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ISSN Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 V.28 - Nº 1 Rev. Estudos da Linguagem Belo Horizonte v. 28 n. 1 p. 1-655 jan./mar. 2020 REvista DE EstuDos Da liNguagEm universidade Federal de minas gerais REITORA: Sandra Regina Goulart Almeida VICE-REITOR: Alessandro Fernandes Moreira Faculdade de letras: DIRETORA: Graciela Inés Ravetti de Gómez VICE-DIRETORA: Sueli Maria Coelho Editora-chefe Editores-associados Heliana Ribeiro de Mello Aderlande Pereira Ferraz (UFMG) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG) Editoras convidadas: Dossiê Ida Lúcia Machado (UFMG) Gláucia Muniz Proença Lara (UFMG) Béatrice Turpin (Univ. de Cergy-Pontoise) Revisão e Normalização Editoração eletrônica Alda Lopes Durães Ribeiro Heliana Ribeiro de Mello Alda Lopes Durães Ribeiro secretaria Henrique Vieira REVISTA DE ESTUDOS DA LINGUAGEM, v.1 - 1992 - Belo Horizonte, MG, Faculdade de Letras da UFMG Histórico: 1992 ano 1, n.1 (jul/dez) 1993 ano 2, n.2 (jan/jun) 1994 Publicação interrompida 1995 ano 4, n.3 (jan/jun); ano 4, n.3, v.2 (jul/dez) 1996 ano 5, n.4, v.1 (jan/jun); ano 5, n.4, v.2; ano 5, n. esp. 1997 ano 6, n.5, v.1 (jan/jun) Nova Numeração: 1997 v.6, n.2 (jul/dez) 1998 v.7, n.1 (jan/jun) 1998 v.7, n.2 (jul/dez) 1. Linguagem - Periódicos I. Faculdade de Letras da UFMG, Ed. CDD: 401.05 ISSN: Impresso: 0104-0588 On-line: 2237-2083 REvista DE EstuDos Da liNguagEm V. 28 - Nº 1 - jan.-mar. 2020 Indexadores Diadorim [Brazil] DOAJ (Directory of Open Access Journals) [Sweden] DRJI (Directory of Research Journals Indexing) [India] EBSCO [USA] JournalSeek [USA] Latindex [Mexico] Linguistics & Language Behavior Abstracts [USA] MIAR (Matriu d’Informació per a l’Anàlisi de Revistes) [Spain] MLA Bibliography [USA] OAJI (Open Academic Journals Index) [Russian Federation] Portal CAPES [Brazil] REDIB (Red Iberoamericana de Innovación y Conocimiento Científico) [Spain] Sindex (Sientific Indexing Services) [USA] Web of Science [USA] WorldCat / OCLC (Online Computer Library Center) [USA] ZDB (Elektronische Zeitschriftenbibliothek) [Germany] REvista DE EstuDos Da liNguagEm Editora-chefe Heliana Ribeiro de Mello (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Editores-associados Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Gustavo Ximenes Cunha (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Maria Cândida Trindade Costa de Seabra (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Conselho Editorial Alejandra Vitale (UBA, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina) Didier Demolin (Université de la Sorbonne Nouvelle Paris 3, Paris, França) Ieda Maria Alves (USP, São Paulo/SP, Brasil) Jairo Nunes (USP, São Paulo/SP, Brasil) Scott Schwenter (OSU, Columbus, Ohio, Estados Unidos) Shlomo Izre'el (TAU, Tel Aviv, Israel) Stefan Gries (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Teresa Lino (NOVA, Lisboa, Portugal) Tjerk Hagemeijer (ULisboa, Lisboa, Portugal) Comissão Científica Aderlande Pereira Ferraz (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Alessandro Panunzi (Unifi, Florença, Itália) Alina M. S. M. Villalva (ULisboa, Lisboa, Portugal) Aline Alves Ferreira (UCSB, Santa Barbara/CA, Estados Unidos) Ana Lúcia de Paula Müller (USP, São Paulo/SP, Brasil) Ana Maria Carvalho (UA, Tucson/AZ, Estados Unidos) Ana Paula Scher (USP, São Paulo/SP, Brasil) Anabela Rato (U of T, Toronto/ON, Canadá) Aparecida de Araújo Oliveira (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Aquiles Tescari Neto (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Augusto Soares da Silva (UCP, Braga, Portugal) Beth Brait (PUC-SP/ Universidade de São Paulo-USP, São Paulo/SP, Brasil) Bruno Neves Rati de Melo Rocha (UFPA, Altamira/PA, Brasil) Carmen Lucia Barreto Matzenauer (UCPEL, Pelotas/RS, Brasil) Celso Ferrarezi (UNIFAL, Alfenas/MG, Brasil) César Nardelli Cambraia (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Cristina Name (UFJF, Juiz de Fora/MG, Brasil) Charlotte C. 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Scherre (UNB, Brasília/DF, Brasil) Miguel Oliveira, Jr. (Universidade Federal de Alagoas) Monica Santos de Souza Melo (UFV, Viçosa/MG, Brasil) Patricia Matos Amaral (UI, Bloomington/IN, Estados Unidos) Paulo Roberto Gonçalves Segundo (USP, São Paulo/SP, Brasil) Philippe Martin (Université Paris 7, Paris, França) Rafael Nonato (Museu Nacional-UFRJ, Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Raquel Meister Ko. (Freitag, UFS, Brasil) Roberto de Almeida (Concordia University, Montreal/QC, Canadá) Ronice Müller de Quadros (UFSC, Florianópolis/SC, Brasil) Ronald Beline (USP, São Paulo/ SP, Brasil) Rove Chishman (UNISINOS, São Leopoldo/RS, Brasil) Sanderléia Longhin-Thomazi (UNESP, São Paulo/SP, Brasil) Sergio de Moura Menuzzi (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Seung- Hwa Lee (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Sírio Possenti (UNICAMP, Campinas/SP, Brasil) Suzi Lima (U of T / UFRJ, Toronto/ON - Rio de Janeiro/RJ, Brasil) Thais Cristofaro Alves da Silva (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Tommaso Raso (UFMG, Belo Horizonte/MG-Brasil) Tony Berber Sardinha (PUC-SP, São Paulo/SP, Brasil) Ubiratã Kickhöfel Alves (UFRGS, Porto Alegre/RS, Brasil) Vander Viana (University of Stirling, Stirling/Sld, Reino Unido) Vanise Gomes de Medeiros (UFF, Niterói/RJ, Brasil) Vera Lucia Lopes Cristovao (UEL, Londrina/PR, Brasil) Vera Menezes (UFMG, Belo Horizonte/MG, Brasil) Vilson José Leffa (UCPel, Pelotas/RS, Brasil) Sumário / Contents Elementos de coesão no Corpus de Língua Portuguesa em Tradução: investigando a classe gramatical conjunção numa perspectiva contrastiva linguística e textual Cohesive devices in the Corpus de Língua Portuguesa em Tradução: investigating conjunctions in a contrastive perspective within a text typology Leonardo Pereira Nunes .................................................................... 13 Identificação computacional de estruturas métricas de versificação na prosa de Euclides da Cunha Computational identification of versification metric structures in Euclides da Cunha’s prose Ricardo Carvalho Angelo Loula João Queiroz ..................................................................................... 41 Entre letras e armas: sobre a gênese do ensino do espanhol no Brasil Between letters and weapons: on the genesis of Spanish teaching in Brazil Ana Cavalheiro Recuero ................................................................... 69 Reflexões sobre a linguística galileana de Noam Chomsky Reflexions on Noam Chomsky’s Galilean Linguistics Gustavo Augusto Fonseca Silva ........................................................ 93 O papel dos contextos e da polissemia na constituição histórica de novos juntores contrastivos The role of contexts and polysemy in the historical development of new contrastive connectives Luísa Ferrari ...................................................................................... 159 A microestrutura em verbetes da área da Linguística Microstructure in entries within the field of Linguistics Guilherme Fromm Márcio Issamu Yamamoto ................................................................ 205 Atuação de fatores estilísticos na variação entre as formas de tratamento de segunda pessoa em uma comunidade de fala valenciana Stylistic factors in the variation of the performance of treatment forms of the second person in a Valencian speaking community José Victor Melo de Lima Valdecy de Oliveira Pontes ............................................................... 235 O estatuto da sintaxe na fala: considerações acerca da proposta da Language Into Act Theory The status of syntax in speech: comments on the Language Into Act Theory proposal Luis Filipe Lima e Silva .................................................................... 271 De la fraseología a una perspectiva cognitivista centrada en el uso: un debate sobre variabilidad y fijación From phraseology to a cognitive perspective focused on use: a debate on variability and fixation Leandra Cristina de Oliveira María Alejandra Godoy Roa ............................................................. 331 O humor está no ar: análise comparativa da tradução de jogos de palavras fraseológicos em texto literário Humor is in the air: comparative analysis of idiom-based wordplays in literary texts Adauri Brezolin ................................................................................. 359 O Tradutor Seletor: uma breve análise da “neutralidade” da tradução na canção do Chapéu Seletor em Harry Potter The Sorting Translator: a Brief Analysis of Translation “Neutrality” in the Sorting Hat Song, on Harry Potter Filipe Cianconi Rodrigues Fábio da Silva Fortes ........................................................................ 391 DossIÊ DIsCurso, MEMórIa, MIgraçõEs Apresentação: Dossiê “Discurso, memória e migrações” Ida Lucia Machado Glaucia Muniz Proença Lara Béatrice Turpin .................................................................................. 419 Sentidos de “imigrante” em enunciados verbovisuais no jornalismo francês Senses of immigrant in verbvisual utterances in French journalism Grenissa Bonvino Stafuzza Marcos Lúcio de Sousa Góis ............................................................ 433 Imigrantes japoneses e a língua portuguesa: um caso de preconceito linguístico Japanese immigrants and the Portuguese language: a case of linguistic prejudice Alexandre Marcelo Bueno ................................................................ 455 Memorialización y conflicto armado: la construcción de narrativas para la paz en Colombia Memorialization and armed conflict: the construction of narratives for peace in Colombia Neyla Graciela Pardo Abril .............................................................. 479 Living on the edge of African dreams: new identities for African and African diaspora Caribbean students in Brazil Vivendo na fronteira de sonhos africanos: novas identidades para estudantes africanos e caribenhos da diáspora afro-caribenha no Brasil Ricardo Gualda ................................................................................. Mémoires de l’immigration. Propositions pour une étude sociolinguistique des parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France contemporaine 507 Memories of immigration. Proposals for a sociolinguistic study of young people sociolects in sensitive urban cities in contemporary France Marie-Madeleine Bertucci ................................................................ 535 Deslocamento forçado e permanência vigiada, território e fronteira: metáforas de espaço na representação da situação de rua na Folha de S. Paulo Forced displacement and guarded permanence, territory and frontier: metaphors of space in the representation of homelessness in Folha de S. Paulo Viviane de Melo Resende ................................................................. 565 Os enquadres discursivos do acontecimento migratório: narrativização, banalização e estigmatização The discursive frameworks of the migratory event: narrativization, trivialization and stigmatization Wander Emediato .............................................................................. 597 Les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite pour la paix en Colombie The allusions to armed conflict in peace plebiscite campaign discourses on Twitter in Colombia Yeny Serrano ..................................................................................... 619 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Elementos de coesão no Corpus de Língua Portuguesa em Tradução: investigando a classe gramatical conjunção numa perspectiva contrastiva linguística e textual Cohesive devices in the Corpus de Língua Portuguesa em Tradução: investigating conjunctions in a contrastive perspective within a text typology Leonardo Pereira Nunes Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil leopereiranunes@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-0678-7137 resumo: Esta contribuição perfaz análise de elementos de coesão em textos originais e traduzidos, averiguando o impacto das tipologias textual e linguística na frequência de ocorrência de itens da classe gramatical conjunção (NUNES, 2014). Dados foram obtidos a partir do Corpus de Língua Portuguesa em Tradução, um corpus paralelo bilíngue bidirecional no par linguístico inglês-português brasileiro composto por oito tipos de texto: artigo acadêmico, discurso político, divulgação científica, ficção, manual de instrução, propaganda turística, resenha e website educacional. Utilizou-se o TreeTagger para anotação morfossintática e o ambiente de programação R para extração automática e tratamento estatístico das frequências. Verificaram-se frequências significativamente acima das esperadas em textos dos tipos resenha e discurso político, corroborando a hipótese sobre a explicitação de marcas conjuntivas em textos argumentativos. Ainda, os achados parcialmente confirmaram a hipótese da explicitação significativamente acima da esperada nos textos traduzidos e nos textos originais e traduzidos em português brasileiro. Também revelaram significâncias estatísticas proeminentes nas frequências obtidas em textos dos tipos ficção e website educacional, apontando nestes tendência à explicitação de conjunções nos textos traduzidos em inglês e naqueles a mesma tendência nos textos originais e traduzidos em português brasileiro. Os resultados dessa investigação sobretudo contribuem para os estudos descritivos da tradução no que tange à descrição linguística do inglês e do português brasileiro em seus modos escritos. Palavras-chave: Corpus de Língua Portuguesa em Tradução; tipologia linguística; tipologia textual; conjunção. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.13-40 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 abstract: This contribution delves into the investigation of cohesive devices in original and translated texts by querying the impact of text and language typologies on the frequency of conjunctions (NUNES, 2014). Data was obtained in the Corpus de Língua Portuguesa em Tradução, a bilingual bidirectional parallel corpus in the language pair English-Brazilian Portuguese. The corpus is comprised of eight text types: research article, political speech, science popularisation, fiction, instruction manual, tourism leaflet, review and educational website. TreeTagger was used for POS tagging and R environment utilized to perform automatic word frequency and significance testing. The results showed highly above expected frequencies in reviews and in political speeches, thus corroborating explicitation hypotheses as to the frequency of cohesive marks in argumentative texts. Also, the explicitation hypothesis as to significantly above expected frequencies of conjunctions in translated texts and in the original and translated texts in Brazilian Portuguese was partially corroborated. Findings also showed relevance in statistically significant frequencies in fictional and educational website texts. As to the former, a tendency for the explicitation of conjunctions in original and translated texts in Brazilian Portuguese was revealed. Conversely, frequencies in the latter pointed to a tendency for the explicitation of conjunctive marks in translated texts in English. The findings mostly contribute to descriptive translation studies concerning language description of English and Brazilian Portuguese in their written modes. Keywords: Corpus de Língua Portuguesa em Tradução; language typology; text typology; conjunction. Recebido em 26 de março de 2019 Aceito em 17 de junho de 2019 1. Introdução Este trabalho reporta uma investigação conduzida por Nunes (2014), e apresenta uma análise automática de elementos de coesão numa perspectiva interlinguística e numa tipologia de textos. Pontualmente, percorre o escrutínio da frequência de ocorrência de itens da classe de palavra conjunção realizado no Corpus de Língua Portuguesa em Tradução, um corpus paralelo bilíngue nas direções inglês-português brasileiro e português brasileiro-inglês. O estudo se insere no âmbito dos estudos da tradução puros descritivos orientados ao produto (cf. HOLMES, 1972), uma vez que fornece resultados de investigação de sistemas linguísticos em contato na relação tradutória e em comparação entre distintos tipos de texto, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 15 escrutinizando características (no que toca a frequência) de elementos coesivos estabelecidos por conjunções inseridas numa tipologia de textos. Para tal, se vale de uma abordagem inovadora sobretudo no que concerne recursos metodológicos utilizados para o levantamento, processamento e tratamento de dados com fundamento estatístico. Este artigo está organizado em 5 seções, além desta Introdução. A segunda seção discorre sobre um breve arcabouço teórico que percorre elementos de coesão nas línguas inglesa e portuguesa. A terceira seção apresenta e descreve o corpus sob escrutínio. A quarta seção explicita os procedimentos de anotação e análise automatizada do corpus, bem como a abrangência da referida investigação. A quinta seção reporta os resultados e discussões, e, por fim, a sexta seção tece as conclusões da pesquisa. 2. Elementos de coesão nas línguas inglesa e portuguesa Halliday e Hasan (1976) advogam que a coesão no inglês é estabelecida por quatro categorias, quais sejam: organização (ou coesão) lexical, referência, substituição/elipse e conjunção. A coesão lexical tem o léxico como elemento chave e se estabelece “através da escolha de itens que se relacionam em um texto através de palavras isoladas ou unidades maiores, como o grupo nominal”, por exemplo (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 606 apud NUNES, 2014). A referência, por sua vez, “estabelece na esfera gramatical uma cadeia de elementos que se relacionam intra e extratextualmente através de itens endofóricos e exofóricos, respectivamente” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 606 apud NUNES, 2014). A substituição e a elipse também possuem caráter gramatical e compreendem “ferramentas que permitem a exclusão de partes de uma estrutura se estas puderem ser inferidas através de elementos antecedentes no texto” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 606 apud NUNES, 2014). Por fim, conjunções, foco deste estudo, são apreciadas enquanto “instrumentos sistemáticos de conexão de orações e complexos oracionais” (HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014, p. 609 apud NUNES, 2014). Na variante brasileira da língua portuguesa, Neves (2011) discorre sobre a coesão textual sobremaneira ao percorrer elementos sobre a referência (situacional e textual) e sobre as conjunções coordenativas e subordinativas adverbiais, estas vislumbradas enquanto instrumentos sequenciadores e de amarração de blocos de textos (NEVES, 2011, p. 19). 16 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Como explicitado anteriormente, apenas elementos da classe de palavra conjunção foram automaticamente investigados no corpus da pesquisa, apresentado na próxima seção. 3. o Corpus de Língua Portuguesa em Tradução O Corpus de Língua Portuguesa em Tradução (doravante Klapt!)1 foi compilado a partir do corpus CroCo2 (Cross-linguistic corpora) (cf. NEUMANN, 2005, 2008) por pesquisadores do Laboratório Experimental de Tradução (LETRA)3 da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O intuito foi o de se investigar elementos linguísticos numa perspectiva contrastiva e considerndo-se múltilos tipos de textos, no par linguístico inglês-português brasileiro e em ambas as direções. O Klapt! pode ser categorizado como um corpus multilíngue paralelo bidirecional (GRANGER, 2003, p. 21), sendo possíveis análises linguísticas tanto entre os textos originais e suas respectivas traduções nas direções português brasileiro-inglês e inglês-português brasileiro. Dado o desenho bidirecional do corpus, pode-se, ainda, investigá-lo nas perspectivas comparáveis mono e bilíngues de textos originais e de textos traduzidos. A tipologia textual contemplada para a criação do corpus baseouse em processos sociossemióticos que, em síntese, resumem a maneira como a língua, e todo o seu potencial de criação de significados, são instanciados no contexto de cultura (cf. MATTHIESSEN; TERUYA; LAM, 2010; HALLIDAY; MATTHIESSEN, 2014). Esses processos incluíram diversos tipos de texto da língua escrita definidos por distintas 1 Este acrônico foi cunhado a partir de um intertexto fonológico com verbo klappt na língua alemã, que corresponde ao verbo funcionar na língua portuguesa (NUNES, 2010) 2 Esse projeto, desenvolvido por pesquisadores da Universidade do Sarre (Alemanha), teve por objetivo identificar as especificidades do texto traduzido em comparação ao texto não traduzido (incluindo a explicitação e outras propriedades da tradução) entre o inglês e o alemão, e em ambas as direções. Página do projeto: http://fedora.clarin-d. uni-saarland.de/croco-gecco/croco/presentation_neumann_hansenschirra.pdf. Acesso em 12 mar. 2019. 3 O corpus está disponibilizado no Portal Min@s, um ambiente virtual que agrega bancos de dados de laboratórios vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (POSLIN) da Faculdade de Letras (FALE) da UFMG. Endereço do portal: http://portalminas.letras.ufmg.br/. Acesso em 12 mar. 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 17 comunidades de usuários, sendo contemplados oito tipos: artigos acadêmicos, discursos políticos, textos de divulgação científica, textos de ficção, manuais de instrução, textos de propagandas turísticas, resenhas e textos de websites educacionais. A Figura 1 apresenta um esquema gráfico do corpus. FIGURA 1 – Desenho do Klapt! Fonte: Nunes (2014, p. 73) Quanto ao tamanho, cada tipo textual em cada um dos 4 subcorpora possui uma média de 10 textos com 3.000 palavras (tokens)4 correntes cada, totalizando amostras de aproximadamente 30.000 palavras, conforme ilustrado na TABELA 1. 4 Cumpre mencionar que as amostras selecionadas compreenderam textos na íntegra ou excertos contendo parágrafos inteiros, de modo que a coesão textual pudesse ser mantida. 18 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 TABELA 1 – Números de tokens do Klapt! por tipo textual e subcorpus Tipo textual Inglês original (Io) Inglês traduzido (IT) Português original (Po) Português traduzido (PT) Total por tipo textual artigo acadêmico 30.299 30.163 30.049 31.629 122.140 Discurso político 30.178 30.587 29.813 31.080 121.658 Divulgação científica 30.664 32.749 30.790 31.010 125.213 Ficção 30.138 32.955 30.072 30.881 124.046 Manual de instrução 29.453 28.527 29.244 35.628 122.852 Propaganda turística 27.871 30.474 30.191 28.487 117.023 resenha 30.126 31.959 32.052 30.960 125.097 Website educacional 29.828 28.131 29.100 32.322 119.381 Total por subcorpus 238.557 245.54 241.311 251.997 Total geral 977.410 Fonte: Nunes (2014, p. 75) Como mostra a Tabela 1, o Klapt! como um todo totaliza aproximadamente 980 mil palavras, o que o caracteriza como um corpus de extensão média, isto é, entre 250 mil e 1 milhão de palavras (BERBER SARDINHA, 2004, p. 26). No que tange às suas aplicações, o Klapt! pode ser utilizado enquanto recurso para diversas pesquisas no âmbito dos estudos da tradução (tanto puros quanto aplicados), tais como em investigações das propriedades da tradução, em pesquisas orientadas ao processo e ao produto tradutórios, no desenvolvimento de metodologias de anotação multidimensional, na análise de registro, na descrição linguística e na formação de tradutores (cf. JESUS; NUNES, 2014). A próxima seção discorre sobre os procedimentos de anotação e extração automática com subsídio estatístico da frequência de ocorrência de conjunções no corpus Klapt! Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 19 4. Procedimentos de anotação e análise automática 4.1. Etiquetamento morfossintático O software Treetagger5 foi desenvolvido por Helmud Schmid, linguista computacional da Universidade de Stuttgart, Alemanha. Tratase de um anotador morfossintático capaz de etiquetar textos em formato eletrônico em diversos idiomas, dentre os quais incluem-se o inglês e o português. Como aponta Nunes (2014), para cada idioma, há um conjunto de documentos contendo parâmetros para a identificação automática de cada palavra (type) e/ou símbolo, a cada qual atribui-se uma classe gramatical e correspondente termo raiz (lema). Cada texto do corpus (previamente salvo em formato txt) foi automaticamente etiquetado pelo programa. A Figura 2 apresenta uma amostra de um excerto de texto de discurso político do subcorpus IO, também gerado em arquivo de mesma extensão, após o processamento com a ferramenta. FIGURA 2 – Excerto de texto anotado pela ferramenta Treetagger Fonte: Nunes (2014, p. 84) Página com informações e instruções para download do programa: http://www.ims. uni-stuttgart.de/projekte/corplex/TreeTagger/. Acesso em: 12 mar. 2019. 5 20 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Como marca Nunes (2014), para cada língua, há um conjunto de etiquetas (tagset) processado pelo software para atribuição de categorias gramaticais para cada palavra em cada um dos textos dos quatro subcorpora do Klapt! O tagset para o inglês foi desenvolvido no projeto Penn Treebank,6 idealizado e executado por pesquisadores dos departamentos de Linguística, Ciência da Computação e Ciência da Informação da Universidade da Pensilvânia, Estados Unidos. Já o conjunto de etiquetas das categorias morfossintáticas nos subcorpora de textos em português brasileiro foi desenvolvido pelo Grupo para o Processamento de Linguagem Natural (ProLNat@GE)7 da Universidade de Santiago da Compostela, Espanha. Nunes (2014) também menciona que a interface e os conjuntos de etiquetas têm como base as categorias da gramática tradicional em ambas as línguas, considerando-se a palavra como unidade de investigação. Quanto ao grau de exatidão para ambos os tagsets reconhecidos pela interface, a probabilidade de correspondência palavra/símboloetiqueta varia entre 96 e 97% (SCHMID, 1994, p. 16). Dadas as especificidades técnicas de cada tagset8 em função das diferenças entre os sistemas linguísticos do inglês e do português, não há correspondência direta entre várias etiquetas nas duas línguas. Destarte, foi necessária elaboração manual de um parâmetro de equivalência entre elas de forma que apenas as categorias gramaticais comuns entre as referidas línguas pudessem ser contempladas para o processamento de dados. Pode-se assim somar dez classes de palavras partilhadas por ambas, quais sejam: adjetivo, advérbio, conjunção, determinante, interjeição, numeral, preposição, pronome, substantivo e verbo (NUNES, 2014). O Quadro 1 apresenta o parâmetro criado para agrupar as etiquetas dos dois tagsets. Página eletrônica do projeto: https://catalog.ldc.upenn.edu/. Acesso em 12 mar. 2019. Endereço eletrônico do grupo: http://gramatica.usc.es/pln/index.html. Acesso em: 12 mar. 2019. 8 As listas completas das etiquetas do inglês e do português podem ser visualizadas nos seguintes sítios eletrônicos: https://www.ling.upenn.edu/courses/Fall_2003/ ling001/penn_treebank_pos.html (inglês) / https://gramatica.usc.es/~gamallo/tagger. htm (português). Acesso em: 12 mar. 2019. 6 7 21 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 QUADRO 1 – Parâmetro de correspondência entre etiquetas dos tagsets do inglês e do português Classe de palavra Etiquetas do inglês Etiquetas do português Adjetivo JJ, JJR, JJS ADJ Advérbio RB, RBR, RBS, WRB ADV Conjunção CC CONJ Determinante DT DET Interjeição UH I Numeral (cardinal e ordinal) CD CARD Preposição IN, IN/that, TO PRP PRP+DET Pronome PP, PP$, WDT, WP, WP$ P PR Substantivo FW, NN, NNS, NP, NPS NOM Verbo MD, VB, VBD, VBG, VBN, VBP, VBZ, VH, VHD, VHG, VHN, VHP, VHZ, VV, VVD, VVG, VVN, VVP, VVZ V V+P Fonte: Nunes (2014, p. 89) Como pode-se visualizar no Quadro 1, os tagsets em inglês e português automaticamente processados pelo TreeTagger respectivamente atribuem às marcas conjuntivas as etiquetas CC e CONJ. 22 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 4.2 Processamento e extração automática de dados Segundo Nunes (2014), uma vez identificadas as dez classes gramaticais comuns entre o inglês e o português e estabelecidas as correspondências entre as etiquetas dos respectivos tagsets, criou-se uma sequência de comandos para processamento e extração de dados quantitativos baseada nessas combinações. Esse parâmetro compreende uma sequência de comandos (script)9 e foi utilizado para: 1) extração da frequência de ocorrência de itens correspondentes às dez classes gramaticais, as quais incluem conjunções; 2) aplicação de testes de significância estatística para a frequência de ocorrência das conjunções. Este script foi esquematizado para ser processado pelo ambiente R, apresentado na próxima subseção. 4.2.1 o ambiente de programação r e o parâmetro para extração de dados Entendido enquanto uma linguagem computacional livre,10 o ambiente R pode, dentre inúmeros fins, ser utilizado para se extrair e manipular dados estatísticos, conforme assinala Nunes (2014). Esse ambiente foi desenvolvido por pesquisadores do departamento de Estatística da Universidade de Auckland, Nova Zelândia, e vem sendo paulatinamente aprimorado por contribuições provenientes de várias instituições de pesquisa. Trata-se de uma eficiente ferramenta de processamento e extração de dados numéricos e categóricos, sendo capaz de processá-los a partir de vários modelos estatísticos. Também permite aplicar testes de significância e executar funções dos mais variados tipos e graus de complexidade. A Figura 3 apresenta a tela de exibição inicial do ambiente R. A sequência de comandos para a leitura automática dos arquivos, levantamento dos dados quantitativos e aplicação dos testes estatísticos está disponível na íntegra nos Anexos. 10 Página do projeto R: http://www.r-project.org. Acesso em: 12 mar. 2018 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 23 FIGURA 3 – Tela inicial do ambiente R Fonte: Nunes (2014, p. 92) Para a extração dos dados, foi necessária manipulação prévia dos arquivos a serem processados pelo ambiente, bem como o desenvolvimento de um parâmetro com comandos para serem executados automaticamente. Conforme descreve Nunes (2014), os arquivos contendo os textos de cada um dos quatro subcorpora foram agrupados por tipo, somando assim 32 (8 tipos textuais x 4 subcorpora). Em virtude de restrições técnicas de identificação de caracteres em textos com extensão txt, cada um destes arquivos foi convertido em planilhas eletrônicas do programa Microsoft Excel©. Em cada planilha, foi suprimida a coluna contendo o lema de cada palavra etiquetada, já que esse elemento não figurou como objeto de análise. Em substituição a essa, duas outras colunas foram criadas: uma contendo o rótulo do respectivo tipo textual e outra explicitando o subcorpus (IO, PT, PO ou IT) correspondente. A Figura 4 apresenta um exemplo de planilha eletrônica configurada no programa Microsoft Excel©. 24 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 FIGURA 4 – Configuração de planilha eletrônica para processamento no ambiente de programação R Fonte: Nunes (2014, p. 93) Formatados os 32 arquivos, criou-se manualmente um script para leitura e processamento desses pelo R. Esta sequência de comandos não apenas teve como função extrair, por subcorpus e tipo textual, a frequência absoluta total de itens de cada uma das dez classes gramaticais, mas também perfazer testes de significância estatística somente para a frequência de ocorrência das conjunções. O parâmetro foi desenhado de forma que os dados pudessem ser processados conforme a seguinte ordem, conforme sequência descrita em Nunes (2014): – Reconhecimento das 32 planilhas do Microsoft Excel©; – Leitura e extração dos dados de cada planilha a partir do reconhecimento de cada palavra (token) e sua correspondente etiqueta morfossintática, bem como seu referido tipo textual e subcorpus; – Correspondência das etiquetas morfossintáticas entre os tagsets do inglês e do português, e agrupamento em dez classes gramaticais, conforme parâmetro apresentado no Quadro 1; Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 25 – Extração da frequência absoluta de palavras (tokens) de cada classe gramatical por tipo textual e por subcorpus; – Extração da frequência absoluta da classe gramatical conjunção por tipo textual e por subcorpus;11 – Aplicação do teste de significância estatística Qui-quadrado de aderência (goodness-of-fit) de Pearson a partir da frequência de ocorrência absoluta total da classe gramatical conjunção por subcorpus; – Aplicação do teste de significância estatística post hoc Z a partir das frequências absolutas da classe de palavra conjunção por tipo textual (distribuídas nos 4 subcorpora). A Figura 5 mostra uma representação do resultado (output) de parte dos dados gerados pelo script desenhado no estudo de Nunes (2014). FIGURA 5 – Representação dos resultados gerados na interface do ambiente de programação R Fonte: Nunes (2014, p. 95) Por questões de ordem pragmática, apenas as frequências de ocorrência desta classe de palavra estão apresentadas na seção de resultados e discussões. 11 26 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Como destaca Nunes (2014), o teste Qui-quadrado de aderência (goodness-of-fit) e o teste post hoc Z verificaram se as distribuições das frequências absolutas das ocorrências da classe de palavra conjunção foram ou não estatisticamente significativas em cada tipo de texto e subcorpus do Klapt!. Foi possível averiguar, com o primeiro teste, se houve ou não desvios significativos da frequência de ocorrência geral esperada para as conjunções em cada subcorpus12 ou se a frequência observada esteve dentro do previsto. Já o segundo teste revelou se as frequências de conjunções em cada tipo textual e subcorpus se mostraram significativamente acima ou abaixo das esperadas. Ambos os testes figuram como ferramentas decisivas para verificação de hipóteses e/ou pressupostos por ventura aventados sobre a frequência de ocorrência de palavras e suas correspondentes classes gramaticais. Para o caso das conjunções, foi possível averiguar, numa perspectiva interlinguística, em que medida a hipótese da explicitação (cf. BLUM-KULKA, 1986) pode ser confirmada nos subcorpora de textos traduzidos. Já no prisma da variabilidade de registro entre os tipos textuais, pode-se confirmar ou não pressupostos sobre uma maior frequência de ocorrência de marcas de coesão textual em textos de caráter argumentativo (cf. NEUMANN, 2008) e nos textos originais e traduzidos em português brasileiro13 (cf. VIEIRA, 1984). Descritos os procedimentos para extração e processamento automático de dados, estabelece-se na próxima subseção uma relação entre a metodologia utilizada em Nunes (2014) para o escrutínio da frequência de ocorrência de conjunções e a validade dos resultados por esta obtidos. 4.3. Investigação automática vs. investigação manual de elementos linguísticos Conforme exposto na seção anterior, os procedimentos de análise de frequência do corpus da investigação de Nunes (2014) envolveram a anotação morfossintática automática para posterior processamento de dados através de um ambiente de programação. O autor fundamenta-se no trabalho de Matthiessen (2009), que estabelece uma relação entre a abrangência de 1) resultados obtidos automaticamente e de 2) achados 12 Cabe ressaltar que esta frequência de ocorrência se deu em relação ao número total de palavras (tokens) por subcorpus. 13 Como aponta a autora, o português, em comparação ao inglês, apresenta maior grau de especificidade e clareza ao salientar recursos de coesão. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 27 gerados manualmente em função da estratificação linguística e do tamanho do corpus. De acordo com o Matthiessen, investigações em corpora de maiores extensões e que contemplam vários registros e tipos textuais podem ser facilmente realizadas automaticamente com o auxílio de ferramentas computacionais, o que soma para a descrição do potencial de construção de significados de determinada língua (MATTHIESSEN, 2009, p. 53 apud NUNES, 2014). Contudo, Matthiessen também reconhece a existência de restrições no escopo de análise semântica e contextual, já que as ferramentas de anotação, extração e processamento automático de um volume considerável de dados geralmente permitem somente o escrutínio lexicogramatical. Já a investigação manual, geralmente realizada em corpora de menores extensões, permite maior aprofundamento de análise no que tange todos os níveis linguísticos. Em contrapartida, em virtude do tamanho reduzido das amostras e da variabilidade entre os registros e tipos textuais, há limitações em termos de descrição linguística. Nunes (2014) ilustra essa relação marcada por Matthiessen (2009). GRÁFICO 1 – Escopo da investigação manual e da investigação automática em relação aos níveis linguísticos e às dimensões do corpus. Fonte: Matthiessen (2009, p. 53). Traduzido e adaptado por Nunes (2014) 28 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Ao visualizar o Gráfico 1, pode-se afirmar que os procedimentos metodológicos de investigação de conjunções do corpus Klapt! descritos em Nunes (2014) produzem resultados que se situam na interseção entre a porção central do eixo horizontal (análise automatizada) e na porção inferior do eixo vertical (análise manual) da representação. Isso porque os insumos para a descrição linguística gerados por esses procedimentos são razoavelmente abrangentes em função do considerável tamanho e da variabilidade de registros observada no corpus como um todo. Todavia, os subsídios metodológicos resultam em achados que se restringem apenas às unidades lexicais dos textos, em razão de limitações impostas pelas ferramentas computacionais. A próxima seção apresenta os principais resultados do estudo de Nunes (2014), bem como algumas discussões que emergiram a partir da apreciação geral desses achados. 5. resultados e discussões Conforme exposto anteriormente, os procedimentos de anotação e extração automática das frequências de ocorrência da classe gramatical conjunção na investigação de Nunes (2014) produziram resultados que apontaram em qual (ou quais) dos oito tipos de textos do corpus paralelo bidirecional bilíngue as frequências observadas das marcas conjuntivas foram estatisticamente significativas. Ainda, esses resultados permitiram testar hipóteses e pressupostos sobre o impacto da variabilidade de registro (entre os tipos de textos) e da tipologia linguística na frequência de ocorrência desses elementos linguísticos no corpus em questão. As frequências absolutas de conjunções distribuídas por tipo textual e por subcorpus do Klapt! se encontram apresentadas na Tabela 2. 29 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 TABELA 2 – Frequência absoluta de conjunções no Klapt! por subcorpus e tipo textual Inglês original (Io) Inglês traduzido (IT) Português original (Po) Português traduzido (PT) Total por tipo textual Artigo acadêmico 1.165 1.153 1.476 1.548 5.342 Discurso político 1.469 1.303 1.509 1.832 6.113 990 1.001 1.211 1.233 4.435 1.109 1.090 1.390 1.511 5.100 Manual de instrução 996 1.081 1.253 1.441 4.771 Propaganda Turística 1.456 1.132 1.369 1.521 5.478 Resenha 1.458 1.413 1.757 1.817 6.445 Website Educacional 1.242 1.359 1.525 1.404 5.530 Total por subcorpus 9.885 9.532 11.490 12.307 subcorpus Tipo textual Divulgação científica Ficção Fonte: Nunes (2014, p. 110) Os resultados de Nunes (2014) explicitam que, numa perspectiva interlinguística, houve uma inversão proporcional nas frequências absolutas de conjunções nos dois subcorpora paralelos. Enquanto existe um número superior dessas marcas em todos os tipos textuais do subcorpus PT se comparado a todos os mesmos tipos textuais no subcorpus IO, há um número inferior de conjunções no subcorpus IT se comparado ao subcorpus PO. Nunes também aponta que tal inversão a princípio poderia sugerir não ser integralmente corroborada a hipótese de que a frequência de conjunções se mostraria acima da esperada nos subcorpora de textos traduzidos (partindo-se da hipótese de explicitação de elementos coesivos (cf. BLUM-KULKA, 1986). Em contrapartida, Nunes também assinala que a hipótese de que a frequência de conjunções nos textos em português brasileiro estaria dentro ou acima da esperada poderia ser confirmada com base no pressuposto que a língua portuguesa (comparando-se ao inglês) evidencia “maior grau de especificidade e clareza ao evidenciar recursos coesivos” (cf. VIEIRA, 1984 apud NUNES, 2014). 30 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 Observando-se pelo prisma da variabilidade de registro entre os tipos textuais, as distribuições revelam maior frequência de ocorrência de conjunções nos textos de resenhas e de discursos políticos. Em uma primeira instância, ambos esses números corroboram o pressuposto de Neumann (2008), a qual advoga que “textos argumentativos tendem a tornar expressas conexões entre as porções textuais para que a coerência textual seja estabelecida” (NEUMANN, 2008, p. 109 apud NUNES, 2014). Dado que as frequências apresentadas na Tabela 2 são absolutas, fez-se necessário testes de significância para se confirmar ou refutar as hipóteses e os pressupostos fundamentados nas proposições das referidas autoras. Para tal, verificou-se se as distribuições das frequências apresentadas para cada subcorpus e tipo textual foram ou não significativas via aplicação de testes estatísticos (NUNES, 2014). Conforme explicado na subseção 3.2.1, o estudo de Nunes (2014) se valeu do teste do Qui-quadrado de Pearson, aplicado para se averiguar se a frequência total de conjunções observada em cada subcorpus se desviou ou não da frequência esperada em relação ao número total de palavras de cada subcorpus. A tabela a seguir mostra os resultados desse teste. TABELA 3 – Resultados do teste do Qui-quadrado para a frequência de ocorrência de conjunções por subcorpus subcorpus resultado Inglês original (IO) X2 = 234,5227, df = 7, p-value < 0,01 Inglês traduzido (IT) X2 = 128,0775, df = 7, p-value < 0,01 Português original (PO) X2 = 144,3397, df = 7, p-value < 0,01 Português traduzido (PT) X2 = 184,5895, df = 7, p-value < 0,01 Fonte: Nunes (2014, p. 111) Os resultados na tabela revelam um desvio significativo entre a frequência observada e a frequência esperada em cada um dos quatro subcorpora, uma vez que o valor de p (p-value) foi consideravelmente inferior a 0,0514 em todos eles. Como afirma Nunes (2014, p. 112), foi 14 Na esfera dos estudos linguísticos e das ciências humanas, este valor é parâmetro para significância estatística. (GRIES, 2012j apud NUNES, 2014) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 31 “extremamente baixa a probabilidade de essa frequência ter acontecido ao acaso considerando-se uma distribuição uniforme para as conjunções em cada subcorpus”. Para se localizar os desvios significativos em cada tipo de texto de cada subcorpus, aplicou-se o teste post hoc Z15 e observou-se os resultados em seis perspectivas, respectivamente: duas paralelas (IO-PT e PO-IT), duas comparáveis monolíngues (IO-IT e PO-PT) e duas comparáveis bilíngues (IO-PO e IT-PT). Os pares de escores Z,16 distribuídos nas duas perspectivas paralelas e apresentados na Tabela 4, revelam a medida em que as duas línguas (inglês e português brasileiro) originais e traduzidas impactaram na frequência de ocorrência de conjunções no corpus como um todo. Também mostram o impacto da variabilidade de registro entre os tipos textuais na frequência desses elementos linguísticos. 15 Cada número nas tabelas corresponde a um escore Z, ou seja, o resíduo (variação) acima ou abaixo de uma frequência considerada esperada (equivalente ao número 0). Os números positivos distintos de 0 estão acima de uma distribuição esperada e os negativos estão abaixo. Para existir significância estatística, os escores positivos devem ser iguais ou superiores a 1,96 e os negativos iguais ou inferiores a -1,96 (BARONI; EVERT, 2008, p. 13 apud NUNES, 2014). Nunes (2014) ainda afirma que se um escore atingir qualquer um desses dois parâmetros mínimos de significância (um positivo e outro negativo), a probabilidade de determinada frequência ter se desviado da frequência esperada de forma fortuita é muito baixa. Por outro lado, se os valores estiverem entre esses dois polos (-1,96 e 1,96), há probabilidade de que a frequência de ocorrência de conjunções tenha acontecido por acaso. 16 No estudo de Nunes (2014), foram destacados tanto os pares de distribuições mais estatisticamente significativos nas duas perspectivas paralelas e nas quatro perspectivas comparáveis, cujas magnitudes dos escores Z apontaram maiores diferenças entre si. O autor também explicita que as diferenças foram evidenciadas pelos valores que marcam uma oposição entre 1) duas distribuições (uma estatisticamente significativa acima da esperada e outra significativamente abaixo da esperada, ou vice-versa) ou 2) entre uma distribuição não estatisticamente significativa e outra estatisticamente significativa. Os pares de escores mais relevantes estão em negrito em todas as seis perspectivas de análise. 32 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 TABELA 4 – Distribuições do teste post hoc Z para a frequência de conjunções nos subcorpora paralelos Inglês original (Io) – Português brasileiro traduzido (PT) Português original (Po) – Inglês traduzido (IT) Artigo acadêmico -2,142626 / 0,261529 1,117886 / -1,189558 Discurso político 7,076311 / 7,974455 2,045824 / 3,444186 Divulgação científica -7,454116 / -8,302080 -6,337658 / -5,887555 Ficção -3,841942 / -0,74388 -1,300883 / -3,136453 Manual de instrução -7,271953 / -2,646343 -5,155558 / -3,414615 Propaganda Turística 6,682284 / -0,47213 -1,891624 / -1,838476 Resenha 6,742905 / 7,567270 9,015954 / 6,840729 Website Educacional 0,193379 / -3,652116 2,495694 / 5,173498 subcorpus Tipo textual Fonte: Nunes (2014, p. 114) Levando-se em consideração a variabilidade de registro entre as distribuições das frequências nos subcorpora paralelos, os escores contidos na Tabela 4 corroboram a hipótese de que tipos textuais de caráter argumentativo (como textos dos tipos discurso político e resenha) tendem a apresentar frequências de conjunções significativamente acima das esperadas,17 já que esses elementos linguísticos compreendem “um recurso coesivo retórico que comumente ocorre em textos dessa natureza quando comparados a textos de outros tipos” (cf. NEUMANN, 2008 apud NUNES, 2014). Pelo prisma da tipologia linguística, o autor advoga que as distribuições das perspectivas paralelas apresentadas na Tabela 4 vão de encontro à hipótese de que a frequência de ocorrência de conjunções nos textos traduzidos seria significativamente acima da esperada se comparada à frequência aos seus respectivos textos originais. Nunes argumenta, assim, que não se pode generalizar a hipótese fundamentada no fenômeno da explicitação (cf. BLUM-KULKA, 1986) em textos Vale ressaltar que esses resultados se repetiram nas perspectivas comparáveis mono e bilíngues. 17 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 33 traduzidos. Isso porque, segundo ele, nem todos os escores Z das frequências nos textos traduzidos foram significativamente acima dos esperados comparando-se às distribuições dos seus respectivos textos originais. Ele ainda destaca que, ao contrário do que se poderia esperar, alguns tipos de texto (como ficção e website educacional, por exemplo) apresentaram distribuições significativamente abaixo das esperadas nos textos traduzidos em inglês e em português brasileiro quando cotejados com seus respectivos textos originais. Nunes (2014) ainda mostra que, ao se comparar os valores de cada par de escores na direção inglês-português brasileiro, puderam ser notadas discrepâncias salientes nas distribuições das frequências nos tipos artigo acadêmico, ficção, propaganda turística e website educacional, com destaque para os dois últimos. O autor demonstra que nos primeiros dois tipos de texto, enquanto ambas as frequências se mostraram significativamente abaixo das esperadas nos textos originais, suas traduções apresentaram, respectivamente, frequência abaixo e acima da esperada, porém sem significância estatística. No tipo textual propaganda turística, a frequência de conjunções nos originais foi expressivamente acima da esperada, ao passo que nas traduções ela se mostrou abaixo da esperada (contudo sem significância estatística nesta última). Já no tipo textual website educacional, enquanto a distribuição obtida para os textos originais foi pouco acima da esperada, nos textos traduzidos esta frequência se mostrou consideravelmente abaixo da esperada. Na direção português brasileiro-inglês, a comparação entre os valores se fez relevante apenas em textos do tipo ficção, cuja frequência nos originais esteve abaixo da esperada e, nas traduções, significativamente abaixo da esperada. Os resultados de Nunes (2014) para os subcorpora paralelos foram produtivos sobretudo no que toca os textos do tipo ficção ao mostrarem nestes 1) uma tendência de se explicitar conjunções em português brasileiro traduzidos do inglês e 2) uma tendência de não se explicitar esses recursos coesivos em textos em inglês traduzidos do português brasileiro. Conforme sinalizado anteriormente, os pares de escores Z também foram observados pelas duas perspectivas comparáveis no referido estudo. A Tabela 5 apresenta as distribuições nos dois subcorpora comparáveis monolíngues. 34 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 TABELA 5 – Distribuições do teste Z para frequência de conjunções nos subcorpora comparáveis monolíngues Inglês original (Io) – Inglês traduzido (IT) Português original (Po) – Português traduzido (PT) Artigo acadêmico -2,142626 / -1,189558 1,117886 / 0,2615289 Discurso político 7,076311 / 3,444186 2,045824 / 7,974455 Divulgação científica -7,454116 / -5,887555 -6,337658 / -8,302080 Ficção -3,841942 / -3,136453 -1,300883 / -0,7438762 Manual de instrução -7,271953 / -3,414615 -5,155558 / -2,646343 Propaganda Turística 6,682284 / -1,838476 -1,891624 / -0,4721325 Resenha 6,742905 / 6,840729 9,015954 / 7,567270 Website Educacional 0,193379 / 5,173498 2,495694 / -3,652116 subcorpus Tipo textual Fonte: Nunes (2014, p. 115) Os escores dos subcorpora de textos em inglês originais e traduzidos em Nunes (2014) revelaram maior produtividade para os tipos textuais artigo acadêmico, propaganda turística e website educacional, sendo que estes últimos dois tipos apresentam as comparações mais significativas. Ambas as distribuições, para o primeiro tipo textual, apresentam valores de frequência abaixo da esperada. Porém, estas se mostraram estatisticamente significativas apenas nos textos originais. Já os textos de propaganda turística apresentaram escores consideravelmente acima dos esperados nos textos originais e abaixo dos esperados (sem significância estatística) nos textos traduzidos. O tipo textual website educacional, por sua vez, apresentou nos textos originais escore acima dos esperados (porém sem significância estatística) e escore significativamente acima dos esperados nos textos traduzidos As distribuições nos textos originais e traduzidos em português brasileiro, por sua vez, ratificaram parcialmente a hipótese de que a as frequências das conjunções nestes, em comparação aos textos originais e traduzidos para o inglês, estariam dentro ou acima da frequência esperada, considerando-se a sugestão de que “os recursos coesivos naquela língua refletem maior grau de clareza e especificidade do que nesta” (cf. 35 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 VIEIRA, 1984 apud NUNES, 2014). Ainda, notou-se que, assim como nos textos originais e traduzidos para o inglês, as distribuições dos escores Z para os textos de divulgação científica e manuais de instrução no subcorpus comparável monolíngue em português brasileiro se encontram significativamente abaixo da frequência esperada para estes tipos textuais. Os resultados do subcorpus monolíngue em português brasileiro ainda indicaram que o tipo website educacional apresentou maior relevo, já que a distribuição da frequência de conjunções foi significativamente acima da esperada nos textos originais e significativamente abaixo nos textos traduzidos, indicando assim uma oposição entre as magnitudes. Se na perspectiva paralela a tipologia linguística impactou na frequência de conjunções, sobremaneira em textos de ficção, na perspectiva comparável monolíngue tal tipologia (língua original versus língua traduzida neste par linguístico) também se mostrou determinante na frequência destes recursos coesivos no tipo website educacional em ambos os subcorpora. As distribuições das frequências nos subcorpora comparáveis bilíngues estão apresentadas na Tabela 6. TABELA 6 - Distribuições do teste Z para frequência de conjunções nos subcorpora comparáveis bilíngues subcorpus Inglês original (Io) – Português original (Po) Inglês traduzido (IT) – Português traduzido (PT) Artigo acadêmico -2,142626 / 1,117886 -1,189558 / 0,2615289 Discurso político 7,076311 / 2,045824 3,444186 / 7,974455 Divulgação científica -7,454116 / -6,337658 -5,887555 / -8,302080 Ficção -3,841942 / -1,300883 -3,136453 / -0,7438762 Manual de instrução -7,271953 / -5,155558 -3,414615 / -2,646343 Propaganda Turística 6,682284 / -1,891624 -1,838476 / -0,4721325 Resenha 6,742905 / 9,015954 6,840729 / 7,567270 Website Educacional 0,193379 / 2,495694 5,173498 / -3,652116 Tipo textual Fonte: Nunes (2014, p. 117) 36 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 As distribuições da tabela não ratificam totalmente a hipótese baseada no pressuposto de que, em virtude de explicitação de recursos coesivos em línguas alvo (cf. BLUM-KULKA, 1986), os textos traduzidos em inglês e em português brasileiro apresentariam frequência significativamente acima da esperada se comparada às frequências dos textos originais nessas línguas. Nesta perspectiva de análise, Nunes assinala que, em algumas distribuições dos subcorpora de textos traduzidos, as frequências observadas se mostraram significativamente a) abaixo das frequências esperadas (como em textos do tipo website educacional e divulgação científica em português brasileiro) e b) significativamente acima das frequências esperadas, porém com valor inferior às frequências observadas nos textos originais (como se observa nas resenhas traduzidas em português brasileiro). Quanto à comparação entre as distribuições nos subcorpora dos textos originais, Nunes também aponta que houve significância para os seguintes tipos textuais: artigo acadêmico, ficção, propaganda turística e website educacional. Para o primeiro tipo, os números revelaram que as frequências nos textos em inglês se mostraram significativamente abaixo das esperadas, ao passo que estiveram acima das esperadas as frequências nos textos em português brasileiro, porém sem significância estatística. Nos textos de ficção, ambas as frequências se mostraram abaixo das esperadas, mas houve relevância estatística apenas nos textos originais em português brasileiro. A frequência nos textos de propagandas turísticas originais em inglês, por sua vez, se mostrou significativamente acima da esperada, ao passo que, nos textos originais em português do mesmo tipo, a frequência esteve abaixo da esperada (porém sem significância estatística para esta última). Por fim, a distribuição da frequência em textos de websites educacionais originais em inglês se mostrou acima da esperada (sem relevância estatística) e significativamente acima da esperada nos textos originais em português brasileiro. Já no subcorpus de textos traduzidos, os tipos ficção e website educacional apresentaram maior relevo na comparação de ambas as distribuições. Para o primeiro tipo textual, ambas as frequências se mostraram abaixo das esperadas, sendo que nos textos traduzidos para o inglês a frequência se mostrou significativamente abaixo da esperada e nos textos traduzidos para o português a frequência se mostrou abaixo da esperada (todavia sem significância estatística). Já no tipo website educacional, a distribuição da frequência nos textos traduzidos para o Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 37 inglês se mostrou consideravelmente acima da esperada, estabelecendo assim uma oposição com a frequência dos textos traduzidos para o português brasileiro, que se mostrou significativamente abaixo da esperada. Em termos gerais, os resultados das análises de Nunes (2014) nas duas perspectivas paralelas e das quatro comparáveis revelaram que: 1) a variabilidade funcional de registro se mostrou como a variável com maior impacto na frequência de ocorrência de conjunções no corpus, em detrimento da tipologia linguística. Isso pode ser comprovado pela hipótese baseada em Neumann (2008) ratificada na frequência dessas marcas em textos com caráter argumentativo (resenha e discurso político); 2) os pressupostos com base em Vieira (1984) não foram integralmente corroborados, tendo em vista que nem todas as frequências nos textos em português (originais e traduzidos) se mostraram dentro ou acima das esperadas; 3) a hipótese baseada em Blum-Kulka (1986) foi parcialmente corroborada, uma vez que nem todas as frequências nos textos traduzidos nas duas línguas se mostraram acima das frequências esperadas em comparação aos seus respectivos textos originais e/ou aos seus respectivos textos comparáveis na mesma língua. Os resultados da referida investigação ainda apontaram relevância na frequência de ocorrência em dois tipos de texto: ficção e website educacional. O primeiro apresentou significância das frequências nas perspectivas paralelas e comparáveis bilíngues, revelando, em suma, uma menor tendência de explicitação de conjunções neste tipo de texto em língua inglesa original e traduzida (do português brasileiro) em comparação com textos do mesmo tipo em português brasileiro. O segundo tipo, por sua vez, revelou frequências significativas nas perspectivas paralelas e comparáveis mono e bilíngues, sugerindo uma tendência de menor explicitação de conjunções em língua portuguesa brasileira traduzida do inglês, e de maior explicitação dessas marcas em língua inglesa traduzida do português brasileiro. A próxima seção sintetiza os resultados apresentados por Nunes (2014), além de tecer suas implicações sobretudo para o campo disciplinar dos estudos da tradução. 6. Conclusões O estudo de Nunes (2014) apresentou achados de análise automática de elementos de coesão obtidos a partir de etiquetamento 38 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 morfossintático e processamento automático de dados. Foram extraídas frequências de ocorrência de conjunções em corpus paralelo bidirecional bilíngue no par linguístico inglês-português brasileiro composto por textos de oito tipos distintos. Os resultados destas frequências foram analisados tanto pela perspectiva da tipologia linguística quanto pelo viés da variabilidade de registro entre os tipos textuais. Na esfera dos estudos descritivos da tradução orientados ao produto, pode-se concluir que os achados da análise automática da frequência de conjunções podem auxiliar na descrição linguística do inglês e da variante brasileira do português em seus modos escritos, já que destacaram os diferentes potenciais de explicitação de conjunções de acordo com o tipo textual e com a tipologia texto original versus texto traduzido. Como apontaram os resultados, textos ficcionais e de websites educacionais foram os tipos mais produtivos dessa investigação: nestes, evidenciou-se tendência à explicitação de conjunções nos textos traduzidos em inglês, e, naqueles, observou-se esta mesma tendência nos textos originais e traduzidos em português brasileiro. No âmbito metodológico, o estudo se mostrou relevante no sentido de apresentar ferramentas produtivas de atribuição de categorias gramaticais (tendo a palavra como unidade de análise) para a investigação de textos originais e traduzidos. Ainda, descreveu, de forma sequenciada, procedimentos de extração automática e tratamento estatístico de dados para a geração de resultados com maior confiabilidade. Os achados da pesquisa ainda ensejam potencial de aplicação em sistemas de tradução automática e como subsídio pedagógico na formação de tradutores em tarefas que envolvam o par linguístico inglês-português brasileiro e em ambas as direções. Como principal apontamento para pesquisas futuras está a replicação da metodologia aqui descrita para a investigação, com aporte estatístico, da frequência de outras classes gramaticais em corpora bidirecionais paralelos bilíngues. agradecimentos O autor agradece os esforços de toda a equipe de docentes e discentes que compõe o Laboratório Experimental de Tradução (LETRA), ao André Souza, pelo auxílio no tratamento estatístico dos dados, e também à CAPES e ao CNPq pelo fomento financeiro. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 13-40, 2020 39 referências BARONI, Marco; EVERT, Stefan. Statistical methods for corpus exploitation. In: LÜDELING, A.; KYTÖ, M. (ed.). Corpus Linguistics. An International Handbook. Berlin: Mouton de Gruyter, 2008. Chapter 38. BERBER SARDINHA, Tony. Linguística de Corpus. Barueri, SP: Manole, 2004. BLUM-KULKA, Shoshana. Shifts of cohesion and coherence in translation. In: HOUSE, Juliane; BLUM-KULKA, Shoshana (ed.). 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 Identificação computacional de estruturas métricas de versificação na prosa de Euclides da Cunha Computational identification of versification metric structures in Euclides da Cunha’s prose Ricardo Carvalho Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, Bahia / Brasil ricardo.sys@gmail.com https://orcid.org/0000-0001-7785-562X Angelo Loula Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, Bahia / Brasil angelocl@uefs.br https://orcid.org/0000-0001-7802-1731 João Queiroz Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil queirozj@gmail.com, queirozj@pq.cnpq.br https://orcid.org/0000-0001-6978-4446 resumo: Estruturas de versificação em prosa de língua portuguesa constituem um fenômeno ainda inexplorado por teóricos e historiadores da literatura, e a mineração automática de tais estruturas é inédita em Linguística Computacional. O sistema MIVES (Mining Verse Structure) foi desenvolvido para escansão computacional de estruturas métricas de versificação em prosa de língua portuguesa. Ele é capaz de identificar, classificar e comparar, frequência, densidade e dispersão de estruturas heterométricas de versificação, distribuídas em diversas escalas de observação -- de uma obra ou autor, até períodos e movimentos literários. Apresentamos o sistema, e fazemos uma validação preliminar dele em três obras de Euclides da Cunha (Os Sertões, À Margem da História, Contrastes e Confrontos). Elas foram selecionadas porque constituem o corpus principal de um dos mais importantes prosadores de língua portuguesa e porque Os Sertões foi objeto do que Augusto de Campos chamou de “leitura verso-espectral”, uma operação capaz de revelar “mais de 500 decassílabos na obra”. MIVES identificou estruturas métricas em 48,18% das sentenças de Os Sertões, 48,96% de À Margem da História e eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.41-68 42 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 37,48% de Contrastes e Confrontos, uma taxa surpreendente, quando comparada aos resultados exibidos por Augusto de Campos. Pode-se afirmar que MIVES inaugura novos padrões de observação e análise de estruturas ainda não investigadas na prosa literária de língua portuguesa. Palavras-Chave: estruturas de versificação; prosa; mineração de versos; Euclides da Cunha. abstract: Versification structures written in Portuguese language prose are still an unexplored phenomenon to literary theorists and historians, and the automatic mining of such structures is still unseen in Computational Linguistics. The MIVES (Mining Verse Structure) system was developed for computational scansion of metric versification structures in Portuguese language prose. It is able to identify, classify and compare, frequency, density and dispersion of heterometric structures of versification, distributed at different scales of observation, from a work or author, to historical periods and movements. We present the system, and a preliminary validation analysing three works by Euclides da Cunha (Os Sertões, À Margem da História, Contrastes e Confrontos). They were selected because they constitute the main corpus of one of the most important Portuguese-language writers, and because Os Sertões was the object of what Augusto de Campos (2010, p. 14) called “verse-spectral reading”, an operation able of revealing “more than 500 decasyllables in the book, among sapphic and heroic verses, and more than two hundred dodecasyllables. MIVES identified metric structures in 48.18% of the sentences of Os Sertões, 48.96% of À Margem da História and 37.48% of Contrastes e Confrontos, an unexpected rate when compared to the partial results of Augusto de Campos. It can be said that MIVES inaugurates new patterns of observation and analysis of structures not yet investigated in Portuguese language literary prose. Keywords: structures of versification; verse mining; prose; Euclides da Cunha. Recebido em 28 de fevereiro de 2019 Aceito em 05 de julho de 2019 1. Introdução MIVES (Mining Verse Structure)1 foi desenvolvido para escansão computacional de estruturas métricas de versificação em prosa de O sistema está disponível em http://sites.ecomp.uefs.br/lasic/projetos/mives. Ele resulta da colaboração entre o Laboratório de Sistemas Inteligentes e Cognitivos (LASIC-UEFS), coordenado por Angelo Loula, e o Iconicity Research Group (IRG, UFJF), coordenado por João Queiroz. Este sistema está relacionado à dissertação de mestrado de Carvalho (2017). 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 43 língua portuguesa. Trata-se de um fenômeno inexplorado por teóricos e historiadores da literatura, e inédito em Linguística Computacional. Uma validação preliminar do sistema inclui a análise de três obras de Euclides da Cunha – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos. Elas foram selecionadas porque constituem o corpus principal de um dos mais importantes prosadores de língua portuguesa, e porque os Sertões foram objeto do que Augusto de Campos chamou de “leitura verso-espectral” (CAMPOS, 2010, p. 14), uma “operação manual”2 de mineração de estruturas de versificação “mal escondidas” sob a prosa de Euclides, capaz de revelar “mais de 500 decassílabos no livro, entre sáficos e heróicos, e mais de duas centenas de dodecassílabos” (CAMPOS, 2010, p. 14). É bem conhecida a tese de que a “estrutura da poesia é um paralelismo contínuo” (JAKOBSON, 1988, p. 102), em vários níveis de descrição, linguísticos e paralinguísticos: paralelismos gramaticais, sintáticos, fonológicos, rítmicos, e até tipográficos. Este fenômeno não tem correspondência na prosa. Mas, como afirma Jakobson (1988, p. 106), a prosa literária “ocupa um lugar intermediário entre a poesia enquanto tal e a língua de comunicação comum, prática, não se devendo esquecer que é incomparavelmente mais difícil analisar um fenômeno intermediário, de transição, do que estudar fenômenos extremos”. Neste domínio, diversas formas de paralelismo se distribuem em muitos níveis de descrição, permitindo inclusive a identificação de estruturas métricas de versificação sob a superfície aparentemente mais uniforme da prosa, um fenômeno surpreendente e ainda inexplorado. O verso é usualmente definido como a linha do poema. Ele pode ter diversas medidas ou extensões, e pode se organizar de acordo com diversos padrões. O metro é a medida do verso (SPINA, 2003, p. 29). Em português, o sistema de metrificação é silábico-acentual -- conta-se o número de sílabas de cada verso e verifica-se a alternância entre sílabas fortes e fracas. A alternância regular cria certos padrões que, combinados às repetições posicionais das sílabas, cria segmentos internos, estabelecendo as regras de versificação ou metrificação (ALI, 2006). O processo de identificação e classificação dos padrões historicamente normatizados Trata-se, evidentemente, de uma “simplificação”, para efeito classificatório, e em oposição à operação computacional, chamar esta operação (escansão de versos) de “manual”. Ela resulta de uma complexa interação entre “percepção categorial” (percepção de classes e categorias) e diversas formas de inferência analógica e indutiva. 2 44 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 pela tradição literária é chamado de escansão. Não decorre deste processo, que atua predominantemente em poemas de versos metrificados, um resultado inequívoco, de classificação dos padrões, livre de contexto. Um verso pode, porque possui certos encontros vocálicos, ser escandido como um decassílabo (dez sílabas poéticas) ou um eneassílabo (nove sílabas poéticas). A decisão sobre como deve comportar-se depende, usualmente, do contexto, dos versos antecedentes, e da tradição histórica. A prosa não constitui objeto da escansão, em qualquer de suas modalidades, inclusive literária. Entretanto, alguns estudiosos se detiveram na identificação de estruturas métricas de versificação na prosa. Em língua portuguesa, são pioneiros os trabalhos de Guilherme de Almeida (1946) e Augusto de Campos (2010). Campos, em A Poética de Os Sertões, publicado em 1997 (reeditado em 2010), retoma e amplia o “projeto de prospecção” de Almeida, publicado originalmente em 1946, e revela estruturas deca e dodecassilábicas “mal escondidas” sob a prosa de Euclides da Cunha. Para Campos (2010, p. 297-298), “[Euclides da Cunha], a propósito, escrevia poesia e conhecia bem a métrica, embora nada tivesse escrito de relevante como poeta. Ao constatar esses padrões rítmicos definidos na sua obra em prosa, achei que seria interessante e útil anotá-los e acentuá-los.” Se tais estruturas resultam de uma experimentação deliberada, se são “fruto de pura intuição ou de consciente artesania” (CAMPOS, 2010, p. 27), isso pouco importa no domínio de descoberta empírica do fenômeno. O fato mais relevante é que há, na prosa euclidiana, estruturas heterométricas de versificação, de padrões rítmicos variados. Pode-se perguntar: este fenômeno pode ser generalizado para toda obra de Euclides? Sua frequência (e distribuição) é regular ao longo de suas obras? Há estruturas métricas de versificação na prosa literária de outros autores, de outros períodos? Diversos sistemas desenvolvidos recentemente em Linguística Computacional concentram-se na automatização da escansão de poemas em versos metrificados (MITTMANN, WANGENHEIM, SANTOS, 2018; PLAMONDON, 2006; ARAÚJO; MAMEDE, 2002; GERVÁS, 2000). Mas Oostendorp (2014), por exemplo, desenvolveu um sistema que minera padrões de alternância de tônicas na prosa. Nosso propósito assemelha-se ao de Oostendorp, embora seja mais geral e ambicioso. MIVES está relacionado à concepção de um modelo computacional sincrônico-diacrônico de análise estatística de distribuição de padrões heterométricos de versificação na prosa, relação com o período literário correspondente, com as obras de um autor, de diversos autores, e de diversos períodos literários. O que vamos apresentar aqui é apenas a Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 45 primeira etapa deste projeto. Nosso propósito é analisar a frequência e a densidade de estruturas métricas em Os Sertões, de Euclides da Cunha, e comparar os resultados com análises de À Margem da História e Contrastes e Confrontos, do mesmo autor. 2. Identificação automática de estruturas métricas de versificação MIVES (Mining Verse Structure) foi desenvolvido, como afirmamos, para identificar e classificar, na prosa literária, sentenças ou trechos de sentenças que possuem estruturas métricas de versificação. O sistema extrai as sentenças do texto, identifica e classifica estruturas métricas procuradas pelo usuário, e fornece uma visualização dos resultados obtidos. O maior desafio encontra-se no processo de identificação de estruturas métricas, uma vez que não decorre da escansão um resultado único, inequívoco, independente de contexto. Como trata-se de prosa, não há uma clara demarcação do início e do fim das estruturas, como encontramos mais facilmente nos versos de um poema metrificado. Na prosa, a estrutura métrica pode ser formada por uma sentença completa, ou por um trecho de sentença. O processamento (Figura 1) tem início com a extração de sentenças de um arquivo de texto. Cada sentença, em seguida, é segmentada em palavras para separação silábica e identificação de sílabas tônicas. Depois, ela é submetida à escansão, que considera variações normativamente aceitas de separação silábica. Determina-se, então, se a sentença, ou um trecho dela, possui um padrão métrico, e são indicadas possíveis alternativas. O texto, cujas sentenças métricas e variações foram identificadas, é enviado para uma interface de visualização, navegação e análise dos resultados. FIGURA 1 – Etapas de processamento do MIVES 46 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 Extração das sentenças A partir da cópia digital de um texto em prosa, é feito uma segmentação em sentenças – um segmento frásico na forma de uma sequência de palavras que termina em um marcador. Chamamos este marcador de “ponto final da sentença”. Ele pode ser o ponto de um segmento, ou um ponto final, funcionando como um delimitador. O principal desafio desta etapa é identificar pontos que não são delimitadores, como aqueles utilizados nos pronomes de tratamento. Além disso, é necessário considerar casos como títulos e subtítulos, que geralmente não terminam com um delimitador e devem ser tratados como sentenças. As fases posteriores de processamento têm foco nas sentenças, na busca de sentenças completas, ou trechos de sentenças. separação silábica e marcação de sílabas tônicas Embora os protocolos de separação de sílabas poéticas e gramaticais não produzam, necessariamente, resultados coincidentes, a separação gramatical de sílabas é um passo inicial para realização da separação poética. Nesta etapa, uma sentença como “Hipóteses sobre a sua gênese.” pode ser escandida como “Hi/p#ó/te/ses/ s#o/bre a s#u/a g#ê/ne/se”, onde / indica um separador de sílaba e # um marcador de sílaba tônica. A separação silábica realizada pelo sistema, e a marcação das tônicas, utilizam um algoritmo desenvolvido por Neto, Rocha e Souza (2015), associado a um dicionário interno do MIVES, para obter melhor desempenho e para tratar exceções e falhas do sistema de Neto, Rocha e Souza (2015). O algoritmo de Neto, Rocha e Souza (2015) baseia-se em 20 regras fonológicas propostas inicialmente por Silva, Braga e Resende Jr (2008). A ideia aqui é que todas as sílabas possuem uma vogal como núcleo, que pode ser cercada por consoantes ou por outras vogais (semivogais ou glide). Segundo Neto, Rocha e Souza (2015), o algoritmo foi testado em um extrato de 10.000 palavras escolhidas aleatoriamente na base de dados do CETENFolha, obtendo uma taxa de acerto de 99.14%. Como afirmamos, além deste algoritmo, o MIVES usa um dicionário com palavras associadas a uma versão com separação silábica gramatical. O processamento de separação silábica é lento. Assim, optamos por armazenar palavras separadas silabicamente em uma estrutura de dados de dicionário baseado em mapa,3 em que as chaves são organizadas 3 Um mapa é uma estrutura de dados que mantém uma coleção de chaves associadas a um valor, em pares (chave, valor). Nesta estrutura, uma chave ocorre uma única vez. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 47 por tabela hash,4 e são armazenadas em disco para persistência.5 Para obter a separação silábica, e marcação de tônicas, realiza-se uma busca no dicionário. Caso a palavra não seja encontrada, é executado o algoritmo de Neto, Rocha e Souza (2015) e o resultado é armazenado para consultas. Além de otimizar o tempo de processamento, o dicionário é utilizado para armazenar palavras que não são processadas adequadamente pelo algoritmo de Neto, Rocha e Souza (2015). Por exemplo, “euforia” deveria ser separado como “eu/fo/ri/a” e não como “eu/fo/ria”, resultado obtido pelo algoritmo. Diversas exceções foram incluídas no dicionário do MIVES e novas palavras podem ser incluídas pelo usuário. Escansão e identificação das estruturas métricas de versificação Mas a escansão não termina na fase de separação silábica das palavras, consideradas isoladamente, e marcação das tônicas. Fenômenos vocálicos intervocabulares (entre as palavras), ou intravocabulares (no interior da palavra), são considerados, determinando diversas variações aceitas. Em certos casos, os resultados de escanções podem coincidir com resultados da separação silábica gramatical, mas não se trata de uma norma. Esta etapa da escansão constitui o núcleo do MIVES. São considerados fenômenos intravocabulares (crase, sinérese, diérese) e intervocabulares (crase, sinalefa, elisão). Eles cobrem um grande espectro de ocorrências. Outros fenômenos podem afetar a escansão, como aférese, apócope ou síncope, mas eles são raros e de difícil especificação. A crase intravocabular é caracterizada pela união, em uma sílaba, de vogais idênticas tratadas originalmente como hiato; por exemplo, “saara” (“sa/a/ra”) transforma-se em “saa/ra”. A sinérese é caracterizada pela transformação de hiatos em ditongos; por exemplo, “magoado” (“ma/ go/a/do”) torna-se “ma/goa/do”. Menos frequente, a diérese é caracterizada pela transformação de um ditongo em um hiato; por exemplo, “saudade” (“sau/da/de”) torna-se “sa/u/da/de”. A crase intervocabular é a fusão de duas vogais idênticas, ao final de uma palavra e início da palavra subsequente; por exemplo, no verso “É/ a es/car/pa a/brup/ta e/ vi/va/ dos/ pla/nal/tos.”, Também conhecida como “tabela de espalhamento”. É uma estrutura de dados que utiliza chaves associadas a valores e permite consulta rápida de um valor a partir de uma chave. 5 Relaciona-se ao armazenamento de dados de forma não-volátil, permitindo que, em qualquer momento, uma informação seja recuperada a partir de um dispositivo de processamento de dados autorizados. 4 48 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 com crase em “escarpa abrupta”. A sinalefa é caracterizada pela passagem da primeira vogal para semivogal, formando um ditongo com a vogal da palavra subsequente; por exemplo, no verso “A/cu/do eu/ lo/go, e, en/ quan/to o/ re/mo a/per/to.”, o fenômeno aparece entre a última sílaba de “Acudo” e “eu”. A elisão é caracterizada pela supressão da primeira vogal em detrimento da seguinte; por exemplo, entre a última sílaba de “como” e “uma” no verso “co/mo u/ma/ nó/doa am/plís/si/ma/ de/ san/gue.”. O processo de escansão não produz resultados inequívocos. Os fenômenos descritos (intra e intervocabulares) podem ser considerados, ou não. A aplicação das regras é decidida pela escolha de pares de vogais a serem considerados para cada fenômeno vocálico. A busca por estruturas respeita as delimitações do usuário do sistema, que pode indicar, para cada encontro vocálico (par de sílabas), quais regras de fusão ou separação devem ser aplicadas. Além disso, o usuário decide os limites dos metros investigados (contagem total de sílabas), com valores mínimos e máximos. Durante a escansão, as escolhas das regras vocálicas e os limites de metrificação indicados pelo usuário determinam as variações a serem consideradas pelo sistema. Neste módulo, o algoritmo de escansão realiza uma análise para identificar possíveis ocorrências de crase, sinérese e diérese. Ao encontrar vogais átonas, iguais e adjacentes na palavra, caracterizando uma crase, o algoritmo é capaz de transformar, conforme instruções fornecidas pelo usuário, duas sílabas em uma. Os casos de sinérese e diérese também dependem de um conjunto de parâmetros fornecidos pelo usuário. Ele informa que combinações de vogais adjacentes devem ser consideradas, e como estas combinações devem ser utilizadas quando identificadas no interior de uma palavra. Para a sinérese e diérese, o usuário deve informar pares de vogais, que serão tratados como encontros vocálicos ou ditongos e, para cada par informado, qual deve ser o comportamento do sistema durante a escansão. Nesta etapa, “É mais um inimigo a suplantar.” tornase, por exemplo, “É/ mais/ um/ i/ni/mi/go a/ su/plan/tar.”. Como não é produzido um resultado inequívoco, o mesmo verso pode ser escandido diferentemente. Assim, na busca por estruturas entre dez e doze sílabas métricas, e aceitando variações previstas, uma sentença escandida como “Es/ta i/lu/são/ é/ em/pol/gan/te ao/ lon/ge.” (10 sílabas) torna-se “Es/ta/ i/lu/são/ é/ em/pol/gan/te ao/ lon/ge.” (11 sílabas), ou “Es/ta/ i/lu/são/ é/ em/pol/gan/te/ ao/ lon/ge.” (12 sílabas). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 49 A busca por estruturas métricas não está restrita a sentenças completas. Trechos iniciais ou finais de sentenças podem ser avaliados, conforme decisão do usuário. Para um trecho de início, ou final, de sentença, sinais de pontuação tais como ponto, vírgula, ponto-vírgula, dois pontos, reticências e exclamação, são utilizados como delimitadores. Para a identificação de trechos, as sentenças são escandidas até que se encontre uma estrutura métrica adequada aos padrões designados pelo usuário. Só então é verificada a existência de um delimitador para validá-la como um trecho aceitável. Assim, trechos iniciais de sentenças escandidas são considerados válidos se terminados com um dos sinais de pontuação mencionados. Depois de escandidas as sentenças, ou trechos de sentenças, são identificadas aquelas que satisfazem as estruturas métricas designadas pelo usuário. As versões escandidas são associadas às sentenças originais no texto, e o texto processado é enviado para visualização e análise. Visualização e análise de resultados Para avaliação dos resultados, foi desenvolvida uma interface para navegação e análise das escansões, com múltiplas visões dos resultados (Figuras 2 e 3). As sentenças são visualmente destacadas no texto original. Isto permite ao usuário avaliar a sentença identificada, comparando-a com sentenças próximas. Para uma visualização somente das sentenças identificadas, é organizada uma lista na ordem de ocorrência do texto, e suas escansões. Além da identificação das sentenças, o sistema gera gráficos que permitem visualizar a dispersão das sentenças ao longo do texto processado e a frequência absoluta dos padrões métricos classificados em ordem decrescente (do mais ao menos frequente). Pode-se também obter gráficos que representam as distâncias, ou intervalos, entre as sentenças. Para sentenças que não foram identificadas como métricas, a interface permite que o usuário verifique como foi realizada a escansão, de modo que ele pode avaliar o motivo da exclusão de um determinado segmento dos resultados. Para analisar os resultados através de outras ferramentas, pode-se exportar as sentenças encontradas, escandidas e classificadas, e a relação de todas as sentenças (métricas ou não) com a indicação de metros escandidos. 50 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 2 – Interface do sistema Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 51 FIGURA 3 – Interface do sistema 52 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 3. resultados Exibimos os resultados obtidos em três obras de Euclides da Cunha – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos. Apresentamos dois protocolos de validação: uma escansão de Os Lusíadas, e uma comparação com os resultados obtidos por Augusto de Campos em Os Sertões. Para processar estas obras, MIVES foi configurado para buscar somente estruturas métricas de 10 a 12 sílabas. Quanto à parametrização dos fenômenos vocálicos, foram consideradas todas as fusões e separações vocálicas para todas combinações de vogais. Validação da escansão Para validar o processo de escansão do MIVES, porque não há uma fonte de comparação equivalente (versos na prosa literária) além daquela fornecida por Augusto de Campos (2010), utilizamos Os Lusíadas, composta de 8.816 versos decassilábicos. Como ela está estruturada em estrofes de versos, foi necessário realizar uma adequação na estrutura do texto para o sistema reconhecer cada linha do poema como um segmento frásico. Esta operação foi baseada na substituição de todos os sinais de pontuação, no final de cada verso, por um ponto de final de sentença, também inserido nos versos que não possuíam sinais de pontuação. Para validação, foram procurados versos decassilábicos. MIVES escandiu 8.256 versos, com uma taxa de acerto de cerca de 94%. Os 6% não escandidos resultam de aspectos relacionados a ectlipse, erros do separador silábico gramatical, estrangeirismos, e uso de diacríticos na obra de Camões, pouco usuais hoje. Validação da mineração em prosa Campos (2010, p. 14) afirma ter encontrado mais de quinhentos decassílabos e mais de duas centenas de dodecassílabos em Os Sertões. Entretanto, nem ele nem Almeida apresentam uma lista completa das estruturas encontradas. Mapeamos, entre os exemplos de decassílabos e dodecassílabos apresentados por Campos, que incluem alguns exemplos de Almeida, os trechos de início e final de sentenças marcados por delimitadores (ponto, vírgula, ponto-vírgula, dois pontos, reticências e exclamação), além de sentenças completas. Resultou desse mapeamento uma base de validação formada por 35 sentenças completas, 14 trechos iniciais de sentenças e 35 trechos finais. Processamos Os Sertões para identificação das estruturas. Os resultados apresentaram muitas estruturas não exibidas por Almeida e por Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 53 Campos. Para comparação, usamos aquelas que estão entre os exemplos mencionados. Das 36 sentenças completas apresentadas por Campos, 35 foram identificadas pelo MIVES. A única estrutura não identificada pelo sistema foi escandida com métrica superior a 12 sílabas poéticas. A diferença resultou de variações não previstas pelo MIVES, como ecliptse, síncope e apócope. “Um primor de estatuária modelado em lama.” foi escandido por Campos como um dodecassílabo, e pelo MIVES como “Um/ pri/m#or/ de es/ta/tu/#á/ria/ mo/de/l#a/do em/ l#a/ma.”,6 com 13 sílabas poéticas. Dois fenômenos intervocabulares foram considerados, entre as palavras “de” e “estatuária”, e entre as palavras “modelado” e “em”. Para considerar um dodecassílabo, em “estatuária” precisaríamos aplicar uma sinérese entre a 3ª e 4ª sílabas, não aplicada porque o sistema preserva a autonomia da sílaba tônica que sucede uma vogal. Para as estruturas métricas que formam o início das sentenças, foram considerados 14 trechos iniciais de sentenças apresentados por Campos, delimitados por sinais de pontuação. Destes, 11 foram escandidas com metros equivalentes aos apresentados por Campos e três com estruturas que possuem mais de 12 sílabas. Um exemplo de estrutura não escandida, entre 10 e 12 sílabas, é a sentença “Che/ga/vam,/ es/tro/pi/a/dos,/ da/ jor/na/da/ lon/ga,” classificada pelo sistema com 13 sílabas poéticas. Almeida destacou a predominância de estruturas no fim das sentenças. De 56 estruturas, delimitadas por sinal de pontuação, 50 foram classificadas entre decassílabos e dodecassílabos; 6 não foram identificadas pelo MIVES porque suas escansões estão fora dos limites previstos, como é o caso de “exuberando floração ridente em meio da desordem tropical.”, que obteve 20 sílabas. Se consideramos a taxa de identificação de estruturas métricas da base de validação, MIVES identificou 97,22% das sentenças completas, 78,57% no início de sentenças e 88,57% nos trechos finais. O sistema não obteve escansões entre 10 e 12 sílabas quando exigidas variações fonológicas desconsideradas (e.g., ecliptse, síncope e apócope), ou em estruturas maiores, como no exemplo mencionado de 20 sílabas. Foram identificadas pelo MIVES, 4267 estruturas métricas em Os Sertões, entre decassílabos e dodecassílabos, um número muito maior de estruturas do que aquela fornecida por Campos e por Almeida. Entre decassílabos e dodecassílabos não apresentados por Campos, podemos 6 O símbolo # indica o posicionamento da sílaba tônica. 54 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 mencionar os heroicos “Seguiam sucessivas, incansáveis,”, escandido pelo MIVES como “Se/gu#i/am/ su/ce/ss#i/vas,/ in/can/s#á/veis,”, e “Calcula friamente o pugilato”, escandido como “Cal/c#u/la/ fri/a/m#en/ te o/ pu/gi/l#a/to.”, e o alexandrino “Empanaram-se todas as vistas, de lágrimas…” escandido pelo MIVES como “Em/pa/n#a/ram/se/ t#o/das/ as/ v#is/tas,/ de/ l#á/gri/mas…”. Comparação entre as obras de Euclides da Cunha Foram analisadas três obras de Euclides da Cunha – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos. O sistema foi configurado para identificar sentenças (ou trechos de sentenças) com estruturas deca e dodecassilábicas, considerando a possibilidade de existirem diferentes padrões rítmicos para um mesmo segmento de texto. Um resumo dos resultados é apresentado na tabela 1. TABELA 1 – Comparação entre Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos Obra Parâmetros Os Sertões À Margem da História Contrastes e Confrontos Total de sentenças processadas 8564 1066 1598 Sentenças completas com estrutura métrica (total e frequência) 652 7,61% 76 7,13% 82 5,13% 227 21,29% 282 17,65% Início de sentenças com estrutura métrica (total e frequência) 1746 20,39% Finais de sentenças com estrutura métrica (total e frequência) 1728 20,18% 219 20,54% 235 14,71% Quantidade de decassílabos (sentenças completas, trechos iniciais e finais) 354 (18,14%) 859 (44,00%) 739 (37,86%) Total: 1952 36 (17,14%) 93 (44,29%) 81 (38,57%)) Total: 210 43 (15,99%) 134 (49,81%) 92(34,20%) Total: 269 Quantidade de Dodecassílabos (sentenças completas, trechos iniciais e finais) 360 (15,69%) 854 (37,21%) 1081 (47,10%) Total: 2295 34 (13,28%) 106 (41,40%) 116 (45,31%) Total: 256 40 (11,73%) 156 (45,75%) 145 (42,52%) Total: 341 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 55 Esta tabela exibe uma estatística descritiva de frequências, cuja regularidade podemos chamar de “comportamento métrico-versificatório da prosa de Euclides”. Como são obras de diferentes extensões, usamos a maior delas (Os Sertões) como referência para comparação. Os resultados baseiam-se em frequência absoluta, para obter a quantidade total de estruturas identificadas, e frequência relativa ao total de sentenças processadas, para identificar o comportamento relacionado a estruturas de versificação por sentença processada. Ao avaliar a densidade geral de estruturas métricas, em relação ao total de sentenças da obra (figura 4), nota-se que 48,18% das sentenças de Os Sertões, 48,96% das sentenças de À Margem da História, e 37,48% das sentenças de Contrastes e Confrontos apresentam estruturas, indicando alta densidade, particularmente nas duas primeiras obras. Ao comparar os valores de frequência relativa de estruturas métricas em sentenças completas, trechos iniciais e finais, nota-se que há grande proximidade entre as obras analisadas, exceção feita apenas aos casos de fins de sentença em Contrastes e Confrontos, de 14,71%. Mas esta obra também possui frequência inferior para sentenças completas e para início de sentenças. Ainda assim, podemos afirmar que há grande proximidade entre as obras analisadas (ver gráfico abaixo, figura 4). FIGURA 4 – Comparativo entre três obras de Euclides da Cunha – Frequência relativa ao total de sentenças. Os rótulos “completas”, “início” e “final”, referem-se a localização das estruturas métricas no segmento analisado. 56 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 Uma importante propriedade está relacionada à grande quantidade de estruturas deca e dodecassílabicas. Os resultados observados na Tabela 1 mostram a predominância destas estruturas em relação ao total das sentenças identificadas. Elas ultrapassam 90% do total das sentenças com estruturas métricas identificadas pelo MIVES, na busca por sentenças entre 10 e 12 sílabas poéticas. Além da estatística de frequência de estruturas métricas, podemos avaliar a distribuição de suas ocorrências ao longo da obra por uma medida de distância (quantidade de sentenças entre uma estrutura e outra), conforme vemos na tabela 2. As médias, e desvios das distâncias (quantidade de sentenças não métricas entre duas ocorrências de estruturas métricas), indicam que não existe uma regularidade na distribuição de estruturas métricas nas obras, com estruturas adjacentes (distância zero), e distantes entre si (alto valor de distância). Resultados relacionados à distância e distribuição são graficamente explorados na próxima seção. TABELA 2 – Distâncias entre estruturas – Os Sertões, À Margem da História e Contrastes e Confrontos obra Parâmetros Os Sertões À Margem da História Contrastes e Confrontos Distância entre sentenças 12,63±12,88 (0-82) 14,62±16,89(0-77) 18,38±19,61(0-109) (sentenças, trechos iniciais e finais): média, desvio padrão, mínimo e máximo 4,02±4,54 (0-46) 4,33±4,37(0-27) 4,71±5,60(0-35) 3,76±4,13 (0-30) 4,49±4,64(0-23) 5,85±6,61(0-59) Outro resultado obtido está relacionado ao posicionamento das tônicas nas estruturas métricas. Foram identificados diversos padrões rítmicos, deca e dodecassilábicos; entre eles, heróicos/martelos, sáficos, e gaita galega (Tabela 3). 57 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 TABELA 3 – Padrões Rítmicos identificados Obra Heroico Martelo Sáfico Gaita Galega Alexandrino Os Sertões 182 125 59 50 220 Contrastes e Confrontos 18 17 6 9 32 À Margem da História 30 14 3 4 29 Os valores absolutos de frequência dos padrões rítmicos de Os Sertões são consideravelmente maiores que aqueles observados nas outras obras. Mas é importante notar que as obras possuem extensões diferentes, conforme observado na Tabela 1. Em Os Sertões foram processadas 8564 sentenças; em Contrastes e Confrontos, 1598 sentenças; em À Margem da História, 1066 sentenças. Se analisarmos a frequência relativa dos padrões rítmicos, em relação ao número de sentenças processadas em cada obra, notamos que a frequência com que estes tipos ocorrem entre Os Sertões e À Margem da História é similar (Figura 5). FIGURA 5 – Frequência relativa de padrões rítmicos (Decassílabos Heroicos, Martelos, Sáficos e Gaitas x Dodecassílabos Alexandrinos) 58 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 Mais resultados e potencial analítico As informações obtidas pelo sistema incluem: identificação de estruturas, frequência absoluta e relativa de ocorrência, valores de distância entre as sentenças e valores de desvio padrão. Nesta subseção, apresentamos outros mecanismos usados para visualização e análise de resultados. Embora a média das distâncias e dos valores de desvio padrão, como apresentados na Tabela 1, permitam avaliar uma tendência geral, e uma variação da distância entre estruturas métricas, ela não permite visualizar sua dispersão, ou distribuição, ao longo da obra; não visualizamos “regiões da obra” com maior ou menor frequência de estruturas métricas. Os gráficos de dispersão (Figuras 6, 7 e 8) permitem “situar” as estruturas métricas ao longo da obra. Nestes gráficos, o eixo central horizontal representa a sequência de sentenças na obra, e as ocorrências (sentenças com estruturas métricas) equivalem aos marcadores verticais. Áreas de maior concentração de estruturas equivalem a maior densidade de marcadores. Os gráficos de dispersão evidenciam que as sentenças com estruturas métricas estão distribuídas ao longo de cada obra, sem notável concentração em partes específicas de cada uma. Como as obras possuem um número distinto de sentenças, cada gráfico tem uma escala diferente para o eixo horizontal. Assim, o gráfico de dispersão de Os Sertões aparenta ter uma maior concentração de sentenças métricas ao longo da obra, mas este é um efeito do tamanho dela, que é 8 vezes maior (quantidade de sentenças). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 6 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de Os Sertões 59 60 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 7 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de À Margem da História Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 61 FIGURA 8 – Gráfico de dispersão de sentenças métricas ao longo de Contrastes e Confrontos Adicionalmente, com o propósito de quantificar a densidade de ocorrência de sentenças com estruturas ao longo das obras, exibimos gráficos que apresentam frequência de estruturas, em intervalos de 200 sentenças (Figuras 9, 10 e 11). Eles representam a variação contínua de frequência em intervalos regulares, exibindo regiões com maior e menor incidência de sentenças estruturadas, e sua variação ao longo da obra. 62 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 9 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação, em intervalos de 200 sentenças, para Os Sertões Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 10 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação em intervalos de 200 sentenças para À Margem da História 63 64 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, aop14918.2019 FIGURA 11 – Gráfico de distribuição de frequência absoluta de estruturas de versificação em intervalos de 200 sentenças para Contrastes e Confrontos Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 65 De acordo com os gráficos das Figuras 9, 10 e 11, são mais incomuns, ao longo das obras, sentenças com estruturas formadas por frases completas, quando comparadas às sentenças com estruturas métricas encontradas em inícios e finais de segmentos frásicos. Não deve ser tratado como uma coincidência o fato de que, nas três obras analisadas, a proporção de sentenças completas com estruturas métricas representam, em média, 30% do número de sentenças com estruturas métricas de início e final de sentenças. Além disso, estes gráficos indicam que a frequência de ocorrências de estruturas métricas não é uniforme. Há regiões com valores mais altos, formando picos, e outras com baixa frequência, formando vales, indicando certa alternância do fenômeno ao longo da obra. Também nota-se, nos gráficos das Figuras 7 e 8, um comportamento similar de alternância entre os valores de frequência das sentenças com estrutura métrica no início e no final. Outro aspecto notável é o comportamento similar exibido pela distribuição de frequência absoluta de estruturas entre regiões de Os Sertões e À Margem da História. Este fenômeno não tem correspondência em Contrastes e Confrontos (Figura 9). 4. Comentários finais Distinto dos muitos sistemas computacionais já desenvolvidos para escandir poemas metrificados, MIVES foi concebido para escandir estruturas metrificadas na prosa, uma operação que Augusto de Campos (2010, p. 14) chamou de “leitura verso-espectral”. A automatização computacional deste processo revelou uma densidade surpreendente de estruturas de versificação em diversas obras de Euclides da Cunha. Em relação ao total de sentenças da obra, MIVES identificou estruturas em 48,18% das sentenças de Os Sertões, 48,96% de À Margem da História, e 37,48% de Contrastes e Confrontos, uma taxa surpreendente, quando comparada aos resultados exibidos por Augusto de Campos e Guilherme de Almeida. Podemos supor que taxas tão elevadas de estruturas possam ser encontradas na prosa literária de outros autores, outras tradições e períodos literários? Tal fenômeno ainda não foi investigado, e é o desenvolvimento “natural” deste projeto – uma análise de obras de diversos períodos para avaliar comparativamente, historicamente, o uso e o comportamento de padrões de estruturas métricas na prosa. Como afirmamos (seção 1), o que apresentamos aqui é apenas a primeira etapa de um projeto mais ambicioso. 66 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 Obviamente, MIVES pode realizar escansões em quantidade muito maior do que qualquer agente humano. Mas, ainda mais interessante, como ferramenta, é a capacidade que MIVES inaugura para identificar, quantificar e exibir padrões de distribuição de estruturas de versificação ao longo do texto, numericamente, com estatística descritiva e atributos de distância, e visualmente, através de gráficos de dispersão e frequência ao longo das obras. Não é um exagero afirmar que o sistema é capaz de abrir uma nova direção nas investigações sobre a prosa literária, em língua portuguesa. agradecimentos Os autores agradecem a Mariana Salimena pela concepção e desenvolvimento da interface gráfica do sistema (MIVES). Contribuição dos autores Ricardo Carvalho: concepção e desenho da pesquisa, desenvolvimento da ferramenta, obtenção de dados, análise e interpretação dos dados e redação do manuscrito. Angelo Loula: concepção, desenho e orientação da pesquisa, análise e interpretação dos dados e redação do manuscrito. João Queiroz: concepção, desenho e orientação da pesquisa, análise e interpretação dos dados e redação do manuscrito. referências ALI, S. Versificação portuguesa. São Paulo: EDUSP, 2006. ALMEIDA, G. A poesia d’Os Sertões. Diário de São Paulo, São Paulo, 18 ago. 1946. ARAÚJO, P.; MAMEDE, N. Classificador de poemas. In: CONFERÊNCIA CIENTÍFICA E TECNOLÓGICA EM ENGENHARIA, 2002, Lisboa. Actas [...]. Lisboa: ISEL, 2002. CD-ROM CAMÕES, L. V. Os Lusíadas. Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro / USP. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/ DetalheObraForm.do?select_action=&co_ obra=1870. Acesso em: 30 jan. 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 41-68, 2020 67 CAMPOS, A. Transertões. In: CAMPOS, A.; ALMEIDA, G. Poética de Os Sertões. São Paulo: AnnaBlume, 2010. CARVALHO, Ricardo Sena. MIVES: um sistema para identificação automática de padrões métricos de versificação em prosa literária brasileira. 2017. 120f. Dissertação (Mestrado em Computação Aplicada) – Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana, 2017. CUNHA, E. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984. CUNHA, E. À Margem da História. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Detalhe ObraForm.do?select_action=&co_obra=2034. Acesso em: 30 jan. 2019. CUNHA, E. Contrastes e Confrontos. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em: http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/Detalhe ObraForm.do?select_action=&co_obra=2032. Acesso em: 30 jan. 2019. GERVÁS, P. A Logic Programming Application for the Analysis of Spanish Verse. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON COMPUTATIONAL LOGIC, 1st., London. Proceedings […]. London: Springer, 2000. p. 1330-1344. Doi: https://doi.org/10.1007/3-540-44957-4_89 JAKOBSON, R. Dialogues. Cambridge, MA: MIT Press,1988. 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Para identificar as ideologias linguísticas e os ideologemas associados, tal retrospectiva é abordada a partir da área das Políticas Linguísticas e através de uma perspectiva glotopolítica. Ainda que as políticas que determinaram a inserção do espanhol tenham tido como gatilho as geopolíticas de integração sul-americanas, os discursos analisados oscilam entre essa memória, expressada através de uma retórica fundamentada no ideologema da grande família continental; outra que remete a uma memória ibérica, marcada pelo ideologema do espanhol como a língua de Cervantes; e, por fim, uma representação que mescla as anteriores e se desvela nas figuras do aluno culto, cidadão de uma imaginada América bilingue e do soldado letrado, integrante de um imaginado exército bilingue. Palavras-chave: ensino do espanhol; ideologias linguísticas; políticas linguísticas; glotopolítica. abstract: This study recovers the historical process that established and institutionalized the teaching of Spanish in Brazil and analyzes the grounds on which the discourse of the government archives relied on to justify the inclusion of this language in Brazilian education. To identify the underlying linguistic ideologies and ideologemes associated with this process, we address such a retrospective from the viewpoint of linguistic policies and a glottopolitical perspective. Although the policies that determined the inclusion of Spanish teaching were triggered by South American integration geopolitics, eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.69-92 70 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 the discourses analyzed vary between this memory, expressed through a rhetoric based on the ideologeme of the great continental family; another one that refers to an Iberian memory, marked by the ideologeme of Spanish as the language of Cervantes; and, finally, a representation that mixes the previous ones and is featured both in the cultured student, citizen of an imaginary bilingual America, and in the learned soldier member of an imaginary bilingual army. Keywords: Spanish teaching; linguistic ideologies; language policies; glottopolitics. Recebido em 16 de janeiro de 2019 Aceito em 19 de maio de 2019 1 Introdução Este artigo é fruto de uma pesquisa1 que teve como objetivo identificar e interpretar as ideologias linguísticas que fundamentam o discurso sobre a importância do ensino do espanhol no sistema educativo regular no Brasil. Neste sentido, apresenta algumas reflexões importantes no âmbito das políticas linguísticas na América do Sul, haja vista que o ensino desta língua no Brasil se inaugura determinado, majoritariamente e em primeira instância, pelas relações geopolíticas sul-americanas, como será mostrado no desenvolvimento do trabalho. A partir de uma leitura inicial mais ampla, no largo período de 1905 a 2018, foram identificados quatro momentos de inclusão do espanhol como língua estrangeira na escola de ensino regular brasileira (1919, 1942, 2005, 2018) – os quais podem ser designados como acontecimentos geopolíticos-linguísticos (RECUERO, 2017) – devido às peculiaridades de cunho político que em cada momento desvela-se. Ditas circunstâncias pautaram-se em interesses comuns do Brasil com países hispânicos, o que se vê registrado nos documentos analisados e se confirma também pelo fato de que o ensino do espanhol, no contexto brasileiro, foi se implementando de forma paralela ao ensino do português nos mesmos países com os quais estabelecia alianças. 1 Pesquisa de Doutorado realizada no período de 2013 a 2017, sob orientação de Eliana Sturza (UFSM) e Elvira Arnoux (UBA/CAPES). Ver: Recuero, 2017. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 71 O recorte aqui apresentado detém-se no momento em que se inaugurou a inclusão do idioma, antecipado pelo seu ensino na escola militar, em 1906, e analisa os argumentos operados no discurso do arquivo governamental – documentos oficiais que integram o Relatório dos anos de 1917 a 1918, apresentado ao Presidente da República dos Estados Unidos do Brasil pelo Ministro de Estado das Relações Exteriores, comprehendendo o período decorrido de 1 de maio de 1917 a 3 de maio de 1918 (BRASIL, 1920). O texto começa com a apresentação do quadro teórico e metodológico da pesquisa realizada e, a partir de aí, procede à análise dos dados, situando historicamente o primeiro período de inclusão do espanhol no sistema regular de ensino brasileiro e seus antecedentes no âmbito militar, e encerrando com considerações sobre o desfecho desta primeira etapa. Por fim, procede às considerações finais, onde apresenta um desdobramento dos possíveis efeitos das ideologias linguísticas circundantes sobre o status do ensino de uma língua, no caso o espanhol, e as implicações que podem vir a suceder sobre as práticas pedagógicas do mesmo. 2 Marco teórico e metodológico O aporte teórico e metodológico que fundamenta este estudo se situa no bojo da Glotopolítica, tal como a concebe Arnoux (2000, 2013), por sua vez integrante do campo maior das ciências da linguagem, e que se ocupa, principalmente, de discutir as relações entre a linguagem e o político, incluindo o elemento ideológico e englobando a área das Políticas Linguísticas. A análise empreendida a nível discursivo detémse em marcas linguísticas operadas no fio do dizer – sintagmas de um mesmo campo semântico – e as relaciona às ideologias linguísticas e ideologemas, às quais se associam ou nas quais se fundamentam. 2.1 a glotopolítica Consagrada por Louis Guespin e Jean-Baptiste Marcellesi (1986, p. 5), nos anos 80, como uma disciplina que estuda as múltiplas formas de intervenção ou gestão da sociedade sobre o espaço e os fatos de linguagem, a Glotopolítica considera a linguagem e a ação sobre a mesma como fatos políticos. De acordo Arnoux e Nothstein (2014), a perspectiva glotopolítica pode ser definida como 72 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 el estudio de las intervenciones en el espacio público del lenguaje y de las ideologías lingüísticas que activan y sobre las que inciden, asociándolas con posicionamientos dentro de las sociedades nacionales o en espacios más reducidos, como el local, o más amplios, como el regional o el global (ARNOUX; NOTHSTEIN, 2014, p. 9). Dentro da proposta de Guespin e Marcellesi, de acordo com Arnoux (2000), a sociedade, além de querer determinar que língua será falada e ensinada, trata de querer determinar também que nível de língua será usado e por quem, e para verbalizar o quê. Um exemplo, a partir de estudos da autora, refere-se à legislação dos estatutos atribuídos às línguas em relação entre si, como a determinação de qual o idioma é a língua oficial dentro de um espaço em que convivem mais de um e, acrescentamos, a legislação e as intervenções da sociedade sobre o ensino do espanhol, questão que interessa a este estudo. Para Arnoux, […] consideramos que, por un lado, la Glotopolítica no solo aborda el conflicto entre lenguas sino también entre variedades y prácticas discursivas; que, por el otro, atiende como marco social tanto a las pequeñas comunidades como a las regiones, los Estados, las nuevas integraciones o el planeta según la perspectiva que se adopte y el problema que se enfoque; y que, finalmente, puede considerar no solo las intervenciones reivindicativas sino también aquellas generadas por los centros de poder como una dimensión de su política. Desde nuestra perspectiva, el análisis debe centrarse tanto en las intervenciones explícitas como en los comportamientos espontáneos, la actividad epilingüística y las prácticas metalingüísticas, más allá de que asigne importancia a las representaciones sociolingüísticas que las sostienen (ARNOUX, 2000, p. 3-4). Por esta via glotopolítica desenvolve-se este estudo, que mobiliza uma questão de Política Linguística relacionada, por um lado, aos espaços escolares públicos e, por outro, a contextos maiores e determinantes sobre os primeiros, como as relações regionais ou transnacionais, os interesses de governo e as Políticas Linguísticas relacionadas. Considera, assim como indicado por Arnoux (2000, p. 4), não só o que declara explicitamente o poder estatal, mas também as práticas metalinguísticas, mais ou menos espontâneas, como os discursos aqui tomados como corpus. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 73 2.2 as Políticas Linguísticas De forma paralela, pode-se situar o campo de estudos das Políticas Linguísticas, com o foco no ensino do espanhol, também como uma ação revestida do político. Tal como nos princípios da Glotopolítica, as relações políticas, portanto, a política, não diz respeito apenas ao governo e suas ações, mas a todas as posições que a sociedade toma, mediadas pela língua em uso nos espaços de enunciação. Neste contexto, a escolha ou a imposição de “que língua se quer ensinar e aprender e por quê” são algumas entre as práticas sociais naturalizadas ou normatizadas de forma mais ou menos explícita, pelo que concebemos como Políticas Linguísticas. Conforme Hamel, inicialmente a área de Políticas Linguísticas foi definida como “um campo de estudo e uma forma de intervenção”, que teve como objeto, em primeiro lugar, “a intervenção explícita do estado (ou de outros atores que igualmente imponham autoridade) para alterar o curso natural dos usos ou das crenças sobre as línguas.” (HAMEL, 2013, p. 35). No entanto, esta definição foi posteriormente problematizada pelo autor, que verificou um possível reducionismo na forma como originalmente foi previsto. Para o autor, aproximando-se dos princípios glotopolíticos, além de que a condução das Políticas de Linguagem/Políticas Linguísticas possa ser determinada pelo estado, paralelamente põe-se em funcionamento a ação de forças da sociedade. Pelo exposto, define-se para este estudo a concepção de Políticas Linguísticas enquanto “um campo de estudo e uma forma de intervenção” (HAMEL, 2013, p. 35) e, seguindo este viés, pode-se reiterar que estas não se restringem às intervenções do estado, mas também a outras forças sociais igualmente latentes – conscientes ou inconscientes; implícitas ou explícitas – mais ou menos gerais ou específicas e relativas às diferentes comunidades ou sociedades. Desta forma, seria no mínimo reducionista outorgar ao estado o único poder determinante sobre as Políticas Linguísticas, tal como indica Calvet, para quem mesmo havendo grupos menores ou maiores que a nação, é em seu âmago que se encontram os meios oficiais para desenvolver um planejamento linguístico (CALVET, 2007, p.21). A definição de Hamel se afasta, portanto, de uma concepção calvetiana, que considera e reduz o campo a uma instância puramente prescritiva e normativa. 74 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 2.3 as ideologias linguísticas Sobre as ideologias linguísticas2 que o estudo busca desvelar, segue-se a concepção definida por Arnoux: Un sistema de representaciones sociolingüísticas, es decir, de aquellas que se refieren a objetos lingüísticos (lenguas, variedades, hablas, acentos, registros, modos de leer o de escribir) y que implican evaluaciones sociales de esos objetos y de los sujetos con los que se asocia. Dan lugar, entre otros, a actitudes, estereotipos u opiniones y pueden ser reconocidas no solo en discursos verbales (textos normativos o juicios de hablantes, por ejemplo) sino también en imágenes mediáticas y en las prácticas en las que los interlocutores negocian sus identidades sociales (ARNOUX, 2012, p. 165-166). Arnoux e Valle complementam, indicando que ideología linguística trata-se de uma categoria teórica que, dotada de sentido histórico, não diz respeito somente ao âmbito das ideias, mas também ao prático que se vincula, ou seja, que as representações linguísticas que se põem em marcha atuam figurando “como elementos fundamentales en la identificación y análisis de los regímenes de normatividad en los cuales necesariamente se interpretan las prácticas lingüísticas” (ARNOUX; VALLE, 2010, p.6). Para a compreensão de tais regimes de normatividade se faz necessário, portanto, identificar como objeto de análise as representações linguísticas e sociolinguísticas, as quais adotam diferentes formas de expressão e se manifestam em diferentes zonas discursivas, como, por exemplo: En los textos que regulan política y jurídicamente el uso del lenguaje (programas políticos, leyes y reglamentos), en los que definen los objetos lingüísticos (gramáticas, diccionarios, libros de estilo) y en los que los tematizan (artículos de opinión sobre, por ejemplo, el uso correcto), en la imágenes mediáticas que asocian a determinados grupos de personas con determinadas formas de habla (cómicos que en sus imitaciones reproducen y crean estereotipos lingüísticos) y en la propia praxis lingüística, 2 O sintagma corresponde a languages ideologies e provém da Antropologia Linguística estadunidense, segundo Arnoux e Valle (2010, p. 4). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 75 entendida como acción en la que los interlocutores negocian sus identidades sociales (ARNOUX; VALLE, 2010, p. 3). Seguindo esta linha de pensamento, o estudo aborda as ideologias linguísticas na práxis linguística dos interlocutores envolvidos na questão, nos textos reguladores selecionados como corpus: documentos oficiais que compõem o arquivo governamental. 2.4 os ideologemas Relacionado ao tema das ideologias linguísticas, destaca-se o que se concebe como ideologema, com base no que propõe Angenot (1982, p. 8), ou seja, os condensados ideológicos. Tal noção se desenvolve dentro do marco dos estudos argumentativos, segundo conceitos da Retórica aristotélica (BARTHES, 1982) e atualizações propostas por Angenot (1982). Para empreender a análise visando a compreensão da argumentação que subsidiou o primeiro movimento de ensino de espanhol no Brasil, apela-se também a tais bases teóricas. O que é a argumentação? Assim a define Quintiliano ao modo persuasivo dos argumenta, dentro da Retórica como a arte de convencer ou persuadir: “manera de probar una cosa por otra, de confirmar lo que es dudoso por lo que no lo es” (BARTHES, 1982, p. 48). Vinculado a esta categoria retórica está o entimema, do grego enthymema, que significa “toda reflexión que se tiene in mente” (BARTHES, 1982, p. 49). O entimema está no plano do verossímil, baseado na opinião comum (e não no científico), como conteúdo das premissas que integram a argumentação e a persuasão. Desde aí, com Quintiliano, de acordo com Barthes, surge uma nova definição que triunfaria durante a Idade Média: a premissa entimemática passa a ser concebida “por el carácter elíptico de su articulación”, “un silogismo incompleto pero igualmente operante” (BARTHES, 1982, p. 49). Dito de outra forma, passa ao plano do incontestável, do que não se faz necessário dizê-lo todo, do que tem verossimilitude por si mesmo ainda que lhe possa faltar uma premissa ou mesmo a conclusão, pois já “se tem em mente” (o enthymema), como uma certeza humana, ante uma certeza científica. Segundo a Retórica aristotélica, as premissas de base argumentativa podem ser extraídas de certos lugares – o topos ou o locus, pois para saber das coisas bastaria, segundo Aristóteles, “reconocer el lugar en que se hallan” (BARTHES, 1982, p. 55). Sobre o lugar das premissas, 76 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 Barthes pregunta: “¿Qué es un lugar?”, “es, dice, Aristóteles, aquello en que coinciden una pluralidad de razonamientos oratorios”, uma metáfora de lugar de ordem mnemónica, “en donde los lugares no son, pues, los argumentos mismos, sino los compartimientos en que esos se ubican”. (BARTHES, 1982, p. 55). Podemos entender que esses compartimentos aristotélicos podem coincidir, enfim, com os sistemas de ideias e práticas, ou seja, os canais por onde circulam as ideologias linguísticas, que por vezes se condensam em forma de ideologemas, e se materializam nos discursos. A partir da figura aristotélica de topos, desde uma visão contemporânea da Retórica, Angenot (1982) formulou esta noção, definindo ideologema como “toda máxima, subyacente a un enunciado, cuyo sujeto lógico circunscribe un campo de pertinencia particular” (ANGENOT, 1982, p. 8), como, por exemplo, “o valor moral” ou “o instinto materno”. Em outras palavras, o ideologema se define como uma máxima ideológica que subjaz a um determinado enunciado, “una especie de estructura profunda de carácter ideológico”, que funciona “a la manera de los ‘lugares’ aristotélicos” (ANGENOT, 1982, p. 8), ao mesmo tempo que aparentemente ausente, está sempre ativo na instância ideológica. Nas palavras de Angenot, com relação aos sistemas ideológicos e aos ideologemas, “los sistemas ideológicos pueden ser tratados como un conjunto de máximas tópicas ligadas unas a otras según paradigmas” (ANGENOT, 1982, p. 8), esclarecendo que todo sistema de ideias é um conjunto de máximas, que tem origem e destino vinculados ao contexto social dado. A ideologia é concebida por Angenot não como o tradicional sistema althusseriano, mas sim como uma bricolagem que soma, dilui e oculta a sua própria heterogeneidade constitutiva e fundante, como espaço antagônico de contra-discursos, onde suas unidades só podem ser isoladas para fins de análise, observadas na sua rede de relações interdiscursivas e transdiscursivas. Ao tratar dos argumentos que se operaram para justificar o ensino do espanhol no Brasil, isolando-os para fins de análise, este estudo considerou as redes de relações geopolíticas em que se inserem e nas quais se configuram. Desta forma, pode-se ver que se elaboram a partir de determinados lugares – topos – por sua vez regulados por determinadas ideologias linguísticas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 77 3 Preâmbulo à inserção do espanhol no sistema de ensino regular brasileiro – entre letras e armas A inclusão oficial do espanhol no sistema de ensino brasileiro, que começa na formação comercial e militar, tem data específica em 1905 e se deu no nível de ensino superior. Primeiramente, com relação ao comércio, conforme o Decreto Nº 1.339, de 09 de janeiro de 1905 (BRASIL, 1905a), referido ao reconhecimento dos diplomas da “Academia de Commercio do Rio de Janeiro”3 e estendido à “Escola Pratica de Commercio de São Paulo”, ambas fundadas em 1902. O espanhol se insere vinculado, por um lado, à necessidade de organização da economia e do comércio interno e, por outro lado, ao comércio portuário e às relações internacionais, para as quais era necessário o desenvolvimento da prática oral e da leitura em línguas estrangeiras, que incluía o espanhol. Por decreto emitido no mesmo ano, o espanhol também passava a integrar o âmbito militar, colocando-se em prática em 1906, pelo Decreto nº 5.698, de 2 de outubro (BRASIL, 1905b). A sua inclusão neste contexto foi direcionada em função das relações que se estabeleciam com os países com os quais se implementavam missões visando à modernização do exército brasileiro ou as táticas de guerra, sejam individuais, sejam em conjunto como forma de mútua proteção. No caso da Escola de EstadoMaior, pode-se compreender que o ensino do espanhol servia também como subsídio para o desenvolvimento de questões que integravam o conteúdo do curso, como a “Geographia militar, precedida de geographia physica da America do Sul” e o “Estudo da organização dos exercitos sul-americanos”, entre outras (BRASIL, 1905b). As relações binacionais que se colocam em marcha nas primeiras décadas do século XX contextualizaram e antecederam o primeiro acontecimento de inserção do espanhol na primeira escola oficial e modelo de ensino secundário brasileira – o Collegio de Pedro II –, quando os Ministérios da Guerra, da Marinha e das Relações Exteriores do Brasil e do Uruguai idealizam “um grande exército bilíngue” (RECUERO, 2017). O discurso das correspondências oficiais trocados entre os países tiveram como palavras de ordem: as relações oficiais e sociais, a fronteira comum, as vantagens comuns de ordem social e militar, a Nos anos subsequentes, inúmeras instituições de comércio criadas no Brasil se equipararam, por decreto, à Academia de Comércio do Rio de Janeiro. 3 78 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 reciprocidade, o idioma dos vizinhos, a nação amiga, o conhecimento recíproco das duas línguas, as repúblicas irmãs, a América unida e, por fim, a política de formação e de solidariedade americana “nas letras e nas armas” (BRASIL, 1920). De nota de 5 de dezembro de 1917 (BRASIL, 1920), escrita pelo governo uruguaio, através de Manuel Bernardez, e endereçada ao Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Dr. Nilo Peçanha, destaca-se:4 Sr. Ministro, Tenho a honra de juntar a V. E. copia traduzida de um Decreto do meu Governo, mandando crear uma cadeira de lingua portuguesa no 3º anno da Escola Militar do Uruguay. As razões que servem defundamento áquella interessante medida (necessidade de facilitar as frequentes relações officiaes e sociaes entre os Chefes e Officiaes destacados em commissões ou serviços de guarnição nos diversos sectores da fronteira) são tão reaes, que parece logico pensar que ellas possam sugerir, pelos mesmos motivos, a mesma medida ao Ministerio da Guerra do Brasil – circumstancia sympathica para a qual tomo a liberdade de chamar a atenção de V. E. (BRASIL, 1920, grifos nossos). Esta nota evidencia a necessidade de compartilhar as línguas para as relações reaes de ordem social e militar nos setores da fronteira comum. Em fevereiro do ano seguinte, 1918, o Ministério das Relações Exteriores do Brasil remetia uma cópia de dita resolução uruguaia ao Ministério da Guerra brasileiro, assinado por Nilo Peçanha, destacando que Além das vantagens de ordem social, invocadas no artigo 1º do referido Decreto, parece-me que, também do ponto de vista militar, essa medida de reciprocidade se impõe e que muito lucrarão em efficiencia os nossos officiaes, se tiverem um conhecimento, tão perfeito quanto possível, do idioma de todos os nossos vizinhos (BRASIL, 1920, grifos nossos). Anunciavam-se, pelo exposto, as iniciativas de aproximação de caráter geopolítico entre o Brasil e o Uruguai. A aprendizagem “do idioma de todos os nossos vizinhos”, passava a ser um importante elemento. Estava posta a vantagem social, mas, frente a tudo, impunha-se a reciprocidade desde o ponto de vista militar. A resposta do Ministério da Guerra, assinada por José Caetano de Faria, em 6 de março de 1918, reiterava: 4 Todas as citações estão mantidas em sua escritura original. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 79 […] se sentia muito orgulhoso e satisfeito com a alta distincção da Nação amiga, e que já havia resolvido incluir o estudo da língua castelhana nos nossos estabelecimentos militares de ensino; acrescentando que os dois exercitos terão de lucrar com o conhecimento recíproco das duas línguas [...] (BRASIL,1920, grifos nossos). A questão, no entanto, ia mais além dentro do âmbito militar, passando pela “admissão de alunos das demais Repúblicas Americanas nas Escolas Militar e Naval e nas Academias do Brasil”, em fevereiro de 1918, visando ao desenvolvimento de uma política de fraternidade americana. Entre os Avisos emitidos pelos Ministérios brasileiros, destacamos: Vou comunicar, por intermedio da nossa representação nas demais Repúblicas da América, que [...] sendo admitidos livremente á matricula nas nossas Academias todos quantos moços das demais repúblicas irmãs tenham cursado os seus respectivos lyceus officiaes instrucção. [...] cooperando para que se desdobre essa política de formação e de solidariedade americana nas letras e nas armas, ha de testemunhar, perante as gerações que vão ter amanhã a responsabilidade do Governo da América, que as gerações de hoje souberem matel-a unida diante da maior guerra que conhece a historia, e que assim unida se manterá ella sempre, para abrigar homens e idéias acaso em perigo nas competições do Velho Mundo.[...] aproveitando a opportunidade, cabe-me communicar a V. Ex. que, attendendo a que a lingua hespanhola é, com raras excepções, a preferida no referido continente americano, resolvi nos regulamentos das Escolas e Collegios Militares a ser expedidos estabelecer o estudo desta lingua em substituição á alemã (BRASIL, 1920, grifos nossos). A aprendizagem do espanhol no Brasil e do português em países hispano-americanos se inaugurava como uma necessidade de caráter bélico e uma medida protetiva solidária. Colocava-se em marcha uma política de fraternidade americana que deveria configurar-se “nas letras e nas armas”. O argumento operado estabelece efeitos de compensação e neutralização entre os valores literário e militar, numa retomada quixotesca (e não por acaso) dentro “del discurso de las armas y las letras”.5 Almejava-se uma América unida e um grande exército bilíngue com os países mutuamente protegidos. 5 Cervantes, 1605. 80 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 Pode-se entender, a partir das marcas linguísticas destacadas nos fragmentos de fala selecionados, que é o funcionamento de ideias que se vinculam a determinadas representações – ideologias linguísticas e ideologemas. Por um lado, o discurso se inscreve numa retórica latinoamericanista, que retoma uma memória de ideais de integração através da metáfora da família e da pátria grande. Colocava-se em funcionamento uma representação do continente – um ideologema – como uma grande família, que por não falar o mesmo idioma deveria aprender o do seu fronte. Por outro lado, observamos a indicação de que havia uma língua preferida no continente, e eis que é a espanhola (e mais: não por acaso vem substituir a alemã, que outrora teve sua importância outorgada). “A língua preferida”, neste dado tempo e espaço, é a língua hespanhola, na citação anterior designada castelhana. Analisando a retomada quixotesca das letras e das armas, pode-se ler “A língua de Cervantes”. Entendemos, pois, este sintagma como um ideologema que remete a uma ideologia e representação metalinguística, no sentido de igualar, como sinônimos, língua espanhola e Cervantes. Quando se fala espanhol, fala-se a e na língua de Cervantes. A verdade em si, tal qual uma premissa entimemática que dispensara argumentos: a verossimilitude estava posta. Tem-se Cervantes funcionando como um simulacro de modelo de língua, dentro de um regime de normatividade que já estava anunciado e cristalizado, e que remetia a uma memória histórica do Século de Ouro da Espanha e sua tradição e supremacia linguística e literária. Trata-se dos antecedentes imediatos à inclusão do espanhol no ensino médio brasileiro e as ideologias linguísticas que se acionavam nesta circunstância. 4 o primeiro acontecimento geopolítico-linguístico: relações binacionais entre Brasil e uruguai, no contexto da 1ª guerra e do Pacto aBC – 1919 Os primeiros passos que incluíram a língua como elemento integrante das relações diplomáticas desde o âmbito militar são iniciativas do Uruguai. A esta iniciativa antecedeu uma primeira inclusão do português no ensino secundário uruguaio, como disciplina optativa. Da nota emitida em 11 de agosto de 1916, pela Legação do Uruguai ao governo brasileiro, firmada pelo Ministro da Instrução Pública uruguaia, Dr. Rodolpho Mezzera, destacam-se algumas passagens que reiteram argumentos que foram emitidos em anos anteriores, como já apresentado: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 81 Na secção de ensino secundário e preparatório estuda-se o francez, o inglez, o italiano e o alemão, sendo evidente a necessidade de completar este ensino, acrescentando-lhe outro idioma igualmente prestigioso e a favor do qual militam razões de ordem fundamental. Existe na America um grande povo, fecundo, progressista, apaixonado por grandes ideaes, robusto pela forte concepção da sciencia, ao qual nos unem laços de estreita, franca e solidaria amizade e que não falla o nosso idioma [...]. Ha alguma cousa que melhor possa favorecer a nossa reciproca sympathia e permitir o nosso mutuo conhecimento, que o estudo do seu idioma, harmonioso e elegante; que permita á nossa mocidade descobrir e avaliar as bellezas admiraveis da sua litteratura? Haverá alguma cousa que nos approxime ainda mais na communhão de ideaes e na obra de realizar praticamente a solidariedade fraternal de todo o continente? (BRASIL, 1920, grifos nossos). Os argumentos retomam o tema da solidariedade e amizade continental (laços de estreita, franca e solidária amizade) e novamente a metáfora da família, destacada através da fraternidade entre irmãos continentais (solidariedade fraternal de todo o continente), atribuindo valores de grandeza e progresso ao Brasil (grande povo, fecundo, progressista, robusto), de estética do idioma (idioma harmonioso, elegante), somado aos cânones da literatura (belezas admiráveis). Mesclase, portanto, o geopolítico em prol da mútua proteção continental à ênfase aos elementos da estética e da cultura da língua. A esta nota, segue um fragmento da solicitação do Uruguai visando à medida recíproca: A legação do Uruguay tem a honra e a satisfacção de levar esta nobre e espontanea homenagem da língua hespanhola, á língua portuguesa, prestada por um povo sincero a conhecimento da Chancellaria Brasileira; e pensa que um acto concordante do Brasil, além da sua propria belleza moral, seria opportunissimo e fecundo, não sómente em relação ao Uruguay, mas a toda America que falla a lingua de Cervantes e ignora a de Camões (BRASIL, 1920, grifos nossos). O argumento que impulsionou a inclusão recíproca dos idiomas no âmbito militar, fundamentado no quixotesco discurso das letras e das armas, é retomado no contexto do então ensino secundário. Agora se explicita a língua de Cervantes. Os argumentos têm um elemento em comum: se para a inclusão no âmbito militar foi exaltado o discurso de 82 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 Cervantes, fazendo referência ao “soldado letrado”, no ensino secundário fazia a referência explícita ao cânone e a toda sua representatividade de cultura letrada. O espanhol é a língua de Cervantes, o soldado letrado e, no contexto tratado, a língua compartida era uma arma a mais. Indiretamente, o Uruguai resgatava a relação histórica que havia se operado entre as duas línguas, fulminante no contexto ibérico dos séculos XVI e XVII, quando se processara o hiato diglóssico “espanhol, língua bela”, “língua de Cervantes”, frente a “português, língua rude”, “língua de Camões”, dentro do contexto político de dominação de Portugal pela dinastia filipina espanhola (DIÉGUEZ, 2008; HUE, 2007). Reafirmado pela tradição da consagração da língua e da literatura espanhola em seu Século de Ouro, esta circunstância havia se materializado na relação entre as línguas, desde ultramar, como se fosse uma questão puramente de ordem estética e não de política e ideologia linguística. Evidencia-se aí a dimensão “do mais e do menos” do topos aristotélico: um país que tinha uma língua mais gramatizada, uma literatura consagrada, e um poder maior, tinha uma língua “melhor”, ou seja, uma língua dominante e “bela”, sobre uma língua dominada e, consequentemente, “feia”. Para elucidar o lugar a partir do qual se engendra a argumentação e a sua inscrição na língua há que considerar toda a conjuntura histórica e social dada, que inclui o elemento geopolítico. Neste sentido, explicita-se que os ideologemas, seguindo a concepção de Angenot (1982), situamse historicamente, ou seja, são habitados por uma temporalidade dada, podendo figurar com um caráter mais conjuntural ou mesmo estender-se por largos períodos. A partir daí, é dada a largada para a inclusão do espanhol no ensino secundário brasileiro. Poucos dias depois da emissão da solicitação do Uruguai, em 26 de setembro de 1917, o Brasil sugeria o “oportuníssimo e fecundo” “ato concordante”, propondo a criação de uma cadeira de espanhol no Colégio Pedro II. Partindo do Ministério das Relações Exteriores e firmado por Nilo Peçanha, o pedido foi enviado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores, endereçado ao Ministro Carlos Maximiliano: Tendo o Governo da República Oriental do Uruguay creado uma cadeira da nossa lingua num dos seus estabelecimentos officiaes, este Ministerio teria muita satisfação em que pudessemos corresponder a esse gesto com a creação no Collegio Pedro II de uma cadeira da lingua espanhola, que, como V. Ex. sabe, além Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 83 de ser uma homenagem que o Brasil prestaria assim áquella republica irmã e ás demais Nações que, neste continente, fallam esse idioma, teria a vantagem de facilitar e desenvolver o intercambio intellectual entre o nosso paiz e os povos hispanoamericanos (BRASIL, 1920, grifos nossos). Os fragmentos destacados reiteram os ideais anteriormente expressados: o intercâmbio e a união que se buscava estabelecer mostrada na metáfora da família continental. Em outubro de 1917, o Ministro tratava de solicitar à Congregação do Colégio Pedro II a criação da cadeira de espanhol e literatura hispano-americana. Uma nota de imprensa tratava de divulgar: IMAGEM 1 – A Época – 31 de outubro de 1917 – ed. 01937. Fonte: http://bndigital.bn.br/hemeroteca-digital/ 84 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 Um dado a ser considerado refere-se a que a inclusão da disciplina de espanhol, neste momento, insere o ensino da literatura hispanoamericana. Esta questão merece uma atenção especial, haja vista que é um elemento de evidência da valorização do continental que se colocava em marcha. Em que pese a língua de Cervantes estar a integrar os argumentos até aqui destacados – e que, como sabemos, seguirá como palavra de ordem em outros discursos, de outras ordens e em diferentes instrumentos –, o discurso do governo brasileiro coteja o hispano-americano, e não a literatura especificamente espanhola. A medida seria implementada somente em 1919, quando entra o espanhol como disciplina optativa, com a abertura do primeiro concurso para professor do idioma no Colégio Pedro II e a seleção do professor Antenor Nascentes. Durante este intervalo, nas informações que foram sendo trocadas através de Avisos e Notas entre os Ministérios do Brasil (BRASIL, 1920), consta que a Congregação do Colégio Pedro II resolvera incluir o espanhol “colocado em um curso suplementar”. O movimento geopolítico que estava em marcha desencadeou na sua efetivação mediante a Lei 3.674 de 7 de janeiro de 1919, que definia os gastos do Brasil para este mesmo ano: 23. Subvenção a institutos de Ensino: Augmentada de 9:600$ a do Collegio Pedro II, para attender a despezas com a creação da cadeira de hespanhol em aquelle collegio, em reciprocidade do acto identico da republica do uruguay (BRASIL, 1920). Buscando interpretar o gesto do Brasil para a inclusão do ensino do idioma, à luz do contexto político da época, alguns fatos merecem ser destacados. Desde os começos do século XX, os dois países viviam uma situação de reorganização de suas políticas externas. O contexto das relações entre ambos os países se encontrava, de fato, balizado por uma política de mútua cooperação iniciada em 1909 em prol do reestabelecimento das fronteiras, conduzida pelo diplomata brasileiro Barão de Rio Branco. O Uruguai praticava uma diplomacia pendular, que se definia como tender ao país vizinho que lhe trouxesse apoio “para contrabalancear políticas o decisiones del otro en situaciones que afectaban intereses de Uruguay” (ALLENDE; CLEMENTE, 2014, p. 155). Subsequentemente ao Tratado Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 85 de Rectificación de Límites,6 de 1909 – marco na história da relação binacional, no qual se estabeleciam os limites no Rio da Prata – foram negociados vários acordos binacionais e projetos comuns que trataram de estreitar laços diplomáticos relativos a fatores de ordem econômica, ambiental, científica e cultural. Destacam-se a Convención para la mejor caracterización de la frontera entre la República Oriental del Uruguay y los Estados Unidos del Brasil; o Tratado de Extradición de Criminales; e a Convención de Arbitraje General Obligatorio, todos firmados no ano de 1916; a celebração do Tratado sobre Caracterización de Fronteras e o Tratado sobre Fijación y Liquidación de Deuda, de 1918. (ALLENDE; CLEMENTE, 2014). Com relação à liquidação de uma dívida histórica que o Uruguai tinha pendente com o Brasil, viu-se paga com o pacto de que o valor seria invertido de maneira a contemplar obras de mútuo benefício que uniriam as fronteiras de ambas as nações, prevendo não somente a construção da Ponte Internacional Barão de Mauá em 1930, que une os dois países pelas cidades de Jaguarão (Brasil) e Rio Branco (Uruguai), como prioritariamente a fundação de um instituto de trabalho ou centro educativo, localizado justamente na fronteira, a ser ministrado por representantes dos dois governos com o uso das duas línguas, visando à instrução científica e profissional de brasileiros e de uruguaios, em igual proporção, principalmente no que se referia às indústrias campeiras (URUGUAY apud ALLENDE; CLEMENTE, 2014, p. 170). Neste contexto, a política binacional que se desenvolvia desde o ano de 1909 motivou, sem dúvida, a criação da cadeira de espanhol no Brasil, desde o âmbito militar, refletindo-se e estendendo-se ao ensino secundário. Pode ser considerado o primeiro ato concreto que incluiu uma intervenção glotopolítica de ordem da integração linguística nessa fronteira. Uruguai recebia do Brasil uma homenagem de reciprocidade para o desenvolvimento de um intercâmbio intelectual, amparado no idioma que aos brasileiros, estudantes do ensino secundário do Colégio Pedro II, ser-lhes-ia oferecido com a cadeira de espanhol e literatura hispanoamericana. De fato, estava bem caracterizado como homenagem, pois além de ser “simbólico” o fato de a oferta ocorrer somente no Pedro II, Por este tratado, Brasil cedeu ao Uruguai parte das águas da Lagoa Mirim e do Rio Jaguarão: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1910-1919/decreto-7992-11maio-1910-586242-publicacaooriginal-109730-pe.html. 6 86 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 não se viu implementada a ação de maneira a ter efetivos resultados. Por outra parte, evidencia-se que as geopolíticas naquele momento encabeçadas pelo então Ministro brasileiro das Relações Exteriores (1902-1912), o Barão de Rio Branco – pretendiam ir mais além das mencionadas cordialidades com o Uruguai, incluindo as relações com as demais nações e povos hispano-americanos. O intercâmbio, posto na declaração do ministro com referência ao intelectual e tendo a língua como estandarte, marcava mais um passo dado dentro das relações que levariam ao MERCOSUL. Tratava-se, portanto, de um âmbito maior, das políticas que se colocavam em marcha entre os países rumo à Regionalização, mas nesse momento relativo à delimitação das fronteiras e questões conexas. Assim pode ser entendido pela quase concomitância, por exemplo, com o subsequente Pacto ABC ou Tratado do ABC, firmado em 15 de maio de 1915, entre Argentina, Brasil e Chile. Oficialmente designado Pacto de Não Agressão, Consulta e Arbitragem, o ABC se constituiu um marco nas relações entre os países em prol da integração latino-americana, ainda no contexto da primeira guerra, possivelmente com o objetivo de fazer frente à influência estadunidense. O tratado, redigido em espanhol, estabelecia que: Los gobiernos de las repúblicas Argentina, Estados Unidos del Brasil y Chile, en el deseo de afirmar en esta oportunidad la inteligencia cordial que la comunidad de ideales e intereses ha creado entre sus respectivos países y de consolidar las relaciones de estrecha amistad que los vinculan, conjurando la posibilidad de conflictos violentos en el porvenir; consecuentes con los designios de concordia y de paz que inspiran su política internacional y con el firme propósito de cooperar a que cada día se haga más sólida la confraternidad de las repúblicas americanas […] (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000, cap. 36, nota 161, grifos nossos)7 De acordo com os autores (2000), há opiniões divergentes quanto a quem foram, de fato, os propagadores do Tratado8 que, no entanto, 7 Ver em: http://www.argentina-rree.com/7/7-040.htm. De acordo com os dados que citam os autores da obra (ESCUDÉ; CISNEROS, 2000), o argentino Roque Sáenz Peña foi o propagador da ideia de uma entente argentinobrasileira-chilena, ainda que o primeiro ato desta entente foi a criação em Roma da Academia de Belas Artes Latino-americana, iniciativa do representante do Chile ante 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 87 não se concluiu. O Brasil imediatamente se lançou a uma política de colaboração para com os Estados Unidos. O Chile não logrou aprovação parlamentária. A política norte-americana pan-americana estava em alta. A eles não interessava em nada a união ABC. Ao contrário, soava como ameaça. Ao estalar a primeira guerra, o Chile e a Argentina buscaram em vão a proteção da União Pan-americana para os países neutrais. O Pacto ABC buscava a proteção frente às ameaças externas, não somente militares, rearmando-se novamente em 1953. 5 o desfecho do primeiro acontecimento geopolítico-linguístico de ensino de espanhol no Brasil: não valia nota e os alunos não compravam o Quixote A cadeira seria oficialmente extinta em 1925. O estudo de Quintela e Costa (2013) acerca do lugar da atuação de Nascentes dentro da Linguística Aplicada, relacionada ao espanhol no Brasil, traz importantes informações relativas ao trabalho do docente, no momento em que se suprime o ensino do idioma, no ensino secundário. Nascentes teria proferido um Discurso, em 1952, por ocasião da homenagem recebida como professor emérito do Colégio Pedro II, no qual declarava que a cadeira era facultativa, o que lhe trazia certa condição de inferioridade. Tinha os piores horários [...]: os alunos não compravam o Quixote para os indispensáveis exercícios de aula; não havia exame; pouco adiantava a nota. Tal situação não podia continuar (QUINTELA; COSTA, 2013, p. 439, grifos nossos). o governo da Itália que contou com o respaldo dos representantes da Argentina e do Brasil. Por sua parte, o professor Marcelo J. Rimoldi menciona antecedentes anteriores aos já citados, e afirma que a ideia de um tratado entre Argentina, Brasil e Chile havia sido insinuada pelo ministro das relações exteriores do Brasil, Carlos de Carvalho, e exposta pelo ministro argentino no Brasil, Manuel Gorostiaga, em 1904. Neste mesmo ano, o barão de Rio Branco sugeriu a Gorostiaga a ideia de unificar os três países através de um acordo. As declarações efetuadas por Sáenz Peña em 1910, em torno à iniciativa chileno-argentino-brasileira de criação da academia artística latino-americana, aceleraram a constituição deste “bloco”. No entanto, a oportunidade de concretizar esta aproximação recíproca entre as autoridades de Buenos Aires, Rio de Janeiro e Santiago se deu recém a meados de 1914, na ocasião em que oferecia a mediação conjunta de Argentina, Brasil e Chile no conflito entre Estados Unidos e México. Ver em: http:// www.argentina-rree.com/7/7-040.htm. 88 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 Além disso, segundo o estudo de Quintela e Costa (2013), em uma entrevista Nascentes reiterava o descaso com o ensino do espanhol na circunstância: Entrei para professor de espanhol em 1919. Mas sofri muitas humilhações, porque ninguém estudava. Não havia nem horário, nem exame. Eu só podia apanhar as sobras dos horários. Quando surgiu o desdobramento das cadeiras de português e latim, me deram a escolher. Optei pelo português. (QUINTELA; COSTA, 2013, p. 439, grifos nossos). O que podemos ver é que a inclusão do ensino do espanhol, que se pautara em questões de diplomacia dentro de contextos políticos de interesses comuns de outras ordens, mas inclusive lationoamericanistas, não conduzia, de fato, ao desenvolvimento de competências linguísticas. Uma vez mais se faz presente, por outra parte, a representação do Cervantes como o ideal de língua materializada no Quixote, afastandose da perspectiva hispano-americana que a própria disciplina levava como nome. A pretensa política linguística foi proposta de forma a dar ao espanhol um status de inferioridade (não há horários, não vale nota, é facultativa). Encerrando-se em 1925, será retomado no ensino regular somente em 1942, quando um novo quadro de alianças políticas entrará em vigor, entre Argentina e Brasil, através dos governos de Juan Domingos Perón e Getúlio Vargas. Tratar-se-á do segundo movimento de inclusão do espanhol no Brasil (RECUERO, 2017). 4 Considerações finais e implicações pedagógicas sobre o ensino de línguas A análise a nível discursivo realizada nos textos selecionados pode identificar nos argumentos sobre o ensino do espanhol no Brasil determinados sintagmas que remetem a determinadas memórias, que se associam a determinadas ideologias linguísticas, as quais, por vezes apresentam-se condensadas em ideologemas. Assim sendo, carregam em si uma dimensão política, inscrita em determinados processos históricos, que pode e deve ser rastreada e estudada, considerando as condições socio-históricas nas quais foram produzidos. Seguindo a perspectiva glotopolítica de Arnoux (2016), trata-se de considerar os fenômenos abordados “como intervenciones en el espacio público del lenguaje Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 69-92, 2020 89 que tienden a establecer (reproducir o transformar) un orden social, modelando a la vez las identidades, es decir, construyendo subjetividades necesarias en cada instancia histórica” (ARNOUX, 2016, p. 19). A construção de subjetividades e de identidades, podemos concluir, de alguma forma se projeta sobre as práticas pedagógicas de ensino de línguas. No caso do espanhol, é premissa a importância que cumpre Cervantes no status não somente da literatura, mas no modelo de língua a ser seguido. Não temos notícia, também é verdade, de uma língua de Cortázar ou de uma língua de Borges, para destacar alguns escritores renomados. O ideologema da língua de Cervantes, portanto, naturaliza e legitima um modelo integrante de um regime de normatividade de status. O mote da integração continental gera, no entanto, alguma possível desconfiança, na medida em que já se apresentou como utopia, devido ao exacerbado exagero nas formas em que é discursivisado e, ao carregar essas marcas, não apresenta até hoje a mesma cristalização do simulacro da língua de Cervantes, em que pese a sua reiteração. Por fim, vemos que coexistem, nos discursos analisados, estas duas representações: a língua de Cervantes, como memória ibérica, e a união da grande família latino-americana. Em 2017 vimos arriada a bandeira do Mercosul, que é atualmente o representante legal do processo de integração latinoamericano e que se vê abalado. Os professores de língua estrangeira devem estar atentos às questões de cunho político e ideológico que envolvem e que se envolvem no ensino de línguas, que não pode ser tratado, pois, somente e em primeira instância considerando os aspectos metodológicos. referências ALLENDE, Rafael; CLEMENTE, Isabel. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Reflexões sobre a linguística galileana de Noam Chomsky Reflexions on Noam Chomsky’s Galilean Linguistics Gustavo Augusto Fonseca Silva Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil fonsecaugusto@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-7427-4504 “Antigamente (...) acreditavam firmemente que era possível, no campo do conhecimento, chegar ao fim (...) e elucidar todas as perguntas com uma só resposta. ‘Há um enigma para resolver’, assim se apresentava o fim da vida aos olhos do filósofo; precisavam em primeiro lugar ‘decifrar o enigma’ e condensar o problema do mundo na fórmula mais simples. A ambição sem limites e o gozo de ser o ‘decifrador do mundo’ enchia os sonhos do pensador; nada lhe parecia valer a pena neste mundo senão encontrar o meio de levar a um bom fim para ele” (Friedrich Nietzsche, Aurora, § 547). resumo: O pressuposto metafísico de que a natureza é perfeita tem sido um dos alicerces da física moderna desde o século 17. Devido ao sucesso dessa disciplina, pesquisadores de outros campos do saber seguiram os seus princípios, inclusive a ideia de que a natureza é perfeita. Um caso particularmente interessante dessa transposição epistemológica se deu no século 20 com a gramática gerativa de Noam Chomsky, sobretudo em seu Programa Minimalista. Nele, Chomsky leva às últimas consequências o que chamou de “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’”, propondo que a linguagem também é perfeita. Dado, no entanto, que igualmente se assume no gerativismo que a linguagem é um sistema biológico, a conjectura de que ela seja perfeita resulta na aposta altamente improvável de que ela seja única do ponto de vista biológico. Isso porque, sendo o resultado de acidentes evolutivos, os sistemas biológicos são caracteristicamente imperfeitos. Tendo em vista essa situação quase paradoxal a que se chegou no minimalismo chomskiano, discute-se neste artigo até que eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.27.4.93-158 94 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 ponto se deve emular a física em outras áreas do conhecimento, com especial atenção à biologia e às ciências cognitivas – entre as quais se inclui a linguística. Como resultado dessa investigação, questiona-se neste trabalho o próprio pressuposto metafísico de que a natureza é perfeita, em consonância com as ideias de teóricos contemporâneos como o físico Marcelo Gleiser. Palavras-chave: Filosofia da linguística; filosofia da física; Galileu Galilei; Noam Chomsky; Programa Minimalista; arquitetura paralela de Ray Jackendoff. abstract: The metaphysical assumption that nature is perfect has been groundwork for modern physics since the seventeenth century. Due to the success of that discipline, researchers from other fields of study followed its principles, including the idea of nature being perfect. Noam Chomsky’s Generative Grammar was a particularly interesting case of such epistemological transposition, which took place in the twentieth century, mainly in his Minimalist Program. In his work, while taking to ultimate levels what he dubbed “the Galilean intuition that ‘nature is perfect’”, Chomsky proposes language as well is perfect. However, given that in Generativism language is also seen as a biological system, conjecture on its perfection results in a highly unlike assertion that it is unique from a biological point of view, because biological systems are characteristically imperfect since they are results of evolutionary accidents. Built on such almost paradoxical situation reached in Chomsky’s minimalism, this article discusses the limits to emulating physics in other fields of study, more specifically in biology and cognitive sciences, among which stands linguistics. As a result of this investigation, this work questions the very metaphysical assumption that nature is perfect, along with ideas from contemporary thinkers such as physicist Marcelo Gleiser. Keywords: Philosophy of Linguistics; Philosophy of Physics; Galileo Galilei; Noam Chomsky; Minimalist Program; Ray Jackendoff’s parallel architecture. Recebido em 09 de abril de 2019 Aceito em 04 de agosto de 2019 1. Introdução No ensaio “Belas teorias”, publicado na coletânea Sonhos de uma teoria final: a busca das leis fundamentais da natureza, o físico Steven Weinberg discute como a estética tem sido utilizada há séculos pelos físicos como um guia no desenvolvimento de suas teorias. “(...) algo tão pessoal e subjetivo como nosso senso de beleza nos ajuda não só a inventar teorias físicas, mas até a julgar a validade destas”, observa Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 95 Weinberg (1996, p. 109). A seu ver, três princípios sustentam a noção de beleza tal qual entendida pelos físicos: simetria, simplicidade e inevitabilidade – entendida como “a beleza de uma estrutura perfeita, de tudo se encaixando, de rigidez lógica, de nada ser alterável” (WEINBERG, 1996, p. 120). Como não poderia deixar de ser, Weinberg (1996, p. 123ss) destaca que na aplicação da matemática pura à física é que a eficácia do julgamento estético mais impressiona. Para ilustrar essa afirmação, Weinberg resgata, por exemplo, a história da elaboração da geometria não euclidiana no século 19 por matemáticos como Carl Friedrich Gauss e Georg Friedrich Bernhard Riemann e seu feliz emprego por Albert Einstein na relatividade geral, já no início do século 20. “A matemática estava ali esperando para Einstein utilizá-la, apesar de que acredito que Gauss, Riemann e outros geômetras diferenciais do século 19 não tivessem a menor ideia de que seus trabalhos teriam qualquer aplicação nas teorias físicas da gravitação” (WEINBERG, 1996, p. 124), pontua Weinberg. De qualquer maneira, o fato a ser aqui destacado é que os físicos contemporâneos seguem essa trilha estética aberta por seus antecessores na tentativa de concretizar o sonho de uma teoria final, que desvendaria as “leis finais da natureza” (WEINBERG, 1996, p. 9). Mas não somente eles. Afinal, dado o extraordinário sucesso da física-matemática moderna, teóricos de outras áreas do conhecimento acabaram por se valer em seus estudos dos mesmos princípios que vêm norteando as pesquisas realizadas no âmbito dessa disciplina desde os seus estágios iniciais, no contexto da revolução científica do século 17. Entre as ciências humanas, a gramática gerativa de Noam Chomsky, cujos primeiros passos datam dos anos 1950, talvez seja o exemplo mais bem acabado desse fenômeno. Recorrendo basicamente à gramática tradicional e à linguística estruturalista americana; à filosofia cartesiana; à lógica matemática desenvolvida a partir do fim do século 19 por nomes como Gottlob Frege, Bertrand Russell e Rudolf Carnap e à epistemologia de gigantes da ciência como Galileu Galilei, Isaac Newton e Albert Einstein (BORGES NETO, 1991; GUIMARÃES, 2017), Chomsky revolucionou os estudos da linguagem ao propor, em oposição às teorias estruturalistas e behavioristas então em voga, que o conhecimento linguístico humano é inato, havendo em nossa mente/ cérebro um componente especificamente dedicado à linguagem – isto é, uma “faculdade da linguagem” (CHOMSKY, 1999, p. 40). Mais que 96 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 isso: seguindo a “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’”1 (CHOMSKY, 2001, p. 2) e “simples” (CHOMSKY, 2014, p. 154), Chomsky acabou por levantar a hipótese de que a linguagem mesma é um “sistema perfeito” (CHOMSKY, 1999, p. 39), apresentando propriedades de simplicidade e de elegância que não são características de sistemas orgânicos (CHOMSKY, 1999, p. 69). “Depois dos primeiros anos da década de 1980”, lembra Chomsky (2014, p. 47-48), “eu começava quase todo curso que ministrei dizendo: ‘Vejamos se a linguagem é perfeita’. Tentávamos então verificar se ela era perfeita, e isso não dava certo; terminávamos com algum outro tipo de complexidade.” Sem, no entanto, desistir da ideia de que a linguagem é perfeita em algum sentido, Chomsky recolocaria essa hipótese nos anos 1990 em seu Programa Minimalista (CHOMSKY, 1999), assumindo a chamada “tese minimalista forte” (CHOMSKY, 2007a, p. 4; 2007b, p. 16; 2007c, p. 20), segundo a qual “a linguagem é uma solução perfeita para as condições de interface” (CHOMSKY, 2007a, p. 5; 2007b, p. 16; 2007c, p. 20). Na segunda seção deste trabalho, volta-se à tese minimalista forte, discutindo-se seus detalhes. Por ora, o ponto a ser sublinhado é que a ideia de que a linguagem é um sistema perfeito remonta aos primórdios da gramática gerativa. Conforme Chomsky (2014, p. 248), ainda nos anos 1950, era “muito óbvio” para alguns dos primeiros gerativistas que existiriam três fatores determinantes ao design da linguagem: 1) dotação genética; 2) experiência (ou exposição aos dados externos); 3) princípios não específicos à faculdade da linguagem (CHOMSKY, 2005b, p. 6; 2007a, p. 3; 2007b, p. 15). Entre esses princípios, definidos por Chomsky (2014, p. 167) como “princípios gerais do funcionamento do mundo” – ou seja, princípios físicos e matemáticos –, estariam “princípios de análise de dados que talvez sejam usados na aquisição da linguagem e em outros domínios” (CHOMSKY, 2005b, p. 6). Levando em conta tais princípios, e tomando como referência os trabalhos clássicos do biólogo e matemático D’arcy Thompson (1994) e do lógico e matemático Alan Turing (1952) sobre o papel de princípios extraorgânicos no desenvolvimento de padrões de organismos vivos, Chomsky confiantemente afirma que “alguns dos princípios do terceiro fator têm o cheiro de restrições que valem para todas as facetas de crescimento e evolução” (2007a, p. 3). Seguindo essa pista, porém, Chomsky acabou por assumir no Programa Minimalista posições 1 As traduções das citações de obras não publicadas em português foram feitas pelo autor. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 97 empiricamente questionáveis sobre a faculdade da linguagem, como a de que a fonologia e a morfologia não são componentes da linguagem propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20-23; CHOMSKY, 2014, p. 96) e a de que a exteriorização do pensamento pode não ter sido resultado de um processo evolutivo, e sim fruto de uma “brilhante ideia” de alguém (CHOMSKY, 2014, p. 97) – ou seja, uma criação humana. À primeira vista, essas questões talvez pareçam concernir apenas ao quadro gerativista de estudos linguísticos. Um olhar mais atento a elas, no entanto, permite vislumbrar as profundas implicações epistemológicas de toda essa discussão –especialmente considerandose que foram sobretudo os desdobramentos da gramática gerativa nas últimas sete décadas que culminaram nesta nova subdisciplina a que se tem chamado de “biolinguística”, que é definida como “o estudo da biologia da linguagem” (JENKINS, 2013, p. 4). Isso porque, se de um lado a incorporação dos preceitos seguidos pelos físicos e matemáticos se mostrou determinante para o êxito do programa gerativista, por outro, o comprometimento de Chomsky com esses mesmos preceitos resultou na defesa de posições absolutamente insustentáveis em seu Programa Minimalista. A própria ideia de que o sistema orgânico da linguagem, diferentemente de todos os outros bilhões e bilhões de sistemas orgânicos complexos, é perfeito ou próximo da perfeição soa muito mais como um desejo do que como uma hipótese científica. Em vista disso, bem como de outras disformidades do minimalismo chomskiano a serem discutidas ao longo deste texto, é imperativo em primeiro lugar levantar a pergunta sobre os limites da transposição salutar do modus operandi de físicos e matemáticos à investigação de um “órgão mental” (e.g. CHOMSKY, 1977, p. 58; 2009b, p. 41; 1998, p. 19; 2005b, p. 1) como a linguagem. Além do mais, considerando-se o papel decisivo exercido pela gramática gerativa na revolução cognitiva dos anos 1950 (GARDNER, 2003), é igualmente obrigatório estender a pergunta às ciências cognitivas como um todo. Nos dois casos, é claro, trata-se de um desafio monumental que demandará a atenção de cientistas cognitivos – aqui evidentemente incluídos os linguistas –, de físicos e de filósofos por um longo período. Não obstante isso, é altamente positivo o simples fato de já se poder colocar a pergunta a respeito da conveniência de tomar a físicamatemática como modelo do fazer científico na biologia como um todo e nas ciências cognitivas em particular. 