à
quantidade e ao seu efeito hiperbólico. O relevo dado à quantidade
esquematiza a compreensão do leitor para que ele interprete o
acontecimento como um “problema” relevante que precisa ser tratado.
Em seguida, um elemento linguístico mostra que o ponto de vista do
jornal é que a quantificação é mesmo um problema: “Só em 2015,
quase 120 mil estrangeiros...”. A expressão linguística destacada em
itálico é um operador argumentativo que orienta a conclusão para uma
direção problematizante: se só em 2015, em um único ano, foram tantos
imigrantes, esse número irá crescer significativamente se levarmos em
conta os anos seguintes. O efeito perlocutório é de alerta e de preocupação,
ou seja, não se pode negligenciar esse problema. Os elementos que
constituirão o debate político estão dados e a narrativa de origem está aí
concentrada nos enquadramentos. Vale ainda notar o enquadramento por
identificação exemplar (nomes comuns: haitianos e bolivianos). Embora
os dados mostrem que no mesmo período houve aumento da imigração
européia (portugueses, principalmente) e norte-americana no Brasil,
não foi dado relevo a essas nacionalidades já fundadas e legitimadas no
imaginário social de imigração no Brasil como positivas pela narrativa
histórica, especialmente a europeia. Nesse período também foi notado
o crescimento de imigrantes argentinos, mas a matéria não dá relevo a
essa categoria. A narrativa se constrói sobre categorias mais positivas
ou mais negativas.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
613
O enquadramento dá relevo à imigração como um “problema”
decorrente de problemas econômicos e sociais nos países de origem e
da situação econômica mais favorável no Brasil (a matéria é de junho de
2016, ano em que o cenário econômico brasileiro era ainda mais favorável
do que o de 2019). O imigrante é assim representado como vítima: vem de
um país em crise ou é perseguido de alguma forma – caso dos refugiados
-, é pobre e vem ao Brasil em busca de emprego e de uma vida melhor.
Na representação visual, trata-se majoritariamente de negros (haitianos) e
de imigrantes de origem indígena (bolivianos). A representação visual dá
relevo a aspectos positivos, mostrando imigrantes em situações culturais
(musicalidade sobretudo), como nas fotografias abaixo:
FIGURA 2 – O haitiano Louides Charles, 38, que trabalha na construção civil no
Brasil e fundou uma banda que toca músicas de seu país.
Fonte: Foto de Marcelo Brandt/G1
O imigrante é representado na legenda por sua área profissional
(construção civil) e por um aspecto de sua cultura (a música de seu país).
Já a fotografia abaixo mostra um imigrante boliviano já instalado
no Brasil desde a década de 1980:
614
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
FIGURA 3 – O boliviano Juan Cusicanki, de 49 anos, veio para o Brasil em 1980
Fonte: Arquivo pessoal
A imagem do boliviano está bem ancorada no imaginário
brasileiro dos povos andinos que vêm ao Brasil e se apresentam em
praças públicas com suas músicas típicas.
No geral, a matéria enquadra a imigração atual como um
problema, os actantes como vítimas (o que convocaria para um
sentimento de solidariedade cidadã). Mas ela reproduz também parte da
narrativa histórica da imigração no Brasil, evocando essa memória. O
imigrante é narrado como um cidadão que foge à situação de crise em
seu país de origem e vem ao Brasil à procura de abrigo e de emprego.
A visualização busca humanizá-lo e representá-lo com sua cultura de
origem. Em linhas gerais, o discurso jornalístico se apresenta com seus
componentes de base: relato do acontecimento, enquadramento do
acontecimento como um problema, problematização cidadã convocando
o leitor a uma posição de leitura no domínio da ética cidadã (valores de
justiça social, solidariedade, etc.).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
615
5.2. reações dos leitores
Vejamos algumas reações dos leitores internautas – as mais fortes
e reiterativas – e suas posições enunciativas essenciais. Os nomes ficarão
anônimos neste artigo, os grifos são nossos:
Locutor 1 Esse país virou a casa da mãe Joana, já n chega
os problemas internos, agora vem pessoas de fora pra tumultuar
mais ainda, se n me engano haitianos, cubanos, sei lá mais oq,
já estavam recebendo o tal bolsa, nós brasileiros trabalhamos p
sustentar gente de fora, violência aumentando, caos, esse país é
uma piada
Locutor 2 culpa do PT...
Locutor 3 Nada contra os imigrantes, nós mesmos somos
imigrantes de certa forma, já que fomos colonizados e tudo mais,
porém não tem emprego nem condições de vida para quem ja vive
aqui, imagine pra quem vem do exterior, esse pais é muito atrasado
e tínhamos tudo para ja ser primeiro mundo.
Locutor 4 Pior que são os que mais fazem filhos. É de 10
pra cima.
Locutor 5 Por que o instinto primitivo de procriar procriar
procriar ainda tem forca em pessoas sem educação, sem
perspectiva de vida.
Locutor 6 Se todos estrangeiros vinhesse em paz, e se
enquadra-se
Locutor 7 Vc é imigrante também?? Porque seu portugues
é sofrível... Até eu que sou imigrante tambem escrevo melhor que
voce!...
Locutor 8 Não sou contra a imigração, pois sou bisneta
de alemães e pretendo ser imigrante nos USA. Morei lá e amo
o Tio Sam.Só não concordo em “arreganhar” a porta para gente
miserável e não qualificada.O imigrante tem que vir para somar
e não gerar ônus ao país. Aliás, esses haitianos são folgados. Certa
vez, passei perto de um, e ele disse sorrindo “brasileira é bonita”
Que não venham para o sul.
Locutor 9 O Brasil está enchendo de chinês !!! Esses
amarelos estão pra todo lado !!Putz grila !!!!!!! Socorro !!!
Locutor 10 Casa da mãe joana
Loutor 11 já não tem emprego pro brasileiro imagina a
situção. o problema da imigração é que trazem pouca coisa boa
e muita, mas muita coisa ruim
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Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
Loutor 12 tem de servente de pedreiro, José, acho que vc
não vai querer né? vou ter que chamar um haitiano mesmo
Locutor 13 A média de QI do Haiti é 67, e dado ao fato
de aproximadamente 70% do QI de uma pessoa é genético,
meus parabéns, estamos importando BurrICE para o país!
Lembrando que a média do Brasil é 87 e do mundo é 100.
Alguns aspectos ressaltam nesses comentários. O primeiro deles
é que reagem a uma matéria jornalística, mas pouco se extrai de fato do
conteúdo da matéria. A matéria, em particular, não é crítica da imigração,
ao contrário, a soma dos pontos de vista distribuídos nela propõe um efeito
interpretante (um proto-enunciador) mais positivo do que negativo em
relação à imigração e aos imigrantes. Já os pontos de vista dos comentários
são negativos e expressam um senso comum sobre o tema, ou seja, a
matéria serve apenas de indutor para reações primárias de senso comum.
Neles, os locutores/enunciadores designam os imigrantes como “pessoas
de fora”, “fazedoras de filhos”, “pessoas sem educação”, “amarelos”,
“pessoas burras”, “gente miserável e não qualificada”, “folgados”. As
operações de designação e de qualificação enquadram os imigrantes como
pessoas desprovidas de interesse, inferiores, moralmente condenáveis,
uma ameaça aos brasileiros e ao país. São posições primárias, com carga
afetiva negativa, não aprofundam o tema, nem se dispõem a avaliar o
problema da imigração em toda a sua amplitude e complexidade. O
posicionamento dos locutores/enunciadores é endógeno e eugenista,
contrapondo os “de fora” aos “de dentro”, os imigrantes aos nacionais
(brasileiros). Em meio às posições endógenas e xenófobas, nota-se
também as inferências políticas de circunstância, como o ponto de vista
que responsabiliza um partido político – o PT – pela imigração (a culpa
é do PT...) e o Estado permissivo (casa da mãe joana).
Outro aspecto que ressalta dos comentários é o foco dado aos
haitianos. Para os leitores que reagiram à matéria, os imigrantes são
necessariamente pobres, miseráveis e vêm ao Brasil para explorar o país,
têm baixo QI, são burros e, portanto, inúteis. No entanto, a matéria fala
também de imigração europeia e norte-americana, de pessoas que não
são miseráveis e que vêm para o país por outras razões, empreender,
estudar, juntar-se às famílias, etc. Essa parcela de imigrantes é silenciada
nos comentários. Para os locutores-enunciadores que reagiram à matéria,
o fenômeno migratório está reduzido à miséria de povos e países pobres
e a condutas censuráveis dos imigrantes (ter muitos filhos, vocação para
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020
617
a delinquência, para a perversão sexual, etc.) o que traz a xenofobia para
o campo da intolerância étnica, moral e socio-econômica, intolerância
que se reflete no discurso por traços de violência verbal. Esses enquadres
parecem típicos do fenômeno de banalização do fenômeno migratório,
como salientado por Bonnafous, e alimentados pelos discursos
extremistas. O acontecimento histórico migratório está reproduzindo os
mesmos enquadres discursivos, resultando sempre na estigmatização
do imigrante.
Considerações finais
Busquei abordar o tema da imigração sob a perspectiva de
sua historicidade (do acontecimento migratório) e da dinâmica dos
estudos discursivos que se interessaram pelo assunto na França e no
Brasil com o objetivo de observar como o contexto histórico e social do
acontecimento migratório influencia o tratamento do tema. No Brasil,
ainda que a imigração constitua um forte componente histórico da
formação da sociedade brasileira, os estudos sobre a imigração como um
“problema” e associada a uma “crise” – como foi o caso na França – são
recentes e estão relacionados a acontecimentos pontuais, como o fluxo
migratório do Haiti, da Venezuela, da Bolívia e da Síria. O imaginário
social de imigração no Brasil, até então, estava relacionado a uma
narrativa histórica e romantizada da experiência vivida e discursiva dos
imigrantes europeus que vieram ao Brasil entre os séculos XIX e XX.
