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A PEREGRINAÇÃO DAS COISAS: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO MUSEU NACIONAL PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL LILIAN ALVES GOMES A PEREGRINAÇÃO DAS COISAS: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção RIO DE JANEIRO 2017 Lilian Alves Gomes A PEREGRINAÇÃO DAS COISAS: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção 1 v. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de PósGraduação em Antropologia Social, do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutora em Antropologia Social. Orientadora: Dra. Renata de Castro Menezes Coorientador: Dr. Edmundo Marcelo Mendes Pereira Rio de Janeiro 2017 CIP – Catalogação na Publicação G633p Gomes, Lilian Alves A PEREGRINAÇÃO DAS COISAS: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção / Lilian Alves Gomes. -- Rio de Janeiro, 2017. 301 f. Orientadora: Renata de Castro Menezes. Coorientador: Edmundo Marcelo Mendes Pereira. Tese (doutorado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Museu Nacional, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, 2017. 1. imagens de santos. 2. ex-votos. 3. objetos de devoção. 4. Antropologia da Arte. 5. Antropologia dos objetos. I. Menezes, Renata de Castro, orient. II. Pereira, Edmundo Marcelo Mendes, coorient. III. Título. Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pela autora. Para Vó Conceição, que partiu enquanto eu tecia esse trabalho; e tantas outras mulheres - em especial minha mãe e minhas madrinhas Alaíce e Sãozinha - que me ensinaram diferentes formas de lidar com o sagrado e suas contexturas. AGRADECIMENTOS Esta tese envolveu muitas itinerâncias. E eu não ando só. Os nomes que por ora retomo, são as coordenadas institucionais, afetivas e efetivas que a possibilitaram. Inventariar nomes e colaborações é uma maneira de me aproximar das condições de possibilidade do trabalho. Como toda tentativa de inventário, essa lista ambiciona atenção aos detalhes, mas é, a priori, falha por tentar palavrear tantos enredamentos que passaram por outras veredas. E é também inventada, pois diz quem e o que tornaram a conclusão possível e esfumaça os percalços e as paragens do caminho. É um compêndio deliberadamente celebrativo, que não hierarquiza gratidão e obrigação. Passemos aos responsáveis e às suas graças. À Fernanda Lima e sua generosidade, que torna a palavra gratidão ridiculamente insuficiente para tatear sua contribuição nessa tese (e na minha vida). Fernanda levou a sério a importância das imagens no texto e as bordou no trabalho como quem não soubesse da pureza e do perigo envolvidos na empreitada. Ao Julio e ao Antônio, o passarinh o deles – meu menino de Sto. Antônio – que entenderam a ausência da Fê e que, em tantos outros momentos do percurso do doutorado, o fizeram tão mais afetuoso. A Antônio Marques, querido Toinho, professor, amigo, mestre, interlocutor e direcionador do meu olhar: obrigada por cada carão, presente, desafio, desabafo, dever de casa. Você não me ensinou apenas a ver, mas a me deparar com festas para os olhos. À Renata Menezes, pela orientação, pelos cursos que tanto contemplaram minhas preocupações de pesquisa, pelo ambiente de interlocução e recursos no âmbito do GPAD. A Edmundo Pereira, pela contribuição no exame de qualificação e pela generosidade em incrementá-la tornando-se co-orientador deste trabalho. A Antonio Carlos de Souza Lima e Nuno Porto, pelas contribuições na qualificação. A José Reginaldo Gonçalves, Federico Neiburg e Maria Beatriz Mello e Souza, pelo acolhimento nas disciplinas do doutorado e ampliação dos meus horizontes de indagações. À Giordana Charuty, pelo estímulo intelectual durante o estágio na EPHE e por possibilitar minha participação junto ao LAHIC. À Michele Coquet, pelos comentários a respeito de minha pesquisa apresentada no seminário L'autre de la religion (em colaboração com Giordana Charuty). À École du Louvre, em especial, à Claire Merleau-Ponty, por viabilizar minha participação no SIEM. Meu muito obrigada aos colegas dessa incursão. À Mariana Ferraz de Albuquerque, pelos diálogos sobre museus com coisas de igreja e igrejas com coisas de museu, e à Helena Wangefelt Ström, pelas trocas sobre santos desfigurados de lá e de cá. A Luc Boltanski e Arnold Esquerre, pela oportunidade de assistir a algumas sessões do seminário La valeur des choses: collections, sélections, préservation, no Musée Quai Branly. A Luiz Fernando Dias Duarte, Federico Neiburg, Manuelina Duarte, Daniel Bitter, Carla Dias e Carlos Fausto, membros da banca, por aceitarem o convite para avaliar meu trabalho. A Paulo Henriques Britto, pela gentileza na elaboração do resumo em inglês. À Drica Valcarce, pelo carinho e cuidado, principalmente nos momentos em que eu não pude estar presente para encaminhar documentações e afins. Aos funcionários das bibliotecas Parque Estadual – BPE e CCBB Rio, pelo ambiente propício ao trabalho intelectual e pelo inestimável acesso aos catálogos e outros materiais analisados nesta tese. Infelizmente, a BPE foi fechada e seu precioso acervo, bem como o espaço dinâmico ali cultivado, estão inutilizados em razão do mais recente desmonte dos serviços públicos orquestrado pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro. À Maria Isabel Mendes de Almeida, querida Bebel, pela partilha intelectual, compreensão, diálogo, amizade e oportunidade de trabalho no CESAP/UCAM. À Thais Costa, por tecer tudo isso conosco e ter levado o significado de parceria a outro patamar na minha atuação profissional. A Anthony e Edu, por nosso aprendizado contínuo e tardes bem-humoradas (depois do café, claro). A Enrique Larreta, da UCAM, pela atenção ao meu deslumbramento com (uma edição específica) de Walter Benjamin e suas Passagens. Ainda a encontraremos por aí, num sebo. Ao pessoal do IEPHA, MPMG e CECOR, em especial, Raphael Hallack Fabrino, Janaína Mota, Maria Ângela Pinheiro, Marcos Paulo Miranda, Paula Novaes, Frederico Joviano e Beatriz Coelho. À Irene Van den Berg, por ter me posto em contato com o principal interlocutor do trabalho. A Nildo, pelos passeios em Natal e pelo sertão potiguar, pelo humor contagiante e suas preciosidades de colecionador de coisas, sabores e experiências. À Luzia e sua filha Dalva Dantas, pela generosidade da recepção em Currais Novos. À Paulina Fagundes (in memorian), por seu singelo legado, também um fruto do aprendizado com Antônio Marques. À equipe do Museu Câmara Cascudo, em especial, Jailma Santos, pela presteza com que me recebeu na instituição e pela generosidade em me enviar as informações que lhe solicitei posteriormente. À Isaura Rosado, pelo interesse por minha pesquisa e pelo apoio para que ela contemplasse os santuários potiguares. À Marília Gonçalves, pela acolhida na chegada em Natal, por me apresentar seus cantinhos na cidade, pelas fotos na Casa dos Milagres (com seu Djidjidjiê) e sua prontidão irrestrita em colaborar. A Rodrigo Cordeiro e Dani Maia, por me receberem em Aracaju. Sou grata ainda à Dani, pela recomendação de conversar com Verônica Nunes. À Alene Lins, de Salvador, pelo contato de Jomar Lima. Agradeço a Jomar e ao prior Sr. Ivo pela apresentação do Conjunto do Carmo, em Cachoeira-BA. À Graça Ohana, e seu encantamento pelo mundo marioandradiano. A Rhuan Carlos Lopes, pela colaboração no entendimento dos ex-votos que figuram no último capítulo da tese. Aos amigos que leram partes do trabalho e o enriqueceram com suas numerosas sugestões, apontamentos e indicações: gratidão pela eficácia em tornar a solidão da escrita menos perversa. A Edilson Pereira, pelas nossas parciais e gloriosas connections. A Guillermo Sanabria, pela faxina nas minhas notas, curiosidade e admiração em relação ao meu tema, encorajamento e torcida pela finalização do trabalho. À Raquel Lima, pela atenção à minha escrita, que, como será visto adiante, é em muito nossa. Pelo tanto que posso contar contigo, por me escutar, por vir ao Rio sambar que “somos verdade”. À Jaqueline Silva, Jac, que banca a itabirana de ferro nas veias e tece comentários com cheiro de cravo, rosa e botão de laranjeira. Pelo axé enviado, d‟além mar, quando foi necessário, e agora do lugar onde o desejo sossegou (por enquanto). À Patrícia Lânes, pela presença afetuosa de cada dia; pelos encontros entre a Republique e a Praça XV, passando pela Tiradentes e terminando (se for o caso) numa certa esquina, na companhia de Gabriela e Gengibre. A Paulo Victor Leite Lopes, pelas trocas silenciosas (ao menos em nossos termos) de estratégias de sobrevivência iniciadas quando mal imaginávamos que nosso encontro se desdobraria em “nova conjugalidade”. Pelo “controle social” para que o outro não desistisse, por ter me conduzido pela mão quando precisei de auxílio espiritual e burocrático. Quem conhece PV sabe o privilégio que é estar na presença de sua gargalhada, ironia, desenrolos, parceria, ranzinzice e esquisitices de virginiano. À Julia Zanetti, pelos deboches afins de seu alter ego PV. A Arthur Lobo, pelas aulas de francês e pela amizade que cultivamos enquanto eu m e preparava para o estágio no exterior. À Simita Delaire, que me apresentou a Luis Antônio de Carvalho, e este por me mostrar sua Paris, pelas discussões sobre a Aurélia e pela minha despedida antológica na Rue de Soleil. À Viviane Lay Pradel, pelo cantinho na Turbigo e discussões em portunhol sobre santidade. À Marcela Franzen, minha bastidiana, por tudo que minha estadia na França se tornou depois de sua chegada e pelo que viramos depois disso. Que venha Clarice. À Bela Welter e Romain Crouzet, pela mineirice aportada em Paris. Aos meus amores de multidão, a quem de primeira eu não conseguiria agradecer individualmente, afinal, somos um desbunde juntos (e brigando): Pimenta, Andrea, Flora, Uri, Denise, Zé, Livia, Quel e Andrea. E por tudo que eu queria agradecer a um por um: à Livia, hermana, por tantos caminhos que hoje desaguam em rio no fundo de seu quintal; à P imenta pelas correspondências epifânicas; à Andrea pelas notícias astrológicas; à Flora e seus potlachs: Bê e Ravi; à Denise da Costa e seu amor; à Quel e seu tambor; ao Zé, por conter minhas vírgulas, à Uri por seu devir divinopolitana. A propósito, Uri e Di Caprio, eu não tenho nada a ver com isso. Ao Di Caprio, pela forma como esteve ao meu lado quando mais precisei e que hoje posso lembrar como o dia no qual descobri que sempre fomos “amigos de infância”. À Ludi e Ló, varistas queridas, que nos períodos mineiros da pesquisa me recebiam em BH com dieta de engorda. Ao resto da Varistada, obrigada por (c)orações e momentos familiares de bagunça. À minha mãe, por entender a ausência, saber ser presença e me apoiar incondicionalmente. Obrigada por lutar para que eu estudasse nas melhores escolas, por ter me ensinado sobre cuidado com o outro e sobre tantas coisas do mundo. A meu pai, pelas leituras compartilhadas, pelo orgulho sempre reiterado pela “caçula do meio” e por sempre ter me intrigado com “o que não parece com o dono é roubado”. Essa pesquisa fala um tanto disso. Aos irmãos Renata e Lucas. Ao Lucas, por ter me dado Gisa, Pedro e Gu. Às amigas do tempo de escola: Ana, Aline, Daniela, Juliana, Larissa, Nayra, Renata, Simara, Vanessa Daldegan, Vanessa Gomes. À Simara, por trazer tanto de nós para o Rio. A Juca e Lalá, casal querido que se celebrará em breve. À Léa, que trouxe Tony, que chamou Karla e Érika, que me deu Melissa, que me agraciou Isaac. À Cláudia Rodrigues e Gilmar Oliveira, pela dedicação ao curso de Licenciatura em História UNIRIO/CEDERJ. Aprendi muito com o empenho de vocês. Às professoras Neiva Oliveira, Mônica Grin e Márcia Chuva, por me confiarem a condução das tutorias de suas disciplinas. Às colegas professoras em Caxias, em especial, à Beatriz Bastos pelo auxílio na coordenação, imprescindível para finalização desse trabalho. Aos alunos de DCA, pelo apoio e aprendizado mútuo. Minha formação foi possível graças ao esforço de alguns dos profissionais citados acima e muitos outros que me incentivaram em todo esse percurso. Alguns professores da graduação na UFMG se tornaram amigos, outros figuram em minha memória como grandes mestres: Ana Lúcia Modesto, Antônio Mitre, Daniel Simião, Deborah Lima, Eduardo Vargas, Lea Perez, Leonardo Figoli, Regina Horta e Rubem Caixeta. No PPGAS do Museu Nacional, além dos professores mencionados anteriormente por terem participado de etapas mais específicas do processo de elaboração da tese, tive a honra de aprender com Eduardo Viveiros de Castro, Giralda Seyferth, José Sérgio Leite Lopes, Marília Facó, Marcio Goldman, Olívia Cunha e Tânia Clemente. Minha trajetória no ensino público, gratuito e de qualidade foi potencializada pelas bolsas CAPES (doutorado e estágio no exterior), pelos recursos para participação em congressos e, fundamental e principalmente, pelo apoio financeiro do PPGAS -MN para trabalho de campo. Em tempos em que essas possibilidades estão cada vez mais escassas, seria eufemismo chamá-las de auxílio – quando, na verdade, são condições objetivas de pesquisa – e absurdo não considerar que cursei a pós-graduação em condições bastante privilegiadas e que deveriam ser acessíveis a todos. Por fim, meu muito obrigada aos amigos de outras paragens com quem cruzei no MN: João Laguens, Marcelo Mello, Mariana Renou, Raphael Bispo, Rita Santos, Rodica Weiztman. Peter Fremlin, literato poliglota querido, gracias por tudo! A sensibili dade de Maria Rossi foi especialmente fundamental para arrefecer meu retorno do exterior. Obrigada por continuar me brindando com sua presença terna. Os agradecimentos são um [pretenso] rito de entrada, uma vez que abrem a tese e, na verdade, são escritos quando ela é finalizada. Os tantos exercícios de campo envolvendo expressões plásticas de gratidão potencializaram mais ainda o clichê da insuficiência das palavras para agradecer, mas como elas são o que tenho para expor por ora, abri então meu „relicário‟, o documento onde fui guardando nomes durante o percurso do doutorado. Coleção de cacos Carlos Drummond de Andrade1 Já não coleciono selos. O mundo me inquizila. Tem países demais, geografias demais. Desisto. Nunca chegaria a ter um álbum igual ao do Dr. Grisolia, orgulho da cidade. E toda gente coleciona os mesmos pedacinhos de papel. Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados – faço questão – da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas, restos de flores não conhecidas. Tão pouco: só o roxo não delineado, o carmezim absoluto, o verde não sabendo a que xícara serviu. Mas eu refaço a flor por sua cor, e é só minha tal flor, se a cor é minha no caco de tigela. O caco vem da terra como fruto a me aguardar, segredo que morta cozinheira ali depôs para que um dia eu o desvendasse. Lavrar, lavrar com mãos impacientes um ouro desprezado por todos da família. Bichos pequeninos fogem de revolvido lar subterâneo. Vidros agressivos ferem os dedos, preço de descobrimento. a coleção e seu sinal de sangue, a coleção e seu risco de tétano, a coleção que nenhum outro imita. Escondo-a de José, por que não ria nem jogue fora esse museu de sonho. 1. In: Esquecer para lembrar. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979. pp. 44-45. RESUMO GOMES, Lilian Alves. A peregrinação das coisas: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção. 2017. Tese (Doutorado em Antropologia Social)- Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. Nesta tese analiso as relações engendradas por imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção em situações nas quais os mesmos são mobilizados para outros fins que não o culto religioso. Além das trajetórias dos objetos em questão, discuto as motivações de quem os retira de espaços onde eles são expostos para finalidades devocionais e os desloca para outros, como museus e locais privados nos quais as coleções são elaboradas. A elucidação de tais questões vale-se principalmente de dados produzidos a partir de Natal-RN, onde realizei um longo investimento na observação participante do cotidiano de um colecionador, ex-galerista, estudioso e comerciante de arte e suas interações em práticas de busca, comercialização, colecionamento e exposição de objetos. Através dessa interlocução mais específica em torno de um conjunto de obras — classificadas, em sua maioria, como “arte popular” — convivi com diversas outras peças entendidas neste trabalho como emaranhados de relações tecidas no decurso de sua produção, circulação, exposição e mesmo destruição. São esculturas, como os já aludidos santos e ex-votos, passando por exposições e publicações delas decorrentes, tais como livros e catálogos; pensadas como imiscuídas no fluxo da ação social de agentes diversos: fornecedores de material, artistas, marchands, colecionadores, folcloristas, intelectuais, restauradores, curadores, inventariadores, museus, professores universitários, órgãos culturais etc. A abordagem etnográfica privilegia processos (colecionamento, artificação, patrimonialização, exposição etc.) em vez de estados reconhecidos dos objetos (obra-prima, artefato, obra de arte, coleção etc.). Desse modo, destaco a rentalibilidade de ritualizar atos de criar, ver, manipular, transacionar e mostrar certos objetos. Essa proposta envolve a descrição do processo de musealização de parte de um acervo particular. A análise da exposição de santos e ex-votos decorrente desse processo culmina na discussão sobre a possibilidade de criação (ou reatualização) da força ritual presente nessas coisas em suas utilizações pretéritas. Palavras-chave: imagens de santos; ex-votos; objetos de devoção; Antropologia da Arte; Antropologia dos objetos. ABSTRACT In this dissertation I analyze the relationships formed in the context of statues of saints, ex-votos, and other devotional objects in situations where they are mobilized for other purposes than religious worship. In addition to the trajectories followed by these objects, I discuss the motivations of those who transplant them from devotional spaces to such places as museums and private collections. To elucidate these issues, I relied mostly on data from Natal, Rio Grande do Norte State, where for a long time I was a participant observer of the everyday life of a collector, former gallery owner, art scholar and art dealer, procuring, marketing, collecting, and exhibiting objects. As I observed his transactions involving a number of items—most of them classified as “popular art”—I had access to other objects, here envisaged as sets of entangled relationships generated in the process of production, circulation, exhibition, and even destruction of these objects. These sculptures—for instance, images of saints and ex-votos—are included in exhibitions and in the catalogues and books associated with them; they are envisaged as immersed in the flux of the social action of various agents: suppliers of materials, artists, art dealers, collectors, folklorists, intellectuals, restorers, curators, organizers of inventories, museums, college professors, cultural agencies, and so on. The ethnographic approach privileges processes (collecting, artification, patrimonialization, exhibiting, etc.) rather than recognized states (masterpiece, artifact, work of art, collection, etc.). In this way, I emphasize the effectiveness of ritualizing the acts of creating, seeing, manipulating, buying, selling, and exhibiting certain objects. This proposal involves the description of the process of musealization of part of a private collection. The analysis of the exhibition of statues of saints and ex-votos that are the culmination of this process ends with a discussion of the possibility of creating (or reactualizing) the ritual force present in these objects in their former capacity. Keywords: statues of saints; ex-votos; devotional objects; anthropology of art; anthropology of objects. LISTA DE ILUSTRAÇÕES Capa e contracapa: A imagem que abre e fecha este trabalho é um milagre atribuído ao santeiro Salomão Gurgel. A fotografia da peça foi feita por Giovanni Sérgio e consta na pág. 18 do catálogo da exposição Casa dos Milagres: Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques (2013). Figura 1: Expositor de objetos variados na Galeria do Centro de Turismo (CT).......................................40 Figura 2: Expositor de imagens na Galeria do CT...................................................................................41 Figura 3: Ex-votos expostos na Galeria do CT.........................................................................................42 Figura 4: Fragmentos em promoção na Galeria do CT...........................................................................43 Figura 5: Nossa Sra. da Conceição ao estilo antigo............................................................................... 47 Figura 6: Visão panorâmica da Galeria do CT 1..................................................................................52 Figura 7: Visão panorâmica da Galeria do CT 2..................................................................................52 Figuras 8 e 9: Ex-votos variados reunidos por tipologia anatômica na reserva do MCC......... 54 Figuras 10 e 11: Imagens variadas na reserva do MCC............................................................................55 Figura 12: Imagem do acervo do MCC extraída de Santos.........................................................................56 Figura 13: Santos na Casa de Cascudo....................................................................................................60 Figura 14: Estátua de Câmara Cascudo em frente ao Memorial........................................................61 Figura 15: Entrada do Memorial Câmara Cascudo (MCC).................................................................62 Figura 16: Sala de religiosidade popular do MCC.................................................................................63 Figuras 17 e 18: Busto e detalhe de busto de Pe. João Maria............................................................... 65 Figura 19: Livro de visitas do Museu de Arte Sacra de Natal – RN................................................... 67 Figura 20: Da série Irredentos, de Christian Cravo..................................................................................69 Figura 21: “Modo correto de transportar objetos”........................................................................................69 Figura 22: Exposição de imagens de vestir na Mostra do Redescobrimento..................... ........72 Figura 23: Presépio de Ambrósio Córdula............................................................................................................83 Figura 24: Presépio de Salete Diniz.........................................................................................................................83 Figura 25: Presépio de João Gregório.....................................................................................................................83 Figura 26: Presépio atribuído ao pai de Xico Santeiro.........................................................................84 Figura 27: Impresso de apresentação da exposição de presépios.......................................................85 Figura 28: Início da montagem do cenário para presépio por Ricardo Veriano..............................86 Figura 29: Detalhe do presépio no cenário de Veriano......................................................................................86 Figura 30: Presépio de Francisco Felix de Lima (Chico Santeiro) disposto no cenário...............................86 Figura 31: Presépios a espera da disposição nos suportes da exposição...............................................87 Figura 32: Presépio de Xico Santeiro......................................................................................................................87 Figura 33: Fragmentos/ Santos desfigurados e mutilados...................................................................107 Figura 34: São João Batista Menino.........................................................................................................................113 Figura 35: Proporções do "Doríforo", de Policleto (século 5 a.C.)....................................................127 Figura 36: São Jorge “sertanejo humilde”..............................................................................................146 Figura 37: São Miguel..................................................................................................................................................147 Figura 38: Face posterior de São Miguel................................................................................................148 Figura 39: Angelus Novus de Paul Klee................................................................................................153 Figura 40: São Miguel na casa de Luzia..................................................................................................154 Figura 41: Imagens de autoria de Luzia Dantas....................................................................................155 Figura 42: Luzia face ao poster com sua foto........................................................................................158 Figura 43: Matéria prima (umburana) na garagem da casa de Luzia..................................................159 Figura 44: Início do processo de escultura de uma imagem na varanda de Luzia...........................159 Figura 45: Luzia apresentando seu saber-fazer......................................................................................159 Figura 46: Luzia apresentando seu saber-fazer e a variação das ferramentas utilizadas.................159 Figura 47: Luzia apresentando uma obra em processo na sala de sua casa.................................... 159 Figura 48: Santa Luzia e livros que abordam o trabalho da santeira....................................... 159 Figura 49: Buda e Rendeira esculpidos por Xico Santeiro................................................................... 175 Figura 50: Imagens de Pe. Cícero de autoria de Mestre Noza...............................................................177 Figura 51: Banda de música de autoria de Júlio Cassiano....................................................................185 Figura 52: Prancha com fisionomias faciais de ex-votos e santos de Julio Cassiano....................... 186 Figura 53: Prancha com milagres e imagem de santo de autoria de Julio Cassiano................................... 188 Figura 54: Prancha com detalhes das mãos de São Miguel, de São Jorge e do músico da banda. 189 Figura 55: Prancha com milagres em forma de mãos e pé....................................................................189 Figura 56: Imagem de santa e ex-voto de figura feminina de autoria de Teodora..........................207 Figura 57: Face posterior da imagem de Santa Luzia de autoria de Teodora...................................... 207 Figura 58: Antônio realizando comparações formais e iconográficas entre imagens de sua coleção.......208 Figura 59: Prancha com bases de imagens “assinadas”..........................................................................208 212 Figura 60: Ex-voto contendo nomes e inscrições diversas de devotos.............................................. Figura 61: Detalhe do ex-voto da figura anterior contendo inscrições diversas...............................212 Figura 62: Arcadas laterais da antiga capela do CT...............................................................................217 Figura 63: Altar do Santuário das Meninas............................................................................................225 Figura 64: As covinhas em primeiro plano............................................................................................................225 Figura 65: Suportes para registro de presença e acondicionamento de relatos de milagres...........226 226 Figura 66: Ex-votos coletados no Santuário das Covinhas.................................................................. Figura 67: Visão geral da Sala dos Milagres do Santuário da Serra do Lima....................................231 231 Figura 68: Suporte contendo o ex-voto sugerido por Veriano............................................................ Figura 69: Exemplos de uma mesma parte do corpo: Seios................................................................ 231 Figura 70: Antônio selecionando cabeças com auxílio do zelador do Santuário....................................232 Figura 71: Seleção de outros formatos de milagres.................................................................................232 Figura 72: Peças fabricadas provavelmente pelo mesmo escultor...................................................233 Figura 73: Santa Menina, a umburana e Pe. Cortez..................................................................................235 Figura 74: Exposição „disciplinada‟ de fotos e imagens............................................................................235 Figura 75: Manequins e colecionadores na Sala dos Milagres..................................................................237 Figura 76 Estrutura expositiva linear.........................................................................................................237 Figura 77: Nildo observa a exposição....................................................................................................237 Figura 78: Da entrada da Casa dos Milagres ao altar........................................................................... 