98 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Sem minimizar a complexidade dessa pergunta, este artigo tem por objetivo não apenas formulá-la, mas também esboçar uma resposta a ela. Na verdade, tendo por referência a situação delicada a que chegou Chomsky em seu Programa Minimalista ao levar às últimas consequências no estudo da biologia da linguagem pressupostos metafísicos assumidos por físicos-matemáticos, argumenta-se neste trabalho que não faz sentido adotar na investigação de organismos vivos esses pressupostos – a começar pela idealização de que a natureza seja perfeita em algum sentido. Para além disso, com base no truísmo de que organismos vivos também são parte do mundo natural, põe-se em xeque ao fim destas reflexões a própria concepção de que a natureza seja perfeita, assim como a escolha da estética como guia para o desenvolvimento de teorias científicas. Como resultado desse posicionamento, as ideias aqui defendidas acabam no fim das contas por alinhar-se com a censura que pensadores contemporâneos como o físico Marcelo Gleiser vêm fazendo ao sonho que surge na Grécia Antiga e é renovado na revolução científica do século 17 de que as leis fundamentais da natureza são dotadas de princípios estéticos como os de simetria, simplicidade e inevitabilidade. 2. um sistema orgânico perfeito? Logo no início do livro Why only us (Por que apenas nós?), lançado por Robert C. Berwick e Noam Chomsky em 2016, os autores sintetizam a concepção chomskiana da linguagem afirmando que esta é “um sistema computacional interno que constrói expressões hierarquicamente estruturadas com interpretações sistemáticas no nível das interfaces com outros dois sistemas internos”: o sistema sensóriomotor para a externalização e o sistema conceitual para planejamento, interpretação, inferência – ou seja, para o “pensamento” (p. 20). Em relação ao primeiro sistema, Berwick e Chomsky (2017) destacam que ele abrange não apenas a aprendizagem e a produção vocal/motora, mas também a formação de palavras (morfologia) e sua relação com os sistemas de som da linguagem (fonética e fonologia); a prosódia e o reajuste na produção linguística para facilitar a carga da memória durante a produção. Além disso, Berwick e Chomsky (2017, p. 21) ressaltam que a estrutura hierárquica interna da linguagem não carrega a informação sobre o ordenamento de palavras e sintagmas para a direita ou para a esquerda. Assim, exemplificam, as combinações verbo-objeto e objeto-verbo, que diferenciam o japonês do inglês e do francês, não são representadas na Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 99 estrutura hierárquica interna. De acordo com Berwick e Chomsky, esse fato sinaliza que exigências de externalização (vocal ou manual) é que impõem a ordem temporal sequencial da linguagem. Dando prosseguimento à diferenciação entre o sistema computacional interno que constrói expressões hierarquicamente estruturadas e o sistema sensório-motor, Berwick e Chomsky (2017, p. 2123) apresentam evidências de que este tem propriedades compartilhadas entre humanos e outras espécies, enquanto aquele é exclusivamente humano. Os dois autores chamam a atenção, por exemplo, para estudos comparativos, neurofisiológicos e genéticos de aves canoras que sinalizariam que a base biológica para a aprendizagem vocal parece ter evoluído de maneira idêntica, mas independente, tanto nas aves quanto nos humanos. Estendendo a discussão a primatas, Berwick e Chomsky também citam um trabalho que teria mostrado que saguis bebês “afinam” suas vocalizações de forma semelhante à maneira com que as crianças afinam suas vozes. Com base nessas e em outras pesquisas com conclusões semelhantes sobre as similaridades entre o sistema vocal humano e o sistema vocal de outras espécies, Berwick e Chomsky (2017, p. 23) afirmam: “Se tudo isso estiver correto, podemos deixar de lado esse aspecto do sistema de linguagem para a externalização e nos focar nos aspectos centrais restantes, especificamente humanos”. Ou seja, se as conclusões desses estudos estiverem corretas, Berwick e Chomsky recomendam que aspectos linguísticos próprios à fonética, fonologia e morfologia sejam deixados de lado em favor do foco nos aspectos linguísticos centrais, especificamente humanos – quais sejam, a sintaxe e o mapeamento para a interface semântica (2017, p. 93), que se dá via sistema de semântica formal (HAUSER et al., 2002, p. 1571). De fato, anos antes da publicação de Por que apenas nós?, Hauser, Chomsky e Fitch (2002) já haviam apresentado argumentos semelhantes com o intuito de sustentar a hipótese de que a recursividade – conceito que será analisado na terceira seção deste trabalho – é o único componente exclusivamente humano da faculdade da linguagem. Sem entrar em detalhes sobre o sistema conceitual-intencional, como tampouco o fariam Berwick e Chomsky (2017), Hauser, Chomsky e Fitch (2002) focam-se no sistema sensóriomotor, citando evidências de que este tem propriedades compartilhadas entre humanos e não humanos, diferentemente da recursividade. Essa linha argumentativa, porém, vem sendo questionada há tempos por outros pesquisadores. Steven Pinker e Ray Jackendoff (2005), 100 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 por exemplo, listam uma série de estudos que mostram evidências de que os componentes do sistema sensório-motor humano são dotados de traços unicamente humanos, apesar de também terem traços em comum com o sistema sensório-motor de outras espécies. Sem negar o fato apontado por Hauser et al. (2002), e retomado por Berwick e Chomsky (2017), de que alguns aspectos da habilidade humana para perceber a fala não apenas são encontrados em outros animais como são anteriores ao advento da linguagem, Pinker e Jackendoff (2005, 206-207) questionam o pressuposto assumido por Hauser et al. (2002), e reiterado por Berwick e Chomsky, de que não houve mudanças evolutivas específicas à percepção humana da fala. Para justificar esse ponto de vista, Pinker e Jackendoff (2005, p. 207) chamam a atenção para o fato de que bebês humanos discriminam pares de sons da fala sem instrução algum, enquanto os outros animais que conseguem realizar essa tarefa, como alguns macacos, só o fazem após um longo período de treinamento. Pinker e Jackendoff (2005, p. 217) também ressaltam que humanos, e apenas humanos, distinguem naturalmente palavras individuais, identificando sem esforço algum os limites entre elas. Além disso, sublinham que os balbucios silábicos emergem espontaneamente em bebês humanos, o que não se verifica em qualquer outra espécie. Para reforçar suas críticas à posição defendida por Hauser et al. (2002) de que o sistema sensório-motor humano é inteiramente constituído de propriedades compartilhadas entre humanos e outras espécies, Pinker e Jackendoff (2005, p. 210-212) incluem na discussão a fonologia, ressaltando que esse componente linguístico não é sequer mencionado por Hauser et al. (2002). Para início de conversa, Pinker e Jackendoff observam que ter o potencial de articular os sons da fala por possuir o trato vocal adequado, como o têm alguns primatas não humanos, não é o mesmo que estar apto à produção dos sons da linguagem. Afinal, como enfatizam Pinker e Jackendoff tendo em vista os estudos fonológicos, os sons da linguagem são constituídos por segmentos de fala, que são finamente articulados em sílabas, pés e frases prosódicas, aos quais são superimpostos ainda padrões de acento (stress) e de altura (pitch).2 A despeito porém da complexidade de todo esse arranjo, que é aparentemente exclusivo a humanos, Pinker e Jackendoff admitem que algumas propriedades combinatórias da fonologia encontram análogos 2 Para uma apresentação desses tópicos, ver, por exemplo, Kenstowicz (1994) e Odden (2005). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 101 em cantos de algumas espécies de pássaros e talvez até mesmo em cantos de determinados cetáceos, como baleias e golfinhos. Isso, no entanto, argumentam, não quer dizer que o sistema sensório-motor humano não tenha propriedades exclusivamente humanas. As propriedades rítmicas da linguagem e da música, exemplificam, parecem ser unicamente humanas, assim como as regras de emprego de tonalidade presentes na música e em línguas tonais como o mandarim. Considerando essas e outras tantas particularidades fonológicas que não cabem ser aqui mencionadas, Pinker e Jackendoff concluem, em acordo com amplas evidências empíricas (cf., p. ex., BURTON et al., 2000; DEHAENE-LAMBERTZ, 1997, 2000; DEHAENE-LAMBERTZ; BAILLET, 1998; DEHAENE-LAMBERTZ; GLIGA, 2004; DEHAENE-LAMBERTZ; PEÑA, 2001; DEHAENELAMBERTZ et al. 2006; JACQUEMOT et al., 2003), que “os tipos de constituintes, os princípios de combinação e a natureza dos processos de ajuste em fonologia parecem ser específicos à linguagem” (PINKER; JACKENDOFF, 2005, p. 211).3 Curiosamente, o próprio Chomsky defendeu por décadas uma opinião semelhante sobre o componente fonológico, tendo mudado de ideia, ao que parece, apenas nos anos 1990, já no âmbito minimalista. Na verdade, é perceptível o esforço de Chomsky em manter a fonologia próxima à sintaxe em modelos teóricos anteriores ao Programa Minimalista, sendo possível traçar na história da gramática gerativa pontos de aproximação e pontos de afastamento entre o componente sintático e o componente fonológico até a total ruptura entre os dois no minimalismo. Em Syntactic structures (Estruturas sintáticas), por exemplo, de 1957, Chomsky tenta manter a sintaxe e a fonologia o mais próximas possível, inclusive empregando o mesmo mecanismo de regras de reescrita para descrever tanto as regras sintáticas quanto as regras fonológicas. No livro, Chomsky sugere interpretar a regra da forma X → Y de (1) como a instrução “reescreva X como Y” (2015a, p. 38): (1) (i) Sentença → SN + SV (ii) SN → Art + N (iii) SV → Verbo + SN (iv) Art → The [o, a] (v) N → man [homem], ball [bola], etc. (vi) Verbo → hit [chutou], took [pegou], etc. 3 Para a réplica, ver Fitch et al. (2005); para a tréplica, ver Jackendoff e Pinker (2005). 102 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Feito isso, Chomsky (2015a) afirma que (2) seria a derivação da sentença “O homem chutou a bola”, em que cada número à direita da derivação se refere a uma regra de (1): (2) Sentença SN + SV Art + N + SV Art + N + Verbo + SN o + N + Verbo + SN o + homem + Verbo + SN o + homem + chutou + SN o + homem + chutou + Art + N o + homem + chutou + a + N o + homem + chutou + a + bola r. (i) r. (ii) r. (iii) r. (iv) r. (v) r. (vi) r. (ii) r. (iv) r. (v) Mais à frente, Chomsky (2015a, p. 44) observa que a descrição da estrutura fonêmica dos morfemas de uma língua também é apresentada por meio de um conjunto de regras da forma “reescreva X como Y” e exemplifica: (3) (i) walk → / wɔk/ (ii) take + passado → /tuk/ (iii) hit + passado → /hit/ (...). Considerando-se esses exemplos, não surpreende que, referindose à fonologia desenvolvida por Morris Halle nos anos 1950, que foi apoiada por Chomsky em seu ataque à fonologia estruturalista de Leonard Bloomfield, Randy Allen Harris tenha afirmado que tanto Chomsky quanto Halle insistiam que essa nova fonologia “era parte de um pacote” e que, “se você gostou da sintaxe (...), você teria de levar a fonologia” (HARRIS, 1993, p. 60). Sinal do poder dessa nova metodologia descritiva, esse “pacote” permaneceria praticamente intacto no contexto da chamada teoria padrão, que foi sintetizada por Chomsky nos Aspects of the theory of syntax (Aspectos da teoria da sintaxe), de 1965. Na realidade, Chomsky não só continuaria a empregar nos Aspectos o mesmo mecanismo de regras de reescrita para descrever tanto as regras sintáticas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 103 quanto as regras fonológicas como explicitaria semelhanças entre os dois componentes gramaticais na subseção “Algumas analogias formais entre a sintaxe e a fonologia”. Nessa subseção, Chomsky inicialmente observa que regras de reescrita da forma A→Z/X – Y são o “mecanismo natural” para gerar os indicadores sintagmáticos representados nas árvores gerativistas (p. 150), como exemplificado em (1) e (2). Adiante, Chomsky afirma que a mesma regra de reescrita é “a forma típica de uma regra fonológica” (1975a, p. 167). Para ilustrar essa regra, Chomsky (1975a) apresenta o seguinte exemplo: (4) [+ contínuo] → [+ sonoro] / – [+ sonoro] Conforme Chomsky, a regra converterá, por exemplo, [sm] em [zm], [fd] em [vd], etc., sem afetar casos como [st] e [pd]. Com base nesse tipo de mecanismo de aplicação de regras fonológicas em classes de segmentos especificadas por traços como [± contínuo], [± sonoro], [± nasal], etc., Chomsky (1975a, p. 168) proporia adaptá-lo à representação das categorias lexicais e dos seus membros, o que para ele não só constituiria “uma solução muito natural para o problema da classificação cruzada”, mas também contribuiria “para a unidade geral da teoria gramatical” (grifo nosso). Assim, se o segmento fonético [s], por exemplo, é especificado nesse modelo com os traços [+ consoante, - vocálico, - soante, - nasal, + contínuo, - sonoro, + anterior, + coronal], um “formativo lexical” (CHOMSKY, 1975a, p. 168) como boy teria os traços sintáticos [+ comum, + numerável, + humano, etc.). Além disso, os símbolos das categorias gramaticais, como N (noun, ou substantivo), V (verbo), etc., seriam analisados em símbolos complexos, sendo cada um desses símbolos um conjunto de traços sintáticos, assim como um segmento fonológico é um conjunto de traços fonológicos. Veja-se a exemplificação de Chomsky (1975a, p. 168) com a categoria gramatical N: (5) (i) N → [+ N, ± comum] (ii) [+ comum] → [± numerável] (iii) [+ numerável] → [± animado] (iv) [- comum] → [± animado] (v) [+ animado] → [± humano] (vi) [- numerável] → [± abstrato] 104 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Chomsky e Halle, por sua vez, em The sound pattern of English, de 1968, não somente retomariam essa proposta como a aperfeiçoariam, aproximando-se ainda mais de uma “unidade geral da teoria gramatical”. O “formativo” boy, por exemplo, de acordo com os autores (1968, p. 7), fonologicamente pertenceria à categoria de elementos com inicial oclusiva sonora; sintaticamente pertenceria à categoria “substantivo”; semanticamente, pertenceria à categoria “animado”, à categoria “masculino”, etc. – isto é, o formativo boy seria dotado desses traços, e toda essa informação estaria presente no léxico, tomado como parte do componente sintático da gramática. Olhando retrospectivamente, pode-se afirmar que este foi o momento de maior aproximação entre os componentes sintático e fonológico na obra de Chomsky. Mais: pode-se afirmar que este foi o momento culminante do programa de pesquisas para a gramática gerativa que o próprio Chomsky havia estabelecido em 1962 no artigo “The logical basis of linguistic theory”, no qual incluiu tanto a sintaxe quanto a fonologia. Isso porque, como ponderam Frederick J. Newmeyer, Stephen R. Anderson, Sandra Chung e James McCloskey no ensaio “Chomsky’s 1962 Programme for Linguistics”, de 1996, o programa sintático estabelecido por Chomsky naquele artigo permaneceu essencialmente o mesmo ao longo das décadas seguintes, mas não o programa fonológico. Na opinião desses autores isso se deu “como consequência do fato de que o próprio Chomsky não prestou muita atenção às questões fonológicas desde a publicação de The sound pattern of English” (1996, p. 74). Essa, porém, é uma avaliação que simplifica excessivamente a questão toda, assim como a análise de Harris (1993, p. 79) de que Chomsky se viu forçado a abandonar seu trabalho em fonologia por conta de suas atividades políticas, que passaram a demandar muito de seu tempo. Para ir além dessas duas interpretações, é preciso destacar primeiramente que, na teoria padrão e na teoria padrão estendida,4 Chomsky (1975a, p. 97; 1966, p. 16-17; 1977, p. 166; CHOMSKY; HALLE, 1968, p. 6-7) afirmava que uma gramática consiste em três componentes: o sintático, o semântico e o fonológico. Fato pouco conhecido atualmente, ainda no contexto da teoria padrão Chomsky chegou a dividir a “gramática 4 Para uma discussão retrospectiva desses dois modelos, ver Chomsky (1981, 1994). Para uma exposição pormenorizada de todos os modelos chomskianos, ver, por exemplo, Guimarães (2017), Ouhalla (1999) e Radford (1997). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 105 universal” (GU) – entendida como “uma caracterização [dos] princípios inatos e biologicamente determinados que constituem (...) a faculdade da linguagem” (CHOMSKY, 1994, p. 43-44) – em fonética universal, semântica universal e sintaxe universal (CHOMSKY, 1967, p. 402-408). Anos mais tarde, já no âmbito do modelo de princípios e parâmetros (CHOMSKY, 1981), Chomsky faria um balanço do empreendimento gerativista no livro Knowledge of language: its nature, origin and use (O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso), de 1986. Nessa obra, Chomsky integra a fonologia à chamada língua interna, ou língua-I (CHOMSKY, 1994, p. 58-60), definida como “um elemento que existe na mente da pessoa que conhece a língua, adquirido por quem aprende e usado pelo falante-ouvinte” (CHOMSKY, 1994, p. 41); “um sistema de regras de um certo tipo, uma realização específica das opções permitidas pela GU, fixada pela experiência” (CHOMSKY, 1994, p. 62). No entanto, Chomsky depois excluiria a fonologia dos aspectos centrais do sistema da linguagem em seu Programa Minimalista, como visto acima. A razão dessa mudança parece ter sido seu intuito de manter a qualquer custo a hipótese de que a linguagem é perfeita em algum sentido – ou seja, sua “tese minimalista forte”. A fim de compreender melhor a tese minimalista forte, é necessário retomar a coletânea The Minimalist Program (O Programa Minimalista), de 1995, na qual Chomsky já levanta a hipótese de a linguagem ser um “sistema perfeito” (1999, p. 39). Na introdução da obra, Chomsky afirma que a faculdade da linguagem tem ao menos dois componentes: “um sistema cognitivo que guarda informação” e “sistemas de performance que têm acesso a essa informação e a usam de várias maneiras” (p. 40). Em se tratando do primeiro, Chomsky (1999, p. 40) pressupõe que ele interage apenas com dois sistemas “externos”: o sistema articulatórioperceptual (A-P) e o sistema conceitual-intencional (C-I) – isto é, haveria somente dois níveis de interface: a Forma Fonética na interface A-P e a Forma Lógica na interface C-I. Com base nessas noções, Chomsky (1999, p. 247) afirma que uma “arquitetura minimalista” é “uma teoria da linguagem que considera que uma expressão linguística não é mais do que um objeto formal que satisfaz as condições de interface da melhor maneira”. Em outros termos, numa arquitetura minimalista, “cada expressão linguística é uma realização ótima das condições de interface expressas em termos elementares (elo de cadeia, relações 106 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 X-barra-teoréticas locais),5 ou seja, um par (π, λ) satisfazendo estas condições e gerado da maneira mais econômica” (CHOMSKY, 1999, p. 265), sendo π interpretado na interface A-P e λ na interface C-I. A ideia de que a linguagem é um sistema ótimo, perfeito, como explicitado na introdução deste artigo, remonta aos primórdios da gramática gerativa, quando, segundo Chomsky, já estaria claro para alguns gerativistas que existiriam três fatores determinantes ao design da linguagem: 1) dotação genética; 2) experiência (ou exposição aos dados externos); 3) princípios não específicos à faculdade da linguagem. Em entrevista ao filósofo James McGilvray, Chomsky deixa mais clara a sua posição quanto ao papel do terceiro fator no design da linguagem: Eles [os biólogos] descobriram no tipo de coisa que estudavam, como as bactérias, que o caminho tomado pelo desenvolvimento evolucionário parece ser surpreendentemente uniforme, fixado por lei física. Se algo disso se aplica à linguagem, você espera que o sistema interno, inconsciente, que provavelmente está mapeando expressões linguísticas em sistemas de pensamento em uma interface, esteja próximo da perfeição (CHOMSKY, 2014, p. 99; grifo nosso). Assim, para Chomsky (2014, p. 146), “não é impossível – e pode-se mostrar que isso é verdade – que o formato para a gramática na verdade envolva, em grande medida, princípios de eficiência computacional etc. – que podem não ser apenas extralinguísticos, mas extraorgânicos”. Essa ideia de que o formato de sistemas orgânicos talvez tenha sido determinado, ao menos em parte, por princípios extraorgânicos fundamentou a busca por uma explicação de como se desenvolvem os padrões de um organismo vivo feita pelo biólogo e matemático D’arcy Thompson (1994) e pelo lógico e matemático Alan Turing (1952). “Eles apontaram para um papel significativo da explicação físico-química ao tratar da estrutura e da modificação e enfatizaram que funções formais poderiam explicar a forma e suas variações permissíveis no modo que coloca em questão o valor das explicações adaptacionistas e seletivas”, observa Chomsky (2014, p. 285-286). Influenciado pelo trabalho de Thompson e de Turing, Chomsky pretendia ainda na década de 1950 estender essa pesquisa à linguagem. Isso, porém, não foi possível naquele 5 Para uma discussão desses termos e de seus correlatos, ver Chomsky (1981, 1994, 1999). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 107 momento, já que, conforme relata (2014, p. 248), o objetivo mais imediato no início do programa gerativista era convencer a comunidade científica da existência do primeiro fator – isto é, a existência de um componente genético, inato, responsável pela linguagem. “Então, não havia muita discussão sobre o terceiro fator – ele até era mencionado, mas não se fazia nada com ele”, recorda Chomsky (2014, p. 248). Mais tarde, com os avanços obtidos no gerativismo, passou-se a aceitar a existência do primeiro e do segundo fator. “Então, chega-se a um ponto em que se admite que existe um componente genético, existe experiência – que é o resultado da maneira como nosso componente genético lida com os dados –, e existe esse terceiro fator lá”, reforça Chomsky (2014, p. 249). Ainda de acordo com Chomsky (2014, p. 249), o terceiro fator esteve metodologicamente implícito por muito tempo na gramática gerativa, como um nível de “melhor explicação”, em que se tenta elaborar um sistema de regras que não tenha redundâncias, por exemplo. Quanto a esse ponto, Chomsky esclarece: (...) estamos sugerindo que existe uma propriedade do mundo – não a linguagem, talvez nem mesmo os organismos – que diz que a computação eficiente funciona de uma determinada maneira, seja a linguagem ou a organização de distribuição dos neurônios (...), ou estratégias de forrageamento, ou o que seja; existem certas leis da natureza que estão sendo postas em prática, e elas se aplicam de tal maneira que impõem a seguinte estrutura em sistemas que atendem a certos critérios: ser acessível ao sistema sensório-motor, por exemplo (CHOMSKY, 2014, p. 249; grifo nosso). Pouco adiante, Chomsky arremata: Pode-se ver se é assim que o mundo realmente funciona: vou olhar para alguma outra coisa, a distribuição das artérias e veias no corpo, e verificar se isso atende a condições semelhantes. E também podemos ter a esperança de encontrar uma teoria mais fundamental da eficiência que forneça alguma substância matemática aos princípios que você detecta empiricamente em muitas partes do mundo. Se você consegue chegar tão longe, pode provar que isso realmente se aplica, por exemplo, à eliminação das regras de redundância na linguagem. O.k., aí temos uma explicação profunda e, agora, em termos de terceiro fator. Isso tem sido difícil de fazer (CHOMSKY, 2014, p. 249-250). 108 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Além de difícil, a busca por uma “explicação profunda” sobre o design da linguagem em termos de terceiro fator acabou por levar Chomsky a assumir no Programa Minimalista posições empiricamente frágeis, como a de que a fonologia tem apenas uma relevância limitada para o estudo das propriedades computacionais da linguagem por não ser parte da faculdade da linguagem em sentido estrito (HAUSER et al., 2002). Em todo caso, de acordo com Chomsky (2014, p. 110), o terceiro fator sempre esteve por trás da discussão sobre o desenvolvimento (ou aquisição) da linguagem nos indivíduos, mas estava fora do alcance dessa mesma discussão porque, “à medida que o conceito de gramática universal (GU), ou de teoria linguística, é entendido como um formato e um procedimento de avaliação para gramáticas, então você é quase compelido a presumir que ela é altamente específica à linguagem e altamente articulada e restrita, ou, do contrário, você não consegue lidar com o problema da aquisição” (CHOMSKY, 2014, p. 110). Em outras palavras, como havia afirmado o próprio Chomsky (1994, p. 24ss), a aquisição de uma língua pelos seres humanos não se dá pela aplicação de mecanismos generalizados de aprendizagem, mas sim por meio de um módulo específico presente na mente/cérebro dos seres humanos, a faculdade da linguagem, que tem propriedades e estrutura específicas, diferentes dos outros módulos cognitivos, como o da visão. Assim, de um lado o primeiro fator compreende esse módulo específico que é a faculdade da linguagem; de outro, o terceiro fator refere-se às leis gerais da natureza. Como pondera Chomsky, isso torna quase impossível compreender como a GU poderia seguir quaisquer princípios gerais não específicos à linguagem. Não é uma contradição lógica, mas os dois esforços tendem a levar a direções opostas. Se você está tentando fazer que a GU seja articulada e restrita o suficiente para que o procedimento de avaliação precise verificar apenas alguns poucos exemplos nos dados fornecidos pela experiência, porque isso é tudo o que é permitido, então a GU será muito específica à linguagem, e não haverá princípios gerais em operação (CHOMSKY, 2014, p. 110-111). Conforme Chomsky, só depois da elaboração do modelo de princípios e parâmetros6 é que se tornou possível resolver esse problema: 6 Para uma exposição desse modelo, ver Chomsky (1981 e 1994). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 109 Se há qualquer coisa de verdade quanto à abordagem de princípios e parâmetros, a questão acerca do formato para as gramáticas é completamente divorciada da questão de como se dá a aquisição; a aquisição será simplesmente uma questão de marcação paramétrica. Isso deixa várias questões abertas sobre o que são os parâmetros; mas significa que as propriedades da linguagem são seja lá o que for que sobra, isto é, que não é coberto pelos parâmetros. Não há mais razão conceitual pela qual as gramáticas devam ser altamente articuladas e muito específicas e limitadas. Foi removida uma barreira conceitual para a tentativa de verificar se o terceiro fator realmente tem algum papel na explicação das propriedades da linguagem. Foi preciso um longo período de investigação antes que se estivesse em condições de chegar a algum lugar com esse tipo de questão (CHOMSKY, 2014, p. 111). Mais adiante, Chomsky completa: A língua simplesmente tem um formato altamente específico, altamente articulado, e esse é o único jeito de dar conta da aquisição da linguagem. Isso me parecia, e parecia a todos [nos anos 1960 e 1970], um argumento convincente. Bem, quando surgiu o modelo de princípios e parâmetros, esse argumento foi minado. O modelo não respondia às perguntas, mas minava o argumento porque olhava tudo com um jeito diferente. A aquisição estava desassociada do formato da gramática. A aquisição consiste em fixar parâmetros, e a gramática é o que quer que seja. Não era mais parte do processo de aquisição; por isso, é ao menos concebível que essa abordagem seja a melhor solução possível para outras condições. Aí podemos começar a nos preocupar com o terceiro fator (CHOMSKY, 2014, p. 251; grifo nosso). Mas de fato já poderíamos começar a nos preocupar com o terceiro fator nas pesquisas linguísticas após o surgimento do modelo de princípios e parâmetros? Já se chegou a algum lugar com o tipo de questão a respeito de o terceiro fator ter ou não algum papel na explicação das propriedades da linguagem? Chegou-se no minimalismo chomskiano a alguma explicação profunda sobre o design da linguagem em termos de terceiro fator? A única resposta possível a essas três perguntas parece ser um sonoro não. Isso porque ainda se sabe muito pouco sobre a faculdade da linguagem em si – ou seja, o primeiro fator – para passar-se à investigação referente ao papel do terceiro fator no design da linguagem. 110 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 “Uma das poucas coisas que posso dizer com alguma segurança sobre este tópico [cérebro e linguagem] é que estou longe de saber o suficiente para abordá-lo da maneira correta”, admite Chomsky (2006, p. 73). Realmente, “nós não temos a menor ideia de como mesmo as unidades linguísticas mais elementares, como os sons da fala, podem estar implementados neurologicamente: como os sons da fala são armazenados e como eles são processados” (JACKENDOFF, 2007, p. 13-14). Não obstante esse fato, Chomsky não se intimidou a estender suas reflexões ao terceiro fator, sobre o qual declarou: Quanto mais você pode atribuir ao terceiro fator, melhor. Esse é o caminho que a ciência deveria tomar; o objetivo de qualquer cientista sério interessado nesse tipo de questão é ver quanto da complexidade de um organismo pode ser explicado em termos de propriedades gerais do mundo. Essa é quase a natureza da ciência (CHOMSKY, 2014, p. 223; grifo nosso). Sem dúvidas, entender quanto da complexidade de um organismo pode ser explicado em termos do terceiro fator é uma meta científica de primeira importância. Antes de estabelecê-la, porém, é evidentemente necessário ter um entendimento aprofundado do próprio organismo em questão. Neste ponto, Chomsky encontra-se ainda muito distante de seus precursores Thompson e Turing. O primeiro, tentando compreender “como (...) as formas de coisas vivas, e as partes de coisas vivas, podem ser explicadas por considerações físicas, e perceber que em geral nenhuma forma orgânica existe senão as que estão em conformidade com leis físicas e matemáticas” (THOMPSON, 1994, p. 10), analisou, por exemplo, detalhes da anatomia humana; aspectos do “crescimento e forma” de células, moléculas e tecidos de um sem-número de seres vivos; o formato de chifres, dentes e presas de animais diversos, etc., etc. Já Turing, ao dar continuidade às pesquisas de Thompson nos anos 1950, também investigou células e tecidos, bem como o crescimento de um embrião, os tentáculos da Hydra e as espirais das folhas de determinadas plantas, como a aspérula (Asperula odorata). Em comum aos trabalhos dos dois, está o fato de ambos terem se restringido a “coisas vivas” e “partes de coisas vivas” das quais já se tinha um profundo conhecimento – ao menos de seus respectivos “crescimento e forma”. Chomsky, por sua vez, elegeu em suas pesquisas um sistema orgânico – isto é, a linguagem – infinitamente mais complexo do que chifres, dentes e folhas, e do qual Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 111 ainda se sabe muito pouco. De fato, apesar dos grandes avanços das últimas décadas, continua válida a afirmação feita em 1967 pelo linguista e neurocientista Eric H. Lenneberg no livro Biological foundations of language, um dos grandes marcos da fase inicial da biolinguística, de que os fundamentos biológicos exatos da linguagem ainda são desconhecidos (p. viii). Por conta disso, não parece fazer sentido já iniciar discussões sobre os fundamentos extraorgânicos da linguagem, sendo portanto prematuro da parte de Chomsky (re)colocar neste início de século 21 a pergunta sobre o papel do terceiro fator no design da linguagem. Igualmente prematuro da parte de Chomsky é sustentar a tese minimalista forte de que a linguagem é uma solução perfeita para as condições de interface não apenas porque o que se sabe sobre a linguagem é ainda muito pouco, mas também porque não se tem um conhecimento aprofundado dos níveis de interface: “(...) não sabemos o suficiente sobre os sistemas ‘externos’ na interface para chegar a conclusões firmes sobre as condições que impõem”, reconhece Chomsky (1999, p. 311). Assim, por exemplo, “(...) a ideia de que a articulação e a percepção envolvem a mesma representação na interface (A-P) é controversa e talvez mesmo fundamentalmente incorreta” (CHOMSKY, 1999, p. 41). Para complicar, “os problemas que se relacionam com a interface C-I são ainda mais obscuros e mal compreendidos” (CHOMSKY, 1999, p. 41). Dessa forma, o “trabalho comparativo com a segunda interface, sistemas de pensamento, é obviamente muito mais difícil” (CHOMSKY, 2010, p. 60) do que o trabalho comparativo com a primeira interface, sistemas de externalização, que já resultou em sérios problemas, alguns dos quais serão discutidos adiante. No entanto, apesar do pouco conhecimento que se tem sobre a linguagem e sobre os níveis de interface, Chomsky (2010, p. 62) confiantemente reitera que a linguagem é uma solução perfeita para as condições de interface: Se se pudesse dar explicações de princípios a todas as propriedades da linguagem, então nós concluiríamos que a linguagem é perfeitamente projetada para satisfazer condições semânticas, e que o mapeamento à interface sensório-motora – fonologia e morfologia e provavelmente mais – é um meio maximamente eficiente de converter expressões geradas sintaticamente em uma forma acessível à interface (CHOMSKY, 2010, p. 62). 112 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Atento, porém, a toda a dificuldade que implica assumir essa posição baseando-se na “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’” e “simples” ao investigar o “órgão mental” da linguagem – isto é, atento às diferenças epistemológicas entre a física e a biologia e ciente de toda a dificuldade que implica adotar a hipótese de a faculdade da linguagem ser perfeita e simples, mesmo presumindo que ela “esteja mais ou menos pareada com sistemas de visão mamífera, navegação de insetos e outros” (CHOMSKY, 2005b, p. 2) –, Chomsky afirma logo no primeiro capítulo do Programa Minimalista: Uma boa parte da investigação mais reveladora sobre a gramática gerativa nos últimos anos tem seguido a hipótese de trabalho de que a GU é uma teoria simples e elegante, com princípios fundamentais que têm uma natureza intuitiva e uma ampla generalidade. (...) Um pressuposto relacionado é que a GU é não redundante, no sentido de os fenômenos serem explicados por uma interação particular de princípios. (...) As ideias-guia parecem-se com as ideias várias vezes adotadas no estudo dos fenômenos inorgânicos, uma área com um sucesso frequentemente espetacular desde o século 17. Mas a linguagem é um sistema biológico, e os sistemas biológicos são tipicamente confusos, complicados, são o resultado de acidentes da evolução, e são moldados por circunstâncias acidentais e por condições físicas que se aplicam sobre sistemas complexos com funções e elementos variados (CHOMSKY, 2005b, p. 68-69). Em vista desses fatos, Chomsky reconhece: A redundância é não só uma característica típica desses sistemas, mas uma característica esperada, porque ajuda a compensar feridas e defeitos, e permite uma acomodação à diversidade de finalidades e funções. O uso da linguagem parece ter as propriedades esperadas: (...) é sabido que partes consideráveis da linguagem são não usáveis, e que as partes usáveis parecem formar um segmento caótico e sem coerência da totalidade da linguagem (CHOMSKY, 2005b, p. 69). Indo ao encontro dessas observações de Chomsky sobre os sistemas biológicos, o biólogo evolucionista e cientista cognitivo W. Tecumseh Fitch lembra que “neurônios individuais são lentos e desajustados, e algumas vezes morrem, e esses fatos básicos frequentemente resultaram Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 113 na evolução de circuitos paralelos redundantes, em vez de circuitos que parecem ótimos para engenheiros elétricos, que têm disponíveis elementos computacionais rápidos, precisos e confiáveis” (2009, p. 298). Além disso, Fitch (2009, p. 298) afirma que, “à medida que a visão é mais bem conceitualizada como um ‘saco de truques’, em que cada aspecto da visão (cor, movimento, percepção de profundidade, etc.) tem suas próprias soluções únicas, talvez não haja conclusões disponíveis sobre computações subjacentes à ‘visão’ em geral” e que “o mesmo pode ser verdade sobre a ‘linguagem’” (FITCH, 2009, p. 298). Mas, sem se deter pelo fato de os sistemas biológicos serem confusos e complicados – e, portanto, ser dedutível que o sistema biológico da linguagem não é simples e elegante, mas um “saco de truques” redundante e imperfeito –, Chomsky lança o minimalismo com o objetivo de investigar “quão próxima a linguagem poderia chegar daquilo que alguns superengenheiros construiriam, dadas as condições que a faculdade da linguagem precisa satisfazer” (CHOMSKY, 2005a, p. 38). Convencido de que essa proximidade é muito grande, Chomsky imediatamente pondera no Programa Minimalista logo após reconhecer que partes consideráveis da linguagem são não usáveis e que as partes usáveis parecem formar um segmento caótico e sem coerência da totalidade da linguagem: “Contudo, a hipótese de que a faculdade da linguagem, na sua estrutura básica, tem propriedades de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos complexos tem sido frutífera; do mesmo modo, a sua natureza digital infinita parece ser única do ponto de vista biológico” (p. 69). No quarto e último capítulo da coletânea, Chomsky insiste: “A faculdade da linguagem pode ser única entre os sistemas cognitivos, ou mesmo única no mundo orgânico, precisamente por satisfazer pressupostos minimalistas” (CHOMSKY, 1999, p. 309). E conclui: “(...) talvez o sistema computacional CHL [Computation Human Language] seja um caso biológico isolado” (CHOMSKY, 1999, p. 309).7 Em palestra realizada na cidade indiana de Délhi, em 1996, Chomsky reiteraria a hipótese basilar do Programa Minimalista de que a faculdade da linguagem, na sua estrutura básica, tem propriedades de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos complexos. Na ocasião, mesmo admitindo que “os sistemas biológicos normalmente são soluções ruins para certos problemas de configuração 7 Para uma extensa defesa dessa posição, ver Chomsky (2006, cap. 4). 114 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 colocados pela natureza” (CHOMSKY, 2008, p. 35) e que “não há nada na biologia que sugira a possibilidade de haver qualquer coisa parecida com configuração perfeita (no sentido minimalista)” (CHOMSKY, 2008, p. 38), Chomsky não se furtou a conjecturar: Se alguma versão desse programa [minimalista] der certo, teremos uma imagem da linguagem que é surpreendente para um sistema biológico. Em alguns aspectos, essa imagem é mais semelhante àquelas encontradas no estudo do mundo inorgânico, no qual, por razões obscuras, as tentativas de demonstrar que as coisas são configuradas perfeitamente parecem dar certo na maioria das vezes. (...) Se algo parecido com isso se mostrar válido para a linguagem, será extremamente surpreendente e muito interessante (CHOMSKY, 2008, p. 52-53). Primeiramente, deve-se observar que, por motivos que serão detalhados na quinta seção deste artigo, é um tanto enganadora a percepção de Chomsky de que as tentativas de demonstrar, no estudo do mundo inorgânico, que as coisas são configuradas perfeitamente parecem dar certo na maioria das vezes. De qualquer maneira, exatamente com o objetivo de manter “a intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’” ao investigar o “órgão mental” da linguagem no quadro minimalista é que Chomsky aposta todas as suas fichas na hipótese altamente improvável de que, diferentemente de todos os outros sistemas orgânicos complexos, a faculdade da linguagem é simples e elegante – e portanto única do ponto de vista biológico. Mais: justamente com o intuito de sustentar essa hipótese é que Chomsky relega a fonologia à periferia da linguagem, sugerindo com Berwick que esse componente pode ser deixado de lado pelos linguistas em favor da investigação sintática. Além disso, a fim de manter essa hipótese, Chomsky cogita a possibilidade, duramente criticada por inúmeros pesquisadores (e.g. BEHME, 2014; BOTHA, 1999; PINKER; JACKENDOFF, 2005; TOMASELLO, 1999, p. 94), de que a linguagem tenha surgido abruptamente, em vez de ter sido o resultado de um longo processo evolutivo. 3. uma ideia nem tão brilhante assim Segundo Berwick e Chomsky (2017, p. 107), o problema relativo à evolução da linguagem foi colocado logo nos primeiros esforços dos gerativistas para tratar a linguagem como um objeto biológico, em meados Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 115 do século passado. Nas últimas décadas, porém, esse velho problema, que remonta ao século 19, ganhou novos contornos e novas dificuldades no âmbito gerativista devido ao pressuposto adotado por Chomsky em seu minimalismo de que a faculdade da linguagem é simples, elegante e perfeita. Mais uma vez sem se esquivar das complicações empíricas que surgem com a admissão desse pressuposto, Chomsky argumenta: A intuição dos biólogos é (…) de que a simplicidade é a última coisa que você procuraria em um organismo biológico, o que faz algum sentido se você tem uma longa história evolucionária com vários acidentes e em que isso e aquilo acontecem. Nesse caso, você vai encontrar muito de adaptação, isto é, de aproveitamento de velhas estruturas para solucionar novos problemas; e parece, ao menos superficialmente, que, quando você olha para um animal, ele é sempre adaptado. Portanto, trata-se de improvisação (...). Isso talvez seja verdade, talvez não seja – talvez pareça verdade porque você não compreende o suficiente. Quando você não entende nada, tem a impressão de que está diante de um monte de engrenagens, alavancas, e coisas desse tipo. Talvez, se você compreendesse o suficiente, descobriria que há mais nisso. Mas ao menos a lógica faz sentido. Por outro lado, essa lógica não se aplica se a linguagem é um caso em que a faculdade emerge subitamente. E é isso o que a evidência arqueológica parece sugerir. Você tem uma extensão de tempo que é muito pequena (CHOMSKY, 2014, p. 112). Para entender a perspectiva de Chomsky, é preciso levar em consideração que, para ele, a linguagem surgiu de modo abrupto há cerca de 60 mil ou 70 mil anos, naquilo que ele chama, seguindo o biólogo Jared Diamond (2010), de “grande salto para a frente” (great leap forward) (CHOMSKY, 2014, p. 29-30). Trata-se de alguma pequena modificação genética que teria reconfigurado ligeiramente o cérebro humano, tornando possível a capacidade linguística. Para Chomsky (2014, p. 138), “a suposição mais simples” é que com essa mutação genética desenvolveu-se no cérebro humano a “capacidade para enumeração recursiva” (CHOMSKY, 2014, p. 95). Mais precisamente, de acordo com Chomsky, essa mutação genética teria ocorrido a um indivíduo da espécie Homo sapiens, que teria transmitido essa nova capacidade à sua prole (CHOMSKY, 2014, p. 30; CHOMSKY, 2007a, p. 14). Segundo a hipótese de Chomsky, o que teria acontecido é que como resultado desse “grande 116 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 salto para a frente” o ser humano passou a ter Merge,8 entendido como “uma operação que nos permite tomar objetos mentais, já construídos, e fazer objetos mentais maiores a partir deles” (CHOMSKY, 2014, p. 30). A estrutura unida por Merge – que “no melhor dos casos” seria a “única operação para construir a estrutura hierárquica necessária para a sintaxe da linguagem humana” (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 19) – consiste de dois objetos sintáticos mais um rótulo (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 157). Assim, dado um objeto sintático X – que pode ser um “átomo sintático” como uma palavra ou algo maior que já seja um produto de Merge (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 19) – e outro objeto sintático Y, forma-se por Merge o conjunto {X,Y} (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 19). A partir dos objetos sintáticos ler e livros, por exemplo, forma-se o conjunto {ler, livros}, que recebe o rótulo dos traços do “núcleo” da combinação: ler (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20, p. 131, p. 157). De acordo com Chomsky (2014, p. 31), “uma vez que você adquiriu essa técnica de construção e uma infinita variedade de expressões estruturadas hierarquicamente para fazer uso dos sistemas de pensamento disponíveis, você pôde subitamente pensar, planejar, interpretar, de uma maneira que ninguém podia até então”. Além disso, prossegue Chomsky (2014, p. 31), quando Merge surgiu no cérebro humano, já havia nele sistemas sensório-motores, que até então eram empregados apenas marginalmente. “Com efeito, a ideia de utilizá-los para fins de externalização do pensamento pode muito bem ter vindo mais tarde”, especula Chomsky (2014, p. 31). Dessa forma, para Chomsky (2007a, p. 14), em vez de serem o resultado de um processo evolutivo ou de uma mutação genética, modos de externalização foram na verdade elaborados por humanos. Dito de outra maneira, para Chomsky (2015b, p. 101), a “externalização (e consequemente a comunicação a fortiori) é um aspecto auxiliar da linguagem, periférico a sua natureza essencial”, e “o sistema sensório-motor não tem relação com o design da linguagem essencial, mesmo em suas origens evolutivas” (CHOMSKY, 2015b, p. 101). Por conta disso, arremata Chomsky (2015b, p. 101), “a maior parte da complexidade aparente da linguagem está na externalização”, não nos aspectos linguísticos centrais, especificamente humanos. No Programa Minimalista, Chomsky já havia explicitado a ideia de 8 Para uma apresentação detalhada do conceito de Merge, ver, por exemplo, Chomsky (1999, cap. 4, 2009a e 2013) e Berwick e Chomsky (2017). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 117 que a fonologia tem apenas uma relevância limitada para o estudo das propriedades computacionais da linguagem, observando que “as propriedades especiais da componente fonológica têm a ver com a necessidade de produzir instruções para os sistemas sensório-motores, para a produção e a percepção” (p. 319), e que “esta necessidade pode ser a fonte de outras imperfeições de CHL [Computation Human Language], sendo nesse sentido ‘alheia’ à linguagem” (CHOMSKY, 1999, p. 319). Levando a termo sua posição, Chomsky chega a declarar: “Se os seres humanos pudessem comunicar entre si por telepatia, não haveria necessidade de uma componente fonológica, pelo menos para os propósitos da comunicação; e o mesmo se pode dizer relativamente ao uso da linguagem em geral” (CHOMSKY, 1999, p. 310). “Em outras palavras”, rebate Jackendoff (1997, p. 19), “a linguagem poderia ser perfeita se não tivéssemos de falar. Eu pessoalmente acho essa passagem intrigante. Minha própria inclinação seria dizer que, se pudéssemos nos comunicar por telepatia, nós não precisaríamos da linguagem.” A fim de compreender essa discordância fundamental entre Chomsky e Jackendoff, é preciso ter em conta que, para este, a função da linguagem é a expressão e a comunicação de pensamentos (e.g. JACKENDOFF, 2003, p. 123; PINKER; JACKENDOFF, 2005, p. 223225), enquanto para aquele a linguagem é um mecanismo de pensamento e não de comunicação (e.g. CHOMSKY, 1977, p. 88; 2005b, p. 3-4; 2007b, p. 17). Certo de que a linguagem é um mecanismo de pensamento e que o componente fonológico é, “em certo sentido, ‘extrínseco’ à linguagem” e “o local onde se situa boa parte de sua imperfeição” (CHOMSKY, 1998, p. 60), Chomsky não apenas mantém sua hipótese sobre a natureza e a evolução da linguagem em sua entrevista a McGilvray, como cogita a possibilidade de que a exteriorização do pensamento tenha sido inventada por alguém: (...) seja qual for essa primeira pessoa que sofreu a mutação, talvez isso apenas tenha lhe dado Merge. Essa é a hipótese mais simples. Se isso aconteceu, aquela pessoa não estaria consciente de estar pensando; ela estaria simplesmente pensando. Seria capaz de tomar decisões com base em planejamento interno, observações e expectativas, e coisas desse tipo. Agora, se um número suficiente de pessoas na comunidade passou a dispor da mesma mutação, chegaria um ponto em que alguém teria a brilhante ideia de exteriorizar seu pensamento, de modo que ele pudesse entrar 118 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 em contato com outra pessoa. Isso pode não ter envolvido passo evolucionário algum. Pode ter < sido apenas uma questão de > usar outras faculdades cognitivas para resolver um problema difícil. Se você olha para a linguagem, uma das coisas que sabemos sobre ela é que a maior parte da complexidade está na externalização. Está na fonologia e morfologia, e esses componentes são uma bagunça. Eles não funcionam por meio de regras simples (CHOMSKY, 2014, p. 97; grifo nosso).9 Assim, conforme a hipótese de Chomsky, a exteriorização do pensamento pode não ter sido fruto de um processo evolutivo – e, portanto, algo natural –, mas sim o resultado de uma “brilhante ideia” de alguém – e, portanto, uma criação humana, aparentemente aos moldes da invenção da escrita. Exatamente por incluir a fonologia e a morfologia nesse mecanismo de exteriorização do pensamento desenvolvido por humanos (CHOMSKY, 2014, p. 96), Chomsky (2014, p. 96-97) pode admitir que esses componentes são “desorganizados”, “uma bagunça”, sem com isso ter de abandonar a hipótese minimalista de que a sintaxe é um sistema “perto de ser computacionalmente perfeito” (CHOMSKY, 2014, p. 96) ou a suposição de que a gramática universal “deve ser bastante simples em seu âmago” (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 111). O grande problema, porém, à hipótese de Chomsky de que a exteriorização do pensamento talvez tenha sido inventada por alguém e que esse aspecto da linguagem é externo, auxiliar à linguagem propriamente dita (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 20-23; CHOMSKY, 1999, p. 319; 2014, p. 76-77, p. 96 e p. 100), é explicar o fato, ressaltado pelo próprio Chomsky por exemplo em palestras realizadas na Nicarágua Dado o peso desta declaração, vale a pena citar o texto original: “(...) whatever this first person was who had the mutation, maybe the mutation just gave Merge. That´s the simplest assumption. If that happened, that person would not be conscious of thinking; he or she would just be doing it. He or she would be able to make decisions on the basis of internal planning, observations and expectations, and whatever. Now if enough people in the community had the same mutation, there would come a point where someone had the bright idea of externalizing it, so that they could contact somebody else. This may not have involved any evolutionary step at all. It may have [just been a matter of] using other cognitive faculties to figure out a hard problem. If you look at language – one of the things that we know about it is that most of the complexity is in the externalization. It is in phonology and morphology, and they´re a mess. They don’t work by simple rules” (CHOMSKY, 2012, p. 52). 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 119 nos anos 1980, de que o conhecimento da estrutura sonora de uma língua assemelha-se ao conhecimento de sua estrutura sintática – isto é, nos dois casos, trata-se de um conhecimento intuitivo, inconsciente e adquirido pelo falante-ouvinte sem instrução alguma. “A pessoa que adquiriu conhecimento de uma língua tem conhecimento bem específico sobre fatos que transcendem sua experiência, por exemplo, sobre quais formas não existentes são possíveis palavras e quais não são”, ponderou Chomsky (1988, p. 25), retomando argumentos apresentados em The sound pattern of English. Para ilustrar seu argumento, Chomsky (1988) destaca que falantes de inglês nunca escutaram as formas strid e bnid, por exemplo, mas sabem que a primeira é uma palavra possível em sua língua, diferentemente da segunda. Falantes de árabe, por sua vez, continuou Chomsky (1988, p. 25-26), sabem que bnid é uma palavra possível em sua língua e strid não. Já os falantes de espanhol sabem que nenhuma das duas opções é uma palavra em sua língua. Tendo em vista esses exemplos, afirmou Chomsky: A aquisição das regras da estrutura sonora (...) depende de princípios fixos que regem sistemas sonoros possíveis para línguas humanas, os elementos dos quais eles são constituídos, o modo de suas combinações e as modificações que eles podem sofrer em vários contextos. Tais princípios são comuns ao inglês, árabe, espanhol e todas as outras línguas humanas e são usados inconscientemente pela pessoa adquirindo qualquer dessas línguas (...) (CHOMSKY, 1988, p. 26). Ou seja, concluiu Chomsky (1988, p. 26), tais princípios “pertencem à faculdade da linguagem inata, um componente da mente/ cérebro”. Adiante, Chomsky (1988, p. 27) observa ainda que “a precisão de detalhe fonético vai muito além do que adultos podem perceber sem treinamento especial e, portanto, não podem ser o resultado de qualquer forma de treinamento”. Com isso, “a criança está evidentemente ouvindo – não conscientemente, é claro – detalhes de nuance fonética que serão incorporados como parte de seu conhecimento linguístico, mas que na vida adulta não poderá mais detectar”. Em se tratando do componente sintático, destacou Chomsky mais de uma vez naquelas palestras (1988, p. 12ss; p. 41ss; p. 68ss; etc.), aplicam-se os mesmos princípios válidos ao componente de externalização. Vejam-se os seguintes exemplos dados por Chomsky (1988, p. 41ss) para ilustrar seu argumento: 120 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 (6) (a) El hombre está en la casa. The man is in the house. (b) El hombre está contento. The man is happy. (7) (a) El hombre, que está contento, está en la casa. The man, who is happy, is in the house. Os falantes de espanhol e de inglês formam sentenças interrogativas movendo o verbo para a frente da sentença, pontua Chomsky: (8) (a) Está el hombre en la casa? Is the man in the house? (b) Está el hombre contento? Is the man happy? Até aqui sem dificuldade alguma. Mas como formar a interrogativa das sentenças “El hombre que está contento está en la casa” e “The man who is happy is in the house”? Agora, prossegue Chomsky, duas possíveis soluções apresentam-se aos falantes de espanhol e de inglês, respectivamente: (9) (a) Está el hombre, que contento, está en la casa? Is the man, who happy, is at home? (b) Está el hombre, que está contento, en la casa? Is the man, who is happy, in the house? Apesar de ambas as soluções serem logicamente possíveis, explica Chomsky (1988, p. 43), os falantes sempre optam pela segunda forma de interrogativa, na qual o verbo principal é movido para a frente da sentença, e não simplesmente o primeiro verbo que aparece. “As crianças nunca cometem erros sobre essas questões e não recebem correções ou instrução sobre elas”, destaca Chomsky (1988, p. 44). Dessa maneira, os princípios que levam a criança a mover o verbo principal para a frente da sentença ao formar uma interrogativa são conhecidos por ela “intuitivamente, inconscientemente e além da possibilidade de introspecção consciente” (1988, p. 46). O mesmo se dá com os princípios Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 121 que levam a criança falante de inglês a saber que strid é uma palavra possível em sua língua, mas não bnid; que levam a criança falante de árabe a saber que bnid é uma palavra possível em sua língua, mas não strid; e que levam a criança falante de espanhol a saber que nem strid, nem bnid são palavras possíveis em sua língua. Considerando esses exemplos sobre o conhecimento intuitivo, inconsciente e adquirido sem instrução alguma que os falantes têm sobre a estrutura sonora e a estrutura sintática de suas línguas – exemplos que, evidentemente, poderiam ser multiplicados às centenas, contemplando um sem-número de outras línguas –, é difícil admitir a hipótese defendida por Chomsky em seu minimalismo de que a morfologia e a fonologia são aspectos periféricos à “natureza essencial” da linguagem e que a exteriorização do pensamento pode não ter sido fruto de um processo evolutivo, e sim o resultado de uma “brilhante ideia” de alguém. Reforça essa avaliação o fato de que um recém-nascido seleciona de forma instantânea, a partir do ambiente, dados relacionados à linguagem – o que não é nenhuma tarefa trivial. Um macaco com aproximadamente o mesmo sistema auditivo ouve apenas barulho. O recém-nascido humano, entretanto, procede a um curso sistemático de aquisição que é exclusivo da espécie e que demonstravelmente vai além do que qualquer mecanismo de aprendizagem geral pode proporcionar, desde a aprendizagem das palavras à estrutura sintática e à interpretação semântica (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 116). Ou seja: Dada essa “prontidão para a linguagem”, para a aprendizagem vocal e para a produção, se o cérebro primata de fato está “sintonizado” para as propriedades fonéticas ou fonêmicas da linguagem, mas o ouvido símio não ouve nada além de barulho, enquanto as crianças extraem material linguisticamente relevante do barulho, temos evidência instantânea para algum tipo de processamento interno específico nos bebês humanos, ausente nos outros primatas (BERWICK; CHOMSKY, 2017, p. 166). À luz de tudo isso – e à luz da profunda similaridade entre as línguas faladas e as línguas de sinais (BAVELIER et al., 2003; JACKENDOFF, 1993, cap. 9-10), que é reconhecida pelo próprio Chomsky (e.g. 2007a, p. 13; 2007b, p. 17) –, é definitivamente mais 122 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 plausível a hipótese chomskiana, anterior ao Programa Minimalista, de que uma gramática é constituída pelos componentes sintático, semântico e fonológico. Pelos mesmos motivos, é difícil contestar a afirmação de Chomsky (1994, p. 31) de que “parece não haver grande esperança de dar conta do nosso conhecimento [linguístico] em termos de analogia, indução, associação, processos dignos de confiança, boas razões e justificação em qualquer sentido conveniente, ou em termos de ‘mecanismos de aprendizagem generalizada’ (se é que tal existe)”. Mecanismos que, aliás, seriam indispensáveis para a aprendizagem não intuitiva, consciente e mediante instrução de um sistema de externalização do pensamento (vocal ou manual) inventado por alguém. 4. Entre velhas e novas guerras linguísticas Como visto na segunda seção deste texto, Newmeyer, Anderson, Chung e McCloskey observam no ensaio “Chomsky’s 1962 programme for linguistics” que o programa sintático estabelecido por Chomsky no artigo “The logical basis of linguistic theory” permaneceu essencialmente o mesmo ao longo das décadas seguintes, mas não o seu programa fonológico. Para esses autores, como também visto, isso se deveu ao fato de Chomsky ter deixado de lado as questões fonológicas depois da publicação de The sound pattern of English. Contra essa avaliação simplista, e contra a análise de Harris de que Chomsky foi praticamente obrigado a abandonar seu trabalho em fonologia devido ao aumento de suas atividades políticas, argumentou-se que Chomsky alterou o programa fonológico da gramática gerativa até por fim excluir a fonologia do sistema da linguagem em seu Programa Minimalista visando a preservar de qualquer maneira a hipótese de que a linguagem é um sistema orgânico perfeito. Mas não é só. Ao que parece, à medida que se tornou cada vez mais difícil manter uma “unidade geral da teoria gramatical” porque o mecanismo metodológico que ele havia desenvolvido nos anos 1950 para elaborar uma gramática gerativa de uma língua não era apropriado para os componentes semântico e fonológico – isto é, à medida que se tornou cada vez mais claro que o uso de ferramentas técnicas da lógica matemática para descrever gramáticas de línguas naturais (CHOMSKY, 1975a, p. 88-89)10 não era apropriado para Para uma análise pormenorizada desse uso linguístico de ferramentas técnicas da lógica matemática por Chomsky, ver Tomalin (2006). 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 123 os componentes semântico e fonológico –, Chomsky acabou por excluir a semântica e a fonologia da faculdade da linguagem. Dessa forma, diante do dilema de que o mecanismo metodológico que ele havia desenvolvido, com base na lógica matemática, para criar uma gramática gerativa de uma língua não era apropriado para a semântica e a fonologia, Chomsky acabou excluindo esses componentes dos aspectos linguísticos centrais, especificamente humanos, em vez de abandonar sua metodologia – ou restringi-la à sintaxe e assumir que a semântica e a fonologia têm uma natureza própria, que escapa dessa metodologia. Reforça essa interpretação a leitura do artigo “Some core contested concepts”, de 2015, no qual Chomsky deixa clara sua intenção de incluir os estudos da linguagem na teoria da computação: A propriedade mais elementar da língua-I é que ela é um sistema de infinidade discreta. O estudo da língua-I recai então na teoria da computação (teoria de máquina de Turing, teoria de funções recursivas).11 Uma língua-I pode ser vista (no mínimo) como um procedimento computacional que produz uma gama ilimitada de expressões estruturadas hierarquicamente, sendo atribuída a cada uma delas uma interpretação em duas interfaces com outros sistemas internos, sensório-motor (SM) e conceitual-intencional (CI) – grosso modo, som e pensamento (CHOMSKY, 2015b, p. 93; grifo nosso). Assim, Chomsky parece querer manter de qualquer forma o estudo da linguagem na esfera da lógica matemática, de modo geral, e das teorias de máquina de Turing e de funções recursivas, em particular. Em vista do fato de que os componentes semântico e fonológico não são recursivos – e, portanto, não podem ser inseridos na teoria da computação –, Chomsky exclui-os da faculdade da linguagem propriamente dita e relega-os à periferia da linguagem. Em se tratando especificamente do componente semântico, é notório que Chomsky a princípio se preocupou basicamente em evidenciar a independência da sintaxe em relação à semântica (e.g. CHOMSKY, 2015a, p. 22-23) e nunca chegou a desenvolver uma teoria semântica expressiva. “(...) naquele tempo [da teoria padrão], virtualmente nada era conhecido na tradição gerativa sobre semântica”, ressalta Jackendoff (2003, p. 108), “então fazia sentido derivar o que a pequena Para uma discussão sobre a teoria da computabilidade de Turing, funções recursivas e temas afins, ver, por exemplo, Boolos et al. (2012). 11 124 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 estrutura semântica lá poderia ser das ricas possibilidades estruturais que emergiam da nova tecnologia sintática.” Além disso, e muito mais importante, “os únicos aspectos do significado que ele [Chomsky] sempre quis atacar são aqueles que podem ser contemplados (ou em alguns casos, redefinidos) como sintáticos” (HARRIS, 1993, p. 107). No livro O conhecimento da língua: sua natureza, origem e uso, Chomsky ilustra com clareza essa situação. Após afirmar que uma interpretação mentalista da linguagem, como a proposta no gerativismo dos anos 1950 e 1960, incluía o estudo da sintaxe, da fonologia e da morfologia (p. 61), Chomsky pondera que a semântica também estava incluída, ressalvando, porém, que “muito desse trabalho não é de todo semântica, se por ‘semântica’ entendermos o estudo da relação existente entre a linguagem e o mundo” (1994, p. 61). Anos mais tarde, na sua palestra em Délhi, Chomsky deixaria inequívoca a sua posição: Na minha opinião, a maior parte daquilo que se chama de “semântica” é sintaxe. É a parte da sintaxe presumivelmente próxima do sistema de interface que envolve o uso da linguagem. Assim, há essa parte da sintaxe e certamente há a pragmática, no sentido genérico daquilo que se faz com as palavras e assim por diante. Saber se existe semântica no sentido mais técnico é uma questão aberta. Não creio que haja qualquer razão para acreditar que exista. Acho que isso remonta à velha e provavelmente falsa suposição de que há uma relação entre palavras e coisas, independentemente das circunstâncias do uso (CHOMSKY, 2008, p. 94-95). Em entrevista concedida a Mitsou Ronat no fim dos anos 1970, Chomsky ainda parecia acreditar na existência da “semântica no sentido mais técnico”. No entanto, já separava claramente a parte semântica que, para ele, pode ser expressa linguisticamente – os quantificadores e relações anafóricas, por exemplo12 – da parte semântica que não pode ser assim expressa: (...) parece razoável supor que as relações semânticas entre palavras como persuade (persuadir), intend (ter a intenção de) e believe (acreditar) podem ser expressas em termos puramente Para uma discussão sobre quantificadores e relações anafóricas, ver, por exemplo, Chomsky (1994 e 1999, cap. 1). 12 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 125 linguísticos (a saber: se eu o persuado a partir, então você terá a intenção de partir; se eu o persuado de que hoje é terça-feira, então você acreditará que é terça-feira; são fatos de língua, não do mundo exterior). Muito mais ainda, parece extremamente razoável supor que as propriedades fundamentais dos quantificadores e da anáfora podem ser expressas na parte do nível de representação semântica que se separa das considerações extralinguísticas (CHOMSKY, 1977, p. 130). A essa “parte do nível de representação semântica que se separa das considerações extralinguísticas”, Chomsky chamou na teoria padrão estendida de forma lógica, a qual designaria “os aspectos semânticos estritamente determinados por princípios linguísticos” (CHOMSKY, 1977, p. 133). Dessa maneira, para Chomsky (1977, p. 151), “a forma lógica é a representação do sentido determinada pela estrutura da linguagem”. Considerando-se essa definição de forma lógica, bem como sua fundamentação, fica nítido que, devido ao fato de os quantificadores e as anáforas poderem ser interpretados como “aspectos semânticos estritamente determinados por princípios linguísticos”, Chomsky incluiuos em sua teoria gramatical. No entanto, como os aspectos semânticos que não se separam das “considerações extralinguísticas” não podem ter a mesma interpretação, Chomsky excluiu-os de sua teoria gramatical e chegou a pôr em dúvida a existência da semântica relacionada a esses últimos aspectos – isto é, a semântica tal qual entendida tradicionalmente por filósofos, linguistas, psicólogos, antropólogos, etc.13 Quanto ao componente fonológico, como já analisado, Chomsky emprega no modelo padrão o mesmo mecanismo de regras de reescrita para descrever tanto as regras sintáticas quanto as regras fonológicas, tentando manter a “unidade geral da teoria gramatical”. Depois da publicação de The sound pattern of English, porém, a fonologia gerativa passaria por mudanças profundas, que acabariam por enterrar de vez a possibilidade de utilizar o mesmo instrumental metodológico no estudo dos fenômenos sintáticos e dos fenômenos fonológicos. No último capítulo do livro Phonology in the twentieth century, intitulado “Generative phonology after The sound pattern of English”, Stephen R. Anderson bem resume essa verdadeira revolução que ocorreu no gerativismo na década Para uma reafirmação desse posicionamento, ver, por exemplo, Chomsky (2014, p. 54-55). 13 126 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 de 1970. Como esclarece Anderson (1985, p. 347), as representações fonéticas e fonológicas em The sound pattern of English são bem uniformes em sua estrutura formal interna, sendo que cada uma dessas representações é formada por uma sequência de segmentos, em princípio, independentes uns dos outros e de tamanhos uniformes. Os elementos maiores, como morfemas, palavras, etc., eram caracterizados àquela altura como morfológicos e não eram representados diretamente como unidades estruturais. As sílabas, por sua vez, não tinham qualquer representação sistemática. No início dos anos 1970, porém, continua Anderson (1985, p. 347-348), a investigação de sistemas tonais começou a minar esse modelo teórico. Isso se deu porque foi proposto que os tons deveriam ser descritos como traços unitários ligados a sílabas, e não a segmentos. Seguindo essa linha de análise, John Goldsmith apresenta em sua tese de doutorado, defendida em 1976, a chamada “fonologia autossegmental”. Com base nela, observa Anderson, fonólogos passaram a propor que outros traços fonológicos, como de nasalização e de harmonização vocálica, também seriam mais bem representados não sob o escopo de um segmento apenas, mas sim sob o escopo de uma sílaba ou mesmo de uma palavra inteira. Para completar o quadro, lembra Anderson, Liberman e Prince publicam em 1977 o artigo “On stress and linguistic rhythm”, no qual apresentam sua teoria métrica argumentando que o acento deveria ser visto como uma relação entre unidades organizadas em uma estrutura hierárquica (sílabas, em especial), e não como um traço assinalado a segmentos. Com isso, as sílabas passaram definitivamente a ser reconhecidas como unidades que estabelecem uma organização hierárquica de segmentos em uma estrutura maior.14 “Como resultado desses desenvolvimentos”, pondera Anderson (1985, p. 348), “os fonólogos passaram no fim dos anos 1970 a considerar representações menos como uma sequência de ‘contas num cordão’ segmental do que como análogas a uma partitura orquestral na qual a sincronização de cada instrumento com outros instrumentos é tanto parte da partitura como as próprias notas que cada um deve tocar.” Numa perspectiva ainda mais ampla, Anderson conclui tendo em vista as teorias fonológicas apresentadas depois da publicação de The sound pattern of English: 14 Para uma apresentação detalhada dessas teorias, ver, por exemplo, Kenstowicz (1994). Para uma discussão de todo esse quadro com análises fonológicas do português brasileiro, ver Bisol (2001). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 127 À medida que se torna mais e mais evidente que a linguagem é um sistema “modular”, representando a interação essencial de um conjunto de domínios (...), não há motivo para duvidar que a estrutura sonora também deve ser abordada por várias perspectivas independentes simultaneamente (ANDERSON, 1985, p. 336). E, ainda mais incisivo, Anderson completa: “Nós deveríamos (...) reconhecer a modularidade da linguagem: o fato de que ela representa a interseção de um conjunto de domínios distinguíveis, cada qual sujeito a seus próprios princípios” (1985, p. 346). Chomsky, no entanto, jamais reconheceu a modularidade da linguagem nesses termos, preferindo, como já explicitado, excluir a semântica e a fonologia dos aspectos linguísticos centrais, especificamente humanos, em vez de abandonar sua metodologia ou limitá-la à sintaxe. Em consequência dessa postura, Chomsky acabou sofrendo críticas pesadas não apenas de linguistas, mas também de pesquisadores de outras áreas do conhecimento, como psicólogos, filósofos e antropólogos. Quanto à resistência ao tratamento dispensado por Chomsky aos outros componentes da linguagem que não a sintaxe, as chamadas “guerras linguísticas” (HARRIS, 1993; NEWMEYER, 1996) são um capítulo à parte. Em meados dos anos 1960, Chomsky e seus seguidores, de um lado, desenvolviam a teoria padrão, apresentada pelo próprio Chomsky nos Aspectos da teoria da sintaxe. De outro, um grupo de dissidentes liderado por Paul Postal, James McCawley, John “Háj” Ross e George Lakoff, todos ex-alunos de Chomsky, propunha uma nova vertente teórica, que seria denominada de semântica gerativa. Nela, alguns dos pilares da teoria padrão foram atacados, com destaque à hipótese da autonomia da sintaxe em relação à semântica. Em contra-ataque, Chomsky e seus partidários golpearam a ideia central da semântica gerativa: a hipótese de que a estrutura profunda é a própria representação semântica. Justamente por terem extrapolado a mera divergência científica é que as discussões entre os dois grupos seriam mais tarde batizadas de “guerras linguísticas”. A despeito, porém, do furor dos envolvidos, que muitas vezes se ofendiam pessoalmente, os confrontos foram relativamente breves. No fim dos anos 1970, já era claro à comunidade linguística que Chomsky e seus companheiros haviam derrubado as principais ideias dos semanticistas gerativistas – em especial sua concepção do componente semântico – e, consequentemente, saíam vencedores do conflito. Em todo caso, o ponto a ser aqui destacado é que o estopim 128 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 desse embate foi a percepção de boa parte da comunidade linguística – e também da comunidade filosófica – de que a semântica era basicamente negligenciada por Chomsky em seus modelos linguísticos (TAYLOR, 2007, p. 573). E, apesar de Chomsky ter negado em entrevista a Mitsou Ronat que tenha deixado de lado o componente semântico na gramática gerativa, é indiscutível que ele nunca apresentou uma teoria semântica, muito menos uma teoria semântica à altura das teorias sintáticas e fonológicas desenvolvidas no gerativismo. O motivo dessa lacuna, como dito antes, foi aparentemente a impossibilidade de tratar os fenômenos semânticos com a mesma metodologia empregada até o modelo padrão para descrever os fenômenos sintáticos e os fenômenos fonológicos. Corrobora essa interpretação a leitura da conferência “Contribuições linguísticas para o estudo do pensamento: presente”, que foi proferida por Chomsky na Universidade da Califórnia em Berkeley, em janeiro de 1967, e publicada na coletânea Language and mind (Linguagem e pensamento), de 1968. Na ocasião, Chomsky reafirmou que a gramática é constituída de sintaxe, fonologia e semântica. Além disso, como voltaria a fazer em suas palestras na Nicarágua nos anos 1980, deu exemplos sintáticos e fonológicos para ilustrar como o conhecimento linguístico de um falante-ouvinte é intuitivo, inconsciente e adquirido sem instrução alguma. Sobre o componente fonológico, em particular, que ainda não havia sido rebaixado ao status de um sistema auxiliar, desorganizado e periférico à “natureza essencial” da linguagem, Chomsky observou: O trabalho dos últimos poucos anos sobre a estrutura sonora parece-me oferecer indicações substanciais em favor da concepção de que a forma das gramáticas particulares é determinada, de modo altamente significativo, por um esquematismo restritivo que especifica a escolha de propriedades fonéticas importantes, os tipos de regras que podem relacionar a estrutura superficial com a representação fonética e as condições de organização e aplicação destas regras. (...) Além disso, estas pesquisas da estrutura sonora, na medida em que asseguram a conclusão de que as estruturas fonológicas abstratas são manipuladas por sistemas de regras rigorosamente organizados e intrincados, são importantes para o problema, muito interessante, de criar modelos de execução (performance) empiricamente adequados (CHOMSKY, 1973, p. 55; grifo nosso). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 129 Pouco à frente, após apresentar exemplos de como as estruturas fonológicas abstratas da língua inglesa são manipuladas por “sistemas de regras rigorosamente organizados e intrincados” – contrariando, portanto, a posição que assumiria no contexto minimalista de que “o sistema fonológico inteiro assemelha-se a uma enorme imperfeição” (CHOMSKY, 2006, p. 145) –, Chomsky reassegura a proximidade entre a fonologia e a sintaxe, claramente tentando preservar a “unidade geral da teoria gramatical”. Com esse intuito, ponderou que as estruturas subjacentes da estrutura sonora estão relacionadas com as representações fonéticas por meio de uma longa sequência de regras, assim como as estruturas profundas abstratas do componente sintático estão relacionadas com as estruturas superficiais por meio de uma longa sequência de transformações gramaticais (CHOMSKY, 1973, p. 61). Passando ao componente semântico, Chomsky (1973, p. 7980) não nega que uma gramática deva conter regras de interpretação semântica que explicitem fatos como o de que, a partir da sentença “John has lived in Princeton” (“O João morou em Princeton”), pode-se concluir que John é uma pessoa, que Princeton é um lugar, que John está vivo, etc. Pelo contrário, ainda tentando manter a “unidade geral da teoria gramatical”, Chomsky (1973, p. 80) ressalta a necessidade de elaborar-se uma semântica universal, que completaria a trinca com uma sintaxe e uma fonologia universais. No entanto, lamenta ser “incapaz de discutir condições referentes a regras de interpretação semântica que poderiam ser análogas às condições das regras sintáticas e fonológicas” (CHOMSKY, 1973, p. 80) como as apresentadas no modelo padrão. Assim, estando impossibilitado de lidar com as regras semânticas como o fazia com as regras sintáticas e fonológicas, Chomsky acabou deixando em segundo plano – ou melhor, em stand-by – o componente semântico na gramática gerativa. Insatisfeitos com essa situação, gerativistas como Postal, McCawley, Ross e Lakoff incumbiram-se ainda nos anos 1960 da tarefa de investigar o aspecto semântico da linguagem, sem se deter pela metodologia chomskiana. Com os desdobramentos de suas reflexões, acabaram por desenvolver um modelo teórico rival ao de Chomsky – a semântica gerativa –, exemplificando a afirmação de Thomas Kuhn (2009, p. 126) de que “as revoluções científicas iniciamse com um sentimento crescente, também seguidamente restrito a uma pequena subdivisão da comunidade científica, de que o paradigma existente deixou de funcionar adequadamente na exploração de um 130 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 aspecto da natureza, cuja exploração fora anteriormente dirigida pelo paradigma”. Contudo, no caso da semântica gerativa, não se pode dizer que tenha havido realmente uma revolução científica porque o movimento acabou derrotado pelo paradigma chomskiano já no fim dos anos 1970. Independentemente disso, porém, muitas das críticas e das observações dos semanticistas gerativistas à gramática gerativa e ao próprio Chomsky continuam pertinentes. O retrato que Ross pinta de seu ex-orientador de doutorado, por exemplo, ajuda a compreender melhor o tratamento dispensado à semântica desde o início da gramática gerativa e à fonologia no Programa Minimalista: Não há dúvida de que Chomsky é um gênio e que tenha revolucionado a linguística, e criado um campo da matemática que não existia antes, e que tenha ajudado na revolução da psicologia e no renascimento do interesse por problemas como cognição e percepção.15 Mas eu acho que ele está tão comprometido com a verdade dessa visão em que ele cresceu que ele não consegue mais ver onde ela é inadequada (HARRIS, 1993, p. 158). Seguindo Ross – e parafraseando Millôr Fernandes, que teria dito que o comunismo é uma espécie de alfaiate que faz alterações no cliente quando a roupa não fica boa –, pode-se dizer que o gerativismo chomskiano faz alterações na linguagem quando o modelo teórico não fica bom. Logo em seus primeiros trabalhos gerativistas (sua dissertação de mestrado e sua tese de doutorado), por exemplo, realizados na primeira metade dos anos 1950 e publicados com algumas alterações em 1975 no livro The logical structure of linguistic theory, Chomsky exclui a semântica da análise, ainda que a reconheça como um componente linguístico (p. 57). Motivou-o a assim proceder “um sentimento de que a teoria do significado falha em atender certos requisitos mínimos de objetividade e verificabilidade operacional” (CHOMSKY, 1975b, p. 57). No entanto, considerando críticas que recebeu à ausência da semântica em seu modelo linguístico, Chomsky mais tarde, na teoria padrão, incluiria formalmente esse componente da linguagem, associando-o à estrutura profunda. Posteriormente, na teoria padrão estendida, vincularia 15 Para uma reconstituição histórica da revolução cognitiva dos anos 1950 e 1960, com um capítulo inteiro sobre o papel de Chomsky e da gramática gerativa nesse movimento, ver Gardner (2003). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 131 a semântica à estrutura profunda e à estrutura superficial. Na teoria de princípios e parâmetros, bem como no Programa Minimalista, Chomsky por fim atribuiria a semântica à forma lógica. Assim, conforme discutido anteriormente, Chomsky inclui em sua teoria gramatical aqueles aspectos semânticos que para ele são estritamente determinados por princípios linguísticos, como os quantificadores e as anáforas. Quanto aos aspectos semânticos ligados a considerações extralinguísticas, Chomsky não somente os exclui de sua teoria gramatical como põe em dúvida a existência da semântica relacionada a tais aspectos. Em relação à fonologia, como também já explicitado, o procedimento é essencialmente o mesmo. Até o momento em que o componente fonológico podia receber um tratamento similar ao que recebia o componente sintático – isto é, até aproximadamente a publicação de The sound pattern of English –, Chomsky o incluiu em sua gramática. No entanto, assim que ficou inviável continuar estendendo à fonologia o método empregado na investigação sintática, devido ao desenvolvimento da fonologia autossegmental na década de 1970, o componente fonológico foi, a princípio, deixado de lado por Chomsky (cf., p. ex., CHOMSKY, 1981, p. 5). Anos depois, já no contexto minimalista, por ser considerado por Chomsky como um entrave à ideia de que a linguagem é um sistema cognitivo perfeito, a fonologia acabou relegada por ele à categoria de um sistema auxiliar, desorganizado e periférico à “natureza essencial” da linguagem. E esta, claro, não foi uma atitude isolada de Chomsky. Afinal, é no Programa Minimalista que Chomsky leva a extremos suas alterações na linguagem visando a preservar tanto o seu modelo teórico quanto as suas intuições metafísicas – as quais ele havia de certo modo refreado até a teoria de princípios e parâmetros, chegando a afirmar no início dos anos 1980 que “não faz sentido adotar suposições a priori” quanto à possível simplicidade e elegância do sistema biológico da linguagem (CHOMSKY, 1981, p. 15), apesar de ele ter adotado essa suposição a priori guiado por seus “julgamentos intuitivos” (CHOMSKY, 1981, p. 15). Poucos anos mais tarde, porém, Chomsky deixaria para trás essa postura dúbia e explicitamente adotaria em seu minimalismo a suposição a priori de que a faculdade da linguagem tem propriedades de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos complexos. 132 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 5. Um programa de pesquisa rival ao minimalismo chomskiano: a arquitetura paralela de Jackendoff A “intuição chomskiana de que a linguagem é perfeita”, no entanto, encontraria resistência por parte de muitos pesquisadores, que não se convenceriam de sua legitimidade (e.g. CULICOVER; JACKENDOFF, 2005; JACKENDOFF, 2011; JOHNSON; LAPPIN, 1997; LAPPIN et al., 2000a, 2000b; KINSELLA; MARCUS, 2009; PINKER; JACKENDOFF, 2005). De certa forma sintetizando a opinião desses autores, Maria Cristina Figueiredo Silva e João Costa ponderam não sem razão: (...) se a gramática universal é a representação de uma faculdade cognitiva, é muito estranho que ela deva apresentar uma propriedade como eficiência, uma noção claramente formulável no domínio da engenharia, não no da biologia. Neste terreno, o que observamos é que os organismos têm subsistemas ou órgãos sem nenhuma função aparente, que eventualmente podem vir a servir no caso de alguma mudança no meio. Assim, a definição do que é eficiente (ou simplesmente útil) pode mudar, como também pode determinar o desaparecimento do organismo. Portanto, não é claro que eficiência ou economia seja ou deva ser uma propriedade dos organismos ou dos órgãos que os compõem (SILVA; COSTA, 2011, p. 161). A fim de reforçar esse ponto de vista, Silva e Costa (2011, p. 161) citam o provocativo exercício mental proposto por Shalom Lappin, Robert D. Levine e David E. Johnson (2000b) de imaginar um biólogo especializado em fisiologia humana que adota os princípios do minimalismo chomskiano em sua investigação do aparelho urinário, sobre o qual escreve em um pretenso artigo: Este trabalho é motivado por duas questões relacionadas: (1) quais são as condições gerais que se esperaria que o aparelho urinário satisfizesse? E (2) em que extensão o aparelho urinário é determinado por estas condições, e nada além delas? A primeira questão tem por seu turno dois aspectos: que condições são impostas sobre o sistema urinário em virtude de (A) seu lugar no conjunto dos sistemas fisiológicos do corpo e (B) considerações gerais de naturalidade conceptual que tem plausibilidade independente como simplicidade, economia, simetria, não redundância e similares? (LAPPIN et al., 2000b, p. 876) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 133 Como observam Silva e Costa (2011, p. 161), parece claro não fazer sentido perguntar quais as condições que se esperaria que o sistema urinário satisfizesse. Por isso, argumentam, seguindo Lappin et al. (2000b), biólogo algum sugeriria que se pode deduzir a identidade e interconexão de tecidos da bexiga, rins ou uretra com base no conhecimento de que as vias urinárias servem para expelir urina (SILVA; COSTA, 2011, p. 161-162). Em vista dessa situação, Silva e Costa (2011, p. 162) concluem que parece igualmente claro que “noções como a de ‘economia’ ou ‘elegância’ nada têm a ver com a bexiga, mas apenas com a teoria que fazemos sobre ela”. Atesta essa análise crítica do minimalismo chomskiano o fato, salientado por Adriana Belletti e Luigi Rizzi em entrevista a Chomsky sobre o Programa Minimalista (CHOMSKY, 2006, p. 130 e p. 134), de que é fácil imaginar critérios de perfeição ou otimidade de acordo com os quais a linguagem não poderia de modo algum ser caracterizada como otimamente projetada por um “superengenheiro”. Um sistema linguístico perfeito, exemplificam, não seria repleto de ambiguidades, não teria morfologia flexional (fonte de redundâncias como a marcação de pluralidade em inglês e italiano), nem teria problemas com o sistema de desempenho – isto é, o sistema de externalização, de uso da linguagem (CHOMSKY, 1975a, p. 84) –, como os originados por limitações de memória. Sem negar essas fontes de imperfeição da linguagem, e até acrescentando outras à discussão, Chomsky (2006, p. 131) afirma que a pergunta apropriada não é se a linguagem em si é perfeita, mas se ela é bem projetada para interagir com os sistemas que estão dentro da mente, os quais teriam se desenvolvido na espécie Homo sapiens antes da mutação que originou Merge. No entanto, o problema é que essa redefinição da pergunta sobre a perfeição da linguagem cria sérias distorções, incluindo a ideia de que a exteriorização do pensamento pode ter sido o resultado de uma “brilhante ideia” de alguém, além da necessidade de agrupar a morfologia com a fonologia e outros sistemas de externalização e rebaixá-los a meros sistemas auxiliares, desorganizados e periféricos à “natureza essencial” da linguagem. Descontentes com esse cenário, alguns gerativistas vêm desenvolvendo teorias alternativas ao minimalismo chomskiano. Entre elas, a “arquitetura paralela” de Jackendoff (1997, 2003, 2007, 2010, 2014) parece ser especialmente promissora. Nesse modelo teórico, a linguagem é vista como uma estrutura organizada em sistemas 134 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 combinatórios semi-independentes – sintaxe, fonologia e semântica –, cada qual com seus próprios princípios organizacionais, que geram interfaces entre si, mas sem qualquer protagonismo sintático, fonológico ou semântico. Com isso, Jackendoff escapa àquilo que chama de “sintaticocentrismo” de Chomsky. Por sintaticocentrismo, Jackendoff entende a premissa adotada desde o início do gerativismo e mantida até o Programa Minimalista de que o componente sintático é proeminente em relação aos componentes fonológico e semântico, que seriam tão somente interpretativos (JACKENDOFF, 1997, p. 15). Em outras palavras, na arquitetura sintaticocêntrica de Chomsky, “as regras de formação fonológicas e semânticas são nulas, de modo que tudo nas estruturas fonológicas e semânticas é determinado apenas por suas interfaces com a sintaxe” (JACKENDOFF, 2007, p. 50). Como bem observa Jackendoff (2007, p. 66), “uma arquitetura sintaticocêntrica não apresenta semelhança alguma com o resto da mente/cérebro”. Isto é, “não se conhece paralelo ao ‘sistema computacional’ mestre que gera estruturas sintáticas, o qual por sua vez determina estruturas fonológicas e significados” (JACKENDOFF, 2007, p. 66). A visão, exemplifica Jackendoff (2007, p. 65) – recorrendo, não por coincidência, ao mesmo “saco de truques” discutido por Fitch –, é um sistema cognitivo típico: é formada por muitas áreas cerebrais independentes, cada qual especializada em algum aspecto visual, como forma, movimento, cor e relações espaciais. E todas essas áreas têm interfaces umas com as outras, sem haver uma área em que tudo se centraliza para formar uma representação completa do campo visual. “Isso tem precisamente o cheiro de uma arquitetura paralela em linguística, em que a noção de ‘sentença’ ou ‘frase’ é distribuída entre várias estruturas, comunicando-se com cada uma via interfaces específicas”, argumenta Jackendoff (2007, p. 65). Cabe destacar ainda que, se Chomsky, de um lado, com seu sintaticocentrismo, jamais reconheceu a modularidade da linguagem como “a interseção de um conjunto de domínios distinguíveis, cada qual sujeito a seus próprios princípios”, nos termos de Anderson, Jackendoff, de outro, construiu seu modelo linguístico de arquitetura paralela justamente como consequência desse reconhecimento. Mais que isso: se os princípios a que estão sujeitos a morfologia e a fonologia e demais sistemas de externalização acabaram levando Chomsky a empurrar esses componentes para a periferia da linguagem em seu Programa Minimalista, foram exatamente as particularidades da fonologia que Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 135 inspiraram Jackendoff a elaborar sua arquitetura paralela da linguagem. “A gênesis dessa alternativa vem de desenvolvimentos na ‘fonologia autossegmental’ em meados dos anos 1970, os quais dividiram a estrutura fonológica em um conjunto de subcomponentes ou camadas semiindependentes”, reconhece Jackendoff (2003, p. 111). Com base nessa arquitetura paralela da fonologia, Jackendoff propõe uma arquitetura paralela da própria linguagem, fundamentando-se na ideia de que esta “engloba um conjunto de sistemas combinatórios independentes, que estão alinhados uns com os outros por meio de uma coleção de sistemas de interface. A sintaxe é um dos sistemas combinatórios, mas está longe de ser o único” (JACKENDOFF, 2003, p. 111). Ou seja, repudiando o sintaticocentrismo chomskiano, Jackendoff defende com sua arquitetura paralela que o correto é “considerar a estrutura linguística como o produto de um conjunto de capacidades gerativas paralelas, mas interativas – no mínimo, uma para a fonologia, sintaxe e semântica” (2007, p. 36-38). Assim, no modelo linguístico de Jackendoff, a sintaxe não desempenha um papel central como no modelo linguístico de Chomsky. Muito menos é elevada ao patamar de um sistema “computacionalmente perfeito”, com a contrapartida da inclusão da morfologia entre os sistemas de externalização e o rebaixamento destes ao status de “sistemas auxiliares desorganizados”. Dessa forma, a arquitetura paralela baseia-se na premissa de que a linguagem é estruturada em um conjunto de sistemas combinatórios semi-independentes, cada qual com seus próprios princípios de organização. Esses sistemas, no entanto, estão conectados entre si por sistemas de princípios de interface, que estabelecem relações sintático-semânticas, sintático-fonológicas e semântico-fonológicas (JACKENDOFF, 2007, p. 64). Na arquitetura paralela de Jackendoff, portanto, os sistemas combinatórios da linguagem – sintaxe, fonologia e semântica – são considerados independentes por terem seus próprios princípios de organização, mas também dependentes por estarem conectados entre si via princípios de interface. Daí sua caracterização como sistemas semi-independentes. A figura abaixo, reproduzida de Jackendoff (2003, p. 6), sintetiza a arquitetura paralela tomando como exemplo a análise da frase “The little star’s beside a big star”: 136 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Fonte: Jackendoff (2003, p. 6) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 137 A primeira estrutura, a fonológica, consiste em quatro subcomponentes, ou tiers (“camadas”), detalha Jackendoff (2003, p. 7-8). Na parte central está a estrutura segmental (segmental structure), na qual se encontram os fonemas, simbolizados conforme o alfabeto fonético em representação aproximada da pronúncia em inglês americano padrão. Cada um daqueles sons da fala, claro, é constituído por traços distintivos. O já citado segmento fonético [s] de “star”, por exemplo, é especificado com os traços [+ consoante, - vocálico, - soante, - nasal, + contínuo, - sonoro, + anterior, + coronal]. Acima da estrutura segmental, está a estrutura silábica (syllabic structure), denotando que a estrutura fonológica não é tão somente uma sequência de fonemas. Cada sílaba, indicada por σ, deve ter um núcleo (N). O núcleo mais o material que se segue a ele constituem a coda e agrupam-se na rima (R). O material anterior ao núcleo agrupa-se no onset (O). No topo da estrutura fonológica encontra-se a estrutura prosódica (prosodic structure), que tem dois subcomponentes. As chaves indicam a organização das sílabas em frases entonacionais (intonational phrases). Dentro das chaves estão os x da grade métrica (metrical grid), que indica o acento das sílabas. Uma sílaba sem x acima dela é não acentuada; quanto mais x acima de uma sílaba, maior o seu acento. Finalmente, na parte de baixo da estrutura fonológica está a camada morfofonológica, que denota o agrupamento dos fluxos sonoros em palavras (words, Wd) ou em clíticos (clitics, Cl). Já a estrutura sintática, prossegue Jackendoff (2003, p. 9-10), está representada como uma árvore sintática típica da teoria gerativista, ainda que com algumas pequenas modificações, como a omissão das palavras ao fim de cada galho e linhas duplas ligando os sintagmas a seus núcleos. O maior constituinte, a sentença (sentence, S), divide-se em um sintagma nominal (noun phrase, NP) e um sintagma verbal (verb phrase, VP), que constituem o sujeito e o predicado, respectivamente. O NP divide-se em um determinante (determiner, Det), um sintagma adjetival (adjective phrase, AP) e o núcleo substantivo (noun, N), que carrega os traços de 3ª pessoa do singular (3rd person count singular). O VP divide-se em um núcleo verbal (verb, V) e um sintagma preposicional (prepositional phrase, PP). E este se divide em uma preposição (preposition, P) e um NP objeto, o qual se divide como o NP sujeito. Liga-se ao verbo uma inflexão (Inflection, Infl), que inclui tempo presente e os traços de 3ª pessoa do singular (3rd person count singular), em concordância com o sujeito. A estrutura semântica/conceitual, por sua vez, apresenta uma constituição muito mais controversa do que as estruturas fonológica e 138 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 sintática, alerta Jackendoff (2003, p. 11-12). Por isso, é a estrutura que mais reflete suas convicções pessoais, em vez de posições amplamente aceitas pelos teóricos. Conforme Jackendoff, cada par de chaves na figura cerca um “constituinte conceitual” (conceptual constituent). O rótulo de cada constituinte designa que ele pertence a um tipo conceitual maior, como Situação (Situation), Evento (Event), Estado (State), Objeto (Object), Lugar (Place) e Propriedade (Property). A figura como um todo denota uma estrutura de função-argumento (function-argument structure), e as estruturas dos objetos (little star e big star) denotam uma relação de modificação – isto é, os objetos stars são modificados pelos respectivos adjetivos, little e big. Com essa notação, representa-se na estrutura conceitual que há uma Situação no presente, consistindo de um Estado. Tal Estado é o de um Objeto em um Lugar. A função Ser/Estar (Be) mapeia o Objeto e o Lugar nesse Estado. O primeiro Objeto é do tipo (type) estrela (star), é definido (definite, DEF) e tem a Propriedade pequena (little). Quanto ao segundo Objeto, ele é do tipo (type) estrela (star), é indefinido (indefinite, INDEF) e tem a Propriedade grande (big). Além disso, se o primeiro Objeto serve de argumento para a função Be, o segundo Objeto serve de argumento para a função Atrás (Beside), mapeando o Objeto em um Lugar – a região em que o primeiro Objeto está localizado pela função Be. Por fim, a quarta e última estrutura, a espacial, não é sequer mencionada pela maioria dos teóricos, ressalta Jackendoff (2003, p. 1213). Essa estrutura pode ser entendida como uma imagem da cena que a sentença descreve, algo como um esquema a ser comparado com o mundo a fim de verificar a sentença – ou seja, suas condições de verdade. No caso da sentença “The little star’s beside a big star”, observa Jackendoff, é particularmente importante que os traços de Beside apareçam de alguma forma, o que foi representado na figura pelas linhas pontilhadas. Além dessas quatro estruturas, Jackendoff (2003, p. 13-15) explicita os mecanismos de conexão entre elas – isto é, como as partes de cada estrutura se conectam às partes das outras estruturas. As correspondências entre as unidades da estrutura fonológica e da estrutura sintática são assinaladas na figura em letras menores. The, por exemplo, que é fonologicamente um clítico e sintaticamente um determinante, recebe tanto na estrutura fonológica quanto na estrutura sintática a letrinha c. O mesmo the, que tem o traço semântico DEF, recebe ainda o número 3 na estrutura sintática e na estrutura conceitual. Como sublinha Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 139 Jackendoff, essas correspondências não se dão entre os elementos primitivos de cada estrutura, e sim entre unidades compostas. Assim, as unidades primitivas da estrutura fonológica, como os traços distintivos e as sílabas, são invisíveis à semântica e à sintaxe. Por isso os sons da fala, por si sós, não têm significado, e apenas um conjunto desses sons, ao formar clíticos ou palavras, conectam-se à semântica e à sintaxe. Unidades sintáticas primitivas, como os traços de 3ª pessoa e de singular, tampouco têm conexão direta com a fonologia e a semântica, precisando unir-se ao traço de tempo presente para formar o afixo verbal do inglês -s – este, sim, conectado à fonologia e à semântica. Conexões entre sintaxe, semântica e fonologia, no entanto, pondera Jackendoff, não são a regra. Algumas unidades podem se conectar a duas dessas estruturas, deixando a terceira de fora. O verbo conjugado (V na figura), por exemplo, está conectado à fonologia (letrinha f em V e no clítico z), mas o verbo não flexionado e a flexão estão conectados à semântica de modo separado (números 6 e 7, respectivamente). Há ainda outras diferenças entre as conexões de estruturas, como o fato de que o mapeamento entre sintaxe e fonologia é linear, mas não o mapeamento entre sintaxe e semântica; o fato de que nem todas as partes da estrutura conceitual têm correspondência na estrutura espacial; e o fato de que um elemento relativamente insignificante numa estrutura pode ser o elemento central em outra – o clítico z, por exemplo, na sentença “The little star’s beside a big star”, não é sequer um elemento fonologicamente independente, mas semanticamente denota o verbo be, que é protagonista na estrutura conceitual. Outro ponto a enfatizar sobre a arquitetura paralela é que, apesar de não estar devidamente explicitado na figura acima, a sintaxe e a semântica também são subdivididas nesse modelo teórico em camadas (tiers) independentes, como a fonologia. A sintaxe, de acordo com Jackendoff (2003, p. 129), é constituída por camadas como a de sintaxe frasal (phrasal syntax) e de morfossintaxe, além de outras possíveis camadas, como a de funções gramaticais (2003, p. 149). Já a semântica (JACKENDOFF, 2003, p. 11; cap. 12) conta entre suas camadas com uma descritiva (descriptive tier), que corresponde grosso modo à informação veiculada na lógica de predicados; uma referencial (referential tier), que denota os aspectos semânticos que são acrescentados quando se passa de uma lógica de predicados para uma lógica quantificacional;16 e uma Para uma introdução à lógica de predicados e à lógica quantificacional, ver, por exemplo, Mortari (2001). 16 140 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 camada de estrutura informacional (informational structure), que veicula essencialmente conteúdo de tópico/foco e de pressuposição. Sem dar tréguas ao sintaticocentrismo de Chomsky, Jackendoff (2003, p. 110-111) sublinha que dois pressupostos são mantidos por Chomsky em sua concepção linguística desde os seus primeiros trabalhos: o de que a estrutura sintática é a única fonte gerativa na gramática e o de que os itens lexicais entram na derivação no ponto em que a combinação sintática acontece. Contra o primeiro pressuposto, conforme já ressaltado, Jackendoff defende que os componentes fonológico e semântico também têm capacidade gerativa. Contra o segundo, Jackendoff (2003, p. 425) argumenta que o léxico é uma parte essencial dos componentes de interface da arquitetura paralela. Uma palavra como “gato” (cat), exemplifica Jackendoff (2003, p. 425), não é somente uma lista de traços fonológicos, sintáticos e semânticos que se insere na sintaxe e é carregada por toda a derivação, como se faz no gerativismo chomskiano. Em vez disso, é uma “pequena regra de interface” que ajuda a correlacionar as estruturas paralelas. Os traços fonológicos só aparecem na estrutura fonológica; os traços sintáticos na estrutura sintática; os traços semânticos na estrutura conceitual. Além do mais, a palavra é que estabelece a ligação entre as três estruturas. Para Jackendoff (2003, p. 425), essa interpretação do léxico como uma parte essencial dos componentes de interface é o maior diferencial entre seu modelo teórico e os de Chomsky – desde a teoria padrão até o minimalismo. A figura abaixo, reproduzida de Jackendoff (2003, p. 125), ajuda a compreender melhor toda essa discussão: Fonte: Jackendoff (2003, p. 125) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 141 Essa figura esquematiza a “teoria tripartite” da linguagem, com seus três componentes estruturais – fonológico, sintático e semântico/ conceitual – e suas respectivas regras de formação e interfaces. A centralidade do componente sintático, esclarece Jackendoff (2003, p. 126), deve-se a seu papel de intermediário entre o componente fonológico e o componente semântico/conceitual, não havendo qualquer relação com o sintaticocentrismo chomskiano. A sintaxe, aliás, é o componente mais isolado da arquitetura paralela, já que não tem múltiplas interfaces com outras capacidades cognitivas, diferentemente da fonologia e da semântica (JACKENDOFF, 2003, p. 126). A estrutura conceitual, em particular, é bastante rica em interfaces, interagindo com módulos como o de informação auditiva, cheiro, emoção, ação e representação espacial (JACKENDOFF, 2007, p. 44). Em se tratando das interfaces linguísticas, é pertinente observar que elas não acontecem entre os componentes como um todo, mas sim com subcomponentes específicos. A interface sintaxefonologia, por exemplo, dá-se na camada (tier) de morfofonologia, não em todo o componente fonológico (JACKENDOFF, 2003, p. 126). Isso porque somente constituintes da morfofonologia estão conectados a constituintes da árvore sintática, não havendo relação alguma entre as unidades silábicas (codas, núcleos, etc.) e as categorias sintáticas (substantivos, verbos, etc.), por exemplo (JACKENDOFF, 2003, p. 118). Perceba-se ainda que na arquitetura paralela não se segue a divisão tradicional da linguística em fonologia, morfologia, sintaxe, semântica e léxico. Nesse modelo teórico assume-se que a morfologia é a extensão da arquitetura paralela abaixo do nível das palavras (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 19). Na arquitetura paralela, a morfofonologia é responsável pela construção da estrutura fonológica das palavras a partir dos temas (stems) e afixos – grosso modo, como os sons de temas e de afixos influenciam um ao outro. Já a morfossintaxe, na arquitetura paralela, lida com a estrutura sintática dentro das palavras, especificando por exemplo a categoria sintática a que um afixo se aplica e a categoria sintática resultante; o traço estrutural de paradigmas morfológicos e os modelos (templates) morfossintáticos relacionados no processo de múltipla afixação. Além disso, na arquitetura paralela defende-se que a morfologia também tem um papel semântico, já que muitos afixos produtivos, como a marcação de plural regular em inglês, podem ser tratados como itens lexicais, que, como as palavras, estabelecem uma interface entre pedaços de (morfo)fonologia, (morfo) sintaxe e semântica. Assim, a arquitetura paralela é constituída por três 142 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 componentes gerativos – fonologia, sintaxe e semântica – mais uma divisão transversal em departamentos frasal e morfológico e princípios de interface entre os vários componentes, com o léxico atravessando todos eles (CULICOVER; JACKENDOFF, 2005, p. 19-20).17 Outro ponto fundamental da arquitetura paralela de Jackendoff, representado na figura da teoria tripartite da linguagem, é sua adequação à direcionalidade lógica da produção e percepção da fala. Nesse aspecto, o modelo de Jackendoff também procura superar as falhas dos modelos sintaticocêntricos de Chomsky, que começam pela construção da frase sintática e pela inserção lexical e só posteriormente atingem os níveis fonológico e semântico (JACKENDOFF, 2003, p. 197). A percepção da linguagem, porém, evidentemente se dá do som ao significado, e a produção da linguagem se dá do significado ao som. Na figura abaixo, também reproduzida de Jackendoff (2003, p. 197), esses três quadros são assim esquematizados, respectivamente:18 Fonte: Jackendoff (2003, p. 197) 17 Ver Bornkessel-Schlesewsky e Schlesewsky (2013) para a apresentação de evidências neurobiológicas de que possivelmente não haja “primitivos computacionais em morfologia”, isto é, a morfologia não constituiria um subsistema linguístico autônomo, mas seria essencialmente um domínio de interface com a fonologia, a sintaxe e a semântica. 18 Para uma apresentação minuciosa da arquitetura paralela, ver Jackendoff (2003). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 143 Qual modelo teórico é mais condizente com a faculdade da linguagem é uma questão que se esclarecerá com o tempo. Uma pergunta mais imediata que se coloca, porém, refere-se à possibilidade de a arquitetura paralela de Jackendoff suplantar o minimalismo chomskiano como o principal “programa de pesquisa” (LAKATOS, 1979, 1995) gerativista. Antes de responder a essa pergunta, vale frisar que a simples existência da arquitetura paralela como um programa de pesquisa rival ao programa chomskiano já é de suma importância porque alimenta o “pluralismo teórico” e, assim, estimula o progresso científico, conforme ressalta Imre Lakatos: A história da ciência tem sido, e deve ser, uma história de programas de pesquisa competitivos (ou, se quiserem, de “paradigmas”), mas não tem sido, nem deve vir a ser, uma sucessão de períodos de ciência normal: quanto antes se iniciar a competição, tanto melhor para o progresso. O “pluralismo teórico” é preferível ao “monismo teórico” (...) (LAKATOS, 1979, p. 191). Mas na gramática gerativa nunca houve lugar para programas de pesquisa rivais ao programa chomskiano, como bem assinala José Borges Neto: Chomsky sempre foi o grande líder da comunidade gerativista, impondo avanços, redirigindo o programa, rejeitando e/ ou avalizando propostas. Chomsky age – e é visto assim pela comunidade – como o “dono” do programa, a pessoa que tem a última palavra sobre a validade das linhas de pesquisa propostas pelos colaboradores, a pessoa que diz o que deve e o que não deve ser pesquisado, a pessoa que periodicamente faz os “balanços” de lucros e perdas (conquistas e custos teóricos) da teoria e propõe as grandes sínteses que dão as novas direções. Sem muito exagero, poderíamos dizer que a GG [gramática gerativa] sempre foi, e continua sendo, essencialmente uma criação de Chomsky. Todos os que não concordaram com Chomsky, em um ou outro momento da história do programa, ou renderam-se ao poder do “mestre”, retornando ao “bom caminho”, ou tornaram-se dissidentes, à margem do programa. Por mais interessantes que sejam as propostas apresentadas pelos colaboradores de Chomsky, elas só são, de fato, incorporadas ao arsenal teórico do programa se explicitamente avalizadas por Chomsky (BORGES NETO, 2011, p. 126). 144 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 Diante dessa conjuntura, é improvável – para não dizer impossível – que a arquitetura paralela de Jackendoff venha a se tornar algum dia o principal programa de pesquisa gerativista, apesar da “reação ‘fria’” de parte da comunidade ao Programa Minimalista (BORGES NETO, 2011, p. 126). No entanto, a arquitetura paralela parece ter boas chances de vir a ocupar esse posto na biolinguística. E não porque a presença de Chomsky seja menos dominante nesse novo campo de estudos, e sim porque nele é real a possibilidade de que evidências empíricas advindas da biologia e das neurociências levem ao abandono de seu modelo linguístico sintaticocêntrico em favor de um modelo linguístico semelhante ao de Jackendoff. Além do mais, não seria surpreendente caso a maioria dos biólogos e dos neurocientistas que começam a trabalhar na biolinguística achem inoportuna a tese minimalista de que a linguística está mais próxima da física do que da biologia (URIAGEREKA, 1998, p. 60) e, com isso, prefiram ajudar os linguistas a desenvolver um programa de pesquisa – ou, se preferirem, um “paradigma” (KUHN, 2009) – fundamentado na premissa de que a faculdade da linguagem é um sistema cognitivo imperfeito, como todos os outros, em vez de seguir a intuição chomskiana de que esse órgão mental tem propriedades de simplicidade e elegância que não são típicas dos sistemas orgânicos complexos. 6. Uma realidade científica, imperfeita e assimétrica A expectativa de que um modelo teórico com as características da arquitetura paralela de Jackendoff venha a ocupar na biolinguística o posto de principal programa de pesquisa é reforçada pelo fato de que o pressuposto metafísico de que a natureza é simples e perfeita está sendo cada vez mais questionado por filósofos e por cientistas ao longo das últimas décadas. A propósito, alguns desses teóricos que se mostram céticos quanto aos princípios que nortearam a revolução científica do século 17 ressaltam que foi precisamente essa revolução que começou a minar a ideia, que remonta à Grécia Antiga, de que a natureza é simples e perfeita. Referindo-se a essa revolução, na qual Galileu teve papel decisivo por demolir os alicerces da física aristotélica (GALILEI, 1988, 2011), Alexandre Koyré, por exemplo, afirma: Pode-se dizer, aproximadamente, que essa revolução científica e filosófica – é de fato impossível separar o aspecto filosófico do puramente científico desse processo, pois um e outro se mostram Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 145 interdependentes e estreitamente unidos – causou a destruição do cosmos, ou seja, o desaparecimento dos conceitos válidos, filosófica e cientificamente, da concepção do mundo como um todo finito, fechado e ordenado hierarquicamente (um todo no qual a hierarquia de valor determinava a hierarquia e a estrutura do ser, erguendo-se da terra escura, pesada e imperfeita para a perfeição cada vez mais exaltada das estrelas e das esferas celestes), e a sua substituição por um universo indefinido e até mesmo infinito que é mantido coeso pela identidade de seus componentes e leis fundamentais, e no qual todos esses componentes são colocados no mesmo nível de ser. Isso, por seu turno, implica o abandono, pelo pensamento científico, de todas as considerações baseadas em conceitos de valor, como perfeição, harmonia, significado e objetivo, e, finalmente, a completa desvalorização do ser, o divórcio do mundo do valor e do mundo dos fatos (KOYRÉ, 2006, p. 6; grifos nossos). Entre os físicos da atualidade, Marcelo Gleiser talvez seja o maior defensor da “destruição do cosmos” e o consequente abandono pelo pensamento científico das noções de perfeição, harmonia, significado e objetivo. Em seu livro Criação imperfeita, de 2010, Gleiser reconstrói a história de como esses conceitos passaram a fundamentar as ideias de filósofos e cientistas ao longo dos últimos 2.500 anos para melhor desconstruí-la. Como Koyré, Gleiser acredita que a concepção de uma natureza perfeita começa a desmoronar precisamente na revolução científica do século 17. Para ilustrar seu argumento, Gleiser esmiúça o trabalho de Johannes Kepler, ressaltando como o próprio Kepler não conseguiu abandonar sua visão harmônica e simétrica do mundo, apesar de suas descobertas – em especial sobre a órbita elíptica dos planetas – terem apontado nessa direção. Conforme Gleiser (2010, p. 63-65), Kepler acreditava que Deus havia determinado a ordem dos corpos celestes tendo em mente os cinco sólidos regulares de Pitágoras e Platão: o cubo, a pirâmide, o octaedro, o dodecaedro e o icosaedro.19 Considerando o “sonho pitagórico” de Kepler de apresentar uma solução geométrica para o cosmos, Gleiser comenta: É irônico (...) que justamente o homem que tanto amava a simetria acabasse provando que o círculo – a mais perfeita das formas – não tinha um papel central na astronomia. Cada planeta tinha a 19 Para uma ampla exposição das ideias de Kepler, ver Gleiser (2006). 146 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 sua própria órbita elíptica, com uma elongação maior ou menor: a estrutura do cosmo deixou de ser um sonho humano e passou a ser uma realidade científica, imperfeita e assimétrica. Kepler nos proporcionou um cosmo menos belo, mas uma ciência mais precisa. A lição que aprendemos é tão simples quanto essencial: para nos aproximar da verdade, muitas vezes temos que abandonar nossos sonhos de perfeição (GLEISER, 2010, p. 67; grifos nossos). É igualmente irônico que Chomsky tenha fundamentado seu minimalismo na “intuição galileana de que ‘a natureza é perfeita’” e “simples”, já que foi o próprio Galileu que revelou com seu telescópio as imperfeições do Sol e da Lua (GALILEI, 1987, 2011) e defendeu que a Terra é “dotada das mesmas condições dos corpos celestes” (GALILEI, 2011, p. 189), contribuindo assim para o abandono do cosmos ordenado e perfeito de Aristóteles (MARICONDA, 2011, p. 62). “As manchas [solares] são (...) consideradas por Galileu como manifestações solares e tomadas como evidência de que os fenômenos celestes não são, como pretendem os aristotélicos, incorruptíveis, inalteráveis e impassíveis, mas mostram sofrer alterações”, comenta o professor Pablo Rubén Mariconda (2011, p. 19). Fato significativo, logo na abertura da primeira das quatro jornadas que compõem o Diálogo sobre os dois máximos sistemas do mundo ptolomaico e copernicano, Galileu explicita a doutrina aristotélica20 de que a substância celeste, de um lado, é “impassível e imortal”, enquanto a elementar, de outro, é “alterável e caduca” (p. 95). “(...) Aristóteles prova a integridade e a perfeição do mundo ao mostrarnos que ele não é uma simples linha nem uma superfície pura, mas um corpo composto de comprimento, largura e profundidade; e porque as dimensões não são mais que estas três, tendo-as, ele as tem todas, e tendo tudo, é perfeito” (GALILEI, 2011, p. 95), afirma Galileu por meio de Salviati, personagem com o qual expõe seus argumentos a favor do sistema heliocêntrico de Copérnico em detrimento do sistema geocêntrico de Ptolomeu. Curiosamente, porém, a despeito de seu ataque vigoroso à física de Aristóteles ao longo de toda a obra, Galileu reitera, também por meio de Salviati, a “intuição aristotélica” de que o mundo é perfeito: 20 Para detalhes, ver em especial o tratado aristotélico Do céu. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 147 (...) concordo com ele [Aristóteles] e admito que o mundo seja um corpo dotado de todas as dimensões e, por isso mesmo, perfeitíssimo; e acrescento que como tal é necessariamente ordenadíssimo, ou seja, formado de partes dispostas entre si com máxima e perfeitíssima ordem, conclusão que não creio poder ser negada nem por vós, nem por outros (GALILEI, 2011, p. 104). Poucas décadas depois de Galileu, Isaac Newton agiria de forma semelhante, mantendo suas convicções mais profundas sobre o ordenamento do mundo apesar das evidências em contrário a que chegou com suas próprias descobertas. Em sua entrevista a McGilvray, Chomsky resume de forma interessante esse importante capítulo da história da ciência: (...) por volta do século 17 a postura frente à investigação e ao entendimento do mundo simplesmente mudou radicalmente. Na época de Newton, houve uma mudança dramática – tão dramática que Newton, que basicamente ajudou a criar essa mudança, não conseguiu aceitá-la. A suposição anterior – sem que ninguém expressasse exatamente – era que o mundo era inteligível. Deus o criara perfeito, e se fôssemos espertos o suficiente, poderíamos ver como Ele fez o mundo, e tudo seria inteligível para nós. Tudo o que tínhamos de fazer era trabalhar duro. O principal efeito psicológico das descobertas de Newton, eu acho, é que isso não é verdade. Envolve coisas que são, para nós, intuitivamente, forças misteriosas. Foi por isso que Newton resistiu às suas próprias conclusões, que efetivamente minaram o que era chamado de “filosofia mecânica” – a ideia de que o mundo trabalha como uma máquina, com mecanismos, alavancas e coisas empurrando umas às outras, meio parecido com um relógio medieval. Devia ser alguma coisa do gênero. Mas o que ele mostrou é que isso simplesmente não é verdadeiro (CHOMSKY, 2014, p. 130). Adiante, Chomsky completa, deixando entrever que não compartilha com Newton a suposição de que o mundo é inteligível, apesar de presumivelmente compartilhar com ele a suposição de que é perfeito: “Não é que o mundo vá ser inteligível (...). Então, queremos teorias inteligíveis sobre o mundo que atendam nossos critérios epistemológicos e funcionem com eles, que sejam apenas outros aspectos de nosso sistema cognitivo” (CHOMSKY, 2014, p. 131). De qualquer forma, voltando à revolução científica do século 17, é preciso sublinhar que, décadas antes de Newton, Kepler já havia adotado postura semelhante, resistindo às suas 148 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 próprias conclusões: “Para Kepler”, observa Gleiser (2010, p. 65), “a ordem, as proporções perfeitas, a simetria refletiam a glória da mente de Deus” e, “mesmo após ter revolucionado a astronomia, provando que as órbitas planetárias eram elípticas e não circulares, Kepler continuou acreditando no seu modelo geométrico” (GLEISER, 2010, p. 65). Dessa maneira, Kepler foi forçado a abandonar o círculo devido à precisão fenomenal dos dados de Tycho Brahe, nos quais confiava completamente. Mesmo assim, morreu convencido de que a perfeição geométrica do cosmo, refletindo a perfeição da mente de Deus, seria um dia revelada em toda a sua glória no código oculto da natureza. Para achar esse tesouro, tínhamos apenas de cavar mais fundo (GLEISER, 2010, p. 153-154). Essa ideia de que, para além das imperfeições da natureza com que os seres humanos se deparam com seus sentidos e seus instrumentos, existe um código oculto e perfeito num nível mais fundo acabou prevalecendo na física. Assim, a concepção grega de um “Universo elegante” (GREENE, 2013) vem norteando o trabalho dos físicos desde a revolução científica do século 17. Mais recentemente, desde meados do século 20, a intuição de que a natureza é simples, elegante, harmônica, perfeita, guia os físicos em seu projeto de formular uma teoria final, com a qual seriam integradas a mecânica quântica e a teoria da relatividade geral de Einstein – isto é, seriam unificadas as quatro forças da natureza: eletromagnetismo, gravidade, força nuclear forte e força nuclear fraca.21 “Todas as teorias de unificação baseiam-se na noção de que quanto mais profunda e abrangente a descrição da natureza, maior o seu nível de simetria matemática”, comenta Gleiser (2010, p. 14), referindo-se ao trabalho de físicos como Kepler, Newton e Einstein. “Ecoando os ensinamentos de Pitágoras e Platão, essa noção expressa um julgamento estético de que teorias com um alto grau de simetria matemática são mais belas e que, como escreveu o poeta John Keats em 1819, ‘beleza é verdade’” (GLEISER, 2010, p.14). Cético quanto a essa posição, Gleiser pondera: Porém, quando investigamos a evidência experimental a favor da unificação, ou mesmo quando tentamos encontrar meios de 21 Para uma exposição detalhada deste projeto, começando pela Grécia Antiga e passando pelos grandes cientistas modernos até chegar ao cenário atual, ver, por exemplo, Greene (2012, 2013) e Weinberg (1996, 2015). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 149 testar essas ideias no laboratório, vemos que pouco existe para apoiá-las. Claro, a ideia de simetria sempre foi e continua sendo uma ferramenta essencial nas ciências físicas. O problema começa quando a ferramenta é transformada em dogma. Nos últimos cinquenta anos, descobertas experimentais têm demonstrado consistentemente que nossas expectativas de simetrias perfeitas são mais expectativas do que realidades (GLEISER, 2010, p. 14). Contrário ao dogma de que a natureza é perfeita, Gleiser defende que “é hora de a ciência mudar, deixando para trás a velha estética do perfeito que acredita que a perfeição é bela e que a ‘beleza é verdade’” (2010, p. 15). Sem prejuízo a essa posição, cabe no entanto observar que Gleiser se equivoca ao aparentemente assumir que o dogma de que a natureza é perfeita foi aceito na ciência como um todo. Na biologia, como destacam Anna R. Kinsella e Gary F. Marcus (2009), esse dogma jamais vigorou. Realmente, pareceria estranho que os biólogos, compartilhando com os físicos a intuição de que a perfeição é bela e verdadeira, acreditassem que sistemas biológicos, resultados de um longo processo evolutivo, pudessem ser perfeitos em algum sentido. Mas muito mais importante: tendo em conta a verdade autoevidente de que os sistemas biológicos fazem parte do mundo natural, parece de fato ser hora de a ciência considerar esquecer o sonho de uma natureza simples e perfeita... 7. Considerações finais Quando Paul Dirac foi à Universidade de Harvard em 1974 falar sobre seu trabalho em física quântica, lembra Weinberg na abertura do ensaio “Belas teorias”, ele recomendou aos alunos de pós-graduação que se preocupassem apenas com a beleza de suas equações, e não com o que elas significavam. Na opinião do próprio Weinberg, esse não foi um bom conselho. De fato, parece insensato que cientistas se atenham à estética de uma teoria, relevando seu intento de desvendar algum aspecto da realidade. Porém, exageros à parte, a história da ciência está repleta de casos de grandes teóricos que se pautaram em suas investigações mais por uma concepção vaga do belo do que por aquilo que suas pesquisas lhes revelaram sobre seu objeto de estudos. Os exemplos de Kepler, Galileu e Newton ilustram bem essa situação. Em se tratando da linguística chomskiana, sobretudo no Programa Minimalista, verifica-se algo semelhante. Quanto mais patentes as imperfeições da linguagem, mais Chomsky se esforça para revelar as propriedades de simplicidade e 150 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 93-158, 2020 de elegância desse sistema biológico. Mesmo que à custa das evidências empíricas. Um tanto perplexo com isso, Talmy Givón (2009, p. 6) afirma com razão que a ideia de que a recursividade é o traço essencial da linguagem humana só foi levada a sério por ter o nome de Chomsky ligado a ela. Ainda mais críticos do que Givón em relação ao minimalismo chomskiano, Lappin, Levine e Johnson (2000a) expõem a falta de clareza com que Chomsky atribui à linguagem a noção de perfeição e recordam o leitor de que mesmo pensadores extraordinários, como David Hilbert (com seu programa formalista) e Albert Einstein (com sua teoria do campo unificado), podem estar profundamente enganados. Reiterar essa obviedade desfazendo de vez o sonho de uma linguagem perfeita talvez venha a se mostrar a principal contribuição epistemológica da linguística não apenas para as novas ciências cognitivas, mas também para as ciências mais tradicionais. agradecimentos Gostaria de agradecer à professora doutora Ulrike Schröder pelas críticas, comentários e sugestões a uma versão anterior deste trabalho. Também gostaria de agradecer à professora doutora Patricia Kauark pelas conversas sempre generosas e esclarecedoras sobre epistemologia que tivemos ao longo da disciplina “Filosofia das ciências”, ministrada por ela na graduação em filosofia da UFMG no primeiro semestre de 2017. Gostaria de agradecer ainda às observações e sugestões feitas por dois pareceristas anônimos. Evidentemente, a responsabilidade pelas posições aqui assumidas é de minha inteira responsabilidade. referências ANDERSON, Stephen R. Phonology in the Twentieth Century: Theories of Rules and Theories of Representations. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 o papel dos contextos e da polissemia na constituição histórica de novos juntores contrastivos The role of contexts and polysemy in the historical development of new contrastive connectives Luísa Ferrari Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP), São José do Rio Preto, São Paulo / Brasil luisa-ferrari@hotmail.com https://orcid.org/0000-0002-0384-4781 resumo: Este trabalho tem por objetivo investigar, em perspectiva longitudinal, o processo de constituição de construções de contraste com agora (português) e de construções de contraste com now (inglês) que expressam oposição semântica. À luz dos percursos de mudança atravessados por essas construções e de um quadro teórico que atribui à pragmática o papel de força motriz da mudança (TRAUGOTT; DASHER, 2002), busca-se reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia no desenvolvimento de novos juntores contrastivos. Para tanto, desenvolve-se um estudo diacrônico dos contextos que fornecem condições para as mudanças de agora e de now, que atuam originalmente como advérbios temporais. Os resultados mostram, em conformidade com Traugott (2012), que, se o desenvolvimento de novos juntores envolve gramaticalização, e não apenas mudança de significado, têm papel chave contextos que aliam motivações para reinterpretação semântico-pragmática a motivações para reanálise categorial. Além disso, a análise diacrônica permite reconhecer um amplo conjunto de similaridades entre a trajetória de agora e a trajetória de now, apontando para a produtividade translinguística da fonte temporal como canal de derivação para significados contrastivos. Palavras-chave: contextos; polissemia; contraste; gramaticalização. abstract: This paper aims to investigate, in a longitudinal perspective, the historical development of contrastive constructions with agora (Portuguese) and of contrastive constructions with now (English) that express semantic opposition. In the light of the eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.159-203 160 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 paths of change undergone by these constructions and of a theoretical framework that assigns to pragmatics the role of the chief driving force in change (TRAUGOTT; DASHER, 2002), the paper searches for evidence of the role of contexts and of polysemy in the development of new contrastive connectives. For this purpose, the research develops a diachronic study of contexts that provide conditions to the changes undergone by agora and by now, which are originally temporal adverbs. The results show, in accordance with Traugott (2012), that, if the development of new connectives involves grammaticalization, and not only meaning change, contexts that ally motivations for semantic-pragmatic reinterpretation and motivations for categorial reanalysis play a key role. Moreover, the diachronic analysis shows a great amount of similarities between the path of change undergone by agora and the path undergone by now, pointing to the productivity, across languages, of the temporal source as a derivation channel for contrastive meanings. Keywords: contexts; polysemy; contrast; grammaticalization. Recebido em 26 de março de 2019 Aceito em 04 de agosto de 2019 1 Introdução Este trabalho1 focaliza duas trajetórias de mudança, instanciadas em duas diferentes línguas, que partem de fontes temporais e dão origem a novos juntores2 contrastivos, mostrando um conjunto de similaridades em seu desenvolvimento. Percorrem essas trajetórias os (originalmente) advérbios temporais agora, do português, e now, do inglês, que apresentam, no português e no inglês contemporâneos, uma complexa rede de polissemias, caracterizada pela coexistência entre os Este trabalho resulta de um projeto de pesquisa financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP), nas modalidades Bolsa no País/Mestrado (processo nº 2015/21358-6) e Bolsa de Estágio de Pesquisa no Exterior (processo nº 2017/01933-1). Parte dos resultados é também produto de um projeto de pesquisa em andamento, financiado pela FAPESP na modalidade Bolsa no País/Doutorado (processo nº 2019/01411-0). 2 Por juntores, entendo conectores em geral, que podem ser membros de categorias gramaticais diversas, tais como conjunções propriamente ditas (coordenativas e subordinativas), perífrases conjuncionais, preposições e advérbios juntivos. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 161 significados temporais primitivos e significados contrastivos.3 Tanto as relações contrastivas articuladas com agora quanto as articuladas com now podem expressar duas nuanças: oposição semântica (baseada em predicados antônimos) e quebra de expectativa (fundada em conclusões direcionadas a orientações argumentativas distintas). Os exemplos (1) e (2), abaixo, ilustram os usos temporais de agora e now, respectivamente, e os exemplos de (3) a (6) ilustram os usos contrastivos, sendo (3) e (4) representativos do contraste por oposição semântica, e (5) e (6), do contraste por quebra de expectativa. As ocorrências4 foram extraídas de dados provenientes de textos falados e escritos do português e do inglês contemporâneos. (1) Mas eu gostaria de fazer referência para um trecho desta rodovia que inicia em São Ludgero, passa por Braço do Norte e se estende até a cidade de Gravatal, que se encontra numa situação caótica e desesperadora, estando desde 1994 somente com aquelas operações tapa buraco, que não adiantam para nada. E agora estão instalando somente neste trecho escalavrado duas lombadas eletrônicas que já se encontram em sua fase final de conclusão. (CAPH20-2/21) (2) His wife interested me somewhat: in face and in character she reminded me of one who now lies beneath the ground. (CACL19:1, 172) A esposa dele me interessou um pouco: pela aparência e pelo caráter ela me lembrou de alguém que agora está debaixo da terra. (3) EU saio de(i)xo ele fala::n(d)o num...num implico com ele agora as meninas já gostam de retrucá(r). (TFII20:2/21, 67, C1) 3 Também fazem parte do quadro de polissemias apresentado por agora e now usos em que os itens atuam como marcadores discursivos que sinalizam transição textual (cf. FERRARI, 2018). Em função dos objetivos deste trabalho, tais usos não são abordados aqui. 4 Para todos os exemplos do inglês apresentados ao longo do trabalho, proponho traduções para o português que buscam preservar o texto original o tanto quanto possível. 162 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 (4) S2: You used to get all these reprint requests, they’ve all disappeared because of email and the rest of it? S1: Most people xerox stuff, now I get stuff from overseas. L2: Você costumava atender a todos os pedidos de reimpressão, eles todos desapareceram por conta do email e de tudo o mais? L1: A maioria das pessoas tira cópia dos materiais, agora eu os trago do exterior. (UNMI20:2/21) (5) L2: cê... acha que é...uma falta de interesse por falta dos homens...? L1: Eu acho que... L2: o que que é? L1: não... eu não sei...vai ver que os homens não tem um grande interesse ... olha nós temos...uhm...uhm..tem um (lado) mais feminino no Museu na verdade...agora...os diretores SEMpre foram homens... (TFCS20:2/21, C2, 251) (6) The bourgeoisie has created a world market, now it’s not like people weren’t trading across national boundaries before. Remember for example Marco Polo (...). (TFCM20:2/21, C2, 35) A burguesia criou um mercado mundial, agora não é que as pessoas não faziam comércio além das fronteiras nacionais antes. Lembrem por exemplo de Marco Polo. Evidências empíricas de mudança, extraídas de diferentes línguas do mundo, mostram que tempo é canal de derivação produtivo para contraste (KORTMANN, 1997; MAURI; RAMAT, 2012). Partindo da hipótese de uma relação de derivação histórica entre os usos temporais e os usos contrastivos de agora e now, o objetivo deste trabalho é investigar, em perspectiva longitudinal, o processo de constituição das construções5 de contraste com agora e das construções de contraste com now, focalizando, neste texto, o desenvolvimento daquelas que expressam 5 Neste trabalho, entendo construção à maneira de Mauri e Ramat (2012, p. 5), que concebem construção como a associação de significados particulares a propriedades distribucionais, sem filiação à abordagem construcional da gramática. Ao falar em “construções com agora e now”, tenho em vista o pressuposto, assumido já nas obras clássicas sobre mudança gramatical (HEINE et al., 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003), de que reanálises semântico-pragmáticas e morfossintáticas se dão no nível Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 163 oposição semântica. Assumindo um quadro teórico que concebe a pragmática como a principal força que instiga mudança (TRAUGOTT; DASHER, 2002), no sentido de que novos significados se desenvolvem a partir de inferências disparadas por arranjos contextuais específicos, o foco da investigação das mudanças semântico-categoriais atravessadas por agora e now está nos contextos que, fomentando polissemia entre tempo e contraste, dão condições para a emergência e contínuo fortalecimento do valor de oposição semântica e da função juntiva. Assim, entendendo que elucidar o processo de constituição das construções em foco implica explorar os contextos em que esse processo se desenvolve, o objetivo principal do trabalho se desdobra em dois objetivos mais específicos: (i) explicitar fatores contextuais de natureza semântico-pragmática que fornecem condições, na história de agora e now, para a constituição gradual de relações de oposição semântica; (ii) explicitar fatores contextuais de natureza morfossintática que, aliados às condições semântico-pragmáticas, favorecem o trânsito categorial de advérbio para juntor, com consequências para toda a construção. Em conformidade com a perspectiva teórica de mudança assumida no trabalho, admito que a especialização de agora e now em duas nuanças contrastivas (oposição semântica e quebra de expectativa) tem relação direta com a singularidade dos contextos de desenvolvimento, que favorecem determinada nuança e não outra, motivo pelo qual são focalizadas neste trabalho as trajetórias rumo à oposição semântica. Em busca das especificidades de cada desenvolvimento, dedicarei outro trabalho à investigação das trajetórias que dão origem às construções de quebra de expectativa com agora e now. O interesse do trabalho pelas histórias de constituição de agora e now como juntores contrastivos tem em vista uma questão maior. Além da hipótese de derivação entre tempo e contraste, o trabalho também parte da hipótese de que, se a mudança se processa em contextos altamente específicos e se tanto o português quanto o inglês desenvolvem juntores contrastivos a partir de advérbios temporais similares, existem similaridades entre os contextos de desenvolvimento que atuam em cada língua. Tais similaridades podem fornecer evidências de regularidades no processo de mudança que dá origem a novos mecanismos de junção da construção, dependendo de sua reconfiguração como um todo, e não apenas de alterações do item em mudança. 164 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 contrastiva. Nesse sentido, a questão maior perseguida pelo trabalho a partir da investigação da emergência das construções de contraste com agora e now está em reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia no desenvolvimento histórico de novos juntores contrastivos, buscando respostas para três questões mais específicas: (1) De que modo os contextos condicionadores que atuam nos percursos de agora e now contribuem para o desenvolvimento de construções de contraste similares nas duas línguas? (2) Admitindo o peso da fonte para o gatilho e para os desdobramentos da mudança, no sentido de que não é qualquer significado temporal que habilita inferências de contraste, que aspectos de singularidade da fonte de mudança em cada língua são decisivos para a emergência do valor de oposição semântica? (3) Que estágios evolutivos se delineiam a partir dos contextos condicionadores em cada língua e que similaridades podem ser capturadas entre os estágios envolvidos em cada trajetória? O texto está organizado em cinco seções. Na seção 2, apresentase o quadro teórico que fornece as bases da concepção de mudança e da concepção de contraste assumidas no trabalho. Na seção 3, é descrito o corpus de investigação e os procedimentos metodológicos da análise. Na seção 4, desenvolve-se a análise longitudinal, com a caracterização dos contextos de uso originais de agora e now, dos contextos de polissemia entre tempo e contraste e dos contextos exclusivamente contrastivos. Dados os objetivos e as questões do trabalho, a análise dedica maior atenção aos contextos polissêmicos. Na seção 5, são sistematizados os estágios de mudança de ambas as trajetórias investigadas, à luz dos contextos envolvidos. Por fim, são expostas as considerações finais, com a retomada das questões da pesquisa. 2 Fundamentos Teóricos 2.1 a perspectiva teórica de mudança A investigação das mudanças que dão origem às construções de contraste com agora e às construções de contraste com now se fundamentará em uma perspectiva teórica de mudança que atribui à Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 165 pragmática o papel de força motriz do processo. A Invited Inferencing Theory of Semantic Change (IITSC, daqui em diante), conforme sistematizada em Traugott e Dasher (2002), busca explicar como se desenvolve a mudança semântica, admitindo que novos significados emergem primeiramente como significados pragmáticos convidados por contextos específicos. De acordo com o modelo da IITSC, esses contextos habilitam inferências do novo significado, que passam a coexistir com o significado original da construção em mudança, instaurando-se um cenário de polissemia entre significado fonte e significado alvo. Contexto e polissemia, portanto, são eixos centrais do modelo. Ao dar destaque para o contexto e para a polissemia, a IITSC coloca em foco a metonimização, mecanismo de mudança através do qual material linguístico presente no contexto sugere significados adicionais e habilita sua contínua associação com os significados primitivos. Tal mecanismo opera na mudança de maneira complementar com o mecanismo de metaforização, que leva ao trânsito entre domínios conceituais, tendendo a partir de significados mais concretos em direção a significados cada vez mais abstratos. Uma vez que a compreensão dos processos metonímicos permite uma aproximação da gradualidade da mudança, o foco da IITSC, em virtude de seus objetivos teóricos, incide sobre tais processos. Neste trabalho, na medida em que se pretende reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia na emergência de novos juntores contrastivos, também se dá prioridade aos processos inferenciais, de natureza metonímica, que contribuem para a emergência das novas construções de contraste. Traugott e Dasher (2002, p. 7) argumentam que, na constituição de novos significados, o falante/escrevente tem papel proeminente, configurando-se no negociador principal de significados. Isso permite compreender o pressuposto central da IITSC de que as inferências de novos significados são inferências convidadas: são contextos específicos que convidam a inferências, e quem produz contextos, manipulando o material linguístico em função de suas intenções comunicativas, é o usuário da língua enquanto produtor de significados, e não como receptor. Nessa perspectiva, o modelo assume que o falante/escrevente evoca implicaturas e convida o ouvinte/leitor a inferi-las. A IITSC prevê dois estágios principais para a mudança semântica: um estágio de pragmatização, em que inferências convidadas passam por um contínuo fortalecimento, e um estágio de semantização, em que 166 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 os significados antes inferidos ganham o primeiro plano dos sentidos, tornando-se independentes dos traços contextuais que lhes deram origem. O fortalecimento pragmático é essencial para a mudança, uma vez que inferências convidadas podem surgir e permanecer como implicaturas restritas aos contextos de uso em que emergiram (TRAUGOTT; DASHER, 2002, p. 35). Para se tornarem novos significados codificados, é preciso que ganhem saliência na comunidade linguística e que se espalhem para outros falantes/escreventes e outros contextos linguísticos, passando, na terminologia da IITSC, a inferências convidadas generalizadas, de impacto pragmático maior. A mudança linguística pode alcançar apenas o domínio do significado ou apresentar uma complexidade maior, ao afetar tanto o significado quanto a morfossintaxe e se desenhar a partir de uma conjugação de processos, configurando-se em instância de gramaticalização. Tendo em vista que as trajetórias de mudança aqui investigadas atravessam transformações tanto de forma (advérbio > juntor; soma-se a esse trânsito a reorganização de toda a construção de que agora e now participam) quanto de significado (tempo > contraste), este trabalho também se fundamenta no quadro teórico da Gramaticalização (BYBEE, 2010, 2015; HEINE et al., 1991; HOPPER; TRAUGOTT, 2003), que se sustenta em pressupostos convergentes com a IITSC, tal como a atribuição de papel fundamental ao contexto. Dada a importância do domínio contextual para a investigação de fenômenos de mudança, modelos de contextos são propostos em Heine (2002) e Diewald (2002). Tais modelos permitem operacionalizar a apreensão dos fatos de mudança, que não são discretos, de modo que fornecem instrumentos metodológicos para uma aproximação de como as mudanças ocorrem. Neste trabalho, conduzo a investigação à luz do modelo de Diewald (2002), por razões explicitadas ao longo da análise. Tanto Heine (2002) quanto Diewald (2002) estabelecem uma correlação estreita entre tipos de contextos e estágios evolutivos, pensando essa correlação especificamente para processos de gramaticalização. Diewald (2002) prevê três tipos de contextos e sustenta que a gramaticalização atravessa dois tipos de estágios de polissemia, um em que há apenas condições para o novo significado e outro que alia as condições para o novo significado a condições para a mudança morfossintática. O primeiro tipo, que seria correspondente ao primeiro estágio da mudança, é denominado pela autora untypical e se caracteriza Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 167 por implicaturas conversacionais do significado alvo, que convivem em relação polissêmica com o significado fonte. O segundo tipo, denominado critical, é o que de fato dispara o processo de gramaticalização, na proposta da autora. Aqui as ambiguidades são tanto semânticopragmáticas quanto morfossintáticas. Posteriormente, no estágio mais avançado do processo, surgem contextos isolating, em que o primeiro e o novo significado estão associados, enquanto valores semânticos distintos, a diferentes arranjos contextuais. Conforme o modelo da autora, quando se observa a especialização de contextos que excluem o significado fonte e de contextos que excluem o significado alvo, pode-se considerar que o processo de gramaticalização está completo (DIEWALD, 2002, p. 103). Traugott (2012), ao discutir o papel dos contextos para a mudança linguística, reúne evidências, extraídas de estudos de caso do inglês, de que é particularmente importante, em processos de gramaticalização, a distinção proposta por Diewald entre dois tipos de contextos de polissemia. Segundo a autora, as inferências pragmáticas são fundamentais para o gatilho da gramaticalização, mas é esperado que elas estejam aliadas a mudanças estruturais, em conformidade com os contextos critical que Diewald propõe (TRAUGOTT, 2012, p. 243). Conforme discuto na seção de análise, contextos que agregam inferências do novo significado a condições favoráveis à reanálise categorial têm papel primordial para as instâncias de mudança investigadas neste trabalho. 2.2 a perspectiva teórica de coordenação e de contraste As construções de contraste com agora e com now, conforme exemplificadas de (03) a (06) na seção anterior, configuram construções complexas que se aproximam de um modo coordenativo de composição. A identificação do estatuto coordenativo de construções não é óbvia e requer, na perspectiva teórica de coordenação aqui assumida, análise baseada em critérios sobretudo de ordem semântico-pragmática, que não será desenvolvida aqui, em função dos objetivos do trabalho. No entanto, como a análise dos contextos de polissemia favoráveis às mudanças investigadas envolve o pressuposto de que as construções de contraste com agora e now estão desenvolvendo estatuto coordenativo e esse estatuto é critério de distinção entre contextos polissêmicos (cf. seção 4.2), é importante delimitar o posicionamento teórico acerca da noção de coordenação contrastiva, que é pouco consensual na literatura linguística. 168 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 Parte das definições de coordenação oracional se pautam em critérios essencialmente estruturais (cf., por exemplo, CULICOVER; JACKENDOFF, 1997; LEHMANN, 1988), não suficientes para a compreensão da complexidade das relações coordenativas. Admitindo essa complexidade, assumo uma perspectiva teórica de coordenação orientada a seus aspectos universais, que viabilizam uma abordagem translinguística desse tipo de relação (MAURI, 2008a, b). Esses aspectos são de ordem semântica e pragmática, pois, conforme Mauri (2008a, b), relações coordenativas podem ser expressas a partir de uma diversidade de estrutruras morfossintáticas, diversidade que dificulta a observação de seu alcance translinguístico. Em contrapartida, do ponto de vista do significado, segundo a autora, é possível definir a coordenação, para um amplo conjunto de línguas, como um cenário conceitual em que dois estados de coisas6 (EsCos, daqui em diante) exibem paralelismo funcional, no sentido de autonomia semântica e pragmática. A análise de paralelismo funcional se baseia, na proposta de Mauri, principalmente na presença de força ilocucionária em ambas as orações relacionadas. Entendo contraste, neste trabalho, à luz de Lang (1984, 2000), que particulariza o papel da estrutura gramatical e da pragmática na constituição de relações contrastivas. O autor sugere que a interpretação de contraste envolve um dispositivo de busca pautado em uma relação entre uma fonte e um alvo: a fonte está na segunda oração, que contém indicações lexicais de que um contraste deve ser estabelecido, e o alvo reside em uma suposição que atende às condições para a leitura contrastiva. Nessa concepção, a construção coordenada contrastiva apresenta uma estrutura gramatical que dispara a busca pela relação de contraste (tal como predicados antônimos), mas o elemento essencial para a consolidação da relação – a suposição lida ou inferida – não está na estrutura gramatical, sendo fornecido pela pragmática. Além do postulado da suposição, Lang também sustenta que é característica fundamental da relação contrastiva (bem como de qualquer relação coordenativa) a presença de um integrador comum, isto é, uma entidade conceitual que é compartilhada pelas orações em relação. Os juntores que articulam construções coordenadas contrastivas, desse modo, 6 Mauri (2008a, p. 145) utiliza a expressão estado de coisas como um hiperônimo de situações, eventos, processos e ações. Ao longo do trabalho, empregarei o termo no mesmo sentido. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 169 têm o papel, segundo o autor, de indicar que as orações estão combinadas enquanto instâncias do integrador. Na seção 4.3, ilustra-se a noção de integrador comum a partir das construções contrastivas com agora e now. 3 Material e Metodologia Dados os objetivos e questões da pesquisa, o viés metodológico da análise é longitudinal. Para a investigação dos percursos de mudança atravessados por agora e now, foram constituídos corpora diacrônicos do português e do inglês o mais similares possível no intuito de prevenir enviesamentos nos resultados obtidos para cada língua. Essa aproximação foi buscada a partir de critérios qualitativos e quantitativos, descritos nesta seção. No corpus do português, o recorte temporal tem início no século XVIII e se estende até o XXI; no corpus do inglês, compreende o período do século XVII ao XXI.7 Na busca pela maior aproximação possível do quando das mudanças, associei os intervalos de cinquenta anos de cada século a um estado de língua. O pouco tempo transcorrido do século XXI foi incorporado à segunda metade do século XX. Desse modo, a investigação se pauta em um recorte longitudinal que contempla seis sincronias de análise para o português (XVIII-1, XVIII-2, XIX-1, XIX2, XX-1, XX-2/XXI) e oito para o inglês (XVII-1, XVII-2, XVIII-1, XVIII-2, XIX-1, XIX-2, XX-1, XX-2/XXI). Do ponto de vista qualitativo, dois critérios nortearam a constituição dos corpora: a natureza dialógica dos textos e sua diversidade tipológica. Conforme Schwenter (2000) e Traugott (2010), contraste é significado essencialmente dialógico, entendendo-se dialogicidade como a evocação de diferentes pontos de vista. Ancorada em evidências empíricas, Traugott (2010) argumenta que novos significados dialógicos tendem a emergir em contextos caracterizados por dialogicidade acentuada. Com base na autora, admito que textos favoráveis à marcação 7 A diferença no recorte temporal de ambos os corpora se deve ao fato de que este trabalho foi desenvolvido no âmbito de uma pesquisa maior (cf. FERRARI, 2018), que também investigou a emergência de usos de agora e de now como marcadores discursivos. Os dados mostraram ocorrências de now como marcador já no século XVIII, o que levou à decisão de um recuo maior no tempo para o corpus do inglês, em busca dos estágios mais incipientes dessa trajetória. 170 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 de múltiplos pontos de vista configuram um lugar propício para a depreensão de pistas das motivações para o desenvolvimento de agora e now como juntores contrastivos. A diversidade tipológica, por sua vez, foi critério considerado relevante para que os resultados não se restringissem a determinados tipos de texto. Assim, na constituição de ambos os corpora, foram selecionados textos diversos que favorecem a configuração de contextos dialógicos. Considerando a importância de simetria entre os corpora das duas línguas, busquei o quanto possível a equivalência entre os gêneros textuais. Embora ela não tenha sido sempre possível, entendo que o critério de natureza dialógica permitiu que a proximidade dos textos de cada corpus se mantivesse. Os textos que compõem os corpora diacrônicos compreendem peças teatrais, romances, cartas pessoais e oficiais, notícias, processos criminais, inquéritos, aulas universitárias e entrevistas. Tanto os textos do português quanto os do inglês foram extraídos de bases de dados eletrônicas, elencadas a seguir. QUADRO 1 – Bancos de dados do português BDPT Biblioteca Digital de Peças Teatrais http://www.bdteatro.ufu.br/ gPD Grupo de Pesquisas em Dramaturgia http://www.fclar.unesp.br/#!/pesquisa/grupos-de-pesquisa/dramaturgia-gpd/o-judeu/ PHPP Projeto História do Português Paulista http://phpp.fflch.usp.br/corpus PHPB Projeto para a História do Português Brasileiro https://sites.google.com/site/corporaphpb/home BBgJM Biblioteca Digital Brasiliana Guita e José Mindlin http://www.bbm.usp.br CHPTB Corpus Histórico do Português Tycho Brahe http://www.tycho.iel.unicamp.br/corpus/index.html VarPorT CDMa CE-DoHs oTE Projeto Análise Contrastiva de Variedades do Português http://www.letras.ufrj.br/varport/ Coleção Digital Machado de Assis http://machado.mec.gov.br/ Corpus Eletrônico de Documentos Históricos do Sertão http://www.tycho.iel.unicamp.br/cedohs/corpora.html Oficina de Teatro http://oficinadeteatro.com/ Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 TPT Teatro para Todos http://www.teatroparatodosufsj.com.br/ NurC Projeto Norma Linguística Urbana Culta http://www.letras.ufrj.br/nurc-rj/ PEuL Programa de Estudos sobre o Uso da Língua http://www.letras.ufrj.br/peul/ aLIP Amostra Linguística do Interior Paulista (IBORUNA) http://www.iboruna.ibilce.unesp.br/index.php gCL Grupo Companhia das Letras https://www.companhiadasletras.com.br/ PPP Projeto PorPorpular (Padrões do Português Popular Escrito) http://www.ufrgs.br/textecc/porlexbras/porpopular/index.php 171 QUADRO 2 – Bancos de dados do inglês oTa The Oxford Text Archive https://ota.ox.ac.uk/ PL Penn Libraries digital.library.upenn.edu/ Pg Project Gutenberg http://www.gutenberg.org/ Ia Internet Archive https://archive.org/ PoB The Proceedings of the Old Bailey Lond’s Central Criminal Court, 1674 to 1913 https://www.oldbaileyonline.org// TNP The Newton Project http://www.newtonproject.ox.ac.uk/ rrBP From Revolution to Reconstruction and beyond’ Project http://www.let.rug.nl/usa/ CLo The Carlyle Letters Online http://carlyleletters.dukeupress.edu/ MICasE BsC The Michigan Corpus of Academic Spoken English https://quod.lib.umich.edu/cgi/c/corpus/corpus?page=home;c=micase;cc=micase The Buckeye Speech Corpus http://buckeyecorpus.osu.edu/ Além da simetria do ponto de vista qualitativo, busquei também a simetria quantitativa, por meio de uma distribuição o mais balanceada possível dos textos tanto entre as diferentes sincronias de análise quanto 172 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 entre os diferentes tipos textuais no interior de cada sincronia. Para essa simetria, o critério adotado foi o número de palavras, sendo definida a quantia aproximada de 200.000 e 150.000 palavras8 para cada sincronia no corpus do português e no corpus do inglês, respectivamente. Na Tabela 1 e na Tabela 2, abaixo, apresento o número de ocorrências de agora e de now obtido a partir da quantidade de palavras coletada para cada sincronia. TABELA 1 – Número de ocorrências de agora por número de palavras sincronia Nº de palavras XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/XXI 204.015 204.380 208.540 203.945 208.925 209.830 206 158 140 142 238 259 Nº de ocorrências TABELA 2 – Número de ocorrências de now por número de palavras XVII-1 XVII-2 XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 Nº de palavras 148.620 150.700 150.540 150.220 149.630 150.210 150.350 150.790 304 229 170 160 Nº de ocorrências 228 XIX-2 164 XX-1 XX-2/ XXI sincronia 141 146 À luz do modelo de contextos proposto em Diewald (2002), a análise dos dados envolve a identificação e caracterização, na trajetória de cada língua, de três tipos de arranjos contextuais: contextos fonte, em que apenas os significados temporais primitivos de agora e now estão disponíveis, contextos polissêmicos, em que há convivência entre os significados fonte e alvo, e contextos alvo, em que apenas o novo significado, oposição semântica, é acessível. Em virtude da perspectiva teórica de mudança assumida, o foco da análise incidirá sobre os contextos de polissemia, em busca dos fatores que predispuseram o desenvolvimento dos novos juntores contrastivos. A diferença entre a quantidade de palavras por sincronia em cada corpus se justifica pela constatação de uma maior frequência de uso de now no inglês do que de agora no português e não compromete a simetria pretendida entre os dois corpora, tendo em vista que há similaridade entre eles do ponto de vista qualitativo e que cada um apresenta equilíbrio interno em termos de distribuição dos textos. 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 173 A descrição longitudinal dos contextos conjuga dois vieses de análise: qualitativo e quantitativo. As análises qualitativas implicam a descrição das ocorrências de agora e de now em termos de tempo (contextos fonte), tempo/contraste (contextos polissêmicos) e contraste (contextos alvo), associando-se cada padrão semântico a correlatos morfossintáticos que o singularizam. Já as análises quantitativas buscam, a partir da apuração das frequências de cada tipo de contexto, pistas do gatilho e da generalização das mudanças, tendo em vista tendências reconhecidas acerca do papel da frequência, sobretudo dos contextos de polissemia, para a propagação de novos significados, tendências que indiciam uma provável correlação entre aumento de tais contextos e disseminação da mudança (MAURI; RAMAT, 2012; TRAUGOTT; DASHER, 2002). 4 o processo de constituição de agora e now como juntores contrastivos Nesta seção, descrevo os contextos relevantes para a reconstrução diacrônica dos percursos de constituição de agora e now como juntores contrastivos. Dada a primazia dos contextos de polissemia para os objetivos e questões do trabalho, a caracterização dos contextos fonte e dos contextos alvo é mais breve, sendo dedicada uma análise mais circunstanciada aos contextos de polissemia entre tempo e contraste. Os contextos envolvidos na trajetória de agora e aqueles envolvidos na trajetória de now mostraram-se altamente similares, confirmando as hipóteses iniciais (cf. seção 1), motivo pelo qual são aqui apresentados de maneira conjunta. Nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2, abaixo, é apresentada a frequência longitudinal dos três padrões semânticos que são relevantes para as trajetórias de mudança investigadas neste trabalho, correspondentes aos contextos fonte, fonte/alvo e alvo: tempo, tempo/ contraste e contraste. A Tabela 3 e o Gráfico 1 mostram os dados relativos à trajetória de agora e a Tabela 4 e o Gráfico 2, os dados relativos à trajetória de now. 174 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 TABELA 3 – A trajetória de tempo à oposição semântica de agora em perspectiva longitudinal XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/XXI Tempo 189/206 (91,7%) 121/158 (76,6%) 124/140 (88,6%) 115/142 (81%) 188/238 (79%) 155/259 (59,9%) Tempo/Oposição semântica 17/206 (8,3%) 37/158 (23,4%) 15/140 (10,7%) 24/142 (16,9%) 44/238 (18,5%) 48/259 (18,5%) Oposição semântica 0/206 (0%) 0/158 (0%) 1/140 (0,7%) 3/142 (2,1%) 6/238 (2,5%) 56/259 (21,6%) GRÁFICO 1 – A trajetória de tempo à oposição semântica de agora em perspectiva longitudinal TABELA 4 – A trajetória de tempo à oposição semântica de now em perspectiva longitudinal XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/ XXI XVII-1 XVII-2 XVIII-1 XVIII-2 Tempo 286/304 (94,1%) 205/229 (89,5%) 160/170 (94,1%) 148/160 (92,5%) 207/228 152/164 132/141 119/146 (96%) (92,7%) (93,6%) (81,5%) Tempo/Oposição semântica 18/304 (5,9%) 24/229 (10,5%) 10/170 (5,9%) 12/160 (7,5%) 21/228 (4%) 12/164 (7,3%) 9/141 (6,4%) 22/146 (15,1%) Oposição semântica 0/304 (0%) 0/229 (0%) 0/170 (0%) 0/160 (0%) 0/228 (0%) 0/164 (0%) 0/141 (0%) 5/146 (3,4%) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 175 GRÁFICO 2 – A trajetória de tempo à oposição semântica de now em perspectiva longitudinal As tabelas e os gráficos mostram que os usos temporais tanto de agora como de now predominam ao longo de todos os estados de língua analisados. Em ambas as trajetórias, é importante notar sua redução na última sincronia, ainda mais significativa na trajetória de agora. Essa redução é acompanhada, no percurso de agora, por um aumento expressivo dos usos exclusivamente contrastivos e, no percurso de now, pelo surgimento das primeiras ocorrências de contraste. Os dados indiciam, nesse sentido, que as construções contrastivas com agora e com now são relativamente recentes no português e no inglês, sobretudo as contrastivas com now, que têm uma frequência ainda baixa nos dados (3,4%). Ainda que baixa, essa frequência – que pode ser resultante da própria concorrência de now com outros tantos juntores contrastivos – já permite atestar um processo de mudança em desenvolvimento. No caso das construções de contraste com agora, os dados também sugerem que se trata de um processo ainda em desenvolvimento, embora em estágio provavelmente mais avançado do que as construções com now. Para os objetivos e questões deste trabalho, mais importante do que os graus de desenvolvimento das mudanças é o fato de os dados revelarem construções em mudança, que, portanto, estão sob o alvo de forças pragmáticas que aqui interessam investigar. Assim, a frequência longitudinal dos contextos de polissemia entre tempo e contraste é de grande importância para a identificação de fatores que, há séculos, estão fornecendo condições para a constituição de agora e now como juntores contrastivos. Estudos empíricos sugerem a tendência de um aumento dos 176 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 contextos polissêmicos em intervalos de tempo próximos à emergência das primeiras ocorrências do significado alvo (MAURI; RAMAT, 2012; RAMAT; MAURI, 2011; TRAUGOTT; DASHER, 2002), o que não se verifica nas trajetórias atravessadas por agora e now, segundo os dados, que parecem revelar um papel diferente da frequência de uso para as mudanças. Conforme se observa nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2, todos os estados de língua mostram o padrão tempo/oposição semântica, indicando que, já desde o século XVIII, há, no português e no inglês, contextos favoráveis à mudança. Desse modo, os dados não mostram picos elevados de frequência dos contextos polissêmicos em geral, mas mostram uma constância de tais contextos ao longo do tempo. A análise qualitativa dos contextos de polissemia, conforme a seção 4.2, coloca em evidência tipos específicos de contextos polissêmicos que teriam maior peso para as transformações de forma e significado, de modo que revela como mais importante do que a frequência longitudinal de todos os contextos polissêmicos envolvidos nas trajetórias a frequência longitudinal de arranjos contextuais particulares, que seriam mais favoráveis à associação de agora e now ao sentido de oposição semântica através de gerações de falantes/escreventes. A seguir, apresento a análise qualitativa dos contextos que exprimem os significados temporais primitivos, dos contextos polissêmicos e dos contextos exclusivamente contrastivos. 