Atualmente, uma nova narrativa se delineia, motivada pelo imaginário
da crise e do problema migratório, do invasor perigoso e miserável que
ameaçaria a estabilidade do brasileiro genuíno. Diferentemente do que
ocorreu na França, não se coloca, por aqui, o problema identitário e da
ameaça à identidade brasileira, mas alguns elementos são constantes e
talvez herdados da narrativa histórica européia: o imigrante é um ser de
fora, constitui uma ameaça (ao emprego, à segurança), tem propriedades
morais e sociais que explicariam sua situação de precariedade. No âmbito
do tratamento jornalístico, a banalização do “problema” da imigração já
se faz notar, com o enquadramento dos actantes como vítimas, o relevo
dado à precariedade, ao problema e à crise, assim como a evocação,
implícita, de valores associados à ética cidadã – própria do jornalismo
de referência –, convocando o leitor para os valores da solidariedade, da
justiça social e dos afetos. Essas formas de tratamento têm o potencial de
618
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pautar o debate político e social sobre a imigração, silenciando ou tirando
o relevo de outras perspectivas possíveis de se tratar e ver o assunto. Elas
“fazem ver” de uma certa maneira o acontecimento histórico ao enquadrálo em suas esquematizações discursivas estigmatizantes do imigrante.
referências
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Versalles, Dossiê : Images de l’immigration dans les médias, n. 4, p. 4752, 1993.
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nacional. Uma perspectiva dialógica. 2017. Tese (Doutorado) – Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2017.
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dimensão argumentativa. In: ______. (org.) A construção da opinião na
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PRELLVITZ, Tani Jacobsen. Estrangeiro ou Imigrante: o discurso da
imprensa construindo a (in) aceitabilidade. 2006. Dissertação (Mestrado)
– Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
Les allusions au conflit armé dans les discours de campagne
sur Twitter traitant du plébiscite pour la paix en Colombie
The allusions to armed conflict in peace plebiscite campaign
discourses on Twitter in Colombia
Yeny Serrano
Université de Strasbourg, Strasbourg /France
yeny.serrano@unistra.fr
https://orcid.org/0000-0001-7835-8975
Résumé : cet article analyse les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite
pour la paix d’octobre 2016 en Colombie. L’analyse de contenu de 1307 tweets identifie
les principales stratégies en faveur et contre l’accord de paix, ainsi que la manière dont
la mémoire de la guerre influence ces discours. L’approche comparative montre que la
campagne pour le « Non » mobilise la population autour de la délégitimation des FARC,
alors que la campagne pour le « Oui » utilise Twitter essentiellement pour annoncer
des événements de campagne. Les allusions au conflit armé, plus fréquentes dans
les tweets contre l’accord de paix, contribuent à (re)construire la mémoire collective
du conflit en évoquant principalement les faits de guerre dont sont responsables les
adversaires. Ainsi, la campagne pour le plébiscite s’inscrit dans la continuité des discours
de guerre propres à la période de confrontation armée qui ne favorisent pas le projet
de construction de la paix.
Mots-clés : Colombie ; processus de paix ; Twitter ; stratégie discursive ; allusions.
abstract: this paper examines how the memory of the war influenced the campaigning
for the October 2016 peace plebiscite in Colombia. By analyzing 1307 tweets, the
study identifies key strategies carried out by supporters and opponents of the peace
agreement. This comparative approach shows that the “No” campaign mobilized the
public around the delegitimization of the FARC guerilla, while the “Yes” campaign
used Twitter essentially to announce campaign events. Allusions to the armed conflict
were more frequent in the tweets against the peace agreement. They contributed to (re)
writing the collective memory of the conflict by referring mainly to the facts for which
the adversaries were responsible. The campaign for the plebiscite was a continuation
eISSN: 2237-2083
DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.619-655
620
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
of the war discourses specific to the period of armed confrontation. The conclusion
highlights the implications for the peacebuilding project.
Keywords: Colombia; peace process; Twitter; discursive strategy, allusions.
Submitted on July 12th, 2019
Accepted on September 29th, 2019
1 Introduction
Le 2 octobre 2016 est une date qui restera gravée dans l’histoire
de la Colombie comme le jour où les Colombiens ont rejeté la paix. Ce
jour-là, avec un taux d’abstention de 62,57 %, une courte majorité de
Colombiens (50,21 %1) a rejeté l’accord de paix que le gouvernement
avait signé avec la guérilla des FARC, le 26 septembre 2016, pour mettre
fin à la confrontation armée vieille de plus de 50 ans. Comment expliquer
ces résultats qui semblent suggérer que les Colombiens préfèrent la
guerre à la paix ?
En effet, si l’accord de paix a reçu depuis le début un large soutien
international, à l’intérieur du pays, quelques secteurs politiques de droite
et d’extrême droite, accompagnés par quelques églises évangéliques, ont
toujours critiqué ces négociations de paix. Ils les considéraient comme
une « remise du pays » aux FARC. Néanmoins, durant la campagne
pour le plébiscite,2 la plupart des sondages avait prédit la victoire du
« Oui » à l’accord de paix (GONZALEZ, 2017 ; TORRADO, 2017).3 Par
ailleurs, de nombreuses et importantes manifestations ont eu lieu dans
les plus importantes villes du pays pour demander au gouvernement et
aux FARC de sauver l’accord de paix (PERILLA DAZA, 2018). Ainsi,
suite au plébiscite, les deux parties se sont réunies avec des représentants
1
Disponible sur : https://www.registraduria.gov.co/?page=plebiscito_2016. Accès le :
15 mai 2019.
2
Cette campagne s’est déroulée pendant 5 semaines et demie, entre le 24 août 2016 –
jour où le président Santos a annoncé la date du plébiscite – et le 2 octobre, jour du vote.
Le mécanisme du plébiscite avait déjà été annoncé en juillet 2016, mais pas la date.
3
Le politologue Basset explique que l’impossibilité des sondages à prédire les résultats
du plébiscite réside dans la méthodologie utilisée pour constituer les échantillons, basée
majoritairement sur les populations résidant dans les grandes villes, manquant ainsi de
représentativité (2018, p. 244).
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
621
du « Non » ; une nouvelle version de l’accord de paix a été signée le 24
novembre 2016 à Bogotá.
Et pourtant, depuis la signature de l’accord de paix, la violence
politique et armée ne fait qu’augmenter, après l’accalmie constatée
durant les derniers mois des négociations de paix (PROGRAMA SOMOS
DEFENSORES, 2019). Le phénomène le plus connu au niveau national
est celui des menaces, attaques et assassinats des « leaders sociaux »,
autrement dit des personnes qui, dans les régions les plus frappées
par le conflit armé, travaillent pour la défense des droits humains et
environnementaux, ainsi que pour la mise en place de l’accord de paix
qui prévoit la résolution des causes ayant engendré le conflit armé. Les
leaders sociaux s’engagent dans des projets visant la restitution des terres
aux paysans déplacés par la violence, la substitution manuelle et volontaire
des cultures illicites, la défense de l’environnement contre de grands projets
miniers, entre autres. Le programme Somos Defensores, dans son rapport
annuel 2018 affirme que « ces huit dernières années nous constatons
une augmentation exponentielle des agressions commises à l’encontre
des personnes qui défendent les droits humains en Colombie » (2019, p.
101). Selon la Defensoría del Pueblo (Bureau du Défenseur du peuple),
431 leaders sociaux ont été assassinés entre le 1er janvier 2016 et le 31
décembre 2018,4 autrement dit pendant la période mal nommée de « postconflit ». Au 18 juin 2019, 135 ex-combattants des FARC qui participaient
aux programmes de réinsertion à la vie civile ont été assassinés depuis la
signature de l’accord de paix.5 De nombreux intérêts économiques associés
au contrôle des ressources minières et naturelles dans les zones avant
occupées par la guérilla des FARC semblent en être à l’origine6 et risquent
de compromettre sérieusement la mise en place de l’accord de paix.
4
Disponible sur : https://www.elespectador.com/colombia2020/politica/nacionesunidas-pide-mas-acciones-para-evitar-asesinatos-de-lideres-sociales-articulo-857576.
Accès le : 15 juin 2019.
5
Disponible sur : https://www.semana.com/nacion/articulo/excombatientes-de-farcasesinados-anderson-perez-y-daniel-esterilla-son-los-ultimos-muertos/620181. Accès
le : 20 juin 2019.
6
Citons comme exemple le rapport « Y a la vida por fin daremos todo » qui présente
la situation d’un groupe des victimes du conflit, à savoir les travailleurs de l’industrie
de l’huile de palme. Disponible sur : http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/
informes/publicaciones-por-ano/2018/y-a-la-vida-por-fin-daremos-todo. Accès le :
13 juin 2019.
622
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
En outre, les résultats du plébiscite ont influencé les campagnes
pour les élections législatives de mars 2018 et la présidentielle de
mai 2018 (pour le premier tour) et juin 2018 (pour le deuxième tour).
Effectivement, forts des résultats du plébiscite, et en dépit du grand taux
d’abstention, le parti politique qui a promu la campagne pour le « Non
à l’accord de paix », le parti d’extrême droite de l’ex-président Uribe –
Centro Democrático –, s’est senti légitimé pour mener ces campagnes
électorales autour de leur rejet de l’accord de paix. C’est ce parti qui a
remporté la présidentielle et obtenu la moitié des sièges au Congrès.7 En
d’autres termes, le plébiscite semble être le moment où le pays commence
à se détourner du projet de construction de la paix que l’accord entre le
gouvernement et les FARC avait laissé espérer.
En partant de ce constat, cet article revient sur la campagne
pour le plébiscite du 2 octobre 2016 et interroge plus précisément la
manière dont le passé de guerre est – ou non – présent dans les discours
de campagne : les allusions au conflit armé interne font-elles partie des
stratégies discursives mises en place par les promoteurs du « Oui »
et du « Non » à l’accord de paix ? Sur la base des travaux précédents
(SERRANO, 2016, 2017a) portant sur les discours de légitimation de
la guerre, nous faisons l’hypothèse que les stratégies de délégitimation
de l’adversaire sont plus fréquentes que les stratégies de légitimation
de la paix dans les discours de campagne pour le plébiscite. Avant de
présenter les résultats de l’analyse menée, nous détaillons la démarche
méthodologique dans la section suivante. Ensuite, nous reviendrons sur
certains éléments du contexte autour du plébiscite d’octobre 2016.