243 Figura 79: Tipos nordestinos e imagens de autoria de João Gregório................................................243 Figura 80: Plano de orientação oferecido pela CM ao visitante........................................................245 Figura 81: Ex-voto em metal...................................................................................................................247 Figura 82: Sala de devoção ao Pe. João Maria vista através da arcada..............................................248 Figura 83: Estilização do Santuário de Nossa Senhora das Vitórias.................................................250 Figura 84: Estilização do Santuário da Santa Menina.........................................................................250 251 Figura 85: Estilização dos Santuários de Sta. Rita, em primeiro plano............................................. Figura 86: Milagres em forma de Busto de autoria de Chico Santeiro.............................................252 Figura 87: Capa e contra capa do Catálogo da Casa de Milagres.........................................................252 Figura 88: Mapa das devoções potiguares do Catálogo da mostra...................................................253 Figura 89: Altar mor da CM....................................................................................................................257 Figura 90: Vitrine especial na nave central da capela..........................................................................262 Figura 91: Inscrição na base de C1.........................................................................................................267 Figura 92: Cruzeiro de beira de estrada.................................................................................................271 Figura 93: Cruz da Menina Maria de Lourdes em Jardim do Seridó................................................273 Figura 94: Detalhe da Cruz.....................................................................................................................273 Figura 95: Prancha com ex-votos assinados.........................................................................................278 Figura 96: Porta da Sala de Milagres ou Sala das Promessas..............................................................283 Figura 97: Detalhe de impresso da campanha de recuperação de bens culturais do IPHAN......286 Figura 98: Milagre em forma de olhos..................................................................................................287 LISTA DE SIGLAS (por ordem alfabética) CAPES: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CECOR: Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis CEIB: Centro de Estudos da Imaginária Brasileira CM: Casa dos Milagres CT: Centro de Turismo CPPC: Coordenadoria e Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais DC: Departamento de Cultura (da cidade de São Paulo) DFB: Dicionário do Folclore Brasileiro FJA: Fundação José Augusto EBA-UFMG: Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais EPHE: École Pratique des Hautes Études IEPHA-MG: Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais GEA-IEPHA: Gerência de Elementos Artísticos - IEPHA GID-IEPHA: Gerência de identificação - IEPHA INTERPOL: Organização Internacional de Polícia Criminal IPHAN: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MAM: Museu de Arte Moderna (Rio de Janeiro) MAS-UFBA: Museu de Arte Sacra da Universidade Federal da Bahia MAS-RN: Museu de Arte Sacra do Rio Grande do Norte MAS-SE: Museu de Arte Sacra de São Cristóvão – SE MASP: Museu de Arte de São Paulo MCC: Museu Câmara Cascudo MPMG: Ministério Público do Estado de Minas Gerais PPGAS-MN: Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional SEF: Sociedade de Etnografia e Folclore SPHAN: Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional UFRN: Universidade Federal do Rio Grande do Norte SUMÁRIO A PEREGRINAÇÃO DAS COISAS: trajetórias de imagens de santos, ex-votos e outros objetos de devoção INTRODUÇÃO: PARA ALÉM DO ALTAR E DO ANDOR – PERCURSOS DE CONFORMAÇÃO DA PESQUISA........................................................ 21 1 EM BUSCA DOS CAÇADORES DE IMAGENS................................................................... 38 1.1 SANTOS-SOUVENIR.................................................................................................................. 38 1.2 SANTOS-OBRAS DE ARTE...................................................................................................... 40 1.3 SANTOS-ACERVO........................................................................................................................ 53 1.3.1 De um museu de etnografia......................................................................................................... 53 1.3.2 De instituições em memória de Cascudo................................................................................... 57 1.3.3 De museus de arte sacra................................................................................................................ 66 1.4 SANTOS DESAPARECIDOS..................................................................................................... 74 2 OLHOS DE SANTOS E DE QUEM OS VÊ........................................................................... 82 2.1 O PRESÉPIO E O SUSTO.......................................................................................................... 82 2.2 O EFEITO ALEIJADINHO........................................................................................................ 91 2.3 A MAGIA DO OLHAR................................................................................................................ 98 2.4 TREINAMENTO E INICIAÇÃO DO OLHAR.................................................................... 101 2.5 SOBRE OS OLHOS DE SANTA LUZIA E ALGUNS FRAGMENTOS......................... 105 2.6 CAMADAS E ACABAMENTOS................................................................................................ 109 3 AS MÃOS E AS IMAGENS............................................................................................................ 113 3.1 O CUIDADO COM AS IMAGENS........................................................................................... 114 3.2 SANTO ANTÔNIO, OS MENINOS E OS SUPLÍCIOS...................................................... 120 3.3 FORMAS, (DES)PROPORÇÕES E CONFUSÕES QUE ENCANTAM.......................... 124 3.4 ABRINDO A CAIXA DE MENINOS...................................................................................... 130 3.5 O COLECIONADOR E SUA MAGIA..................................................................................... 133 3.6 MAQUIAGEM E MALEFÍCIOS: OS RISCOS DAS MANIPULAÇÕES......................... 138 4 PRELÚDIO SOBRE A INVENTIVIDADE (DOS SANTOS) DO SERTÃO............... 145 4.1 SÃO JORGE E SÃO MIGUEL NA CASA DE ANTÔNIO................................................ 145 4.2 SÃO MIGUEL NA CASA DE LUZIA...................................................................................... 153 4.3 SANTEIROS, IMAGINÁRIOS E ESCULTORES POPULARES: A INVENÇÃO DE UMA LINHAGEM..... 160 4.4 OS LIMITES DA ENCOMENDA............................................................................................. 168 4.5 O ENCONTRO COMO A COLETA EM ATO...................................................................... 180 5 DA IMAGEM AO MILAGRE....................................................................................................... 184 5.1 OS MILAGRES QUE NEM TODOS VÊEM........................................................................... 181 5.2 A DESCOBERTA DO EX-VOTO NORDESTINO............................................................... 190 5.2.1 O milagre atrás do altar................................................................................................................. 190 5.2.2 As exposições de milagres............................................................................................................. 194 5.2.3 Outros encontros com os milagres............................................................................................. 199 5.3 QUEM É O AUTOR DO MILAGRE?....................................................................................... 205 5.4 QUEM É O AUTOR DE UMA EXPOSIÇÃO DE MILAGRES?........................................ 213 5.4.1 Curadoria compósita...................................................................................................................... 213 5.4.2 Em busca de milagres.................................................................................................................... 224 5.4.2.1 Nas Covinhas, quase Ceará........................................................................................................ 224 5.4.2.2 Em Tenório, Seridó paraibano.................................................................................................. 228 5.4.2.3 No Santuário do Lima, em Patu............................................................................................... 230 5.4.2.4 No Monte do Galo, em Carnaúba dos Dantas....................................................................... 231 5.4.2.5 No Monte das Graças e da Santa Menina, em Florânia........................................................ 233 5.4.2.6 No santuário de Santa Rita, em Santa Cruz............................................................................ 236 5.4.2.7 Na Fundação José Augusto, em Natal..................................................................................... 238 6 AS OUTRAS MORADAS DOS MILAGRES............................................................................... 242 6.1 NA CASA DOS MILAGRES.......................................................................................................... 242 6.1.1 Uma mostra com nome de museu................................................................................................. 242 6.1.2 Devotos, turistas e visitantes........................................................................................................ 254 6.1.3 O destino da coleção de milagres.................................................................................................. 259 6.2 NAS CASAS E NAS COLEÇÕES DAS PESSOAS................................................................... 263 6.3 NAS CRUZES.................................................................................................................................... 266 6.4 NAS MÃOS DOS “ICONOCLASTAS”....................................................................................... 275 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU ESPELHOS (IN)TRINCADOS....................................... 283 REFERÊNCIAS.........................................................................................................................................288 - Referências Bibliográficas..........................................................................................................................288 - Catálogos e estudos de coleção.................................................................................................................297 - Reportagens.............................................................................................................................................. 300 ANEXO - Classificação tipológica das formas ex-votivas.......................................................... 301 21 INTRODUÇÃO: PARA ALÉM DO ALTAR E DO ANDOR – PERCURSOS DE CONFORMAÇÃO DA PESQUISA Minha inquietação inicial ao buscar imagens de santos e outros objetos de devoção se deu com o intuito de verificar quais relações eles engendram quando são mobilizadas para outros fins que não o culto religioso. Interessavam-me, assim, não somente as trajetórias dos objetos em questão, mas também as motivações de quem os retira de espaços onde eles são expostos para finalidades devocionais e os desloca para outros, como museus e locais privados nos quais as coleções são elaboradas. Se nem só os devotos querem tê-los consigo, quem seriam essas pessoas que também os desejam, quais seriam esses objetos e o que elas buscariam neles, pressupondo-se que não seria a presença ativa e taumatúrgica de um santo? Ao pensar nos santos „fora de casa‟1, uma imagem primeira que me instigava era a do colecionador que os retira de igrejas e capelas, destituindo-os de seus respectivos papéis rituais em práticas coletivas para inseri-los no âmbito de coleções particulares. Qual seria o deleite envolvido nesse culto privado? Ao longo de anos assisti a chamadas televisivas em que altares de igrejas e capelas eram mostrados vazios ao som de músicas tristes2. Esse tipo de ação noticiava campanhas visando à recuperação de “bens culturais desaparecidos”. Em uma chamada específica do Instituto do Patrimônio Artístico e Histórico Nacional (IPHAN), imagens de santos com feições suplicantes são mostradas rodeadas de objetos litúrgicos de ourivesaria e prataria – castiçais, sacrários, tocheiros, cálices etc. Quando a voz em off do locutor enuncia que “comprar e vender peças de arte ou antiguidades roubadas é crime”, surge em primeiro plano, o rosto de uma santa com os olhos marejados. O comercial é finalizado com lágrimas escorrendo pelo rosto da peça integrante do “patrimônio cultural do Brasil”3. Os objetos do „comercial anticomércio' eram mostrados na penumbra, em um local não identificado. Essa indicação e a assertiva em torno do caráter ilegal da movimentação de arte sacra apontavam para o fato que uma pessoa interessada não acessaria facilmente os agentes que a realizam, tampouco os espaços onde certas transações são realizadas. Face a isso, como eu me aproximaria de pessoas para desenvolver uma tese sobre algo que poderia comprometê-las? Como trataria de imagens de santos que não são solenemente expostas ao olhar de um público mais amplo? 1 As aspas simples serão sempre utilizadas, no decorrer deste texto, para assinalar minhas próprias categorias ou a relativização de algum termo ou expressão. Aspas duplas serão empregadas como forma de marcar citações e categorias que não as minhas – sejam „nativas‟ ou de cientistas sociais e outros pesquisadores. O negrito será utilizado como marcador de ênfase. As palavras em itálico indicam termos significativos do universo pesquisado e, como de praxe, vocábulos estrangeiros ou títulos de trabalhos. 2 Veiculadas pela emissora de televisão pública de Minas Gerais. 3 A campanha “Lágrimas de Bens Procurados” pode ser visualizada em https://www.youtube.com/watch?v=2jMuf57kho. 22 Meu tipo ideal de interlocutor, àquela altura, era o „caçador de imagens‟. Assim, estando diante de um colecionador e das pessoas que participam das movimentações para que as imagens cheguem até eles, eu poderia indagá-las sobre as astúcias, ferramentas e „terrenos de caça‟ explorados com vistas à composição de „santuários particulares‟. Poderia também entender a atração específica exercida pelas imagens sobre eles. Por que colecioná-las? “Porque são coisas caras”, respondeu-me um ex-comerciante de antiguidades, quando lhe contei sobre minhas primeiras formulações de problema de pesquisa. Esse interlocutor eventual foi enfático ao afirmar que o universo no qual acontece o comércio de coisas que me interessava é composto por “gente que não gosta de aparecer” e é, por conseguinte, bastante fechado a estranhos. Além dos roubos, estariam em causa uma série de questões delicadas sobre as quais as pessoas não falam, nem fazem abertamente, tais como grandes montantes e lavagem de dinheiro, sonegação de impostos e disputas por herança. A argumentação trazia diferentes ângulos de vista para a questão – o entesouramento gerado pela acumulação de mercadorias valiosas e a quantidade de dinheiro que elas movimentam – mas não explicava porque as coisas em questão são “caras”, ou seja, concentram valor; tampouco a preferência pelo colecionamento dessas coisas caras em detrimento de outras, como armas, joias ou quadros de pintores famosos, por exemplo. Apresentei essas primeiras inquietações para minha orientadora e avaliamos que se naquele momento inicial da pesquisa, o contato com colecionadores de arte sacra e o acesso aos locais que acondicionam suas respectivas coleções parecia complicado, talvez fosse interessante compreender a musealização de imagens de santos. Gostei da sugestão por entrever tal prática como voltada à prevenção de roubos que me intrigavam. Um dos museus sugeridos abriga imagens provenientes de igrejas descritas como “peladas”, ou seja, templos religiosos também são „desnudados‟ para composição de coleções de museus. Estes, no entanto, funcionariam como vitrines ou como cofres? Quais as implicações da exposição dessas coisas preciosas? Em quais circunstâncias admitese que a „morada‟ mais adequada de uma imagem é uma instituição museológica e não uma igreja? Ao passo que eu me preocupava com os caminhos que levam as imagens para fora de seus loci rituais, fui alertada que a forma de exposição dos museus em si poderia ser preciosa. Certos displays possibilitam a visualização de séries de imagens de santos provenientes de diferentes locais que, por estarem dispostas lado a lado, permitem a comparação entre variações ou mesmo mudanças históricas nas representações iconográficas, portanto, tratava-se de uma forma específica de classificar e mostrar as peças propiciadas justamente pela descontextualização ritual delas. ***** 23 Em fevereiro de 2012, após já ter cursado algumas disciplinas do doutorado 4 e ter compartilhado minhas intenções de pesquisa no âmbito do Grupo de Pesquisa de Antropologia da Devoção (GPAD/PPGAS/MN) 5, viajei para realizar as primeiras incursões do trabalho de campo. Meu planejamento era visitar alguns museus6, bem como entrevistar o “curador de arte sacra” Antônio Marques de Carvalho Júnior7. Nessa oportunidade, realizei uma primeira observação em sua “Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas”, em Natal, capital do estado do Rio Grande do Norte; e em Currais Novos, interior do estado, visitei uma de suas fornecedoras de imagens, a santeira Luzia Dantas. Meu interesse logo se voltou às motivações e às práticas do galerista relacionadas ao trato com peças de “arte religiosa e popular” e menos aos museus que eu visitaria na capital potiguar e em outras cidades do Nordeste, como eu planejei anteriormente. Observei dinâmicas interessantíssimas nos museus, mas ao fim e ao cabo tais instituições me pareceram mais receptoras do que agentes ativas na busca de objetos. Além disso, ao passo que na minha apreciação os objetos em museus estavam mais permanentemente acolhidos, aqueles que observei a partir do então galerista em Natal se avultaram como mais liminares. As práticas devocionais abordadas como inadequadas por alguns profissionais dos museus não me provocaram tanto estranhamento quanto algumas do comerciante de arte, que de modo corriqueiro realiza transações envolvendo coisas que eu enquadrava como inalienáveis. 4 Durante o doutorado frequentei os seguintes cursos: Antropologia da Economia (2011/1°), ministrado por Federico Neiburg (PPGAS/MN/UFRJ); Antropologia dos Objetos (2011/1° semestre), conduzido pelo Professor José Reginaldo Gonçalves (PPGSA/IFCS/UFRJ); Sobre a “Cultura Popular”: as Festas (2011/1°), ministrado por Renata Menezes (PPGAS/MN/UFRJ); Pintura e Sociedade: teorias da imagem, funções e apropriações (2011/2), oferecido por Maria Beatriz de Mello e Souza (PPGHIS/IFCS/UFRJ) e Objeto, Imagem, Corpo, Religião: Materialidades do Sagrado (2012/1°), com Renata Menezes. 5 Coordenado pela Dra. Renata Menezes, realiza reuniões e debates desde 2007, tendo se consolidado oficialmente em 2010, junto ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq, com o suporte institucional do PPGAS/MN/UFRJ. “O grupo se articula em torno de temas como a produção de novas análises sobre símbolos e práticas associados à religião, seja esta entendido enquanto um princípio de valores e representações, ou ainda como um conjunto de práticas de "enredamento" social. Assim, os membros do grupo têm pesquisado sobre culto aos santos, festas religiosas, objetos religiosos, relação religião -arte, religião-mercado, religião-Estado.” Fonte: dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/4672762409992537. A saber: Museu de Arte Sacra de Laranjeiras – SE, sugerido por Renata Menezes; Museu de Arte Sacra de São Cristóvão, SE; e Museu de Arte Sacra de Salvador – BA, indicado por Maria Beatriz de Mello e Souza, historiadora da arte. Fui aluna de Beatriz no seminário Pintura e Sociedade: teorias da imagem, funções e apropriações, realizado no segundo semestre de 2011, na Pós-Graduação em História Social do IFCS/UFRJ. 6 7 Contactei-o por intermédio de Irene van den Berg, professora da Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (UERN), que ciente do interesse dos pesquisadores do GPAD pelas “materialidades da devoção ”, em troca de e-mails com Renata Menezes, mencionou conhecer um “excelente ex-professor da antropologia que se dedica hoje à curadoria de imagens sacras e tem uma coleção belíssima de ex -votos do RN”. Solicitamos então o referido contato e Antônio Marques se dispôs a me receber. 24 Alguns meses depois, em setembro de 2012, voltei a Natal com a proposta de uma observação mais detida naquela galeria de arte. Meu objetivo inicial era lidar com imagens expostas para comercialização, acompanhando a exibição e a venda das peças no estabelecimento comercial. No entanto, o espaço em questão estava sendo vendido para outro comerciante de arte/colecionador, mas este fato não impossibilitou a pesquisa sobre a circulação de imagens. Mesmo não estando mais à frente da galeria, o colecionador, que se tornou meu principal interlocutor, não deixou nem de comercializar, nem de adquirir peças, e pude acompanhá-lo nessa movimentação. Fiquei em Natal até fevereiro de 2013 e produzi dados por meio de Observação Participante em diversas situações: viagens ao interior do estado em busca de objetos em santuários, antiquários e fazendas; reuniões com a Secretaria de Cultura do Rio Grande do Norte com vistas à organização de um museu; organização de uma exposição de presépios, visitas a ateliês de artistas, a espaços de colecionamento e a feiras de arte e de artesanato. Após meu retorno ao Rio de Janeiro, as relações estreitadas nesse campo foram mantidas através da troca de e-mails, interações em redes sociais e, especialmente, contatos telefônicos. Antônio e seu sócio estiveram no Rio em 2013 e 2016 e fomos juntos a feiras de antiguidades, antiquários e museus. Em 2014, durante minha estada na França para realização do Doutorado-Sanduíche, contei com a colaboração de Raquel Lima e Edilson Pereira, colegas do GPAD, que estiveram em Natal e registraram em áudio e imagens a visita à exposição Casa dos Milagres – Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques, de importância capital para a argumentação desenvolvida nesta Tese. Em 2015 também visitei a mostra em questão. Nesse mesmo ano contei com a colaboração de Marília Gonçalves, assistente de pesquisa que realizou registros fotográficos de obras cuja visualização se tornou indispensável para o desenvolvimento de alguns trechos desse trabalho. Desde o início da pesquisa, quando me interessei pelos processos de obtenção de objetos movimentados por Antônio Marques, considerei que ele poderia ser observado como um „caçador de imagens‟ porque, ao se descrever como um colecionador de coisas diversas, ele mesmo deixava claro como também colecionava as empreitada s e façanhas para chegar até elas. Suas buscas implicavam em incursões, sobretudo, no “sertão” – região que, segundo ele, é pontuada por capelas das fazendas e de beira de estrada, onde historicamente se observa a “religiosidade do povo”, com seus oragos de feições sertanejas e/ou nordestinas, pois nem sempre a “Igreja Oficial” e seus santos vindos da Europa chegavam ao interior. O trabalho contínuo permitiu o aperfeiçoamento de um “olho treinado” que, por sua vez, possibilita a identificação de autoria a obras de sujeitos que as esculpiam com finalidades devocionais (próprias ou de terceiros). 25 Inicialmente, decodificar o funcionamento desse olho implicou, dentre outras coisas, compreender porque imagens de “culto doméstico” afluíam para coleção e para o comércio sem maiores impedimentos. Segundo o colecionador potiguar, ele não teria problemas com “o patrimônio” porque as coisas que comercializa e coleciona como obras de arte não são consideradas preciosas ou dignas de proteção pelo Estado (nem por outros agentes, como a Igreja). Mobilizada por essa questão etnográfica e entrevendo a potencialidade de um contraponto analítico ao tipo de circulação de objetos que observei no Rio Grande do Norte, fui então a Minas Gerais conhecer o Programa de Apoio à Identificação de Bens Culturais Desaparecidos. Nesse estado, associado de modo praticamente automático à religiosidade católica e ao patrimônio histórico nacional, atualmente, são buscados centenas de bens culturais e, de modo significativo, apenas dois itens – dentre os cerca de seiscentos procurados – não se relacionam com finalidades devocionais 8. A partir do lugar de observação que busquei configurar, os profissionais à procura de imagens em MG estariam principalmente em dois órgãos públicos: a Promotoria de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais, do Ministério Público Estadual (CPPC/MPMG) e a Gerência de Identificação, do Instituto Estadual do Patrimônio Artístico (GID/IEPHA-MG). Conversei com alguns deles em 2012, ocasião em que também coletei dados preliminares visando eleger casos específicos dentre os muitos do Programa de Recuperação de Bens. Com alguns casos selecionados, posteriormente, concentrei a pesquisa nos arquivos do IEPHA, atividade que desenvolvi mais ativamente nas primeiras semanas de 2014, quando também me relacionei com historiadores, restauradores, arquitetos, técnicos e gestores de acervos envolvidos na busca do patrimônio mineiro perdido. A partir do extenso material de campo coligido entre o RN e MG, em meu exame de qualificação propus o exercício de tomar os agentes desses diferentes contextos como „caçadores de imagens‟, nos quais meu interlocutor no RN figuraria como o empreendedor de buscas com fins particulares e os profissionais dos órgãos de MG como realizadores de buscas para o Estado. Apesar dos pontos de articulação expostos no texto da qualificação, no decorrer do ordenamento dos dados da pesquisa, o objetivo de dar conta da complexidade de práticas de diferentes situações sociais em torno de objetos religiosos acabou por impor a escolha por aquelas observadas mais demoradamente no Rio Grande do Norte. 8 De acordo com a listagem de bens desaparecidos disponibilizada na página do IEPHA -MG, busca-se uma “Escultura busto de Antônio Aleixo” e uma “Escultura Monumento Comemorativo da Inauguração da BR 041”. Todos os demais itens da lista são imagens de santos e suas partes integrantes (ou seja, atributos ou acessórios, cujas definições conheceremos mais adiante), instrumentos litúrgicos e partes de estruturas da igreja. Fonte: http://www.iepha.mg.gov.br/bens-desaparecidos/lista-de-dens-desaparecidos. 26 Após ouvir interlocutores e professores que avaliaram o andamento da pesquisa, o que acabou despontando como algo a ser compreendido não foi nenhum deleite estritamente privado na fruição das peças – forma de relação com as coisas que eu imaginava que seria a problemática central da pesquisa – e sim um modo especial de se relacionar com elas e, em consequência disso, alimentar uma reputação com aspectos de excepcionalidade. Diante das indicações que recolhi em campo, se alguém com “olho treinado” se dispôs a colaborar com minha pesquisa, eu deveria aproveitar essa abertura e me ater ao espectro de objetos movimentado por um olhar singular. Afinal de contas, o entendimento das chaves de funcionamento da capacidade de ver e lidar com as imagens que estava em questão, como eu começava a vislumbrar, incluiria a reflexão sobre a moralidade (e não necessariamente ilegalidade) de transações diversas e o confronto com obras que, em dado momento, foram atraídas para uma coleção particular, mas que poderiam, no final das contas, serem direcionadas para acervos públicos. Como será visto adiante, a eleição dos dados produzidos principalmente a partir da interação com o interlocutor potiguar permitiu o desenvolvimento dessa Tese em torno de diferentes trajetórias: de objetos específicos; de uma coleção e do colecionador que a elabora. Diversos aspectos que serão problematizados, entretanto, não deixaram de ser iluminados por questões cuja elaboração foi possibilitada pelas visitas aos museus do meu primeiro de trabalho de campo ou pelo confronto com a expertise dos profissionais mineiros em busca de bens desaparecidos. Em vista disso, alguns dados produzidos nesses outros contextos poderão ser oportunamente acionados. ***** A menção a objetos descontextualizados de seus loci rituais pode sugerir ao leitor um contexto original dado a priori para eles. Não se trata disso. Mais abaixo explicito o percurso analítico que trilhei antes do doutorado, no qual mesmo tendo estudado objetos movimentados em um contexto socialmente qualificado como religioso, preocupei-me em não deixar de conectar a circulação destes a outras dimensões sociais. Nessa linha de raciocínio, se os objetos de coleção tradicionalmente são analisados como mercadorias desligadas de seu uso e abstraídos de suas funções habituais, quando inseridos em um universo particular9, cabe investigar como os colecionadores realizam esse empreendimento. 