4.1 os contextos temporais primitivos Nos contextos fonte, agora e now participam, juntamente com outros dispositivos gramaticais (tal como a morfologia verbal), da construção de diferentes relações temporais entre o momento da enunciação e o EsCo descrito. Ambos os advérbios se caracterizam, assim, por uma polissemia temporal, sendo três as nuanças de tempo identificadas nos dados: simultaneidade, em que há correspondência entre o tempo do EsCo enunciado na oração que agora e now integram e o momento da enunciação; anterioridade imediata, em que agora e now indiciam proximidade entre um EsCo já finalizado e o momento da enunciação; e posterioridade imediata, em que agora e now contribuem para aproximar um EsCo futuro do momento da enunciação. Verifica-se, dessa forma, que todas as nuanças estão de algum modo ancoradas na situação de comunicação. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 177 Do ponto de vista morfossintático, agora e now, enquanto advérbios dêiticos circunstanciais, exibem a flutuação sentencial típica dos advérbios, podendo ocupar diversas posições na oração e participar de uma variedade de construções. As ocorrências de (7) a (12) exemplificam os usos temporais primitivos de agora e now. (7) e (10) ilustram as construções em que os itens atuam na expressão de simultaneidade temporal, (8) e (11) ilustram aquelas em que veiculam anterioridade e (9) e (12) mostram as que expressam posterioridade. (7) Essa fortuna devo estimar para o melhor acerto da nossa correspondência; e, porque agora falamos de amor, escuta, Filena, a frase das melhores expressões. (PTVE18:1, 08, C1) (8) Isto me faz desesperar! Tu podes negar o que eu vejo e o que agora te ouvi? (PTVE18:1, 01, C1) (9) Velhaco insolente, tantas me tens feito, que agora te mandarei enforcar. (PTVE18:1, 57, C1) (10) His wife interested me somewhat: in face and in character she reminded me of one who now lies beneath the ground. (CACL19:1, 172) A esposa dele me interessou um pouco: pela aparência e pelo caráter ela me lembrou de alguém que agora está debaixo da terra. (11) Craik and I went as far as the extremity of the Regent’s Park; I have dined and had tea, and now set to work again. (CACL19:1, 301) Craik e eu fomos até a extremidade do Regent’s Park; eu jantei e tomei chá, e agora me sentei para trabalhar novamente. (12) No: not when a Roman slays an Egyptian. All the world will now see how unjust and corrupt Caesar is. (PTCC19:2, 109) Não: não quando um romano mata um egípcio. O mundo todo verá agora o quão injusto e corrupto César é. 4.2 os contextos de polissemia entre tempo e contraste Os dados revelam uma diversidade de arranjos contextuais que habilitam polissemia entre tempo e oposição semântica, ao longo de 178 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 todos os estados de língua analisados. Nessa diversidade, foi possível reconhecer quatro tipos de contextos, que se mostram mais e menos próximos dos contextos alvo prototípicos (cf. seção 4.3). Proponho que eles refletem diferentes estágios evolutivos, mais e menos avançados a depender de sua proximidade em relação aos contextos alvo. Nesta seção, caracterizo cada tipo de contexto polissêmico encontrado, buscando mostrar de que maneira cada um contribui para as mudanças. Na seção 5, os contextos aqui descritos são retomados e sistematizados em termos de estágios de mudança, e avalia-se se a gradualidade identificada entre eles é apenas de natureza qualitativa, em termos de maior ou menor conjunto de condições para as mudanças, ou se ela tem correlação com estados de língua particulares. Em todos os contextos de polissemia, foi identificada uma mesma nuança de tempo que é base para a emergência de inferências de contraste por oposição semântica: sequencialidade temporal. O que leva à distinção entre quatro tipos de contextos são os fatores semântico-categoriais (presentes na construção linguística de que agora e now participam) que habilitam a interpretação de uma relação temporal-contrastiva. No padrão polissêmico I, as inferências de contraste ainda são bastante sutis e altamente canceláveis. Admito que aqui a sequencialidade entre um EsCo anterior e um EsCo posterior ainda não alimenta uma relação contrastiva de fato, mas uma relação de desigualdade temporal. A natureza altamente sutil do significado alvo nesse tipo de contexto se deve ao fato de apenas um dos EsCos que participam da relação sequencial estar presente na construção linguística que agora e now integram. O EsCo anterior pode ser, por inferência, recuperado no contexto mais amplo, que extrapola as fronteiras da construção de que agora e now fazem parte. Os exemplos (13) e (14) são ilustrativos. (13) D. Quixote. Com que, vossa mercê é cavaleiro andante? Ora ajunte- se comigo, e falemos na matéria, que, como professor dela, estimo muito estas práticas. Criado*. Enquanto nossos amos lá praticam sobre os seus amores e valentias, vamos dando à taramela e fazendo pela vida. Sancho. Meu amigo, agora fico mais consolado nos meus infortúnios, pois mal de muitos consolo é. Até aqui, cuidava que só eu era desgraçado, em ser escudeiro de cavaleiro andante; mas já vejo que vossa mercê nasceu debaixo da minha estrela. (PTDQ18:1, 78, C2) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 179 (14) SCENE XII. Lettice. I’m now a Lady indeed. A fine House, fine Cloaths, and Servants to command. And this Sir John is the finest, handsomest Gentleman. Not that I care for him, any more than I should for any Body else, that would but make a Gentlewoman of me. (PTCB18:1, 54) Lettice. Eu sou agora uma dama de fato. Uma casa elegante, roupas elegantes e servos para comandar. E esse senhor John é o cavaleiro mais elegante e bonito. Não que eu ligue para ele, não mais do que eu devo ligar para qualquer pessoa que faça de mim uma dama. Em (13), é possível inferir, a partir da oração que agora ocupa, uma relação de desigualdade entre o momento presente, em que o locutor alimenta uma atitude avaliativa mais positiva em relação a seu trabalho, e um momento anterior, em que acreditava ser o único a exercer a atividade profissional em pauta. É importante notar que o descontentamento prévio do locutor não está explícito na construção coordenada de que agora participa, podendo ser inferido, sobretudo, pela associação do valor temporal de agora com o valor de intensificação do advérbio mais, que indicia diferença por comparação de superioridade. No contexto mais amplo, a relação de desigualdade que pode ser apenas inferida na construção que agora integra já se apresenta como uma relação propriamente contrastiva, a partir da construção coordenada com mas que aparece na sequência do texto. Já em (14), a relação de desigualdade se mostra ainda mais obscura no contexto. A oração que now ocupa inicia uma nova cena em uma peça teatral, não havendo, assim, contexto linguístico imediatamente anterior em que poderia haver pistas de um EsCo precedente. Nos enunciados seguintes, o EsCo anterior também não é explicitado. A oração que now integra está em relação com todo o contexto anterior da peça, em que a locutora busca adquirir hábitos de comportamento cultivados por mulheres de classes sociais mais altas. Now, ao fazer referência ao momento presente, em que a transformação almejada pela locutora se completou, alude também, por inferências habilitadas pelo contexto maior, a todo o intervalo de tempo que antecede a mudança, em que a locutora se caracteriza por um comportamento distante daquele assumido como padrão para mulheres da elite social da época. Indeed é traço 180 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 importante no contexto. Segundo Traugott (1995), pode atuar como um advérbio sentencial de valor adversativo, em que o item “refuta ou um argumento anterior ou um argumento que se pressupõe estar na mente do ouvinte”9 (TRAUGOTT, 1995, p. 8, tradução nossa). No contexto em que está inserido, esse parece ser justamente o papel de indeed, uma vez que um dos principais aspectos de desenvolvimento da peça é a dúvida constante acerca da transformação da locutora em uma “lady”. Nesse sentido, indeed tem o papel de evocar vozes que, sendo pressupostas pela locutora, colocariam em questão a mudança de seu comportamento. A partir do padrão polissêmico II, os dois EsCos em relação sequencial estão explícitos na construção linguística de que agora e now participam. Nos contextos associados a esse padrão, o principal tipo de construção, encontrado nos dados, em que se instaura sequencialidade entre um EsCo anterior e um EsCo posterior se constitui de uma oração nuclar e uma oração relativa, que pode ser de natureza determinativa ou explicativa. Os traços contextuais que, invariavelmente, no padrão polissêmico em foco, alimentam a sequencialidade são a correlação modotemporal entre as orações relacionadas e a marcação explícita de tempo por agora e now. Os dados exibem duas possibilidades de correlação modo-temporal, passado-presente ou passado-futuro. Em ambas, agora e now veiculam sempre tempo presente ou tempo futuro, isto é, sempre fazem referência ao EsCo que é posterior na relação sequencial, esteja ele em relação de simultaneidade ou de posterioridade imediata com o momento da enunciação. Há contextos no padrão polissêmico II em que se configura uma correlação entre agora e now (que marcam o tempo posterior) e outras expressões adverbiais, que indicam o tempo anterior, o que torna a sequencialidade no tempo ainda mais evidente na construção. Apenas a relação de sequencialidade não é suficiente para a emergência de inferências de contraste. À desigualdade no tempo (tempo anterior X tempo posterior), se soma uma desigualdade entre os EsCos em relação temporal, a partir de elementos contextuais que permitem reinterpretar a relação temporal como uma relação contrastiva. Para analisarmos a natureza desses elementos e os demais traços que caracterizam o padrão polissêmico II, apresento os exemplos de (15) a (18). “(…) to refute either an earlier argument, or one presupposed to be in the hearer’s mind” (TRAUGOTT, 1995, p. 8). 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 181 (15) Esta jovem cheia de encantos, que a pouco vos atrahia pela sua modestia, por suas maneiras doces, mas, graves, e reportadas, por certo acanhamento pudibundo, e por isso mais gracioso, agora a vereis desgranhada, como huma Bachante, destemida como huma furia, ensopada em cantaros d’agua, salpicada de lama, investindo a todos, e arcando com homens igualmente desassisados, e loucos. (CAPH19:1, 131, C2) (16) Na largura do gradeamento da porta, e pelo seu comprimento, se estende huma Rua, que ao longe vejo adornada em meio, com hum formoso Obelisco em fôrma pyramidal, o qual logo hiremos ver , e notar de mais perto. Que maravilhosa mudança vejo eu da parte da Serra! Efte terreno que eu vira inculto, cuberto de aspero, rasteiro, e esteril Tojo, agora se mostra a meus olhos ondeando todo com a larga Seara, e do meio dela brotaõ milhares, e milhares de viçosas Oliveiras, que aformoseaõ, e enriquecem esta agradável encosta. (DEQB18:2, 102, C2) (17) Sure it was the same ill spiritt that posessed Saul which hath governed mee lattly, of which I am now free I blesse God and this weeke past have had good health. (CADM17:1, 406) Certamente era o mesmo espírito doentio que tomou posse de Saul que tem me governado ultimamente, do qual eu estou agora livre eu agradeço a Deus e essa semana passada tive boa saúde. (18) His wife Octavia, Driven from his house, solicits her revenge; And Dolabella, who was once his friend, Upon some private grudge, now seeks his ruin. (PTAL17:2, 189) Sua esposa Octavia, tirada de sua casa, solicita sua vingança; E Dolabella, que era outrora sua amiga, por conta de algum ressentimento particular, agora busca sua ruína. Em todas as construções apresentadas, é possível observar a morfologia verbal direcionando a uma leitura de sequencialidade entre a oração que agora e now integram e a outra oração em jogo: atraía X vereis, em (15); vira X mostra, em (16); has governed X am, em (17); was X seeks, em (18). Em (15), (17) e (18), há ainda a correlação entre agora e now com outras expressões adverbiais que explicitam o tempo anterior, reforçando a leitura de tempo sequencial: há pouco X agora (15), lately X now (17), once X now (18). 182 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 Nas orações nucleares e nas orações relativas, há expressões lexicais, ou mesmo predicados inteiros, que adquirem estatuto de opostos semânticos, em virtude de crenças subjetivas fundamentadas em modelos de mundo socialmente construídos, que habilitam a interpretação de que os EsCos em relação sequencial estão também em relação contrastiva. Em (15), encantos, modéstia, doces, reportadas, pudibundo, gracioso são nomes que caracterizam o comportamento anterior de esta jovem como um comportamento socialmente avaliado como “bom”, “direito”. Em contrapartida, desgranhada e bacante, além de predicados inteiros que também operam na descrição do comportamento, evocam uma imagem de desordem, de um comportamento distante daquele esperado de uma mulher na sociedade da época. Esses nomes atuam como enunciadores lexicais (DUCROT, 2009), expressões que carregam um ponto de vista intrínseco a seu significado. Em (16), também se verifica expressões que funcionam como enunciadores de ponto de vista. Inculto, áspero, rasteiro e estéril indicam um cenário de improdutividade, ao passo que viçosas, aformoseiam, enriquecem, agradável, na oração que agora integra, caminham em direção argumentativa contrária e sugerem beleza e fertilidade. É importante notar que uma atitude avaliativa do locutor em relação à mudança que observa no tempo está explícita no enunciado imediatamente anterior à construção de que agora participa (que maravilhosa mudança vejo eu da parte da Serra!). No exemplo (17), os elementos lexicais que evocam inferências de oposição entre os EsCos, para além da oposição no tempo, são as próprias proposições (has governed me e am now free). Modelos de mundo concebem oposição entre estar sob o controle de algo/alguém e estar livre, tendendo a avaliar qualquer processo de libertação como uma mudança positiva. Em (18), o enriquecimento da relação temporal com inferências de contraste depende de uma suposição que emerge da oração relativa. Em diferentes sociedades, existe a crença subjetiva de que amigos compartilham sentimento de afeição e, por isso, buscam o bem recíproco. Em vista dessa suposição, modelos de mundo habilitam a interpretação de que o comportamento atual da personagem em pauta é incompatível ao comportamento anterior. É possível observar, a partir dos exemplos analisados, que os contextos associados ao padrão polissêmico II contêm mais traços Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 183 favoráveis às mudanças do que os contextos caracterizados pelo padrão polissêmico I, já que os dois EsCos em relação sequencial estão explícitos na construção linguística que agora e now integram. Os dados mostram contextos ainda mais favoráveis, em que a polissemia entre tempo e contraste está expressa através de relações coordenativas, de modo que são contextos mais próximos dos contextos alvo. Ao organizarem os EsCos sequenciais em uma construção coordenada, esses contextos reúnem maior conjunto de condições tanto para as mudanças de significado, já que se configura, entre as orações relacionadas, o integrador comum que é típico da relação coordenativa (cf. seção 2.2), quanto para as mudanças categoriais, pelo fato de que agora e now passam a integrar uma estrutura binária paratática, que é a estrutura típica das construções coordenadas em português e em inglês. Tais contextos, portanto, exibem a ambiguidade tanto semântica quanto categorial que, segundo Diewald (2002) e Traugott (2012), é essencial para processos de gramaticalização. Dentre os contextos em que a relação temporal-contrastiva está expressa a partir de construções coordenadas, há aqueles em que agora e now figuram em diferentes posições sentenciais, sempre no segundo segmento coordenado, e aqueles em que os itens ocupam a posição inicial desse segmento. Sendo a posição inicial típica de juntores contrastivos (KORTMANN, 1997; QUIRK et al., 1985), os contextos do segundo tipo representam um ganho importante para a mudança, no âmbito da morfossintaxe. Em posição inicial de uma relação coordenativa, admito que agora e now passam a atuar como advérbios juntivos, adquirindo traços da categoria alvo. Dessa forma, associo esses dois conjuntos de contextos aos padrões polissêmicos III e IV, respectivamente. No padrão polissêmico III, assim como no padrão anterior, as inferências de oposição semântica têm em sua base uma relação de sequencialidade temporal que se alia a outros traços do contexto. O fator crucial para a construção de sequencialidade entre os EsCos é a correlação modo-temporal que se estabelece entre as orações relacionadas, aqui através de coordenação. Em muitas ocorrências, expressões adverbiais que expressam tempo anterior se combinam com agora e now, tornando a sequencialidade ainda mais explícita. Nos contextos que exibem esse padrão polissêmico, a relação coordenativa é sinalizada por um juntor (contrastivo ou não) ou pode também se dar por justaposição, nas construções com now. 184 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 Os ganhos categoriais que os contextos em foco representam para as mudanças não se restringem à configuração de uma estrutura binária, mas também se devem à própria posição de agora e now no interior da construção coordenada. Embora possam ocupar diferentes posições na oração de que participam, agora e now sempre integram o segundo membro da construção coordenada, que, conforme Ducrot (1977), é reservado, nas construções contrastivas, para o argumento mais decisivo. De tal maneira, a posposição de agora e now na construção coordenada se revela um traço morfossintático que coloca em evidência a substancialidade da nuança temporal que fornece as bases para as inferências de contraste. Uma vez que agora e now ajudam a constituir relações de sequencialidade e, nessas relações, indiciam o tempo posterior, o princípio de iconicidade (HAIMAN, 1985) permite compreender que o EsCo posterior tenda a ocupar posição posterior também na construção linguística. Segundo Haiman (1985), a sucessão temporal tende, nas línguas do mundo, a ser iconicamente representada na estrutura linguística. Desse modo, a relação temporal fonte das mudanças tem papel singular não só para as transformações de significado, ao se combinar com outros elementos contextuais que habilitam sua reinterpretação como relação contrastiva, mas também para as transformações categoriais, na medida em que predispõe uma disposição morfossintática de agora e now que é altamente favorável ao desenvolvimento de funções juntivas. Os exemplos de (19) a (21) ilustram ocorrências de agora em contextos que veiculam o padrão polissêmico III, e os exemplos de (22) a (24), ocorrências de now representativas de tais contextos. (19) Como o imbú na varzea era o coração do guerreiro branco na terra selvagem. A amizade e o amor o acompanharão e sostiverão algum tempo; mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentiu-se em um ermo. (ROIR19:2, 44, C2) (20) A primeira operação do affedador he corcovar, ou’ bater o Canamo: isto se fazia primeiramente à mão e ainda se faz em alguns lugares; mas em Suffolk servem-se agora de hum moinho, que levanta dois, e algumas vezes três pezados maços, os quais cahem fobre o Canamo, que hum homem , ou rapaz conduz à roda para fer regularmente maçado. (MCMI18:2, 85, C2) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 185 (21) E no que toca aos indios naõ digo a Vossamerce nada, pois de tudo tem noticia que Veviam e[rasurado]morriam Como ereges e agora ja parecem emparte Christaos, e naõ digo mais porque Vossamerce como vezinho Sabera detudo melhor de que eu. (CAAI18:1, 74, C1) (22) At my first coming in, and finding her arms about him, tickling him it seems, I was half jealous, but now I see my folly. (PTCW17:2, 165) Na primeira vez que eu entrei e encontrei os braços dela sobre ele, fazendo cócegas nele parece, eu fiquei com um pouco de ciúmes, mas agora eu vejo minha estupidez. (23) When I was working full time even with my child at home just the frustration of getting home I was so stressed with work and now being part time I’m so much more relaxed. (CEBC20:2/21, 304) Quando eu estava trabalhando período integral mesmo com meu filho em casa só a frustração de chegar em casa eu ficava tão estressado com o trabalho e agora sendo meio período eu estou tão mais relaxado. (24) James Hargrave. I am the landlord of the Crown at Kitts Inn. I have known Mr. White about a year and three quarters. He did live next door to me: he lives now in our parish, the parish of South Mims. (PROB18:2,25) James Hargrave. Eu sou o proprietário do Crown em Kitts Inn. Eu conheço o senhor White há mais ou menos um ano e nove meses. Ele realmente morava na casa vizinha: ele mora agora em nossa paróquia, a paróquia de South Mims. Os exemplos mostram que diferentes mecanismos de junção podem atuar nos contextos associados ao padrão em análise. Além de mas e e, no português, e de but e and, no inglês, outros juntores aparecem nos dados, tais como porém, entretanto, whereas e however. Entendo que os contextos que exibem juntores contrastivos explicitando a relação coordenativa são os contextos do padrão polissêmico III que mais favorecem a assimilação, por agora e now, do significado de contraste, visto que, ao estar presente na construção uma marca explícita de oposição semântica, esse significado não é apenas pragmático, mas está de fato codificado no contexto. Os exemplos (19), (20) e (22) 186 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 são representativos. Em (19) e (22), soma-se à presença de um juntor contrastivo a contiguidade de agora e now a esse juntor, o que se mostra uma condição ainda mais favorável à associação com o significado alvo, pois a proximidade morfossintática levaria a uma proximidade conceitual, no sentido de que tornaria mais evidente a afinidade semântica entre tempo e contraste. Nas construções em que a relação coordenativa é sinalizada por e, em português, ou por and, no inglês, tal como vemos em (21) e (23), e nas construções em que há coordenação por justaposição, como em (24), o valor de oposição semântica tem novamente estatuto pragmático e sua interpretação é altamente dependente do contexto. Nos contextos em que juntores contrastivos explicitam a relação de coordenação, a relação de sequencialidade temporal que agora e now ajudam a veicular ainda é significado saliente na construção, pois a relação contrastiva que o juntor explicita não se restringe apenas aos EsCos, mas é também pautada nos intervalos de tempo em que cada EsCo se desenvolve. Isso porque o contraste se instaura, nesses casos, a partir da comparação entre EsCos em diferentes tempos. A relação temporal, portanto, ainda é um dos pilares da relação contrastiva. Em (19), ambas as orações em coordenação descrevem o modo como um personagem se sentia durante algum tempo, no passado, e como se sente agora, no momento presente. As circunstâncias temporais são essenciais para que a relação contrastiva seja plausível, na medida em que, no contexto, a oposição entre estados afetivos encontra justificativa em diferenças entre as circunstâncias de cada momento: no momento anterior, o indivíduo desfrutava da companhia de familiares, ao passo que, no momento posterior, as circunstâncias são diferentes, caracterizando-se pela ausência da família. Em (20), ambas as orações tratam do método utilizado para a fragmentação do cânhamo, cada uma descrevendo o método aplicado em determinado intervalo de tempo. A oposição entre realizar o processo manualmente e através de um moinho está entrelaçada com a oposição entre tempos. Em (22), por sua vez, está em jogo o comportamento do locutor em relação a uma mesma situação, mas em diferentes períodos de tempo, de modo que a oposição temporal é fundamental para a legitimidade do contraste entre os EsCos. Os exemplos mostram, assim, que, nos contextos em análise, apesar de já existirem juntores contrastivos tornando explícito o significado alvo, agora e now ainda têm papel importante para sua expressão, por estarem Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 187 entre os elementos contextuais que fomentam a relação sequencial, que, por sua vez, é um dos componentes da relação contrastiva. Em (21) e (23), construções em que a relação coordenativa está sinalizada pelos juntores e (português) e and (inglês), a interpretação de contraste é mais dependente do contexto pelo fato de que tais juntores não têm semântica contrastiva, sendo juntores multifuncionais que, a depender de traços contextuais, são habilitados à expressão de contraste. Em (21), a chave para a leitura contrastiva, a partir da relação temporal, está nos nomes hereges e cristãos, que, sobretudo no contexto religioso, são concebidos como instâncias de oposição. Considerando os objetivos de catequização dos índios, é provável que entrem na constituição do contraste atitudes avaliativas em relação à mudança de hereges para cristãos, que pode ser compreendida como uma espécie de progresso. Em (23), observa-se um contexto, muito produtivo nos dados, em que o intervalo de tempo anterior é codificado por uma oração com valor adverbial (when I was working full time). As inferências de oposição podem ser evocadas sobretudo a partir dos termos stressed e relaxed, que, atuando como enunciadores lexicais, veiculam significados socialmente concebidos como contrastivos. Verifica-se, nesse exemplo, paralelismo semântico e morfossintático, traço dos contextos polissêmicos que se mostrou frequente nos dados, em todos os padrões de polissemia. Diversos estudos mostram a presença de paralelismos como um traço contextual favorável à emergência de contraste por oposição semântica (cf., por exemplo, LONGHIN, 2016; LONGHIN; SONCIN, 2018; MAURI; RAMAT, 2012), já que essa nuança se baseia em pares de opostos semânticos que tendem a ser dispostos de maneira paralela em cada oração (LAKOFF, 1971). No exemplo, os paralelismos estão na presença de orações semanticamente equivalentes no início de ambos os segmentos coordenados (when I was working full time e being part time) e na constituição das orações nucleares de cada segmento, que contêm o mesmo sujeito (I), o mesmo verbo (be, com diferentes flexões em cada segmento para a codificação da sequencialidade) e sintagmas adjetivais similares, que se iniciam pelo mesmo advérbio intensificador (so) e que têm como núcleo nomes pertencentes ao mesmo campo semântico (stressed e relaxed). Na construção em (24), em que a coordenação se estabelece por justaposição e, portanto, o contraste é altamente pragmático, o paralelismo é traço fundamental no contexto para a emergência de inferências de 188 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 oposição. Ambas as orações justapostas exibem o mesmo sujeito (he), a mesma forma verbal (live, com diferentes flexões contribuindo para marcação de tempo sequencial) e complementos circunstanciais de significado locativo, que se configuram nos principais elementos do contexto que evocam inferências do significado alvo (next door to me X in our parish). Em um último tipo de contexto polissêmico encontrado nos dados, que configura o padrão polissêmico IV, identifica-se, como já mencionado, o maior conjunto de condições semântico-pragmáticas e morfossintáticas para o desenvolvimento de agora e now como juntores contrastivos, na medida em que há uma condição ainda mais propícia à reanálise categorial: agora e now encabeçam o segundo membro da relação coordenativa e, portanto, ocupam a posição típica de juntor. Do ponto de vista do significado, as inferências de contraste emergem, assim como nos padrões anteriores, da conjugação de uma relação de sequencialidade temporal com outros traços contextuais que levam à interpretação de opostos semânticos, instaurando-se polissemia entre tempo e contraste em uma construção coordenada. De (25) a (28), observam-se exemplos representativos. (25) Noutro tempo ninguém se retirava dos amigos, sem que dissesse adeus. agora é moda sairmos dos congressos em segredo. (POCC18:2, 44, C2) (26) Os teus ataques me honram muito. O senhor Torteroli tambem não te vê. Quando elle corrigia os teus escriptos era bom. agora o despresou, é bandalho. Ladra rafeiro, que nenhum homem de bem te ouve. (CAPP19:2, 148, C2) (27) Gonzallo. I remember You did supplant your Brother. Prospero. True: And looke how well my Garments sit vpon me, Much feater then before: My Brothers seruant’s Were then my fellowes, now they are my men. (PTTT17:1, 228) Gonzallo. Eu lembro que você realmente suplantou seu irmão. Prospero. Verdade: E olhe como minhas roupas ficam bem em mim, muito melhores do que antes: Os servos de meu irmão eram meus companheiros, agora eles são meus homens. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 189 (28) Corrig Myles, you have come down in the world lately; a year ago you were a thriving horse-dealer, now you are a lazy, ragged fellow. (PTCB19:2, 129) Corrig Myles, você decaiu no mundo ultimamente; um ano atrás você era um próspero comerciante de cavalos, agora você é um sujeito preguiçoso, maltrapilho. Em (25), as orações relacionadas focalizam comportamentos a partir de um mesmo viés: a maneira de se retirar de encontros com amigos. Esse é o integrador comum (LANG, 2000) que subjaz a relação de coordenação em foco. O que está em oposição são tanto comportamentos quanto intervalos temporais. As inferências de oposição semântica, nessa construção, são fortemente baseadas no contexto pragmático, referente às práticas sociais. É importante observar a contribuição dos paralelismos presentes na construção para a interpretação contrastiva. Ambas as orações se iniciam com expressões adverbiais que abrem o quadro temporal em que cada comportamento é observado (noutro tempo/agora). Embora as formas verbais não sejam as mesmas, seus significados pertencem ao mesmo campo semântico e têm como argumento sintagmas que fazem referência a encontros entre pessoas (dos amigos/dos congressos). Ambas contêm, ainda, expressões adverbiais que exprimem o modo de se retirar dos eventos (sem que dissesse adeus/em segredo). Em (26), os paralelismos têm novamente papel relevante. São colocadas em oposição atitudes avaliativas de um indivíduo em diferentes intervalos de tempo. As orações que iniciam cada segmento coordenado têm valor temporal e apresentam circunstâncias que justificam cada avaliação. Em cada segmento, segue as circunstâncias temporais a atitude avaliativa do indivíduo em pauta. A correspondência entre as formas verbais é mais um aspecto de paralelismo, e os nomes bom e bandalho evocam pontos de vista, configurando-se, assim, em enunciadores lexicais (DUCROT, 2009). Entram em jogo não apenas as avaliações do indivíduo que está sendo referido pelo locutor, mas também atitudes avaliativas do próprio locutor, que faz um julgamento negativo da mudança de opiniões descrita. (27) e (28) são construções que habilitam oposições similares, visto que, em ambas, são colocados em contraste estatutos sociais que se modificam de um momento anterior para um momento posterior. Em (27), 190 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 a oposição estabelecida entre fellows e men não indica apenas a mudança da relação social entre os homens em questão e o locutor (de amigos do locutor a seus servos), mas sobretudo a mudança de estatuto social do próprio locutor. A construção exibe paralelismo entre os enunciados em coordenação: os sujeitos são correferenciais, ambos os segmentos apresentam o verbo be (sendo suas diferentes flexões em cada segmento, were X are, fator importante para a relação sequencial) e os predicativos do sujeito são introduzidos por my. Os únicos aspectos de distinção entre os dois segmentos residem justamente nos circunstanciais de tempo (then X now) e nos nomes que caracterizam my brother’s servants (fellowes X men). Em (28), a oposição no tempo (a year ago X now) também se alia à oposição entre estatutos sociais (horse-dealer X lazy, ragged fellow), havendo correspondência entre os sujeitos das orações (you) e a forma verbal (be). Nos exemplos (25), (27) e (28), é possível observar que a exclusão de agora e now implicaria em um comprometimento da relação entre as orações, o que parece representar evidência do papel juntivo dos itens em tais contextos, somado a seu papel adverbial primitivo. Nesta seção, foram descritos os contextos que disparam polissemia entre tempo e contraste e que são, portanto, substanciais para o desenvolvimento de agora e now como juntores contrastivos. Verificase que, a partir dos contextos correspondentes ao padrão polissêmico II, agora e now participam de construções que habilitam a interpretação de dois pares de opostos semânticos, um concernente a intervalos temporais, que abrangem sempre um tempo anterior e um tempo posterior, e outro concernente a EsCos, que se associam aos dois intervalos temporais em jogo e se tornam, na construção, instâncias de oposição, via elementos do contexto linguístico e do contexto pragmático. Agora e now contribuem para o preenchimento de um dos pares da oposição, aquele referente aos intervalos temporais, indiciando sempre o momento posterior da relação sequencial. Apesar dessa característica comum a todos os tipos de contextos polissêmicos, foi possível identificar diferentes padrões do significado temporal-contrastivo, a partir da maior ou menor proximidade dos diferentes tipos em relação aos contextos alvo prototípicos. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 191 4.3 os contextos contrastivos com agora e now Nas construções de contraste prototípicas, os significados temporais de agora e now são bloqueados pelo arranjo contextual, e apenas uma interpretação em termos de contraste está disponível. Como é típico das manobras contrastivas, segundo Schwenter (1999) e Mauri (2008a), essas construções envolvem uma comparação, que evidencia a forte presença da perspectiva do falante/escrevente na formulação de relações contrastivas. Conforme Mauri (2008a, p. 160), essas relações se caracterizam pela combinação de dois EsCos coexistentes com foco em suas propriedades conflitantes, de modo a compará-los pelo viés de suas diferenças. Schwenter (1999, p. 126) concebe contraste como uma noção não estritamente linguística, mas como uma habilidade cognitiva mais geral que alimenta a percepção de diferença entre duas entidades que são comparáveis em alguma dimensão. A comparação subjacente às relações contrastivas está entrelaçada com outra característica que também é típica das construções de contraste com agora e now e que fornece pistas acerca de seu modo de composição. Comparações implicam a análise de dois ou mais elementos à luz de um parâmetro comum, a partir do qual semelhanças ou diferenças entre eles são destacadas. Lang (1984, 2000) argumenta que orações coordenadas em geral, o que inclui orações em coordenação contrastiva, compartilham um integrador comum, que pode ser entendido como o elo de sentido existente entre as duas orações (cf. seção 2). É à luz desse integrador que, nas construções contrastivas com agora e now, assim como nas construções contrastivas prototípicas, uma comparação entre EsCos se estabelece. A nuança contrastiva tradicionalmente conhecida como oposição semântica, conforme Lakoff (1971) e Mauri (2008a), é habilitada pela percepção de alguma incompatibilidade entre os enunciados em relação, indiciada por expressões que, na construção, ganham o estatuto de antônimos semânticos. Lang (2000) apresenta questionamentos à abordagem consensual do contraste por oposição semântica, particularmente no que diz respeito à concepção de que se trata de um contraste fundamentalmente baseado em predicados constituídos de opostos semânticos. O autor postula10 que predicados antônimos não 10 Lang (2000) elabora os pressupostos para compreensão de contraste a partir da análise das construções contrastivas com aber e com but, do alemão e do inglês, respectivamente, correspondentes em português ao juntor mas. 192 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 são tão decisivos, como em geral se admite, para esse tipo de contraste e argumenta que o fator principal que o sustenta é uma suposição que está explícita em contexto prévio ou que pode ser inferida a partir dele. À maneira de Lang, entendo que a formulação de oposição semântica está ancorada em suposições derivadas da percepção e avaliação subjetiva dos falantes/escreventes, que concebem relações de oposição, não préexistentes no mundo real. Os exemplos (29) e (30) ilustram, respectivamente, as construções de contraste com agora e as construções de contraste com now que veiculam oposição semântica. (29) Doc.: [mas] estragô(u) muito as motos? Inf.: as duas motos ficô(u) qua::se em oitocentos reais a minha e a dele mas a dele do que a minha... que a dele... estragô(u) bem mais a minha só foi a parte da frente que teve que alinhá::(r)... um espelho que teve que trocá::(r)... num foi quase nada só alinhamento e::... uns negocinho da roda... agora a dele estragô(u) bastante. (TFII20-2/21, 410, C2) (30) S2: You used to get all these reprint requests, they’ve all disappeared because of email and the rest of it? S1: Most people xerox stuff, now I get stuff from overseas. L2: Você costumava atender a todos os pedidos de reimpressão, eles todos desapareceram por conta do email e de tudo o mais? L1: A maioria das pessoas tira cópia dos materiais, agora eu os trago do exterior. (UNMI20:2/21) Em (29), o parâmetro comum da comparação reside em danos causados em veículos envolvidos em um acidente. Esse é, portanto, o integrador comum compartilhado pelas orações em relação, o elo de sentido que legitima a junção. Sob o viés desse integrador comum, configuram-se, a partir da avaliação subjetiva do locutor, dois pares de opostos: a minha X a dele/poucos danos X muitos estragos. Em (30), o integrador comum que é base para a comparação que alimenta o contraste está em maneiras de se obter determinado material de trabalho. Novamente estão em jogo dois pares de opostos: most people X I e xerox stuff X get stuff from overseas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 193 A constatação de um integrador comum a partir do qual uma comparação se consolida, com foco em propriedades conflitantes, é indício de que, em termos das relações de significado, as construções de contraste com agora e now se aproximam das construções coordenadas. Do ponto de vista da morfossintaxe, essas construções também exibem características que as aproximam da arquitetura estrutural típica de construções coordenadas. Como se observa em (29) e (30), agora e now mobilizam em tais construções uma estrutura binária, na qual encabeçam o segundo membro da coordenação. Nesse sentido, tanto em termos de forma quanto em termos de significado, as novas construções de contraste com agora e now parecem estar caminhando em direção a um modo coordenativo de composição, que investigo em outro trabalho. 5 Estágios de mudança à luz dos contextos condicionadores A seção 4.2 mostrou a diversidade de contextos polissêmicos encontrada nos dados e discutiu a maior ou menor proximidade dos diferentes contextos em relação aos contextos alvo prototípicos. Proponho que os diferentes arranjos contextuais identificados refletem diferentes estágios de mudança e que aqueles mais próximos dos contextos alvo correspondem a estágios evolutivos mais avançados. Foi também mostrado que os contextos polissêmicos se desdobram em contextos que fornecem condições apenas para as mudanças de significado e contextos que somam condições morfossintáticas às condições de significado, em conformidade com o modelo de contextos proposto por Diewald (2002). Tendo em vista essa distinção e todos os contextos envolvidos nos percursos de mudança atravessados por agora e por now, apresento, no Quadro 3, abaixo, uma proposta de reconstrução diacrônica para tais percursos, à luz da correlação entre contextos e estágios evolutivos e dos tipos contextuais sugeridos pelo modelo da autora. 194 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 QUADRO 3 – Estágios evolutivos das mudanças atravessadas por agora e now Tipo contextual Contextos originais Estágio Características Exemplo Agora e now atuam como advérbios circunstanciais que expressam relações temporais entre EsCos e o momento da enunciação, podendo ocupar diferentes posições sentenciais. Essa fortuna devo estimar para o melhor acerto da nossa correspondência; e, porque agora falamos de amor, escuta, Filena, a frase das melhores expressões. (18:1) _________ His wife interested me somewhat: in face and in character she reminded me of one who now lies beneath the ground. (19:1) Estágio I Contextos untypical Estágio II O contexto maior de que agora e now fazem parte habilita inferências sutis de desigualdade entre um EsCo que ocorre no momento referido pelos itens e um EsCo ocorrido em momento anterior. Apenas um dos EsCos está localmente codificado. Maldito de todos os diabos, agora estás mudo? Dize-lhe alguma cousa, com que se desenfade e se alegre. (18:1) O contexto dispara inferências de contraste entre dois EsCos explícitos na construção linguística de que agora e now fazem parte. Configura-se uma relação de sequencialidade temporal entre os dois EsCos, e elementos do contexto (tais como enunciadores lexicais) indiciam oposição entre eles. Esta jovem cheia de encantos, que a pouco vos atrahia pela sua modestia, por suas maneiras doces, mas, graves, e reportadas, por certo acanhamento pudibundo, e por isso mais gracioso, agora a vereis desgranhada, como huma Bachante, destemida como huma furia (...). (19:1) I’m now a Lady indeed. A fine House, fine Cloaths, and Servants to command. And this Sir John is the finest, handsomest Gentleman. (18:1) And Dolabella, who was once his friend, Upon some private grudge, now seeks his ruin. (17:2) 195 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 Estágio III A polissemia entre tempo e contraste se manifesta através de uma relação coordenativa entre as orações que expressam os EsCos em relação sequencial, de modo que há ganhos semântico-pragmáticos, pois agora e now ajudam a constituir uma relação de oposição baseada em um integrador comum, e ganhos morfossintáticos, uma vez que participam de uma estrutura binária e paratática, ocupando nessa estrutura o segundo membro da coordenação, que é justamente o mais decisivo nas manobras contrastivas. Noutro tempo ninguém se retirava dos amigos, sem que dissesse adeus. agora é moda sairmos dos congressos em segredo. (18:2) Estágio IV O contexto, assim como o anterior, apresenta o significado temporalcontrastivo expresso em construção coordenada, mas há aqui uma condição singular para as mudanças: agora e now não só integram o segundo membro coordenado, mas também o encabeçam, ocupando a posição típica de juntores. Trata-se, portanto, do contexto mais favorável à reanálise semântico-categorial. Passam a existir contextos que bloqueiam a leitura temporal e são compatíveis apenas com o novo significado (oposição semântica). Esses contextos coexistem com os contextos originais, de modo que se configuram restrições contextuais específicas para significado fonte e para significado alvo. Agora como na época do inverno a gente consegue, vamos assim dizer, que a orquídea pegue, agora a flor, muito raro, é muito difícil, inclusive pela doença e pela formiga também. Contextos critical Contextos isolating Estágio V A amizade e o amor o acompanharão e sostiverão algum tempo; mas agora longe de sua casa e de seus irmãos, sentiu-se em um ermo. (19:2) When I was working full time even with my child at home just the frustration of getting home I was so stressed with work and now being part time I’m so much more relaxed. (20:2/21) My Brothers seruant’s Were then my fellowes, now they are my men. (17:1) Most people xerox stuff, now I get stuff from overseas. Como discutido, a identificação de quatro tipos de contextos polissêmicos, conforme expostos em 4.2, sugere que desempenham diferentes papeis nas mudanças de agora e de now, a depender de suas propriedades de forma e de significado. Considerando a questão maior 196 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 deste trabalho, que está em reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia no processo de constituição de novos juntores contrastivos, foi apurada a frequência longitudinal dos contextos de polissemia correspondentes aos estágios II, III e IV, conforme o Quadro 3, que são aqueles que contêm dois EsCos, explícitos na construção, em relação de sequencialidade, com elementos que disparam inferências de oposição entre eles. Vimos que há uma gradualidade entre tais contextos em termos de maior peso para as mudanças, do ponto de vista qualitativo. A apuração de sua frequência longitudinal buscou analisar se também é possível identificar aqueles que teriam maior peso nas trajetórias do ponto de vista quantitativo, no sentido de que, sendo mais frequentes ao longo do tempo, teriam sido mais favoráveis à associação de agora e now com o novo significado. A Tabela 5 e a Tabela 6 apresentam, respectivamente, a frequência dos contextos correspondentes aos estágios II, III e IV na trajetória de agora e a frequência de tais contextos na trajetória de now. TABELA 5 – Frequência longitudinal dos estágios contextuais favoráveis à emergência das construções de contraste com agora XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/XXI Estágio II 10/17 (58,8%) 11/37 (29,7%) 7/15 (46,7%) 11/24 (45,8%) 08/44 (18,2%) 10/48 (20,8%) Estágio III 5/17 (29,4%) 09/37 (24,3%) 3/15 (20%) 6/24 (25%) 20/44 (45,4%) 14/48 (29,2%) Estágio IV 2/17 (11,8%) 17/37 (46%) 5/15 (33,3%) 7/24 (29,2%) 16/44 (36,4%) 24/48 (50%) TABELA 6 – Frequência longitudinal dos estágios contextuais favoráveis à emergência das construções de contraste com now XVII-1 XVII-2 XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/ XXI Estágio II 2/16 (12,5%) 4/24 (16,7%) 3/10 (30%) 3/12 (25%) 6/20 (30%) 1/12 (8,3%) 1/9 (11,1%) 5/22 (22,7%) Estágio III 11/16 (68,7%) 19/24 (79,2%) 5/10 (50%) 9/12 (75%) 10/20 (50%) 9/12 (75%) 7/9 (77,8%) 14/22 (63,7%) Estágio IV 3/16 (18,8%) 1/24 (4,1%) 2/10 (20%) 0/12 (0%) 4/20 (20%) 2/12 (16,7%) 1/9 (11,1%) 3/22 (13,6%) 197 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 Verifica-se nas tabelas que, em ambas as trajetórias, os três estágios contextuais em pauta estão presentes em todos os estados de língua analisados. Isso revela que a gradualidade atestada entre eles não é acompanhada por uma progressão temporal, isto é, não há correspondência entre estágios contextuais polissêmicos e intervalos de tempo particulares. No percurso de agora, é notável um aumento importante dos contextos critical associados ao estágio IV (os que reúnem maior conjunto de condições para as mudanças) de XVIII-1 para XVIII-2. A partir de XVIII-2, entretanto, a frequência de tais contextos é bastante variável. São também variáveis as frequências dos contextos associados aos estágios II e III, nessa trajetória. Já no percurso de now, apesar de também haver alta variabilidade nas frequências dos três estágios contextuais, é possível observar uma regularidade: em todas as sincronias, o tipo contextual mais frequente é aquele associado ao estágio III, que já apresenta a polissemia tempo/contraste expressa a partir de relações coordenativas. Levando-se em consideração que os padrões polissêmicos III e IV são similares, já que ambos se caracterizam por agora e now participando de construções coordenadas que veiculam tempo/contraste, distinguindose apenas pela posição inicial de agora e now no padrão IV, delineia-se uma via de análise que permite propor hipóteses explicativas sobre o papel dos contextos na emergência de construções de junção contrastiva com agora e now. Agregando as frequências dos contextos correspondentes aos estágios III e IV, conforme as Tabelas 7 e 8, abaixo, constata-se um importante fato de mudança: os contextos critical (estágios III e IV) são mais frequentes do que os contextos untypical (estágio II) ao longo do tempo em ambos os percursos de mudança. TABELA 7 – Frequência dos contextos untypical e critical na trajetória de agora XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/ XXI Untypical (estágio II) 10/17 (58,8%) 11/37 (29,7%) 7/15 (46,7%) 11/24 (45,8%) 10/44 (22,7%) 11/48 (22,9%) Critical (estágios III e IV) 7/17 (41,2%) 26/37 (70,3%) 8/15 (53,3%) 13/24 (54,2%) 34/44 (77,3%) 37/48 (77,1%) 198 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 TABELA 8 – Frequência dos contextos untypical e critical na trajetória de now XVII-1 XVII-2 XVIII-1 XVIII-2 XIX-1 XIX-2 XX-1 XX-2/ XXI Untypical (estágio II) 2/16 4/24 (12,5%) (16,7%) 3/10 (30%) 3/12 (25%) 6/20 (30%) 1/12 (8,3%) 1/9 5/22 (11,1%) (22,7%) Critical (estágios III e IV) 14/16 20/24 (87,5%) (83,3%) 7/10 (70%) 9/12 (75%) 14/20 (70%) 11/12 8/9 17/22 (91,7%) (88,9%) (77,3%) Como mostram as tabelas, na trajetória de agora, apenas no primeiro estado de língua analisado os contextos untypical têm frequência maior do que os contextos critical. Já na trajetória de now, em todos os estados de língua, os contextos critical têm frequência consideravelmente maior. Diante disso, entendo que os percursos de mudança experimentados por agora e now mostram uma via diferente para a generalização das inferências do novo significado. Conforme sinalizado na seção 4, estudos empíricos verificam que um aumento dos contextos polissêmicos em geral tende a estar associado à generalização de inferências e propagação do novo significado na comunidade linguística. Nas mudanças de agora e now, conforme vimos nas Tabelas 3 e 4 e nos Gráficos 1 e 2, não se observam picos significativos dos contextos polissêmicos em geral, de modo que parece ter maior peso, nessas instâncias, a constância da polissemia ao longo do tempo. Para além disso, o desdobramento dos contextos de polissemia encontrados nos dados em diferentes tipos de padrões polissêmicos, aliado à análise da frequência longitudinal dos tipos mais relevantes para as mudanças (II, III e IV), sugere que, nos processos aqui investigados, têm maior peso, tanto de um ponto de vista qualitativo quanto quantitativo, os contextos que aliam fatores semânticopragmáticos favoráveis às mudanças a fatores morfossintáticos. As evidências mostradas pelos dados, portanto, vão ao encontro da hipótese formulada por Traugott (2012) de que, em processos de gramaticalização, têm maior relevância contextos que agregam condições pragmáticas, semânticas e estruturais. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 199 Considerações Finais À luz da análise das mudanças experimentadas pelas construções com agora e pelas construções com now, é relevante retomar as questões de pesquisa que nortearam o trabalho. A questão maior esteve em reunir evidências do papel dos contextos e da polissemia no processo de constituição de novos juntores contrastivos. As mudanças atravessadas por agora e now, conforme o que mostram os dados investigados, ao corroborarem Traugott (2012), sugerem um papel singular dos contextos de polissemia no processo de constituição de novos juntores contrastivos: se esse processo envolve gramaticalização, é mais provável que tenham maior peso, qualitativa e quantitativamente, os contextos que fornecem tanto condições para a emergência de inferências de contraste quanto condições para a reanálise categorial do item em mudança como juntor. No âmbito dessa questão maior, três questões mais específicas foram perseguidas ao longo do trabalho (cf. seção 1). Para a questão (1), que buscou respostas para como os contextos favoreceram o desenvolvimento de construções de contraste similares no português e no inglês, a análise mostrou que, em ambas as línguas, atuaram tipos contextuais similares e que, dentre eles, em ambas as trajetórias tiveram maior peso, tanto qualitativa quanto quantitativamente, contextos que não apenas disparam inferências de oposição semântica, mas que também favorecem a reorganização morfossintática de toda a construção de que agora e now participam em uma construção coordenada e a reanálise de agora e now como juntores contrastivos. Para a questão (2), que buscou reconhecer aspectos de singularidade do significado fonte que teriam sido decisivos para a emergência, particularmente, da nuança de oposição semântica, os dados mostraram que se alia a outros traços contextuais e alimenta inferências de oposição a nuança de sequencialidade temporal, em ambos os percursos de mudança. A relação sequencial entre EsCos instaura uma oposição entre tempos, que é acompanhada pela oposição entre os EsCos. Isso pode contribuir para maior compreensão das similaridades entre arranjos contextuais que levaram a trajetórias de mudança similares. Traugott e Dasher (2002, p. 17) postulam que, se línguas diferentes compartilham estruturas conceituais similares,11 inferências convidadas Os autores definem estruturas conceituais como estruturas de significado altamente abstratas e relativamente estáveis na espécie humana (tais como MOVIMENTO, LUGAR, TEMPO, CONDIÇÃO) (TRAUGOTT; DASHER, 2002, p. 7). 11 200 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 similares podem surgir. Nesse sentido, proponho que o fato de tanto agora como now estarem com frequência, em suas respectivas línguas, associados a estruturas conceituais de tempo similares (conforme a seção 4, que mostrou que ambos são amplamente utilizados em relações de sequencialidade temporal, sempre fazendo referência a um momento posterior) contribui para a configuração de contextos similares, que são gatilho para inferências convidadas de oposição semântica e, consequentemente, para a associação de ambos a essa nuança contrastiva. Dessa forma, o significado temporal que alimentou as mudanças também ajuda a compreender, no âmbito da questão (1), a contribuição dos contextos para a emergência de construções de contraste similares. Por fim, para a questão (3), o trabalho mostrou que estágios evolutivos similares se delineiam a partir dos contextos atuantes em cada trajetória e que, em ambos os percursos, todos os estágios de polissemia estão presentes em todos os estados de língua analisados, não havendo correlação entre estágios contextuais e intervalos de tempo particulares. Em ambas as histórias de mudança, foram atestados cinco estágios evolutivos, distribuídos em contextos untypical, critical e isolating, em conformidade com o modelo de contextos proposto por Diewald (2002). Nessa perspectiva, o trabalho aponta para um outro papel da frequência de uso na mudança e, por consequência, para uma outra via de generalização do novo significado. Para além do aumento expressivo da frequência dos contextos polissêmicos em geral, há também evidências, nas instâncias que foram investigadas, do favorecimento da generalização a partir da constância, ao longo de vários estados de língua, de tipos polissêmicos específicos, aqueles que condicionariam a gramaticalização propriamente dita. referências BYBEE, J. Language, Usage and Cognition. New York: Cambridge University Press, 2010. Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9780511750526 BYBEE, J. Language Change. Cambridge: Cambridge University Press, 2015. CULICOVER, P.; JACKENDOFF, R. Semantic Subordination Despite Syntactic Coordination. Linguistic Inquiry, [S.l.], v. 28, n. 2, p. 195-217, 1997. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 159-203, 2020 201 DIEWALD, G. A Model for Relevant Types of Contexts in Grammaticalization. In: WISCHER, I. (ed.). New Reflections on Grammaticalization. Philadelphia: John Benjamins, 2002. Doi: https:// doi.org/10.1075/tsl.49.09die DUCROT, O. 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Este artigo objetiva o estudo da microestrutura de verbetes de especialidade em dicionários de Linguística e a proposta de um paradigma definicional para os termos linguagem e Linguística Descritiva. Para tanto, definimos o que são as microestruturas conforme as normas da ISO 1087 e as contribuições de Rey-Debove (1971), de Hartmann e James (2002), de Béjoint (2010) e outros. Abordamos as definições de outside matter, middle matter e back matter. Em seguida, exploramos os paradigmas informacional, definicional e pragmático, sem deixar de considerar o paradigma de formas equivalentes para dicionários bilíngues. A seguir, baseamo-nos nas normas ISO 1087 e na teoria de Barbosa (1995, 2001) para definir o que é um dicionário, um vocabulário e um glossário. Depois, fizemos um breve estudo comparativo entre alguns dicionários de especialidade pertencentes à área da Linguística. Nessas obras, fizemos a análise da microestrutura: dos enunciados lexicográficos e dos paradigmas definicionais, focando nos verbetes linguagem e fraseologismos do termo signo, e diferenciamos o que é a microestrutura de um dicionário e a de um glossário. Finalmente, após a exposição dos conceitos e análise das obras, propusemos padrões de microestrutura e definitórios, em diferentes áreas da Linguística, cujo público-alvo seria o alunado leigo dos Cursos de Letras. Palavras-chave: terminologia; terminografia; dicionários de especialidade; macroestrutura; microestrutura. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.205-234 206 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 abstract: Lexicology, Lexicography, Terminology and Terminology, all sub-areas of Linguistics, encompass theoretical studies and the making of dictionaries, vocabularies and glossaries. This article aims to study the microstructure of specialized entries in dictionaries of Linguistics and the proposal of a definitional paradigm for the term language and sign phraseologies. To that end, we defined the microstructures according to ISO 1087 norms and the contributions of Béjoint (2010), Rey-Debove (1971), Hartmann and James (2002) and others. We approach the definitions of outside matter, middle matter and back matter. Next, we explore the informational, definitional and pragmatic paradigms, while considering the paradigm of equivalent forms for bilingual dictionaries. Then, we rely on ISO 1087 and Barbosa’s theory (1995, 2001) to define what a dictionary, a vocabulary and a glossary is. Afterward, we carried out a brief comparative study among some specialty dictionaries in the area of Linguistics. In these works, we analyzed the microstructure: lexicographic statements and definitional paradigms, focusing on the entries language and sign phraseologies, and we distinguished what the microstructure of a dictionary and a glossary is. Finally, after the exposition of the concepts and analysis of the works, we proposed a microstructure and a definition standard for the entries language and descriptive linguistics, in the area of Historical Linguistics, whose target audience would be the freshmen from Language and Literature courses. Keywords: terminology; terminography; specialized dictionaries; microstructure. Recebido em 26 de abril de 2019 Aceito em 30 de outubro de 2019 1. Introdução O objetivo deste artigo foi estudar a microestrutura de verbetes na área de Linguística em alguns dicionários/glossários de especialidade e propor uma microestrutura e um paradigma definicional para uma obra terminográfica na área da Linguística. O interesse pelo tema surgiu a partir da seguinte pergunta: podemos distinguir um glossário (ou vocabulário, dependendo da linha teórica adotada1) de um dicionário a partir da microestrutura de seus verbetes? Encontramos algumas problemáticas quando verificamos verbetes de dicionários/glossários: a microestrutura de ambos não se diferencia de obra para obra; a microestrutura varia dentro de uma mesma obra lexicográfica e/ou terminográfica. Será que só a macroestrutura, 1 Como a divisão tripartite adotada por Barbosa (1995): dicionário, vocabulário e glossário. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 207 com a quantidade e os tipos de verbetes selecionados, poderia nos indicar uma diferença entre um e outro? Nossos objetivos são, primeiramente, analisar como são arquitetadas as macroestruturas dessas obras a partir da proposta de Hartmann e James (2002). Em segundo lugar, definir o que são as microestruturas de obras lexicográficas e terminográficas e, através de um estudo comparativo entre alguns dicionários de especialidade e glossários na área de Linguística, achar, se possível, o que é específico numa microestrutura de dicionário e o que é específico numa microestrutura de glossário. A fim de embasar nossa proposta, descreveremos as definições da macro e da microestrutura baseados das seguintes fontes: (i) ISO 1087, (ii) Rey-Debove (1971), (iii) Hartmann e James (2002) e (iv) Béjoint (2010). Ademais, tratamos dos tipos de padrões de definição segundo Bevilacqua e Finatto (2006). O corpus de análise selecionado enfoca quatro dicionários na área de Letras, pertencentes à área de Linguística: (i) (ii) (iii) (iv) o Dicionário de Linguística e gramática, de Mattoso Camara Jr. (1986); o Dicionário de Linguística e Fonética, de Davis Crystal, tradução e adaptação de Maria Carmelita Pádua Dias (2000); o Dicionário de Linguística, de Dubois et al. (2004); e o Dicionário de Linguística da Enunciação, de Valdir do Nascimento Flores et al. (2009). Para analisar a microestrutura, decidimos trabalhar com dois verbetes, um substantivo comum em todos eles: linguagem e fraseologias envolvendo o termo signo. Acreditamos, por experiência na área, que essa classe gramatical, a dos substantivos, seja a mais comum, recorrente em obras terminográficas, dado registrado também pela literatura na área de Terminologia (SILVA, 2006). Analisamos fraseologias do termo signo considerando a afirmação de Aubert (2001, p. 66), a partir da qual entendemos que termos compostos por mais de uma unidade lexical são mais frequentes na terminologia que na Lexicografia.2 “Com efeito, diferentemente do que ocorre na descrição lexicográfica (vide Cap. I, item 2.2), em que a grande maioria dos verbetes é composta de unidades monovocabulares, as designações descritas pela terminologia abarcam, com extrema freqüência (não raro 2 208 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 2. Dicionário, Vocabulário e glossário O primeiro passo foi a diferenciação dos conceitos relacionados aos trabalhos terminográficos. Dentre as obras que fazem parte do corpus, encontramos quatro títulos, todos denominados dicionários (aqui englobando os dicionários de especialidade nas áreas de Linguística, Fonética e Linguística da Enunciação). Adiante, discutiremos neste artigo as definições de (i) dicionário, (ii) vocabulário e (iii) glossário. Para tanto, apresentaremos dois modelos teóricos: um pertencente à norma ISO 1087 (AUBERT, 2001, p. 41) e o outro proposto por Barbosa (1995, 2001). A normal ISO 1087 define dicionário da seguinte forma: “6.2.1 dicionário: coleção estruturada de unidades lexicais com informações linguísticas acerca de cada item.” (tradução nossa).3 Já a definição de um dicionário terminológico (ou técnico) apresenta-se conforme exposto abaixo: “6.2.1.1 dicionário terminológico (termo admitido: dicionário técnico): Dicionário (6.2.1) no qual há dados terminológicos (6.1.5) de um ou mais campos científicos específicos (2.2).”4 As definições previamente expostas são distintas daquela para vocabulário: “6.2.1.1.1 vocabulário (termo admitido: glossário): dicionário terminológico (6.2.1.1) no qual há a terminologia (5.1) de uma área específica (2.2) ou de áreas de temas relacionados (2.2) e baseado em trabalho terminológico (8.2).”5 acima de 50% do inventário total), formas compostas de duas, três ou mais palavras” (AUBERT, 2001, p. 66). 3 6.2.1 dictionary: Structured collection of lexical units with linguistic information about each item ISO 1087, p.10 (essa e as duas próximas definições). 4 6.2.1.1 terminological dictionary (admitted term: technical dictionary): Dictionary (6.2.1) containing terminological data (6.1.5) from one or more specific subject fields (2.2). 5 “vocabulary (admitted term glossary): terminological dictionary (6.2.1.1) containing the terminology (5.1) of a specific field (2.2) or of related subject fields (2.2) and based on terminology work (8.2)” Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 209 De acordo com a NORMA ISO 1087, é possível observar uma objetividade na forma de definir dicionário. Contudo, ao definir o dicionário técnico ou terminológico e o vocabulário ou glossário, a norma não distingue os limites claramente. Observamos que o diferencial entre o dicionário técnico e o vocabulário é que este é concebido a partir de um processo terminológico. Diante do exposto, os questionamentos que permanecem são: para a concepção de um dicionário técnico também não se faz necessário um trabalho terminológico prévio? Em realidade, as obras glossário e vocabulário são distintas ou não (neste contexto concebidas como sinônimos6)? Tendo em vista essas dúvidas e os títulos dos dicionários analisados, resolvemos trabalhar com o modelo proposto por Barbosa (1995, 2001), o qual consideramos mais coerente.7 Barbosa (1995, 2001) enquadra as obras lexicográficas e terminográficas de acordo com os diferentes níveis de atualização da língua. As obras que lidam com o léxico manifestado nos lexemas, ao nível do sistema, são os dicionários. Aquelas cujo objeto são os conjuntos vocabulários (ou terminológicos), manifestados nos vocábulos ou termos, e abrangem o nível da norma são os vocabulários (técnico-científicos e especializados). Por fim, as obras que respondem pelo conjunto de itens provenientes de um texto específico, manifestados pelas palavras no nível da fala são os glossários. Essas informações estão melhor apresentadas no Quadro 1. Podemos esquematizar essas e outras informações apresentadas pela autora no Quadro 1: 6 Pelo menos na entrada em inglês da norma, o que parece não se repetir na versão em francês. 7 De um modo geral, a maioria dos autores não se preocupa em inserir seus trabalhos dentro de alguma concepção teórica de tipologia das obras lexicográficas ou terminográficas. Eles costumam classificar seus trabalhos como glossários ou dicionários especializados, mas não indicam o padrão que estão seguindo e nem porque os nomearam desta ou daquela maneira. 210 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 QUADRO 1 – Diferença entre obras que trabalham com o léxico Dicionário Nível do sistema Vocabulário Nível da norma glossário Nível da fala Engloba o léxico Engloba conjuntos pertencentes Engloba itens extraídos de um disponível de forma geral a uma área de especialidade texto específico Unidade: lexema (significado abrangente; frequência regular) Unidade: vocábulos/termos (significado restrito; alta frequência) Unidade: palavras (significado particular; aparição única) Apresenta todas (teoricamente) acepções de um mesmo verbete Apresenta todas as acepções de um verbete dentro de uma área de especialidade Apresenta uma única acepção do verbete (dentro de um contexto determinado) Fonte: sistematizado e adaptado a partir de Barbosa (FROMM, 2002). 3. Estruturas das obras e verbetes É importante sabermos igualmente como se constituem estruturalmente as obras lexicográficas e/ou terminográficas. De um modo geral, essa estrutura está dividida em duas grandes partes: a macro e a microestruturas. Expomos, a seguir, suas características. 3.1 a macroestrutura A macroestrutura representa a estruturação geral das obras lexicográficas ou terminográficas. Segundo Rey-Debove (1971, p. 21), esta macroestrutura também pode ser denominada “nomenclatura”. Já de acordo com a definição de Hartmann e James (2002), a macroestrutura de um dicionário é a estrutura generalizada de acesso a uma obra de consulta dicionarística. Isto implica em como as entradas são organizadas, geralmente na forma alfabética. Além dessa forma, os autores mencionam as entradas organizadas por campos semânticos, por dados cronológicos ou pela frequência. Hartmann e James (2002) trazem uma descrição mais detalhada para definir os componentes de uma macroestrutura. Ela seria constituída de três componentes: (i) outside matter (front matter), constituindo-se do prefácio, o guia do usuário, a página como dados bibliográficos, os Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 (ii) (iii) 211 agradecimentos e a dedicatória, a lista de colaboradores, a lista de abreviações e as ilustrações. Simplificando, poderíamos chamar este primeiro componente da introdução de um dicionário; middle matter, cuja composição seria de painéis, páginas ilustrativas, mapas, diagramas, esquemas, dados enciclopédicos, classificação de termos gramaticais, imagens e campos semânticos; e back matter, composta pela lista de nomes próprios, dados geográficos, classes militares, tabelas de pesos e medidas, abreviaturas, tabela de elementos químicos, fraseologias, notas musicais etc. Resumindo, a parte final de uma obra lexicográfica. À junção desses três componentes: a front/outside matter, a middle matter e a back matter, os autores dão o nome de megaestrutura. Para Béjoint (2010) a macroestrutura, também chamada de lista de palavras, representa “o grupo de entradas sistematizado em ordem específica, utilizado parcialmente para uma leitura vertical, quando da busca por informações específicas por parte dos consulentes”, equivalente ao termo inglês word-list. Essa estrutura corresponde ao conjunto de itens lexicais presentes na mente dos consulentes de forma virtual. Resumindo, podemos dizer que, no dicionário, a macroestrutura é composta pelo inventário lexical de uma língua determinada. Na próxima seção descrevemos a composição da microestrutura. 3.2 a microestrutura A microestrutura, para a norma ISO 1087, é a “organização de dados de cada entrada de um dicionário”.8 Ela disponibiliza dados sobre as entradas e é composta de um número específico de informações ou campos que podem ser alterados, de acordo com a tipologia do dicionário, trazendo dados como: pronúncia, etimologia, sinônimos, ortografia etc., ou seja, ao nos referimos à microestrutura, estamos considerando o verbete per se e os dados sobre ele (BÉJOINT, 2010, p. 13). De acordo com Andrade (2000), a microestrutura de um verbete seria composta, basicamente, por: artigo + enunciado lexicográfico. A composição desse enunciado se dá em quatro possíveis níveis: “6.2.2 Microstructure: Organization of data in each entry (6.2.2.2) of a dictionary (6.2.1)”. (ISO 1087). 8 212 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 • • • • Paradigma Informacional (PI): englobando abreviaturas, categoria gramatical, gênero, número, pronúncia, conjugação, homônimos etc.; Paradigma Definicional (PD): composto pelos semas ou unidades de sentido; Paradigma Pragmático (PP): disponibiliza dados provenientes de contextos reais de língua (como corpora) ou literários (abonações). Paradigma de Formas Equivalentes (PFE): basicamente, a tradução da entrada. Exceto pelo Paradigma Definicional, consensualmente considerado como essencial na composição de uma microestrutura, os outros podem apresentar uma composição variável, de acordo com a linha teórica adotada, o público-alvo, as diretrizes de publicação da obra etc. Uma possibilidade de microestrutura básica se apresentaria, portanto, da seguinte maneira: artigo= {+ entrada9 + enunciado lexicográfico (+ definição)}10 Poderíamos, porém, criar um verbete com a seguinte microestrutura: Artigo= {+ entrada + enunciado lexicográfico (+/- PI1+ PD +/- PP)} Como em qualquer obra lexicográfica ou terminográfica, uma pesquisa com o público-alvo é o que indica a forma de elaboração das estruturas (macro e micro) do trabalho. Sem um estudo prévio desse público-alvo, a obra de referência pode “falhar” em sua proposta. Campos (1994) já chamava a atenção para esta questão: “...o problema da clareza da definição está diretamente ligado a um questionamento anterior: quem é o público-alvo do dicionário”.11 Ele destaca o trabalho de elaboração do dicionário Cobuild, com uma microestrutura diferenciada: artigo= {+ entrada + enunciado lexicográfico (+ PP [+ entrada] + PD)} O verbete, ou a entrada do dicionário/glossário. Onde o sinal + representa a obrigatoriedade e o sinal +/- a opcionalidade. 11 “El problema de la claridad de la definición está estrechamente ligado con una cuestión previa: a quién está dirigido el diccionario”. 9 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 213 Fica claro, na estrutura acima, que a entrada aparece duas vezes no artigo: como entrada em si e repetida dentro da microestrutura, entre o paradigma pragmático e o definicional. Campos (1994) também cita a preocupação dos autores da obra no uso de um vocabulário o mais básico possível na construção da definição, facilitando sua leitura e evitando a circularidade dentro do dicionário. Continuando com noções sobre a microestrutura, Hartmann e James (2002) dizem que ela está relacionada ao formato dos verbetes, em como os paradigmas definicionais são apresentados, e qual é o seu nível de adequação, levando-se em consideração o seu público-alvo. Outro aspecto a se considerar na microestrutura é como a organização dos significados dos verbetes é construída. A microestrutura disponibiliza dados específicos e pormenorizados sobre o verbete, especificando traços semânticos e estruturais citados previamente tais quais, a pronúncia, a classe gramatical, a ortografia, a etimologia etc. Nos casos em que há mais de uma acepção para um dado verbete, diferentes definições são concebidas para cada uma delas. A exemplificação de uma microestrutura com seus componentes é feita por Hartmann e James (2002), como mostra a Figura 1 a seguir. FIGURA 1 – Uma microestrutura segundo a proposta de Hartmann e James (2002) Na estrutura presente na Figura 1, observamos que há o verbete, a entrada ou o lema (headword/lemma); em seguida, são apresentados os dados referentes à ortografia, à pronúncia e à gramática; na sequência, encontramos a definição propriamente dita, com as acepções possíveis, separadas por ponto e vírgula, a etimologia e o possível uso do lema, neste caso como arcaísmo linguístico. 214 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 Além da estrutura apresentada na Figura 1, os autores propõem que à microestrutura também podem se juntar a entrada ou o verbete, o conceito pertencente aquele termo, o registro da primeira aparição ou uso (em geral acompanhado da definição em uma obra de referência). Além desses dados, há a possibilidade de se estabelecer as correspondências entre o termo e seu conceito. Béjoint (2004) é outro autor que trata da microestrutura, definindo-a como o conjunto de dados disposto horizontalmente nas obras lexicográficas e/ou terminográficas. Na microestrutura podemos encontrar as definições, as classificações gramaticais dos termos, as informações enciclopédicas, os exemplos etc. Em um dicionário ou vocabulário, é esperado que essa estrutura seja recorrente para que o manuseio da obra, pelo usuário, seja facilitado. Outra razão para tal recorrência estrutural é a necessidade de padronização, e também o fato de revelar os traços identitários da obra. Diante disso, há a expectativa de que os dicionários modernos tragam em sua elaboração, constituição e apresentação a uniformidade de suas entradas em termos de conteúdo, organização e formatação. 3.3 Microestrutura x Macroestrutura Ao compararmos as propostas de estruturas levantadas por Hartmann e James (2002) e Béjoint (2004), constatamos que a macroestrutura é um componente constituído de certa maleabilidade, o que significa que é possível adicionar ou subtrair um verbete de um dicionário sem prejudicar a qualidade da mesma. De igual modo, não se pode conceber uma obra lexicográfica sem sua macroestrutura; na ausência de tal componente, a obra falha em ser classificada como um dicionário. O que identifica um dicionário é a interação que há entre a macro e a microestrutura: todos os verbetes fazem parte de uma macroestrutura e, consequentemente, apresentam uma microestrutura, e todos os itens lexicais constitutivos da microestrutura devem, em geral, ser contemplados na macroestrutura, isto é, os dicionários são estruturas “fechadas” (BÉJOINT, 2004, p. 12, 13). O aspecto fechado de uma obra lexicográfica é em partes diferente do que encontraremos em obras terminográficas. Segundo Bevilacqua e Finatto (2006), o fazer lexicográfico, por objetivar o registro do léxico de uma língua, em geral privilegia o princípio da frequência para o registro das unidades lexicais. Em contrapartida, as obras terminográficas tenderão a partir do princípio da relevância do termo para uma área Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 215 específica a fim de decidir pelo seu registro ou não. Como analisamos obras intituladas Dicionários, esse paradigma norteador será considerado para o enquadramento da obra como sendo de caráter mais lexicográfico ou terminográfico. 4. Elaboração da definição O terceiro passo que detalhamos aqui, para a análise das obras, é a construção da definição. Existem três grandes paradigmas de definições usados para a organização dos conceitos em uma obra: (i) a definição enciclopédica, (ii) a definição lexicográfica e a (iii) terminológica, definidas a seguir. A definição enciclopédica é mais detalhada e abrangente, reunindo em si informações sobre o referente e sobre a descrição de coisas; a definição lexicográfica disponibiliza predominantemente as informações linguísticas dos verbetes/palavras; e, finalmente, a definição terminológica, disponibiliza dados formais sobre “coisas” ou fenômenos (FINATTO, 1998, p. 2). Além desses padrões, as informações podem ser organizadas de acordo com o padrão GPDE (também denominado aristotélico), gênero próximo, diferenças específicas (FINATTO, 2001). Esse padrão estabelece que as informações usadas para construção da definição do termo sejam hierarquizadas, partindo-se da relação de hiperonímia para a de hiponímia dos elementos usados na construção da definição final. No próximo item, apresentamos o corpus usado para análise das micro e macroestruturas e sua descrição. 5. Dados analisados – microestrutura São apresentadas, no Quadro 2, as estruturações dos verbetes (por uma questão de espaço, descreveremos apenas o Enunciado Lexicográfico; suas versões na íntegra se encontram no anexo) do termo linguagem e de fraseologismos12 para o termo signo dentro de cada obra, a fim de analisarmos suas respectivas microestruturas. 12 Entendemos por fraseologismo unidades lexicais constituídas pela polilexicalidade (combinações de duas ou mais UL, formando um sentido único), a fixação e a convencionalidade (proveniente do uso repetitivo), como proposto por Monteiro-Plantin (2014). 216 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 QUADRO 2 – Microestrutura – Enunciados lexicográficos DICIONÁRIO Dicionário de Linguística e gramática TERMOS Linguagem Fraseologismos terminológicos com signo {[PD + PP]} Unidades sintagmáticas Signo linguístico: acepção de dêixis [PD] Dicionário de [PD + PP] Signo linguístico: acepção de signo Linguística e Fonética Unidades sintagmáticas [PD] [ PI + PD] Dicionário de Linguística Dicionário de Linguística da Enunciação [PD + PI] signo-símbolo [PD] {[PI (categoria gramatical + Signo ideológico autor) + PD]} {[PI (categoria gramatical + autor) [PP (Outras denominações)] + PD]} [PD] [PP (Fonte da definição + Nota [PP (Fonte da definição + explicativa + Fonte da nota + Nota explicativa + Fonte da Leitura recomendada + Termos nota + Leitura recomendada + relacionados)] Termos relacionados) ] Fonte: elaborado pelos autores a partir dos dicionários selecionados No caso do Dicionário de Linguística e gramática (MATTOSO CAMARA JR., 1986), primeiramente observamos que a obra não dispõe de um paradigma informacional: não traz informações como classificação gramatical dos termos, o gênero, o número, a pronúncia etc. (tanto para o termo em si quanto para o fraseologismo). Em segundo lugar, o paradigma pragmático aparece apenas no termo linguagem, mas não no fraseologismo terminológico (doravante FT) signo linguístico; o paradigma informacional não aparece em nenhum momento. O autor marca as remissivas de duas formas diferentes: (1) verbete em caixa alta ou (2) com a letra v entre parênteses: (v.). Finalmente, constatamos, a partir dos exemplos, que há uma circularidade na obra como um todo. Por exemplo, para definir o termo signo, o autor recorre às remissivas símbolo e dêixis. Na entrada símbolo o autor define o termo signo e na entrada dêixis ele define o FT signo linguístico (que é definido no Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 217 formato de acepção13). Dentro deste PD, o autor insere a definição de signo linguístico por meio de um contexto explicativo, no qual o signo é marcado por dois constituintes: o símbolo e o sinal. No Dicionário de Linguística e Fonética (CRYSTAL, 2000), para o termo linguagem encontramos os paradigmas definicional e o pragmático. A palavra ver introduz o paradigma pragmático e, na sequência, há a citação das referências: o autor e o ano, dois pontos e o capítulo sugerido para leitura. Ex.: Ver Robins (1979, Cap. 1). Encontramos o FT signo linguístico como elemento constituinte da microestrutura do termo signo, ou seja, ele não é apresentado como um verbete à parte e sim como acepção. O paradigma definicional de signo linguístico é construído de forma explicativa, no qual o autor o contrapõe às outras categorias do signo. Na obra Dicionário de Linguística (DUBOIS et al., 2004), o verbete linguagem apresenta os paradigmas definicional e pragmático; o paradigma informacional disponibiliza dados como: etimologia e classificação gramatical para alguns verbetes de forma não padronizada. Os autores explicam os conceitos de signos a partir da perspectiva da Semiótica. Dessa forma, eles associam o conceito de signo aos conceitos pré-existentes da Semiótica; essa é a razão pela qual os FT signo-indício, signo-sinal, signo-símbolo e signo(s) linguístico(s) fazem parte do paradigma definicional do verbete signo. Escolhemos o FT signo-símbolo para fazermos a análise de seu paradigma definicional. Primeiramente, Dubois et al. (2004) associam o signo ao conceito de símbolo, ressaltando sua predominância na forma visual figurativa. Depois, os autores definem o FT e ressaltam o traço semântico abstrato existente entre o signosímbolo e sua representação, exemplificado pela ideia de justiça associada à balança (DUBOIS et al., 2004, p. 541). No Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et al., 2009), a macro e a microestrutura disponibilizam um padrão mais atual de definições ao usuário, no qual há campos diferentes para as estruturas. Nestes campos, como no termo linguagem, há a (1) classificação gramatical, o (2) autor, (3) outras classificações (termos e FT), o (4) padrão definicional conciso e objetivo (padrão GPDE com oração única), 13 Neste caso o FT signo linguístico não aparece no formato tradicional de entrada, mas sim como acepção (também num formato não tradicional). De um modo geral, a obra de Mattoso apresenta o problema de circularidade. 218 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 a (5) fonte da definição, a (6) fonte das notas, as (7) notas explicativas, os (8) termos remissivos e a (9) sugestão de leitura. Nesta obra, o FT signo ideológico é apresentado, seguindo a padronização da obra, com o PI, o PD e o PP. No PI, os autores trazem a categoria gramatical (s.m.) e o autor a partir do qual o conceito para definição foi extraído. Em seguida, há o PD, de perfil terminológico, seguido pelo PP, no qual consta a fonte da definição, a nota explicativa, de caráter enciclopédico, a fonte da nota (BAK95b), as leituras recomendadas (BAK95b; CLA98; FAR03) e, finalmente, os termos relacionados (remissivas) acento de valor, refração e sinal. Na próxima seção apresentaremos a análise dos paradigmas definicionais de cada obra. Posteriormente, faremos a análise desses paradigmas, considerando o padrão GPDE. 6. Análise dos paradigmas definicionais A seguir, apresentamos a descrição dos paradigmas definicionais das obras analisadas, como os autores construíram esses paradigmas, os itens que os compuseram, e se enquadraram mais nos padrões de definição lexicográfica, enciclopédica ou terminográfica. No Dicionário de Linguística e gramática de Mattoso Camara Jr. (1986), o autor constrói um paradigma definicional com acepções sucintas, além de referenciar e conceituar o termo a partir da perspectiva de outros autores (cita o autor e ano da obra). Essa organização dos conceitos é sistematizada em forma de itens. Para os verbetes, observamos a existência de um paradigma definicional parcialmente lexicográfico, enciclopédico e terminológico. Mattoso Camara Jr. inicia a definição seguindo o padrão GPDE; depois observamos uma certa circularidade na construção, retomando informações previamente registradas. Faculdade que tem o homem de exprimir seus estados mentais por meio de um sistema de sons vocais chamado língua (v.), que os organiza numa REPRESENTAÇÃO compreensiva em face do mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior. [...] A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama entre o FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a pessoa a quem ela se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela de representação mental que nela se consubstancia), mas na manifestação psíquica o ouvinte não é levado diretamente em conta. (MATTOSO CAMARA JR., 1986, p. 158 – grifo nosso). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 219 É possível observar a circularidade de ideias na definição anterior, perfil que difere da definição terminográfica, mais concisa e objetiva. No Dicionário de Linguística e Fonética (CRYSTAL, 2000), observamos uma microestrutura unificada, na qual grande parte dos verbetes são definidos com: termo utilizado/usado por/na etc. Como na obra de Mattoso Camara Jr. (1986), as microestruturas são de cunho enciclopédico, terminológico e lexicográfico. O paradigma definicional traz diagramas e esquemas para ilustrar os conceitos, além de indicar autores e obras por meio de remissivas. Se os verbetes existentes no dicionário são encontrados na obra, eles são grafados com letras maiúsculas, sinalizando aos consulentes que há a possibilidade de explorá-los na obra como uma remissiva. A segunda opção de encontrar as remissivas é a marcação em (cf. REMISSIVA). Nesse dicionário notamos o padrão GPDE com um paradigma de caráter não só definicional, mas também explicativo. Este perfil explicativo torna as definições mais longas e foge do perfil mais sucinto proposto pelo padrão da definição terminológica. Ademais, o autor se preocupou em fornecer dados sociolinguísticos do uso do termo, tendendo mais ao padrão enciclopédico: “A aplicação popular do termo se concentra nos modos de comunicação que não são fala ou escrita (a “linguagem do corpo”, a “linguagem dos olhos”). Pode ser aplicado ocasionalmente à comunidade animal natural [...]. Pode ser igualmente usado para indicar a “língua” ou o “dialeto”. Finalmente, observamos que no paradigma definicional, o autor insere várias remissivas, destacadas no texto, escritas com letras maiúsculas. O Dicionário de Linguística, de Dubois et al. (2004), disponibiliza os paradigmas definicionais de cunho enciclopédico, lexicográfico e terminológico. Podemos observar que a definição de caráter enciclopédico é prevalente neste dicionário, de forma que o padrão GPDE é usado para construir as definições do termo (sublinhadas no excerto). Os autores partem de um dos conceitos usados nessas definições e buscam definir esse segundo termo; isso gera a explicação de um termo segundo dentro do paradigma definicional de um termo primeiro: “Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais (ou língua*), [...] Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade linguística) determinado constitui uma língua particular (DUBOIS et al., 2004, p. 387). Em suma, podemos dizer que há um conjunto de definições, dentro do mesmo paradigma definicional, o que pode confundir o leitor, dependendo de seu nível de conhecimento na área da Linguística. 220 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 No Dicionário de Linguística da Enunciação (FLORES et al., 2009), constatamos que há a presença dos padrões definitórios de caráter lexicográfico e enciclopédico nas notas explicativas, e o de caráter terminológico nas definições. Nas definições, há a prevalência de uma oração inicial e final com a definição de cunho terminológico da entrada. Observamos também a preocupação em padronizar a apresentação dos verbetes e paradigmas definicionais de forma acessível aos leigos. Nesse dicionário, o padrão GPDE é usado para as definições de forma objetiva, segundo cada autor específico (Bally, Benveniste, Culioli, Jakobson): “conjunto dos sistemas estrutural e de uso da língua.” Além de seguir o padrão GPDE, os autores usam o padrão terminológico para construção do paradigma definicional. Este perfil adotado pelos atores difere das obras anteriores, já que nelas observamos definições longas, marcadas pela circularidade, às vezes enciclopédicas, outras lexicográficas. 7. Por uma proposta de microestrutura Nesta seção, a partir do apanhado geral da microestrutura e dos PDs das obras analisadas, apresentamos uma proposta de construção de microestrutura que atenda ao público de estudantes de Linguística e Letras. Considerando que, em geral, as obras terminológicas objetivam a comunicação especializada entre um grupo de especialistas para um grupo de aprendizes, a estrutura apresentada pela maioria das obras falha em atender a esse objetivo. Isto acontece porque as estruturas escolhidas pelos autores exigem um conhecimento prévio da Linguística, o que impede que a maioria das obras analisadas sirva ao propósito de capacitar o aprendiz quanto à terminologia e conceitos da área da Linguística. Para que este objetivo seja atingido, a proposta feita por Flores et al. (2009) pode ser um modelo a ser seguido. Sua definição objetiva e concisa, seguindo o padrão GPDE e com um viés terminológico, auxilia o leitor a entender melhor os conceitos linguísticos e as notas explicativas (com um caráter mais enciclopédico) ajudam aqueles que buscam um aprofundamento na especificidade dessa área. Após a análise dessas estruturas, propomos padrões de microestrutura e definitórios para um vocabulário de Linguística, que apresentem estruturas semelhante àquelas do Dicionário de Linguística da Enunciação. Buscamos construir uma definição alinhada ao padrão Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 221 terminológico, com informações de caráter lexicográfico e enciclopédico registradas em um campo denominado NOTA. O público alvo a ser atendido seriam alunos iniciantes de Curso de Letras e estudantes de Linguística em geral. Apresentamos, a seguir, dois esboços para os padrões discutidos, em formato bilíngue (português/inglês):14 QUADRO 3 – Verbete “linguagem/language” linguagem. Linguística Histórica. s.f.s. sistema de sinais, escrito ou falado, usado pela humanidade para comunicação de ideias, marcado pela variabilidade, considerado uma ciência moral e histórica. Nota: forma de expressão linguística do pensamento, de nível consciente e abstrato. Ex.: Para Coutinho (1938: 16), a “Glotologia” (“denominação italiana”), “Linguística” (“termo preferido pelos franceses”) ou “Glótica” (“termo da escola alemã”) é a “ciência que estuda a origem e o desenvolvimento da linguagem. Sinônimos: ciência histórica e moral. Hipônimo de: humanidade; ideias; pensamentos; espírito; criação social; Glotologia. Hiperônimo de: sinais; sincronia; diacronia; sistemas linguísticos; vocábulos; linguagem escrita; linguagem falada. Veja Também: analogia, léxico. Córpus: Posição na Ordem de Frequência: (210); Nº de Ocorrências do termo: (439). Informações Enciclopédicas: Linguagem pode se referir tanto à capacidade especificamente humana para aquisição e utilização de sistemas complexos de comunicação, quanto à uma instância específica de um sistema de comunicação complexo. Em: Linguagem – Wikipédia. language. Historical Linguistics. n.m/f.s. system used to produce meaning, reference, naming and used by different groups of people for communication. Note: types of language comprise philosophical, sacral, baby, hunters’, legal, children’s, thieves’ and wooers’. Ex.: (Thieves using filchmans were popularly called anglers; -man, more often -mans, was a Common suffix in thieves’ language: H. Webster [1943:232].). Hypernym of: words; language; term. See Also: lexicon. Corpus: Frequency order position: (29); Term number of occurrences: (2686). Encyclopedic Information: any means of expressing or communicating, as gestures, signs, or animal sounds: body language. In: Language – Wikipedia. Fonte: elaborado pelos autores. Importante notar, aqui, que as versões em português e inglês não são exatamente as mesmas. Como nossa proposta se baseia na elaboração das estruturas a partir dos exemplos selecionados em corpora equivalentes (textos sobre a mesma área, mas não necessariamente originais/traduções), exemplos e definições variam entre as línguas. Nesta proposta, temos dois vocabulários monolíngues em contraste; o que os une é a macroestrutura, onde a equivalência conceitual é a chave para unir os termos. 14 222 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 Como pode ser observado no Quadro 3, listamos o termo, a subárea a qual ele pertence, sua classificação gramatical, a definição terminográfica, a nota, os exemplos de co-texto no qual se insere, as relações de sinonímia, hiponímia, hiperonímia (caso existam no corpus), os termos remissivos, os dados no corpus e as informações enciclopédicas (ligadas por link à Wikipédia). No Quadro 4, apresentamos uma proposta de definição de fraseologismos terminológicas na área da Linguística. QUADRO 4 – Verbete “linguística descritiva/descriptive linguistics” linguística descritiva. Linguística. m.s. subárea da Linguística, de método sincrônico, que documenta e analisa as línguas do mundo, fundamentada em dados concretos cujo intuito é compreender o processo estrutural da língua. Ex.: Os linguistas nunca deixaram de afirmar a importância do aspecto histórico das línguas. Dentre estes, destacamos Maurer Jr. que concebeu a linguística composta em dois setores: a linguística descritiva (sincrônica) e a linguística histórica (diacrônica). Segundo o autor, a LH “constitui um complemento imprescindível para que essa ciência seja completa, pois interpreta e explica os fatos que a primeira (sincronia) colige.” (MAURER JR., 1967, p. 40). Co-hipônimos: Linguística Aplicada; Linguística Histórica; Linguística Estrutural; Linguística Histórica-Comparatista; Linguística Contrastiva. Veja Também: linguística. Córpus: Posição na Ordem de Frequência: (66); Nº de Ocorrências do termo: (7434). Nº de Ocorrências do fraseologismo: (18). Informações Enciclopédicas: estudo do mecanismo pelo qual uma dada língua funciona, como meio de comunicação entre seus falantes. Em: Linguística Descritiva – Linguística em foco. descriptive linguistics. Linguistics. n.m./f.s. subarea of Linguistics that describes languages grounded in systematic empirical observation, rejecting the normative prescription of one specific style. Ex.: In this way, tone interval theory greatly increases the phonetic transparency of the description of English intonation as compared to the paradigmatic framework. That theory, by contrast, treated significant turning points with inconsistency, even when we assumed that its input-output relations operated as they have been presumed to in descriptive linguistics. In contrast, tone interval theory formalizes a relationship between phonology and phonetics such that every significant turning point is assumed to arise from a tone. Hyponym of: discipline. Hypernym of: American structuralism; intonation; phonetics; phonology; language; grammarians; lexicographers. See Also: linguistics. Corpus: Frequency order position: (5924); Term number of occurrencies: (113). Phraseologism number of occurrences: (20). Encyclopedic Information: the work of objectively analyzing and describing how language is actually used (or how it was used in the past) by a group of people in a speech community. em: Linguistic description – Wikipedia. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 223 A microestrutura do termo Linguística Descritiva/Descriptive Linguistics, retratada no Quadro 4, é semelhante àquela do Quadro 3, portanto, salientamos as diferenças presentes neste último se comparado ao anterior. A primeira diferença é que no Quadro 4 não há Notas, pois o corpus não trouxe informações suficientes para tal informação adicional. Neste padrão encontramos co-hipônimos (Linguística Aplicada; Linguística Histórica; Linguística Estrutural; Linguística HistóricaComparatista; Linguística Contrastiva). Finalmente, a outra distinção é quanto ao número de ocorrências do termo e do fraseologismo no corpus. O número do termo é referente ao termo-base, neste caso linguística, e o número de fraseologismos, relacionado a quantas vezes a fraseologia aparece no corpus. Neste exemplo, temos o termo linguística recorrendo 7434 vezes no corpus em português e 113 vezes no corpus de inglês. Os termos fraseológicos linguística descritiva e descriptive linguistics recorrem 18 e 20 vezes, respectivamente. Esses modelos são apenas dois, dentre vários possíveis, na construção de uma microestrutura terminológica. Como já citado anteriormente, essa microestrutura deve levar sempre em conta o público-alvo desejado. Tendo esta questão em mente, a elaboração da definição, por exemplo, deveria ser pensada a partir de uma pesquisa com esse público-alvo, para que ele decida qual tipo de definição é a mais apropriada para seu entendimento. 8. Conclusão Neste artigo definimos os conceitos de dicionário, glossário e vocabulário a partir da perspectiva da Terminologia, e desenvolvemos um estudo analítico da macro e microestrutura de verbetes de especialidade em dicionários de Linguística, de Fonética e Linguística da Enunciação. Na análise da microestrutura de dicionários, definimos outside matter, middle matter e back matter. Exploramos os paradigmas informacional, definicional, pragmático e de formas equivalentes (obras bilíngues) e propusemos um padrão de microestrutura para um vocabulário de Linguística, direcionado para alunos iniciantes do Curso de Letras como público-alvo. Como resultado da análise dos dicionários, observamos que as obras não compartilham de um mesmo padrão quanto à microestrutura nem quanto aos paradigmas definicionais. Há obras com perfil mais enciclopédicos e outra de cunho mais terminológico, revelando que o 224 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 nível de estrutura das informações, às vezes, é de obras que comunicam de especialista para especialista (Dicionário de Linguística e Gramática – Mattoso Camara Jr., Dicionário de Linguística e Fonética – David Crystal, Dicionário de Linguística – Dubois et al., 2004). Obras de autores mais antigos da área da Linguística parecem nos mostrar que não havia uma preocupação pormenorizada com a taxonomia da área. Atualmente, é possível observar que as obras já são mais específicas, concebidas a partir de um olhar proveniente de subáreas da Linguística, como o Dicionário da Linguística e Fonética e da Linguística da Enunciação. Concluímos que há algumas obras no mercado que buscam servir como dicionários ou vocabulários de Linguística, mas reconhecemos que a maioria delas não atende a necessidade dos alunos leigos, no que tange à definição dos termos linguísticos. Logo, ressaltamos essa necessidade e buscamos trazer uma alternativa de obra que possa atender esse públicoalvo, aproximando-os da linguagem de especialidade, do conhecimento técnico, responsável pelo processo de denominação, nominalização e padronização dos termos. Propusemos uma microestrutura mais completa e, especificamente, um paradigma definicional dentro do padrão GPDE, de perfil terminológico, direcionado para alunos iniciantes como público-alvo. Esperamos ter contribuído para despertar a discussão entre profissionais da área de Linguística, bem como estabelecer possíveis padrões que podem ser adotados na pesquisa terminográfica no contexto de falantes de língua portuguesa e inglesa. Declaração de autoria Este artigo foi produzido de maneira colaborativa pelos autores: Guilherme Fromm e Márcio Issamu Yamamoto. Primeiramente, a introdução foi elaborada por ambos. Em segundo lugar, a seleção das obras analisadas constitui parte do doutorado em andamento, intitulado Vocabulário bilíngue de Linguística, conduzido por Yamamoto, sob a orientação de Fromm. Em seguida, o item 2, de Dicionário, Vocabulário e Glossário foi um aprimoramento dos conceitos apontados por Fromm em sua tese de doutorado; a fundamentação teórica da macro e microestrutura foi redigida por Yamamoto. Finalmente, a seção de Dados analisados, da microestrutura e dos paradigmas definicionais foram elaborados pelos autores, bem como a proposta de microestrutura, a conclusão e as referências. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 225 referências ANDRADE, M. M. de. Conceituação/definição em dicionários da língua geral e em dicionários de linguagens de especialidades. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 227 aNEXos DICIoNÁrIos DE EsPECIaLIDaDE DICIoNÁrIo Dicionário de Linguística e gramática TErMos LINguagEM - Faculdade que tem o homem de exprimir seus estados mentais por meio de um sistema de sons vocais chamado língua (v.), que os organiza numa REPRESENTAÇÃO1 compreensiva em face do mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior. Pela atividade da linguagem ou FALA, - 1) faz-se a comunicação entre os homens – a) para transmissão de conhecimentos (função de informação), ou b) numa atuação de influenciamento psíquico de uns sobre outros (função de apelo); ou - 2) dá-se a exteriorização das paixões humanas sem intento direto de comunicação (função de exteriorização ou manifestação psíquica) (cf. Camara, 1959, 13s). A função da informação cria a linguagem intelectiva pura, enquanto as do apelo e manifestação psíquica utilizam a representação linguística para a expressão do que se chama, em sentido lato, os “afetos” em contraste com a atividade de compreensão mental ou inteligência, criando a LINGUAGEM AFETIVA (cf. Bally, 1926). A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama entre o FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a pessoa a quem ela se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela de representação mental que nela se consubstancia), mas na manifestação psíquica o ouvinte não é levado diretamente em conta. Por outro lado, falante e ouvinte coincidem na mesma pessoa na atividade de linguagem chamada solilóquio (v.). A linguagem é uma faculdade imensamente antiga da espécie humana e deve ter precedido os elementos mais rudimentares da cultura material (Sapir, 1954, 23). LINGUAGEM AFETIVA [...] LINGUAGEM ESCRITA [...] LINGUAGEM INTELECTIVA [...] LINGUAGEM ORAL [...] LINGUAGEM SILENCIOSA [...] sIgNo – v. símbolo; dêixis. sÍMBoLo – [...] SIGNO, que é a essência da linguagem e corresponde à significação (v.) de formas linguísticas. DÊIXIs – [...] Podemos dizer que o signo linguístico se apresenta em dois tipos – o SÍMBOLO, em que um conjunto sônico, representa ou simboliza, e o SINAL, em que o conjunto sônico indica ou mostra (v. símbolo). [...] 228 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 aNEXo DICIoNÁrIos DE EsPECIaLIDaDE1 DICIoNÁrIo TErMos Dicionário de Linguística e gramática LINguagEM - Faculdade que tem o homem de exprimir seus estados mentais por meio de um sistema de sons vocais chamado língua (v.), que os organiza numa REPRESENTAÇÃO15 compreensiva em face do mundo exterior objetivo e do mundo subjetivo interior. Pela atividade da linguagem ou FALA, – 1) faz-se a comunicação entre os homens – a) para transmissão de conhecimentos (função de informação), ou b) numa atuação de influenciamento psíquico de uns sobre outros (função de apelo); ou – 2) dá-se a exteriorização das paixões humanas sem intento direto de comunicação (função de exteriorização ou manifestação psíquica) (cf. Camara, 1959, 13s). A função da informação cria a linguagem intelectiva pura, enquanto as do apelo e manifestação psíquica utilizam a representação linguística para a expressão do que se chama, em sentido lato, os “afetos” em contraste com a atividade de compreensão mental ou inteligência, criando a LINGUAGEM AFETIVA (cf. Bally, 1926). A linguagem se realiza, em princípio, numa espécie de drama entre o FALANTE (a pessoa que a transmite) e o OUVINTE (a pessoa a quem ela se dirige) na base de um ASSUNTO (a parcela de representação mental que nela se consubstancia), mas na manifestação psíquica o ouvinte não é levado diretamente em conta. Por outro lado, falante e ouvinte coincidem na mesma pessoa na atividade de linguagem chamada solilóquio (v.). A linguagem é uma faculdade imensamente antiga da espécie humana e deve ter precedido os elementos mais rudimentares da cultura material (Sapir, 1954, 23). LINGUAGEM AFETIVA [...] LINGUAGEM ESCRITA [...] LINGUAGEM INTELECTIVA [...] LINGUAGEM ORAL [...] LINGUAGEM SILENCIOSA [...] sIgNo – v. símbolo; dêixis. sÍMBoLo – [...] SIGNO, que é a essência da linguagem e corresponde à significação (v.) de formas linguísticas. DÊIXIs – [...] Podemos dizer que o signo linguístico se apresenta em dois tipos – o SÍMBOLO, em que um conjunto sônico, representa ou simboliza, e o SINAL, em que o conjunto sônico indica ou mostra (v. símbolo). [...] 15 No Dicionário de Linguística e Gramática, as remissivas são marcadas com verbetes em caixa alta. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 Dicionário de Linguística e Fonética 229 Linguagem Termo de sentido abstrato que se refere à faculdade biológica que possibilita aos indivíduos aprender a usar a sua LÍNGUA – uma capacidade implícita na noção de “dispositivo de AQUISIÇÃO da linguagem” da PSICOLINGUÍSTICA. Ainda em nível abstrato, a “linguagem” é uma característica do comportamento humano – as propriedades UNIVERSAIS de todos os sistemas de fala/escrita, especialmente quando caracterizadas por “traços do esquema” (como PRODUTIVIDADE, DUALIDADE, CAPACIDADE DE APRENDIZADO) ou “universais da língua” – (FORMAIS, SUBSTANTIVOS, etc.). A aplicação popular do termo se concentra nos modos de comunicação que não são fala ou escrita (a “linguagem do corpo”, a “linguagem dos olhos”). Pode ser aplicado ocasionalmente à comunidade animal natural (cf. ZOOSEMIÓTICA). Pode ser igualmente usado para indicar a “língua” ou o “dialeto” usado por uma comunidade específica, como sinônimo de jargão: “linguagem científica”, “linguagem médica”, “linguagem médica”, “linguagem econômica”, etc. Ver Robins 1979: Cap. 1; Bolinger e Sears 1981: Cap. 1 Linguagem de assobios [...] Linguagem formulaica [...] Linguagem telegráfica[...] SIGNO (significante, significado) Diversas aplicações restritas do termo geral são encontradas nos estudos LINGUÍSTICOS e filosóficos da SIGNIFICAÇÃO. A filosofia discute especialmente os tipos de contrastes possíveis que existem nas noções como “signos”, “símbolos”, “sintomas” e “sinais”. Às vezes, “signo” é usado em sentido abrangente, como quando se diz que a SEMIÓTICA é a “ciência dos signos”. Na discussão linguística, no sentido mais difundido, as expressões linguísticas (PALAVRAS, SENTENÇAS, etc.) são consideradas “signos” das entidades, dos acontecimentos, etc. a que remetem (ou frequentemente, dos conceitos envolvidos). Esta relação entre signo e coisa, ou signo e conceito, é tradicionalmente conhecida como significação. A expressão signo linguístico é usada quando se faz necessária uma distinção com outras categorias do signo (visual, táctil, etc.). O linguista suíço Ferdinand de SAUSSURE introduziu uma distinção terminológica que exerceu considerável influência sobre a subsequente discussão linguística: significante (ou “significans”) se opunha a significado (ou “significatum”) e ele enfatizava a ARBITRARIEDADE da relação entre a FORMA e a SIGNIFICAÇÃO dos signos. Ver Lyons 1977b:Cap. 4. 230 Dicionário de Linguística Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 Linguagem Linguagem é a capacidade específica à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos vocais (ou língua*), que coloca em jogo uma técnica corporal complexa e supõe a existência de uma função simbólica e de centros nervosos geneticamente especializados. Esse sistema de signos vocais utilizado por um grupo social (ou comunidade linguística) determinado constitui uma língua particular. Pelos problemas que apresenta, a linguagem é o objeto de análises muito diversas, que implicam relações múltiplas: a relação entre o sujeito e a linguagem, que é o domínio da psicolinguística; entre a linguagem e a sociedade, que é o domínio da sociolinguística; entre a função simbólica e o sistema que constitui a língua; entre a língua como um todo e as partes que a constituem; entre a língua como sistema universal e as línguas que são suas formas particulares; entre a língua particular como forma comum a um grupo social e as diversas realizações dessa língua pelos falantes, sendo tudo isso o domínio da linguística. Esses diversos domínios são necessária e estreitamente ligados uns aos outros. A melhor definição que se pode dar da linguística como ciência da linguagem (englobando, então, psicolinguística e sociolinguística) e ciência da língua e das línguas, ao mesmo tempo em seu funcionamento e desenvolvimento (ou transformação), é fornecida pela lista dos verbetes mais importantes contidos neste dicionário. [...] signo O signo, no sentido mais geral, designa, assim como o símbolo, o índice, ou o sinal, um elemento A – de natureza diversa – substituto de um elemento B. 1. Signo, inicialmente, pode ser um equivalente de índice; o índice* – ou o signo – é um fenômeno mais frequentemente natural, imediatamente perceptível, que nos faz conhecer qualquer coisa em relação a um fenômeno não imediatamente perceptível: por exemplo, a cor sombria do céu é um signo – ou o indício – de uma tempestade iminente; [...] 2. Em segundo lugar, o signo pode ser um equivalente de sinal. Neste sentido, o signo – ou sinal – faz parte da categoria dos indícios; ele possui as características do signo-indício (como o signo-indício, o signo-sinal é um fato imediatamente perceptível que permite conhecer qualquer coisa em relação a outro fato não imediatamente perceptível); mas duas condições são necessárias para que um signo seja considerado como sinal: a) é necessário que o signo tenha sido produzido para servir de índice. Portanto, ele não é fortuito, mas produzido com uma intenção deliberada; Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 231 b) é necessário, por outro lado, que aquele a quem é destinada a indicação contida no sinal possa reconhecê-la. Um signo-sinal é, portanto, voluntário, convencional e explícito. Combinado com outros sinais da mesma natureza, ele forma um sistema de signos ou código. Num mesmo código, os signos podem ter diferentes formas: ̶ forma gráfica: letras, cifras, [...] ̶ forma sonora: sons emitidos pelo aparelho vocal [...] ̶ forma visual: sinais gestuais, [...] 3. signo, enfim, pode ser um equivalente de símbolo*. O signo-símbolo é mais frequentemente uma forma visual (e mesmo gráfica) figurativa. O signo-símbolo é o signo figurativo de uma coisa que tem aquele sentido; por exemplo, o signo figurativo que representa uma balança é o signo-símbolo da ideia abstrata de justiça. 4. No Curso de Linguística Geral de F. de Saussure, o termo signo adquiriu outra acepção: a de signo linguístico. F. de Saussure faz distinção entre símbolo e signo (tomado agora com o sentido de signo linguístico): ele pensa, [...], que existem inconvenientes em admitir que se possa utilizar a palavra símbolo para designar o signo linguístico. O símbolo, ao contrário do signo, tem por característica jamais ser arbitrário, isto é, existe um laço rudimentar entre significante e significado. [...] Com F. de Saussure, o signo linguístico foi instaurado como unidade de língua. Passa a ser a unidade mínima da frase, susceptível de ser reconhecido como idêntico num contexto diferente, ou de ser substituído por uma unidade diferente num contexto idêntico. 5. Os signos linguísticos, essencialmente psíquicos, não são abstrações. O signo – ou unidade – linguístico é uma entidade dupla, produto da aproximação de dois termos, ambos psíquicos e unidos pelo laço de associação. Une, com efeito, não uma coisa a um nome, mas um conceito a uma imagem acústica. [...] O signo linguístico, é, portanto, o que F. de Saussure denomina uma entidade de duas faces, a combinação indissolúvel, no interior do cérebro humano, do significado e do significante. [...] 6. O signo linguístico, tal como o definiu F. de Saussure, apresenta certo número de características essenciais: a) Arbitrariedade do signo. [...] b) Carácter linear do significante. [...] c) Imutabilidade do signo. [...] d) Mutabilidade do signo. [...] 7. [...] 8. Com o nascimento da teoria da comunicação e a influência direta desta sobre as pesquisas linguísticas, o signo linguístico adquire nova dimensão: ele se torna sinal, integrando o código de sinais que é a língua, considerada daí por diante como um sistema de comunicação. Os signos deste código linguístico são os fonemas ̶ [...] 232 Dicionário de Linguística da Enunciação Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 linguagem (1) s.f. Bally outras denominações: linguagem natural. Definição: conjunto dos sistemas estrutural e de uso da língua. Fonte da definição: BAL51; BAL65; BAL67 Nota explicativa: A linguagem é o conjunto formado pela união do sistema de símbolos linguísticos e pelo sistema de unidades expressivas. O primeiro conjunto é constituído por associações e oposições de elementos na consciência dos sujeitos. Como os símbolos dificilmente correspondem às unidades de pensamento, os sujeitos, em seu meio social específico, criam o sistema expressivo, de fatos de expressão, isto é, um grupo de unidades que têm relação com a afetividade e com a subjetividade, atualizando-o constantemente a partir do uso. O termo linguagem está estreitamente ligado ao uso da língua e consta na primeira fase da obra de Bally, a Estilística. [...] Fonte da nota: BAL51; BAL65; BAL67. Leitura recomendada: CH185; DUR98; MED85. Termos relacionados: língua (1), sujeito falante (1). linguagem (2) s.f. Benveniste Definição: faculdade de simbolizar inerente à condição humana. Fonte da definição: BEN95: 27 Nota explicativa: assim entendida, a linguagem está diretamente ligada à intersubjetividade uma vez que, como uma faculdade de simbolizar, ela é a condição de existência do homem e como tal é sempre referida ao outro. A linguagem é constitutiva do homem na justa medida em que a intersubjetividade lhe é inerente. Dessa forma, pode-se considerar que a vinculação entre linguagem e intersubjetividade constitui uma espécie de a priori da teoria benvenistiana. Em testemunho disso, cabe lembrar o texto “Da subjetividade na linguagem”, de 1958, em que Benveniste diz que “Não atingimos jamais o homem reduzido a si mesmo e procurando conceber a existência do outro. É um homem falando que encontramos no mundo, um homem falando com outro homem. E a linguagem ensina a própria definição do homem” (BEN95:285). [...] Fonte da nota: BEN89; BEN95; FLO07. Leitura recomendada: FLO07. Termos relacionados: língua (2), língua-discurso. linguagem (3) s.f. Culioli Definição: capacidade humana de construção de representação, referenciação e regulação passível de ser apreendida na diversidade das línguas. Fonte da definição: FRA98. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 233 Nota explicativa: A linguagem, como uma atividade cognitiva de construção e reconhecimento de formas, é responsável pela constituição dos enunciados e pela construção da significação. Por ser cognitiva, essa atividade somente pode ser apreendida a partir daquilo que produz, ou seja, dos enunciados, partindo-se deles e a eles retornando. O conceito culioliano de linguagem pressupõe, portanto, uma contínua atividade epilinguística (atividade metalinguística não-consciente) que supõe a relação entre um modelo (competência) e a sua realização (performance). Desse modo, Culioli, cuja teoria tem por objeto de estudo a relação entre a linguagem e as línguas, toma por objeto de análise aquilo que é acessível ao linguista e passível de observação, ou seja, os enunciados e seus valores interpretativos. Desse modo, a linguagem, atividade significante de representação, referenciação e regulação, somente é acessível através dos textos, isto é, dos arranjos de marcadores. Fonte da nota: FRA98. Leitura recomendada: FRA98; FUC75; FUC84. Termos relacionados: enunciação (5), enunciador (4), linguística. linguagem (4) s.f. Jakobson Definição: sistema de signos linguísticos que tem seu funcionamento baseado nos processos de seleção e combinação. Fonte da definição: JAK69b. Nota explicativa: Em Jakobson, linguagem é sinônimo de funcionamento. Segundo o autor, “falar implica a seleção de certas entidades linguísticas e sua combinação em unidades linguísticas de mais alto grau de complexidade” (1969: 37). Essa possibilidade de arranjo se dá através da metáfora (seleção) e da metonímia (combinação). Tendo em vista que a linguagem é operacionalizada dessa forma, o autor apresenta suas diferentes funções (fática, conativa, metalinguística, referencial, emotiva e poética), que se fazem presentes de maneira hierárquica na fala do interlocutor, dependendo de fatores externos. Ou seja, “a diversidade de interlocutores e sua mútua adaptabilidade constituem fator de importância decisiva na multiplicação e diferenciação de subcódigos no âmbito de uma comunidade de fala e dentro da competência verbal de seus membros individuais” (1970: 27). [...] Fonte da nota: EJA06; JAK69b; JAK70. Leitura recomendada: JAK69b; JAK70. Termos relacionados: língua (3), metáfora, metonímia. Linguagem natural s.f. Bally V. linguagem (1) 234 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 205-234, 2020 signo ideológico s.m. Bakhtin Definição: forma variável e flexível da comunicação discursiva. Fonte da definição: BAK95b: 93. Nota explicativa: O signo ideológico não só existe como parte de uma realidade, mas também reflete a refrata uma realidade que lhe é exterior, apreendendo-a de um ponto de vista específico. Na relação signo/ ideologia, pode-se dizer que sem signos não há ideologia. Todo signo é considerado ideológico e está sujeito a critérios de avaliação (verdadeiro, falso, correto, justificado, bom etc.), o que permite afirmar que não existe signo neutro. [...] Fonte da nota: BAK95b; 31-32, 34-36, 93. Leitura recomendada: BAK95b; CLA98; FAR03. Termos relacionados: acento de valor, refração, sinal. Fonte: elaborado pelos autores a partir dos dicionários selecionados. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 atuação de fatores estilísticos na variação entre as formas de tratamento de segunda pessoa em uma comunidade de fala valenciana Stylistic factors in the variation of the performance of treatment forms of the second person in a Valencian speaking community José Victor Melo de Lima Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), Canindé, Ceará / Brasil Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará / Brasil victor.lima@hotmail.es https://orcid.org/0000-0001-9831-6705 Valdecy de Oliveira Pontes Universidade Federal do Ceará (UFC), Fortaleza, Ceará / Brasil valdecy.pontes@ufc.br https://orcid.org/0000-0002-8183-9259 resumo: Neste artigo, analisamos a atuação de fatores estilísticos na variação entre as formas de tratamento de segunda pessoa, tú e usted, em 36 entrevistas extraídas do corpus PRESEVAL (Proyecto para el Estudio Sociolingüístico del Español de Valencia). As 1.286 ocorrências coletadas, sendo 1.185 relativas à variante tú e 101 à variante usted, foram analisadas estatisticamente no programa Goldvarb (2005). Serviram-nos, como embasamento teórico para tratar da questão da variação estilística, três diferentes abordagens que aportam uma visão multidimensional desse tipo de fenômeno (LABOV, 2001, 2008; BELL, 1984; ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES 2002). No que tange às variáveis estilísticas analisadas, obtivemos os seguintes resultados: (i) os dados evidenciaram um propenso uso de tú nos estilos expositivos e argumentativos (0.890 e 0.751, respectivamente); (ii) a presença da variável assuntos menos complexos favorece a ocorrência da variante tú, como evidencia o peso relativo atribuído (0.639); (iii) os dados indicam uma porcentagem relativamente alta de uso da variante tú nos três fatores, encabeçada pela proximidade alta (95.1%). Ao observamos a aplicação da variante usted em nossos dados, essa apareceu de forma mais saliente eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.235-270 236 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 (59 ocorrências) entre os indivíduos caracterizados por uma relação de distanciamento com o entrevistador, frente aos de proximidade intermediária (38 ocorrências) e alta (4 ocorrências), respectivamente. Palavras-chave: formas de tratamento de segunda pessoa; espanhol de Valência; variação estilística. abstract: In this paper, we analyze the performance of stylistic factors in the variation of treatment forms of the second person, tú and usted, in 36 questionnaires take from thecorpus PRESEVAL (Proyecto para el Estudio Sociolingüístico del Español de Valencia). The 1.286 occurrences collected, with 1.185 related to the variant tu, and 101 to usted, were statistically analyzed by Goldvarb Program (2005). As theoretical background to address the question of stylistic variation, three different approaches were taken to show a multidimensional view of this phenomenon (LABOV, 2001, 2008; BELL, 1984; ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES, 2002). Concerning the stylistic variables analyzed, we have got the following results: (i) the data showed an inclined use of tú in the expository and argumentative styles (0.890 e 0.751, respectively); (ii) the presence of the variable less complex subjects favors the occurrence of the variant tú, as evidenced by the relative attributed weight (0.639); (iii) the data have showed a relatively high percentage of the use of the variant tú in the three factors, headed by high proximity (95.1%). By observing the use of the variant usted in our data, it has appeared more prominently (59 occurrences) among subjects characterized by a relation distance with the interviewer, compared to those of intermediate (59 occurrences), and high (4 occurrences) proximity respectively. Keywords: Treatment forms of the second person; Valence Spanish; stylistic variation. Recebido em 17 de agosto de 2019 Aceito em 30 de setembro de 2019 1 Introdução Há mais de cinco décadas, Brown e Gilman (1960) propunham sua teoria pioneira sobre a semântica do poder e da solidariedade que, desde então, tem rendido um número considerável de pesquisas na área do tratamento. Em espanhol, Morín, Almeida e Rodríguez (2010) são categóricos ao afirmar que os estudos que analisam as formas de tratamento pronominal e nominal, principalmente os primeiros, são de especial interesse para os sociolinguistas, nesse idioma. Orozco (2010), Díaz-Campos (2014), Silva-Corvalán e Enrique-Arias (2017) corroboram essa visão ao assegurar que essas formas integram uma área de estudo bastante produtiva dentro da Sociolinguística. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 237 Na segunda metade do século passado, Brown e Gilman (190) postulavam que as línguas europeias como o francês, o alemão, o italiano e o espanhol, mantinham ativas duas formas de tratamento, no singular, para se dirigir a um interlocutor e as quais estavam associadas a duas dimensões: a do poder e a da solidariedade. De acordo com os autores supra, essas formas tinham origem no tu e no vos do latim, em que a primeira forma (T) designava relações pautadas pela familiaridade, e a segunda (V) indicava polidez no tratamento. Em espanhol, tais pronomes resultaram no tú e no vos1 e este, posteriormente, no usted. Ainda consoante a esses autores, a dimensão do poder é marcada por uma relação assimétrica em que um indivíduo exerce poder sobre outro, por exemplo, a relação entre pais e filhos, patrão e empregado. Nessa semântica, o indivíduo superior utiliza a forma de tratamento T e recebe V. Por outro lado, na dimensão da solidariedade, há uma relação de simetria em que um indivíduo usa T e recebe T, por exemplo, no tratamento entre irmãos; ou V – V, nas relações em que não há diferenças relacionadas com o poder, por exemplo, o tratamento entre duas pessoas de famílias distintas, mas ambas de grande status social. Ao investigarem os usos das formas de tratamentos nessas línguas europeias, Brown e Gilman (1960) revelaram uma mudança nos tipos de relações partindo da assimetria para a simetria. Segundo esses autores, a dimensão da solidariedade começava a se expandir em vários contextos sociais, estabelecendo uma reciprocidade através do uso de T mútuo. No tocante ao uso feito dessas formas em língua espanhola, tal asserção tem sido comprovada por inúmeros trabalhos (cf. HUMMEL; KLUGE; VÁZQUEZ LASLOP, 2010). Além disso, Carricaburo (1997) assevera que as formas de confiança têm se sobreposto às formas de respeito em grande parte do 1 Conforme Lapeza (2008, passim), na primeira metade do século XVI, vos passou por momentos de coexistência com vosotros para referir-se a várias pessoas. No entanto, vos ainda se utilizava para designar indivíduos no singular em usos reverenciais ou de cortesia. Essa relação, obviamente, causava conflitos. Dessa forma, passou a dar-se preferência pelo pronome vosotros, uma vez que era inequívoco para fazer referência a várias pessoas. Vos, então, é eliminado de forma gradual. Ao desvalorizar-se o uso de vos, para mostrar cortesia no tratamento, usava-se vuestra merced ou vuestra señoría. De vuestra merced, a repetição deu origem a vuesa merced, vuesarced, vuesançed, etc. e, finalmente, a voacé, vucé, vuced, vusted, usted. No século XVII, essas últimas formas eram usadas por criados e, apenas depois, usted generalizou-se. 238 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 mundo hispano. Silva-Corvalán e Enrique-Arias (2017) atestam que o tuteo – nome dado ao fenômeno que consiste no emprego de formas verbais e pronominais da segunda pessoa do singular tú, em língua espanhola – tem avançado em mais situações de uso, inclusive entre indivíduos que não se conhecem, mas possuem idades similares. A despeito do número expressivo de trabalhos variacionistas sobre as formas de tratamento na literatura disponível sobre essa temática, ainda é perceptível, em muitas pesquisas, que as metodologias empregadas na análise da alternância entre essas formas são ainda pouco diversificadas. Ao nos debruçarmos sobre esses estudos, percebemos que o uso de questionário como instrumento de coleta de dados; análises pautadas apenas em variáveis de caráter social como: sexo, idade e escolaridade ou até mesmo pesquisas que consideram, tão somente, a perspectiva teórica de Brown e Gilman (1960), são lugar-comum nos estudos sociolinguísticos. Além disso, ao elaborarem o estado da arte sobre as formas de tratamento no âmbito da Península Ibérica Espanhola, Calderón Campos (2010) expõe a reduzida bibliografia sobre os pronomes tú e usted, nesse contexto. A visão desses autores corrobora a nossa percepção inicial, pois, além de evidenciarem a escassez de trabalhos nas variedades do espanhol falado na Espanha, admitem que o referencial teórico e a metodologia utilizada são bastante homogêneos. É imperioso ressaltar que, de forma alguma, queremos tirar prestígio à teoria epistemológica proposta por Brown e Gilman (1960). Ela foi fundamental para o desenvolvimento das pesquisas na área das formas de tratamento. No entanto, apesar de também recorremos a essa teoria, em alguns momentos, para explicarmos determinados padrões de variação, ponderamos que apenas o seu uso não é suficiente para dar conta de um sistema pronominal bastante complexo e que depende, inclusive, de fatores ligados ao próprio indivíduo como o estilo linguístico. Dito isso, o presente trabalho busca examinar algumas das lacunas apresentadas e propõe uma análise da variação entre as formas de tratamento tú e usted em uma comunidade de fala da cidade de Valência, situada na costa sudeste da Espanha. Ademais, como possíveis condicionadores desse fenômeno variável, selecionamos alguns fatores de ordem estilística, como: estilo discursivo, complexidade do assunto e relação de proximidade entre os interlocutores. Consideramos ser o estilo uma dimensão que, se no início era uma área marginalizada nos estudos Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 239 sociolinguísticos, como observam Macaulay (1999) e Hora (2014), já há algumas décadas, constitui uma vertente na área da pesquisa linguística em que importantes trabalhos têm sido desenvolvidos e oferecem aporte teórico para a explicação de fenômenos de variação, conforme aludem Aijón Oliva e Serrano (2010). 2 o estilo em sociolinguística Antes de tudo, convém salientar que o estilo é o objeto de estudo da Estilística, disciplina que se volta para os fenômenos da linguagem (MARTINS, 2012). Definir esse objeto não é tarefa fácil, haja vista que tem sido discutido em diversas perspectivas teóricas, e sua classificação dependerá, portanto, do tipo de abordagem adotada. Para Crystal e Davy (1969), por exemplo, a Estilística é um ramo da Linguística que estuda certos aspectos ligados à variação linguística. Ao distinguir alguns conceitos de “estilo”, os autores anteriormente mencionados revelam que o seu entendimento sobre esse termo se aproxima de algumas definições apresentadas por estudiosos da Estilística. Por exemplo, a visão do estilo como um objeto de estudo que se refere a alguns ou todos os hábitos linguageiros de uma pessoa ou às formas linguísticas que particularizam um indivíduo. Por outro lado, de modo semelhante, esses autores apresentam a noção de estilo como um objeto que pode se referir aos hábitos linguísticos referentes a um grupo de pessoas de uma só vez ou em um mesmo período de tempo. Ao buscarmos uma definição para estilo no Dicionário crítico de sociolinguística, organizado por Bagno (2017), encontramos uma compreensão bastante similar ao exposto no parágrafo anterior. De acordo com esse autor: Em seu sentido mais amplo, estilo se refere a um modo distintivo de falar ou escrever. As pessoas adotam diferentes estilos em diferentes contextos (por exemplo, no caso da fala, a depender de com quem se está falando, o tema da conversa, o local físico da interação etc.). Os estilos podem diferir em vários níveis linguísticos (léxico, gramática, pronúncia). As escolhas estilísticas são significativas por representarem contrastes: a escolha de uma palavra ou de uma pronúncia, por exemplo, em lugar de outra que poderia ter sido usada. (BAGNO, 2017, p. 122, grifo do autor) 240 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 Bagno expõe, ainda, que: Na Sociolinguística variacionista, estilo é um termo técnico que se refere à formalidade relativa de uma situação. Neste caso, o estilo da fala poder ser analisado em termos de um continuum estilístico que vai do menos formal ao mais formal, de acordo com o grau de atenção prestado pelo falante ao próprio discurso. (BAGNO, 2017, p. 122, grifos do autor) Essa maneira de perceber o estilo refere-se à perspectiva laboviana dentro dos estudos sociolinguísticos. Em outras palavras, é a Labov (2008), com seu estudo pioneiro em Nova York, que se atribui a inserção do estilo como variável que pode revelar padrões de variação. Para Eckert e Rickford (2001, p. 1), “Style is a pivotal construct in the study of sociolinguistic variation.”.2 Para esses autores, o trabalho laboviano supramencionado colocou em uma posição central a teoria e a metodologia referentes ao estilo. Sobre essa dimensão da variação, conforme Schilling-Estes (2002) e Görski e Valle (2014), três principais abordagens caracterizam os estudos dessa área desde a década de 60. São elas: i) Attention paid to speech, proposta por Labov (2001, 2008); ii) Audience design, desenhada por Bell (1984) e iii) Speaker design (ECKERT, 2001; SCHILLING-ESTES, 2002). Ao estabelecer as bases para uma análise estilística da variação, modelo Attention paid to speech ou, em português, “grau de atenção à fala”, Labov (2008) estava interessado em chegar ao vernáculo do falante. Dito de outra forma, o linguista pretendia observar a fala mais espontânea, isto é, os trechos de fala em que havia menos monitoramento, pois era no vernáculo que se poderia registrar os processos de mudança. Desse modo, como a coleta de dados partia do estilo do falante, Labov (2008) desenhou a entrevista sociolinguística, a partir da qual lhe possibilitaria obter uma extensa amostra de estilo; desde a fala mais formal a menos formal (ECKERT; RICKFORD, 2001). Para Labov (1972), o estilo do falante abarcava um contínuo socioeconômico, pois, segundo esse autor, as variações linguísticas estavam relacionadas a uma estratificação socioeconômica. Desse modo, o linguista estabelece um continuum estilístico para cada falante no “O estilo é um constructo fundamental no estudo da variação sociolinguística.”. (ECKERT; RICKFORD, 2001, p. 1, tradução nossa). 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 241 qual, no topo, está a fala mais cuidada, mais formal e de prestígio e, em um nível mais baixo, registra-se a fala menos cuidada, mais informal e estigmatizada. No entanto, como a entrevista sociolinguística é um método de coleta relativamente formal, isso poderia impedir o linguista de chegar ao vernáculo do falante, isto é, a fala mais natural. Para resolver o “paradoxo do observador”, como Labov chamou a problemática acima, a solução foi controlar os tópicos de conversa. A entrevista é, então, segmentada em níveis de formalidade e informalidade e o linguista percebia as variações de estilo a partir do grau de monitoramento que o falante exercia sobre a fala. Essa forma de analisar os estilos distribuídos em uma única dimensão ficou conhecida como isolamento de estilos contextuais, que compõe o desenho metodológico elaborado por Labov (2008) entre os anos 60 e 70, conhecido como modelo de análise contextual. Os níveis de formalidade e informalidade, conhecidos como “estilos contextuais”, estabelecidos por Labov (2008) e segmentados na entrevista, foram os seguintes: i) ii) iii) iv) v) vi) vii) viii) ix) contexto A1: fala fora da entrevista formal – compreende a fala que está fora da entrevista propriamente dita, por exemplo, uma interrupção ou quando o falante oferece alguma bebida; contexto A2: fala com uma terceira pessoa; contexto A3: fala que não responde diretamente a perguntas, isto é, digressões, interrupções rápidas ou retóricas etc.; contexto A4: parlendas e rimas infantis; contexto A5: risco de vida; contexto B: é a parte principal da entrevista e constitui o estilo identificado como fala monitorada; contexto C: estilo de leitura. O informante realiza a leitura de textos padronizados nos quais se concentram variáveis fonológicas em parágrafos sucessivos ou pode haver trechos justapondo pares mínimos; contexto D: leitura de listas de palavras com as variáveis que se pretende analisar; contexto D’: leitura de listas de palavras com pares mínimos que marcam, como diferença, apenas um elemento fonêmico. 242 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 Posteriormente, Labov refina o modelo de isolamento de estilos contextuais e propõe outro modelo de análise conhecido como árvore de decisão. Nele o linguista ainda admite que as alternâncias de estilos são determinadas pelo grau de monitoramento à fala e apresenta duas dimensões para captação do estilo: uma com fala mais casual (casual speech) e é caracterizada pela ausência de monitoramento por parte do falante; e uma de fala mais cuidada (careful speech) em que há um estilo de fala mais formal. A cada dimensão correspondem quatro subcategorias, ou contextos estilísticos, associados a situações que atravessam a entrevista. São elas: narrativa – narrativas orais de experiência pessoal; grupo – fala direcionada a outros interlocutores fora da entrevista formal; infância – narrativas de infância; tangente – são as digressões, trechos de fala do entrevistado que fogem ao núcleo temático por interesse dele; e resposta – o primeiro enunciado que segue a fala do entrevistador; língua(gem) – falas que abordam aspectos linguísticos; soapbox – quando o entrevistado opina de maneira genérica, dirigindo-se não diretamente ao entrevistador, mas como se fosse para um público mais amplo, e residual – consiste em todas as falas da entrevista que não se encaixam em nenhum dos outros contextos. Para a análise estilística, o sociolinguista deve associar os trechos de fala do informante a um desses contextos. Ao associar, se houver correspondência, a análise termina. Por outro lado, não havendo correspondência, segue-se associando às outras subcategorias até chegarse ao residual, contexto estilístico que, como vimos, acolhe os trechos de fala em que não foi possível estabelecer uma correspondência com os demais estilos contextuais. O modelo laboviano para análise da variação estilística foi alvo de críticas por vários estudiosos. Dantas e Gibbson (2014) e Coelho e Nunes de Souza (2014), por exemplo, questionaram o fato de Labov focar no grau de atenção à fala, algo que, como observa Eckert e Rickford (2001), contribuiu para que mais estudos sobre o estilo não fossem replicados na década de 70. Além disso, estes autores afirmam que havia dificuldades em isolar a fala mais casual da fala mais formal através dos contextos presentes na entrevista. Bell (1984), sociolinguista neozelandês, criticou o método através do qual Labov (2008) separava a fala mais casual. Como se sabe, este linguista utilizava, por exemplo, a leitura de textos, listas de palavras e pares mínimos para apreender esse tipo de estilo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 243 Para Bell (1984), esse tipo de estilo do falante era considerado “artificial” na entrevista, pois, em um contexto comunicativo espontâneo, seria difícil o indivíduo produzi-lo. Isto é, o estilo captado quando o informante lesse uma lista de palavras só seria possível quando o falante lesse uma lista de palavras. Dessa forma, nos anos posteriores à proposição do modelo de análise contextual laboviano, há uma mudança de foco nos estudos do estilo. Se antes centravam-se no âmbito do falante, depois passa a estar na influência que o interlocutor exercia na variação estilística. Surge, então, em 1984, a proposta metodológica de Bell: Audience Design. Bell (1984) defende que a dimensão estilística deve estar correlacionada aos atributos de um indivíduo, tendo em vista que ela deriva da dimensão social e essa, conforme alguns sociolinguistas, está relacionada às características do falante como sexo e idade. Contudo, para ele, há de considerar as características do ouvinte e não do falante. Assim, a variação estilística é explicada a partir da influência que a audiência, ou seja, o interlocutor projeta sobre o falante. Bell (1984, p. 159) assume: “[...] persons respond mainly to other persons, that speakers take most account of hearers in designing their talk”.3 Esse constitui o axioma principal do modelo supracitado. Em seu desenho metodológico, Bell (1984) estabelece uma relação de causa e efeito em três níveis que sustenta o seu foco no ouvinte. O primeiro nível, de caráter sincrônico, refere-se a um único falante que, em determinadas situações, altera o seu estilo para soar, linguisticamente, como outro falante. O segundo nível, de caráter diacrônico, diz respeito a um falante individual que, no curso do tempo, altera o seu discurso para se assemelhar a outros grupos, por exemplo, quando o falante se muda para outra região com dialeto diferente. O último nível, mais próximo do segundo, aponta para todo um grupo de falantes que altera a sua fala para se aproximar à fala de outro grupo. Ademais, Bell (1984) designa diferentes categorias de audiência cuja influência sobre a variação estilística dependerá da distância que o público mantém do falante. Em outras palavras, quanto mais próximo deste, maior será a influência em seu estilo. Para Bell (1984), a principal “As pessoas respondem, principalmente, a outras pessoas, ou seja, o que os falantes levam mais em conta são os ouvintes, ao projetarem suas falas.” (BELL, 1984, p. 159, tradução nossa). 3 244 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 audiência é a segunda pessoa, isto é, o destinatário, o qual é reconhecido e ratificado. A categoria que inclui esse tipo de audiência foi denominada de adresse. No entanto, Bell não considerou apenas a segunda pessoa, mas, também, as terceiras pessoas. A categoria conhecida como auditor agrega as pessoas presentes, conhecidas e ratificadas, porém, não diretamente endereçadas. Em overhearer, o falante tem consciência da sua existência. No entanto, são participantes não ratificados. Na última categoria, eavesdropper, estão as pessoas cuja presença é desconhecida. Sendo assim, de acordo com Bell (1984, p. 159), “These four audience roles are implicationally ordered according to whether or not they are addressed, ratified, and known.”.4 Assim como o modelo de Labov (2008), a proposta de análise de Bell (1984) também foi alvo de críticas. Para Hernández฀Campoy (2016), assim como o modelo anterior, Audience Design é ainda unidimensional, nesse caso, com foco no ouvinte. Além disso, entre outras críticas, o autor questiona o fato de esse modelo não especificar, exatamente, quais fatores da audiência motivam a mudança de estilo no indivíduo. Desse modo, para ele, Bell subestima o papel do falante. Contudo, Hernández฀ Campoy (2016) reconhece que essa abordagem fornece uma descrição mais completa da variação estilística do que a abordagem laboviana de atenção à fala. De modo análogo, sobre o trabalho de Bell publicado em 1984, Ecker e Rickford (2001, p. 4) afirmam: This paper not only introduced a coherent view of style-shifting, it also integrated a wide range of previously disparate sociolinguistic findings, and posited a number of novel theoretical generalizations and testable predictions about the relation between social and stylistic variation.5 Em conformidade com Shilling-Estes (2002), com o progresso nos estudos da variação estilística, houve um deslocamento de abordagens unidimensionais para abordagens multidimensionais que incluem vários Essas quatro funções da audiência estão implicitamente ordenadas de acordo com o fato de serem ou não endereçadas, ratificadas e conhecidas.” (BELL, 1984, p. 159, tradução nossa). 5 Este artigo não apenas introduziu uma visão coerente da mudança de estilo, mas também integrou uma ampla gama de achados anteriormente díspares, e propôs uma série de novas generalizações teóricas e previsões testáveis sobre a relação entre variação social e estilística. 4 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 245 fatores motivadores desse tipo de variação (tópicos, cenários, grupos sociais etc.). Para a autora: “Because the focus is now on how speakers use variation to fashion themselves and their surroundings, current approaches to stylistic variation can be classified as SPEAKER DESIGN approaches.”6 (SHILLING-ESTES, 2002, p. 339, grifo da autora). Ainda em fase inicial no Brasil, o modelo Speaker Design centra seu estudo na comunidade de prática e não na comunidade de fala, como nas abordagens anteriores. Aquela é entendida como um grupo de pessoas que possuem perspectivas em comum e que se engajam em projetos comuns. Dessa forma, como o indivíduo integra a matriz social, é nela que ele constrói a sua identidade através da prática estilística (ECKERT, 2001). O foco desse modelo está em saber como o indivíduo se vale da variação estilística para construir essa identidade, assim como estabelecer interações interpessoais e criar identidades de grupo (SHILLING-ESTES, 2002). Destarte, quando o falante realiza combinações para produzir diferentes maneiras de falar, este trabalha na construção da persona. É esse processo que é entendido como estilo. Nessa fase dos estudos sobre a variação estilística, Shilling-Estes (2002) afirma que há um uso criativo dos recursos linguísticos. A autora ainda expressa que, finalmente, os estudos nessa área passam a considerar tanto a percepção do ouvinte como a produção do falante, uma vez que, para que haja significado social, depende-se do que o falante quer transmitir e de como os ouvintes interpretam o que esse diz. Vale ressaltar que, de acordo com a autora supra, as três abordagens, anteriormente apresentadas, podem correlacionar-se às três ondas classificadas por Eckert (2012) quando esta analisou os estudos variacionistas desde o trabalho seminal de Labov (2008). Ademais, Shilling-Estes (2002) chama atenção para o fato de essas três abordagens não serem, claramente, separáveis. Eckert (2012), por sua vez, exprime que uma abordagem não invalida a outra, mas se complementam entre si. “Como o foco agora está em como os falantes usam a variação para moldar a si mesmos e seus arredores, as abordagens atuais da variação estilística podem ser classificadas como abordagens SPEAKER DESING.” (SHILLING-ESTES, 2002, p. 339, tradução nossa.). 6 246 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 3 Metodologia A fim de viabilizarmos a proposta de análise deste trabalho, recorremos a um corpus oral previamente elaborado do âmbito do espanhol peninsular. Nossa escolha por esse tipo de corpus pautou-se pelas questões levantadas na seção introdutória, isto é, a relativa escassez de trabalhos sobre as formas de tratamento, nessa variedade do espanhol. Ademais, objetivamos diversificar o método de coleta que, como expusemos, são majoritariamente questionários e textos literários. Desse modo, empreendemos uma pesquisa sobre os corpora já compilados e publicados que atendessem esses nossos objetivos. Sendo assim, recorremos ao Proyecto para el estudio sociolingüístico del español de España y de América (PRESEEA) por abrigar equipes de vários países do mundo hispano, empenhadas em constituir uma grande amostra sociolinguística que viabilizem pesquisas sob diversas perspectivas em língua espanhola. Destarte, dentre os corpora disponíveis relativos a cidades espanholas, optamos por trabalhar com o corpus da cidade de Valência em virtude do desenho metodológico de suas entrevistas. Nessas o conjunto de módulos temáticos foi gravado considerando diferentes tipologias textuais (narrativa, argumentativa, descritiva, expositiva, dialogada), as quais, dependendo do propósito comunicativo, podem apresentar certa variação estilística. Desse modo, considerando a abordagem da dimensão estilística da variação proposta neste trabalho, pareceu-nos oportuno o uso do corpus intitulado Proyecto para el estudio sociolingüístico del español de Valencia (PRESEVAL). Desenhado em 1996 e finalizado em 2006, o corpus PRESEVAL seguiu os critérios estabelecidos na metodologia desenhada pelo PRESEEA, assim como as demais equipes que integram este macrocorpus. A amostra original do material com o qual trabalhamos é constituída pelas entrevistas de 74 informantes, estratificados nas seguintes variáveis: sexo, agrupados em homens e mulheres; idade - faixa etária 1 (de 20 a 34 anos), faixa etária 2 (de 35 a 54 anos) e faixa etária 3 (acima de 55 anos); escolaridade - nível baixo, nível médio e nível alto e língua habitual dividida em castelhano-falantes e bilíngues. Para este estudo, selecionamos 36 entrevistas, estratificadas a partir das variáveis sexo (homem e mulher), idade (faixa etária 1, 2 e 3) e escolaridade (alta e baixa). Essa amostra encontra-se publicada em dois volumes (GÓMEZ MOLINA, 2001, 2007). No que se refere a Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 247 essa última variável, alguns estudos evidenciam que os indivíduos que tiveram um maior tempo de escolarização produzem mais variedades consideradas padrão do que aqueles que estiveram menos tempo de ensino formal (COELHO et al., 2015). A fim de verificarmos se esse comportamento se repete no estudo em questão, optamos por trabalhar apenas com os extremos do grupo de fatores escolaridade, ou seja, com os níveis alto e baixo. Isso não significa que o nível de escolaridade médio não seja relevante para revelar padrões de variação e possa ser descartado. Mas, de acordo com os trabalhos consultados (cf. HUMMEL; HKLUGE; VÁZQUEZ LASLOP, 2010), percebemos certa polarização no uso de uma variante ou outra no que se refere às formas tú e usted relacionada à escolaridade. O índice de uso dessas formas pelos falantes com escolaridade mediana, nesses estudos, tem, geralmente, se aproximado de um dos extremos mencionados anteriormente. Desse modo, acreditamos que isso possa viabilizar a nossa pesquisa no que tange à escolha pela exclusão do nível médio de escolaridade. Neste ponto, também é imperioso ressaltar que formaram parte da nossa amostra apenas as formas tú e usted em posição de sujeito oracional. Consideramos, igualmente, as formas implícitas e explícitas desses pronomes. Adotamos essa perspectiva em virtude de, segundo Matte Bon (2008), diferentemente de outras línguas, o pronome sujeito, em língua espanhola, nem sempre vir explícito no contexto. Esse gramático esclarece que o verbo já carrega as marcas pessoais, inclusive na língua falada, e é categórico ao afirmar: “[…] en español, el pronombre sujeto aparece solo cuando al hablante le parece indispensable para la correcta comprensión de sus intenciones comunicativas”.7 (MATTE BON, 2008, p. 249). Esse aspecto possibilita, pois, a comutação das formas pronominais de tratamento por seus respectivos paradigmas verbais. Posterior à análise do corpus e coleta, categorizamos esses dados com as seguintes variáveis estilísticas: estilo discursivo, complexidade do assunto e relação de proximidade entre os interlocutores. Esses dados passaram por um tratamento estatístico oportunizado pelo programa Goldvarb (2005), do conjunto de programas computacionais VARBRUL, “[...] em espanhol, o pronome sujeito aparece somente quando, ao falante, parece-lhe indispensável para a correta compreensão de suas intenções comunicativas” (MATTE BON, 2008, p. 249, tradução nossa). 7 248 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 do inglês, Variable Rules Analysis. Consoante a Guy e Zilles (2007), esse software é bastante utilizado nos estudos sociolinguísticos porque foi projetado para lidar com fenômenos variáveis e possibilitar uma análise multivariada. Para o estilo discursivo narrativo, a nossa hipótese é de que haverá maior uso de tú que nos outros estilos não narrativos. Ancoramonos no estudo de Silva (2016), que atesta que as sequências narrativas, em especial as que envolvem experiência pessoal, têm certa influência positiva na expressão de formas linguísticas consideradas informais. Por outro lado, ponderamos que, no estilo argumentativo, haverá predominância de usted, supondo que, nessa sequência, o falante fará uso de uma fala mais cuidada. A equipe do PRESEVAL selecionou, para essa sequência, alguns temas mais delicados, que possivelmente exijam um maior conhecimento do informante. Desse modo, acreditamos haver maiores condições de monitoramento da fala. Em seguida, apresentamos os fatores que compõem essa variável de controle com seus respectivos exemplos: a) Narrativo (1) […] yo digo bueno/ YO HAGO LA PAELLA/ si me traéis aquí lo que yo os pida// y la suegra/ de mi mu- de mi hija/ lo que uste(d) quiera/ lo que uste(d) pida le traemos// mira lo primero que tiene que hacer es// los animales/ caseros// si ahí en el corral tenemos de todo/ pato conejo y pollo// vale// para cuántos/ son- vamos a ser// pues treinta y tantos/ treinta y tres treinta y cuatro/ según// pues quiero esto esto esto y esto (eu digo bom/ EU FAREI A PAELLA/ se me trouxerem aqui o que eu lhes peça// e a sogra/ da minha mu- da minha filha/ o que você quiser/ o que você pedir lhe trazemos// olhe o primeiro que deve fazer é// os animais/ caseiros// se aí no quintal temos de tudo/ pato coelho e galinha// ok// para quantos/ somos// pois trinta e tantos/ trinta e três e quatro/ segundo// pois quero isto isto e isto) (ENTREVISTA 19 – VAL01913HB05) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 249 b) Expositivo (2) […] hombre depende dee- dee- dee- de la cantidad de gentee/ o de- de cómo lo quisieras hacer/ si quieres hacer un bautizo// por todo lo alto dee- dee- de- de gente/ o que quieras hacer una cosa familiar (rapaz depende dee- dee- dee- da quantidade de gentee/ ou de- de como queiras fazê-lo/ se queres fazer um batizado// para muitas pessoas/ ou se queres fazer uma coisa familiar) (ENTREVISTA 06 – VAL00613MB01) c) Descritivo (3) […] las berenjenas rellenas/ las berenjenas rellenas puess/ yo las cojo cojo las pieza(s)/ y la- la berejena la abro así/ a la mitad ¿no?/ a lo largo/ la pongo en dos partes/ yy le vacías lo de dentro/ ¿sí?/ y eso de dentro lo cocinas con cebolla/ con carne picada/ y con condimentos así// yy cuando está todo eso lo vuelves a meter/ en la berenjena/ y lo metes al horno// (as berinjelas recheadas/ as berinjelas recheadas pois/ eu as pego pego as partes e a- a berinjela a abro assim/ à metade né?/ durante/ coloco-a em duas partes/ e tiras o que tem dentro/ certo? e isso que tem dentro o cozinhas com cebola/ com carne picada/ e com temperos assim// ee quando está tudo isso voltas a meter/ na berinjela/ e o metes no formo//) (ENTREVISTA 21 – VAL02111HC06) d) Argumentativo (4) […] los principales problemas pues/ eel- el básico// desde que prohibieron pegar el cachete/ la falta de educación// ¿me comprende?/ y falta de ideas/ si ahora- si los padres ya dee/ hablo- mis hijos mismo que ya con treinta y siete o treinta y ocho años// ¿eh?// llega a los chiquillos y le compran doscientos juguetes// ¿me comprende?/ el chiquillo no piensa na(da) más que en jugar/ ¿eh?/ es quee al chiquillo no se le puede pegar uun cachete porquee- porquee ha tira(d)o una pedrá(da)/ pues si no le pegas un cha- cachete ahora después noo- no le podrás decir nada/ y ese es el problema que veo yo cara la juventud (os principais problemas pois/ oo- o básico// desde que proibiram dar palmadas/ a falta de educação// me entende?/ a falta de ideias/ se agora- se os pais já dee/ falo- meus filhos mesmo que 250 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 já com trinta e sete ou trinta e oito anos// eh?// você chega às crianças e lhes compram duzentos brinquedos// me entende? o menino não pensa em outra coisa a não ser em jogar/ né?/ é que não se pode dar umas palmadas na criança porquee- porquee a jogado uma pedra/ pois se não lhe das uma pal- palmada agora depois nãoo- não poderás dizer-lhe nada/ e esse é o problema que eu vejo diante da juventude) (ENTREVISTA 02 – VAL00213HB01) e) Dialogal (5) […] se dijeron mira si tienes otro hijo y no lo puedes/ criaar y tú no lo puedes criar/ me lo criaré yo/ (se disseram olha se tens outro filho e não o podes/ criaar e tu não podes criá-lo/ eu o criarei/) (ENTREVISTA 24 – VAL024333MB00) No que tange à variável complexidade do assunto, na visão de Freitag (2003), avaliar essa complexidade em mais complexo e menos complexo é uma tarefa delicada, pois o grau de complexidade de um assunto é aferido por cada falante. Falar sobre política, por exemplo, pode ser menos complexo para um vereador e mais complexo para uma dona de casa, conforme ilustra a autora. No entanto, Freitag (2003) assume que a distinção entre assuntos mais complexos e assuntos menos complexos pode dar-se no fato de o falante ter experienciado ou não o assunto. Dessa forma, assuntos que foram experienciados ou presumidamente experienciados devem apresentar menos complexidade do que os assuntos não-experienciados. Sendo assim, optamos por controlar o núcleo temático abordado nos estilos discursivos a fim de verificar se há alguma correlação com o tipo de assunto abordado e a forma pronominal utilizada. Para isso, adotamos o refinamento desenhado por Freitag (2003), estabelecendo os seguintes fatores: a) Assuntos mais complexos (6) […] ¡oiga! mientras han esta(d)o en mi casa/ mientras han esta(d)o en mi casa/ ¿eh?/ mi hijo yoo lo veo en la televisión que ha esta(d) o haciendo caballitos/ con cascos y tal/ y no le digo nada porque no me parece bien/ pero ¡vamos! a los veinte años se hacen esas tonterías/ ¿me comprende?/ a los veinte o veinticinco/ peroo/ lo Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 251 que ¿sin casco?/ el mío no/ yo le quemo la moto (olhe! enquanto estiverem em minha casa/ enquanto estiverem em minha casa/ meu filho eu o vejo na televisão que esteve fazendo acrobacias com a moto/ com capacete e tal/ e não lhe digo nada porque não vejo bem/ mas claro! aos vinte anos eles fazem essas estupidezes/ me entende? aos vinte ou vinte e cinco/ mass/ o que sem capacete?/ o meu não/ eu queimo-lhe a moto) (ENTREVISTA 02 – VAL00213HB01) b) Assuntos menos complexos (7) espaguetis aa/ la carbonara/ pues cueces los espaguetis/ mientras tanto cortas el champiñón a trocitos// ee/ fríes el champiñón/ luego echas el beicon porque tarda menos en freírse que el champiñón// le pones la nata por encima// y luego toda esa mezcla se la pones a los espaguetis ya hechos y/ limpios/ y ya está (espaguetes àà/ à carbonara/ pois cozinhas os espaguetes/ enquanto isso cortas o cogumelo em pedacinhos// ee/ fritas o cogumelo/ em seguida colocas o bacon porque demora menos a fritar que o cogumelo// colocas a nata por cima// e em seguida toda essa mescla colóca-la nos espaguetes já feitos e/ limpos/ e pronto) (ENTREVISTA 24 – VAL02411MB06) Em nossa pesquisa, consideramos assuntos mais complexos, por exemplo, temas como: problemas sociais atuais, conflitos geracionais, vantagens e inconvenientes do serviço militar, problemas da juventude atual, massificação universitária, imigração, persuasão aos filhos sobre drogas, cigarro e bebidas, insegurança cidadã. Por outro lado, estabelecemos como assuntos menos complexos os seguintes temas: infância, escola, primeira comunhão, jogos, festas daquela época, férias passadas, como conheceu o(a) companheiro(a), a casa, o bairro, os domicílios anteriores, o lugar de veraneio, as reformas na moradia. Portanto, defendemos que o falante fará o uso da variante usted, quando trate de assuntos considerados mais complexos (exemplo 6). Havendo a necessidade de se posicionar sobre um tema, muitas vezes não experienciado, acreditamos que haverá um maior monitoramento da fala. Por outro lado, ponderamos que tú será predominante quando houver maior familiaridade com o tema, sendo, portanto, assuntos menos complexos (exemplo 7). 252 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 Quanto à variável relação de proximidade entre os interlocutores, Valle e Görski (2016, p. 39) chamam a atenção para a possibilidade de os interlocutores possuírem um maior vínculo, na entrevista, quando possuem o mesmo sexo, idade e grau de escolaridade próximos. Desse modo, para conceber essa variável, adaptamos o instrumental de análise elaborado por essas autoras, considerando, assim como essas, os seguintes critérios para medir o grau de proximidade entre o entrevistador e o(a) entrevistado(a): simetria de idade, simetria de sexo e simetria de escolaridade. Para cada critério arrolado acima, estabelecemos dois níveis de proximidade e, para cada nível, atribuímos uma pontuação a partir da qual indicamos haver uma maior ou menor proximidade entre entrevistador e entrevistado. Desse modo, determinamos o valor de (0,5) quando houvesse uma maior proximidade, entre esses indivíduos, nos critérios supra, e (0) quando a proximidade fosse menor. Foi a partir do somatório desses valores que construímos a variável complexa em questão. Observemos o quadro 1 para uma melhor compreensão. QUADRO 1 – Pontuação dos critérios para construção da variável complexa relação de proximidade entre os interlocutores simetria de idade 0,5 - Entrevistado pertencente à mesma faixa etária do entrevistador 0- Entrevistado de faixa etária diferente simetria de Escolaridade 0,5 - Entrevistado pertencente ao mesmo nível de escolaridade do entrevistador 0- Entrevistado com nível de escolaridade diferente ao do entrevistador simetria de sexo 0,5 - Interlocutores com mesmo sexo 0- Interlocutores com sexo diferente O resultado da somatória desses critérios varia de 0 a 1,5 pontos. Assim, tais valores foram transformados em fatores que nos ajudaram a controlar a variável mencionada. São eles: distanciamento, quando o valor após a somatória tenha sido (0 – 0,5); proximidade intermediária, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 253 quando os valores somados chegassem a (1,0) e proximidade alta, com (1,5) de pontuação. No exemplo (8), abaixo, o entrevistado não pertence à mesma faixa etária, nem ao mesmo nível de escolaridade que o entrevistador, aproximando-se, apenas, no critério sexo, pois são ambos do sexo masculino. Desse modo, a pontuação atribuída a esse entrevistado foi apenas de 0,5, classificando-se, assim, como uma relação de distanciamento com o entrevistador, segundo o instrumental de análise acima descrito. Em (9), o entrevistado distancia-se no critério escolaridade, mas possui o mesmo sexo e encontra-se na mesma faixa etária que o entrevistador, estabelecendo-se, portanto, uma proximidade intermediária com (1,0) de pontuação. Já em (10), entrevistador e entrevistado estão no mesmo nível de escolaridade, idade e sexo. Esse indivíduo obtém, assim, 1,5 no somatório final e enquadrando-se em uma relação de proximidade alta com o entrevistador. Isso posto, assim como as autoras supramencionadas, hipotetizamos que os contextos de maior proximidade entre os interlocutores sejam favorecedores da variante tú em detrimento de usted, pressupondo que esta última é mais esperada em contextos em que há uma assimetria nas relações. a) Distanciamento (8) […] pero yo cogí al alcalde y digo/ bueno/ señor alcalde// que era un tal don/ mm Salvador Grancha/// en la República/ señor alcalde/ ¡bueno!// ya está todo claro/ ¿no pasa nada?/ ¿no es ...?// nada// bueno pues/ ahora devuélvale usted el revólver a mi padre/// ¿cómo voy a devolver el revólver yo y tal?/ mi padre/ calla tal/ no/ ¡usted es un ladrón!/ usted me ha roba(d)o el revólver a mí/ y el revólver es de mi padre y usted se lo tiene que devolver// bien así pasó la cosa/ pero// nada más (mais eu peguei o prefeito e digo/ bom/ senhor prefeito// que era um tal de Salvador Grancha/// na República/ senhor prefeito/ bom!