2 Démarche méthodologique
Nous avons analysé tous les tweets publiés autour des hashtags
créés à l’occasion de la campagne pour le plébiscite. Le choix de Twitter
s’explique par l’importance de cette plateforme de microblogging8 en
communication politique. Elle est censée contribuer au renforcement de
la démocratie (EYRIES, 2015 ; LANGA ; MARTINEZ ; SICILIA, 2018 ;
7
Disponible sur : https://www.eltiempo.com/politica/gobierno/asi-esta-el-mapapolitico-para-la-gobernabilidad-de-ivan-duque-260160. Accès le : 15 avril 2019.
8
Pour une description analytique et une caractérisation de Twitter par rapport à d’autres
médias sociaux, voir (COUTANT ; STENGER, 2012 ; STENGER ; COUTANT, 2011)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
623
ROGINSKY ; COCK, 2015). De plus en plus de politiciens détiennent un
compte Twitter, géré par eux-mêmes ou par une équipe de professionnels.
Twitter est ainsi censé rapprocher les élus des citoyens et faciliter leur
interaction (DOLBEAU-BANDIN ; DONZELLE, 2015). En outre,
la plateforme a élargi l’espace public permettant aux individus et aux
groupes sociaux sans accès à l’espace public médiatique dominant d’avoir
une visibilité sociale et de diffuser leurs propres discours (DOUAY ;
REYS, 2016). Tel a été le cas en Colombie où, suite au processus de
paix, un nouvel acteur politique est entré en scène : le parti FARC (Force
Alternative Révolutionnaire du Commun9) issu de la guérilla des FARC
(Forces Armées Révolutionnaires de Colombie). En tant que groupe
armé illégal la guérilla des FARC n’avait aucune visibilité directe dans
les médias traditionnels. Dès le début des pourparlers, et suite à l’accord
de paix, les FARC ont fortement investit Internet et les médias sociaux
dont Twitter, Facebook et YouTube (SERRANO, 2016, 2018).
En dépit de grands espoirs suscités par Twitter, les études
montrent que le potentiel politique de la plateforme a des limites
(CHIBOIS, 2014 ; HERNANDEZ-SANTOLALLA ; SOLA-MORALES,
2019 ; MABI ; THEVIOT, 2014). Pour commencer, censé favoriser le
débat et les échanges, Twitter ne permet que la diffusion de textes courts
(140 caractères à l’époque du plébiscite et 280 à partir de novembre
2017) qui entrent en contradiction avec les caractéristiques des discours
argumentatifs (AMOSSY, 2012 ; BRETON, 2007). Ces contraintes
propres au dispositif favorisent à leur tour la diffusion des discours
qui cherchent à mobiliser davantage par l’appel aux émotions que par
l’exposé d’arguments rationnels. Twitter s’impose également comme
un espace où un style d’expression familier prédomine, mais qui peut
facilement virer à l’impolitesse voire à la violence verbale (LANGA et
al., 2018 ; MERCIER, 2015). Pour les citoyens, et à l’instar d’autres
médias sociaux, tels que Facebook ou YouTube, Twitter offre un espace
de visibilisation aux discours alternatifs, même si la diffusion des propos
interdits ou que l’on n’oserait pas tenir dans des espaces publics plus
traditionnels remettent en question le potentiel démocratique des médias
sociaux numériques.
9
En espagnol : Fuerza Alternativa Revolucionaria del Comnún. L’expression « del
común » (du commun) renvoie aux personnes comunes y corrientes, autrement dit
aux gens ordinaires.
624
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
Conscients du potentiel mobilisateur et des limites de la
plateforme de microblogging, nous avons choisi Twitter afin de prendre
en compte tant les discours des leaders d’opinion et politiques que des
citoyens du commun sur l’accord de paix. Nous avons donc rassemblé les
tweets publiés autour des hashtags créés à l’occasion du plébiscite, entre
le 23 août 2016 (veille de l’annonce par le président de la République
de la tenue d’un plébiscite pour approuver l’accord de paix) et le 10
octobre 2016 (une semaine après le vote). Rappelons que la grande
cérémonie pour signer la première version de l’accord de paix a eu lieu
à Carthagène, avec des nombreux invités internationaux et nationaux,
juste une semaine avant le plébiscite, le 26 septembre 2016. Le hashtag
a été choisi en tant qu’outil technodiscursif de thématisation ; il permet
de rassembler les contenus que les internautes souhaitent inscrire dans
un même thème (DOLBEAU-BANDIN ; DONZELLE, 2015).
Au total, 1307 tweets ont été collectés. Le tableau 1 présente le
corpus selon le positionnement exprimé par chaque hashtag. Le hashtag
neutre (#Plebiscito) a également été utilisé pour s’exprimer en faveur
ou contre l’accord de paix. Par ailleurs, un hashtag dont l’appellation
suggère un positionnement particulier, pouvait aussi être employé pour
exprimer l’avis contraire. Ainsi, sur les 1307 tweets analysées, 46% (604)
étaient pour le « Oui » à l’accord de paix, 47% (613) pour le « Non » et
7% (90) n’exprimaient aucun avis.
En plus des hashtags listés dans le tableau 1, deux autres
(#Colombia et #VamosPorLaPaz), existant avant la campagne pour
le plébiscite, ont aussi servi à prendre position sur l’accord de paix.
Néanmoins, ils ne sont pas inclus dans le corpus, car le premier est très
général et regroupe toute sorte de tweets hors-sujet pour cette étude. Le
deuxième est celui que les FARC ont créé pendant les pourparlers de paix
pour communiquer au sujet des négociations. Or, nous avons pu observer
que l’ex-guérilla n’a pas participé à la campagne pour le plébiscite. Aucun
tweet du corpus n’a été publié par les comptes officiels des FARC ou par
l’un de leurs membres sur le plébiscite, même si la guérilla – en voie de
transformation en mouvement politique légal – a continué de publier des
tweets sur l’avancement du processus de paix.
625
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
TABLEAU10 1 – Corpus : hashtags et nombre de tweets par hashtag
Hashtag neutre
Nombre de tweets
135
#Plebiscito
Hashtags pour le « Oui »
#ColombiaVotaSi
69
#SiAlaPaz
494
Hashtags pour le « Non »
#ConArgumentosDigoNo
38
#VotoNoYcorrijoAcuerdos
54
#HagaHistoriaVoteNo
54
#ColombiaNoSeEntrega
66
#PorMiPaisVotoNo
75
#VotoNoAlPlebiscito
147
#VotoNo
175
ToTaL
1307
La capture des tweets a été réalisée manuellement, par hashtag et
par date, avec l’outil de recherche avancée de Twitter. Puis, une analyse de
contenu, assistée par le logiciel Atlas.ti v.8, a été menée en deux étapes. La
première étape avait comme objectif d’identifier les principales tendances
de chaque campagne : émetteurs, thèmes, arguments et positionnement.
À cet effet, les 1307 tweets ont été classés selon les critères détaillés dans
le tableau 2. La deuxième étape s’est concentrée sur les tweets faisant
allusion au conflit armé pour identifier les stratégies de chaque campagne
lorsque le passé de la guerre est évoqué.
10
Tous les tableaux et graphiques sont d’élaboration propre. Les traductions de
l’espagnol au français sont également faites par nos propres soins.
626
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
TABLEAU 2 – Critères de codage pour l’analyse de contenu11 12
Critère
Identité de l’émetteur11
Description
À partir du profil du compte :
– Personnalité politique / leader d’opinion
– Célébrité (acteurs, chanteurs, sportifs…)
– Média / Association / Entreprise
– Individu (Prénom + Nom)
– Profil anonyme (utilisation d’un pseudo)
Positionnement de
l’émetteur
– Oui à l’accord de paix
– Non à l’accord de paix
Thèmes / arguments
pour dire Oui ou Non à
l’accord de paix12
– Accord = bénéfices inacceptables pour les FARC
– Accord = éviter les conséquences négatives de la guerre
– Accord de paix = « castro-chavismo », communisme, socialisme
– Accord de paix = impunité FARC
– Aucun
– Autre
– Citation du / Mention au texte de l’accord de paix
– Critiques à l’autre campagne
– Critiques au président de la République
– FARC = criminels
– L’accord de paix aura des conséquences négatives
– L’accord n’est pas la paix
– Nationalisme
– On doit corriger / renégocier l’accord de paix
– On fait campagne/mobilisation
– Référence aux conséquences de la guerre
– Renforcer la démocratie
– Résultats du plébiscite
11
La catégorisation de cette variable se fait selon l’information que le(s) créateur(s) du
compte souhaitent afficher. Mais on sait bien que, pour les personnalités politiques ou les
collectifs, un groupe de personnes, une équipe de professionnels de la communication
ou des robots peuvent gérer le compte. Pour les comptes s’affichant avec un prénom
et un nom, il peut s’agir de fausses identités ou des robots également.