9 Vide, por exemplo, os trabalhos de Krzysztof Pomian (1987) e Jean Baudrillard (2004). 27 Se os objetos de coleção são coisas “fora do mundo”10, quais são os despojamentos necessários para que eles deixem de dizer sobre o mundo de onde provêm e se submetam à lógica de qual passam a fazer parte? Em vez de pensá-los como desconectados de seus proprietários, funções e circulações pretéritas, julgo pertinente tomá-los, a partir da sugestão de Nicolas Thomas (1991), como emaranhados, ou seja, como coisas que entrelaçam vínculos diversos: de poder, ideias, materiais etc. Nesta Tese, o desemaranhar de alguns desses fios passa pela análise de procedimentos de coleta, retenção, fruição e mesmo destruição dos objetos. Quando colocadas em perspectiva, essas ações nos possibilitam pensar a “separação do mundo” aludida acima e outras noções e práticas caras ao universo pesquisado. A centralidade de certos objetos no âmbito de práticas católicas, de cunho mais ou menos oficiais, ou seja, inseridas de diferentes maneiras em uma programação litúrgica, foi problematizada de modo minucioso em trabalhos recentes. Nos processos rituais – como bem demonstraram Daniel Bitter (2010) e Luzimar Pereira (2011), a propósito das Folias de Reis; Edilson Pereira (2014), para o caso das encenações da Semana Santa em Ouro Preto; e Raquel Lima (2014), em sua incursão pelos processos de simbolização em uma paróquia dedicada à Santa Rita no Rio de Janeiro – o estado de pessoas e coisas é modificado por meio das formas variadas de interação entre devotos, santos e as diversas formas materiais que esses últimos podem assumir. Bandeiras, máscaras, rosas, lembrancinhas11, imagens e o próprio corpo do devoto são fundamentais para a passagem do tempo-espaço cotidiano para um tempo-espaço especial, o tempo do ritual. Entretanto, a utilização desses mesmos objetos rituais para outros fins que não a transação com divindades permanece pouco estudada. Arjun Appadurai (2008, p. 42) assevera que “o desvio de objetos para fora das rotas especificadas é sempre um sinal de criatividade ou crise, seja estética ou econômica”. Essa pista sobre o potencial das transações ser tanto criativo, quanto perigoso – e, por conseguinte, pregnante de possibilidades de recomposição das significações em torno dos objetos – reitera a pertinência de estudar a utilização de objetos rituais para outros fins que não as trocas com divindades. Considerando que a literatura nos possibilita a entender o ritual como o tempo potencial para troca, mudança ou inversão de papéis em oposição ao cotidiano marcado pela permanência dos papéis habituais, torna-se interessante „ritualizar‟ os processos envolvidos nos trânsitos de objetos que Segundo Baudrillard (2004), “qualquer que seja a abertura de uma coleção, há nela um elemento irredutível de não-relacionamento com o mundo.”. 10 Lembrancinhas são souvenirs, objetos – geralmente de pequena dimensão – vendidos em locais onde se observa fluxo de visitantes, que adquirem esses artigos para lembrar da experiência de estar em tal local ou presentear outras pessoas. 11 28 já estiveram envolvidos em relações de devoção12. Assim, ao invés de pensar em transições acabadas no status de um objeto como ritual, mercadoria, obra de arte ou bem cultural, coloco em questão justamente a multiplicidade de gestos, transformações e sentidos explicitada durante as passagens. Além dos desenvolvimentos de autores que se dedicaram a pensar os percursos dos objetos, recorro, para tanto, à literatura sobre os ritos de passagem (VAN GENNEP, 1978) e acerca das situações liminares, nas quais, como ensinou Victor Turner (1974, p. 117), pessoas e coisas escapam “de classificações que normalmente determinam a localização de [seus] estados e posições”. A partir desse referencial e de minhas primeiras observações de campo sumarizadas acima, lancei mão da metáfora de „peregrinação das coisas‟ buscando qualificar minha proposta de seguilas juntamente com as pessoas envolvidas em seus deslocamentos. Essa formulação também foi iluminada pela reflexão sobre “artificação” (HEINICH e SHAPIRO, 2012, p. 20), pois a “artificação designa processos de transformação de não-arte em arte, resultado de um trabalho complexo que engendra uma mudança de definição e de estatuto de pessoas, objetos e atividades.” Para além de mudanças simbólicas ou de processos de legitimação, trata-se de colocar o acento na ação de pessoas e nas formas de agenciamento de objetos que resultam em transformações físicas, materiais e formais. Estas não necessariamente se dão em um “mundo da arte” já estabelecido, mas sim em um universo em construção permanente, no qual a artificação nem sempre é plenamente verificada. Assim, os processos de transformação não são lineares, há oscilações, reajustamentos e recalculamento de estratégias. Tendo em vista que meu interesse se direcionava, sobretudo, às coisas que mudaram ou foram mudadas de lugar, me ater à ideia de peregrinação não parecia inadequado. Tratei de procurá-las, como indiquei nos primeiros títulos que conferi à pesquisa, „para além do altar e do andor‟ ou, minimamente, „nem só no altar e no andor‟. Altares e seus correlatos móveis, os andores, grosso modo, são mecanismos que capitalizam o foco para o que mostram com destaque para ser venerado. Contudo, os dados coletados por ocasião da primeira jornada de trabalho de campo já mostravam que os deslocamentos que eu colocaria em pauta podem ser nada solenes ou pomposos quando pensados em relação àqueles observáveis em cerimônias nas quais os santos são celebrados sobre os referidos suportes de direcionamento de atenção. 12 De acordo com Renata Menezes (2004), as relações estabelecidas com os santos caracterizam-se por vinculações de profundidade e de duração variadas. Na perspectiva da autora, os santos são divindades que articulam três dimensões – de mediação, intercessão e taumaturgia – que podem ser acessadas de modo pontual, para realização de uma promessa ou pedido, ou num ato em que se “experimenta” o santo ou na forma mais duradoura da relação de devoção. A especificidade desta dimensão reside no estabelecimento de “vínculos significativos” que relacionam aspectos da vida do santo e do devoto, envolvendo fé, amizade, intimidade e confiança. O devoto conta com a proteção contínua do santo porque estabelece com ele uma relação calcada na gratidão, que pode ser inclusive em relação à própria vida como um todo, povoada de graças diversas e não apenas por feitos extraordinários esporádicos. 29 Meu posicionamento como etnógrafa em campo, por sua vez, foi se configurando menos como o da pessoa em uma procissão que segue ou vai ao lado do santo – participando da mesma cena que ele – e mais como o do peregrino ou romeiro, que o alcança após percorrer determinado percurso. Não posso prosseguir com a analogia, por ora, porque uma peregrinação é realizada com vistas à chegada em um local sagrado definido e eu optei justamente por buscar imagens fora dos endereços previsíveis onde elas são dadas a ver. Antes de continuar descrevendo os caminhos da pesquisa esclareço que a proposição de „ritualizar‟ remete mais propriamente a um exercício de destacar certos processos do conjunto maior de atividades sociais nos quais se imiscuem do que de tentar verificar comportamentos simbólicos característicos de certos grupos, socialmente padronizados e/ou repetitivos. Ou seja, trata-se de colocar em evidência as séries de operações e relações, bem como os tempos e espaços específicos e variados que fazem com que possam ser inferidas instabilidades nos estados das coisas. ***** Meu interesse pelas imagens de santo deriva da minha bagagem de reflexões sobre o culto a essa categoria de divindades. Tanto em minha monografia de conclusão de graduação em Ciências Sociais (GOMES, 2008), quanto em minha dissertação de mestrado em Antropologia Social (GOMES, 2011), abordei a devoção a Padre Libério13, que ainda em vida foi considerado santo e após sua morte continua sendo cultuado a partir de Leandro Ferreira, uma pequena cidade do interior de Minas Gerais. Esses exercícios de análise consistiram na circunscrição da ampla problemática da santidade – fenômeno observável na maior parte das grandes religiões e vulgarizado, principalmente, pelo Cristianismo e, em menor medida, pelo Islamismo (VAUCHEZ, 1987) – ao entendimento de como sentidos universais e hierárquicos característicos à Igreja Católica são vivenciados localmente na atribuição de santidade. Analisar as diversas materialidades envolvidas na devoção pesquisada implicou atrelá-las a um repertório complexo de práticas em torno de coisas que não apenas representam pessoas, e sim as representificam14. Esse processo envolve manipulações, que podem tornar a imagem, em sua ampla possibilidade de escalas e variações, um monumento, uma lembrancinha, uma 13 14 * Lagoa Santa, MG, 1884 † Divinópolis, MG, 1980. Há uma extensa bibliografia sobre esse debate. Aqui não será o caso de passá-la por completo em revista, mas trazer elementos, em diálogo com parte dessa literatura – localizada principalmente nas reflexões de Brown (1982), Vernant (1992; 1973), Belting (2010; 2007), Ginzburg (2001; 1989), Freedberg (1992) e Bazin (2008) – que contribua para a construção da problemática da pesquisa. 30 recordação, um objeto milagroso, um meio de provar que o santo é mesmo poderoso. Durante todo o processo daquela pesquisa me deparei com a temática dos objetos, que problematizei de modo mais específico no capítulo 4 da Dissertação, mostrando como eles atuam no sentido de construir e atualizar a potência do santo. Nesse sentido, medalhinhas, santinhos, imagens tridimensionais, fotografias, ex-votos etc., foram analisados como coisas que, 1) imiscuídas em relações de devoção, podem carregar consigo a presença milagrosa do santo e 2) circulam através de transações sustentadas por uma moralidade que coloca em relevo as particularidades do comércio de artigos religiosos, no qual as negociações são frequentemente avaliadas segundo princípios e valores que ultrapassam interesses entendidos como meramente econômicos. Ou seja, mesmo quando os objetos são mobilizados em contexto religioso, para analiticamente lhes restituir o caráter de fato social total (MAUSS, 2003) é preciso colocar em suspenso a ideia de que possuam uma natureza intrinsecamente sagrada. Assim, também nos desenvolvimentos da Tese busco, ao invés de apartar atividades econômicas e sagradas, mostrar como elas convivem de modo ambíguo e permanente, de modo a explorar, como sugerem Arjun Appadurai e os demais autores da coletânea A vida social das coisas ([1986] 2008), as potencialidades de certas imprecisões e hibridismos. Foi nessa produção conjunta de antropólogos e historiadores, e através da noção de “biografia cultural”, que Igor Kopytoff precisou como o entendimento de algo como “coisa” ou “pessoa” varia de acordo com os contextos históricos e culturais. O que é comum, substituível e mercantilizável pode se singularizar, adquirir estatutos particulares e circular por meio de transações sustentadas por uma “economia moral”15. O autor tematizou processos sociais que estabelecem o que pode ser negociado como mercadoria e o que deve ser resguardado da comoditização que, por sua vez, constitui um momento específico na trajetória das coisas no qual seu potencial de troca de troca é destacado, e não uma condição permanente. É esse quadro conceitual que possibilita Patrick Geary (2008; 1990) falar em commodities sagradas, iluminando processos de circulação de relíquias, partes dos corpos dos santos ou de coisas que estiveram em contato com eles (as chamadas relíquias de contato). O caráter móvel e fragmentável conjugado ao poder das coisas impregnadas de santidade de incitar o estabelecimento de novos locais de culto – visto que eram percebidas no período medieval como os próprios santos vivos – transforma as relíquias em mercadorias de luxo e 15 E. P. Thompson (1998[1971]) já havia utilizado tal noção anteriormente, ao discorrer sobre os conflitos, ocorridos na Inglaterra do século XVIII, entre o tradicionalismo e a nova economia política que giravam em torno das Leis dos Cereais. Segundo o autor, nas revoltas por ele estudadas, a multidão apelava a costumes e normas morais que diziam como deveriam ser as relações recíprocas entre os homens; e que eram, por sua vez, perpassadas mais por um senso de justiça do que por valores financeiros. 31 prestígio. A extrema valorização incide então no modo de circulação: as relíquias roubadas são tidas como mais poderosas em relação àquelas ganhadas ou compradas, pois se entendia que o próprio santo havia autorizado o furto bem-sucedido. Isso também era válido para outra importante forma de presença que nasce em relação ao corpo do santo, mas que tem a faculdade de se autonomizar em relação a ele: a imagem. Nas reconstituições biográficas de coisas que têm a faculdade de serem personalizadas; e de pessoas, que por seu turno, podem viver momentos em que são „coisificadas‟, não se tem objetos apartados dos sujeitos, posto que estas condições podem integrar uma mesma trajetória. Em vista disso, essa perspectiva é relevante não apenas por questionar a concepção corrente que, de maneira automática, atribui o caráter de dádiva a elementos que compõe alguns universos, como o “religioso”, em contraposição às mercadorias provenientes da esfera “econômica”, mas por abarcar questões sobre a imagem religiosa cristã que são pouco presentes nas discussões antropológicas contemporâneas em torno dos objetos. Apesar da existência de uma crescente produção antropológica centrada em museus, colecionamento, objetos e patrimônio, esta tem se voltado, como aponta José Reginaldo Gonçalves (2007), à discussão sobre os limites da representação etnográfica do “outro”, a saber, os grupos tradicionalmente estudados pela disciplina16. Com efeito, a necessidade de uma antropologia das imagens tem sido postulada no âmbito do debate historiográfico em torno da iconografia religiosa e contrapõe-se aos procedimentos analíticos consagrados pela História da Arte. Assim, para além da estética, produção, evolução e estilo, estes autores conduzem suas reflexões em direção à função, aos usos, à recepção, enfim, às interações com as imagens, de modo a explorar o potencial delas de produzir efeitos nas pessoas em diferentes contextos e períodos. Em Semelhança e Presença: a história da imagem antes da era da arte, Hans Belting (2010) afirma que o cunho religioso das imagens não é mais autoevidente porque elas passaram por uma desvalorização ontológica mediante uma nova estética que surge no fim do período medieval, quando há uma “crise da imagem” e seu valor estético se torna muito maior que o religioso. Segundo esse autor, seria o início da “era da arte”, quando então surgem as imagens “artísticas” executadas por alguém com conhecimento das regras da arte e que contaria com relativa liberdade de criação, que o permitiria representar o que tinha em mente, tornando presente uma ideia. Jean Claude Schmitt (1996, 2007) propõe o uso do termo imagem, ao invés de arte, de forma a salientar a amplitude de significados presentes na “cultura do imago” medieval, um repertório complexo de concepções de mundo que inclui a arte, mas vai além dela, ao abarcar também as 16 A esse respeito, ver Clifford (1988) e Price (2006). 32 imagens materiais desprovidas de qualidade artística (como os ex-votos e certas relíquias), além de imagens mentais, sonhos, visões, descrições etc., das quais os homens não conservam senão os traços fugidios, escritos ou figurativos e que muitas vezes se conectam de, alguma forma, com as imagens materiais. Esse alargamento leva em conta a participação de valores estéticos no funcionamento de coisas religiosas, mesmo antes da consolidação da atual acepção de "arte", mais ligada à visualidade e abarcadora de uma matriz de relações sociais que começa a se delinear com o Renascimento. Isto posto, podemos dizer que ao falar de uma “cultura visual” no medievo, Schmitt dissolve a ideia do uso das imagens nesse período como unicamente ritualístico. Uma antropologia das imagens contemporâneas que leve a bagagem gerada por essa complexificação a sério precisa ter em conta que as obras em questão sempre, de algum modo, portaram múltiplos sentidos e, portanto, uma análise linear no qual elas passariam de objetos de culto a obras de arte é descabida. Em direção semelhante à proposição de Schimitt de dar relevo ao “corpo das imagens” em si – em vez de tomá-las como símbolos que remetem a outras coisas – Jerome Baschet (2006) propõe a noção de “imagem-objeto”. Por essa noção, o autor problematiza tanto o caráter de objeto das imagens, quanto sua dimensão ornamental, tendo em vista que esta sabidamente influi na eficácia da imagem enquanto sagrada. ***** Após me instrumentalizar com a literatura e discussões acima enunciadas, continuei perseguindo a questão dos objetos religiosos durante o estágio de Doutorado-Sanduíche no exterior que realizei em 2014. Essa experiência possibilitou colocar os dados que produzi em perspectiva pela participação em fóruns diversos. A reflexão sobre as alianças entre criações (sejam elas representações materializadas ou mentais) e crenças (o que elas revelam ou não do religioso) e os princípios, comuns ou divergentes, que motivam essa elaboração foi o mote da minha participação no Laboratoire d’Anthropologie et d’Histoire de l’Institution de la Culture (LAHIC)17. Importante ainda ressaltar a participação em atividades desenvolvidas em museus, loci privilegiado de reflexão sobre a biografia dos objetos. Na École du Louvre, por exemplo, travei contato com a ideia de “vida dos objetos” de Maurice Rheims (1959), que, muito antes do método preconizado por Kopytoff e Appadurai, abordou como as coisas se travestem de diversos significados ao longo de seus “passeios” (promenades) pontuados por flutuações de valor. No Musée Quai Branly, tendo como leitmotiv a apresentação de um objeto da coleção da instituição, os 17 Conveniado ao CNRS – Ministère de la Culture. Fui supervisionada por Giordana Charuty, a partir da École Pratique de Hautes Etudes (EPHE). 33 participantes da mesa-redonda Biographies d'objets: un partage de méthode debateram o método de trabalho de antropólogos e historiadores em torno das “carreiras” e “biografias” dos objetos. Nessa mesma instituição, também assisti algumas sessões do seminário La valeur des choses: collections, sélections, préservation, conduzido por Luc Boltanski e por Arnold Esquerre. Estes pesquisadores se interessam pelos dispositivos de mise em valeur associados a diferentes maneiras de colocar as coisas em circulação, em especial, a coleção. Os objetos colecionados, nessa perspectiva, não estão isentos de serem reapropriados, “mudarem de mão” e serem colocados em circulação como mercadorias, ações que envolvem reconfigurações de dispositivos (BOLTANSKI; ESQUERRE, 2014) e acionamento de justificações (BOLTANSKI; THEVENOT, 1991). Os trabalhos apresentados no colóquio internacional Spécimens de collection - collecter et collectionner par delà de nature et la culture, realizado na École du Louvre e no Institut National d'Histoire de l'Art (INHA) destacaram as conexões entre as coleções naturalistas e as coleções etnográficas, arqueológicas ou artísticas. A discussão sobre coleta, nesse sentido, abarcou também aquelas de colecionadores privados e de museus. Os pesquisadores enfatizaram a necessidade de desestabilizar a oposição entre esse tipo de busca por objetos e a aquisição de obras de arte, mostrando como aspectos “estéticos” e “científicos” operam em ambas as modalidades. Saliento, por fim, minha participação no Séminaire International d’été de Muséologie Muséologie des édifices religieux: du lieu de culte à la salle de musée, realizado na École du Louvre. O evento foi particularmente relevante, posto que se centrou na transformação de lugares de culto em espaços museológicos, questão cara a essa tese. Tratou-se, portanto, de uma oportunidade ímpar e intensa em torno de diversos contextos de apresentação de objetos religiosos18. Muitos deles, por serem distantes do meu histórico de vivência e pesquisa, se mostraram importantes para que eu tivesse dimensão de casos-limite que não teria colocado em perspectiva caso não participasse da iniciativa. Por outro lado, nas sessões em que o foco das discussões era os objetos que povoam os edifícios religiosos, houve grande interlocução com os dados que tive a oportunidade de apresentar para meus colegas. Foi nesse contexto que minha pesquisa, até então pensada em torno da circulação de objetos religiosos, tornou-se uma proposta de reflexão sobre a „peregrinação‟ das coisas. Por meio dessa noção, passei a pensar os processos envolvidos nos deslocamentos de objetos outrora envolvidos em relações de devoção como „ritos‟ que buscam instituir novos status para as coisas. ***** 18 Capela do Museu Arts e Metiers, Basílica de Saint-Denis, Castelo de Angers, Museu de Arte e História do Judaísmo, Catedral de Notre-Dame de Paris, Saint Chapelle, Instituto de Teologia Ortodoxa e Igreja Saint Serge, Oratório do Louvre, Grande Mesquita de Paris, Museu Nacional de Artes Asiáticas Guimet e Sinagoga Buffault. 34 Apesar de ter enunciado que os significados de imagem são múltiplos e nem sempre coincidentes, as que colocarei em evidência são principalmente aquelas que ganham corpo em forma de escultura. A grafia do termo em itálico, a partir desse ponto da tese, sinaliza essa mobilização específica dentre as várias possibilidades de materialização das divindades. O acionamento dessas demais possibilidades será sinalizado. Segundo Hans Belting, “na história pictórica de Cristo e dos santos, o retrato, ou imago, sempre teve maior valor do que a imagem narrativa, ou história” (BELTING, 2010, p. 11, itálico no original). A despeito dessa hierarquização, a iconografia de uma imagem tradicionalmente inspira-se na hagiografia do santo, os escritos sobre sua trajetória. Esse tipo de fonte de informação serve como modelo de vida virtuosa e pode se consubstanciar na forma de alguns atributos, objetos simbólicos que, na imaginária, ajudam a identificar a invocação de um santo. Os santos que triunfaram como mártires, por exemplo, costumam carregar uma palma, que se configura, portanto, como um atributo coletivo. Os atributos pessoais relacionam-se a episódios específicos da vida ou morte de um santo, como os instrumentos de seu martírio, possibilitando sua identificação, ou seja, certos atributos individualizam, de forma a tornar certas figuras inconfundíveis e outros associam grupos de santos: mártires, virgens etc. As imagens também podem, por seu turno, “inspirar visões que serão em seguida transmitidas pela hagiografia escrita, que por sua vez poderá suscitar novas imagens.” (BOESCH-GAJANO, 2002, p. 461) O corpo do santo, nesse caso, é o ponto de partida de uma [nova] tradição hagiográfica. Esse é o caso da imagem em terracota de Nossa Senhora da Conceição encontrada em 1717 por pescadores em um rio no interior de São Paulo e que após essa aparição se torna, em 1931, Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Desta feita, se em alguns quadros teóricos, o significado iconográfico pode ser irrelevante, posto que diz respeito a convenções que nem sempre influem na realidade social em análise (como na sugestão de Gell (1988), por exemplo), é difícil pensar a interação entre pessoas e santos sem considerá-la, pois ao colocar certos sinais da santidade em evidência, as imagens influem em experiências de natureza estética e/ou religiosa. Juntamente com Hans Belting (2010), é preciso ressaltar que a imagem não é apenas retrospectiva – ou seja, estandartiza episódios específicos da vida ou morte de um santo, possibilitando tanto sua identificação, quanto rememoração – mas também contém uma dimensão prospectiva. Nesse sentido, a iconografia pode ser preciosa não por remeter a convenções estanques, mas justamente pelas potencialidades de sua ambivalência, como será visto ao longo da tese. 35 Outra forma de imagem relevante neste trabalho, e que carece de uma introdução preliminar, é o ex-voto. O termo ex-voto deriva-se da forma latina ex voto suscepto, que remete a uma delimitação preliminar de algo ofertado em reconhecimento a uma promessa ou voto realizado ou a uma graça recebida independente de pedido. Em outros trabalhos (GOMES, 2013; 2011) mostrei que os objetos votivos não se resumem a pagamentos endereçados aos santos em troca de favores. Além de gratidão, eles também podem materializar pedidos, mas, sobretudo, são corroborações do vínculo santo-devoto19. A realização de uma romaria ou a construção de um templo, por exemplo, podem ser efetuadas à guisa de ex-voto. Todavia, na presente pesquisa, estão em questão os ex-votos que ganham a forma de objetos depositados em locais sagrados e, posteriormente, deslocados deles. Tais locais sagrados podem ser túmulos, cruzeiros e, principalmente, espaços específicos de igrejas e santuários, chamados de “Sala dos Milagres”, “Quarto da s Promessas”, “Casa dos Milagres” e outras denominações afins. A ação criativa que interessa aos colecionadores é resultante de procedimentos técnicos realizados para gerar uma representação plástica ex-votiva. Não se trata da utilização de uma coisa já existente, mas da manipulação de matérias-primas – madeira, gesso, isopor, metal, osso, papel, tecido, argila etc. – para criar um objeto concebido exclusivamente para ser ex-voto. No bojo do contínuo jogo de aproximação entre religião e arte no qual se inserem as imagens que virão a lume na tese, a atenção à corporalidade própria das obras é fundamental para entender os percursos dos processos de movimentação delas. Por isso mesmo, por mais que em alguns momentos, o destaque as características físicas de figuras – descritas, por exemplo, como atarracadas, longilíneas, bojudas etc. – soe lombrosiano, ele se faz necessário para colocar em evidência não só os atos em torno dos corpos das imagens, mas como certas formas desses corpos configuram e reconfiguram as transações trazidas à baila. ***** O sentido do termo “voto” abordado na etnografia de Carlos Steil (1996) é pertinente para elucidar minha argumentação: “Embora em várias situações o voto possa ser usado como sinônimo para promessa, foram poucos os romeiros entrevistados que afirmavam estar pagando promessa. A maioria falava apenas que tinha um voto para com o Bom Jesus. Ao que parece, na compreensão dos romeiros, a promessa si gnifica um compromisso de curto prazo ou de uma dívida que pode ser paga, sustando o contrato. O voto, ao contrário, tem a conotação de uma relação mais permanente que compromete o romeiro com o Bom Jesus por uma longa duração de tempo. (STEIL, 1996, p. 100). 19 36 Essa tese foi estruturada em seis capítulos, além dessa introdução e de uma sessão referente às considerações finais. No primeiro, intitulado Em busca de caçadores de imagens, abordo os locais onde iniciei a realização da etnografia, nos quais fui confrontada a diferentes tipos de imagens, formas de buscá-las e mostrá-las. Apresento os agentes com os quais travei contato e mostro como em algumas interações também me relacionei com pessoas que seriam mais „cuidadoras‟ do que „caçadoras‟ de imagens. Mostro como elas me possibilitaram entrever os limites sobre quem pode ver e manipular os corpos dos santos, bem como a ênfase na importância do “olhar treinado” no âmbito do relacionamento com as obras. Seguindo essas pistas, no segundo capítulo – Olhos de santos e de quem os vê – explicito como a necessidade de “ter olho” permeou a montagem de uma exposição de presépios. Em seguida, discuto a relevância de diferentes tipos de olhar: o que a imagem lança em direção ao devoto, decorrente de artifícios técnicos particulares; o que o colecionador e outros tipos de connaisseurs lançam em direção às obras de arte e, como não poderia deixar de constar em uma tese de Antropologia, tematizo a minha mirada e como ela foi reorientada a partir das interações no campo. A partir do que qualifico de “Efeito Aleijadinho”, abordo como a atividade de identificação e/ou atribuição de autoria é também uma experiência visionária na qual o observador de uma imagem não é um espectador passivo de algo inerte. No terceiro capítulo, chamado As mãos e as imagens, discorro sobre as manipulações das imagens levadas a cabo tanto por colecionadores, quanto por devotos. As ações desses últimos, ao passo que potencializam a condição das obras de presenças sagradas, podem ameaçar as características físicas desejadas nos itens de coleção. As intervenções dos devotos nos santos incluem rituais que os ratificam como coisas sagradas, gestos voltados à manutenção da integridade dos corpos das imagens e, em alguns casos, sua mutilação deliberada. Por outro lado, mostro como a entrada de santos na coleção também pode envolver a mediação de certos ritos levados a cabo pelos colecionadores. O quarto capítulo foi nomeado „Prelúdio sobre a inventividade dos santos do sertão‟ por abordar as imagens e outras criações regionais – como os tipos nordestinos ou as cenas da vida do povo – principalmente em diálogo com o texto “Prelúdio do artista popular”, no qual Câmara Cascudo (1974) institui a figura do imaginário como antecessor do santeiro e este do escultor popular. Desse modo, argumento a respeito da participação de intelectuais – tais como os folcloristas – na „nordestinização‟ do corpo dessas imagens e na consolidação da presença da escultura popular no circuito oficial de arte. Apesar da autoria de tais obras abertamente derivar da relação dos escultores com as pessoas interessadas em suas criações, evidencio o tabu em torno das “encomendas” de peças consideradas estranhas ao universo de produção dos artistas, ou seja, que não digam respeito ao Nordeste e seu âmago, o sertão. 