// já está tudo claro/ tudo bem?/ não é ...?// então// bom pois/ agora você devolva-lhe o revólver ao meu pai/// como eu vou devolver o revólver e tal?/ meu pai/ cala tal/ não/ você é um ladrão!/ você me roubou o revólver/ e o revólver é do meu pai e você tem de devolvê-lo// bem assim aconteceu/ mas// nada mais) (ENTREVISTA 05 – VAL00513HB01) 254 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 b) Proximidade intermediária (9) […] no puedes emplear dos horas aa cuatro mil pesetas la hora/ si la pieza nueva vale nueve mil// aunque le cueste un poco más/ se le pone una pieza nueva que siempre es nueva/ no tienes que andar reparándosela/ (não podes empregar duas horas aa quatro mil pesetas a hora/ se a peça nova vale mil// ainda que lhe custe um pouco mais/ põe-lhe uma peça nova que sempre é nova/ não tens que andar concertando-a/) (ENTREVISTA 09 – VAL00912HC02) c) Proximidade alta (10) […] me gustaría criar animales// y hacer bien a los demás/ o sea/ pero para hacer bien a los demás primero tienes que ofrecerte/ y después tener POSIBILIDADES/ claro/ si no tienes tampoco puedes hacer mucho (eu gostaria de criar animais// e fazer bem aos demais/ ou seja/ mas para fazer bem aos demais primeiro tens que oferecer-te/ e depois ter POSIBILIDADES/ claro/ se não tens também não podes fazer muito) (ENTREVISTA 15 – VAL01532HB99) Conforme é possível notar, disponibilizamos a tradução dos trechos selecionados para a língua portuguesa. No entanto, ressaltamos que abstraímos questões pragmáticas quanto ao uso dos pronomes nessa língua e mantivemos a equivalência pronominal e verbal das formas que aparecem nos trechos de fala em língua espanhola, quando da tradução. Somos cientes de que o processo tradutório não é uma simples passagem de uma língua para outra, mas, conforme Hurtado Albir (2011), requer do tradutor uma “competência tradutora”. Contudo, como o fenômeno em análise é oriundo da língua espanhola e trabalhamos com o sistema pronominal de tratamento de segunda pessoa dessa língua, desconsideramos os contextos de uso dos pronomes tu e você, bem como o seu paradigma verbal. 4 análise dos resultados Após a etapa de rodagem dos dados, obtivemos um total de 1.286 dados referentes às variantes tú e usted. Desse quantitativo, 1.185 foram de uso de tú (92,1%) e 101 de usted (7,9%). Tendo em vista a expansão 255 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 do fenômeno tuteo em vários territórios em que o espanhol é língua oficial, estabelecemos a variante tú como regra de aplicação e, a partir disso, o programa estatístico selecionou as seguintes variáveis como significativas para a variação em questão: complexidade do assunto e estilo discursivo, nessa ordem de significância. Por outro lado, para a nossa surpresa, a variável relação de proximidade entre os interlocutores não demonstrou significância estatística. Em seguida, procederemos à análise e discussão dos dados das variáveis significativas e, por último, discutiremos a variável descartada pelo programa Goldvarb (2005). TABELA 1 – Atuação do grupo de fatores complexidade do assunto no uso da variante tú versus a variante usted grupo de fatores aplicação/Total Percentual (%) Peso relativo Assuntos menos complexos 933/1001 93.2 0.639 Assuntos mais complexos 252/285 88.4 0.119 Fonte: Elaborada pelos autores. Pela ordem de significância, a variável complexidade do assunto foi o primeiro grupo de fator selecionado pelo programa estatístico. Como podemos observar na Tabela 1, os resultados corroboram a nossa hipótese inicial, segundo a qual, em temas considerados mais complexos, os informantes apresentariam maior uso da variante usted frente ao uso feito de tú. Por outro lado, em assuntos menos complexos, o uso de tú seria imperativo, uma vez que, indo em direção contrária ao outro uso, os falantes produziriam uma fala menos monitorada. O peso relativo atribuído a cada tipo de complexidade do assunto foi bastante significativo. Em assuntos mais complexos, chegou-se a (0.119), conforme a tabela acima. Sabemos que, quanto mais próximo de 0,0, menor é a influência da variante selecionada como regra de aplicação, na presença do fator analisado. Nesse ponto, acreditamos que o falante exerce um maior monitoramento da fala, pois, em alguns momentos, precisa posicionar-se sobre assuntos que não foram experienciados, como, por exemplo, o uso de drogas feito por um filho. Ademais, ao ter de se posicionar, essa mudança de estilo pode ser uma reação à audiência ali presente. De acordo com Bell (1984), o falante adequa o seu discurso em função dos seus interlocutores, nesse caso, o entrevistador que, no corpus 256 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 PRESEVAL, é um professor do Departamento de Filologia Espanhola da Universidade de Valência. Em outro extremo, na presença do fator assuntos menos complexos, a variante tú exerce considerável influência, como evidencia o peso relativo atribuído (0.639). No exemplo apresentado em seguida, a informante afirma que a primeira coisa com a qual se preocupa em uma festa é a comida. Isso deixa claro que se trata de um tema experienciado por ela, e, portanto, quando o entrevistador pede que lhe explique a elaboração de um prato, essa tarefa não parece exigir esforço algum por parte da entrevistada. Apoiando-nos em Freitag (2003), acreditamos que assuntos experienciados ou presumidamente experienciados devem ser menos complexos para o falante do que assuntos que não foram experienciados, conforme expomos anteriormente. (11) es/ poner leche/ si lo quieres con leche poner la leche en el fuegoo y cuando estáa yaa calentiita vas echando el chocolatee lo vas movieendo movieendo/ que no se apelmace/ yy- y queda espesito espesito y muy bien/ puede ser también con agua/ pero ya no está tan bueno/ ssi te parece que está poco dulce el chocalate lo pruebas y p- pones um poquito más/ pero ¡bueeno! los chocolates siempre estánn/ muy muy ricos (risas) (é/ colocar leite/ se o queres com leite colocar o leite no fogoo e quando jáa estáa quentiinho vais colocando o chocolate e o vais mexeendo mexeendo/ não é para deixar endurecer/ ee- e fica grossinho grossinho e muito bem/ pode ser também com água/ mas já não fica bom/ se te parece que está um pouco doce o chocolate prova-o e c- colocas um pouquinho mais/ maaas/ os chocolates sempre estão/ muito muito gostosos (risos)) (ENTREVISTA 24 – VAL024333MB00) Os usos dessas variantes, nesses contextos, também evidenciam uma variação no estilo de fala. Lucca (2005), por exemplo, atribui o uso realizado em temas menos familiares ao contexto soapbox da categoria de fala monitorada de Labov (2001). Para a pesquisadora, nesse tipo de fator, o informante sente a necessidade de se posicionar em relação a um determinado tema, de ser convincente. Consequentemente, essa atitude o aproxima do uso da variedade padrão, pois sua fala tende a ser mais planejada e, portanto, fará maior uso da variante de prestígio. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 257 Semelhante a Lucca (2005), podemos atribuir os trechos de fala dos informantes às categorias e subcategorias elaboradas por Labov (2001) ao propor o modelo de árvore de decisão. Se observamos, quando o falante discorre sobre suas experiências de vida, narrativas de infância, o que envolve temas como primeira comunhão, festas e jogos da infância, casa, férias etc., registra-se um estilo de fala mais casual típico das subcategorias narrativa e infância. Por outro lado, quando o falante opina de maneira genérica sobre algum tema e não direciona o discurso diretamente para o entrevistador, mas a um público mais amplo (subcategoria soapbox), faria uso de uma fala mais cuidada. No entanto, em vários momentos das entrevistas, flagramos o uso do tuteo impessoal, mesmo em assuntos em que o informante teria de opinar sobre temas considerados, por nós, como mais complexos, como podemos observar no exemplo abaixo: (12) [...] cuando van hacer oposición/ se desalientan muchísimo porque resulta que/ hayy cantidad de gente que se presenta/ yy hay poquísimas plazas/ entonces de entrada ya van un poco vencidos/ yy- y tienes que (chasquido)/ no sé/ mm/ darles una fuerza moral para que sigan adelante/ (quando eles vão prestar concurso/ se desanimam muitíssimo porque acontece que/ há muitos concorrentes/ ee há poquíssimas vagas/ então já começam um pouco vencidos/ ee- e tens que (estalo)/ não sei/ mm/ dar-lhes força moral para que eles continuem adiante/) (ENTREVISTA 10 – VAL01033MB98) Nesse trecho, a informante é interpelada sobre quais são os problemas enfrentados pela juventude. Através de marcas linguísticas como “no sé” e repetições como “yy- y”, “mm” sobre as quais a informante se apoia para planejar o discurso, percebemos certa insegurança ao opinar, o que pode tratar-se de um assunto mais complexo para ela. Apesar da relação utilizada entre entrevistador e entrevistada ser de iguais não solidários, ou seja, usted – usted, registra-se na fala dessa o uso de tú impessoal. Assim como afirma Lucca (2005), ponderamos que esse uso pode estar atrelado ao fato de, em consequência do assunto abordado e mesmo sem ter consciência disso, o falante alterna o estilo indeterminando o referente para generalizar o discurso. 258 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 TABELA 2 – Atuação do grupo de fatores estilo discursivo no uso da variante tú versus a variante usted grupo de fatores aplicação/Total Percentual (%) Peso relativo Expositivo 104/105 99.0 0.868 Argumentativo 327/348 94.0 0.721 Dialogal 190/201 94.5 0.519 Descritivo 218/230 94.8 0.436 Narrativo 346/402 86.1 0.230 Fonte: Elaborada pelos autores. A variável estilo discursivo ocupa o segundo lugar na ordem de significância estabelecida pelo programa estatístico Goldvarb (2005). Como podemos observar na Tabela 2, os estilos expositivos, argumentativos e dialogal, apresentam o peso relativo 0.868, 0.721 e 0.519, respectivamente. Em seguida aparecem o estilo descritivo e narrativo, com os pesos relativos 0.436 e 0.230, respectivamente. Os dados contrariaram as nossas expectativas, pois esperávamos, por exemplo, que o estilo narrativo liderasse com o uso de tú, já que, em narrativas pessoais, as formas tidas como informais são mais expressivas (SILVA, 2016). Por outro lado, hipotetizamos que estilos cuja exigência de conhecimento fosse maior por parte do falante, como o estilo argumentativo, o uso de usted seria predominante. Isso se justificaria porque, nesses contextos, o falante, ao ter de se posicionar sobre determinado assunto, teria um estilo de fala mais cuidada. Os dados apresentados causaram-nos bastante surpresa. Portanto, acreditamos que outros fatores possam ter influenciado tais resultados quando da rodada multivariada. Nesse tipo de análise, a atuação de um fator é controlada ao mesmo tempo em que se controlam a atuação dos demais fatores elencados na pesquisa (GUY; ZILLES, 2007). Desse modo, para checar a influência de outros fatores sobre os resultados para a variável analisada em questão, decidimos pelo cruzamento estatístico, a fim de encontrarmos dados que nos ajudassem a explicar o panorama apresentado na Tabela 2. Ponderamos que o tema abordado na entrevista possa ter exercido influência no índice de uso do tuteo. Em outras palavras, consideramos que se o falante opina ou expõe sobre um assunto que é, por exemplo, 259 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 mais pessoal, mais familiar, mais experienciado, a tendência seria o uso da variante tú. Por outro lado, ao ter de argumentar sobre algo mais formal como política, economia, etc., a preferência seria pela variante usted, conforme explicitamos anteriormente. Dessa forma, a escolha entre uma variante ou outra estaria mais vinculada ao assunto abordado do que ao estilo discursivo. Na Tabela 3, apresentemos os resultados desse cruzamento. TABELA 3 – Cruzamento entre os grupos de fatores estilo discursivo e complexidade do assunto Tú Percentual (%) Usted Percentual (%) Assuntos menos complexos 342 88 46 12 Assuntos mais complexos 4 29 10 71 Assuntos menos complexos 93 99 1 1 Assuntos mais complexos 11 100 0 0 Assuntos menos complexos 107 99 1 1 Assuntos mais complexos 220 92 20 8 Assuntos menos complexos 218 95 12 5 Assuntos mais complexos 0 0 0 0 Assuntos menos complexos 173 96 8 4 Assuntos mais complexos 17 85 3 15 grupo de Fatores Narrativo Expositivo argumentativo Descritivo Dialogal Fonte: Elaborada pelos autores. Ao observamos a tabela 3, de fato, quando comparamos o uso feito da variante tú nos assuntos menos complexos, verificamos o seu percentual de uso sempre acima do percentual nos assuntos mais complexos, apesar de esses serem igualmente elevados. No entanto, precisamos olhar com cautela para esses resultados, pois, em alguns contextos com assuntos mais complexos, percebemos a ausência de uso da variante usted, como no estilo expositivo e em ambos os contextos no estilo descritivo. Resguardado esse aspecto, também observamos o percentual de uso mais saliente, dessa variante, nos contextos com assuntos mais complexos do que em assuntos menos complexos. 260 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 Ao olharmos, separadamente, para os percentuais de uso da variante tú e usted nos estilos narrativo e argumentativo, e se levarmos em consideração a quantidade de uso dessas variantes, percebemos que, neste estilo, usted apareceu mais que nos outros estilos (20 dados) e, justamente, em contextos com assuntos mais complexos. Obviamente notamos, como exceção, o estilo narrativo. Esse é um estilo em que há maior produção de fala do informante. Portanto, a possibilidade de essa variante emergir nesse estilo era superior aos demais. Isto é, contexto com mais dados, maiores são as chances de uma variante ocorrer. Por outro lado, observamos que, nesse estilo, o uso da variante tú é maior que o uso realizado em todos os demais estilos (342 dados). Dessa forma, parece-nos que os resultados não contrapõem o que aporta a literatura, mas a contrariam em função do tipo de assunto abordado na interação comunicativa. Por fim, é interessante abordarmos outro aspecto da variação entre essas formas, relacionado ao nível de consciência do falante. Seguindo a Schilling-Estes (2002), sabemos que a mudança de estilo pode dar-se tanto de modo consciente como de modo inconsciente, ou seja, o falante usa determinadas variantes sem ao menos perceber que as está usando. Ao longo da coleta dos dados, notamos que ambas perspectivas sobre o estilo (SCHILLING-ESTES, 2002; BELL, 1984) parecem permear as entrevistas e podem, também, explicar os resultados em questão. Por um lado, observamos uma mudança de estilo que parece ser consciente onde o falante adapta a sua fala tendo em vista o seu interlocutor, o que nos remete ao modelo de Audience Desing proposto por Bell (1984). Lembremos que, para esse autor, o falante alterna o seu estilo de fala para se assemelhar ao seu interlocutor. Nos exemplos (13) e (14), a informante que, no início da entrevista, refere-se ao entrevistador utilizando usted alterna para tú a partir da metade da entrevista. Vale ressaltar que o tratamento utilizado pelo entrevistador foi, desde o início, tú. Confiramos os exemplos8 que, apesar de ser utilizado o paradigma pronominal dessas formas, evidenciam sua alternância: 8 Advertimos que os exemplos, por ora apresentados, foram analisados apenas qualitativamente a fim de ilustrar a alternância pronominal realizada pela entrevistada. Tais exemplos não participaram das rodadas estatísticas por serem pronomes que não assumem a posição de sujeito na oração, perspectiva essa que adotamos para esta pesquisa, conforme expomos na seção referente à metodologia. 261 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 (13) si yo le fuera a vender mi piso/ hombre pues yoo lo primero que diría es su situación/ [...] (se eu fosse vender-lhe o meu apartamento/ rapaz pois euu a primeira coisa que eu diria era a sua situação/ […]) (ENTREVISTA 14 – VAL01431MC99) (14) yo- yo ya te he dicho/ que sólo voy a dos o tres sitios (risas)/ (eu- eu já te disse/ que só vou a dois ou três lugares (risos)/) (ENTREVISTA 14 – VAL01431MC99) Como podemos observar, a alteração de uma relação assimétrica para uma simétrica, operada pela informante, não nos parece aleatória, mas ela tem consciência de sua fala tendo em vista um interlocutor que lhe tutea. Por outro lado, em vários inquéritos, a relação estabelecida entre os interlocutores, desde o início das entrevistas, é simétrica com o uso de tú – tú. Também podemos supor que possa haver aí um uso inconsciente dessa forma, oriundo das transformações sociais contemporâneas que têm dado grande pujança ao uso do tuteo nas comunidades de fala espanhola. Uma vez apresentados os dados e as discussões das variáveis que mostram significância para o fenômeno variável em estudo, teceremos comentários acerca do grupo de fatores descartado pelo software por não ser estatisticamente significativo na presença da variante tú como regra variável. Optamos por inclui-la neste estudo, pois, de acordo com Guy e Zilles (2007), não discutir os dados negativos da análise é um procedimento que não contribui para o avanço da ciência. TABELA 4 – Distribuição dos pronomes tú versus usted de acordo com a relação de proximidade entre os interlocutores grupo de fatores aplicação/Total Percentual (%) Proximidade alta 77/81 95.1 Distanciamento 705/764 92.3 Proximidade intermediária 403/441 91.4 Fonte: Elaborada pelos autores. A hipótese inicial era a de que os contextos em que houvesse maior proximidade entre os interlocutores fossem favorecedores da 262 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 variante tú. Por outro lado, a variante usted seria mais utilizada nas relações marcadas pelo distanciamento. No entanto, tivemos nossa expectativa frustrada pela falta de insignificância estatística evidenciada pelo programa Goldvarb (2005). Somos sabedores de que o peso relativo tem destaque em delinear padrões de variação e mudança, no entanto, a frequência de uso também participa desse processo. Desse modo, como podemos observar na Tabela 4, há uma porcentagem relativamente alta de uso da variante tú nos três fatores, encabeçada pela proximidade alta (95.1%). Ao observamos a aplicação da variante usted em nossos dados, esta apareceu de forma mais saliente (59 dados) entre os indivíduos caracterizados por uma relação de distanciamento com o entrevistador, frente aos de proximidade intermediária (38 dados) e alta (4 dados), respectivamente. Sabemos que as formas utilizadas pelos falantes para se referir ao seu interlocutor constituem um fenômeno bastante complexo e dinâmico. A teoria de Brown e Gilman (1960) joga luz sobre o modo como esses indivíduos utilizam esses elementos que, como sabemos, é inegável que sofrem pressão tanto de fatores próprios do indivíduo (sexo, idade, nível de escolaridade etc.) como de fatores intrínsecos à relação estabelecida entre os falantes (familiaridade, distância, proximidade etc.). Contudo, as escolhas operadas sobre as formas de tratamento são condicionadas, principalmente, pelo contexto sociocomunicativo e pelas características da comunidade de fala (MEDINA LÓPEZ, 2009). Ora, se as formas linguísticas são um reflexo das estruturas sociais e essas, por sua vez, mudam no curso da história, uma interpretação mecanicista das formas de tratamento baseada apenas nos eixos do poder e da solidariedade ou mesmo uma visão pautada nos usos descritos pelas gramáticas normativas, parece-nos insuficiente para explicar alguns resultados, principalmente, diante do alto uso da variante tú em relações marcadas pelo distanciamento, no nosso caso. Como assevera Medina López (2009, p. 89), “Esta actividad del habla, sujeta a la negociación entre los participantes y el contexto, tampoco puede presentar una única dirección.”.9 “Esta atividade de fala, sujeita à negociação entre os participantes e o contexto, tampouco pode apresentar uma única direção.” (MEDINA LÓPEZ, 2009, p. 89, tradução nossa). 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 263 No âmbito dos estudos da cortesia espanhola, fenômeno que tem contribuído com profícuos trabalhos sobre os usos das formas de tratamento nesse idioma, alguns autores, como Medina López (2009) e Carrasco Santana (1999), têm evidenciado uma simplificação no sistema de tratamento motivada pelas transformações que essa sociedade tem experimentado. Em palavras de Carrasco Santana (1999, p. 33-34): [...] hay una tendencia en la sociedad española, desde hace unos años, a simplificar los usos lingüísticos con el fin de hacer más flexible la estratificación social y procurar que resulten más fluidas las relaciones humanas, que no son sino la expresión del deseo de una mayor igualdad entre los individuos. Esta tendencia se manifiesta en una menor utilización de fórmulas convencionales y ritualizadas de cortesía, en la progresiva desaparición de las fórmulas de tratamiento, en la extensión del tuteo en situaciones en que no existe familiaridad, etc., lo que está produciendo un progresivo cambio cualitativo en las selecciones corteses que hace que se evite, cada vez con más frecuencia, exteriorizar verbalmente la subordinación al otro por razón de autoridad.10 O fato de os informantes se reportarem ao entrevistador utilizando uma forma de tratamento mais próxima, isto é, tú, ainda que com este não comparta nenhuma característica que os coloque em uma relação mais ou menos igualitária, não nos parece uma transgressão do contexto comunicativo, um tratamento descortês, ou mesmo uma vontade de demonstrar familiaridade. O informante alterna o seu estilo em função da adequação nos usos dos estilos de cortesia experimentada pela sociedade espanhola. A explicação para a variação estilística no indivíduo, de acordo com Bell (1984), é produto da variação que existe na dimensão “[...] existe uma tendência na sociedade espanhola, faz alguns anos, a simplificar os usos linguísticos com a finalidade de flexibilizar mais a estratificação social e deixar mais fluidas as relações humanas, que não são mais do que a expressão do desejo de uma maior igualdade entre os indivíduos. Esta tendência se manifesta em uma menor utilização de fórmulas convencionais e retualizadas de cortesia, no progressivo desaparecimento das fórmulas de tratamento, na extensão do tuteo em situações nas quais não existia familiraridade, etc., o que está produzindo uma progressiva mudança qualitativa nas seleções corteses que faz com que se evite, cada vez com mais frequência, exteriorizar verbalmente a subordinação ao outro por razão de autoridade.” (CARRASCO SANTANA, 1999, p. 33-34, tradução nossa.) 10 264 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 social. No que tange ao contexto de uso de tú, Blas Arroyo (1994, p. 21) revela-nos que: [...] el progreso que el empleo de tú ha experimentado en la mayoría de las comunidades de habla hispánicas, podría ser analizado como un reflejo de la tendencia creciente en sociedades modernas y democráticas, cada vez más permisivas, a limar prejuicios y jerarquizaciones sociales, lo que ha contribuido a una valoración crecientemente positiva del tuteo como forma de tratamiento adecuada —incluso cortés, como estamos viendo— en situaciones cada vez más numerosas.11 Quanto aos resultados apresentados, precisamos olhar com reserva para o não favorecimento da variável em questão, pois, conforme explicitam Guy e Zilles (2007), existem muitos motivos que podem incidir na insignificância estatística de grupo de fatores, por exemplo, a insuficiência de dados. Além disso, esses autores ressaltam que o resultado para um determinado grupo pode ser significativo sozinho, mas perde significância diante de outros grupos quando da rodada multivariada. Desse modo, ponderamos que uma variável dessa natureza, cujo refinamento metodológico é bastante inovador, deva ser replicada e testada em estudos posteriores. Além disso, algumas pesquisas (cf. FREITES BARROS; OROZCO, 2010; ZAMBRANO CASTRO, 2010) têm demonstrado a sua influência na variação das formas de tratamento em espanhol. 5 Conclusão Procurando investigar se o assunto abordado na entrevista era determinante para a variação entre tú e usted, analisamos a variável complexidade do assunto, adotando o refinamento estabelecido por Freitag (2003). Essa autora controlou esse grupo de fatores em termos de assuntos mais complexos e assuntos menos complexos e, assim, também “[...] o progresso que o emprego de tú tem experimentado na maioria das comunidades de fala hispânica, poderia ser analisado como um reflexo da tendência crescente nas sociedades modernas e democráticas, cada vez mais permissivas, a limar preconceitos e hierarquizações sociais, o que tem contribuído com uma valorização crescentemente positiva do tuteo como forma de tratamento adequada – inclusive cortês, como estamos vendo – em situações cada vez mais numerosas.” (BLAS ARROYO, 1994, p. 21, tradução nossa.) 11 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 265 o fizemos. Ponderamos que, ao tratar de assuntos mais complexos, o falante monitoraria mais a sua fala e faria mais uso de usted. Por outro lado, em assuntos menos complexos, pela familiaridade com o tema e muitos serem experenciados, o falante tenderia ao uso de tú. Os resultados corroboraram a nossa hipótese inicial, revelando que, na presença daquele fator, tú é desfavorecido, conforme peso relativo de (0.148). De fato, nesse contexto, usted apresentou mais ocorrências. Já no contexto em que o tema abordado era menos complexo, a forma de tratamento tú mostrou ser favorecida (0.622). Assumindo que o estilo discursivo, presente na entrevista, pudesse influenciar o falante quanto à escolha da forma de tratamento para se reportar ao seu interlocutor, analisamos os estilos expositivo, argumentativo, dialogal, narrativo e descritivo. Acreditávamos que a variante inovadora seria predominante no estilo narrativo mais do que nos outros estilos, pois, conforme Silva (2016), as sequências narrativas fazem emergir formas linguísticas consideradas informais. Por outro lado, em estilos como o argumentativo, em que há ocorrências de temas que exigem um maior conhecimento do falante, acreditávamos que isso desencadearia uma fala mais cuidada, e, portanto, haveria destaque da variante usted. Para a nossa surpresa, os dados evidenciaram um propenso uso de tú nos estilos expositivos e argumentativos (0.890 e 0.751, respectivamente) e um desfavorecimento nos demais estilos: (0.394) no estilo dialogal; (0.341), no estilo narrativo e (0.251), no estilo descritivo, contrariando, assim, o que esperávamos para essa variável. No que tange à variável relação de proximidade entre os interlocutores, refinamo-la em três fatores: distanciamento, proximidade intermediária e proximidade alta. Em uma primeira rodada, essa variável não mostrou significância para a variação entre tú e usted na comunidade de fala estudada. Acreditamos, então, que a amostra presente nos dois últimos fatores, que era menor no primeiro fator, pudesse ter alguma influência nesse resultado. Desse modo, decidimos amalgamá-los, pautando essa decisão em aspectos teóricos e quantitativos. Rodamos os dados novamente e, curiosamente, o programa selecionou essa variável como significativa. No entanto, ainda que em um primeiro momento tivéssemos hipotetizado que os contextos de maior proximidade entre os interlocutores favoreceriam o uso de tú em detrimento de usted, os resultados revelaram o contrário. O fator distanciamento favoreceu a forma tú com (0.622) de peso relativo, e os fatores amalgamados 266 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 235-270, 2020 proximidade intermediária/alta desfavoreceram-na (0.326). Esse resultado corrobora a visão de Blas Arroyo (1994), sobre a valorização do tuteo em mais contextos de uso, inclusive, em situações em que há uma hierarquização social, isto é, em relações regidas pela semântica do poder de Brown e Gilman (1960). Por último, como é sabido, abordamos a variação entre as formas tú e usted, na comunidade de fala valenciana, considerando apenas as formas que estivessem em posição de sujeito na oração. Portanto, recomendamos a análise das supramencionadas formas para além dessa posição, abordando, por exemplo, as formas que aparecem como adjetivo ou pronome possessivo e pronomes oblíquos átonos ou tônicos. Um trabalho que assumisse essa perspectiva ofereceria, sem dúvida, uma amostra considerável e um mapeamento bastante relevante do uso dessas formas, nessa comunidade. Contribuição dos autores Os autores em questão trabalharam, conjuntamente, em todas as seções que compõem o referido trabalho. Este, como fruto da dissertação de José Victor Melo de Lima, foi, também, elaborado sob a orientação de Valdecy de Oliveira Pontes, orientador daquele na ocasião do mestrado. Destarte, nesta oportunidade, o olhar e a escrita de ambos os autores se entrelaçam durante todo o movimento retórico do artigo, desde a introdução, a seleção e resenha da teoria de base, o desenho metodológico, a análise dos resultados e a conclusão. referências AIJÓN OLIVA, M. A.; SERRANO, M. J. Las bases cognitivas del estilo lingüístico. Sociolinguistic Studies, Vigo, v. 4, n. 1, p. 115-144, 2010. Disponível em: https://journals.equinoxpub.com/index.php/SS/article/ view/6108. Acesso em: 17 jul. 2019. BAGNO, M. Dicionário crítico de sociolinguística. São Paulo: Parábola editorial, 2017. BELL, A. Language style as audience design. Language in Society, Cambridge, v. 2, n. 13, p. 145-204, 1984. BLAS ARROYO, J. L. Los pronombres de tratamiento y la cortesía. Revista de Filología, Laguna, n. 13, p. 7-36, 1994. Rev. 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Cada unidade tonal, a princípio, corresponde a uma unidade informacional, no nível pragmático. De acordo com Cresti (2014), o domínio de atuação da sintaxe estaria restrito às unidades informacionais, resultando na formação do que a autora denomina como ilhas sintático-semânticas. Neste trabalho, apresenta-se uma discussão acerca dessa abordagem. Através da exposição de dados empíricos oriundos de corpora, bem como de dados de línguas tipologicamente variadas, é desenvolvida uma argumentação que aponta para a possibilidade de que as relações sintáticas entre os elementos distribuídos ao longo de duas ou mais unidades informacionais possam ultrapassar as fronteiras dessas unidades. Dados de predicação, subordinação, coordenação, negação e marcas de caso servem para ilustrar essa assunção, na medida em que essas relações não são interrompidas devido à presença de uma quebra prosódica com valor informacional. Busca-se distinguir, portanto, dois níveis em interface, mas não em isomorfia: o prosódico-pragmático e o sintático. Defende-se que a sintaxe da fala seria melhor explorada por meio de critérios de análise probabilísticos. Palavras-chave: sintaxe da fala; categorias sintáticas; prosódia; pragmática. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.271-330 272 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 abstract: Language into Act Theory (CRESTI, 2000) is a pragmatic corpus-driven theory of spontaneous speech. The utterance is individuated as the reference unit of speech. It is defined as the smallest linguistic unit with pragmatic autonomy and interpretability in isolation. This theory states that prosody delimits the utterance, illocutions (AUSTIN, 1962) and information structure, that develops from tonal units. Each tonal unit corresponds in principle to an information unit at the pragmatic level. According to Cresti (2014), the domain of syntax would be constrained to the information units, resulting in the establishment of what the author calls syntactic-semantic islands. In this paper, we present a discussion about this approach. Through exposition of empirical data from corpora, as well as from languages of typologically varied languages, we argue on the possibility that the syntactic relations between the elements distributed along two or more information units may exceed the boundaries of such units. Data on predication, subordination, coordination, negation, and case markers illustrates this assumption, insofar as these relationships are not disrupted by the presence of a prosodic break carrying information value. Therefore, two interface levels must be distinguished, but they are not isomorphic: the prosodic-pragmatic and the syntactic levels. We argue that spoken syntax would be better studied by means of probabilistic criteria. Keywords: spoken syntax; syntactic categories; prosody; pragmatics. Recebido em 11 de abril de 2019 Aceito em 11 de outubro de 2019 Introdução A variedade oral espontânea do discurso é, sem dúvidas, um campo fértil de pesquisas. Isso se deve ao fato de que seu estudo seja recente – considerando a evolução e o desenvolvimento dos estudos linguísticos ao longo dos séculos. A compilação de corpora orais só é possível com o avanço tecnológico que permita realizar o registro da fala. E é somente na segunda metade do século XX que surgem os chamados corpora de fala espontânea, representando inicialmente a língua inglesa (cf. MELLO, 2012, 2014). Consequentemente, o estudo da sintaxe da fala tem início nesse período, embora num primeiro momento a prosódia – componente crucial na produção da fala – não tenha sido explorada efetivamente para a compreensão da interação que existe com o componente sintático. Neste trabalho, analisar-se-á a abordagem da Language intro Act Theory [L-AcT] (CRESTI, 2000; MONEGLIA; RASO, 2014) para a sintaxe da fala. Essa teoria considera que a prosódia é responsável por delimitar a unidade de referência da fala, as ilocuções (AUSTIN, 1962) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 273 e a estrutura informacional do enunciado. O postulado-chave da proposta da L-AcT é o de que há uma isomorfia entre a forma como a estrutura informacional se desenvolve e as unidades sintáticas distribuídas dentro desse modelo, ou seja, a localidade sintática operaria apenas dentro das unidades pragmáticas que compõem a estrutura informacional do enunciado. Tal postulado será analisado com base em uma ampla discussão embasada num conjunto de dados oriundos de corpora e de trabalhos já publicados, a fim de que seja verificado empírica e tipologicamente. Este trabalho está organizado da seguinte forma. Na seção 1, os pressupostos teóricos elementares da L-AcT são introduzidos. Na seção 2, apresenta-se a abordagem dessa teoria para o estudo da sintaxe da fala. Em seguida, na seção 3, tal abordagem é problematizada com vários dados que constituem contraexemplos à proposta. Na seção 4, complementam-se à análise qualitativa conduzida na seção anterior reflexões relacionadas aos problemas encontrados na proposta da L-AcT, defendendo-se a alternativa probabilística de análise da sintaxe da fala. Por fim, as considerações finais são apresentadas. 1 a Language into Act Theory A Language into Act Theory (L-AcT) é uma teoria pragmática corpus-driven da fala espontânea (CRESTI, 2000; MONEGLIA; RASO, 2014). Suas assunções teóricas são oriundas da observação e da investigação de dados empíricos extraídos de corpora comparáveis: o projeto C-ORAL-ROM (CRESTI; MONEGLIA, 2005), que compõe corpora das principais línguas românicas faladas na Europa – espanhol, francês, italiano e português; e o projeto C-ORAL-BRASIL, que compõe corpora do português brasileiro (RASO; MELLO, 2012). De acordo com essa teoria, o enunciado é a unidade de referência da fala e se define como a menor unidade linguística da fala interpretável pragmática e prosodicamente em autonomia. Ele deve também veicular, por definição, um ato de fala (AUSTIN, 1962). A identificação do enunciado no fluxo da fala se dá através da percepção de um tipo de fronteira de unidade tonal (CRYSTAL, 1975) denominado por quebra prosódica terminal (MONEGLIA; CRESTI, 1997). A autonomia pragmática é conferida pela junção da veiculação de um ato de fala e da realização de uma unidade tonal com perfil terminal. Essa junção corresponde, no nível pragmáticoinformacional, à principal unidade do enunciado – o Comentário. É 274 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 preciso mencionar que existem unidades tonais não autônomas que podem compor parte do enunciado. Nesse caso, essas unidades não veiculam uma ilocução, elas estão relacionadas à estrutura informacional do enunciado (cf. TABELA 1). Também há casos em que uma sequência que veicula uma ilocução não apresenta um perfil prosódico terminal. Esses últimos casos se referem às unidades de Comentário Múltiplo e de Comentário Ligado, que serão explicadas ainda nesta seção. No fluxo da fala, há variações de ordem prosódica que marcam quebras prosódicas. Essas quebras podem ter um valor percebido como conclusivo ou não (KARCEVSKY, 1931; CRYSTAL, 1975). Caso uma quebra apresente um valor conclusivo, ela será denominada como uma quebra terminal. Caso ela não apresente um valor conclusivo, ela será chamada de quebra não-terminal. As quebras terminais indicam o fim do enunciado, ao passo que as quebras não-terminais segmentam o enunciado em unidades internas. Dessa forma, todo enunciado possui uma quebra terminal, contudo nem todos possuirão quebras não-terminais. Considere os seguintes exemplos:1 Exemplo 1.1 – bfamcv01 *GIL: [33] esse que é o ponto // Exemplo 1.2 – bfamdl02 *BAL: [14] as recarregáveis / tão aqui // Exemplo 1.3 – bfamdl02 *BAL: [36] a Estefânia / Acima, é possível observar em 1.1 um enunciado com apenas uma quebra percebida como terminal, chamado de enunciado simples, em Os exemplos que contam com áudio são extraídos dos corpora da família C-ORAL. Eles são seguidos pelo nome texto e pelo número do enunciado entre colchetes. O nome do texto é uma abreviatura que informa a língua (a = inglês americano; b = português brasileiro; i = italiano), o contexto (fam = familiar/privado; pub = público), a tipologia de interação (cv = conversação, isto é, mais de dois participantes; dl = diálogo; mn = monólogo) e o número do texto. A abreviatura que segue o asterisco indica o participante. As barras simples marcam quebras prosódicas não-terminais e as barras duplas marcam quebras prosódicas terminais. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 275 1.2 um enunciado dividido em uma quebra percebida como não-terminal e uma quebra percebida como terminal no fim, denominado enunciado complexo, e em 1.3 um trecho que não constitui um enunciado, pois não apresenta uma quebra percebida como terminal. No escopo teórico da L-AcT, as unidades delimitadas por quebras prosódicas correspondem a unidades tonais, no nível prosódico, e a unidades informacionais, no nível pragmático. Assim, todo enunciado apresenta pelo menos uma unidade tonal, que corresponde a uma unidade informacional. As unidades informacionais são unidades pragmáticas de organização do enunciado, sendo que cada uma realiza determinada função. A estrutura informacional do enunciado é, portanto, veiculada pela prosódia. A força ilocucionária do enunciado está localizada na unidade de Comentário (COM) – única unidade necessária e suficiente para a realização de um enunciado. Sua distribuição é livre dentro do enunciado, sendo que as outras unidades informacionais têm sua posição definida com relação a ela. A forma prosódica do COM varia em função do tipo de ato de fala ou ilocução veiculada. Um mesmo conteúdo locutivo pode introduzir diferentes ilocuções, o que mostra que as ilocuções não estão necessariamente relacionadas a expressões linguísticas específicas. Por exemplo, dependendo da prosódia realizada, ao nome João podem ser atribuídas ilocuções distintas, como asserção, desaprovação, ameaça, advertência etc. A correspondência biunívoca que existe entre unidade tonal e unidade informacional e entre enunciado e ilocução é quebrada em três circunstâncias. Uma mesma unidade informacional pode ser realizada em mais de uma unidade tonal quando ocorre fenômenos de escansão e retracting (cf. Seção 2). Adicionalmente, um enunciado pode ser composto por mais de uma ilocução, casos em que ocorrem as unidades informacionais de Comentário Múltiplo (CMM) e de Comentário Ligado (COB). Há CMMs quando mais de um Comentário, geralmente dois, é realizado de forma padronizada retoricamente, o que gera uma interpretação holística por parte do interlocutor. Esses Comentários são separados por uma quebra prosódica não-terminal, criando um padrão ilocucionário entendido como um todo holístico, e não como a soma de dois enunciados diferentes. Ou seja, sua interpretação é diferente daquela em que há a sucessão de dois COM que realizam as mesmas ilocuções. Há COBs quando ocorre o que a L-AcT denomina como Estrofe (Stanza). A Estrofe é uma sequência de vários Comentários ligados por meio de um sinal prosódico que indica continuidade. Esse sinal mostra que a 276 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 sequência ainda não foi concluída, isto é, existem mais sequências a serem ainda adjungidas. Diferentemente dos CMMs, os COBs, não apresentam uma relação padronizada. Ao contrário, eles são justapostos numa sequência que exibe um andamento processual de um pensamento em curso, por isso as ilocuções realizadas ao longo da cadeia de COBs não são interpretadas de forma holística ou como uma sucessão de atos de fala de enunciados diferentes. Há dois grandes grupos de unidades informacionais – as textuais e as dialógicas. As primeiras têm a finalidade de compor o texto do enunciado, já as segundas têm por objetivo se dirigir ao interlocutor a fim de regular a interação. As unidades textuais podem ser de natureza ilocucionária (COM, COB e CMM) ou não ilocucionária (APC, APT, TOP, INT e PAR). A definição de cada uma é mostrada na tabela abaixo. TABELA 1 – Unidades informacionais e suas respectivas funções Unidades textuais Nome Etiqueta Função Comentário COM Carrega a força ilocucionária do enunciado. Tópico TOP Identifica o domínio de aplicação da força ilocucionária do enunciado. Apêndice de Comentário APC Conclui o enunciado integrando o texto de COM. Apêndice de Tópico APT Fornece uma informação atrasada integrando a informação dada em TOP. Comentário Múltiplo CMM Faz parte de uma cadeia de dois ou mais Comentários que são interpretados holisticamente devido ao seu padrão prosódico. Comentário Ligado COB Faz parte de uma sequência de dois ou mais Comentários (Estrofe), produzida por adjunções progressivas que seguem o fluxo do pensamento do falante, enquanto ele está construindo seu discurso. Parentético PAR Insere uma informação metalinguística dentro do enunciado. Introdutor locutivo INT Tem a função metalinguística de introduzir discurso reportado, pensamento falado e exemplificação emblemática. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Unidades dialógicas 277 Alocutivo ALL Especifica para quem a mensagem é direcionada. Fático PHA Serve para garantir a manutenção do canal comunicativo, mantendo-o sob controle. Conativo CNT Incita o falante a tomar parte na interação. Incipitário INP Abre o canal comunicativo. Expressivo EXP Funciona como um suporte emocional dentro da interação, enfatizando uma afiliação social compartilhada. Conector discursivo DCT Conecta diferentes partes do discurso, marcando sua continuidade; é típico de textos monológicos Adaptado de Moneglia e Raso (2014) As unidades informacionais constituem um ponto crucial na proposta de domínio e de análise da sintaxe da fala na proposta de Cresti (2014). A seguir, será apresentada a abordagem da L-AcT para o estudo da sintaxe da fala. 2 a abordagem da sintaxe da fala segundo a L-acT De acordo com a L-AcT, a prosódia organiza a fala em enunciados e também atua na composição da estrutura informacional de cada um deles. Por meio do componente prosódico, a fala se estrutura em unidades tonais (relativas ao nível prosódico) que, em princípio, correspondem a unidades informacionais (relativas ao nível pragmático). Exceto em casos de Escansão (SCA), cada unidade tonal corresponde a uma unidade informacional. A Escansão (SCA) é a divisão da unidade informacional em duas ou mais unidades tonais devido a questões de performance. Ela não possui valor informacional, sendo sempre composicional do ponto de vista sintático. O outro caso em que uma unidade tonal não corresponde a uma unidade informacional corresponde ao fenômeno denominado retracting, isto é, quando o falante retrata o que acabou de pronunciar podendo ou não haver a repetição de uma ou mais palavras. Para a L-AcT, a unidade informacional se comporta como uma ilha 278 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 sintático-semântica.2 A esse respeito, Cresti (2011) diz que “as unidades informacionais concebidas para a realização de uma determinada função informacional identificam a unidade linguística como uma configuração sintática local e uma ilha semântica”3 (CRESTI, 2011, p. 56). Dessa forma, é possível notar que o nível sintático não só está vinculado ao nível prosódico-pragmático, como também se encontra numa relação de hierarquia, tendo em vista que a estruturação sintática deve se adequar à estruturação informacional. É importante mencionar que quando se diz nível prosódico-pragmático, deve-se entender o nível informacional (portanto, pragmático), que é veiculado e estabelecido por meio do componente suprassegmental, ou seja, por meio da prosódia. As estruturas sintáticas podem ser realizadas de forma cindida, isto é, uma única estrutura apresentando uma parte correspondente a uma unidade informacional específica, e o restante da estrutura distribuída em outra unidade informacional. Nesse caso, cada parte da estrutura que se distribui entre duas ou mais unidades informacionais constitui um fragmento próprio com ausência de composicionalidade sintático-semântica. Dessa maneira, as estruturas sintáticas são dominadas pelas diferentes unidades informacionais. Essas unidades têm a função de interromper ou barrar as relações sintáticas que outrora poderiam apresentar composicionalidade. As ilhas sintático-semânticas são, portanto, domínios de restrição de relações sintáticas e semânticas que se estabelecem a partir das unidades informacionais que, por sua vez, se desenvolvem por meio da prosódia. Cada ilha se estabelece por meio da realização de uma unidade informacional. As unidades informacionais são veiculadas pela prosódia. Dessa forma, a interação entre o componente informacional que é realizado por meio de configurações prosódicas específicas desempenha um papel crucial no postulado das ilhas sintático-semânticas. Estudar a sintaxe da fala no quadro teórico da L-AcT significa, desse modo, considerar a combinação das ilhas, que estão diretamente relacionadas às unidades informacionais e ao padrão informacional do enunciado. Cresti (2014) afirma que a estrutura informacional é realizada O termo ilha utilizado por E. Cresti não possui o mesmo significado daquele introduzido por Ross (1967) comumente mencionado nos estudos gerativistas. 3 Tradução nossa do original: “(…) the information units conceived for the accomplishment of a certain information function identifies the linguistic unit like a local syntactic configuration and a semantic island”. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 279 simultaneamente de acordo com dois requisitos: (i) a interface prosódica, que é o componente que organiza tal estrutura em unidades discretas e (ii) o ato locucionário, que, por meio do empacotamento prosódico do fluxo da fala, ativa as ilhas sintático-semânticas, realizando linguisticamente cada unidade informacional de modo a combiná-las dentro do enunciado, caso esse enunciado seja complexo. Segundo um levantamento dos tipos de enunciados do corpus C-ORAL-ROM (CRESTI; MONEGLIA, 2005), relatado em Cresti (2014), há uma predominância de enunciados complexos (60%) sobre enunciados simples (40%). Esse resultado reflete a importância de uma explicação da sintaxe dos enunciados complexos, formados por ilhas sintático-semânticas. A L-AcT lança mão de dois construtos teóricos para explicar as relações “objetivas” e as “idiossincráticas” do comportamento sintático, mais precisamente do comportamento da subordinação e da coordenação, em enunciados complexos. As relações aqui chamadas “objetivas” são aquelas que não apresentam problemas quanto a sua análise dentro de um quadro tradicional. No enunciado “O Joaquim ama o atual prefeito //=COM=”, o NP o prefeito seria o objeto do verbo amar. As relações chamadas aqui “idiossincráticas” são aquelas que apresentariam dificuldades do ponto de vista tradicional. Considerando o enunciado “O atual prefeito /=TOP= Deus me livre //=COM=”, parece não haver nenhuma relação sintática entre o conteúdo locutivo do TOP e o do COM. A L-AcT não postula qualquer tipo de movimento sintático, nem qualquer categoria flutuante, por isso seria descartada a hipótese de que o NP o atual prefeito saiu de uma posição mais baixa da sentença e foi alçado à posição de TopP localizada na periferia esquerda. Além do fato de que, para a L-AcT, cada unidade informacional constitui uma ilha sintático-semântica que não apresenta composicionalidade com outras unidades.4 Os construtos propostos pela L-AcT para lidar com essa questão são divididos em duas noções: a sintaxe linearizada e a sintaxe padronizada. De acordo com Cresti (2014), a sintaxe linearizada (linearized syntax) constitui o ambiente onde ocorrem estruturas próprias de subordinação e de coordenação, sempre dentro de uma mesma unidade informacional textual, já a sintaxe padronizada (patterned syntax ou 4 A seção 3.1 relata com maior detalhe o caso do TOP. 280 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 patterned construction 5) corresponde a construções realizadas ao longo das unidades informacionais textuais, ou seja, por mais de uma unidade informacional textual (e também, em alguns casos, ao longo de dois enunciados distintos), sendo que cada uma desenvolve uma função informacional diferente. A configuração linearizada corresponde a um molde prosódico composicional e a configuração padronizada corresponde a um molde prosódico de combinação, resultando na realização de diferentes unidades tonais. Note-se que é apenas no molde composicional que as relações de subordinação e de coordenação ocorrem, no molde combinatório essas relações simplesmente não se estabelecem. A justificativa para que no molde combinatório os elementos fiquem impossibilitados de estabelecer relações sintáticas com outros itens de uma unidade posterior reside em que a unidade informacional constitui uma barreira de isolamento ou, nos termos propostos pela L-AcT, a unidade informacional constitui uma ilha sintático-semântica. Para ilustrar as configurações sintáticas linearizada e padronizada, são apresentados abaixo dois exemplos. Em investigação sobre as orações adverbiais no PB, Bossaglia (2015a) mostra que a grande maioria dessas orações ocorre em padronização, embora haja casos de linearização, como o do exemplo 2.1, que constituem apenas 6% dos dados do minicorpus do português brasileiro [PB] (cf. PANUNZI; MITTMANN, 2014). Exemplo 2.1 – bfammn05 *CAR: [58] não falo porque acho muito pesado //=COM= A autora explica que, neste dado, a oração adverbial causal introduzida pela conjunção porque é realizada na mesma unidade informacional da oração principal, o que exemplifica um caso de linearização. Esse exemplo mostra com clareza uma oração subordinada adverbial propriamente dita (proper adverbial clause). Em investigação sobre as orações completivas no PB, Bossaglia (2015b) mostra que tais orações ocorrem em seis tipos de configurações padronizadas, sendo uma delas o padrão CMM-CMM, ou seja, um enunciado composto por duas unidades de valor ilocucionário que são interpretadas de forma holística devido a sua característica prosódica. 5 É preciso salientar que o termo construção utilizado por E. Cresti não possui relação com a noção de construção apresentada no arcabouço teórico da Gramática de Construções (cf. HOFFMANN; TROUSDALE, 2013). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 281 Exemplo 2.2 – bfamdl03 *LAU: [275] tá vendo /=CMM= como é que mudou //=CMM= Esse exemplo ilustra um caso de padronização, já que o enunciado é complexo, formado por duas unidades tonais/informacionais. Bossaglia (2015b) argumenta que a possível relação de dependência entre a principal e a completiva não é levada em consideração pela organização prosódico-pragmática do enunciado. Segundo a autora, as duas orações se encontram no mesmo plano pragmático, tendo em vista que elas são realizadas em unidades ilocucionárias idênticas, o que confere a elas a mesma função. No entanto, isso não significa que elas realizam a mesma ilocução. Segundo a autora, a primeira oração trata-se de um pedido de confirmação, ao passo que a segunda trata-se de uma repetição. O padrão prosódico de realização dos CMMs proporciona que elas sejam interpretadas como uma única sequência terminada. Ambas as orações possuem valor ilocucionário, o que demonstra que elas ocupam o mesmo plano pragmático. 2.1 o papel da modalidade na formação de ilhas semânticas e seu impacto na sintaxe De acordo com Cresti (2014), uma definição clássica de modalidade remonta a Bally (1950), em que ele define o fenômeno como Modus on Dictum, ou, em outras palavras, a atitude do falante sobre o seu próprio enunciado. É preciso mencionar que outros termos ou conceitos – tais como ilocução, atitude, emoção etc. – atribuídos dentro do escopo da modalidade devem ser distinguidos, pois são efetivamente objetos distintos (cf. MELLO; RASO, 2011, para uma discussão sobre essas categorias). A modalidade dentro do quadro teórico da L-AcT atua na dimensão do ato locucionário e se limita a um significado estritamente semântico. Já Bally (1950) considera o Dictum como uma proposição inteira. Para a L-AcT, a modalidade seria o modus sobre um dictum que é preenchido apenas pelo conteúdo locutivo expresso nas unidades informacionais. Assim, cada unidade informacional textual exibe um valor modal distinto, exceto as unidades de APT e de APC que, por serem dominadas pelas unidades de TOP e de COM, respectivamente, herdam o valor modal de suas unidades dominantes. Portanto, os Apêndices não formam ilhas sintático-semânticas. O sentido de dominância entre 282 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 as unidades de COM e de TOP em relação às unidades de APC e APT, respectivamente, se refere ao fato de as últimas apresentarem um perfil prosódico que não pode ser realizado sem a ocorrência das primeiras. O dictum, contudo, nem sempre será uma proposição completa, tendo em vista que variados tipos de sintagmas, fragmentos ou classes de palavras podem compor uma unidade informacional. Além disso, a modalidade nem sempre é expressa por marcadores modais codificados linguisticamente (cf. MELLO, 2016, para discussão sobre diferentes estratégias modalizadoras no PB). Cresti (2014) estabelece dois postulados teóricos que devem ser levados em consideração no estudo da modalidade dentro do quadro da L-AcT: (a) a modalidade pertence ao nível semântico dentro do ato locucionário, por isso ela deve ser distinguida da ilocução, que pertence justamente ao nível pragmático; e (b) o valor modal de cada unidade informacional textual – assim como na sintaxe – não é composicional dentro do enunciado. Disso decorrem duas considerações: (i) cada unidade informacional textual corresponde a uma cena cognitiva, que forma um domínio semântico (cf. FAUCONNIER, 1985); e (ii) se um enunciado contar com mais de uma unidade informacional textual, ele apresentará diferentes modalidades (exceto em casos de unidade de Apêndice). As unidades informacionais formam, desse modo, ilhas semânticas. Segundo Mello (2016), “as diferentes ilhas semânticas, entretanto, não se compõem em sua modalidade; restando observáveis cenas que se combinam como ‘janelas perceptuais’ com diferentes perspectivas” (MELLO, 2016, p. 166). O impacto das ilhas semânticas na sintaxe se estabelece na medida em que apenas aquilo que determina um âmbito modal estará sujeito a receber um correspondente sintático – essa é uma das razões de a sintaxe não atuar nas unidades dialógicas, já que nelas não existe modalidade. Em outras palavras, as ilhas semânticas constituem âmbitos modais que incidem sobre uma estruturação sintática Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 283 formada a partir dessas ilhas. Pode ser depreendido, a partir disso, que a ideia de ilhas semânticas fortalece, de certo modo, a noção de ilhas sintáticas atuantes dentro das unidades informacionais. 3 Problematização a respeito da abordagem da sintaxe na L-acT Esta seção busca mostrar alguns problemas teóricos acerca da concepção da sintaxe na abordagem da L-AcT. Esses problemas surgem a partir da observação de dados empíricos, extraídos de trabalhos que utilizaram os minicorpora de dados do PB (PANUNZI; MITTMANN, 2014) e do inglês (CAVALCANTE et al., 2018), e analisados segundo o critério teórico da L-AcT. Conforme exposto, o modelo teórico da L-AcT para a delimitação e análise da sintaxe da fala postula que cada unidade informacional corresponde a uma ilha sintático-semântica, ou seja, não haveria nenhuma relação sintática entre o conteúdo locutivo de uma unidade como o TOP e o conteúdo locutivo do COM. Em outras palavras, o que ocorre locutivamente no TOP não estabelece nenhum tipo de relação sintática, seja de subordinação, de coordenação, de adjunção etc., com o que ocorre no COM. Isso vale para outras unidades, como INT, PAR, CMM e COB. Além disso, o enunciado é a unidade de referência da fala e não pode haver dependência sintática entre um enunciado e outro adjacente a ele. Todas as relações sintáticas ocorrem dentro do nível composicional. No nível combinatório, não há qualquer relação sintática entre o conteúdo locutivo das unidades informacionais. O que se pretende mostrar nesta seção é que há pelo menos duas formas de se estudar a sintaxe da fala: uma seria considerar que a organização prosódico-informacional subordina a organização sintática, justamente o que a L-AcT propõe ao localizar as chamadas ilhas sintático-semânticas dentro da estrutura informacional. Outra opção seria considerar que a organização prosódico-informacional e a organização sintática da fala não estão direta e exclusivamente correlacionadas, ou seja, a estruturação informacional pode revelar aspectos da sintaxe, sem que essa esteja estritamente subordinada em forma de ilhas àquela. 284 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 3.1 o caso do Tópico Cresti (2011) relata que 51% dos enunciados do corpus IPIC6 do italiano são constituídos por mais de uma unidade informacional, ou seja, são enunciados complexos. Desse total de enunciados, 23% apresentam o padrão TOP-COM. A autora argumenta, então, que o padrão informacional básico do enunciado em italiano é o de TOP-COM. Segundo Cresti, a relação entre o Tópico e o Comentário tem sido tratada como uma relação de aboutness semântica. Dessa forma, o conteúdo expresso nessas unidades é tratado como uma única entidade semântica, estabelecendo uma relação proposicional. A abordagem da L-AcT é divergente das visões comumente adotadas, pois essa teoria parte de uma perspectiva pragmática, e não semântico-sintática. Para a L-AcT, o Tópico (TOP) é uma unidade informacional que tem a função de servir como o campo de aplicação cognitiva da força ilocucionária que a unidade de COM carrega. Se não há TOP no enunciado, o COM deve se referir ao contexto e aplicar sua força ilocucionária de uma forma referente ao seu tipo ilocucionário. Ou seja, se a força ilocucionária do enunciado for a de uma ordem, o COM será realizado com um perfil prosódico correspondente ao tipo ilocucionário que marca essa ilocução. Considere os exemplos abaixo adaptados de Cresti (2011):7 Exemplo 3.1 feche a porta //COM %ill: ordem %sit: o ouvinte reconhece a ordem em seu sentido pleno, incluindo a denotação semântica do seu objeto de intervenção. 6 O corpus IPIC é formado por textos da seção informal dos corpora C-ORAL-ROM (italiano), C-ORAL-BRASIL (português brasileiro) e C-Or-DiAL (espanhol). Os textos que formam esse corpus foram manualmente anotados em unidades informacionais. Ele é disponibilizado através da plataforma DB-IPIC (PANUNZI; MITTMANN, 2014). Para mais informações, cf. <http://lablita.dit.unifi.it/ipic/>. 7 Os símbolos %ill e %sit indicam, respectivamente, ilocução e situação comunicativa. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 285 Exemplo 3.2 feche-a //COM %ill: ordem %sit: o ouvinte reconhece a ordem, mas deve procurar a proeminência pragmática adequada no contexto correspondendo ao pronome a. Nesse caso, a ordem se refere deiticamente no contexto. Exemplo 3.3 a porta /TOP feche-a //COM %ill: ordem %sit: o ouvinte reconhece a ordem, mas foi fornecida a ele informação relevante para a adequada proeminência contextual ser levada em consideração na sua intervenção, através da expressão linguística do Tópico. Os três exemplos ilustram uma ilocução de ordem, cujo objetivo é realizar uma mudança de mundo. Desse modo, é esperado que haja uma referência contextual para que a ilocução de ordem se aplique de forma adequada. No primeiro exemplo, essa referência já é dada no próprio conteúdo locutivo do COM, sendo que o argumento do verbo fechar denota semanticamente a que objeto contextual a ordem deve ser aplicada. No segundo exemplo, a referência deve ser identificada através do contexto pragmático, uma vez que ela não está expressa diretamente no conteúdo locutivo do COM. O pronome a poderia se referir, por exemplo, à janela, à cortina, à persiana etc. Portanto, é necessário que o interlocutor reconheça pragmaticamente que o objeto contextual a que a ordem se refere seja a porta. No terceiro exemplo, a referência é dada no TOP. Portanto, essa unidade fornece, em termos linguístico-informacionais, um âmbito para que a ilocução de ordem se aplique. A relação entre TOP-COM é, dessa maneira, de aboutness pragmática, ou seja, o NP a porta não é o objeto semântico-sintático do VP feche-a. Não há uma relação de predicação entre o conteúdo do TOP e o do COM, portanto essas duas unidades informacionais não podem constituir uma proposição. A única relação existente entre o TOP-COM é a de que o TOP representa linguisticamente um domínio cognitivo adequado para a aplicação da força ilocucionária que o COM carrega. Consequentemente, não há relação sintática entre o TOP e o COM. O TOP, como outras unidades informacionais, é uma ilha sintático-semântica, conforme discutido na seção 2. 286 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Não obstante, a noção do TOP como uma ilha sintática parece ser desafiada por vários dados do PB e do inglês. Os dados do PB que serão apresentados nesta seção foram extraídos do trabalho de Mittmann (2012) e os do inglês foram retirados do trabalho de Cavalcante (2015). Nos exemplos abaixo, o conteúdo locutivo do TOP seria o sujeito do verbo das sentenças que se encontram no COM. Isso mostra que seria possível, desse modo, haver relação sintática entre o conteúdo do TOP e do COM. Exemplo 3.4 – bfamdl03 *LUZ: [87] mas o antônio /=ToP= &he /=TMT= cobrou muito dela isso //=COM= Exemplo 3.5 – bfamcv02 *TER: [298] os pajem /=ToP= vai ser mesmo a Giovana e o Tetê /=COM= né //=PHA= Exemplo 3.6 – bfammn02 *DLF: [29] a senhora /=ToP_r= é de Itabira /=COB_r= &he /=TMT= com um pai com esse nome /=COB_r= que que ele é do Carlos Drummond de Andrade //=COM_r= É possível argumentar que o PB é uma língua pro-drop e que, portanto, os verbos cobrou, ser e é, dos enunciados acima, podem ser usados sem um sujeito sintático, podendo, de fato, referir-se a quase todas as pessoas pronominais – como tu/você cobrou/é/vai ser, ele/ ela cobrou/é/vai ser, nós/a gente cobrou/é/vai ser, vocês cobrou/é/vai ser, eles/elas cobrou/é/vai ser – ainda que seja contraintuitivo pensar que os NPs o Antônio, os pajem e a senhora não sejam o sujeito dos verbos. De qualquer forma, a ideia do TOP como ilha sintática poderia continuar válida se esse argumento for considerado. No entanto, como explicar os exemplos de uma língua não pro-drop como o inglês, em que é obrigatório que cada verbo receba um sujeito? Os exemplos abaixo ilustram o problema: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 287 Exemplo 3.7 – afammn02 *ALN: [51] Marcia /=ToP= had a relative in Mexico /=COB= or something /=COB= but they’d been down there /=COB= many times //=COM= “Marcia /=TOP= tinha um parente no México /=COB= ou algo assim /=COB= mas eles tinham estado lá /=COB= muitas vezes //=COM=” Exemplo 3.8 – apubmn01 *KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM= “os [/1] os pinguins /TOP= estão numerados//=COM=” Exemplo 3.9 – afammn01 *LYN: [84] and your horse’s foot /=ToP= is just really wide or something //=COM= “e a pata do seu cavalo /=TOP= é muito larga ou algo assim //=COM= Não só é contraintuitivo pensar que os NPs Marcia, the penguins e your horse’s foot não são sujeitos, respectivamente, dos verbos had, are e is, como também é fato que essa consideração violaria uma regra basilar da língua inglesa e de outras línguas não pro-drop, qual seja, a de que essas línguas precisam de um sujeito expresso na sentença. Esse sujeito deve ser realizado mesmo em verbos que não “exigem” semanticamente um sujeito, como é o caso de verbos intransitivos que indicam fenômenos da natureza (cf. It rains). 3.2 o caso das orações subordinadas As subordinadas são orações que se encontram encaixadas na matriz, mantendo assim uma relação sintática de dependência. Há vários exemplos, tanto no inglês quanto no PB, que mostram orações subordinadas em unidades informacionais diferentes. A prótase (subordinadas) das condicionais abaixo se encontra na unidade de TOP, e a apódose (matrizes) está na unidade de COM. 288 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Exemplo 3.10 – bfamcv04 *BRU: [283] <se for> uma palavra composta /=ToP= né /=PHA= por exemplo duas palavras /=INT= cê faz assim //=COM= Exemplo 3.11 – afammn01 *LYN: [6] and /=DCT= if you wanna go on in it /=ToP= you [/1]=EMP= then /=AUX= you can go on /=COM= you know //=AUX= “e /=DCT= se você quiser continuar /=TOP= você [/1]=EMP= então /=AUX= você pode continuar /=COM= sabe //=AUX=” Segundo Cresti (2014), as relações de subordinação caem dentro de cada ilha sintática, ou seja, dentro de cada unidade informacional. Contudo, tanto nos exemplos das condicionais, quanto nos exemplos de orações subordinadas adverbiais temporais abaixo, existe uma relação de subordinação entre o conteúdo locutivo das unidades de TOP e de COM. As orações subordinadas estão no TOP e as principais se encontram em COM. Esses exemplos reforçam o fato de que o TOP não pode ser considerado um anacoluto sintático. Exemplo 3.12 – afamdl03 *ALC: [117] I mean /=AUX= when you’re used to doing that all the time /=ToP= you /=SCA= get up a system //=COM= “digo /=AUX= quando você está acostumado a fazer isso o tempo todo /=TOP= você /=SCA= cria um sistema //=COM=” Exemplo 3.13 – bfamdl02 *BEL: [243] quando eu cheguei aqui /=ToP= todas as minhas calças tinham ficado lá hhh //=COM= Abaixo é apresentada outra subordinada – a adverbial causal. Nesse exemplo, o enunciado é realizado através de CMMs. A subordinada se encontra no segundo CMM, o que mostra que essa oração está em outra unidade informacional, embora de mesmo valor pragmático – isto é, ambas unidades com valor ilocucionário – que aquela que a antecede. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 289 Exemplo 3.14 – bfamcv048 *CEL: [164] mas cê nunca vai adivinhar nenhuma minha /=CMM= porque eu nũ tenho a mínima noção //=CMM= Outro tipo de subordinada é a oração completiva, mostrada nos exemplos abaixo. No primeiro exemplo, a matriz se encontra em TOP e a subordinada em COM. No segundo exemplo, a matriz se encontra em INT e a subordinada na articulação TOP-COM. Exemplo 3.15 – bfamdl03 *LUZ: [181] porque eu acho que no mesmo concurso /=TOP= cê nũ pode fazer duas //=CoM= Exemplo 3.16 – bpubmn01 *SHE: [101] então /=INP= eu vejo que /=INT= é [/1] /=EMP= querendo ou não /=TOP= gente /=ALL= a organização /=TOP= é a alma do negócio //=CoM= A oração do TOP abaixo é classificada tradicionalmente como uma subordinada substantiva predicativa reduzida de infinitivo. A principal se encontra na unidade de COM. Exemplo 3.17 – bpubmn01 *SHE: [21] &estu [/1]=EMP= &he /=TMT= trabalhar no Estado /=ToP= com língua estrangeira /=APT= é lutar contra a maré //=COM= O que todos os exemplos acima mostram é que o postulado de que as relações de dependência sintática se localizam apenas dentro de cada unidade informacional não se sustentaria. As relações sintáticas de subordinação ultrapassam a unidade informacional. A princípio, esses casos ainda poderiam ser contornados com o postulado da sintaxe padronizada. No entanto, Cresti (2014) afirma que a padronização atua somente como um nível de combinação de unidades informacionais com o intuito de dar o output final e de fornecer a interpretabilidade adequada ao enunciado. A sintaxe padronizada não prevê nenhum tipo de relação sintática entre as unidades. A L-AcT postula 8 O exemplo 3.14 foi extraído de Bossaglia (2015a) e o 3.16, de Bossaglia (2014). 290 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 que, nesse nível, as estruturas não assumem as relações tradicionais de dependência sintática. Na sintaxe padronizada o nível sintático é “deposto” em razão de o conteúdo locutivo estar vinculado a unidades informacionais que desempenham funções pragmáticas específicas. Por exemplo, uma possível oração subordinada em TOP é combinada com uma possível oração matriz em COM sem estabelecer nenhuma relação de dependência. A “subordinada” em TOP se combina com a “matriz” em COM para que o enunciado tenha seu output realizado de forma completa e adequada. Contudo, a oração em TOP não é uma verdadeira subordinada, ela é somente o campo de aplicação da força ilocucionária que está em COM. Cresti (2014) efetivamente distingue as verdadeiras orações subordinadas (sempre linearizadas – proper subordinate clauses) das orações subordinadas aparentes (sempre padronizadas – apparent subordinate clauses). Em virtude do que foi exposto, pode-se inferir que parece haver um problema teórico de transposição de níveis de análise na L-AcT. Considerando os exemplos 3.10 e 3.11 das condicionais acima, depreende-se que a prótase perde sua condição morfossintática de oração subordinada por ser realizada na unidade informacional de TOP. Em outras palavras, a prótase deixa de ser uma subordinada para exercer a função do âmbito de aplicação da força ilocucionária. O que isso significa é que um elemento perde seu potencial morfossintático tão somente por exercer certa função pragmática. A combinação da prótase em TOP e da apódose em COM – sem que não haja uma relação sintática entre o conteúdo locutivo dessas duas unidades – se dá por meio da sintaxe padronizada, que busca, conforme discutido acima, fornecer a realização completa do enunciado. Na concepção da sintaxe padronizada da L-AcT, é possível notar que o nível pragmático-informacional suplanta o nível sintático. E é justamente isso que permite postular tal conceito teórico. Infere-se a partir desse postulado que a morfossintaxe perde seu estatuto potencial para assumir funções pragmáticas. Ou seja, a função (pragmática) determina qual deve ser o papel da forma, sendo que esse papel não é morfossintático, e sim pragmático. Isso pode gerar alguma incongruência teórico-analítica, como mostram os dados apresentados acima. Para ficar mais claro, será apresentado o exemplo 3.8, repetido aqui como 3.18: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 291 Exemplo 3.18 – apubmn01 *KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM= “os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM=” Segundo a L-AcT, o NP the penguins e o VP are numbered não possuem relação sintática, pois se encontram em unidades informacionais diferentes. Essa é, portanto, uma construção padronizada. O NP the penguins (forma capaz de desempenhar um papel sintático) não é o sujeito do VP are numbered porque esse NP se encontra numa unidade de TOP, servindo à função de âmbito de aplicação da força ilocucionária. Por meio da sintaxe padronizada – que não é capaz de atribuir relações sintáticas – essas unidades são combinadas de modo a prover a realização completa do enunciado. O raciocínio subjacente a essa concepção parece ser o de que qualquer elemento morfológico que se alocar na unidade de TOP perderá sua potencialidade argumental (no caso de um NP em posição de sujeito, por exemplo) ou clausal (no caso de uma oração subordinada, por exemplo), ficando, assim, incapaz de estabelecer qualquer relação sintática com elementos do COM ou de outras unidades informacionais. Isso ilustra o fato de que o conteúdo locutivo que seja realizado em TOP deve necessariamente receber o papel de servir a uma função pragmática específica, qual seja, a de constituir o âmbito de aplicação da força ilocucionária. Parece, portanto, que na proposta da L-AcT existe uma transposição de níveis analíticos gerando certa incompatibilidade entre o postulado teórico e a inspeção empírica dos dados. 3.3 o caso das orações coordenadas A coordenação é uma estratégia usada para unir duas unidades sintáticas, sejam elas palavras, sintagmas ou orações. Em exemplos canônicos, tais elementos devem apresentar o mesmo status, podendo ser unidos por um repertório de conjunções de que a língua dispõe. Considere os exemplos extraídos de Mello (2016): Exemplo 3.19 – bpubdl01 *ROG: [8] eu vou &coloc [/3]=EMP= eu vou suspender mais um pouquim aqui /=CMM= vou pegar a linha /=CMM= e vou colocar por cima //=CMM= 292 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Exemplo 3.20 – bpubcv01 *MAR: [301] <congela /=CMM= mas é mais lento> //=CMM= Exemplo 3.21 – bfamdl04 *SIL: [161] ou é vinho bom caro /=CMM= ou é cerveja //=CMM= Todos os exemplos de coordenação elencados acima estão divididos informacionalmente entre unidades de CMM. O primeiro indica uma sentença coordenada aditiva, o segundo, uma coordenada adversativa, e o terceiro, uma coordenada alternativa. O que pode ser notado é que a relação de coordenação entre orações permanece sem alteração mesmo que cada oração esteja dentro de uma única unidade informacional de CMM. Observe que no exemplo 3.19, a conjugação do verbo auxiliar ir garante que as orações coordenadas sejam correferentes entre si e entre a oração precedente em que o sujeito pronominal eu é realizado. Dessa forma, isso atesta a efetiva relação de coordenação entre as orações vou pegar a linha e e vou colocar por cima divididas em duas unidades informacionais. 3.4 o caso da negação O PB apresenta três tipos de negação verbal: a pré-verbal, a dupla e a pós-verbal, conforme ilustram, respectivamente, os exemplos abaixo extraídos de Silva (2016): Exemplo 3.22 – bfamdl23 *BAR: [173] eu não estou sendo gravada // Exemplo 3.23 – bfamdl23 *JAN: [14] cê nũ toca guitarra não // Exemplo 3.24 – bfamcv02 *JAE: [45] <conheço> ela não / <uai> // De acordo com Schwegler (1991), quando há casos de negação dupla em sentenças que apresentam período composto por subordinação, a negação que ocorre em posição pós-verbal na oração subordinada necessariamente tem escopo sobre o verbo da oração principal, exceto em casos em que já há uma negação pré-verbal na subordinada. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 293 Em pesquisa sobre a negação verbal no PB, Silva (2016) 9 apresenta o seguinte dado, em que há um caso de negação dupla em uma sentença formada por período composto por subordinação: Exemplo 3.25 – bfamdl04 *SIL: [136] nũ é igualzim de casa de pobre /=CMM= que tudo que tem põe pra fora não //=CMM= Esse dado é bastante ilustrativo com respeito à contraargumentação das premissas teóricas da L-AcT. O exemplo acima mostra que, mais uma vez, a subordinação pode ultrapassar as fronteiras das unidades informacionais. Isso fica demonstrado pelo fato de que a negação em posição pós-verbal da oração subordinada tem escopo sobre o verbo da oração matriz. Ou seja, se não houvesse relação sintática entre o conteúdo locutivo das duas unidades de CMM do exemplo acima, a negação em posição pós-verbal da segunda unidade teria necessariamente que negar os verbos ter ou pôr, o que é barrado pelas regras de escopo da negação dupla no PB, conforme propõe Schwegler (1991). A leitura dessa sentença deve ser parafraseada como (a) e não como (b) ou (c): a. Não é igualzim de casa de pobre não, que tudo que tem põe pra fora. b. Não é igualzim de casa de pobre, que tudo que não tem põe pra fora. c. Não é igualzim de casa de pobre, que tudo que tem não põe pra fora. Ou seja, o segundo advérbio de negação nega o verbo ser da oração matriz, e não os verbos das dependentes. Caso a unidade informacional fosse uma ilha sintático-semântica, o advérbio de negação que ocorre no final do enunciado deveria necessariamente ter escopo sobre o verbo de alguma oração da unidade em que se encontra. Portanto, a unidade informacional não é capaz de barrar a relação de escopo que se estabelece entre o advérbio de negação da última unidade de CMM e o verbo ser presente na primeira unidade de CMM. Os falantes de PB não interpretam o enunciado do exemplo 3.25 como as orações em (b) e (c). Isso significa que qualquer enunciado do PB que seja composto por dupla negação tendo distribuídos os advérbios em duas unidades 9 Cf. também Silva e Mello (2016a, 2016b, 2017). 294 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 informacionais diferentes sempre haverá composicionalidade sintáticosemântica, já que existe uma regra sintática que delimita o escopo do segundo advérbio de negação. E essa regra não pode ser restringida pela segmentação informacional do enunciado. 3.5 outros casos em línguas tipologicamente variadas10 Os exemplos que serão analisados nesta seção não constituem dados de fala. A princípio, haveria um problema metodológico nessa exposição, uma vez que a crítica desenvolvida nas subseções acima se baseia no estudo da sintaxe da fala, e não em dados criados. Contudo, a argumentação que será feita nas subseções abaixo se baseia num princípio de predição que é possível extrair da L-AcT – embora deva ser mencionado que tal princípio não está explícito nos textos de E. Cresti, ou seja, é algo que fica subentendido. De acordo com a L-AcT, o enunciado, a estrutura informacional e as ilocuções são veiculados pelo componente suprassegmental da fala denominado prosódia. Considerando que toda língua apresentaria prosódia, logo seria esperado haver enunciado, estrutura informacional e ilocuções em todas as línguas.11 Isso é reforçado de certa forma por Hirst (2013) no trecho abaixo: A prosódia é universal no sentido trivial de que todas as línguas possuem prosódia. Claramente, todos os enunciados têm prosódia porque suas formas prosódicas sempre podem ser caracterizadas como um padrão de mudança da duração segmental, da altura e do pitch (HIRST, 2013, p. 150, grifos do autor).12 As glosas dos exemplos tipológicos das subseções abaixo são, em ordem alfabética, 1 = classe 1, 5 = classe 5, 9 = classe 9, ABS = absolutivo, ACC = acusativo, ASP = aspecto, DIS = marcador de forma verbal disjuntiva, DS = sujeito diferente, ERG = ergativo, FV = vogal final, LOC = locativo, NOM = nominativo, PAST = passado, PL = plural, PRES = presente, REL = marcador de oração relativa, SG = singular, SM = marcador de sujeito, SS = mesmo sujeito e TAM = tempo, aspecto e modo. 11 Evidentemente, as línguas de sinais não apresentam som, portanto a prosódia não é veiculada da mesma forma que se realiza nas línguas orais-auditivas. Não obstante, suas funções aparentemente permanecem as mesmas (cf. NESPOR; SANDLER 1999; SANDLER, 2010). 12 Tradução nossa do original: “Prosody is universal in the trivial sense that all languages possess prosody. Of course, all utterances have prosody because their prosodic form can always be characterized as a changing pattern of segmental duration, loudness and pitch. 10 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 295 É preciso reconhecer que os pressupostos da L-AcT foram aplicados e constatados até o momento em apenas seis línguas: espanhol, francês, italiano, português, inglês e japonês. Contudo, conforme mencionado acima, a prosódia parece ser um universal que veicularia as funções constitutivas da fala assumidas pela L-AcT. De qualquer modo, ressalta-se que os exemplos que serão apresentados abaixo constituem, no momento, hipóteses, com exceção do exemplo 3.29 efetivamente atestado em alemão. 3.5.1 as marcas de caso O caso é uma categoria gramatical que possui a função de expressar relações sintático-semânticas por meio da morfologia. As línguas que não possuem marcação de caso empregam outras estratégias para organizar e explorar as relações sintáticas, tais como a ordem dos constituintes e as adposições, por exemplo.13 O sistema de caso constitui um paradigma em que para cada relação sintática haverá geralmente uma marcação morfológica distinta. Evidentemente, é possível que haja dois casos diferentes com a mesma marca morfológica, bem como que um mesmo caso exiba duas formas alternantes, que sofrerão variação de acordo com regras de harmonia vocálica, por exemplo. Tal marcação incide majoritariamente sobre os nominais e pode variar ainda de acordo com as categorias de número e gênero, constituindo assim diferentes declinações. O finlandês é uma língua extremamente rica na marcação de caso. A literatura mostra certa variação no que se refere ao número de casos que essa língua pode apresentar. De acordo com Karlsson (2008), o finlandês exibe quinze casos. Numa língua em que as relações sintáticas são explicitamente marcadas na morfologia, não se pode ignorar o papel da categoria de caso na interface entre a sintaxe e a estrutura informacional. Dessa forma, o princípio da unidade informacional como uma ilha sintático-semântica se enfraqueceria se as línguas de caso entrassem no arcabouço argumentativo de análise. Observe o exemplo abaixo do finlandês: Uma língua de caso pode exibir concomitantemente adposições, como o latim, o mongol, o finlandês etc. 13 296 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Exemplo 3.26 Poja-t tapa-si-vat tyttö-i-en garoto-NOM.PL encontrar-TAM-3PL garota-PL-ACC “Os garotos encontraram as garotas” O nominativo plural – caso do sujeito – é marcado pelo sufixo -t no nome poja- (garoto) e o acusativo – caso do objeto direto – é marcado pelo sufixo -en no nome tyttö- (garota). Levando em conta o papel da marcação de nominativo em 3.26, como seria possível considerar que pojat não constitui o sujeito sintático da oração caso esse nome fosse empacotado na unidade de TOP numa articulação TOP-COM? Exemplo 3.27 pojat /=TOP= tapasivat tyttöien //=COM= “os garotos /TOP= encontraram as garotas //=COM=” É importante mencionar que Cresti e Moneglia (2010) assumem a universalidade da unidade de TOP, conforme pode ser observado na seguinte passagem quando os autores apontam uma das propriedades dessa unidade: Fornecendo o domínio de relevância para o ato ilocucionário, o Tópico permite distanciar o Comentário do contexto direto do enunciado e, ao fazê-lo, ele torna a interpretação do enunciado autônoma do contexto em si. Essa estruturação informacional [TOP-COM] parece ser muito ‘primitiva’ e ocorre em todas as línguas (...) (CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 18, grifo dos autores).14 Além disso, considere o exemplo 3.29 do alemão extraído do corpus Datenbank für Gesprochenes Deutsch (SCHMIDT, 2014) e adaptado segundo os pressupostos teóricos e as normas de transcrição da L-AcT. Tradução nossa do original: “Providing the domain of relevance for the illocutionary act, the Topic allows to distantiate the Comment from the direct context of the utterance and, in doing so, it makes the interpretation of the utterance autonomous from the context itself. This information structure seems to be very ‘primitive’ and occurring in every language (...)”. 14 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 297 Exemplo 3.29 *XYZ: und den Kerl /=TOP= habe i c h i m m e r n o c h n i c h t //=COM= e o-SG.ACC garoto ter-1SG.PRS.IND eu ainda não “e o garoto /=TOP= eu não tenho ainda //=COM=” De acordo com a proposta das ilhas semântico-sintáticas, cada unidade informacional tem modalidade própria e autonomia sintática, o que se traduz no postulado de que os elementos morfossintáticos de uma unidade informacional são incapazes de estabelecer relações sintáticas com os elementos de outra unidade informacional, exceto nas unidades de Apêndice, que herdam a modalidade das respectivas unidades a que se referem. O exemplo do alemão acima desafia tal postulado na medida em que mostra um sintagma com um morfema acusativo exigido pelo verbo, algo que já evidencia uma relação sintática com o conteúdo posterior. Ademais, é interessante observar como os sintagmas estão distribuídos na oração em COM. Como o alemão é uma língua V2, o constituinte que se encontra na primeira posição força a ocorrência do sujeito para uma posição pós-verbal para resguardar o verbo em sua posição canônica, visto que a posição do sujeito já está ocupada por um sintagma acusativo (cf. MÜLLER, 1995). Na ordem canônica, o sujeito ocorre sempre em posição pré-verbal: Ich habe den Kerl immer noch nicht. Portanto, o fenômeno em questão evidencia que as relações sintáticas podem ultrapassar as unidades informacionais também em línguas de caso. 3.5.2 o sistema de switch-reference Várias línguas apresentam um sistema de referenciação de sujeitos gramaticais conhecido por switch-reference (cf. JACOBSEN, 1967; AUSTIN, 1981; HAIMAN; MUNRO, 1983, entre outros). Tal sistema consiste de um processo sintático em que ocorre o emprego de uma marca morfológica no verbo de uma oração coordenada ou subordinada indicando se o sujeito do verbo de uma oração é correferencial ou não com o sujeito do verbo da outra oração, ou seja, esse morfema afixado ao verbo indica se o sujeito de uma oração é idêntico ou diferente do sujeito da oração seguinte. Observe abaixo os exemplos do sistema de swtich reference em orações coordenadas: 298 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Exemplo 3.30 – Koita a. daka oro-go-i eu vir-SG-SS “eu vim e o vi” era-ga-nu ver-SG-PAST b. daka oro-go-nuge auki da era-ga-nu eu vir-SG-DS ele me ver-SG-PAST “eu vim e ele me viu” (DUTTON, 1975 apud LYNCH, 1983, p. 210) Na língua koita (família trans-neoguineana, Papua Nova Guiné), o período composto por coordenação recebe a marcação morfológica de switch reference no verbo da primeira oração. O sufixo -i, glosado como SS (same subject) indica que o sujeito da primeira oração é o mesmo da segunda, ao passo que o sufixo -nuge, glosado como DS (different subject), indica que o sujeito da segunda oração é diferente do sujeito do verbo da primeira oração. Observe abaixo o fenômeno da switch reference agora em orações subordinadas: Exemplo 3.31 – Diyari / ŋani piti-yi a. ŋatu kanta kuly akulya tayi-na eu(ERG) grama(ABS) verde(ABS) comer-REL(SS) eu(ABS) peidar-PRES “quando eu como grama / eu peido” nani / naka-lda nawu wakara-nani b. kanytyi mindi-ya poder correr-PAST ela(ABS) lá-LOC ele(ABS) vir-REL(DS) “ela poderia ter corrido (a distância) / se ele voltasse novamente” (ANDREWS, 2007, p. 176-177) Na língua diyari (família pama-nyungan, Austrália), a marca morfológica de switch reference é um sufixo que se afixa ao verbo da oração subordinada. No primeiro exemplo, o sufixo -na ocorre no verbo tayi- (comer) da oração subordinada e indica que o sujeito é idêntico ao da oração principal. No segundo exemplo, o sufixo -nani ocorre no verbo wakara- (voltar) da oração subordinada e indica que o sujeito não é o mesmo da oração principal. O fenômeno da switch reference nas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 299 duas línguas mostra que, caso as orações se articulem em TOP-COM ou CMM-CMM, por exemplo, a proposta da unidade informacional como ilha sintática não se aplicaria. Exemplo 3.32 daka oro-go-nuge /=CMM= auki da era-ga-nu //=CMM= “eu vim /=CMM= e ele me viu //=CMM=” Exemplo 3.33 ŋatu kanta kuly akulya tayi-na /=TOP= ŋani piti-yi //=COM= “quando eu como grama /=TOP= eu peido //=COM= A marca morfológica de switch reference é uma indicação de que as duas orações mantêm uma relação sintática, seja de coordenação ou de subordinação. Esse fato é evidenciado morfologicamente no nível do sujeito, seja ele idêntico ou diferente nas duas orações. Tal marca está ausente em orações simples em que ocorre apenas um sujeito. Dessa forma, esse fenômeno só é empregado em sentenças complexas que, via de regra, estabelecem relação sintática. 3.5.3 as marcas de sujeito em línguas bantu As línguas bantu apresentam um sistema específico em sua morfologia nominal indicando determinadas classes por meio de prefixos. Cada classe comporta um conjunto de nomes que compartilham os mesmos prefixos e o mesmo padrão de concordância. De acordo com Rego (2012), a distribuição das classes é semântica, binária15 e seu número pode variar de acordo com cada língua bantu. Tais classes são responsáveis por engatilhar concordância com o sujeito por meio de um prefixo no verbo. Esse prefixo é denominado na literatura dos estudos sobre línguas bantu como marca de sujeito (cf. CREISSELS, 2005; ZELLER, 2008a, 2008b; LANGA, 2012; 15 Essa propriedade diz respeito a que as classes 1 e 2 estão relacionadas pelas mesmas propriedades semânticas e pelo fato de a primeira indicar o singular e a segunda o plural. Essa relação da indicação da categoria de número está presente entre as classes 3/4, 5/6 etc. É preciso dizer que há também algumas exceções nessa propriedade binária (cf. REGO, 2012, para mais informações). 300 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 NGUNGA, 2014, entre outros). Para cada classe haverá uma marca de sujeito, que pode ser diferente ou pode coincidir com o prefixo da classe correspondente (cf. NGUNGA; SIMBINE, 2012). Abaixo é possível observar a concordância que é estabelecida entre os prefixos de classe e a marca de sujeito em exemplos de algumas línguas bantu: Exemplo 3.34 – Changana a. Xingove xiwile ‘o gato caiu’ b. svingove sviwile ‘os gatos caíram’ (NGUNGA, 2014, p. 72, grifos do autor) Exemplo 3.35 – Kinyarwanda Umugoré a-teets-e inyama mulher1 SM1-cozinhar-ASP carne9 “a mulher está cozinhando carne” (ZELLER, 2008a, p. 407) Exemplo 3.36 – Zulu Ikati li-ya-gul-a gato5 SM5-DIS-estar.doente-FV “o gato está doente” (ZELLER, 2008b, p. 1) Caso o enunciado se articulasse numa configuração TOP-COM, a relação de sujeito-predicado não se alteraria. O prefixo no verbo marcando concordância mostraria que não há possibilidade de considerar que a relação sintática entre os elementos está ausente nesses casos. Embora os argumentos tipológicos apresentados nesta seção careçam do áudio disponível para verificação, a problematização não deve ficar de fora por não poder ser comprovada no presente momento. Os fenômenos tipológicos listados, bem como aqueles efetivamente atestados Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 301 nos minicorpora constituem, dessa maneira, um arcabouço robusto de contraexemplos à proposta da L-AcT para o estudo da sintaxe na fala. 3.6 sobre as evidências para o postulado das ilhas sintático-semânticas Cresti e Moneglia (2010) apresentam sete evidências para o postulado das ilhas, que giram em torno de uma hipótese sobre a inexistência de composicionalidade entre as unidades de TOP e de COM. Essas evidências serão discutidas nesta seção. Ressalta-se que as objeções apresentadas não dizem respeito necessariamente às descobertas dos autores, mas sim às generalizações que são extraídas a partir de tais descobertas. A primeira evidência que os autores apresentam diz respeito à interpretação não composicional do padrão TOP-COM que acontece em enunciados sem verbos e que mostram uma suposta relação de modificação nominal. Exemplo 3.37 – ifamdl14 *TAM: [41] le mele /=TOP= fatte a cigno //=COM= “(em relação às) as maçãs /=TOP= (a forma correta deve ser) como um cisne //=COM=” O contexto de 3.37 refere-se a uma conversa entre mãe e filha sobre a organização de uma festa surpresa. Elas discutem quais pratos serão preparados. Um desses pratos constitui-se de maçãs esculpidas em formato de cisne. O enunciado de TAM especifica em qual formato as maçãs devem ser esculpidas. A leitura de 3.37 não deve ser de modificação nominal, pois o significado do enunciado não comportaria essa análise. O argumento para uma leitura não composicional é a hipótese de que caso o mesmo conteúdo fosse realizado apenas na unidade de COM, sua estrutura sintática seria alterada de um NP + AdjP para um NP complexo, em função de haver uma alteração na interpretação semântica evocada pelos diferentes padrões informacionais. Nesse caso, ocorreria de fato uma relação de modificação nominal. Exemplo 3.38 le mele fatte a cigno //=COM= “as maçãs semelhantes a cisnes //=COM=” 302 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Esse dado ilustra a propriedade que a prosódia tem de atribuir diferentes sentidos a uma sequência potencialmente ambígua, podendo consequentemente alterar sua estruturação sintática. O fenômeno mostrado é muito estudado em Psicolinguística. Contudo, casos como o do enunciado de 3.39 não se aplicam a esse padrão, uma vez que a estrutura só pode possuir a leitura de modificação nominal, isto é, quando não há uma potencial ambiguidade, a leitura do padrão TOP-COM deve ser composicional, preservando assim a estrutura de modificação nominal. Exemplo 3.39 – bfamcv02 *RUT: [319] Zé Levi /=TOP= também //=COM= O contexto do trecho acima refere-se a uma conversa entre três amigas sobre o casamento da filha de uma delas. TER estava em dúvida a respeito do envio do convite do casamento de sua filha. RUT diz que o convite poderia ser enviado para todos, mas em relação aos padrinhos, TER deveria escolher com mais cuidado, tendo em vista que algumas pessoas estavam passando por certos problemas e não poderiam participar. RUT então menciona que Guilherme era uma delas, bem como Zé Levi, ou seja, Zé Levi também não poderia participar como padrinho. O enunciado 319 não comporta a possibilidade de duas leituras, logo a leitura do padrão TOP-COM deve ser composicional, isto é, o advérbio também modifica o nome Zé Levi e sua leitura é a mesma independentemente de ter sido realizado em TOP-COM ou em COM. Tanto padronizado em TOP-COM quanto linearizado em COM, o enunciado não teria sua estrutura sintática alterada. Isso não significa que pragmaticamente seriam sinônimos, já que há uma diferença informacional entre TOP-COM e COM. O fato é que essa diferença não se estenderia para o nível sintático. Além disso, em outros contextos onde também não existe uma ambiguidade em potencial, a leitura deve ser igualmente composicional, como é o caso de 3.40. Nesse exemplo, o NP the penguins não pode ter outra interpretação além de sujeito. Exemplo 3.40 – apubmn01 *KIR: [335] the [/1] the penguins /=TOP= are numbered //=COM= “os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM= Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 303 Não há outra leitura sintática para a oração acima. Se ela tivesse sido produzida de forma linearizada em COM, sua estrutura sintática seria idêntica. O que mudaria evidentemente seria o nível informacional, conforme já mencionado. Uma evidência para essa análise seria a possibilidade de haver um pronome resumptivo que se refere anaforicamente ao NP. Ou seja, em 3.41, o pronome sujeito they só pode se referir ao NP the penguins. Isso significa que na ausência do pronome they, o NP só pode ser o sujeito. Exemplo 3.41 the penguins /=TOP= they are numbered //=COM= “os pinguins /=TOP= eles estão numerados //=COM=” O mesmo raciocínio se aplica ao exemplo 3.25 da seção 3.4. Não há uma ambiguidade em potencial nesse dado, ele constitui um caso típico de negação dupla no PB. O que fica mais evidente é o fato de que se a leitura composicional não for assumida, gera-se uma interpretação agramatical da sentença. Nenhum falante do PB entende, por conseguinte, que o escopo da negação dupla seja restringido pela unidade informacional. Dessa forma, quando não existe a possibilidade de duas leituras diferentes, a prosódia não altera a estrutura sintática da oração e, portanto, a leitura é obrigatoriamente composicional. A segunda evidência que os autores apresentam para o postulado das ilhas é o fato de existirem anacolutos sintáticos no padrão TOP-COM, sendo que as expressões em TOP são independentes da regência do verbo em COM em dados como 3.42. Exemplo 3.42 *APR: mensile /=TOP= costa un po’ di più //=COM= “mensalmente /=TOP= custa um pouco mais //=COM=” Os autores argumentam que uma leitura composicional não é possível tendo em vista a natureza de anacoluto do AdjP em TOP. Eles dizem que, para serem interpretados, os anacolutos requerem o padrão TOP-COM. Todavia, a possibilidade de haver anacolutos sintáticos apenas ilustra que a unidade de TOP, nesses casos específicos, tem a função de abrigar dentro de seu domínio um item independente. Mas isso não impede que haja elementos não anacolutos em TOP. De qualquer 304 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 forma, como os anacolutos são justamente elementos que não estabelecem relação sintática, o postulado da ilha ainda não é plenamente justificado, já que em dados como 3.40, o NP não pode ser um anacoluto devido à relação de sujeito que mantém com o verbo, conforme discutido. Isso significa que a existência de anacolutos em TOP não constitui uma justificativa para os demais casos serem classificados dentro dessa mesma classe. A terceira evidência para o postulado das ilhas é a impossibilidade de uma leitura composicional caso se considere que a relação entre TOPCOM seja de aboutness pragmática, e não semântica. Os autores dizem que a relação de aboutness semântica corresponde a uma proposição e é necessariamente composicional. Esse argumento é problemático porque o próprio conceito de proposição é bastante questionado em Filosofia (cf. QUINE, 1970). Entretanto, para fins argumentativos, não será adotada aqui a linha que nega a existência da entidade proposição. De acordo com os autores, a interpretação do TOP em termos de aboutness semântica equivaleria a uma proposição, contudo a interpretação pragmática mostraria algo distinto. O exemplo e as explicações abaixo são de Cresti e Moneglia (2010). Exemplo 3.43 *UO1: e quando un uomo politico si commuove /=TOP= è un cretino //=COM= “e quando um homem político se comove /=TOP= é um idiota //=COM=” Semântica: É desaprovado que a propriedade de ser um idiota seja sobre os eventos em que um político se mostra emocionado. A paráfrase é uma proposição. Pragmática: O ato de desaprovação “ele é um idiota” é sobre o domínio de relevância identificado por “quando um político se mostra emocionado”. A paráfrase corresponde ao enunciado, mas não é uma proposição. Segundo os autores, a interpretação de aboutness pragmática explicita a que se refere o ato de fala no devido contexto, já a interpretação de aboutness semântica gera uma proposição que pode ser apropriada ao contexto, mas não especifica seu domínio de relevância, uma vez que Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 305 sua leitura é composicional. Devido a isso as duas paráfrases não seriam equivalentes. Esse argumento mostra que o nível lógico-proposicional é distinto e não equivale ao nível pragmático. Sabendo que na fala o domínio de relevância é fornecido exclusivamente por meio da prosódia, espera-se que a paráfrase em termos proposicionais não especifique esse domínio, já que a proposição é uma entidade abstrata, sem correlato acústico. Não obstante, mesmo que se aceite que o enunciado possa ser parafraseado por uma proposição, isso não justifica o postulado de que o TOP seja uma ilha sintática. O nível pragmático não entra em conflito com o nível sintático na medida em que ser o domínio de relevância de uma ilocução não diz respeito, por exemplo, a que um NP possa ou não ser sujeito de um verbo qualquer. Isso se deve ao fato de que o nível informacional não pré-especifica a escolha das palavras nem pré-determina a natureza categorial dos itens como pertencentes a uma determinada classe de palavras. Logo, o que decidirá se um NP em TOP possa ou não ser sujeito será a função sintática que ele estabelece com o verbo. De outro modo, qual seria a motivação para que uma ilocução impeça que o conteúdo lexical de seu domínio de relevância fique impossibilitado de estabelecer uma relação oriunda de outro nível linguístico? Em que medida ser o domínio de relevância implica não poder tomar parte numa relação sintática cuja motivação está relacionada ao potencial argumental do verbo (em casos de relação sujeito-predicado)? Essas questões não são esclarecidas pelo argumento dos autores. Adicionalmente, eles afirmam que a noção de aboutness semântica não se aplicaria ou, pelo menos, geraria proposições sem sentido nos exemplos em que o TOP apresenta anacolutos, como 3.42. Nesse caso, o argumento mostra mais que a noção de proposição não possui validade empírica do que constitui propriamente uma justificativa para que o TOP seja uma ilha, tendo em vista que essa unidade pode igualmente abrigar elementos que não são anacolutos. A quarta evidência que os autores apresentam constitui um argumento cumulativo, isto é, ele só é valido caso se aceite que o TOP nunca possa ter uma leitura composicional, que ele seja sempre um anacoluto e que sua função de especificar o domínio de relevância para a ilocução não seja especificado por uma proposição. Os autores postulam que a identificação e diferenciação entre TOP e sujeito se baseia 306 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 exclusivamente na prosódia.16 O TOP teria um perfil prosódico do tipo prefixo (prefix), ao passo que o sujeito sempre estaria linearizado no enunciado. O fato é que, da forma como o TOP é definido pela L-AcT, não há uma verdadeira restrição para que um NP como the penguins em 3.40 seja impedido de estabelecer a relação sintática de sujeito. Não sendo uma categoria sintática própria que se sobreponha a outras categorias, a unidade de TOP permite que exista um NP sujeito em seu domínio desde que haja as condições sintáticas necessárias para a sua ocorrência. O perfil prosódico de tipo prefix difere um enunciado complexo de um enunciado simples, mas não diz respeito necessariamente à possibilidade de existência ou não da categoria sujeito em seu domínio, tendo em vista que a natureza sintática de um NP é determinada por princípios gramaticais.17 O argumento dos autores é válido em apenas uma direção, isto é, um NP sujeito quando linearizado não pode ser um TOP, já que a prosódia específica de TOP está ausente. Mas isso não torna verdadeiro o fato de que um NP que ocorra em TOP não possa constituir o sujeito da oração, já que um sujeito não é definido exclusivamente com base em características prosódicas. O sujeito é uma categoria sintática e sua identificação se baseia em propriedades gramaticais dos termos da oração (cf. BARÐDAL, 2006). É por isso que em 3.40 existe um NP sujeito mesmo que ele seja realizado com a prosódia de TOP.18 A quinta evidência é baseada em restrições semânticas no padrão TOP-COM. Segundo os autores, pronomes pessoais anafóricos, pronomes indefinidos, NPs negativos e NPs indeterminados não podem ocorrer em TOP porque eles não especificam uma informação linguística que permita a individuação (individuation) da entidade referida no nível Nas palavras dos autores: “(…) assuming the formal distinction between Topic and Subject on the basis of stress and prosodic features, corpus based investigations provide results that confirm their differential nature” (CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 34). 17 Note que não é possível determinar qual NP é o sujeito das seguintes orações com base apenas no fator prosódico que marca a linearização: a. o Pedro matou o Paulo //=COM=; b. apita o final de jogo o juiz //=COM= 18 Observe que falta uma justificativa à proposta de Cresti e Moneglia (2010) para que ela deixe de constituir um argumento ad hoc: “Given that obviously a Subject cannot be a Topic, we must also consider that, conversely, if one expression positively conveying the information function of Topic cannot for this reason also play the role of Subject and that this relation cannot be interpreted in the frame of sentence compositionality” (CRESTI; MONEGLIA, 2010, p. 34). 16 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 307 cognitivo, ao passo que como sujeito essas categorias poderiam ocorrer livremente. Contudo, algumas dessas categorias ocorrem na unidade de TOP. Em PB, é possível haver NPs indeterminados em TOP e em inglês é possível haver pronomes pessoais anafóricos também nessa unidade. Exemplo 3.44 – bfamcv02 *TER: [21] mas /=INP= gente velha /=TOP= já prometeu o [/1]=SCA= os presente /=TOP= <já /=SCA= pode> garantir que ganhou //=COM= Exemplo 3.45 – bfamdl01 *REN: [145] desinfetante /=TOP= a gente precisa //=COM= Exemplo 3.46 – afamcv03 *TOC: [128] he /=ToP= absolutely /=APT= was /=INT= so incredibly upset /=CMM= I couldn’t believe this //=CMM= Note que o fato de os autores não encontrarem esse tipo de dado no corpus analisado não significa que ele esteja ausente em outros corpora. Portanto, é preciso rever o alcance das possíveis restrições. Esse é um tema que merece uma investigação mais aprofundada. Dessa forma, o argumento apresentado ainda não justifica plenamente o estatuto do TOP como uma ilha sintática. A sexta evidência se refere a uma diferença entre TOP e sujeito baseada numa restrição das relações fóricas de clíticos no italiano. Nessa língua, seria agramatical dados em que o objeto de um verbo, em TOP, ocorra sem a presença de um clítico em COM: Exemplo 3.47 a. il pane/=TOP= *ho già comprato //=COM= “o pão /=TOP= já comprei //=COM=” b. il pane /=TOP= l’ho già comprato //=COM= “o pão /=TOP= já o comprei //=COM=” Segundo os autores, o TOP não toma parte na configuração sintática do VP e, por conseguinte, não satura o argumento do verbo em COM. Logo, o TOP é independente e não composicional com o restante do enunciado. Esse argumento é forte para o italiano, mas não se aplica 308 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 a todas as línguas. Em PB, existe a possibilidade de que o argumento do verbo seja saturado sem a necessidade de um clítico ou mesmo de um pronome forte em COM, conforme ilustra 3.48. Portanto, o TOP ainda não pode ser considerado uma ilha com base nesse argumento. Exemplo 3.48 – bfamdl02 *BAL: [13] as pilhas /=ToP= eu coloquei aqui //=COM= Ainda nessa mesma linha argumentativa, os autores dizem que não foram encontrados no corpus dados de uma relação catafórica entre um clítico em TOP e o seu referente em COM. Exemplo 3.49 quando li’ho guardato /=TOP= Marioi ha voltato la testa //=COM= “quando olhei para elei /=TOP= Marioi virou sua cabeça //=COM=” Por esse tipo de fenômeno ser possível em dados escritos, isso constituiria uma justificativa para uma diferenciação entre a organização da informação na fala e na escrita. A explicação para que esse fenômeno não ocorra na fala seria a de que o domínio de referência para o COM depende de sua identificação em TOP. Como na catáfora o clítico ocorre antes em TOP, o referente em COM deveria achar sua identificação no próprio COM. Salienta-se que uma investigação diacrônica seria necessária para verificar o percurso desse fenômeno na língua, sendo que ele poderia constituir apenas a conservação de um padrão restrito a alguns gêneros textuais da diamesia escrita que não encontrou lugar na fala por questões extralinguísticas. Ademais, é de se esperar que algumas estruturas da escrita não ocorram na fala, tendo em vista que não falamos como escrevemos, e vice-versa. De qualquer modo, é importante observar que a ausência desse tipo de dado na fala não decorre necessariamente da hipótese de que o referente deve estar disponível em TOP para que o pronome em COM ache sua identificação. Em outros ambientes sintáticos esse fenômeno também não ocorre mesmo se linearizado no enunciado: Exemplo 3.50 *Elei disse que Márioi viaja sempre //=COM= *Sei considera Márioi inteligente //=COM= Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 309 A sétima evidência relaciona-se à ausência de composicionalidade no padrão TOP-COM em função da distribuição de índices modais no enunciado. Segundo Cresti e Moneglia (2010), se um enunciado apresenta índices modais em unidades informacionais diferentes, cada unidade mantém sua própria modalidade, ou seja, o escopo da modalidade não pode ultrapassar a fronteira da unidade informacional. O que sustentaria esse posicionamento seria a falta de sentido da paráfrase, em termos proposicionais, gerada através da interpretação composicional de um enunciado que apresenta dois índices modais em unidades diferentes. Exemplo 3.51 – ifamcv01 *MAX: [191] secondo me /=TOP= ne dimostrava di più //=COM= “na minha opinião /=TOP= ela parecia mais velha //=COM=” De acordo com os autores, a paráfrase proposicional gerada através da interpretação composicional do enunciado não faria sentido: eu subjetivamente avalio que eu afirmo que ela parecia mais velha. Isso justificaria a impossibilidade de uma leitura composicional do padrão TOP-COM e, portanto, marcaria a independência sintático-semântica das unidades informacionais. A paráfrase correta, segundo os autores, deveria ser eu afirmo que ela parecia mais velha, mas é minha avaliação atual. Essa paráfrase é composta por duas orações coordenadas modalizadas em que cada uma mantém sua própria modalidade. Eles argumentam que se TOP e COM mostram independência em relação à modalidade, não sendo possível analisá-la composicionalmente, os itens desse padrão não poderiam ser partes de uma mesma estrutura sintática. Contudo, há casos em que a modalidade pode ultrapassar a fronteira de TOP. As orações subordinadas condicionais (“se p, então q”) representam um conjunto de dados bastante robusto que invalida esse argumento, porque nelas a prótase “atua como um angulador, que estabelece as condições de validação do discurso subsequente” (ÁVILA, 2014, p. 139). Exemplo 3.52 – bfamcv04 *BRU: [268] <e se for uma palavra composta /=TOP= cê faz assim> //=COM= Segundo Mello (2016), nas orações condicionais, como 3.52, “o escopo da modalidade por elas expressa pode ultrapassar o limite 310 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 da unidade informacional” (MELLO, 2016, p. 191). Desse modo, a modalidade não justifica plenamente o estatuto de TOP como uma ilha. Por fim, os autores concluem dizendo que as seguintes relações sintáticas e semânticas podem ocorrer linearizadas no enunciado, mas são barradas quando se desenvolvem no padrão TOP-COM. Não obstante, para cada relação elencada pelos autores, apresenta-se um contraexemplo correspondente que ilustra a possibilidade de uma leitura composicional. 1. Modificação (NP: Núcleo nominal-Modificador) Exemplo 3.53 – bfamcv02 *RUT: [319] Zé Levi /=TOP= também //=COM= 2. Regência (VP: Verbo-Objeto direto e objeto indireto19) Exemplo 3.54 – bfamdl02 *BAL: [13] as pilhas /=ToP= eu coloquei aqui //=COM= 3. Predicação (Sentença: Sujeito-Predicado) Exemplo 3.55 – apubmn01 *KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM= “os [/1] os pinguins /=TOP= estão numerados //=COM=” 4. Modalização (Proposição: Composicionalidade de índices modais) Exemplo 3.56 – bfamcv04 *BRU: [268] <e se for uma palavra composta /=ToP= cê faz assim> //=COM= Da discussão apresentada nesta seção, é possível levantar as seguintes considerações: 19 Embora numa varredura preliminar não se encontraram exemplos de objeto indireto, acreditamos não ser agramatical esse tipo de ocorrência. Em PB, a preposição geralmente é omitida quando ocorre em TOP, cf. exemplo 3.45. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 311 (i) a leitura composicional do padrão TOP-COM não só é possível como também é obrigatória em alguns casos; (ii) nem todo sintagma em TOP é um anacoluto; (iii) as relações sintáticas e semânticas podem ultrapassar a fronteira da unidade informacional. Isso indica que nem todos os dados obedecem às generalizações assumidas por Cresti e Moneglia (2010), portanto elas devem ter seu escopo reduzido. Isso implica, por sua vez, que o postulado das ilhas sintático-semânticas precisa ser revisto. 4 Discussão sobre a abordagem da L-acT para o estudo da sintaxe da fala Nesta seção, alguns pontos sobre a abordagem da L-AcT serão retomados e outros ainda não mencionados serão explorados. Será apresentada uma visão crítica a respeito desses pontos, tendo por objetivo contribuir com o debate a respeito do que foi proposto inicialmente nos trabalhos de Cresti (2011, 2014). Segundo Miller (2011), “todo trabalho sintático envolve teoria, embora não necessariamente modelos formais” (MILLER, 2011, p. 1).20 Há nessa passagem duas importantes considerações que mereceriam uma reflexão. Todavia, focar-se-á aqui apenas em uma delas. De acordo com o autor, não existe um estudo sintático ateórico. Essa observação é importante, pois permite desconsiderar possíveis abordagens que pretendem ser baseadas numa descrição sem que esta esteja relacionada a algum aspecto teórico de base. Ou seja, o tratamento dado a qualquer observação a respeito da sintaxe passará necessariamente por um posicionamento teórico, seja o das categorias mais tradicionais até o das representações mais complexas ou abstratas possíveis. Portanto, é preciso que o seguinte (provável) raciocínio seja evitado: se a prosódia é um componente natural da fala – e considerando que ela esteja alinhada à estrutura informacional do enunciado, que pode ser composto por diferentes unidades informacionais – logo haverá um caminho natural por Tradução nossa do original: “all syntactic work involves theory, though not necessarily formal models”. 20 312 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 qual devem passar os constituintes que se encontram entre as unidades informacionais, sendo este caminho constituído única e exclusivamente pela noção de ilhas sintático-semânticas. Em outras palavras, os conceitos de linearização e de padronização propostos pela L-AcT são tão teóricos quanto as categorias tradicionais de sujeito ou de objeto indireto, por exemplo. E na condição de construtos teóricos – e não na de uma suposta relação natural amparada pelo componente prosódico – eles são inteiramente passíveis de verificação empírica, podendo, dessa forma, ser atestados ou refutados, sobretudo por terem sido elaborados a partir de uma perspectiva corpus-driven. A verificação da plausibilidade desses construtos deve ser encarada, portanto, com o intuito de se obter uma otimização de recursos teóricos. Admite-se, por conseguinte, que a noção de ilha sintática não reflete uma relação natural entre os elementos, relação esta que poderia ser recuperada ou evidenciada por meio de um componente natural da língua, isto é, a prosódia. A proposta da insularidade permanente entre os constituintes que se encontram entre unidades informacionais é um construto teórico e merece ser investigado a fim de que seja atestado ou refutado. Nesse sentido, não há uma equivalência entre os construtos teóricos de linearização e de padronização com o estatuto natural encontrado no componente prosódico da linguagem. Refletir sobre o raciocínio apresentado acima é importante não só para separar o que é natural da linguagem do que é individualizado teoricamente, mas, sobretudo, para desvincular a ideia de que a prosódia determina necessariamente ilhas sintático-semânticas por meio da realização de unidades informacionais, o que está na base da abordagem da L-AcT, como pode ser verificado na seguinte passagem: “Na perspectiva da L-AcT a ‘redução’ sintática da fala é feita em favor de sua funcionalidade pragmática” (CRESTI, 2014, p. 375).21 A funcionalidade pragmática, evocada por cada unidade informacional, está diretamente relacionada ao componente prosódico, uma vez que o componente que segmenta a fala em unidades informacionais é justamente a prosódia. Logo, esse componente fundamental torna-se um veículo natural para que a noção de ilha seja justificada. Tradução nossa do original: “In the L-AcT perspective, the syntactic ‘reduction’ of speech is done in favour of its pragmatic functionality”. 21 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 313 A prosódia teria o controle para individualizar o que é de natureza sintática daquilo que é de natureza pragmática, conforme pode ser observado em passagem do trabalho de Mittmann (2012), baseado na perspectiva da L-AcT: “as características prosódicas funcionam como marcas linguísticas que assinalam a escolha do falante por realizar um certo sintagma como Tópico, sujeito ou outro constituinte” (MITTMANN, 2012, p. 155). Não obstante, o que os dados parecem mostrar é que o objeto definido pela L-AcT como Tópico permite que haja constituintes que são sintaticamente sujeitos gramaticais da oração. Não há algo que barre gramaticalmente os constituintes dos exemplos abaixo em unidade de TOP constituírem elementos pertencentes à categoria de sujeito: Exemplo 4.1 – apubmn01 *KIR: [365] the [/1] the penguins /=ToP= are numbered //=COM= “os [/1] os pinguins /=TOP estão numerados //=COM=” Exemplo 4.2 – afammn01 *LYN: [84] and your horse’s foot /=ToP= is just really wide or something //=COM= “e a pata do seu cavalo /=TOP= é muito larga ou algo assim //=COM=” Segundo Cresti (2014), “(...) o conteúdo linguístico realizado em mais de uma unidade informacional (isto é, padronizado) não pode desenvolver uma configuração sintática hierárquica através dos limites da unidade informacional” (CRESTI, 2014, p. 374, nota 14).22 Contudo, já foi mostrado que essa proposta não se aplica em todos os casos. Considere os exemplos abaixo: Exemplo 4.3 – bpubmn01 *SHE: [21] &estu [/1]=EMP= &he /=TMT= trabalhar no Estado /=ToP= com língua estrangeira /=APT= é lutar contra a maré //=COM= Tradução nossa do original: “(…) the linguistic content performed for more than one information unit (i.e. patterned) cannot develop a syntactic hierarchical configuration across the information unit boundaries”. 22 314 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 Exemplo 4.4 – bfamcv04 *BRU: [269] <e se for uma palavra composta /=ToP= cê faz assim> //=COM=$ As estruturas em negrito são amplamente documentadas na literatura como orações subordinadas, portanto é contraintuitivo assumir que elas estejam flutuando sem apresentar alguma relação sintática com suas correspondentes orações matrizes. Essa análise desconsideraria a natureza de dois tipos diferentes de dados, ou seja, aqueles que apresentam relação sintática e os que de fato não apresentam. Tais orações subordinadas mostram ainda traços gramaticais que de alguma maneira caracterizam seu estatuto convencional de subordinação, ou seja, o uso de verbos no infinitivo e no subjuntivo, respectivamente. Nesse sentido, a proposta da L-AcT confere à prosódia um papel que ela não exerceria, isto é, a ação de determinar a potencialidade categorial de um dado elemento elencado dentro de uma unidade informacional. Isso ocasiona uma destituição do nível linguístico que organiza os elementos em termos de hierarquia em favor de um nível que ocupa outro lugar na organização da cadeia da fala. À estrutura informacional veiculada pela prosódia não caberia o papel de estabelecer o que seja ou não um sujeito ou uma oração subordinada dentro de um enunciado, mesmo que ela comporte funções pragmáticas específicas no texto. Seguindo essa linha de raciocínio, a prosódia veiculando uma unidade informacional não cumpriria a função de quebrar um aspecto constitutivamente sintático e processualmente morfológico, como ocorre na marcação de caso, na concordância ou no sistema de switch-reference, por exemplo. Nesse sentido, se a abordagem da L-AcT for levada em consideração para as línguas de caso – esclarecido o fato de que os elementos podem alocar-se em unidades informacionais diferentes – a prosódia teria de adentrar a estrutura interna da palavra – formada por um processo morfológico de afixação de caso – e extirpar a propriedade primordial do componente sintático revelado, nessas línguas, pela morfologia – isto é, a hierarquia. Em vista disso, a anulação do nível sintático ou da hierarquia de constituintes seria uma função concedida à prosódia para que ela exerça o papel de organização informacional no nível pragmático, resultando no que Cresti (2014) atribui como “a redução sintática da fala”. Sem embargo, não seria razoável conceber que a prosódia carregue uma propriedade que confira a ela certa função Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 315 (ou que exerça o papel) de anular o significado sintático de um morfema dentro de um sistema altamente convencional, como é o da marcação de caso, por exemplo. A proposta da L-AcT se aplica de forma adequada a certos casos que, inegavelmente, compõem um conjunto considerável de ocorrências na fala, mas que não justificariam a integralidade da proposta. Considere os exemplos abaixo: Exemplo 4.5 – ifamdl02 *LID: [86] i’mi’ bisnonno /=ToP= Pietro //=COM= “o meu bisavô /=TOP= Pietro //=COM=” Exemplo 4.6 – bfamdl03 *LAU: [148] departamento /=ToP= Artes Plásticas //=COM= Nesses enunciados, não é estabelecida efetivamente uma relação sintática entre os elementos alocados nas unidades de TOP e de COM. A esse respeito, Cresti (2014) argumenta que “(...) o que é ‘perdido’ numa abordagem sintática composicional é mantido na L-AcT por funções pragmáticas que veiculam o padrão informacional do enunciado” (CRESTI, 2014, p. 374).23 De fato, essa proposta é adequada a esse tipo de dado. Mas, o fato é que nem todos os dados são dessa natureza, isto é, nem todas as ocorrências obedecem à organização verificada nos exemplos acima. Observe o seguinte exemplo: Exemplo 4.7 – afammn02 *ALN: [51] Marcia /=ToP= had a relative in Mexico /=COB= or something /=COB= but they’d been down there /=COB= many times //=COM= “Marcia /=TOP= tinha um parente no México /=COB= ou algo assim /=COB= mas eles mas eles tinham estado lá /=COB= muitas vezes //=COM=” Considerando a proposta da L-AcT, a interpretabilidade dos enunciados que apresentam elementos sem ligação sintática, como nos Tradução nossa do original: “(…) what is ‘lost’ from a syntactic compositional framework is maintained within L-AcT by pragmatic functions performing an utterance’s information pattern”. 23 316 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 exemplos 4.5 e 4.6, é compensada ou recuperada pela função pragmática exercida pela unidade de TOP. Nesse caso, é preciso esclarecer, então, o que determinaria que o NP Marcia, no exemplo 4.7, não esteja sintaticamente ligado ao restante do enunciado. O raciocínio da proposta da L-AcT parece se desenvolver do seguinte modo: se em alguns casos (4.5 e 4.6 acima, por exemplo) os elementos da unidade de TOP não estabelecem relação sintática com os elementos da unidade de COM, logo nenhum outro elemento em TOP estabelecerá, e isso valeria para outras unidades informacionais textuais. No entanto, essa proposta teórica acarretaria uma interpretação incorreta para os dados que não obedecem ao padrão de 4.5 e 4.6, o que gera, por sua vez, uma incompatibilidade analítica entre os dois casos. Dessa forma, se esse raciocínio não for levado em consideração, o que se constatará é que nem todos os dados atestarão a proposta da L-AcT das ilhas sintático-semânticas. Argumentase, portanto, que o postulado exibido na passagem abaixo não se aplica à totalidade dos casos encontrados nos dados dos corpora: De acordo com a L-AcT, cada unidade informacional de um padrão (identificado por uma unidade prosódica) determina o limite do respectivo chunk semântico/sintático correspondente a ela na ativação locucionária. Dado que cada chunk linguístico é concebido a fim de desenvolver uma função pragmática, a combinação deles dentro de um enunciado não segue necessariamente regras sintáticas, gerando uma sentença bem formada: a sintaxe do enunciado não corresponde a uma configuração hierárquica unitária, mas à combinação de orações, sintagmas ou fragmentos sintáticos locais (CRESTI, 2014, p. 368, grifo nosso).24 Algo que deve ser observado nessa passagem é a explicação que Cresti (2014) apresenta para justificar a noção de ilha e fragmentar o Tradução nossa do original: “According to L-AcT, each information unit of an information pattern (identified by a prosodic unit) determines the boundary of the respective semantic/syntactic chunk corresponding to it in the locutionary activation. Given that each linguistic chunk is conceived in order to develop a pragmatic function, their combination inside an utterance does not necessarily follow syntactic rules, generating a well-formed sentence: the syntax of the utterance does not correspond to a unitary hierarchical configuration, but to the combination of local syntactic clauses, phrases, or fragments”. 24 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 317 papel da sintaxe na composição do enunciado. Segundo a autora, o fato de que o conteúdo locutivo seja destinado a desempenhar uma função pragmática dentro de cada unidade informacional resulta na formação de um enunciado sem relações sintáticas entre seus elementos. Entretanto, os dados parecem não sustentar essa assunção. Uma pergunta que pode ser feita nesse sentido é por que considerar que há ilhas sintáticas em enunciados como 4.1. A justificativa giraria em torno do fato de que seus constituintes estão dispostos numa articulação TOP-COM e, dado que cada constituinte está alocado dentro de uma unidade informacional que desempenha determinada função, isso implicaria uma consequente ausência de relação sintática entre eles. Ou seja, the penguins e are numbered são chunks linguísticos que se encontram em unidades informacionais diferentes e devido ao fato de que cada unidade desempenha uma função pragmática diferente, chega-se à conclusão de que os chunks desse enunciado não estabelecem relação sintática. Não obstante, faltaria um elo baseado numa evidência empírica para que essa explicação não caia numa ideia circular como a seguinte: the penguins não é sujeito de are numbered porque se encontra em TOP, já que NPs em TOP – respeitadas certas condições morfossintáticas para sua realização – não podem ser sujeitos sintáticos de elementos em COM – algo que necessita de evidência – então the penguins não pode desempenhar a função de sujeito. Em outras palavras, qual seria a justificativa para que uma função pragmática determine uma ilha no nível da sintaxe e da semântica? Por que há a pressuposição de que elementos que recebam o estatuto de chunks dentro das unidades informacionais configurem necessariamente ilhas sintático-semânticas?25 Acreditamos que o trecho do texto de Cresti (2014) acima pode dar margem a certa confusão do nível da argumentação feita aqui. Portanto, é preciso esclarecer e separar dois objetos de inquirição. O fato de que a unidade de referência da fala seja individualizada pela prosódia e que esse componente também organize o enunciado em unidades internas não faz com que sejam anuladas possíveis relações sintáticas entre os elementos alocados dentro de tais unidades. Esse é o ponto que está sendo desenvolvido neste texto. Não se pretende discutir qual é o lugar da sintaxe ou da prosódia na produção e na organização dos enunciados, isto é, não compete discutir, neste momento, se a L-AcT 25 A exceção ficaria com as unidades de Apêndice, conforme mencionado na seção 2.1. 318 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 fornece evidências para afirmar que a prosódia preceda a sintaxe na estruturação da fala. Esse tipo de discussão não é nosso foco e tampouco é algo investigado por Cresti (2014). Trata-se, com efeito, de examinar até que ponto a proposta da L-AcT em seus postulados esteja sendo orientada pela natureza dos dados empíricos, naquilo que se refere ao componente sintático da linguagem em interação com a estrutura informacional. Esse é um fator que interfere no julgamento e na análise dos dados e precisa, portanto, ser avaliado. A sintaxe em interação com a estrutura informacional do enunciado é um ponto específico e argumentos a favor da precedência da prosódia sobre a sintaxe na organização do enunciado é outro ponto distinto. No que Cresti denomina como “provas da composicionalidade sintática”, a autora apresenta uma aplicação de testes clássicos de validação de sintagma ou de oração, tais como clivagem, coordenação negativa e coordenação positiva depois de uma resposta positiva. Esses testes constituem a demonstração da proposta. Segundo Cresti (2014), apenas em dados que apresentam linearização a aplicação de tais testes não resultará em estranhamento semântico-sintático26. A autora pretende demonstrar que os dados em que ocorre padronização não passam nos testes supracitados. Para isso, ela seleciona dados de subordinação sintática em italiano e busca mostrar, por meio da aplicação dos testes, que o que ela denomina como “orações subordinadas aparentes” (apparent subordinate clauses) não constituem estruturas governadas por uma real subordinação sintática, ou seja, seriam ilhas dominadas pela configuração informacional do enunciado. A aplicação desses testes não será reproduzida aqui devido à limitação de espaço, o leitor interessado pode consultar Cresti (2014, p. 393-402). Limitar-nos-emos, assim, a alguns comentários gerais a seu respeito. Acreditamos que um problema em potencial é que os tradicionais testes de identificação de sintagmas ou de orações atuam num nível que a L-AcT não explora, isto é, a sintaxe do ato locucionário interna à unidade informacional, aquela concernente às ilhas. Isso mostra, por sua vez, alguns fatos interessantes. Os testes ignoram a prosódia, a principal via de exploração e sustentação da proposta de Cresti (2014). Isso não Ao passo que, segundo a autora, dados que apresentam padronização “(...) the application of tests is stopped or produces odd outputs with unnatural meanings” (CRESTI, 2014, p. 400). 26 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 319 é, obviamente, um impeditivo para sua aplicação. No entanto, mostra a clara delimitação da governabilidade dos níveis prosódico e sintático, bem como um segundo fator caro à teoria: a omissão da exploração do já referido nível sintático interno à unidade informacional, ou seja, a sintaxe interna das ilhas. Conforme mencionado acima, para atestar a existência das ilhas, recorre-se a testes que omitem o componente prosódico. Considerando que a prosódia ocupa uma posição importante na proposta, pressupõe-se que tal componente deveria servir também como base para demonstrar o estabelecimento das ilhas sintático-semânticas, no sentido de constituir algo a ser explorado como suporte à proposta. Em outras palavras, na abordagem da L-AcT, a sintaxe da fala é ancorada no componente prosódico, que atua na construção das ilhas sintáticas, mas na demonstrabilidade desses construtos teóricos, esse componente é omitido, voltando-se assim a uma visão mais tradicional da sintaxe, o que revela, por outro lado, a fundamental importância do estudo da sintaxe interna das ilhas, isto é, a sintaxe localizada no nível lexical. Provavelmente, para a efetiva atestação da noção das ilhas sintático-semânticas, seria necessário o desenvolvimento de outros tipos de demonstração, seguindo a adoção de diferentes metodologias, sobretudo na esfera da experimentação. Cresti (2014) posiciona sua abordagem numa perspectiva do ponto de vista da produção, desconsiderando uma análise do ponto de vista interpretativo, conforme indica o trecho abaixo: (…) a hipótese de mecanismos sintáticos governando a regência sintática entre os enunciados e para além da atividade do falante é uma análise do ponto de vista do ouvinte. A L-AcT não está interessada numa reconstrução a posteriori de possíveis ligações sintáticas no texto falado que não consideram como a fala é realizada (CRESTI, 2014, p. 407, grifo da autora).27 A crítica de Cresti (2014) relatada nessa passagem diz respeito às análises que tentam recuperar ligações sintáticas inexistentes em dados que apresentam, por exemplo, uma articulação TOP-COM, mas que Tradução nossa do original: “(…) the hypothesis of syntactic mechanisms governing regency across utterances and beyond speaker activity, is an analysis from the point of view of the hearer, L-AcT is not interested in the a posteriori reconstruction of possible syntactic links in spoken text which do not consider how speech is performed”. 27 320 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 não exibem elementos que evidenciem tais relações, como no exemplo 4.6, em que não se pode reconstruir uma preposição entre os nomes. Contudo, mesmo que a análise não seja direcionada a reconstruir elos sintáticos que não foram realizados no momento da produção, a proposta de demonstração acerca do postulado que foi analisado segundo o ponto de vista da produção segue um critério de validação de um ponto de vista interpretativo do ouvinte, que busca recuperar, por meio de seu julgamento como falante nativo, a gramaticalidade de uma construção sintática transformada, sem o auxílio da prosódia. Esse fato revela, como já discutido, o reconhecimento de dois níveis muito distintos que estão em interação. Todavia, a interatividade que é estabelecida entre esses níveis não constituiria uma base para assumir que haja uma relação isomórfica em que um atua para anular a potencialidade do outro. Em uma passagem interessante, Cresti (2011) reconheceria que a sintaxe interna das ilhas pertence a um domínio de atividade cognitivo ao afirmar que [q]uando o falante coloca em ação algum material linguístico com certa função informacional, ele se comporta de forma pragmática e seu input fundamental é um sentimento para com o destinatário; essa atividade pertence ao ato ilocucionário. Quando o falante realiza uma configuração sintática e uma composição semântica, ele desenvolve uma atividade cognitiva e computacional que pertence ao ato locucionário. Mesmo que a ilocução e a locução sejam simultâneas à realização do mesmo ato de fala, elas se referem a faculdades diferentes (CRESTI, 2011, p. 55, grifo nosso).28 De um lado, a autora se alinha a uma posição de extensa e notória tradição, reconhecendo que o nível das relações constitutivas da sintaxe tem na sua base uma atividade cognitiva, por outro lado falta um modelo teórico que dê sustentação a uma proposta de análise e esclarecimento de fenômenos relacionados a esse nível de elaboração, tendo em vista que a Tradução nossa do original: “When the speaker puts in action some linguistic material with a certain information function, he behaves in a way pragmatically motivated and his fundamental input is an affect toward the addressee; this activity belongs to the illocutionary act. When the speaker performs a syntactic configuration and a semantic composition, he develops a cognitive and computational activity which belongs to the locutionary act. Even if the illocution and the locution are simultaneous in the performance of the same speech act, they concern different faculties”. 28 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 321 L-AcT é um modelo restrito a um âmbito específico e distante de questões relativas ao processo de elaboração e de construção da localidade sintática. O estatuto que a sintaxe recebe na L-AcT está condicionado pela pragmática via componente prosódico, que instaura as chamadas ilhas sintático-semânticas. A pragmática é, por definição, um componente não só essencial mas também parte constitutiva do processo comunicativo oral, isto é, não é possível desvincular os aspectos pragmáticos da comunicação entre dois ou mais interlocutores compartilhando o hic et nunc. Deste modo, a pragmática via componente prosódico fornece a interpretabilidade do enunciado, algo que está na base explicativa das unidades informacionais como veículos, por parte do locutor, de construção pragmática e de transmissão do enunciado e, por parte do interlocutor, de interpretação da unidade de referência da fala conjuntamente com suas unidades internas. A sintaxe, por seu turno, fornece a gramaticabilidade do nível locucionário do enunciado, organizando-o em unidades hierárquicas. Logo, o estatuto da sintaxe não deveria ser condicionado por um componente que determina a interpretabilidade, e não a gramaticabilidade, do enunciado. São dois âmbitos distintos na esfera da organização linguística, onde atuam diferentes subcomponentes a fim de regular o uso efetivo e adequado do enunciado na cadeia da fala. À medida em que se desloca o âmbito da interpretabilidade para se definir o estatuto de um componente responsável pelo âmbito da gramaticabilidade, tornando-o impossibilitado de exercer seu papel, gera-se certa irregularidade conceitual. Toda a discussão feita até aqui mostra que o componente sintático ocupa um nível altamente governado pela prosódia e pela estrutura informacional. O ganho desse posicionamento se reflete numa abordagem coerente com a diamesia da fala. Ou seja, a L-AcT mostra que a unidade de referência da fala não é regida por princípios sintáticos, mas pela prosódia, portanto o ganho se reflete em considerar esse aspecto em detrimento de uma abordagem que considere o enunciado como uma sentença falada, por exemplo. A perda, entretanto, fica mais evidente quando se analisam dados em que a prosódia e a estrutura informacional não dirimem a dependência sintática entre os constituintes. Na L-AcT, contudo, esses casos são contornados com um postulado que permite não a recuperação de uma relação sintática, mas a realização da articulação completa do enunciado ou o seu output final – casos em que ocorre a chamada padronização. Contudo, o fato de que a prosódia governe o 322 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 estabelecimento da estrutura informacional e da unidade de referência da fala não faz com que esse componente assuma automaticamente o papel de marcar níveis de dependência sintática. Uma relação de interface entre os componentes informacional e sintático seria uma saída mais viável para o problema em questão. Tal relação, por definição, não envolve a completa subordinação de um componente sobre o outro. Numa relação de interface há uma interconexão entre os níveis, sem que estejam necessariamente numa relação isomórfica. É uma relação de interface entre aspectos sintáticocognitivos que permitiria, por exemplo, que haja alguma restrição lexical no TOP (cf. KUMASHIRO; LANGACKER 2003). Ressalta-se que pode haver alguma indagação a esse respeito, isto é, considerando que haja alguns elementos barrados em TOP, haveria assim uma justificativa para o estatuto de ilha atribuído a essa unidade. Sem embargo, é preciso dizer que um fator não está correlacionado ao outro, ou seja, haver elementos que aparentemente são barrados em TOP não seria uma justificativa para considerar essa unidade como uma ilha. Observe que a restrição que implica que alguns elementos não ocorram em TOP se deve à função cognitiva que essa unidade estabelece com o COM, que envolve a formação de um domínio de relevância, conforme apontam Cresti e Moneglia (2010). A prosódia não constitui uma barreira articulatória para a realização de qualquer elemento barrado nessa unidade, ao contrário, por exemplo, das unidades dialógicas, em que não só funcionalmente, mas também prosodicamente seria impossível realizar uma articulação sintaticamente complexa em seus domínios, no sentido da elaboração de uma sentença completa com argumentos e adjuntos, por exemplo. O isomorfismo que a L-AcT propõe entre a unidade informacional e o componente sintático na fala ressalta a ideia de que há um alinhamento completo entre a sintaxe e a estrutura informacional. Nesse tipo de análise, o componente sintático é governado pela organização informacional sendo veiculada pela prosódia, de onde emergem as unidades informacionais no enunciado, que, por sua vez, restringem o conteúdo locutivo em forma de ilhas sintático-semânticas. A sintaxe é concebida, por conseguinte, como um nível de fragmentos sintagmáticos locais que têm sua natureza hierárquica determinada pelo componente pragmático que se desenvolve em termos de estruturação informacional. Contudo, buscou-se mostrar os problemas que essa concepção pode trazer, considerando a gama de contraexemplos que ocorrem na fala espontânea. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 323 Ademais, a abordagem da L-AcT para o estudo da sintaxe da fala apresenta um caráter determinístico em seu núcleo teórico, tendo em vista que considera, por exemplo, que sempre que houver elementos em unidade de TOP, eles necessariamente não estabelecerão relações sintáticas com os elementos subsequentes do enunciado. Contudo, a natureza da linguagem e de sua estrutura sintática não parece obedecer, em sua totalidade, a critérios determinísticos. Vários estudos têm mostrado que uma abordagem probabilística seria mais coerente com a investigação dos aspectos sintáticos oriundos de dados empíricos de corpora tanto de fala quanto de escrita (cf. MANNING, 2003; VOGELS; VAN BERGEN, 2017; SZMRECSANYI et al., 2017, entre outros). A abordagem probabilística traz diversas vantagens e procura refletir uma interpretação coesa com a natureza dos fenômenos. Acreditamos, portanto, que esse seja um caminho interessante para a investigação da sintaxe da fala. Considerações finais Foi investigada, neste estudo, a abordagem da L-AcT para o estudo da sintaxe da fala. A inspeção dos dados apresentados abriu caminho tanto para críticas relacionadas aos postulados teóricos estabelecidos por E. Cresti, quanto para a proposta de uma nova abordagem metodológica no âmbito da L-AcT. Submetida a uma análise qualitativa dos dados empíricos e tipológicos, verificou-se que a proposta da L-AcT deixa de interpretar informações importantes sobre a relação estrutura informacional-sintaxe. Um ponto que se mostrou crucial nesse sentido é o fato de que as relações sintáticas são capazes de ultrapassar as fronteiras das unidades informacionais, o que conduz ao reconhecimento da relação não isomórfica entre a estrutura informacional e o componente sintático da linguagem. Isso nos levou a defender que a sintaxe da fala seria melhor explorada por meio de análises probabilísticas. Acreditamos que considerar que a sintaxe da fala obedece a critérios probabilísticos pode ajudar a esclarecer vários fenômenos envolvendo a interface entre a estrutura informacional e os elementos morfossintáticos distribuídos ao longo das unidades informacionais, uma vez que as relações sintáticas podem ultrapassar as fronteiras de tais unidades, conforme argumentado neste estudo. Um exemplo seria determinar qual a chance de que NPs em TOP sejam sujeito sintáticos 324 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 271-330, 2020 do conteúdo de COM ou de que sejam anacolutos, não participando assim de uma relação de predicação direta com o elemento em TOP. Para isso, é preciso selecionar as eventuais variáveis que estariam incidindo sobre o fenômeno, bem como o(s) método(s) estatístico(s) para o cálculo da probabilidade. A partir dos resultados, seria possível estabelecer generalizações e explicações teóricas sobre o fenômeno, podendo fazer-se uso adicionalmente de outros arcabouços teóricos para o enriquecimento da argumentação. Dentro dessa perspectiva, uma gama de fenômenos podem ser explorados também em complementação com outras metodologias que permitam o uso de métodos estatísticos, como a abordagem experimental. Dessa maneira, torna-se possível uma compreensão mais robusta dos fenômenos linguísticos que envolvem a interface entre prosódia e sintaxe. agradecimentos O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES), a quem o autor agradece. O autor também agradece os comentários e as sugestões dos dois pareceristas anônimos. referências ANDREWS, A. The Major Functions of the Noun Phrase. In: SHOPEN, T. (ed.). Language Typology and Syntactic Description. Volume I: Clause Structure. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. p. 132-223. Doi: https://doi.org/10.1017/CBO9780511619427.003 AUSTIN, J. L. How to Do Things with Words. Oxford: Oxford University Press, 1962. AUSTIN, P. Switch-Reference in Australia. Language, [S.l.], v. 57, n. 2, p. 309-334, 1981. Doi: https://doi.org/10.2307/413693 ÁVILA, L. Modalidade em perspectiva: estudo baseado em corpus oral do Português Brasileiro. 2014. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 De la fraseología a una perspectiva cognitivista centrada en el uso: un debate sobre variabilidad y fijación From phraseology to a cognitive perspective focused on use: a debate on variability and fixation Leandra Cristina de Oliveira Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil leandra.oliveira@ufsc.br https://orcid.org/0000-0002-6099-9093 María Alejandra Godoy Roa Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina / Brasil marialejandragodoyr@hotmail.com https://orcid.org/0000-0001-9548-9651 resumen: El análisis aquí propuesto sobre la variabilidad verbo-temporal en el uso de las construcciones fraseológicas (CFs), fundamentado en los campos teóricos de la Fraseología, de la Gramática del uso y de la Lingüística Cognitiva, tiene como objetivo central poner en discusión el criterio de la fijación, reconocido en el campo teórico de la Fraseología como un nivel de estabilidad al cual se vincula la propiedad de la idiomaticidad. Para tanto, se emprende un estudio basado en corpus para el análisis de la frecuencia de uso de las CFs tirar la toalla, poner el grito en el cielo y echar leña al fuego. Los datos analizados a partir del tratamiento estadístico aplicado por el Programa RStudio respaldan los argumentos a favor de la variabilidad en detrimento de la fijación, puesto que el núcleo verbal de las tres CFs puede aparecer conjugado en diferentes tiempos y modo verbales. Palabras Clave: construcciones fraseológicas; fijación; variabilidad morfológica. abstract: The analysis proposed here about the verb-temporal variability in the use of phraseological constructions (CFs), based on the theoretical fields of the Phraseology, used-based theory of grammar and Cognitive Linguistics, has as a central objective to eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.331-358 332 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 discuss the criterion of fixation, recognized in the theoretical field of Phraseology as a level of stability to which the property of idiomaticity is linked. Therefore, a corpusbased study is undertaken to analyze the frequency of use of CFs tirar la tolla, poner el grito en el cielo and echar leña al fuego. The data analyzed from the statistical treatment applied by the RStudio Program support the arguments in favor of the variability to the detriment of the fixation, since the verbal core of the three CFs can appear conjugated in different times and verbal mode. Keywords: phraseological constructions; fixation; morphological variability. Recibido el 3 de junio de 2019 Aceptado el 17 de octubre de 2019 1 Introducción La propuesta de este trabajo es sintetizar parte de los resultados del estudio de Godoy Roa (2017) a partir de la consideración de la flexibilidad morfológica de construcciones fraseológicas (CFs) castellanas en lo que se refiere a los tiempos verbales. Partiendo de los conceptos de la Fraseología (CORPAS PASTOR, 1996; RUIZ GURILLO, 1997; GARCIA-PAGE, 1999), de la Gramática del uso y de la Lingüística Cognitiva, (CROFT; CRUSE, 2008; BYBBE 2003, 2006, 2010, 2016), se describen los tiempos verbales más frecuentes en el uso de tres construcciones fraseológicas específicas: tirar la toalla, poner el grito en el cielo y echar leña al fuego. La presente investigación parte de los siguientes intereses: (i) verificar la aplicabilidad del criterio de la fijación, en lo que concierne a la morfología; y (ii) identificar usos morfológicos prototípicos, en términos temporales, en cada una de las tres construcciones. Entre los problemas que impulsan esta investigación se destaca la escasez de trabajos dedicados al análisis gramatical, es decir, que vayan más allá de los límites de la semántica, centrada en la propiedad de la idiomaticidad. Por lo general, las investigaciones se direccionan a estudios sobre la traducción de este tipo de construcción, su significado, la forma como están registradas en diccionarios bilingües o en los libros didácticos para la enseñanza del español, como se puede verificar en Xatara et al. (2001), Noimann (2007), Beckhauser (2014), Costa (2014), entre otros. En este contexto, a partir de este trabajo, con base en corpus y que se centra en la descripción morfológica verbo-temporal, se busca Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 333 contribuir al estudio analítico de las CFs, considerando los límites gramaticales y cómo ellos se comportan en el marco de la lengua en uso. En términos metodológicos, cabe mencionar que el recorte de las referidas construcciones fraseológicas se justifica por su alta frecuencia en los corpus considerados en el estudio de Godoy Roa (2017): Corpus del Español, de la Universidad de Brigham; y el CREA, de la RAE, a saber.1 En la referida investigación, Godoy Roa analiza la variabilidad de cinco CFs,2 considerando las categorías tiempo y aspecto. Por los límites de espacio de este artículo, se recortan las tres construcciones más frecuentes en el análisis de la autora, considerando la morfología temporal para el cuestionamiento del criterio de la fijación. En atención a los propósitos de verificar la aplicabilidad del criterio de la fijación y de cotejar usos morfológicos prototípicos, se analizan cuantitativamente los datos a partir del uso del Programa RStudio. Asimismo, importa contextualizar la forma como se organizan las demás secciones de este artículo. Le sigue a esta breve introducción una sección dedicada a los campos teóricos accionados, básicamente: la Fraseología (CORPAS PASTOR, 1996; SINCLAIR, 1991) y la Gramática del uso (BYBEE, 2003; 2006; 2010; 2016). Posteriormente, se presentan el análisis y la discusión de los datos, seguidos por una sección dedicada a las consideraciones finales. El artículo se cierra con la presentación de las referencias citadas a lo largo del texto. 2 Debates teóricos 2.1 El objeto desde la perspectiva de la Fraseología Con vistas a la necesaria contextualización teórica del objeto de estudio en discusión, importa discutir brevemente la Fraseología, 1 Dado que el español es una lengua con muchas variedades, interesa analizar CFs compartidas entre hablantes de distintas regiones hispánicas. De este modo, tras haber considerado los diccionarios Colombianadas. Colombian english diccionary (QUINTERO, 2012) y Hablar por los codos. Frases para un español cotidiano (VRANIC, 2004) los cuales representan el español andino y peninsular, respectivamente, la investigación de Godoy Roa (2017) considera un conjunto de cinco CFs presentes en ambos materiales. 2 Las CFs analizadas por Godoy Roa (2017) son: tirar la toalla, poner el grito en el cielo, echar leña al fuego, hablar por los codos y pagar los platos rotos. 334 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 disciplina lingüística que define las unidades fraseológicas3 como construcciones formadas por una combinación fija de dos o más palabras. Según Corpas Pastor (1996, p. 20), las UFs son “unidades léxicas, formadas por más de dos palabras gráficas, en su límite inferior y cuyo límite superior se sitúa en el nivel de la oración compuesta”. Para clasificar las UFs es importante tener en cuenta tres propiedades específicas: fijación, institucionalización e idiomaticidad, de las cuales trata la subsección que sigue. 2.2 Propiedades de las UFs: fijación, institucionalización e idiomaticidad La principal característica de las UFs es la institucionalización, que se refiere al comportamiento lingüístico de los hablantes frente al uso repetido de combinaciones ya creadas. La institucionalización, que en este estudio se trabaja como fijación, puede ocurrir en tres niveles: (i) el nivel sintáctico, que comprende las variaciones y las posibilidades de combinalidad de los elementos que componen la UF; (ii) el nivel semántico, que observa las relaciones entre la expresión y su significado; (iii) el nivel pragmático, que dice respecto a los comportamientos y a las situaciones sociales en que los hablantes usan las UFs. La institucionalización puede ser entendida, en consecuencia, en términos de fijación y de especialización semántica. La fijación o estabilidad formal – característica a la que se dedica con más profundidad este estudio – es la propiedad que tienen determinadas expresiones para ser reproducidas en la forma de combinaciones El lector observará que en este estudio se sustituye el término unidades fraseológicas por construcciones fraseológicas, a razón de la interfaz que se establece en este estudio entre la Fraseología y la Língüística Cognitiva. Entendemos que el fenómeno fraseológico (modismos) es el punto de partida de la corriente cognitivista, ya que es en el afán de encontrar un lugar para él en la gramática que comienza a formarse la perspectiva construccional de la gramática cognitiva, marco en el que se define que la gramática no funciona solamente a partir de unidades léxicas, sino también de su abstracción; y esta abstracción puede realizarse como una extensa gama de posibilidades que van desde palabras y frases idiomáticas hasta oraciones altamente esquemáticas. En otras palabras, los fraseologismos son construcciones en el sentido pleno del concepto ya que aparecen como una representación del conocimiento enciclopédico y gramatical, reuniendo información en todos los niveles del lenguaje: fonológico, morfosintáctico, semántico y pragmático. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 335 previamente hechas, lo que puede ser visto como el resultado de un proceso histórico-diacrónico, evolutivo y de transformación lenta en que una construcción libre y variable se convierte en una construcción fija. Puede manifestarse por medio de la inalterabilidad del orden de sus componentes; de la invariabilidad de alguna categoría gramatical (número, género, tiempo verbal, etc.); de la inmodificabilidad del inventario de los componentes; y de la insustituibilidad de los elementos componentes. La otra propiedad que se suele tener en cuenta para el análisis de las UFs es la idiomaticidad, que, según teóricos en Fraseología, como Corpas Pastor (1996), ocurre después de la fijación. Sin embargo, en el desarrollo del presente trabajo se cree que la especialización semántica ocurre de forma paralela a la fijación, es decir, que el grado máximo de cristalización de una UF se da en dos vías que tienen un camino paralelo: la vía morfosintáctica y la vía semántica. Así pues, la idiomaticidad puede entenderse como la propiedad semántica en que el significado total de la UF no es deducible del significado aislado de cada uno de los elementos que la componen. Se trata, de una propiedad de orden pragmático, ya que aquellas expresiones que presentan esa propiedad se usan en determinados contextos comunicativos. De la misma forma que la fijación, se analiza la idiomaticidad por medio de los siguientes parámetros: (i) los criterios de idiomaticidad, en los que se considera la combinación estable de por lo menos dos términos que funcionen como elemento oracional y cuyo significado no se justifique por la suma de los significados de cada elemento que la compone; (ii) la idiomaticidad, al igual que la fijación, es gradual, o sea, existen combinaciones con idiomaticidad total y existen combinaciones que son fijas pero no idiomáticas; (iii) existe el llamado principio de idiomaticidad, en el que el usuario de la lengua tiene disponible un gran número de frases semiconstruídas previamente que constituyen elecciones únicas, aun cuando parezcan analizarse en segmentos (SINCLAIR, 1991, p. 51). Teniendo en cuenta las características y propiedades anteriormente descritas, se clasifican las UFs en tres grandes grupos: colocaciones, locuciones y enunciados fraseológicos (CORPAS PASTOR, 1996, p. 51). La atención del presente trabajo se centra en las locuciones verbales que tienen algún contenido idiomático. 336 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 Las locuciones son definidas por Corpas Pastor (1996, p. 88) como UFs del sistema de la lengua que presentan rasgos de fijación interna, unidad de significado y fijación externa. Según la autora, son unidades que no constituyen enunciados completos y que funcionan como elementos oracionales, como por ejemplo las locuciones verbales acostarse con las gallinas o hablar por los codos. Las colocaciones, por su parte, son sintagmas prefabricados que carecen de libertad combinatoria. Aun cuando no tienen una fijación ya establecida, se diferencian de las locuciones por no tener carga idiomática, aunque en ocasiones, pueden presentar un significado conjunto, como en deuda externa o paquete bomba. Por último, encontramos los enunciados completos que constituyen actos de habla y que presentan fijación tanto interna como externa, denominados como enunciados fraseológicos. Se clasifican en paremias y fórmulas rutinarias. Las primeras son unidades completamente lexicalizadas y cristalizadas, como refranes del tipo más sabe el diablo por viejo que por diablo, y proverbios como no hay mal que por bien no venga. Las segundas son oraciones exclamativas e/o imperativas que aparecen como unidades organizadoras del discurso y en ocasiones pueden expresar sentimientos o estados mentales del emisor, como por ejemplo ¡Virgen pura! o con mucho gusto. Tras contextualizar el objeto a la luz del campo teórico en que más frecuentemente se insieren las investigaciones sobre UFs, del cual se recuperan conceptos básicos para el estudio del fenómeno, interesa retomar las bases teóricas que sostienen el cuestionamiento que aquí se instaura sobre el criterio de la fijación – tema al que se dedica la subsección a continuación. Antes, cabe destacar que, a partir de este punto, se sustituye el término Unidades fraseológicas, utilizado en la Fraseología, por el término Construcciones fraseológicas, el cual Godoy Roa (2017), a partir de una orientación cognitivista, delinea al asumir los fenómenos lingüísticos como procesos que nunca se presentan estables/ fijos, sino siempre en construcción (CROFT; CRUSE, 2008; CUENCA; HILFERTY, 2007; BYBEE, 2007; 2016). 2.3 La perspectiva del uso: frecuencia y rotinización Considerando que el punto de partida del presente estudio está en la concepción del lenguaje desde la perspectiva de la Lingüística Cognitiva, inscribimos en esta sección los postulados que cobijan la Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 337 acepción de la lengua como una estructura variable y mutable, teniendo en cuenta la premisa cognitivista de que el conocimiento sobre el lenguaje surge de su propio uso. Nos centramos principalmente en la teoría cognitivista de Joan Bybee (2003), llamada Gramática del Uso, que considera la lengua como un sistema adaptativo complejo en el cual el lengiaje es maleable y presenta sus cambios en el ámbito de la pragmática. Por esta razón, la autora resalta el papel de la frecuencia del uso de las diferentes estructuras de la lengua y afirma que esa propiedad tiene un papel fundamental en la gramática. Según Bybee (2003, p. 603), la pragmática es la recurrencia en la frecuencia de uso, que se puede caracterizar como el proceso mediante el cual una secuencia de morfemas o palabras usadas frecuentemente se automatiza. De esta manera, vemos que las principales características de las CFs dentro del ámbito de la fraseologia – fijación e institucionalidad – se dan por la repetición de la automatización de esas construcciones. Cabe señalar que la corriente cognitivista tiene sus orígenes a partir del desentendimiento de las ideas generativistas de los años 70 respecto al tratamiento del fenómeno en estudio. La teoria generativa creía que la estructura de lo que en este trabajo llamamos Construcciones Fraseológicas era totalmente arbitraria, razón por la que siempre se ha dejado el fenómeno en la periferia de la gramática, enfocándose en que las reglas de las diferentes lenguas naturales consisten en escoger determinados valores para ciertos parámetros haciendo desaparecer el sentido de construcción y resaltando una visión modular del lenguaje en el que componentes diferentes al componente sintáctico solo existen para servir a las sintaxis. De esta manera, como una forma de contraposición surge el abordaje construccional de la lingüística cognitiva, que retoma esas estructuras de la perifeira para explicar que el léxico, la sintaxis y la semántica no constituyen módulos rigidamente separados, sino un continuum de construcciones, llegando a problematizar el fenómeno de los modismos4 a partir de esquemas abstractos generales que constituyen unidades simbólicas basadas en un pareamento entre forma y significado (FERRARI, 2014, p. 129). En esos esquemas abstractos generales es que se explica la regularidad de la gramática, así como su representación en la mente del hablante. 4 Término utilizado por la corriente construccional de la Lingüística Cognitiva para referirse al fenómeno fraseológico del que trata el presente estudio. 