12
Les différents thèmes ont été définis en suivant une approche inductive (lecture
exploratoire du corpus pour identifier les principaux thèmes / arguments) et sur la base
des analyses publiées à la suite du plébiscite (GONZALEZ, 2017 ; PERILLA DAZA,
2018 ; TORRADO, 2017)
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
627
3 Enjeux politiques des médias sociaux numériques et importance
du contexte historique
Après le plébiscite, de nombreuses analyses ont tenté d’expliquer
pourquoi 62,57% des électeurs avaient préféré l’abstention et pourquoi
50,21% semblent préférer un retour à la guerre au lieu de l’alternative
permettant la construction d’un pays en paix. Certains analystes ont
remis en question les sondages et leurs méthodes qui n’ont pas réussi à
prédire les résultats du plébiscite. D’autres ont rendu responsables de
l’échec du « Oui » les représentants de la campagne du « Non » pour
avoir fait circuler des arguments faux, comme par exemple que l’accord
de paix signifiait l’installation du « castro-chavismo »13 ou de la théorie
du genre14 (GONZALEZ, 2017 ; PERILLA DAZA, 2018 ; TORRADO,
2017). La diffusion des mensonges par les promoteurs du « Non » a
été confirmée trois jours après le vote. Le 5 octobre 2016, le journal La
República (spécialisé en actualités économiques et financières et diffusé
dans les principales villes du pays) publiait l’interview du manager de
la campagne du « Non ». Il y avouait que leur stratégie avait consisté à
faire appel aux émotions négatives, en publiant des contenus faux ou des
interprétations hors-sujet de l’accord de paix et profitant de la viralité
propre aux médias sociaux numériques :
Ainsi l’a avoué […] l’ex-manager de la campagne pour le Non
du [parti] Centro Democrático, Juan Carlos Vélez, qui, dans une
interview au journal La República a dit « nous avons fait appel à
l’indignation, nous voulions que les gens aillent voter énervés »,
mais l’exemple a été encore plus accablant : un élu local m’avait
envoyé une image [du président de la République] Santos et [du
chef des FARC] Timochenko avec un message qui demandait
pourquoi allait-on donner de l’argent aux guérilléros alors que le
pays était fauché. Je l’ai publié sur Facebook et le message a atteint
six millions de personnes.15
13
Néologisme péjoratif introduit par l’ex-président Uribe et son parti, le Centro
Democrático, pour assimiler toute position politique contraire à la sienne et toute
position de gauche aux systèmes politiques de Cuba et du Venezuela.
14
Selon eux, les mesures prévues par l’accord de paix pour l’égalité de genre et les droits de
la communauté LGBTI consistaient en fait à promouvoir l’homosexualité dans les écoles.
15
« Así lo confesó el excadidato a la alcaldía de Medellín y exgerente de campaña por el
No del Centro Democrático, Juan Carlos Vélez, quien en entrevista con el periódico La
628
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
Ce cas remettait à nouveau sur la table la facilité avec laquelle
des contenus faux se répandent sur les médias sociaux numériques et
posait la question de la libre expression sur des plateformes telles que
Facebook, Twitter, YouTube ou Instagram, sans aucun contrôle sur la
validité et la fiabilité des contenus. Dans le cas du plébiscite cela avait
conduit à la manipulation de la population.
Nous ne considérons pas pour autant que la liberté d’expression
doive être blâmée. Comme le rappelle Cornu « l’internet [a] donn[é] à la
liberté d’expression de chacun la possibilité de se déployer comme jamais
dans la société. Il revitalise la démocratie en multipliant les terrains et les
acteurs du débat public » (2013, p. 69). En effet, et comme nous l’avions
mentionné pour la Colombie, les médias sociaux permettent à ceux qui
sont exclus des espaces d’expression traditionnels d’avoir une certaine
visibilité sociale et de diffuser leurs contre-discours (SERRANO, 2016).
Le problème qui se pose réside, d’une part dans le manque
d’(auto)contrôle et, d’autre part, dans la crédibilité que les citoyens
semblent accorder aux contenus diffusés à travers les médias sociaux.
Cette crédibilité est tributaire à son tour de la méfiance grandissante à
l’égard des médias d’information traditionnels (presse, radio et télévision
publiques et privées). De nombreux citoyens trouvent ainsi dans les
médias sociaux une source d’information alternative, alors que ces
plateformes ne sont pas soumises aux mêmes chartes éthiques et principes
de responsabilité professionnelle que les journalistes. On arrive ainsi à
des situations où l’opinion des citoyens est moins influencée par des
faits objectifs et avérés que par l’appel à l’émotion ou aux croyances
personnelles (MERCIER, 2018). Cornu résume bien le problème lorsqu’il
affirme
[q]ue des citoyens contribuent librement à la circulation de
l’information, qu’ils répandent sans entraves leurs opinions, est
une manière aussi légitime que celle des journalistes de répondre
au droit de savoir de l’ensemble de la communauté citoyenne. […]
República dijo que “apelamos a la indignación, queríamos que la gente saliera a votar
berraca (de mal genio)”, pero el ejemplo fue más contundente: “un concejal me pasó
una imagen de Santos y ‘Timochenko’ con un mensaje de por qué se le iba a dar dinero
a los guerrilleros si el país estaba en la olla. La publiqué en Facebook tuvo un alcance
de seis millones ». Disponible sur : https://www.elespectador.com/noticias/politica/
cuestionable-estrategia-de-campana-del-no-articulo-658862. Accès le 2 mai 2019.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
629
Mais au nom de quoi le nouveau commerce des faits et des idées
serait-il fermé à toute notion de responsabilité envers la société ?
(2013, p. 70).
Cette réflexion sur la crédibilité accordée par les citoyens
aux contenus diffusés à travers les médias sociaux sans vérification
est nécessaire. Néanmoins, elle ne suffit pas à expliquer l’abstention
majoritaire et la victoire du « Non » lors du plébiscite pour la paix.
L’analyse électorale proposée par Basset qui se base sur une cartographie
analytique démontre que la victoire du « Non » s’explique par un clivage
territorial autour du conflit armé. Pour le chercheur, l’histoire récente de
la guerre a laissé des traces visibles sur les résultats du vote. Même s’il y
a une forte corrélation entre le vote pour le « Non » et la tendance à voter
en suivant les consignes de l’ex-président Uribe (on parle dans le pays
d’un vote « uribista »), Basset démontre que, face à la difficulté de la
campagne pour le « Oui » à mobiliser les électeurs soutenant l’accord de
paix, c’est le vote pour le « Non » non-uribista qui a été décisif. Ce vote
correspond à celui des régions frappées par le conflit armé, mais ne faisant
pas partie des territoires qui allaient bénéficier des investissements prévus
par le post-conflit. Autrement dit, le discours de la paix ne correspondait
pas aux besoins quotidiens concrets de ces régions (BASSET, 2018).
Enfin, l’auteur attire également l’attention sur le fait que les thèmes de
la campagne pour le plébiscite coïncident avec les derniers sujets sur
lesquels ont porté les négociations de paix. Ce sont donc les thèmes
dont on a le moins parlé mais les plus proches dans le temps de la date
du plébiscite : la démobilisation et la réinsertion des ex-guérilléros, leur
participation en politique et les mesures économiques prévues pour leur
réinsertion, financées par l’argent public et des aides internationales.
L’analyse de Basset présente l’avantage de situer la campagne
pour le plébiscite dans le contexte historique du conflit armé que
d’autres analyses ont ignoré. La campagne pour le plébiscite n’est pas
déconnectée de la confrontation armée et des négociations de paix qui
l’ont précédée. Notre analyse s’inscrit dans la suite de cette réflexion pour,
dans un premier temps, comparer les deux campagnes et en identifier
les tendances principales et, dans un deuxième temps, analyser les
allusions au conflit armé faites par les deux campagnes. Cette approche
comparative représente un atout pour notre étude, puisque la littérature
consultée ainsi que la presse nationale se focalisent fondamentalement
630
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
sur la campagne du « Non » (BASSET, 2018 ; GONZALEZ, 2017 ;
PERILLA DAZA, 2018 ; TORRADO, 2017).
4 Principales stratégies de deux campagnes
4.1 Qui mène les campagnes ? Analyse des hashtags
Pour commencer, nous avons voulu déterminer sous quelle
identité se présentaient ceux qui ont participé aux campagnes sur Twitter,
en nous basant sur les informations publiées dans les profils des comptes.
Certes, des pseudos peuvent être créés pour masquer sa vraie identité ;
les comptes peuvent être alimentées par des robots ou encore par des
professionnels de la communication (notamment ceux des personnalités
politiques). Or, ce qui nous importe ici, c’est l’identité qui prend en charge
le contenu diffusé pour soutenir l’accord de paix ou pour s’y opposer. Le
graphique 1 montre que les profils anonymes (ou les pseudos), dans les
deux campagnes, ne représentent qu’un cinquième des tweets analysés.
Ce sont des comptes des personnalités politiques et des individus se
présentant avec un prénom et un nom qui sont majoritaires tant dans
la campagne pour le « Oui » que dans la campagne pour le « Non ».
Autrement dit, dans les deux cas, on observe une volonté d’assumer les
propos par des profils se présentant comme un individu : leader politique
ou citoyen lambda. Nous faisons l’hypothèse que cette façon de procéder
contribue à la crédibilité accordée aux propos par les internautes.
GRAPHIQUE 1 – Identité énonciateur / positionnement
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
631
Plus spécifiquement, la campagne pour le « Oui » a mobilisé
une diversité de mouvements sociaux et de partis politiques allant de la
gauche à la droite (partis Unión Patriótica, Polo Democrático, Alianza
Verde, Partido Liberal, Partido de la U, MIRA, Cambio Radical…),
ainsi que par des membres du gouvernement (président, ministres).
En revanche, c’est l’extrême droite – et tout particulièrement le parti
Centro Democrático, dirigé par l’ex-président et sénateur Uribe, qui a
fait campagne pour le « Non ». Ce parti est soutenu sur Twitter par une
quinzaine de personnes qui, dans leurs profils, se présentent comme des
farouches sympathisants du Centro Democrático ou d’Uribe. Notons que
certains partis ayant fait campagne pour le « Oui » se revendiqueront
des alliés du Centro Democrático lorsque ce dernier deviendra parti de
gouvernement en 2018. C’est le cas notamment du parti MIRA. Enfin,
les tweets dont le positionnement en faveur ou contre l’accord de paix
n’est pas précisé correspondent fondamentalement à ceux des médias
d’information. Onze célébrités (acteurs, chanteurs, sportifs) ont participé
à la campagne pour le plébiscite sur Twitter ; seulement deux l’ont fait
contre l’accord de paix.