37 O quinto capítulo apresenta a linha de continuidade Da imagem ao milagre demonstrada por meu principal interlocutor e volta-se mais especialmente aos ex-votos. Para tanto, inicialmente exploro como Antônio Marques justapõe obras de diferentes naturezas de modo a afirmar a individualidade criativa de um artista. Assim, o colecionador demonstra que a imagem não é uma produção particular e que os mesmos artistas que produzem santos também esculpem outras coisas, principalmente os chamados milagres (nome nordestino do ex-voto). Tendo em vista a importância das distintas formas de encontrar, pensar e expor o ex-voto apresento o relevo dessas ações na literatura sobre arte popular, em catálogos e no mercado de arte. A partir disso, problematizo como os objetos em questão, já investidos de funcionalidade estética e expositiva em seu loci rituais, são atrelados a outros sujeitos e contextos criativos. Apresento ainda a etnografia da incursão pelos santuários realizada com vistas à organização de uma exposição do acervo de ex-votos de Antônio Marques. Sublinho as nuances entre as configurações das salas dos milagres, quartos dos ex-votos, sala das promessas e outros espaços equivalentes visitados e como a observação deles influiu na concepção da mostra Casa dos Milagres. No intuito de dar a ver As outras moradas dos milagres, no sexto e último capítulo me dedico à trajetória de ex-votos específicos. A reconstituição da sua biografia permite elucidar a dimensão de “coleta” que antecede a entrada de objetos no âmbito da coleção, lançando luz sobre suas distintas formas de apropriação em locais de culto, ateliês/oficinas de artistas e outros locais nos quais o fenômeno votivo irrompe. Trata-se de problematizar os gestos de coleta que levaram à formação da coleção de milagres, bem como a tônica dessa formação, valendo-me especialmente das situações em que os objetos mudam de mão. Por fim, apresento a Casa dos Milagres e busco explorar como o processo de publicização de parte da coleção fomenta questões que vão além do evidente aspecto de coroamento da carreira do colecionador. 38 1 EM BUSCA DE CAÇADORES DE IMAGENS Nessa parte inicial da tese apresento os locais onde iniciei a realização da etnografia, nos quais fui confrontada a diferentes tipos de imagens, formas de buscá-las e mostrá-las. Como aventei na introdução, comecei a pesquisa tendo em vista ‘caçadores de imagens’ como interlocutores típicos ideais. Entretanto, durante o percurso que será descrito, estive envolvida em interações nas quais um leque de ações que ultrapassa a procura pelas obras foi mobilizado, abarcando, por exemplo, a dimensão do cuidado. Exploro como fui me enredando no campo por meio de categorias, personagens, narrativas e segredos. Por fim, tematizo como essas searas me fizeram tanto entrever a importância do olhar no âmbito do relacionamento com as obras, quanto a reiterada demarcação de limites por meio dos quais se tenta estabelecer quem pode acessá-las, vê-las e tocá-las. 1.1 SANTOS-SOUVENIR Cheguei a Natal alguns dias antes da data que eu e Antônio Marques havíamos acertado para uma conversa. Aproveitei para conhecer o Centro de Turismo (CT), onde a galeria do curador ficava abrigada. O CT funciona desde 1976 em uma construção do século XIX que já funcionou como abrigo de mendigos, orfanato e cadeia pública. De modo geral, no andar térreo, cada loja ocupa uma antiga cela da prisão, como se fosse um box de “shopping de artesanato”, que é como são chamados os estabelecimentos da cidade que agregam comércios variados de “produtos regionais”. Nessa direção, encontramos nas cerca de quarenta lojas do CT, comidas típicas, garrafinhas de vidro transparente com desenhos feitos de areia colorida, peças em tecido bordadas e com aplicações de rendas, bolsas de palha, camisetas estampadas com nomes e imagens das praias da região, bijuterias e diversas mercadorias facilmente encontradas em outras regiões turísticas do litoral brasileiro: de imãs de geladeira a porta-retratos feitos com conchas. A estereotipia da maioria deles deixava claro seu caráter de “lembrancinha”, de souvenir, ou seja, de objetos bons para lembrar de um lugar ou de uma experiência. Além das coisas praianas mencionadas, também observei a presença de imagens de santos. Estas eram peças de aspecto rústico, modeladas em barro ou esculpidas em madeira, não pintadas, sem muitos detalhes e tinham de 10 a 30 cm de altura. Dentre elas, não tive muita dificuldade em reconhecer múltiplos exemplares de Padre Cícero e São Francisco. Eu sabia que a imagem de um senhor trajando batina, empunhando uma bengala e com chapéu na cabeça é Pe. Cícero, e que o homem magro vestido de hábito franciscano e segurando um passarinho é São Francisco. Notadamente são santos que movimentam milhares de pessoas que vão em busca deles em santuários espalhados pelo interior do Nordeste. 39 Enquanto souvenirs vendidos naquele Centro de Turismo, por seu turno, as imagens, mais do que um santo e um santuário geograficamente localizado em um local específico, fazem lembrar toda uma região e o fato dela ser fortemente vinculada a devoções. Interessante notar como estas conjugam no presente, santos que viveram em tempos e espaços distintos20 a ponto de torná-los mercadorias que coabitam o mesmo expositor em uma loja. Tendo em vista que a “geografia religiosa” do Brasil comporta “vários centros” 21, estar em Natal e no Rio Grande do Norte é estar sob o “raio de atuação” de santos representativos das devoções locais. O produto comprado para emblematizar a estada em terras potiguares, desta feita, pode ser um santo-souvenir. Assim, a presença de diversas imagens nas prateleiras indica que a forma material de certas divindades também é potente para conectar pessoas não só a seres sagrados, mas também a lugares22. Saindo do âmbito regional e adentrando nas particularidades da capital potiguar, o santosouvenir com vistas à própria recordação ou para dizer: “– Estive em Natal e lembrei de você” é, na verdade, um conjunto de santos e outros elementos que compõem uma cena da tradição cristã, a da natividade, materializada sob a forma de objetos nomeados presépios. Assim, as mercadorias que trazem representações religiosas associadas a Natal são as que exploram o vínculo do “descobrimento” da região da cidade ao nascimento de Jesus e ao dia dos Santos Reis. Os portugueses teriam chegado ao local que se tornaria a cidade de Natal em 25 de dezembro de 1597 e, preocupados com ataques indígenas e de corsários franceses, iniciaram a construção de uma fortaleza – o Forte dos Reis Magos – em 6 de janeiro, data consagrada aos Santos Reis. Por causa dessa associação, imagens de Belchior, Baltazar e Gaspar – os três reis que, segundo a tradição cristã, se orientaram por uma estrela-guia para chegar até o local onde Jesus nasceu – não estão presentes apenas no Forte em questão, mas também em dimensão monumental em um pórtico na entrada da cidade e em tamanhos reduzidos nas lojas de souvenirs. Tal associação confere a alcunha de “Cidade-Presépio” à capital potiguar, evidenciando outras representações para além daquelas em torno do litoral exuberante do destino turístico vendido como “Noiva do Sol”. Desta forma, nas prateleiras de lojas de lembrancinhas, quadros e cartões-postais de praias ensolaradas convivem com os objetos que reconstituem o nascimento 20 São Francisco (*Assis, Itália, 1183 † Assis, Itália, 1226) e Padre Cícero (*Crato, CE, Brasil, 1844 † Juazeiro, 1934). 21 Essa ideia é desenvolvida por Fernandes (1988) ao afirmar que o culto à padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida, só pode ser tomado como “devoção principal” no âmbito do Centro-Sul do Brasil: “devotos baianos voltam-se em primeiro lugar para Bom Jesus da Lapa, N. Sra. da Conceição da Praia ou o Senhor do Bonfim. A imagem controvertida do Pe. Cícero ainda domina no Nordeste. N. Sra. de Nazaré, em Belém do Pará, centraliza as atenções do Norte.” (FERNANDES, 1988, p. 88). 22 Stewart (1984) aborda o souvenir como exteriorização material de experiências realizadas fora do contexto familiar, como viagens, por exemplo. Para a ensaísta, certos objetos se revestem do poder mágico de evocar suas “cenas de origem”. 40 de Jesus. Além dos reis citados acima, participam da cena de adoração ao Menino-Deus bebê na manjedoura, seus pais José e Maria e, muito frequentemente, os animais que testemunharam a passagem bíblica da natividade em um estábulo. 1.2 SANTOS-OBRAS DE ARTE A forte impressão de produção em série que tive a respeito dos santos e outros souvenirs das lojas de artesanato do térreo se desvaneceu ao subir o lance de escadas que leva ao 1º andar, onde ficava a ampla Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas. Ao se voltar para o salão, o visitante depara-se com janelas ao fundo que oferecem uma bela vista para o mar e para o rio Potengi e, diante destas, balcões, vitrines e outros suportes sobre os quais eram expostos livros, antiguidades, quadros e outras coisas de natureza diversa, mas certamente os objetos religiosos – crucifixos, imagens de santos, ex-votos etc. – figuravam não só em maior número, como também com maior destaque na configuração espacial do local. Logo após chegar à Galeria me deparei com uma estrutura expositiva constituída por uma cavidade na parede protegida por um vidro, cujo interior contava com iluminação própria que recaía sobre diferentes objetos. Alguns deles remetiam aos elementos relacionados à cidade de Natal e explicitados anteriormente, como um quadro com paisagem litorânea e um conjunto de Reis Magos esculpidos em madeira, que estavam acompanhados de outros que destoavam dos que eu já tinha visto até então no CT: uma escultura em forma de pássaro, uma imagem de Santo Expedito, uma de Santa Luzia (faltando uma das mãos) e um vaso de porcelana branca pintado com motivos florais. Os objetos pareciam ser antigos e singulares, pois não se repetiam e estavam linearmente expostos de modo a fazer o olhar do visitante pousar neles, uma vez que não havia outros ao seu redor. Figura 1 – Expositor de objetos variados na Galeria do Centro de Turismo (CT) Foto: Acervo da autora, fev. 2012 41 Outra estrutura expositiva que ressaltava a distinção das mercadorias da galeria em relação às das lojas de artesanato eram armários ao estilo “cristaleira”, feitos de madeira, com prateleiras e portas de vidro e fundo recoberto com espelho, ao contrário do expositor descrito acima, nesses móveis, a quantidade de santos era maior. As imagens eram diferentes em suas formas, mas semelhantes em termos iconográficos, havia, por exemplo, uma prateleira só com São Sebastiões e quando me defrontei com ela a impressão primeira foi de que eu estivesse diante de um exército composto por diferentes imagens do santo ferido com flechas e amarrado a uma árvore. Para que uma delas fosse tocada, era preciso destrancar o móvel onde estavam expostas. Figura 2 – Expositor de imagens na Galeria do CT Foto: Acervo da autora, fev. 2012 As imagens de santo maiores eram protegidas por redomas e algumas eram exibidas em prateleiras e pedestais que não ofereciam qualquer barreira entre elas e os visitantes. Crucifixos e quadros estavam expostos ao longo e rente às paredes. Certos santos grandes, vistosos e coloridos, contendo detalhes dourados, contrastavam com peças em madeira presentes em alguns nichos. O fato dessas últimas não serem pintadas me fez associá-las brevemente a alguns dos santos-souvenirs, por também apresentarem a matéria-prima não recoberta de tinta. Entretanto, ao chegar mais perto era possível ver que esses santos eram mais elaborados: as vestes davam ideia de movimento, as formas eram sinuosas, sendo que as imagens compradas nos locais que vendem lembrancinhas eram mais rígidas, ‘quadradas’. Como não havia anteparo que me impedisse de tocar esses santos, levantei um deles e vi uma pequena etiqueta indicando quanto custavam: R$ 600,00, já um santo de porte similar, comercializado enquanto souvenir, poderia ser comprado por R$ 50,00. 42 Ao lado do nicho dedicado às peças de madeira ‘nua’ havia uma estante cujas prateleiras superiores continham diversos ex-votos. Com exceção da representação de uma garrafa de cerveja feita em barro e de um pequeno quadro com uma figura feminina, as peças em madeira reproduziam o formato de partes do corpo humano, algumas delas com feridas: cabeças, seios, pés, pernas, coração, mão. Como pode ser visto na foto abaixo, em uma mão de madeira era possível ver uma etiqueta adesiva contendo numeração da peça e preço: R$ 35,00. Os ex-votos não pareciam novos e sem uso, como os santos do nicho descrito acima e os dizeres do pequeno quadro, inclusive, apontavam para local, motivação e ano da oferta: “Cruz da Menina - PB/Graça Alcançada/2009”. Figura 3 – Ex-votos expostos na Galeria do CT Foto: Acervo da autora, fev. 2012 A comercialização de ex-votos aparentemente ‘usados’ me deixou bastante espantada, pois no contexto de minha pesquisa anterior (GOMES, 2011), uma vez ofertados, tais objetos tornavam-se inalienáveis. Porém, ressalta-se também que alguns trabalhos (SOUZA, 2012; SEGALA, 1999) mencionam a venda e mesmo o aluguel (CABRAL, 1997) de ex-votos realizados pelos próprios santuários receptores das ofertas. Assim, os objetos podem ser oferecidos novamente aos santos, gerando renda para a instituição onde eles ‘moram’. 43 A circulação possibilitada pela galeria, entretanto, parecia envolver outros agentes. Devido à plasticidade das obras, utilizá-las como decoração não me parecia um objetivo descabido, salvo para os exemplares com representações de feridas e de sangue, na minha opinião, um tanto quanto mórbidos. Meu estranhamento não se deu em relação às peças em si, mas ao fato delas estarem à venda. Nas prateleiras abaixo daquelas que abrigavam os ex-votos estavam dispostas várias pequenas imagens cuja exposição como mercadoria também me surpreendeu. Eram santos mutilados, alguns sem cabeça, sem rosto, com mãos quebradas e com a pintura bastante desgastada. anunciava Atrás que “PROMOÇÃO delas elas – um estavam cartaz em FRAGMENTOS”. Por que alguém se interessaria por um santo desfigurado, mesmo que por um valor modesto? Figura 4 – Fragmentos em promoção na Galeria do CT Foto: Acervo da autora, fev. 2012 De acordo com o que aprendi em minha socialização no catolicismo, imagens quebradas não devem ficar no altar, pois trazem azar, tampouco devem ser jogadas no lixo. A recomendação é que sejam deixadas em locais sagrados – tais como capelas – ou lançadas em água corrente. O que estariam fazendo então na prateleira de uma galeria? Excluída a possibilidade de aqueles santos serem comprados por seus devotos, também não fazia sentido imaginá-los enquanto item decorativo. Tampouco como algo a ser restaurado, posto que a degradação parecia avançada demais para uma recuperação exitosa das formas. Essas peças anunciadas sob o apelo de uma “promoção” não apresentavam indicações de quanto custavam. Já outras da Galeria continham discretas etiquetas com preço. Nas proximidades de algumas havia um código. Dessa forma, para saber o valor da maioria das obras, era necessário consultar o funcionário do estabelecimento, que por sua vez se valia de um catálogo. O procedimento era muito diferente daquele das lojas de artesanato, pois em algumas delas o preço evidente era um chamariz para o turista que passeava pelo local. No caso da galeria, o conhecido 44 artifício de comerciantes de não evidenciar o valor de coisas caras para não espantar os potenciais clientes cujos olhares foram capturados, se reveste de esforço de esfumaçar a própria condição de mercadoria daquilo que é vendido e exposto, antes de tudo, como obra de arte23. Essa forma de “entronizar” mercadorias de luxo e da moda, colocando “arte a serviço do comerciante”, nos termos de Benjamin (2006, p. 43), é uma “fantasmagoria da cultura capitalista” que alcança seu ápice nas exposições universais realizadas na Europa no final do século XIX. Nessa perspectiva, ao lançar o olhar para as “passagens” e “moradas de sonho” da cidade moderna, o autor relaciona lojas, galerias e pavilhões de exposição que precisam colocar o que vendem – quer sejam mercadorias, quer seja o poder do Império – ao alcance dos olhos dos passantes, para que eles se entreguem por distração (e não necessariamente comprando). Para que tal ‘captura’, enquanto meio de entretenimento, se efetivasse, os estabelecimentos se valeram do avanço nas técnicas de iluminação artificial e da larga utilização arquitetônica do ferro e do vidro. As inovações técnicas e mercadológicas em questão seriam, na opinião do autor, armadilhas da idealização do progresso. No famoso texto de Benjamin (1987), A obra de arte na era da reprodutibilidade técnica, ele aborda como a arte laica não se destaca completamente do culto mágico e religioso. Apesar disso, a reprodutibilidade é sempre uma ameaça de perda de “aura”, pois envolve o risco da perda do caráter de “aparição”, de “ocorrência única” característico das coisas rituais. Nessa perspectiva, as coisas autênticas e únicas têm “valor de culto”, ao passo que aquelas não tão singulares possuem “valor de exposição”. Essa conceituação é interessante para pensar algo que está sendo oferecido como mercadoria, mas que não pode ser exatamente mensurado em termos de valor de uso e ou de troca (MARX, 1988), uma vez que há uma separação (mesmo que temporária) da esfera da utilidade e não se mede uma força-trabalho. Ao cotejar análises marxistas e ensaios benjaminianos é importante lembrar que os objetivos dos autores ao tratarem de valores eram bem distintos e também que não necessariamente coincidem os objetos/mercadorias aos quais se referiam. Entretanto, como em Benjamin, as técnicas modernas de reprodução desestabilizam, mas não eliminam o “valor de culto”, prossigo em diálogo com esse autor. A possibilidade de pensar em termos de combinação e/ou ambiguidade (em vez da oposição) de valores é importante para tematizar coisas que desde o início eu procurava nem exclusivamente como arte, nem como religião. 23 Comecei a notar tal prática ao observar uma exposição no Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro (antes do meu embarque para a viagem de campo em tela). Logo após a escada rolante que leva ao segundo andar, no hall através do qual se chega ao embarque, me deparei com um conjunto de imagens de santos variadas. Tratava-se de um panteão esculpido por “santeiros de Pernambuco”, exposto por uma loja de arte popular que funciona no local. Como ressaltei em relatório de pesquisa, a presença de um livro de assinaturas, a denominação da forma de mostrar como “exposição” e a ausência de preço nas peças ressaltavam a condição dos santos enquanto obra de arte e pouco dizia sobre o caráter de mercadoria deles. 45 ***** Dias depois do primeiro contato não mediado com a Galeria, me encontrei com seu proprietário. Se a tônica da minha primeira ida ao local foi de passeio e distração, na conversa com Antônio Marques, que se iniciou enquanto nos deslocávamos para o CT, fui orientada a me concentrar em aspectos específicos, com sugestões do tipo “Isso é importante você tomar nota” ou “preste atenção naquilo”. Conversamos na companhia de inúmeros exemplares de São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, Santa Luzia, São Benedito, São Miguel Arcanjo e outros santos que agora posso mencionar pelos seus respectivos nomes porque foram apresentados a mim por Antônio. Aí aqui vêm todos esses santos pequenininhos, muitas vezes, a pessoa anda com esse dentro do bolso. Esse é um Santo Onofre, que aqui é muito cultuado, porque... dizem, ele anda com isso aqui, é um saquinho, cheio de farinha, quem tem ele em casa não falta farinha. Mas essa não é a verdade. Ou melhor, é uma versão. A verdade dele mesmo é que ele é um santo que leva um oratoriozinho aqui e sai de casa em casa pedindo ajuda para um santo. E a ajuda vai botando dentro do saco. Isso é um santo de esmolar. Mas o povo não interpreta assim. [Essa imagem] É Nossa Senhora da Conceição. É outra coisa, você anote isso aí, você precisa ver a santa e saber. Nossa Senhora da Conceição sempre é representada com anjos e de mão posta. Isso aqui são louros e isso aqui não são chifres, são luas. É a lua e ela está subindo ao céu levada por esses anjinhos. Isso também é fundamental, não adianta você fazer um estudo de santo sem você saber quem é Nossa Senhora da Conceição, do Carmo, das Dores. Tem que saber e é ótimo saber isso. Você vai fazer uma viagem. Vem ver logo aqui uma das Dores. A “viagem” pela iconografia dos santos, quando guiada pelo galerista, nos leva ao encontro de Santo Onofre, que é um santo que esmolava e, numa “versão” alternativa, é utilizado para não faltar comida em casa. Nossa Senhora da Conceição tem anjos e um crescente lunar sob os pés, mas a lua que leva a santa ao céu é popularmente chamada de chifres ou ainda cornos do diabo. Um mesmo atributo, como fui levada a perceber, pode ter um significado de acordo com a ortodoxia católica e outro segundo a interpretação popular. Entretanto, é importante considerar que ambas as leituras caracterizam invocações específicas. Essa santa é provavelmente europeia, provavelmente portuguesa, essa é provavelmente de Pernambuco. Tudo eu sei pelo estilo. Essa é portuguesa, com toda certeza, por esse tipo de pedestal bem elaborado. Mas eu ainda penso que essa santa tem alguma coisa de italiana... Aí você vê que é um santo muito próximo da arte grega. Olha, já a arte baiana como é nordestina. Essa [Nossa Senhora] das Dores com cara de choro, ela é representada assim porque está apontando pro coração. Em geral, a coroa dela tem 7 estrelas, são as sete dores, sete espadas. Você vê um trabalho fino de pintura, todo original. 46 A iconografia de Maria varia ao longo das fases de sua vida. Nessa direção, a mãe de Jesus pode ganhar corpo em uma imagem sendo elevada aos céus por anjos e pela lua ou tendo o corpo dilacerado pelas dores causadas pelo sacrifício de seu filho, que ganham a forma de estrelas em sua coroa ou espadas que lhe traspassam o coração. Não bastassem as diversas possibilidades de representações da carga dramática da invocação em questão, eu deveria ver estilo, região de produção, trabalho fino de pintura... Essa santa é provavelmente baiana, eu também conheço pelo estilo, pela maneira de pintar, pelo pedestal, você vê que ela não é pernambucana e nem mineira. Ele tinha algum adorno na cabeça, mas certamente perdeu-se quando eu consegui, mas isso não quer dizer que eu não arranje um outro, porque esses adornos viajam muito. Uma pessoa chega, tira, vende, coloca outro, manda derreter porque é ouro, então é muito difícil você encontrar... Só quando você encontra em uma capela, que é muito conservada, que a dona tinha muito zelo, aí você encontra tudo. O menino [Jesus] também viaja muito, esse aqui é dele, mas é muito raro o menino do santo. Ele é solto, fácil de levar, aí as pessoas levam até porque existe uma tradição de, se você é solteira e leva um menino desse, você diz “olha, eu lhe devolvo, quando você me casar”. (grifos meus) Como se pode perceber nos trechos acima, por cada imagem que passávamos, o volume de informações era imenso. O galerista não só identificava o santo, mas também as técnicas utilizadas em sua fabricação, os atributos presentes e os ausentes (devido à perda, furto, quebra, degradação) e a possível origem da peça e de seus donos. Não foi simples acompanhá-lo, tentando abstrair aspectos específicos – como um rosto de traços europeus ou nordestinos – face ao intricado mosaico de elementos que acompanhava cada santo. A informação sobre a procedência também implicava numa série de elementos, pois as imagens não vinham de um único fornecedor. Os santos antigos são aqueles “encontrados” em fazendas e outros locais, principalmente no interior do estado, ou seja, quando chegavam à galeria já tinham sido utilizados enquanto objetos de culto e por não terem sido produzidos como objetos artísticos, não eram atrelados a autorias específicas. Já as imagens de fatura mais recente, as peças em madeira ‘nua’ que descrevi acima, eram buscadas diretamente nos ateliês de “artistas da terra”. Em vista disso, não tinham sido expostas e utilizadas para fins devocionais antes de serem mostradas como uma obra à venda. Diferenciavamse dos santos antigos pela ausência de policromia, ou melhor, os ‘santos novos’ não eram pintados e sua aparência mais exterior de madeira ‘ao natural’ lhes conferia um aspecto rústico. 47 Porém, na galeria também havia santos fornecidos diretamente por artistas, ou seja, ‘santosnovos’, que, no entanto, diferenciavam-se dos acima descritos por serem policromados, revestidos com folhas de ouro e possuírem formas eruditas, ou seja, não eram santos usados, mas foram produzidos “ao estilo antigo”, inspirados nas técnicas de fabricação e no estilo barroco24. Após serem adquiridos, eles podem passar por processos de “maquiagem”, como por exemplo, serem enterradas, expostos a cupins e revestidos com materiais que lhes confiram a aparência de envelhecidas semelhante à das peças do século XVIII. De acordo com meu interlocutor, a “sensibilidade” para detectar tais fraudes só pode ser adquirida através de anos de “contato” com obras25. A “barroquização das imagens” é vista com cautela não só por produzir imagens potencialmente maquiáveis, mas também porque muitos intelectuais acreditam que o “santo com cara de nordestino” é mais Figura 5 – Nossa Sra. da Conceição ao estilo antigo Foto: Acervo da autora, fev. 2012 autêntico. Antônio discorda. Assevera, entretanto, que o artista precisa ser muito bom para conseguir fazer uma imagem com técnicas utilizadas nos séculos passados, pois a execução delas é complicada. Ademais, ele conhece artistas que “se engessaram”, ou seja, minaram sua criatividade depois que passaram apenas a reproduzir modelos barrocos. E, de acordo com meu interlocutor, muitos “estudiosos” estariam por trás disso. Eu acho ridículo você dar a um santeiro um retrato de imagem pra ele reproduzir e tem muito estudioso que não assume, mas faz isso com frequência, encomenda santos totalmente europeus. Além de ficar parecendo uma fábrica, com aquele monte de peça parecida, enquanto que um artista bom não faz uma peça igual à outra. 24 Eu já havia observado exemplares de santos novos produzidos segundo estilo e técnicas “do passado” na “exposição” do Aeroporto Santos Dumont mencionada na nota anterior. 25 Abordo a questão da “maquiagem” de santos de forma mais detida no terceiro capítulo. 