338 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 Los modismos/CFs son unidades gramaticales más extensas que una palabra y que tienen características indiosincrásicas, siendo altamente frencuentes en el uso de las diferentes lenguas naturales. En otras palabras, se trata de construcciones que aparecen como producto del conocimiento enciclopédico incorporado en nuestro sistema conceptual, y no, como afirma el generativisto, una combinación arbitraria de palabras. Vemos así, que, dentro de la teoria basada en el uso, la cognición se pone como el elemento central y su enfoque está en el proceso de regularización. Por esta razón, autores como Bybee (2016) asumen que las motivaciones más pragmáticas del inicio de una estructura se van perdiendo y esta pérdida se va haciendo rutinaria, es decir, se va convencionalizando y haciéndose recurrente. De esta manera, la cognición establece ciertos dominios a partir de la recurrencia motivada pragmaticamente, a la que se vincula la idea de dinamismo que refleja el proceso de interacción lingüística, en el cual el hablante y el oyente negocian y adaptan formas y funciones, lo que lleva al surgimiento de nuevos patrones de uso que se van volviendo recurrentes, ‘rutinizándose’, y pasando a formar parte de la gramática de la lengua. Es importante aclarar que, cuando se habla de nuevos patrones de uso, estamos hablando del uso y de la formación de construcciones, entendiendo el término ‘construcción’ como el apareamiento directo forma-sentido, que tiene una estructura secuencial y que puede incluir posiciones fijas y posiciones abiertas (BYBEE, 2016, p.14). Para la lingüista, este proceso, del cual surgen los nuevos patrones de uso, sucede a partir de cuatro dominios cognitivos: categorización, chunking, memoria enriquecida y asociación transmodal. La categorización es el proceso cognitivo que estructura la información en la mente humana, mapeando las representaciones almacenadas y estableciendo las unidades de la lengua, su significado y su forma. Ocurre a través de la semejanza y la frecuencia, es decir que la mente humana organiza en forma de categorías aquellas construcciones que son más frecuentes – construcciones que, a su vez, sirven para categorizar nuevos ítems. Después de categorizar, ocurre en la cognición humana el proceso de chunking, que se encarga de agrupar todas las construcciones almacenadas en secuencias de unidades que se van combinando en el uso para formar unidades más complejas. Es debido a este proceso que se forman las Construcciones Fraseológicas, ya que las secuencias repetidas Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 339 de palabras se almacenan de forma conjunta en la cognición, de modo que el hablante las procesas y las accede como unidades simples, o sea, se almacenan en la cognición como un bloque y los hablantes acceden a ellas de la misma manera. Sin embargo, este hecho no significa que cada CF sea un único chunk sin estructura interna; todo lo contrario, al almacenarse como chunks independientes, las CFs tienen como base asociaciones formadas entre aquello que es prefabricado y otros tóquenes de palabras que aparecen dentro de una construcción prefabricada. Una vez categorizadas y agrupadas las construcciones en la cognición, la memoria enriquecida entra en escena como el proceso que hace que todo tipo de construcciones se almacene las formas fonéticas y fonológicas, así como también los morfemas que forman las palabras de los componentes que, a su vez, forman una determinada construcción. Por último, la mente humana entra en el proceso de analogía y asociación, en el cual ocurre la creación de enunciados nuevos a partir de enunciados de experiencias previas. Este último proceso es el que permite que las posiciones esquemáticas en las diferentes construcciones se utilicen de una forma productiva, es decir, que se utilicen junto a nuevos ítems lexicales, generando el cambio y el crecimiento de estas, así como también la conexión entre forma y significado por experiencias co-ocurrentes que tienden a ser cognitivamente asociadas (BYBEE, 2016, p. 27). Teniendo en cuenta los dominios cognitivos y sus procesos explicados anteriormente se puede vislumbrar la importancia de la frecuencia de uso en la compresión del lenguaje. Se trata de poder entender que las relaciones cognitivas entre diferentes construcciones (desde un morfema hasta una construcción mucho más compleja) pueden formarse en diferentes niveles a lo largo de muchas dimensiones, creando grandes redes de asociación y cadenas de palabras en las que los ejemplares de ítems más frecuentes serán siempre los más fáciles de acceder. La frecuencia y la repetición son las responsables por la formación y/o modificación de las representaciones cognitivas de los hablantes, ya que los ejemplares se fortalecen cada vez que se mapea una nueva ocurrencia de uso, ejemplares de alta frecuencia serán siempre más fuertes que los de baja frecuencia (BYBEE, 2016, p. 50). 340 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 2.4 Variación vs. Fijación En términos generales se puede afirmar que investigadores del fenómeno fraseológico han considerado la fijación como la principal y más importante característica de lo que estamos tratando como Construcción Fraseológica. Sin embargo, esas consideraciones están siempre acompañadas por la importancia de la idiomaticidad como rasgo relevante para la descripción de las CFs como un conjunto. Considerando la posibilidad de variación en los elementos integrantes de determinadas CFs sin que se comprometa la idiomaticidad, esta investigación se dedica a identificar las variaciones temporales posibles en su uso. En este sentido, la idiomaticidad no será analizada como propiedad inherente a las CFs, sino solamente será considerada como límite de variación permitida, es decir, será mencionada en los casos en que el empleo de ciertos tiempos verbales comprometa el significado total de la CF. En ese orden de ideas, se analiza la variación en contraposición a la propiedad de la fijación; estos dos son elementos que expresan las particularidades morfosintácticas que determinan la estabilidad de las CFs en diversos grados. Así pues, la variación puede ser analizada como el elemento que pone a prueba la autenticidad de la fijación, ya que algunas de las CFs presentan una variación léxica en alguno de sus componentes. Eso significa que el fenómeno lingüístico no va a presentar diferencias de sentido y que la sustitución no sería realizada en toda la expresión, sino solamente en una parte de ella; sustitución que también es considerada como fija al representar una variante de la expresión a nivel de la estructura, es decir, en los niveles lexical y morfosintáctico. A título de ilustración, sería el caso de expresiones como el que menos corre vuela, que, en algunas regiones hispanohablantes, se construye a partir de la sustitución del adverbio de comparación menos por el adverbio de negación no, formando así la variante el que no corre vuela. Las posibilidades de variación expuestas a continuación son aquellas en las que se centra el análisis del presente trabajo y que constituyen variaciones estructurales y transformaciones morfosintácticas, a partir de las cuales se puede sugerir que determinadas CFs no son expresiones totalmente fijas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 341 2.5 algunas variaciones estructurales En referencia a las mudanzas morfológicas, las más comunes son las que ocurren en el núcleo del predicado verbal de una CF de la categoría de las locuciones verbales. De forma general, los núcleos sufren variaciones en las desinencias de tiempo, modo, persona, número, género y aspecto, según las necesidades de cada hablante en el discurso. De esa forma, la CF acostarse con las gallinas, que analizamos en otra investigación (GODOY ROA, 2017), aparece en las muestras consideradas morfológicamente codificada por diez de los quince tiempos verbales del español, permitiendo diferentes realizaciones temporales, por ejemplo: se acostaban con las gallinas, se acuesta con las gallinas, se acostó con las gallinas, se ha acostado con las gallinas, acostémonos con las gallinas, se había acostado con las gallinas, entre otros. Además, es común encontrar variaciones de tipo nominal en las locuciones verbales. Como ejemplo, podemos citar la variación en el morfema de género y número, como en el caso de hacer castillos en el aire, cuya modificación implicaría la inclusión del cuantificador un en la formación de la unidad hacer un castillo en el aire. También es posible encontrar CFs con una fuerte resistencia a cualquier tipo de variación nominal, como ocurre en la CF con fijación en plural hablar por los codos – su variación al singular, inexistente en los corpus analizados, cabe decir, comprometería su contenido idiomático, *hablar por el codo. Otras CFs tienen la particularidad de permitir variaciones de carácter derivativo, específicamente de derivación apreciativa, que corresponde a cambios en afijos como aumentativos, diminutivos y superlativos que afectan, a su vez, el componente nominal de la locución verbal: dormir como un ángel permite la variación a partir del diminutivo: dormir como un angelito. Las CFs pueden también sufrir modificaciones a nivel sintáctico, como aquellas caracterizadas básicamente por la inserción de un nuevo componente o la supresión o sustitución de un componente ya existente en la estructura. Si tomamos como ejemplo una CF que permite una amplia variación temporal sin alterar su contenido idiomático, como volverse un ocho, podemos observar que en el momento de realizar cambios de orden sintáctico como un ocho me he vuelto o me he convertido en un ocho, la idiomaticidad de la construcción se ve comprometida. Con vistas a los límites de espacio de este texto, se discuten ciertas variaciones estructurales a partir de la síntesis y de las ilustraciones 342 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 anteriores con el fin de sustentar, desde la óptica cognitivista centrada en el uso, la posibilidad de la variación sin perjuicio de la idiomaticidad. Como mencionado, en este recorte de una investigación más amplia, se considera la variación morfológica del tiempo verbal, desde la perspectiva de la frecuencia en una discusión de carácter cuantitativo y cualitativo. 3 análisis de datos En las subsecciones a continuación, se discute la frecuencia de uso con base en corpus de las tres CFs elegidas para este estudio en diferentes tiempos verbales, en atención a los objetivos mencionados en la sección 1. 3.1 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF tirar la toalla En los corpus considerados – Corpus del Español, de la Universidad de Brigham, y el CREA, de la RAE, como se mencionó anteriormente – la frecuencia total de la CF tirar la toalla es de 184 ocurrencias, de las cuales 173 fueron encontradas en el CREA y 11 en el Corpus del Español. En este conjunto, se verifica que el uso más frecuente de la CF tirar la toalla es con el verbo en la forma nominal de infinitivo, es decir, se observa una alta preferencia por el empleo de estas CFs en contextos de secuencias verbales complejas o perífrasis verbales (modales y aspectuales).5 A continuación, presentamos la frecuencia de uso de la referida CF, conforme la codificación morfológica del tiempo verbal, presente en los corpus. Estamos considerando como “secuencias verbales complejas” las combinaciones verbales que no funcionan en conjunto, es decir, que “no actúan como segmentos unitarios nucleares, sino como reunión de núcleo y adyacente” (ALARCOS LLORACH, 2007, p. 259), por ejemplo: “desistió de presentarse”. No se trata, de ese modo, de perífrasis verbales, ya que estas consisten en una combinación de unidades que funcionan en conjunto como lo hace un solo verbo, por ejemplo: “podemos salir” y “sigue estudiando”, en las cuales la forma infinita es responsable por la información semántica y el auxiliar que las acompaña aporta una información gramatical – la modalidad y la aspectualidad en “podemos” y “sigue”, respectivamente. 5 343 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 TABLA 1 – Frecuencia de la CF tirar la toalla en formas verbales6 7 Formas verbales conjugadas1 Modo Indicativo Forma Pretérito perfecto simple (Pretérito) Tiré la toalla Pretérito imperfecto (Copretérito) Tiraba la toalla Presente Tiro la toalla Futuro simple (Futuro) Tiraré la toalla Futuro perifrástico (Futuro) Voy a tirar la toalla Condicional simple (Pospretérito) Tiraría la toalla Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) He tirado la toalla Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito) Había tirado la toalla Pretérito anterior (Antepretérito)2 Hube tirado la toalla Futuro Compuesto (Antefuturo) Habré tirado la toalla Condicional compuesto (Antepospretérito) Habría tirado la toalla Modo subjuntivo Pretérito imperfecto (Pretérito) Tirara/tirase la toalla Presente Tire la toalla Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) Haya tirado la toalla Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito) Hubiera/hubiese tirado la toalla 6 Frecuencia 23/184 (12,5%) 5/184 (2,7%) 26/184 (14,2%) 3/184 (1,6%) 10/184 (5,5%) 0/184 (0%) 15/184 (8,1%) 5/184 (2,7%) 0/184 (0%) 0/184 (0%) 0/184 (0%) 4/184 (2,2%) 10/184 (5,5%) 2/184 (1,1%) 1/184 (0,5%) La nomenclatura adoptada es de la RAE, seguida de la nomenclatura funcional de Andrés Bello (1972). 7 Tiempo verbal en desuso en español. 344 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 Modo Imperativo Afirmativo y negativo 0/184 (0%) Formas Nominales Infinitivo Participio gerundio Total 77/184 (41,8%) 0/184 (0%) 3/184 (1,6%) 184 (100%) En la Tabla 1 es posible observar que, entre las formas conjugadas, la CF tirar la toalla presenta frecuencia nula en los tiempos condicional simple y compuesto, pretérito anterior y futuro compuesto. En este mismo conjunto, tiene frecuencia mayoritaria la construcción conjugada en el tiempo presente del indicativo (14,2%). A la forma en presente le siguen las formas simple y compuesta del pretérito perfecto, con el 12,5% y el 8,1% de las ocurrencias, respectivamente. Aun considerando las formas de indicativo, importa destacar la productividad de la construcción tirar la toalla en la forma perifrástica de futuro, con el 5,5% de las ocurrencias. Sobre este punto, la consideración de usos como “voy a tirar la toalla” en el cuadro de los tiempos verbales y no en el cuadro de las perífrasis se justifica por la reconocida funcionalidad de esta construcción en el campo de la temporalidad, es decir, “voy a + infinitivo” es una construcción gramaticalizada en diferentes lenguas, entre ellas el español, en el dominio temporal de futuro, conforme la amplia discusión en el ámbito de la Teoría de la Gramaticalización, (FLEISCHMAN, 1983; AARON, 2006; OLIVEIRA et al., 2015). Respecto al modo subjuntivo, el mayor número de ocurrencias se encuentra también en el uso del presente, con el 5,5% de las ocurrencias, seguido de la forma de imperfecto con un porcentaje del 2,2% de los datos. Los resultados presentados en la Tabla anterior indican una notable frecuencia de uso de la CF tirar la toalla en formas de pretérito; sin embargo, se observa mayor tendencia a configurarse en tiempo presente, tanto en el modo indicativo como en el modo subjuntivo. A continuación, traemos una ocurrencia de cada forma verbal contemplada Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 345 en la Tabla, partiendo de la forma verbal más frecuente a la de menor frecuencia. (1) Puede que, al principio, le cueste desconectar, pero si no tira la toalla a la primera, lo logrará. (presente indicativo) (2) No podían seguirle pagando a los principales jugadores y se desmantelaron lentamente hasta que “tiraron la toalla”. (pretérito perfecto simple) (3) Incapaz de lograr que los británicos impongan orden en su colonia, el Gobierno español ha tirado la toalla, conformándose con la creación de un tinglado burocrático. (pretérito perfecto compuesto) (4) Estamos preocupados. Pero no vamos a tirar la toalla. (futuro perifrástico) (5) Se ha puesto muy difícil. Mas soy el primero en animarte para que no tires la toalla. Sería una lástima. (presente subjuntivo) (6) La leyenda indica que el chileno salió en medio de una ovación del estadio de Queensboro, luego de que sus asistentes tiraran la toalla debido a un pisotón “casual” que le propinara el propio árbitro. (pretérito imperfecto subjuntivo) (7) Pero después de trece agónicos días, Maccanico tiraba la toalla al no lograr poner de acuerdo a las dos formaciones que más discrepaban. (pretérito imperfecto indicativo) (8) Oleart también había tirado la toalla ante la impotencia de sus jugadores y los cerca de quince mil espectadores. (pretérito pluscuamperfecto) (9) Si cede dejará de creer en lo que hace y entonces sí que tirará la toalla. (futuro) (10) por el hecho de que no haya tirado la toalla y haya acudido antes a la consulta electoral anticipada. (pretérito perfecto compuesto subjuntivo) (11) aunque cada día son menos los integrantes. Otro ya hubiera tirado la toalla. (pretérito pluscuamperfecto subjuntivo) En el análisis de la CF se observó que además de la distribución temporal expresa morfológicamente, las ocurrencias del verbo principal 346 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 de la locución se presentaron también en las formas nominales, principalmente en infinitivo, formando perífrasis verbales o secuencias verbales complejas. Como se puede observar, 77 de las 80 ocurrencias que presentan el verbo tirar en forma nominal están en la forma de infinitivo, mientras que tres están en gerundio y ninguna aparece en la forma nominal de participio8. Se verifica, además, un uso prototípico de esta CF en la forma nominal de infinitivo. Entre ese grupo de ocurrencias, identificamos diferentes posibilidades: perífrasis verbal modal, perífrasis verbal aspectual, secuencia verbal compleja y uso nominal sin presencia de otros verbos, conforme ilustran los datos a continuación, en el orden correspondiente. (12) Esto aún no ha terminado y no podemos tirar la toalla. La clasificación nos dejará donde nos merezcamos. (13) Rodrigo Paz, presidente del CONAM, estuvo a punto de tirar la toalla y de retirarse del cuadrilátero. (14) Investigados por corrupción han decidido tirar la toalla o bien han sido «animados» por sus propios partidos. (15) ¿Exorcizando el vértigo? ¿Tirando la toalla? ¡Qué no se diga!... Los datos de (12) a (14) ilustran diferentes construcciones en que la CF tirar la toalla se insiere con su verbo principal en la forma finita. En (12), la construcción finita aparece acompañada del modal poder, formando por consecuencia una perífrasis verbal de modalidad deóntica. En (13), la construcción estar a punto de añade a la CF el sentido de aspecto inceptivo, constituyendo de este modo una perífrasis verbal aspectual. El dato en (14) ilustra una combinación que aquí se define como secuencia verbal compleja, puesto que, diferente de los datos inmediatamente anteriores, no funcionan en conjunto como lo hace un solo verbo. La CF en este caso funciona como complemento exigido por el verbo decidir, se trata de la reunión entre núcleo y adyacente, y la evidencia es la posibilidad de sustitución de la CF por un pronombre complemento (lo han decidido) – sustitución imposible en el caso de perífrasis modales y aspectuales. Finalmente, el dato en (15) ilustra el uso 8 Cabe destacar que se consideran los contextos de participio antecedido del auxiliar haber en el análisis de los tiempos compuestos, cuantificados en las CFs conjugadas. 347 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 en la forma nominal de gerundio, actuando independientemente en forma de pregunta, sin relacionarse con verbos o construcciones próximas. Como síntesis de los resultados referentes a tirar la toalla se observa la alta productividad de esta CF en la forma infinita inserida en contextos de perífrasis y secuencias verbales complejas, totalizando el 41,8% de los usos identificados en los corpus. En atención a las cuestiones que se plantea en este estudio, tal resultado sugiere que el uso prototípico de tirar la toalla sería en la forma infinita. Entre los empleos con el verbo conjugado, la CF puede ocurrir en diferentes tiempos y modos verbales, lo que señala su alta variabilidad y baja fijación en lo que concierne a la morfología temporal. Referente al tiempo, parece haber (i) una preferencia por el empleo en contextos de presente, (ii) amplia productividad de la construcción en el contexto de pasado y (iii) relativamente baja frecuencia en contextos de futuro. 3.2 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF poner el grito en el cielo Otra CF con expresiva productividad en los corpus considerados es poner el grito en el cielo, con un total de 217 ocurrencias: 176 presentes en el CREA y 41, en el Corpus del Español. Del total de 217 ocurrencias, se observó que la mayor frecuencia está en la expresión de pasado, seguida de la expresión de presente, con 130 y 38 datos, respectivamente. La Tabla a continuación muestra la distribución de las ocurrencias de acuerdo con la morfología verbal de las formas encontradas. TABLA 2 – Frecuencia de la CF poner el grito en el cielo en formas verbales Formas verbales conjugadas Modo Indicativo Forma Pretérito perfecto simple (Pretérito) Puse el grito en el cielo Pretérito imperfecto (Copretérito) Ponía el grito en el cielo Presente Pongo el grito en el cielo Futuro simple (Futuro) Pondré el grito en el cielo Frecuencia 80/217 (37%) 16/217 (7,3%) 30/217 (13,8%) 7/217 (3,2%) 348 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 Futuro perifrástico (Futuro) Voy a poner el grito en el cielo Condicional simple (Pospretérito) Pondría el grito en el cielo Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) He puesto el grito en el cielo Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito) Había puesto el grito en el cielo Pretérito anterior (Antepretérito) Hube puesto el grito en el cielo Futuro Compuesto (Antefuturo) Habré puesto el grito en el cielo Condicional compuesto (Antepospretérito) Habría puesto el grito en el cielo Modo subjuntivo Pretérito imperfecto (Pretérito) Pusiera/pusiese el grito en el cielo Presente Ponga el grito en el cielo Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) Haya puesto el grito en el cielo Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito) Hubiera/hubiese puesto el grito en el cielo Modo Imperativo 4/217 (1,9%) 1/217 (0,5%) 25/217 (11,5%) 0/217 (0%) 0/217 (0%) 0/217 (0%) 2/217 (0,9%) Afirmativo y negativo 1/217 (0,5%) 5/217 (2,3%) 8/217 (3,7%) 1/217 (0,5%) 3/217 (1,3%) Formas Nominales Infinitivo Participio Gerundio ToTaL 27/217 (12,4%) 0/217 (0%) 7/217 (3,2%) 217 (100%) La Tabla 2 muestra que la CF en debate presenta mayor frecuencia de uso cuando está conjugada en el pretérito perfecto simple, con el 37% Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 349 de los datos, seguido de la forma verbal de presente (13,8%). Las formas del pretérito anterior y del futuro compuesto no presentaron ninguna ocurrencia y se identificó un único dato en el imperativo. Enseguida, se ejemplifican cada uno de los tiempos cuantificados en la Tabla anterior. (16) Churchill puso el grito en el cielo sobre las intenciones de Hitler, pero nadie quiso escucharlo. (pretérito perfecto simple) (17) La oposición pone en el grito en el cielo porque la conducta del jefe de gobierno corrobora sus peores temores. (presente) (18) Asimismo, cuando se les ha informado que la tasa ascenderá a 120.000 pesetas anuales han puesto el grito en el cielo. (pretérito perfecto compuesto) (19) Pues lo que venía ocurriendo era que los nacionalistas catalanes se distanciaban del Gobierno cuando les parecía, pero ponían el grito en el cielo si el Gobierno votaba distinto a ellos. (pretérito imperfecto) (20) Y los cuatro tontos de siempre pongan el grito en el cielo. Me hace pensar que vivo en el país más impresentable de la tierra. (presente subjuntivo) (21) Con la esperanza de que pusieran el grito en el cielo si los militares destruían el cadáver. (pretérito imperfecto subjuntivo) (22) Si Paula acaba en la cárcel, la gente del toro – y específicamente los gitanos – pondrán el grito en el cielo. Serán gritos perdidos porque la justicia no entiende de honores mancillados. (futuro simple) (23) (…) un numeroso grupo de creadores de virus va a sentirse aludido y va a poner el grito en el cielo. (futuro perifrástico) (24) La abuela pondría el grito en el cielo, y el abuelo saldría del cuarto de baño en albornoz para saber lo que estaba pasando. (condicional simple) (25) De no haber sido el causante el hijo del Alcalde, el pobre Manquillo habría puesto el grito en el cielo al descubrir el portillo por donde se le escapan ahora cabras y gallinas. (condicional compuesto) (26) Cualquier otro hombre hubiera ya puesto el grito en el cielo, y el hecho de que Indalecio no lo ponga no se debe a que sea menos hombre. (pretérito pluscuamperfecto subjuntivo) 350 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 (27) Organizaron los actos, que se celebraron bajo el lema “Pon tu grito en el cielo por Etiopía”, la Cruz Roja, la rueda de emisoras Rato, (…). (imperativo) (28) La Comisión Presidencial de Derechos Humanos -encabezada por la licenciada Marta Altolaguirre, que hace apenas unos años hubiera puesto el grito en el cielo por este asesinato – tampoco ha demostrado mayor interés en esclarecer el hecho de sangre. (pretérito pluscuamperfecto) (29) No es extraño, pues, que la industria del cine haya puesto el grito en el cielo y la vista en los códigos. (pretérito perfecto compuesto subjuntivo) Aunque la mayoría de las ocurrencias de la CF poner el grito en el cielo presenta el núcleo verbal de la locución en formas conjugadas, la búsqueda en los corpus arrojó también datos que muestran que en algunas ocasiones lo hablantes hacen uso de esa construcción en formas nominales, sea en perífrasis verbales o en secuencias verbales complejas. La Tabla 2 muestra que, referente a las formas nominales, la tendencia es el uso del infinitivo, más que del gerundio y participio. La frecuencia de uso muestra que, entre esas 29 ocurrencias en infinitivo, 20 hacen parte de perífrasis verbales, al igual que tres de los siete datos encontrados en gerundio. Referente a los usos perifrásticos, encontramos ocurrencias de perífrasis modales y aspectuales, secuencias verbales complejas y uso nominal, ilustradas, en el orden correspondiente, a continuación. (30) Los academicistas pueden poner el grito en el cielo. Imagino que algunos ya lo habrán hecho. (31) Tu familia comenzará por poner el grito en el cielo, pero después comprenderá la razón y callará. (32) El Gobierno español no está dispuesto a “poner el grito en el cielo” sino la «palabra en la tierra» por la presencia de Bossano en Madrid. (33) Ya de paso, declaró la abuela que no fuese María del Carmen una ignorante y una bruta poniendo el grito en el cielo por sandeces, que parecía de pueblo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 351 En (30), se ejemplifica la CF en el ambiente perifrástico con valor modal expreso por el verbo poder. Enseguida, en la ocurrencia (31), se puede interpretar el valor aspectual de la perífrasis a partir de semántica inceptiva del verbo comenzar. En los pasos de la descripción propuesta por Alarcos Llorach (2007), se clasifica el dato en (32) como una secuencia verbal compleja por tratarse de la reunión de un núcleo y su adyacente. El dato en (33) exhibe el uso nominal del verbo principal de la CF sin pertenecer a una perífrasis como tampoco a una secuencia verbal compleja. En los términos de la reflexión sobre la fijación morfológica, a partir del análisis del uso de la CF poner el grito en el cielo, se puede argumentar a favor de la variabilidad sin perjuicio de la idiomaticidad, observando la distribución de usos en casi todas las celdas de la Tabla 2. Un poco diferente de los resultados obtenidos con el análisis de tirar la toalla, la construcción aquí en debate no es prototípicamente empleada en contexto nominal, sino más comúnmente conjugada en la forma del pretérito perfecto simple, con frecuencia que corresponde a un poco más de la tercera parte de los datos totales. 3.3 Frecuencia de uso y variabilidad temporal de la CF echar leña al fuego En el análisis de la frecuencia de uso de la CF echar leña al fuego, se observa que, en la mayoría de los datos, el verbo de la locución aparece en la forma nominal de infinitivo, antecedido de un verbo conjugado – resultado semejante al que se encuentra en la CF tirar la toalla. En la frecuencia total, se identificaron 101 ocurrencias: 21 en el Corpus del Español y 80 en el CREA. En la primera etapa del análisis, se considera la distribución temporal de las ocurrencias, codificada en las formas verbales del español, tal y como se muestra en la Tabla a continuación: 352 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 TABLA 3 – Frecuencia de la CF echar leña al fuego en formas verbales Formas verbales conjugadas Modo Indicativo Forma Pretérito perfecto simple (Pretérito) Eché leña al fuego Pretérito imperfecto (Copretérito) Echaba leña al fuego Presente Echo leña al fuego Futuro simple (Futuro) Echaré leña al fuego Futuro perifrástico (Futuro) Voy a echarle leña al fuego Condicional simple (Pospretérito) Echaría leña al fuego Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) He echado leña al fuego Pretérito pluscuamperfecto (Antecopretérito) Había echado leña al fuego Pretérito anterior (Antepretérito) Hube echado leña al fuego Futuro Compuesto (Antefuturo) Habré echado leña al fuego Condicional compuesto (Antepospretérito) Habría puesto el grito en el cielo Modo subjuntivo Pretérito imperfecto (Pretérito) Echara/echase leña al fuego Presente Eche leña al fuego Pretérito perfecto compuesto (Antepresente) Haya echado leña al fuego Pretérito pluscuamperfecto (Antepretérito) Hubiera/hubiese echado leña al fuego Modo Imperativo Afirmativo y negativo Frecuencia 16/101 (16%) 3/101 (3%) 4/101 (4%) 0/101 (0%) 0/101 (0%) 1/101 (1%) 2/101 (2%) 0/101 (0%) 0/101 (0%) 0/101 (0%) 0/101 (0%) 1/101 (1%) 6/101 (6%) 0/101 (0%) 0/101 (0%) 1/101 (1%) 353 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 Formas Nominales Infinitivo Participio gerundio ToTaL 58/101 (57%) 0/101 (0%) 9/101 (9%) 101 (100%) Como se observa en la Tabla 3, entre las formas conjugadas, la CF echar leña al fuego aparece con mayor frecuencia de uso en el pretérito perfecto simple (16%) y presente de indicativo (4%). Se verifica, además, frecuencia nula (i) en las formas indicativas del futuro simple, pretérito pluscuamperfecto, pretérito anterior, futuro compuesto, condicional compuesto; y (ii) en las formas del subjuntivo: pretérito perfecto compuesto y pretérito pluscuamperfecto. A continuación, ilustramos los resultados de la Tabla 3 con los datos organizados de la forma verbal más frecuente a la de menor frecuencia. (34) El mago echó más leña al fuego9 porque la pira estaba agonizando y el poeta aprovechó la pausa para comentar la cruzada del tartamudo. (pretérito perfecto simple) (35) El resto de los participantes, paseantes inocentes, hacen la vista gorda, ignoran la situación o echan más leña al fuego por malicia o para aprovecharse de la destrucción de un colega más cualificado. (presente) (36) En este período electoral con tanta tensión, con problemas que empiezan a acumularse -me cuentan- en varias organizaciones musicales, no voy a ser yo esta semana quien eche más leña al fuego. (presente subjuntivo) (37) Cada vez que le iban mal las cosas a ETA, surgía algo que echaba leña al fuego dando nuevos argumentos a los violentos. (pretérito imperfecto) 9 Cabe destacar que en algunos ejemplos se observa el uso del adverbio de cantidad “más”, ítem lexical que en algunas regiones hispanohablantes hace parte de la CF, o sea, es una variación diatópica que no cambia el sentido idiomático de la locución. 354 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 (38) Hoy paradójicamente, con sus declaraciones sobre el tema ha echado leña al fuego, en su conflicto que alienta la discordia entre los ecuatorianos. (pretérito perfecto compuesto) (39) Estaba buscando una salida que no echara más leña al fuego, cuando recibí otro golpe que me volvió a desequilibrar (pretérito imperfecto subjuntivo) (40) Mientras, todos se preparan para la segunda vuelta en medio de una nueva elección, la de los candidatos parlamentarios, que echaría más leña al fuego. (condicional simple) Así pues, se puede señalar que la variación en la flexión verbal de la CF se da en siete de las quince formas verbales del español. Sin embargo, como se menciona al inicio de esta subsección, el mayor número de ocurrencias presenta la CF con la forma nominal de infinitivo, por lo cual, pasaremos a exponer el análisis de la presencia de las formas nominales en los datos analizados. Como muestra la Tabla 3, de las 67 ocurrencias en formas nominales, 58 están en la forma de infinitivo, 9 en gerundio y ninguna en participio. De esas 58 ocurrencias, 44 presentan el verbo echar antecedido de algún verbo conjugado, o sea, hacen parte de perífrasis verbales, ya sea modales o aspectuales, y de secuencias verbales complejas, tal y como ilustran los datos a continuación. (41) “Hay una línea del gobierno de Felipe Sapag que busca resolver el conflicto y no seguir echando leña al fuego”, dijo Maffei. (42) Al dejar de echar leña al fuego, a medida que ésta se consume, la atmósfera vuelve naturalmente a la oxidación. (43) “Piensa como yo, pero no quiere echar leña al fuego... ¡Ni falta que hace, ya arde bastante!” (44) Lo cual en un momento de tanta revolución no hace otra cosa que echar más leña al fuego. La CF presentada en (41) trae la unidad seguir como auxiliar aspectual que refuerza la semántica de duración del evento expreso por el verbo principal conjugado en el gerundio – forma nominal que, por definición, marca aspecto durativo. Además de la perífrasis aspectual con gerundio, se verifica en (42) el empleo de la CF en perífrasis aspectual con infinitivo denotando el punto final de un evento. En (43), Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 355 la clasificación del uso perifrástico modal se justifica por la presencia del auxiliar deóntico querer. En (44), la CF se configura en una secuencia verbal compleja, como complemento adyacente del verbo hacer. Como síntesis de los resultados referentes a la CF echar leña al fuego, se verifica que su uso prototípico sería en construcciones con infinitivo, sea en contextos perifrásticos sea o en contextos de secuencias verbales complejas. La Tabla 3 señala que más de la mitad de los datos se encuentra en contextos de infinitivo. Con respecto al tiempo morfológico, se nota (i) expresiva preferencia por el pretérito, (ii) relativamente baja presencia en el presente y (iii) ausencia absoluta en el futuro. Palabras finales El análisis propuesto en este artículo buscó arrojar un poco de luz sobre el fenómeno de las construcciones fraseológicas desde un enfoque dinámico de la lengua en uso, deseando avanzar hacia un estudio centrado en la descripción morfológica verbo-temporal. El interés en verificar la aplicabilidad del criterio de la fijación, en lo que concierne a la morfología, y en identificar los usos morfológicos prototípicos nos condujo al tratamiento cuantitativo de las tres construcciones fraseológicas – tirar la toalla, poner el grito en el cielo y echar leña al fuego – presentes en dos corpus representativos de la lengua española. Los datos apuntan para una expresiva variabilidad morfológica verbo-temporal en los tres casos sin perjuicio de la idiomaticidad. Los resultados discutidos en la sección anterior nos permiten argumentar a favor de la variabilidad morfológica verbo-temporal, puesto que las tres CFs se distribuyen en diferentes tiempos y modos verbales. Las construcciones tirar la toalla y echar leña al fuego tienen comportamiento semejante en lo que se refiere a su uso prototípico, dado que ambas tienen frecuencia mayoritaria en construcciones con infinitivo, ya sea en contextos perifrásticos o en contextos de secuencias verbales complejas. En el caso de la CF poner el grito en el cielo se verifica la preferencia por la forma conjugada en el pretérito perfecto simple, totalizando casi el 40% de la frecuencia total. En los pasos de Bybee (2016), asumimos en este estudio que la organización cognitiva de la lengua se establece en la experiencia con la lengua misma, de ahí nuestro interés en analizar la variación morfológica de las construcciones fraseológicas a partir del uso, analizando el 356 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 331-358, 2020 fenómeno con base en diferentes corpus. Desde una perspectiva cognitivista, abogamos por la variación sin dejar de reconocer que la fijación es, en cierta medida, un criterio que se debe considerar en el tratamiento del fenómeno analizado. Más conveniente nos parece situar la realidad más estática de la fijación en el ámbito de la lengua y la realidad más dinámica de la variación en el ámbito del uso, arriesgándonos a reproducir un modelo dual tradicionalmente practicado en la Lingüística. Declaración de autoría Las dos autoras participaron de la construcción y formación de este estudio que nace de la investigación de maestría de una de las autoras, correspondiéndole, así, a la Autora 2 la colecta de datos y la escritura de las secciones teóricas y del objeto de estudio, bien como la cuantificación de los datos en el programa estadístico Rstudio. La contribución de la Autora 1 se dio en el análisis e interpretación de los datos, ayudando en la redacción del texto y en las palabras finales. referencias AARON, J. E. Me voy a tener que ir yendo: A Corpus-Based Study of the Grammaticization of the ir a + INF Construction in Spanish. In: 9th HISPANIC LINGUISTICS SYMPOSIUM, 9th, 2006, Somerville, MA. Selected Proceedings […]. Somerville, MA: Cascadilla Proceedings Project, 2006. p. 263-272. Disponible en: https://pdfs.semanticscholar. org/e1db/010a602a2bb16d6ee6558139c594277e30b9.pdf. Acceso en: 02 oct. 2019. ALARCOS LLORACH, E. Gramática de la lengua española. 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Analisamos excertos traduzidos do inglês para o português brasileiro, em sete diferentes traduções de Looking through the mirror (Carroll) e The Picture of Dorian Gray (Wilde), com o objetivo de verificar como os jogos de palavras foram gerados e, posteriormente, traduzidos, considerando sua natureza estilística, idiomática e pragmática. Nossos resultados apontam a prevalência das seguintes estratégias de tradução: transformação em fraseologismo equivalente, tradução por empréstimo e transformação em fraseologismo análogo. Concluímos que os tradutores tentaram, de algum modo, preservar os jogos de palavras e seu efeito, conferindo-lhes, em alguns casos, graus menores de idiomaticidade e naturalidade. Palavras-chave: fraseologismos; jogos de palavras; tradução; humor. abstract: In this article, we discuss the translation of wordplays generated from idioms in literary texts, by means of Veisbergs’ ideas (1997). We analyze excerpts translated from English into Brazilian Portuguese, in seven different renderings of Looking through the mirror (Carroll) and The Picture of Dorian Gray (Wilde), aiming to verify how the wordplays were created, and, afterwards, translated, considering their stylistic, idiomatic and pragmatic nature. Our results demonstrate the prevalence of equivalent idiom transformation, loan translation, and analogue idiom transformation. In conclusion, the translators somehow tried to preserve the wordplays and their effect; however, some solutions showed lower degrees of idiomaticity and naturalness. Keywords: phraseologisms; wordplay; translation; humor. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.359-389 360 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 Recebido em 06 de junho de 2019 Aceito em 04 de outubro de 2019 1 Introdução Este artigo teve como inspiração a proposta de Veisbergs (1997), em que analisa traduções do inglês para o letão, o alemão e o russo, de trechos com jogos de palavras de obras de Lewis Carroll e Ocar Wilde, bem como o artigo de Viégas-Faria (2004), em que aplica as ideias de Veisbergs e investiga a tradução de provérbios em Júlio César, de Shakespeare. Se Viégas-Faria, por um lado, aplica o modelo “num texto de extrema tensão psicológica e social” (2004, p. 198) para analisar um único tipo de expressão, o provérbio; nosso artigo, por outro, concentrase em jogos de palavras criados a partir de diferentes fraseologismos e, em geral, caracterizados pelo humor. Embora nem todo jogo de palavras tenha como função causar um efeito cômico, parece-nos que a combinação de fatores linguísticos e pragmáticos tenha relegado sua análise a segundo plano em virtude de uma dificuldade inerente, algo que possa ter fomentado a ideia de sua suposta intraduzibilidade. Admitimos, no entanto, como Chesterman, que “tudo possa ser traduzido de algum modo, até certo ponto, de um jeito ou de outro, − até mesmo jogos de palavras podem ser explicados” (1997, p. 11, tradução nossa).1 Assim, pretendemos apresentar as ideias de Veisbers (1997) sobre transformações e possíveis estratégias de tradução detectadas nos excertos de Looking through the mirror e The Picture of Dorian Gray e, em seguida, verificá-las nos mesmos trechos, traduzidos para o português brasileiro, em sete diferentes traduções, Alice no país do espelho e O Retrato de Dorian de Gray. Nossa discussão abrange, portanto, aspectos relacionados aos fraseologismos, aos jogos de palavras, aos efeitos do emprego desse tipo de combinação e à sua tradução. Citação original: “(...), everything can be translated somehow, to some extent, in some way − even puns can be explained”. (CHESTERMAN, 1997, p. 11). 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 361 2 Fraseologismos e jogos de palavras Fraseologismo, aqui, é tratado, como: ... a coocorrência de uma forma ou de um lema de um item lexical e um ou mais elementos linguísticos adicionais de diversos tipos que funciona como uma unidade semântica numa oração ou período e cuja frequência de coocorrência seja maior do que a esperada em termos de probabilidade (GRIES, 2008, p. 5, tradução nossa).2 As várias possiblidades de combinações nos levam à ideia de que os fraseologismos jazem sobre um continuum que abarca uma ampla gama de expressões complexas cujos elementos formadores se relacionam segundo diferentes graus de idiomaticidade e de fixidez. Podem, assim, ser acomodadas, numa extremidade, estruturas linguísticas consagradas e altamente metafóricas, cujo significado não é facilmente apreendido pelo simples somatório de seus constituintes, como, “pagar o pato”; e, na outra extremidade, estruturas com elementos formadores mais transparentes, portanto, mais fáceis de serem compreendidos, “brutalmente assassinado”, por exemplo. (VEISBERGS, 1997; TAGNIN, 2005a) Essa grande variedade de fraseologismos, segundo Tagnin (2005a), pode incluir combinações como: coligações, colocações, phrasal verbs, expressões idiomáticas, ditos populares, citações, provérbios, marcadores conversacionais, estruturas de polidez, fórmulas de rotina, fórmulas situacionais, entre outras. Em vista disso, coocorrência e frequência se complementam, pois, para que possam ser reconhecidas como fraseologismos, certas expressões linguísticas devem ser suficientemente recorrentes. Desse modo, os dois aspectos mostram-se bastante relevantes para nossa discussão, pois, em geral, representam parâmetros de caracterização e identificação de um fraseologismo. Veisbergs (1997), no entanto, adverte que os fraseologismos nem sempre são empregados em sua forma dicionarizada e que, sobretudo na linguagem jornalística, aparecem com algum tipo de transformação. Citação original: “... the co-occurrence of a form or a lemma of a lexical item and one or more additional linguistic elements of various kinds which functions as one semantic unit in a clause or sentence and whose frequency of co-occurrence is larger than expected on the basis of chance”. (GRIES, 2008, p. 5) 2 362 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 Para nossa análise, é exatamente essa forma não-canônica que nos interessa, uma vez que os fraseologismos, ao sofrerem determinadas transformações, criam os jogos de palavras, propriamente ditos. Se, por um lado, os fraseologismos compreendem vários tipos de combinações linguísticas, por outro, um jogo de palavras também se refere a vários tipos de fenômenos linguísticos. Para Delabastita, (j)ogo de palavras é o nome genérico para vários fenômenos textuais nos quais características da língua utilizada são exploradas com a intenção de provocar um confronto comunicativo significativo de duas (ou mais) estruturas linguísticas com formas mais ou menos similares e sentidos mais ou menos diferentes (1996, p. 128, tradução nossa).3 Neste artigo, discutimos um tipo particular de jogos de palavras: idiom-based wordplays,4 ou jogos de palavras fraseológicos5 (JPFs), os quais, segundo Veisbergs (1997), são resultantes de transformações contextuais, isto é, de algum tipo de modificação que ocorre de modo intencional e subjetivo, em geral, motivada por questões estilísticas por parte de um autor, privilegiando o contexto em que o fraseologismo está inserido. São, dessa forma, fenômenos efêmeros e individuais, mas que, ainda assim, mantêm traços linguísticos gerais de uso idiomático. Segundo Veisbergs (1997), as transformações contextuais produtoras de JPFs subdividem-se em duas categorias: transformações estruturais e transformações semânticas. Citação original: “Wordplay is the general name for the various textual phenomenon in which structural features of the language(s) used are exploited in order to bring about a communicatively significant confrontation of two (or more) linguistics structures with more or less similar forms and more or less different meanings”. (DELABASTITA, 1996, p. 128) 4 Embora Viesbergs (1997) mencione que o vocábulo idiom corresponda a termos mais abrangentes como phraseological unit ou phraseologism, ele o emprega ao longo de seu trabalho. Da mesma maneira que Viégas-Faria (2004) destaca esse uso e opta por “unidades fraseológicas”, optamos aqui por “fraseologismos”, por acreditarmos que, como a autora, referem-se a “todas as estruturas frasais que exibem algum grau de idiomaticidade” (p. 196). 5 Há vários trabalhos sobre a classificação de jogos de palavras: Delabastita (1997), Gottlieb (1997), Tagnin (2005 b), Dore (2010), Giorgadze (2014), Silva (2015), dentre outros. 3 363 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 As transformações estruturais são modificações que afetam a estrutura e o significado do fraseologismo. Resultam, normalmente, de recursos tais como: adição, inserção, alusão, elipse ou substituição. Veisbergs (1997) os exemplifica por meio do provérbio a bird in the hand is worth two in the bush. Para elucidarmos esses recursos, apresentamos, no Quadro 1, o provérbio em inglês seguido de uma tradução do correspondente em português “mais vale um pássaro na mão do que dois voando”: QUADRO 1 – Transformações estruturais, segundo Veisbergs (1997, p. 158) Transformação estrutural Exemplo original Tradução Adição So priceless a bird in the hand is worth two in the bush. (Mais vale um pássaro valioso na mão do que dois voando.) Inserção A bird in the hand is worth two in the economic bush. (Mais vale um pássaro na mão do que dois voando no mercado financeiro) Alusão Why chase the two birds when one is up for grabs? (Por que atirar em dois pássaros voando se um já está garantido?) Elipse A bird in the hand, I thought, and accepted his offer. (um pássaro na mão, pensei, fui logo aceitando a oferta.) Substituição (Mais vale um ministro A competent minister in the hand is competente na mão do que muitos worth many generals in the bush. generais voando.) A nosso ver, os exemplos de adição e inserção do autor não parecem revelar transformações muito distintas, uma vez que os vocábulos são praticamente sinônimos. No entanto, se observarmos as alterações necessárias nas soluções em português, veremos que há uma pequena diferença, o que justificaria as duas categorias. Viégas-Faria (2004, p. 199), em seu estudo, detectou mais dois recursos: substituição sinonímica (não oferece exemplo) e inversão (“Mais vale dois pássaros na mão que um voando”, ênfase da autora). As transformações semânticas de Veisbergs, por sua vez, referemse a casos em que a estrutura do fraseologismo permanece intacta e o significado sofre alguma modificação. Os recursos empregados incluem 364 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 metáfora estendida/ampliada, zeugma6 e dupla significação, conforme Quadro 2, com exemplos de nossa autoria. QUADRO 2 – Transformações semânticas, segundo Veisbergs (1997, p. 158) Transformação semântica Exemplo Metáfora estendida: metáfora que continua a comparação ao longo da oração ou das orações que se segue(m). “Nem sei o que dizer, se o médico não vem, perdi a viagem e quem vai pagar minha passagem de volta?” Zeugma: omissão de palavras ou partes de frases expressas anteriormente no discurso ou no texto. “Ela perdeu a viagem e eu, a paciência.” Dupla significação: caracterizada pela ativação de uma interpretação literal e de outra idiomática. “Estava tudo preparado para nosso cruzeiro, por causa do congestionamento na estrada, chegamos atrasados ao porto e perdemos a viagem.” Veisbergs destaca que todos esses tipos de transformações encerram algum traço de jogo de palavras, ou seja, certa manipulação do fraseologismo no texto, a qual pode ser mais facilmente percebida quando os recursos são substituição, alusão, inserção, adição e, em especial, dupla significação. Além disso, em todos esses casos, há confronto de duas estruturas linguísticas com outras formas mais ou menos semelhantes e significados mais ou menos distintos. Mesmo quando um fraseologismo é transformado, sua forma padrão, ou dicionarizada, é preservada em termos formais e semânticos, a ponto de o leitor/ouvinte detectá-lo, embora percebendo que o resultado não condiz com sua expectativa. Para o autor, esse seria o objetivo do JP, atrair a atenção do leitor/ouvinte para um determinado ponto do texto, gerando um efeito cômico. 3 Jogos de palavras fraseológicos e humor O uso desses recursos estilísticos chama, assim, a atenção do leitor/ouvinte ao contrapor o uso preferido/consagrado de uma expressão ao uso novo/inesperado, acarretando uma quebra de expectativa. Veisbergs esclarece: 6 Em seu estudo, Viégas-Faria (2004) sugere a categoria eliminação de zeugma. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 365 (j)ogos de palavras a partir de fraseologismos fossilizados produzem um forte efeito estilístico ao criar um contraste entre a leitura ‘normal’ do fraseologismo com base em sua forma inalterada, desse modo, desafiando a expectativa do leitor ou do ouvinte (1997, p. 157, ênfase do autor, tradução nossa).7 Essa ruptura na expectativa gerada pelo confronto entre os sentidos literal e figurado, provocado por transformações nos fraseologismos, leva-nos à ideia de incongruência (MORREALL, 1983), ao conceito de ambiguidade (GOTTLIEB, 1997) e à teoria de oposição de scripts (ATTARDO; RASKIN, 1991), subjacentes a diversas teorias sobre humor. Neste artigo, optamos por abordar a questão do humor, supostamente contido em JPFs, enfatizando a ideia de incongruência e o conceito de ambiguidade. Fundamentada no aspecto cognitivo, a teoria da incongruência, segundo Morreall (1983, p. 15), pressupõe que as pessoas sejam induzidas à uma resposta mental diante de uma situação “inesperada, ilógica ou inapropriada”. O autor associa esse cenário ao humor, uma vez que a ideia subjacente à essa teoria é que vivemos num mundo tão organizado, segundo determinados padrões, que, caso sejam quebrados, as pessoas acharão isso engraçado. Se aqui estamos considerando o âmbito geral das relações entre os indivíduos, podemos associar a incongruência ao contexto linguístico. Trazemos, assim, à discussão o conceito de ambiguidade, também chamada de anfibologia, que se refere a situações em que palavras, expressões ou locuções de um texto suscitam duplicidade de sentidos. Para Gottlieb (1997), é um conceito central aos jogos de palavras, dada sua natureza pragmática, pois a dupla interpretação, resultante da existência de uma estrutura linguística e de seus possíveis significados diferentes, advém da relação do leitor/ouvinte com o texto, ao perceber que ele permite mais de uma leitura. Desse modo, incongruência e ambiguidade se complementam para a criação do humor; Tagnin o explica da seguinte maneira: Citação original: “Wordplay on such fossilised idioms produces a strong stylistic effect by creating a contrast with the ‘normal’ reading of the idiom and its unchanged form and so defeating the reader’s or the listener’s expectation. (VEISBERGS, 1997, p. 157) 7 366 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 (...) o humor é obtido quando há incongruência entre o que é esperado e o que de fato ocorre. Se entendermos “aquilo que é esperado” como o convencional na linguagem, ou seja, aquilo que foi consagrado pelo uso, podemos afirmar que o humor pode ser obtido através da quebra da convencionalidade (2005b, p. 247, ênfase da autora). Em vista disso, considerando que a geração de um jogo de palavras implique algum tipo de manipulação do uso convencionalizado de uma estrutura linguística, atribuindo-lhe uma nova roupagem, ou seja, um aspecto inesperado, ele está, portanto, causando um efeito cômico. Passamos, agora, às considerações sobre a tradução de JPFs, de acordo com o modelo de Veisbergs (1997). 4 Tradução de jogos de palavras fraseológicos Veisbergs acredita que, considerando os JPFs como um recurso estilístico amplamente empregado em diversos tipos de textos e idiomas, eles possam ser transpostos de modo semelhante de uma língua para outra. Ele sintetiza da seguinte maneira: “se há fraseologismos numa língua, podem ser transformados” (1997, p. 162). A seguir, suas estratégias de tradução: QUADRO 3 – Estratégias de tradução segundo Veisbergs (1997, p. 164-171) 1 Tradução por fraseologismo em que os itens lexicais coincidem e o Transformação em fraseologismo sentido figurado é mantido. Por exemplo, to play with fire/brincar com fogo. equivalente 2 Tradução por empréstimo Tradução literal do fraseologismo da língua de partida. Por exemplo, to call a spade a spade/ “chamar uma pá de pá”, o que corresponde a “dar nomes aos bois”, em português. 3 Extensão Em geral, trata-se de uma tradução por empréstimo seguida de informação explicativa adicional. Por exemplo, They make the beds too soft – so that the flowers are always asleep./, Os canteiros são tão fofinhos que até parecem camas, por isso as flores vivem dormindo. 4 Tradução por fraseologismo semelhante na forma e equivalente no Transformação em fraseologismo sentido. Por exemplo, to kill two birds with one stone/matar dois pássaros com só uma pedra. análogo Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 367 5 Substituição Tradução por fraseologismo diferente na forma e equivalente no sentido. Por exemplo, to spill the beans/ dar com a língua nos dentes. 6 Compensação Um fraseologismo é inserido no texto da língua de chegada onde não havia um. 7 Omissão O trecho inteiro em que se encontra o fraseologismo é omitido, ou o fraseologismo é omitido, porém, o sentido figurado é mantido no trecho. 8 Comentário metalinguístico Notas de rodapé, notas de fim de texto, notas explicativas são adicionadas para explicar o fraseologismo. Sobre essas estratégias, Veisbergs (1997) alerta que há casos em que a situação se torna razoavelmente mais simples quando a tradução ocorre entre línguas historicamente relacionadas e o fraseologismo faz parte de um repertório internacionalmente conhecido. Exemplifica com “play with fire/brincar com fogo”, que parece figurar em várias línguas. Essa situação representa o ideal em qualquer tradução quando podemos, assim, lançar mão da estratégia (1). O autor, porém, logo reconhece que se trata de casos bastante raros. As estratégias (2) e (3) poderão causar certo estranhamento ao leitor/ouvinte, porém, não deixariam de resgatar o sentido do texto de partida. As estratégias (4) e (5) também representam soluções desejáveis, no entanto, pode haver perda na língua de chegada, caso a alusão aos elementos da fraseologia sejam importantes ao contexto mais amplo da obra. As estratégias (6) e (7) são autoexplicativas. Acreditamos que (7) seja admissível quando o fraseologismo não compromete o desenvolvimento do texto. A estratégia (8) é um recurso bastante comum em alguns tipos de texto, sobretudo, no literário, porém, seu uso excessivo pode desviar a atenção do leitor ou tornar a leitura entediante. Veisbergs salienta que poucos foram os casos da estratégia (8) em suas pesquisas. Viégas-Faria (2004, p. 203) sugere outra solução encontrada em suas análises, suplementação retórica: emprego de uma expressão idiomática, estrutural, semântica e estilisticamente coerente com o caráter literário do texto-alvo, que se mostra como uma solução tradutória adequada para uma dada sequência linguística do texto-fonte. Além dessas, mais quatro estratégias de tradução foram detectadas por nós e serão explicitadas nas análises. Nossas propostas 368 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 são: transformação em fraseologismo equivalente com modificação morfológica; transformação em fraseologismo análogo e por extensão; transformação em fraseologismo análogo com adição e substituição por unidade não-fraseológica. 5 análise dos dados Nosso corpus é composto por nove passagens: cinco de Through the Looking-glass (CARROLL, 1994) e quatro de The Picture of Dorian Gray (WILDE, 1990), mencionadas em Veisbergs (1997), seguidas de suas respectivas traduções para o português brasileiro.8 Nos dois casos, as traduções serão identificadas pelo ano de sua publicação. Apresentaremos os dados na seguinte ordem: trecho de origem; fraseologismo que gerou o JPF, seu significado e um possível equivalente em português. Na sequência, por meio de quadros, apresentamos as respectivas traduções, as estratégias de tradução, as respectivas análises e uma sugestão de tradução, quando oportuna. Os trechos de 1 a 5, a seguir, referem-se à obra de Carroll. Trecho 1: Alice attended to all these directions, and explained, as well as she could, that she had lost her way. ‘I don’t know what you mean by your way,’ said the Queen: ‘all the ways about here belong to me – but why did you come out here at all?’ (1994, p. 37) – Colocação verbal – to lose one’s way (to become confused or uncertain about where one is; to become lost) – perder o norte/caminho, errar o caminho (ficar desorientado) Notemos que aqui a interpretação literal de apenas um dos elementos constituintes do fraseologismo (way) está intimamente associada ao uso do pronome possessivo, que faz parte da expressão Em nossas pesquisas, verificamos que há mais de dez traduções para cada uma das obras, a de Carroll recebeu diferentes títulos, Através do espelho (e o que Alice encontrou do outro lado), Através do espelho e o que Alice encontrou por lá, Aventuras de Alice através do espelho, Alice no país dos espelhos e Alice no país do espelho (3), a, de Wilde apenas um (O retrato de Dorian Gray). Dois critérios básicos determinaram a escolha das sete traduções: diferentes anos de publicação e disponibilidade. 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 369 “to lose one’s way”. O jogo de palavras reside no fato de que a Rainha compreende way como espaço físico e não como direção; inferindo que esteja insinuando que aquele “caminho” (“propriedade”) lhe pertença, embora a garota tenha desejado dizer que ficou perdida (“errara/perdera o caminho”). Essa interpretação literal ocorre exatamente por causa do uso do pronome possessivo, obrigatório na expressão em inglês. TRECHO 1 – Traduções em língua portuguesa Alice desculpou-se, dizendo que havia perdido seu caminho. − Não sei o que você entende por seu caminho. Todos os caminhos aqui são meus, disse a Rainha. Mas donde vem, afinal de contas? Repetiu em tom mais amável. (1962, p. 25) Alice obedeceu as (sic) ordens e explicou-se como que pôde, dizendo que havia perdido o seu caminho. − Não sei o que você quer dizer por seu caminho! − retrucou a Rainha. – Afinal, todos os caminhos aqui pertencem a mim! Mas que você veio fazer aqui afinal? – perguntou em tom mais brando. (1986, p. 21) Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou, o melhor que podia, que tinha perdido o seu caminho. − Não sei o que você quer dizer com seu caminho – observou a Rainha. – Todos os caminhos aqui são meus. Mas, como é que você chegou aqui afinal? – acrescentou, num tom mais delicado. (1987, p. 32) Alice obedeceu a todas estas instruções e explicou da melhor forma possível que tinha perdido o seu caminho. − Não sei o que você pretende dizer com seu caminho – retorquiu a Rainha. – Todos os caminhos por aqui pertencem a mim. Mas por que você resolveu aparecer por aqui? – acrescentou ela, com um pouco mais de gentileza. (2004, p. 44) Alice obedeceu a todas aquelas ordens, e explicou, da melhor maneira que pôde, que “errara o seu caminho”. − Não sei o que chama seu caminho; aqui todos os caminhos me pertencem. Mas que veio fazer aqui afinal? – perguntou a Rainha, já mais abrandada. (2007, p. 34) Alice obedeceu a todas essas instruções e explicou, o melhor que pôde, que perdera seu caminho. “Não sei o que você quer dizer com seu caminho”, disse a Rainha; “todos os caminhos aqui pertencem a mim ... mas afinal, por que veio até aqui?” acrescentou, num tom mais afável. (2010, p. 181) Alice obedeceu a todas essas ordens, e explicou, tão bem quanto conseguiu, que não encontrava o seu caminho. − Eu não sei o que você quer dizer com SEU caminho – disse a Rainha –, todos os caminhos aqui pertencem a MIM. Mas por que veio até aqui, afinal? – acrescentou, num tom mais gentil. (2012, p. 38) 370 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 Nas traduções desse trecho, observamos as seguintes ocorrências: “havia/tinha perdido (o) seu caminho”, “errara/perdera o seu caminho” e “não encontrava o seu caminho”. Segundo nossa compreensão, nas soluções em que há “perder o caminho”, ocorreu transformação em fraseologismo equivalente; em que há “errar o caminho”, transformação por fraseologismo análogo, e em que há “não encontrar o caminho”, substituição por unidade não-fraseológica (fraseologismo omitido/ sentido mantido). Nossa sugestão: Alice obedeceu a todas as ordens e explicou: – Mandei mal e acabei me perdendo pelo caminho. / “Como assim “mandei”?, indagou a Rainha; “quem manda aqui sou eu, mas afinal, por que veio até aqui?” acrescentou, num tom mais amigável. Ao interpretarmos que o jogo de palavras tenha sido criado para reforçar a autoridade e a arrogância da Rainha, ocorreu-nos a expressão “mandar mal”, “fazer algo de forma inadequada”; com isso, criamos a possibilidade de duas leituras, “governar” e “sair-se mal”. Essa solução poderia ser classificada como compensação (inserção de fraseologismo onde não havia um), no entanto, o motivador inicial do jogo de palavras ainda seria resgatado “acabei me perdendo pelo caminho”). Dessa forma, o efeito cômico deixa de ser causado pelo jogo com os pronomes, recaindo sobre a pessoa que “manda” ali. Trecho 2: ‘In most gardens,’ the Tiger-lily said, ‘they make the beds too soft— so that the flowers are always asleep.’ (1994, p. 85) – Colocação verbal – to make the bed (to neatly arrange the sheets, blankets, and bedspread on the bed) - fazer a cama (arrumar a cama) A dupla significação de “bed” (“cama” ou “canteiro”) é perfeita para a produção de um jogo de palavras em inglês, porém, tornando sua transposição para outros idiomas bastante difícil. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 371 TRECHO 2 – Traduções em língua portuguesa − Na maior parte dos jardins, explicou o Lírio, os jardineiros afofam a terra. Isso faz que as flôres (sic) vivam dormindo a gôsto (sic) – e quem dorme não fala. (1962, p. 22) − Na maioria dos jardins os canteiros são fofos − explicou o Lírio – Por isso que lá as flores estão sempre dormindo. (1986, p. 19) − Na maior parte dos jardins – disse o Lírio-Tigrino – fazem o canteiro tão fofo que flores estão sempre dormindo. (1987, p. 27) − Na maioria dos jardins – respondeu o Lírio-tigrino – eles deixam a terra dos canteiros tão fofa que flores dormem o tempo todo. (2004, p. 40) − Na maior parte dos jardins – disse o Lírio – fazem canteiros muito fofos; pois as flores, naquelas camas, estão sempre dormindo. (2007, p. 31) “Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio-tigre – “fazem os canteiros fofos demais... por isso as flores estão sempre dormindo. (2010, p. 178) − Na maioria dos jardins – disse o Lírio – deixam a terra muito fofa, então as flores estão sempre dormindo. (2012, p. 35) Todas as traduções tentam de alguma forma associar “canteiro” a “cama”, porém apenas a de 2007 deixa isso evidente ao inserir os dois vocábulos no texto. A associação é favorecida pelo contexto ao destacar tanto a maciez dos canteiros, onde as flores “dormem”, quanto a atribuição de características humanas a seres inanimados (flores), fazendo com que a relação canteiro/cama fique subentendida, criando, assim, o jogo de palavras, configurando dessa forma a estratégia extensão. Nossa sugestão: “Na maioria dos jardins”, explicou o Lírio – “fazem uns canteiros tão fofinhos que até parecem camas ... por isso as flores estão sempre dormindo. Acreditamos que essa solução, semelhante às dos outros tradutores, mostra-se eficiente, do ponto de vista pragmático, pois é exatamente a associação “canteiros fofos”/”flores dormindo” que desencadeia o efeito cômico, uma vez que flores não dormem. Trecho 3: You’ll be catching a crab directly.’ ‘A dear little crab!’ thought Alice. (1994, p. 87) – Expressão idiomática metafórica – to catch a crab (to fail to raise nacce clear of the water on recovery of a stroke = to get it wrong) – enforcar um remo, afogar/enterrar o remo (deixar um remo pressionado contra o costado, devido ao descontrole da remada = fazer uma bobagem, falhar, fracassar) 372 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 O uso dessa expressão, originária do remo, é bastante curioso, pois, se for empregada no esporte, seu caráter figurado é reduzido, uma vez que os adeptos dessa modalidade esportiva a compreendem quase que de forma literal, isto é, “houve falha na remada”. Porém, se a empregarmos em outros contextos em língua inglesa, seu caráter figurado é realçado e seu sentido nos remeterá a uma falha em termos gerais, não apenas relacionada ao esporte. Na obra de Carroll, Alice está fazendo usos de remos e caranguejo aparece em outras partes da história, situação que torna a tarefa do tradutor mais desafiadora. TRECHO 3 – Traduções em língua portuguesa (...) Você vai pegar um caranguejo. − um caranguejinho! Exclamou Alice contente. Que bom, que bom! (1962, p. 73) − Você vai pegar um caranguejo! “um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Bem que eu gostaria!” (1986, p. 55) (...) − Você vai terminar apanhando um caranguejo nesta caranguejola! “Caranguejinho!, pensou Alice. “Bem que eu gostaria.” (1987, p. 82) (...) − Você vai pegar um caranguejo em seguida! “um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Bem que eu gostaria de pegar um.” (2004, p. 100) (...) − Você vai apanhar já um caranguejo. − Eu gostaria disso! – pensou a menina. – um belo caranguejinho!1 1. A expressão “apanhar um caranguejo”, na gíria inglesa do remo, significa um movimento errado dos remos que pode resultar em um contragolpe que desequilibra o remador. (N. do E.) (2007, p. 85-86) “Já, já vai acabar enforcando o remo.” “Por que faria isso?” pensou Alice. “Tão cruel.” (2010, p. 232) − Você quer pescar caranguejos? “um lindo caranguejinho!”, pensou Alice. “Eu bem que eu gostaria!” (2012, p. 98) Como podemos notar, a maioria dos tradutores optou por manter a imagem criada pelo fraseologismo de origem: “pegar (3)/apanhar (2) um caranguejo” ou “pescar caranguejos”. Essa estratégia, tradução por empréstimo, segundo Veisbergs (1997), que privilegia os aspectos formal e semântico da expressão, para a qual não há correspondente direto na língua de chegada, acaba privando o leitor/ouvinte da possibilidade de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 373 reconhecer a estrutura-base geradora do jogo de palavras. Desse modo, a interpretação é apenas literal e não se cria, portanto, qualquer jogo de palavras. Podemos entender que tais soluções se justifiquem pelo fato de que, como dissemos, crab, o crustáceo, aparece em outros momentos da história. A tradução de 2007, além da estratégia tradução por empréstimo, contém também comentário metalinguístico, por meio de nota do editor, em que o fraseologismo é explicitado. A estratégia transformação em fraseologismo análogo é observada na tradução de 2010, em que o tradutor opta por uma tradução ligada ao esporte (“enforcar um remo”/“falhar na remada”), ocasionando, assim, um jogo de palavras, (“enforcar um remo”/“matar um remo”), segundo a interpretação e reação de Alice, o que acaba sendo engraçado. Nossa sugestão: “Assim você acaba afogando o remo.” “Eu? Imagine, jamais faria tal crueldade”, pensou Alice. Como é possível perceber, nossa sugestão assemelha-se ao que aparece na tradução de 2010, classificada como transformação em fraseologismo análogo; a nosso ver, uma estratégia recomendável de modo geral. No entanto, em ambos os casos, nos perguntamos se o fraseologismo ligado ao esporte suscitaria, de fato, duas leituras, uma vez que é restrito a um público-alvo específico. De qualquer modo, ao optarmos por “afogar o remo”, imaginamos que, mesmo que a expressão não remeta ao significado técnico (“perder o controle da remada”), ela causa um jogo de palavras em virtude da atribuição de uma característica humana a um objeto, Alice a entende literalmente e reage de modo divertido. Trecho 4: ‘I’m as certain of it, as if his name were written all over his face.’ It might have been written a hundred times, easily, on that enormous face. (1994, 93) – Expressão idiomática: (to be) written all over someone’s face (showing or evident by a person’s expression) – (estar) na cara; (estar) escrito na testa (ser evidente, óbvio) Nesse caso, como ocorre com a maioria dos jogos de palavras, a interpretação literal do fraseologismo pressupõe que a combinação (written all over someone’s face) não seja fixa e que, portanto, seus constituintes possam ser empregados de forma dissociada. É possível notarmos, abaixo, que algo semelhante ocorre nas traduções; no entanto, a maioria deixa de: a) empregar o fraseologismo 374 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 em sua forma “pura” (“estar na cara” e “estar escrito na testa”), em que não há a necessidade do uso de pronomes possessivos; b) mescla as duas combinações (“estar escrito na cara”) e c) mantém a estrutura do fraseologismo, mas lança mão de um sinônimo (“escrito no rosto”). TRECHO 4 – Traduções em língua portuguesa “Tenho a certeza de que é êle! Pensou a menina. Tanta certeza como se o seu nome estivesse escrito em sua cara.” E o nome de Humpty poderia ter sido escrito cem vezes em sua cara, tamanha era ela. (1962, p. 79) “Não pode ser outro!” – pensou. “Tenho certeza de que é ele mesmo! É como se tivesse o nome escrito no rosto! Na verdade, o nome poderia ser mesmo mil vezes, naquela cara, tão grande para ela. (1986, p. 59) “Estou tão certa disso que é como se o nome estivesse escrito na cara dele!” Poderia ser escrito centenas de vezes, facilmente, em cara tão enorme. (1987, p. 87 − Não pode ser ninguém mais! – disse a si mesma. – Tenho tanta certeza disso como se seu nome estivesse escrito em sua testa. Naquele enorme rosto havia lugar para escrever tal nome, facilmente, umas cens vezes. (2004, p. 106) − Não pode ser outro – disse ela consigo –; tenho tanta certeza de que é ele, como se trouxesse o nome escrito no rosto! E na verdade podia estar escrito, até cem vezes, naquela face enorme. (2007, p. 91) “Não pode ser mais ninguém! Disse para si mesma. “Tenho tanta certeza quanto se ele tivesse o nome escrito na cara. Teria sido possível escrevê-lo uma centena de vezes, facilmente, naquela cara enorme. (2010, p. 237) − Não pode ser ninguém mais! – disse para si mesma. − Eu tenho certeza, como se o nome estivesse escrito na cara dele. E podia estar escrito cem vezes, fácil, naquela cara enorme. (2012, p. 105) Entendemos que todas essas traduções possam ser classificadas como transformação em fraseologismo equivalente, porém de maneira parcial, uma vez que a característica de fixidez é “rompida” com o acréscimo de itens lexicais (pronomes possessivos) ou a substituição de sinônimos, alterações que, a nosso ver, comprometem o sentido metafórico do fraseologismo, ou seja, “estar evidente”, que não se revela Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 375 em “estar na face/no rosto/no semblante”. O efeito cômico surge de dois aspectos: a personagem é um ovo, portanto, o rosto é que sobressai (ou seja, “Tá na cara que é um ovo e Humpty Dumpty é um ovo”) e Alice entende a expressão literalmente, a ponto de concluir que se poderia escrever o nome da personagem em rosto tão evidente. Nossa sugestão: “Tá na cara que ele!”, concluiu Alice. “Tenho tanta certeza, pois seu nome parece estar escrito na testa. Também com aquela cara enorme, daria para escrevê-lo umas cem vezes ali”. Nesse caso, há o emprego de dois fraseologismos, porém, o segundo “escrito na testa” já permite uma leitura menos metafórica que é, então, complementada pela continuação da sentença, na qual “cara” é usada de maneira literal, tanto que poderia, nesse momento, ser substituída por “rosto” ou “face”, sem comprometer o entendimento. Com isso, sugerimos que casos como esse possam ser classificados de transformação em fraseologismo análogo e por extensão. Tratase de uma de nossas sugestões que revela, como dissemos, tradução por fraseologismo semelhante na forma e equivalente no sentido com informação adicional associativa em parte subsequente do trecho. Trecho 5: ‘They gave it me,’ Humpty Dumpty continued thoughtfully, as he crossed one knee over the other and clasped his hands round it, ‘they gave it me— for an un-birthday present.’ ‘I beg your pardon?’ Alice said with a puzzled air. ‘I’m not offended,’ said Humpty Dumpty. ‘I mean, what is and unbirthday present?’ (1994, p. 99) – Marcador conversacional – I beg your pardon! (used as a question when one has not heard or understood something clearly) – Como?, Desculpe-me, … (para expressar pasmo, surpresa, ou indignação, ou para pedir explicação ou repetição) Diferentemente do trecho anterior, aqui o jogo de palavras se realiza por meio de uma interpretação equivocada do fraseologismo todo. Segundo Veisbergs (1997), trata-se de um jogo de palavras vertical, quando a estrutura toda, e não apenas um ou mais de seus constituintes, é vista como uma unidade de sentido. Isso se deve ao fato de que o interlocutor entende que Alice “roga pelo seu perdão”, ou seja, uma leitura composicional, não metafórica, da expressão e, assim, diz que não se sente ofendido. 376 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 TRECHO 5 – Traduções em língua portuguesa − Êles (sic) me deram esta gravata como presente de in-aniversário (...) − Desculpe-me, mas não entendi bem, disse Alice intrigada. Que quer dizer presente de in-aniversário? − Quer dizer um presente dado num dia que não é de aniversário. (1962, p. 85) − Sim, eles me deram isto – (...). – Foi um presente de não-aniversário. − Desculpe! – murmurou Alice espantada. − Não há do quê! − Quero dizer, desculpe porque não entendi essa de não-aniversário? − Ora, trata-se de um presente dado no dia em que não é o dia do seu aniversário. (1986, p. 64) − Eles me deram isto – (...) – como presente de não-aniversário. − O quê, desculpe-me – indagou Alice, perplexa. − Não estou ofendido – disse Humpty Dumpty. − Quer dizer, o que é um presente de não-aniversário? − Um presente dado quando não é nosso aniversário. (1987, p. 94) − Isso mesmo... Foram eles que me deram – (...) – Deram-me esta bela gravata como presente de desaniversário! − Por favor, me perdoe... – disse Alice, muito confusa. − Não estou ofendido, e você não precisa se desculpar – disse Humpty Dumpty. − O quero dizer, senhor, é que ... o que é um presente de desaniversário? − Um presente oferecido quando não é seu aniversário, naturalmente. (2004, p. 113) − Eles me deram isto... como um presente de desaniversário. − Perdão... – ia dizendo Alice com ar espantado. − Não, eu não estou ofendido. − O que vem a ser um presente de não-aniversário? − Um presente dado quando não é nosso aniversário, ora essa. (2007, p. 96) “Deram-me a gravata”, (...) como um presente de desaniversário “Perdão?” Alice perguntou, perplexa. “Não estou ofendido”, disse Humpty Dumpty. “Quero dizer, o que é presente de desaniverrsário?” “Um presente dado quando não é seu aniversário, é claro.” (2010, p. 243) − Eles me deram... (...) de presente de desaniversário. − O quê? − disse Alice, com cara de confusa. − Uma gravata – disse Ovaldo. − Não, eu quis dizer, o que é um presente de desaniverrsário?” − Um presente que você ganha quando não é seu aniversário, é claro. (2012, p. 111) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 377 Na tradução de 1962, o tradutor recorreu a um fraseologismo (“Desculpe-me, mas ...”) e, pelo fato de haver a complementação (“... não entendi bem ...” e “Que quer dizer presente de in-aniversário?”), ele é, por conseguinte, compreendido metaforicamente como um pedido de explicação e não de desculpas. Algo semelhante ocorre na tradução de 2012, em que o questionamento é transferido a outros elementos do diálogo, sem a produção de algum jogo de palavras. Em nosso entendimento, trata-se, assim, de dois casos de omissão do jogo de palavras. Nas outras traduções (1986, 1987, 2004, 2007 e 2010), aparecem as expressões (“Desculpe”, “Desculpe-me”, “me perdoe”, “Perdão (?)”, todas interpretadas de modo literal, como se o interlocutor estivesse querendo que o desculpem ou perdoassem; portanto, causando um jogo de palavras, por meio da estratégia transformação em fraseologismo análogo. O efeito cômico é, assim, criado pela ingenuidade da personagem que fez uma interpretação literal e equivocada da expressão. Acreditamos que as cinco escolhas se mostrem como soluções bastante adequadas, portanto, não apresentamos sugestão. Os trechos de 6 a 9, a seguir, referem-se à obra de Wilde. Trecho 6: I can stand brute force, but brute reason is quite unbearable. There is something unfair about its use. It is hitting below the intellect. (1990, p. 43) – Expressão idiomática metafórica – to hit below the belt (to unfairly target another nacce’s weakness or vulnerability. The phrase refers to boxing, in which hitting an opponent below the waist is nacceptable) – dar um golpe baixo Ao que concerne à criação do JPF, Wilde recorreu ao recurso de substituição, outro subgrupo de transformação estrutural, em que a forma da expressão (to hit below the ...) permanece inalterada e um de seus elementos constituintes (belt) é substituído (intellect). O jogo de palavras é criado quando o que se esperaria fosse, embora figurado, algo físico (força bruta/concreto); no entanto, aparece algo mental (razão bruta/ abstrato), deixando o fraseologismo transformado ainda mais metafórico. 378 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 TRECHO 6 – Traduções em língua portuguesa − Que horror! – clamou Lorde Henry – posso admitir a força brutal, mas a razão brutal é insuportável! Há qualquer coisa de injusto no seu império. Confunde a inteligência. (1923, p. 67) − Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso suportar a força bruta, mas a razão bruta é insuportável. Há algo de desleal no seu emprego. É como dar um golpe baixo na inteligência. (1933, p. 52) – Mas, isso é terrível! Exclamou Harry. Em rigor, admito a força bruta, mas a razão bruta é intolerável. É desleal recorrer a ela. É ferir o adversário abaixo da linha da inteligência. (1946, p. 41) − Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso suportar a força bruta, mas a razão bruta é insuportável. Há algo de desleal no seu emprego. É como dar um golpe baixo na inteligência. (1996, p. 51) − Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Posso conceber a força bruta, mas a razão bruta é intolerável. Há algo de injusto em seu uso. É um feio golpe abaixo do intelecto. (1998, p. 51) − Que barbaridade! – exclamou Lorde Henry. – Admito a força bruta; mas a razão bruta é intolerável. Usá-la é deslealdade, é rebaixar a inteligência. (2005, p. 44) − Horrível! – exclamou Lorde Henry. – Sou capaz de aturar a força bruta, mas a razão bruta é por demais insuportável. Há algo de injusto em seu uso. É como um golpe baixo no intelecto. (2010, p. 59) Na tradução de 1923, entendemos que houve omissão do jogo de palavras. Em outras (1946 e 2005), detectamos uma estratégia em que o JPF é, de certa forma, explicado sem a presença de qualquer elemento formador do núcleo do fraseologismo, nesse caso “golpe baixo” (colocação lexical adjetiva), que isoladamente também tem sentido figurado. Casos como esse, denominaremos de substituição por unidade não-fraseológica, ou seja, tradução por unidade nãofraseológica com sentido equivalente, em que o jogo de palavras é explicado, portanto, eliminando o recurso estilístico. Nas traduções em que aparece, pelo menos, o sintagma “golpe baixo”, seguido ou não de “dar um”, a contraposição (força bruta/razão bruta) é reiterada e o jogo de palavras (físico/mental) se realiza, mesmo que à combinação fixa seja adicionado um elemento presente no jogo de palavras da línguafonte: “dar um golpe baixo no intelecto”. Nesses casos, sugerimos que Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 379 tenha ocorrido a estratégia, transformação em fraseologismo análogo com adição, isto é, tradução por fraseologismo semelhante na forma e equivalente no sentido com acréscimo de algum elemento constituinte do jogo de palavras da língua-fonte. Nossa sugestão: − Que horror! – exclamou Lorde Henry. – Força bruta ainda passa, mas a razão bruta é insuportável. É meio injusto fazer uso dela. É como dar um golpe baixo no intelecto. Trecho 7: From her little head to her little feet she is absolutely and entirely divine. (1990, p. 53) – Binômio – from head to foot/feet (completely) – da cabeça aos pés; dos pés à cabeça (totalmente) Wilde, ao empregar o binômio from head to foot e acrescentar o adjetivo little diante dos substantivos, ao que tudo indica, desejava realçar positivamente as características da mulher em questão. Em se tratando de estratégias de criação de jogos de palavras, encontramos a inserção, quando, ao fraseologismo canônico, algum outro elemento é acrescentado. Este é um exemplo de jogo de palavras horizontal, em que algum elemento constituinte do fraseologismo é modificado. Trata-se, assim, de um JPF facilmente perceptível e, portanto, mais fácil de ser transposto a outras línguas. TRECHO 7 – Traduções em língua portuguesa De sua cabecinha aos pés minúsculos, ela é absolutamente divina. (1923, p. 81) Ela é absoluta e inteiramente divina. Do alto da cabecinha ao pequenino pé. (1933, p. 69) Desde a pequenina cabeça aos pequeninos pés, tido nela é absolutamente divino. (1946, p. 53) Ela é absoluta e completamente divina, do alto da sua cabecinha aos pequeninos pés. (1996, p. 67) Desde a cabecinha até a ponta dos pezinhos, ela é absolutamente divina. (1998, p. 67) Da sua cabecinha mimosa aos seus pés miúdos, ela é absoluta e inteiramente divina. (2005, p. 55) Desde a pequenina cabeça, até os pezinhos, ela á absolutamente divina. (2010, p. 77) 380 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 Com relação às traduções, podemos observar que, para compensar a dupla inserção do adjetivo (little), todos os tradutores lançaram mão do grau diminutivo, recurso gramatical da língua portuguesa para indicar diminuição de tamanho ou intensidade, intenção depreciativa, ou envolvimento afetivo, como este parece ser o caso. Considerando a estratégia de tradução, podemos, a princípio, pensar em transformação em fraseologismo equivalente, uma vez que, para a geração do jogo de palavras, foram usados vocábulos como “cabecinha” (5), “pequenina cabeça” (2), pés minúsculos/miúdos, pequenino(s) pé(s) (3) e “pezinhos” (2), que, mesmo alterados, claramente nos remetem ao consagrado binômio em português “da cabeça aos pés”. Embora, nesses casos, o fraseologismo de origem, como em toda transformação estrutural, permaneça praticamente intacto, seus elementos constituintes sofrem modificação em algum nível gramatical. Inferimos que esse tipo de estratégia de tradução seja um tipo de transformação em fraseologismo equivalente, seguida de modificações léxico-morfológicas, em virtude do acréscimo de preposições, pronomes, adjetivos e outras sintagmas (nível lexical) e, em especial, do emprego do diminutivo (nível morfológico). Nossa sugestão: Da cabecinha aos pezinhos, ela é simplesmente divina. Imaginamos ser uma solução que, de imediato, evoca o binômio original e soa natural; a denominamos de transformação em fraseologismo equivalente com modificação morfológica, ou seja, tradução por fraseologismo em que um ou mais itens lexicais sofrem modificação morfológica e o sentido figurado é mantido. Trecho 8: I should have fallen madly in love with you … and thrown my bonnet right over the mills for your sake … As it was, our bonnets were so unbecoming and the mills so occupied in trying to raise the wind, that I never had even a flirtation. (1990, p. 134) – Expressão idiomática metafórica – to throw one’s bonnet over the windmill (to act in a deranged, reckless, or unconventional manner) – fazer loucuras; perder a cabeça (dizer ou fazer coisas impensadas; proceder loucamente) A expressão, empregada por Wilde, segundo diversos dicionários, refere-se a uma passagem do célebre romance de cavalaria espanhol, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 381 Dom Quixote de La Mancha, em que o protagonista, Dom Quixote, ao confundir um moinho de vento com um gigante, o desafia atirando o chapéu em sua direção. Hoje em dia, seu sentido é “agir de modo impensado, não convencional”. No trecho em destaque, a personagem emprega a expressão para revelar o que teria feito caso tivesse conhecido o homem em questão quando ela era jovem. Consideramos que o JPF é criado pelo processo de metáfora estendida, ou seja, metáfora que continua a comparação ao longo da oração ou das orações que se segue(m), como ocorre no excerto. TRECHO 8 – Traduções em língua portuguesa − Porque, meu caro amigo, estou certa de que me teria perdidamente apaixonado e faria loucuras. (1923, p. 203) – Tenho certeza, meu caro, de que me teria apaixonado loucamente por você – costumava dizer –, e teria saltado por cima de tudo por seu amor. (1933, p. 208) Sem dúvida, meu caro, eu ficaria louca por si, explicava e teria atirado o meu boné por cima dos moinhos. (1946, p. 150) – Tenho certeza, meu caro, de que me teria apaixonado loucamente por você – costumava dizer –, e teria passado por cima de tudo pelo seu amor. (1996, p. 202) “Sei perfeitamente, meu caro, que teria ficado apaixonada por você”, costumava dizer, “e teria feito loucuras por sua causa. ...” (1998, p. 199-200) − Porque naturalmente, meu caro, eu me apaixonaria por você e perderia a cabeça. Por sorte, naquele tempo, você não era gente. (2005, p. 143) “Bem sei, meu querido”, ela costumava dizer, “que teria me apaixonado loucamente por você, que por você, teria jogado todos os meus chapéus aos moinhos. (2010, p. 224) Nas traduções de 1946 e 2010, percebemos a estratégia tradução por empréstimo, que, como já vimos, é a que prioriza uma tradução linear e composicional da expressão de origem. Nesse caso, supomos que o leitor/ouvinte não reconheça ali nenhum fraseologismo da língua de chegada; portanto, dificultando sua compreensão, a não ser que consiga relacioná-la à personagem homônima do romance espanhol. Nas outras traduções, classificadas por nós, como substituição, fraseologismo diferente na forma e equivalente no sentido, parte da metáfora pode ser percebida por meio de “fazer loucuras” e “saltar/passar por cima de tudo”, 382 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 porém, como as duas soluções anteriores, deixam de estender a metáfora em segmentos subsequentes; portanto, apagando o jogo de palavras. Nossa sugestão: − Porque com certeza, meu caro, teria me apaixonado perdidamente por você, teria perdido a cabeça por sua causa e assim não haveria onde colocar meu chapéu, aliás, para o que mais serve uma cabeça? Essa proposta é inspirada em sugestão dada por um tradutor letão que Veisbergs analisou e traduziu literalmente para o inglês como: ... I would lose my head because of you and there would be nowhere top ut my hat on, and what else is the head needed for … (1997, p. 168). Desse modo, trata-se de um caso de transformação em fraseologismo análogo em que o fraseologismo e a imagem são modificados e, ainda assim, a fluência e o jogo de palavras são preservados. Trecho 9: The man who call a spade a spade should be compelled to use one. It is the only thing he is fit for. (1990, p. 147) – Expressão idiomática metafórica – to call a spade a spade (to call something by its right name; to speak frankly about something, even if it is unpleasant) – dar nomes aos bois (identificar pessoas, situações etc. antes só genericamente mencionadas); pão, pão; queijo, queijo (falar com toda a franqueza); chamar as coisas pelo nome. Wilde cria aqui um JPF por meio de metáfora estendida, em que parte da expressão to call a spade a spade, é, mais adiante, aludida, por meio de um pronome. Como ocorre na maioria dos jogos de palavras, o confronto de significados, nesse caso, é realizado quando um dos elementos constituintes da expressão metafórica é mencionado de modo literal. Seu sentido é “falar francamente sobre alguma coisa, sem se importar se é agradável ou não”, não se trata, portanto, de uma ferramenta a ser manuseada. Como em outros casos, notamos um confronto entre o abstrato e o concreto. Podemos entender que Wilde deprecia o Realismo por meio das palavras da personagem. Para o escritor, como o movimento preconiza, entre outras coisas, retratar a realidade como ela é, então, as pessoas deveriam chamar as coisas pelo nome, sem fazer rodeios. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 383 TRECHO 9 – Traduções em língua portuguesa O homem que dá a uma enxada este nome deve ser forçado a carregar uma; é o único instrumento que lhe convém. (1923, p. 222) O homem que dá uma a uma enxada o nome de enxada deveria ser obrigado a utilizá-la. Só poderia servir mesmo para isso. (1933, p. 232) Um homem capaz de chamar uma enxada uma enxada deveria ser condenado a servir-se dela. Só para isso é que êle [sic] serviria. (1946, p. 166) O homem que dá uma a uma enxada o nome de enxada deveria ser obrigado a utilizá-la. Só poderia servir mesmo para isso. (1996, p. 222) O homem que chama pá a uma pá deveria ser obrigado a usá-la. É só para isto que ele serve. (1998, p. 220) O indivíduo que chama “pá” a uma “pá” deveria ser condenado a manejá-la. Só serve para isso. (2005, p. 156) O homem que consegue chamar a espada de espada deveria ser compelido a usá-la, pois é para isso, apenas isso, que serve. (2010, p. 247) A estratégia tradução por empréstimo foi empregada em todas as traduções. Como vimos no trecho anterior (8), este recurso prioriza uma tradução linear e composicional da expressão de origem, cujo resultado nem sempre é reconhecido como uma expressão fixa na língua de chegada. Se, eventualmente, o fraseologismo de origem parecer lógico e transparente, o empréstimo pode soar como uma metáfora original na língua de chegada; até mesmo compensando a perda do jogo de palavras. Poderá, porém, parecer uma solução forçada demais por tentar preservar as estruturas do texto de partida (VEISBERGS, 1997). Nossa sugestão: O homem que dá nome aos bois tem a obrigação de montar um. Afinal de contas, não lhe resta outra coisa a fazer. Essa solução, transformação em fraseologismo análogo, como já vimos, afasta-se da expressão da língua de partida do ponto de vista estrutural e aproxima-se do ponto de vista semântico. Como o próprio nome diz, trata-se de uma combinação análoga, não idêntica. No contexto da obra, as personagens estão discutindo que todas as coisas deveriam ser chamadas pelo nome correto. Percebemos certa provocação de Wilde, quando insinua que deveríamos, então, agir com franqueza e dar o devido nome às coisas e às pessoas, mesmo que isso causasse algum 384 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 constrangimento ou desagradasse alguém. Aquele que assim o fizesse, no entanto, deveria arcas com as consequências. Diferentemente dos excertos de Carroll em que o efeito cômico aparece de forma mais conspícua, denotando a ingenuidade das personagens, por exemplo; nos trechos analisados de Wilde, ele é mais sutil, mascarando a ironia ou o escárnio com que as personagens se tratam. Após nossas análises das traduções, com a aplicação dos processos de transformação e estratégias de tradução de Veisbergs, foi possível verificar como os diferentes tradutores reagiram ao desafio de transpor JPFs para outro idioma. Nossos resultados demonstram que as estratégias mais comuns foram: transformação em fraseologismo equivalente, tradução por empréstimo e transformação em fraseologismo análogo. Por meio dessas três possibilidades, os tradutores tentaram preservar, de algum modo, os jogos de palavras. Comparando-os por meio desses parâmetros (equivalência, empréstimo e analogia), fica evidente que resultam em diferentes graus de naturalidade. As soluções por empréstimo carregam traços estruturais visíveis do fraseologismo de origem, podendo causar estranhamento no leitor/ouvinte. Soluções como essas são semelhantes às detectadas por Veisbergs (1997) em suas análises; repetidas vezes, os tradutores, talvez pela dificuldade de encontrar correspondentes mais apropriados na língua de chegada, mantiveram os elementos estruturais do fraseologismo de origem, criando um jogo de palavras, não tão vigoroso, tampouco facilmente perceptível pelo leitor da obra traduzida. Por outro lado, as soluções por equivalência (ideal, porém mais rara) e por analogia (recomendável, e mais frequente) imprimirão fluidez e familiaridade ao texto, tanto do ponto de vista estrutural quanto idiomático. De modo geral, acreditamos que todas as traduções aqui analisadas, como ocorre com a tradução de qualquer tipo de texto, foram realizadas segundo diferentes leituras e interpretações. Inferimos, assim, que alguns tradutores não tenham notado a presença de um jogo de palavras no texto e, ao omiti-lo, produziram uma tradução que deixa a desejar, privando o leitor de desfrutar de um recurso estilístico elaborado pelo autor da obra de origem. Outros tradutores, por sua vez, perceberam o jogo de palavras e tentaram reproduzi-lo na língua de chegada, estabelecendo prioridades em nível estrutural, idiomático e pragmático, cujos resultados, são dignos de mérito. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 385 Para nossa discussão, as estratégias de Veisbergs mostraramse bastante válidas. No entanto, frente a algumas soluções detectadas em nossas análises, sugerimos estratégias tradutórias (anteriormente discutidas) que são frutos de nossa interpretação do referido modelo. 6 Considerações finais Como já dissemos, a transposição de JPFs a outro idioma impõe aos tradutores desafios maiores que surgem bem antes de sua tradução propriamente dita, visto que, em primeiro lugar, é necessário que o jogo de palavras seja percebido. Nossa seleção de JPFs foi facilitada pelo trabalho de Veisbergs, porém, nem sempre isso acontece. Segundo Viégas-Faria (2004, p. 200), quando um tradutor não dispõe de meios para reconhecer o “intertexto fraseológico”, em virtude da difícil recuperação do fraseologismo original, uma maneira de se familiarizar com as características da obra que estiver traduzindo será recorrer a estudos de especialistas do autor em questão. Sobre a recolha de dados para subsequente análise de jogos de palavras, Philip (2008) salienta que esse processo pode ser facilitado quando formas não-padrão aparecem de modo bastante óbvio, por exemplo, em textos jornalísticos ou publicitários. Sugere, então, que possamos fazer buscas em grandes corpora eletrônicos. O emprego de princípios da Linguística de Corpus pode parecer contraditório, num primeiro momento, visto que tal metodologia privilegia a regularidade e a consistência de combinações fixas e recorrentes. Esclarece o autor, no entanto, que é a ocorrência de formas não-canônicas que linguistas de corpus têm encontrado com maior frequência. Sugerimos, assim, que outras pesquisas sobre este tema possam fazer uso dessa metodologia. Concordamos com Veisbergs (1997) que o emprego de jogos de palavras fraseológicos possa produzir um efeito marcante no texto, funcionando, a nosso ver, como artifícios estilísticos de embelezamento ou enriquecimento. De modo geral, apesar de corroborarmos a ideia do efeito cômico inerente aos jogos de palavras, acreditamos que ele seja latente, isto é, que se manifeste em graus maiores ou menores, dependendo do tipo de texto, do contexto e do canal de comunicação. Conforme notamos nos excertos literários analisados, o efeito cômico mostra-se mais acentuado quando há clara oposição ou incongruência de sentidos entre um ou mais elementos linguísticos. Isso foi observado em 386 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 vários trechos da obra de Carroll, em que, por exemplo, a ingenuidade das personagens era exibida ou reforçada. Nos trechos extraídos de Wilde, percebemos que os jogos de palavras são mais sutis e, por sua vez, fazem transparecer relações envolvendo crítica, provocação ou intolerância, não necessariamente comicidade. Essa suposta diferença de efeito parece estar diretamente associada ao tipo de jogo de palavras: horizontal ou vertical. O primeiro tipo envolve sobretudo transformações estruturais bastante evidentes no fraseologismo, portanto, mais facilmente perceptíveis pelo leitor/ouvinte; o tipo vertical, cujas transformações ocorrem em nível semântico, leva o leitor/ouvinte a fazer associações ou inferências mais elaboradas. Nos dois casos, exige-se do leitor/ouvinte esforço cognitivo. Nos jogos de palavras horizontais, como a situação de dubiedade é explícita, esse esforço é menor e o leitor/ ouvinte reage prontamente ao inesperado e o acha engraçado. Como nos horizontais, o esforço cognitivo é maior, o leitor/ouvinte demora mais tempo para processar as associações; por isso, talvez, o efeito não seja cômico, ou até seja, porém, não tão vigoroso ou imediato. Nosso tipo de estudo, cotejo de várias traduções de um mesmo texto, mostra-se bastante apropriado ao ensino de tradução, pois, além de revelar aos aprendizes como diferentes pessoas reagem ao desafio de traduzir JPFs, ele reforça duas capacidades que um tradutor deve desenvolver. Uma, já mencionada, é a capacidade de perceber a existência do jogo de palavras num determinado texto. A outra é a capacidade de reproduzir esse recurso linguístico criativo na língua-alvo. Como sabemos, as transformações em estruturas linguísticas são, normalmente, motivadas pelo estilo de um autor, o qual privilegia o contexto em que elas estão inseridas. Tal motivação também deve servir de inspiração aos tradutores, em geral, lembrando-os de que podem fazer algo semelhante ou até mesmo melhor do que aparece no texto de partida. Ao compreendermos que tradutores sejam “agentes de transformação” (CHESTERMAN, 1997, p. 2), estamos reforçando a ideia de que, se jogos de palavras são criados por meio de algum tipo de modificação, ela deva ocorrer na língua de chegada também. Assim, ao perceber um jogo de palavras e reproduzi-lo, fazendo as devidas alterações, o tradutor está respeitando o autor, a obra e os futuros leitores da tradução. Para finalizar, nossa recomendação é: traduzir fraseologismo por fraseologismo e JPF por JPF. Como aparece em nosso título, “o humor está no ar”, então, basta ao tradutor descobrir onde e como reproduzi-lo. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 359-389, 2020 387 referências ATTARDO, S.; RASKIN, V. Script Theory Revis(it)ed: Joke Similarity and Joke Representation Model. Humor – International Journal of Humor Research, Amsterdam, v. 4, n. 3-4, p. 293-347, 1991. Doi: https://doi. org/10.1515/humr.1991.4.3-4.293 CARROLL, L. Through the Looking-Glass. 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Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2005. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Lígia Junqueira. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Maria Cristina F. da Silva. São Paulo: Nova Cultural, 1996. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Tradução de J. Machado. São Paulo: Clube do Livro, 1946. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Tradução de Oscar Mendes. São Paulo: Abril Cultural, 1933. WILDE, O. O retrato de Dorian Gray. Tradução de João do Rio. Rio de Janeiro: Garnier, 1923. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 o Tradutor seletor: uma breve análise da “neutralidade” da tradução na canção do Chapéu Seletor em Harry Potter The Sorting Translator: a Brief Analysis of Translation “Neutrality” in the Sorting Hat Song, on Harry Potter Filipe Cianconi Rodrigues Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil filipecianconi@yahoo.com.br https://orcid.org/0000-0002-3947-2748 Fábio da Silva Fortes Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), Juiz de Fora, Minas Gerais / Brasil fabiosfortes@yahoo.com.br https://orcid.org/0000-0003-4411-7115 resumo: A teoria logocêntrica vê o significado de um texto como fixo, imutável, a depender somente das intenções conscientes do autor que o escreveu. Entretanto, na tradução é comum que o tradutor insira aspectos de seu contexto sociocultural, modificando aspectos do texto fonte para adaptá-lo à língua de chegada. Dessa forma, este artigo tem o objetivo de demonstrar, através da análise e comparação em três idiomas (inglês, português e latim) da canção do Chapéu Seletor, em Harry Potter e a Pedra Filosofal, que o ponto de vista desconstrutivista – que traz a ideia da mutabilidade do sentido – tem mais a oferecer e se encaixa melhor na perspectiva tradutória do que a noção do significado imutável. Palavras-chave: desconstrução; tradução; logocentrismo; Harry Potter. abstract: The logocentric theory takes the meaning of a text as established, unchanging, depending on the conscious intentions of the author who wrote it. However, in Translation, it is common the translator to insert aspects of his/her sociocultural context, modifying aspects of the source text to adapt it to the target language. Therefore, this article aims at demonstrating, through the analysis and comparison among three languages (English, Portuguese and Latin) of the Sorting Hat song, in Harry Potter eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.391-416 392 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 and the Philosopher’s Stone, that the deconstructive point of view – which brings the meaning mutability idea – has more to offer and fits better in the translation perspective than the notion of immutable meaning. Keywords: deconstruction; translation; logocentrism; Harry Potter. Recebido em 3 de junho de 2019. Aceito em 17 de outubro de 2019. 1. Introdução Toda tradução, por mais simples e breve que seja, trai sua procedência, revela as opções, as circunstâncias, o tempo e a história de seu realizador. Toda tradução por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não meramente, uma compreensão “neutra” e desinteressada ou um resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos significados supostamente estáveis de um texto de partida. ARROJO, 2003a, p. 68 O ato tradutório tem sido praticado desde as épocas mais remotas da humanidade, das quais se tem notícias. Por volta do século III AEC, por exemplo, os judeus haviam se espalhado pela área do Mediterrâneo, como afirma Scatolin (2011, p. 9), chegando “ao Egito, à Síria, à Mesopotâmia, a cidades da Ásia Menor, às ilhas do Mar Egeu, à Grécia continental, a Creta, Chipre e Cirene”. Com toda essa dispersão pelos continentes, muitos dos judeus já não possuíam domínio sobre o hebraico – eles tinham liberdade religiosa e podiam manter-se ligados aos seus textos religiosos. Contudo, como fariam a leitura de um texto escrito em hebraico sem dominar o idioma? A Septuaginta era a tradução em grego dos livros da Bíblia que compunham o que a tradição cristã compreende como o Antigo Testamento, cuja finalidade era permitir a leitura dos textos por cidadãos que dominavam o idioma grego, mas pouco conheciam de hebraico. Essa tradução teria sido realizada por setenta e dois monges que foram dispostos em salas separadas e, por Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 393 inspiração divina, teriam traduzido os livros do hebraico para o grego exatamente iguais uns aos outros. O nome Septuaginta, que significa “setenta” em latim, surgiu fazendo referência ao número de monges que fizeram esta tradução (SCATOLIN, 2011, p. 16). No mundo romano, de acordo com Kelly (1995, p. 420), Lívio Andronico – um escravo grego, capturado em Tarento – produziu uma versão latina da Odisseia, obra do grego Homero, utilizada nas escolas romanas. Os dramaticistas Plauto e Terêncio aproveitaram-se dos dramas gregos de Menandro e Aristófanes, por exemplo, e compunham obras adaptadas e traduziam os textos gregos para o latim, causando um melhor aproveitamento do público latino. Ainda segundo a autora, a maior contribuição dada pelo orador Cícero foi criar uma terminologia científica em latim para as traduções do grego, isto é, ele ajudou na composição de termos latinos para equivaler, de certa forma, aos termos usados em textos gregos. Dessa forma ilustramos, com alguns exemplos, períodos da história da tradução ainda na Antiguidade – atividade praticada há mais de dois milênios. O termo português “tradução” tem sua origem na língua latina, oriundo de duas palavras: a preposição trans, através de + ducere, guiar, levar, transportar, isto é, etimologicamente, seu sentido seria o de guiar, transportar algo através de outra coisa. Por extensão, o ato de traduzir ilustra perfeitamente a conotação latina, uma vez que se transporta alguma mensagem de determinada língua para outra durante uma tradução. Em termos gregos, contrastamos a paráfrase, metáphrasis, usada nos meios tradutórios para identificar uma tradução mais “literal”, ou seja, palavra por palavra, com aπαράφρασις, paráphrasis, mais utilizada hoje em estudos literários, cujo significado seria se expressar de maneira mais extensa sobre uma coisa em relação a algo que já fora dito antes. Na Antiguidade, a tradição oral foi sendo substituída pela tradição escrita e, conforme as eras se passavam, mais se confiava no texto grafado (HAVELOCK, 1986, 1994; SMALL, 1997). Durante muito tempo, a ideia da tradução (e percebe-se isso nos métodos1 de ensino de línguas Trata-se dos métodos Gramática-Tradução que acreditavam que conhecer aspectos gramaticais e utilizá-los em traduções descontextualizadas era o suficiente para se aprender uma língua estrangeira. Tal concepção fornece suporte para a ideia de que a correspondência entre os significados entre as línguas é fixo, não dependendo do contexto – pois até mesmo frases fora de contexto manteriam seus significados, 1 394 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 estrangeiras, por exemplo) era apresentada como uma metáphrasis, isto é, as palavras deveriam corresponder entre si, em duas ou mais línguas, de forma que o tradutor sempre permanecesse ligado ao que estava escrito no texto fonte e o transmitisse para a língua alvo exatamente da mesma forma como estava registrado na língua estrangeira. No presente artigo, pretendemos fazer uma breve análise da versão latina da “Canção do Chapéu Seletor”, presente no primeiro volume da série Harry Potter, de J.K. Rowling. Para isso, apresentaremos considerações teóricas preliminares sobre o ato tradutório que esclarecem a nossa perspectiva e, na sequência, passamos para a análise do excerto selecionado, tendo em vista o texto em inglês e a versão em latim, cotejando-os também com a tradução para o Português do Brasil (de Lia Wyler). 2. a perspectiva tradutória Durante algum tempo, esteve em voga uma teoria linguística logocêntrica. Λόγος, lógos, em grego é um vocábulo amplo – e que hoje ainda gera muito imprecisão aos tradutores de textos gregos, principalmente os filosóficos, em que esta palavra aparece recorrentemente – que pode significar tanto a palavra em si, como aquilo através do qual o pensamento é expresso, bem como pode significar também o próprio pensamento ou até mesmo discurso (CASSIN et al., 2013, p. 581-593). Jacques Derrida (1975, apud ARROJO; RAJAGOPALAN, 2003, p. 48) aponta como foco da teoria logocêntrica o significado transcendental, no qual um objeto se mantém estável no continuum espaço-tempo, isto é, o significado de um texto é imutável, permanente e independe do sujeito. Esta crença na estabilidade do significado – que Derrida chama de logocentrismo –, supostamente, geraria uma oportunidade de, conhecendo as intenções conscientes do autor, chegar, através da tradução, à literalidade de um texto – à metáphrasis, o sentido literal, independente de qualquer contexto histórico-social e de qualquer interpretação de seu tradutor (ARROJO, 2003c, p. 100). Entretanto, essa ideia de que o significado de um texto é estável se desfaz se pensarmos na independente de qualquer interferência. No caso do ensino de latim, particularmente, tal perspectiva, em que pese ser questionada há mais de três décadas, ainda parece permanente em algumas práticas (FORTES; PRATA, 2012, p. 167-185). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 395 língua(gem) como um fator cultural de determinado povo que, de acordo com as necessidades dos falantes, vai se modificando conforme o tempo – gerando neologismos, construções distintas e resignificando palavras. Arrojo (2007, p. 40) afirma que seria impossível resgatar as intenções e o universo de um autor, porque estas intenções são sempre “nossa visão daquilo que possam ter sido”, justamente por conta do fator de evolução das culturas e da própria língua. Não se pode afirmar, com total certeza, que determinada palavra x que, por exemplo, tenha sido usada por um autor do século XIX, seja usada da mesma forma por um autor hodierno, cujos contextos socioculturais são completamente distintos. Arrojo (2003b, p. 35) diz que as teorias logocêntricas compartilham um pressuposto de que a origem dos significados de um texto está fora do sujeito (leitor ou “receptor”), sendo localizada ou no próprio texto ou nas intenções conscientes do autor. Isto é, para se entender um texto, deve-se estar a par das intenções do autor e tiram-se conclusões apenas com relação àquilo que está escrito diante de si. Esta ideia traria duas possibilidades para a compreensão dos textos, segundo a autora (ARROJO, 2003b, p. 35-36): a noção da literalidade – de que o sentido estaria subordinado à letra, ou seja, seria anterior a qualquer interpretação feita pelo leitor – e a noção de que a origem do significado estaria vinculada e projetada no autor – gerando a conhecida pergunta mas o que o autor quis dizer?. Embora seja uma pergunta instigante, é praticamente impossível conceber todas as intenções de um autor ao escrever determinado texto. No momento da tradução, o tradutor, que pode não estar ciente dos propósitos do autor do texto fonte, vai aplicar na sua tradução a leitura que ele fez do texto. Entretanto, ainda que o acesso às intenções do autor fosse possível, o que indica que, ao traduzir, um tradutor seria fiel? Johnson (2005, p. 29) mostra, por exemplo, como que, filosoficamente, a fidelidade é uma pretensão tão quimérica quanto a originalidade de um texto. Em se tratando de línguas não somente afastadas geograficamente, mas também temporalmente, como o é o caso de uma língua moderna (como o inglês), contraposta a uma língua antiga (como o latim), tanto mais se torna impossível uma perspectiva em torno de uma presunção de originalidade/fidelidade tradutória. Tal fato nos retorna para o trecho citado em epígrafe no início deste trabalho, no qual podemos perceber que toda tradução carrega em si traços do seu tradutor, bem como do contexto sociocultural no 396 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 qual ele está envolvido. Escolhas são feitas no ato tradutório – dessa forma, nenhuma tradução é neutra. Tomemos como exemplo a série animada cômica (Des)Encanto, criada por Matt Groening (criador de Os Simpsons e Futurama), em que, no oitavo episódio da primeira temporada, intitulado “Os limites da imortalidade”, os personagens principais vão até o deserto em busca de um frasco valioso. Eles descem até as catacumbas de uma pirâmide e encontram o frasco. Na subida de volta à superfície, um dos vilões, que também estava tentando alcançar o frasco, é deixado no andar inferior, enquanto os protagonistas sobem, escapando. Os protagonistas começam a empurrar as areias do deserto pelo alçapão por onde eles escaparam. Então há o seguinte diálogo: Luci: Let’s see how you like getting bottled up. Odval: You’ll never be able to fill this whole room with sand. Luci: Uh, sure we will. There’s a whole desert up here.2 No momento da tradução, os tradutores/dubladores preferiram aumentar o grau de comicidade do desenho animado, trazendo para os telespectadores brasileiros um tom mais jocoso com o diálogo que se segue: Luci: Vamos ver se você gosta de ser enterrado. Odval: É isso mesmo que eu estou vendo? Vai me enterrar na areia? Luci: Não, não. Vou atolar. O tom cômico do diálogo só é captado por aqueles que conhecem o funk, cuja letra foi referenciada no diálogo acima. As escolhas do tradutor refletem, então, seu contexto, a função que o texto traduzido tem, bem como são adaptadas para se encaixarem melhor na língua alvo. Assim, como diz Arrojo (2003d, p. 78), qualquer tradução traz consigo os vestígios de sua realização, seja ele o tempo, as circunstâncias nas quais o tradutor se encontra, os objetivos deste, ou mesmo sua perspectiva. Snell-Horby (1995, p. 51-52) define a perspectiva como o ponto de vista do falante, narrador ou leitor no que concerne à cultura, ao tempo ou espaço, isto é, o termo abarca uma relação entre o texto fonte com os fatores externos, 2 O diálogo poderia ser traduzido da seguinte maneira, seguindo o texto fonte: Luci: Vamos ver como você gosta de ser engarrafado Odval: Vocês nunca vão ser aptos a preencher este local todo com areia. Luci: Uh, claro que vamos. Tem um deserto todo aqui em cima. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 397 sociais e culturais dos indivíduos que estão em contato com o texto na língua de chegada. Assim, o conceito ganha um entorno sociocultural, uma vez que o tempo e o espaço do texto fonte são distintos. Dessa forma, as escolhas tradutórias são informadas pela perspectiva sociocultural assumida pelo tradutor, com base no seu ponto de vista do texto a ser traduzido, como ilustrado pelas escolhas feitas no diálogo supracitado. Esta noção de que a tradução não precisa ser literal está contida na teoria da desconstrução, que se desenvolveu na França, no fim da década de 1960 e, na qual os teóricos passam a pensar a tradução de forma diferente da visão logocêntrica e trazem, conforme cita Gentzler (2009, p. 186), questões como a sobrevivência do texto original sem a tradução, bem como a mudança de sua identidadea cada tradução feita daquele texto, entre outros. Segundo Gentzler (2009, p. 184), “os descontrucionistas chegam a sugerir que talvez seja o texto traduzido que nos escreve [grifos do autor], e não nós que escrevemos o texto traduzido”, pois como já foi supracitado, o texto apresenta características do seu tradutor, mas estas escolhas tradutórias são feitas levando em consideração o texto em si. Jacques Derrida, ressoando através da voz de Gentzler (2009, p. 185), sugere que o conceito da desconstrução está intimamente ligado ao ato de traduzir, indicando que o que o autor chama de différance pode ser visível. O neologismo criado por Derrida origina-se do verbo latino differe (verbo polissêmico que pode significar tanto atrasar – sugerindo um horizonte temporal – como divergir – sugerindo um horizonte espacial), porém com uma alteração gráfica: o vocábulo francês seria escrito em “e”, différence, mas Derrida o escreve com “a”, différance, soando parecido, embora grafados de forma distinta. Tal fato contribui para a significação do neologismo, uma vez que ele não se refere ao que existe (a língua), mas sim o que não existe, o inaudito (assim como a letra “a” se passa por “e” na pronuncia da palavra), questionando qualquer abordagem ontológica que baseia a noção da tradução na presença de algo contido explicitamente naquele texto (GENTZLER, 2009, p. 197). Jacques Derrida Desafia o leitor (e principalmente o tradutor) a pensar e repensar cada momento em que uma solução de tradução é apresentada, um item denominado, uma identidade fixada ou uma oração inscrita. A cada gesto de dominação, Derrida sugere que uma nota de rodapé, uma nota à margem ou um prefácio também servem para invocar aqueles sutis significados suplementares divergentes e noções tangenciais perdidas no processo de transcrição (GENTZLER, 2009, p. 185) 398 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 Com efeito, uma nota de rodapé para cada mudança/escolha que o tradutor fizesse cobriria a página com informações demais e, provavelmente, cortaria a leitura do texto em diversos níveis, uma vez que o receptor teria que interromper seu exercício para conferir as notas sobre as decisões do tradutor.3 Como o tradutor interpreta e lê aquele texto com seus olhos (imagine-se um tradutor de textos antigos: é uma tarefa árdua desprender-se dos olhos contemporâneos para se inserir na cultura de um povo que viveu há milênios e evitar cometer anacronismos indesejados), algumas decisões, que estariam em um nível maior de mudança do texto fonte, careceriam mais de notas explicativas do que aquelas mais sutis. Estas notas, referentes às mudanças realizadas pelos tradutores, reforçam a ideia de que “os textos originais estão constantemente sendo reescritos no presente e cada leitura/tradução reconstrói o texto-fonte” (GENTZLER, 2009, p. 188). Hönig e Kussmaul (1982), segundo SnellHornby (1995, p. 44), consideram o texto como “a parte verbalizada de uma sociocultural”.4 Assim, a tradução seria dependente de sua função como um texto que foi implantado na cultura-alvo, função pela qual pode-se preservar a função do texto fonte em sua própria cultura ou mudar sua função para adaptá-la às necessidades específicas da cultura alvo, como foi o caso da série (Des)Encanto, citada acima. Dessa forma, a ideia do significado transcendental, imutável através dos tempos, se guia para finalidades que não sucedem bem. Como as línguas são diferentes entre si – embora tenha características semelhantes também –, nem sempre uma construção utilizada em determinado idioma x vai ser traduzido da mesma forma na língua-alvo y. Arrojo (2003c, p. 103) diz que nenhuma tradução consegue preservar intactos os significados originais de um texto. Se voltarmos um pouco no tempo, mais precisamente no século I AEC, encontramos na obra De optimo genere oratorum, do orador romano Cícero (2011), uma ideia oposta àquela do logocentrismo. Em sua obra, composta em 46 AEC, Cícero cita a necessidade não de verter os termos gregos para o latim Existem, porém, traduções comentadas de textos, com o intuito de descrever e explicar as referências contidas nos escritos daquele texto. A questão de cobrir a visão do leitor com informações demais se encaixaria melhor em uma leitura de um romance, por exemplo. 4 Der verbalisierte Teil eine Soziokultur, traduzido pela autora como the verbalized part of a socioculture. 3 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 399 literalmente, mas, sim sopesá-los, isto é, “equilibrá-los”, para que os falantes de latim entendessem as referências de acordo com sua cultura: Traduzi, então, dos áticos dois discursos notáveis e contrários entre si, um de Ésquino, outro de Demóstenes, autores dos mais eloqüentes. E não os traduzi como um tradutor, mas como um orador, usando os mesmos argumentos, tanto na sua forma quanto nas suas figuras de linguagem, em termos adequados à nossa cultura. Para tanto, não considerei necessário verter palavra por palavra, mas mantive inteiro o gênero das palavras e sua força expressiva. Não julguei que fosse apropriado contabilizar as palavras para o leitor, mas como que sopesá-las.5 (CICERO. O melhor dos gêneros de oradores, 5, 14) Para Cícero, dessa forma, o significado de um texto não seria imutável e sua tradução não deveria ser feita literalmente, indicando que o conteúdo daquele texto fosse estável, mas ao contrário, ele adaptou o texto para que os falantes de latim entendessem sobre o que se tratava aquele texto, tomando como referência aspectos do seu mundo. Nida (1975, apud ARROJO, 2003c, p. 102) declara que o fundamental no processo de tradução é que os componentes significativos da língua de partida (no caso de Cícero, o grego) alcancem a língua alvo (o latim), de forma que seus receptores possam se beneficiar das informações. O tradutor, portanto, precisa aprender a ler o texto de partida e, dessa forma, “aprender a produzir significados, a partir de um determinado texto, que sejam ‘aceitáveis’ para a comunidade cultural da qual participa o leitor” (ARROJO, 2007, p. 76). 2.1. sentido literal x sentido metafórico Arrojo e Rajagopalan (2003, p. 47) comentam que as teorias que orientam o estudo da linguagem se fundamentam sobre o pressuposto 5 CICERO. De optimo genere oratorum, tradução de Brunno Vinicius Gonçalvez Vieira e Pedro Colombaroli Zoppi: [14] Conuerti enim ex Atticis duorum eloquentissimorum nobilissimas orationes inter seque contrarias, Aeschini et Demostheni; nec conuerti ut interpres, sed ut orator, sententiis isdem et earum formis tamquam figuris, uerbis ad nostram consuetudinem aptis. In quibus non uerbum pro uerbo necesse habui reddere, sed genus omne uerborum uimque seruaui. Non enim ea me adnumerare lectori putaui oportere, sed tamquam appendere. 400 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 de que há a crença na oposição entre um sentido literal e um sentido metafórico, figurado. Aquele é associado à estabilidade dos significados, inerente à palavra ou ao enunciado e que, supostamente, preservaria a linguagem de quaisquer interferências causadas por contexto ou interpretações; este é caracterizado como um “desvio”, uma “derivação” e até mesmo como um “parasita” em relação à metáphrasis, permitindo-se a criatividade, a invenção, a ruptura de normas e, ainda, a interferência dos contextos em que os leitores/interpretantes estão inseridos. Snell-Hornby (1995, p. 50) salienta que o principal foco de seu estudo é remover esta rígida divisão entre uma linguagem literária e outra linguagem mais comum (aplicando-se também à tradução literária e a “comum”). A autora nos informa (p. 49) que Coseriu (1970), ao pensar ser inadequada a dicotomia saussuriana langue x parole, adicionou a ela o conceito de norma. Entretanto, recentemente, linguistas viram esta norma como uma linha de demarcação rígida e prescritiva, na qual as metáforas teriam sido designadas como uma linguagem desviante, pois não aderem às regras de restrições que a língua seleciona. Snell Horby se opõe a essa ideia, dizendo que A linguagem literária está relacionada com a exploração da capacidade total de um sistema linguístico [...] e envolve – não um mero desvio de uma norma estática e prescritiva –, mas a extensão criativa de uma norma linguística, no sentido flexível de um potencial governado por regras (SNELL-HORBY, 1995, p. 51).6 Sendo a linguagem literária, metafórica, por extensão, a exploração da capacidade total de um sistema linguístico, as decisões de um tradutor no processo tradutório de um texto deste gênero não são simples, uma vez que as decisões tomadas não podem infringir as regras de aceitabilidade da língua alvo e, ainda assim, devem trazer consigo significados coerentes, para que seu público possa compreender de forma que não se percam sentidos do texto durante a leitura. Existem dois conceitos, que envolvem o texto e que podem ser de grande auxílio aos tradutores quando se trata de linguagem literária. São eles a dimensão 6 Literary language is concerned with the exploitation of the entire capacity of a language system […] and involves – not merely deviance from a static and prescriptive norm – but the creative extension of the language norm, in the flexible sense of rule-governed potential. Tradução nossa. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 401 e a perspectiva. Aquela foca em aspectos internos da linguagem, como orientações em itens lexicais, artifícios estilísticos ou estruturas sintáticas – se estendendo aos níveis de mudança de foco, como em metáforas e jogos de palavra; esta foca na relação do texto com os fatores externos socioculturais, isto é, se relaciona com o ponto de vista do falante, narrador ou leitor – no que diz respeito à cultura, atitudes, tempo e espaço (SNELL-HORNBY, 1995, p. 51). Para exemplificar tais conceitos, Snell-Hornby compara o texto, em termos de dimensão e perspectiva, a um filme ou fotografias, exatamente como fez Horácio em sua Ars Poetica, também conhecida como Epístola aos Pisões, comparando a poesia à pintura: Como a pintura é a poesia: coisas há que de perto mais te agradam e outras, se a distância estiveres. Esta quer ser vista na obscuridade e aquela à viva luz, por não recear o olhar penetrante dos seus críticos; esta, só uma vez agradou, aquela, dez vezes vista, sempre agradará (HORÁCIO. Ars poetica, p. 361-365)7 Assim como a comparação de Snell-Hornby, Horácio diz que de acordo com a dimensão e perspectiva, algumas coisas podem te agradar mais se estão perto ou longe. A autora (1995, p. 52) diz que os itens de um filme ou de uma fotografia ganham proeminência de acordo com o foco dado sobre eles, bem como seu relacionamento com aquilo que está ao seu redor. Assim também é a tradução, na qual o tradutor coloca no seu texto seu ponto de vista; gira a lente, proporcionando o foco; nos absorve de várias dimensões diferentes; nos apresenta seu tempo, sua história – deixando para trás a ideia de um sentido único e imutável. Afinal se setenta e duas pessoas forem colocadas em cabines diferentes e forem pedidas para traduzir A Sociedade do Anel, de J. R. R Tolkien, é bem provável que tenhamos setenta e duas traduções completamente diferentes. E nas palavras de Arrojo e Rajagopalan (2003, p. 54), “a 7 Vt pictura poesis; erit quae, si propius stes, te capiat magus, et quaedam, si longius abstes; haec amat obscurum, uolet haec sub luce uideri, iudicis argutum quae non formidat acúmen; haec placuit semel, haec deciens repetita placebit. Trad. R. M. Rosado Fernandes. 402 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 literalidade (a neutralidade, a razão, o puramente objetivo) é a grande metáfora, a metáfora primordial, criada pelo homem que precisa se esquecer de que a inventou para não se lembrar de sua finitude e suas limitações humanas”. 3. análise do corpus Como material ilustrativo das questões teóricas sobre tradução apresentadas em linhas gerais previamente, analisaremos um trecho do primeiro livro da saga de Harry Potter, escrito por J. K. Rowling e lançado no ano de 1997. A obra conta a história de um menino que vivia em péssimas condições na casa dos seus tios. Seus pais foram assassinados por um bruxo das trevas, cujo nome ninguém gostava de pronunciar. Quando ele completa 11 anos de idade, ele recebe uma carta da Escola de Magia e Bruxaria Hogwarts, convidando-o a estudar lá, uma vez que ele era, hereditariamente, um bruxo. Ao chegar na escola, os alunos passavam por um processo de “distribuição”, em que um chapéu, ao ser posicionado em suas cabeças, decidia para qual das quatro casas da escola estes alunos seriam enviados. Após Harry Potter e seus dois melhores amigos, Hermione Granger e Ronald Weasley serem colocados na mesma casa, o primeiro ano dos alunos se torna repleto de aventura e magia, na caça da pedra filosofal. Daí o título do primeiro livro da saga: Harry Potter e a Pedra Filosofal. Para nossa análise, utilizaremos um corpus paralelo multilíngue, consistindo de um texto fonte (originalmente escrito em inglês: Harry Potter and the Philosopher’s Stone, 2017) e duas versões traduzidas (uma em português, Harry Potter e a Pedra Filosofal, 2015; e uma em latim, Harrius Potter et Philosophi Lapis, 2013),8 fazendo contrastes das traduções, indicando a presença do tradutor em seus textos. A versão em Embora a pedra filosofal, ligada ao mito que circunda a vida de Nicolau Flamel, cuja finalidade permitiria a transmutação de metais de menor valor em ouro ou a criação do Elixir da Vida, dentre outros, tenha sido conhecida em latim comolapis philosophorum (a pedra dos filosósofos), Needham em sua versão escolheu lapis philosophi (a pedra do filósofo) para acompanhar o nome do personagem principal no título da obra. Tal fato nos fez refletir se a escolha feita por ele foi, simplesmente, para acompanhar a nomenclatura pela qual a pedra ficou conhecida em inglês (philosopher’s stone), mantendo assim o singular ou se a decisão tem relação com o fato de a pedra pertencer a um único personagem na obra de Rowling – o alquimista Nicolau Flamel. 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 403 português brasileiro foi traduzida por Lia Wyler (1834-2018), conhecida principalmente pelas traduções da saga de Harry Potter (que conta com sete livros e alguns spin-off). A versão latina da obra foi feita por Peter Needham,9 professor de línguas clássicas por mais de 30 anos na Universidade de Eton e traduziu outras obras infantis para o latim. Ao invés de analisar um capítulo inteiro das versões da obra, resolvemos recortar nosso corpus, composto somente de um trecho do capítulo sete do primeiro livro, chamado The Sorting Hat, O Chapéu Seletor e Petasus Distribuens, em inglês, português e latim, respectivamente. O trecho escolhido foi justamente a canção que o Chapéu Seletor (utilizando dos termos de Wyler) entoa antes de distribuir os alunos entre as casas da escola de Hogwarts. Separamos em colunas os textos, facilitando, na medida do possível, a leitura e comparação entre as versões. A versão latina contará com um guia justalinear à parte, com a contribuição de um glossário, para auxiliar aqueles que não leem o idioma na comparação com os demais. Este guia trará a tradução dos vocábulos latinos e a ordenação da frase latina como seria na leitura do português – desta forma, o leitor saberá qual a tradução de determinado termo e a ordem em que ele aparece, para uma leitura fluida. Tomamos esta decisão, uma vez que a língua latina é casual, ou seja, a ordem na qual as palavras aparecem na frase não é fixa – são as terminações que indicam as suas funções sintáticas. Portanto, para um melhor aproveitamento da leitura, o léxico contará com a tradução para o português dos vocábulos como eles aparecem no texto latino, por exemplo, amat, em latim significaria “ele/a ama”. Dessa forma, no vocabulário, o verbo amat teria como tradução “ele/a ama” e não o verbo no infinitivo, como seria de costume. O guia se encontra no Anexo B, seguido do vocabulário, no Anexo C. Dessa forma, nossa análise consiste, basicamente, em explicitar excertos das traduções apresentadas abaixo, em confronto com o texto fonte, nos quais há certa diferença em comparação com o original. Desse modo, podemos corroborar a ideia segundo a qual o ato tradutório 9 Como Needham não é um falante nativo de latim, entende-se que o que ele fez foi uma versão do texto inglês para o latim. Entretanto, etimologicamente, “tradução” dá a ideia de algo conduzido através de outra coisa; assim, a mensagem contida na obra de J.K. Rowling foi conduzida através da visão de Needham para o idioma latino. Então preferimos nos reter ao verbo “traduzir” e seus derivados para nos referirmos ao ato de Needham. 404 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 pode ser compreendido como uma operação de desconstrução de um sentido transcendental – já que se assim o fosse, ambas as traduções, de Wyler e Needham, seriam estruturalmente iguais, ainda que em idiomas diferentes. As análises comparativas serão feitas em grupos de quatro versos, seguindo o texto fonte. Logo, verificaremos os quatro primeiros versos, em seguida os próximos quatro e assim sucessivamente. Já no primeiro verso, Needham acrescenta discipuli (alunos, discípulos), não presente no texto fonte. Mais abaixo, Rowling escreve I’ll eat myself if you can find/A smarter hat than me; Wyler se aproxima bastante dos escritos de Rowling, acrescentando um tom jocoso com a expressão “mais inteligente do que o papai aqui”; Needham faz círculos, pretendendo alcançar o mesmo sentido, porém com versos diferentes: nam petasus nusquam toto si quaeritis orbe/me melior vobis inveniendus erit (pois se procurarem no mundo todo, em lugar algum um chapéu mais esperto do que eu será encontrado por vocês). Ele mantém o sentido da frase original, mas sem se prender fielmente à disposição do texto fonte. Os sintagmas bowlers Black e top hats sleek and tall nos versos seguintes de Rowling são traduzidos por Wyler da seguinte maneira: “chapéus-coco bem pretos” e “cartolas altas de cetim brilhoso”. Esse é um tipo de vocabulário que o latim usado na Roma Antiga não conhecia. Needham, por sua vez, resolveu essa questão com o simples substantivo lautitias (luxuosidade, luxo, fausto). Em seguida, o tradutor optou por tentar elencar os tipos de chapéus tratados no texto fonte de acordo com seus formatos rotunda (redondo) e cylindratos (cilíndricos). Logo abaixo, Rowling faz um trocadilho no verso And I can cap them all e Wyler utiliza mais uma vez uma expressão comum em português na sua tradução: “E dou de dez a zero em qualquer outro chapéu”. Observando os próximos versos, podemos conferir a perspectiva tradutória de Wyler e seu papel como autora do texto que está traduzindo: ela optou por traduzir os nomes das casas que compunham a Escola de Hogwarts, a saber Gryffindor, Ravenclaw, Hufflepuff e Slytherin. A tradutora preferiu adaptar os nomes para Grifinória, Corvinal, LufaLufa e Sonserina, respectivamente. No que diz respeito a Needham, ele manteve os nomes como no texto fonte, em inglês. Constata-se aqui a dificuldade de verter este texto, repleto de termos que não existem em latim – o que aponta mais uma vez para a ideia da desconstrução de um significado transcendental, em que o tradutor deve se apoiar em suas decisões para manter a o texto na língua alvo fluido, sem brechas por Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 405 conta de palavras que não puderam ser recuperadas, com a ajuda de um dicionário de latim. Além disso, nota-se que Needham, no trecho analisado, não realizou neologismos latinos que poderiam configurar um neolatim ou latim extemporâneo, preferindo manter coerência com os modos de expressão dessa língua em sua variedade clássica, ainda que, do ponto de vista lexical, precise inserir palavras estrangeiras, medida, entretanto, seguida por tradutores de outras línguas. Com efeito, enquanto muitas traduções, para as mais variadas línguas, deixaram tais nomes como no original, Lia nos apresentou sua leitura do texto e adaptou os nomes – o que pode ter gerado certo desconforto para alguns fãs da saga, mas foi uma atitude tomada com base no seu ponto de vista – talvez para facilitar a leitura e referenciação dentro da própria obra. Sobre a Lufa-Lufa, Hufflepuff, Needham jogou com as palavras e dividiu o nome da casa, em inglês em duas partes, em gentibus a iustis et fidis Huffle tenetur Puff (A Hufflepuff é representada por pessoas justas e leais). A ideia por trás desta divisão da palavra é incerta, talvez algum trocadilho que falantes nativos de inglês possam entender melhor – o que ilustraria a noção de que o contexto sociocultural do tradutor fosse um fator a se levar em consideração no momento da tradução. No final da descrição desta casa, Needham acrescenta ao seu texto a seguinte frase: erit vestra secunda domus (será esta sua segunda casa), trecho que falta no texto fonte. A próxima casa a ser descrita é a Corvinal, nos termos de Wyler. Needham já inicia a descrição desta casa adicionando tertia restat adhuc Ravenclaw nomine dicta (ainda resta a terceira [casa], chamada Ravenclaw), enquanto no original, Rowling apenas diz Or yet in wise old Ravenclaw [...]. Dois versos abaixo, temos, na versão de Needham, sunt lepus hic hominum cultorum artesque Minervae. Este segmento do texto parece um tanto quanto obscuro – adentrando algum sentido metafórico do qual o tradutor estava ciente durante seu processo de tradução. Iniciemos com o substantivo lepus, -i, que significa em português “lebre” e seria hare, em inglês. Nem no texto fonte, nem no texto alvo α encontramos quaisquer referentes a este termo. Uma tradução em português, tentando manter o conteúdo da versão em latim seria “existem aqui a lebre dos homens cultos e as artes de Minerva”. Metaforicamente, é compreensível a inclusão da deusa Minerva, uma vez que ela era a deusa romana da sabedoria (contraparte da Atena grega) e a Corvinal é a casa representada pela sapiência e agudez da mente. Entretanto, fazendo uma busca no 406 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 Oxford Latin Dictionary (1968), percebemos a presença do vocábulo lepos, -oris que, embora possa parecer semelhante ao termo utilizado na versão de Needham, seu significado é totalmente diferente: dentre as suas acepções, encontram-se charm or cleverness of language, wit, humour. No texto fonte, Rowling aponta Where those of wit and learning […], levando-nos a inferir que o uso de lepus, -i tenha sido um erro de impressão. Assim, o trecho sunt lepos hic hominum cultorum artesque Minervae poderia ser melhor entendido como “há aqui, a sagacidade dos homens cultos e as artes de Minerva” No que diz respeito a descrição de Slytherin, enquanto o texto fonte traz those cunning folk use any means/to achieve their ends, Wyler foi um pouco além e escreveu “homens de astúcia que usam quaisquer meios para atingir os fins que antes colimaram”, mudando um pouco a estrutura, mas mantendo o sentido. Já Needham acrescenta improbus es? Fallax? Haec erit apta domus. O adjetivo improbus, a, um pode significar “ávido”, “insaciável”, “desleal”, entre outros; nos levando a uma tradução aproximativa como “és insaciável/ávido/desleal? Falaz? Esta será a casa apropriada”, embora no texto fonte a formulação é bastante diversa; a apresentação em forma de questionamentos também representa uma importante inovação. Os quatro últimos versos da canção do Chapéu Seletor/Sorting Hat/Petasus Distribuens trazem algumas diferenças entre as versões: no texto de Rowling, ela escreve You’re in safe hands (though I have none)/ For I’m a Thiking Cap!; na tradução feita por Wyler, ela modifica um pouco o texto fonte, colocando “(Mesmo que os chapéus não tenham pés nem mãos)/Porque sou único, sou um Chapéu Pensador!”: ela acrescenta os pés em sua tradução e demonstra a exclusividade do chapéu com o adjetivo “único”; tais versos na versão latina, de Needham, são colocados como discurso direto, a saber “incolumes eritis petasi tutamine” dicunt, “cum careat manibus, cogitat ille tamen”. O tradutor mantém o sentido do texto, modificando, porém, a estrutura – visto que no texto fonte, a fala é em primeira pessoa, isto é, é o Chapéu Seletor quem está falando sobre ele mesmo, enquanto Needham transforma um discurso reportado por uma terceira pessoa, demonstrado pelo dicunt (eles dizem) e as aspas. Com isso, uma tradução aproximada das palavras de Needham ficaria “‘vocês estarão a salvo pela proteção do chapéu’ eles dizem, ‘ainda que não tenha mãos, entretanto ele [o chapéu] pensa’”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 407 Embora nossa análise tenha se restringido a apenas um excerto das obras, percebe-se, ainda assim, que as traduções não estão livres de conter as influências dos tradutores, como dissemos acima e, retomando nossa epígrafe Toda tradução por mais simples e breve que seja, revela ser produto de uma perspectiva, de um sujeito interpretante e, não meramente, uma compreensão “neutra” e desinteressada ou um resgate comprovadamente “correto” ou “incorreto” dos significados supostamente estáveis de um texto de partida. (ARROJO, 2003a, p. 68) Este exemplo desmistifica a noção de um significado fixo, através dos tempos: a língua é um meio de comunicação e é adaptada pelos falantes de acordo com suas necessidades. Dessa forma, o significado contido nas palavras e nas expressões construídas com estas nem sempre se mantém estável. Apenas a ideia da polissemia das palavras (quando se busca um vocábulo no dicionário, por exemplo, encontra-se diversos significados para ele, dependendo do campo semântico que se deseja utilizar) já desconstrói a noção da estabilidade/literalidade dos textos. Outro detalhe que pode ser incômodo à primeira vista, na versão de Wyler, é a tradução do nome James para Tiago, como no nome do pai do personagem principal da série. Entretanto, etimologicamente, Tiago (e seu derivado Thiago) proveio do espanhol Sant’Iago, por aglutinação de Santo e Iago, nome que, por sua vez, tem sua origem no hebraico Ya’akov, e gerou em português também Jacó (versão brasileira de James). Logo, o contexto em que o tradutor se encontra e suas escolhas tradutórias fogem à ideia de que a tradução deva ser logocêntrica, fundamentada em um sentido apenas. 4. Considerações finais Com a passagem da tradição oral para a escrita, na Antiguidade, o foco e a confiança no texto escrito aumentaram gradativamente. Assim, uma das teorias da tradução, a qual Jacques Derrida chamou de logocentrismo, via o significado de um texto como algo transcendental, ou seja, esse significado permaneceria intacto, imutável, através dos tempos – sem qualquer interferência do leitor/receptor e seu contexto de vida. Entretanto, tentamos, através da análise e comparação do texto 408 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 de partida Harry Potter and the Philosopher’s Stone com dois textos de chegada, a tradução para o português da obra, Harry Potter e a Pedra Filosofal, e a versão latina da obra, Harrius Potter et Philosophi Lapis, mostrar que as intenções do tradutor, seu contexto sociocultural e sua perspectiva, para tomar decisões no ato tradutório, podem interferir no logocentrismo que se acreditava antes. Toda tradução contém traços de seu tradutor, seja na escolha lexical, na mudança de estruturas, na inclusão de informações que poderiam facilitar a leitura do leitor ou mesmo na tradução de nomes que, à primeira vista, seriam apenas criações na língua de partida e permaneceriam assim. A tradução nada mais é do que um produto de uma perspectiva em que o tradutor compreende e interpreta os sentidos que, supostamente, são estáticos do texto fonte, trazendo para a cultura alvo sua leitura – traduzida utilizando sua perspectiva – do texto para que aqueles que não falam/leem determinado idioma possam aproveitar ao máximo a oportunidade de desfrutar das obras. Declaração de autoria O presente artigo é resultado de uma disciplina cursada no Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de Juiz de Fora e escrito pelo aluno bolsista CAPES de Mestrado Filipe Cianconi Rodrigues, sob supervisão e orientação de Fábio da Silva Fortes, que fez a revisão final e apresentou contribuições na discussão teórica. referências ARROJO, Rosemary. Oficina de Tradução: a teoria na prática. São Paulo: Ática, 2007. ARROJO, Rosemary. A desconstrução do logocentrismo e a origem do significado. In: ______ (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, 2003a. p.35-39. ARROJO, Rosemary. Compreender x interpretar e a questão da tradução. In: ______ (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, 2003b. p. 67-70. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 409 ARROJO, Rosemary. As questões teóricas da tradução e a desconstrução do logocentrismo: algumas reflexões. In: ______ (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, 2003c. p. 71-79. ARROJO, Rosemary. As questões teóricas da tradução e a desconstrução do logocentrismo: algumas reflexões. In: ______ (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, 2003d. p. 71-79 ARROJO, Rosemary; RAJAGOPALAN, Kanavillil. A noção de literalidade: metáfora primordial. In: ARROJO, Rosemary (org.). O signo desconstruído: implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas, SP: Pontes, 2003. p. 47-55. CASSIN, Barbara et al. Lógos. In: Dictionary of Untranslatables. A Philosophical Lexicon. Princeton: Princeton University Press, 2013. p. 581-593. CÍCERO. De optimo genere oratorum/ O melhor dos gêneros de oradores. Tradução de Brunno Vinicius Gonçalves Vieira e Pedro Colombaroli Zoppi. 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Suas cartolas altas de cetim brilhoso For I’m the Hogwarts Sorting Hat Porque sou o Chapéu Seletor de Hogwarts Distribuens Petasus vobis Hogvartius adsum And I can cap them all. E dou de dez a zero em qualquer outro chapéu. cui petasos alios exsuperare datur. There’s nothing hidden in your head Não há nada escondido em sua cabeça Distribuens Petasus scrutatur pectora vestra, The Sorting Hat can’t see, Que o Chapéu Seletor não consiga ver, quodque videre nequit nil latet in capite. So try me on and I will tell you Por isso é só me porem na cabeça in caput impositus vobis que vou dizer ostendere possum Where you ought to be. Em que casa de Hogwarts deverão ficar. quae sit, vaticanans, optima cuique domus. You might belong in Gryffindor, Quem sabe sua morada é a Grifinória, vosforsan iuvenes Gryffindor habebit alumnos; Where dwell the brave at heart, Casa onde habitam os corações indômitos. hanc semper fortes incoluere domum. Their daring, nerve, and chivalry Ousadia e sangue-frio e nobreza gens hominum generosa illa est fortisque feroxque; Set Gryffindors apart; Destacam os alunos da Grifinória illi nulla potest aequiperare dos demais; domus. 10 ROWLING, 2017, p. 125-126. ROWLING, 2015, p. 89. 12 ROWLING, 2003, p. 95-96 11 412 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 You might belong in Hufflepuff, Quem sabe é na Lufa-Lufa que você vai morar, gentibus a iustis et fidis Huffle tenetur Where they are just and loyal, Onde seus moradores são justos e leais Puff. adversa tarnen scit domus illa pati. Those patient Hufflepuffs are true Pacientes, sinceros, sem medo da dor; hic homines animisque piis verique tenaces And unafraid of toil; Ou será a velha e sábia Corvinal, invenietis. erit vestra secunda domus. Or yet in wise old Ravenclaw, A casa dos que têm a mente sempre alerta, tertia restat adhuc Ravenclaw nomine dicta; If you’ve a ready mind, Onde os homens de grande espírito e saber est vetus et sapiens ingeniisque favet. Where those of wit and learning, Sempre encontrarão companheiros seus iguais; sunt lepus hic hominum cultorum artesque Minervae; Will always find their kind; Ou quem sabe a Sonserina será a sua casa discipulos similes hic habitare decet. Or perhaps in Slytherin E ali fará seus verdadeiros amigos, forsitan in Slytherinveriinvenientur amici; You’ll make your real friends, Homens de astúcia que usam quaisquer meios improbus es? fallax? haec erit apta domus. Those cunning folk use any means Para atingir os fins que antes colimaram. ut rata vota habeant scelus omne patrandum est To achieve their ends. Vamos, me experimentem! Não devem temer! gentibus his; quaerunt nil nisi lucra sua. So put me on! Don’t be afraid! Nem se atrapalhar! Estarão em boas mãos! verticibus iubeo me vos imponere nec non And don’t get in a flap! (Mesmo que os chapéus não tenham pés nem mãos) pectoribus firmis rem tolerare velim! You’re in safe hands (though I have none) Porque sou único, sou um Chapéu Pensador! ‘incolumeseritispetasitutamine,’ dicunt, For I’m a Thinking Cap!” ‘cum careat manibus, cogitat ille tamen.’ Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 413 aNEXo B12 Guia tradutório justlinear para o texto alvo β, por Peter Needham: Petasus Distribuens discipuli, si putatis me non esse pulchrum13 ingenium valet plus externa specie. Nam si quaeritis petasus toto orbe nusquam melior me inveniendus erit vobis. lautitias odi: nolo tegmenta rotunda, neve tradite mi cylindratos petasos. Distribuens Petasus Hogvartius adsum vobis cui datur petasos alios exsuperare. Distribuens Petasus scrutatur pectora vestra, quodque nequit videre nil latet in capite. impositus in caput vobis ostendere possum quae sit, vaticanans, optima cuique domus. forsan Gryffindor habebit vos, iuvenes alumnos; fortes semper incoluere hanc domum. illa gens hominum generosa est fortisque feroxque; nulla domus potest aequiperare illi. HufflePuff tenetur a gentibus iustis et fidis tamen scit illa domus adversa pati. hic invenietis homines tenaces animisque piis verique erit vestra secunda domus. adhuc tertia restat nomine dicta Ravenclaw; est vetus et sapiens et favet ingeniis. sunt hic lepos14 hominum cultorum et artes Minervae; O primeiro verso traz uma construção que as gramáticas latinas chamam de oração infinitiva. Os verbos latinos que indicavam pensamento/declaração eram formados através deste tipo de oração, em que o verbo complemento do principal (putatis) vem no infinitivo (esse, ser) e o sujeito do verbo no infinitivo aparece no caso acusativo (me pulchrum, eu bonito/belo/formoso). Em português temos este tipo de construção, ainda que não muito utilizado pelos falantes – como, por exemplo, “você acredita existir um Deus?” em contraste com “você acredita que existe um Deus?”. 14 Preferimos utilizar aqui o termo lepos,oris, que parece se encaixar melhor no contexto, como tratado acima. 13 414 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 decet discipulos similes hic habitare. forsitan in Slytherin invenientur veri amici; improbus es? fallax? haec erit apta domus. ut habeant rata vota patrandum est scelus omne gentibus his; quaerunt nil nisi lucra sua. non iubeo vos me imponere verticibus nec velim tolerare rem pectoribus firmis! ‘eritis incolumes tutamine petasi,’ dicunt, ‘cum careat manibus, tamen cogitat ille.’ 415 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 aPÊNDICE C Vocabulário Discipuli: alunos, discentes, discípulos Si: se Putatis: vocês pensam, acham, julgam Me: eu; me (oblíquo) Esse: ser (infinitivo) Ingenium: talento, inteligência, engenho Valet: prevalece, é eficaz Plus: mais Externa: externa; do lado de fora; estranha; estrangeira Specie: espécie; esplendor; beleza; aparência Nam: pois, porque Quaeritis: vocês buscam, procuram; Petasus: chapéu Toto: em todo, no todo Orbe: orbe; círculo; mundo, terra Nusquam: em lugar algum; em nenhuma ocasião Melior: melhor Invenienduserit: será encontrado; será achado Vobis: por vocês; para vocês Lautitias: luxo, luxuosidade; elegância, suntuosidade Nolo: não quero, não desejo, Tegmenta: proteção; qualquer coisa que se coloque na cabeça, chapéus Rotunda: redondo Neve: nem Tradite (imperativo): entreguem; desistam; cedam Mi: para mim, a mim Distribuens: que distribui; destribuidor Adsum: estou presente; estou aqui Cui: o qual Datur: é dado; é dito; é falado Alios: outros, os demais Exsuperare: exceder; ser superior; valer mais Scrutatur: explora, busca, procura Pectora: peito; tórax; coração, sentimentos; alma, mente Ostendere: revelar, mostrar, apontar Quaesit: qual seja Vaticans: eu anuncio, eu proclamo Cuique: para quem Domusoptima: a melhor casa Forsan: talvez, por acaso Habebit: terá Vos: vocês Iuvenesalumnos: jovens alunos Fortes: os fortes, vigorosos, firmes, corajosos, bravos Semper: sempre Incoluere: habitar, morar, permanecer Hancdomum: nesta casa Illagensgenerosa: esta casa nobre Hominum: de homens Est: é (3ª pessoa singular de “ser”) Ferox: feroz, selvagem Nulladomus: nenhuma casa Potest: pode, é capaz de Aequiparare: igualar, alcançar, ser igual a Illi: a eles, em relação a eles Tenetur: é ocupada, é representada A gentibus: por pessoas Iustis: justas, corretas; louváveis Fidis: fiéis, leais Tamen: entretanto, contudo, todavia Scit: sabe-se, conhece-se Adversa: contrária a, adversa Pati: ao sofrer; à dor Hic: aqui, para cá, para aqui Invenietis: encontrarás, acharás Homines tenaces: homens tenazes/resistes/obstinados Animisquepiisverique: de almas pias/bondosas e verdadeiros [homens] Erit: será, estará Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 391-416, 2020 Vestra: de vocês, vossos Quodque: e que Nequit: não pode; é incapaz Videre: ver (infinitivo) Nil: nada Latet: oculto, escondido Incapite: na cabeça, na mente Impositus: colocado, posto; artesque: e as artes Minervae: de Minerva; Decet: Convém, deve, é conveniente Similes: semelhantes, iguais Habitare: habitar, morar, residir Forsitan: Talvez Invenientur: serão encontrados, serão achados Possum: eu posso 416 Secunda: segunda Adhuc: ainda Restat: resta, sobra Tertia: terceira Nomina dicta: dita de nome, com o nome Vetus: velho, longevo, vetusto Sapiens: que sabe, sábio, inteligente Favet: favorece, interessa a, Ingeniis: aos engenhosos, sábios, talentosos Sunt: estão; são Lepos: elegância; sagacidade; Hominum cultorum: de homens cultos/sábios Veriamici: os verdadeiros amigos Improbus: mau, perverso; ávido, insaciável Es: és? (2ª pessoa singular de “ser”) DossIÊ DIsCurso, MEMórIa E MIgraçõEs Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 apresentação Dossiê “Discurso, memória e migrações” Ida Lucia Machado Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte. Minas Gerais / Brasil idaluz@hotmail.fr https://orcid.org/0000-0003-1550-9523 Glaucia Muniz Proença Lara Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte. Minas Gerais / Brasil gmplara@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-3813-1850 Béatrice Turpin Université de Cergy-Pontoise, Cergy-Pontoise / França beatrice.turpin@free.fr https://orcid.org/0000-0003-3659-6603 Para os integrantes do Núcleo de Análise do Discurso – NAD da FALE/UFMG, o termo “discurso” é ligado às interpretações ou, mais precisamente, às análises feitas por diferentes pesquisadores, dentro da disciplina que se convencionou chamar Análise do Discurso (abreviadamente, AD). Mas, desde a fundação do NAD, cujas atividades remontam há mais de 25 anos, sempre levamos em conta que não há uma única metodologia de AD, mas sim várias. Ainda que o NAD conte com a presença e a influência marcante de Patrick Charaudeau e de sua teoria Semiolinguística em seus primeiros 10 anos de funcionamento, consideramos, como ele, que todas as teorias que trabalham o discurso no âmbito da Linguística são boas e devem ser respeitadas. Não existe no NAD uma vertente que despreze esta ou aquela teoria. Isso tem contribuído bastante para o crescimento do Núcleo e, sobretudo, para a eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.419-432 420 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 efetivação de um dos principais objetivos que propusemos em nossos dois projetos aprovados pelo Programa CAPES/COFECUB (1994/1998; 2000/2004): transformar a Faculdade de Letras da UFMG em um polo de importância para o ensino e difusão da AD, no país e fora dele. Esse é um dos motivos de orgulho dos membros do NAD: a AD (ou, mais especificamente, as ADs) que praticamos e divulgamos por meio do referido Núcleo e de nossa pós-graduação em Estudos Linguísticos tornou-se bastante forte não só em Minas Gerais, mas também em vários outros estados do Brasil e é muito bem vista pelos nossos colegas franceses, portugueses e latino-americanos. Estamos conscientes de ter tomado uma posição um tanto quanto ousada ao sugerir um dossiê para a Revista de Estudos da Linguagem da FALE/UFMG que contemplasse três pontos nevrálgicos dos fenômenos sociais nos dias de hoje: discursos, memórias e migrações. Os três pontos geralmente imbricam-se, mas podem também dar origem a estudos que privilegiem mais um ponto do que outro. Nossa ideia de base foi, então, a de sugerir a nossos colegas, autores dos artigos que compõem este dossiê, que, ao submeter seus trabalhos à revista, tomassem os três elementos citados em sua conjugação, continuidade ou descontinuidade. Talvez o leitor sinta falta da menção explícita de uma dada teoria da AD em algumas das contribuições que apresentaremos mais adiante. No entanto, pedimos-lhe para considerar que o trabalho teórico de leitura/ interpretação – próprio da AD em seu todo – está inserido em cada um dos artigos, mesmo que nas entrelinhas. Antes de passar à apresentação desses trabalhos, gostaríamos de aqui deixar nossas considerações sobre os pontos que destacamos para constituir o dossiê em pauta. Comecemos pelo “discurso” ou, mais especificamente, pela “Análise do Discurso”. Trata-se de uma teoria interdisciplinar e, por isso mesmo, suscetível de convocar diferentes conceitos vindos de outras disciplinas. Ao considerar que os estudos e interpretações analítico-discursivas não podem ser monolíticos, fechados em uma única disciplina, postulamos que eles são atravessados ou se deixam atravessar, de modo consciente ou não – para o sujeito-enunciador ou para aquele que toma a palavra em determinado discurso – por uma multidão de signos e conceitos provenientes de outros lugares, para além daqueles postulados pelas Ciências da Linguagem. Os textos que interpretamos, enquanto analistas de discursos, carregam, pois, um dialogismo de base que faz com que busquemos, muitas vezes, opiniões Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 421 partilhadas por outras disciplinas e entre elas, aquelas vindas das Ciências Humanas, como a História, a Filosofia, a Sociologia e a Antropologia, entre outras. Dentro desse modo de conceber a AD, não podemos deixar de citar aqui parte de um dos escritos de Charaudeau, que enfatiza, justamente, essa “reunião e troca de saberes” que julgamos essenciais em todas as análises que tomam o discurso como seu objeto de estudo. Assim, ao discorrer sobre a interdisciplinaridade, o teórico chega à seguinte conclusão: Mas penso, aqui, mais na necessidade de usar uma abordagem dialógica (intertextual ou interdiscursiva) para interpretar os resultados de certas análises de discurso. Por exemplo, quando analisamos um corpus composto de textos políticos, não podemos fazê-lo sem recorrer aos escritos da filosofia política [...]