Deuxième constat : par le nombre des tweets publiés (613
pour le « Non » et 604 pour le « Oui »), les deux campagnes ne se
distinguent guère, confirmant ainsi que le parti Centro Democrático et
ses sympathisants ont été particulièrement actifs. Une première stratégie
est observée dans le nombre de hashtags créés et les appellations données
à ceux-ci. Les promoteurs du « Oui » ont utilisé deux hashtags dont
l’appellation ne fait qu’expliciter le positionnement en faveur de l’accord
de paix : « la Colombie vote oui » et « Oui à la paix » (#ColombiaVotaSi
et #SiAlaPaz respectivement). De leur côté, les opposants à l’accord
de paix ont utilisé sept hashtags dont seulement deux se limitent à
expliciter le positionnement : « je vote non au plébiscite » et « je vote
non » (#VotoNoAlPlebiscito, #VotoNo), qui sont d’ailleurs le plus
souvent utilisés (tableau 1). Les cinq autres hashtags expriment dans leur
appellation une raison pour s’opposer à l’accord de paix ou proposent une
alternative : « avec des arguments je dis non » (#ConArgumentosDigoNo) ;
« faites histoire votez non » (#HagaHistoriaVoteNo) ; « pour mon pays
je vote non » (#PorMiPaisVotoNo) ; « je vote non et je corrige l’accord »
(#VotoNoYcorrijoLosAcuerdos) ; « la Colombie ne se rend pas / ne se
livre pas » (#ColombiaNoSeEntrega).
632
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
Certes, avec deux hashtags, les promoteurs du « Oui » risquaient
moins de voir leurs tweets dispersés ; néanmoins, comme l’analyse le
confirmera par la suite, les promoteurs du « Oui » ont moins centré la
campagne sur des raisons concrètes associées à l’accord de paix. Dans
leur discours, la paix est quelque chose de positif mais plus abstrait, tandis
que dans le discours de la campagne pour le « Non », les conséquences
de l’accord de paix – qu’ils exposent comme négatives – sont présentées
de manière plus concrète.
Si l’on s’attarde sur les appellations données aux hashtags, on
peut observer une stratégie de rassemblement dans les hashtags employés
par le « Oui ». Avec #ColombiaVotaSi (« La Colombie vote oui »), on
affirme que c’est toute la Colombie qui dit oui à la paix et on efface
les différences entre ceux qui soutiennent l’accord de paix et ceux qui
s’y opposent. Par ailleurs, on observe une stratégie différente quant
à la prise en charge par l’énonciateur. Ceux qui utilisent les hashtags
#SiAlaPaz et #ColombiaVotaSi ne s’engagent pas de la même manière
que les énonciateurs utilisant des hashtags dont l’appellation comporte
un verbe conjugué à la première personne du singulier. En effet, cinq des
sept hashtags utilisés par la campagne du « Non » relèvent de ce cas de
figure : c’est « moi » qui dis « non » ; un « moi » dont le référent change
à chaque prise en charge par un nouvel énonciateur.
Parmi les raisons affichées par les hashtags, dans la campagne
pour le « Non », on trouve le nationalisme (on s’oppose à l’accord de
paix pour son pays : #PorMiPaisVotoNo), la volonté de changer les
choses et faire l’histoire (#HagaHistoriaVoteNo) et surtout celle de réfuter
l’argument selon lequel ceux qui défendent le « Non » sont contre la paix ;
ils ne sont pas contre la paix, mais seulement contre la paix telle qu’elle
est prévue par le texte de l’accord. Ils appellent à voter « Non » de façon
à pouvoir corriger le texte de l’accord : #VotoNoYcorrijoLosAcuerdos
(« je vote Non et corrige les accords »). Précisons, que même si cela
a été fait, l’option de modifier le texte de l’accord de paix n’était pas
envisagée avant le plébiscite.
Un seul hashtag semble traduire la polarisation qui a
caractérisé la campagne et évoquer le conflit armé implicitement :
#ColombiaNoSeEntrega. Ce hashtag sous-entend que l’on s’oppose à ce
que le pays « soit remis » aux FARC ; argument maintes fois répété par
l’ex-président Uribe et les membres de son parti politique, notamment
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
633
le jour de la signature de l’accord de paix. L’implicite cherche la
connivence des récepteurs qui sont censés l’identifier : il faut savoir à
qui ou à quoi l’on ne doit pas « rendre le pays » et pour quelles raisons.
Notons qu’aucun autre hashtag n’évoque le passé de guerre. Les allusions
seront faites, comme cela sera détaillé dans la section suivante, dans les
contenus des tweets.
4.2 Stratégies argumentatives du « Oui » et du « Non »
Au sujet des contraintes imposées par Twitter, notamment en
ce qui concerne la longueur des tweets, notre étude montre qu’elles
sont, en fait, contournées et mises à profit pour mobiliser la population
autour des causes qui se polarisent facilement. Ainsi, la campagne pour
le « Non » à l’accord de paix a fait un recours fréquent aux infographies,
autrement dit aux images de synthèse qui permettent de donner une
forme particulière aux textes et de les accompagner d’images fixes. Le
parti Centro Democrático diffuse souvent des tweets exposant à chaque
fois une raison pour s’opposer à l’accord de paix (nous reviendrons sur
ces raisons ultérieurement). Une seule phrase est mise en forme sur un
fond en couleurs vives, police grande, accompagnée ou non d’une image
fixe (photo, capture d’écran, fac-similé). Au niveau de la forme, ces
infographies ont l’avantage de faire ressortir visuellement le tweet du
flux des messages. Au niveau du contenu, les messages courts facilitent
la diffusion des interprétations fausses, exagérées ou hors-contexte de
l’accord de paix, comme l’avait avoué le manager de la campagne pour
le « Non », cité plus haut.
Dans l’exemple illustré par l’image 1, l’émetteur (l’ex-président
et sénateur Uribe) utilise une des désignations imposées pendant le
conflit armé pour délégitimer la guérilla des FARC en l’associant au
trafic de drogue et au terrorisme (« le groupe narcoterroriste FARC… »).
Le tweet ne fait pas explicitement mention à la guerre qui a précédé
la signature de l’accord de paix, mais utilise des expressions propres
aux discours de guerre auxquels la population a été exposée pendant
des décennies (SERRANO, 2017b). De plus, Uribe critique l’État
qui a accepté de négocier avec ce groupe « narcoterroriste ». De cette
façon, le Centro Democrático refuse toujours de reconnaître l’exguérilla comme un adversaire politique après les négociations de paix.
Concernant la forme, la phrase du tweet, que l’on pourrait traduire par
634
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
« Le groupe narcoterroriste FARC sera maintenant partenaire de l’État.
#LaColombieNeSeRendPas » utilise différentes tailles de police et des
couleurs qui contrastent avec le fond bleu clair. L’infographie est traversée
par une sorte de ruban qui correspond au drapeau national, cherchant
ainsi à rassembler des récepteurs autour du nationalisme. Pour remplir
sa fonction de thématisation, le hashtag est autant visible sur l’image que
sur le tweet sous forme de texte. Si le même contenu de l’image avait
été diffusé uniquement sous forme de texte, il aurait été moins visible
et aurait pu se confondre avec le flux de tweets auxquels s’exposent les
internautes.
IMAGE 1 – Capture d’écran d’un tweet de l’ex-président Uribe
contre l’accord de paix
Concernant la campagne du « Oui », le graphique 2 montre que
la grande majorité des tweets se limitent à exprimer le positionnement en
faveur de l’accord de paix ou à annoncer les événements pendant lesquels
on allait « faire de la pédagogie », autrement dit à expliquer l’accord de
paix. Sur les 604 tweets recensés en faveur de l’accord de paix, 271 sont
635
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
classés dans la catégorie « On fait campagne / mobilisation » et 153 dans
la catégorie « aucun » (graphique 2). Ainsi, presque trois quarts (424) des
tweets soutenant le « Oui » expriment uniquement le positionnement,
sans en donner une raison concrète. Dans la campagne pour le « Non »,
la proportion de ce type de messages (classés dans les catégories « on
fait campagne / mobilisation » et « aucun ») n’atteint qu’un cinquième
des tweets (129 sur 613). Pour le dire autrement, la campagne du « Non »
utilise Twitter comme un dispositif de persuasion, alors que la campagne
du « Oui » l’utilise comme un relais d’information.
GRAPHIQUE 2 – Thèmes / arguments avancés par les deux campagnes
en nombre de tweets
on fait campagne / mobilisation
89
aucun
40
153
FarC = criminnels
110
Critiques au président de la République
83
Conséquences positives de l'accord de paix
78
L'accord n'est pas la paix
2
3
77
Accord = impunité FARC
2
60
Accord = éviter les conséquences négatives de la guerre
58
Critiques à l'autre campagne
37
Accord = bénéfices inacceptables pour les FARC
49
L'accord de paix aura des conséquences négatives
47
accord = "castro-chavismo", communisme, socialisme
271
54
27 2
Citation du / Mention au texte de l'accord de paix 17 9
autre 16 24
Nationalisme 14
Renforcer la démocratie 8
NoN
ouI
Certes, la campagne du « Oui » emploie également des
infographies assurant plus de visibilité à leurs contenus. Toutefois,
comme l’illustre l’image 2, il s’agit avant tout d’annoncer la date, l’heure
et le lieu où se rendra telle ou telle personnalité politique pour parler de
l’accord de paix.
636
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
IMAGE 2 – Capture d’écran d’un tweet de la sénatrice Claudia López (Parti Vert)16
En comparant les thèmes / arguments mobilisés par les campagnes,
force est de constater (graphique 2) que les promoteurs du « Non » en
utilisent davantage et que ces thèmes relèvent d’aspects plus concrets
que ceux avancés par les promoteurs du « Oui ». Le thème / argument le
plus fréquemment utilisé par le « Non » correspond aux tweets classés
dans la catégorie « FARC = criminels ». Il s’agit ainsi de rappeler les
crimes que cette guérilla a commis et les faits qu’on lui attribuait pendant
la période de confrontation armée : assassinats, enlèvements, trafic de
drogue. Pour ces raisons, affirmaient les promoteurs du « Non », on ne
pouvait pas accepter l’ex-guérilla dans la société. Ils affirmaient que
l’accord de paix assurait l’impunité pour tous ces crimes et qu’en plus
l’État s’engageait à octroyer des bénéfices aux FARC comme celui de
leur laisser participer en politique (être élus). C’est ce type d’argument
16
Traduction du tweet : « Merveilleuse et intense journée à Bello, Rionegro et
#ParcExplora. Demain nous continuons la pédagogie #OuiAlaPaix à Medellin ».