48 Outro fator que estaria levando à serialização das imagens, algo descrito como um “crime”, “uma coisa absolutamente grave” foi a implantação de “esboçadeiras”, as “máquinas de fazer santos”. Trata-se de equipamentos industriais que foram levados ao Nordeste (especialmente para Pernambuco) por meio de projetos de incentivo à produção de “artesanato”. Os santos são produzidos mais rapidamente e têm menor custo, mas não alcançam o nível de detalhamento do trabalho artístico realizado apenas pelo escultor com auxílio de algumas ferramentas básicas. De acordo com o galerista, os artistas que optaram por incluir as máquinas em suas rotinas de trabalho ficaram com sua produção “encalhada”, pois as peças resultantes são seriais e “não têm beleza”. Cabe salientar que a utilização da máquina não substitui completamente o trabalho do artista, mas que esse passa a ficar a cargo, sobretudo, do acabamento da peça cujo “miolo” é escavado pelo equipamento. Entretanto, o mais preocupante, na opinião de Antônio, é que tanto os artistas, quanto os vendedores das peças produzidas por eles, omitem que o santo tenha sido produzido com auxílio das esboçadeiras. O galerista afirmou ter alguns poucos exemplares desses santos e os utiliza como uma espécie de ‘grupo de controle’. Assim, quando um potencial cliente reclama do preço de uma obra singular esculpida sem o auxílio da máquina – como uma peça de R$ 6.500,00 que estava exposta na galeria – Antônio mostra a que poderia vender mais barato, mas tem qualidade tão inferior que ele prefere não comercializar. A conversa com o galerista foi importante para travar contato não só com suas atividades como marchand/comerciante, mas para entender porque tomei conhecimento da sua existência enquanto “curador”. Antônio também se apresenta como professor e estudioso de arte, inclusive em suas dimensões litúrgicas e socioantropológicas26. Foi, portanto, na singular posição de potencial interlocutor e de colega antecessor, que ele afirmou que minhas questões acerca da circulação de imagens de santos e outros objetos religiosos poderiam ser respondidas através do percurso de dois caminhos distintos: Você colocou a questão de visita a museus. É muito bom que você visite e conheça os museus. Mas, o que você vai encontrar no museu? Você vai encontrar uma arte, arte sacra, evidentemente, mas aquela absolutamente oficial, aquela consagrada, aquela que foi feita com essa intenção de ser sacra e religiosa. E isso faz, já é uma dica que eu estou 26 Sua formação advém de um bacharelado em Artes e de um mestrado em Ciências da Religião e Sociologia da Cultura pela Universidade de Louvain, Bélgica, para onde foi na condição de seminarista. Contudo, quando voltou ao Brasil não atuou como padre e ingressou na UFRN, onde foi professor de Antropologia Cultural para os cursos de Ciências Sociais e Artes, além de ter coordenado o Mestrado em Antropologia Social, bem como o Departamento de Artes, no qual se aposentou. 49 lhe dando, com que essa peça dificilmente seja assinada, porque o artista não tem necessidade de dizer: “essa peça é minha”. Então ele fazia aquela peça... o Aleijadinho, não me consta que ele tenha assinado peça. Se sabe que é dele por uma documentação externa à própria peça. O que é que faz que a gente reconheça uma peça de Aleijadinho? O estilo. Porque o Aleijadinho não estava construindo a obra dele, o trabalho dele como hoje se tem essa concepção. Você não vai publicar sua tese sem ter seu nome, porque você está construindo seu trabalho. Mas se você tivesse fazendo e fosse uma beata, uma religiosa da igreja, há 300 anos atrás, seu nome estava eliminado, o que contava era o conteúdo de sua obra. O Aleijadinho, como ele tinha contrato pra fazer aquilo, talvez ele seja dos únicos que tem a documentação que possa dizer, porque ele teve um contrato “santo tal, para igreja tal, Nossa Senhora do Carmo”. Então essas peças de museus, até agora que eu sei, de museus brasileiros, você só vai encontrar peça do que se chamaria arte religiosa, mas uma arte mais para erudita, ou pelo menos arte oficial. Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei se vale a pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese hoje sobre Aleijadinho? É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre o Aleijadinho que se você quer explorar um campo novo... A não ser que você pegue uma imagem dele, duas, três e vá dissecar até a alma da estátua. Talvez seria até interessante. Mas já tem estudos. […] O que as pessoas têm que distinguir muito claramente é que o Brasil sempre foi um país grande, onde as igrejas se situam nas grandes cidades, mas também nas fazendas, nos sítios... No interior, sem igrejas, como é que era? Era fazenda, era a pequena capelinha. Tem a vertente oficial. Esse é um caminho. Não adianta você juntar os dois caminhos. Outro caminho é o caminho da espontaneidade, da religião do povo, daquela que reflete a religião oficial, mas na minha capela eu vou botar o santo que eu quero botar, eu vou ter meu oratório, com meu padroeiro, com o tamanho do meu dinheiro. Se eu tiver muito dinheiro eu posso até fazer uma capela grande, mas é muito difícil ela ficar como a oficial... Então é aí que vem a tradição popular. Realizar trabalho de campo em museus de arte sacra, de acordo com o galerista, seria trilhar uma seara já percorrida e insistir em um objeto pré-construído. Por outro lado, ao me enveredar pelo “caminho da espontaneidade” sugerido, eu não poderia arrefecer minha inquietação acerca do prazer secreto e proibido envolvido na convivência, na intimidade do lar, entre colecionadores e santos que outrora figuraram em altares de igrejas. Uma vez que as imagens comercializadas e colecionadas por Antônio, segundo ele, já foram produzidas para oratórios domésticos ou capelas de fazendas – pequenas igrejas de natureza particular – ele não poderia ser visto como alguém que realiza as transações que me instigavam. …não é um objeto do estado, é um objeto particular, a pessoa tem direito a vender. Já as peças de igreja, se eu tivesse uma peça grande aqui, era complicado. Porque a peça grande em geral já indicou que veio de uma igreja, grande. O IPHAN hoje está aí de olho. Eu evito e é muito raro uma pessoa me oferecer peça grande. Então eu trabalho com o que a gente chamaria de peças domésticas, de oratórios domésticos, do culto doméstico, desse culto, claro, católico, mas um culto onde a Igreja tem menos poder. Segundo a argumentação do galerista, a dimensão da “peça grande” a denuncia enquanto proveniente de igrejas que estão sob a mira do Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Já a “peça doméstica” sinaliza outra origem, que, apesar de sua natureza de “propriedade particular”, não prescinde de figurar em cerimônias públicas de cunho católico e religioso: 50 [o culto] Não é de todo privado, porque ele recebe uma orientação. Isso aí você tem que estudar bem, como é que se dá esse culto super controlado e esse culto mais... […] você sabe que entre o cristianismo oficial e a prática há uma possibilidade de desvio, vamos dizer... até aceitável. Porque a igreja não vai... nesse caso a Igreja até incentiva, oratório doméstico. Ela não vai lá, hoje fazer casamento é proibido, fazer missa é proibido, mas ela aceita que o dono da fazenda faça uma novena, uma oração, um terço, uma festa... aqui, certamente em Minas é igual, por exemplo, tinha o Antônio, o dono do sítio, então o protetor era Sto. Antônio, era a imagem que não falta. É a imagem do dono da fazenda. Ou lá na capela tem o quê? Tem o Cristo, porque Cristo é absoluto, é Deus e não pode faltar. A mãe de Cristo também não pode faltar. Então, no mínimo, três imagens, você vai encontrar um oratoriozinho daquele, um Cristo no meio e dois santos ao lado. Já teve muito essa tradição, que botava muito uma manjedoura abaixo. Aqui tudo é culto doméstico, olha os oratoriozinhos. Não é culto da igreja, oficial. “O patrimônio” não traz problemas a Antônio porque as coisas que lhe interessam como obras de arte não são consideradas preciosas ou dignas de proteção pelo Estado e, por conseguinte, ficam de fora do horizonte de visão onde o IPHAN “está de olho”. A ação mais efetiva do órgão em certos locais não incide apenas nas “peças de igreja” patrimonializadas, mas também como fator que reforça a corrida por coisas diversas – incluindo as “imagens pequenas” e “antiguidades” – nos lugares tradicionalmente entendidos como “históricos”. Nesse sentido, apesar de em Minas Gerais as imagens também participarem de cultos – mais ou menos “oficiais” – elas já não se encontram mais lá: Então tudo isso que eu lhe apresentei aqui é do culto doméstico, em geral, do Nordeste. Eu não vou ao Rio, eu não vou a Minas, até porque se eu for a Minas, e as vezes que eu fui, eu não encontrei nada. Em Minas não tem mais antiguidade. Em Ouro Preto você não encontra nem uma mão de um santo pra vender. Já foi tão procurado... Aí o povo pensa assim, quem começa a estudar agora “é em Minas que tem a tradição”. Minas não tem mais nada. Vendo mineiros aqui, porque me compram e dizem: “vou dizer que é de Minas”, mas quem sabe, sabe que é daqui. Mesmo no âmbito do Nordeste, há diferenciações. O galerista relatou praticamente não circular pela Bahia ou Pernambuco, mas sim em Alagoas, Paraíba e no próprio estado onde reside. Pernambuco também não tem tanto santo, porque também tem uma construção de uma identidade [como cidade histórica]. Natal é tão velha quanto Recife, Recife deve ter uns 10 ou 15 anos a mais, mas nós aqui não temos aquele glamour de patrimônio, não foi construído, não tivemos intelectuais para fazer isso, até perdemos muita coisa, templos maravilhosos caíram... E essa arte dos santeiros eu consigo muito mais por aqui do que outro lugar. Os relatos sobre as formas de “conseguir” as imagens me levaram a vislumbrar Antônio como um ‘caçador de imagens’ que se embrenha pelo “sertão” em busca de santos e ex-votos. As viagens contínuas e o “estudo” das peças nelas obtidas permitiram o aperfeiçoamento de um “olho treinado” que possibilita a identificação da provável região de fabricação das obras – afinal, o fato de uma peça ser encontrada no interior do RN não significa que necessariamente ela foi produzida nesse estado – e ainda da possível autoria de sujeitos que esculpiam os santos para finalidades devocionais. Como visto, essas são as chamadas [pequenas] “imagens antigas”. 51 De acordo com o que também já sinalizei, o colecionador e comerciante de arte lida ainda com imagens produzidas mais recentemente, por isso, ele sugeriu que eu visitasse a santeira Luzia Dantas, de Currais Novos, cidade “lá da boca do sertão”. Seria oportuno que eu não deixasse a ida até a artista para uma outra ocasião em que estivesse no RN, pois poderia perder a oportunidade de vê-la ainda em atividade. Segui a recomendação e para tanto me vali de uma ligação de Antônio para a santeira solicitando que ela me recebesse27. Antônio também indicou que no Museu Câmara Cascudo (MCC/UFRN), eu encontraria algumas obras da artista, mas de uma outra fase de sua carreira, em que as peças não eram tão aprimoradas. Também segui essa recomendação, como será visto abaixo. Não deixei de visitar os museus que estavam em meu roteiro, inclusive outros foram acrescentados à listagem que eu havia preparado. Contudo, notadamente, eu tinha sido enredada pelo “olho treinado” de Antônio Marques ou, nas palavras de Benjamin (2006), eu estaria sob o efeito de uma organização mágica dos objetos: Pois é preciso saber: para o colecionador, o mundo está presente em cada um de seus objetos e, ademais, de modo organizado. Organizado, porém, segundo um arranjo surpreendente, incompreensível para uma mente profana. Este arranjo está para o ordenamento e a esquematização comum das coisas mais ou menos como a ordem num dicionário está para uma ordem natural. Basta que nos lembremos quão importante é para cada colecionador não só o seu objeto, mas também todo o passado deste, tanto aquele que faz parte de sua gênese e qualificação objetiva, quanto os detalhes de usa história aparentemente exterior: proprietários anteriores, preço de aquisição, valor etc. Tudo isso, os dados “objetivos”, assim como os outros, forma para o autêntico colecionador em relação a cada uma de suas possessões uma completa enciclopédia mágica, uma ordem no mundo, cujo esboço é o destino de seu objeto. […] Basta que acompanhemos um colecionador que manuseia os objetos de sua vitrine. Mal segura-os nas mãos, parece estar inspirado por eles, parece olhar através deles para o longe, como um mago. (BENJAMIN, 2006, p. 241, grifo no original). De fato, dado que me alertaram que colecionadores não gostam de falar sobre o que têm, foi impactante conversar com quem tinha tanto a dizer – inclusive apontando para um complexo jogo de acusações – e além do mais conjuga diversas formas de apresentação de si (“comerciante/marchand”, “professor”, “estudioso”, “colecionador” etc.). As visitas aos museus que fiz após a referida conversa em muito foram norteadas por diversas coordenadas que Antônio me apresentou. Os objetos que capturaram minha atenção nessas instituições, nesse sentido, constituíram-se nós prévios de uma rede armada a partir da Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas. Desse modo, ao invés de descrições exaustivas dos locais que percorri, opto deliberadamente por dar a ver as imagens e indicações sobre elas e que fui entrelaçando à referida rede durante meu percurso. 27 No 4º capítulo, a visita à casa de Luzia será descrita mais detidamente. 52 Figura 6 – Visão panorâmica da Galeria do CT 1 Foto: Acervo da autora, fev. 2012 Figura 7 – Visão panorâmica da Galeria do CT 2 Foto: Acervo da autora, fev. 2012 53 1.3 SANTOS-ACERVO 1.3.1 De um museu de etnografia Seguindo a recomendação de Antônio Marques, fui ao Museu Câmara Cascudo (MCC/UFRN), onde fui recebida por Jailma da Silva Medeiros Santos, historiadora, conservadora e restauradora. Antes de me levar ao encontro dos objetos que me atraíram até a instituição, Jailma contou-me um pouco acerca do histórico do MCC: o museu foi criado em 1960, como Instituto de Antropologia da Universidade do Rio Grande do Norte, federalizada naquele mesmo ano. O IA/UFRN configurou-se como um museu de Antropologia e Ciências Naturais e seu acervo, produto de pesquisas multidisciplinares conduzidas pelos intelectuais que criaram o instituto28, foi descrito como “muito misto, parte indígena, parte de pesca, santeiros, cerâmica, esqueletos...”. Ao contar do meu interesse em objetos religiosos, fui direcionada para parte das “madeiras”, onde fui apresentada a algumas “peças eruditas de origem portuguesa do período barroco” e a uma grande quantidade de santos e ex-votos, descrita como “a produção de arte sacra dos artistas locais do RN”. “Perguntei-lhe se essa classificação, “arte sacra”, era uma forma de organizar as peças e ela afirmou que sim: “– E o sacro é junto, o erudito e o popular, apesar da maioria dos santos ser popular.” 29. As imagens de santos são maioria, mas também observei alguns crucifixos, presépios e alguns poucos objetos litúrgicos, como alfaias. A coleção de arte sacra contém 195 peças. A funcionária destacou algumas imagens feitas por nomes conhecidos no RN, como Xico Santeiro, Luzia e sua irmã Ana Dantas. A produção desses artistas não se resume a santos, outras peças, como aquelas que retratam “tipos nordestinos” – em vaquejadas ou trabalhando em casas de farinha, por exemplo – são classificadas como “arte popular” 30, categoria que também inclui os ex-votos, apesar destes não serem relacionados a autorias específicas. Há uma grande quantidade deles no local. 28 As atividades do IA/UFRN, que em 1973 se torna MCC, eram divididas em três departamentos: Antropologia Física, sob a responsabilidade de José Nunes Cabral de Carvalho; Etnografia Geral, sob o comando de Luís da Câmara Cascudo, com o apoio de Veríssimo de Melo na direção da Seção de Folclore; e Genética, conduzido pelo professor Monsenhor Nivaldo Monte. 29 Além das coleções de Arte Sacra e Arte Popular, já mencionadas, o acervo de Etnologia compreende: Arte Indígena, Arte Africana e Afro-Brasileira, Ciclo da Cana-de-açúcar, Ciclo do Couro, Renda de Bilro, Arte Pesqueira, Renda de Agulha e Bordados. 30 A coleção de arte popular é dividida em 10 subcoleções: cerâmica lúdica, escultura em cerâmica, cerâmica utilitária, garrafas de areia, escultura de madeira, escultura de materiais diversos, ex-votos, brinquedos populares, teatro de bonecos, utilitários em fibra. 54 Jailma foi abrindo portas e gavetas e dizendo “ex-votos, ex-votos, ex-votos... é ex-voto que não acaba mais...”. A maioria constitui-se daqueles comumente chamados de “ex-votos anatômicos”, cuja organização remete às partes do corpo humano que evocam, há gavetas e prateleiras apenas com cabeças e outras estruturas, em menor número, guardam pés, pernas, braços, mãos, corações etc.. No tocante ao material, há exemplares em gesso e cerâmica, mas as peças esculpidas em madeira predominam. A coleção de ex-votos tem 332 peças, das quais 209 são cabeças. Figuras 8 e 9 – Ex-votos variados reunidos por tipologia anatômica na reserva do MCC Foto: Acervo da autora, fev. 2012 Posto que o espaço expositivo do museu estava em reforma, todo o acervo foi concentrado na reserva técnica e isso significou lidar com as peças no lugar em que elas são acondicionadas, não necessariamente para ficarem visíveis31, mas principalmente tendo em vista seu armazenamento seguro. Nessa lógica, a garantia permanente da integridade das obras é fundamental para que elas possam ficar disponíveis para pesquisa ou práticas museológicas e, por isso, fui solicitada a calçar luvas para o caso de querer tocar alguma peça. A visita aos santos e ex-votos na reserva técnica foi importante para ter contato com um ambiente onde o toque não é interditado, mas controlado. Também foi diferente lidar com santos ‘deitados’ – sobre plástico bolha ou isopor – em gavetas e prateleiras, já que eu estava habituada a encontrá-los de pé, apoiados sobre sua base (também chamada de peanha), expostos em altares e, mais recentemente, expositores de galerias e museus ou vitrines comerciais. Manipulá-los, nesse sentido, foi experimentar brevemente a sugestão de Lévi-Strauss (1989 [1954]) acerca do aprendizado sensível ao qual o etnólogo pode se submeter nos museus de Antropologia, entendidos pelo autor como um 31 A condição de estar ao alcance dos olhos é uma das que constituem a célebre definição de coleção cunhada pelo historiador e ensaísta polonês Krzysztof Pomian (1987): “todo conjunto de objetos naturais ou artificiais, mantidos temporariamente ou definitivamente fora do circuito de atividades econômicas, submetido a uma proteção especial em um lugar fechado, mantido com este propósito, e exposto ao olhar.” (POMIAN, 1987, p. 18, grifo meu). 55 importante prolongamento do campo32. Após minha visita ao MCC, ficou evidente o quanto o museu seria um excelente campo em si. Nesses termos, a Reserva Técnica é um local precioso, ao passo que permite certos manuseamentos interditados aos espectadores de espaços expositivos. Figuras 10 e 11 – Imagens variadas na reserva do MCC Fonte: Acervo da autora, fev. 2012 A funcionária do MCC também me mostrou as fichas das peças: nelas há informações tais como dimensão, peso, forma de aquisição, número de inventário e outras, mas esse conjunto é considerado deficiente posto que o campo autor não é preenchido. Nesses casos, o nome próprio que aparece geralmente é o de quem doou ou vendeu as obras para o museu. As fichas das peças de autoria desconhecida foram descritas por Jailma como “básicas” por não incorporarem os agentes que as criaram. A historiadora me mostrou ainda os trabalhos produzidos a partir de estudo das coleções do setor de Antropologia. Em 2006, a equipe pedagógica produziu dois catálogos, sendo um acerca de Luzia e Ana Dantas e outro do artista Etewaldo. Nestes materiais, figuram peças do acervo da instituição, obras dos artistas que estão em outras coleções e espaços (como monumentos em praças públicas) e as biografias dos escultores populares. Em linhas gerais, as publicações não abordam apenas a obra, mas também a vida que quem as produziu, ou seja, para o MCC, atualmente, aqueles objetos importam enquanto obras de artistas populares singulares, mas quando chegaram ao museu não eram investidas dessa 32 Nas palavras do autor, “De fato, o contato com os objetos, a humildade inculcada aos museógrafos por todas as pequenas tarefas que estão na base de sua profissão – como a desembalagem, a limpeza, a manutenção – o profundo senso do concreto desenvolvido por esse trabalho de classificação, identificação e análise das peças de coleção, a comunicação com o meio indígena, estabelecida indiretamente por intermédio de instrumentos que é preciso saber manejar para conhecer, e que possuem, além disso, uma textura, uma forma, muitas vezes até um cheiro, cuja apreensão sensível, milhares de vezes repetida, cria uma familiaridade inconsciente com modos de vida e de atividade remotos, e, por fim, o respeito pela diversidade das manifestações do gênio humano, que fatalmente resulta de tantos e incessantes testes para o gosto, a inteligência e o saber, a que os objetos aparentemente os mais insignificantes submetem todos os dias os museógrafos, tudo isso constitui uma experiência de uma riqueza e de uma densidade que não devem jamais ser subestimadas.” (LÉVI-STRAUSS, 1989 [1954], p. 400). 56 significação. Logo, hoje uma das tarefas dos funcionários é criar novas narrativas para relacionar as criações a artistas específicos e não tão somente ao doador (ou vendedor) colecionador. Além de artísticas, as obras em questão são, nesse sentido, testemunhos de mudanças de perspectiva dos múltiplos olhares que podem ensejar. Ademais, apesar de constituírem parte significativa do acervo de um museu atrelado em sua origem à pesquisa e coleta, são representativas dos objetos que movimentam a modalidade mais frequente na constituição do acervo dos museus de arte brasileiros: a doação (OLIVEIRA, 2014). No caso dos ex-votos, não há indicação de compra, encomenda ou doação e sim de “coleta” diretamente nos locais de devoção. Alguns trazem em si inscrições que informam sobre sua possível origem, como os dizeres “Zé Leão”, devoção que acontecia em uma capela na cidade de Florânia – RN, onde os pesquisadores do Instituto coletaram mais de cem peças. Outra “devoção popular” que foi “visitada” e rendeu ex-votos para o MCC foi a de Nossa Senhora dos Impossíveis, na Serra do Lima, localização também indicada textualmente em alguns objetos. Os atuais funcionários do museu precisam estar atentos a tais informações textuais e outras pistas que permitam inferências sobre a trajetória dos objetos, uma vez que a assimilação de peças ao acervo nem sempre se fez acompanhada de atividades de pesquisa subsequentes à entrada na coleção. Ao se deparar com a fotografia abaixo, de ex-votos da capela de Nossa Senhora dos Impossíveis, Jailma percebeu que a maior das figuras havia sido integrada ao acervo do MCC, porém desmembrada em braços, pernas e cabeça. Quem teria desmontado a peça única? E por quais razões? Figura 12 – Imagem do acervo do MCC extraída de Santos (2010) Tal informação só poderia ser dada por quem a coletou, ouviu sobre ou testemunhou o gesto. A empreitada de substituir informações vagas ou mesmo de suprir a ausência de registros, como se vê, se vale de artifícios tais como o confronto com fotografias e outros documentos institucionais. Inferências sobre autoria, por sua vez, frequentemente são feitas com o auxílio de 57 pessoas externas ao MCC, dentre elas, Jailma citou o professor Antônio Marques, salientando o quanto ele tem não apenas tato, mas principalmente o “olho” essencial para auxiliar o museu a preencher as fichas dos objetos: “– É impressionante, ele bate o olho e diz: – essa Santa Luzia é um Xico Santeiro, esse ex-voto é de Ana Dantas”. Ao saber da receptividade de Antônio à minha pesquisa, Jailma sublinhou que ele seria um excelente interlocutor para saber mais sobre a circulação de objetos religiosos. A historiadora afirmou que o acervo do colecionador é infinitamente maior que o do MCC e relatou já tê-lo consultado não só a respeito da autoria das peças, mas também sobre onde localizar artistas e/ou seus familiares; acerca ainda da pertinência de certas aquisições para o MCC e que ele, por seu turno, encaminhou para a instituição ofertas de coisas que lhe foram feitas e não lhes interessavam, mas que acreditava serem pertinentes ao acervo do museu33. Jailma tanto deixou claro o grande potencial de pesquisa no MCC, quanto incentivou o estudo junto a Antônio Marques, pois nesse caso eu poderia acompanhar in loco a busca pelos objetos, a empreitada de ‘caça’ que tanto me inquietava. Se eu optasse pela pesquisa na instituição, teria que lidar com as lacunas. A historiadora disse que em Natal eu ainda encontraria os objetos que me interessavam no Museu de Arte Sacra (MAS/RN), no Museu de Arte Popular e no Memorial Câmara Cascudo, entretanto, ressaltou: “– As imagens que você vai encontrar são essas mesmo, esses são os nossos santeiros.” 1.3.2 De instituições em memória de Cascudo Antes mesmo de explorar os espaços recomendados por Jailma, onde me depararia com as “mesmas” imagens, minha curta estada em Natal já tinha sido suficiente para perceber a repetição de outra figura: Luís da Câmara Cascudo34. Quando tal intelectual atuou brevemente como primeiro diretor e professor de Etnografia do Instituto de Antropologia35 e que, posteriormente, seria rebatizado com seu nome, já havia construído uma trajetória como maior estudioso do folclore no Brasil (GONÇALVES, 2004; VILHENA, 1997; ALBUQUERQUE JR., 2001, 2013). 33 Como, por exemplo, objetos provenientes de um terreiro que havia sido desativado. O colecionador ficou com alguns e sugeriu que a pessoa que estava ofertando-os procurasse o MCC. 34 * 35 Natal, RN, 1898 † Natal, RN, 1986. A atuação efetiva de Cascudo na instituição não chegou a um ano. O então diretor do IA renunciou ao cargo em 1961 alegando não conseguir acompanhar o ritmo das atividades: "enquanto eu caminho de carro de boi, vocês voam de avião a jato." (SANTOS, 2010, p. 36). 58 Sua vasta obra encontra ressonância e é celebrada em diversos espaços na capital potiguar: Cascudo é nome de rua, de um memorial, da maior biblioteca pública do estado e de um instituto que funciona na casa onde o intelectual morou a maior parte de sua vida. A lei de incentivo estadual também foi batizada com seu nome e a realização de eventos culturais organizados pela Fundação José Augusto (FJA), o órgão responsável pelas políticas culturais do RN, concentra-se no “Agosto da Alegria”, ou seja, no mês do folclore, campo de estudos automaticamente associado a Cascudo no estado. A presença reiterada na toponímia local e nas políticas culturais mostra que não é gratuito o fato das pessoas fazerem alusão a Cascudo como “o quarto Rei Mago” da cidade-presépio. A Casa Câmara Cascudo/Instituto Ludovicus funciona no imóvel onde o intelectual residiu entre 1947 e 1986, situado na avenida que também ganhou seu nome. A residência foi aberta para visitação em 2010, por iniciativa de seus descendentes. O letreiro no frontão do solar indica claramente que o local é a Casa Câmara Cascudo. Ao passar pelo portão e subir os degraus para chegar à porta de entrada, dentre placas de homenagens de autoridades e amigos oferecidos a Cascudo, destaca-se uma em azulejo branco com letras azuis, não legível para todos, pois está escrita em latim. Foi Daliana Cascudo, sua neta, que traduziu para mim os dizeres em questão: “Encontrei meu porto. Esperança e fortuna, adeus. Muito me iludistes. Ide iludir outros agora.” O recurso ao latim também é utilizado no nome do instituto e está presente em sua logomarca, espécie de brasão composto ainda pela figura de um peixe cascudo36. De acordo com Daliana, a inspiração para a nominação do instituto foi o episódio narrado pelo avô sobre seu batismo, no qual o padre que o realizou pronunciou o nome de Luís em latim: Ludovicus. O padre em questão, João Maria, também é conhecido de todos em Natal (vamos conhecê-lo melhor adiante). Logo percebi que a Casa, por mais que fosse aberta ao público, demandava a mediação de objetos e pessoas – como a placa de azulejos e sua tradutora – que solenizassem o acesso à dimensão interior característica ao espaço doméstico37. Tal qual um álbum de família, a Casa precisa de indicações a respeito das coisas a serem mostradas. O “porto” de Cascudo apresentado por seus familiares nos interessa ao passo que pode ser visto como lugar de ancoragem de objetos no universo privado de um colecionador. A Casa/Instituto Ludovicus tem características 36 Cascudo é uma designação comum dada a peixes de “casca grossa” ou “pele dura”, pertencente a diversos gêneros e espécies no Brasil. 37 Portas e soleiras, como indica Van Gennep (1978), funcionam enquanto marcos de separação. São espaços liminares por excelência, promovendo a passagem entre o exterior e o “sagrado” do interior. Atravessá-los, por conseguinte, é realizar um rito de passagem. 59 de museu-casa, uma vez que se procura guardar a disposição que os elementos ocupavam no espaço quando ele era habitado pelo homenageado. O propósito desse tipo de museu é enfatizar a relação entre o lugar e a vivência de seus proprietários: onde eles dormiam, trabalhavam, recebiam visitas etc. Há várias nuanças ainda de museu biográfico, pois além dos objetos que testemunham o uso de um ambiente residencial, são expostos outros tantos que testemunham a trajetória e a notoriedade de uma personalidade. Em suas “Passagens”, Walter Benjamin também nos encaminha para a interioridade dos locais onde as coleções são elaboradas. Elas são o refúgio no qual o colecionador expia a condição de mercadoria das coisas ao inseri-las em uma nova ordem: O intérieur é o refúgio da arte. O colecionador é o verdadeiro habitante do intérieur. Ele se incumbe de transfigurar as coisas. Sobre ele recai a tarefa de Sísifo de despir as coisas de seu caráter de mercadoria, uma vez que as possui. No entanto, ele lhes confere apenas um valor afetivo, em vez do valor de uso. O colecionador sonha em alcançar não apenas um mundo longínquo ou passado - porém, ao mesmo tempo melhor, no qual os homens, na verdade, estão tão pouco providos daquilo de que necessitam como no mundo cotidiano - mas também um mundo em que as coisas estão liberadas da obrigação de serem úteis. (BENJAMIN, 2006, p. 45). Os “santos domésticos” do intérieur cascudiano não correspondem exatamente àquelas imagens pequenas para devoção privada que me foram apresentadas por Antônio Marques. A coleção de “Arte Sacra Católica” contém imagens de porte variado que pertenciam a Cascudo e sua esposa, Dáhlia, “devota de Nossa Senhora”. Sendo assim, as imagens em questão uma vez mais relativizam a ideia de coleção como modalidade que aparta os objetos dos usos para os quais eles foram originalmente concebidos. É interessante assinalar que o único grupo de objetos cuja elaboração da coleção e propriedade também são atreladas à Dahlia é o de imagens de santos38. Apesar dessa menção à devoção da cônjuge do intelectual, os santos são apresentados prioritariamente como itens de coleção, condição que abarca desde a imagem do oratório doméstico que fica ao lado da cama no quarto do casal até aquelas que ficam reunidas em vitrines 'de colecionador'. 