. Outro exemplo: quando analisamos a maneira pela qual as mídias transmitem os conflitos armados ou as controvérsias sociais, [sentimos] a necessidade de buscar em outros escritos os imaginários que circulam, como no caso de guerras, da bioética, da laicidade etc. O movimento, aqui, é o de observação, de comparação [...], cuja pertinência depende das escolhas do sujeito analisante, em um trabalho interpretativo e de natureza subjetiva. Mas tal trabalho é a condição para a produção de uma interpretação que consiste, segundo o princípio hermenêutico, em destacar o que está escondido, o que é invisível à observação empírica. Essa é a função crítica de qualquer análise das ciências humanas e sociais, função não restrita a uma única teoria em particular. (CHARAUDEAU, 2013, p. 39-40) O pesquisador que se interessa por discursos sabe que o importante na interdisciplinaridade reside no fato de se observar como um conceito, uma noção que parece ter nascido na AD é, na verdade, algo já utilizado em outras disciplinas e procurar entender/identificar/explicar esse jogo de empréstimos e reutilizações, pois, “qualquer uso de noções ou hipóteses vindos de uma outra disciplina sem questionamentos pode gerar críticas recíprocas” como o afirma Charaudeau (2013, p. 42). Em suma: empréstimos/trocas sim; mas desde que sejam explicadas as suas origens e sua imbricação com a AD. Em outras palavras, ao sugerir o termo “discurso” como um dos elementos do dossiê em pauta, buscamos enfatizar como ele recobre, 422 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 nos dias atuais, uma vasta gama de teorias diferentes, cada uma delas, é claro, com suas especificidades. Assim, o que tínhamos em mente seria oferecer ao leitor um panorama diversificado do modo pelo qual alguns autores (no Brasil e em outros países, como França e Colômbia) observam e analisam diferentes discursos, cada um deles recorrendo a diferentes categorias e metodologias mas, tendo como ponto comum o debruçar-se sobre o discurso como objeto de averiguação e estudo. Mas, afinal, o que seria o “discurso”? Sem a pretensão de esgotar a definição de um objeto tão complexo como esse, podemos apontar algumas de suas características, de acordo com Maingueneau (2001, p. 169-172). Segundo ele, a) o discurso é uma organização situada para além do frase, o que significa que ele mobiliza estruturas de uma outra ordem que as da frase; b) o discurso é uma forma de ação sobre o outro e não uma mera representação do mundo; c) o discurso é, fundamentalmente, dialógico, ou seja, é uma “troca” entre parceiros, sejam eles virtuais ou reais. Nesse sentido, toda enunciação é marcada por uma interatividade constitutiva; d) o discurso é contextualizado, não sendo possível atribuirlhe um sentido fora do contexto em que é produzido e no qual intervém; e) o discurso é assumido por um sujeito, um EU que se coloca como fonte de referências pessoais, temporais e espaciais e, ao mesmo tempo, assume atitudes em relação ao que diz e em relação a seu coenunciador (questões ligadas à modalização), não sendo, porém, o senhor de sua fala, que é regulada pelo dispositivo comunicativo de onde ela provém; f) o discurso, como todo comportamento, é regido por normas; g) o discurso só adquire sentido na sua relação com outro(s) discurso(s), isto é, ele se inscreve no bojo do interdiscurso, não devendo ser tomado de forma isolada, como um todo fechado em si mesmo. Assim, os discursos produzidos em um dado grupo social são o produto de atores histórico-sociais que se dirigem a outros atores histórico-sociais. A AD volta-se, pois, para a problemática da alteridade: o sujeito só fala e só se define quando se dirige a um outro. Nesse sentido, podemos falar de um “contrato de comunicação” que rege as relações que se instauram entre os parceiros da troca discursiva. Mas a comunicação só se produzirá – é preciso destacar – se esses parceiros compartilharem o mesmo sistema de valores, o que faz com que essa AD, tomada em sentido amplo ou assumida no plural (ADs), busque identificar, nos textos que examina, as forma de representação desse saber comum. A(s) AD(s) situa(m)-se, pois, numa problemática do reconhecimento, ou seja, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 423 a de identificar as marcas enunciativas da superfície dos textos para, a partir delas, retirar interpretações sobre os sistemas de significação (os discursos) que são subjacentes a esses índices. Vejamos agora o segundo elemento dos três que propusemos. A “memória” implica tempo, temporalidade. Como explicar tal noção? Para Ricœur (apud GRONDIN, 2016, p. 100), o tempo reenvia à narrativa e esta reenvia ao tempo; há uma circularidade em torno desses dois elementos, ou seja: “O tempo torna-se um tempo humano quando é articulado de maneira narrativa, e a narrativa torna-se significativa na medida em que ela desenha os traços de nossa aventura temporal” (ib.). E esse recuo no tempo, que todo pesquisador toma ao escrever um artigo, é gerenciado pelo recurso à memória: memória dos livros já lidos, memória dos estudos já feitos. E quando o pesquisador, enquanto autor, escreve sobre um outro, ele se torna, de certa maneira, “dono” do modo de pensar desse outro quando descreve e narra suas ações ou os acontecimentos que pontuaram a vida desse terceiro. Mas, no âmbito da AD, ao unir discurso e memória, como bem o lembram três pesquisadores dos estudos discursivos: [...] desde Courtine (1981), não se trata de retomar o trabalho do historiador para “recontar” a história. A pesquisa em Análise do Discurso, tanto para esse autor quanto para Michel Pêcheux, é um empreendimento que se faz ao lado da história, orientandose, contudo, para um outro caminho: o discurso – aspectos situacionais de sua emergência, a configuração e efeitos possíveis dos gêneros, os sujeitos e suas intencionalidades, e as estratégias de encenação discursiva. Essa corresponde também à perspectiva semiolinguística, de Patrick Charaudeau, para quem a memória discursiva pode ser percebida em três dimensões: uma memória de situações – ritual religioso, escrita jornalística, eleições municipais etc.; uma memória de signos – signos verbais e não verbais em uso na comunicação cotidiana; uma memória de discursos – os discursos sociais efetivamente circulantes e compartilhados numa determinada época e local. (MENEZES; FLAUSINO; MARQUES MENEZES, 2015, p. 25) Os referidos autores enfatizam também que a memória não deve ser vista como um acesso que sinaliza a “essência do acontecido, mas traços e flashes que nos permitem perceber interações entre objetos distintos, pois, mesmo os semelhantes, serão outros no tempo e no espaço” 424 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 (MENEZES et al., 2015, p. 25), opinião com a qual concordamos. A memória não é uma ponte direta para o que absorvemos ou vivenciamos. Ela toma, por vezes, desvios inesperados. A memória, aliás, tem sido objeto de inúmeros estudos nesses últimos vinte anos pelo que pudemos observar. Como ela age? Onde ela se situa? Eis algumas questões que que têm feito parte de pesquisas não somente de analistas de discurso, mas também de neurologistas e filósofos, entre outros. Assim, Chapouthier (2014), em um de seus vários escritos sobre o assunto, explica que há memórias e memórias. Algumas inconscientes, outras implícitas ou procedurais, conforme o contexto vital daqueles que as utilizam. Entre as procedurais, ele menciona os hábitos decorrentes de um estímulo, os condicionamentos que adquirimos (andar de bicicleta, digitar etc.). E entre as memórias declarativas – que interessam mais de perto aos pesquisadores de AD –, a memória semântica (a que nos leva a aprender/memorizar várias regras de comportamentos sociais); a memória episódica – que é a que chamamos comumente de “memória”, ou seja, a que nos advém com a lembrança de certos fatos do passado. E, finalmente, o neuro-filósofo cita a memória autobiográfica, que, segundo ele, “permite, ao longo de nossas vidas, nos lembrarmos de quem somos. Ela nos dá uma identidade individual ao longo do tempo e combina elementos semânticos com episódicos”. (CHAPOUTHIER, 2014, p. 37, tradução nossa). Chegamos, finalmente, ao terceiro (sub)tema: o fenômeno social (e universal) das migrações. Como já se sabe há grupos de seres humanos que relutam em sair do lugar onde nasceram e cresceram. Sentem-se mal, inseguros, fora de casa e mesmo de seus bairros, de suas cidades, de seus países. Contrariamente a eles, existem aqueles que são, por natureza, nômades: citemos entre eles, os ciganos, os peregrinos, os vendedores ou viajantes comerciais, os turistas (mais ou menos afortunados) etc. No entanto, nos últimos tempos (desde a Segunda Guerra Mundial) assistimos ao deslocamento de populações inteiras como a dos sobreviventes da Shoah que fundaram um Estado (Israel). Mas, antes deles, na Idade Média europeia vários grupos também migravam para escapar a perseguições várias e a epidemias (fome, peste). Avançando um pouco no tempo, o século XVI assistiu à descoberta de novos mundos, empreendida sobretudo por navegadores portugueses, italianos e espanhóis. Evidentemente, isso motivou grandes deslocamentos de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 425 populações que fundaram novos Estados, como os ingleses na América do Norte, os portugueses no Brasil etc. Nos dias de hoje, presenciamos outra leva de grupos que buscam atingir a Europa, que se sente mais ou menos incomodada, mais ou menos clemente com essas chegadas em massa de seres humanos que fogem das lutas e da miséria em seus países de origem. Vários migrantes subsaharianos já morreram ao largo da ilha de Lampedusa na Itália: entre eles, jovens, mulheres, crianças... Há muitas crises que agitam o planeta, vindas de países em guerra (como a Síria), de povos perseguidos (como os Curdos), sobreviventes de conflitos e governos como os muitos que há na África. No Brasil, lembramos a recente migração em massa de venezuelanos que sofrem os efeitos do regime ditatorial iniciado, em seu país, por Hugo Chávez e intensificado por Nicolás Maduro. Esses aspectos são mais do que suficientes para atestar que temos visto, nos últimos anos, um recrudescimento da chamada “migração de crise” (CLOCHARD, 2007) como reflexo de uma série de guerras e crises econômicas, sociais, políticas e étnicas que assolam o planeta. Assistimos, assim, a uma mobilidade de grandeza jamais vista que, com suas especificidades e contradições, “reformata” o nosso mundo, causando-nos perplexidade como fenômeno ainda não completamente compreensível. Se as motivações que levam a esses deslocamentos podem interessar-nos como seres humanos e pesquisadores, também os movimentos contrários à mobilidade devem chamar nossa atenção, na medida em que eles geram reflexões, de um lado, em torno dos direitos humanos e, de outro, acerca dos discursos nacionalistas e xenófobos. Nessa perspectiva, muitos pesquisadores, de diferentes áreas (Ciências Políticas, História, Sociologia, Antropologia e, claro, AD), têm desenvolvido trabalhos relevantes sobre o fenômeno mundial das migrações, explorando aspectos que vão de suas causas e consequências aos discursos (favoráveis ou desfavoráveis) que ele engendra, entre tantos outros aspectos passíveis de ser estudados. Sabendo, pois, que a situação política, econômica e/ou cultural é um fator determinante para o deslocamento, parece-nos normal que jovens ou grupos de jovens se mobilizem e mudem de seus países de origem nos dias de hoje, realizando uma moderna Odisseia, se pensarmos no modelo clássico do mitológico Ulysses. Mas, além das migrações que constituem as notícias de destaque nas mídias, existem outras, mais dissimuladas, como a de grupos que vivem em determinado local de uma 426 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 cidade e que “são convidados” por autoridades em nome do progresso (construção de edifícios, de shoppings etc.) a se mudarem, a realizar uma espécie de deslocamento em nome desse progresso imobiliário. Enfim, reunindo os três conceitos: discurso, memória e migrações, tentamos organizar um pequeno painel que possa mostrar os pensamentos e ideias de diferentes colegas sobre a questão. Cabe-nos ainda dizer que este dossiê surgiu como um dos resultados das Cátedras Franco-Brasileiras da UFMG. Em 2018, tivemos um projeto centrado nessa mesma temática que foi contemplado pelo referido edital. Pudemos, desse modo, contar com a presença, na FALE/ UFMG, da Profa. Béatrice Turpin (Universidade de Cergy-Pontoise França) como professora convidada, tendo como anfitriã, na UFMG, a Profa. Ida Lucia Machado, com o apoio da então coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos Linguísticos (PosLin), Profa. Glaucia Muniz Proença Lara. A vinda da Profa. Béatrice Turpin resultou também em um acordo de cooperação entre a UFMG e a UCP, o que, com certeza, vem somar-se a outros esforços em busca da internacionalização de nossa Universidade. Passemos, então, à apresentação dos artigos que compõem o dossiê. A ordem que adotamos é aleatória, dada a diversidade dos textos, dos conceitos mobilizados e das metodologias utilizadas pelos autores. No artigo “Sentidos de ‘imigrante’ em enunciados verbovisuais no jornalismo francês”, Grenissa Bonvino Stafuzza e Marcos Lúcio de Sousa Góis analisam duas charges, publicadas no jornal francês Le Monde e compartilhadas pelo blog francês GalliaWatch, cujo tema é o episódio de salvamento de uma criança empreendido pelo imigrante malinês Mamoudou Gassama, em Paris, em maio de 2018. Tomando esses enunciados verbovisuais na perspectiva dialógica da linguagem proposta pela teoria bakhtiniana e, portanto, situando-se numa perspectiva mais ampla da Análise do Discurso, os autores buscam resgatar a memória do imigrante (re)construída pelo discurso midiático/jornalístico atual em um diálogo histórico com a relação entre a França e suas ex-colônias (no caso, Mali). Se, de um lado, o imigrante aparece como um herói ou, pelo menos, como alguém útil para a sociedade que o acolheu, permitindo a “espetacularização” política de seu ato, de outro, não se apagam os sentidos que o relacionam a um “ser menor” que, com sua situação regularizada ou não, será sempre imigrante, o que não raro está atrelado a ideias como a de clandestinidade e a de fora da lei. Assim, considerando Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 427 o que já foi enunciado sobre o imigrante e o que poderá ser ainda, o que vemos são sentidos que se deslocam de herói a criminoso, apontando para uma memória não una, mas plural, polissêmica. Já Alexandre Marcelo Bueno em seu artigo, intitulado “Imigrantes japoneses e a língua portuguesa: um caso de preconceito linguístico”, apresenta, à luz da Semiótica Discursiva francesa, considerações de como os imigrantes asiáticos e seus descendentes no Brasil ainda sofrem preconceito linguístico. Analisando reportagens publicadas da segunda metade do século XX – revistas O Cruzeiro (1958) e Realidade (1966) – até os dias atuais – jornal Folha de S. Paulo (2002) – observa a constante sanção negativa que sofrem, direta ou indiretamente, imigrantes japoneses e estudantes de origem asiática em relação ao seu uso “particular” da língua portuguesa, mesmo que, por outro lado, eles sejam avaliados positivamente como trabalhadores qualificados (no passado) e como estudantes dedicados e disciplinados (no presente). Ressaltando que a língua é um dos principais elementos para a construção da identidade do indivíduo e de seu grupo social, assim como para a percepção da alteridade, o autor mostra como, a partir daí, ela (a língua) pode ser igualmente utilizada como forma de preconceito, sendo o imigrante em foco considerado como mau cumpridor de um suposto contrato estabelecido entre ele e o país que o acolheu (no caso, o Brasil): o contrato do “bom uso” da língua nacional. Em “Memorialización y conflito armado: la construction de narrativas para la paz en Colombia”, Neyla Graciela Pardo Abril propõe, à luz dos estudos críticos do discurso multimodal e multimidiático (ECDMM), uma reflexão e uma aplicação teórico-metodológica sobre narrativas midiáticas (storytelling), formuladas em El Tiempo.com e publicadas nas edições especiais do jornal, que se voltam para a construção da paz na Colômbia, posteriormente ao acordo com as FARC/ EP. Trata-se, segundo a autora, da narrativa que as mídias produzem como caminho para a reconstrução do tecido social. No artigo apresentado, Pardo analisa, como estudo de caso, a narrativa “A qué sabe la paz”, publicada em 09/06/2017, no referido jornal, sob a responsabilidade da jornalista Perla Toro Castaño. A reflexão empreendida sob a égide dos ECDMM mostra que as memórias coletivas são práticas discursivas múltiplas, nas quais as representações sociais sobre um passado comum são usadas para construir e manter a coesão e a identidade de grupos situados sócio-historicamente em um momento presente e que projetam o 428 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 futuro pautados em marcos como direitos, dignidade, respeito e bem-estar. Nessa perspectiva, as representações sociais da história descrevem, com frequência, os conteúdos da memória coletiva como se fossem únicos e homogêneos, oficializando uma versão que não contempla, especialmente, os setores mais marginalizados da sociedade. A pesquisa apresentada baseia-se no princípio de que as mídias e seus suportes tecnológicos elaboram modos, gêneros e representações (entre eles a storytelling) que criam e comunicam concepções do passado. Quanto ao texto de Toro Castaño examinado, percebe-se a storytelling como uma narração de eventos da vida de uma pessoa, ou seja, uma narração subjetiva que, ao ser expressa e ressignificada, torna-se intersubjetiva. Assim, a história contada pela jornalista é a de Daniela Delgado Portila, tomada como “sujeito modelo”, na medida em que, superando os obstáculos próprios da realidade colombiana, torna-se, graças a seus esforços pessoais, uma empresária de sucesso na área da gastronomia, alcançando uma vida digna dentro do sistema econômico vigente (neoliberal). A construção da axiologia neoliberal se propõe e se socializa, portanto, como a condição para que a paz seja alcançada. No artigo “Living on the edge of African dreams: New identities for African and African Diaspora Caribben students in Brazil”, Ricardo Gualda trata dos estudantes de países africanos e do Caribe que vêm para o Brasil por intermédio do Programa PEC-G. Esses estudantes, em sua maioria (75%), já falam português em seus países de origem e, portanto, são encaminhados diretamente para as universidades onde farão seus estudos de graduação em um período de, pelo menos, 4 anos. O restante (15%) passa, em primeiro lugar, por um curso intensivo de português de aproximadamente 8 meses, que é oferecido por 20 universidades no Brasil, entre as quais a UFBA, com vistas à sua aprovação no exame Celpe-Bras. O artigo em foco analisa as experiências desses jovens africanos e caribenhos no seu processo de adaptação ao Brasil e de aprendizagem do português. Uma primeira parte do artigo é dedicada à descrição do curso de português da UFBA, cujas linhas mestras são: “aprender a partir da diversidade”, “aprender a aprender” e “aprender com base em experiências reais”. Nesse sentido, o curso não se pauta em livros, testes ou ensino de gramática e vocabulário, mas em projetos, visando, principalmente a que os estudantes desenvolvam suas próprias estratégias de aprendizagem. A segunda parte do artigo volta-se para entrevistas feitas pelo autor, que é também coordenador do curso, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 429 com 25 estudantes de países da África e da diáspora africana (Gana, Namíbia, Jamaica e Kênia) que são originalmente falantes de inglês. Essas entrevistas foram registradas, transcritas e examinadas a partir dos métodos da Análise Crítica de Discurso e da análise psicossocial. Pautada no eixo língua, nacionalidade e raça, a análise empreendida por Gualda buscou identificar como tais estudantes percebem as questões de identidade e alteridade e como se integram à nova cultura, sem perder seu próprio senso de identidade. Em seguida, o autor apresenta e discute as respostas dadas pelos entrevistados às questões propostas. Entre outros aspectos, chama a atenção, por exemplo, o fato de que eles, vendo-se numa posição de relativo privilégio e por terem como referência o Apartheid da África do Sul, tendem a tomar o racismo no Brasil de forma mais branda, chegando mesmo a desculpá-lo. Aparece também, no conjunto de respostas analisadas, a imagem estereotipada do brasileiro cordial e prestativo, aspecto enfatizado por todos os estudantes participantes da pesquisa, o que, de certa forma, mostra-se incoerente com o medo que muitos dizem ter do crime e da violência tão presentes no cotidiano de nosso país. Marie Madeleine Bertucci, no artigo intitulado “Mémoires de l’immigration. Proposition pour une étude sociolinguistique des parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France contemporaine” examina dois corpora. O primeiro, formado por excertos de um estudo feito pela autora ao examinar respostas formuladas por alunos do ensino médio (Lycée) de duas escolas de formação profissional, ambas localizadas em Saint-Denis, município francês situado no departamento de Seine-Saint-Denis, na região da Île-de-France. Os alunos responderam à pergunta lançada no título de um programa de pesquisa do Ministério da Cultura e da Comunicação da França: Mémoire de l’immigration: vers un processus de patrimonialisation? O segundo corpus é formado por excertos retirados do livro Ma part de Gaulois (CHERFI, 2016). Tomando por base esses escritos, Bertucci tenta definir o que chama “processo de redução” que atinge comunidades formadas por migrantes. Assim, ela mostra como essas comunidades são estigmatizadas, segregadas e discriminadas, o que fatalmente contribuirá para a criação de territórios demarcados, situados na periferia, onde esses grupos se concentram, falam e vivem. Como é de se esperar, esse confinamento aberto acaba gerando situações não favoráveis aos habitantes. A autora não esconde seu receio de que tais discriminações/separações fatalmente irão gerar/ 430 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 aumentar a marginalização e a exclusão dos migrantes que, no entanto, deveriam ser melhor integrados à vida francesa em geral. O título “Deslocamento forçado e permanência vigiada, território e fronteira: metáforas de espaço na representação da situação de rua na Folha de S. Paulo”, do artigo de Viviane de Melo Resende, tem o poder de já enviar o leitor para o difícil tema que nele será apresentado. Tratase dos resultados de um projeto de pesquisa, cujo objetivo maior foi o de identificar, no jornalismo online, mais especificamente na plataforma digital do jornal Folha de S. Paulo (folha.uol.com.br), durante um período de três anos, representações das ações e políticas públicas (APP) voltadas para a população em situação de rua (PSR). Como metodologia, a pesquisadora adotou a teoria dos estudos críticos do discurso e a análise interdiscursiva de políticas públicas. Pôde, assim, verificar as recorrências e padrões de representação metafórica das APP dirigidas à PSR nos textos jornalísticos estudados. Melo Resende tomou como foco especial as metáforas espaciais ali utilizadas, que lhe mostraram o porquê de tantas mudanças de grupos de PSR na cidade de São Paulo. Essas pessoas são obrigadas a se deslocarem de uma parte para outra da cidade por causa da perversa desculpa, vinda de órgãos poderosos, de que os locais onde habitam serão “revitalizados”, logo devem ser desocupados. Os verdadeiros sentidos de muitas APP são ocultados. O artigo em pauta é fruto de uma reflexão cuidadosa e válida sobre a desigualdade do/no país. No artigo intitulado “Os enquadres discursivos do acontecimento migratório: narrativização, banalização e estigmatização”, Wander Emediato aborda o tema da imigração. Coloca-o, em primeiro lugar, sob o crivo da História, examinando a questão tanto no Brasil quanto na França e realizando, assim, um estudo comparativo, que é caro à Análise do Discurso Semiolinguística. Para tanto, conduz o leitor a uma viagem, por meio da qual ele pode assistir à chegada dos imigrantes europeus no Brasil, no século XIX. Emediato lembra, em uma crítica bem colocada, como o imaginário social da imigração no Brasil foi erroneamente assumido por narrativas históricas romantizadas e como, nos dias de hoje, uma nova narrativa – mais realista – se delineia. O autor ressalta dois pontos importantes ligados à questão das (i)migrações: a banalização do imigrante e a sua estigmatização no país que o acolhe. As mídias – tanto as brasileiras quanto as francesas – têm-se amparado no assunto, tratando-o algumas vezes de modo convergente, outras, de modo divergente. Por Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 431 exemplo, o problema da ameaça à identidade nacional ainda não é visto de forma tão exacerbada no Brasil como acontece na França. O artigo coloca o leitor face a face com a questão migratória – a do passado e a atual – ou seja, com o problema dos grandes deslocamento de grupos que são obrigados a buscar um novo país ou local de acolhida, suscitando as mais diversas reações ao ser tratados pelas mídias e pelas instituições do Estado. Yeny Serrano é a autora do artigo “Les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite pour la paix en Colombie”. Ela analisa discursos em que o povo colombiano, usando a plataforma Twitter, manifestou-se (sim/não) em referência ao plebiscito pela paz, proposto pelo governo da Colômbia em 2016. Segundo as análises de Serrano, o discurso do plebiscito acabou por se inscrever em uma continuidade própria dos discursos de guerra ou, no caso, do discurso advindo do confronto armado que ocorreu na Colômbia em luta contra as FARC. A autora explicita que os que disseram “sim” serviram-se da supracitada plataforma, principalmente para anunciar ou comentar os acontecimentos que envolveram a campanha. Ela lembra também que, após a assinatura do acordo de paz, a violência política e armada aumentou e só se acalmou nos últimos meses das negociações de paz. Mesmo se a proposta desse acordo foi aclamada internacionalmente, ela suscitou bastante controvérsias, ameaças, ataques e mesmo mortes na Colômbia. O artigo discorre também sobre a popularidade do Twitter, acessível a atores sociais das mais diferentes classes. De modo geral, o dispositivo foi aproveitado pelas duas facções, tanto por aqueles que queriam a paz como pelos que eram contrários a ela. A autora termina o artigo com uma crítica às mídias sociais que, segundo ela, não podem nem devem se colocar no mesmo patamar que os discursos jornalísticos, já que estes têm uma deontologia que é respeitada e regras que são seguidas. Com o conjunto de artigos aqui apresentado, esperamos ter trazido ao leitor uma rápida visão de algumas maneiras de analisar discursos hoje nas universidades e centros de pesquisa do Brasil e do exterior. Agradecemos a nossa colega Heliana Mello, editora-chefe da Revista de Estudos da Linguagem, a oportunidade que nos foi dada com a publicação deste dossiê. 432 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 419-432, 2020 referências CHARAUDEAU, P. Por uma interdisciplinaridade “focalizada” nas ciências humanas e sociais. Trad. Renato de Mello e Renata Aiala de Mello. In: MACHADO, I. L.; COURA-SOBRINHO, J.; MENDES, E. A transdisciplinaridade e a interdisciplinaridade em estudos da linguagem. Belo Horizonte: NETII/FALE/UFMG, 2013. p. 17-52 CHAPOUTHIER, G. Jusqu’à la famille nous conditionne-t-elle ? Sciences Humaines, Lille, v. 264, p. 36-37, nov. 2014. GRONDIN, J. Paul Ricœur. Paris: PUF, 2016. (Coll. Que sais-je?) CLOCHARD, O. Les réfugiés dans le monde entre protection et illégalité. EchoGéo, [S.l.], v. 2, p. 1-8, sep./nov. 2007. Doi: https://doi.org/10.4000/ echogeo.1696. Disponível em: http://echogeo.revues.org/1696. Acesso em: 15 out. 2019. MAINGUENEAU, D. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001. MENEZES, W.; FLAUSINO, G. C.; MARQUES MENEZES, R. Discurso, identidade e memória na Região dos Inconfidentes: temas e objetos em Estudos da Linguagem. In: PAULA DOS SANTOS, S.; MENEZES, W. Discurso, identidade, memória. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2015. p. 15-34. RICOEUR, Paul. Temps et récit. Paris: Seuil, 1983-1985. t. I, II et III. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 sentidos de “imigrante” em enunciados verbovisuais no jornalismo francês Senses of immigrant in verbvisual utterances in French journalism Grenissa Bonvino Stafuzza Universidade Federal de Goiás (UFG), Catalão, Goiás / Brasil grenissa@gmail.com https://orcid.org/0000-0002-9077-0652 Marcos Lúcio de Sousa Góis Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Dourados, Mato Grosso do Sul / Brasil profmarcosgois@gmail.com https://orcid.org/0000-0003-0328-1509 resumo: Propõe-se neste trabalho analisar discursos sobre o imigrante, tomando-se como fundamento teórico a perspectiva bakhtiniana dialógica da linguagem, especialmente sobre a concepção de memória de futuro e estudo do enunciado. A partir de diálogos construídos na mídia jornalística sobre o imigrante, consideram-se para a análise duas charges publicadas em 2018 no jornal francês Le Monde e compartilhadas pelo blog francês GalliaWatch, que trazem como tema o episódio de salvamento de uma criança realizado pelo imigrante malinês Mamoudou Gassama em maio de 2018, na cidade de Paris. Palavras-chave: enunciado verbovisual; memória de futuro; imigração; charge; Le Monde. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.433-454 434 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 abstract: It is proposed in this paper to analyze discourses about the immigrant taking as a theoretical basis the bakhtinian perspective of dialogic language, especially on the conception of future memory and study of the utterance. From the dialogues constructed in the journalistic media on the immigrant, two charges are considered for the analysis. They were published in 2018 in the french newspaper Le Monde and shared by the french blog GalliaWatch. Both charges bring as a theme the episode of rescue of a child performed by malian immigrant Mamoudou Gassama in May 2018, in the city of Paris. Keywords: verbvisual utterance; future memory; immigration; cartoon; Le Monde. Recebido em 28 de abril de 2019 Aceito em 21 de junho de 2019 1 Introdução Propõe-se neste trabalho analisar discursos sobre o imigrante a partir de diálogos construídos na esfera midiática, pontuando entrecruzamentos de sentidos (e seus deslocamentos) e de discursos na alteridade do enunciado verbovisual “charge”. Para tanto, a materialidade de base para investigação é composta por duas charges publicadas em 2018 no jornal francês Le Monde e compartilhadas pelo blog francês GalliaWatch, trazendo como tema o episódio do imigrante malinês Mamoudou Gassama, que em maio desse ano escalou até o quarto andar de um prédio parisiense para salvar um menino de quatro anos, também de família de imigrantes,1 pendurado na sacada de um apartamento. Desde esse acontecimento, Mamoudou Gassama, até então invisível aos olhos da sociedade parisiense, recebe atenção das mídias francesa e internacional e, consequentemente, do governo francês. Compreende-se que não é possível analisar o caso como um momento isolado acerca do descaso e, ao mesmo tempo, da dívida histórica que a França tem com diversos países, em especial, as ex-colônias africanas. O garoto estava em Paris há três semanas – havia se mudado para a capital francesa vindo da Ilha Reunião, território ultramarino francês a leste de Madagascar. Disponível em: https://www.bbc.com/afrique/region-44292446. Acesso em: 22 abr. 2019. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 435 Para pensar os enunciados verbovisuais em estudo, considerase sua ação responsiva de diálogo com a história e a sociedade no que diz respeito ao tema da imigração. Entende-se que, dos enunciados que compõem uma determinada comunicação discursiva, ecoam diálogos e sentidos que apontam para uma memória do objeto que se enuncia. Nesse sentido, as respostas possíveis a respeito do imigrante, ou seja, os enunciados por vir, reverberam os processos históricos e sociais que apontam que todo e qualquer enunciado se vincula a um acontecimento social de linguagem. Assim, neste trabalho, apoia-se, com base nos estudos dialógicos bakhtinianos, na ideia de que a comunicação discursiva verbal, que envolve as diversas posições enunciativas (atos de fala de todos os tipos, enunciados concretos, produções escritas etc.), encontra-se relacionada às outras possibilidades de realização do diálogo (produções sincréticas, visuais, sonoras, musicais etc.). Sob essa perspectiva, a comunicação discursiva acontece pelo compartilhamento de elementos que possuem existência cultural e são de conhecimento dos interlocutores, sejam ou não vivenciados, e engloba todo tipo de linguagem (vocal, visual, imagética). Configurado enquanto elo da cadeia de comunicação discursiva (BAKHTIN, 2016), ao responder a outros enunciados também situados sócio-historicamente, o enunciado indica uma determinada situação de linguagem que se encontra atrelada às condições materiais da vida social dos sujeitos da comunicação discursiva. De modo mais complexo, o aspecto autônomo de acabamento do enunciado compreende sentidos que apontam para a singularidade da produção dialógica na comunicação discursiva; por isso o enunciado, nos escritos de Bakhtin e seu Círculo, apresenta-se como único e irrepetível, pois seus sentidos atuam em um movimento incessante entre cultura, história e sociedade em um ato específico de enunciar. Entende-se que a noção de enunciado é basilar nos estudos de Bakhtin e do Círculo e aparece no conjunto dos escritos do Círculo em dialogia autoral, ou seja, o conjunto de textos produzidos de 1920 a 1930, período em que o grupo se reunia, sendo os textos posteriores bakhtinianos; assim, respeita-se a autoria e a história do Círculo de Bakhtin no contexto político e cultural da Rússia soviética de regime stalinista. Desse modo, Stafuzza (2018, p. 138) aponta que “o enunciado é resultante de uma ‘memória discursiva’ [...] repleta de enunciados que já foram proferidos em outras épocas, em outras situações interacionais, as quais o locutor inconscientemente toma como base para formular seu 436 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 discurso” e, ainda, considera que “o extrato verbal e o extrato visual formam fundamentalmente uma amálgama na composição do enunciado em estudo, que também responde em uma perspectiva estética, e somente assim opera dialogicamente na discursividade midiática na qual se realiza” (STAFUZZA, 2018, p. 139). O campo linguístico, por exemplo, conceitua e analisa os enunciados com um foco que privilegia a língua. Nos escritos de Bakhtin e do Círculo, o conceito de enunciado estabelece um percurso metodológico considerando a premissa de que o enunciado é uma unidade analítica que responde a um enunciado anterior e suscita uma resposta subsequente, gerando outro enunciado. Nesse sentido, metodologicamente é importante que se estabeleça a correlação entre os enunciados em análise, pois, por meio da correlação, os sentidos emergem e acionam a dialogia da e na linguagem, configurando o projeto de dizer em questão, seja ele qual for. De acordo com Volóchinov (2017, p. 205), “a palavra é um ato bilateral. Ela é determinada tanto por aquele de quem ela procede quanto por aquele para quem se dirige. Enquanto palavra, ela é justamente o produto das inter-relações [...]”. Assim, a noção de enunciado na obra de Bakhtin e seu Círculo aponta uma ruptura com a Linguística ao fazer emergir a interação discursiva entre sujeitos ou entre sujeitos e enunciados, de caráter social e singular ao mesmo tempo, para a produção e circulação de discursos. Logo, neste artigo, considera-se o enunciado como uma unidade semiologicamente complexa e correlacionada a outros enunciados para a e na produção de sentidos do/no gênero charge sobre imigração. Ao focar o caso Mamoudou Gassama, portanto, aborda-se um processo de embate histórico mais amplo, de memória secular, entre a França e suas ex-colônias, como é o caso do país Mali, processo que se manifesta em uma sequência de atos com o passado e, para além, com o futuro,2 com outros atos perversos que perpetuam práticas de colonizar no contemporâneo, como a instauração de políticas que vetam a imigração, especialmente, políticas advindas de países colonizadores para países colonizados ou ex-colônias. “Tal como o passado não é a história, mas o seu objeto, também a memória não é a história, mas um dos seus objetos e, simultaneamente, um nível elementar de elaboração histórica.” (LE GOFF, 2013, p. 51). 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 437 2 Memória em perspectiva bakhtiniana: o outro imigrante em análise [...] uma obra não pode viver nos séculos futuros se não reúne em si, de certo modo, os séculos passados. Se ela nascesse toda e integralmente hoje (isto é, em sua atualidade), não desse continuidade ao passado e não mantivesse com ele um vínculo substancial, não poderia viver no futuro. Tudo o que pertence apenas ao presente morre juntamente com ele. (BAKHTIN, 2017, p. 363, grifos do autor) A citação bakhtiniana em epígrafe aponta a temporalidade como uma dimensão fundamental para o estudo da memória. É a temporalidade que permite que uma obra se torne permanente no futuro, em outro tempo e espaço, mantendo seus diálogos com o passado. O movimento entre passado e futuro faz com que as posições enunciativas de hoje tenham sentido no fio dialógico da história e interpelem o devir, assim como as posições enunciativas do passado podem (re)aparecer em determinados discursos hodiernos, como uma ressonância discursiva (re)significada. Desse modo, a construção do sentido de um enunciado apresenta-se nesse movimento entre passado e futuro em tempos e espaços diversos que dialogam e ecoam em outros tempos e espaços e neles produzem sentidos outros, mas que também continuam a se relacionar com o enunciado que o antecede. É desse movimento incessante que se constroem os sentidos do enunciado, bem como sua memória, os discursos que o constituem na relação com a história e com a sociedade, quem o enuncia, para quem o enuncia: amalgama-se a temporalidade com o processo de interação discursiva. Um exemplo desse diálogo entre discursos é o próprio tema do presente estudo que analisa, a partir da perspectiva bakhtiniana, enunciados verbovisuais situados na esfera midiática jornalística sobre o caso Mamoudou Gassama. Como já foi dito, não é possível analisar o episódio apenas como um momento isolado acerca do descaso e ao mesmo tempo da dívida histórica que a França tem com diversos países, em especial, países africanos em relação à colonização de terras, pessoas, culturas, línguas. Desse modo, apesar de o caso em questão ser, aparentemente, pontual, há a construção de uma memória do imigrante no discurso midiático jornalístico que aborda uma complexidade outra, de 438 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 memória secular entre a França e suas ex-colônias, como é o caso do país Mali, manifestada em uma sequência de atos com o passado e, para além, com o futuro, com outras ações que se diluem no processo de interação discursiva quando se traz o enunciado verbovisual para a análise: tornar o outro imigrante assemelha-se ao processo de servidão sobre esse outro que só tem sua ruptura em casos extremos como o heroísmo. O problema da memória aparece diluído no conjunto da obra do Círculo de Bakhtin e, no presente estudo, aborda-se a memória de modo constitutivo às noções de enunciado, interação e gênero. Sob essa perspectiva, verifica-se na charge do cartunista Plantu (Figura 1), uma denúncia do comportamento espetaculoso da administração pública da França e de Paris, com a representação do Presidente e da Prefeita, respectivamente, Emmanuel Macron e Anne Hidalgo, diante das câmeras da mídia jornalística na cobertura do salvamento da criança por Mamoudou Gassama: FIGURA 1 – Mamoudou Gassama, por Plantu Fonte: Blog GalliaWatch3 3 Disponível em: http://galliawatch.blogspot.com/2018/06/macronism-avoid-essentialalign-with.html. Acesso em: 12 fev. 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 439 O enunciado verbovisual anuncia que “Um maliano escala um prédio para salvar uma criança” (tradução nossa), apontando que, enquanto Mamoudou Gassama o escala por amor para salvar o menino, o presidente da França, Emmanuel Macron, e a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, competem de modo sensacionalista com Mamoudou diante das câmeras – a dificuldade e o medo que encontram ao escalar o prédio apresentam-se em suas faces e nos sinais transpiração – em busca do foco dos jornalistas, em uma espécie de competição pela atenção midiática. Todo este “movimento” é observado por um rato ou camundongo, que espreita a cena. Na charge, ele pode ser considerado sob um olhar simpático, pois o cartunista Plantu o emprega frequentemente em seus desenhos, como se se tratasse de seu “alter-ego”: o ratinho que denuncia é Plantu.4 Todavia, no simbolismo ocidental, o rato é um animal de conotação negativa, muitas vezes associado a pessoas de caráter duvidoso ou a entidades maléficas, como o diabo (BIEDERMANN, 1993). Esse roedor, animal de hábitos noturnos, sorrateiro e de enorme apetite e capacidade de se reproduzir, é frequentemente utilizado para representar o político corrupto, interesseiro, furtivo. A charge reforça, portanto, todo um processo de espetacularização das ações políticas, que se manifesta, quase sempre, em acontecimentos heroicos, muito mais do que na relação com um tema específico. O impacto da mídia televisiva na vida pública já foi e ainda é objeto de estudos de vários autores. A esse propósito, por exemplo, Umberto Eco afirmava Nos últimos dez anos, [...], a transmissão ao vivo apresentou mudanças radicais no que se refere à encenação: das cerimônias papais a muitos acontecimentos políticos e espetaculares, sabemos que eles não teriam sido concebidos da maneira que foram, se não tivessem existido as telecâmeras. (ECO, 1984, p. 197) O espetáculo que se encena no enunciado verbovisual aponta para a espetacularização da ação política, amparada pelo aparato midiático, sobretudo televisivo, que cerca os acontecimentos dessa natureza. Assim, menos do que uma preocupação com o tema imigração e/ou com o imigrante, ou mesmo com políticas para a imigração, o que se 4 Ver mais charges de Plantu com o ratinho em seu blog no Le Monde: http://plantu. blog.lemonde.fr/. Acesso em: 30 abr. 2019 440 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 observa é o embate entre a administração federal da França e a da cidade de Paris no sentido de quem capitalizará mais com o ato promovido por Mamoudou Gassama. A charge reforça certa lógica produtora de espetáculos da atualidade política, muito mais do que outra possibilidade de ação política. É a política midiatizada. A memória do imigrante como o herói destemido que coloca em risco sua própria vida para salvar a de outrem, que ressoa no/do enunciado verbovisual em análise, tem sua construção especialmente na literatura, concebida aqui como campo de diálogo. Por exemplo, temse nas obras Ilíada e Odisséia, de Homero,5 a personagem Ulisses (ou Odisseu, em grego) como destaque: é o herói estrangeiro o responsável por salvar pessoas e situações, demonstrando habilidade e inteligência estratégica para a luta, de modo a se destacar em terras estrangeiras, fora do seu espaço de pertencimento: por vezes é aceito no espaço do outro pelo seu conhecimento, por ser bravo, audacioso, guerreiro e, sobretudo, por suas utilidades extraordinárias. Essa memória do imigrante como herói, um ser útil, aparece dialogicamente no enunciado verbovisual em estudo, uma vez que ele destaca o rosto do herói imigrante Mamoudou Gassama, dotando-o de um semblante amoroso, acentuando o ato ético de um sujeito responsivo para com uma sociedade que, no entanto, havia anulado a sua existência até o episódio do salvamento. Essa questão ressoa em duas manchetes e nos títulos auxiliares de uma matéria e uma crônica publicadas pelo Le Monde nas seções “Société” (Sociedade) e “Idées” (Ideias), respectivamente, que trazem como destaque Mamoudou Gassama e a promessa do governo francês, a partir da repercussão internacional do ato heroico de salvamento infantil, de legalizar sua documentação, acelerando o processo de regularização migratória de modo a naturalizá-lo cidadão francês.6 As manchetes dialogam com a charge em foco e apresentam parte do funcionamento da memória do imigrante no discurso midiático jornalístico: 5 A data de criação dessas obras não é certa. Alguns pesquisadores mencionam que provavelmente sua criação tenha sido realizada em meados do século VI a.n.e. 6 A presidência francesa informou que o jovem maliano ganharia a nacionalidade francesa e faria parte dos serviços cívicos dos bombeiros da cidade de Paris, se esse fosse o desejo de Mamoudou Gassama. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=2CoD0cFmhrw. Acesso em: 7 mar. 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 441 Primeira manchete com título auxiliar da matéria publicada na seção “Société”: Mamoudou Gassama, le Malien sans papiers qui a sauvé un enfant, va être régularisé. L’homme qui a escaladé quatre étages pour sauver un enfant accroché à un balcon parisien samedi devrait intégrer le service civique des sapeurs-pompiers.7 Segunda manchete com título auxiliar da crônica publicada na seção “Idées”: Mamoudou Gassama, révélateur d’un paradoxe démocratique. Le “héros” malien est devenu français non pas pour son mérite réel, mais parce qu’il a pu jouer un rôle dans le “récit républicain”, analyse le professeur de philosophie Thomas Schauder.8 A memória do imigrante apresenta-o como aquele que é desprovido de documentos para habitar um determinado país (“sem documentos”) e, portanto, seu destaque na mídia nacional e internacional revela contradições do governo francês (“paradoxo democrático”), diante do seu “papel na narrativa republicana” francesa, que oferece regularização da sua situação de imigrante (“será regularizado”), não por ter “salvo uma criança” e consequentemente “por seu mérito real”, mas sim porque, enquanto imigrante, ele possui uma função social utilitária para o governo, que detém a autoridade para legislar sobre sua vida: dar visibilidade à questão da imigração como uma questão no âmbito das políticas públicas ou tratar o caso de Mamoudou Gassama como uma “Mamoudou Gassama, o maliano sem documentos que salvou uma criança, será regularizado. O homem que escalou quatro andares para salvar uma criança pendurada em uma sacada em Paris no sábado deve integrar o serviço cívico do corpo de bombeiros” (tradução nossa). Notícia publicada em 27 de maio de 2018 no jornal Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/societe/article/2018/05/27/aparis-un-homme-escalade-un-immeuble-pour-sauver-un-enfant-suspendu-dans-levide_5305507_3224.html. Acesso em: 10 mar. 2019. 8 “Mamoudou Gassama, revelador de um paradoxo democrático. O ‘herói’ maliano tornou-se francês não por seu mérito real, mas porque pôde desempenhar um papel na ‘narrativa republicana’”, analisa o professor de filosofia Thomas Schauder” (tradução nossa). Notícia publicada em 06 de junho de 2018 pelo jornal Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/article/2018/06/06/de-zero-en-heros-un-paradoxedemocratique_5310390_3232.html. Acesso em: 10 mar. 2019. 7 442 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 premiação pelo ato de heroísmo, engrossando o espetáculo midiático, conforme se apresenta no enunciado verbovisual da charge de Plantu, de forma apartada do viés de políticas públicas. Diante disso, observa-se que a palavra, por ter memória cultural, é carregada de sentidos que oscilam a depender de sua construção e de seu uso histórico-social. A palavra “imigrante”, por exemplo, apresentase de modo bastante complexo em diversos discursos (político, da administração pública, jornalístico, midiático, literário) e possui uma variação de sentidos. O imigrante pode apresentar-se como o herói no discurso literário, mas também como um invasor. Esse mesmo sentido de invasor para imigrante pode ser disseminado e legitimado pelo discurso político, ou pelo discurso da administração pública, por exemplo, no caso de o país adotar uma política de intolerância à questão da imigração. O termo imigrante pode ainda relacionar-se a trabalhador, sendo esse sentido construído historicamente quando se pensa a história mundial como uma história de migrações: no Brasil, por exemplo, no final do século XIX, trabalhadores de diversas comunidades internacionais – com destaque para as comunidades italiana e alemã – chegaram ao sul do país para trabalhar nas lavouras e na agropecuária em condições sub-humanas que se assemelhavam à escravidão. A situação do imigrante, que oscila entre um “estado de direito” e um “estado de fato”, já fora observada por Sayad (1998). Segundo o autor, o imigrante está condenado a uma dupla contradição, flutuando “circunstancialmente” entre o que o define de direito e aquilo que o caracteriza de fato: “não se sabe se se trata de um estado provisório que se gosta de prolongar indefinidamente” ou “se se trata de um estado mais duradouro mas que se gosta de viver com um intenso sentimento do provisório” (SAYAD, 1998, p. 3). Assim, os sentidos que emergem da palavra imigrante, entre eles, infortunadamente, o vocábulo “escravo” reverbera nos discursos político e jornalístico. Desse modo, observa-se que, apesar das diversas possibilidades de sentido da palavra imigrante, o imigrante é visto socialmente, sobretudo, pela perspectiva do país que o acolhe com políticas públicas de imigração ou o despreza com projetos antiimigração. Se, para Bakhtin, a palavra não pode ser isolada como unidade da língua, nem de seu próprio significado, então, o sentido da palavra evoca, ainda conforme o filósofo russo, uma “determinada realidade concreta em condições igualmente reais de comunicação discursiva” (BAKHTIN, 2017, p. 291). Logo, os sentidos da palavra imigrante – Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 443 sejam eles positivos ou negativos – são produzidos pela/na interação entre sujeitos, circulam socialmente a partir dos diferentes usos que se faz da palavra, sendo a memória constitutiva de sentidos da palavra em pauta nos diversos discursos: em suma, os sentidos produzidos pela memória do imigrante no discurso midiático jornalístico têm seu lugar na cultura, na história e na sociedade e são também modificados, atualizados por essas instâncias. Sob essa perspectiva, a memória revela-se intersubjetiva, pois, As tradições culturais e literárias (inclusive as mais antigas) se conservam e vivem não na memória individual e subjetiva de um homem isolado em algum “psiquismo” coletivo, mas nas formas objetivas da própria cultura (inclusive nas formas linguísticas e verbais), e nesse sentido elas são intersubjetivas e interindividuais (consequentemente, também sociais); daí elas chegam às obras literárias, às vezes quase passando por cima da memória individual subjetiva dos autores. (BAKHTIN, 2010, p. 354, nota de rodapé) Entende-se, diante dessas considerações, que a memória, vista na perspectiva bakhtiniana, por ser intersubjetiva, é, logo, culturalmente coletiva, constitutiva de valoração, uma vez que ela resulta daquilo que se transmite entre os sujeitos ou entre sujeitos e enunciados. De outro modo, “A memória é um enfoque construído do ponto de vista do acabamento axiológico; em certo sentido ela é inviável, mas por outro lado só ela é capaz de julgar a vida finda e toda presente, independentemente do objetivo e do sentido” (BAKHTIN, 2017, p. 98). A memória opera, assim sendo, em uma ótica de valores culturais e de acabamento sobre a vida, pois, “A mim não são dadas as minhas fronteiras temporais e espaciais, mas o outro me é dado integralmente” (BAKHTIN, 2017, p. 383). Nesse sentido, compreendem-se a cadeia e os elos constitutivos da interação discursiva: o acabamento valorativo sobre o imigrante atua como um fator que ajudará a constituir as memórias que se instauram sobre o imigrante e sobre as imigrações. A respeito dessa questão, sublinha-se que a palavra possui, tal qual o enunciado, memória por ser produto cultural. A charge de Plantu dialoga com as manchetes e seus títulos auxiliares publicadas pelo Le Monde sobre o caso Mamoudou Gassama, ao focar o imigrante como o herói que, por seu ato de heroísmo no salvamento espetacular de uma criança, ganha grande repercussão nas mídias nacional e internacional e, somente por isso, acaba sendo recompensado pelo governo federal com a regularização de seus 444 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 documentos na França e com a nova função de membro da corporação de bombeiros da cidade de Paris, o que legitima sua permanência no país. Ao oferecer a Mamoudou Gassama a regulamentação de seus documentos, juntamente com trabalho formal, a política francesa explora midiaticamente o acontecimento, tratando com excepcionalidade o caso do jovem maliano e mesmo a questão da imigração. Na mesma época, a título de contraponto, tramitava no parlamento francês um polêmico projeto de lei, que teve sua aprovação em 01 de agosto de 2018: trata-se da Lei n.o 2018-778, de 10 setembro de 2018, que visava controlar a imigração, estabelecer direito efetivo de asilo e a integração bem-sucedida9. É uma lei bastante criticada e controversa que desconsidera o processo histórico das imigrações na França, e, ao que parece, especialmente concebida para agilizar a expulsão de imigrantes. Diante desse contexto, a charge do cartunista Plantu explicita em seu enunciado verbovisual que o espetáculo torpe do governo diante da mídia, por meio da escalada no prédio, faz emergir sentidos que apontam para o fato de que, ao iniciar rapidamente o processo de regularização dos documentos de Mamoudou Gassama, oferecendo-lhe também trabalho formal, o governo federal o transforma de herói midiático em algo útil, ou seja, um trabalhador francês naturalizado, o que coloca em diálogo: i) as várias possibilidades de sentidos da memória sobre o imigrante: herói, trabalhador, invasor; ii) a destreza midiática do político (no caso, Emmanuel Macron), denunciada pelo/no enunciado verbovisual como aquele que, para chamar (e apagar) a atenção da mídia, oferece, ao personagem maliano, regulamentação da condição de imigrante no país, ao mesmo tempo em que tramita e é aprovada no parlamento francês a lei n.° 2018-778, que enrijece as normas de imigração na França e faz avançar a deportação de imigrantes. O enunciado verbovisual em análise carrega sentidos e memórias possíveis do imigrante no discurso midiático jornalístico e opera na contemporaneidade com a temporalidade do discurso colonizador que, se no período colonial operava pela força, agora, se encontra amparado pela legislação do país, que aciona a memória de que o imigrante é um invasor. Disponível em: https://www.legifrance.gouv.fr/affichTexte.do?cidTexte=JORFTEX T000037381808&dateTexte=20190310. Acesso em: 10 mar. 2019. 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 445 A segunda charge (Figura 2), do cartunista Aurel, apresenta no enunciado verbovisual o jovem Mamoudou Gassama em uma situação ambivalente quando se aciona a memória do imigrante. O enunciado “menor ou maior?”, provavelmente dito por um oficial de imigração para Mamoudou Gassama, que se encontra de costas para o leitor, sentado em uma cadeira com uma postura retraída, de frente para uma mesa com diversos objetos (computador, documentos, carimbos, luminária), permite inferir o local em que a cena se desenvolve. Mamoudou Gassama tem uma mochila aos pés, o que aponta para a questão da busca diária por realização (emprego, estudo), denunciando a memória do imigrante como aquele que é “menor”, que participa da “minoria” justamente por ser, ao olhar do outro, quem é: imigrante. Nesse sentido, o enunciado verbovisual faz emergir também o diálogo da maioridade civil (“menor ou maior?”), que contrapõe a ideia de que o imigrante pode ser visto como um “menor de idade” por não ser responsável por si em sua permanência no país e, por tal razão, depender de políticas públicas de imigração. FIGURA 02 – Menor ou maior Fonte: Blog francês GalliaWatch10 10 Disponível em: http://galliawatch.blogspot.com/2018/06/macronism-avoid-essentialalign-with.html. Acesso em: 12 fev. 2019. 446 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 A memória do imigrante como aquele desprovido de documentos reaparece no enunciado verbovisual em análise. Apesar de a charge de Aurel poder indicar o momento de regularização da documentação, é possível que o estigma do imigrante “menor” persista mesmo com a documentação de imigração regularizada, uma vez que há sentidos cristalizados que apontam que um imigrante sempre será, com ou sem documentos, um imigrante. Outro possível sentido que emerge da charge diz respeito à palavra “menor”, também no sentido de desvalorização do sujeito imigrante. Bakhtin, ao abordar a tese do romance polifônico de Dostoiévski, sinaliza que: A categoria fundamental da visão artística de Dostoiévski não é a de formação mas a de coexistência e interação. Dostoiévski via e pensava seu mundo predominantemente no espaço e não no tempo. [...] Ao contrário de Goethe, Dostoiévski procura captar as etapas propriamente ditas em sua simultaneidade, confrontá-las e contrapô-las dramaticamente e não estendê-las numa série em formação. Para ele, interpretar o mundo implica em pensar todos os seus conteúdos como simultâneos e atinar-lhe as inter-relações em um corte temporal. [...]. Essa tendência sumamente obstinada a ver tudo como coexistente, perceber e mostrar tudo em contiguidade e simultaneidade, como que situado no espaço e não no tempo leva Dostoiévski a dramatizar no espaço até as contradições e etapas interiores do desenvolvimento de um indivíduo. [...] (BAKHTIN, 1981, p. 2223, grifos do autor) A característica da literatura de Dostoiévski diz respeito, para Bakhtin, à sua percepção artística do mundo: o romancista percebe e representa o mundo exclusivamente por meio das categorias de coexistência e interação. Ao considerar que Dostoiévski concebia o mundo predominantemente no espaço (e não no tempo), Bakhtin aponta que a literatura do autor russo cinde com o romance de formação, no qual o tempo colocava-se à frente da narrativa. Em Dostoiévski, o princípio dramático da unidade do tempo por meio da rapidez das ações, do dinamismo narrativo, resulta na superação do tempo pelo próprio tempo que coexiste no espaço. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 447 A charge de Aurel apresenta em seu enunciado verbovisual, considerando a discussão a respeito da coexistência e da interação, uma ambivalência espacial que coexiste e interage com a temporalidade do imigrante: o espaço nela mostrado pode sugerir: uma entrevista de Mamoudou Gassama realizada por um oficial de imigração e, nesse caso, o desenho sugere um momento em que o imigrante estaria em vias de ser naturalizado; mas, a charge também permite inferir um inquérito policial que tem como suspeito Mamoudou Gassama, sempre visto como imigrante clandestino. A ambivalência da charge, ao não mostrar mais elementos que autorizem uma conclusão precisa, promove duas leituras: no caso específico do imigrante pobre, o “agente da imigração” é também (funciona como) agente de uma política contrária à imigração. Se fosse um outro tipo de migrante, por exemplo, um ator estadunidense ou canadense, e não um negro africano pobre, esse “mistério” provavelmente não aconteceria: o agente seria revelado. Em filmes do tipo policial, por exemplo, são comuns cenas de interrogatórios, nos quais raramente o interrogado vê quem o interroga. O movimento entre as possibilidades de o espaço ser um espaço para naturalizar ou um espaço para penalizar o imigrante interage com a própria memória para a (co)existência do imigrante no mundo: independentemente do local em que o imigrante aparece, um posto de imigração ou uma delegacia policial, o enunciado verbovisual aponta para discursos que inserem o sujeito imigrante na relação com a história e com a sociedade, por meio de um discurso conservador e/ou do discurso policial no qual aparecem ainda vestígios de má vontade quanto à regularização do imigrante, presentes nas vozes tipicamente policiais que indagam “menor ou maior?”. Os sentidos mencionados ressoam em outras duas manchetes (e em seus títulos auxiliares) de matérias publicadas pelo Le Monde na seção “Les Décodeurs” (Os Decodificadores). Nelas, focam-se boatos e montagens de tweeters, disseminando a ideia de que Mamoudou Gassama (o imigrante herói da primeira charge aqui analisada) seria um farsante, um manipulador que teria encenado o salvamento para obter os documentos de naturalização francesa e que, por ele ser um imigrante clandestino, o país não deveria tratá-lo como herói, mas sim deportá-lo para seu país de origem. O discurso de ódio e de intolerância nas redes sociais em relação ao imigrante teve repercussão em vários jornais franceses e, em especial, no Le Monde. As manchetes dialogam com o 448 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 enunciado verbovisual em análise e apresentam outros sentidos para a memória do imigrante no discurso midiático jornalístico: Terceira manchete com título auxiliar da matéria publicada na seção “Les Décodeurs”: Après le sauvetage d’un enfant par Mamoudou Gassama, plusieurs tweets fallacieux et citations déformées De nombreux internautes s’en sont pris à Nicolas Dupont-Aignan, à Marine Le Pen et à la journaliste Elisabeth Lévy pour des tweets ou des phrases qu’ils n’ont jamais écrits ou prononcés. 11 Quarta manchete com título auxiliar da matéria publicada na seção Les Décodeurs: Des théories complotistes sur Mamoudou Gassama refont surface Plusieurs sites Internet se sont fait l’écho d’un supposé “rapport”, affirmant que le sauvetage d’un enfant par le Malien de 22 ans, le 26 mai dernier, était une mise en scène. Mais il s’agit d’un canular.12 As manchetes e seus títulos auxiliares mostram que as matérias publicadas no Le Monde abordam manifestações de usuários em redes sociais, mesmo em se tratando da montagem de tweeters, utilizando a falsa identidade de personalidades públicas conservadoras que possuem posicionamentos bastante duros em relação ao tema da imigração, como o político Nicolas Dupont-Aignan, a política de extrema-direita Marine Le Pen e a jornalista Elisabeth Lévy, que esteve envolvida em diversas “Após o resgate de uma criança por Mamoudou Gassama, vários tweets enganosos e citações distorcidas. Muitos internautas atacaram Nicolas Dupont-Aignan, Marine Le Pen e a jornalista Elisabeth Lévy por tweets ou frases que eles nunca escreveram ou proferiram”. Notícia publicada em 31 de maio de 2018 no jornal Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/les-decodeurs/article/2018/05/31/apres-le-sauvetaged-un-enfant-par-mamoudou-gassama-plusieurs-faux-tweets-et-autres-citationsdeformees_5307780_4355770.html. Acesso em: 11 mar. 2019. 12 “Teorias da conspiração sobre Mamoudou Gassama ressurgem. Diversos sites ecoaram um suposto ‘relatório’, dizendo que o resgate da criança pelo maliano de 22 anos, em 26 de maio, foi uma encenação. Mas isso é uma farsa” (tradução nossa). Notícia publicada em 18 de julho de 2018 pelo jornal Le Monde. Disponível em: https://www.lemonde.fr/ les-decodeurs/article/2018/07/18/des-theories-complotistes-sur-mamoudou-gassamarefont-surface_5333076_4355770.html. Acesso em: 10 mar. 2019. 11 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 449 polêmicas sobre o feminismo13 e a imigração, especialmente a islâmica14 na França. Essas três personalidades se posicionaram, contestando as publicações compartilhadas por usuários, contestando tais montagens com suas identidades, muito embora o conteúdo dessas reproduções dialogava perfeitamente com seus posicionamentos políticos e sociais no que toca ao tema da imigração. Após esses compartilhamentos em rede, insinuações duvidosas a respeito do caráter de Mamoudou Gassama se multiplicaram nas redes sociais, visando, particularmente, reforçar a ideia de que o resgate realizado pelo maliano não poderia ser real, que seria impossível para um humano; por isso, tratava-se de um cenário montado, um espetáculo midiático. Sob essa perspectiva, a memória do imigrante como clandestino, farsante, impostor circula fortemente na internet, em diversos jornais e redes sociais, possibilitando que tais sentidos dialoguem com o enunciado verbovisual em análise. A charge de Aurel, na contramão da inferiorização do imigrante, denuncia o tratamento social que se apresenta legitimado pela política do governo federal: o imigrante, mesmo que naturalizado francês, não deixará nunca de ser imigrante sob o olhar de seu outro, o francês nativo. O enunciado verbovisual pode produzir, ainda, sentidos que apontam Mamoudou Gassama da charge de Plantu também na condição de criminoso, pois seria improvável, para os cidadãos parisienses, de acordo com a visão conservadora mostrada, que um imigrante tenha tamanha habilidade para escalar um prédio. Logo, o enunciado verbovisual pode indicar uma avaliação policial diante de um imigrante que é tomado por delinquente: “menor ou maior?”. E o imigrante na charge de Aurel, 13 No controverso manifesto, em que acusam o feminismo de puritano e incitador de ódio contra os homens, inspirado em declarações feitas pela atriz Catherine Deneuve e publicado pelo Le Monde em 9 de janeiro de 2018, foram colhidas 100 assinaturas, entre elas, a da jornalista Elisabeth Lévy, que denuncia o “assédio das mulheres contra os homens”. Disponível em: https://www.lemonde.fr/idees/ article/2018/01/09/nous-defendons-une-liberte-d-importuner-indispensable-a-la-libertesexuelle_5239134_3232.html. Acesso em: 11 mar. 2019. 14 Elisabeth Levy defendeu ao vivo na BFM TV o jornalista Eric Zemmour, que lhe concedeu uma entrevista bastante polêmica. A referida entrevista rendeu a Zemmour uma investigação por parte do Ministério Público para o crime de “Apologia ao terrorismo”. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fB_2Jv0BKAM. Acesso em: 11 mar. 2019. 450 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 se encolhe na cadeira, pois sua resposta, seja qual for, possivelmente resultará em prisão e deportação. Afinal, o que está em questão não é sua idade civil, mas, sim, tratar-se de um imigrante africano pobre. Essa memória do imigrante como marginal, farsante, impostor é controversa, ainda mais quando se aciona a história da colonização francesa com suas diversas usurpações de obras de arte, estátuas, peças, tesouros, em países africanos. A restituição de objetos saqueados por potências coloniais da África para a Europa é tema de debate internacional, desde a convenção da Unesco, em 1970, contra a retirada ilícita de bens culturais. Além de diversas tentativas em variados momentos, a África voltou a pressionar a Europa em 2018 para que seus tesouros fossem restituídos à origem: a maioria das obras africanas adquiridas de maneira bastante questionável pelos países colonizadores encontram-se em museus espalhados por toda Europa, por exemplo, no Louvre e no Quai Branly, de Paris (França); no British Museum, de Londres (Inglaterra); no Museu Real da África Central, de Tervuren (Bélgica), para mencionar alguns.15 Diante disso, ao fazer emergir também a memória do imigrante como fora da lei, a charge de Aurel revela que os discursos conservador e policial silenciam o processo histórico das imigrações, uma vez que funcionam no apagamento das ações saqueadoras da França em relação aos países africanos. E não apenas isso. Apaga-se o fato de que a França ainda mantém uma forte política militar-intervencionista em países africanos,16 sendo que, em Mali, a última aconteceu em 2013 (PENNA FILHO; BADOU, 2014). Essa relação (in)tensa que a França ainda Para maiores informações sobre o assunto, acessar o link: https://www.dw.com/pt-br/ fran%C3%A7a-abre-caminho-para-devolver-arte-africana-da-era-colonial/a-46413723. Acesso em: 22 abr. 2019. 16 “A França é, das antigas potências coloniais europeias, a que mais intervém nos assuntos africanos. Desde o processo de descolonização até hoje, os franceses já promoveram mais de cinquenta intervenções militares em países africanos (SIRADAG, 2014, p.119), ajudando a depor ou sustentando governantes de acordo com os seus interesses. Trata-se, portanto, de um país que pratica uma ativa política intervencionista no continente africano, sobretudo nos Estados que outrora estiveram sob o julgo do colonialismo francês, e onde mantém ainda diversas bases militares” (PENNA FILHO; BADOU, 2014, p. 157) 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 451 mantém com países africanos ficou conhecida pelo termo Françafrique.17 Em síntese: os apagamentos promovidos por esses discursos resultam no simulacro de diálogo construído pela/na charge de Aurel: “menor ou maior?”, que, no todo arquitetônico do texto, pode significar responsabilidade civil em relação à idade de Mamoudou Gassama tanto para o discurso político conservador quanto para o discurso policial, como também revelar a isenção da própria responsabilidade da França colonizadora em relação à África. Assim, o enunciado remonta a momentos históricos e sociais, fazendo ecoar, pelo uso da linguagem verbovisual, vozes de grupos sociais e suas filiações ideológicas que nem sempre coincidem com as vozes autorais e críticas dos cartunistas Aurel e Plantu. Tais momentos e inscrições revelam posicionamentos, constituem embates, conflitos e contradições, e isso acontece porque o signo não encerra em si mesmo um sentido único, nem é neutro no movimento enunciativo, pois revela posições ao mesmo tempo em que responde a outras posições discursivas. 3 Considerações finais A concepção arquitetônica, construída no conjunto das obras de Bakhtin e do Círculo, deve ser tomada de modo relacional com outras concepções e conceitos tratados pelo grupo de pensadores russos, situando, especialmente, o funcionamento das relações dialógicas no mundo da cultura. Bakhtin (2017) concebe a arquitetônica por meio da relação tríade composta por espaço, tempo e sentido: ela é, pois, responsável pela organização do sentido em relação ao “todo que significa” um objeto estético. Mesmo que se trate de uma situação de comunicação discursiva específica, como é o caso do estudo de discursos sobre o imigrante em duas charges produzidas por cartunistas para um “Entre as antigas potências coloniais, a França é a única que realmente procurou e conseguiu manter, muito além da independência, sua influência sobre suas antigas posses. Esse sistema de relações entre a França e a maioria de suas ex-colônias na África tomou recentemente o nome de Françafrique [...]. O termo emprestado de Félix Houphouët-Boigny foi desviado do seu significado original, dando-lhe uma conotação polêmica e pejorativa por François-Xavier Verschave. Não é por essa razão que o termo deva ser desqualificado, pois pode ser usado de uma maneira mais neutra e analítica para designar e nomear este sistema de relacionamento muito específico que constitui Relações franco-africanas”. (MÉDARD, 2002, p. 2, tradução nossa). 17 452 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 jornal francês, a arquitetônica organiza o sentido no todo englobante e só pode ser pensada em relação ao todo da cultura, com seus fundamentos éticos e estéticos, que se concretiza nas e pelas interações sociais/ discursivas. Os sentidos produzidos sobre o imigrante (herói, vilão, criminoso) compreendem tanto a questão do ponto de vista autoral sobre a história da França imperialista por meio da situação imediata de comunicação (o episódio de salvamento do garoto por Mamoudou Gassama, veiculado em diversas mídias no mundo todo), que gera os enunciados verbovisuais em estudo, como também revelam a produção de diálogos entre diversos discursos como o literário, o midiático, o político, o conservador, o policial etc., que se constituem na e pela interação artístico-social do enunciado sobre o imigrante. Isso implica que os sentidos possíveis de serem produzidos sobre determinado objeto ou tema encontram-se vivos na dinâmica do universo cultural e não há espaço ou tempo que os aparte do enunciado. Desse modo, as charges analisadas encontram-se plenas de sentidos ambivalentes que acionam a memória de futuro, caracterizada pela intersubjetividade: considerando-se o que já foi enunciado e o que poderá ser ainda enunciado sobre o imigrante, entende-se que parte das interações sociais/discursivas com o mundo vivo e (in)tenso da cultura identifica, vai dotá-lo de identidade. Logo, o sentido e o fazer sentido só podem ser construídos em relação de diálogo com a cultura. A ambivalência manifestada nos enunciados verbovisuais em estudo constituem um suporte de valoração para os sentidos, que nem sempre coincidem; por isso as relações dialógicas apresentam sentidos para imigrante que se deslocam de herói a criminoso em um embate sobre o acontecimento imigração: dialogicamente, na construção de um projeto de dizer dos cartunistas Plantu e Aurel, os enunciados verbovisuais se chocam com o discurso político conservador, pela via de representação da memória do imigrante, que não é una, mas plural e polissêmica no âmbito da cultura. Os enunciados em relevo constituem, assim, atos responsáveis, de construção ética e estética, de modo a instaurar sentidos no todo arquitetônico, denunciando e, mesmo tempo, rompendo com a visão imperialista, de construção secular, sobre o imigrante. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 433-454, 2020 453 Contribuição dos autores Grenissa Bonvino Stafuzza contribuiu com o tema da imigração, com foco no evento ocorrido em maio de 2018 com o imigrante maliano Mamoudou Gassama na cidade de Paris, para ser trabalhada na esfera jornalística a partir de reportagens publicadas no jornal francês Le Monde e escreveu a fundamentação teórica de perspectiva bakhtiniana. Marcos Lúcio de Sousa Góis contribuiu com as charges sobre a imigração para a análise de discursos sobre o imigrante, escreveu a fundamentação teórica que embasa as discussões e realizou o trabalho de revisão e correção teórica e textual do artigo. referências BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2017. BAKHTIN, M. M. Os gêneros do discurso. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2016. BAKHTIN, M. M. Questões de literatura e de estética (a teoria do romance). 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Trata-se de um trabalho de viés histórico e que utiliza a semiótica discursiva francesa para analisar textos jornalísticos publicados a partir da segunda metade do século XX até os dias atuais. A partir do exame das reportagens, observou-se a constante sanção sobre o mau uso que os imigrantes japoneses e os estudantes de origem asiática fazem da língua portuguesa, a despeito do destaque igualmente constante das qualidades de trabalhadores e de estudantes que eles comportam nesses discursos. Desse modo, mesmo com uma imagem atualmente positiva perante a sociedade brasileira, permanece o preconceito linguístico contra os indivíduos de origem asiática no país. Palavras-chave: preconceito linguístico; imigração japonesa; semiótica discursiva; identidade; alteridade. abstract: Language is involved in the processes of identity and alterity construction. Therefore, it can also be used to differentiate negatively the other from processes of judgment of the speech of others. This article presents some considerations regarding linguistic prejudice against Asian immigrants and their descendants in Brazil. It is a work of historical bias and that uses French discursive semiotics to analyze journalistic eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.455-478 456 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 texts published from the second half of the twentieth century until the present day. From the examination of the reports, the constant sanction on the misuse that Japanese immigrants and students of Asian origin do of the Portuguese language was observed, in spite of the equally constant prominence of the qualities of workers and students that they carry in these speeches. Thus, even with a currently positive image for Brazilian society, linguistic prejudice remains against individuals of Asian origin in the country. Keywords: linguistic prejudice; Japanese immigration; discursive semiotics; identity; otherness. Recebido em 18 de junho de 2019 Aceito em 17 de agosto de 2019 1 Introdução Apesar de há muito tempo ser considerada encerrada, a imigração japonesa continua a ter algumas repercussões na sociedade brasileira, sobretudo por meio das gerações que já nasceram no Brasil. Uma das marcas dessa relação ocorre por meio da linguagem e, especificamente, pelo modo como supostamente esse grupo ainda continua a usar mal a língua portuguesa. Em uma perspectiva histórica, isso pode ser explicado por alguns fatores, como a falta de escolas nas colônias para o ensino do português entre os imigrantes, a diferença estrutural das línguas – o que poderia dificultar o aprendizado e deixaria marcas que são comumente conhecidas como sotaque – e pelo isolamento forçado das antigas colônias de imigrantes japoneses no interior de São Paulo e do Paraná, o que dificultaria o processo de aquisição da língua portuguesa pelas novas gerações que nascessem nestes e em outros estados da federação. De qualquer maneira, tais fatores não justificam a permanência, para esses indivíduos, da imagem de mau usuário do português, sobretudo quando se percebe que a sociedade brasileira passou por mudanças sociais profundas, como a urbanização e a escolarização em massa no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A manutenção de tal imagem indica a presença de um preconceito linguístico derivado da falta de compreensão das condições do processo de assentamento das colônias japonesas no passado. Além disso, a título de hipótese, pode-se especular se a questão linguística não serve para demarcar negativamente uma diferença em relação a um grupo social que comporta vários traços Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 457 positivos perante a sociedade brasileira, sem, contudo, se confundir completamente com ela por conta de uma suposta “niponicidade inerente” aos sujeitos desse grupo. Este trabalho tem como objetivo apresentar elementos que corroboram a manutenção do preconceito linguístico como distinção negativa permanente em uma perspectiva diacrônica a partir de textos publicados em veículos de comunicação de massa (como jornais e revistas). Observaremos como o imigrante japonês e mais recentemente seus descendentes são sancionados negativamente por meio do seu uso “particular” da língua portuguesa. As reportagens a serem examinadas são as seguintes: a) “O sol também nasce no Ocidente”, publicada na revista O Cruzeiro em 1958; b) “Vale a pena ser brasileiro?”, publicada pela revista Realidade em 1966; c) notícias do jornal Folha de S. Paulo (“Ameaça Amarela: Brincadeira entre alunos é ‘preconceito positivo’” e “‘Asiáticos’ procuram mais a área de exatas na Fuvest”, ambas publicadas em 5 de setembro de 2002). O primeiro texto é uma homenagem aos cinquenta anos da imigração japonesa no Brasil. A reportagem é permeada por histórias particulares de imigrantes e de sua relação com brasileiros. De um modo geral, a reportagem constrói uma imagem bastante positiva dos imigrantes japoneses. No entanto, de modo esparso, apresenta uma crítica ao modo como o japonês utiliza a língua portuguesa. A segunda reportagem critica o excesso de exigências burocráticas do processo de naturalização e mostra os prejuízos causados ao Estado brasileiro pela lei de naturalização, que impede o imigrante naturalizado de atuar em campos como a política e a burocracia estatal. Nessa reportagem, chama a atenção a maneira como se representa o modo de falar português do japonês. As duas reportagens finais apontam para situações de preconceito linguístico contra estudantes estrangeiros e estudantes de ascendência estrangeira mais evidente (como os de origem asiática) no processo seletivo para ingresso em universidades. Esperamos, assim, apontar a permanência de um preconceito linguístico difuso que tem sua origem na chegada dos imigrantes asiáticos no Brasil (em primeiro lugar, os japoneses, mas em décadas seguintes, também chineses e coreanos). A despeito de uma imagem positiva que eles têm perante a sociedade brasileira (a de trabalhadores e estudantes qualificados), é preciso continuarmos alerta em relação a formas de preconceito e de segregação contra populações consideradas minoritárias em relação a uma suposta normatividade que sustenta a 458 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 ideia de uma sociedade brasileira ainda homogênea e unitária. A seguir, desenvolveremos algumas considerações sobre o preconceito linguístico e sobre como os estudos discursivos podem contribuir para explicar o funcionamento desse fenômeno. 2 algumas considerações sobre o preconceito linguístico A língua é um dos principais elementos para a construção da identidade do indivíduo e de seu grupo social, assim como para a percepção da alteridade. O uso de uma variante linguística insere o falante em um determinado grupo social, ou pelo menos o faz parecer pertencer a esse grupo, ao mesmo tempo em que forma a sua identidade e demarca-a em relação a indivíduos que compõem outros grupos sociais. Por essas relações entre identidade e alteridade estarem fundadas na linguagem, e só existirem por causa dela, percebemos que a língua pode igualmente ser utilizada como uma forma de preconceito e de discriminação. Para começarmos a entender a noção de preconceito linguístico, é preciso fazer uma primeira distinção. De um lado, há um preconceito produzido pela linguagem, ou seja, manifestado linguística e discursivamente, como é o caso do racismo, da homofobia, da xenofobia, entre outras formas. De outro, há um preconceito gerado pela linguagem do outro, ou seja, um preconceito linguístico a partir do qual o outro é julgado pela linguagem de quem é preconceituoso (BARROS, 2015, p. 62). É sobretudo essa última forma que examinaremos nos casos apresentados a partir da próxima seção. Além disso, é preciso distinguir o preconceito, seja ele linguístico ou não, da intolerância. Leite (2008) apresenta a seguinte distinção que nos parece bastante produtiva pelas oposições que estabelece: O preconceito é a discriminação silenciosa e sorrateira que o indivíduo pode ter em relação à linguagem do outro: é um nãogostar, um achar-feio ou achar-errado um uso (ou uma língua), sem a discussão do contrário, daquilo que poderia configurar o que viesse a ser o bonito ou correto. É um não-gostar sem ação discursiva clara sobre o fato rejeitado. A intolerância, ao contrário, é ruidosa, explícita, porque, necessariamente, se manifesta por um discurso metalinguístico, calcado em dicotomias, em contrários, como, por exemplo, tradição x modernidade, conhecimento x ignorância, saber x não-saber, e outras congêneres (grifos da autora, LEITE, 2008, p. 24-25). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 459 O preconceito linguístico está relacionado, assim, a uma imagem negativa formada por uma opinião errônea e irrefletida. Já a intolerância linguística apresenta uma formulação mais elaborada a partir do momento em que estabelece oposições que vão rebaixar ou, em seu limite, excluir determinado indivíduo que não se adapta a um determinado padrão linguístico imposto. Ademais, o preconceito linguístico pode incidir sobre variantes desprestigiadas da língua portuguesa e sobre determinadas línguas estrangeiras, a depender também da relação com a classe social do brasileiro ou com a origem do estrangeiro. Em relação aos imigrantes, pensamos em um preconceito linguístico que incide no uso de determinado idioma estrangeiro em solo brasileiro ou ainda no uso do português pelos estrangeiros. No primeiro caso, a representação positiva ou negativa de determinada língua está associada à valorização ou à desvalorização de determinados países estrangeiros. Uma língua estrangeira pode, assim, ser mais bem vista e valorizada em relação à língua nacional (como no caso do inglês e do francês), assim como outra língua estrangeira pode não gozar do mesmo prestígio perante a sociedade, a depender da imagem que se tem dos países estrangeiros. As línguas desprestigiadas em relação à língua nacional no Brasil são, por exemplo, as línguas africanas, indígenas ou asiáticas, nesse último caso principalmente de países cujas imagens remetem a uma avaliação negativa (como a China apresentava até pouco tempo atrás). Mesmo utilizando a língua do país que o “acolheu”, o imigrante mantém algo que o distingue: o sotaque.1 Esse fenômeno não se limita ao aspecto fonético da língua, mas repercute no campo da interação social. Assim, o sotaque do estrangeiro será sempre apontado como diferença produzida e percebida, na qual o falante do grupo de referência não reconhece o outro como sendo de sua própria comunidade ou grupo socioletal. Essa falta de reconhecimento surge por meio de uma espécie de parâmetro linguístico, a partir do qual o desempenho linguístico de quem sofre o preconceito é avaliado. Um dos parâmetros já foi mencionado: “Chama-se sotaque ao conjunto dos hábitos articulatórios (realização dos fonemas, entonação etc.) que conferem coloração particular, social, dialetal ou estrangeira à fala de um indivíduo (sotaque ou pronúncia caipira, nordestina, alemã etc.)” (DUBOIS et al, 2007, p. 565). 1 460 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 são as línguas dos países estrangeiros considerados econômica e culturalmente mais desenvolvidos, como EUA, França, Inglaterra, entre outros. O outro parâmetro, já interno à língua portuguesa, é a chamada norma culta, que serve igualmente para se examinar o modo como os imigrantes utilizam o português (com mais ou menos sotaque, com sotaques mais bonitos ou mais feios, com supostos erros gramaticais etc.). A norma culta é produtora de preconceitos e pré-juízos linguísticos pelo fato de o grupo social em geral ser tomado a partir de uma “posição” social privilegiada e que possui acesso maior aos bens materiais e simbólicos. O seu conceito correlato é o de norma linguística, entendida como o uso comum da língua por determinado grupo. Consequentemente, a norma linguística é o elemento de identificação e distinção do grupo, incluindo certas práticas e expectativas linguísticas internas que definem o grupo. Porém, como os grupos não estão isolados, mas em constante e permanente contato, as normas acabam por se influenciar (FARACO, 2002, p. 38-40). Assim, a norma padrão não se confunde com a norma culta, mas está mais próxima dela do que das demais normas. No caso brasileiro, no século XIX, a norma foi construída tendo por base um padrão lusitano de escrita e não a norma culta praticada naquele momento pela elite letrada da sociedade brasileira. Essas críticas em relação ao modo de falar de certos indivíduos, que se “desviam” de um padrão previamente determinado, pressupõem interpretações e avaliações que homologam a variação linguística e a posição social ocupada pelos falantes “julgados” (LUCCHESI, 2002, p. 64). Nessa perspectiva, os imigrantes ocupavam, e ainda ocupam, uma posição inferior dentro da sociedade brasileira, apesar de serem funcionalmente privilegiados pelo trabalho que realizam na agricultura ou no comércio. É no ponto de julgamento que a semiótica contribui para o entendimento do discurso preconceituoso. Segundo Barros (2015, p. 6368), o preconceito faz parte do discurso intolerante, cuja característica principal é a de ser um discurso de sanção.2 Em outras palavras, os sujeitos 2 A sanção é a última etapa do esquema narrativo. Ela se caracteriza pelo ato de julgar a ação do sujeito do fazer, cujas consequências são, de um lado, seu reconhecimento como sujeito competente e cumpridor de sua parte do contrato fiduciário (sanção cognitiva) e, de outro, como uma retribuição realizada pelo destinador-julgador (sanção pragmática) (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 426-427). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 461 que sofrem a ação de um sujeito intolerante são aqueles considerados maus cumpridores de contratos sociais diversos, dentre eles o contrato linguístico do uso da língua nacional do país de acolhimento do imigrante ou do bom uso da língua nacional, seguindo a norma culta como padrão desse contrato3 de uso linguístico. Quando esses sujeitos não se mostram bons usuários da língua nacional, eles se tornam foco de preconceitos e de intolerâncias de diversas ordens, que podem segregar e excluir a alteridade. Não vamos aqui nos deter em explicações detalhadas da proposta de Barros (2015, 2016), a cujos trabalhos remetemos o leitor interessado. No entanto, vamos explicar rapidamente a parte referente ao preconceito, uma vez que todo sujeito intolerante é também um sujeito preconceituoso, enquanto nem todo sujeito preconceituoso se torna intolerante. Além disso, não se justificaria nos alongarmos nas explicações sobre a intolerância linguística pelo fato de não analisarmos, no presente artigo, nenhum caso que se enquadra em suas características. O preconceito surge, para a semiótica, quando há paixões malevolentes4 envolvidas no discurso, como as paixões do ódio, da antipatia, da raiva, da xenofobia. Estas são paixões do querer fazer mal a um sujeito que não cumpriu sua parte do contrato social. Assim, são paixões que ainda não levaram o sujeito a fazer, efetivamente, mal ao outro, mas apenas a desejar esse mal de alguma maneira, seja por meio de uma exclusão, seja por meio de uma avaliação negativa que é generalizada a todo um grupo social. Em geral, os discursos preconceituosos apresentam, ao lado da paixão malevolente, paixões benevolentes, ou seja, do querer fazer bem, que são direcionadas aos seus iguais, como o amor à pátria, a fraternidade de sua religião, a solidariedade linguística daqueles que utilizam uma forma peculiar da língua (são, então, considerados autênticos) etc. Em suma, veremos como essas configurações do preconceito linguístico surgem em relação aos imigrantes japoneses e aos seus 3 Em semiótica, o contrato é o ato fundante da solidariedade entre destinadormanipulador e destinatário-sujeito. É por meio desse ato que se funda a confiança de cumprimento da ação proposta por ambas as partes e é o que faz desencadear a etapa da performance, ou seja, da ação propriamente dita, entendida como uma transformação de estados do sujeito (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 99-101). 4 Paixões malevolentes se referem aos estados de alma que se organizam modalmente como um querer fazer mal a um outro (BARROS, 2002, p. 67). 462 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 descendentes. Além disso, observaremos ainda que o preconceito contra os imigrantes japoneses se estende, de alguma forma, para os demais grupos imigrantes asiáticos, muitas vezes, inclusive, encarados de modo indistinto pela sociedade brasileira. 3 Dois tipos de sanções sobre o português usado pelo trabalhador imigrante japonês Nesta seção, examinaremos duas reportagens que representam modos distintos de a sociedade brasileira se relacionar com os imigrantes no Brasil. O primeiro discurso é da revista O Cruzeiro, que publicou uma reportagem em homenagem aos 50 anos de imigração japonesa para o Brasil em sua edição de 14 de junho de 19585 (“O sol também nasce no Ocidente”). O texto constrói uma imagem bastante positiva do imigrante japonês e de seus descendentes. O foco de tal distinção recai, sobretudo, na contribuição desses imigrantes para o desenvolvimento econômico brasileiro, figurativizado6 pelo árduo esforço nas lavouras paulistas e paranaenses. A reportagem em questão começa com um texto em japonês que é, logo em seguida, traduzido para a língua portuguesa. É a tradução que reproduzimos abaixo: Com esta reportagem, ‘O Cruzeiro’ está prestando sua homenagem à colônia japonesa do Brasil, pelo meio século de imigração que, de mãos enlaçadas com as nossas, nestes dias comemora. Em junho de 1908 chegava às terras brasileiras o primeiro contingente de imigrantes do Japão; em junho de 1958 relembramos aquele primeiro grupo para dizer-lhe uma única palavra pelo caminho que abriu: obrigado. Não fossem os que chegaram há 50 anos e hoje talvez não pudéssemos publicar esta reportagem que se escreve em números e dados, mas também em sentimentos, porque nela se conta o muito, o inacreditável quase, que os japoneses têm A data oficial de início da imigração japonesa é 18 de junho de 1908, quando chegou ao porto de Santos o navio Kasato Maru. 6 Figurativização é o procedimento de se revestir uma determinada estrutura abstrata de elementos semânticos que remetem ao mundo natural. A figurativização ancora, assim, o discurso em uma espécie de simulacro da realidade, tal como é construída por um texto-objeto (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 210-212). 5 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 463 feito pelo desenvolvimento econômico do Brasil. Nossa alegria é que tivemos participação ativa nessa lição de fraternidade que, juntos, hoje podemos transmitir ao mundo. Nosso pesar é não poder publicar em caracteres japoneses, para os nossos irmãos novos que ainda não leem o português, tudo quanto se conta nestas páginas. A esses dedicamos estas palavras. A eles, aqui fica o nosso agradecimento (PAGOTE; MORAES, 1958, p. 21). O agradecimento aos imigrantes japoneses é uma forma explícita de sanção positiva realizada pelo enunciador. De um lado, a sanção cognitiva se refere ao reconhecimento da competência do trabalhador imigrante japonês. De outro, a sanção pragmática se refere, na reportagem, ao trecho escrito em japonês, como uma forma de retribuição para que eles compreendam o que está sendo dito e, principalmente, o que o enunciador (e a sociedade em geral) pensaria sobre a presença do imigrante japonês. Há, assim, uma espécie de solidariedade linguística quando o enunciador lamenta não poder prosseguir o texto em língua japonesa. Contudo, essa lamentação também comporta o reconhecimento de que existem ainda imigrantes que, por alguma razão, não tiveram a oportunidade ou o interesse em aprender o português. De qualquer modo, a questão linguística fica em segundo plano porque o discurso da reportagem é predominantemente positivo em relação a esse grupo estrangeiro, sobretudo por meio de uma isotopia temática7 econômica que atravessa quase toda a reportagem e cuja estratégia é mostrar as vantagens dessa imigração para o país. Em um segundo plano, a reportagem constrói a imagem positiva do imigrante japonês como uma forma de se tentar influenciar o governo brasileiro a incentivar e a incrementar a entrada de mais japoneses no país. Junto à isotopia econômica, a reportagem reitera temas e figuras associados às dificuldades de adaptação dos imigrantes, à honestidade e ao caráter dos japoneses, à disposição para se integrarem (incluindo 7 Isotopia, segundo a semiótica, é a reiteração de elementos semânticos em um discurso. Ela é responsável pela manutenção da coerência discursiva. No caso da isotopia temática, a repetição de elementos ocorre em um nível mais abstrato, com elementos semânticos que conceituam o mundo. No caso da isotopia figurativa, a sequência semântica que mantém uma linha semântica coerente se refere a elementos que remetem à constituição “concreta do mundo” (GREIMAS; COURTÉS, 2008, p. 275-278). 464 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 mudar de religião), entre outras qualidades. Apesar de a reportagem flertar com uma gratidão excessiva a um povo discursivamente construído como competente para o trabalho e que tem a honestidade como um de seus pilares éticos fundamentais, parece haver um único defeito a ser considerado no que o texto sugere como política imigratória para o governo brasileiro, como se observa no trecho abaixo: Depois da guerra, a aculturação dos japoneses processou-se em ritmo acelerado e deixou de existir o problema dos quistos raciais nipônicos. As universidades estão cheias de ‘niseis’ que, de oriental, possuem apenas os olhos oblíquos. Em todos os setores da vida brasileira, inclusive na política, os imigrantes nipônicos e seus descendentes participam ativamente. Alega-se com frequência que os japoneses fazem questão de se reunir em grupos fechados para o desempenho de atividades artístico-culturais. Em primeiro lugar, esses grupos não são fechados. E, em segundo lugar, uma forma magnífica de demonstrar sentimento de brasilidade é introduzir no nosso meio os elementos de uma cultura milenar que sempre causou inveja ao Ocidente. O Deputado João Sussumu Hirata constatou que a grande maioria de japoneses budistas ou sintoistas estão batizando seus filhos em igrejas cristãs. Que maior demonstração de boa vontade pode dar um imigrante quando sacrifica sua crença pessoal em favor da religião predominante no país que adotou como pátria? Já é tempo de o Instituto Nacional de Imigração e Colonização compreender a desvantagem de insistir na vinda para o Brasil de desajustados8 que somente têm contribuído para agravar os nossos problemas urbanos. Em vez de persistirmos numa política imigratória errada, intensifiquemos a vinda de imigrantes japoneses. Eles, como registra o anedotário popular, estropiarão o idioma português, mas não há a menor dúvida de que estenderão por todo o Brasil, o milagre de São Paulo e do Paraná (PAGOTE; MORAES, 1958, p. 24-26). O trecho retoma alguns dos temas reiterados na discussão sobre a “qualidade” da imigração japonesa no começo do século XX. Assim, a reportagem recupera o tema de que os imigrantes japoneses tinham a tendência de se isolarem da sociedade brasileira, em um processo de Quando a reportagem menciona os “desajustados”, ela está se referindo aos refugiados e deslocados de guerra. 8 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 465 formação dos quistos étnicos, cuja isotopia biológica não entrará em nossas considerações, mesmo porque o trecho da reportagem destaca que o mais importante são as provas de assimilação e integração que os imigrantes japoneses e seus descendentes davam à sociedade brasileira, como a conversão ao catolicismo, a presença nas universidades e ao já mencionado desenvolvimento econômico na área da agricultura nos estados de São Paulo e do Paraná. Essa oscilação entre isolamento e integração fazia parte das discussões a respeito da qualidade da imigração japonesa e esteve presente desde o início da imigração japonesa para o Brasil, ora nos meios de comunicação de massa, ora no discurso da elite acadêmica ou burocrática brasileira. Nessa etapa da imigração japonesa no final da década de 1950, o trabalhador japonês se mostraria disposto (“boa vontade”) a interagir com os brasileiros porque queria ser considerado também um brasileiro, ou seja, desejava ser visto como um estrangeiro assimilado, segundo o ponto de vista do enunciador. É na parte final da reportagem que aparece o preconceito em relação à capacidade e à competência linguística do imigrante japonês. Apesar de ser considerado um problema menor, o preconceito linguístico mantém, como uma suposta verdade, a ideia de uma incompetência do imigrante japonês para desenvolver adequadamente o uso da língua portuguesa nas condições mais elementares da vida cotidiana. A língua é, assim, relegada a um segundo plano social – o das anedotas –, enquanto o plano mais pragmático é usado para a construção positiva da integração do imigrante japonês à sociedade brasileira. Nessa etapa histórica, o que interessa ao país e à sociedade é um trabalhador imigrante competente, esforçado e honesto. A questão linguística e, consequentemente, cultural, é preterida, apesar de também ser alvo de um julgamento e, por isso, ser marcada. Diante de um trabalhador imigrante que parece beirar a perfeição, segundo o discurso, a única saída parece ser a de “brincar” com a dimensão linguística para apontar ao menos um defeito, por mais irrelevante que possa parecer. É justamente a questão linguística que veremos desenvolvida de uma outra maneira, mas também de modo irônico, em relação ao modo de falar do imigrante japonês na próxima reportagem a ser examinada. A revista Realidade publicou, em 1966, a reportagem intitulada “Vale a pena ser brasileiro?”. Apesar de claramente defender a existência 466 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 da naturalização no país, o texto é uma crítica ao modo como ela era realizada naquele momento. O enunciador opta por apresentar elementos que indicam que a naturalização era ainda uma opção desvantajosa para o imigrante que decidiu fixar residência no país. A reportagem mostra como muitos imigrantes naturalizados contribuem em diferentes áreas (econômica, esportiva e cultural) para o desenvolvimento do Brasil. A vida desses imigrantes, tomada como um exemplo, serve também para salientar que o país ainda precisa perceber que está perdendo a oportunidade de se desenvolver ainda mais no campo econômico por não demonstrar interesse e reconhecimento aos que, a despeito das dificuldades em se tornar brasileiro, ajudam o país a crescer e a melhorar em suas áreas de atuação. Por conta das dificuldades para se naturalizar e das proibições a algumas atividades, o imigrante fica em uma espécie de encruzilhada: continuar imigrante ou transformar-se em um cidadão brasileiro de segunda classe? Segundo o texto, a primeira opção é a escolhida pela maior parte dos imigrantes. Para explicar essa situação, a reportagem exemplifica com a entrevista de um imigrante italiano: – Como estrangeiro, munido de carteira modelo 19, toco normalmente minha vida. Continuo sendo cidadão de primeira classe de um grande país, com o qual não tenho hoje ligação alguma, mas que também não me aborrece. Em qualquer emergência, tenho o Consulado à disposição, para falar em meu favor. O Brasil não criou, em nenhum momento, qualquer incentivo, mesmo psicológico, nem manifestou o menor interesse em que eu me naturalize. Não peço a cidadania brasileira porque sei que, com ela, vou me tornar um homem com direitos limitados, um semicasado, um meio cidadão. Então nem duvido: continuo italiano (MARIANI apud RIBEIRO, 1966, p. 51).9 O relato acima mostra as duas opções para o imigrante: permanecer com sua nacionalidade de origem ou se tornar brasileiro. O texto indica que a primeira opção é mais interessante para o imigrante. Dentre as vantagens, ele lista as seguintes: ser “cidadão de primeira classe”, ou seja, continuar sendo um cidadão pleno em termos de direitos (seja como imigrante, seja como cidadão italiano); ausência de 9 Carteira 19 é o documento de identificação do registro do estrangeiro no Brasil. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 467 aborrecimentos, ou seja, de tudo o que pode incomodar ou atrapalhar sua existência e sua vida cotidiana; saber que tem uma instância burocrática (o Consulado) que pode socorrê-lo em qualquer momento de “perigo”, ou seja, o imigrante continua a ter um destinador em que confia. Além disso, esse mesmo imigrante mostra que faltam incentivos (materiais ou psicológicos) e interesse do Estado brasileiro, além da já citada limitação de direitos. Dessa forma, a fala do imigrante mostra que o Estado não se mostra disposto a manipular (por tentação, pois há uma doação de objeto de valor representado pelo léxico “incentivo”)10 o imigrante a se naturalizar. Em outras palavras, o Estado brasileiro não apresenta qualquer interesse em propor um novo contrato para transformar a nacionalidade desse imigrante. O ponto de vista é do imigrante entrevistado, e seu movimento é o de sancionar o governo brasileiro negativamente. Um dos aspectos mencionados por ele é a falta de um contrato social de naturalização vantajoso, por meio de algum incentivo ou ao menos a demonstração de um certo interesse que pudesse levá-lo a se considerar um cidadão completo e pleno de direitos no país. Ao mesmo tempo, o imigrante sanciona o Brasil negativamente, como um todo, por meio de uma sanção positiva de seu país de origem, mesmo que, no seu caso, ele não tenha mais nenhum tipo de contato ou aproximação. Podemos entender que o Estado brasileiro não apresentou nenhum tipo de sinalização para o que se pode chamar de assimilação (LANDOWSKI, 2002), ou seja, um regime de interação no qual a identidade (no caso, o Estado brasileiro) se configura como um ponto de integração em que a alteridade (no caso, o imigrante) precisa abrir mão de alguns de seus elementos constitutivos para ser aceito e para deixar de ser considerado como outro. Assim, a reportagem procura manipular o governo brasileiro para que a lei de naturalização seja revista e, assim, possa integrar adequadamente todos os imigrantes que queiram obter a nacionalidade brasileira. A manipulação é a primeira etapa do esquema narrativo. Ela é definida pela semiótica como um fazer-fazer, ou seja, por um fazer o outro fazer algo em uma atribuição de competência modal. Há quatro formas de manipulação, que se diferenciam pela sua organização modal: a tentação, a intimidação, a provocação e a sedução. A tentação, que nos interessa nesse caso, é definida por um destinador-manipulador que tem a modalidade do poder-fazer o outro (o destinatário) querer-fazer (BARROS, 2002, p. 38). 10 468 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 De qualquer forma, o que nos interessa mais de perto nesta análise é a questão linguística, que não aparece no trecho acima. Ela aparece quando a reportagem instaura discursivamente o representante da imigração japonesa – Hiroshi Saito, agricultor –, a partir de uma peculiaridade: a forma como ele se expressa. Vejamos: No supermercado, uma senhora compra frutas. Fica encantada quando vê aquelas uvas brancas, imensas, cada uma do tamanho de uma noz. Pensa no preço e pergunta: – São uvas do estrangeiro, não? O vendedor diz que sim. A freguesa ainda vai dizer qualquer coisa, mas um japonês de óculos se intromete: – Entarandgero non. Uva barasirêro, garantido. Uva chama Itaria mas é parantada aqui, colhida aqui. Uva barasirêro cem por cento (SAITO apud RIBEIRO, 1966, p. 55). Em toda a reportagem, o imigrante japonês é o único a ser representado com uma transcrição que supostamente apresentaria o seu sotaque. Os demais imigrantes, de origens muito distintas (como o italiano anteriormente mencionado), não apresentam esse tipo de representação da fala, que nada mais é do que uma tentativa de marcação do sotaque que os imigrantes japoneses quase sempre carregam. A partir dessa diferenciação, marcada no plano da expressão da revista, uma primeira pergunta se impõe: os demais imigrantes não possuem qualquer tipo de variação fonética digna de ser representada textualmente por meio de um simulacro como o do imigrante japonês? Pelo que se observa em todos os depoimentos transcritos na reportagem, a resposta seria não. Uma segunda pergunta se coloca, a partir da resposta da primeira: então, o que faz com que o enunciador marque o sotaque do imigrante japonês? Talvez seja a peculiaridade ou alguma graça que ocorre a partir de uma sanção em relação ao fazer linguístico do imigrante japonês, o fato de ele poder “estropiar” o idioma, como observamos na reportagem anterior. De qualquer forma, nenhuma das duas respostas explicam o porquê de, em seguida, o enunciador voltar a dar voz ao imigrante japonês, mas já sem as marcações de seu sotaque, como vemos a seguir: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 469 Saito diz apenas: – A melhor maneira de se viver e de se produzir, não é em liberdade? Eu escutava a uva e a deixava fazer o que quisesse, procurando entender sua natureza, sem forçá-la (SAITO apud RIBEIRO, 1966, p. 55). Não é possível afirmar categoricamente que há, nesse exemplo, um caso de preconceito linguístico, mas fica uma representação que destaca linguisticamente o modo de falar do imigrante japonês, em um simulacro talvez jocoso, aspecto não encontrado em outros imigrantes presentes na mesma reportagem. Todos os imigrantes são construídos discursivamente de maneira eufórica, ou seja, positiva, com a ressalva à marcação linguística que aparece no caso do imigrante japonês. Como visto, a imagem do imigrante naturalizado é elaborada positivamente pela reportagem. São, de um modo geral, sujeitos bemsucedidos em sua área de atuação e que apresentam uma ligação afetiva com o Brasil. Dessa forma, a reportagem mostra que o país só tem a ganhar com um maior número de imigrantes naturalizados e, para que isso se torne realidade, basta o governo reformar a lei de naturalização com o intuito facilitar a integração do imigrante à sociedade nacional. Apesar da menção linguística trabalhada no plano da expressão da reportagem, nada sobre a questão educacional é mencionado na reportagem, nem sobre o ensino da língua portuguesa, nem outras formas de acolhimento que deveriam ser pensadas e aplicadas pelo Estado brasileiro. Essa falta de uma política imigratória que previsse igualmente maneiras de acolhimento e de permanência dos grupos imigrantes ainda se reflete atualmente, uma vez que a educação não é uma prioridade para o Estado brasileiro. No entanto, esse encontro entre o programa narrativo dos imigrantes e a ausência do Estado também cria situações de permanência de um certo preconceito linguístico contra os estudantes dessa origem. É esse aspecto que desenvolveremos na próxima seção. 4 Estudantes brasileiros de origem asiática: perpetuação do preconceito linguístico? Para analisar a construção da imagem dos estudantes de origem japonesa nos chamados cursinhos, utilizamos duas reportagens do jornal Folha de S. Paulo (“Ameaça Amarela: Brincadeira entre alunos é ‘preconceito positivo’” e “‘Asiáticos’ procuram mais a área de exatas 470 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 na Fuvest”, ambas publicadas em 05 de setembro de 2002). Ambas as reportagens tratam do estereótipo dos descendentes de imigrantes asiáticos no contexto escolar (nesse caso, principalmente na situação de vestibular) e em como esse estereótipo determina a relação com os demais vestibulandos. É comum encontrarmos os seguintes ditados nos cursinhos: “enquanto você respira, tem um japonês estudando” ou “mate um japonês para garantir sua vaga na USP”. Esses ditados, de tom jocoso e usados em uma chave irônica – como se todo esforço de um estudante de origem ocidental não fosse o suficiente para competir com um estudante de origem asiática para ingressar nos cursos mais concorridos –, decorrem de uma imagem cristalizada dos descendentes de japoneses (e de outros asiáticos) na sociedade brasileira. Essa imagem associa os estudantes “orientais” a uma grande dedicação e disciplina para os estudos, não apenas nessa fase de ingresso em uma universidade, mas em qualquer fase da vida escolar. Podemos ver isso claramente no trecho a seguir, tirado da reportagem: “‘Enquanto você está aqui, há um japonês estudando’ ou ‘morte aos japoneses’ são pichações comuns em banheiros de cursinhos pré-vestibulares” (NICOLETTI, 2002c, p. 3). As frases pichadas nos banheiros revelam dois aspectos do estereótipo do estudante de origem asiática. De um lado, a dedicação aos estudos; de outro, a tentativa de “eliminação” desse estudante por ele ser considerado um competidor mais bem preparado para entrar na universidade. A dedicação ao estudo pode ser mais bem explicada na reportagem, como vemos abaixo: No imaginário dos vestibulandos, “olhos puxados” costumam ser associados à inteligência e à capacidade de estudo, logo a um melhor desempenho nas provas e à ameaça na disputa por uma vaga na universidade. Os números do último vestibular da Fuvest mostram que, de fato, estudantes de origem asiática tiveram melhor aproveitamento nos exames – a taxa de aprovação dos que se declaram amarelos é de 9,8% e a de brancos é de 6,7%. A explicação para as boas notas não se deve a nenhuma característica genética dos orientais, mas sim pode estar relacionada, segundo especialistas, à cultura de valorização da educação – o que muitas vezes significa cobrança dos pais e longas horas de estudo. O pai de Aldo Miike, 20, sempre exigiu o bom desempenho escolar do filho. “Agora, ele não pressiona tanto como antes, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 471 mesmo porque já estou acostumado a estudar muito”, disse o estudante, que vai tentar uma vaga em relações públicas na USP (NICOLETTI, 2002a, p. 1). O trecho utiliza dados da Fuvest (maior vestibular do país) para comprovar a imagem de alunos inteligentes e competentes dos asiáticos no momento da seleção para ingresso na maior universidade do país (o número de estudantes de origem asiática na universidade é proporcionalmente maior em relação aos demais grupos que compõem a sociedade brasileira). Ao mesmo tempo, a reportagem deixa claro que essa competência do estudante de origem asiática não pode ser explicada em termos “raciais”, ou seja, como uma predisposição genética que os faria mais inteligentes que os demais estudantes. O fato de esses estudantes se destacarem no vestibular pode ser explicado pela dedicação aos estudos imposta pela família, como vemos no último parágrafo do trecho citado. Justamente por haver uma manipulação de seus pais (por intimidação e por provocação),11 o estudante de origem asiática se reveste da modalidade do /dever-saber/ para ter o desempenho esperado pelos seus pais. As características dos estudantes de origem asiática podem ser compreendidas como hábitos ou comportamentos adquiridos no seio familiar, com a diferença de que não se trata mais de um traço inerente ao /ser/ do estudante de origem asiática, mas sim a alguma forma de “estilo de vida” da família desse estudante. Em outras palavras, a “fatores culturais”, como se afirma no trecho a seguir: O fator cultural pode caracterizar a maneira como alguns descendentes de orientais estudam. Segundo o professor Santos, eles costumam valorizar a disciplina, a ordem e a concentração. “Nós [ocidentais], quando estudamos, ouvimos música e nos expomos a outras fontes de dispersão. O oriental concentra-se totalmente no estudo” (NICOLETTI, 2002b, p. 3). Dessa forma, o texto constrói dois simulacros distintos: de um lado, o estudante de origem asiática com traços de disciplina, ordem e concentração; de outro, o estudante “ocidental” disperso. 11 Em termos modais, a intimidação é organizada por um destinador dotado de poderfazer o outro dever-fazer (destinatário). Já a provocação é da ordem do saber-fazer o outro dever-fazer (BARROS, 2002, p. 38). 472 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 Consequentemente, o discurso mostra que as características do estudante asiático são mais valorizadas no momento do estudo, enquanto o estudante “ocidental” apresenta traços negativos para o sucesso do fazer previsto no momento do vestibular, sanção essa presente no horizonte de expectativas de vários estudantes nessa etapa da vida. É interessante ainda observar como foi colocado pelo enunciador, entre colchetes, a palavra “ocidentais” para marcar a diferença entre estudantes não asiáticos e os descendentes de imigrantes asiáticos. Essa diferenciação é ainda observada no subtítulo da própria reportagem: “Estereótipo não deve levar vestibulando a temer concorrência com ‘orientais’”. Em certa medida, o enunciador mostra como os estudantes de origem asiática são identificados pelos demais estudantes: a partir do gentílico de seus antepassados. Isso, levando-se em conta que a grande maioria desses estudantes “orientais” são brasileiros. O discurso estabelece, assim, outra oposição (falsa, na realidade): os estudantes “brasileiros” e os estudantes “orientais”. Vemos, assim, a força com que a imagem dos estudantes de origem asiática é construída a partir dessa diferença de aparência (desvio do estudante branco, ocidental). Consequentemente, a oposição leva à construção do estereótipo do estudante de origem asiática.12 Ainda com base no enunciado anteriormente destacado, observamos que a reportagem tem claramente como enunciatário os estudantes “brasileiros”, ou seja, os de origem não asiática. O texto do jornal procura desconstruir, parcialmente, o estereótipo do estudante de origem asiática como forma de eliminar um possível “temor” dos estudantes em relação aos seus “concorrentes” por um lugar na universidade. A capa do caderno especial, voltado para alunos no período pré-vestibular, apresenta o título, sem aspas, da “ameaça amarela”,13 Precisamos, contudo, deixar claro que o estereótipo não é uma figura construída somente por essa reportagem. Na verdade, a reportagem “veicula” o estereótipo do estudante de origem asiática encontrado frequentemente nos cursos pré-vestibulares. 13 Antes mesmo do início do processo imigratório japonês para o Brasil, já existiam discursos que associavam os imigrantes japoneses a temas como “perigo amarelo”, “formação de quistos étnicos” e “caráter inassimilável do nipônico”. O discurso antinipônico teve seu ponto culminante nas primeiras décadas do século XX, quando uma série de trabalhos acadêmicos, artigos de opinião e outros discursos contra os imigrantes japoneses surgiram nos EUA, no Peru e no Brasil (DEZEM, 2005, p. 185-204). 12 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 473 retomando, assim, o discurso da suposta ameaça nipônica no Brasil. Esse discurso remete, frequentemente, à ideia de invasão nipônica e do Estado dentro do Estado14, muitas vezes ligado também à noção de que os imigrantes japoneses e seus descendentes são um grupo social à parte porque não se integraram à sociedade brasileira. Retoma-se, assim, um discurso produzido durante a Segunda Guerra Mundial, quando Brasil e Japão estavam em lados opostos no conflito bélico. Dessa forma, a reportagem parece se preocupar em desfazer o estereótipo dos estudantes de origem asiática para tranquilizar o estudante “brasileiro” e não porque o estudante “oriental” pode vir a ser vítima do preconceito alheio. Mesmo com essa imagem altamente positiva na competição por uma vaga nos cursos mais concorridos, há espaço para a construção do preconceito linguístico contra os estudantes de origem asiática. Assim, o aspecto negativo de tais sujeitos está relacionado a outra marca desse estereótipo: a de que os descendentes de asiáticos seriam bons alunos na área de ciências exatas por supostamente não dominarem a língua portuguesa de modo considerado apropriado. Essa questão do estereótipo em relação ao uso da língua portuguesa aparece de forma implícita no seguinte exemplo: Segundo Francisco Hashimoto, professor de psicologia da Unesp de Assis, os imigrantes orientais, ao chegarem ao Brasil, tinham dificuldades com a língua, o que impunha obstáculos ao aprendizado das matérias de humanas. “O cálculo matemático é uma linguagem universal e, por isso, não causa problemas”, disse ele, que estudou a imigração japonesa. Isso teria sido mais forte nas primeiras gerações, diminuindo com a vida no Brasil. Outro fator que pode explicar a preferência pelas exatas, segundo Hashimoto, é a personalidade mais introvertida de parte dos orientais, o que os faz preferir, muitas vezes, profissões em que não seja necessário um maior contato com o público (NICOLETTI, 2002b, p. 3). As reportagens mencionadas parecem, então, reduzir a figura dos descendentes de imigrantes asiáticos a apenas duas características 14 A imigração japonesa era considerada, nesse tipo de discurso, um projeto de domínio político e militar do Japão, que utilizaria seus cidadãos como imigrantes em outros países para construir as condições materiais e simbólicas para criar um Estado autônomo em regiões como a América Latina. 474 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 principais que definiriam todos os membros desse grupo: a dedicação aos estudos e a dificuldade com o uso da língua portuguesa, essa última responsável pela preferência dos estudantes de origem asiática por disciplinas da área de exatas. Um dos problemas do estereótipo é o de associar os traços já mencionados de dedicação e disciplina aos estudos a todo e qualquer indivíduo identificado como “oriental”. Apesar de não ter sido mencionado pela reportagem, precisamos lembrar que o estudante dedicado e disciplinado, independentemente de sua origem, é muitas vezes considerado “tolo” e “ingênuo” pelos demais alunos. Dessa forma, essa outra imagem – a de um estudante inocente e parvo – também pode ser associada ao estudante de origem asiática. Desse modo, o estereótipo do estudante de origem asiática não carrega apenas traços positivos. Há, na constituição de sua imagem, elementos que podem ser considerados negativos ou ao menos limitadores na caracterização desse grupo, relacionados, por exemplo, à sua competência linguística.15 As duas reportagens analisadas tentam ainda minimizar a discriminação contra estudantes de ascendência asiática por meio de justificativas (históricas e psicológicas) para o comportamento e as escolhas desses estudantes. Porém, essas reportagens recuperam marcas históricas do preconceito contra os asiáticos e não vão além da retomada e da fixação do estereótipo, sendo que a relativização dessa imagem fixa dos estudantes “orientais” serve apenas para, como já foi mencionado, acalmar os estudantes “brasileiros” no árduo trabalho para ingressar na universidade de seus sonhos.16 De qualquer forma, resta uma dúvida: se os estudantes “asiáticos” são tão dedicados ao estudo, como eles podem não ter o domínio da língua portuguesa? 16 Indo um pouco além do que a análise nos permite, entendemos que uma forma possível de se desfazer o estereótipo do estudante de origem asiática estaria na apresentação de exemplos de descendentes que se interessam pelas áreas de Humanidades e Biológicas. Além disso, outros exemplos poderiam ser apontados, como os descendentes de asiáticos que são pintores, músicos, atores etc. para mostrar a diversidade de atividades existentes no âmbito desse grupo. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 475 5 Considerações finais Os textos analisados oscilam entre uma imagem extremamente positiva do trabalhador japonês (no passado) e do estudante oriental (no presente) e um preconceito linguístico. No entanto, o preconceito linguístico tem duas funções distintas em relação a esses sujeitos. De um lado, no tema econômico, o que interessava era aproveitar o que o imigrante japonês podia fazer em relação ao desenvolvimento econômico brasileiro, mesmo que a língua portuguesa fosse “sacrificada”, ou seja, que eles continuassem a usar mal o português, contanto que continuassem sendo excelentes trabalhadores. De outro, no contexto dos estudos atuais, o preconceito linguístico marca um “defeito” do estudante de origem asiática, que supostamente se voltaria aos estudos da área de exatas para evitar o uso constante da língua portuguesa, que ele dominaria precariamente. Assim, a reportagem pode utilizar tal característica para diminuir a pressão dos estudantes “brasileiros” no momento de competir com os outros estudantes por uma concorrida vaga na universidade. Entendemos que há um preconceito linguístico explícito ao se reforçar a imagem do imigrante japonês que “estropia” a língua portuguesa ou, no melhor dos casos, que “arranha” o português. Há também um potencial medo ou ressentimento gerados pela competência do imigrante japonês no trabalho, pois, ao mesmo tempo em que a primeira reportagem analisada constrói a imagem positiva do trabalhador japonês, deixa-se implícito que o trabalhador brasileiro não possui a mesma competência para a atividade laboral. Essa comparação é encontrada, ainda, no caso dos estudantes, em que os asiáticos são considerados competentes enquanto os brasileiros ainda possuem problemas de concentração, disciplina e vontade para estudar. Neste artigo, vimos, basicamente, o seguinte em relação aos imigrantes e seus descendentes: a) Uma valorização dos trabalhadores imigrantes (os japoneses e os naturalizados), nas duas primeiras reportagens; e uma valorização da disciplina e da dedicação aos estudos da parte dos estudantes de origem asiática. 476 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 b) Exemplos de preconceito linguístico contra o imigrante japonês: na primeira reportagem, com a metáfora que se refere ao “arranhar” ou “estropiar” a língua portuguesa; na segunda, por meio da transcrição do sotaque do japonês, fato não registrado na fala dos demais imigrantes; e nas reportagens sobre o estereótipo do estudante de origem asiática, cujo traço negativo é o de ele não dominar bem o idioma. c) A existência de diferenças culturais entre estudantes, representada pela postura nos estudos e por uma dificuldade linguística que seria inerente aos descendentes de imigrantes asiáticos. De um modo geral, nenhuma reportagem apresenta argumentos contra a presença de imigrantes no país. A ideia de uma presença indesejada, ao menos aplicada ao grupo asiático, não faz parte do horizonte de perspectivas da sociedade brasileira desde ao menos o final da Segunda Guerra Mundial. Todos os imigrantes e seus descendentes são considerados bons trabalhadores ou estudantes dedicados que podem auxiliar a sociedade brasileira a se desenvolver. Logo, há uma perspectiva de que a sociedade aceita essa presença da alteridade e a respeitaria em suas especificidades, mesmo que construídas em estereótipos. Teríamos, então, uma predominância do regime de admissão, conforme propõe Landowski (2002, p. 20), no qual há um reconhecimento das diferenças constitutivas da alteridade (no caso, os imigrantes asiáticos e seus descendentes) e um certo respeito que possibilitaria a convivência da sociedade de acolhimento (brasileira) e esses imigrantes e descendentes. Ao mesmo tempo, as reportagens não mostram uma preocupação em assimilar o outro, tal como também estabelece suas bases Landowski (2002, p. 5-6) no sentido de provocá-lo a deixar de lado seus traços constitutivos para ser integrado como um só, em uma suposta homogeneidade que não encontra mais abrigo nos discursos sociais brasileiros. Evidentemente, trabalhos futuros voltados a outros grupos imigrantes ou de refugiados, como os bolivianos e os haitianos, respectivamente, podem indicar o contrário, uma vez que sujeitos preconceituosos estão constantemente à procura de novos alvos para diminui-los, culpá-los por algo, entre outras posturas que não devem ser aceitas em uma sociedade dita democrática. Procuramos evidenciar, assim, a persistência histórica de um preconceito linguístico ligado aos imigrantes asiáticos e aos seus Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 455-478, 2020 477 descendentes brasileiros. Apesar de ser socialmente considerado pouco grave, não podemos nos esquecer de que essa forma de preconceito pode revelar algum tipo de preconceito mais grave, mas ainda camuflado. Desse modo, espera-se que os estudos discursivos, e a semiótica em especial, possam contribuir para desfazer tal postura que parte do gesto de julgar o outro pelo que ele é, como se houvesse apenas uma maneira de ser o que se é. referências BARROS, D. L. P. de. Teoria do discurso: fundamentos semióticos. São Paulo: Humanitas, 2002. BARROS, D. L. P. de. Intolerância, preconceito e exclusão. In: LARA, G. P.; LIMBERTI, R. P. (org.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2015. p. 61-78. BARROS, D. L. P. de. Estudos discursivos da intolerância: o ator da enunciação excessivo. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 58, p. 7-24, 2016. DEZEM, R. Matizes do “amarelo”. A gênese dos discursos sobre os orientais no Brasil (1878-1908). São Paulo: Humanitas, 2005. DUBOIS, J. et alli. 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En esta reflexión, las memorias colectivas son prácticas discursivas múltiples, en las cuales las representaciones sociales sobre un pasado común se usan para construir y mantener cohesión e identidad de grupos situados socio-históricamente en un momento presente y que proyectan futuro en marcos de derechos, dignidad, respeto y sentido de bienestar. Las representaciones sociales de la historia describen con frecuencia, los contenidos de la memoria colectiva como si fuesen homogéneos y únicos, oficializando una versión que no recupera, especialmente, a los sectores más marginalizados de la sociedad. Esta disertación se centra en las representaciones que se formulan en un medio de comunicación digital y la forma de distribuir el sentido de las memorias colectivas. Desde la perspectiva de los principios teóricos de los ECDMM, se parte del principio de que los medios de comunicación y sus soportes tecnológicos elaboran modos, géneros y representaciones que comunican y crean concepciones del pasado. Se elabora un marco adecuado para el abordaje de un corpus constituido por narrativas mediáticas para la construcción de paz en Colombia, en las ediciones especiales del periódico El Tiempo.com. Para el análisis, se estudia el storytelling que los medios producen como ruta para la reconstrucción del tejido social. Palabras-clave: memorias colectivas; estudios críticos del discurso multimodal y multimedial; storytelling; memorias; representaciones sociales. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.479-506 480 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 abstract: We propose a theoretical-methodological reflection and application of multimodal and multimedia critical discourse analysis (ECDMM), in the investigation of collective memories and the memorialization processes that are explored in the SPEME project in Colombia. In this reflection, collective memories are multiple discursive practices, in which social representations about a common past are used to build and maintain cohesion and identity of socio-historically situated groups in a present moment and to project future regarding rights, dignity, respect and sense of well-being. The social representations around history often describe the contents of the collective memory as if they were homogeneous and unique, formalizing a version that does not take into account, especially, the most marginalized sectors of society. This dissertation focuses on the representations that are formulated in a digital communication medium and their way of distributing the sense of collective memories. From the perspective of the theoretical principles of the ECDMM, we base the research on the principle that the media and their technological supports elaborate modes, genres and representations that communicate and create conceptions of the past. An adequate framework is elaborated for the approach of a corpus constituted by media narratives for the construction of peace in Colombia, in the special editions of the newspaper El Tiempo.com. For the analysis, we study the storytelling that the media produces as a route for the reconstruction of the social fabric. Keywords: collective memories; multimodal and multimedia critical discourse analysis; storytelling; memories; social representations. Recebido em 20 de fevereiro de 2019 Aceito em 09 de maio de 2019 1. La cognición social en los medios de comunicación. La distribución social del saber. Waggoner (2015) señala que las representaciones sociales hacen posible que las memorias colectivas tengan una presencia significativa en los grupos humanos; organizan la experiencia y garantizan la permanencia y cohesión de los grupos en condiciones socio-históricas específicas, al recordar u olvidar. En esta perspectiva, las memorias se corporizan, son expresiones simbólicas; es decir, producen significados y se espacializan. Las corporalidades al producir representaciones y expresarlas en prácticas sociales constituyen formas de incorporación en las que, siguiendo a Bourdieu (1990) la memoria social no solo representa cognitivamente Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 481 el pasado, sino que fundamentalmente recupera las relaciones de desigualdad, a través de las representaciones en las prácticas sociales donde se formulan los rituales y las creencias. En los estudios sobre la memoria es usual que se reconozca el papel que desempeña la capacidad humana para el lenguaje y su expresión en sistemas sígnicos. Halbwachs, Bartlett y Vygotsky señalan que los procesos de memoria devienen esencialmente del proceso comunicativo humano, y que es en los géneros, los modos y las especificidades propias de las tecnologías, donde la performatividad de la comunicación da paso a formas del decir que socializan la experiencia de diversas maneras. Así, como la escritura transforma las memorias, en la era digital se hace desde la web. Los grados de hegemonía sobre las memorias se articulan a la capacidad organizativa de los grupos para formular alternativamente memorias y silencios. El carácter interactivo o monológico de las memorias formula tensiones sobre las mismas y hace evidentes sus marcos, perspectivas y anclajes socioculturales. La teoría de las representaciones sociales ha propuesto que los contextos humanos producen significados y axiologías, donde los actores sociales se definen y crean sus propios condicionamientos espaciotemporales, haciendo del proceso de memorialización un lugar para articular el grupo y su cultura. De esta manera, la memoria objetiva el entorno y lo define en su expresión material y simbólica. Los espacios con sus condicionamientos, son un recurso para articular pasados y presentes que gestionan transformaciones en los saberes y haceres. Por lo tanto, las dimensiones que integran el significado de espacio crean sistemas de sentido social, cuya conexión con la cotidianidad y los rituales elaboran espacios para las memorias (HALBWACHS, 2004). Así, los contextos con sus marcos se construyen creativamente y se apropian en la vida cotidiana, para ponerlos al servicio material y simbólico de la memorialización. Los procesos de memoria se formulan concretando y encarnando recursos materiales, un jardín de flores, por ejemplo, para construir y asignar sentidos que pasan por las corporalidades y las narrativas que elaboran. En esta interrelación se estabiliza la cognición social y se establecen formas de ser y proceder que pretenden un lugar en la temporalidad y una huella para la regulación. Es en esta dinámica espaciotemporal donde el proceso creativo del saber social alcanza formas de transformación. 482 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 Los procesos de memorialización contemporánea encuentran para América Latina y, en particular para Colombia, un espacio simbólico y material, atravesado multi-signicamente y soportado multi-medialmente por las herramientas que proporcionan nuevas formas de socialización y distribución del conocimiento. Jenkins (2006) señala cómo en las sociedades actuales, los flujos de contenidos se distribuyen mediante el uso “de múltiples plataformas mediáticas, la cooperación entre múltiples industrias mediáticas y el comportamiento migratorio de las audiencias mediáticas” (p. 14), dando cuenta no sólo de la presencia de las tecnologías capaces de soportar y distribuir tejidos sígnicos, sino de la potencialidad del recurso tecnológico para ubicar espacio-temporalmente las historias y los relatos humanos. Al tiempo que propone consumo simbólico en las marcas, formula rutas imaginarias y crea tácticas para distribuir los saberes propuestos en los medios articulados a la economía, la política, las fronteras, la vida cotidiana, entre otros ámbitos posibles. En este marco, los procesos de memorialización contemporáneos asumen los cambios culturales que se derivan de los condicionamientos que imponen el acceso y discontinuidad; la conjunción y dispersión de los saberes mediatizados. Los ciudadanos elaboran creativamente formas de interacción y asumen activamente formas de participación alternativa para construir sus propias narrativas, tejerlas con otras o fragmentarlas de maneras diversas, configurando así, los sentidos que orientan su cotidianidad. Esto sin desconocer la presencia de las voces hegemónicas, cada vez más vinculadas a las multinacionales de la industria mediática, interesadas en mantener una cultura anclada al interés político-económico que las define. De este modo, la cognición social construye saberes en las operaciones propias de recolectar, cortar, tejer, recomponer conocimiento, que en el proceso articula recursos y potencialidades humanas para coexistir con el poder que se deriva de los accesos privilegiados a las tecnologías. Las memorias mediatizadas en sus diversas expresiones dan paso a la construcción de unidades simbólicas comunes que contribuyen a gestionar pertenencia grupal. Integrando los planteamientos de Assmann (2008), los procesos de memorialización implican activar la memoria episódica o experiencial y la memoria semántica o de aprendizaje. En esta misma línea teórica los estudios críticos del discurso y, en particular, Van Dijk (2016) establece que: “La Memoria de Largo Plazo contiene, por una parte, recuerdos de experiencias autobiográficas y Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 483 conocimiento, almacenados en la Memoria Episódica (ME) y, por otra, de manera más general, conocimiento, actitudes e ideologías socialmente compartidas almacenados en la Memoria Semántica (MS)” (p. 142). Al mediatizar las memorias, por lo tanto, se activan dos procesos cognitivos esenciales, por un lado, se socializan experiencias y saberes básicos que se organizan sígnicamente a través de diversas formas de narrativización y, por otro lado, se estructuran relatos mediáticos que se proponen para ser colectivizados, poniendo en relación la capacidad humana para recordar, olvidar, transformar e intervenir en la pretensión de modificar condicionamientos sociales y emocionales en el proceso de memorialización. En esta perspectiva, la memoria mediatizada crea el marco interpretativo en el que coexisten las experiencias subjetivas y las aproximaciones intersubjetivas capaces de construir marcos sociales de memorialización. Los marcos sociales de memorialización insertan la vivencia subjetiva y los condicionamientos sociales a través de los cuales se estructuran las formas de saber, pensar, creer y representar, optando posiciones o puntos de vista mediante los que se crean las narrativas. En este nivel el proceso de memorialización cobra significado y sentido, articulando actores múltiples, espacio-temporalmente ubicados y posicionados para la interpretación de la realidad narrada. La narrativa es una práctica semiótico-discursiva en cuya complejidad se reconstruyen, evalúan y asignan significados a los acontecimientos que se representan mediáticamente en el contexto de las prácticas sociales colectivizadas. Al respecto, De Fina y Gore (2017) señalan que la narración contemporánea soportada en las tecnologías de la comunicación, articula intereses y prácticas en las que se adoptan formas múltiples de construir historias, interlocutores y recursos semióticos; de lo que se implica la semiotización de la narrativización. Las narrativas mediáticas construyen y describen meta-narrativas (narrar lo narrado), en cuyo proceso aparecen nuevos significados o formas de resemiotización. En el proceso comunicativo que gestionan las narrativas, la narrativa de origen se mantiene para dar paso a una nueva, de suerte que un significado se incorpora a otro. Desde este punto de vista, las narrativas no conservan los pasados intactos, ya que particularmente en los procesos de mediatización se recrean sistemáticamente. De manera que, en el proceso de socialización el narrador no se independiza de su pasado, si se tiene en cuenta que la esencialidad del ser se formula como imagen 484 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 que se instaura significativamente, y que el proceso de mediatización se colectiviza. La memoria subjetiva se reformula intersubjetivamente y se interpreta culturalmente en los condicionamientos socio-históricos que determinan lo que se narra. En este marco, la coexistencia del recuerdo y el olvido adquiere un nuevo sentido, en la medida en que la experiencia narrativizada pasa del proceso vivencial a un proceso comunicativo, donde se reelaboran emociones, valores y posicionamientos para la compresión de la realidad. El estudio de las narrativas aborda la actividad comunicativa, por lo que incide en todos los ámbitos de la sociedad. En su núcleo se encarnan los problemas y asuntos humanos relevantes para la comprensión del ser y de su realidad. Como todo acto de comunicación, las narrativas hacen explícito el propósito de construir el ser y el hacer social. Las narrativas se anclan en las experiencias socioculturales, se transforman permanentemente para dar cuenta de las maneras como la realidad social se modifica y se define en relación con las condiciones sociopolíticas, históricas y culturales que la determinan. La función socio-comunicativa de las narrativas implica las formas de conocer, de generar sentido de cohesión social, de legitimar la acción política y, esencialmente, de orientar y garantizar la acción colectiva. Este fenómeno ocurre en razón de que las narrativas encarnan axiologías, visibilizan expectativas, deseos, actitudes y aspiraciones individuales y colectivas. Las narrativas, particularmente las que se mediatizan a través de las instituciones sociales tienden a viralizarse y, como lo indica Shiller (2017) tienen la potencialidad para resignificar y reconstruirse en el proceso de su distribución social y propagación. Si bien hay pocos estudios sobre el fenómeno de la propagación de las narrativas mediáticas, históricamente la narrativa ha sido fuente colectiva para la estabilización de saberes, como cuando se universaliza el mito de la creación. En este sentido, se explica que la distribución social del conocimiento es un punto de referencia para explicitar la acción colectiva e implicar que los ciudadanos actúan en concordancia con las narrativas disponibles en su cultura. La narrativa mediática construye el argumento de la vida saludable, la crisis financiera o política, el terrorismo y la seguridad, o como lo indica Shiller (2017) la narrativa de la recesión. Desde su punto de vista, la mediatización de las narrativas ha dado paso a construir en términos de los intereses económicos-políticos de un momento determinado de la historia, el sentido de comunidades de ahorro, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 485 de comunidades “saludables”, de las comunidades del riesgo y contra riesgo o las comunidades del deseo, entre otras; haciendo plausible una “racionalidad” que se aplica a la acción que consecuentemente procede de la narrativa que se encarna entorno a estos intereses, creencias y actitudes. La tendencia contemporánea a construir narrativas con capacidad de crear contenido engañoso es un asunto nuclear en los estudios sobre las formas de distribuir el saber colectivo en una sociedad. Por ahora, carecemos de los recursos de control del Estado para garantizar la información al servicio de la construcción de una sociedad más digna, justa, incluyente e informada dentro de los marcos del sentido de servicio al bien común. Las noticias falsas, alcanzan un punto crítico en las elecciones de 2016 en EE. UU. La hipótesis que se ha venido desarrollando en la academia, señala que esta estrategia persuasiva apropia todos los sistemas sígnicos disponibles para construir terror, miedo y sensación de inadecuación individual, a través de recursos como los marcadores emocionales; el proceso de mediatización y la construcción espectacular de narrativas que circulan viralmente mediante las tecnologías de la comunicación y la información. Desde esta mirada, los mass media desestructuran la confianza social, crean realidades que no son verificables y atentan contra el sentido de realidad al que debe acceder el ciudadano cuando pretende apropiar, explicar y comprender sus condicionamientos socio políticos y culturales (ALBRIGHT, 2017). En este marco se estudia el Storytelling producido por la prensa colombiana, en tanto expresión semiótico-discursiva de los relatos mediáticos articulados al postacuerdo. Las narraciones pueden o no vincular hechos históricos o fácticos que tienen un papel fundamental en la construcción del relato o de los acontecimientos. Quien narra, incluso desde su experiencia vital, gestiona la función ficcionalizadora de lo que representa de manera explícita, por lo que al narrar se gestionan una multiplicidad de instancias narradoras que impregnan el objeto semiótico de valores y creencias. El narrador formula un punto de vista mediante el recurso de focalización, generando la perspectiva de la narrativa. Así, se establece la relación entre el sujeto que ve, la realidad representada y visualizada –la cual se establece y determina en el grado de saberes o enciclopedia que el narrador despliega sobre lo narrado– y la estrategia que implementa para socializarla (SOBEJANO-MORÁN, 2003). El Storytelling se entiende en este documento como un tipo de narrativa formulada desde la lógica mercantil, que se propone de 486 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 carácter interactivo y estratégico, con el propósito de establecer un sentido de participación del interlocutor – lector, para formular y crear una experiencia inmersiva y orientadora de la acción que aspira a ser parte de la cognición social. En el proceso de su diseño y producción se construye desde el propósito persuasivo, articulado a la emocionalidad humana. Su distribución y socialización apropia todos los recursos tecnológicos disponibles para potenciarla. Por lo tanto, tiene carácter multimodal y multimedial. En la perspectiva de Salmon (2011) el storytelling es una unidad de sentido que parte de fenómenos propios de la realidad social para construir unos relatos artificiales, a través de los cuales se genera una red de sentidos que, sin tener el propósito de articularse a experiencias pasadas, orienta conductas y emociones por medio del proceso de socialización mediática. Las narrativas mediáticas expresadas como storytelling pueden ser observadas e interpretadas desde una perspectiva crítica, mediante las categorías clásicas de la semiótica como el relato, el espacio-tiempo, la focalización y el actor discursivo. El relato es una unidad de significado que sintetiza el sentido de lo historizado. La historia, asumida desde la propuesta narratológica, es una organización estructurada y lógica de eventos producidos o gestionados por actores situados espaciotemporalmente. Las relaciones espacio-temporales que proponen las narrativas estructuran el concepto de cronotopo, que incluye las dimensiones de la espacialidad y de la temporalidad, entrecruzadas para dar sentido al mundo que construye el acto de narrar (BAJTÍN, 1989). Lo que se narra adopta puntos de vista que ponen en relación el acto de ver y el acto de percibir lo visto, de suerte que se configura un proceso focalizador. Sobre este aspecto Bal (1990) señala que la focalización pone en relación “la visión, el agente que ve y lo que se ve” (p. 108). Los actores discursivos son seres que, en su condición de agentes o pacientes, participan en la construcción de las acciones sociales representadas discursivamente. Desde esta perspectiva, los actores discursivos se diferencian del actor social en la medida en que el actor discursivo se propone como constructor de un mundo narrativo, en el que transitan saberes y relaciones político-culturales, a través de las cuales se construye un ‘yo’ y un ‘otro’. Los actores discursivos se hacen responsables de las voces que se configuran discursivamente otorgando significado cuando se expresan, en el propósito de estructurar redes de sentido. Estas redes de sentido actualizan, formulan y transforman el Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 487 acto de decir o silenciar una realidad que es subjetiva, pero que al ser expresada y resignificada se intersubjetiviza. Los actores sociales en la era digital se definen en términos de ser agentes constructores del “yo” y de formular al “otro” en el marco de las acciones colectivas en la sociedad actual. Se formulan desde diferentes niveles del sistema de relaciones sociales, usan la web y las potencialidades de sus recursos como las redes sociales para organizarse, comunicarse y construir su identidad, gestionando formas acción colectiva. Los actores sociales contemporáneos son diversos y múltiples y sus posiciones abarcan el interés de propender por el mantenimiento del status quo, y los que se oponen y resisten. Así, los actores sociales elaboran y crean prácticas que se han trasformado tipificando la tensión que se desarrolla en torno al control de los recursos simbólico-culturales y sociales. De esta manera, no solo inciden en la estructura social, sino que se proponen para incidir en las formas de saber y conocer la realidad. La apropiación del capital simbólico y el acceso a los recursos tecnológicos posibilita a los actores sociales incidir en la cultura, en la construcción de la identidad y en la definición de la acción colectiva (GAINZA, 2006). 2. rutas posibles para la comprensión del Storytelling. La apuesta por la estrategia del engaño. El proceso que va de la descripción, análisis e interpretación del storytelling formulado por el periódico El Tiempo.com, incluyó los criterios de relevancia para la selección del corpus: narrativas mediáticas – storytelling, para la construcción de paz en Colombia, publicadas en las ediciones especiales del periódico. Se trata de la narrativa que los medios producen como ruta para la reconstrucción del tejido social. Se recopilan narrativas entre el 24 de noviembre de 2016 y los dos años que han transcurrido desde la firma del acuerdo con las FARC-EP para formular un estudio de caso. En el proceso de selección se definieron como palabras clave: proceso de paz, memoria y conflicto armado, y sus distintas interrelaciones. En este caso se explora “A qué sabe la paz” publicada el 9 de junio de 2017 bajo la responsabilidad social del periódico El Tiempo y la periodista Perla Toro Castaño. En la primera fase se verifican el conjunto de las características propias del tejido semiótico que constituyen la narrativa mediática. Se determina, desde el posicionamiento temático, cómo se representa el 488 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 problema sociocultural del fenómeno del postacuerdo y el proceso de construcción de paz. El corpus permite identificar el problema social, actualizado en el especial “Treinta encuentros con la paz”, sección “Ideas para recibir la paz” donde a través de 30 narrativas, periodistas de distintos medios del país, escriben storytelling bajo patrocinio nacional e internacional. Se toma como punto de referencia el periódico El Tiempo, que por su trayectoria comunicativa y político-económica en el país, propone a la población colombiana formas de representación de las problemáticas sociales, en este caso, las acciones a seguir en el posacuerdo. El carácter multisígnico y multimedial del discurso que sirve para el estudio de caso, permite identificar el conjunto de representaciones que se construyen a propósito del proceso de paz en Colombia y las acciones en el posconflicto, para reconocer en la narrativa mediática los aspectos que de esa problemática se derivan y las maneras como se orienta discursivamente la acción en la comunidad. El proceso metodológico propuesto pretende identificar en el storytelling, las especificidades que vinculan la narrativa con el conjunto de representaciones procedentes de los distintos procesos históricos y sociales en Colombia. Se explora el sistema axiológico que entraña la narrativa y se explican las relaciones que van de las formas de saber a la propuesta emocional y a la concreción de la acción social, para verificar las implicaciones socioculturales y políticas que se derivan de la propuesta mediática. Se apela a la riqueza sígnica del material objeto de análisis y a la pertinencia en la indagación sobre la representación de la construcción de paz. Del conjunto de relaciones categoriales y el proceso inferencial que se aplica, se deriva un proceso interpretativo en el que se formulan las relaciones que van del discurso a los condicionamientos sociohistóricos y políticos colombianos y, la manera como quedan representados discursivamente en un tipo de narrativa que, en su lógica interna, pretende el éxito de poner a circular en el mercado un producto simbólico, para ser consumido “masivamente”. El Tiempo atiende de esta manera los principios básicos de la política neoliberal y se ajusta a los requerimientos del mercado global. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 489 3. Los sentidos del Storytelling: de las representaciones a las memorias El storytelling objeto de esta indagación se define como una narración de los eventos en la vida de una persona con los que se tematiza al contar. Tiene el propósito comunicativo de generar un tipo de orientación sobre las formas de conocer una realidad social y actuar en concordancia de lo que se propone y representa. En este sentido, la narración es una técnica utilizada para presentar relaciones dinámicas entre nodos de historias, a través de la interacción. Como expresión de la comunicación y la interacción se formula como un espacio de autodescubrimiento que construye modelos, principios éticos, y expresa formas de regulación y control social. Siguiendo los planteamientos de Jelin (2017), la historia de los procesos sociales y políticos, fundamento para la elaboración y transformación de las memorias, es un fenómeno en el cual se reconocen actores sociales con sus producciones y sus tensiones expresadas discursivamente, materializadas y visibilizadas de múltiples maneras. Este proceso adquiere su verdadero sentido cuando se comunica, por lo que las memorias ponen en interrelación indisoluble el presente que es construido desde el sentido del pasado, que se actualiza y reelabora para formular futuros esperables y deseables. De acuerdo con Jelin (2017) las memorias traen “el espacio de la experiencia” al presente que contiene y construye la experiencia pasada y las expectativas futuras” (p. 18). En este marco, es posible pensar los requerimientos para la construcción de una paz duradera en Colombia, debido a las implicaciones que tiene para una sociedad, que entra en un proceso de transformación de sus formas de convivencia, gestionar evoluciones cognitivas desde las distintas instituciones socializadoras que la constituyen; en este caso, narrativizándolas. Interesa, por lo tanto, verificar qué tipo de representación se propone en los medios de comunicación masivos colombianos para articular memorias narrativizadas y socializadas con el propósito de ejecutar la acción política de construir paz. “¿A qué sabe la paz?” es una narrativa que se formula a través de un agente social, Perla Toro Castaño, quien al contar adopta recursos y estrategias semiótico-discursivas que dan identidad a la unidad de significado a través de un rol, formulándola responsable de la creación de lo que expresa. Desde esta posición se dirige a un colectivo anónimo a quien proyecta como usuario-consumidor, de un medio de 490 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 comunicación con el cual se compromete a analizar visualmente datos y fenómenos de la realidad, para generar visualizaciones posibles; utiliza los recursos semióticos disponibles para elaborar secuencias de sentido convincente y comprensible para su interlocutor, afectando e implicando su emocionalidad a través de la historia, que estructura y le da contenido. La elección de estrategias semiótico-discursivas, el uso de los recursos semióticos con la función retórica articulada a la construcción del sentido de evidencia, le da carácter a lo que se narra y define la función socio comunicativa de lo que se expresa. ¿A qué sabe la paz? En Nariño brotan semillas para dioses que, entre plantas y frutos, dibujan la esperanza. FIGURA 1 – Construyendo un modelo de actor social Para Daniela, el chocolate es parte fundamental de su vida y de sus sueños. Foto: Perla Toro Castaño (ElTiempo.com, 2017) “¿A qué sabe la paz? En Nariño brotan semillas para dioses que, entre plantas y frutos, dibujan la esperanza”. (¿A qué sabe la paz? El Tiempo, 9 jun. 2017) Y en el pie de foto: “Para Daniela, el chocolate es parte fundamental de su vida y de sus sueños” la autora formula una manera de construir la historia a partir de la definición del espacio, los eventos y los personajes centrados en un actor social: Daniela Delgado Portilla. En las transiciones articula evento1s, que para la apertura de lo que Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 491 se narra la tierra– lugar fértil– no se hace necesario cultivar – “brotan semillas”, activando lo extraordinario y primigenio, que dentro de lo narrado se dirige a los “dioses”, lo mítico. En la historia que inicia, aparecen las claves que garantizan el flujo de lo que se expresa. La primera transición se elabora asociando “semillas (…) plantas y frutos” con el sentido abstracto de “dibujar esperanza”, activando el sentido de deseable, alcanzable y probable. En el diseño propone para este punto de inicio narrativo factores que sirven de punto de referencia para construir la coherencia general, dando sentido de lo plausible, extraordinario y axiológicamente positivo y jerarquizado. El proceso de construcción y creación que se implica se extiende desde su inicio a un proyecto individual y exitoso, el de Daniela, marcado por el sentido de la subsistencia económica sobre la acción de la autogestión, y se extiende a otros ámbitos de la vida social, que incluyen escenarios como el político y sus nexos con los condicionamientos sociales, anclados a la memoria. La fotografía recupera al actor principal identificado plenamente, como un agente de su desarrollo personal, que se ubica idealmente en un lugar de trabajo, atribuyéndole desde la omnisciencia: “Para Daniela, el chocolate es parte fundamental de su vida y de sus sueños”, donde ‘vida’ y ‘sueños’ promueve un ideario de desarrollo previsto para quienes cuentan con valores como “el esfuerzo personal, el éxito, la individualidad, la competencia y la eficiencia”, entre otros. La distribución espacial de la imagen fija siguiendo a Kress, Leite-Garcia y Van Leeuven (2001), tiene su correlato en la estructura semiótico-discursiva, implicando temáticamente la información dada o conocida y la información nueva que, a su vez, determina y soporta la relación semántico-pragmática de complementariedad de la expresión verbal a la visual gráfica. Daniela es representada verticalmente abajo – arriba – derecha. Esta posición está marcada ontológicamente, mientras que la distinción derecha-izquierda está definida por el espacio que idealmente es ocupado por Daniela y que se articula a los ideales culturales de lo marcado positivamente: pulcra –vestida de blanco– actitud servicial y activa en un espacio limpio y moderno. La construcción idealizada del entorno, una cocina tipificada como moderna, amplia y funcional, y el espacio como luminoso, limpio y con vistas a un paisaje natural. El plato que porta Daniela se distribuye jerárquicamente, de manera que los postres ocupan mayor espacio del lado izquierdo, formulando el 492 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 carácter real y conocido del producto. La imagen fija estructura, por lo tanto, el sentido ficcional de lo representado donde el tema y el rema no se expresan y, se genera en torno a la imagen el sentido de tematización. La relación semántico-pragmática de la expresión verbal a la imagen incluye entre otros aspectos la descripción del lugar de trabajo de Daniela, donde se resalta la precariedad que se supera cuando se poseen las características del sujeto individualizado y competitivo: Lo logró entrenando en un microondas, en una cocina donde caben unas seis personas, pero donde entrenan más de 40 nariñenses. Sin mesón de mármol e incluso, sin luz. “En la primera fase de la competencia se fue la luz, era en Atlántico. Nos tocó terminar las competencias nacionales en Bogotá”. (El Tiempo, 9 jun. 2017) Pastusa de nacimiento, Daniela viajó a Perú en el 2013 gracias a un premio que le otorgó el Sena para aprender de pastelería avanzada; pero, como cuenta su maestro Pablo, fue “su destreza artística, pasión dedicación y disciplina” los ingredientes que la llevaron a representar a Colombia en una competencia internacional. (El Tiempo, 9 jun. 2017) La relación de complementariedad propuesta implica que el emprendedor es un ser que procede de la precariedad y que debe apropiar competitividad, individualidad y eficiencia para alcanzar el éxito que le propone el sistema; adoptando los estándares de alta cocina, en la que se consumen y disponen de recursos de alta calidad. La pretensión de estructurar la narrativa a través del recurso retorico de la comparación o símil, lleva a la narradora a formular el núcleo conceptual de lo que pretende instalar como saber [Construir paz] al afirmar: Para describir la paz hay que ser inmoderadamente subjetivo. En vez de hacer todo lo posible por racionalizarla, por volverla una casilla –como suelen hacer aquellos que buscan precisión en un molde–, hay que cosecharla, seleccionarla, saborearla, degustarla y, por qué no, cocinarla. (El Tiempo, 9 jun. 2017) En primer lugar, la paz es un asunto del absoluto privilegio del individuo, lo que le permite asignarle, en un grado superlativo al proceso social expresado, la elisión del carácter definitivamente colectivo. Esto implica que la construcción de paz en Colombia, en el marco del Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 493 postacuerdo, elide y suspende la resolución conjunta de tensiones en una comunidad, la relación interactiva entre sus miembros, la búsqueda sistemática de acuerdos y metas comunes, entre otras acciones de orden simbólico-político-social, que garantiza formas de convivencia entre los seres humanos. En segundo lugar, la narrativa autoproclama en el storytelling la idea central de cambiar o transformar el carácter colectivo de la acción social, para posicionar y formular el ideario neoliberal con sus valores como fuente de la convivencia social. El saber, en este caso, es el producto simbólico encarnado en el storytelling, para lo cual se apropia de un discurso multimedial y multimodal, construido con recursos como la focalización y el uso de marcadores emocionales, proponiendo en abstracto la retórica de la esencialidad global y neoliberal: “semillas para dioses que entre plantas y frutos dibujan la esperanza” “Inmoderadamente subjetivo”; “De cacao, paz y, como si fuera un tercer ingrediente, de esperanza también sabe Daniela Delgado Portilla (…)”; “Campeona colombiana”; “(…) esperanza de futuro”; “satisfacción personal”; “hazañas tan arriesgadas”. La definición liberal del sujeto social como un individuo que se define por su capacidad de poseer, se expresa en la forma de establecer la relación del actor social consigo mismo, sus capacidades y sus bienes; la actividad humana es económica y se desarrolla en el mercado. Esta forma de entenderse determina sus funciones en el mundo: poseer, intercambiar, acumular y consumir. Con este ideario se fundamenta que maximizar el beneficio y tener en el horizonte ético el respeto por la propiedad privada es un valor esencial. En este sentido, se explican los usos discursivos que formulan el modelo de individuo neoliberal: ser “inmoderadamente subjetivo”, ser “campeona”, disponer de “satisfacción personal”. La realidad humana, personal y social, está determinada por la mecánica economicista y en esta relación se insertan las decisiones: “hazañas tan arriesgadas”. La desigualdad de orden político-económico-social procede de la desigualdad natural, por lo que, en esta racionalidad, el acceso a los bienes simbólicos y culturales se definen en la desigualdad ética, política y jurídica (HAYEK, 2008). Las acciones solidarias, la distribución igualitaria del producto y del trabajo en común desaparecen, y la potencialidad humana para la acción colectiva se desvanece. Dentro de estos idearios la libertad es un valor abstracto y económico, centrado en las acciones de producir, 494 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 acumular y consumir. La libertad es la capacidad de entrar o no en relaciones de mercado. Así, la libre competencia genera desigualdades entre los sectores de éxito, que pueden disponer de mayores excedentes para invertir, y consumir a través de las garantías que ofrece la libre empresa. Finalmente, los idearios globales y neoliberales propenden por sostener que, en la libertad, el ser humano se ajusta a normas y tradiciones. De suerte que el orden social que procede del hacer humano es débil e inestable, y las tensiones graves o las crisis solo se superan en el ejercicio de las normas y las tradiciones, de modo que, si hay rupturas o transgresiones se produce el caos social (BERGER, 1971). De la relación que se establece entre los principios neoliberales aplicados a la economía se infiere que, los discursos distribuidos socialmente construyen la imperante necesidad de que los ciudadanos estén creando constantemente metas e ilusiones, en las cuales, como lo señalan Van Dijk (1998) y Žižek (2009) el bienestar y la dignidad humana no proceden de la “libertad” y el “éxito” prometido. En este proceder la ilusión define el proyecto de vida y su alcance se limita a los logros irrisorios que le permiten el mercado y la estructura política rígida, con lo cual alcanzar la ilusión impone una nueva meta. De esta forma, elidir los saberes sobre lo alcanzable y lograble constituye una secuencia de acciones infinitas. Se perfila entonces, en el neoliberalismo “sujetos modelo” con logros irrisorios y parciales. Este es el caso que referencia el Storytelling objeto de este análisis, para formular un ser individualizado que pretende objetivar el éxito y persigue la ilusión de alcanzarlo, creando falsos reconocimientos que, al visualizarlos socialmente, adquieren el carácter heroico o sublime. De esta manera, los idearios se subjetivizan, para desarticularlos de las ideologías imperantes, desarraigándolos de las relaciones de dominación que gestan y reproducen. En el Storytelling ¿A qué sabe la paz?, si bien el formato no se auto propone como vinculado con alguna idea de persuasión comercial o institucional, tiene su cotexto dentro del medio de comunicación que posee su propio branding y requiere pauta comercial. El especial “treinta encuentros con la paz” contó además con financiación internacional y nacional, y se construyó sobre criterios preestablecidos inherentes al género. El sistema axiológico que se deriva de la narrativa propuesta aquí analizada, se apropia del sentido de éxito como parte de la axiología neoliberal, construido a través del “protagonista modelo”, concebido como un sujeto que, superando los condicionamientos propios de la Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 495 realidad colombiana, gestiona a través del esfuerzo individual, unas condiciones socioeconómicas que le imponen ser autosuficiente en el proceso de alcanzar la vida digna dentro del modelo económico imperante. La “protagonista modelo” se propone como un sujeto con talento, con formación técnica resultado de su esfuerzo personal, capaz de desarrollar grados de competencia para su trabajo y su producto, con voluntad de sobreponerse y superar situaciones de adversidad de orden social y personal, y de ubicarse funcionalmente en el sistema económico. La construcción de la axiología neoliberal en este caso se propone y socializa como la condición para, en el marco del postacuerdo, construir paz. La ruptura epistemológica y ética se deriva de proponer a los ciudadanos que los derechos individuales proceden del sujeto que aspira a disfrutarlo, y no, del ciudadano de derecho que comparte colectivamente los condicionamientos propios de una sociedad democrática, donde el Estado asume responsabilidades propias de un Estado social de derecho definido en la constitución política de Colombia. Las políticas del modelo neoliberal se privilegian sobre el deber ser del sistema político latinoamericano. Entre los recursos semiótico-discursivos que interesa desentrañar, por las significaciones político-sociales que encarnan, se destaca la tendencia sinestesica del discurso, a través de la cual se construye una sensación perceptual a un fenómeno, objeto o entidad que efectivamente no lo tiene. Si fuera necesario pintar la paz con un color, empezaría por el amarillo y terminaría, contrario a lo que dicen los libros y las palomas, en un café tan oscuro que a primera impresión parecería negro. De ese negro se desprenderían aromas, algunos tan amargos que costaría comprenderlos. (¿A qué sabe la paz? El Tiempo, 9 jun. 2017) La propuesta discursiva, formulada para conceptualizar “Paz” en tanto fenómeno político, social y cultural abstracto y articulado al concepto de convivencia, se propone como una acción físico-creativa “(…) pintar la paz”, en donde un sujeto individual, la narradora, decide sobre la materia, los saberes y las propiedades asignables, de manera que, le atribuyen al color negro la capacidad de pasar perceptivamente de su propiedad visual a una propiedad olfativa que no existe. Además, lo 496 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 relaciona perceptualmente con el sistema sígnico gustativo, estableciendo la relación entre amargo y negro. La alegoría como recurso semiótico sirve para transformar perceptualmente el conocimiento que debe tener una sociedad sobre el concepto de paz. En esta perspectiva, la narradora propone individualmente, “(…) darle forma a la paz (…)” naturalizando el fenómeno sociopolítico y cultural en un ser vivo –biologización–. El “árbol” es caracterizado y cuantificado para sobreponer artificialmente otro ser vivo como es el “árbol de cacao” generando una ruptura en el proceso de desarrollo natural del ser vivo propuesto. Para consolidar esta relación se utiliza tanto la cuantificación como la voz directa. En cuanto a la cuantificación, el objetivo es indicar que el cacao ha logrado ganar un lugar en el sistema económico por la cantidad de toneladas producidas. La legitimación del cacao hasta el punto de mencionar que a su alrededor debe haber un “crecimiento en los compromisos estatales y empresariales para fortalecer la industria y la cadena productiva”. Esta legitimación numérica del cacao se complementa con una deslegitimación de la coca. A partir del Programa Nacional Integral de Sustitución de Cultivos de Uso Ilícito (PNIS) que se inicia en el marco del posacuerdo, el país implementa una estrategia de desarrollo alternativo, el cual tiene entre sus antecedentes el CONPES 3218 de 2003. En este documento se establecieron proyectos agroforestales que incluían el cultivo del cacao, café, caucho, palma y plantaciones forestales, entre otras. El programa actual cuenta con la intervención directa de instituciones nacionales y el apoyo internacional de la Agencia de Estados Unidos para el Desarrollo Internacional (USAID). En cuya propuesta se expresa la necesidad de fortalecer los diferentes eslabones de la cadena de valor para alcanzar competitividad y sostenibilidad, incidiendo en la calidad de vida de las comunidades afectadas por el conflicto armado colombiano. A la fecha USAID afirma que cuenta con 9,547 asociaciones productoras, distribuidas en los departamentos de Nariño, Tolima, Antioquia, Meta, Bolívar, Sucre, Caquetá, Córdoba, Cesar, Magdalena y Guajira; estos son 12 departamentos del país localizados en distintas zonas geográficas. El proceso de diversificación productiva ha venido incidiendo en la transformación del paisaje rural y, en general del territorio, además, en las maneras de gestionar procesos de cohesión social, en donde se pretende articular la producción de cacao con los procesos de “desarrollo” del país. Desde esta posición, el proceso de sustitución ha afectado el Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 497 medio ambiente colombiano, si se tiene en cuenta que los proyectos agroindustriales, como el de palma, están causando graves daños al ecosistema. Estos proyectos también han sido la razón para el despojo de territorios victimizando grandes sectores de la población colombiana y la intervención sobre la tierra, gestionando “desiertos verdes”, sequías y la eliminación de la flora y fauna nativa. A esto se adicionan las consecuencias socioculturales que se derivan de la precarización del trabajo rural, la acumulación atribuible a multinacionales y capitales extranjeros, que captan de manera ilimitada los recursos nacionales y los recursos que se derivan del trabajo de la tierra, la ausencia de condiciones de bienestar básicas para la población campesina como salud, educación e infraestructura. En consecuencia, el PNIS en Colombia muestra un aumento significativo en términos de áreas de tierra cosechadas e incremento en los procesos de producción y sus ganancias, las cuales no se ven, necesariamente, reflejadas en la población campesina ni en el trabajador rural, actores sociales a los que se dirigía el programa originalmente. Según el especial ‘La Coca y la Paz’, hecho por la Unidad de Datos de El Tiempo, solo tres de los 32 departamentos de Colombia están libres de coca: La Guajira, Caldas y Cundinamarca. En los últimos tres años, el número de hectáreas de cultivos de coca se duplicó, con un crecimiento del 99 %. (El Tiempo, 9 jun. 2017) “Colombia pasó de 69.000 hectáreas de coca en el 2014 a 96.000 en el 2015. El equivalente a ocho parques temáticos al estilo Disney o un poco más de la mitad del área de Bogotá”, señala la investigación. (El Tiempo, 9 jun. 2017) Para el 2016, en Nariño había 29.755 hectáreas de coca sembradas. Solo en este departamento del sur del país podía encontrarse más coca que en Bolivia, país latinoamericano que tiene 20.200 hectáreas. (El Tiempo, 9 jun. 2017) En el marco de estos condicionamientos sociopolíticos, económicos y culturales, el storytelling se propone funcional al proceso de “desarrollo económico” propio del neoliberalismo, en concordancia con la acumulación de capitales y la desestructuración del concepto de desarrollo del conjunto de condiciones que garantizarían la vida digna para la mayoría de los ciudadanos. Hay, por lo tanto, en esta propuesta, 498 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 una defensa a los intereses de las grandes industrias y de los grandes capitales, incluido el Estado, abandonando los colectivos sociales y los distintos grupos humanos que con su trabajo sostienen la mecánica del sistema productivo. El recurso semiótico discursivo que se apropia para reproducir el sistema económico hegemónico, se propone a través de la cuantificación de la cantidad de territorio que se encuentra utilizado para el cultivo de coca, con el objeto de que el interlocutor-lector infiera que existe la necesidad de que ese territorio se ponga al servicio de los proyectos agroindustriales. Dado el carácter incontrovertible de la cuantificación, el recurso estadístico sirve para construir formas de ocultamiento, las cuales invisibilizan las causas estructurales, reales y determinantes de las condiciones de empobrecimiento y marginalización que el storytelling nominaliza y atribuye a zonas específicas, y a poblaciones concretas: En Tumaco las poblaciones son muy pobres, pese a que es ‘la gran ciudad’ que recoge el mayor número de personas entre los municipios de la zona. Más del 70 % de la población no tiene trabajo y la falta de oportunidades hace que el campesino caiga fácil en la ilegalidad […] (El Tiempo, 9 jun. 2017) En esta cita directa atribuida a un empresario del ‘turismo sostenible’ se resaltan las condiciones socio-económicas negativas de Tumaco y de sus pobladores, los cuales son asociados con fenómenos como la carencia de fuentes laborales, la ilegalidad y la pobreza. La asociación y la inferencia que se busca producir es que, en una zona como Nariño, es necesario reducir el cultivo de coca por el de cacao, un cultivo que es más productivo para los intereses estatales, la agroindustria y las inversiones internacionales: “En Tumaco saben de drogas, sí. Pero, con el tiempo y pese a que la coca crece más rápido que el cacao, también se han vuelto expertos en chocolate.” La descontextualización socio-política e histórica de lo que se expresa, desconoce las razones por las cuales el país y algunas regiones en particular, asumen el cultivo de la coca como una alternativa para la supervivencia, en regiones abandonadas por el Estado y con presencia del conflicto armado y las violencias vigentes. Consecuencia de políticas históricas de exclusión y marginalización social, y la ausencia sistemática de inversión básica en infraestructura y servicios para la población. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 499 Parte fundamental del proceso de la descontextualización se produce al ocultar, que cuando se propone la experticia en chocolate, corresponde al país en la cadena de producción, el cultivo del cacao como materia prima que se exporta en cantidad significativa y regresa al país procesado. El producto final no es de acceso para los campesinos que trabajan el proceso generador de la industria– el cultivo–, sino que se restringe a sectores como el ‘mesón gastronómico’ y los hoteles, donde el consumidor es el turista. De acuerdo con el Informe de la Federación Nacional de Cacaoteros, Fondo de estabilización de precios del cacao – FEP cacao 2017, Colombia exporta 11.926 toneladas frente a una producción equivalente a 60.535. “La inocencia sonriente del cacao” cierra el storytelling propiciando la reflexión que va de la construcción de la emocionalidad con sus implicaciones, a la construcción del engaño mediático, a través de la apropiación de un saber especializado. Los marcadores de emocionalidad en el discurso desempeñan funciones semántico pragmáticas que como se ha señalado sirven, por una parte, para promover en el interlocutor, experimentar emociones intensas, que se formulan en el relato proponiendo grados de relevancia a lo que se expresa, aun cuando se trata de eventos intrascendentes y, por otra parte, narrar formulando relevancia cognitiva, para ocultar saberes de interés para la sociedad lecto-interpretadora de la narrativa propuesta. La influencia de las emociones, como lo ha señalado la ciencia cognitiva, influye sobre procesos como la atención, la memoria, el razonamiento, la toma de decisiones o la atribución (BLANCHETTE; RICHARDS, 2010; ISEN, 2010). En esta línea, la construcción mediática del miedo o la formulación de condiciones de ansiedad son producidas por el temor a ser percibido socialmente, a través de estereotipos negativos o a ser ubicado por fuera de los parámetros valorados socialmente; es decir, ser inadecuado. En esta construcción mediática se determina el funcionamiento cognitivo, cuyo efecto es reducir los recursos de la memoria, disminuir el trabajo cognoscitivo y reducir o eliminar tareas de evaluación (BLANDÓN-GITLIN; LÓPEZ; MASIP; FENN, 2017). Desde el punto de vista crítico discursivo se propone verificar mediante los marcadores semiótico discursivos, apropiados y seleccionados por el narrador, el reconocimiento y la explicitación de los recursos cognitivos, los mecanismos y los procesos representados, para interpretar correctamente las claves que explicitan las formas 500 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 de construir el engaño mediático, claves que dan cuenta del esfuerzo cognitivo realizado para funcionalizar la construcción discursiva que efectúa el narrador. El Storytelling, objeto de esta indagación, se formula en torno a tres unidades cognitivas y conceptuales: una historia de vida individual, un reporte mediático y un reporte técnico oficial. En el primer caso, la historia de vida se formula activando la memoria sensorial, centrada en marcadores emocionales, por lo tanto, se espera que la información propuesta mediante los sentidos sea automática y desarticule formas de racionalidad o conexiones lógicas. Esto explica el carácter ejemplar y exitoso en la construcción del “actor modelo”, que sirve de punto de referencia para eliminar la inadecuación y el temor de no ser como el “modelo”. El segundo caso es el reporte mediático articulado como intertexto, que activa la memoria de trabajo para actualizar pequeñas unidades de información, que pueden funcionalizarse al integrarse con el carácter viral del medio; de esta manera se reitera y replica, sin análisis previo, fragmentos de información. Este proceso de memoria de corto plazo, permite transformación y usos de la información disponible; además, es en donde pueden aparacer narrativas – narradas, que vinculan información auditiva-sonora; visual-espacial y, en general, las formas materiales del sentido, en tejidos sígnicos. El tercer caso es el reporte técnico, que se asocia más a la activación de memoria de largo plazo, en la que se recurre a volúmenes de información poniendo en relación la memoria episódica, más articulada con eventos y la semántica que atañe a información factual. En este caso, la memoria de largo plazo propende por la estabilización de saberes, aunque esta pueda transformarse, distorcionarse u olvidarse. En este punto, quien produce el discurso asume la decisión de formular para su interacción el grado de coherencia, verosimilitud, propósito e intereses que construye y socializa para su interlocutor. Por lo tanto, del sistema decisional adoptado depende de que el discurso represente la realidad narrada, mintiendo, ocultando y en general engañando (Van DIJK, 2016). Es a partir de esta posición epistémica que podemos entender las circunstancias que determina el engaño mediático que como se ha señalado, requiere de un trabajo cognitivo. Por lo tanto, se implica explorar la información y los recursos semióticos que la materializa en las rutas cognitivas que se formulan desde el trabajo de las memorias. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 501 IMAGEN 2 – Colombia cultiva cacao. Otros lo procesan y lo consumen Cultivador de cacao en fruto en Tablón Dulce, Tumaco. Antes de que comenzara los diálogos, campesinos decidieron probar el sabor de la paz reemplazando sus cultivos de coca por el cacao. Foto: Mauricio Dueñas (El Tiempo, 9 jun. 2017) La imagen, una fotografía en plano medio, se encuentra en relación semántico pragmática de complementariedad con el texto (pie de foto), tematizando al agricultor-cultivador, el cual determina el encuadre de la imagen. La fotografía construye que, el fruto del cacao en un primer plano sobredimensionado, es la garantía para la transformación social. La relación de complementariedad se expresa también en el storytelling: tanto los nariñenses como los gremios esperan que la producción del cacao aumente, pero con esta también un crecimiento en los compromisos estatales y empresariales para fortalecer la industria, la cadena productiva y las garantías que le permitan a la paz ser como el cacao. (El Tiempo, 9 jun. 2017) Se elide la información relacionada con el papel de Colombia en la cadena productiva y se establece que el aumento del cultivo de cacao, 502 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 atiende compromisos “intereses” del Estado y el sector empresarial, eliminando el interés del colectivo “los gremios – los nariñenses”. Poco a poco, el cacao colombiano ha logrado ganarse un lugar en el mundo. Según la Federación Nacional de Cacao (Fedecacao), en el 2016 la producción aumentó en 3,6 %. “Mientras que en el 2015 se sembraron 54.798 toneladas, en el 2016 fueron 56.785”, según lo expresó su presidente Eduardo Banquero López, en un comunicado publicado en febrero de 2017. (El Tiempo, 9 jun. 2017) En el informe que sirve de referente en esta parte final del Storytelling, se establece el intertexto como recurso semiótico discursivo, el cual posibilita verificar el esfuerzo cognitivo implicado para dar sentido de verosimilitud. Este intertexto se formula desde la activación y uso de la información fáctica, para crear el sentido de que, lo expresado, debe ser creído y está sustentado, en este caso, desde la autoridad, el rol y la institucionalidad que se propone. El siguiente recurso semiótico discursivo se estructura desde la información que procede de la memoria de trabajo y la articulación con la memoria sensorial para la construcción del símil: “permitan a la paz ser como el cacao: estimulante para el amor, un regulador natural para el estrés y una forma de aliviar la depresión”. Además, se hace intertexto con saberes sociales expresados en la vida cotidiana y la literatura, con el propósito de mantener el sentido de lo incontrovertible, en virtud de su permanencia en la cognición social: Para el 2017, tanto los nariñenses como los gremios esperan que la producción del cacao aumente, pero con esta también un crecimiento en los compromisos estatales y empresariales para fortalecer la industria, la cadena productiva y las garantías que le permitan a la paz ser como el cacao: estimulante para el amor, un regulador natural para el estrés y una forma de aliviar la depresión. (El Tiempo, 9 jun. 2017) Ahora, si se trata de no ser inmoderadamente subjetivo, podría decirse entonces que en Nariño la paz sabe a cacao y que, como en una frase famosa del escritor irlandés George Bernard Shaw, es mejor que los cartuchos. “¿Para qué sirven los cartuchos en la batalla? Yo siempre llevo en su lugar chocolate”. (El Tiempo, 9 jun. 2017) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020 503 Conclusiones preliminares La exploración analítica formulada desde los ECDMM e integrada al carácter semiótico discursivo del Storytelling, por una parte, ha permitido recuperar los sistemas ideológicos formulados con sus anclajes y compromisos de orden económico-político y social. Por otra parte, posibilita ilustrar desde los recursos semiótico-discursivos, los mecanismos y procesos cognitivos que se implican en el diseño, producción y socialización del discurso mediático. Este discurso se ha caracterizado por construir el engaño, el ocultamiento y la elisión de la información que el ciudadano común requiere para la comprensión de su realidad socio-política y cultural. La detección de las formas de construir el engaño mediático, socializado a través de un especial que se propone para formular rutas y acciones políticas tendientes a la construcción de paz en Colombia, demuestra que los interlocutores – lectores confían en los recursos semiótico discursivos usados por el narrador y se verifica la influencia persuasiva que el medio potencializa y pone al servicio del sistema socio-político vigente. En este marco se correlaciona el hacer político con los saberes que se distribuyen para legitimar la acción socioeconómica y política neoliberal con los principios de la globalización. En el estudio exploratorio del Storytelling se ha verificado su capacidad para captar la atención del interlocutor, mediante recursos y estrategias semiótico-discursivas, articuladas a las formas de activar la memoria y gestionar emociones, intertextos, nominaciones, entre otras. También, la potencialidad que tiene en la formulación de axiologías, normas y principios orientadores de la acción social, legitimadores del orden socio político imperante; la narración está al servicio de los intereses del mercado y de quienes ejercen el control de los capitales. En la exploración analítica:  se ha permitido recuperar los sistemas ideológicos formulados con sus anclajes y compromisos de orden económico-político y social.  se ilustra desde los recursos semiótico-discursivos, los mecanismos y procesos cognitivos que se implican en el diseño, producción y socialización del discurso mediático. 504 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 479-506, 2020  el discurso se ha caracterizado por construir el engaño, el ocultamiento y la elisión de la información que el ciudadano común requiere para la comprensión de su realidad socio-política y cultural. La detección de las formas de construir el engaño mediático, socializado a través de un especial que se propone para formular rutas y acciones políticas tendientes a la construcción de paz en Colombia  se infiere que los interlocutores – lectores confían en los recursos semiótico discursivos usados por el narrador y se verifica la influencia persuasiva que el medio potencializa y pone al servicio del sistema socio-político vigente.  se correlaciona el hacer político con los saberes que se distribuyen para legitimar la acción socio-económica y política neoliberal con los principios de la globalización.  se verifica su capacidad para captar la atención del interlocutor, mediante recursos y estrategias semiótico-discursivas, articuladas a las formas de activar la memoria y gestionar emociones, intertextos, nominaciones, entre otras.  se determina la potencialidad que tienen los storytelling en la formulación de axiologías, normas y principios orientadores de la acción social, legitimadores del orden socio político imperante  se establece que la narración está al servicio de los intereses del mercado y de quienes ejercen el control de los capitales. referencias ALBRIGHT J. 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Before starting their undergraduate programs, however, they come to UFBA for linguistic and cultural instruction for a period of 8 months. The survey and the discussion of the results encompass interviews with 25 students about their cultural experiences and their intercultural development over the initial period of 6 months. They present a complex interaction of an originally middle-class background with professional aspirations in their home countries to a lower social status in a country with a history of slavery and racism. Many stories illustrate the conflicts they experience and the coping mechanisms they develop to navigate a new environment in which they will be immersed for a long period (at least 4 more years) while retaining as much of their original affiliations and identity as possible, especially considering that they are expected to return to their home countries after graduation. Keywords: Portuguese as a second language, identity and language acquisition, immersion and language learning, racism in Brazil. resumo: Este artigo apresenta os resultados de uma pesquisa com estudantes africanos e da diáspora afro-caribenha no Brasil. São participantes do PEC-G, um programa 1 PEC-G, Programa Estudante Convênio de Graduação, Undergraduate Exchange Student Program. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.507-534 508 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 do governo federal que oferece vagas em cursos de graduação gratuitamente em universidades brasileiras. Antes de começar a graduação, no entanto, eles vêm à UFBA para um curso de língua portuguesa e cultura por um período de 8 meses. A pesquisa e os resultados apresentados cobrem entrevistas com 25 estudantes sobre as suas experiências culturais e o seu desenvolvimento intercultural nos seus primeiros 6 meses. Aqui se revelam interações complexas entre sua situação social de classe média com ambições de ascensão social trazida dos países de origem em contraste com um status social diminuído em um país com uma história de escravidão e racismo. Muitos relatos ilustram os conflitos vivenciados e os mecanismos desenvolvidos para navegar um ambiente novo em que eles estarão por um longo período (no mínimo mais 4 anos) ao mesmo tempo em que conservam o máximo possível de suas afiliações e identidades, particularmente considerando que o programa prevê o seu retorno ao final da graduação. Palavras-chave: português como segunda língua, identidade e aquisição linguística, imersão linguística, racismo no Brasil. Submitted on August 12th, 2019 Accepted on October 17th, 2019 1 Introduction2 Every year, the Universidade Federal da Bahia (UFBA), in Salvador, Brazil, receives about 30 students from over 20 African countries and a handful of African Diaspora students from Englishspeaking Caribbean nations. They seek mandatory Portuguese language instruction at UFBA for approximately 8 months before heading to other Brazilian cities to pursue their undergraduate studies, where they live for at least 4 more years until graduation. Those international students arrive at UFBA under the federal PEC-G program, by which they are granted tuition-free spots at over 100 Brazilian universities. Either their home governments or they themselves must fund air travel and personal expenses while studying in Brazil. PEC-G is a 50-year old international cooperation program aimed at providing educational opportunities for students from countries where access to higher education is limited. It was originally designed to serve Ethics Committee approval CAAE: “Construindo projetos possíveis: itinerários formativos de jovens africanas/os não falantes de português no Programa Estudante Convênio de Graduação”, 91829418.9.0000.5505. 2 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 509 students from Cape Verde, Guine Bissau, and Sao Tome e Principe. Today, according to the Ministry of Education, about 75% of approximately 3000 students come from Portuguese-speaking countries in Africa, and land directly at the university of their undergraduate degree. Around 10% come mostly from Latin America and may fulfill their language requirement in their home countries. The rest, around 15% who do not speak Portuguese and come mostly from non-Portuguese speaking countries in Africa, must first attend an intensive language course at 20 universities in Brazil – UFBA being one of them. In late October, they must pass the official language proficiency examination Celpe-bras3 before moving on to their undergraduate studies elsewhere. The students who come to Brazil for language instruction come from countries where the exam is not offered. At UFBA, they are at the initial and most intense, critical stage of their very long stay in Brazil, at an also critical stage of their lives, as young adults. They are also under enormous pressure, having to pass the Celpe-bras exam in a mere 8 months. This chapter analyzes the experiences of these young African and Caribbean pre-undergraduate students as they try to adapt to life in Brazil and learn Portuguese, knowing they will spend the next few years in the new country. Coming to Salvador, Bahia, these African and African Diaspora Caribbean students arrive at the most African city in Brazil, with a population between 70% and 90% of African Brazilians. The African presence in Salvador da Bahia is present in the bodies of its people, in the colorful headscarves on women’s heads, in the acarajé4 stalls that occupy the city and infuse it in palm oil scent in the late afternoons, and Candomblé, the African religion that Brazilians share with other diaspora communities in Latin America and the Caribbean, as well as with people in West Africa. Salvador is also a stronghold of African pride and the AfroBrazilian cultural-political movements. As such, several communities in the city project the social representations of ancestral Africa, as all Certificado de Proficiência em Língua Portuguesa para Estrangeiros, Portuguese Language Proficiency Certificate for Foreigners. 4 Kidney-bean bun, which is deep fried in palm oil. It is cut in half and filled with Caruru (an okra-based paste) and Vatapa (a starchy paste made with several ingredients and palm oil), tomato and onion salad, and dried shrimp, also very common in parts of West Africa. 3 510 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 communities do. These, naturally, bear relative resemblance with the realities experienced by many present-day Africans. Also, as a former slave-based society, Salvador’s racial relations are also the basis of the distribution of resources, privileges, and power. In that sense, people in Salvador see in the bodies of these African students both myths of an ancestral Africa as well as the stereotypical places reserved to current African Brazilians, typically in the lower echelons of society. These are new roles for them, and they struggle to adapt to a new cultural background and a social order that may differ from their home experiences. They also bring to Salvador their own dreams and expectations about life in a foreign country, adventures, adulthood, university, and their future in general. Not only that, they also carry the expectations of their families and friends, as well as from their national governments, which, in many cases, award them scholarships to enable them to pursue their studies in Brazil. In Salvador, they must confront their dreams with the reality of their experiences. Their presence in Salvador is no coincidence. UFBA defines how many PEC-G students it admits yearly for the Portuguese language course and their origin. It is currently the university in Brazil that receives the most students under the language phase of the program, nearly all from Africa and the Caribbean. Given the local history and demographic makeup, the university sees international students from Africa and the African diaspora as a priority. The idea is that it is important to establish a dialogue with people from regions which share a common history albeit from different perspectives under the umbrella of the university. In that sense, the Portuguese language course and their cultural training is centered on the premise of that cultural exchange as a basis for intercultural dialogue. 2 The Portuguese language course at uFBa In 2014, the various tuition-free Portuguese language courses offered to international students were unified under the Profici-PFL (Portuguese as a Foreign Language) program at UFBA. It currently welcomes a total of around 100 international students year-round, mostly from West Africa, Western Europe, and Latin America. At UFBA they attend courses under several institutional programs: PEC-G, the Organization of American States (OAS) PAEC, semester abroad exchange Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 511 agreements with universities around the world, Fullbright Foundation language assistants, Fiocruz research assistants, and many others. This article focuses exclusively on PEC-G students and their experiences, but they share their classes with undergraduate and graduate students from all over the world. This is an important element of the program, as I believe that they gain invaluable experience and insight from their contact from students from different countries and also with Brazilians, all at different stages of their university education. The main guidelines of the course are: ‘learning from diversity’, ‘learning to learn’, and ‘learning from real experiences’. The Profici-PFL was designed as an experimental program and it undergoes frequent evaluation and redesign. It is currently taught by 4 undergraduate and graduate students under my coordination, with a student-centered, project-based, multi-level learning approach. Unlike traditional approaches in which students are divided by personal characteristics, ‘learning through diversity’ means that all students are grouped together, regardless of Portuguese language proficiency, country of origin, language(s) spoken, age, etc. Classes are as diverse as possible, with a mix of students from each background. Fundamentally, the program aims at helping students to become independent learners. That means that they are led to go through gradually structured real-life experiences and reflect on them so that they learn to learn independently from the immersion situation. In that sense, they are led to seek interactions, build relationships, and always reflect on their experiences. In that process, they achieve linguistic proficiency and intercultural skills on their own, according to their individual learning styles and needs. My hope is that they then learn the strategies they need to continue to learn independently through their long stay in Brazil and afterwards. That means that the course proposes projects, which offer a progression of real cultural and linguistic interactive experiences in the immersion environment. Students learn language and culture from interactions in their new environment, and ultimately succeed in building relationships. No books, tests, grammar and vocab, etc. The project is the class and the class is the project. Projects are structured as preparation, execution, discussion, and reflection, in one-week cycles. In preparation, the structure of the project is presented and thoroughly discussed in class, with the necessary instructions and training – both linguistically and culturally. Then, there 512 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 is execution. Projects are long, complex, and time-consuming. They also present great variety, so that students are encouraged to explore, interact and have meaningful, varied experiences. Sometimes they are done individually, sometimes in pairs, and sometimes in groups. Finally, in discussion, they present the results of their project and talk about the experiences during execution. There is linguistic instruction, but intervention is always individual, contextualized, and focused on immediate and practical questions and difficulties. Here are some examples of projects done in the first 8 weeks of 2016: Treasure hunt My country, my history Field interviews on public services in Salvador My Brazilian friend Cooking fest Music and dance in Brazil and in my country Work and career Events and cultural life in Salvador Film My career and my sojourn in Brazil Traditional festivities Projects present much variation, but, as an example, here is an outline of the first project (in line with STOLLER, 2006), “The Treasure Hunt”: Step 1 – Preparation: In-class activities about Salvador, its neighborhoods, public transportation; asking for directions, asking for help, asking prices; Step 2 – Execution: Students lay out a plan for covering the tasks in groups of 3. They visit 6 sites around the city by bus and take selfies at each one; Step 3 – Discussion: Students prepare a picture presentation of the neighborhoods they visited; they prepare a laundry list of difficulties and incidents; they present their experiences and discuss them in class; Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 513 Step 4 – Reflection: Finally, they write about any aspect of the experience on their blog. Step 4 – Shows that students write a blog through the course, discussing their immersion experiences. They also keep a diary, which is a simpler, more formal task. In the diary, they take notes or write a paragraph about their linguistic and personal experiences. On Fridays, class is based on the discussions of the themes in their blogs and diaries. One important aspect of ‘learning from diversity’ is that students are not divided by level of proficiency. As such, there is an expectation that they learn to work as a team, helping each other and learning in a diverse environment, as is the case in the real world. In that environment, students with a higher level of proficiency do more linguistically sophisticated projects. Students with a lower level of proficiency present projects at a simpler linguistic level. All learn something and they learn together as a team. The main objective of the course is for students to develop their own individual learning strategies, to ‘learn to learn’. Some prefer more analytical, structured learning, most tend to be spontaneous and learn from everyday interactions and media, they ‘learn from real experiences’. Through observations and qualitative analysis of interviews with students, I have identified 5 stages in the development of language-learning strategies: resistance, exploration, formalization, specific-purposes, and independence, which will be outlined in more detail in a future article. These stages are based on and roughly coincide with Vande Berg’s stages in intercultural development, as described in Bennett (2012). The Portuguese course at UFBA, therefore, establishes a very close between cultural exploration, personal interaction, and language learning. For that reason, understanding the experiences of the students in Salvador, which is guided by the language course, is an essential element in the success of the course and individual students. 3 Methodology Every year the Ministry of Education sends us a different combination of students from different countries. In 2018, there were 514 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 students mostly from Ghana, Namibia, and Jamaica. There was also one from Kenya, one from Togo, and two from East Timor. For this chapter, I have conducted 30-minute interviews with 25 students: 11 from Ghana, 9 from Namibia, 4 from Jamaica, and 1 from Kenya. All PEC-G students were invited to participate in the study, but some were not interested or excluded from this survey (the East Timorese and a graduate student from Benin). I preferred to focus on English-speaking students from Africa or the African diaspora. The interviews were recorded, transcribed, and analyzed, employing methods of Critical Discourse Analysis, especially Van Dijk (1998, 2008) and psychosocial analysis, as in Camino et al. (2001), Ferreira (2002), Lima and Vala (2004), and Pereira et al. (2003). Other than trying to seem receptive and make students feel comfortable, I stuck to the questions and tried not to react to their responses. The script of the interviews varied slightly according to the responses, but all covered the following questions: 1) Name, age, country of origin, languages spoken, undergraduate program to be undertaken after the Portuguese course, PEC-G university after the Portuguese course, source of funding for stay in Brazil; 2) Where did you live in your home country? In what city? Did you live with your family? 3) Tell me about your family (family members and occupations). 4) How did you find out about PEC-G? 5) Did you also apply to other undergraduate programs in your country or abroad? 6) When you found out you were admitted, what preparation, if any, did you undertake (language and culture)? 7) Did you come directly to Salvador? 8) Where did you stay in your first few days? How did you find that place? 9) What was your first impression of the city? 10) Do you still live there? When did you move? How did you find the new place? Do you live with Brazilians or with other foreign students? Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 515 11) Today, after 6 months in Salvador, what do you think are the positive and negative aspects of life here? 12) Do you have Brazilian friends? How did you meet them? What social activities do you lead with them? 13) Do you feel at home in Salvador/Brazil? 14) Do you feel welcome in Brazil? 15) What do you think Brazilians think of you when they see you? 16) Do you think there is racism in Brazil? 17) Have you ever had any experiences with racism in Brazil? 18) What do you do when you want to improve your Portuguese? 19) Do you think course projects helped you in learning Portuguese? 20) Do you feel confident about your chances in the Celpe-bras exam? Questions 18-20 are not directly pertinent to this chapter but were important as an evaluation of students’ perception of the course and its results. Also, questions 16-17 were not initially part of the interview, but since all students brought up the issue of racism in the first 5 interviews and it revealed itself to be a key element of their experience in Brazil, I incorporated it into the script. In fact, the issue of racism was so salient that it guided my analysis of their understanding of the subtleties of Brazilian culture in Salvador and the local social order. As I describe below, the more elaborate their responses about racism, the more students also showed to be integrated into Brazilian culture and fluent in Portuguese. Students were allowed to do the interview in either Portuguese or English, but all showed great pride in answering the questions in Portuguese. It is indeed a great accomplishment to be able to conduct a 30-minute interview of such complexity in a foreign language after just 6 months of study. Only two students asked to revert to English halfway into the talk. Of course, they all know me as the course coordinator, but they are very familiar to listening to me speaking in English, as I also recorded cultural training videos, which I distribute via YouTube.5 I also exchange emails with them initially in English and French. The focus of the analysis was on aggregate content analysis. I tried to articulate the content of the responses as to how students 5 Videos are available at: https://www.youtube.com/user/rgualda71. 516 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 understood: (1) a perceived Brazilian social order; (2) their place in that order; (3) how they developed strategies to find a comfortable place in that order. Fundamentally, the idea of this study is to analyze how they perceive the issues of identity and otherness, and how to blend themselves into a new culture without losing their own sense of identity. In the discussions, 3 points were key in their perception of those issues: language, nationality, and race. 4 Some key concepts Thus, the key concepts that are relevant to the discussion of the interviews, from a discourse perspective, are: identity, social groups, and racism. The first two are very closely related, while the latter is a more specific one, especially in the Brazilian context, where I show that racism is very distinct from other societies, such as South Africa or the United States. In any given society, individuals associate themselves in groups, sharing cultural markers that contrast to other individuals who lack those markers. Lawler (2008) explains that some identity categories may be combined (gender and ethnicity, for example), but markers normally present a binary distinction (homosexual versus heterosexual) and are exclusive (2-3). Therefore, identity in the individual is revealed in layers of markers, corresponding to social groups. In terms of identity, Jenkins (2008) suggests that sameness and difference are therefore dialectically opposed but are essentially two sides of the same phenomenon. The features that make two individuals recognize themselves as members of the same group are also the markers that differentiate them from individuals of a different group. Discussing similarity and difference, he posits that “neither makes sense without the other, and identification requires both” (p. 21). Consciously or not, identity occurs at the deepest affective and cognitive levels. In the case of the PEC-G students in Salvador, they always mention Portuguese proficiency, or lack thereof and skin color as key social markers, thus as factors of integration or differentiation in Brazilian society. There is a distinction between identity and identification. Lawler (2008) states that: “identity needs to be understood not as belonging ‘within’ the individual person, but as produced between persons and within social relations” (p. 8), while Jenkins (2008) focuses on identification, a Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 517 process that comes from the outside. In our discussion here, identification is related to social categories (gender, ethnicity, age, kinship), in which the whole process is disorganized and unconscious, yet inevitable. However, categorization is a social, discursive phenomenon, and it may evolve as conditions change, as is the case of PEC-G students in Salvador. Upon arrival, they perceive themselves as sharply distinct from Brazilians, and thus project a perception of otherness from Brazilians towards them. As they understand the subtle features shared in Brazilian society, its social categories, and a broader social order, they create strategies to integrate, and feel ‘at home’, ‘welcome’, indistinguishable from the locals. At the same time, society also associates hierarchies within groups and individuals. Lawler (2008), thinking of identification as a social process that is imposed on the individual, contends that power is ever present in the assignment of identities and the prestige (hierarchy) that comes with it: “an identity is imposed and there is no ‘official’ space allowed where this may be contested or a different identity affirmed” (p. 145). This is a key element in the discussion of perceived racism, since without an accompanying sense of social status associated with race, racism is not realized as an oppressive force, but rather as a superficial folkloric marker without much consequence, as we discuss below. Here it is important to understand that the identity of a foreign student is not fully reinvented as if the past in their home country is completely forgotten. It is rather a blended identity, as they only partially adhere to local values, beliefs, and attitudes (as defined by VAN DIJK, 1998), negotiating the difficult combination of a home identity and a new identity within a new map of interrelated social groups and categories, which differs from what they know from home. As the process evolves and they integrate into the new society, often they also move away from their original identity, living in a blended state, neither in Africa nor in America, rather somewhere in the imaginary ocean between the two continents. The point here is that being dark skinned in Soweto, Salvador, Accra, or Paris is not the same. The commonsense idea is one that fetishizes the body as an immutable, durable, unchangeable entity. The fetish of the body represents the belief that one is universally recognized by his essential and immutable self, identified in a material shell. Yet, the perception of what is dark or light skin changes according to each 518 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 society, and values, beliefs, and attitudes toward social categories, which may be defined in terms of race vary wildly from one society to another. Van Dijk’s (1998) argues from a multidisciplinary approach, which is based on a conceptual triangle of discourse, cognition, and society (p. 7). That triangle explains how social groups (society) are formed and managed discursively (discourse), while the perception as values, beliefs, and attitudes of individuals (cognition) are negotiated within groups. That process is dialogic and discursive in nature, standing in opposition to other groups which are also in dialogic discourse. Van Dijk (1998) deals with organized groups, but his framework also applies to social categories, if one understands that then the process is unconscious and disorganized. It is also important to note that in the model, values, beliefs, and attitudes are articulated in discourse in terms of schemata, as built on a chain of topics (or themes) (p. 263-274). Thus, the job of the analyst is to reconstruct the relevant social categories that manifest themselves in the discourse as a correlated set of values, beliefs, and attitudes, which are articulated discursively in schemata. This is where the perception of race becomes central. Sure, students understand that they initially are outsiders in Brazil, as any foreigner would be. As time passes, they become more and more integrated and indistinguishable from the locals (insiders), both culturally (especially in terms of visible icons, such as clothing and hairstyles) and linguistically (even if Portuguese proficiency is perceived to lag other markers). Yet, they are fully aware that they arrive in a very diverse society, in which race is a fundamental marker. They are not just any other, they are a particular type of other, the African, and more consequentially, the black other. Interestingly, as they do not recognize racism as a fundamental marker in their own home countries, their perception, while very refined, is not accompanied by a sense of injustice or insult, even when they have personal experiences with racism, as discussed below. Holanda (2015) is one of the pioneers in the topic of race in Brazil, having authored the classic ‘Roots of Brazil’ in 1936. The main argument in the book is that the Portuguese colonizers, being explorers, having come to Brazil without family members, and of a more adaptable culture, largely interbred with the local Amerindians and Africans they oppressed. As a basically agricultural and rural colonial enterprise with Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 519 close, yet strongly hierarchical relationships, the local culture was based on family and personal relations rather than mediated by law and the state. As such, that very hierarchical society with extremely close daily family and personal ties had to develop mechanisms of attenuation, especially a paternalistic structure of exchanging personal favors and a pattern of cordial, highly affective interpersonal treatment. According to Holanda (2015), it is that perceived friendliness and personal attachment is the glue that kept together a system of extreme social stratification of groups of people living in extreme proximity, thus avoiding conflict. The basis of that complex hierarchical system is race, with a high degree of miscegenation, therefore, multiple intermediary loci. That is a fundamentally different pattern of social organization than what is observed in places like the United States of America or South Africa under Apartheid. In those places, European colonizers of fundamentalist protestant beliefs emigrated to the new territories, not only with their families, but often with groups of people to establish the first colonial settlements. While the Portuguese dreamt of getting rich in the new world and coming back to Europe, the Dutch settled South Africa for good. The former had a very oppressive view of colonization, but desperately needed the locals and African slaves to explore the riches of the colonies, as well as to socialize, while the latter had no use for the natives. Their policies varied between complete segregation (Apartheid) and genocide, developing an ideology of racial purity. In everyday interactions, Apartheid was a system of explicit oppression, despise/ hatred, and extreme segregation. The levels of social inequality in Brazil, the United States, and South Africa are quite similar, but here a highly hierarchical, racially based social structure came with a friendly face, soft words, close social interaction and ties, interpersonal empathy, and a smile. Currents studies explore the nature of Brazilian racism and highlight some interesting modern developments. Lima and Vala (2004) confirm the typical Brazilian pattern of cordial racism. They also point out that in the last few decades, overt racism has declined sharply in the Americas and Europe, but new stereotypes of people of color have emerged. The discourse, which in the early 20th century stressed them as being dirty, lazy, superstitious, stupid, and criminal has shifted to a covert system of stereotypes: prone to the sports and arts, strong, joyful, exotic, poor, undereducated, unskilled, dependent on welfare, involved in criminal activities, with social, family, and personal problems. There is 520 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 also a strong belief that there is no more racism and that either individuals themselves bear the responsibility for not thriving in society, or that the social environment of poverty and moral deficiency hampers their fortunes. Camino et al. (2001) further discuss the issue of covert racism, showing that a vast majority of Brazilians (89%) consider that there is racism in Brazil, but that they themselves are not racist. Meanwhile respondents sustained the new stereotypes of people of color, as prone to the sports and the arts, as well as active in less prestigious and less skilled occupations. Pereira et al. (2003) reach similar conclusions, showing that people rationalize racist attitudes with discourses related to social class and professional skill. Discussing a long tradition of racism studies in Brazil, Guimaraes (2004) stresses how that affective attitude not only an oppressive social order, but also masked the very existence of racism as a fundamental element of the organization of Brazilian society and the distribution of privilege in the context of a capitalist, class-based society. In that sense, a unique form of social order ensues, that combines class and race, with cordiality as an element of attenuation. Racism, then, is not only an attitude from whites towards blacks, but a shared set of values, beliefs, and attitudes, by which all prize and strive for whiteness. Lima and Vala (2004) and Camino et al. (2001) show how ambiguous self-classification can be, as people of color use different terms to describe themselves, often preferring to pass as whites or to selfdescribe with intermediate terms rather than ‘black’ or African Brazilian, a strategy not shared by whites. In that context, Ferreira (2002) points out the importance of Afro-Brazilian activism as a means to recreate and prize a local African identity, fostering a sense of pride and political action. 5 The experiences of african and afro-Caribbean students in salvador 25 students were selected for this study, all between the ages of 18 and 26, of which 11 are male and 14 are female. They are all English speakers, but all speak other regional languages or Jamaican patois. The largest group is that of 11 students from Ghana. There are also 9 Namibians, 3 Jamaicans, and 1 Kenyan.6 Among them, 5 students (two 6 In several sections of this chapter, I will not refer to the Kenyan student to preserve their anonymity. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 521 from Namibia, two from Ghana, and 1 from Jamaica) have previously studied at the undergraduate level but decided to come to Brazil through the PEC-G program. 5.1 a professional, middle-class perspective In their interviews, students revealed that their parents led professional, middle-class careers in their home countries. They either own small businesses or have careers in the public or private sectors that require a university degree. Seeking one is a common feature in their families, in both their parents’ generation as among their siblings. So is going abroad for an education; in fact, 4 had siblings living in Brazil, of which 3 are participants in the PEC-G as well. Among the reasons for choosing to come to Brazil for their education, students mentioned already having a family member here, the quality of higher education in Brazil being superior to their home country, financial reasons, as PEC-G is a tuition-free program (Namibians also receive a stipend from their national government to study abroad), and an interest in learning a new language and/or experience other cultures. So, while these students share a solidly middle-class status, they are not rich and financial considerations do matter. In that context, a university diploma is the key to maintaining/ improving social status and being granted prized opportunities at home and abroad. The careers they have chosen bear evidence of that: Engineering, Architecture, Business Management, Tourism, Medicine, Nursing, International Relations, Physiotherapy, Biomedicine, and Biochemistry. That helps explain why UFBA has never experienced any attrition, and that students, while being young and inexperienced, prize their education and are highly motivated. The professional, middle-class perspective is an important feature in their perception of the host country and of their experiences, although there are variations based on their nationalities. In general, students view a foreign university diploma as an important asset in their pursuit of social status and value indicators of Western-style urban living, development, and prosperity. In that sense, students feel glad when their expectations of Brazil being a more developed country than their own are met as well as feel disappointed when confronted with the opposite situation. So, when asked about their first impressions of Salvador, Jamaicans generally mentioned 522 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 the weather as a negative (too hot and humid) and the beaches as a positive. In general, they said that they thought the city is very beautiful, especially the coastal areas. The Namibians and the Ghanaians mostly found housing through two senior African students in Salvador. Initially going to a workingclass neighborhood near the city center, all the Namibians mentioned they were saddened by the slums they saw and they quickly sought new accommodations. Ghanaians mentioned that the city is very large and modern, with lots of high-rises. They often mention that the city is clean and students of all nationalities praised public services – especially public transportation, but also healthcare and education – to the surprise of many Brazilians. While Namibians state that they later got used to poverty in Brazil and it did not affect their generally positive view of the host country, the unanimous negative aspect of Brazilian life for all students in the study is crime and violence, with scattered comments about graffiti, protests/demonstrations, noise, and drug/cigarette consumption. One student witnessed a police chase in front of her home, having even heard a gunshot during the event. Two others were pickpocketed themselves. Of course, all students are in daily contact, and all knew those stories. Several students stated that they were afraid in some situations (at night, walking by themselves), reflecting fears that ordinary Brazilians also hold about public spaces. Their professional, middle class perspective is very important in understanding students’ experience in Brazil. On the one hand, it explains the strong commitment to the PEC-G program and their studies, especially their focus on passing the Portuguese language exam. It also shapes their social relationships, which, as presented below, are based on institutions that cater to people in their social strata – church, university, the mall, the gym, etc. It also has a strong influence on how they perceive the central issue of racial relations in Brazil, as I discuss below. On the one hand, they realize the lower social status of African Brazilians in Salvador. On the other, they strive to retain/improve their own social status as university students. They also have a relative acceptance of racism, since it is a new feature in their lives, unlike African Brazilians, who must deal with it for their entire lives. As foreigners, they also are relatively uncommitted to Brazilian life and culture, and therefore, may be less affected by social conflicts in the host country. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 523 5.2 social life Social life is a central element in the outcome of immersion programs, especially at UFBA. If students do not feel integrated, supported, and happy, how can they possibly devote themselves to learning Portuguese? Also, if they do not actively participate in Brazilian life, have rich interactions, and build relationships with Brazilians, how can they possibly effectively learn Portuguese in such a short time? So, as described above, several class projects aim at helping students overcome their fears and explore the city, the university and social life in general. Students also receive cultural training and support through online videos, face-to-face sessions, and programs, such as tandem sessions, tutorials, etc. In fact, as is typical in an immersion situation, students who early on take the plunge and actively seek a variety of interactions and relationships with locals tend to do much better linguistically. Most students eventually find a housing situation that involves either living with a Brazilian family or sharing an apartment with other students (some or all Brazilian), except for 3. Those 3 expressed regret for not having sought to live with locals. In general, by their own accounts, students who live with Brazilians exclusively do better. And students who move into a home with Brazilians early do better. All students highlight emphatically that Brazilians are surprisingly, exceedingly friendly and helpful. 3 Jamaican students even mentioned that they are too friendly, referring to close physical contact (especially hugging and kissing on the cheeks as a form of greeting). As one student from Ghana put it “you can always count on Brazilians to help you out, regardless of the situation”. Tales of helpful strangers abound, from giving directions to riding to the hospital on a bus with a sick student. Several students stated that they spend part of the day studying on campus, and when they have questions, they often sought help from unknown Brazilian students, who tutored them on the spot for extended periods of time (up to two hours). All but two students state that they feel at home in Salvador, even as a total of 4 said that they sometimes feel homesick. Several mentioned that they did not like Brazilian food (bland). All said that they feel welcome in Brazil, with 5 Ghanaians and 1 Jamaican believing that the cultures were very similar. The strongly African ethnic and cultural makeup of Salvador and general diversity were pointed out as a positive. 524 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 When asked if they have Brazilian friends, only 3 (one for each nationality) said that they had only a few or none. The vast majority have built relationships with other students, 3 were very close to families, and one became very good friends with a university staff member. They meet their friends in a variety of settings: pre-arranged tandem sessions, the university campus (waiting in line, the student restaurant, the library, just walking around and greeting people…), neighbors, the beach, soccer groups, the mall, social networks (especially facebook), the gym, and church. In fact, all students attend Evangelical churches (Jamaicans less enthusiastically than Africans), and most point it as one of the central aspects of their social interaction with Brazilians and social integration in the host country. Through church, they make friends, meet families with whom they keep in touch for celebrations and festivities, find accommodations (with other students or families). Several students also volunteer at church or attend bible study groups. While students praise locals for being very friendly and helpful, 3 students mentioned that they declined approaches by Brazilians to socialize “to focus on the test”. That answer is puzzling for two reasons. First, as intensively as they may study, it is very unlikely that they have no “time” to go out and socialize occasionally. Also, socializing with Brazilians is probably the best way to integrate in the new country and learn Portuguese. In general, it seems that students have a hard time building deeper relationships with Brazilians. It is true that they resort to strangers for help and support, but their contact with locals seem superficial and occasional – once-weekly church activities, once-weekly soccer matches, once-weekly tandem sessions, and so on. Their best friends and confidants seem to be fellow PEC-G students. Many students heeded my advice to live with Brazilians, but all but 3 live jointly with Brazilians and other PEC-G students. None of them mentioned their Brazilian roommates when asked about their friends or social life, meaning that their contact at home is probably superficial and that they rather relate more closely to their countrymates at home. Maybe because of the personal face-to-face setting of the interviews and my position of authority, no student mentioned dating in Brazil. In fact, several African students stated with amusement that Brazilians at university date very freely, without interference from their Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 525 families and with no intention to marry – “just for fun”. But, in fact, not dating at that age in Brazil may restrict social life, because romantic relationships are an important topic of conversation and a driver of social interaction (going out, meeting people, gossip, etc.). Also, probably because of conservative social views, no student commented on the very salient issue of LGBTQ. That is a widely discussed issue nationally and in the Portuguese language course. Samesex marriage has been legal since 2013, soap operas on television always portray a couple of LGBTQ characters (openly displaying affection), and transsexual models were featured in the 2016 Rio Olympics opening ceremony and were the topic of Sao Paulo fashion week, just to name a few examples. More importantly, LGBTQ students at the university are very visible and widely supported by the university community. In short, their conservative moral views and excessive focus on the exam as much as religion and family as the focal points of social life are limiting factors in building deeper relationships with Brazilians, either romantic or friendly. Those are deep cultural differences that are difficult to bridge, especially in the short period of six months, which is when interviews took place. Also, students plan to and are supposed to return to their home countries after graduation, so that they have a longterm commitment to Brazil, but it is still temporary. Therefore, it makes sense to resist change in deeper cultural norms, especially regarding such an important aspect of life as social relationships. 5.3 Being a foreigner in Brazil People in Salvador are used to foreigners. As one of the main tourist destinations in the country, there is a steady stream of visitors from all over the world, but mainly from neighboring countries and Europe. There are also small immigrant communities, mostly from Argentina, Western Europe, and China. People from Africa and the Caribbean are rare. In that sense, PEC-G students do not meet other countrymates during their stay here other than each other and the program in its many editions is the only source of people from those countries. Here there are many factors at play. First, Brazilians may be a little indifferent to foreigners. The element of surprise and curiosity, so common in less visited places, may not be present. However, since students come from nations that are generally underrepresented in the 526 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 local foreign population, there may be at least some degree of curiosity. Finally, locals generally deal with visitors from hegemonic countries (Europe), a factor that usually sparks their interest. Students from African and Caribbean nations do not have that advantage and may be overlooked. On the other hand, the strong African Brazilian heritage in Salvador should certainly work toward making Brazilians feel closer to them. In fact, students report that interest in their home countries varies quite substantially. According to them, in interactions with Brazilians, most people ask them about their experience in Brazil, why they are here, what they are doing here, how they like it, and generally comment on this being a good experience for them. That is a clearly hegemonic position in that instance of intercultural contact. Many Brazilians, in the perception of the African students, ask them about their home countries, particularly about its location, languages, religion, food, and culture, in general. But some traditional media discourses and stereotypes arise on occasion, and were reported in the interview with humor, such as the belief that Africa is one country, questions about war, poverty, disease (Ebola and AIDS), Boko Haram, and wildlife. There were also unusual instances of Brazilians asking whether there are busses, cars, television, huts, and even cake (!) in Africa. Some asked how the student arrived in Brazil (as in the mode of transportation). In general, Ghanaians and Namibians stated that Brazilians generally do not know much about their countries, rather think that Africa is a country or refer to Tanzania or South Africa. Jamaicans are usually met with references to Bob Marley, Usain Bolt, and marijuana. Besides the usual questions about language, culture, and food, Brazilians have asked them about its location in Africa. Clearly, those are clear indications that Brazilians have much to learn from contact with students from Africa and the Caribbean, especially considering the historical Atlantic ties of the people. In fact, most students said that the Brazilians they met have expressed the wish to visit their home countries, but that it would be very expensive to do so. Well, one can learn from the foreigners who are already here, too, and the Portuguese program is trying to establish contacts with different programs at the university and society at large, which would be beneficial to both students and locals. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 527 Being a foreigner is often uncomfortable, as it distances one from the local population. But it may also be comforting to the extent that one does not need to confront unpleasant cultural phenomena – I am not from here, so I do not need to learn the language, eat the food, interact with them, act and be like them. In that sense, foreignness is to some extent a measure of social integration. When asked how they thought they were perceived by Brazilians, 7 students declared that they think most locals realize that they are foreigners, either by their physical appearance (being tall or having a darker skin tone), clothes, or by the way they carry themselves. It is important to note that Brazil is a very diverse country, and students generally dress in generic Western clothes (jeans and T-shirt), so that objectively they may all pass for Brazilians. That perception most likely reflects their self-image and their feeling as foreigners than the perception of Brazilians themselves. In any case, most students (19) either say that they have always passed for Brazilian or now do, unless when they speak with locals, who then realize that they have a foreign accent. In that sense, it is important to notice that students build their identity based mostly on their home country, which is understandable, since interviews took place only after 6 months in Brazil. They also place importance on their language proficiency levels, which is the reason why they are in Salvador in the first place. It is interesting that the question was ‘how do you think Brazilians perceive you?’, which could have led to different answers (student, man/woman…), but rather was met with the issue of foreigner versus Brazilian. And only in 2 cases did students say that individuals actually asked them if they were foreigners before any linguistic interaction. Many Brazilians were also indifferent to the fact that the student is foreigner, and the conversations revolved around their circumstances in Brazil or other topics. In that sense, being a foreigner is more important to some students as a matter of their identity and the degree in which they feel integrated in Brazil rather than people’s perceptions of them. 5.4 Meeting racism in Brazil As discussed in section 4 of this chapter, race is a central element in the Brazilian social order, and people cannot ignore it. For PEC-G students, it is usually their first encounter with racism. Not that there is 528 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 social stratification in their home countries and distribution of privilege according to social group, but usually not based on race. Also, many students associate racism with South African Apartheid, which is different from what is observed in Brazil. That is certainly the case of Namibians, who are very close and connected to South Africa, but it is also mentioned as a reference by some Ghanaian students. For Jamaicans, it is similar, since they are familiar with the situation in the United States, which in many ways historically resembled Apartheid (open racism) but may be viewed currently as more akin to Brazil’s veiled racism. As mentioned above, 5 Ghanaians and 1 Jamaican stated that diversity is a positive aspect of life in Brazil. Students move to other parts of the country after the Portuguese course, and several pointed out that they preferred to stay in Salvador because of the ethnic and cultural makeup of the city, one even asking me to intervene with the Ministry of Education to relocate his assignment (that is not legally possible). They confided that they were apprehensive about going to other parts of Brazil, where there are fewer African Brazilians, believing that there may be higher levels of racism there. In general, 7 female students (1 from Jamaica, 2 from Ghana, and 4 from Namibia) plainly declared that they did not think there is racism in Brazil and that they never witnessed any situations that they could describe as racist. 9 students believe there is racism in Brazil but have no personal experience with it, mainly quoting reports from their colleagues, and 10 students had direct experiences that they interpreted as racist. Here it is important to note that I am not disqualifying or questioning their experiences as racist, but since there was never an epithet or an obvious racist remark (as may be the case of racist encounters) and I was not a witness to the event, there might be other factors at play. In any case, they are all plausible. What it is important, however, is that they feel that the way they were treated was racially motivated because that shapes their self-image, their perception of Brazil, and the relationship that they build with Brazilian culture and Brazilians. Most students who do not perceive any racism did not elaborate on their remarks. But one student from Ghana said that Brazil is a country of great opportunity. In her words, “there are lots of scholarships for Brazilians, university is free, even I as a foreigner have a scholarship, if people do not take advantage of these opportunities it is because they do not want to study”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 529 Female students (3) usually do not perceive racism as much as their male counterparts, but they all feel afraid of violence and crime. One Jamaican student said that shopkeepers at the mall watch her and follow her around, believing she is going to steal merchandise. One student from Ghana, said that once in church, a lady who was sitting next to her changed seats. Another, said she cannot tell precisely, but she thinks people “look at you differently”. Finally, one Ghanaian said that a stylist at a hair salon was criticizing her hair in Portuguese thinking she would not understand. She complained with the owner, who said she would talk to her employee. For male students (6), racist encounters are more frequent and often involve other people’s perception of safety. One student reported that his friend (who was not interviewed) was not allowed to enter the student restaurant at the university because he lacked the proper documentation. Another said that while waiting to be helped in a Bank that used an electronic line (clients pick a number that is showed on a screen), a white lady without a number went ahead of him. 3 students told about events in which as they were walking by themselves on the street females crossed to the other side with no apparent reason. And 3 students had the experience of being stopped by police and frisked, one said it happened to him twice in one day. One student mentioned that police officers in their neighborhood got used to them and the stop and frisk occurrences ceased. Another mentioned that the police officer later in the day came to talk to him and explained he was compelled to search him for weapons or drugs. According to the student, they became friendly and chat frequently. For all of them, the experience of being stopped by heavily armed police officers is shocking and they generally said that after they noticed that the students were foreigners, officers’ attitude changed. Those stories of racism also often came with attenuation (i.e., for instance ‘it was ok’), hedging (for example, ‘I don’t know…’), and were rationalized (‘I understand why’). Especially when talking about their encounters with the police, male students often said that they understand that there is a lot of crime in Brazil and security is the priority, so that is why they are stopped. 2 even said that, in their words, they “understood that blacks commit more crimes than whites, so that is why they are stopped by the police”. Several students also mentioned South Africa as a counterexample as to why Brazilians are not (as) racist. 530 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 Many students expressed that there is racism, but not much, and that there probably is more racism in areas of Brazil (the south) where there is a lower proportion of African Brazilians (which they have never been to, or only very shortly). And all the students who believe there is some racism talk about a ‘general feeling’. An interesting aspect about the perception of racism is that students probably discussed it among themselves, as many students told stories about what happened to their colleagues. I heard the hair salon story by 4 students who did not witness it, and all the students who think there is racism mentioned stop and frisk encounters their friends had with the police. It is noteworthy that students positioned themselves in a dual situation, that of being very concerned about crime and at the same time victims of racism, especially police encounters. Often, they told their stories lightly, and countered them with attenuation, hedging, rationalization, or by saying how friendly and helpful Brazilians are. Several students also deny that there is racism at all. To a degree, they are foreigners. Racism as they experience it in Brazil is new, so they do not carry the trauma of a lifelong series of encounters with it, as African Brazilians do. Also, they are trying to adjust to a new culture, which is never going to be fully theirs, even if they are going to live in Brazil for an extended period. In that sense, they keep a distance, knowing that the situation is temporary, which certainly makes conflict more manageable. Many stories ended with “and then they heard us speaking English and realized we were foreigners”. Finally, there is also the issue of the professional, middle class perspective. Not only they do not recognize these experiences from home, but they come from a place of relative privilege. Some accounts included “then they realized that I am a student”. In fact, one student said he perceived more racism in the beginning when “they walked in large groups” or “without a backpack”, which, to him, denotes that he is a student. Those lines both reaffirm their difference from African Brazilians and their social status as university students (in opposition to criminals). At the same time, racism in Brazil, as discussed in section 4, is subtle. It is often in the realm of perception and second-hand stories, and very strongly correlated with opportunity and privilege. Not having a clearly discriminatory encounter does not mean that society is not racist (1) in the way people treat each other, (2) in the way opportunity and privilege is distributed, (3) in the way it is organized. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 531 In most cases in Brazil, as discussed in the literature, racism is correlated with social class and attenuated with mild-mannered, friendly attitudes, or ‘racism with a smile, a kiss, and a hug’. As students see themselves in a position of relative privilege (from their social status at home) and distance (as foreigners), and having the reference of Apartheid in South Africa, they often see racism in Brazil as benign and tend to dismiss or excuse it. They are, after all, not victims of racism to the extent that poor African Brazilians are. Besides, that is also the attitude of many Brazilians, which only reveals that they are sensitive to the discourses that permeate society around them. 6 Conclusions Analyzing the experiences of PEC-G students in Salvador is important to understand their experience in the immersion situation that we provide them. It is essential so that adjustments can be made to the language program, so that they will adjust more quickly and deeply to life in their host country. In fact, many changes have been made for the 2019 class. The PEC-G students arrived one month earlier than previously and had a 4-week preparation course before being merged with arriving students from other programs. They also had a twice weekly class on specific topics centered on social issues (racism, women’s issues, LGBT in Brazil, etc.) and social interactions with Brazilians. The analysis also offers important parallels to the experiences of students from other parts of the world, revealing what is universal about the foreign student experience here and what is specific to a subset of African and Caribbean students. It is also interesting as a parallel to the experience of African and Caribbean (Haitians) refugees and immigrants, that started arriving in Brazil in the last few years. It is likely that the numbers of foreign students, refugees, and immigrants in Brazil will increase in the future, so different agents from the public sector, civil society, and academia must engage in the issues that pertain them. As to the research questions students discuss: (1) a perceived Brazilian social order; (2) their place in that order; (3) how they developed strategies to find a comfortable place in that order. In that sense, they present themselves and their identities in the duality of sameness and difference under the markers of language, nationality, and race. Integration in a new language/culture is always tense and involves 532 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 negotiating different values, beliefs, attitudes, and artifacts. Students have multiple interactions with Brazilians and certainly understand the social hierarchies that permeate those social markers and try to elaborate their discourse as to position themselves in more advantageous positions. In the case of the class that was analyzed in this chapter, some issues in their interviews come to the fore. First, their social status in their home countries, which is largely maintained in Brazil, since they are in a university environment, supported by different institutional programs. They are aware of their social status and strive to maintain/improve it, which supports their values, beliefs, and attitudes. They universally manage to build a safety base and a broad social network, integrating themselves in Brazilian life. That involves the university and its integration programs, church, friends, roommates, sports, and other social activities. However, at least up to the 6-month mark, their relationships with Brazilians are generally scattered and superficial, even if they see themselves as happy, at home in Salvador, and adjusted, with the occasional bout of homesickness and complaints about minor details of everyday life. Their worldview, by which social life has a strong focus in family and church, and by avoiding dating Brazilians, distances themselves from fuller integration. In that sense, their temporary (albeit long term) status promotes accommodation in their situation as foreign observers also limits their integration and is difficult to tackle from an institutional viewpoint. Their status as representatives of smaller peripherical countries in a hegemonic culture also limits the interest that Brazilians have in them and their cultures, despite the very strong historical bonds that exist between Africa, Brazil, and the Caribbean. That is regrettable, as both Brazilians and the students themselves would greatly benefit from a closer and more qualified contact with each other. In that sense, the university is trying to mediate avenues for academic dialogue, which would be an enormous benefit to Brazil and specifically to the broader society in Salvador in particular, as the country already devotes significant resources to the PEC-G program and these foreign students are already here. It would also greatly benefit students in their integration process in the country. Finally, there is the difficult issue of racism. Students become sensitive to the issue during their stay here, most likely as a result of Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 507-534, 2020 533 discourses that circulate in society around them and certainly due to their personal experiences. While there are clear instances that illustrate racial discrimination in their accounts, students generally dismiss and rationalize them because of different factors. First, as foreigners they are not full stakeholders in Brazilian societies and its problems. As long as they can be managed, move along. Second, not having been systematically discriminated their whole lives and protected by their middle-class social status and present situation as students, it is easy to see how racism only affects them in relative terms, particularly in the absence of open, offensive encounters on a systematic basis. The ever-present reference of brutal segregation in the pre-Civil Rights Southern United States or Apartheid South Africa makes the more veiled instances of racism in Brazil not seem as bad. Especially because of their everyday interactions with ordinary Brazilians, genuinely perceived as very friendly and helpful. references BENNETT, M. Paradigmatic Assumptions and a Developmental Approach to Intercultural Learning. In: VANDE BERG, M.; MICHAEL PAGE, R.; HEMMING LOU, K. (ed.). Student Learning Abroad: What Our Students Are Learning, What They’re Not, and What We Can Do About It. Sterling, Virginia: Stylus, 2012. p. 90-114. CAMINO, L.; SILVA, P.; MACHADO, A.; PEREIRA, C. A face oculta do racismo no Brasil: uma análise psicossosiológica. Revista de Psicologia Política, Belo Horizonte, v. 1, 13-36, 2001. FERREIRA, R. F. O brasileiro, o racismo silencioso e a emancipação do afro-descendente. Psicologia & Sociedade, Belo Horizonte, v. 14, n. 1, p. 69-86, jan/jul. 2002. Doi: https://doi.org/10.1590/S010271822002000100005 GUIMARÃES, A. S. A. Preconceito de cor e racismo no Brasil. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 47, n. 1, p. 9-43, 2004. 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Proposals for a sociolinguistic study of young people sociolects in sensitive urban cities in contemporary France Marie-Madeleine Bertucci Université de Cergy-Pontoise, Cergy-Pontoise / France marie-madeleine.bertucci@u-cergy.fr https://orcid.org/0000-0003-2439-8191 Résumé : L’article fait l’hypothèse que les parlers des jeunes des cités urbaines sensibles dans la France contemporaine nécessitent pour être appréhendés une approche globale et pluridisciplinaire en raison de leur complexité. À partir de deux corpus, l’article met en place dans un premier temps un cadre théorique général pluridisciplinaire destiné à appréhender l’environnement social des jeunes dont il est question puis dans une seconde partie centrée plus spécifiquement sur une étude sociolinguistique de ces parlers, il tente de montrer que les pratiques langagières étudiées sont emblématiques des interactions sociales à l’œuvre dans ces espaces minorés. Les deux corpus présentés s’inscrivent dans une construction identitaire et une mémoire sociale collective, enracinée dans les cités urbaines sensibles. Ces deux corpus reflètent la vie dans les cités ségréguées et en particulier ce qui a trait à la présence des communautés migrantes. Ils contribuent à l’instauration d’un processus de patrimonialisation caractérisé par l’altérité, fondé sur des solidarités communautaires et une forme de mémoire originale qui exprime un vécu collectif. Mots clés : migrants ; sociolinguistique ; parlers jeunes ; cités urbaines sensibles. 1 Ce texte reprend partiellement des informations et des éléments contenus dans les références de l’auteure citées en bibliographie. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.535-564 536 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 abstract: The paper hypothesizes that young people sociolects in sensitive urban cities in contemporary France require a global and multidisciplinary approach to be understood because of their complexity. Based on two linguistic corpora, the article first sets up a general multidisciplinary theoretical framework designed to understand the social environment of the young people in question and then, in a second part, more specifically focused on a sociolinguistic study of the nonstandard varieties of French those young people speak, it attempts to show that those sociolects are emblematic of the social interactions at work in these minority spaces. Both corpora presented are part of an identity construction and of a collective social memory, rooted in sensitive urban cities. They reflect life in segregated cities and in particular the presence of migrant communities. They contribute to the establishment of a process of patrimonialization characterized by otherness, based on a community solidarity and an original form of memory that express a collective experience. Keywords: immigration ; sociolinguistics ; young people sociolects ; sensitive urban cities. Submitted on June 21st 2019 Accepted on August 24th 2019 0. Introduction L’article fera l’hypothèse que l’objet de recherche énoncé dans le titre : « parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France contemporaine » nécessite pour être appréhendé une approche globale et pluridisciplinaire en raison de sa complexité. En se fondant sur deux corpus, l’article construira dans un premier temps un cadre théorique général pluridisciplinaire2 destiné à appréhender l’environnement social des jeunes des cités urbaines sensibles puis dans une seconde partie centrée plus spécifiquement sur l’étude des parlers des jeunes, il s’efforcera de montrer que les pratiques langagières convoquées sont emblématiques par leur matérialité linguistique même des interactions sociales à l’œuvre dans ces espaces minorés. Les deux corpus présentés participent à une construction identitaire, à l’élaboration d’une mémoire sociale collective, enracinée dans des lieux bien précis, les cités, qui ne sont pas des « territoires sans histoire […] » « noyés sous le béton » (BÉGHAIN, 1998, p. 88). Dans cette perspective, on fera 2 Restreint néanmoins aux sciences humaines et sociales. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 537 l’hypothèse que ces pratiques langagières contribuent à leur manière à la production symbolique de lieux exemplaires (MICOUD, 1991, p. 7) dotés d’une efficience historique (GADAMER, 1996). Aptes à susciter une interprétation, elles constituent des objets sémiotiques analysables dans le cadre d’une économie des biens symboliques3 (BOURDIEU, 1977). Les deux corpus proposés mettent en mots la vie dans les cités ségréguées et ils illustrent en particulier ce qui a trait à la présence de communautés migrantes. De ce fait, ils participent à la constitution d’une partie du patrimoine d’une altérité minorée fondée sur des solidarités communautaires (BERTUCCI, 2010 ; 2011) et une forme de mémoire originale dont la dimension patrimoniale tient aussi à ce qu’elle exprime un vécu collectif (BERTUCCI, 2014). Le patrimoine sera défini ici comme « l’héritage qu’un groupe humain cherche à transmettre aux générations futures » (GRAVARI-BRABAS, 2005, p. 11). Le premier corpus (BERTUCCI, 2009 ; 2017), dont on proposera des extraits, est formé de 181 écrits d’élèves de deux lycées professionnels de Seine-Saint-Denis, 4 situés sur le territoire de la communauté d’agglomération de Plaine Commune. Il a été constitué en réponse à un programme de recherche intitulé Mémoire de l’immigration : vers un processus de patrimonialisation ? lancé par le Ministère de la Culture et de la communication5 et la Cité Nationale de l’Histoire de l’Immigration en 2007-2008. Ce corpus a été inclus dans un rapport déposé en 2009 par le Ministère à la Bibliothèque Nationale de France. Il a été mis en ligne sur le site6 du Ministère en 2017 dans le cadre de la valorisation de l’ensemble des projets réalisés dans le programme Mémoires de l’immigration. Il sera signalé dans l’article sous l’intitulé Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels. Il s’agit de documents bruts restitués à l’identique, dans l’état où ils ont été écrits. On a utilisé pour transcrire les textes du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels les principes de Grésillon (1994, p. 126). Rien n’est modifié en termes d’orthographe, de syntaxe, de ponctuation ou de signes divers (BERTUCCI, 2009, 2017, p. 25). La graphie d’origine est donc respectée. Le second (BERTUCCI, 3 Les objets patrimoniaux n’étant pas consommés réellement mais symboliquement. Département 93. 5 Mission à l’ethnologie. 6 www.culture.gouv.fr/.../version/.../Ethno_Bertucci_2009. consulté le 21 août 2019. 4 538 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 2019) est extrait du roman de Cherfi7 Ma part de Gaulois, publié en 2016. La référence au roman sera mentionnée lorsque ce second corpus sera évoqué. On s’attachera dans un premier temps de la première partie à définir le processus de minorisation qui affecte les communautés de migrants. D’un point de vue théorique, l’étude part de l’idée que ces communautés sont en situation de minorité et qu’elles sont mises dans une situation d’altérité. Puis il s’attachera à montrer qu’elles connaissent des situations de stigmatisation, ségrégation, discrimination. Ces dernières les conduisent à marquer un territoire qui est celui de la banlieue, mais non exclusivement et sans que celui-ci se limite à cette situation. Ces phénomènes se produisent dans un processus de disqualification sociale, doté de formes de sociabilité spécifique, desquelles la violence n’est pas absente. Celles-ci se constituent dans un cadre où la notion de communauté joue un certain rôle qu’il faudra déterminer. On avancera néanmoins que ces territoires courent le risque de l’ethnicisation et de la désaffiliation et qu’ils sont potentiellement susceptibles d’être victimes de certaines formes de marginalisation et d’exclusion. 1. La minorisation 1.1 La notion de minorité : les minorités au plan politique et juridique En sociologie, indique le Dictionnaire de l’altérité et des relations interculturelles, une minorité est constituée ou susceptible de se constituer quand les membres d’un groupe possèdent une identité socialement infériorisée ou dévalorisée. Le statut peut être assigné de l’extérieur ou revendiqué par la minorité (FERREOL ; JUCQUOIS, 2003). Certains chercheurs posent même la question de savoir si la minorité est une réalité en tant que telle ou une construction idéologique (MARTINEZ ; MICHAUD, 2006), ce qui confirmerait le caractère assigné du statut de minorité. D’une manière générale, la notion renvoie à une situation de désavantage relatif, démographique, politique ou culturel, qui est celle des groupes approchés. Le critère principal est le statut d’infériorité Magyd Cherfi a été le parolier et le chanteur du groupe toulousain de rap, Zebda avant de commencer une carrière de chanteur en solo. Il a vécu à Toulouse dans la cité des Isards qu’il évoque dans son récit. 7 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 539 par rapport au groupe dominant dont les causes peuvent être dans des combinatoires variables : économiques, linguistiques, politiques, démographiques, culturelles… La minorité peut désigner un groupe ethnique ou religieux, vivant au milieu d’un groupe plus nombreux, et faisant l’objet de discriminations ou d’oppression mais ce n’est pas toujours le cas. On notera que certains individus relèvent de l’expérience majoritaire et minoritaire à la fois. Les individus participant à l’expérience majoritaire peuvent être convaincus qu’il n’y a pas de processus de domination. Les membres de la minorité ont une expérience sociale commune. Les signes qui distinguent une minorité sont problématiques parce que leur interprétation est délicate, et peut dépendre du contexte politique et social. La notion ne se laisse pas réduire à des traits identifiables et généralisables et on peut même se demander si l’exercice de définition ne participe pas du processus de minorisation. Au plan politique, la définition proposée par l’ONU, fait souvent référence : Un groupe numériquement inférieur au reste de la population d’un État, en position non dominante, dont les membres – ressortissants de l’État – possèdent du point de vue ethnique, religieux ou linguistique des caractéristiques qui diffèrent de celles du reste de la population et manifestent même de façon implicite un sentiment de solidarité, à l’effet de préserver leur culture, leurs traditions, leur religion ou leur langue (CAPOTORTI, 1991, p. 568).8 Cette définition a été élaborée en 1986 par Deschênes, pour la Sous-Commission des Nations Unies dans sa « Proposition concernant une définition du termes « minorités » » : Un groupe de citoyens d’un État, en minorité numérique et en position non dominante dans cet État, dotés de caractéristiques ethniques, religieuses ou linguistiques différentes de celles de la majorité de la population, solidaires les uns des autres, animés, fût-ce implicitement, d’une volonté collective de survie et visant à l’égalité en fait et en droit avec la majorité (DESCHÊNES, 1986, p. 291). 8 Rapporteur Spécial pour les Nations Unies. 540 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 Si ces deux définitions améliorent la compréhension du concept de minorités, elles présentent des inconvénients. La question de la minorité numérique notamment, pose problème quand il n’y a pas de claire minorité ou majorité numérique. Ensuite, un groupe ethnique distinct peut former une majorité numérique sans être dans une position dominante, et certaines minorités sont oligarchiques. L’intérêt de la définition de Deschêsnes est qu’elle induit le principe d’auto-identification dans la détermination du statut de minorité. Elle n’insiste pas néanmoins sur l’idée que la minorité est construite dans une négociation éventuellement conflictuelle avec la majorité. La perception qu’a le groupe de se sentir dans une position minoritaire devient dès lors prépondérante. En même temps, le critère de la citoyenneté exclut les communautés migrantes du statut de minorité. C’est l’application du régime juridique de la nationalité, fondé sur le jus soli ou droit du sol, qu’on connaît en France selon lequel la citoyenneté dépend du pays de naissance (FERREOL ; JUCQUOIS , 2003).9 Ensuite, la définition de Deschênes interroge le sens et l’extension des adjectifs, ethnique, religieux et linguistique dont la définition reste délicate. L’évocation de la différence enfin par rapport à la majorité pose la question de savoir ce qu’est une majorité, s’il existe des majorités stables et ce qu’on fait des cas finalement nombreux où les acteurs vivent à la fois une expérience majoritaire et minoritaire. La question linguistique et la pratique ou non de la langue d’origine est éclairante à cet égard, notamment dans le rapport que les locuteurs migrants entretiennent avec leurs langues (BERTUCCI ; CORBLIN, 2007). On peut être citoyen français, avoir comme langue maternelle le français et être d’une minorité, sans avoir pour autant forcément le sentiment d’être minorisé. En fait, ce sont les processus de minorisation de certains groupes qui posent problème, plus que le fait d’appartenir à une minorité. Ils coïncident avec les processus de mise en altérité et contribuent aux phénomènes de marginalisation qu’on verra plus loin. Les perspectives politiques et juridiques ne prennent pas assez en compte, semble-t-il, ces questions. En revanche, l’analyse sociolinguistique trouve toute sa pertinence ici du fait de la critique qu’elle propose de la minorisation, qui permet de construire la notion au plan théorique. 9 Article Minorités (droits des). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 541 1.2 Minorations, minorisations, minorités Les trois notions en présence ne sont pas superposables ni interchangeables. On reprendra rapidement les définitions proposées par Blanchet (2006) s’appuyant sur des recherches effectuées sur le lexique dans le Trésor de la Langue Française Informatisée (désormais TLFI) et dans différentes disciplines. « Minoration » renvoie plutôt à « majoration » au sens mathématique et comptable, « minorisation » est utilisé dans des problématiques de sciences humaines et sociales, les emplois sont quantitatifs. Le TLFI évoque la minorité pour l’individu non adulte, le sens moderne n’apparaît qu’au XIXe siècle. « Minoration » est surtout employé dans le contexte de la finance, « minorer » comporte un sens qualitatif et quantitatif. « Minoriser » est vu comme un synonyme de « minorer » : « diminuer la valeur ou l’importance de quelque chose » dans le contexte de la finance et aussi dans d’autres contextes. « Minoritaire » est adjectif, le sens est principalement quantitatif et vu ensuite comme « relatif à une « minorité ». Les sens de « majorité, majoritaire, majorer » sont symétriques et possèdent des valeurs qualitatives et quantitatives. Si « minoration » paraît avoir des emplois orientés vers le sens quantitatif, on note une relative confusion dans les usages des autres termes du champ (BLANCHET, 2006, p. 21). Selon le même théoricien, en sociologie et en anthropologie, il y a fluctuation entre la primauté accordée au quantitatif ou au qualitatif. L’évocation des processus est moins importante que celle des états, le terme de minorité est le plus fréquemment employé (BLANCHET, 2006, p. 22). En sociolinguistique, c’est le critère qualitatif qui l’emporte, et donc la notion de subordination, de domination liée à l’organisation sociale, la « minorité » étant la plupart du temps numériquement plus petite.10 Dans cette perspective, les processus dominent et sont plus souvent mentionnés (minoration, minorisation) que les états (minorité, minoritaire) (BLANCHET, 2006, p. 25). On peut donc dire que généralement minorité est employé au sens de groupe dominé ou inférieur. Minoration est présent sans définition dans des contextes où l’on trouve aussi « diglossie, dominant-dominé, conflit, subordination, marginalisation qui relèvent plutôt du qualitatif avec aspects quantitatifs associés » (BLANCHET, 2006, p. 27). « Minorisation » apparaît peu et surtout dans une perspective quantitative (BLANCHET, 2006, p. 24-25). 10 Mais pas toujours. On a pu le voir en Afrique du Sud pendant la période de l’Apartheid. 542 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 « Minoration » sera donc employé pour désigner des aspects qualitatifs et « minorisation » des aspects quantitatifs. (BLANCHET, 2006, p. 28) La notion de minorité est la plupart du temps liée à celle de majorité à travers l’idée d’opposition et de conflit. On reviendra sur ce point en posant la question de savoir s’il existe une complémentarité entre statuts majoritaire et minoritaire, et si l’on peut parler de la coexistence d’une valorisation / dévalorisation (BLANCHET, 2006, p. 26). On citera pour illustrer la situation de minorisation des communautés concernées et introduire la notion de recherche compréhensive abordée plus bas les lignes suivantes de Sofian 11extraites du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels à propos de la cité Les Presles-La Source située à Epinay-sur-Seine (93). Le lieux qui me tient particuliérement à cœur c’est le locale de mon quartier, c le est l’endroit ou se rejoin tous le soire apre les cour. Pour mois personellement c’est un endroit de divertissement, on peut etre a 10 maximume. il y a un canapé, 3 feuteuille, une television, une console de jex. le gardient de l’immeuble, ce […] locale nous empeche de galeré dans les halle de l’immeuble qui est en ce moment ilegale interdi son je ne de une on monde ( ?) s y on i reside pas. Cette endroit ce situe dans la ville d’epinay sur seine dans le quartier (les Presles, la source) au … rue du CDT Bouchet. Si vous voulez nous rendre visite il n y a pas de probleme, vous etes les bienvenue (SOFIAN, 2009, 2017, p. 61). Pour conclure, on peut dire que le champ des notions de « minorité, minoration, minorisation » suppose des critères quantitatifs, bien que ceux-ci méritent d’être nuancés, des critères qualitatifs : inégalité, subordination, marginalisation, conflit mais aussi complémentarité minoritaire / majoritaire (BLANCHET, 2006, p. 27). Qualitatif et quantitatif sont largement associés. Ce dernier semble une modalité particulière du qualitatif. Les chiffres sont à la fois subjectifs (BLANCHET, 2006, p. 27) et réflexifs, les objets ou catégories mesurés par le chercheur sont en fait construits par lui, de même que les méthodologies et les interprétations. 11 L’origine des données a été anonymisée pour la protection des données personnelles des élèves de lycées professionnels concernés. Par ailleurs, les patronymes n’ont pas été utilisés. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 543 1.3 Méthodologie de la recherche : la perspective compréhensive Les objets abordés dans la recherche ont à des degrés divers des contours plus ou moins délimités. La notion de banlieue se réduit difficilement à la définition classique de l’objet scientifique de par son caractère protéiforme justement. Elle n’en est pas moins un objet d’étude, qu’on construit comme tel (BERTUCCI ; HOUDART-MEROT, 2005). Or, elle illustre bien la démarche scientifique à laquelle on se référera qui est celle de la perspective compréhensive, qui part du terrain en inversant les stades de la construction de l’objet : « Le terrain n’est plus une instance de vérification d’une problématique préétablie mais le point de départ de cette problématisation » (KAUFMANN, 1996, p. 20). Outre la place spécifique qu’occupe le terrain, cette analyse ne rompt pas totalement avec le savoir commun. Elle postule même une rupture relative, qui nuance la présentation que donne la tradition de la rupture épistémologique, l’opinion commune étant toujours présentée comme un non savoir, une illusion. Or, Kaufmann insiste sur l’idée que ce savoir commun peut receler des informations et apporter des connaissances. Place du terrain et intérêt porté au savoir commun amènent à se situer dans le cadre des démarches qualitatives et de la nature spécifique du terrain et de son foisonnement. La théorie se construit peu à peu et naît de la construction d’un terrain, qui permet d’élaborer les hypothèses d’analyse, notamment dans le cadre de l’étude de la variation linguistique. On est proche ici de l’école de Chicago et des travaux sur les récits de vie et la migration (THOMAS ; ZNANIECKI ; WISZNIEWSKI, 1998), sur les gangs ainsi que de la perspective de la Grounded Theory, ou théorie venant d’en bas (STRAUSS, 1992). La démarche de Strauss est inductive, le mouvement va de la recherche empirique à l’élaboration de modèles théoriques. Elle vise essentiellement à mettre en place des hypothèses, une théorie sans forcément chercher à produire une théorie causale à l’origine de ces phénomènes. On retiendra surtout la notion d’ordre négocié et l’approche de la vie sociale en termes de réseau d’acteurs en coopération et conflits, indispensable pour approcher la question des banlieues. Jusqu’à quel point cependant peut-on transposer la théorie sociologique et jusqu’où ce modèle est-il opératoire en sociolinguistique ? Au bout du compte quel est le degré de porosité entre les disciplines, particulièrement dans le cas d’une construction cloisonnée de celles-ci, qui exclut l’interdisciplinarité 544 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 – ce qui n’est pas la perspective de cet article – ? La réponse à ces questions excède ce travail dont l’objectif premier n’est pas le débat épistémologique et nécessiterait beaucoup plus d’amplitude d’écriture. On notera que la méthodologie de Strauss se prête particulièrement bien à l’analyse de terrains spécifiques et qu’elle est bien adaptée à celui de la banlieue comme on a essayé de le montrer modestement avec la constitution du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels. On retiendra également la souplesse que la démarche qualitative confère à la recherche, notamment à la perspective compréhensive abordée ici (BERTUCCI, 2006). On considère généralement que l’écueil de la démarche qualitative est celui d’une dérive subjectiviste liée au mode de formulation des hypothèses au fur et à mesure de la confrontation avec le terrain, souplesse qui peut donner l’impression d’un manque de rigueur. La force de cette démarche réside surtout dans ce qu’elle donne un statut nouveau au chercheur, qui n’est plus extérieur à son objet mais qui est présent dans la recherche. Ce dernier est conscient de sa subjectivité (de ce qu’il est et d’où il vient) et revendiquant une réflexivité productive, sans être séparé du social pour autant. Il n’y a pas d’opposition ici entre la réflexivité individuelle et la réflexivité sociale. Les deux sont intriquées et s’alimentent mutuellement (KAUFMANN, 2001, p. 208-209) dans le cadre d’une construction de la notion d’altérité. Leur rapprochement au plan méthodologique et théorique se justifie par la référence à l’unité multiplexe (MORIN, 1990) et à la notion de valuation. 1.4 L’approche de la complexité : l’unité multiplexe et la valuation L’unité multiplexe, constituée de pôles différents mais inséparables, est le lieu d’une tension dynamique entre l’unité et la multiplicité, entre la recherche de l’homogénéité et la présence de la diversité. Par le principe d’homéostasie, réorganisation et réajustement constant, cette tension dynamique s’équilibre non de manière statique, mais dans un processus en mouvement, un équilibre dynamique (BLANCHET, 2006, p.29). On insistera sur la dimension sociale de l’unité multiplexe qui souligne l’intrication entre les faits sociaux et les faits linguistiques dans laquelle se joue un élément important, celui de la valuation sociale. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 545 La question de la valuation est essentielle, cette dénomination permet d’éviter les connotations négatives du mot évaluation. L’intérêt de cette analyse est qu’elle montre – en sortant de l’explication par le conflit et l’opposition binaire – que les processus majoritaire et minoritaire sont interdépendants, sans que la péjoration soit toujours exclusivement du côté du minoritaire. Ces deux caractéristiques illustrent le caractère construit et non « inné » ou « naturel » des traits attribués aux faits sociaux. Il s’agit d’un processus dynamique dans lequel les valuations sont intriquées et sans cesse réactivées, sans que cela exclut forcément pour autant la présence d’éléments stables. Cette notion dynamique complexe (BLANCHET, 2006, p. 32) se développe selon les périodes temporelles, les configurations spatiales, les différents types d’organisation sociale et les interactions des acteurs sociaux. On peut donc substituer à la notion statique de minorité, la notion dynamique complexe de minoritarisation / majoritarisation / valuation sociale : Seraient ainsi considérés minoritaires un groupe ou une pratique sociale dont la valuation négative (= la minoritarisation) l’emporte sur la valuation positive (= la majoritarisation), et inversement le cas échéant. (BLANCHET, 2006, p. 34). Le processus de valuation se joue dans une tension entre major et minor. Les mouvements de minoritarisation / majoritarisarion se font en face à face. La stigmatisation de la banlieue conduit à valoriser le centre des villes. La satellisation est une caractéristique majeure de ce processus, compte tenu de la force d’attraction des groupes majoritaires, qui conduit les minoritaires à perdre leur indépendance. Une des conséquences de la mise en altérité et du processus de minorisation réside dans la ségrégation et la disqualification sociales qu’on illustrera par l’extrait suivant du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels : La France : est un endroit important pour moi, mais j’aime pas la ville paris à part mon quartier de Clichy sous bois. Ya trop de rasiste, on nous regard toujours de travers, on se fait toujours interpeler pour rien, on nous fait perdre notre temps à nous interpeler. Voilà c’est pour sa que j’aime pas la ville de paris (ABDULAYE, 2009, 2017, p. 49).12 12 Voir supra pour la question de l’anonymisation. 546 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 2. Altérité et minorisation : la ségrégation : vers des formes de disqualification sociale La problématique initialement proposée part d’une réflexion triangulaire sur l’altérité, la minorisation et la ségrégation et de ce fait elle met en évidence les conséquences sociales de la minorisation. On a postulé qu’il existait un processus de stigmatisation qui touchait les migrants et qu’il en résultait une disqualification sociale (PAUGAM, 2005, p. 56). 2.1 Stigmate et quartier : les « cités de banlieues » On admettra que la stigmatisation est une conséquence de la minorisation et qu’elle s’attache à un ensemble social où la langue, et ce particulièrement dans les situations diglossiques, est indissociable des locuteurs, qui eux-mêmes sont assignés à un espace. La cité ou grand ensemble fait l’objet de représentations symboliques fortes en termes d’unité et de clôture liées à une architecture spécifique : les « barres » (LEPOUTRE, 1997, p. 54 et suiv.). La notion de stigmate (GOFFMAN, 1975, p. 12) a pour but d’approcher les signes sociaux du handicap à partir de l’étude des interactions. Le stigmate est un signe ou un ensemble de signes, qui marquent l’individu de façon négative. Il désigne une différence perçue négativement et discrédite celui qui le porte. Les stigmates construisent ou contribuent à construire une identité sociale virtuelle potentiellement disponible et différente de l’identité sociale réelle (GOFFMAN, 1975). En situation de pauvreté et de précarité, les migrants portent des stigmates et les transfèrent à leur tour aux lieux qu’ils occupent. En cela, on observe un fonctionnement attendu de la norme, qui se construit en définissant les usages à prescrire et en en prohibant d’autres (DUBOIS et al., 2002). On supposera que vivre ou occuper tel lieu constitue un élément décisif de l’identité sociale et concourt à la formation d’un faisceau de signes convergents. Cette rupture apparaît à travers les perceptions de l’espace. L’espace est ici l’espace social, c’est-à-dire un lieu qui est socialement produit et dans lequel ont lieu des relations codifiées (CONDOMINAS, 1977, p. 5). L’espace est donc à la fois le lieu où se produit l’activité humaine, mais aussi le mode d’expression et de manifestation de la société dans son ensemble. La frontière peut paraître parfois mince dans les discours stigmatisants entre marginalité et Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 547 déviance, lesquelles sont renvoyées vers une altérité soumise au soupçon. La représentation dominante, souvent stéréotypée et parfois démentie par la réalité des lieux est celle d’un espace dévalorisé cumulant les handicaps (LEPOUTRE, 1997, p. 40).13 La banlieue est en effet d’abord « un sujet d’opinion » avant d’être un « objet scientifique » (VIEILLARD-BARON, 2005, p. 32). Elle incarne la dissociation contemporaine entre « un espace virtuel de très haute fréquence et un territoire réel de fréquence nulle ou incertaine, celui de la quotidienneté difficile » (VIEILLARD-BARON, 2005, p. 32). 2.2 D’un espace stigmatisé à une catégorie de pensée Par sa seule mention, l’espace de la banlieue évoque des problèmes sociaux, violence urbaine, communautarisme, fanatisme religieux, difficultés scolaires, relégation, habitat dégradé, déficit culturel et aussi plurilinguisme et pratiques langagières stigmatisées… L’habitat contredit la vision socialement admise de la normalité et de l’acceptabilité, qui résulte de l’amalgame entre des faits divers ayant eu lieu en périphérie et qui contribuent à construire « une catégorie de pensée et de désignation : celle de « banlieue » et un espace (BAUDIN ; GENESTIER, 2002, p. 8). On postulera donc que la banlieue devient une notion à part entière, une catégorie conceptuelle faisant la synthèse d’un certain nombre de problèmes sociaux, politiques et aussi linguistiques. Ceci ne va pas sans susciter d’ amalgame et même si le caractère protéiforme de la notion peut conduire à douter que la banlieue soit un terrain de recherche. Le terme désigne dans le discours commun une réalité sociale et linguistique, qui induit une perception du réel. La première tâche que l’on s’est assignée a été de désévidencier la notion (LAHIRE, 1999, p. 24) et de tenter de lui restituer sa complexité. Cette représentation de l’altérité se déploie sur une approche par l’espace qui amène à poser en ces termes des problèmes sociaux. Cette démarche spatialiste – production par l’espace de problèmes sociaux – et localiste – confusion de l’espace et des attitudes et identités de ceux qui s’y trouvent – (BAUDIN ; GENESTIER, 2002, p. 11) renvoie au fait que parler de la banlieue conduit à évoquer inéluctablement un problème social tout en l’euphémisant pour éviter d’évoquer des questions problématiques (BERTUCCI ; HOUDART13 On utilise le terme d’espace comme étant humainement investi dans une perspective socio- géographique en suivant Vieillard-Baron (2005, p. 32). 548 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 MEROT, 2005). C’est également la raison pour laquelle on a proposé les développements précédents sur la minorisation et sur la question de l’unité multiplexe, afin de construire un cadre théorique préalable. 2.3 Ségrégation et discrimination : la notion d’ethnicité 2.3.1 L’ethnicité Isabelle Clair (2015, p. 113) souligne que « le terme « race » souvent perçu comme une importation nord-américaine, fait débat en France. Ses détracteur(trice)s, qui ne nient pas l’existence de groupes sociaux racisés, lui préfèrent souvent « ethnicité » : terme moins connoté et dépourvu de référence au biologique ». La notion d’ethnicité constitue le produit d’un certain nombre de « constructions sociales à l’instar d’autres catégories comme le genre ou la classe (DORLIN, 2008), par la mise en exergue de caractéristiques chargées d’emblématiser de soi-disant différences entre des groupes d’individus et de les réifier comme minorités naturelles » (COGNET, 2010, p. 103) du fait de l’essentialisation et de la réification de leurs caractéristiques. Cognet, à ce propos, souligne que le discours commun comprend la notion d’« assignation ethnique » comme « une différence de pratiques culturelles » et celle d’ « assignation raciale » comme « une différence inscrite dans le biologique, reliée plus ou moins explicitement à des attributs phénotypiques » (COGNET, 2010, p. 103). Elle précise que : Ces constructions sociales de différences procèdent de la racisation des individus qui n’est autre que l’instruction d’une altérité radicale par essentialisation de toutes sortes de traits culturels ou biologiques attribués, nolens volens, à l’ordre de la nature des choses (COGNET, 2010, p. 103) Cette catégorie qu’est l’ethnicité fonctionne comme une « prophétie autoréalisatrice » (COGNET, 2010, p.103) et s’impose comme une « injonction de conformité » et un « rôle » (COGNET, 2010, p.103) aux individus assujettis à ce type de regard social. Les extraits suivants du corpus tirés du roman de Cherfi, Ma part de gaulois, illustrent la dimension de l’ethnicité à travers le jeu sur les effets de variation des dénominations des différentes catégories ethniques ou le juron « sa race ». Le substantif Arabe semble y fonctionner comme un terme non marqué Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 549 disséminé dans le texte à travers des énoncés souvent sentencieux sur le modèle « Nous les Arabes » (CHERFI, 2016, p. 93). Effets de variation des dénominations des différentes catégories ethniques Pour les Arabes : reubeus p. 96 ; bicots p. 91 ; bougnoules p. 112 Pour les Gitans : gitan p. 92 ; manouche p. 94 Pour tous les non Gitans, on rencontre le générique raclos : « vous, les raclos » p. 92 Les jurons Sa race : « Sa race, là si j’y vais c’est la latche » (honte) p. 91 2.3.2 L’ethnicité territoriale Un des aspects de la stigmatisation des espaces de banlieues coïncide, sans en être la résultante, avec l’arrivée des familles immigrées. Leur installation dans les quartiers populaires de la périphérie a contribué à ce qu’on désigne comme l’ethnicisation des classes populaires. Il est difficile pour les populations concernées d’aller vers une autonomisation sociale du fait de cette stigmatisation et de cette minorisation spatiales, qui les placent dans une altérité génératrice d’exclusion. On a pu parler à cet égard de « quartiers d’exil » (DUBET ; LAPEYRONNIE, 1992) du fait de la « concentration » de populations non autochtones dans certaines villes ou quartiers défavorisés sur le plan économique et social (LORCERIE, 2009, p. 64) comme l’indique l’extrait du texte de Grâce14 (2009, 2017) à propos de la ville de Saint-Denis : Je suis à Paris et j’habite tout précisément à Saint-Denis, dans une ville comme à Abidjan justement. Ici, on peut croire que l’on est en Afrique, on voit surtout des Noirs et des Arabes, c’est rare de voir des Blancs alors que c’est dans leur pays qu’on est même (GRÂCE, 2009, 2017, p. 52). Cette concentration est génératrice de ségrégation, c’est-à-dire d’un « creusement de distances entre populations autochtones et populations vues comme d’origine différente » (LORCERIE, 2009). Elle note à ce sujet que le recours au critère ethnique pour désigner l’autre sous-entend « une auto-définition ethnique de soi – assumée ou non (en France, c’est l’idée de « Français de souche ») » (LORCERIE, 2009, p. 65). En plus, elle 14 Voir supra pour la question de l’anonymisation. 550 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 analyse le lien entre l’espace stigmatisé et la présence au sein de cet espace de populations non autochtones comme une forme de ce qu’elle nomme l’« ethnicité territoriale » (LORCERIE, 2009, p. 65) comme l’illustrent les propos suivants : Pour résumer, l’« ethnicité territoriale » renvoie à la formation d’une configuration sociale15 inscrite dans un espace où des facteurs sociaux (concentration de populations démunies, manque d’emploi, dépréciation du lieu pour diverses raisons) sont combinés aux facteurs intersubjectifs de la visibilité ethnique (réactions identitaires diverses) (LORCERIE, 2009, p. 65). Les lignes qui suivent illustrent le processus d’assignation à résidence producteur de l’ethnicité territoriale à la cité Arago à SaintOuen (93) :16 Le lieu qui me touche particulièrement a cœur avec lequel ou je me sens le mieux c’est ma cité. Une cité qui se trouve a Saint Ouen près de Clichi-la-Garenne et Paris. La cité s’appelle ARAGO une cité la ou j’ai grandit, c’est une cité près des grandes entreprise. C’est la ou je me sens le mieux car il y a tout mes amis qui habites dans la cité, en plus on ce conné depuis tout petit. Dans la cité je conné tout le monde et tout le monde me conné il y a des famile malienne, sénégalaise, algérienne, marocaine, tunisienne et plein d’autre nationalité mais cela sont les principale. Quand je suit dans ma cité avec mes amis c’est comme si j’était chez mwa quand je sort de la cité c’est une autre chose. Dans la cité on peu s’amuser car il y a un terrain de foot, un parc, un terrain de tennis, et de On proposera la définition suivante de la notion de configuration sociale : « Le terme configuration a plusieurs acceptions en sociologie. […] Le terme renvoie cependant, d’abord, à la théorie élaborée par le sociologue allemand Norbert Elias. Ce concept signifie que la société est un réseau d’interdépendances entre individus. […] Largement supplantée par le concept de champ élaboré par Bourdieu pour décrire un système de relations dans lequel la domination est première et s’impose aux dominés sans qu’ils s’en aperçoivent, la façon dont Elias pense le jeu concurrentiel connaît un renouveau d’intérêt en France depuis les années 1990. Son approche est notamment mobilisée par des sociologues comme Bernard Lahire, plus soucieux de ne pas écraser la réflexivité des acteurs tout en maintenant la contrainte du monde social (Duvoux, 2015, p. 52-54) ». 16 93 est le numéro de département de la Seine-Saint-Denis. Ce département est situé en banlieue au Nord-Est de Paris dans la Petite Couronne. Celle-ci se trouve dans la proche périphérie de Paris. 15 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 551 basket. C’est le lieu ou je peux rester des journées entière sans le moins de problème avec mes amis, avec les gens de la cité on s’entend bien avec tout le monde A part quelque s’un qui nous en merde. Dans la cité depuis la primaire au lycée je suis dans cette cité.17 Mais sinon c’est le seul lieu est l’endroit que j’aime le mieux particulièrement (CAMARA, 2009, 2017, p. 52-53). La relégation n’est pas un phénomène nouveau mais les émeutes de 2005 ont révélé les difficultés de certains citoyens français, qui se perçoivent et qui sont amenés à se percevoir comme illégitimes du fait d’une société à laquelle pourtant ils appartiennent, dont ils sont citoyens, mais qui continue à les voir comme différents. Fassin (2006) montre que la loi française ne reconnaît pas la notion de race, n’impose pas de barrière à la circulation et n’organise pas le découpage ethnique de la population comme cela a pu être le cas en Afrique du Sud par exemple. Cela n’empêche pas néanmoins qu’existent en banlieues des concentrations communautaires de populations pauvres dans les cités (FASSIN, 2006). À quels critères faut-il attribuer ces processus de discrimination, cette mise en altérité, qui essentialisent la différence ? Nationalité, couleur de peau, patronyme, variété de français, pratiques linguistiques ? Fassin pose la question de savoir si le critère implicite mais puissamment actif n’est pas une forme de discrimination liée à l’origine qui ne se dit pas. Ces discriminations n’impliquent pas nécessairement de racisme mais lorsqu’elles se manifestent, elles font porter aux personnes concernées la responsabilité de la discrimination, ce qui évite d’aborder la question en termes politiques et économiques. On peut l’expliquer par l’absence de cohérence démographique, d’unité culturelle et d’organisations représentatives fortes, ce que Wacquant décrit comme « l’absence de parallélisme institutionnel » (2006). La déprolétarisation, qu’on abordera plus bas, est aussi une modalité d’explication. La déstructuration née de la déprolétarisation aurait permis des modalités d’organisation communautaire, caractérisées par une endogamie et un repli sur des traditions culturelles, notent certains observateurs. Force est de constater que les points de vue sont variés et dépendent de la perspective dans laquelle on se place, ils reflètent aussi l’absence de consensus social sur la question. 17 Les textes ont été transcrits de manière identique à leur version originale. C’est l’auteur lui-même qui a barré le texte. Voir la présentation des deux corpus dans l’introduction de l’article supra. 552 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 3. Désaffiliation, déprolétarisation On distinguera cependant les banlieues françaises par trois traits majeurs : la désaffiliation et, au-delà l’esprit de scission qui anime certains groupes, l’ethnicisation qu’on a déjà évoquée et la difficulté d’aller vers une autonomisation sociale. La désaffiliation (CASTEL, 1995) résultante des difficultés économiques et du chômage définit la marginalisation qui en résulte (chômage et précarité des travailleurs pauvres). Cette précarité et la segmentation de l’espace aboutissent à une spécialisation et à un appauvrissement du logement social en banlieue, souvent dégradé. Elles contribuent à assigner à résidence des familles qui n’ont aucun autre choix résidentiel (SINTOMER ; BACQUÉ, 2002, p. 102). Les mêmes auteurs (2002, p. 107) soulignent que, de là peut naître un esprit de scission, notamment chez certains jeunes, sans qu’on puisse parler d’une contre-affiliation globale en l’état actuel des choses, qui aurait pour conséquence l’adhésion à d’autres systèmes de valeurs, islamistes par exemple. On observe cependant des solidarités primaires fondées sur des regroupements communautaires, qui se sont construites avec l’arrivée des familles migrantes et leur installation dans les logements sociaux. Un des aspects de la stigmatisation des espaces de banlieues coïncide avec l’arrivée des familles de migrants. Leur installation dans les quartiers populaires de la périphérie a contribué à l’ethnicisation des classes populaires. Il devient dès lors difficile pour les populations concernées d’aller vers une autonomisation sociale du fait de cette stigmatisation et de cette minorisation, qui les placent dans une altérité génératrice d’exclusion, notamment linguistique. Par ailleurs, on peut se demander si la conception française de l’intégration en maintenant l’assujettissement aux modèles institutionnels n’est pas contre-productive et ne contribue pas au maintien des phénomènes de stigmatisation / minorisation. Décrite par Lorcerie (1994) comme nationaliste-républicaine, cette position a créé un consensus général, mais a empêché toute expression de la différence, perçue immédiatement comme dissidente et portant les germes du communautarisme (BAUDIN ; GENESTIER, 2002, p. 115). On peut donc se demander si, au fond, cet idéal d’intégration au nom de l’assimilation, n’a pas frappé de manière normative toutes les manifestations de différenciation, en privant les individus concernés de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 553 toute marge de manœuvre et d’autonomie (RUDDER, 2002, p. 116) et en stigmatisant toute expression de l’altérité. 3.1 La déprolétarisation Elle se manifeste dans les années soixante-dix et se caractérise par la dilution de la classe ouvrière, du fait de la déprolétarisation et de l’affaiblissement des liens sociaux fondés sur l’identification à une communauté de destins, qui caractérisaient les faubourgs ouvriers (WACQUANT, 2006, p. 279). La déprolétarisation se définit comme la sortie durable du marché du travail salarié d’une fraction importante de la classe ouvrière, qui a de fortes difficultés à retrouver un emploi stable (RIFKIN, 1996 ; WACQUANT, 2006). La déstabilisation de la classe ouvrière est liée aux transformations du travail, au poids du chômage et à l’apparition d’une forte proportion de travailleurs pauvres, qui ont désorganisé son mode de reproduction et ont contribué à l’augmentation de la fragmentation sociale et de la précarité. Wacquant (2006, p. 274-275) parle même de salariat désocialisé, notamment en raison de l’affaiblissement des mécanismes de protection sociale et de la désorganisation de ce nouveau salariat, liée à la disparition du cadre social et temporel commun fourni par l’emploi. On ne peut donc plus parler dans ce contexte d’homogénéité sociale, sinon de manière faible, par un trait négatif : la marginalité. Celle-ci ne permet pas une organisation et des actions communes, du fait de la divergence des intérêts mais permet néanmoins le partage d’une position commune face aux « autres ». C’est la raison pour laquelle, définir l’espace de la banlieue comme la concentration territoriale des personnes les plus pauvres (MAURIN, 2004, p. 15) peut sembler significatif. Ce long détour par l’évocation des problèmes sociaux a pour objet d’inscrire dans une thématique sociale les questions linguistiques. En effet, on peut penser qu’une reconnaissance de la diversité linguistique passant par une prise en compte des particularités linguistiques serait un début de solution. Au plan linguistique, répond la stigmatisation des pratiques langagières et notamment de l’obscénité et de la grossièreté (LEPOUTRE, 1997, p. 153 et suiv.), qui sont l’emblème de cette violence dans le discours commun (BERTUCCI ; DAVID, 2003 ; BERTUCCI ; DELAS, 2004) sans que soit perçue la dimension ludique. Cette question des pratiques langagières illustre le fonctionnement du processus de mise 554 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 en altérité par le biais de la radicalisation d’une rupture entre un eux et un nous (FATTIER, 2004). Cet ensemble de phénomènes concourt à la formation d’une image négative du quartier, participant parfois de l’imagerie traditionnelle des mauvais lieux. Ces représentations péjoratives résultent largement de l’incompréhension et de l’absence de perception du mode de fonctionnement propre à cette population qu’on va aborder maintenant. 4. Français populaire / français des banlieues La question linguistique renvoie aux phénomènes identitaires précédemment évoqués et les met en mots. Elle relève d’un processus de patrimonialisation qui s’inscrit dans l’ordre du patrimoine immatériel. L’identification de la variété de français en jeu est importante car elle contribue à renouveler la définition de la variété dite du français populaire au sujet de laquelle on fera l’hypothèse qu’on peut lui adjoindre ce qui est désigné comme le français des cités (GOUDAILLIER, 2001) ou encore le français des banlieues (BERTUCCI ; DELAS, 2004). D’un point de vue normatif, le français populaire constitue « un classificateur déclassant » (GADET, 2003a, p. 1). Comme tel, il s’inscrit dans le contexte de minorisation-stigmatisation qui nous occupe. 4.1 Un ensemble hétéroclite de formes hétérogènes Il désigne « un ensemble de formes non standard » et correspond à « un construit social hétéroclite » porteur d’une « fonction déclassante implicite » (GADET, 2003a, p. 1). La notion d’hétérogénéité sociale est importante ici et elle correspond sur le plan linguistique à des pratiques langagières marquées par la variabilité et l’instabilité18 comme l’indique le commentaire métalinguistique suivant qui souligne un fait de français non normé : « Il parlait comme tous les Manouches à la première personne du pluriel » (CHERFI, 2016, p. 94). De ce point de vue, la notion de français populaire est plus englobante, que celle de langue des jeunes. Les exemples relatifs à la morphologie présents dans le roman de Cherfi qu’on va proposer illustrent le caractère hétéroclite et l’hétérogénéité mentionnés : 18 On notera que c’est le fait de toutes les « variétés » avant que la cohérence n’en soit montrée par les linguistes (AUROUX, 1994). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 555 19 Morphologie verbale à l’imitation du tzigane selon l’auteur « tu tournons l’dos et y te plante » p. 9119 « Vous f’zons des photos » p. 92 ; « y vous donnons d’largent » p. 94 ; « et l’école à quoi ça servons » p. 94 Morphologie du pronom personnel sujet Y pour il / ils se caractérisant également par une non discrimination du singulier (il) et du pluriel (ils) singulier : Y pour il, anaphorique de Henri « juste Henri quand y chante » p. 68 « Les gars y chante juste » p. 71 Pluriel : Y pour ils, anaphorique de ces bâtards Tu crois que tous ces bâtards y vont faire le docteur, c’est que de la racaille, tu tournons l’dos et y te plante p. 91 Morphologie des pronoms démonstratifs Pas comme célass (ceux-là p. 92) 4.2 Le verlan et l’hybridation La question de savoir si la langue des jeunes constitue « une variété indépendante de la description traditionnelle des traits populaires » (GADET, 2003a, p. 1) repose sur l’existence potentielle de traits distincts. La langue des jeunes se caractérise par la courbe intonative et l’accentuation (GADET, 2003a, p. 1 et 2003b, p. 86 ; FAGYAL, 2003) et par le lexique. En revanche, au plan grammatical, elle ne se distingue guère du français populaire, manifestant des traits caractéristiques des variétés orales (GADET, 2003a, p. 2). Sans pouvoir observer de bouleversements majeurs, force est de constater que l’innovation cependant est présente dans la langue des jeunes à travers deux traits qui se démarquent des éléments héréditaires : le verlan, l’hybridation (GADET, 2003a, p. 10) et les faits de contacts de langues qu’on présente ci-après. On observe dans le corpus extrait du roman de Cherfi une incrustation de termes arabes et kabyles avec un effet de traduction et de reproduction des accents : « Ti va à la sucrriti, ti monti troi mitaj et ti donn li cachi di disser » […] (Traduction.) Tu vas à la Sécu, tu montes trois étages et tu donnes le casier judiciaire ! »20 (CHERFI, 2016, p. 23). 19 La pagination est celle de l’édition de 2016 du roman. Cherfi illustre par la figure de la traduction les effets de distance intra familiales qui viennent à l’appui des remarques suivantes qui figurent avant les propos de la mère du narrateur cités supra : « À l’intérieur des maisons fallait, entre un fils et sa mère, 20 556 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 Les faits de contacts de langues illustrent la dimension véhiculaire interethnique de ce parler. 4.3 Un parler véhiculaire interethnique La notion de parler véhiculaire interethnique s’avère particulièrement opératoire ici pour caractériser le parler des jeunes de banlieues. Il est un we code (GUMPERZ, 1989), c’est la langue des Céfrans21 (SEGUIN ; TEILLARD, 1996 ). C’est un véhiculaire, marqué par l’alternance des langues qui s’oppose à la fois à la langue de l’école et à celle de la famille où les langues d’origine sont plus présentes (BILLIEZ, 1993, p. 117). Opératoire, cette notion de parler véhiculaire interethnique l’est aussi pour désigner l’hybridation et le métissage, qui renvoient à la dimension pluriethnique du groupe de pairs, et à l’hétérogénéité de ce parler comme l’indiquent les citations suivantes extraites de Ma part de Gaulois : « Li cachi di disser », m’a fallu quinze ans pour comprendre qu’il s’agissait du « casier judiciaire » ! » (CHERFI, 2016, p. 23) ; « Que Dieu te brûle la langue ! (En kabyle bien sûr, Aké seurgh reubi ilsikh ! ») (CHERFI, 2016, p. 79) ; « C’est hrraâm (péché) » (CHERFI, 2016, p. 101). Cette volonté de produire une coloration arabe déjà signalée par Billiez à travers l’exemple de l’articulation constrictive sourde et forte du [R] (BILLIEZ, 1993, p. 120) observable chez des locuteurs de parlers des cités urbaines sensibles reflète la composition pluriethnique du groupe des pairs, mais aussi celle du quartier. Le recours au procédé de l’emprunt dans le roman de Cherfi, ici un mot tzigane, possède aussi cette fonction : « ce que t’as tchouré la veille » (CHERFI, 2016, p. 94). Cet exemple tiré du Corpus d’écrits d’élèves de lycées professionnels illustre également la diversité ethnique : un traducteur des hautes écoles orientalistes » (2016, p. 23). On soulignera que ce commentaire explicite également le titre de l’œuvre Ma part de Gaulois car il met en lumière « la part de gaulois » du narrateur. 21 Verlan de français. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 557 La où j’habite, à Montfermeil, c’est grand et j’ai pas l’habitude, mais là au moins je me suis fait des amis, il y a Medine, un Algerien [Le« A » majuscule a été réécrit par-dessus le « a » minuscule], Rodrigues, le Congolais et enfin Sophia, l’Italienne (JEAN-MARC, 2009, 2017, p. 51).22 C’est à ce stade que le trait populaire mérite d’être analysé. La notion de français populaire n’est pas claire, dans son opposition avec le français familier : « usage de toutes les classes dans des contextes peu surveillés » (GADET, 1992, p. 122). Elle est plus interprétative que descriptive et relève du stéréotype social. Le terme ne peut se débarrasser de sa fonction déclassante et l’objet qu’il désigne est mal identifié, cependant la notion résiste, ce qui signale son caractère problématique (GADET, 2003a, p. 11). La coexistence dans le lexique utilisé de faits lexicaux relevant de diverses variétés non normées ou archaïques illustre l’hétérogénéité de la notion de français populaire. Les exemples observables dans le roman de Cherfi se déclinent des archaïsmes aux faits avérés de parlers des cités en passant par des traces d’argot classique ou de parlers jeunes passés dans le français familier courant, comme on peut le voir dans les faits langagiers suivants : Archaïsmes Daronne : p. 91 Le gueux p. 100 Argot classique « Je crois ne pas avoir moufté… » p. 37 « Tu l’as pas affranchi, le poète » p. 68 « Un père français visiblement thuné, cultivé, fringué comme un bijoutier » p. 68 Faits de parlers jeunes datés et perçus comme « Mes parents sont complètement flippés… » passés dans le français familier p. 59« Faits de parlers des cités incluant des termes d’origine tzigane ou à consonance tzigane (finale en ave) 22 Voir supra pour l’anonymisation. « Je lisais depuis quelques minutes quand trois lascars […] se sont approchés de moi… » p. 31 « Ma part de Gaulois » p. 64 « c’est que de la racaille » p. 91 je l’ai déjà guintchave (sollicitée) p. 91 c’est la latche (honte) p. 91 558 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 5. Conclusion. une culture interstitielle Les parlers des jeunes des cités urbaines sensibles de la France contemporaine interrogent et remettent en cause la notion de français populaire pour plusieurs raisons. La première tient au delà des éléments formels aux pratiques langagières, c’est-à-dire à l’étude de la parole en tant que phénomène culturel, le principe étant que l’usage de la langue est au moins aussi important que sa structure.23 Au centre de l’analyse, on trouve la communauté linguistique, ses ressources verbales et ses règles de communication, normes sous-tendant le fonctionnement des interactions dans un groupe donné. L’étude ethnographique de la langue vise à décrire le savoir dont ont besoin les participants à une interaction verbale et qu’ils utilisent pour communiquer l’un avec l’autre, leur compétence de communication (HYMES, 1984). La culture des rues, son code de conduite s’apprennent en partie à travers ces catégories linguistiques. Ludiques, initiatiques, cryptiques, ces parlers ont une fonction identitaire24 qui a été largement signalée et ce dès le début des années quatre-vingt (BACHMANN ; BASIER, 1984 ; BILLIEZ, 1993 ; LEPOUTRE, 1997). On y retrouve aussi une forme de provocation générationnelle revendiquée « C’est intéressant, c’est du langage et il en vaut un autre » (CHERFI, 2016, p. 96). Celle-ci contraste avec le style des adultes, tant par le registre que par l’exubérance, la volubilité, ou la théâtralisation de la parole mise en scène et exposée au jugement des pairs. On fera l’hypothèse, pour conclure que ces pratiques langagières participent d’une culture interstitielle (CALVET, 1994 ; LEPOUTRE, 1997) développée dans quatre directions à partir des années quatrevingt-dix : musicale : le rap, graphique : les tags,25 vestimentaire : tenues ostentatoires et linguistique, on l’a vu au cours de cet article. Ces pratiques ne se limitent pas à des procédés formels qui inverseraient la norme sociale dominante. Ils se distinguent très nettement des argots à clés ou argots d’école par leur lexique et leurs fonctions. Si les adolescents les plus experts sont peut-être les plus déviants par rapport aux normes sociales, ils sont aussi les mieux intégrés au groupe des pairs dont on connaît l’importance dans la socialisation des jeunes et dans leur culture 23 Cela est vrai également du standard scolaire. Ce qui ne signifie pas que ces jeunes n’ont qu’une identité et qu’ils n’ont que le verlan à leur disposition. 25 On peut se demander si l’affichage de l’inintelligible n’est pas le dénominateur commun. 24 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 535-564, 2020 559 (BILLIEZ, 1993). Ces pratiques langagières sont aptes à exprimer le vécu et l’expérience de la rue. Nourries d’emprunts, elles reflètent les communautés pluriethniques des banlieues. Bibliographie ABDULAYE. Clichy-sous-Bois. In : BERTUCCI, M.-M. ; [With the collaboration of ASSIER, J.; CHEMBLETTE, E. for the transcription of the corpus]. Mémoires de l’immigration, vers un processus de patrimonialisation ? Rapport de recherche. Paris : Ministère de la Culture ; Musée National de l’Histoire de l’Immigration ; Université de Cergy-Pontoise, 2009. p. 49. Disponible sur : www.culture.gouv.fr/.../ version/.../Ethno_Bertucci_2009, p. 49. Accès le 21 Aug. 2019. AUROUX, S. La révolution technologique de la grammatisation. 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A pesquisa, realizada no âmbito dos estudos críticos do discurso (VAN DIJK, 2009; FAIRCLOUGH, 2010; VIEIRA; RESENDE, 2016) e da análise interdiscursiva de políticas públicas (RESENDE, 2018; FISCHER, 2016), considerou a Folha de S. Paulo (em sua plataforma digital, em folha.uol.com. br) para compor um corpus abrangente das notícias publicadas sobre a população em situação de rua em um período de três anos. A composição do corpus considerou as palavras-chave ‘(morador)(a)(es)+(de rua)’, ‘(pessoas)(população)+(em situação)/ (de rua)’, aplicadas ao buscador do veículo jornalístico. A categoria analítica que orientou o mapeamento dos dados no software NVivo foi a metáfora (CHARTERISBLACK, 2004). Neste recorte, o foco específico são metáforas espaciais utilizadas para representar os deslocamentos e permanências da população em situação de rua na cidade em textos tratando de ações e políticas públicas. As análises apontaram que sentidos metafóricos nesse corpus têm efeito de justificativa para ações e políticas públicas desumanizantes da população em situação de rua. Palavras-chave: população em situação de rua; jornalismo online; metáfora espacial; ação e política pública. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.565-596 566 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 abstract: This paper presents results of a research project aimed to identify representations in online journalism regarding actions and public policies towards the homeless population. The research, carried out within the context of critical discourse studies (VAN DIJK, 2009, FAIRCLOUGH, 2010, VIEIRA; RESENDE, 2016) and the interdiscursive analyses of public policies (RESENDE, 2018; FISCHER, 2016), considered Folha de S. Paulo (in its digital platform), to compose a comprehensive corpus of the published news about the homeless population in a period of three years. The composition of the corpus considered the Portuguese language keywords ‘(morador)(a)(es)+(de rua)’, ‘(pessoas)(população)+(em situação)/(de rua)’ applied to the journalistic vehicle search tool. Metaphor (CHARTERIS-BLACK, 2004) was the analytical category that guided the mapping of data in NVivo software. In this paper, the specific focus are metaphors used to represent the displacements and permanences of the homeless population in the city, in texts thematizing actions and public policies. The analyzes pointed out that metaphorical meanings in this corpus have a justification effect for dehumanizing actions and public policies aimed at the homeless population. Keywords: homeless population; online journalism; spatial metaphor; action and public policy. Recebido em 14 de maio de 2019 Aceito em 09 de outubro de 2019 Introdução “nunca las percepciones y concepciones de los diseños espaciales, de la experiencia del lugar y de los apegos territoriales son independientes de la emergencia de un sujeto, individual y colectivo, en su lecho discursivo.” (Rita Segato) Este artigo apresenta alguns dos resultados de um projeto de pesquisa que, no âmbito dos estudos críticos do discurso (VAN DIJK, 2009; FAIRCLOUGH, 2010; VIEIRA; RESENDE, 2016) e da análise interdiscursiva de políticas públicas (RESENDE, 2018; FISCHER, 20161), 1 FISCHER, F. Where Does the Argumentation in the Design Processes of Policy Instruments. Conferência proferida. Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento, Sociedade e Cooperação Internacional, Universidade de Brasília, 2016. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 567 teve como objetivo identificar representações que circulam no jornalismo online a respeito de ações e políticas públicas (APP) voltadas à população em situação de rua (PSR).2 Foi considerado o principal jornal da cidade de São Paulo, e de tradicional circulação em âmbito nacional no Brasil: Folha de S. Paulo (em sua plataforma digital, em folha.uol.com.br), do qual se compôs um corpus abrangente das notícias publicadas sobre a população em situação de rua em um período de três anos. Com relação direta ao projeto mencionado, desenvolvi, entre 2015 e 2017, o projeto de pesquisa “Representação midiática da violação de direitos e da violência contra pessoas em situação de rua no jornalismo online”.3 Nesse projeto, a equipe que coordenei, no Laboratório de Estudos Críticos do Discurso e no Núcleo de Estudos de Linguagem e Sociedade da Universidade de Brasília, analisou 750 textos de três jornais eletrônicos (Correio Braziliense, O Globo e Folha de S. Paulo).4 Paralelamente, também venho desenvolvendo o projeto de pesquisa “Análise Interdiscursiva de Políticas Públicas”. Isso me levou ao interesse especial de investigar a representação das APP dirigidas à Psr, expresso nos projetos de pesquisa a que se vincula este texto. Este artigo responde especificamente ao objetivo de, em um corpus de 105 textos da Folha de S. Paulo (FSP) pautando APP dirigidas à PSR, investigar, por meio de análise subsidiada por software, as recorrências e padrões de representação metafórica de APP dirigidas à PSR nesses textos jornalísticos, neste caso tomando foco específico nas metáforas espaciais que representam as permanências e deslocamentos da PSR na cidade.5 Pretendi, então, por meio de análise discursiva assistida por computador, compreender como metáforas espaciais relacionam APP e PSR nos textos jornalísticos publicados entre 2011 e 2013 no portal online da FSP. Projeto “Representação de políticas públicas para população em situação de rua como gestão do território: metáforas espaciais na Folha de S. Paulo” (CAPES 88881.172032/2018-01). 3 CNPq 304075/2014-0. 4 Sobre o Correio Braziliense, ver Resende (2016), Resende e Ramalho (2017), Resende e Gomes (2018), Ramalho e Resende (2018); sobre O Globo, ver Resende (2018); sobre a Folha de S. Paulo, ver Resende e Mendonça (no prelo). 5 Em pesquisa anterior, cujos resultados parciais estão em Resende e Mendonça (no prelo), já apresentamos recorrências de avaliação e intertextualidade nesse mesmo corpus de 105 textos pautando APP voltadas à PSR na produção discursiva da FSP online. 2 568 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 O artigo foi organizado em três seções. Na primeira, discuto noções de espaço e território, e o conceito de cidade revanchista. Na segunda, discuto os estudos críticos do discurso, associando a análise de discurso crítica e os estudos discursivos de metáfora. Na terceira, apresento a análise favorecida pelo uso de software QDA no mapeamento de categorias vinculadas à análise de metáfora. Por fim, apresento algumas considerações finais sobre a representação metafórica das permanências e deslocamentos da PSR no território da cidade de São Paulo. A escolha por abordar especificamente dados da FSP justifica-se por ser a cidade que (des)abriga a maior população em situação de rua no país, e por nosso estudo anterior ter mostrado ser este o veículo, entre os estudados, que mais noticia APP ligadas a questões territoriais, o que nos interessa investigar pela via da categoria discursiva da metáfora. O interesse em investigar metáforas espaciais nesses dados decorre da ausência de abordagens cruzando os temas das políticas públicas dirigidas a pessoas em situação de rua e da gestão territorial do espaço urbano pela via discursiva. Embora haja textos em geografia crítica (SANTOS, 2006; ROLNIK, 2016; SMITH, 2012), em urbanismo (DELGADO, 2015; GARNIER, 2006), em sociologia (WACQUANT, 2005) que discutem a gestão política e policial da pobreza nas cidades, ainda não se exploraram os padrões discursivos desta relação. 1 Território e cidade revanchista: espaço simbólico Um pressuposto bastante compartilhado no Brasil e repetido tantas vezes na mídia burguesa trata a situação de rua como se fosse um problema pessoal, alguma desordem da pessoa, contrariando a evidência de que a crise habitacional é um problema estrutural. Nesse discurso, a falta de moradia parece ser vista como “um fato desafortunado” que pudesse ser abordado por meio de “políticas ad hoc para as pessoas em situação de rua”, sem que se enfrente a questão estrutural da falta de moradia adequada que atinge de forma muito mais abrangente as populações empobrecidas (SMITH, 2012, p. 343). Isso inclui retiradas violentas de pessoas em situação de rua, seu encaminhamento compulsório, explícito ou velado, a instituições, seu deslocamento forçado e o constrangimento a sua permanência no espaço público, muitas vezes justificados pela ideologia da civilidade. Em nome do bem-estar de “classes civilizadas”, as “classes incivilizadas” são Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 569 constrangidas em seus direitos e forçadas a esconder-se. Assim a cidade revanchista volta-se contra essas parcelas da população cujas condições de vida jamais são postas em questão, desde que ocultas nas periferias distantes, ou invisíveis aos olhos da elite. Seu retorno ao centro da cidade, contudo, parece intolerável. Sobre essa “centralidade periférica” na cidade de São Paulo, Nakano, Campos e Rolnik (2004) discutem a perda de peso econômico relativo do centro histórico de São Paulo, em decorrência do deslocamento desse eixo de dinamismo produtivo ao vetor sudoeste da cidade, com consequente desvalorização dos edifícios sem garagem do centro da cidade. “O centro passa, então, a ser utilizado por uma população de menor poder aquisitivo e seus espaços, ocupados pelas estratégias de sobrevivência dos segmentos empobrecidos – sem-teto, ambulantes, desempregados, moradores de rua e demais setores excluídos dos circuitos produtivos formais” (NAKANO et al., 2004, p. 138). Ao discutir as dinâmicas dos subespaços centrais da cidade de São Paulo, contudo, Nakano, Campos e Rolnik (2004, p. 154) recusam o suposto esvaziamento econômico e demográfico da região, apontando que, em que pese “o inquestionável deslocamento da centralidade dominante (pelo menos em seus setores mais visíveis) para o vetor sudoeste da cidade”, isso não determinou o “esvaziamento do centro histórico, mas sim uma mudança no perfil de seus usos e usuários, configurando novos focos de dinamismo”. As classes empobrecidas, antes afastadas do centro no processo de periferização da pobreza (CALDEIRA, 2004) e gentrificação (SMITH, 2012), retornam forçadas pelos altos custos do transporte público e pelo desemprego, e ocupam setores do centro abandonados pelas elites em seu movimento ao vetor sudoeste de São Paulo. Assim se tornam visíveis e são consideradas incômodas, intoleráveis a certos setores sociais ávidos por vocalizar suas demandas, às quais os jornais burgueses tratam de conceder espaço midiático. A relação entre o espaço urbano e o simbólico midiatizado é relevante para Rita Segato (2006) quando lembra que o cânone antropológico define espaço em referência a um plano simbólico de ordenação de sentido, em que o espaço a um só turno é a pré-condição para nossa existência (e, podemos agregar, para o transcurso do tempo) e é também essa realidade inalcançável, indefinível e indecifrável: “comprovando ser ao mesmo tempo rígido e elástico, contido e 570 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 incontenível, narrável e inenarrável, comensurável e furtivo” (SEGATO, 2006, p. 129). Na geografia radical, Dorren Massey (2009) coincide com Segato sobre a complexidade da definição, sustentando que o conceito teórico de espaço importa à vida social e política, sendo mais complexo do que poderia parecer à primeira vista. Ela propõe três características para uma conceituação adequada de espaço: primeira, que o espaço, como produto de relações – o que inclui, ela lembra, a ausência de relações – é uma complexidade de conexões e trocas; segunda, que o espaço é a dimensão da multiplicidade, no sentido da coexistência de diferenças na simultaneidade; terceira, que o espaço está sempre em processo, sempre em construção, nunca finalizado – “há sempre relações por fazer, desfazer, refazer” (MASSEY, 2009, p. 16), e nesse sentido o espaço está sempre aberto, já que a produção do espaço é uma tarefa política. As concepções de Segato e de Massey, então, põem em xeque a separação de tempo e espaço, abrindo uma complexidade em que o espaço é temporal, e o tempo só pode ser concebido no transcurso de uma espacialidade móvel. O espaço já não se concebe como mero cenário, como fixo e dado, como campo do já realizado; ao contrário, é continuamente em processo, produto mutável de relações e trocas, e, portanto, também de sentidos e de atribuições simbólicas. Sobre isso, em livro que homenageia a influência de Doreen Massey na definição de espaço, Saldanha (2013) relembra que as fronteiras de um lugar sempre são definidas pelas práticas físicas para o deslocamento, por representações (por exemplo em jornais como a FSP) e por objetos materiais como muros, grades ou (relembrando a canção popular) “cercas embandeiradas que separam quintais”. O espaço como território pressupõe as fronteiras, físicas e simbólicas, e a própria noção de território é dependente da representação, ou seja, da “apreensão discursiva do espaço” – uma apropriação política que se define em sua “delimitação, classificação, uso, distribuição, defesa e, muito especialmente, identificação” (SEGATO, 2006, p. 129). Território, nesse sentido, é o espaço fixado em uma representação que inclui a ação e a existência de sujeitos: por isso, “não é qualquer lugar, é espaço apropriado, traçado, recorrido, delimitado (...) marcado por identidade e presença, e, portanto, indissociável das categorias de domínio e poder” (SEGATO, 2006, p. 130), e da própria ideia de fronteira, de negação, de alteridade. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 571 Tudo isso faz do território um cenário de reconhecimento e de negação. Quando a cidade se contempla em suas dimensões territoriais, trata-se dos pertencimentos, das autorizações de trânsito e permanência, e sobretudo, talvez, das negações que se lhe opõem. A ideologia do cidadanismo é muitas vezes conclamada quando se trata de justificar desautorizações de uso da cidade a certos grupos, e diria mesmo que se trata da principal ideologia de que a FSP lança mão para tratar as permanências e deslocamentos da PSR na cidade, como sugerem os dados da pesquisa aqui discutida. A oposição contra grupos sociais avaliados como ‘incivilizados’ serve de justificativa para sua segregação, seu deslocamento forçado, a restrição de sua liberdade. É quando a cidade revanchista se volta contra parcelas da população cujo direito à cidade parece um absurdo impensável: só podem ser enxergadas como usurpadoras de espaços pertencentes a outros grupos. Para Smith (2012, p. 325), Este antiurbanismo revanchista representa uma reação contra o suposto “roubo” da cidade, uma desesperada defesa da falange de privilégios desafiados, envolta na linguagem populista da moralidade cívica, dos valores familiares e da segurança do bairro. A cidade revanchista expressa, acima de tudo, o terror de raça/classe/gênero sentido pelos brancos da classe média dominante (...) A cidade revanchista augura uma feroz reação contra as minorias, a classe trabalhadora, as pessoas sem teto, os desempregados. Para expressar esses sentidos de oposição – de um lado todos os direitos, ao outro apenas os deveres, de um lado todo privilégio, ao outro sempre desconfiança – e de controle, a mídia burguesa lança mão de variados recursos discursivos. No caso da FSP, vamos nos ater neste artigo aos sentidos metafóricos de base espacial mapeados no corpus de 105 textos que tematizam ações e políticas públicas dirigidas à população em situação de rua. 2 Estudos críticos do discurso e estudos de metáfora Já disse antes que a análise de discurso crítica (ADC) não constitui uma teoria ou um método para o estudo crítico da linguagem na sociedade, mas um corpo heterogêneo de abordagens que, embora surgidas no contexto europeu, foram amplamente aprofundadas nas incursões que 572 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 pesquisadores/as latino-americanos/as têm feito nesse campo. Muito foi feito na América Latina na direção da ampliação do escopo dos estudos críticos do discurso e no refinamento de abordagens teóricas e metodológicas associadas a essa interdisciplina (PARDO ABRIL, 2007; PARDO, 2010), e uma característica fundamental dos trabalhos latinoamericanos é seu comprometimento no debate de relações entre discurso e abuso de poder. Discutir poder como controle exige uma apreensão do funcionamento da linguagem na sociedade, e esse argumento sustenta a relevância dos estudos críticos do discurso (RESENDE, 2017). Grupos sociais particulares são detentores de maior poder quando são aptos a controlar ações de outros grupos (VAN DIJK, 2001), isto é, quando são capazes de definir as bases relativas para a ação social, por exemplo, controlando instituições do aparato de governança. A consolidação de esfera pública no debate da situação de rua e na instituição de políticas públicas para sua abordagem é questão que deve ser urgentemente tratada, incluindo discussão da representação preconceituosa de pessoas em situação de rua nos meios massivos de comunicação, e seus potenciais efeitos sociais e políticos. Com base em pesquisas anteriores, sabemos que a chamada ‘grande mídia’ (a mídia grande) tende a representações preconceituosas da população em situação de rua (por exemplo, ver PARDO ABRIL, 2008; ver também os capítulos publicados em PASCALE, 2013 e em MONTECINO, 2018, e os artigos publicados nos Cadernos de Linguagem e Sociedade, vol. 13, número monográfico). Reconhecida a ação midiática para a consolidação de formas de representar e interpretar a realidade, essas representações, muitas vezes repetidas em diferentes tipos de textos, também têm efeitos potenciais nos modos como agimos em relação à situação de rua, e principalmente como compreendemos as APP dirigidas à PSR. A repetição de representações pejorativas e sua aceitação pela sociedade, servindo de base para preconceito, poderiam explicar, ao menos em parte, a ausência de políticas eficazes na superação da situação de rua e a aceitação social de políticas violentas? É no discurso que se exercem as pressões que atuam na definição de uma agenda pública; em ambientes discursivos – da mídia, da política, dos movimentos sociais – constrói-se e reconstrói-se essa agenda e os embates discursivos que promovem a avaliação de suas possibilidades. Assim, os modos como se orienta e se organiza o debate público em Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 573 torno de um problema são questões discursivas, que, portanto, podem ser adequadamente abordadas por meio dos estudos discursivos. Nos termos de Souza (2006, p. 30), uma pesquisa em políticas públicas pode se perguntar “como se constrói a consciência coletiva sobre a necessidade de se enfrentar um dado problema”. A percepção/ construção de uma questão social – como a situação de rua – na agenda política é fator primordial para que se considere a relevância da abordagem política dessa questão, e a natureza dessa abordagem – pelo viés da assistência, da participação ou da repressão – também é decorrente da compreensão social da questão. A “consciência coletiva” de que nos fala Souza (2006) também remete ao que van Dijk (2009, p. 6) discute como dimensão intersubjetiva derivada das experiências de socialização que compartilhamos como grupos sociais, e que levam a “vários tipos de conhecimento compartilhado e outras crenças”. Esse compartilhamento de sentidos estabiliza modos de compreensão das questões sociais, incluída a situação de rua e as APP julgadas adequadas como respostas a ela, o que pode ser investigado pela via discursiva, por meio de mapeamentos discursivos em distintos campos sociopolíticos, como a lei, a mídia, os movimentos sociais e políticos. No caso da pesquisa de que este artigo se recorta, os dados de um jornal de circulação massiva, em sua plataforma de distribuição online, são tomados como elementos chave para a compreensão de sentidos que modelam a percepção da PSR na cidade de São Paulo, e consequentemente impactam sobre as respostas públicas à situação de rua. Com um corpus de notícias tematizando APP dirigidas à PSR, o acesso a esses sentidos é ainda mais privilegiado. A análise de notícias como material empírico para a abordagem de problemas sociais como as representações de APP voltadas à situação de rua justifica-se também porque, nos estudos críticos do discurso, entende-se que a notícia reorganiza séries de eventos relatados fora de sua ordem lógica e cronológica, e por isso é uma forma de regulação social. Assim, para Fairclough (2003), a produção de histórias em notícias é reconstrução de acontecimentos fragmentários como eventos distintos e separados, incluindo certos acontecimentos e excluindo outros, assim como organizando esses eventos construídos em relações particulares. Sobre relações entre grupos minorizados e a produção de notícias, van Dijk (2005, p. 42) destaca que 574 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 as atitudes a respeito de alguns grupos e as opiniões sobre fatos específicos podem influir na escolha léxica de palavras (...) as minorias são frequentemente representadas em um papel passivo (as coisas se decidem, se fazem etc. para ou contra elas), a não ser que sejam agentes de ações negativas, como delinquência, entrada ilegal, violência ou consumo de drogas. Neste último caso, sua responsabilidade será enfatizada. A produção de notícias, portanto, é um processo interpretativo e construtivo, e não simplesmente um relato ‘dos fatos’. Notícias também podem ter “uma ‘intenção explanatória’ relacionada à ‘focalização’: dar um sentido a eventos colocando-os em uma relação que incorpora um ponto de vista particular” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 84-85). Nos estudos críticos do discurso, portanto, textos noticiosos são compreendidos como parte do aparato de governança, porque notícias são orientadas para a regulação e o controle de eventos e da maneira como as pessoas reagem a eventos. Na realização das práticas em eventos, como sustenta Fairclough com base em Bhaskar (1998), pessoas carregam sua prévia compreensão das práticas – fruto de sua socialização e dos conhecimentos compartilhados resultantes, como sustenta van Dijk. A abordagem relacional e a abordagem sócio cognitiva, a meu ver, não se contradizem, ao contrário, se complementam mutuamente, permitindo uma compreensão mais complexa das dinâmicas estruturais e interativas que só são possíveis, obviamente, porque pessoas de carne e osso, mente e espírito interagem de forma estruturada, num movimento em que constroem e reconstroem formas de compreensão do mundo e das coisas. Essa possibilidade de diálogo teórico entre as duas perspectivas discursivo-críticas é possível porque o realismo crítico de Bhaskar, que serve de base à abordagem dialético-relacional proposta por Fairclough (2010), não nega a construção discursiva da realidade, não recusa o fato de que as coisas sociais são afetadas pelos processos de construção do conhecimento, e a abordagem cognitiva de que se serve van Dijk (2009) tampouco é radical numa postura mentalista, pois entende que a cognição é um processo social. Assim, sendo as duas abordagens moderadas em suas posturas realista (crítica) e (sócio) cognitiva, mantêm entre si a coerência necessária para sua articulação, o que é útil à complexidade da análise de metáfora. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 575 A categoria analítica central aqui tomada como foco para mapeamento em software é a metáfora. Em estudo clássico sobre o tema, Lakoff e Johnson (1980) sustentam que nosso sistema conceitual é metafórico por natureza: os conceitos que estruturam os pensamentos estruturam também o modo como percebemos o mundo, a maneira como nos comportamos no mundo e o modo como nos relacionamos com outras pessoas de acordo com nossa experiência física e cultural. Metáforas realçam ou encobrem certos aspectos do que representam – Fairclough (2001) registra que, quando significamos algo por meio de uma metáfora, filiamo-nos à maneira particular de representar aspectos do mundo traduzida na imagem metafórica produzida. Daí a relevância do foco na análise de metáforas, no caso específico deste estudo, especialmente quando consideramos, com Charteris-Black (2004, p. 23), que as metáforas “são cruciais no processo de influenciar o caminho em que problemas sociais são conceituados”. A metáfora sempre foi de interesse dos estudos de linguagem, desde a retórica clássica, e também chamou atenção da estilística e dos estudos literários. Para a ciência linguística, tornou-se objeto sistemático de interesse apenas no último quarto do século XX. Um marco dessa virada no estudo linguístico de metáforas, extrapolando seus aspectos retóricos e estéticos, foi a realização do simpósio “Metáfora: o salto conceitual”, em 1978, na Universidade de Chicago. Reconhecendo a metáfora como conceito “essencialmente controverso e polêmico” (COWAN; FEUCHTHAVIAR, 1992, p. 7), a universidade recebeu pensadores como Donald Davidson, Paul Ricoeur, Nelson Goodman, Max Black, entre outros, que conduziram acalorado debate a respeito do conceito e seus aspectos linguísticos (cognitivos, semânticos e pragmáticos). Com seu livro de 1980, Lakoff e Johnson lançaram bases para a mais influente teoria de metáfora na linguística desde então: a teoria da metáfora conceitual (TMC). Segundo Dancygier (2016), desde essa obra a metáfora tem sido discutida em termos de mapeamento conceitual conectando dois domínios, o que permitiria a abordagem de fenômenos abstratos ou emoções em termos de experiências concretas ou corpóreas. Ela explica: o conceito de domínio (...) se refere a um pacote conceitual, incluindo uma série de elementos conectados (...). Por exemplo, um domínio de Guerra inclui uma série de componentes, como oponentes, armas, ataque e defesa, vitória e derrota. Esses 576 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 componentes podem ser usados como base para uma série de expressões metafóricas representando, de modo geral, o domínio da Discussão (uma troca de pensamentos assumindo alguma discordância inicial, e vários procedimentos e resultados desses procedimentos). Ao falar sobre uma discussão em termos de guerra (atacar a posição de alguém, ganhar uma disputa etc.), o domínio da Guerra é a fonte da estrutura, enquanto a Discussão é o domínio alvo. Com base nisso, um mapeamento metafórico pode ser definido como uma relação entre dois domínios conceituais (o domínio fonte e o domínio alvo) que estabelece ligações (mapeamentos) entre elementos específicos das duas estruturas. (DANCYGIER, 2016, p. 29) Assim, nessa perspectiva conceitual e cognitiva, trata-se de um domínio mais abstrato da experiência ser compreendido em termos de um domínio mais básico ou mais concreto, que fornece as bases para a interpretação da experiência, e também para sua expressão simbólica na linguagem. Em diversas teorias, mais ou menos radicais nessa conceituação da experiência em termos de domínios, é relevante a noção de corporificação da experiência (embodiment), em que conceitos mais abstratos são construídos com base em experiências corpóreas. Lakoff e Johnson (1980) distinguem entre metáforas ontológicas e orientacionais; estas últimas “associadas à corporeidade e à maneira como nosso ser biológico permite a estruturação de nosso ser social”, de modo que a “noção de espacialidade – dentro/fora, acima/abaixo, [na] frente/ [a]trás – e de como ocupamos com nossos corpos essa espacialidade, como a experienciamos, constrói espaços de significação pelo movimento metafórico” (ACOSTA, 2018, p. 24). Li (2016) chama atenção para tensões entre a TMC e a ADC, pois a primeira argumenta que a metáfora seria uma questão de linguagem e cognição, enquanto a ADC se ocupa centralmente com questões sociais e políticas do discurso. Além disso, conforme Li (2016), a TMC contradiz a ADC porque para esta as metáforas têm um aspecto pragmático central, vinculado a propósitos comunicativos situados em eventos discursivos e seus efeitos potenciais. Mendes e Nascimento (2010, p. 96) também reconhecem essas tensões, sugerindo que a TMC, ao analisar processos metafóricos como operações cognitivas de estruturação de certos domínios em termos de outros, não se interessa diretamente pelos aspectos de “processamento discursivo e de suas variáveis situacionais, pragmáticas”. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 577 A análise de metáfora, então, parece exigir uma maior complexidade teórica, em que o aspecto cognitivo não deve ser ignorado, mas tampouco explica todo o processo. Se as metáforas expressam atitudes em relação aos domínios mapeados – no que concordam todas as teorias de metáfora estudadas – e se “atitudes são essencialmente sociais” e, portanto, “não devem ser confundidas com opiniões pessoais”, porque são “compartilhadas por membros de grupos sociais” com suas “identidades, ações, normas e valores, relações com outros grupos e recursos” (VAN DIJK, 2014, p. 129), então os aspectos cognitivos e os pragmáticos, vinculados aos interesses em jogo, precisam ser considerados em sua relação. Para Charteris-Black (2004, p. 7), “a metáfora é um conceito relativo, que não pode ser definido a partir de apenas um critério aplicável a todas as circunstâncias, e sua definição precisa incluir critérios linguísticos, pragmáticos e cognitivos”. Por isso, para ser útil aos estudos críticos do discurso, a abordagem semântica cognitiva formulada por Lakoff e Johnson precisa ser complementada com uma análise de fatores pragmáticos, que não perca de vista o fato de as metáforas serem usadas em situações discursivas que definem seu papel. Apesar das tensões teóricas, Li (2016) reconhece na TMC a relevância da distinção entre metáforas conceituais (ou conceitos metafóricos) e metáforas linguísticas (ou expressões metafóricas). Em suas palavras, “a metáfora [conceitual] é um modo de pensar, e as expressões metafóricas são sistematicamente motivadas por metáforas conceituais subjacentes” (LI, 2016, p. 93). Isso implica que, teoricamente, “uma única ideia [metáfora conceitual, nos termos de Lakoff e Johnson] explica um número de expressões metafóricas” (CHARTERIS-BLACK, 2004, p. 9), o que pode significar uma economia explicativa para a análise de metáforas realizadas em textos. Em sua proposição de uma análise crítica da metáfora, Charteris-Black (2004) sustenta um nível conceitual hierarquicamente organizado em chaves conceituais, metáforas conceituais e metáforas. Em seus termos, indo do mais concreto ao mais abstrato, metáforas são representações linguísticas resultantes de alguma mudança no uso de uma palavra ou frase em contexto específico, causando tensão semântica – ou seja, trata-se de expressões metafóricas situadas; metáforas conceituais referem-se a afirmações que resolvem a tensão semântica de um conjunto de metáforas, mostrando que estão relacionadas a uma mesma compreensão, de modo semelhante ao que Lakoff e Johnson (1980) propõem; e chaves conceituais, por sua vez, 578 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 explicam conjuntos de metáforas conceituais em relação a discursos particulares. Na definição de Charteris-Black (2004, p. 244, destaques acrescentados), apropriada neste estudo: metáforas conceituais e chaves conceituais são inferências abstratas a partir da evidência linguística fornecida por metáforas particulares. Não há realidade para elas, a não ser como modelos de trabalho [...]. O objetivo de inferir metáforas conceituais a partir de metáforas de superfície é permitir identificar padrões de inter-relação entre metáforas que explicam seu significado. Da mesma forma, inter-relacionar metáforas conceituais através da identificação de chaves conceituais pode ajudar a avaliar a coerência de discursos particulares. A identificação e descrição desses níveis conceituais aumenta nossa compreensão de seu papel ideológico. Assim, Charteris-Black (2004) sustenta o argumento da economia analítica, quando defende a vantagem de se considerarem muitas metáforas particulares (expressões linguísticas metafóricas) em sua referência a um menor número de metáforas conceituais e a um número ainda menor de chaves conceituais. Essa é a perspectiva escolhida para o estudo, e por isso na estrutura de nós de codificação que construí para a organização dos 105 textos da FSP no software, esse argumento foi considerado, como discutirei na próxima seção. 3 situação de rua e território: um olhar para os dados Para explorar representações metafóricas de APP voltadas à PSR na FSP, foi conduzida uma investigação documental que incluiu a análise discursiva com auxílio de pacote QDA – software para análise qualitativa de dados, neste caso o NVivo11 Pro, conforme explicamos em Resende e Ramalho (2017). A pesquisa documental utiliza, como principal material empírico, dados de natureza formal, como textos midiáticos, cuja elaboração demanda competência de conhecimento especializado (tecnologias discursivas). Nos termos específicos da pesquisa, o foco foi a representação de APP dirigidas à PSR, conforme representadas em textos publicados pela FSP em seu portal online. Nas três subseções a seguir, explico como foram realizadas as análises de metáforas sobre APP e sobre a PSR nos 105 textos que compõem esse recorte de corpus da FSP e pontuo alguns dos resultados dessas análises. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 579 3.1 Mapeamento de metáforas no corpus Com base nas palavras-chave ‘(morador)(a)(es)+(de rua)’, ‘(pessoas)(população)+(em situação)/(de rua)’, aplicadas ao buscador do veículo jornalístico, foram mapeados e coletados todos os textos publicados sobre a PSR no período de três anos compreendido entre 2011 e 2013 que retornaram nessa busca. Da FSP, foram coletados 456 textos publicados sobre a PSR no intervalo considerado, e todos eles foram organizados na plataforma do software. Os textos da FSP foram classificados em 11 temáticas, e deles 105 pautam a temática de APP (uma discussão pormenorizada dos procedimentos no corpus da FSP poderá ser acessada em Resende e Mendonça, no prelo). O uso do software teve como propósito a organização qualitativa dos dados e a primeira análise do corpus, além de orientar a realização dos recortes de dados a serem submetidos à análise discursiva crítica mais fina, considerada a impossibilidade de se submeter um corpus extenso ao escrutínio analítico da ADC. A vantagem de se trabalhar com recortes decorre de que as formulações para análise textual da ADC referem-se a “um trabalho intensivo que pode ser produtivamente aplicado a recortes de material de pesquisa mais que a corpora extensos” (FAIRCLOUGH, 2003, p. 6). Assim, as ferramentas do NVivo foram úteis para a classificação temática dos 456 textos coletados, para a percepção de padrões e recorrências representacionais da ação pública no corpus de 105 textos tematizando APP e, no interesse específico deste trabalho, para o mapeamento amplo das metáforas sobre a PSR e sobre as APP presentes nesse corpus, incluídas as metáforas espaciais que são o foco bem específico deste artigo. Esclareço que no mapeamento de metáforas que passo a apresentar não foram consideradas as chamadas metáforas convencionais, ou ‘metáforas mortas’. De acordo com Charteris-Black (2004, p. 17), metáforas convencionais estão “em algum ponto intermediário entre usos literais e metafóricos – refletem um processo diacrônico pelo qual o uso que era originalmente ‘metafórico’ se torna estabelecido como ‘literal’ dentro de um idioma”. Assim, são metáforas ‘automáticas’, que embora possamos reconhecer como metáforas em um sentido amplo, acrescentam pouco à análise representacional, por seu caráter automatizado de uso 580 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 em colocações.6 Um segundo esclarecimento quanto ao mapeamento de metáforas nesses 105 textos é que foram mapeadas apenas as metáforas referentes à PSR ou às APP a ela dirigidas. Metáforas referentes a outros temas no corpus não entraram, então, em nosso mapeamento. Essas duas decisões visaram preservar nossa atenção no foco específico, favorecendo a composição de um corpus de metáforas homogêneo e relevante aos fins da pesquisa. O primeiro passo para a utilização do pacote QDA escolhido foi criar uma estrutura de nós (categorias) para codificação inicial dos dados. Os nós analíticos iniciais foram de dois tipos: os nós temáticos de preenchimento indutivo sequencial à leitura dos textos, e os nós motivados pelas teorias de metáfora estudadas. Os nós analíticos teoricamente motivados foram, na categoria de Metáfora, domínio básico, esquema de imagem e metáfora complexa; na categoria Outros tropos, metonímia, ofuscação/ eufemismo, personificação e símile; e, na categoria Modificação, criação de novo sentido e modificação por adjetivação. Das categorias motivadas por teorias de metáfora, neste artigo abordarei apenas as metáforas de esquema de imagem. Os esquemas de imagem poderiam ser interpretados como tipo mais específico de metáfora básica,7 em que a fonte de mapeamento para domínios abstratos deriva da interação corporal cotidiana no mundo físico, gerando interpretações de experiência baseadas em esquemas de contenção (entrada/ saída; dentro/ fora; centro/ periferia), esquemas de orientação (embaixo/ em cima; na frente/ atrás) e esquemas de movimento (fonte, meta, caminho). Esses foram os mapeamentos metafóricos mais relevantes no corpus. Um exemplo de metáfora convencional retirado do corpus poderia ser o trecho “A Prefeitura de Ribeirão Preto (313 km de São Paulo) fará um recenseamento do número de moradores de rua do município, mas já admite a alta dessa população”. Embora “alta dessa população” seja evidentemente uma metáfora orientacional, baseada em esquema de imagem alto/baixo, seu caráter convencional limita sua relevância analítica. 7 Lembremos com Dancygier (2016, p. 37) que “[m]etáforas primárias são diretamente enraizadas em nossa experiência básica e servem de base para metáforas mais complexas, socialmente motivadas e culturalmente específicas”. Assim se distinguem as metáforas de domínio básico e as metáforas complexas, tipologia em que as metáforas de domínio básico dizem respeito à experiência básica concreta, com sensações ligadas ao espaço, à matéria, à temperatura –, e essas experiências servem como input para mapeamentos de experiências mais abstratas. 6 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 581 O software utilizado não faz análises automáticas, sendo uma ferramenta qualitativa. Assim, foi necessário proceder à leitura cuidadosa de todos os 105 textos e a sua codificação foi feita manualmente. Nesse processo, foram indutivamente levantados os nós temáticos, com o objetivo de depois poder cruzar os temas representados por metáforas e os tipos de metáforas discutidos nas teorias e mapeados no corpus. Numa segunda etapa de leitura dos trechos codificados, as temáticas foram refinadas e reduzidas às 10 consideradas nas análises, apontadas no quadro a seguir: QUADRO 1 – Nós temáticos indutivamente atribuídos, em sua visualização na tela do software Os temas mais representados por meio de mapeamentos metafóricos, tanto por número de textos em que ocorriam quanto por número de ocorrências, foram a chamada “cracolândia” e o consumo de álcool e outras drogas (79 ocorrências de metáforas em 35 textos), os serviços assistenciais governamentais ou comunitários (79 ocorrências em 33 textos), e os deslocamentos da PSR na cidade (65 ocorrências em 35 textos). Na próxima subseção, mostrarei um panorama representacional dessa última temática, seguindo a ferramenta nuvem de palavra, baseada na densidade lexical em recortes de dados, e complementarei com dados da representação metafórica da permanência de PSR em espaços urbanos (23 ocorrências de metáforas em 18 textos). 582 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 3.2 Densidade lexical em recortes temáticos: deslocamentos e permanências da Psr na cidade As nuvens de palavras geradas a partir de codificações temáticas são elucidativas das abordagens de temas em um corpus. Para a composição das nuvens de palavra a seguir, foram consideradas as trinta palavras mais frequentes nos recortes temáticos ‘deslocamentos da PSR na cidade” e, na nuvem seguinte, “permanências da PSR na cidade”. O tamanho e disposição mais central ou mais periférica de cada palavra na nuvem é indicativo de sua densidade proporcional no recorte. Tendo sido consideradas apenas palavras com no mínimo quatro letras, a palavra ‘rua’ não aparece, mas é o padrão de colocação mais frequente com morador(es). O princípio da apreciação da nuvem não é quantitativo – se assim fosse, seria mais indicada uma simples contagem de ocorrências, o que o pacote QDA utilizado também entrega facilmente. Uma nuvem de palavras favorece visualização da densidade relativa de palavras relevantes num conjunto de dados – a nuvem em si não produz análise, pois as palavras estão isoladas; contudo, a partir da visualização na nuvem e da ferramenta “Resumo”, também possibilitada a partir da pesquisa de frequência de palavras no software, é possível acessar as colocações/ situações em que certas palavras ocorrem, e aí está o interesse analítico. Vejamos a primeira nuvem: FIGURA 1 – Nuvem das 30 palavras mais frequentes na temática “Deslocamentos da PSR na cidade” Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 583 A palavra mais frequente nesse recorte é ‘moradores’, que aparece em colocação com “de rua” em todas as ocorrências. É seguida por ‘prefeitura’, termo principalmente utilizado como Ator de processos materiais – como em “Prefeitura faz operação para retirar moradores de rua acampados no MASP”, “A Prefeitura de São Paulo realizou ontem uma operação para a remoção de moradores de rua acampados na praça da Sé”, “A Prefeitura do Rio de Janeiro, acompanhada pela Polícia Militar, realizou na manhã desta sexta-feira uma ação de combate ao crack e de retirada de moradores de rua na região de Madureira”, “Nesta semana, a prefeitura e a Polícia Militar iniciaram ações para retirá-los das calçadas do Brás” – e como Dizente em processos verbais – como em “governo do Estado e a Prefeitura de SP discutem a ideia de enviar frequentadores da cracolândia”, “A Prefeitura de Belo Horizonte esclarece que não existe e jamais existiu de sua parte nenhuma orientação voltada para a prática de remoção compulsória”, “A prefeitura reagiu com nota lacônica ao surgimento da ‘favelinha’”, “Prefeitura promete tirar moradores de rua acampados no MASP” (destaques acrescentados). No primeiro caso, o dos processos materiais, o padrão é bastante estável, com ‘fazer/ realizar/ iniciar’ + ‘ações/ operações’ + ‘em um território definido’. O caso dos verbos de dizer é mais diverso, incluindo atos de justificativa, explicação e promessa – em todos eles, contudo, é possível depreender um sentido de resposta à sociedade a respeito de ações questionadas ou exigidas pela sociedade, sendo, portanto, atos de resposta a que a FSP cede espaço. Os casos apresentam metáforas recorrentes de ‘retirada’ e ‘remoção’, que compreendem uma possível ‘solução’ para a questão da situação de rua baseada na noção de espacialidade dentro/fora: a PSR estando ‘dentro’ de um espaço que se configura como problema, deve ser posta ‘fora’, retirada, removida deste espaço. A alta densidade de ‘foram’ nesse recorte temático lembra a análise da representação de APP em textos publicados em O Globo, também parte do projeto que origina este artigo (RESENDE, 2018). Aqui, como lá, trata-se de um padrão de colocação em que pessoas em situação de rua são representadas como alvo de ações realizadas por outros atores: na representação da FSP, sofrem a ação de serem recolhidas, tiradas, encaminhadas, retiradas e até removidas e devolvidas, em expressões que não apenas as representam de forma passiva, mas também as desumanizam, ao utilizar em sua referência léxico reservado a objetos (como ‘devolver’). 584 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 O foco no espaço nesta nuvem também se realiza nos termos ‘cidades’ (por exemplo, “devolver andarilhos às suas cidades de origem”), ‘região’ (quase exclusivamente “região central”), ‘local’ (por exemplo, “em local bem longe da vista”), ‘centro’ (mormente centro de São Paulo e centro da capital), ‘cracolândia’ (“não resolve a questão da cracolândia. Ela vai para outro submundo”, “nova esperança para que a cracolândia não seja removida só geograficamente”, “circular a qualquer momento na cracolândia”, “polícia expulsou os viciados da cracolândia e eles passaram a perambular”) e ‘retirada’ (“de comunidades carentes”, “de moradores de rua”, “compulsória de pessoas que vivem nas ruas”, “de mendigos das ruas”). As representações de deslocamentos da PSR na cidade são representações de um movimento forçado, vigiado, operado por outros atores, associado centralmente às ações do executivo municipal. Quanto a sua permanência em um local, vejamos a nuvem das 30 palavras de quatro ou mais letras com maior densidade nessa temática: FIGURA 2 – Nuvem das 30 palavras mais frequentes na temática “Permanências da PSR na cidade” Aqui também a palavra mais frequente é “moradores”, que na maior parte de suas ocorrências está em colocação com “de rua”, havendo apenas três exceções: dois casos (em um mesmo texto) em que o item “moradores” sem complemento serve de referência a pessoas em situação de rua (“intensificar as ações das rondas e abordagens sociais nos pontos de maior concentração de moradores para tentar diminuir o número de Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 585 pessoas nessa situação” e “A limpeza dos pontos de concentração de moradores é outra estratégia para tentar dispersar esse público”) e um caso de referência a moradores locais (“moradores relatam que com a chegada da tenda a sensação de insegurança aumentou”). No primeiro caso, é de notar que as duas instâncias em que “moradores” se separa de “de rua” na referência à PSR a colocação seja com “concentração de”, o que deixa uma pista de leitura capaz de mitigar a possível ambiguidade. Concentração, nesse recorte temático, é a segunda palavra em densidade. É a metáfora mais produtiva no corpus para referir a permanência da PSR em um local. Todas as ocorrências da palavra seguem o mesmo padrão: ‘concentração de’ + ‘item nominal de referência à PSR’, como em “local de concentração de pessoas que se drogam”, “Concentração de morador de rua ‘assusta’”, “grande concentração de usuários de crack”, “pontos de maior concentração de moradores”, “um dos pontos de concentração de moradores de rua”, “A concentração de pessoas em situação de rua” e “A limpeza dos pontos de concentração de moradores é outra estratégia para tentar dispersar esse público”. Neste último caso, a metáfora química de concentração guarda coerência com a de dispersão. É recorrente a presença do foco espacial com “ponto de concentração” ou “local de concentração”, o que pode sustentar a interpretação de que a situação de rua seja percebida como problemática em relação a certos espaços específicos, não como questão social. Outra metáfora produtiva, esta de ordem biológica (e animalizante), é a de atração. Nos casos em que ocorre a palavra “atrair”, observase a colocação com “moradores de rua”, “mendigos” ou “pessoas indesejáveis”. Quando a ação de atrair tem como origem a prefeitura, refere-se a serviço disponibilizado, como em “tentar atrair os moradores de rua para albergues da prefeitura, desocupando assim praças e ruas” – e é notável que essa ‘atração’ tenha por objetivo justificado a desocupação de praças, e de novo o foco é espacial, não social. Mas quando a ‘atração’ referida tem polo negativo, trata-se de referir ações de impedimento que são sempre expressas em articulações intertextuais da voz de moradores e trabalhadores locais, como em “Para o jornaleiro Fabio Filgueira, 28, que trabalha próximo à estação Carandiru, a rua fica mais bonita com o gradil e as plantas que foram colocadas ali. ‘Eu mesmo não reformo o toldo da minha banca para não atrair mendigos à noite.’” ou em “Acho louvável a atitude da igreja em ajudar os pobres, e a gente colabora sempre que possível, mas aqui ao lado vai atrair pessoas indesejáveis” 586 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 (sobre as avaliações presentes em articulações intertextuais de vozes de moradores e trabalhadores locais, ver análises em Resende e Ramalho, 2017, e em Resende e Mendonça, no prelo). Se juntarmos a isso as ocorrências de “cracolândia”, “usuários” e “crack” nesse mesmo nó temático – também palavras de nossa nuvem –, observamos sentidos de expulsão (como em “Desde que a polícia expulsou os viciados da cracolândia e eles passaram a perambular”), também expressos pela metáfora da migração (“há uma grande concentração de usuários de crack no local que migraram da cracolândia, também na região central”). Metáforas desumanizantes nesses casos são por exemplo as de ‘espalhar’ (“Moradores de rua e usuários de crack se espalharam pelo centro desde o início do ano”) e seu contrário ‘agrupar’ (“Era lá que centenas de usuários se agrupavam para consumir a droga”), que interpretam a PSR como objetos. Assim, as metáforas produtivas na temática de permanências da PSR são de fato formas de argumentar em favor de seu deslocamento forçado ou de sua inadmissibilidade em certos espaços urbanos. 3.3 Metáforas conceituais e chaves conceituais Realizado todo o mapeamento de expressões metafóricas no corpus de 105 textos da FSP tematizando APP dirigidas à PSR, o passo subsequente foi sua organização em metáforas conceituais. Segui a conceituação de Charteris-Black (2004), que considera metáforas conceituais como afirmações que resolvem a tensão semântica de um conjunto de metáforas, estas últimas sendo as expressões linguísticas que têm existência real em textos. Desse modo, as metáforas conceituais não coincidem com as metáforas mapeadas, pois são instrumentos epistemológicos para sua ordenação e análise. Nos 105 textos do corpus, consideradas todas as temáticas delimitadas, foram mapeadas 431 expressões metafóricas, ordenadas em 48 metáforas conceituais, a saber: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 QUADRO 2 – As 48 metáforas conceituais no corpus organizadas por domínio metaforizado A CIDADE É SER VIVO ÁLCOOL OU DROGA É ESPAÇO AÇÃO OU POLÍTICA PÚBLICA É BASE DE APOIO CAMINHO ENGRENAGEM OÁSIS NO DESERTO SEDUÇÃO OU ATRAÇÃO SER VIVO VITRINE OU MAQUIAGEM APP OU SITUAÇÃO DE RUA É GUERRA OU DESAFIO CRACK É EPIDEMIA CRACOLÂNDIA É CIRCULAÇÃO CONCENTRAÇÃO ESCURIDÃO ESPETÁCULO OU JOGO FENÔMENO OBJETO SER VIVO SOM SUBMUNDO TERRITÓRIO MÁQUINA FECHAR CENTRO SOCIAL É DAR AS COSTAS OU CRUZAR BRAÇOS GENTRIFICAÇÃO É REVITALIZAR O OLHAR DO OUTRO É AMEAÇA O SOCIAL É UM LUGAR DE ONDE SE PODE ENTRAR E SAIR PESSOA EM SITUAÇÃO DE RUA É DONO DA RUA GASTO OBJETO PERIGO PROBLEMA PSR OU SITUAÇÃO DE RUA É INVISÍVEL SUJEIRA PSR OU USUÁRIO DE CRACK É ANIMAL 587 588 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 SITUAÇÃO DE RUA É ABANDONO SOCIAL CONCENTRAÇÃO DEGRADAÇÃO DOENÇA ESCONDERIJO ESPAÇO ESTAR SEM RUMO OU PERDIDO HOSPEDARIA, MORADIA, ALUGUEL INVASÃO HUMANA JAULA OU CORRENTE LIBERDADE MARCA USUÁRIO DE CRACK É OBJETO INIMIGO A SER COMBATIDO Para chegar a essas metáforas conceituais, o que fiz foi abrir uma por uma as 431 expressões metafóricas e, relendo-as, agrupei-as de acordo com as metáforas conceituais que resumiam as tensões semânticas que provocavam, conforme os domínios mapeados em cada caso. No caso do nó de interseção ‘deslocamentos + permanências da PSR na cidade’ x ‘esquema de imagem’, e lembrando que para um mesmo texto diversas expressões metafóricas e metáforas conceituais podem ter sido mapeadas, o cruzamento dos casos da interseção com os levantamentos de metáforas conceituais mostra que, nesse conjunto de dados, as metáforas conceituais mais recorrentes, considerando apenas as interseções com valores iguais ou superiores a cinco, são: TABELA 1 – Consulta em matriz de codificação: células de interseção mais produtivas (>5) em Metáforas conceituais x (Deslocamentos + Permanências x Esquema de Imagem) Interseção: Deslocamentos + Permanências / Esquema de Imagem “CRACOLÂNDIA” É CONCENTRAÇÃO 8 POLÍTICA PÚBLICA É CAMINHO 12 POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA É OBJETO 37 SITUAÇÃO DE RUA É CONCENTRAÇÃO 5 SITUAÇÃO DE RUA É ESPAÇO 6 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 589 Quando se trata dos deslocamentos e permanências da PSR na cidade, o tipo preferencial de metáfora, como vimos, é o esquema de imagem, e a representação de APP voltadas para a PSR nesse corpus da FSP tende a uma representação em que a população em situação de rua é objeto sobretudo de políticas de encaminhamento. Seus movimentos representados são mais que nada movimentos forçados, que se repetem e se justificam exaustivamente na FSP, também pelo recurso da representação de suas permanências com avaliação negativa. Se considerarmos os resultados de metáforas conceituais nesse nó de interseção, temos algumas justificativas que nesses textos se expressam para ações repressivas, tomadas em termos de territorialidades. Na proposta metodológica de Charteris-Black (2004), de que me aproprio aqui conforme a necessidade apontada nos dados que analiso, chaves conceituais ajudam a explicar conjuntos de metáforas conceituais em relação a discursos particulares, o que, segundo ele, permite avaliar a coerência desses discursos e favorece a compreensão de seu papel ideológico. Cameron e Stelma (2004, p. 115) sustentam que cada discurso inclui grupos (clusters) de metáforas, e que esses agrupamentos metafóricos “assumem um papel importante no desdobramento discursivo”. É possível agrupar em seis chaves as 48 metáforas conceituais levantadas a partir das 431 expressões metafóricas mapeadas nos 105 textos do corpus, e dessas seis chaves, cinco retornam na matriz com a interseção ‘deslocamentos + permanências da PSR na cidade’ x ‘esquema de imagem’,8 sendo bastante mais produtivas as chaves física e territorial: A chave conceitual ausente nesse corte temático é a chave sensorial. Esta chave é bastante concentrada na temática da chamada ‘cracolândia’, o que permite sugerir que é o aspecto drogadição ligado à PSR que se representa como algo a ser percebido sensorialmente. Isso será discutido em outro artigo. 8 590 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 TABELA 2 – Consulta em matriz de codificação: células de interseção em Chaves conceituais x (Deslocamentos + Permanências x Esquema de Imagem) Interseção: Deslocamentos + Permanências / Esquema de Imagem CHAVE BIOLÓGICA 7 CHAVE CONFLITO 6 CHAVE FÍSICA 40 CHAVE INCÔMODO 5 CHAVE TERRITORIAL 36 Mesmo considerado o corpus total de 105 textos e suas 431 expressões metafóricas nas 10 temáticas, a chave física está bastante concentrada na temática de deslocamentos da PSR na cidade, e a chave territorial é a mais relevante no corpus, sendo recorrente nas 10 temáticas. Esse espraiamento permite concluir que a questão territorial é um aspecto central à representação metafórica de APP dirigidas à PSR na FSP. As temáticas de território ligam-se às de conflito, como nas metáforas que interpretam a situação de rua como invasão humana e como esconderijo. O principal efeito dessa chave é interpretar a situação de rua como uma questão territorial: trata-se do espaço que ocupa, trata-se de ‘apropriação do espaço público’, e é isso o que se representa como questão. Nessa chave interpretativa, as APP dirigidas à PSR são uma questão de encaminhamento – a pessoa estando “sem rumo”, “enjaulada” em seu problema interpretado como individual, deverá ser ‘encaminhada’. A chave física complementa esse sentido, pois quando se associa a discurso desumanizante da PSR, a reifica e não a reconhece como sujeito de direitos, e daí seu deslocamento forçado pode ser naturalizado.9 Quanto às outras três chaves conceituais identificadas nesse recorte temático, a chave biológica pode ser associada a discurso de defesa da (saúde da) cidade (entendida como ser vivo) de uma ameaça representada como sendo a situação de rua e a drogadição a ela associada (epidemia, doença) – portanto, a discurso de risco (epidemiológico, na lógica metafórica); a chave conflito, sendo de natureza bélica, reforça a interpretação da defesa da cidade; a chave incômodo, ligada a discursos higienistas, reifica a situação de rua. 9 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 591 Já sabemos que as atitudes sociais a respeito de grupos minorizados influenciam as escolhas semânticas e lexicais apropriadas em sua representação discursiva (VAN DIJK, 2005), e esta por sua vez retorna a influência sobre as atitudes sociais (FAIRCLOUGH, 2001). Nosso corpus de metáforas reproduzidas nos textos da FSP confirma uma representação objetificante da PSR, representada em papel passivo como alvo de APP de encaminhamento, que restringem ou forçam seus movimentos e permanências na cidade, exceto quando são agentes de ações interpretadas como inconvenientes ou ameaçadoras, quando sua responsabilidade individual é enfatizada em termos de incômodo ou risco. Considerações finais Charteris-Black (2004, p. 10) reforça que para entender por que uma metáfora é preferida a outra, precisamos necessariamente considerar os contextos específicos em que são produzidas e os propósitos comunicativos que podem a elas ser associados, pois “as metáforas não são uma exigência do sistema semântico, mas são questões de escolha da/o falante”. Assim, para compreender as escolhas da FSP ao representar a PSR e as APP a ela dirigidas, quando se trata de seus deslocamentos e permanências, precisamos atentar para escopos editoriais e interesses a que essa empresa de mídia se conecta. Olhar para textos que representam interesses do mercado imobiliário, por exemplo, pode ajudar. Na FSP, em textos relacionados a APP dirigidas à PSR, lê-se algo como “O Nova Luz é para a cidade recuperar área degradada, repleta de equipamentos fundamentais, com baixa densidade e localização privilegiada. É a primeira grande revitalização na cidade”. Ao atribuir “baixa densidade” à região, ignora-se toda uma população, que é orientada a “procurar outro lugar, porque a área está sendo revitalizada”. A isso se somam os sentidos da situação de rua como usurpação voluntária do espaço público (“manter o espaço público livre de usurpadores”). Ocultase a natureza social perversa da questão, quando se decide responsabilizar apenas o indivíduo, como se a situação de rua (sempre) fosse mesmo algo que se escolhesse diante de um cardápio de outras possibilidades. Sobre isso, Ávilla e Molina (2017, p. 61) sustentam que “a naturalização da situação de rua é parte de uma estratégia das políticas neoliberais, dado que permite legitimar a exclusão e justificar medidas políticas 592 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 assistencialistas ou expulsivas que não levam em conta as determinações estruturais e históricas”. Esses sentidos servem para justificar APP desumanizantes, que possam, o mais rápido possível e ao menor custo, liberar uma área para exploração comercial, o que se chama comedidamente “revitalização”. Isso se realiza mediante a ‘internação’ de pessoas em locais inadequados para o tratamento de seus problemas de saúde, ou sua simples expulsão para outros territórios comercialmente menos relevantes. Pouco se questiona a qualidade dos abrigos ofertados, mas repetidas vezes se questiona a decisão das pessoas de não usarem os albergues. Por isso, concordo com Charteris-Black (2004, p. 247) quando reforça o caráter ideológico das escolhas metafóricas em muitos casos, chamando atenção para sua natureza pragmática, já que “[a]s mesmas noções poderiam ter sido comunicadas utilizando-se metáforas diferentes, que carregassem ideologias diferentes, e as mesmas metáforas também podem ser empregadas de diferentes maneiras, de acordo com a perspectiva adotada”. Entendendo que o uso dessas metáforas tem força persuasiva não transparente – uma “função persuasiva subjacente”, nos termos de Charteris-Black (2004, p. 9), vinculada à opacidade do discurso, nos termos de Fairclough (2010) –, sua relevância ao propor ao debate certas chaves interpretativas não deve ser minimizada. E isso ainda se soma à vantagem de as coisas não serem ditas abertamente, reduzindo o risco de se expressarem explicitamente sentidos como os decorrentes das metáforas conceituais que mapeamos. Além de atribuir à PSR sentidos tão crus como o de ser animalizada ou considerada coisa, inimigo, doença, as metáforas, escolhidas nesse contínuo movimento de reforço de um texto depois do outro, também ocultam outros sentidos – como o de ser humano, o de ter direitos, o de ser cidadão pleno. Ocultar esses sentidos é também o que permite defender as APP repressivas e violentas, noticiadas de forma naturalizada um dia depois do outro. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 565-596, 2020 593 agradecimentos Agradeço ao CNPq (PQ 304075/2014-0, PQ 301809/2017-8 e Universal 408220/2018-0) e à CAPES (PVEX 88881.172032/2018-01) o apoio aos projetos relacionados. Também à Universidad Pompeu Fabra por acolher o projeto “Representação de políticas públicas para população em situação de rua como gestão do território: metáforas espaciais na Folha de S. Paulo” em estágio pós-doutoral, e muito especialmente ao Dr. Teun A. van Dijk por sua supervisão. Registro meu agradecimento às colegas e alunas da Universidade de Brasília, sobretudo às pesquisadoras que se vincularam (Dara Abreu, Lygia Vaz) e que se vinculam (Carolina Araújo, Daniele Mendonça, Ingrid Ramalho, Larissa Silva e Gabriella Rodrigues) ao grupo de pesquisa em torno desses projetos. referências ACOSTA, M. P. T. Metáfora como categoria epistemológica e analítica. In: RESENDE, V. M.; ARAÚJO, C. L. (Org.). Discurso e pobreza. Campinas: Pontes, 2018. p. 13-44. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 os enquadres discursivos do acontecimento migratório: narrativização, banalização e estigmatização The discursive frameworks of the migratory event: narrativization, trivialization and stigmatization Wander Emediato Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horionte / Minas Gerais / Brasil wemediato@hotmail.com https://orcid.org/0000-0003-1480-7019 resumo: Buscou-se abordar o tema da imigração sob a perspectiva de sua historicidade (do acontecimento migratório) e da dinâmica dos estudos discursivos na França e no Brasil com o objetivo de observarmos como o contexto histórico do acontecimento migratório influencia o tratamento da questão e aponta para a banalização da imigração e a estigmatização dos imigrantes. No Brasil, ainda que a imigração constitua um forte componente histórico da formação da sociedade brasileira, os estudos sobre a imigração como um “problema” e associada a uma “crise” – como foi o caso na França – são recentes e estão relacionados com acontecimentos pontuais, como o fluxo migratório do Haiti, da Venezuela, da Bolívia e da Síria. O imaginário social de imigração no Brasil, até então, estava relacionado a uma narrativa histórica e romantizada da experiência vivida e discursiva dos imigrantes europeus que vieram ao Brasil entre os séculos XIX e XX. Atualmente, uma nova narrativa se delineia, motivada pelo imaginário da crise e do problema migratório, do invasor perigoso e miserável que ameaçaria a estabilidade do “nacional”. As formas de tratamento midiático da questão têm o potencial de pautar o debate político e social sobre a imigração, silenciando ou tirando o relevo de outras perspectivas possíveis de se tratar e ver o assunto. Elas “fazem ver” de uma certa maneira o acontecimento histórico ao enquadrá-lo em suas esquematizações discursivas estigmatizantes do imigrante. Palavras-chave: discurso; imigração; banalização; estimagmatização. eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.597-618 598 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 abstract: We sought to address the issue of immigration from the perspective of its historicity (of the migratory event) and the dynamics of discursive studies in France and Brazil in order to observe how the historical, political and social context of the migratory event influence the treatment of immigration and the stigmatization of immigrants. In Brazil, although immigration is a strong historical component of the formation of Brazilian society, studies of immigration as a “problem” and associated with a “crisis” – as was the case in France – are recent and are related to events such as the flow of migrants from Haiti, Venezuela, Bolivia and Syria. The social imaginary of immigration in Brazil until then was related to a historical and romanticized narrative of the lived and discursive experience of European immigrants who came to Brazil between the nineteenth and twentieth centuries. Nowadays, a new narrative is outlined, motivated by the imaginary of the crisis and the migratory problem, of the dangerous and miserable invader that would threaten the stability of the “national”. The media’s ways of dealing with the issue have the potential to guide the political and social debate about immigration, silencing other possible perspectives of addressing the issue. They “see” the historical event in a certain way by framing it in its stigmatizing schematizations of the immigrant. Keywords: discourse ; imigration ; trivialization ; stigmatization. Recebido em 19 de julho de 2019 Aceito em 01 de outubro de 2019 Introdução A imigração no Brasil é um tema antigo que mobiliza memórias sobre a própria constituição do povo brasileiro. Situada em diferentes épocas e com origem diversa, o tema da imigração, ao mesmo tempo que constitui um problema (político, identitário, midiático, etc.) sempre foi também motivo de celebração e de construção de produtos e referências culturais: telenovelas, filmes e documentários diversos já foram realizados sobre o tema da imigração no Brasil. Não é incomum encontrar sobre esse tema expressões como “O Brasil é um país de imigrantes”, “a miscigenação cultural brasileira” (esta expressão pode incluir tanto os imigrantes como a mistura de etnias constitutivas do povo brasileiro, como a indígena e a africana), “terra de acolhimento”, etc. Diferentes povos imigraram para o Brasil ao longo de sua história, deixando marcas em sua cultura, demografia e economia. A imigração de origem européia se deu principalmente entre os séculos XIX e XX: Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 599 a italiana a partir de 1880, a japonesa no início do século XX, a alemã nos séculos XIX e XX, poloneses e ucranianos entre 1869 e 1920, a espanhola também no final do século XIX, a árabe, principalmente libanesa e síria, por volta de 1880. A maior parte desses imigrantes foi destinada às regiões sudeste e sul do Brasil para atividades ligadas à lavoura, como as plantações de café no estado de São Paulo. Outros tiveram como destino centros urbanos, em particular São Paulo e Rio de Janeiro. Estima-se que entre 1884 e 1959 entraram, no Brasil, cerca de cinco milhões de imigrantes. A imigração européia é a mais lembrada, idealizada e romantizada. Os chamados povos originários, indígenas, também teriam vindo de fora, provavelmente da Ásia, através do estreito de Bering, ainda na Idade do Gelo. À época do descobrimento do país por Portugal entre 1,8 milhão a 6 milhões de indígenas viviam no território. A partir de 1500 até 1822, data do fim do Brasil colônia, cerca de 700 mil portugueses se deslocaram para o Brasil. No mesmo período, em função do tráfico negreiro, cerca de 5 milhões de africanos foram trazidos ao Brasil na condição de escravos. Na década de 1960, o Brasil deixou de ser um grande receptor de imigrantes, passando a ser um país expulsor de trabalhadores, a partir da década de 1980, sobretudo para os Estados Unidos, o Paraguai, a Europa e o Japão. Essa tendência manteve-se constante até recentemente, uma vez que vem sendo observado o crescimento da imigração para o Brasil, em particular de países como Portugal, Bolívia e Haiti. Atualmente, a diáspora, a migração de pessoas fugindo de guerras, perseguições políticas, catástrofes naturais, pobreza e problemas econômicos mobilizam novos pontos de vista sobre o tema da imigração e da migração de pessoas, constituindo as bases de uma polêmica global sobre o assunto. No cenário brasileiro, em decorrência dos fenômenos migratórios globais, especialmente na europa ocidental, e no próprio Brasil, em razão da catástrofe natural (e também econômica e política) do Haiti, o tema foi bastante amplificado, justificando diferentes tipos de pesquisas em ciências humanas e sociais, e também em análise do discurso. O termo “refugiados” ganha o espaço institucional e midiático, torna-se também um problema de estado, com dispositivos jurídicos sendo criados para tratar o assunto e os indivíduos situados no interior dessa designação. 600 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 1. Estudos sobre imigração e linguagem Em comparação com outros países, notadamente europeus, como a França, a Inglaterra, Itália e Alemanha, os estudos sociológicos e discursivos sobre o “problema da imigração” no Brasil são bem recentes. No âmbito da análise do discurso, só passaram a ganhar relevância e visibilidade nos últimos anos, especialmente em razão do fluxo de refugiados do Haiti, das questões de fronteira com a Venezuela e do debate global sobre a guerra na Síria. A questão Síria fez surgir sobretudo um olhar pra fora, ou seja, uma reflexão exofórica sobre o modo como países europeus tratam o problema. Isso foi reflexo do próprio tratamento midiático, pois a grande mídia brasileira, sobretudo televisual, tratou o assunto “refugiados” relatando – e julgando – o modo (negativo) como os europeus trataram o assunto numa dinâmica do imaginário dos direitos humanos. Aos olhos dos estudos discursivos franceses, um dossiê temático de periódico sobre o tema da imigração, como é o caso desta publicação, poderia até parecer anacrônico. O apogeu desses estudos na França se deu nos anos 1990. Bem datados, os estudos franceses se multiplicaram em razão dos acontecimentos que mobilizaram a população de origem árabe e negra nas periferias de Paris e em outros centros urbanos franceses (Vaux-en-Vélin, Minguettes, Mantes-la-Jolie, Saint-Denis, Barbès, etc.). O assunto estava então no centro da atualidade, com o foco sobre a identidade dos imigrantes, a integração – difícil – de jovens pertencentes à segunda geração, ou seja, nascidos ou crescidos na França, a discriminação racial e espacial (as periferias e les quartiers chauds ou difficiles). A designação dessas comunidades e desses espaços diz muito sobre a conjuntura histórica: naquela época, o foco era sobre a imigração. Atualmente, não são tanto mais os imigrantes, mas os refugiados, que alimentam o debate. 2. Estudos discursivos sobre a imigração na França. Merecerão destaque aqui o dossiê publicado pela revista MScope: Images de l´immigration dans les médias, de 1993, e a tese de Simone Bonnafous, de 1990, L´immigration prise aux mots. Essas publicações constituirão uma referência sobre o tratamento do tema, pois reúnem os principais elementos constituintes do “problema” da imigração. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 601 O discurso sobre os imigrantes e a imigração de 1974 a 1984 foi o centro do estudo desenvolvido por Simone Bonnafous em sua tese defendida em 1990 (BONNAFOUS, 1991). Para ela, o debate sobre o assunto se tornou a peça central da decisão política e do debate sobre a imigração na França. Seu estudo tomou como base de análise um conjunto de textos jornalísticos dos jornais franceses « políticos » – Militant, Le National (futuro National Hebdo), Minute, Le Quotidien de Paris, Le Figaro, Le Nouvel Observateur, L’Unité, Libération, L’Humanité, Dimanche et Lutte Ouvrière. Servindo-se de estudos quantitativos do vocabulário na linha da lexicometria da Ecole Normale Supérieur de Fontenay-Saint-Cloud, Bonnafous investigou o sentido das formas discursivas variantes e invariantes agenciadas no discurso da imprensa sobre o tema. Ela se apoiou sobre o método de análise das especificidades, descrevendo sistematicamente a repartição de formas lexicais simples e de segmentos repetidos para, em seguida, colocar em evidência os elementos da designação pronominal e nominal e a evolução histórica dos vocabulários ao longo de 10 anos. Para a pesquisadora, especialmente a partir de 1980, verifica-se uma banalização do discurso sobre a imigração na imprensa política e uma homogeneização do discurso midiático sobre o tema, fazendo surgir laços discursivos entre crise e xenofobia e uma dialética entre o “eles” e o “nós”. A tese aborda as modalidades do estabelecimento de um “consenso progressivo das formas” que opera na base de uma caracterização dos referentes e das formas de designação, construindo, aos poucos, a banalização progressiva das teses extremas, sobretudo da extrema direita, se servindo da fragilidade e inconsistência do discurso dos partidos tradicionais. Desse modo, o discurso das correntes políticas majoritárias, da esquerda à direita republicanas, é marcado pela banalização referencial. O imigrante passa a ser designado e descrito como uma comunidade de classe e como origem de testemunhos que reforçam teorias (sociais, políticas, identitárias) desenvolvidas pela imprensa. O ser imigrante é construído como uma classe exterior em relação a uma comunidade nacional ou racial e passa de uma categorização como trabalhador ao delinquente, evoluindo para um sentido de coabitação difícil – ou mesmo impossível – com os nacionais franceses. Surgem os termos e perspectivas em torno da “assimilação” e da “integração”. Bonnafous demonstra que, de 1974 a 1984, se passa de um discurso “social” sobre os imigrantes a um discurso de “crise”, de constrangimento cotidiano e de “culpabilidade das culturas”. A 602 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 autora ressalta ainda a relativa vitória da extrema direita sobre o tema da imigração e o fracasso dos jornais de esquerda que, a partir de 1980-1983, retomaram a problemática e o terreno impostos pela extrema direita que passou a pautar o assunto na França. Bonnafous mostra, em se tratando do tema da imigração na França, como o discurso fabrica o imaginário. Sua tese constitui uma obra incontornável sobre o tema da imigração na análise do discurso. Um dossiê (LAMBERT, 1993) dedicado ao tema da imigração, publicado pela revista francesa MScope, em 1993, merece também destaque pela variedade de perspectivas tratando o mesmo objeto e por mostrar como a imigração constituiu um verdadeiro problema de sociedade na França nesse período, ao ponto de fundar um imaginário social sobre o tema. O dossiê mostra também como o tema atraiu o interesse de analistas do discurso e outros pesquisadores das ciências humanas. Embora os artigos da revista, em sua totalidade, possuam relevância e grande interesse, irei destacar apenas alguns, salientando aspectos que me parecem essenciais à discussão. O artigo assinado por Frédéric Lambert, o organizador do dossiê temático para a revista MScope, mostra como as “images reçues” respondem visualmente às “idées reçues”. O estudo focaliza a circulação de imagens sobre os imigrantes e os estereótipos que se deixam notar: o imigrante seria um adolescente negro ou árabe, amante de rap e pixador, com suas imagens associadas ao desemprego, à violência, à periferia e aos bairros violentos. Já a imagem do bom imigrante é de um trabalhador negro ou magrebino, com roupa de operário em um canteiro de obras, servente em um hospital, lixeiro correndo atrás de um caminhão de lixo ou limpando as ruas de Paris. Por detrás da função social que ele ocupa, ele se torna inofensivo, ele está no lugar onde a sociedade que o acolhe deseja que ele esteja. Seriam esses os uniformes do bom imigrante. Em outros espaços, como nos anúncios publicitários, o imigrante é uma criança Benetton,1 um jovem amarelo, um negrinho, um arabezinho, emprestando seus rostos a um pequeno branco, discurso publicitário que se pretende universal, fraternal, multicultural. Para Lambert, o imigrante A campanha publicitária construída pela agência de Oliviero Toscani nos anos 1990 para a marca Benetton inovou no tratamento de questões polêmicas de ordem humanitária e política, investindo em imagens e temáticas delicadas como o racismo, a miséria, a guerra, a exploração da criança, entre outros temas sensíveis. 1 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 603 em imagens é uma representação social que não tem nada a ver com a realidade, assim como o ocidente é um espaço mental que nada tem a ver com a geografia. Pensando nos diferentes suportes visuais da cultura de massa em que circulam as imagens de imigrantes – a publicidade, o cinema, a televisão, os canais de informação – a questão que Lambert coloca é a de saber quem modela nossos modelos. Questão crucial para quem pretende compreender os imaginários que fundam nossas representações sobre imigrantes, imigração e os excluídos em geral. Tahar Ben Jelloun (1993) segue essa linha de questionamento abrindo uma problematização: os imigrantes são fotogênicos? A imagem do imigrante, especialmente em contextos em que eles se tornam o centro de um debate político e de uma “crise”, significa um incômodo, já que eles aparecem nas páginas de jornais em situações de tristeza ou de penúria. Para Jelloun, o drama cola de maneira irreversível à sua existência, embora sejam pessoas comuns, cuja origem lhes cola na pele. O imigrante, nesses contextos, se tornou sinônimo de problema. Ainda que a realidade seja plural e não se submeta à homogeneização da mídia e dos discursos públicos, o autor ressalta a dificuldade para o imigrante de ter um “direito de resposta” e mostrar outras faces e outras perspectivas que não a da vítima ou do agressor, ou do trabalhador, não tendo nenhum recurso para retificar ou mudar as suas imagens. Ahmed Boubeker (1993), sociólogo da universidade de Lyon II, percorre no dossiê uma história das representações públicas da imigração na França nos anos 1980 e 1990, se interrogando sobre as relações que os profissionais da imprensa mantêm com o tema, concluindo que, de maneira geral, as mídias possuem um papel de regulação que eles próprios subestimam. Para o autor, a imigração permanece à margem da sociedade francesa e os pressupostos evidenciados nas cenas da informação contribuem para ampliar essa distância. Um silêncio sobre a presença irreversível das populações estrangeiras na sociedade francesa amplia a base cênica das representações públicas no terreno das explosões de periferia, do islamismo, da polícia, do “problema da imigração”, do racismo, e das manifestações pela igualdade. Tal cenário é amplificado sobretudo a partir da guerra israel-árabe de 1973 (Guerra do Kippour), e do choque de petróleo, mas, no caso francês, possui ainda contextos anteriores, como o da guerra da Argélia, entre 1952 e 1962, que culminou com a independência argelina e produziu uma divisão extrema na sociedade francesa entre nacionais franceses e pessoas de origem árabe. 604 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 Jean-Barthélemi Debost (1993), ao analisar os estereótipos publicitários sobre a imagem do negro, ressalta que as representações mais atuais sobre o negro são relativamente recentes e surgem após os anos 1960, quando não comportavam as mesmas noções. Embora já houvesse a presença de africanos, ela não interferia no conjunto da sociedade francesa, reduzida a noções associadas ao cosmopolitismo ou ao apátrida. Após a guerra de independência da Argélia, o contexto irá se transformar orientando-se para representações mais negativas e extremistas. A chegada mais massiva de africanos na França em decorrência de fatos geográficos e políticos (seca, crise petrolífica, guerras, etc.) irá contribuir para essa transformação. Um movimento de resistência aos discursos extremistas de rejeição ao negro e ao imigrante se faz notar, com o surgimento de associações como o SOS Racismo e a criação na França, em 1991, de uma Secretaria de Estado da Integração, o que contribui para a proliferação de imagens sobre o tema da imigração e de uma França multicultural. Se antes de 1991 a representação do negro na publicidade era ínfima, como mostra o autor, ela se tornará mais dinâmica a partir daí. Do fim do século XIX até os anos 1960, as imagens publicitárias de negros focalizavam basicamente o “servidor”, o personagem trabalhador: serventes, carregadores, motoristas, operários da construção civil, expressando uma situação de desejo entre o comprador (o cliente) e um personagem inferior. A partir dos anos 1960 a situação irá se transformar e a representação publicitária do trabalhador negro irá declinar significativamente, provocando uma raridade de imagens de trabalhadores servidores, apesar da realidade material atestar essas situações. Um silêncio se mostra evidente em relação à representação do negro nessas situações, e uma outra começa a surgir: o negro (o Black) passa a figurar na publicidade de roupa e de moda, explora-se mais o seu corpo e sua estética, sua sensualidade (Black is beautiful), os modelos negros aparecem com seus atributos, sua cultura FM e Hip Hop. São os imigrantes da segunda geração. Ao público jovem contemporâneo, oferece-se a imagem do Black beautiful; às damas do fim do século XIX, o motorista negro. O autor nos mostra a relação entre as imagens e os imaginários, os contextos culturais e a história, muitas vezes em detrimento da própria realidade social e política. Fora do contexto francês, vale destacar o artigo assinado por Catherine Humblot (1993) para o dossiê de MScope sobre o “exemplo britânico”. A autora mostra como a televisão britânica, a partir de 1965, Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 605 passa a produzir programas específicos destinados à comunidade de imigrantes, deixando o tom paternalista e pedagógico e operando o que seria uma pequena revolução no tratamento do tema, em especial com a chegada de Channel Four e, em seguida, de vários outros canais de televisão desenvolvendo programas destinados aos imigrantes. Humblot relata a aparição de uma verdadeira produção étnica que vai de programas militantes a comédias para o grande público e grandes documentários (história, meio-ambiente, geografia, etc.), além de ficções e séries com grande repercussão e audiência. Essa produção televisual irá impor uma nova face e uma nova e dinâmica representação dos negros, paquistaneses, indianos, entre outros, na comunidade britânica, trazendo outra visão do terceiro mundo, da cultura negra, do humor étnico. Toda essa produção de estudos sobre a imigração nos mostra o interesse que o tema despertou e sua relação com os contextos histórico, político e cultural da França e da europa, especialmente nos anos 1980 e 1990. Tais estudos podem nos servir de base para uma reflexão crítica sobre o lugar dos estudos brasileiros sobre o tema e a sua relação histórica específica e bastante recente. Se procurarmos estudos sobre o tema no Brasil dos anos 1980, dificilmente encontraremos um movimento tão significativo, o que mostra que naquele período não havia, no Brasil, o “problema” da imigração. 3. o Brasil, a narrativa histórica e os imaginários da imigração No Brasil, a termo imigração faz surgir sentidos distintos do termo refugiados. A imigração no Brasil remete a uma narrativa histórica sobre povos que vieram ao país – italianos, alemães, portugueses, japoneses, libaneses, etc. O imaginário social é o do Brasil, terra de acolhimento e da diversidade multicultural. Já o termo refugiados atualiza o presente em um sentido de barbárie, de fome, de miséria, algo da ordem do incontrolável, da invasão alienígena, da ameaça – não identitária, mas econômica, social, de território. Essa nova perspectiva aliena a memória da imigração como componente fundador da sociedade brasileira e abre um novo movimento discursivo vinculado ao imaginário da imigração como “problema”. De certa forma, essa alienação é influenciada por imaginários externos, especialmente europeus, sobre o tema. É importante ressaltar, porém, que apesar das forças que influenciam o pensar atual sobre o assunto, o aparente anacronismo brasileiro está relacionado ao fato 606 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 de que o contexto atual é de um país que superou a imigração como um problema no tempo histórico de sua emergência e passou à representação narrativa da experiência nacional que, em grande medida, é escrita como uma narrativa de sucesso: os imigrantes constituíram a nação e grande parte de sua riqueza e de sua força. Decorre disso que o imaginário da imigração se tornou positivo ao longo da narrativa histórica, razão pela qual uma nova narrativa se inicia agora sob a perspectiva dos refugiados, e não propriamente dos imigrantes. Se fizermos uma breve busca no google com o sintagma “a imigração no Brasil”, encontraremos, em destaque, o imaginário narrativo da imigração como sucesso histórico. Vejamos alguns exemplos apenas a título de ilustração. A enciclopédia livre Wikipedia já nos traz a narrativa integral, como mostra o texto inicial: “A imigração no Brasil refere-se ao conjunto de povos que imigraram para o Brasil ao longo de sua história. Ela deixou fortes marcas na demografia, na cultura e na economia do país”.2 Uma tal perspectiva só é possível uma vez vivida a experiência narrativa do mundo, no caso, da imigração e seu desenvolvimento histórico. Certamente, essa perspectiva não era a adotada no início do movimento migratório no Brasil. Sabe-se o quanto sofreram italianos, japoneses, eslavos e outros povos que aqui vieram antes de obterem o salvo conduto e a legitimidade no âmbito da “integração à brasileira”, em grande parte assimilacionista, ou seja, quem aqui chega, após algumas gerações, assume a identidade brasileira, ainda que festejem suas origens sob os aplausos dos brasileiros genuínos que também fazem dessas festividades parte de si. Com efeito, existem diferentes temporalidades na construção do sentido discursivo da imigração: há o tempo da imigração “problema”, na sua origem, e o tempo da narrativa da imigração, que pode se abrir a uma diversidade de resultados e experiências, tanto positivas quanto negativas, dependendo de cada caso. Poderíamos falar de um “tempo que traz” os imigrantes para a a convivência difícil de um presente, e de um “tempo que leva” embora os imaginários de origem, para retomar uma segunda fase do “tempo que traz” a narrativa histórica, com seus resultados e a experiência vivida construída pelo discurso social. Se continuamos nossa navegação pela busca do sentido do sintagma “A imigração no Brasil”, encontraremos a regularidade. O 2 https://pt.wikipedia.org/wiki/Imigração_no_Brasil Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 607 site Brasil Escola, traz a mesma narrativa histórica do Wikipedia. Com o título Imigração no Brasil, a matéria traz a contextualização já no subtítulo “O processo de imigração no Brasil intensificou-se a partir de 1808, quando um número expressivo de imigrantes europeus chegou ao país”. A foto de capa nos convoca para uma visualização bem conhecida, instalada na memória, do romantismo da imigração e da imagem positiva do imigrante: FIGURA 1 – Foto de capa da matéria “Imigração no Brasil” do site Brasil Escola Fonte: https://brasilescola.uol.com.br/brasil/imigracao-no-brasil.htm A visualização é típica do cinema e da representação novelística televisual. O imigrante é um personagem limpo, elegante e estereotipado, o trem ao fundo evoca a memória histórica desviante de outras imagens históricas conhecidas, como a do navio abarrotado de gente desembarcando no porto ou das multidões caminhando a pé às margens das estradas, diferentes formas visuais de representação épica dos imigrantes. Aqui, não é mais o invasor, nem o delinquente, nem o sujo, nem o maltrapilho, mas um personagem que chega para dar origem a um destino histórico grandioso. A narrativa histórica e épica se desenvolve e pode ser sintetizada no enunciado abaixo da matéria da revista Brasil Escola: A marca da imigração no Brasil pode ser percebida especialmente na cultura e na economia das duas mais ricas regiões brasileiras: Sudeste e Sul. A colonização foi o objetivo inicial da imigração no Brasil, visando ao povoamento e à exploração da terra por meio de atividades agrárias. A criação das colônias estimulou o trabalho 608 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 rural. Deve-se aos imigrantes a implantação de novas e melhores técnicas agrícolas, como a rotação de culturas, assim como o hábito de consumir mais legumes e verduras. A influência cultural do imigrante também é notável. (Fonte: https://brasilescola.uol. com.br/brasil/imigracao-no-brasil.htm) Três pontos de vista essenciais a destacar nessa síntese: o ponto de vista histórico no enunciado “A marca da imigração no Brasil pode ser percebida...”; o ponto de vista do actante acolhedor, no caso, o Brasil/brasileiro, no enunciado “A colonização foi o objetivo inicial da imigração no Brasil, visando ao povoamento e à exploração da terra por meio de atividades agrárias. A criação das colônias estimulou o trabalho rural”. Nota-se, nesse trecho, o ponto de vista do brasileiro, do planificador da imigração, utilitarista, aquele que, intencionalmente, criou a imigração, pois ela se integrava aos seus planos. Em seguida, o ponto de vista do actante imigrante, no enunciado “Deve-se aos imigrantes a implantação de novas e melhores técnicas agrícolas, como a rotação de culturas, assim como o hábito de consumir mais legumes e verduras. A influência cultural do imigrante também é notável”. O elemento integrador, o brasileiro, narrado como o interessado pela imigração; o elemento imigrante narrado como se integrando perfeitamente aos planos do integrador. Simbiose perfeita. A imigração não é representada como um “problema”. A narrativa histórica se construiu através de textos e imagens, fotografias, visualizações televisuais e cinematográficas, assim como também nos nomes de logradouros, de escolas, de personalidades, de famílias, no folclore nacional e em festividades, de personalidades políticas, conjunto de formas ritualísticas que vão constituindo o imaginário social da imigração no Brasil. Ainda há uma repartição identitária e geográfica na formação do imaginário da imigração no Brasil. O Brasil recebeu imigrantes de diferentes nacionalidades, como Portugal, Itália, Alemanha, Japão, Espanha, Suíça, China, Coreia do Sul, Polônia, Ucrânia, França, Líbano, Israel, Bolívia e Paraguai. No entanto, o imaginário da imigração no Brasil, nos termos que comentamos acima, é constituído majoritariamente pela referência aos imigrantes europeus. É essa narrativa que constitui o essencial do imaginário. Dela estão silenciados os chineses, os sulcoreanos, os bolivianos, os paraguaios e os libaneses. Estes últimos são tão numerosos no Brasil quanto no próprio Líbano, seu país de origem, mas eles não integram ainda o imaginário romântico que a narrativa Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 609 histórica construiu, embora haja tantas personalidades libanesas atuando na indústria, na política e em outras áreas da economia e da cultura brasileiras. Os venezuelanos iniciaram suas narrativas mais recentemente, assim como os haitianos e os “novos” sírios, portanto, é ainda cedo para saber como serão os imaginários sociais resultantes da experiência vivida e construída pela discurso da presença deles em terras brasileiras. 4. alguns estudos discursivos brasileiros sobre imigração É a partir das décadas de 2000 e 2010 que se nota um aumento significativo dos estudos discursivos sobre imigração. Esse período coincide com o acontecimento migratório como problema, pois a narrativa histórica da imigração não suscita tal interesse entre analistas do discurso. O acontecimento migratório é o da crise dos refugiados na Síria e a imigração de pessoas vindas do Haiti, da Bolívia e da Venezuela. Vale destacar o artigo publicado por Ilana Mountiana e Miriam Debieux Rosa, ambas da psicologia, respectivamente da USP e da PUC de São Paulo, que fizeram um estudo fundamentado na análise crítica do discurso com interdisciplinaridade com a psicologia social (MOUNTIANA; ROSA, 2015) e com foco na questão de gênero. Esse artigo desenvolve uma análise crítica de discursos sobre imigração e a posição que imigrantes ocupam no discurso social. O foco é dado nos processos de minorização de alguns grupos, destacando a questão de gênero sem deixar de considerar as intersecções entre sexualidade, raça e classe social. As autoras estudaram casos de imigrantes recémchegados em São Paulo. Coincidente com a questão central colocada por Bonnafous sobre a banalização no tratamento da imigração na França, os autores apontam para a naturalização das diferenças sociais como traços individuais patologizados quando não criminalizados, ressaltando, ainda, a reiteração dos enquadramentos dos imigrantes em posições de vítimas, ameaças ou seres exóticos. Ainda em 2006, a dissertação de mestrado de Tani Jacobsen Prellvitz, intitulada Estrangeiro ou Imigrante: o discurso da imprensa construindo a (in) aceitabilidade, trata da designação, pela imprensa, de imigrantes e a força que tais designações exercem sobre a construção de significações imaginárias sobre os estrangeiros que chegam para viver no Brasil. O autor também foca seu estudo no acontecimento migratório como problema, e o seu corpus de trabalho traz fragmentos de matérias 610 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 da imprensa versando sobre imigrantes provenientes principalmente da América do Sul, como os bolivianos, e africanos. Com fundamentação na análise do discurso pêcheutiana, as designações estudadas permitem ao autor discutir o problema da ideologia e das formações discursivas nesses processos de designação que constroem os imigrantes de forma marginal. A tese de Bruna Lopes Dugnani (2017) também percorre o caminho da imigração como problema, especialmente no que tange aos imigrantes contemporâneos. No entanto, a tese faz um percurso mais amplo, ao investigar as formas de representação do imaginário brasileiro da receptividade, especialmente em relação à narrativa histórica da imigração europeia no final do século XIX e início do século XX (imigrante bem-vindo, adaptado, integrado), contraposta aos movimentos discursivos que operam sobre o acontecimento migratório contemporâneo (imigrante problema, inadaptado, sobrecarga do Estado, contraventor, mercadoria). A autora se serve de conceitos bakhtinianos e foca sua atenção do fenômeno do dialogismo na imprensa. Não foi a minha intenção fazer uma ampla revisão de estudos discursivos sobre imigração, o que não caberia neste artigo, pois são muito numerosos e, como mostrei, datados historicamente. Assim como fiz nos estudos franceses, a intenção foi mostrar como o acontecimento histórico mobilizou o interesse de analistas do discurso e disciplinas das ciências humanas, na França nas décadas de 1980 e 1990, e no Brasil, nas décadas de 2000 e 2010. Além disso, desejei colocar em evidência que os resultados das análises são bastante aproximados e o fenômeno estudado aponta para uma dinâmica discursiva regular, especialmente no discurso da imprensa: a banalização e a naturalização da imigração como “problema” e como “crise”, que alimentam o debate político e as suas decisões, os enquadramentos dos imigrantes como vítimas, como populações miseráveis, inadaptadas e problemáticas, enquadramentos que fundam imaginários sociais e narrativas cujos resultados não são previsíveis no momento do acontecimento. Como toda narrativa, depende das sequências e da evolução dos personagens no interior da trama discursiva que os contrói e desconstrói continuamente. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 611 5. o início de uma narrativa sobre imigração? Farei agora uma breve análise de um fragmento de narrativa contemporânea sobre o acontecimento migratório recente. Analisarei um artigo publicado em um jornal brasileiro. Trata-se, portanto, de uma análise sucinta que buscará colocar em evidência aspectos que já mencionamos acima e constituem a regularidade discursiva no tratamento do tema. Notícia publicada no site G1, em 25/06/2016,3 sobre o tema da imigração-problema, destaca, em seu título, que em 10 anos o número de imigrantes no Brasil cresceu em 160%, a maioria proveniente do Haiti e da Bolívia. A fonte utilizada pelo jornal é a Polícia Federal. Ressaltese que o Brasil se mantém abaixo da média mundial em matéria de recebimento de imigrantes e envia mais brasileiros (emigrantes) para o exterior do que recebe estrangeiros.4 Vou abordar dois espaços diferentes do tratamento do tema: a perspectiva adotada pelo jornal ao construir a sua matéria sobre o tema da imigração e, em seguida, uma análise das reações de alguns leitores sobre a matéria e sobre o tema. Essa dupla e breve análise nos permitirá ver, ao mesmo tempo, como um discurso instituído como o da imprensa enquadra o tema e o desenvolve através de estratégias textuais, descritivas e narrativas, e visuais, de um lado, e como um discurso não instituído, o dos leitores, que reagem espontaneamente ao texto e ao tema, tratam o assunto e incorporam pontos de vistas vinculados ao senso comum. Meu objetivo, aqui, não foi o de estudar a circulação de falas sobre o tema da imigração no Brasil, especialmente nos últimos anos, nem o de mapear o conjunto de pontos de vistas e de posturas enunciativas circulantes em torno do tema. Tal objetivo é o de uma pesquisa mais ampla sobre o tema e não poderia se desenvolver aqui nesta breve análise ilustrativa. Analisemos, em primeiro lugar, alguns elementos constituintes da matéria jornalística e, em seguida, os comentários dos internautas, postados em reação à matéria jornalística publicada pelo G1 sobre o tema da imigração no Brasil. 3 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2016/06/em-10-anos-numero-de-imigrantesaumenta-160-no-brasil-diz-pf.html 4 https://www.uol/noticias/especiais/imigrantes-brasil-venezuelanos-refugiados-mediamundial.htm#o-brasil-tem-pouco-imigrante 612 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 5.1. A matéria jornalística e seus enquadramentos: rumo à banalização? Já no título da matéria do G1, nota-se que o enquadramento é o da imigração como “problema”, podendo constituir, como nos exemplos que relatamos dos estudos franceses e brasileiros, uma base para o debate político sobre o tema. EM 10 aNos, o NÚMEro DE IMIgraNTEs auMENTa 160% No BrasIL, DIZ PF Só em 2015, quase 120 mil estrangeiros deram entrada no país. Haitianos lideram o ranking atual, seguidos pelos bolivianos. A quantificação (160%) é uma forma de enquadramento (EMEDIATO, 2013) importante, pois tem o efeito de dar relevo à quantidade e ao seu efeito hiperbólico. O relevo dado à quantidade esquematiza a compreensão do leitor para que ele interprete o acontecimento como um “problema” relevante que precisa ser tratado. Em seguida, um elemento linguístico mostra que o ponto de vista do jornal é que a quantificação é mesmo um problema: “Só em 2015, quase 120 mil estrangeiros...”. A expressão linguística destacada em itálico é um operador argumentativo que orienta a conclusão para uma direção problematizante: se só em 2015, em um único ano, foram tantos imigrantes, esse número irá crescer significativamente se levarmos em conta os anos seguintes. O efeito perlocutório é de alerta e de preocupação, ou seja, não se pode negligenciar esse problema. Os elementos que constituirão o debate político estão dados e a narrativa de origem está aí concentrada nos enquadramentos. Vale ainda notar o enquadramento por identificação exemplar (nomes comuns: haitianos e bolivianos). Embora os dados mostrem que no mesmo período houve aumento da imigração européia (portugueses, principalmente) e norte-americana no Brasil, não foi dado relevo a essas nacionalidades já fundadas e legitimadas no imaginário social de imigração no Brasil como positivas pela narrativa histórica, especialmente a europeia. Nesse período também foi notado o crescimento de imigrantes argentinos, mas a matéria não dá relevo a essa categoria. A narrativa se constrói sobre categorias mais positivas ou mais negativas. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 613 O enquadramento dá relevo à imigração como um “problema” decorrente de problemas econômicos e sociais nos países de origem e da situação econômica mais favorável no Brasil (a matéria é de junho de 2016, ano em que o cenário econômico brasileiro era ainda mais favorável do que o de 2019). O imigrante é assim representado como vítima: vem de um país em crise ou é perseguido de alguma forma – caso dos refugiados -, é pobre e vem ao Brasil em busca de emprego e de uma vida melhor. Na representação visual, trata-se majoritariamente de negros (haitianos) e de imigrantes de origem indígena (bolivianos). A representação visual dá relevo a aspectos positivos, mostrando imigrantes em situações culturais (musicalidade sobretudo), como nas fotografias abaixo: FIGURA 2 – O haitiano Louides Charles, 38, que trabalha na construção civil no Brasil e fundou uma banda que toca músicas de seu país. Fonte: Foto de Marcelo Brandt/G1 O imigrante é representado na legenda por sua área profissional (construção civil) e por um aspecto de sua cultura (a música de seu país). Já a fotografia abaixo mostra um imigrante boliviano já instalado no Brasil desde a década de 1980: 614 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 FIGURA 3 – O boliviano Juan Cusicanki, de 49 anos, veio para o Brasil em 1980 Fonte: Arquivo pessoal A imagem do boliviano está bem ancorada no imaginário brasileiro dos povos andinos que vêm ao Brasil e se apresentam em praças públicas com suas músicas típicas. No geral, a matéria enquadra a imigração atual como um problema, os actantes como vítimas (o que convocaria para um sentimento de solidariedade cidadã). Mas ela reproduz também parte da narrativa histórica da imigração no Brasil, evocando essa memória. O imigrante é narrado como um cidadão que foge à situação de crise em seu país de origem e vem ao Brasil à procura de abrigo e de emprego. A visualização busca humanizá-lo e representá-lo com sua cultura de origem. Em linhas gerais, o discurso jornalístico se apresenta com seus componentes de base: relato do acontecimento, enquadramento do acontecimento como um problema, problematização cidadã convocando o leitor a uma posição de leitura no domínio da ética cidadã (valores de justiça social, solidariedade, etc.). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 615 5.2. reações dos leitores Vejamos algumas reações dos leitores internautas – as mais fortes e reiterativas – e suas posições enunciativas essenciais. Os nomes ficarão anônimos neste artigo, os grifos são nossos: Locutor 1 Esse país virou a casa da mãe Joana, já n chega os problemas internos, agora vem pessoas de fora pra tumultuar mais ainda, se n me engano haitianos, cubanos, sei lá mais oq, já estavam recebendo o tal bolsa, nós brasileiros trabalhamos p sustentar gente de fora, violência aumentando, caos, esse país é uma piada Locutor 2 culpa do PT... Locutor 3 Nada contra os imigrantes, nós mesmos somos imigrantes de certa forma, já que fomos colonizados e tudo mais, porém não tem emprego nem condições de vida para quem ja vive aqui, imagine pra quem vem do exterior, esse pais é muito atrasado e tínhamos tudo para ja ser primeiro mundo. Locutor 4 Pior que são os que mais fazem filhos. É de 10 pra cima. Locutor 5 Por que o instinto primitivo de procriar procriar procriar ainda tem forca em pessoas sem educação, sem perspectiva de vida. Locutor 6 Se todos estrangeiros vinhesse em paz, e se enquadra-se Locutor 7 Vc é imigrante também?? Porque seu portugues é sofrível... Até eu que sou imigrante tambem escrevo melhor que voce!... Locutor 8 Não sou contra a imigração, pois sou bisneta de alemães e pretendo ser imigrante nos USA. Morei lá e amo o Tio Sam.Só não concordo em “arreganhar” a porta para gente miserável e não qualificada.O imigrante tem que vir para somar e não gerar ônus ao país. Aliás, esses haitianos são folgados. Certa vez, passei perto de um, e ele disse sorrindo “brasileira é bonita” Que não venham para o sul. Locutor 9 O Brasil está enchendo de chinês !!! Esses amarelos estão pra todo lado !!Putz grila !!!!!!! Socorro !!! Locutor 10 Casa da mãe joana Loutor 11 já não tem emprego pro brasileiro imagina a situção. o problema da imigração é que trazem pouca coisa boa e muita, mas muita coisa ruim 616 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 Loutor 12 tem de servente de pedreiro, José, acho que vc não vai querer né? vou ter que chamar um haitiano mesmo Locutor 13 A média de QI do Haiti é 67, e dado ao fato de aproximadamente 70% do QI de uma pessoa é genético, meus parabéns, estamos importando BurrICE para o país! Lembrando que a média do Brasil é 87 e do mundo é 100. Alguns aspectos ressaltam nesses comentários. O primeiro deles é que reagem a uma matéria jornalística, mas pouco se extrai de fato do conteúdo da matéria. A matéria, em particular, não é crítica da imigração, ao contrário, a soma dos pontos de vista distribuídos nela propõe um efeito interpretante (um proto-enunciador) mais positivo do que negativo em relação à imigração e aos imigrantes. Já os pontos de vista dos comentários são negativos e expressam um senso comum sobre o tema, ou seja, a matéria serve apenas de indutor para reações primárias de senso comum. Neles, os locutores/enunciadores designam os imigrantes como “pessoas de fora”, “fazedoras de filhos”, “pessoas sem educação”, “amarelos”, “pessoas burras”, “gente miserável e não qualificada”, “folgados”. As operações de designação e de qualificação enquadram os imigrantes como pessoas desprovidas de interesse, inferiores, moralmente condenáveis, uma ameaça aos brasileiros e ao país. São posições primárias, com carga afetiva negativa, não aprofundam o tema, nem se dispõem a avaliar o problema da imigração em toda a sua amplitude e complexidade. O posicionamento dos locutores/enunciadores é endógeno e eugenista, contrapondo os “de fora” aos “de dentro”, os imigrantes aos nacionais (brasileiros). Em meio às posições endógenas e xenófobas, nota-se também as inferências políticas de circunstância, como o ponto de vista que responsabiliza um partido político – o PT – pela imigração (a culpa é do PT...) e o Estado permissivo (casa da mãe joana). Outro aspecto que ressalta dos comentários é o foco dado aos haitianos. Para os leitores que reagiram à matéria, os imigrantes são necessariamente pobres, miseráveis e vêm ao Brasil para explorar o país, têm baixo QI, são burros e, portanto, inúteis. No entanto, a matéria fala também de imigração europeia e norte-americana, de pessoas que não são miseráveis e que vêm para o país por outras razões, empreender, estudar, juntar-se às famílias, etc. Essa parcela de imigrantes é silenciada nos comentários. Para os locutores-enunciadores que reagiram à matéria, o fenômeno migratório está reduzido à miséria de povos e países pobres e a condutas censuráveis dos imigrantes (ter muitos filhos, vocação para Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 617 a delinquência, para a perversão sexual, etc.) o que traz a xenofobia para o campo da intolerância étnica, moral e socio-econômica, intolerância que se reflete no discurso por traços de violência verbal. Esses enquadres parecem típicos do fenômeno de banalização do fenômeno migratório, como salientado por Bonnafous, e alimentados pelos discursos extremistas. O acontecimento histórico migratório está reproduzindo os mesmos enquadres discursivos, resultando sempre na estigmatização do imigrante. Considerações finais Busquei abordar o tema da imigração sob a perspectiva de sua historicidade (do acontecimento migratório) e da dinâmica dos estudos discursivos que se interessaram pelo assunto na França e no Brasil com o objetivo de observar como o contexto histórico e social do acontecimento migratório influencia o tratamento do tema. No Brasil, ainda que a imigração constitua um forte componente histórico da formação da sociedade brasileira, os estudos sobre a imigração como um “problema” e associada a uma “crise” – como foi o caso na França – são recentes e estão relacionados a acontecimentos pontuais, como o fluxo migratório do Haiti, da Venezuela, da Bolívia e da Síria. O imaginário social de imigração no Brasil, até então, estava relacionado a uma narrativa histórica e romantizada da experiência vivida e discursiva dos imigrantes europeus que vieram ao Brasil entre os séculos XIX e XX. Atualmente, uma nova narrativa se delineia, motivada pelo imaginário da crise e do problema migratório, do invasor perigoso e miserável que ameaçaria a estabilidade do brasileiro genuíno. Diferentemente do que ocorreu na França, não se coloca, por aqui, o problema identitário e da ameaça à identidade brasileira, mas alguns elementos são constantes e talvez herdados da narrativa histórica européia: o imigrante é um ser de fora, constitui uma ameaça (ao emprego, à segurança), tem propriedades morais e sociais que explicariam sua situação de precariedade. No âmbito do tratamento jornalístico, a banalização do “problema” da imigração já se faz notar, com o enquadramento dos actantes como vítimas, o relevo dado à precariedade, ao problema e à crise, assim como a evocação, implícita, de valores associados à ética cidadã – própria do jornalismo de referência –, convocando o leitor para os valores da solidariedade, da justiça social e dos afetos. Essas formas de tratamento têm o potencial de 618 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 597-618, 2020 pautar o debate político e social sobre a imigração, silenciando ou tirando o relevo de outras perspectivas possíveis de se tratar e ver o assunto. Elas “fazem ver” de uma certa maneira o acontecimento histórico ao enquadrálo em suas esquematizações discursivas estigmatizantes do imigrante. referências BONNAFOUS, Simone, L’immigration prise aux mots. Les immigrés dans la presse au tournant des années 80. Paris : Kimé, 1991. 301 p. BOUBEKER, Ahmed. Répresentations publiques. 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Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 Les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite pour la paix en Colombie The allusions to armed conflict in peace plebiscite campaign discourses on Twitter in Colombia Yeny Serrano Université de Strasbourg, Strasbourg /France yeny.serrano@unistra.fr https://orcid.org/0000-0001-7835-8975 Résumé : cet article analyse les discours de campagne sur Twitter traitant du plébiscite pour la paix d’octobre 2016 en Colombie. L’analyse de contenu de 1307 tweets identifie les principales stratégies en faveur et contre l’accord de paix, ainsi que la manière dont la mémoire de la guerre influence ces discours. L’approche comparative montre que la campagne pour le « Non » mobilise la population autour de la délégitimation des FARC, alors que la campagne pour le « Oui » utilise Twitter essentiellement pour annoncer des événements de campagne. Les allusions au conflit armé, plus fréquentes dans les tweets contre l’accord de paix, contribuent à (re)construire la mémoire collective du conflit en évoquant principalement les faits de guerre dont sont responsables les adversaires. Ainsi, la campagne pour le plébiscite s’inscrit dans la continuité des discours de guerre propres à la période de confrontation armée qui ne favorisent pas le projet de construction de la paix. Mots-clés : Colombie ; processus de paix ; Twitter ; stratégie discursive ; allusions. abstract: this paper examines how the memory of the war influenced the campaigning for the October 2016 peace plebiscite in Colombia. By analyzing 1307 tweets, the study identifies key strategies carried out by supporters and opponents of the peace agreement. This comparative approach shows that the “No” campaign mobilized the public around the delegitimization of the FARC guerilla, while the “Yes” campaign used Twitter essentially to announce campaign events. Allusions to the armed conflict were more frequent in the tweets against the peace agreement. They contributed to (re) writing the collective memory of the conflict by referring mainly to the facts for which the adversaries were responsible. The campaign for the plebiscite was a continuation eISSN: 2237-2083 DOI: 10.17851/2237-2083.28.1.619-655 620 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 of the war discourses specific to the period of armed confrontation. The conclusion highlights the implications for the peacebuilding project. Keywords: Colombia; peace process; Twitter; discursive strategy, allusions. Submitted on July 12th, 2019 Accepted on September 29th, 2019 1 Introduction Le 2 octobre 2016 est une date qui restera gravée dans l’histoire de la Colombie comme le jour où les Colombiens ont rejeté la paix. Ce jour-là, avec un taux d’abstention de 62,57 %, une courte majorité de Colombiens (50,21 %1) a rejeté l’accord de paix que le gouvernement avait signé avec la guérilla des FARC, le 26 septembre 2016, pour mettre fin à la confrontation armée vieille de plus de 50 ans. Comment expliquer ces résultats qui semblent suggérer que les Colombiens préfèrent la guerre à la paix ? En effet, si l’accord de paix a reçu depuis le début un large soutien international, à l’intérieur du pays, quelques secteurs politiques de droite et d’extrême droite, accompagnés par quelques églises évangéliques, ont toujours critiqué ces négociations de paix. Ils les considéraient comme une « remise du pays » aux FARC. Néanmoins, durant la campagne pour le plébiscite,2 la plupart des sondages avait prédit la victoire du « Oui » à l’accord de paix (GONZALEZ, 2017 ; TORRADO, 2017).3 Par ailleurs, de nombreuses et importantes manifestations ont eu lieu dans les plus importantes villes du pays pour demander au gouvernement et aux FARC de sauver l’accord de paix (PERILLA DAZA, 2018). Ainsi, suite au plébiscite, les deux parties se sont réunies avec des représentants 1 Disponible sur : https://www.registraduria.gov.co/?page=plebiscito_2016. Accès le : 15 mai 2019. 2 Cette campagne s’est déroulée pendant 5 semaines et demie, entre le 24 août 2016 – jour où le président Santos a annoncé la date du plébiscite – et le 2 octobre, jour du vote. Le mécanisme du plébiscite avait déjà été annoncé en juillet 2016, mais pas la date. 3 Le politologue Basset explique que l’impossibilité des sondages à prédire les résultats du plébiscite réside dans la méthodologie utilisée pour constituer les échantillons, basée majoritairement sur les populations résidant dans les grandes villes, manquant ainsi de représentativité (2018, p. 244). Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 621 du « Non » ; une nouvelle version de l’accord de paix a été signée le 24 novembre 2016 à Bogotá. Et pourtant, depuis la signature de l’accord de paix, la violence politique et armée ne fait qu’augmenter, après l’accalmie constatée durant les derniers mois des négociations de paix (PROGRAMA SOMOS DEFENSORES, 2019). Le phénomène le plus connu au niveau national est celui des menaces, attaques et assassinats des « leaders sociaux », autrement dit des personnes qui, dans les régions les plus frappées par le conflit armé, travaillent pour la défense des droits humains et environnementaux, ainsi que pour la mise en place de l’accord de paix qui prévoit la résolution des causes ayant engendré le conflit armé. Les leaders sociaux s’engagent dans des projets visant la restitution des terres aux paysans déplacés par la violence, la substitution manuelle et volontaire des cultures illicites, la défense de l’environnement contre de grands projets miniers, entre autres. Le programme Somos Defensores, dans son rapport annuel 2018 affirme que « ces huit dernières années nous constatons une augmentation exponentielle des agressions commises à l’encontre des personnes qui défendent les droits humains en Colombie » (2019, p. 101). Selon la Defensoría del Pueblo (Bureau du Défenseur du peuple), 431 leaders sociaux ont été assassinés entre le 1er janvier 2016 et le 31 décembre 2018,4 autrement dit pendant la période mal nommée de « postconflit ». Au 18 juin 2019, 135 ex-combattants des FARC qui participaient aux programmes de réinsertion à la vie civile ont été assassinés depuis la signature de l’accord de paix.5 De nombreux intérêts économiques associés au contrôle des ressources minières et naturelles dans les zones avant occupées par la guérilla des FARC semblent en être à l’origine6 et risquent de compromettre sérieusement la mise en place de l’accord de paix. 4 Disponible sur : https://www.elespectador.com/colombia2020/politica/nacionesunidas-pide-mas-acciones-para-evitar-asesinatos-de-lideres-sociales-articulo-857576. Accès le : 15 juin 2019. 5 Disponible sur : https://www.semana.com/nacion/articulo/excombatientes-de-farcasesinados-anderson-perez-y-daniel-esterilla-son-los-ultimos-muertos/620181. Accès le : 20 juin 2019. 6 Citons comme exemple le rapport « Y a la vida por fin daremos todo » qui présente la situation d’un groupe des victimes du conflit, à savoir les travailleurs de l’industrie de l’huile de palme. Disponible sur : http://www.centrodememoriahistorica.gov.co/ informes/publicaciones-por-ano/2018/y-a-la-vida-por-fin-daremos-todo. Accès le : 13 juin 2019. 622 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 En outre, les résultats du plébiscite ont influencé les campagnes pour les élections législatives de mars 2018 et la présidentielle de mai 2018 (pour le premier tour) et juin 2018 (pour le deuxième tour). Effectivement, forts des résultats du plébiscite, et en dépit du grand taux d’abstention, le parti politique qui a promu la campagne pour le « Non à l’accord de paix », le parti d’extrême droite de l’ex-président Uribe – Centro Democrático –, s’est senti légitimé pour mener ces campagnes électorales autour de leur rejet de l’accord de paix. C’est ce parti qui a remporté la présidentielle et obtenu la moitié des sièges au Congrès.7 En d’autres termes, le plébiscite semble être le moment où le pays commence à se détourner du projet de construction de la paix que l’accord entre le gouvernement et les FARC avait laissé espérer. En partant de ce constat, cet article revient sur la campagne pour le plébiscite du 2 octobre 2016 et interroge plus précisément la manière dont le passé de guerre est – ou non – présent dans les discours de campagne : les allusions au conflit armé interne font-elles partie des stratégies discursives mises en place par les promoteurs du « Oui » et du « Non » à l’accord de paix ? Sur la base des travaux précédents (SERRANO, 2016, 2017a) portant sur les discours de légitimation de la guerre, nous faisons l’hypothèse que les stratégies de délégitimation de l’adversaire sont plus fréquentes que les stratégies de légitimation de la paix dans les discours de campagne pour le plébiscite. Avant de présenter les résultats de l’analyse menée, nous détaillons la démarche méthodologique dans la section suivante. Ensuite, nous reviendrons sur certains éléments du contexte autour du plébiscite d’octobre 2016. 2 Démarche méthodologique Nous avons analysé tous les tweets publiés autour des hashtags créés à l’occasion de la campagne pour le plébiscite. Le choix de Twitter s’explique par l’importance de cette plateforme de microblogging8 en communication politique. Elle est censée contribuer au renforcement de la démocratie (EYRIES, 2015 ; LANGA ; MARTINEZ ; SICILIA, 2018 ; 7 Disponible sur : https://www.eltiempo.com/politica/gobierno/asi-esta-el-mapapolitico-para-la-gobernabilidad-de-ivan-duque-260160. Accès le : 15 avril 2019. 8 Pour une description analytique et une caractérisation de Twitter par rapport à d’autres médias sociaux, voir (COUTANT ; STENGER, 2012 ; STENGER ; COUTANT, 2011) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 623 ROGINSKY ; COCK, 2015). De plus en plus de politiciens détiennent un compte Twitter, géré par eux-mêmes ou par une équipe de professionnels. Twitter est ainsi censé rapprocher les élus des citoyens et faciliter leur interaction (DOLBEAU-BANDIN ; DONZELLE, 2015). En outre, la plateforme a élargi l’espace public permettant aux individus et aux groupes sociaux sans accès à l’espace public médiatique dominant d’avoir une visibilité sociale et de diffuser leurs propres discours (DOUAY ; REYS, 2016). Tel a été le cas en Colombie où, suite au processus de paix, un nouvel acteur politique est entré en scène : le parti FARC (Force Alternative Révolutionnaire du Commun9) issu de la guérilla des FARC (Forces Armées Révolutionnaires de Colombie). En tant que groupe armé illégal la guérilla des FARC n’avait aucune visibilité directe dans les médias traditionnels. Dès le début des pourparlers, et suite à l’accord de paix, les FARC ont fortement investit Internet et les médias sociaux dont Twitter, Facebook et YouTube (SERRANO, 2016, 2018). En dépit de grands espoirs suscités par Twitter, les études montrent que le potentiel politique de la plateforme a des limites (CHIBOIS, 2014 ; HERNANDEZ-SANTOLALLA ; SOLA-MORALES, 2019 ; MABI ; THEVIOT, 2014). Pour commencer, censé favoriser le débat et les échanges, Twitter ne permet que la diffusion de textes courts (140 caractères à l’époque du plébiscite et 280 à partir de novembre 2017) qui entrent en contradiction avec les caractéristiques des discours argumentatifs (AMOSSY, 2012 ; BRETON, 2007). Ces contraintes propres au dispositif favorisent à leur tour la diffusion des discours qui cherchent à mobiliser davantage par l’appel aux émotions que par l’exposé d’arguments rationnels. Twitter s’impose également comme un espace où un style d’expression familier prédomine, mais qui peut facilement virer à l’impolitesse voire à la violence verbale (LANGA et al., 2018 ; MERCIER, 2015). Pour les citoyens, et à l’instar d’autres médias sociaux, tels que Facebook ou YouTube, Twitter offre un espace de visibilisation aux discours alternatifs, même si la diffusion des propos interdits ou que l’on n’oserait pas tenir dans des espaces publics plus traditionnels remettent en question le potentiel démocratique des médias sociaux numériques. 9 En espagnol : Fuerza Alternativa Revolucionaria del Comnún. L’expression « del común » (du commun) renvoie aux personnes comunes y corrientes, autrement dit aux gens ordinaires. 624 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 Conscients du potentiel mobilisateur et des limites de la plateforme de microblogging, nous avons choisi Twitter afin de prendre en compte tant les discours des leaders d’opinion et politiques que des citoyens du commun sur l’accord de paix. Nous avons donc rassemblé les tweets publiés autour des hashtags créés à l’occasion du plébiscite, entre le 23 août 2016 (veille de l’annonce par le président de la République de la tenue d’un plébiscite pour approuver l’accord de paix) et le 10 octobre 2016 (une semaine après le vote). Rappelons que la grande cérémonie pour signer la première version de l’accord de paix a eu lieu à Carthagène, avec des nombreux invités internationaux et nationaux, juste une semaine avant le plébiscite, le 26 septembre 2016. Le hashtag a été choisi en tant qu’outil technodiscursif de thématisation ; il permet de rassembler les contenus que les internautes souhaitent inscrire dans un même thème (DOLBEAU-BANDIN ; DONZELLE, 2015). Au total, 1307 tweets ont été collectés. Le tableau 1 présente le corpus selon le positionnement exprimé par chaque hashtag. Le hashtag neutre (#Plebiscito) a également été utilisé pour s’exprimer en faveur ou contre l’accord de paix. Par ailleurs, un hashtag dont l’appellation suggère un positionnement particulier, pouvait aussi être employé pour exprimer l’avis contraire. Ainsi, sur les 1307 tweets analysées, 46% (604) étaient pour le « Oui » à l’accord de paix, 47% (613) pour le « Non » et 7% (90) n’exprimaient aucun avis. En plus des hashtags listés dans le tableau 1, deux autres (#Colombia et #VamosPorLaPaz), existant avant la campagne pour le plébiscite, ont aussi servi à prendre position sur l’accord de paix. Néanmoins, ils ne sont pas inclus dans le corpus, car le premier est très général et regroupe toute sorte de tweets hors-sujet pour cette étude. Le deuxième est celui que les FARC ont créé pendant les pourparlers de paix pour communiquer au sujet des négociations. Or, nous avons pu observer que l’ex-guérilla n’a pas participé à la campagne pour le plébiscite. Aucun tweet du corpus n’a été publié par les comptes officiels des FARC ou par l’un de leurs membres sur le plébiscite, même si la guérilla – en voie de transformation en mouvement politique légal – a continué de publier des tweets sur l’avancement du processus de paix. 625 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 TABLEAU10 1 – Corpus : hashtags et nombre de tweets par hashtag Hashtag neutre Nombre de tweets 135 #Plebiscito Hashtags pour le « Oui » #ColombiaVotaSi 69 #SiAlaPaz 494 Hashtags pour le « Non » #ConArgumentosDigoNo 38 #VotoNoYcorrijoAcuerdos 54 #HagaHistoriaVoteNo 54 #ColombiaNoSeEntrega 66 #PorMiPaisVotoNo 75 #VotoNoAlPlebiscito 147 #VotoNo 175 ToTaL 1307 La capture des tweets a été réalisée manuellement, par hashtag et par date, avec l’outil de recherche avancée de Twitter. Puis, une analyse de contenu, assistée par le logiciel Atlas.ti v.8, a été menée en deux étapes. La première étape avait comme objectif d’identifier les principales tendances de chaque campagne : émetteurs, thèmes, arguments et positionnement. À cet effet, les 1307 tweets ont été classés selon les critères détaillés dans le tableau 2. La deuxième étape s’est concentrée sur les tweets faisant allusion au conflit armé pour identifier les stratégies de chaque campagne lorsque le passé de la guerre est évoqué. 10 Tous les tableaux et graphiques sont d’élaboration propre. Les traductions de l’espagnol au français sont également faites par nos propres soins. 626 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 TABLEAU 2 – Critères de codage pour l’analyse de contenu11 12 Critère Identité de l’émetteur11 Description À partir du profil du compte : – Personnalité politique / leader d’opinion – Célébrité (acteurs, chanteurs, sportifs…) – Média / Association / Entreprise – Individu (Prénom + Nom) – Profil anonyme (utilisation d’un pseudo) Positionnement de l’émetteur – Oui à l’accord de paix – Non à l’accord de paix Thèmes / arguments pour dire Oui ou Non à l’accord de paix12 – Accord = bénéfices inacceptables pour les FARC – Accord = éviter les conséquences négatives de la guerre – Accord de paix = « castro-chavismo », communisme, socialisme – Accord de paix = impunité FARC – Aucun – Autre – Citation du / Mention au texte de l’accord de paix – Critiques à l’autre campagne – Critiques au président de la République – FARC = criminels – L’accord de paix aura des conséquences négatives – L’accord n’est pas la paix – Nationalisme – On doit corriger / renégocier l’accord de paix – On fait campagne/mobilisation – Référence aux conséquences de la guerre – Renforcer la démocratie – Résultats du plébiscite 11 La catégorisation de cette variable se fait selon l’information que le(s) créateur(s) du compte souhaitent afficher. Mais on sait bien que, pour les personnalités politiques ou les collectifs, un groupe de personnes, une équipe de professionnels de la communication ou des robots peuvent gérer le compte. Pour les comptes s’affichant avec un prénom et un nom, il peut s’agir de fausses identités ou des robots également. 12 Les différents thèmes ont été définis en suivant une approche inductive (lecture exploratoire du corpus pour identifier les principaux thèmes / arguments) et sur la base des analyses publiées à la suite du plébiscite (GONZALEZ, 2017 ; PERILLA DAZA, 2018 ; TORRADO, 2017) Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 627 3 Enjeux politiques des médias sociaux numériques et importance du contexte historique Après le plébiscite, de nombreuses analyses ont tenté d’expliquer pourquoi 62,57% des électeurs avaient préféré l’abstention et pourquoi 50,21% semblent préférer un retour à la guerre au lieu de l’alternative permettant la construction d’un pays en paix. Certains analystes ont remis en question les sondages et leurs méthodes qui n’ont pas réussi à prédire les résultats du plébiscite. D’autres ont rendu responsables de l’échec du « Oui » les représentants de la campagne du « Non » pour avoir fait circuler des arguments faux, comme par exemple que l’accord de paix signifiait l’installation du « castro-chavismo »13 ou de la théorie du genre14 (GONZALEZ, 2017 ; PERILLA DAZA, 2018 ; TORRADO, 2017). La diffusion des mensonges par les promoteurs du « Non » a été confirmée trois jours après le vote. Le 5 octobre 2016, le journal La República (spécialisé en actualités économiques et financières et diffusé dans les principales villes du pays) publiait l’interview du manager de la campagne du « Non ». Il y avouait que leur stratégie avait consisté à faire appel aux émotions négatives, en publiant des contenus faux ou des interprétations hors-sujet de l’accord de paix et profitant de la viralité propre aux médias sociaux numériques : Ainsi l’a avoué […] l’ex-manager de la campagne pour le Non du [parti] Centro Democrático, Juan Carlos Vélez, qui, dans une interview au journal La República a dit « nous avons fait appel à l’indignation, nous voulions que les gens aillent voter énervés », mais l’exemple a été encore plus accablant : un élu local m’avait envoyé une image [du président de la République] Santos et [du chef des FARC] Timochenko avec un message qui demandait pourquoi allait-on donner de l’argent aux guérilléros alors que le pays était fauché. Je l’ai publié sur Facebook et le message a atteint six millions de personnes.15 13 Néologisme péjoratif introduit par l’ex-président Uribe et son parti, le Centro Democrático, pour assimiler toute position politique contraire à la sienne et toute position de gauche aux systèmes politiques de Cuba et du Venezuela. 14 Selon eux, les mesures prévues par l’accord de paix pour l’égalité de genre et les droits de la communauté LGBTI consistaient en fait à promouvoir l’homosexualité dans les écoles. 15 « Así lo confesó el excadidato a la alcaldía de Medellín y exgerente de campaña por el No del Centro Democrático, Juan Carlos Vélez, quien en entrevista con el periódico La 628 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 Ce cas remettait à nouveau sur la table la facilité avec laquelle des contenus faux se répandent sur les médias sociaux numériques et posait la question de la libre expression sur des plateformes telles que Facebook, Twitter, YouTube ou Instagram, sans aucun contrôle sur la validité et la fiabilité des contenus. Dans le cas du plébiscite cela avait conduit à la manipulation de la population. Nous ne considérons pas pour autant que la liberté d’expression doive être blâmée. Comme le rappelle Cornu « l’internet [a] donn[é] à la liberté d’expression de chacun la possibilité de se déployer comme jamais dans la société. Il revitalise la démocratie en multipliant les terrains et les acteurs du débat public » (2013, p. 69). En effet, et comme nous l’avions mentionné pour la Colombie, les médias sociaux permettent à ceux qui sont exclus des espaces d’expression traditionnels d’avoir une certaine visibilité sociale et de diffuser leurs contre-discours (SERRANO, 2016). Le problème qui se pose réside, d’une part dans le manque d’(auto)contrôle et, d’autre part, dans la crédibilité que les citoyens semblent accorder aux contenus diffusés à travers les médias sociaux. Cette crédibilité est tributaire à son tour de la méfiance grandissante à l’égard des médias d’information traditionnels (presse, radio et télévision publiques et privées). De nombreux citoyens trouvent ainsi dans les médias sociaux une source d’information alternative, alors que ces plateformes ne sont pas soumises aux mêmes chartes éthiques et principes de responsabilité professionnelle que les journalistes. On arrive ainsi à des situations où l’opinion des citoyens est moins influencée par des faits objectifs et avérés que par l’appel à l’émotion ou aux croyances personnelles (MERCIER, 2018). Cornu résume bien le problème lorsqu’il affirme [q]ue des citoyens contribuent librement à la circulation de l’information, qu’ils répandent sans entraves leurs opinions, est une manière aussi légitime que celle des journalistes de répondre au droit de savoir de l’ensemble de la communauté citoyenne. […] República dijo que “apelamos a la indignación, queríamos que la gente saliera a votar berraca (de mal genio)”, pero el ejemplo fue más contundente: “un concejal me pasó una imagen de Santos y ‘Timochenko’ con un mensaje de por qué se le iba a dar dinero a los guerrilleros si el país estaba en la olla. La publiqué en Facebook tuvo un alcance de seis millones ». Disponible sur : https://www.elespectador.com/noticias/politica/ cuestionable-estrategia-de-campana-del-no-articulo-658862. Accès le 2 mai 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 629 Mais au nom de quoi le nouveau commerce des faits et des idées serait-il fermé à toute notion de responsabilité envers la société ? (2013, p. 70). Cette réflexion sur la crédibilité accordée par les citoyens aux contenus diffusés à travers les médias sociaux sans vérification est nécessaire. Néanmoins, elle ne suffit pas à expliquer l’abstention majoritaire et la victoire du « Non » lors du plébiscite pour la paix. L’analyse électorale proposée par Basset qui se base sur une cartographie analytique démontre que la victoire du « Non » s’explique par un clivage territorial autour du conflit armé. Pour le chercheur, l’histoire récente de la guerre a laissé des traces visibles sur les résultats du vote. Même s’il y a une forte corrélation entre le vote pour le « Non » et la tendance à voter en suivant les consignes de l’ex-président Uribe (on parle dans le pays d’un vote « uribista »), Basset démontre que, face à la difficulté de la campagne pour le « Oui » à mobiliser les électeurs soutenant l’accord de paix, c’est le vote pour le « Non » non-uribista qui a été décisif. Ce vote correspond à celui des régions frappées par le conflit armé, mais ne faisant pas partie des territoires qui allaient bénéficier des investissements prévus par le post-conflit. Autrement dit, le discours de la paix ne correspondait pas aux besoins quotidiens concrets de ces régions (BASSET, 2018). Enfin, l’auteur attire également l’attention sur le fait que les thèmes de la campagne pour le plébiscite coïncident avec les derniers sujets sur lesquels ont porté les négociations de paix. Ce sont donc les thèmes dont on a le moins parlé mais les plus proches dans le temps de la date du plébiscite : la démobilisation et la réinsertion des ex-guérilléros, leur participation en politique et les mesures économiques prévues pour leur réinsertion, financées par l’argent public et des aides internationales. L’analyse de Basset présente l’avantage de situer la campagne pour le plébiscite dans le contexte historique du conflit armé que d’autres analyses ont ignoré. La campagne pour le plébiscite n’est pas déconnectée de la confrontation armée et des négociations de paix qui l’ont précédée. Notre analyse s’inscrit dans la suite de cette réflexion pour, dans un premier temps, comparer les deux campagnes et en identifier les tendances principales et, dans un deuxième temps, analyser les allusions au conflit armé faites par les deux campagnes. Cette approche comparative représente un atout pour notre étude, puisque la littérature consultée ainsi que la presse nationale se focalisent fondamentalement 630 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 sur la campagne du « Non » (BASSET, 2018 ; GONZALEZ, 2017 ; PERILLA DAZA, 2018 ; TORRADO, 2017). 4 Principales stratégies de deux campagnes 4.1 Qui mène les campagnes ? Analyse des hashtags Pour commencer, nous avons voulu déterminer sous quelle identité se présentaient ceux qui ont participé aux campagnes sur Twitter, en nous basant sur les informations publiées dans les profils des comptes. Certes, des pseudos peuvent être créés pour masquer sa vraie identité ; les comptes peuvent être alimentées par des robots ou encore par des professionnels de la communication (notamment ceux des personnalités politiques). Or, ce qui nous importe ici, c’est l’identité qui prend en charge le contenu diffusé pour soutenir l’accord de paix ou pour s’y opposer. Le graphique 1 montre que les profils anonymes (ou les pseudos), dans les deux campagnes, ne représentent qu’un cinquième des tweets analysés. Ce sont des comptes des personnalités politiques et des individus se présentant avec un prénom et un nom qui sont majoritaires tant dans la campagne pour le « Oui » que dans la campagne pour le « Non ». Autrement dit, dans les deux cas, on observe une volonté d’assumer les propos par des profils se présentant comme un individu : leader politique ou citoyen lambda. Nous faisons l’hypothèse que cette façon de procéder contribue à la crédibilité accordée aux propos par les internautes. GRAPHIQUE 1 – Identité énonciateur / positionnement Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 631 Plus spécifiquement, la campagne pour le « Oui » a mobilisé une diversité de mouvements sociaux et de partis politiques allant de la gauche à la droite (partis Unión Patriótica, Polo Democrático, Alianza Verde, Partido Liberal, Partido de la U, MIRA, Cambio Radical…), ainsi que par des membres du gouvernement (président, ministres). En revanche, c’est l’extrême droite – et tout particulièrement le parti Centro Democrático, dirigé par l’ex-président et sénateur Uribe, qui a fait campagne pour le « Non ». Ce parti est soutenu sur Twitter par une quinzaine de personnes qui, dans leurs profils, se présentent comme des farouches sympathisants du Centro Democrático ou d’Uribe. Notons que certains partis ayant fait campagne pour le « Oui » se revendiqueront des alliés du Centro Democrático lorsque ce dernier deviendra parti de gouvernement en 2018. C’est le cas notamment du parti MIRA. Enfin, les tweets dont le positionnement en faveur ou contre l’accord de paix n’est pas précisé correspondent fondamentalement à ceux des médias d’information. Onze célébrités (acteurs, chanteurs, sportifs) ont participé à la campagne pour le plébiscite sur Twitter ; seulement deux l’ont fait contre l’accord de paix. Deuxième constat : par le nombre des tweets publiés (613 pour le « Non » et 604 pour le « Oui »), les deux campagnes ne se distinguent guère, confirmant ainsi que le parti Centro Democrático et ses sympathisants ont été particulièrement actifs. Une première stratégie est observée dans le nombre de hashtags créés et les appellations données à ceux-ci. Les promoteurs du « Oui » ont utilisé deux hashtags dont l’appellation ne fait qu’expliciter le positionnement en faveur de l’accord de paix : « la Colombie vote oui » et « Oui à la paix » (#ColombiaVotaSi et #SiAlaPaz respectivement). De leur côté, les opposants à l’accord de paix ont utilisé sept hashtags dont seulement deux se limitent à expliciter le positionnement : « je vote non au plébiscite » et « je vote non » (#VotoNoAlPlebiscito, #VotoNo), qui sont d’ailleurs le plus souvent utilisés (tableau 1). Les cinq autres hashtags expriment dans leur appellation une raison pour s’opposer à l’accord de paix ou proposent une alternative : « avec des arguments je dis non » (#ConArgumentosDigoNo) ; « faites histoire votez non » (#HagaHistoriaVoteNo) ; « pour mon pays je vote non » (#PorMiPaisVotoNo) ; « je vote non et je corrige l’accord » (#VotoNoYcorrijoLosAcuerdos) ; « la Colombie ne se rend pas / ne se livre pas » (#ColombiaNoSeEntrega). 632 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 Certes, avec deux hashtags, les promoteurs du « Oui » risquaient moins de voir leurs tweets dispersés ; néanmoins, comme l’analyse le confirmera par la suite, les promoteurs du « Oui » ont moins centré la campagne sur des raisons concrètes associées à l’accord de paix. Dans leur discours, la paix est quelque chose de positif mais plus abstrait, tandis que dans le discours de la campagne pour le « Non », les conséquences de l’accord de paix – qu’ils exposent comme négatives – sont présentées de manière plus concrète. Si l’on s’attarde sur les appellations données aux hashtags, on peut observer une stratégie de rassemblement dans les hashtags employés par le « Oui ». Avec #ColombiaVotaSi (« La Colombie vote oui »), on affirme que c’est toute la Colombie qui dit oui à la paix et on efface les différences entre ceux qui soutiennent l’accord de paix et ceux qui s’y opposent. Par ailleurs, on observe une stratégie différente quant à la prise en charge par l’énonciateur. Ceux qui utilisent les hashtags #SiAlaPaz et #ColombiaVotaSi ne s’engagent pas de la même manière que les énonciateurs utilisant des hashtags dont l’appellation comporte un verbe conjugué à la première personne du singulier. En effet, cinq des sept hashtags utilisés par la campagne du « Non » relèvent de ce cas de figure : c’est « moi » qui dis « non » ; un « moi » dont le référent change à chaque prise en charge par un nouvel énonciateur. Parmi les raisons affichées par les hashtags, dans la campagne pour le « Non », on trouve le nationalisme (on s’oppose à l’accord de paix pour son pays : #PorMiPaisVotoNo), la volonté de changer les choses et faire l’histoire (#HagaHistoriaVoteNo) et surtout celle de réfuter l’argument selon lequel ceux qui défendent le « Non » sont contre la paix ; ils ne sont pas contre la paix, mais seulement contre la paix telle qu’elle est prévue par le texte de l’accord. Ils appellent à voter « Non » de façon à pouvoir corriger le texte de l’accord : #VotoNoYcorrijoLosAcuerdos (« je vote Non et corrige les accords »). Précisons, que même si cela a été fait, l’option de modifier le texte de l’accord de paix n’était pas envisagée avant le plébiscite. Un seul hashtag semble traduire la polarisation qui a caractérisé la campagne et évoquer le conflit armé implicitement : #ColombiaNoSeEntrega. Ce hashtag sous-entend que l’on s’oppose à ce que le pays « soit remis » aux FARC ; argument maintes fois répété par l’ex-président Uribe et les membres de son parti politique, notamment Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 633 le jour de la signature de l’accord de paix. L’implicite cherche la connivence des récepteurs qui sont censés l’identifier : il faut savoir à qui ou à quoi l’on ne doit pas « rendre le pays » et pour quelles raisons. Notons qu’aucun autre hashtag n’évoque le passé de guerre. Les allusions seront faites, comme cela sera détaillé dans la section suivante, dans les contenus des tweets. 4.2 Stratégies argumentatives du « Oui » et du « Non » Au sujet des contraintes imposées par Twitter, notamment en ce qui concerne la longueur des tweets, notre étude montre qu’elles sont, en fait, contournées et mises à profit pour mobiliser la population autour des causes qui se polarisent facilement. Ainsi, la campagne pour le « Non » à l’accord de paix a fait un recours fréquent aux infographies, autrement dit aux images de synthèse qui permettent de donner une forme particulière aux textes et de les accompagner d’images fixes. Le parti Centro Democrático diffuse souvent des tweets exposant à chaque fois une raison pour s’opposer à l’accord de paix (nous reviendrons sur ces raisons ultérieurement). Une seule phrase est mise en forme sur un fond en couleurs vives, police grande, accompagnée ou non d’une image fixe (photo, capture d’écran, fac-similé). Au niveau de la forme, ces infographies ont l’avantage de faire ressortir visuellement le tweet du flux des messages. Au niveau du contenu, les messages courts facilitent la diffusion des interprétations fausses, exagérées ou hors-contexte de l’accord de paix, comme l’avait avoué le manager de la campagne pour le « Non », cité plus haut. Dans l’exemple illustré par l’image 1, l’émetteur (l’ex-président et sénateur Uribe) utilise une des désignations imposées pendant le conflit armé pour délégitimer la guérilla des FARC en l’associant au trafic de drogue et au terrorisme (« le groupe narcoterroriste FARC… »). Le tweet ne fait pas explicitement mention à la guerre qui a précédé la signature de l’accord de paix, mais utilise des expressions propres aux discours de guerre auxquels la population a été exposée pendant des décennies (SERRANO, 2017b). De plus, Uribe critique l’État qui a accepté de négocier avec ce groupe « narcoterroriste ». De cette façon, le Centro Democrático refuse toujours de reconnaître l’exguérilla comme un adversaire politique après les négociations de paix. Concernant la forme, la phrase du tweet, que l’on pourrait traduire par 634 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 « Le groupe narcoterroriste FARC sera maintenant partenaire de l’État. #LaColombieNeSeRendPas » utilise différentes tailles de police et des couleurs qui contrastent avec le fond bleu clair. L’infographie est traversée par une sorte de ruban qui correspond au drapeau national, cherchant ainsi à rassembler des récepteurs autour du nationalisme. Pour remplir sa fonction de thématisation, le hashtag est autant visible sur l’image que sur le tweet sous forme de texte. Si le même contenu de l’image avait été diffusé uniquement sous forme de texte, il aurait été moins visible et aurait pu se confondre avec le flux de tweets auxquels s’exposent les internautes. IMAGE 1 – Capture d’écran d’un tweet de l’ex-président Uribe contre l’accord de paix Concernant la campagne du « Oui », le graphique 2 montre que la grande majorité des tweets se limitent à exprimer le positionnement en faveur de l’accord de paix ou à annoncer les événements pendant lesquels on allait « faire de la pédagogie », autrement dit à expliquer l’accord de paix. Sur les 604 tweets recensés en faveur de l’accord de paix, 271 sont 635 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 classés dans la catégorie « On fait campagne / mobilisation » et 153 dans la catégorie « aucun » (graphique 2). Ainsi, presque trois quarts (424) des tweets soutenant le « Oui » expriment uniquement le positionnement, sans en donner une raison concrète. Dans la campagne pour le « Non », la proportion de ce type de messages (classés dans les catégories « on fait campagne / mobilisation » et « aucun ») n’atteint qu’un cinquième des tweets (129 sur 613). Pour le dire autrement, la campagne du « Non » utilise Twitter comme un dispositif de persuasion, alors que la campagne du « Oui » l’utilise comme un relais d’information. GRAPHIQUE 2 – Thèmes / arguments avancés par les deux campagnes en nombre de tweets on fait campagne / mobilisation 89 aucun 40 153 FarC = criminnels 110 Critiques au président de la République 83 Conséquences positives de l'accord de paix 78 L'accord n'est pas la paix 2 3 77 Accord = impunité FARC 2 60 Accord = éviter les conséquences négatives de la guerre 58 Critiques à l'autre campagne 37 Accord = bénéfices inacceptables pour les FARC 49 L'accord de paix aura des conséquences négatives 47 accord = "castro-chavismo", communisme, socialisme 271 54 27 2 Citation du / Mention au texte de l'accord de paix 17 9 autre 16 24 Nationalisme 14 Renforcer la démocratie 8 NoN ouI Certes, la campagne du « Oui » emploie également des infographies assurant plus de visibilité à leurs contenus. Toutefois, comme l’illustre l’image 2, il s’agit avant tout d’annoncer la date, l’heure et le lieu où se rendra telle ou telle personnalité politique pour parler de l’accord de paix. 636 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 IMAGE 2 – Capture d’écran d’un tweet de la sénatrice Claudia López (Parti Vert)16 En comparant les thèmes / arguments mobilisés par les campagnes, force est de constater (graphique 2) que les promoteurs du « Non » en utilisent davantage et que ces thèmes relèvent d’aspects plus concrets que ceux avancés par les promoteurs du « Oui ». Le thème / argument le plus fréquemment utilisé par le « Non » correspond aux tweets classés dans la catégorie « FARC = criminels ». Il s’agit ainsi de rappeler les crimes que cette guérilla a commis et les faits qu’on lui attribuait pendant la période de confrontation armée : assassinats, enlèvements, trafic de drogue. Pour ces raisons, affirmaient les promoteurs du « Non », on ne pouvait pas accepter l’ex-guérilla dans la société. Ils affirmaient que l’accord de paix assurait l’impunité pour tous ces crimes et qu’en plus l’État s’engageait à octroyer des bénéfices aux FARC comme celui de leur laisser participer en politique (être élus). C’est ce type d’argument 16 Traduction du tweet : « Merveilleuse et intense journée à Bello, Rionegro et #ParcExplora. Demain nous continuons la pédagogie #OuiAlaPaix à Medellin ». L’image annonce les deux événements auxquels allait participer la sénatrice le vendredi 9 septembre à 8 heures et à 11heures, à Medellín. En bas à droite, on lit « Oui à la paix », « Adieu à la guerre ». Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 637 que le Centro Democrático a déployé pour faire appel à l’indignation de la population, comme le reconnaissait le manager de la campagne. Les promoteurs du « Oui » ont préféré, de leur côté, une stratégie consistant à utiliser Twitter pour communiquer des liens renvoyant à d’autres sites (ceux des médias ou des blogs d’information, ou aux plateformes des médias sociaux comme YouTube) où des longs textes ou des vidéos expliquent le contenu de l’accord de paix et démentent, de manière argumentée, les interprétations erronées de la campagne du « Non ». De cette manière les promoteurs du « Oui » contournent les limites de longueur imposées par Twitter. Cependant, leur stratégie comporte un risque : si les internautes ne cliquaient pas sur les liens, ils n’accédaient pas au contenu développé et argumenté sur l’accord de paix. Ceci étant dit, sur les 604 tweets soutenant le « Oui », un peu plus d’un tiers (232, graphique 2) expose une raison précise pour soutenir l’accord de paix. Ils affirment fondamentalement que la paix aurait des conséquences positives pour les victimes du conflit et les paysans et qu’on allait enfin vivre en paix. On constate également que certains tweets font appel à la mémoire du conflit armé, en parlant des victimes et de la fin de la guerre. Nous y reviendrons dans la section suivante. Pour finir au sujet des principales tendances des deux campagnes, les promoteurs du « Non » ont privilégié une stratégie offensive, consistant à attaquer les FARC, le président de la République et l’accord de paix. Les promoteurs du « Oui » ont préféré une stratégie neutre, consistant à inviter les internautes à voter en faveur de l’accord de paix ou à se déplacer (virtuellement ou physiquement) pour connaître les avantages de l’accord. 5 La mémoire du conflit armé dans la campagne traitant du plébiscite pour la paix : le rôle des allusions En dépit des différences identifiées entre les deux campagnes, la paix est vue tant par les uns que par les autres au regard du conflit armé. Dans un cas, on ne peut pas oublier ce que les FARC ont fait en tant que groupe armé illégal, et dans l’autre, il faut éviter que les crimes commis pendant la guerre continuent à se reproduire. Plus précisément, nous avons observé que de la même manière que pendant la période de confrontation armée on cherche à instrumentaliser (le rappel de) certains faits pour légitimer sa position (dans le cas de la campagne pour le 638 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 « Oui ») ou pour délégitimer l’adversaire (qui reste un ennemi dans le cas de la campagne pour le « Non »). Ces allusions, qui relèvent d’une mémoire partielle et partialisée du conflit armé interne, méritent une attention particulière, parce que l’histoire de celui-ci est loin de faire le consensus dans le pays. D’ailleurs, dans le cadre des négociations de paix et conscients des enjeux que supposait le post-conflit, le gouvernement du président Santos et les FARC ont décidé de créer deux commissions. La première – la Commission Historique du Conflit Armé et de ses Victimes17 – a fonctionné entre août 2014 et février 2015. Elle avait comme mission d’élaborer un rapport en relation avec : a) les origines et les causes multiples du conflit armé, b) les principaux facteurs ayant contribué à sa persistance et c) les effets les plus notoires du conflit sur la population. La deuxième – la Commission de la Vérité – a démarré son travail fin 201818 pour une période de trois ans. Sa mission est d’élucider la vérité au sujet du conflit armé et d’assurer la cohabitation et la non répétition des crimes commis pendant la guerre interne.19 Pour illustrer la difficulté sous-jacente aux missions de ces commissions, mentionnons le principal constat dressé par la Commission Historique du Conflit Armé et ses Victimes lorsqu’elle a présenté son rapport de 809 pages devant les deux délégations de paix (celle qui représentait le gouvernement et celle qui représentait les FARC). Ce jour-là (le 10 février 2015), à la Havane, les deux rapporteurs de la commission reconnaissaient l’impossibilité de s’accorder – entre les 12 membres – sur une seule version à propos des origines du conflit armé, des facteurs qui ont contribué à le maintenir et de ses conséquences sur la population. Par exemple, selon la date ou la période retenue pour situer l’origine du conflit armé, le principal responsable de la guerre et des crimes commis n’est pas le même. Certains chercheurs remontent 17 Commission constituée par 12 chercheurs dont la moitié a été choisie par le gouvernement et la moitié par les FARC. Le travail de cette commission est disponible sur : http://www.altocomisionadoparalapaz.gov.co/mesadeconversaciones/index.html. Accès le : 10 juin 2019. 18 Disponible sur : https://comisiondelaverdad.co/actualidad/noticias/la-comision-iniciasu-mandato-con-el-primer-encuentro-por-la-verdad. Accès le 20 mai 2019. 19 Disponible sur : https://comisiondelaverdad.co/la-comision/que-es-la-comision-dela-verdad Accès le 6 juin 2019. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 639 aux années 1920-1930 pendant lesquelles les mesures économiques du gouvernement de l’époque ont engendré la pauvreté et l’exclusion sociale à l’origine de la création des guérillas. D’autres situent l’origine du conflit plus tardivement, dans les années 1960, avec la naissance des guérillas. Enfin, pour d’autres, le conflit, tel qu’on le connaissait au début des années 2000, commence dans les années 1980 avec le financement du trafic de drogue et la création des groupes paramilitaires (COMISION HISTORICA DEL CONFLICTO Y SUS VICTIMAS, 2015). En conséquence, les négociations de paix ont aussi porté sur la manière de considérer les acteurs armés (légaux et illégaux). La guérilla demandait à ce que ses combattants soient considérés sur un pied d’égalité avec les membres des forces armées de l’État. Certains représentants du gouvernement et des militaires s’opposaient farouchement à cette demande. À leur avis, la violence de l’État était légitime, car elle servait à combattre des groupes hors-la-loi. En ce sens, ils refusaient d’être comparés aux « terroristes » et d’admettre que leur violence avait engendré des victimes. Encore dans l’actualité, certains militaires contestent la justice transitionnelle mise en place dans le cadre de l’accord de paix, car elle donne le même traitement à tous les acteurs du conflit : groupes armés légaux (forces armées de l’État) et illégaux (guérilla et paramilitaires) et civils. Dans ces discussions sur les responsables de la violence politique et armée, les allusions au conflit dans les médias d’information et dans les médias sociaux numériques ont aussi un rôle à jouer. À notre avis, ces allusions participent au débat sur ce qui doit être considéré comme faisant partie de l’histoire du conflit armé interne. La question qui se pose est de savoir quels sont les faits et les événements qui « méritent » d’être remémorés et qui doivent faire partie de la mémoire collective et de l’histoire officielle du conflit. Tout comme le discours d’information des médias dits traditionnels (presse, radio et télévision) constituent des modes d’accès privilégiés à la matière même de l’histoire en train de se faire (KRIEG, 2000), dans les médias sociaux, on désigne l’actualité et on l’organise pour en rendre compte ou pour prendre position à son sujet. Ces processus de nomination et de mise en récit participent à la mémorisation de l’histoire du temps présent (SAMOUTH, 2011, Chap. Introduction). C’est pour cette raison que les allusions circulant dans les discours de campagne pour le plébiscite méritent, à notre avis, d’être 640 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 examinées. En suivant les propos de Moirand (2007) concernant la presse d’information, nous considérons que dans les discours diffusés sur Twitter (qui correspondent à des discours d’énonciation subjectivisée), les formes d’allusion fonctionnent comme des rappels mémoriels des dires, des faits et des événements antérieurs qui contribuent à construire ou à renforcer la mémoire collective. Ainsi, nous cherchons à comprendre comment les allusions au conflit armé dans les discours de campagne sur Twitter pour le plébiscite sont mobilisées dans une visée persuasive : quels sont les événements rappelés, par qui et dans quel but ? 5.1 Les allusions au conflit armé : une instrumentalisation politique de la mémoire ? Ayant observé que les deux campagnes font des allusions à la guerre et qu’il est impossible de tout dire ou de tout rappeler au sujet du conflit armé, s’est posé la question de savoir quelle est la version du conflit armé que l’on cherche à imposer lorsqu’il s’agit de défendre l’accord de paix ou de l’attaquer. Pour commencer, les rappels à la guerre sont plus fréquents dans la campagne pour le « Non ». Dans ce cas, la plupart des allusions se retrouvent dans les tweets regroupés dans le thème « FARC = criminels » (110 tweets sur 613, graphique 2) qui justifient l’opposition à l’accord de paix en délégitimant les FARC de deux manières principalement. La première consiste à remémorer leurs actions de guerre en les rendant responsables des crimes atroces : viol, enlèvement, recrutement d’enfants, terrorisme, etc. La deuxième consiste à désigner cette guérilla – qui était, à l’époque de la campagne pour le plébiscite, en voie de transformation en mouvement politique légal – avec les appellations délégitimantes, utilisées par le passé, pour justifier la guerre contre elle : « narcoterroristes, narcogénocidaires, terroristes… ». Nos études précédentes (SERRANO, 2017b) démontraient que ces désignations cherchaient à occulter les motivations politiques revendiquées par le groupe rebelle. Dans la campagne pour le « Non », aucune allusion ne rappelle des faits attribués aux autres groupes ou acteurs sociaux impliqués dans le conflit armé. Précisons à ce sujet que le parti Centro Democrático a plusieurs de ses membres – ou de leurs proches – impliqués dans des procès ou ayant été condamnés pour avoir des liens avec les groupes paramilitaires. On Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 641 peut mentionner notamment l’ex-président Uribe, un de ses frères et un de ses cousins. La stratégie des opposants à l’accord de paix peut être illustrée par l’image 3, correspondant à un tweet dont le texte traduit : « nous ne pouvons pas récompenser avec de l’impunité et la participation politique ceux qui ont eu des camps de concentration en Colombie ». Les six images qui l’accompagnent permettent d’identifier le sous-entendu associé à « camps de concentration » renvoyant à la Deuxième Guerre mondiale. L’énonciateur associe les FARC aux Nazis. L’événement auquel il fait allusion correspond à la prise d’otages (ou « rétention » comme disaient les FARC) des militaires par la guérilla suite à des combats qui ont eu lieu à la fin des années 1990. Des centaines des militaires sont restés « kidnappés » (comme disait le gouvernement20) par les FARC, certains pendant des mois, voire des années. Les images du tweet ci-dessous sont des captures d’écran d’une vidéo tournée par un journaliste travaillant à l’époque pour une importante chaîne privée de télévision. Il était le premier à tourner un reportage dans un campement de la guérilla.21 Les captures d’écran choisies pour ce tweet montrent des plans où l’on voit les militaires derrière des fils barbelés qui à leur tour font allusion aux images des camps de concentration nazi au moment de la libération par les Alliés à la fin de la Deuxième Guerre mondiale. Plusieurs travaux menés dans d’autres contextes rendent compte de cette stratégie de légitimation de la violence que l’on fait subir à un adversaire que l’on compare aux nazis (BAR-TAL ; HAMMACK, 2012 ; KRIEGPLANQUE, 2003). 20 Au sujet des désignations utilisées pour se référer à ces militaires et personnalités politiques pris en otage, voir : (SERRANO, 2015). 21 Le récit sur la réalisation de ce reportage est raconté par le journaliste dans une interview publiée, le 9 juillet 2018, par le journal argentin La Nación dans sa version en ligne . Disponible sur : https://www.lanacion.com.ar/lifestyle/botero-el-primer-periodista-quefilmo-a-las-farc-escuche-historias-tremendas-nid2151564. Accès le : 10 juin 2019. 642 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 IMAGE 3 – Capture d’écran d’un tweet publié par un homme se présentant dans son profil comme « spécialiste en marketing, uribista » (sympathisant de l’ex-président Uribe) Les images font partie de la mémoire collective du pays. Reprises pendant des années dans des reportages des journaux télévisés, elles étaient la preuve des crimes des FARC et justifiaient la volonté de l’État colombien et de ses forces armées de les combattre. Les images de ce tweet portent en elles les représentations et les émotions qu’on leur a associées au cours de quinze dernières années. Ici, il ne s’agit pas de parler de ce que pourrait devenir le pays en votant « Oui » ; il s’agit plutôt d’éveiller des ressentiments, voire de la colère pour rejeter l’accord de paix. Dans le but de renforcer la crédibilité de ce type de propos, certains tweets donnent des chiffres exacts. Par exemple, Uribe parle de « 11 700 enfants recrutés » ou encore de « 6 800 femmes violées » par les FARC. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 643 Dans la même lignée, d’autres tweets proposent des témoignages des victimes des FARC. Ces victimes peuvent être des citoyens ordinaires et vulnérables (afin d’éveiller l’empathie ou de favoriser l’identification des récepteurs) ou des personnalités politiques « kidnappées » par les FARC dans le passé, très connues dans le pays puisque tous les médias régionaux et nationaux ont suivi leur cas pendant des années. Un de ces tweets (image 4) fait appel au premier type de victimes. Il propose une vidéo d’une minute où l’on voit une femme d’une quarantaine ou d’une cinquantaine d’années. Son apparence (vêtements, façon de parler, teint de sa peau) suggère qu’elle appartient à une classe sociale populaire. En pleurs, elle se présente comme paysanne déplacée, victime de la guérilla qui l’a violée alors qu’elle était une enfant de 8 ans et que pour cette raison elle allait voter « Non » au plébiscite.22 La vidéo est accompagnée des images d’archive (dont la source et l’identité des personnages ne sont pas précisées) montrant des hommes armés en uniforme militaire lors d’entrainements ou d’opérations militaires. Il ne s’agit pas d’un document journalistique, ni juridique ; aucun indice dans ce sens n’est fourni. Seul le témoignage constitue la preuve des affirmations. La capture d’écran ci-dessous permet de voir le texte incrusté qui cite le quotidien national El Tiempo du 10 octobre 2015, selon lequel « 9 892 femmes ont été violées selon l’Unité des victimes ». Or, la sénatrice du Centro Democrático qui publie le tweet fait l’amalgame entre le chiffre total des femmes victimes de viol et les cas que la source officielle attribue aux FARC. Pour mieux comprendre l’intérêt de cette vidéo, il convient de préciser que de nombreuses victimes de tous les groupes armés (guérillas, paramilitaires et forces armées de l’État), et connues dans le pays, ont fait campagne activement en faveur de l’accord de paix. 22 Disponible sur : https://twitter.com/PaolaHolguin/status/778222900495130624. Accès le : 30 avril 2019. 644 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 IMAGE 4 – Capture d’écran d’un tweet de la campagne pour le « Non » publié par une sénatrice du parti Centro Democrático Ce type de tweets reposant sur la délégitimation des FARC pour s’opposer à l’accord de paix est accompagné de tweets regroupés dans les catégories « Accord = impunité FARC » (60 tweets) et « Accord = bénéfices inacceptables pour les FARC » (49 tweets, graphique 2). La stratégie des promoteurs du « Non » consiste donc, d’abord à rappeler que les FARC sont des criminels pour ensuite affirmer que les mesures prévues par l’accord de paix pour la réinsertion des ex-combattants et la transformation en mouvement politique légal sont inadmissibles. En d’autres termes, les promoteurs du « Non » ne parlent pas de ce que deviendra le pays lorsque les FARC rendront les armes (ce qu’ils mettaient en doute d’ailleurs23). Ils ne reconnaissent pas non plus le pas en avant fait par la guérilla pour se transformer en mouvement politique légal.24 Les allusions faites à la guerre par la campagne du « Non » construisent une version du conflit armé où il n’y a qu’un responsable La remise d’armes par l’ex-guérilla est certifiée par la mission des Nations Unies en Colombie en octobre 2017 . Disponible sur : http://www.altocomisionadoparalapaz. gov.co/Prensa/Paginas/2017/Septiembre/onu-finaliza-dejacion-armas-entrega-cifrasconsolidadas-armamento-recibido-inhabilitado.aspx. Accès le : 20 juin 2019. 24 Le parti FARC est lancé le 1er septembre 2017 . Disponible sur : https://www. elespectador.com/noticias/paz/farc-lanza-su-proyecto-politico-con-un-megaconciertoen-la-plaza-de-bolivar-de-bogota-articulo-711181. Accès le : 20 juin 2019. 23 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 645 de la violence : la guérilla. Les actes de violence et les crimes commis par les autres groupes armés ou non armés sont occultés. En ce qui concerne la campagne pour le « Oui », les allusions au conflit armé sont moins fréquentes ; elles concernent principalement les tweets regroupés dans le thème « Accord = éviter les conséquences de la guerre » (58 tweets, graphique 2). Deux stratégies ont pu être observées. La première consiste à faire des allusions à la durée de la guerre de « plus de 50 ans », ce qui sous-entend que c’est beaucoup et qu’il est temps d’en finir. La deuxième stratégie consiste à rappeler des faits de guerre dont les principaux responsables sont les paramilitaires ou les forces armées de l’État. À l’instar de la campagne pour le « Non », c’est une version du conflit armé partiale et partialisée qui commence à être remémorée après les processus de paix. Lorsque les crimes de la guérilla sont évoqués (comme dans le tweet de l’image 5), on précise que c’est dans le passé : « Neuf policiers meurent dans une attaque des FARC. 18 militaires ont été kidnappés. Pas de souci, ce sont des informations du passé ; pour qu’elles ne se reproduisent plus #OuiAlaPaix ». Ceux qui soutiennent l’accord de paix saluent la transformation des FARC en mouvement politique qui évitera la reproduction de ces crimes. D’ailleurs, le jour de la signature de l’accord de paix (le 26 septembre 2016), en pleine campagne pour le plébiscite, de nombreux leaders d’opinion et des personnalités politiques ont souhaité à travers Twitter « la bienvenue à la démocratie » aux FARC. IMAGE 5 – Capture d’écran d’un tweet en faveur de l’accord de paix La diversité de tendances politiques ayant soutenu l’accord de paix semble avoir une influence sur le type de faits évoqués et donc sur la désignation des responsables. Il est vrai que la majorité des allusions renvoient aux crimes des groupes paramilitaires et des 646 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 forces armées de l’État ; néanmoins, un cas mérite d’être discuté par sa rareté. Il s’agit de l’une des vidéos avec lesquelles la présidence de la République promouvait l’accord de paix (images 6 à 10). La vidéo25 de 2 minutes 4 secondes montre 4 personnes (2 femmes et 2 hommes) qui représentent les victimes du conflit armé. On voit en premier (image 6) une femme dont le fils a été victime de ce que l’on connaît dans le pays comme l’affaire des « faux positifs », autrement dit l’assassinat de civils, généralement de jeunes hommes provenant des couches sociales défavorisées, par les membres des forces armées de l’État qui déguisaient ensuite les cadavres en guérilléros pour montrer des résultats positifs dans la lutte contre le « terrorisme ». L’armée récompensait ces « bons » résultats par des jours de congé ou des bonifications salariales. Depuis que le scandale a été mis à jour, des militaires ont été licenciés et / ou font l’objet d’enquêtes judiciaires.26 Dans la vidéo, cette femme accuse explicitement la brigade militaire qui a tué son fils. Non seulement cette vidéo de la présidence commence par reconnaître les crimes de l’État, mais en plus, c’est le seul acteur armé qui est désigné explicitement dans les témoignages des victimes que l’on entend dans la vidéo. Les trois autres mentionnent les faits, mais il faut faire appel à la mémoire collective pour identifier les responsables, ce qui est extrêmement rare de la part de l’État colombien. En deuxième, on voit un homme qui remémore les 48 enfants tués lors du massacre de Bojayá dont sont responsables les FARC. Dans le cadre des négociations de paix, ce fait a été reconnu par la guérilla qui s’est rendu sur le lieu pour accepter sa responsabilité et demander pardon aux victimes. En troisième lieu, la vidéo montre une femme, journaliste d’un quotidien national à l’époque où elle s’est rendue à la principale 25 Disponible sur : https://twitter.com/infopresidencia/status/770085649214877696. Accès le : 30 avril 2019. 26 Voir à ce propos : DH Colombia, 25 janvier 2009, “El dossier secreto de los falsos positivos”. Disponible sur : http://www.dhcolombia.info/spip.php?article714&decoupe_ recherche=el%20dossier%20secreto%20de%20los%20falsos%20positivos. Accès le : 24 septembre 2009. ONU, “Informe anual de la Alta Comisionada de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos sobre la situación de los derechos humanos en Colombia”. Disponible sur : http:// www.ramajudicial.gov.co/csj_portal/assets/Informe%202008,%20SITUACION%20 DE%20DD.HH.%20EN%20COLOMBIA.pdf. Accès le : 24 septembre, 2009. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 647 prison du pays pour interviewer des paramilitaires emprisonnés. Ce jourlà, des paramilitaires l’ont kidnappée (alors qu’elle était dans la prison) pendant plusieurs heures et l’ont violée. En dernier, la vidéo montre le fils d’un politicien membre du parti politique UP (Unión Patriótica), tué en 1989. Il évoque l’extermination de ce parti politique de gauche par l’assassinat sélectif de ses membres dès la fin des années 1980. On parle de 3000 à 6000 victimes. Dans le cadre des négociations de paix avec les FARC, le président de la République a reconnu la responsabilité de l’État dans ce crime de lèse-humanité. La vidéo conclut en affirmant que « la seule manière de vaincre la guerre est de parler de paix » (image 10). Le texte qui accompagne la vidéo dit : « Ils ont été des victimes du conflit et aujourd’hui ils misent pour le #OuiAlaPaix. Ils regardent le futur avec illusion ». En plus de promouvoir l’accord de paix, cette vidéo répond aux engagements pris par le gouvernement (et par la guérilla des FARC), dans le cadre des pourparlers de paix, consistant à reconnaître que tous les acteurs (armés et non-armés, légaux et hors-la-loi) impliqués dans le conflit sont responsables de la violence qui a produit des victimes civiles innocentes. IMAGES 6 à 10 – Captures d’écran d’une vidéo postée dans un tweet de la présidence de la République pour soutenir l’accord de paix 648 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 Hormis cette vidéo singulière, on constate que les faits les plus souvent évoqués par la campagne du « Oui » sont les massacres, majoritairement commis dans le pays par les groupes paramilitaires. Ainsi dans un tweet (IMAGE 11), le massacre de El Salado27 rappelle implicitement tous les autres massacres et souligne la résilience de 27 Le reportage de l’hebdomadaire d’actualités politiques Semana du 18 février 2018 revient sur ce massacre où un groupe de paramilitaires a assassiné 66 personnes entre le 16 et 21 février 2000 sur la place du village et devant une centaine des résidents que les paramilitaires avaient regroupé pour les obliger à regarder : « Fiesta de sangre: así fue la masacre de El Salado ». Disponible sur : https://www.semana.com/nacion/articulo/ masacre-de-el-salado-como-la-planearon-y-ejecutaron-los-paramilitares/557580. Le texte a été écrit par Marta Ruiz et publié à l’origine le 30 août 2008. Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 649 la population (« #ElSalado exemple de résistance, exemple de #Paix #OuiAlaPaix #JeJoinsLaPaix #OuiAlaPaixCo #EquipePaixGouv #LaPaixGagne »). Ce tweet illustre la stratégie observée dans l’exemple précédent, consistant à s’appuyer sur des sous-entendus. Dans le cas du tweet ci-dessous, seul le lieu est mentionné : El Salado. Tant le fait (massacre) que les responsables (paramilitaires) restent implicites. L’allusion repose sur la mémoire collective. En effet, ce massacre est connu comme l’un des pires de l’histoire récente du conflit armé. IMAGE 11 – Capture d’écran d’un tweet de campagne pour le « Oui » publié par un fonctionnaire du gouvernement En somme, la campagne pour le « Oui » évoque des cas emblématiques, comme l’extermination du parti politique Unión Patriótica28 (UP) ou les massacres des paramilitaires. L’image 12 en 28 Assassinats sélectifs des membres du parti politique UP. Le cas, contre l’État colombien pour l’extermination du parti est arrivé en juillet 2018 à la Cour Interaméricaine des Droits Humains : Disponible sur : https://www.oas.org/es/cidh/ prensa/comunicados/2018/162.asp. Accès le : 15 juin 2019. 650 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 est un dernier exemple. Le texte du tweet traduit « pour nos victimes, pour toutes les victimes de #Colombie #JusticeAvecL’UP #OuiAlaPaix #LaPaixEstAvecToi ». Le texte de l’infographie traduit « #JusticeAvecL’UP Ils pourront couper les fleurs, ils ne pourront pas stopper le printemps ». L’infographie est accompagnée de trois photos, portraits de membres de l’UP assassinés dans les années 1980. Ainsi, non seulement le fait est remémoré, mais aussi les personnes victimes à travers leurs photos où on les voit en vie. Ce qui est intéressant avec ce tweet, c’est que l’énonciatrice, certes, remémore les victimes du conflit, néanmoins, elle les divise en deux groupes : « nos » victimes et les autres. À nouveau, ce sont les implicites suggérés qui font sens : « nos » victimes à qui ? Les images permettent de comprendre qu’il s’agit des victimes de l’UP. IMAGE 12 – Capture d’écran tweet d’une membre du parti UP qui a survécu à un attentat Par ailleurs, on constate que la campagne du « Oui » a tendance à remémorer des victimes que l’on pourrait qualifier des « célèbres », autrement dit très connues dans le pays. Ce ne sont pas les seules victimes de la violence des forces armées de l’État et des groupes paramilitaires, mais elles restent dans la mémoire collective du pays. Certaines étaient particulièrement charismatiques et appréciées comme l’humoriste Jaime Garzón, assassiné en 1999 ou Diana Turbay, fille d’un ex-président de la Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 651 République, kidnappée par le trafiquant Pablo Escobar et tuée durant sa captivité. Pour mieux comprendre cette stratégie consistant à évoquer les victimes connues, rappelons que durant les décennies de confrontation armée, c’est le discours de l’une des parties du conflit qui s’est imposé, à savoir celui qui provenait des sources officielles (État, gouvernement, forces armées de l’État). Ces sources revendiquaient la légitimité que leur donnait le fait de combattre des groupes armés hors-la-loi et se permettaient d’exiger des médias de ne diffuser que leur version du conflit armé, condamnant ainsi à l’invisibilité les discours des victimes de la violence de l’État et plus largement de tout discours alternatif. En réponse à ce contexte de visibilité limitée, et profitant des espaces ouverts grâce à l’accord de paix et à l’Internet, les secteurs de gauche commencent à rendre visible leur propre version du conflit armé. Nous faisons l’hypothèse que, dans le cadre de la campagne traitant du plébiscite pour la paix, les promoteurs du « Oui » situés à gauche de l’échiquier politique évoquent les victimes charismatiques et très connues dans le pays afin de faciliter la réception d’un discours qui va à l’encontre de celui qui s’est imposé pendant des décennies. 6 En guise de conclusion Au terme de cette analyse de 1307 tweets de campagne traitant du plébiscite pour la paix d’octobre 2016 (dont 604 en faveur de l’accord de paix et 613 contre), force est de constater que le discours de promotion de la paix peine à s’imposer par rapport au discours de légitimation de la guerre. Par ailleurs, ce sont les opposants à l’accord de paix qui exploitent davantage les allusions au conflit armé pour incriminer les FARC et ainsi justifier l’opposition à l’accord. Les allusions à la guerre dans les discours de campagne soutenant la paix récupèrent la mémoire de ceux dont l’histoire est moins connue dans le pays. Les allusions ne servent pas seulement à soutenir ou à s’opposer au conflit armé ; elles contribuent aussi au processus de construction de la mémoire collective. Plus globalement, ces résultats interrogent la manière dont les promoteurs de l’accord de paix défendent ce dernier : comment parler de la paix pour sortir de la guerre ? Si la construction d’une mémoire collective du conflit autour des faits et des acteurs sociaux invisibilisés durant les décennies de confrontation armée est nécessaire, faut-il associer cet objectif à celui de la promotion de la paix ? 652 Rev. Estud. Ling., Belo Horizonte, v. 28, n. 1, p. 619-655, 2020 À propos de Twitter, en tant que plateforme accessible à une diversité d’acteurs sociaux (leaders d’opinion, citoyens ordinaires), il a été utilisé comme : a) outil de relais d’information b) espace d’expression d’une opinion et c) outil de mobilisation de la population. Plus que subies, les contraintes imposées par le dispositif ont été mises à profit par les deux campagnes, mais surtout par celle qui s’opposait à l’accord de paix. Ainsi, la multicanalité a permis de rendre plus visibles les messages en les faisant ressortir du flux des tweets. Les contraintes de longueur justifient les discours courts qui cherchent à mobiliser par l’appel à l’émotion davantage que par le développement d’arguments rationnels. La diffusion des contenus dont la source et la véracité n’ont pas à être vérifiés pose sérieusement la question d’une éducation aux médias sociaux numériques. Ceux qui publient des contenus sur les médias sociaux devraient être sensibilisés pour assumer leur responsabilité auprès de la société. Ceux qui consomment ces contenus devraient s’entraîner à développer une attitude critique. Les médias sociaux ne peuvent pas s’imposer comme des sources d’information au même titre que les discours journalistiques, soumis à des règles et des codes déontologiques. Références AMOSSY, R. L’argumentation dans le discours. Paris : Armand Colin, 2012. BAR-TAL, D.; HAMMACK, P. Conflict, delegitimization, and violence. In: TROPP, L. R. (éd.). The Oxford Handbook of Intergroup Conflict. New York : Oxford University Press, 2012. p. 29-52. Doi: https://doi. org/10.1093/oxfordhb/9780199747672.013.0003 BASSET, Y. Claves del rechazo del plebiscito para la paz en Colombia. Estudios Políticos, México, v. 52, p. 241-265, 2018. Doi : https://doi. org/10.17533/udea.espo.n52a12 BRETON, Ph. L’argumentation dans la communication, 4. éd. Paris : La Découverte, 2007. CHIBOIS, J. Twitter et les relations de séduction entre députés et journalistes. Réseaux, Paris, n. 188, p. 201-228, 2014. Doi : https://doi. org/10.3917/res.188.0201 Rev. Estud. 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