L’image annonce les deux événements auxquels allait participer la sénatrice le vendredi
9 septembre à 8 heures et à 11heures, à Medellín. En bas à droite, on lit « Oui à la paix »,
« Adieu à la guerre ».
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
637
que le Centro Democrático a déployé pour faire appel à l’indignation
de la population, comme le reconnaissait le manager de la campagne.
Les promoteurs du « Oui » ont préféré, de leur côté, une stratégie
consistant à utiliser Twitter pour communiquer des liens renvoyant
à d’autres sites (ceux des médias ou des blogs d’information, ou aux
plateformes des médias sociaux comme YouTube) où des longs textes
ou des vidéos expliquent le contenu de l’accord de paix et démentent,
de manière argumentée, les interprétations erronées de la campagne
du « Non ». De cette manière les promoteurs du « Oui » contournent
les limites de longueur imposées par Twitter. Cependant, leur stratégie
comporte un risque : si les internautes ne cliquaient pas sur les liens, ils
n’accédaient pas au contenu développé et argumenté sur l’accord de paix.
Ceci étant dit, sur les 604 tweets soutenant le « Oui », un peu
plus d’un tiers (232, graphique 2) expose une raison précise pour soutenir
l’accord de paix. Ils affirment fondamentalement que la paix aurait des
conséquences positives pour les victimes du conflit et les paysans et qu’on
allait enfin vivre en paix. On constate également que certains tweets font
appel à la mémoire du conflit armé, en parlant des victimes et de la fin
de la guerre. Nous y reviendrons dans la section suivante.
Pour finir au sujet des principales tendances des deux campagnes,
les promoteurs du « Non » ont privilégié une stratégie offensive,
consistant à attaquer les FARC, le président de la République et l’accord
de paix. Les promoteurs du « Oui » ont préféré une stratégie neutre,
consistant à inviter les internautes à voter en faveur de l’accord de paix
ou à se déplacer (virtuellement ou physiquement) pour connaître les
avantages de l’accord.
5 La mémoire du conflit armé dans la campagne traitant du
plébiscite pour la paix : le rôle des allusions
En dépit des différences identifiées entre les deux campagnes,
la paix est vue tant par les uns que par les autres au regard du conflit
armé. Dans un cas, on ne peut pas oublier ce que les FARC ont fait en
tant que groupe armé illégal, et dans l’autre, il faut éviter que les crimes
commis pendant la guerre continuent à se reproduire. Plus précisément,
nous avons observé que de la même manière que pendant la période de
confrontation armée on cherche à instrumentaliser (le rappel de) certains
faits pour légitimer sa position (dans le cas de la campagne pour le
638
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« Oui ») ou pour délégitimer l’adversaire (qui reste un ennemi dans le
cas de la campagne pour le « Non »).
Ces allusions, qui relèvent d’une mémoire partielle et partialisée
du conflit armé interne, méritent une attention particulière, parce
que l’histoire de celui-ci est loin de faire le consensus dans le pays.
D’ailleurs, dans le cadre des négociations de paix et conscients des
enjeux que supposait le post-conflit, le gouvernement du président
Santos et les FARC ont décidé de créer deux commissions. La première
– la Commission Historique du Conflit Armé et de ses Victimes17 – a
fonctionné entre août 2014 et février 2015. Elle avait comme mission
d’élaborer un rapport en relation avec : a) les origines et les causes
multiples du conflit armé, b) les principaux facteurs ayant contribué à sa
persistance et c) les effets les plus notoires du conflit sur la population.
La deuxième – la Commission de la Vérité – a démarré son travail fin
201818 pour une période de trois ans. Sa mission est d’élucider la vérité
au sujet du conflit armé et d’assurer la cohabitation et la non répétition
des crimes commis pendant la guerre interne.19
Pour illustrer la difficulté sous-jacente aux missions de ces
commissions, mentionnons le principal constat dressé par la Commission
Historique du Conflit Armé et ses Victimes lorsqu’elle a présenté son
rapport de 809 pages devant les deux délégations de paix (celle qui
représentait le gouvernement et celle qui représentait les FARC). Ce
jour-là (le 10 février 2015), à la Havane, les deux rapporteurs de la
commission reconnaissaient l’impossibilité de s’accorder – entre les 12
membres – sur une seule version à propos des origines du conflit armé,
des facteurs qui ont contribué à le maintenir et de ses conséquences sur
la population. Par exemple, selon la date ou la période retenue pour
situer l’origine du conflit armé, le principal responsable de la guerre et
des crimes commis n’est pas le même. Certains chercheurs remontent
17
Commission constituée par 12 chercheurs dont la moitié a été choisie par le
gouvernement et la moitié par les FARC. Le travail de cette commission est disponible
sur : http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/mesadeconversaciones/index.html.
Accès le : 10 juin 2019.
18
Disponible sur : https://comisiondelaverdad.co/actualidad/noticias/la-comision-iniciasu-mandato-con-el-primer-encuentro-por-la-verdad. Accès le 20 mai 2019.
19
Disponible sur : https://comisiondelaverdad.co/la-comision/que-es-la-comision-dela-verdad Accès le 6 juin 2019.
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639
aux années 1920-1930 pendant lesquelles les mesures économiques
du gouvernement de l’époque ont engendré la pauvreté et l’exclusion
sociale à l’origine de la création des guérillas. D’autres situent l’origine
du conflit plus tardivement, dans les années 1960, avec la naissance des
guérillas. Enfin, pour d’autres, le conflit, tel qu’on le connaissait au début
des années 2000, commence dans les années 1980 avec le financement
du trafic de drogue et la création des groupes paramilitaires (COMISION
HISTORICA DEL CONFLICTO Y SUS VICTIMAS, 2015).
En conséquence, les négociations de paix ont aussi porté sur la
manière de considérer les acteurs armés (légaux et illégaux). La guérilla
demandait à ce que ses combattants soient considérés sur un pied d’égalité
avec les membres des forces armées de l’État. Certains représentants
du gouvernement et des militaires s’opposaient farouchement à cette
demande. À leur avis, la violence de l’État était légitime, car elle
servait à combattre des groupes hors-la-loi. En ce sens, ils refusaient
d’être comparés aux « terroristes » et d’admettre que leur violence
avait engendré des victimes. Encore dans l’actualité, certains militaires
contestent la justice transitionnelle mise en place dans le cadre de l’accord
de paix, car elle donne le même traitement à tous les acteurs du conflit :
groupes armés légaux (forces armées de l’État) et illégaux (guérilla et
paramilitaires) et civils.
Dans ces discussions sur les responsables de la violence politique
et armée, les allusions au conflit dans les médias d’information et dans
les médias sociaux numériques ont aussi un rôle à jouer. À notre avis,
ces allusions participent au débat sur ce qui doit être considéré comme
faisant partie de l’histoire du conflit armé interne. La question qui se
pose est de savoir quels sont les faits et les événements qui « méritent »
d’être remémorés et qui doivent faire partie de la mémoire collective et
de l’histoire officielle du conflit. Tout comme le discours d’information
des médias dits traditionnels (presse, radio et télévision) constituent des
modes d’accès privilégiés à la matière même de l’histoire en train de
se faire (KRIEG, 2000), dans les médias sociaux, on désigne l’actualité
et on l’organise pour en rendre compte ou pour prendre position à son
sujet. Ces processus de nomination et de mise en récit participent à la
mémorisation de l’histoire du temps présent (SAMOUTH, 2011, Chap.
Introduction). C’est pour cette raison que les allusions circulant dans
les discours de campagne pour le plébiscite méritent, à notre avis, d’être
640
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
examinées. En suivant les propos de Moirand (2007) concernant la presse
d’information, nous considérons que dans les discours diffusés sur Twitter
(qui correspondent à des discours d’énonciation subjectivisée), les formes
d’allusion fonctionnent comme des rappels mémoriels des dires, des faits
et des événements antérieurs qui contribuent à construire ou à renforcer
la mémoire collective. Ainsi, nous cherchons à comprendre comment
les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur Twitter
pour le plébiscite sont mobilisées dans une visée persuasive : quels sont
les événements rappelés, par qui et dans quel but ?
5.1 Les allusions au conflit armé : une instrumentalisation politique de
la mémoire ?
Ayant observé que les deux campagnes font des allusions à la
guerre et qu’il est impossible de tout dire ou de tout rappeler au sujet
du conflit armé, s’est posé la question de savoir quelle est la version
du conflit armé que l’on cherche à imposer lorsqu’il s’agit de défendre
l’accord de paix ou de l’attaquer.
Pour commencer, les rappels à la guerre sont plus fréquents dans
la campagne pour le « Non ». Dans ce cas, la plupart des allusions se
retrouvent dans les tweets regroupés dans le thème « FARC = criminels »
(110 tweets sur 613, graphique 2) qui justifient l’opposition à l’accord
de paix en délégitimant les FARC de deux manières principalement. La
première consiste à remémorer leurs actions de guerre en les rendant
responsables des crimes atroces : viol, enlèvement, recrutement d’enfants,
terrorisme, etc. La deuxième consiste à désigner cette guérilla – qui était,
à l’époque de la campagne pour le plébiscite, en voie de transformation
en mouvement politique légal – avec les appellations délégitimantes,
utilisées par le passé, pour justifier la guerre contre elle : « narcoterroristes,
narcogénocidaires, terroristes… ». Nos études précédentes (SERRANO,
2017b) démontraient que ces désignations cherchaient à occulter les
motivations politiques revendiquées par le groupe rebelle. Dans la
campagne pour le « Non », aucune allusion ne rappelle des faits attribués
aux autres groupes ou acteurs sociaux impliqués dans le conflit armé.
Précisons à ce sujet que le parti Centro Democrático a plusieurs de ses
membres – ou de leurs proches – impliqués dans des procès ou ayant
été condamnés pour avoir des liens avec les groupes paramilitaires. On
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641
peut mentionner notamment l’ex-président Uribe, un de ses frères et un
de ses cousins.