38 Além do acervo bibliográfico e documental de Câmara Cascudo, a Casa expõe ao todo dez coleções: Etnografia Africana, Etnografia Indígena, Arte Sacra Católica, Arte Popular Brasileira, Arte Popular Estrangeira, Iconografia/Pinacoteca, Mobiliário, Alfaias, Objetos Pessoais e Comendas. Para além dos objetos de coleção, outra “atração” da Casa são as paredes da biblioteca, autografadas, a pedido de Cascudo, por personalidades, como Gilberto Freyre, Juscelino Kubitschek e Heitor Villa-Lobos. 60 Figura 13 – Santos na Casa de Cascudo, a dimensão das obras indica que são “imagens de igreja” deslocadas para o ambiente doméstico Fonte: http://arquivos.tribunadonorte.com.br/fotos/87844.jpg A referida condição de item de coleção também é estendida aos “móveis de época”, em que as imagens e outras coisas estão dispostas e aos “objetos pessoais” – tais como bengala, boina, óculos e cinzeiros – utilizados pelo famoso morador. Assim, além das coleções que Cascudo elaborou em vida, outros conjuntos de coisas são mostrados como significativos por seus familiares. Prosseguindo com aporte das reflexões de Benjamin (2006), pode-se pensar a exibição em questão como uma forma de evidenciar os “rastros” que o colecionador imprimiu ao seu espaço: O intérieur não apenas é o universo, mas também o invólucro do homem privado. Habitar significa deixar rastros. No intérieur esses rastros são acentuados. Inventamse colchas e protetores, caixas e estojos em profusão, nos quais se imprimem os rastros dos objetos de uso mais cotidiano. Também os rastros do morador ficam impressos no intérieur. (BENJAMIN, 2006, p. 45). Para dar a ver tais “rastros”, a família precisou abrir alguns estojos e gavetas, colocando à vista coisas antes guardadas e apinhando mais ainda os móveis e paredes já ‘carregados’ de elementos sobrepostos. A memória de Cascudo é então multiplicada por todas as coisas que ele possuía. Para Benjamin (1987), a posse é o tipo de relação com objeto que nos coloca na presença do “colecionador autêntico”, Bem-aventurado o colecionador! Bem-aventurado o homem privado! [...] Pois dentro dele se domiciliaram espíritos ou geniozinhos que fazem com que para o colecionador – e me refiro ao colecionador autêntico, como deve ser – a posse seja a relação mais intima que se pode ter com as coisas: não que elas estejam vivas dentro dele; é ele que vive dentro delas. E, assim, erigi diante de vocês uma de suas moradas, que tem livros como tijolos, e agora, como convém, ele vai desaparecer dentro dela. (BENJAMIN, 1987, p. 235). 61 Tais reflexões são ensaiadas por Benjamin (1987), em um texto dedicado à reflexão sobre o colecionamento de livros, porém, o autor sublinha que não dizem respeito a uma coleção específica e sim à “arte de colecionar” coisas diversas. Como visto, a ideia de coleção que se converte em morada do colecionador a ponto de fusioná-lo com suas coisas é pertinente para pensar o encontro com Cascudo que continua a ser possibilitado por seus familiares. A Casa é um espaço íntimo, povoado não só de obras de arte adquiridas ao longo de anos de trabalho intelectual, mas também de “objetos pessoais”. Pode-se contrapor essa elaboração do homem público no seu reduto privado com outras formas de rememoração do intelectual em Natal. O Memorial Câmara Cascudo foi criado em 1987, apenas seis meses após a morte do homenageado, pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte, representado pela FJA. Na frente do prédio da instituição há uma estátua em bronze de corpo inteiro de Cascudo, erguida por uma mão aberta de um braço que sai do chão. No monumento projetado por Sami Elali, o homenageado ganhou forma pela lavra do artista plástico Dorian Gray, tornando-se assim uma imagem que cabe na palma de uma mão39. O então altivo Cascudo – cravado na “parte histórica” de Natal, no entorno do “marco zero da cidade” - fita, através dessa perspectiva, a antiga Catedral de Nossa Senhora da Apresentação (padroeira da cidade). Figura 14 – Estátua de Câmara Cascudo em frente ao Memorial em sua homenagem Foto: Y. Masset, disponível em www.brasilrn.com 39 Sou grata a Edilson Pereira por ter me alertado sobre tal transformação. 62 Ao adentrar a construção, acima da porta que dá acesso à exposição há um painel com a foto em plano americano do “patrono” do local e os dizeres: “Sou um homem mais de fé do que de culto. Posso recusar a extrema-unção, pessoalmente vou com me Deus”. entender Desse painel pendem diversas fitas de cetim coloridas. A indicação da ‘mensagem de boas-vindas’, à primeira vista, parece contraditória com a reprodução de ambientes de culto no Memorial. Enquanto documentos, fotografias e outras coisas que pertenceram ao Figura 15 – Entrada do Memorial Câmara Cascudo (MCC) Foto: Acervo da autora, fev. 2012 intelectual ou dizem respeito à sua trajetória são mostradas de forma linear e sequencial em quadros, vitrines, protegidas dos toques dos curiosos; na sala do memorial dedicada à “religiosidade popular” não há a rigidez das molduras e seu poder de demarcação e direcionamento de foco; tampouco se observa a presença de etiquetas ou outro tipo de aparato contendo legendas explicativas das peças. Na parede do fundo da sala foi desenhada uma igreja e rente a ela foram colocados tocheiros com velas, criando interação entre elementos bi e tridimensionais. No centro, do lado de fora e defronte à porta da igreja, logo, como se fosse a céu aberto, tem-se um cruzeiro. Trata-se de uma estrutura com a base em forma de degraus, encimada por uma cruz de onde pendem fitas de cetim. No topo da estrutura, ou seja, ao pé da cruz, há uma imagem de Pe. Cícero, em gesso, não pintada, ladeada por ex-votos, que também ocupam a superfície dos degraus. As fitas de diversas cores e o amarelado de algumas velas e ex-votos em parafina quebram a predominância do branco do cruzeiro e da igreja, que em ambos os elementos sugere a simplicidade característica das coisas caiadas, ou seja, pintadas com a mistura de cal, água e cola. 63 Mais do que santos musealizados, o que podia ser observado no memorial era a apresentação cenográfica de um contexto ritual. Esse modo de exibição privilegia a função e o ponto de vista de um observador (no caso, Cascudo) no ambiente de onde os objetos provêm. Logo, ao invés das coisas serem expostas em estruturas “neutras” e com anteparos separando-as do expectador, são arranjadas em relação a elementos que também constroem a fidedignidade da cena, como o cruzeiro com a igreja ao fundo. O arranjo do conjunto é representativo de observações feitas por Cascudo sobre a presença do culto à cruz, da oferta de ex-votos aos santos e, em especial, a Pe. Cícero nas devoções Figura 16 – Sala de religiosidade popular do MCC Foto: Acervo da autora, fev. 2012 populares. Em diversas passagens de seu Dicionário do Folclore Brasileiro (1988) encontram-se informações que podem ser relacionadas à presença de objetos na sala descrita do Memorial. Diz o autor no extenso verbete “Santa Cruz”: “Os cruzeiros chantados diante das igrejas atraem uma verdadeira mística. […] Há promessas pagas com velas acesas e fitas amarradas na madeira.” (CASCUDO, 1988, p. 801) e menciona, ainda, festas realizadas em homenagem ao “Santo Madeiro”, nas quais “Não há intervenção eclesiástica. O povo dirige sua manifestação como entende.” (CASCUDO, 1988, p. 802). Nesses termos, o desenho de um templo religioso na parede na sala de “Religiosidade Popular” do Memorial, muito ao contrário de ser um recurso improvisado, constitui um dispositivo cenográfico que remete à ‘paisagem original’ descrita pelo intelectual, na qual a igreja é presente, mas como pano de fundo. Face a essa presença chapada, o que se avoluma é a imagem de Pe. Cícero, o colorido das fitas, as velas e os ex-votos, regionalmente conhecidos como “milagres”: “representação do órgão ou parte do corpo humano curado pela intervenção divina e oferecida ao santuário em testemunho material de gratidão” (CASCUDO, 1988, p. 577). 64 Igreja, cruzeiro, santo, ex-votos e demais estruturas da sala atuam na construção – em miniatura – da ambiência observada por Cascudo e familiar a muitos visitantes do Memorial. Os gestos deles, em sua maioria, turistas e alunos trazidos em excursões, variam entre fotografar a sala, sendo que alguns posam em frente a ela, a referência à imagem no topo do cruzeiro: “– Olha o Padin Cícero!” e a contemplação acompanhada de comentários em tom de voz mais baixo (em relação, por exemplo, àqueles realizados defronte a representações presentes em outros ambientes do Memorial, como as do lobisomem e do boi-bumbá) e a realização do sinal da cruz. Este último, quando realizado sobre o corpo40, caracteriza-se pela execução do desenho da cruz entre a cabeça e o peito, ao mesmo tempo em que se recita ou se mentaliza a invocação da Santíssima Trindade, executando uma sequência de gestos. De acordo com Cascudo (1988), a propósito, Pe. Cícero participa da referida Trindade: “Santo do Juazeiro, Santo Pequeno, uma das pessoas da Santíssima Trindade, o meu Padrinho Padre Cícero permanece uma constante psicológica dentro da dinâmica social do povo nordestino.” (CASCUDO, 1988, p. 657, grifo no original). Como visto, durante a presença no local, o visitante tem a oportunidade de fazer sua breve oração e de estar diante de uma forma de materialização do culto do intelectual às práticas de devoção do povo (senão às divindades propriamente ditas). Lembrando que quem chega ao Memorial é recepcionado por uma foto de Cascudo avisando “ser um homem mais de fé do que de culto”. O posicionamento dessa mensagem na porta dá as boas-vindas ao visitante que vai se deparar não exatamente com um ambiente doméstico, mas com o universo que Cascudo 'domesticou' e tornou familiar em suas obras. Desse modo, o Memorial não expõe os santos que pertenciam a Cascudo e sim os objetos participantes das práticas populares com as quais ele “foi se entender pessoalmente”, assim, como declarou que faria com Deus quando se visse diante da morte e, por conseguinte, da (não) necessidade do último sacramento administrado pelos padres aos moribundos. A dispensa da extrema-unção, contudo, não implicou em ausência da mediação sacerdotal na morte do intelectual. Cascudo foi velado e enterrado tendo nas mãos um terço que pertencera ao Pe. João Maria. Pe. João Maria é o “santo dos natalenses” 41 e, por causa dele, não é preciso ir até um local de devoção a Pe. Cícero para se observar um arranjo de objetos similar ao que foi reconstituído no Memorial e descrito acima. Na Praça Pe. João Maria, em Natal, diariamente são deixados ex-votos no busto que homenageia o sacerdote. A base que sustenta a imagem é decorada com fitas coloridas e guirlandas de flores artificiais. Na primeira ocasião em que estive nessa praça, em fevereiro de 2012, entre as fitas da base do busto observei bonecos de pano, partes do corpo também confeccionadas 40 O sinal da cruz pode ser realizado sobre si mesmo, sobre outras pessoas e ainda ser dirigido a objetos, configurando, nessas duas últimas situações, um ritual de bênção. 41 * Jardim de Piranhas, RN, 1848 † Natal, RN, 1905. 65 em pano, terços, orações e fotografias. No chão, próximo à base e sobre um tapete, havia dois baldes coloridos contendo mais flores artificiais e, entre eles, uma cabeça em gesso e uma pequena imagem, que identifiquei como Pe. Cícero. Numa pilastra, à frente do busto, encontrava-se um balde preto com água, na qual as pessoas colocavam a mão e tocavam em si mesmas em seguida (geralmente no rosto). Na praça também observei barracas para comercialização de produtos diversos: doces, ervas, roupas, bijuterias e, numa delas, velas e artefatos de pano similares aos que observei colocados junto ao busto. Notei que uma senhora estava costurando um deles e aproveitei para perguntar quem era a figura da estátua. Foi ela quem me apresentou Pe. João Maria e, percebendo meu interesse na movimentação, recomendou: “Se você está impressionada com isso aqui, tem que ir no santuário dele.” Figuras 17 e 18 – Busto e detalhe de busto de Pe. João Maria Foto: Acervo da autora, fev. 2012. Apesar da indicação da produtora e vendedora daqueles singulares ex-votos sobre ir ao santuário, o que me impressionou foi justamente o fato da devoção ao Pe. João Maria acontecer em plena praça pública, em um dia ‘normal’42, tendo a vida urbana como ‘moldura’. Consultando o verbete dedicado ao sacerdote no Dicionário de Cascudo, tomei conhecimento que tal culto é observado desde a inauguração do busto. Em 1919 inaugurou-se seu busto de bronze, trabalho de Hostílio Dantas, na Praça João Maria, que se tornou local de culto popular, notório e contínuo. Há sempre um grupo orando, de joelhos, e o gradeado enche-se de ex-votos, retratos, fitas, muletas, objetos de cera e madeira, cruzes, rosários, quadros votivos. Todas as noites ardem dezenas de velas, pagando promessas. É o Santo da cidade. (CASCUDO, 1988, p. 658). 42 Meu contraponto mental para tal normalidade seria um dia de festa de santo, no qual a irrupção do culto no espaço público é prevista. 66 1.3.3 De museus de arte sacra No Museu de Arte Sacra de Natal (MAS) não me deparei com menções aos nomes dos artistas que esculpiram as peças expostas, as informações nas plaquinhas junto aos santos se resumiam à invocação (por exemplo, Nossa Senhora da Conceição), técnica de execução (ex.: Madeira policromada) e período (ex.: século XIX). Os dados sobre as maiores, significativamente, incluíam “altura”, informando o tamanho de peças que variam de 50 a 60 cm. A exposição, entretanto, contemplava imagens de portes variados: no extremo oposto dessas obras maiores – que, de acordo com as primeiras interpretações que ouvi em campo, provavelmente já foram “peças de igreja” – podia-se notar a presença de um pequenino santo em nó de pinho, de cerca de 3 cm. É interessante frisar que a dimensão reduzida da imagem sequer é mencionada em sua descrição, contida em uma placa de acrílico que tem várias vezes o seu tamanho, o que se ressalta é a relevância da peça enquanto integrante da imaginária sacra afro-brasileira43. A presença do “santo dos natalenses”, anteriormente observada em praça pública, também era destacada no museu. Entre as colunas que suspendiam as imagens de santos maiores, encontravam-se dispostos imensos painéis que traziam uma hagiografia ilustrada do Pe. João Maria, ali apresentado como “O abolicionista” e “Pai dos Negros Forros”, por ter trabalhado pela libertação de escravos. Não havia nenhum visitante quando estive no MAS e, ao conversar com o recepcionista do local sobre as respostas do público ao acervo exposto, o que veio à baila foi um leque de gestos concernentes ao culto aos santos. Uma vez mais, portanto, dentre os visitantes, muitos são visivelmente devotos. O próprio funcionário da instituição se colocou como tal e relatou que quando está a caminho do museu não deixa de passar pela estátua do Pe. João Maria na praça, fazer uma oração e colocar um pouquinho da água “dele” na testa: “E aqui também [no MAS] o povo não vem só ver. Só não tem mais reza aqui porque tem que pagar44 para entrar”. 43 Esse tipo de imagem, produzido com a parte mais dura do pinheiro, o nó, é encontrado, sobretudo, em São Paulo. O santo de nó de pinho pode ser carregado no bolso ou dependurado no pescoço, como pingente e, por isso, geralmente contém um orifício para passar a corda que serve de colar. As diminutas figuras não são cobertas por tinta e, além disso, têm em comum com os artefatos de madeira utilizados nas religiões afro-brasileiras, a cor escurecida que lembra o ébano africano e o estilo sintético do corte. Apesar de darem corpo a santos católicos – geralmente Santo Antônio e, com menos frequência, Nossa Senhora (ETZEL, 1979, p. 83) – por serem vistas como amuletos, por meio dos quais “frequentemente o culto religioso se transformava em superstição e até mesmo em fetichismo”, como reitera Herstal (1956, p. 33), as imagens em miniatura foram usadas pelos negros de forma discreta e “guardadas ciosamente dos olhos alheios, [e] passaram desconhecidas de geração em geração”. 44 A entrada custava R$ 4,00 em 2012. 67 A oração, segundo o recepcionista, seria uma constante também no interior do museu, bem como a oferta de coisas para os santos expostos. Com efeito, quando fui assinar o livro de presença encontrei entre as folhas não apenas os nomes e locais de origem dos visitantes, como também pedidos, agradecimentos, um santinho45 de São Cristóvão e uma oração a Nossa Senhora de Fátima. De acordo com o recepcionista, as pessoas que trabalham na limpeza encontram impressos do tipo também aos pés das imagens, bem como bilhetes manuscritos. Figura 19 – Livro de visitas do Museu de Arte Sacra de Natal. Observe-se a presença de um santinho e de uma oração deixados junto aos registros de presença. Foto: Acervo da autora, fev. 2012 A historiadora Verônica Nunes, com quem conversei a respeito do cotidiano dos museus de arte sacra de São Cristóvão e Laranjeiras em Sergipe, destacou como a realização de práticas devocionais coloca desafios particulares para as equipes das instituições: 45 Como precisa Menezes (2011), “os santinhos são retângulos de papel cujas faces comportam, de um lado, uma imagem de santo (ou santa, ou santos), e, do outro, textos em que se combinam preces e prescrições para utilizá-las corretamente, detalhes da vida do santo, propaganda da gráfica que imprime o material, etc.” (MENEZES, 2011, p. 43). A autora nota ainda que tais impressos, que em geral medem 7 x 11 cm, são comprados aos milheiros e devem ser distribuídos por ocasião de pedidos ou agradecimentos por graças alcançadas, o que coloca para o devoto o desafio de distribuir uma grande quantidade de santinhos. 68 Muita gente insiste em acender vela, e não adianta pedir para eles fazerem isso no velário da igreja. Eles querem acender no pé do santo deles. Outros deixam recadinhos para o santo e quando a gente vai limpar está lotado. Enfim, quanto mais simples são as pessoas, mais gestos de reverência para com os santos. Eles entram, tiram o chapéu... Como se vê, a permanência da sacralidade das imagens é uma constante após a destinação museal. Em alguns casos, observa-se também uma extensão do atrelamento dos devotos aos corpos dos santos. O acervo do Museu de Arte Sacra de São Cristóvão (MAS-SE)46 foi constituído com peças das paróquias da Arquidiocese e outras entregues por doadores. A maioria destes últimos aparece identificada nas informações constantes nas etiquetas que acompanham as peças ou ainda na descrição das imagens feita pelo “orientador cultural” que guia a visita: “Esse é São Benedito. Ele era italiano da Sicília e viveu no século XVI. Ele foi doado pela família do fazendeiro X, e quando chegou na mão do restaurador ele descobriu essa roupa debaixo da que estava com ele.” A biografia cultural (KOPYTOFF, 2008) de uma imagem de santo pode começar a ser contada a partir da hagiografia da divindade e prosseguir sem grande descontinuidade até o momento de sua chegada no museu. Nesse mesmo museu onde o orientador cultural mencionado acima lamentou que “infelizmente as imagens [do Senhor dos Passos] ainda são utilizadas em procissão”, expressando claramente o ideal de isolamento absoluto das obras em relação ao culto religioso; há uma Santana doada por uma família “de posses” cujo emprego ritual periódico foi destacado por Verônica Nunes. Um acordo firmado no momento da entrega de várias imagens à instituição prevê que a imagem de Santana Guia, que conduz uma Nossa Senhora Menina, anualmente volte à fazenda de seus antigos proprietários, que fica em Carmópolis, no interior de Sergipe, por ocasião da festa onde é louvada, em 26 de julho: “Enquanto tiver alguém na família com interesse de realizar a festa o museu tem que ceder a imagem para o retorno triunfal dela”47. Verônica atuou na consolidação dos museus de arte sacra de São Cristóvão e Laranjeiras e, por isso, acompanhou de perto várias situações de ruído entre museólogos, conservadores e devotos. Diante de sua experiência, afirmou que o acordo envolvendo a imagem de Santana era um bom meio-termo, haja vista que outras experiências, como a substituição, feita em Laranjeiras, de imagens por réplicas – produzidas pela igreja em parceria com a Secretaria de Cultura – foi rechaçada pelos devotos: “Não era o santo deles que estava ali. […] mas com o tempo o pessoal entendeu que a comunidade era zelosa com o patrimônio dela e então as imagens voltaram a sair nas procissões.” 46 A instituição é fruto de um convênio, celebrado em 1974, entre a Arquidiocese de Aracaju, a Universidade Federal de Sergipe e o Governo do Estado. 47 De acordo com a historiadora, um membro da referida família vai pessoalmente ao MAS - SE buscar a imagem na semana que acontece a festa, na qual reza-se o terço, realizam-se cantorias e no domingo há batizados e animação da banda de música cedida pela prefeitura. 69 Contudo, alguns desentendimentos permanecem: em um outro momento do trabalho de campo em Laranjeiras, ouvi de uma estudante de Museologia: “Tudo bem a imagem sair na procissão, mas precisa beijar? Tocar tanto? Não dá para esperar a chuva passar se o tempo fechar na hora da procissão?”. Ao tematizar o respeito como noção-chave no relacionamento das pessoas com as imagens a partir de uma igreja no Rio de Janeiro, Raquel Lima (2014) abordou a importância do toque e, de forma acurada, mostrou “que nem sempre é em qualquer parte ou de qualquer maneira que se pode ou se deve tocar nos santos.” (LIMA, 2014, p. 103) O toque nas imagens, portanto, é sempre mediado; seja para fins de conservação de um bem cultural ou de conexão com a realidade corporal de um santo. Figura 20 – Da série Irredentos, de Christian Cravo Fonte: www.christiancravo.com Figura 21 – “Modo correto de transportar objetos”48 As procissões despontaram como momentos críticos, uma vez que, nessas ocasiões, as imagens cedidas em regime de comodato para os museus são reivindicadas para ocupar o lugar de destaque que lhes cabe nas festas de santo. Os corpos dos santos são retirados, portanto, de seus abrigos técnicos de proteção, nos quais o toque é controlado, e são levados ao espaço público para serem louvados. A esta altura, uma categoria específica de imagens, as processionais, se tornam o centro da discussão. Em tese, qualquer tipo de imagem pode ser utilizado em uma procissão, incluindo as bidimensionais e as de vulto (também chamadas de talha “inteira” ou “completa”). Entretanto, certas imagens já foram fabricadas com a previsão de uso processional, o que implicava, por parte do artista, no preparo de corpos de santos para serem manipulados por devotos. 48 IPHAN. Caderno de Diretrizes Museológicas 1. Brasília, 2006. p. 13. 70 Tal manipulação abarca principalmente a adição de complemento têxtil – por isso, a denominação “imagens de vestir” – e é prevista em diversas modalidades de imagens de santos, desde as que possuem toda a definição do corpo ou anatomizadas, até aquelas que possuem gradeados de ripas, denominadas “imagens de roca”. Algumas possuem articulações para facilitar a exposição em diferentes posições corporais – Cristo, por exemplo, pode ser exposto com os braços rentes ao corpo no caixão ou abertos na cruz – e outras já são produzidas de modo a facilitar o processo de colocação das roupas e adereços. A multiplicidade de posições e possibilidades de ornamentação não é explorada apenas pelos devotos nas procissões, tampouco suscita gestos piedosos somente nesses momentos rituais. No Museu de Arte Sacra de Laranjeiras49, observei como a apresentação de Cristo como um corpo morto é cercada de carinho, cuidado e delicadeza. A senhora que me recebeu logo direcionou minha atenção para o caixão que ocupa o centro da primeira sala do museu. Com muita cautela, ela retirou o tecido que recobria o corpo. Na Galeria e nos outros museus visitados eu havia observado atitudes zelosas como aquela, afinal, trata-se do cuidado necessário para lidar com peças delicadas. Contudo, a funcionária do MAS de Laranjeiras tocou a imagem de uma forma que eu ainda não tinha presenciado. O contato era carregado de carinho e cuidado, como o toque de alguém que limpa uma ferida se solidarizando com o sofrimento alheio. Tratava-se do corpo flagelado de Cristo, que anualmente, na quarta-feira santa, sai do museu para a encenação da Paixão, momento em que encontra com Nossa Senhora das Dores. Esta estava localizada em um canto da sala e, naquela interação, a impressão é que fora imobilizada pela dor, mas que, na impossibilidade de agir diretamente sobre seu filho, lançava um olhar de piedade sobre quem estava em condições de cuidar dele. O carinho devotado àquele Cristo foi notadamente discrepante em relação à apresentação de outros santos do museu. Em direção oposta a esse devotamento, o valor atribuído às imagens processionais é reduzido nos estudos sobre escultura. A maior atenção às imagens de vulto é justificada porque a parte esculpida dos corpos das processionais, de roca ou de vestir é mais sumária. Esse fator as tornaria, de certo ponto de vista, mais econômicas. Entretanto, o baixo custo é relativizado ao se considerar que a utilização das imagens envolve roupagens, cabeleiras e ornamentos valiosos que personalizam os santos como figuras de prestígio que desfilam em celebrações que ressaltam sua importância e poder. 49 O MAS de Laranjeiras é fruto de acordo entre a arquidiocese e a prefeitura local. 71 Assim, se os poucos e localizados recursos escultóricos tornariam essas imagens “estigmatizadas” e “de segunda classe”, com referências escassas na literatura sobre escultura, é a complexa utilização ritual que torna essa categoria de esculturas, nos dizeres de Coelho e Quites (2014, p.57), “a essência da imagem devocional na cultura religiosa brasileira”. A afirmação dessas estudiosas é uma resposta a Germain Bazin, historiador da arte francês e ex-curador do Museu do Louvre, que visitou igrejas brasileiras50 e, ao se deparar com as imagens de vestir, questionou se elas seriam a essência ou a decadência da imagem devocional no Brasil: Apesar de [Bazin] não responder objetivamente à própria pergunta, acreditamos que esta imaginária é a essência da imagem devocional na cultura religiosa brasileira, se considerarmos que possuem características que as tornam mais afeitas à aproximação do devoto, pois o fiel dela se aproxima, a ponto de trocar sua roupa, colocar sua cabeleira, doar uma veste, passar um perfume, usar suas roupas e acessórios como relíquias sagradas, pedindo ou agradecendo um milagre alcançado. As imagens de vestir possuem uma técnica e estética próprias, diferente de outras categorias escultóricas e sua função devocional faz com que sua utilização seja múltipla, servindo a retábulos, procissões, conjuntos cenográficos efêmeros, sermões e mesmo imagens de oratórios e outros fins devocionais. Enfim, são essenciais ao teatro sacro da arte religiosa. É importante que o conservador-restaurador ao trabalhar com uma imagem de vestir devocional tenha cuidado ao lidar com seus fiéis, pois, em muitas comunidades, os devotos não concebem ver as imagens sem as vestes, por questões de respeito e decência. (COELHO; QUITES, 2014, p. 57). Essa “essência” sempre vinha à tona quando eu dizia que me interessava pela relação das pessoas com as imagens: “Ah, então você tem que estudar as imagens de vestir!”. Era como se os corpos de santos classificados em outras categorias não instassem relações, nessa linha de raciocínio, fui notando que quanto mais uma imagem é “artificada” (HEINICH; SHAPIRO, 2012), mais é entendida como apartada do mundo e seus vínculos sociais. E, em sentido inverso, quanto menos fossem “essenciais” para a arte, mais envolvidas seriam no mundo das relações ‘mundanas’ que interessam aos antropólogos. O apreço por tais relações é mostrado, surpreendemente, da parte de quem eu imaginava que apenas lamentaria o uso das imagens: profissionais dos museus, restauradores, historiadores da arte etc. Como visto acima, Coelho e Quites (2014) recomendam que o trato técnico com a imagem abarque as preocupações dos fiéis com respeito e decência. Nessa mesma direção, em sua análise do deslocamento de imagens sacras para os museus, o restaurador Atilio Colnago explicita como a exposição pode tornar as vitrines dessas instituições verdadeiros jazigos de funcionalidade: 50 A convite do primeiro diretor do IPHAN, então SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade. O trabalho de Bazin será abordado novamente no capítulo seguinte. 72 As imagens de roca ou articuladas agora se mostram sem suas túnicas, e mantos, e véus, e perucas, e brincos e colares. Mostram-se carecas e nuas, como estranhas personagens, expostas à curiosidade alheia, com suas vergonhas aparentes. O que agora aparece é o seu processo construtivo – as ripas das armações e as articulações –, que foram feitas para ficar ocultas sobre os cabelos e as sobreposições dos tecidos. Não foram construídas para se apresentar sem suas roupas e complementos, pois sem eles perdem seu referencial iconográfico e não figuram como santos. O que dizer das cabeças dos santos de roca que, perdidas de seus corpos, sem a gestualidade de seus braços e mãos, sem as roupas e atributos que definiam sua iconografia, jazem sem expressão em seus nichos articulando um discurso ininteligível com o espectador (COLNAGO FILHO, 2011, s.p., grifo meu)51. Figura 22 – Exposição de imagens de vestir na Mostra do Redescobrimento, realizada em São Paulo, em 2000. O display é interessante por permitir a visualização dos corpos dos santos tanto “nus”, quanto vestidos. Foto: Denise Andrade, reproduzida em Salvat (s.d., p. 13). Edilson Pereira (2014) também observou que a interdição da exposição da nudez das imagens de vestir é difundida não só pelos devotos: A preocupação com a exposição de imagem cujo corpo é montado ultrapassa as delimitações de um grupo de fiéis em particular, podendo ser identificada igualmente entre devotos, técnicos e membros do universo acadêmico (cujas distinções entre si, como se observa, nem sempre são muito claras). (PEREIRA, 2014, p. 38). Apesar desse consenso quando o assunto é mostrar corpos de santos cobertos ou descobertos – ou, numa visão alternativa, montados ou desmontados – a museóloga Edjane Silva, do Museu de Arte Sacra, da Universidade Federal da Bahia (MAS-UFBA), chamou minha atenção para uma situação em que o debate sobre a dignidade da exposição opõe técnicos, devotos e suas respectivas concepções sobre o corpo da imagem ideal. Quando a instituição restaura as peças52, o 51 Agradeço a Beatriz Coelho pela indicação dessa referência. 52 O MAS conta com ateliê de restauração onde são desenvolvidas atividades envolvendo alunos da UFBA. 73 faz de modo a preservar a “historicidade do objeto”. Contudo, de acordo com Edjane, as irmandades que cedem peças para o museu oferecem resistência quando recebem, por exemplo, um santo com braço quebrado e não reconstituído. O regime de comodato, como se vê, é uma forma liminar de entrada de objetos nos acervos das instituições, que implica em constrangimentos na intervenção e exposição dos corpos das imagens. Edjane enfatizou que a resistência não se deve à “ignorância do povo” quanto ao valor artístico das peças, como muitos afirmam. Para exemplificar que as imagens são buscadas como forma de presença dos santos por pessoas de diferentes classes sociais, a museóloga contou a respeito de Nossa Senhora das Maravilhas, cujos primeiros prodígios datam da chegada dos portugueses ao Brasil e se estendem até os dias atuais53. Conta-se que foi rezando diante dela que o Padre Antônio Vieira sentiu certo dia, quando criança, o célebre “estalo” que o transformaria no maior orador sacro da língua. Assim, a obra é buscada por pessoas que vão se submeter a testes, como concursos públicos e vestibulares, porque assim elas também teriam “estalos” de conhecimento. A entrevistada ressaltou que “até médico já veio em busca dela, trazendo o filho que ia fazer prova, não é só gente humilde que busca essa Nossa Senhora não”. Os santos “fora de casa” que encontrei nos museus não correspondiam à projeção que eu tinha da imagem fora do seu lugar, ‘destronada’. Guardadas as especificidades de cada contexto, o abrigo do objeto religioso como peça de museu não implica na perda da sacralidade, mas na convivência desta com outras funcionalidades; o que gera um amplo espectro de reações dos profissionais, passando pela consternação em relação à continuidade do uso ritual; pela ponderação sobre a impossibilidade de isolamento absoluto de práticas de culto religioso e mesmo por uma certa celebração do fato das imagens continuarem funcionando enquanto presenças divinas no ambiente museal. A projeção – a partir das considerações de Antônio Marques – de que os museus seriam o lugar do erudito também não se confirmou. Tais instituições abrigam objetos provenientes de coleções particulares, não necessariamente representativos da arte sacra “oficial” que aflui a partir das igrejas. Além disso, mesmo as imagens “oficiais” mobilizam todo um leque de atitudes abordado como “populares” (pela literatura sobre o culto aos santos e pelos próprios funcionários com quem conversei). 53 Trata-se de uma peça de 65 mm, em madeira policromada e dourada, com revestimento de prata cinzelada. Acredita-se que tenha sido trazida ao Brasil em 1552 por D. Pedro Fernandes Sardinha, o primeiro bispo do Brasil. Seria, portanto, uma das primeiras imagens que chegaram ao Brasil. Foi uma das raras peças que se salvaram quando em 1624 os holandeses invadiram a Bahia, destruindo todas as imagens que se achavam na Sé. O revestimento em prata foi feito já em terras brasileiras (MAIA, 1987, p. 146). 74 É válido lembrar que os museus de arte sacra visitados funcionam em parceria com a Igreja, em espaços praticamente anexos a templos ou que tiveram finalidade religiosa no passado (conventos etc.). A linguagem museográfica, de modo geral, dialoga com esses espaços arquitetônicos e auxilia na (re)criação da atmosfera sagrada característica das igrejas. Os gestos “espontâneos” e significativos que se avultam nessa ambiência são os dos devotos. A presença da devoção é ambígua, pois diz tanto sobre a eficácia da exposição de coisas sagradas, quanto da constante ameaça à integridade dessas coisas enquanto obras de arte. Nesse sentido, é o valor devocional que torna a imagem preciosa, mas também a coloca em risco ao convocar os mais diversos atos por parte dos fiéis. Já a ameaça em função de valor comercial praticamente não foi verbalizada pelos funcionários com os quais dialoguei54, apesar dos furtos e roubos serem combatidos por meio das proibições de ações que possam facilitá-los, tais como a entrada nos museus com bolsas e a fotografia da exposição. 1.4 SANTOS DESAPARECIDOS A busca por ‘caçadores de imagens’ em Minas Gerais foi mobilizada por alguns fatores. Como disse na introdução, acompanhei por anos anúncios sobre a realização de “campanhas de recuperação de bens desaparecidos”. Além disso, depois da incursão por Natal eu tinha algumas questões decorrentes da observação etnográfica: em Minas eu me depararia com “objetos do Estado” e não encontraria “nem uma mão de santo para vender”. Inicialmente, procurei interlocutores em dois órgãos: na Promotoria de Justiça de Defesa do Patrimônio Histórico, Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC/MP-MG) e na Gerência de Identificação do Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (GID/IEPHA-MG). Na Promotoria, fui recebida pelo promotor Marcos Paulo Miranda e sua equipe, composta pela historiadora Paula Novaes e pelo assessor Frederico Joviano. Marcos Paulo falou um pouco sobre as complexas dinâmicas desse trabalho: as peças sacras que a Promotoria busca recuperar são valiosas no mercado de arte, a despeito de serem parte do patrimônio histórico nacional e, por conseguinte, inalienáveis. A valoração mercadológica e patrimonial, entretanto, não se reflete na legislação voltada à punição de crimes relativos aos bens culturais. Nas palavras do promotor, “o ladrão que furta a imagem tombada do padroeiro da cidade estará sujeito à mesma penalidade daquele que furta uma enceradeira velha que está atrás do altar”. 54 Uma das exceções aconteceu no Museu de Arte Sacra de Laranjeiras, onde a imagem [processional] de Nossa Senhora das Dores foi apresentada por meio de atributos que hoje estão ausentes: “ela tinha lágrimas de brilhantes, que foram roubadas, junto com uma coroa de ouro e o punhal. E ela, devido ao porte, não conseguiram levar.” 75 Outro paradoxo apontado pelo representante do MP-MG é o fato das peças serem expostas em igrejas, capelas e outros locais com frágil ou nenhum sistema de segurança, ou seja, são preciosidades ao alcance de qualquer um. Medidas que restringem que os visitantes fotografem obras de arte, comuns em museus, por exemplo, dificilmente serão aplicadas em locais onde são feitos registros de cerimônias de casamento, batizado e outros rituais. Desse modo, antes de deslocarem efetivamente as imagens, os ladrões têm condições de estudar a exata localização delas e até mesmo de produzir um “book” com fotografias delas para mostrar as peças para potenciais clientes – atravessadores, que fazem a ponte com os colecionadores e antiquários – e só realizarem o furto depois da confirmação de interesse. De acordo com o promotor, o órgão poderia me fornecer apenas “dados estatísticos” (a saber, uma relação de peças roubadas, organizadas por município), publicações55 e cartazes de campanhas produzidas pela Promotoria. Marcos Paulo foi taxativo que as operações e diligências do órgão sob sua coordenação envolvem sigilo extremo e poucos casos poderiam ser dados como definitivamente encerrados. E como, no jargão jurídico, “o que está fora dos autos, está fora do mundo”, eu não teria um campo de pesquisa ali. Logo compreendi que a produção de conhecimento sobre as imagens é vista de modo ambíguo. É importante que os “bens culturais” sejam inventariados, pois esse instrumento facilita a busca em caso de desaparecimento, por exemplo, para que as peças constem entre as obras de arte procuradas pela International Criminal Police Organization (INTERPOL), é necessário que sejam minuciosamente descritas. A divulgação de informações precisas sobre as obras que continuam em seus loci rituais, entretanto, não é estimulada porque pode suscitar o interesse de colecionadores, ladrões que levam as peças até eles e atravessadores. Além disso, a posse de dados sobre dimensões e outras características peculiares das imagens procuradas facilita que os receptadores sejam cirúrgicos em modificá-las para dificultar sua identificação e possível restituição. No IEPHA, diferentemente do se passou no MPMG, tive amplo acesso aos arquivos. Em visitas realizadas entre 2012 e 2014 coletei dados visando eleger casos dentre os muitos do “Programa de Recuperação de Bens”. Para além dos casos sobre os quais eu me debruçava, o período de pesquisa no ambiente institucional foi importante para conviver com historiadores, restauradores, arquitetos, técnicos e gestores de acervos envolvidos nas empreitadas técnicas da busca do patrimônio mineiro perdido (muitas vezes delegadas pelo promotor citado acima). Assim, apesar da análise de 55 Ambas escritas pelo promotor em parceria com outros autores, são as seguintes: PAIVA, C.M.S.; MIRANDA, M.P.S. Direito do Patrimônio Cultural: compêndio da legislação brasileira. Ouro Preto: UFOP, 2011 e MIRANDA, M.P.S.; ARAÚJO, G. M.; ASKAR, J.A. Mestres e Conselheiros: manual de atuação dos agentes do patrimônio cultural. Belo Horizonte: IEDS, 2009. 76 casos específicos de procura de imagens em Minas ter sido preterida no desenho final da tese em nome de um maior aprofundamento no contexto potiguar, as jornadas no órgão patrimonial desse estado foram valiosas pela troca de impressões sobre “o que está fora dos autos” e acerca de práticas que atravessam o cotidiano de trabalho dos profissionais mencionados. Comecei a compreender o lugar do antropólogo nesse cotidiano já em minha primeira visita ao IEPHA, quando conversei com a arquiteta Ângela Dolabela Cânfora. A então Gerente de Identificação não escondeu sua surpresa ao receber uma doutoranda em Antropologia interessada em imagens de santo e outros objetos religiosos, ou seja, “bens culturais materiais”, posto que a crescente atuação de antropólogos junto a órgãos de preservação patrimonial tem se dado sobretudo na seara do “imaterial”. A despeito da vinda à tona desta ‘divisão do trabalho’ – em que arquitetos e historiadores lidam com “bens móveis e imóveis” e antropólogos são aptos a lidar as “formas de saber, sentir e agir” – de acordo com a profissional, desde que o cotidiano de tais órgãos passou a se calcar nos artigos 215 e 216 da Constituição Federal de 1988, que tratam “Da Cultura”, há um esforço no sentido de pensar os bens culturais de forma mais integrada aos seus usos. A arquiteta exemplificou que, no passado, imagens de santos feitas de gesso raramente eram inventariadas, mas hoje o são, caso tenham “valor cultural” para algum grupo. Desse modo, Ângela sublinhou que a “identificação” é sempre uma “seleção” que envolve “valores e atribuições da sociedade”. O fato do gesso ser mencionado como material diacrítico na produção de valor cultural não era novo para mim. Uma professora já havia me provocado nesse sentido, ao relatar que quando buscava peças antigas para estudar no interior de Minas e os padres perguntavam que tipo de imagem ele procurava, respondia que estava atrás de santos de madeira, pois os de gesso não seriam antigos e, dessa forma, poderiam ser de interesse “de antropólogos, que nivelam tudo, mas não de quem está preocupado com a história da arte”. Uma restauradora do IEPHA não escondeu seu incômodo com o referido nivelamento: “não sei se sou eu que sou muito barroca, mas acho estranho tudo agora poder ser patrimônio. O patrimônio é uma narrativa e uma narrativa você pode tecer em relação a tudo”. A partir desse ponto de vista, o envolvimento de antropólogos nos processos de inventário e tombamento seria visível pelo enredamento de imagens desprovidas de valor estético ou histórico no campo patrimonial. Em vez de inventariar o que é reconhecidamente digno de patrimonialização, portanto, inventaríamos novos patrimônios. Por isso era estranho que eu me interessasse por obras que há muito são consideradas importantes e, por conseguinte, de preferência deveriam ser, de alguma forma, apartadas dos toques e outros gestos decorrentes das relações de devoção. Pelo que me era mais uma vez colocado, não se cogitava que uma antropóloga se interessasse pelas relações entre técnicos e corpos de imagens, pois tais relações seriam por demais desencantadas e antagônicas à passionalidade dos contextos devocionais. 77 A passagem pelos museus já havia sido significativa no sentido de mostrar que o afeto em relação aos corpos dos santos não dizia respeito apenas aos devotos. Durante a consulta aos arquivos não foi diferente: travei contato com os documentos na mesma sala onde acontece o trabalho na gerência de identificação e vez ou outra eu interrompia a restauradora Maria Ângela Pinheiro para perguntar sobre algo na documentação. Numa dessas situações, ela apontou para a imagem no monitor de seu computador e me explicou: “esse santo aqui tinha um dedinho apontado para cima, eu sei porque eu já restaurei ele. Olha que dó ver assim...” O fato da peça estar ‘machucada’ claramente despertava piedade na profissional. Para além da expressão desse lado terno, também registrei momentos em que a técnica compartilhava desafios mais objetivos do seu trabalho: “Como vocês acham que eu posso descrever esse panejamento aqui? É uma veste até a canela? Meia-perna? Abaixo do joelho?”. Outra interlocução profícua no IEPHA se deu com Raphael Hallack Fabrino, que substituiu Ângela Dolabela como Gerente de Identificação. Raphael é historiador da arte e em sua dissertação de mestrado em preservação do Patrimônio Cultural estudou os furtos de obras de arte sacra em igrejas tombadas do Rio de Janeiro (FABRINO, 2012). Em vista disso, conversávamos muito sobre a historicidade do campo patrimonial no Brasil. Raphael sempre enfatizava que um bem cultural desaparecido não necessariamente é um bem que foi roubado. Ele e outros funcionários do órgão relataram casos em que imagens e outros objetos tidos por um período como desaparecidos estavam trancados em um armário no fundo da igreja, ou mesmo na casa de alguém da comunidade, que entendeu que procedendo desse modo deixaria o santo ou objeto valioso mais seguro. Outro relato recorrente envolve objetos religiosos que passaram a pertencer a colecionadores não porque esses os compraram de ladrões, mas de párocos, zeladores de paróquias ou comerciantes associados a eles e os objetos adquiridos dessa forma estão no centro dos casos que geram disputas judiciais. De acordo com o Gerente de Identificação, trata-se de uma prática que se tornou muito comum em meados da década de 1960 até a década de 1990, ocasionada pela “má interpretação do Concílio Vaticano II”, quando se recomendou que os santos fossem retirados das igrejas56, “mas em momento algum foi dito que os padres tinham o direito de 56 O último Concílio Católico (Vaticano II, 11 de outubro de 1962 a 8 de dezembro de 1965) é marcado pela “renovação da liturgia”. O latim foi substituído pelas línguas locais e reforçaram-se os traços essenciais da “romanização”, o processo de reformas religiosas iniciado durante o pontificado de Pio IX (1846-1878) que visava implantar, no mundo todo, o mesmo modelo de Catolicismo: o romano, calcado na espiritualidade centrada na prática dos sacramentos e no senso da hierarquia eclesiástica (OLIVEIRA, 1976). Com o Vaticano II, portanto, a Igreja torna-se oficialmente mais cristocêntrica e dispensa que seus templos sejam povoados de imagens, como era muito comum no Catolicismo brasileiro de herança portuguesa, acentuadamente afeito ao culto aos santos. Passa-se a recomendar a exposição, preferencialmente, de apenas três imagens nos templos: o Cristo (única requerida), a Virgem 78 vendê-los”. Muitos, no entanto, o fizeram e alguns, inclusive, registraram a transação nos livros que documentam a entrada e saída de finanças das igrejas. Dessa forma, seria incongruente “enquadrar” os colecionadores como receptadores a partir de uma “abordagem policialesca”. Tal enquadramento desconsidera, ainda, que pessoas adquiriram imagens e partes de templos no momento da sua demolição. Sem a ação deles, portanto, tais objetos poderiam ter literalmente virado pó e hoje não estariam em diversos museus, por exemplo, já que “grande parte dos museus brasileiros foi formada a partir de coleções particulares”. Ainda de acordo com Raphael, não se pode negar que o mercado de arte “é uma realidade, existe, é pujante e anterior ao serviço de patrimônio.” Essa anterioridade se refere à lacuna de regulamentação observada entre a criação do SPHAN por meio do Decreto Lei n. 2557, de 1937; e a normativa instituída por meio do parecer do processo n. 13/85, que reconheceu juridicamente todos os bens móveis e integrados que faziam parte do acervo de uma determinada igreja na época do seu tombamento, como bens igualmente tombados, pois sem seus “acessórios” os edifícios religiosos não teriam “função ativa”. Em resumo, nesse intervalo entre 1937 e 1985, nem sempre os “bens móveis e integrados” receberam a mesma atenção que era dispensada aos prédios tombados dentro dos quais estavam inseridos. Inclusive, é significativo que de modo recorrente os relatos sobre desaparecimentos incluam justificativas de padres que alegaram ter vendido objetos religiosos que estavam sem uso justamente para fazer melhorias nos telhados das igrejas, por exemplo. Como diz Beatriz Coelho (2005), [...] todos sabemos que padres vendiam imagens para financiar obras sociais ou para sustento da igreja, mas, atualmente, há verdadeiras gangues que roubam para vender. Nos últimos trinta anos, grande número de peças pertencentes a igrejas tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (IEPHA) foram furtadas em Minas Gerais. (COELHO, 2005, p. 243). Maria e o santo padroeiro da igreja ou de devoção da comunidade. A ordem de exposição deve corresponder à justa hierarquia de devoção priorizando sempre o Cristo (BAPTISTA, 2002). As orientações advindas do Concílio também vão influir no destino dos ex-votos: é a partir desse período que muitos santuários começam a descartá-los de modo mais sistemático. A orientação oficial em relação às imagens e aos objetos litúrgicos, entretanto, será diferente: a Igreja passa a incentivar a criação de comissões de arte nas dioceses e tenta se apropriar da injunção patrimonial que emana do Estado, incluindo suas práticas e seu vocabulário (NOTTEGHEM, 2012). No Brasil, tais orientações culminaram na formação de muitos museus de arte sacra que foram criados e são administrados pela Igreja em parceria com órgãos estatais, como secretarias de cultura e universidades. 57 Este decreto define o conceito de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, institui o tombamento como medida tutelar e organiza a proteção do patrimônio nacional. 79 Nas francas palavras da restauradora, a prática de venda de imagens realizada por certos agentes e de conhecimento de “todos” é em certa medida tolerável, pois é realizada para determinados fins. Porém, o crescimento do deslocamento dessas peças – perpetrado por gangues de pessoas alheias à lógica das obras sociais e do sustento das igrejas – é denunciado. As ações de patrimonialização (como o tombamento), conhecidas no senso comum por enrijecer os usos e a valorização dos bens imóveis sobre os quais recaem, silenciosa e paradoxalmente estimularam o interesse comercial em relação aos bens móveis. Não só os corpos dos santos se tornaram mais valorizados, como também seus acessórios e objetos litúrgicos em prataria e ourivesaria. Estes últimos, historicamente furtados por causa do valor agregado dos metais nobres – que muitas vezes eram derretidos e refundidos – passaram a ser procurados pelo alto valor no mercado de arte sem a necessidade de reconversão em matéria-prima valiosa. A realização mais sistemática de inventários foi uma das formas encontradas de frear a dilapidação, por isso mesmo, os agentes que realizaram esses levantamentos foram pessoas reiteradamente citadas por Raphael Fabrino como as mais indicadas para falar sobre a “origem” das peças. O gerente de identificação possui formação que o habilita nesse sentido, tanto que ao passear por um shopping de lojas de decoração no Rio de Janeiro reconheceu uma imagem proveniente de igreja tombada que estava exposta em um antiquário. A grande dimensão – 1 metro de altura – era o indício mais visível de que a origem daquele santo – um São Miguel – provavelmente fosse uma igreja, ou, mais especificamente, um retábulo no interior de alguma, pois a figura tinha os olhos apontados para baixo, “como se olhasse para o fiel” e o panejamento típico das imagens retabulares58. Como os indícios eram bem evidentes, não foi difícil inferir que o santo era um bem cultural, mas, de acordo com Raphael, em muitos casos, a empreitada de identificação não prescinde do saber de pessoas que já arrolaram e estudaram as peças anteriormente. Nessa direção, esse interlocutor sempre mencionava seus antecessores como mais habilitados e, mais do que isso, expressava sua preocupação com o envelhecer de uma geração que detêm um conhecimento fundamental, tais pessoas são tanto profissionais de órgãos públicos, quanto agentes da Igreja59. 58 A apreensão do santo pela Polícia Federal gerou repercussão midiática e especulações sobre o valor monetário da imagem. Por isso, depois da restituição à sua cidade “de origem”, o São Miguel em questão passou a ser exposto em uma igreja dentro de “cela”, como forma de prevenção de um novo furto. 59 Um exemplo citado foi Frei Roger Brunório, Diretor de Patrimônio da Província da Imaculada Conceição, que identificou a imagem do Pai de São Francisco de Assis, Pedro Bernardone, quando a viu como parte do cenário do filme “A guerra dos Rocha”. O santo estava desaparecido há mais de cinquenta anos. 80 A questão do “contato” com as peças estava novamente sendo colocada e Raphael foi mais um interlocutor que me falou de pessoas cuja reputação foi construída pela experiência, mas cujo saber não era propriamente só prático. O profissional do IEPHA afirmou investir no cultivo dessa expertise tão singular, mas que outras atribuições da GID – tais como a realização de “relatórios de impacto cultural” de grandes empreendimentos – impossibilitavam uma dedicação contínua. Segundo Reginaldo Gonçalves (2002), os discursos do patrimônio cultural no Brasil são construídos a partir da “retórica da perda”. Assim, o processo de destruição é combatido à medida que é discursivamente produzido, colocado em relevo e encontra a necessária “ressonância”. Ainda nesta seara, é importante lembrar que as primeiras edificações a serem consideradas “patrimônios nacionais” pelo antigo Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN), nos anos 1930, foram justamente algumas igrejas barrocas mineiras, pensadas particularmente como vinculadas ao passado, à tradição, enfim, como parte fundamental das raízes culturais do Brasil (GONÇALVES, 1996)60. A pesquisa no órgão patrimonial foi interessante para mostrar que a referida retórica, atualmente, também pode ser estendida aos recursos humanos que se dedicaram aos santos e outros objetos feitos de materiais diversos que povoavam o chamado “patrimônio de pedra e cal”. Os antecessores de Raphael olhavam para a minúcia, ao passo que toda atenção estava voltada para o monumental. Em vista disso, tanto a problemática da eleição de monumentos específicos – como as igrejas – como emblemas da “nação”, quanto a concepção de que essa eleição foi superada com a emergência da noção de patrimônio imaterial, não dão conta dos processos sociais concretos que me foram colocados em perspectiva. Estes processos não são constituídos apenas de discursos totalizadores, mas por práticas, formas de fazer-saber que cotidianamente alteram e modulam a eleição pretérita de símbolos do patrimônio e de uma grande narrativa nacional. Além do elogio direcionado a algumas pessoas e suas miradas privilegiadas para as imagens, é mister recuperar que em diversas situações observadas, meus interlocutores tentaram demarcar os limites sobre quem pode acessá-las, vê-las e, mais precisamente, tocá-las. Nesses termos, a aproximação de certas obras religiosas – mesmo a partir de uma instância ‘profana’, como um 60 Ao se debruçar sobre a gênese desse vínculo entre barroco e origens da nação no âmbito da ação de proteção ao patrimônio histórico e artístico nacional, Márcia Chuva (2009) ressalta que tal construção de uma fisionomia de Brasil sem regionalismos, apesar de ir ao encontro dos interesses do Estado Novo, não foi isenta de conflitos. Mario de Andrade, por exemplo, seria voz dissonante, ao defender que as preocupações do serviço de proteção deveriam ser plurais, de caráter histórico, e não necessariamente estético: “...há de se reverenciar e defender especialmente as capelinhas toscas” (apud Chuva, 2009, p. 263). A noção de patrimônio histórico brasileiro que se consagraria, entretanto, foi a que vinculou o Brasil à civilização e à história da arte ocidental através da arquitetura barroca, entendida pelos modernistas como constitutiva do tecido “autenticamente nacional” porque tanto nos remete à ancestralidade portuguesa, quanto aos princípios da “boa arquitetura” que ganhava destaque naquele momento histórico: a arquitetura moderna. 81 órgão patrimonial, um museu ou uma galeria comercial – pode se configurar como violação. Essa forma de ‘corporativismo’ pode ser pensada, nos termos de Michael Taussig (1999), como prática que coloca em relevo o delineamento do sagrado pelo reforço de um mistério. Ao tornar tal mistério impenetrável aos leigos, o segredo profissional confere ares de sacerdote àqueles legitimados a atuarem próximos das coisas poderosas. Os fenômenos compreendidos por Taussig (1999, p. 50), no bojo da ideia de “segredo público”: “o que é amplamente conhecido, mas não pode ser enunciado”, são perpassados por dinâmicas de ocultação e exposição. Nessa lógica, certos fatos de conhecimento partilhado não podem tomar uma grande proporção na vida pública. A revelação do que é sabido é arriscada porque torna patente um conhecimento que quanto mais enunciado e articulado, mais poderoso se torna. Assim, “todos sabemos” de atos de vilipêndio que, apesar de interditos, são levados a cabo. A divulgação deles, entretanto, potencializa o contato com dimensões sagradas antes acessadas por poucos. Ainda nessa linha de raciocínio e contando também com as considerações de outro texto de Taussig (1997), pode-se entender o caráter da produção de conhecimento sobre as imagens – abordado a partir da Promotoria em MG como ambíguo – a partir de seu viés de “transgressão” e, por isso, a evitação de tal produção por agentes externos àquele órgão. 