La stratégie des opposants à l’accord de paix peut être illustrée
par l’image 3, correspondant à un tweet dont le texte traduit : « nous
ne pouvons pas récompenser avec de l’impunité et la participation
politique ceux qui ont eu des camps de concentration en Colombie ». Les
six images qui l’accompagnent permettent d’identifier le sous-entendu
associé à « camps de concentration » renvoyant à la Deuxième Guerre
mondiale. L’énonciateur associe les FARC aux Nazis. L’événement
auquel il fait allusion correspond à la prise d’otages (ou « rétention »
comme disaient les FARC) des militaires par la guérilla suite à des
combats qui ont eu lieu à la fin des années 1990. Des centaines des
militaires sont restés « kidnappés » (comme disait le gouvernement20)
par les FARC, certains pendant des mois, voire des années. Les images
du tweet ci-dessous sont des captures d’écran d’une vidéo tournée par un
journaliste travaillant à l’époque pour une importante chaîne privée de
télévision. Il était le premier à tourner un reportage dans un campement
de la guérilla.21 Les captures d’écran choisies pour ce tweet montrent des
plans où l’on voit les militaires derrière des fils barbelés qui à leur tour
font allusion aux images des camps de concentration nazi au moment
de la libération par les Alliés à la fin de la Deuxième Guerre mondiale.
Plusieurs travaux menés dans d’autres contextes rendent compte de cette
stratégie de légitimation de la violence que l’on fait subir à un adversaire
que l’on compare aux nazis (BAR-TAL ; HAMMACK, 2012 ; KRIEGPLANQUE, 2003).
20
Au sujet des désignations utilisées pour se référer à ces militaires et personnalités
politiques pris en otage, voir : (SERRANO, 2015).
21
Le récit sur la réalisation de ce reportage est raconté par le journaliste dans une interview
publiée, le 9 juillet 2018, par le journal argentin La Nación dans sa version en ligne .
Disponible sur : https://www.lanacion.com.ar/lifestyle/botero-el-primer-periodista-quefilmo-a-las-farc-escuche-historias-tremendas-nid2151564. Accès le : 10 juin 2019.
642
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IMAGE 3 – Capture d’écran d’un tweet publié par un homme se présentant
dans son profil comme « spécialiste en marketing, uribista » (sympathisant
de l’ex-président Uribe)
Les images font partie de la mémoire collective du pays.
Reprises pendant des années dans des reportages des journaux télévisés,
elles étaient la preuve des crimes des FARC et justifiaient la volonté de
l’État colombien et de ses forces armées de les combattre. Les images
de ce tweet portent en elles les représentations et les émotions qu’on
leur a associées au cours de quinze dernières années. Ici, il ne s’agit
pas de parler de ce que pourrait devenir le pays en votant « Oui » ; il
s’agit plutôt d’éveiller des ressentiments, voire de la colère pour rejeter
l’accord de paix. Dans le but de renforcer la crédibilité de ce type de
propos, certains tweets donnent des chiffres exacts. Par exemple, Uribe
parle de « 11 700 enfants recrutés » ou encore de « 6 800 femmes
violées » par les FARC.
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643
Dans la même lignée, d’autres tweets proposent des témoignages
des victimes des FARC. Ces victimes peuvent être des citoyens ordinaires
et vulnérables (afin d’éveiller l’empathie ou de favoriser l’identification
des récepteurs) ou des personnalités politiques « kidnappées » par les
FARC dans le passé, très connues dans le pays puisque tous les médias
régionaux et nationaux ont suivi leur cas pendant des années. Un de ces
tweets (image 4) fait appel au premier type de victimes. Il propose une
vidéo d’une minute où l’on voit une femme d’une quarantaine ou d’une
cinquantaine d’années. Son apparence (vêtements, façon de parler, teint
de sa peau) suggère qu’elle appartient à une classe sociale populaire. En
pleurs, elle se présente comme paysanne déplacée, victime de la guérilla
qui l’a violée alors qu’elle était une enfant de 8 ans et que pour cette
raison elle allait voter « Non » au plébiscite.22 La vidéo est accompagnée
des images d’archive (dont la source et l’identité des personnages ne
sont pas précisées) montrant des hommes armés en uniforme militaire
lors d’entrainements ou d’opérations militaires. Il ne s’agit pas d’un
document journalistique, ni juridique ; aucun indice dans ce sens n’est
fourni. Seul le témoignage constitue la preuve des affirmations. La capture
d’écran ci-dessous permet de voir le texte incrusté qui cite le quotidien
national El Tiempo du 10 octobre 2015, selon lequel « 9 892 femmes
ont été violées selon l’Unité des victimes ». Or, la sénatrice du Centro
Democrático qui publie le tweet fait l’amalgame entre le chiffre total des
femmes victimes de viol et les cas que la source officielle attribue aux
FARC. Pour mieux comprendre l’intérêt de cette vidéo, il convient de
préciser que de nombreuses victimes de tous les groupes armés (guérillas,
paramilitaires et forces armées de l’État), et connues dans le pays, ont
fait campagne activement en faveur de l’accord de paix.
22
Disponible sur : https://twitter.com/PaolaHolguin/status/778222900495130624.
Accès le : 30 avril 2019.
644
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IMAGE 4 – Capture d’écran d’un tweet de la campagne pour le
« Non » publié par une sénatrice du parti Centro Democrático
Ce type de tweets reposant sur la délégitimation des FARC pour
s’opposer à l’accord de paix est accompagné de tweets regroupés dans
les catégories « Accord = impunité FARC » (60 tweets) et « Accord =
bénéfices inacceptables pour les FARC » (49 tweets, graphique 2). La
stratégie des promoteurs du « Non » consiste donc, d’abord à rappeler
que les FARC sont des criminels pour ensuite affirmer que les mesures
prévues par l’accord de paix pour la réinsertion des ex-combattants et
la transformation en mouvement politique légal sont inadmissibles.
En d’autres termes, les promoteurs du « Non » ne parlent pas de ce
que deviendra le pays lorsque les FARC rendront les armes (ce qu’ils
mettaient en doute d’ailleurs23). Ils ne reconnaissent pas non plus le pas
en avant fait par la guérilla pour se transformer en mouvement politique
légal.24 Les allusions faites à la guerre par la campagne du « Non »
construisent une version du conflit armé où il n’y a qu’un responsable
La remise d’armes par l’ex-guérilla est certifiée par la mission des Nations Unies en
Colombie en octobre 2017 . Disponible sur : http://www.altocomisionadoparalapaz.
gov.co/Prensa/Paginas/2017/Septiembre/onu-finaliza-dejacion-armas-entrega-cifrasconsolidadas-armamento-recibido-inhabilitado.aspx. Accès le : 20 juin 2019.
24
Le parti FARC est lancé le 1er septembre 2017 . Disponible sur : https://www.
elespectador.com/noticias/paz/farc-lanza-su-proyecto-politico-con-un-megaconciertoen-la-plaza-de-bolivar-de-bogota-articulo-711181. Accès le : 20 juin 2019.
23
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645
de la violence : la guérilla. Les actes de violence et les crimes commis
par les autres groupes armés ou non armés sont occultés.
En ce qui concerne la campagne pour le « Oui », les allusions au
conflit armé sont moins fréquentes ; elles concernent principalement les
tweets regroupés dans le thème « Accord = éviter les conséquences de la
guerre » (58 tweets, graphique 2). Deux stratégies ont pu être observées.
La première consiste à faire des allusions à la durée de la guerre de
« plus de 50 ans », ce qui sous-entend que c’est beaucoup et qu’il est
temps d’en finir. La deuxième stratégie consiste à rappeler des faits de
guerre dont les principaux responsables sont les paramilitaires ou les
forces armées de l’État. À l’instar de la campagne pour le « Non », c’est
une version du conflit armé partiale et partialisée qui commence à être
remémorée après les processus de paix. Lorsque les crimes de la guérilla
sont évoqués (comme dans le tweet de l’image 5), on précise que c’est
dans le passé : « Neuf policiers meurent dans une attaque des FARC.
18 militaires ont été kidnappés. Pas de souci, ce sont des informations
du passé ; pour qu’elles ne se reproduisent plus #OuiAlaPaix ». Ceux
qui soutiennent l’accord de paix saluent la transformation des FARC en
mouvement politique qui évitera la reproduction de ces crimes. D’ailleurs,
le jour de la signature de l’accord de paix (le 26 septembre 2016), en
pleine campagne pour le plébiscite, de nombreux leaders d’opinion et
des personnalités politiques ont souhaité à travers Twitter « la bienvenue
à la démocratie » aux FARC.
IMAGE 5 – Capture d’écran d’un tweet en faveur de l’accord de paix
La diversité de tendances politiques ayant soutenu l’accord
de paix semble avoir une influence sur le type de faits évoqués et
donc sur la désignation des responsables. Il est vrai que la majorité
des allusions renvoient aux crimes des groupes paramilitaires et des
646
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forces armées de l’État ; néanmoins, un cas mérite d’être discuté par sa
rareté. Il s’agit de l’une des vidéos avec lesquelles la présidence de la
République promouvait l’accord de paix (images 6 à 10). La vidéo25 de
2 minutes 4 secondes montre 4 personnes (2 femmes et 2 hommes) qui
représentent les victimes du conflit armé. On voit en premier (image
6) une femme dont le fils a été victime de ce que l’on connaît dans le
pays comme l’affaire des « faux positifs », autrement dit l’assassinat de
civils, généralement de jeunes hommes provenant des couches sociales
défavorisées, par les membres des forces armées de l’État qui déguisaient
ensuite les cadavres en guérilléros pour montrer des résultats positifs
dans la lutte contre le « terrorisme ». L’armée récompensait ces « bons »
résultats par des jours de congé ou des bonifications salariales. Depuis
que le scandale a été mis à jour, des militaires ont été licenciés et / ou
font l’objet d’enquêtes judiciaires.26 Dans la vidéo, cette femme accuse
explicitement la brigade militaire qui a tué son fils. Non seulement cette
vidéo de la présidence commence par reconnaître les crimes de l’État,
mais en plus, c’est le seul acteur armé qui est désigné explicitement
dans les témoignages des victimes que l’on entend dans la vidéo. Les
trois autres mentionnent les faits, mais il faut faire appel à la mémoire
collective pour identifier les responsables, ce qui est extrêmement rare
de la part de l’État colombien.
En deuxième, on voit un homme qui remémore les 48 enfants
tués lors du massacre de Bojayá dont sont responsables les FARC. Dans
le cadre des négociations de paix, ce fait a été reconnu par la guérilla qui
s’est rendu sur le lieu pour accepter sa responsabilité et demander pardon
aux victimes. En troisième lieu, la vidéo montre une femme, journaliste
d’un quotidien national à l’époque où elle s’est rendue à la principale
25
Disponible sur : https://twitter.com/infopresidencia/status/770085649214877696.
Accès le : 30 avril 2019.
26
Voir à ce propos : DH Colombia, 25 janvier 2009, “El dossier secreto de los falsos
positivos”. Disponible sur : http://www.dhcolombia.info/spip.php?article714&decoupe_
recherche=el%20dossier%20secreto%20de%20los%20falsos%20positivos. Accès le :
24 septembre 2009.
ONU, “Informe anual de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos
Humanos sobre la situación de los derechos humanos en Colombia”. Disponible sur : http://
www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/assets/Informe%202008,%20SITUACION%20
DE%20DD.HH.%20EN%20COLOMBIA.pdf. Accès le : 24 septembre, 2009.
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
647
prison du pays pour interviewer des paramilitaires emprisonnés. Ce jourlà, des paramilitaires l’ont kidnappée (alors qu’elle était dans la prison)
pendant plusieurs heures et l’ont violée. En dernier, la vidéo montre le
fils d’un politicien membre du parti politique UP (Unión Patriótica),
tué en 1989. Il évoque l’extermination de ce parti politique de gauche
par l’assassinat sélectif de ses membres dès la fin des années 1980. On
parle de 3000 à 6000 victimes. Dans le cadre des négociations de paix
avec les FARC, le président de la République a reconnu la responsabilité
de l’État dans ce crime de lèse-humanité. La vidéo conclut en affirmant
que « la seule manière de vaincre la guerre est de parler de paix » (image
10). Le texte qui accompagne la vidéo dit : « Ils ont été des victimes du
conflit et aujourd’hui ils misent pour le #OuiAlaPaix. Ils regardent le
futur avec illusion ». En plus de promouvoir l’accord de paix, cette vidéo
répond aux engagements pris par le gouvernement (et par la guérilla des
FARC), dans le cadre des pourparlers de paix, consistant à reconnaître
que tous les acteurs (armés et non-armés, légaux et hors-la-loi) impliqués
dans le conflit sont responsables de la violence qui a produit des victimes
civiles innocentes.
IMAGES 6 à 10 – Captures d’écran d’une vidéo postée dans un tweet
de la présidence de la République pour soutenir l’accord de paix
648
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
Hormis cette vidéo singulière, on constate que les faits les
plus souvent évoqués par la campagne du « Oui » sont les massacres,
majoritairement commis dans le pays par les groupes paramilitaires.
Ainsi dans un tweet (IMAGE 11), le massacre de El Salado27 rappelle
implicitement tous les autres massacres et souligne la résilience de
27
Le reportage de l’hebdomadaire d’actualités politiques Semana du 18 février 2018
revient sur ce massacre où un groupe de paramilitaires a assassiné 66 personnes entre le
16 et 21 février 2000 sur la place du village et devant une centaine des résidents que les
paramilitaires avaient regroupé pour les obliger à regarder : « Fiesta de sangre: así fue
la masacre de El Salado ». Disponible sur : https://www.semana.com/nacion/articulo/
masacre-de-el-salado-como-la-planearon-y-ejecutaron-los-paramilitares/557580. Le
texte a été écrit par Marta Ruiz et publié à l’origine le 30 août 2008.
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649
la population (« #ElSalado exemple de résistance, exemple de #Paix
#OuiAlaPaix #JeJoinsLaPaix #OuiAlaPaixCo #EquipePaixGouv
#LaPaixGagne »). Ce tweet illustre la stratégie observée dans l’exemple
précédent, consistant à s’appuyer sur des sous-entendus. Dans le cas
du tweet ci-dessous, seul le lieu est mentionné : El Salado. Tant le fait
(massacre) que les responsables (paramilitaires) restent implicites.
L’allusion repose sur la mémoire collective. En effet, ce massacre est
connu comme l’un des pires de l’histoire récente du conflit armé.
IMAGE 11 – Capture d’écran d’un tweet de campagne pour le « Oui »
publié par un fonctionnaire du gouvernement
En somme, la campagne pour le « Oui » évoque des cas
emblématiques, comme l’extermination du parti politique Unión
Patriótica28 (UP) ou les massacres des paramilitaires. L’image 12 en
28
Assassinats sélectifs des membres du parti politique UP. Le cas, contre l’État
colombien pour l’extermination du parti est arrivé en juillet 2018 à la Cour
Interaméricaine des Droits Humains : Disponible sur : https://www.oas.org/es/cidh/
prensa/comunicados/2018/162.asp. Accès le : 15 juin 2019.
650
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
est un dernier exemple. Le texte du tweet traduit « pour nos victimes,
pour toutes les victimes de #Colombie #JusticeAvecL’UP #OuiAlaPaix
#LaPaixEstAvecToi ». Le texte de l’infographie traduit « #JusticeAvecL’UP
Ils pourront couper les fleurs, ils ne pourront pas stopper le printemps ».
L’infographie est accompagnée de trois photos, portraits de membres de
l’UP assassinés dans les années 1980. Ainsi, non seulement le fait est
remémoré, mais aussi les personnes victimes à travers leurs photos où on
les voit en vie. Ce qui est intéressant avec ce tweet, c’est que l’énonciatrice,
certes, remémore les victimes du conflit, néanmoins, elle les divise en deux
groupes : « nos » victimes et les autres. À nouveau, ce sont les implicites
suggérés qui font sens : « nos » victimes à qui ? Les images permettent
de comprendre qu’il s’agit des victimes de l’UP.
IMAGE 12 – Capture d’écran tweet d’une membre du parti UP
qui a survécu à un attentat
Par ailleurs, on constate que la campagne du « Oui » a tendance
à remémorer des victimes que l’on pourrait qualifier des « célèbres »,
autrement dit très connues dans le pays. Ce ne sont pas les seules victimes
de la violence des forces armées de l’État et des groupes paramilitaires,
mais elles restent dans la mémoire collective du pays. Certaines étaient
particulièrement charismatiques et appréciées comme l’humoriste Jaime
Garzón, assassiné en 1999 ou Diana Turbay, fille d’un ex-président de la
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
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République, kidnappée par le trafiquant Pablo Escobar et tuée durant sa
captivité. Pour mieux comprendre cette stratégie consistant à évoquer les
victimes connues, rappelons que durant les décennies de confrontation
armée, c’est le discours de l’une des parties du conflit qui s’est imposé,
à savoir celui qui provenait des sources officielles (État, gouvernement,
forces armées de l’État). Ces sources revendiquaient la légitimité que
leur donnait le fait de combattre des groupes armés hors-la-loi et se
permettaient d’exiger des médias de ne diffuser que leur version du conflit
armé, condamnant ainsi à l’invisibilité les discours des victimes de la
violence de l’État et plus largement de tout discours alternatif. En réponse
à ce contexte de visibilité limitée, et profitant des espaces ouverts grâce
à l’accord de paix et à l’Internet, les secteurs de gauche commencent à
rendre visible leur propre version du conflit armé. Nous faisons l’hypothèse
que, dans le cadre de la campagne traitant du plébiscite pour la paix, les
promoteurs du « Oui » situés à gauche de l’échiquier politique évoquent
les victimes charismatiques et très connues dans le pays afin de faciliter
la réception d’un discours qui va à l’encontre de celui qui s’est imposé
pendant des décennies.
6 En guise de conclusion
Au terme de cette analyse de 1307 tweets de campagne traitant du
plébiscite pour la paix d’octobre 2016 (dont 604 en faveur de l’accord de
paix et 613 contre), force est de constater que le discours de promotion
de la paix peine à s’imposer par rapport au discours de légitimation
de la guerre. Par ailleurs, ce sont les opposants à l’accord de paix qui
exploitent davantage les allusions au conflit armé pour incriminer les
FARC et ainsi justifier l’opposition à l’accord. Les allusions à la guerre
dans les discours de campagne soutenant la paix récupèrent la mémoire
de ceux dont l’histoire est moins connue dans le pays. Les allusions ne
servent pas seulement à soutenir ou à s’opposer au conflit armé ; elles
contribuent aussi au processus de construction de la mémoire collective.
Plus globalement, ces résultats interrogent la manière dont les
promoteurs de l’accord de paix défendent ce dernier : comment parler
de la paix pour sortir de la guerre ? Si la construction d’une mémoire
collective du conflit autour des faits et des acteurs sociaux invisibilisés
durant les décennies de confrontation armée est nécessaire, faut-il associer
cet objectif à celui de la promotion de la paix ?
652
Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020
À propos de Twitter, en tant que plateforme accessible à une
diversité d’acteurs sociaux (leaders d’opinion, citoyens ordinaires),
il a été utilisé comme : a) outil de relais d’information b) espace
d’expression d’une opinion et c) outil de mobilisation de la population.
Plus que subies, les contraintes imposées par le dispositif ont été mises
à profit par les deux campagnes, mais surtout par celle qui s’opposait à
l’accord de paix. Ainsi, la multicanalité a permis de rendre plus visibles
les messages en les faisant ressortir du flux des tweets. Les contraintes
de longueur justifient les discours courts qui cherchent à mobiliser par
l’appel à l’émotion davantage que par le développement d’arguments
rationnels. La diffusion des contenus dont la source et la véracité n’ont pas
à être vérifiés pose sérieusement la question d’une éducation aux médias
sociaux numériques. Ceux qui publient des contenus sur les médias
sociaux devraient être sensibilisés pour assumer leur responsabilité auprès
de la société. Ceux qui consomment ces contenus devraient s’entraîner
à développer une attitude critique. Les médias sociaux ne peuvent pas
s’imposer comme des sources d’information au même titre que les
discours journalistiques, soumis à des règles et des codes déontologiques.
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