82 2 OLHOS DE SANTOS E DE QUEM OS VÊ Uma janela aberta deixava entrar o vento, que sacudia frouxamente as cortinas, e eu fiquei a olhar para as cortinas, sem as ver. Memórias Póstumas de Brás Cubas Machado de Assis Neste capítulo, inicialmente, apresento a etnografia da montagem de uma exposição. Desse modo, exponho como a intensa experiência em torno de presépios tornou patente a importância de efeitos de posição, escala, manuseio, ornamentação e outros tantos que contribuem para a organização das imagens enquanto personagens da cena da natividade de Jesus. Abordo, também, a apreensão gerada pelo desaparecimento de um desses conjuntos de obras e como nesse episódio a necessidade de um olhar atento a particularidades autorais foi mais uma vez colocada. Em seguida, trato da atividade de identificação e/ou atribuição de autoria a partir do que qualifico como ‘Efeito Aleijadinho’. Tematizo, assim, o olhar que connaisseurs lançam em direção às obras de arte; bem como minha mirada e como ela foi reorientada a partir das interações no campo e, por fim, os artifícios técnicos que possibilitam que as imagens também possam olhar. 2.1 O PRESÉPIO E O SUSTO A montagem de uma exposição foi um dos momentos de aprendizado mais intensivo durante o trabalho de campo. A exposição em questão foi realizada em dezembro de 2012 e seu mote eram presépios dos acervos de Antônio Marques e de Francisco Francinildo, que tratarei de agora em diante por Nildo. A primeira jornada de montagem das obras que reconstituem a cena do nascimento de Jesus em um estábulo aconteceu na varanda da casa de Antônio, sobre uma mesa forrada com pano branco. Um fotógrafo fazia as fotos para o catálogo de apresentação da exposição que aconteceria em alguns dias na galeria Newton Navarro, que fica na entrada da Fundação José Augusto, o órgão responsável pelas políticas culturais do RN. Como improvisamos um estúdio, utilizávamos a luz natural. Alguns presépios eram bem simples, formados apenas por Jesus bebê, Maria e José, as imagens elementares desses conjuntos. Quando esse trio é representado sem os elementos cenográficos da natividade, como a manjedoura sobre a qual Jesus foi colocado depois de nascer, é chamado de Sagrada Família ou Sagrada Parentela. Na cena da natividade, as imagens ficam em posição de adoração, geralmente ajoelhados e voltados para o bebê em seu leito de palha. No conjunto da família, o menino normalmente está no colo de um dos adultos. 83 Os Reis Magos são santos cujas imagens geralmente são apresentadas juntas. Quando Belchior, Baltazar e Gaspar são encontrados individualmente, suspeita-se que sejam partes desgarradas de um presépio. Segundo a tradição cristã, os referidos reis partiram de diferentes destinos, mas, guiados por uma estrela – que aparece como o elemento mais alto de muitos presépios – chegaram juntos para visitar e presentear Jesus logo após seu nascimento. Os demais elementos que compõem a cena são chamados de “figuras”: são anjos, animais, pastores. Naturalmente, os presépios numerosos requeriam mais tempo para serem dispostos de acordo com a configuração desejada, cujo centro é ocupado pela menor imagem, a do menino, que não podia ser sombreada por nenhuma outra. Demandavam também uma superfície maior para serem montados adequadamente, sem que os personagens principais ficassem espremidos junto às figuras de pastores e de animais. Ao contrário desses conjuntos densos e de elementos independentes, aqueles que contam com uma base sobre a qual os personagens são fixos facilitavam bastante nossa ‘linha de montagem’, que precisava não só ser eficiente na disposição adequada das peças, mas também ágil, já que a luz do sol estava indo embora. As fotos e um texto deveriam ser enviados com urgência à gráfica para que o catálogo ficasse pronto no dia da abertura da exposição. Figura 24 – Presépio de Salete Diniz, Madeira, imagens independentes Figura 23 – Presépio de Ambrósio Córdula, Figura 25 – Presépio de João Gregório, Madeira policromada, imagens fixas Madeira, imagens fixas Fotos: Anchieta Xavier, dez. 2012 Enquanto Antônio trabalhava no texto no escritório, eu, Paulina e Nildo nos dedicávamos à montagem para as fotos. Paulina conheceu o colecionador na condição de estudante de Artes Visuais da UFRN, quando integrava um grupo de pesquisa que utilizou obras do acervo de Antônio Marques em estudos sobre arte popular potiguar. Depois dessa experiência, passou a auxiliá-lo quando demandada. Nildo foi sócio de Antônio na galeria do Centro de Turismo e também assinava a 84 curadoria da exposição que preparávamos, ou seja, eu era a mais inexperiente e a produção, a toque de caixa, não possibilitava que eles ficassem me dando explicações a todo o momento. No meio dessa correria, Nildo se deteve por um momento quando montou um presépio de poucas peças, na direção do qual olhou emocionado, explicando que era o que ele mais gostava. Eu perguntei o motivo – definitivamente não era o presépio que mais tinha chamado minha atenção – e ele respondeu: “– Ah, esse é tão especial que é difícil explicar. É o presépio do pai de Xico Santeiro”. Figura 26 – Presépio atribuído ao pai de Xico Santeiro, madeira policromada. Foto: Anchieta Xavier, dez. 2012 Como ressaltaram os curadores no impresso distribuído no dia da abertura da mostra, embora o objetivo maior fosse o de valorizar e divulgar os trabalhos produzidos pelos artistas “nordestinos”, em particular, aqueles nascidos no Rio Grande do Norte, no percurso da exposição o visitante encontraria presépios de origem angolana, moçambiquenha, chinesa, mexicana, argentina, peruana e outros produzidos fora do Brasil. A variedade dos locais de origem dos presépios expostos seria perceptível pela diversidade de materiais, estilos e tamanhos das obras. O trabalho de montagem realizado para as fotos na casa do colecionador se repetiu na Galeria Newton Navarro, na companhia de Ricardo Veriano, artista que foi aluno de Antônio Marques. Veriano foi convidado para montar um cenário, nas palavras de seu ex-professor, “nos moldes populares, bem kitsch, com pisca-pisca e tudo” para o presépio de maior dimensão, de autoria de Chico Santeiro. Com ajuda de uma senhora, que já havia lhe auxiliado em empreitada semelhante em um santuário no interior do RN, o artista utilizou o verso do painel que ficava em frente à porta de entrada da galeria como suporte para o referido cenário. Primeiramente, Veriano cobriu a maior parte dessa estrutura com um papel onde havia pintado o céu, com destaque para a estrela-guia que orientou a busca dos Reis Magos pelo local do nascimento de Jesus. Posteriormente, ele ‘construiu’ a gruta sobre a mesa que dispôs junto ao painel, utilizando-se, para tanto, de uma cadeira coberta por papel pintado com uma mistura de tintas cujo efeito visual obtido sugeria que o material era pedra. Antes de espalhar os personagens do presépio, ele afixou plantas características do Nordeste no cenário, como cactos e xique-xique. 85 Eu me dividia entre o trabalho de montagem das obras e o acompanhamento da configuração que o catálogo ganhava. Fui incumbida por Antônio de acompanhar o trabalho de Socorro Soares, designer da FJA, sobre os conteúdos visuais e textuais que fornecemos. O colecionador me levou até as instalações da Gráfica Manimbu, localizadas no próprio prédio da fundação e me apresentou à profissional responsável por “fazer a arte” explicando que eu lhe auxiliaria, tirando dúvidas e buscando novas informações quando necessário. Para que o tempo exíguo entre o convite para exposição61 e sua realização não implicasse na “gafe que é realizar uma vernissage sem ter o catálogo finalizado”, mesmo que Antônio desejasse um maior preciosismo na apresentação gráfica da iniciativa, concordou que a publicação se resumisse a um impresso simples. Confiar “a arte” do impresso a um desconhecido àquela altura também seria arriscado. Figura 27 – Impresso de apresentação da exposição de presépios Foto: Acervo da autora, dez. 2012 61 Realizado por Isaura Rosado, então Secretária Extraordinária de Cultura do RN, no âmbito do projeto “Privado é público”, que se volta à realização de mostras de Artes Visuais a partir de acervos particulares do RN. Cada exposição ocupava a galeria Newton Navarro por, aproximadamente, um mês. Este espaço já havia sido ocupado por parte do acervo de Antônio Marques entre 15 de agosto e 6 de setembro de 2012, com a exposição “Arte Popular na Coleção de Antônio Marques”, que também se deu no âmbito do projeto “Privado é Público”. 86 Em um dos meus retornos da gráfica, me deparei com um debate caloroso entre Antônio e Veriano, o motivo foi o tecido utilizado pelo artista para forrar as laterais da mesa sobre a qual foi disposto o presépio que ganhou um cenário por ele executado. O ex-aluno utilizou um tecido roxo com estampas douradas formadas por losangos e cruzes. Antônio não se conformava: “Roxo para falar de natividade?”. Veriano respondeu que adquiriu o tecido orientado por uma pessoa. O ex-professor retrucou: “– Pois essa pessoa precisa estudar Teologia! Cores são símbolos na liturgia, roxo é para Quaresma, no Natal se usa vermelho e verde.” A repreensão foi feita, mas não havia tempo hábil para substituir o tecido. Para adquirir qualquer material que precisássemos, o responsável pelas compras da FJA precisava fazer três orçamentos antes... Por isso, Nildo comprou alguns materiais para acabamento – tecidos e enfeites natalinos, como “festão” – com recursos próprios, mas Veriano disse que não faria o mesmo. Figura 28 – Início da montagem do cenário para presépio por Ricardo Veriano Figura 29 – Detalhe do presépio no cenário de Veriano Figura 30 – Presépio de Francisco Felix de Lima (Chico Santeiro) disposto no cenário Fotos: Acervo da autora, dez. 2012 A discordância em torno do tecido não prosseguiu, mas outros elementos contribuíram para criar um ambiente tenso. Alguns funcionários da FJA realizavam uma paralisação e estavam em “vigília” na porta da instituição, onde manifestavam suas demandas 87 e convocações com a ajuda de um carro de som62. Como a galeria fica na entrada do prédio diante do qual protestavam, quando precisavam passar por ali paravam, queriam tocar nas peças, faziam perguntas... Enquanto corríamos contra o relógio. Muitas pessoas não conseguiam atravessar o local, em tese, de passagem, sem serem atraídas pelas peças que organizávamos. A comoção era verbalizada: “– Que bonitinho!”, “– Olha a manjedourinha!”, “– Olha que lindo!”, “– Que gracinha!”, “– É de madeira?”, “– Quando abre a exposição?”. Referindo-se mais especificamente a essa última indagação, a recepcionista da galeria afirmou que alguns funcionários queriam saber quando seria a abertura da exposição porque estariam interessados em protestar durante o evento, principalmente se a Governadora do Estado, Rosalba Ciarlinni, estivesse presente. Antônio deu risada afirmando que nossa iniciativa não tinha envergadura para tanto, mas que ficássemos atentos ao lado de fora da galeria, para que nada sumisse no corredor onde pastores, Josés, Marias, Meninos Jesus, camelos, galos, ovelhas, anjos e outras peças nos aguardavam enfileirados no chão. Apesar desse cuidado, era quando retirávamos as obras desse alinhamento que mais parecia uma procissão de santos e figuras e as organizávamos de acordo com a configuração da narrativa conhecida por muitos que elas chamavam atenção e suscitavam a interação das pessoas com as imagens e conosco, os únicos autorizados a manipulá-las naquele momento. Figura 31 – Presépios à espera da disposição nos suportes da exposição Foto: Acervo da autora, dez. 2012 62 Os funcionários reivindicavam o cumprimento de uma ordem judicial que obrigava o Governo do Estado a pagar o Plano de Cargos da categoria. 88 Na cidade do Natal, como abordei no capítulo precedente, turistas visitam e moradores convivem o ano todo com presépios-monumentos. Foi ao dispor a cena da natividade em sua versão diminuta, entretanto, que pude travar contato com a precariedade do estabelecimento dos objetos de culto como obras de arte. Eu não esperava que os presépios convocassem tanto à interação. Nessa linha de raciocínio, mesmo que involuntariamente, éramos vistos como realizadores de uma ‘obra aberta’, uma instalação63. Uma senhora estranhou o fato da figura do menino já ter sido colocada por nós nos presépios, já que na casa dela: “– Jesus só chega dia 25. E os Reis no dia 6 de janeiro, mas eles a gente coloca antes, porque dia 6 é dia de guardar [a decoração de Natal]”, ou seja, ela estava nos recomendando que a montagem fosse feita como na casa dos devotos e seguisse, em certos termos, a temporalidade da natividade, na qual Jesus nasce dia 25 de dezembro e é visitado pelos reis Belchior, Baltazar e Gaspar no dia 6 de janeiro. A periodicidade da mostra, entretanto, foi outra. O vernissage aconteceu na noite do dia 19 de dezembro, a abertura para visitação se iniciou na manhã seguinte e se encerrou no dia 31 de janeiro de 2013. Nossa interlocutora de ocasião também sugeriu que completássemos alguns presépios com elementos cenográficos, como, por exemplo, fazendo “laguinhos” para compor as cenas com camelos, assim, nesses conjuntos os bichos poderiam “matar a sede”, mas a montagem das imagens, com exceção da obra utilizada por Veriano, não foi acompanhada de cenário. Alguns conjuntos foram apenas circundados de “festão” verde, outros foram dispostos de forma protegida sobre caixas de acrílico, redomas ou no interior de estantes com portas envidraçadas levadas pelos colecionadores. O ideal, na opinião deles, é que todos os grupos de peças fossem protegidos por anteparos, mas não tínhamos tais estruturas, principalmente para os presépios compostos de muitas figuras e dispostos sobre mesas de mais de 2 metros de comprimento. A solução encontrada foi ligar as peças umas às outras com um fio transparente de nylon, cujas pontas foram amarradas para que ninguém conseguisse remover elementos isolados dos conjuntos. A montagem se estendeu por dias e foi bastante exaustiva. A identificação dos presépios com pequenas etiquetas adesivas não tinha como ser feita sem a consulta aos colecionadores, uma vez que os autores das obras não eram evidentes para mim. Já seus proprietários respondiam com apenas um golpe de vista: “– Esse é Gregório”, “– Ah, esse é Luzia Dantas, é 63 Lévi-Strauss (1989) pensa a escolha pelo modelo reduzido como propulsora da transformação do espectador em agente criador, pois tal opção facilita a apreensão do modo de fabricação das obras de arte: “Unicamente pela contemplação, o espectador é, se se pode dizê-lo, introduzido na posse de outras modalidades possíveis da mesma obra, das quais confusamente ele se sente melhor criador que o próprio criador que as abandonou, excluindo-as de sua criação; e essas modalidades formam muitas outras perspectivas suplementares, abertas à obra atualizada. Dito de outra maneira, a virtude intrínseca do modelo reduzido é que ele compensa a renúncia das dimensões sensíveis pela aquisição de dimensões inteligíveis.” (LEVI-STRAUSS, 1989, p. 40). 89 claro”. Além do nome do autor, acrescentávamos sua localidade de origem e o material utilizado. Os presépios internacionais foram identificados pelas suas respectivas procedências: “moçambiquenho”, “peruano” etc.. A tensão se juntou ao cansaço justamente quando eu estava organizando um pequeno presépio argentino de porcelana sobre uma base de acrílico que elevava um conjunto de seis peças (José, Maria, o Menino Jesus, um boi e dois anjos). Esbarrei em uma delas (José), que caiu sobre a prateleira. Foram segundos de muito sufoco até constatar que, para nosso alívio, a peça não havia sido danificada. Contudo, o momento de maior aflição duraria algumas horas: quando montamos todos os presépios, o colecionador sentiu a falta de um dos conjuntos de peças. Reviramos as caixas cheias de jornais onde eles tinham sido embrulhados; olhamos debaixo das mesas, sob as toalhas que as cobriam; verificamos os porta-malas dos carros... e nada: “ – Nildo, Lilian, é o presépio de Xico Santeiro, vocês têm ideia do que isso significa?”. Não se tratava da obra organizada sobre o cenário feito por Veriano, feita por outro Chico, o de nome grafado com Ch. Também não era um conjunto preso sobre uma base onde poderia conter a identificação da autoria. Como eu não sabia as características das peças de Xico, me cabia a inglória tarefa de procurar sem saber exatamente o que precisava encontrar. O que tinha em mente é que o “Xico Santeiro” em questão relacionava a angústia em torno do presépio sumido e a comoção do sócio de Antônio diante de uma obra quando a preparávamos para ser fotografada. Fui para casa preocupada, porém, ciente de que havíamos esgotado as possibilidades de busca que estavam ao nosso alcance. Quando voltei à galeria da FJA mais tarde, já para a abertura da mostra, me surpreendi com o fato da exposição de quadros de Iaperi Araújo, prevista para acontecer concomitantemente a dos presépios, ter sido montada no ínterim em que fui em casa me arrumar para abertura e voltei para FJA. Como demoramos quase uma semana para organizar as obras das coleções de Antônio e Nildo e durante esse período ninguém apareceu com os quadros, imaginamos que o artista poderia ter desistido de expô-los. O fato é que eles eram bem mais fáceis de dispor... A mostra das telas de Iaperi foi batizada de “A mãe do filho de Deus e os bailados do Natal”. O artista buscou na “iconografia popular” a inspiração para o registro de onze expressões de Maria e dos festejos que, no passado, aconteciam diante dos presépios: Homenagem que o povo me empresta no ciclo natalino para cultuar o filho de Deus, até por ser sua data aniversária, dançando e cantando com suas danças tradicionais que nos remetem às tradições ibéricas de nossas bases culturais. Pastoril, lapinha, capelinha-de-melão, caboclinhos, fandango, nau catarineta estão presentes nesta festa. Os congos de calçola e de saiote, a festa do rosário e o camaleão de Igapó que sumiu da memória popular, mas que o artista guarda ainda na recordação dos tempos áureos do prefeito Djalma Maranhão, todos, com a alegria que somente o povo sabe demonstrar na sua santa ingenuidade, participam dessa festa para honra e glória do nosso senhor Jesus e de sua mãe. 90 As celebrações cantadas e dançadas em louvor ao nascimento de Jesus Cristo que ganharam forma pictórica nas telas de Iaperi também foram mencionadas de modo nostálgico em sua fala na apresentação da mostra. Antônio, por sua vez, destacou a importância das obras expostas em tempos de profusão de símbolos comerciais, como a árvore de Natal e a figura do Papai Noel. O presépio foi apresentado como símbolo natalino diretamente inspirado nos escritos do Evangelho, tema de representações sacras teatrais que ganharam forma material pela primeira vez por iniciativa de São Francisco64, mas a mostra foi apontada como uma iniciativa louvável, sobretudo, porque a cidade do Natal não pode esquecer que é a Cidade-Presépio. A governadora Rosalba não compareceu à abertura, não houve protestos dos funcionários que realizavam a paralisação durante a montagem da exposição. Mesmo assim, Antônio não aparentava estar tranquilo. Quando lhe perguntei o motivo da tensão, fui surpreendida pela informação que o presépio desaparecido havia sido encontrado e foi integrado à exposição. Estava lá em casa, na pressa, nós esquecemos de trazer. É um perigo a gente fazer tudo [selecionar, embalar, transportar, montar]. Pense que a gente poderia ter perdido ele aqui na porta... Às vezes, a gente coloca a peça em cima do carro para pegar outra lá dentro e, como estamos com cabeça cheia, lá em cima ela fica, para qualquer um que passar pegar. O susto foi tão grande que hoje mesmo esse presépio volta comigo, não tenho tranquilidade de deixar aqui. O colecionador se comprometeu a me emprestar publicações para que eu pudesse entender melhor a importância do autor do presépio. Antes do meu acesso a esse material, entretanto, resumiu a relevância de Xico com as seguintes palavras: “– Ele é o nosso Aleijadinho”. Figura 32 – Presépio de Xico Santeiro. Madeira policromada. Foto de Anchieta Xavier, dez. 2012 64 Nas palavras do curador no impresso de apresentação da mostra: “de acordo com relatos históricos, o primeiro presépio foi montado por São Francisco de Assis, no Natal de 1223. O religioso projetou o presépio em argila, na região do Lácio, na Itália. Sua ideia era explicar às pessoas mais simples, não apenas o significado, mas também a forma como aconteceu, historicamente, o nascimento de Jesus”. 91 2.2 O EFEITO ALEIJADINHO Apesar de não ter estabelecido os santos barrocos como objetos privilegiados nesta tese, frequentemente as imagens com as quais travei contato durante o trabalho de campo resvalaram nas qualidades intrinsecamente atribuídas a eles. No imaginário daqueles que apreciam as imagens brasileiras enquanto obras de arte, os santos barrocos ocupam o lugar de apogeu do virtuosismo técnico. Nessa direção, o barroco não é delimitado precisamente em termos estilísticos ou de suas respectivas periodicidades e variações dentro e fora do Brasil. Tratam-se de referenciais diversos mobilizados de modo recorrente na relação com as obras que extrapolam sua concepção como um período histórico e artístico determinado e avultam-se como pervasivos na criação e na circulação de certos corpos das imagens. Não se trata de afirmar que todas as imagens sejam barrocas65, mas de explorar como elas, de certo modo, subsumem outros corpos de santos e o trabalho das pessoas que lhes dão forma. Essa subsunção é capitaneada pela figura de Aleijadinho66. Em meu primeiro encontro com Antônio Marques, quando eu ainda estava definindo quais seriam meus principais interlocutores, o então galerista foi enfático que se eu quisesse explorar um “campo novo” precisaria me afastar da arte erudita e oficial produzida pelo escultor e arquiteto Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, consagrada na história da arte e conservada nos museus de arte sacra. A despeito dessa colocação e de o colecionador afirmar não ter peças “representativas” do período barroco, não raro a obra de Aleijadinho foi citada como parâmetro, seja pela sua talha “inconfundível”, seja pelo posto de destaque sem igual no rol de artistas que deram corpo a imagens sagradas no Brasil. Trago novamente a lume um importante extrato de nossa conversa: Então isso é um campo que eu acho que já foi muito estudado, não sei se vale a pena você ir por aí, por que como é que você vai fazer uma tese hoje sobre Aleijadinho? É possível fazer? É, mas já tem tanta tese sobre o Aleijadinho que se você quer explorar um campo novo... a não ser que você pegue uma imagem dele, duas, três e vá dissecar até a alma da estátua. Talvez seria até interessante, mas já têm estudos. 65 A imaginária religiosa erudita produzida no Brasil é enquadrada em três períodos estilísticos distintos: “uma fase maneirista, durante todo o século XVII, quando predominavam as oficinas conventuais; um período barroco propriamente dito, entre 1720 e 1770, e, finalmente, uma fase rococó, nas três décadas finais do século XVIII, com prolongamento no século XIX em algumas regiões”. (COELHO; QUITES, 2014, p. 34). 66 * 1738 † 1814. Segundo o Dicionário Oxford de Arte, o escultor “era conhecido como Aleijadinho em virtude de uma enfermidade que, a partir dos seus 30 anos, privou-o do uso das mãos; diz-se que trabalhava com martelo e cinzel amarrados aos membros semiparalisados.” (CHILVERS, 2007, p. 310). 92 A imagem da dissecação de uma obra até sua alma não parece metafórica nos laboratórios do Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (CECOR)67. O processo de restauração busca devolver a estabilidade física e estética dos santos. Para tanto, as imagens passam por processos de desinfestação, limpeza, remoção de repinturas e reintegração de camadas, que podem demandar o esquadrinhamento de seus corpos por meio de exames de prospecção estratigráfica, raio-x, tomografia, endoscopia etc. Conversei a respeito desse trabalho com Beatriz Coelho, uma das idealizadoras do CECOR. A restauradora-autora de obras de referência sobre escultura devocional é, atualmente, presidente do Centro de Estudos da Imaginária Brasileira (CEIB)68, fundado por ela juntamente com a historiadora da arte Myriam Ribeiro de Oliveira, que se notabilizou como especialista em barroco e na obra de Aleijadinho. De acordo com Beatriz69, a figura do escultor é tão paradigmática que “embaça” o estudo de outros bons artistas eruditos: “– Tudo que é bom se pensa que é do Aleijadinho, mas tivemos outros, que não foram tão gênios quanto ele, mas existiram, e o CEIB existe justamente para mostrar que há outros com trabalho de alta qualidade. Não são populares, são eruditos desconhecidos”. Mais adiante nos debruçaremos sobre as características dos santos populares, por ora, é preciso discorrer um pouco mais acerca dos artistas eruditos desconhecidos mencionados pela restauradora. Resumindo uma longa discussão para começar a tateá-la, nas palavras de Beatriz, dizer que um artista é erudito significa “– Que ele produziu de acordo com o estilo e as técnicas de um período”. A ‘dissecação’ de um santo, nesse sentido, busca revelar técnicas construtivas, possível local de origem da fatura e o período cronológico de produção. A operação tem o potencial de trazer à tona dados e informações que ajudam a atribuir a autores obras não documentadas. Os autores dos corpos das imagens são desconhecidos porque não eram vistos como artistas quando produziram os objetos que nos interessam, tampouco as imagens que lavravam eram assinadas como obras de arte. Os santos eram feitos por meio do trabalho de pessoas atentas a necessidades devocionais que passavam ao largo dos conceitos modernos de autoria, de estilo e de originalidade. A construção de vínculos das imagens com essas noções passou a ser feita posteriormente, quando começam a ser atribuídas a autorias específicas. Um dos caminhos para tanto é o cruzamento de suas características físicas com contratos, recibos, livros de tombo ou outras formas de documentação das irmandades, ordens terceiras e das igrejas que encomendaram as peças no passado. 67 Vinculado à Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG). Associação científica vinculada ao CECOR/EBA/UFMG. 69 Para fins de distinção entre informações obtidas via comunicação pessoal e dados pesquisados nas obras da restauradora, abordo as primeiras informando o primeiro nome de Beatriz e as segundas de acordo com as normas de citação, ou seja, como Coelho (2005); Coelho; Quites (2014); Coelho et al. (2003). 68 93 Na falta dessas “comprovações”, as imagens são relacionadas a autores por meio da identificação de um estilo, das marcas pessoais que o artista imprimiu nas peças e que acabam por funcionar como sua assinatura. Nesse processo, a artista pode sair do anonimato sem que necessariamente tenha se descoberto seu nome próprio. A alcunha, em muitos desses casos, relaciona-se diretamente ao local onde as imagens presumivelmente feitas pela mesma pessoa – devido ao fato de reunirem um certo número de características peculiares – são encontradas. É o caso de Mestre Piranga que, como ressaltam muitos profissionais, deveria ser chamado de Mestre de Piranga, assim como se passa com o Mestre de Barão de Cocais e com o Mestre de Jacuí. A inclusão da partícula de, nessa direção, deixaria claro que Piranga não designa uma pessoa e sim a localidade no entorno da qual o artista teria atuado mais significativamente. Outra forma comum de nominação é inspirada pelas marcas impressivas que mais se destacam nas séries de imagens. A partir dessa lógica, o colecionador José Alberto Nemer (2008) nos apresenta os artistas “Mestre do Cabelo Longo”, “Mestre do Leque”, “Mestre do Estilo Delicado”, “Mestre da Cara Larga”, “Mestre da Cara Simples” e outros. Os nomes dos artistas são então produzidos pela associação dos traços formais de suas imagens ou da ligação com espaços regionais de produção. Tem-se, então, um princípio de identificação que ultrapassa a singularidade de cada obra para alcançar a particularidade do conjunto do trabalho de um artista. Este, quando identificado, passa a se fazer presente nos santos, cujos corpos, nesse sentido, envolvem mais que a evocação de uma divindade do panteão católico. Nesses termos, “um São Jorge” passa a ser “um São Jorge do artista tal”. Em linhas gerais, isso quer dizer que uma imagem específica foi atrelada a um repertório autoral mais amplo, no qual se verifica a recorrência de certas características. No caso de uma peça feita por aquele que é considerado o maior artista colonial brasileiro, um São Jorge pode ser chamado ‘simplesmente’ de “um Aleijadinho”70. Se visto de relance, esse modo de tratamento parece não incidir na singularização da imagem, pois reduz a quantidade de informações sobre ela. Nesse contexto, entretanto, não dizer o nome do santo visa endossar uma autoria excepcional. Vejamos que a singularização, por conseguinte, pauta-se em uma forma de personalização específica. Quem olha para um santo e percebe “um Aleijadinho” destaca que o artista imprimiu na imagem não só os elementos iconográficos que concorrem para dar a ver uma invocação específica, mas principalmente um conjunto de características formais que nos colocam na presença de seu trabalho notável: 70 Como se pode ver, por exemplo, nas seguintes manchetes: “Quanto vale um Aleijadinho?” e “O homem que esculpiu um Aleijadinho”, publicadas, respectivamente, nas revistas Istoé Dinheiro e Época. 94 [...] panejamentos angulosos, esculpidos em largos planos cortados por arestas vivas, os cabelos e barbas com deliberado efeito ornamental, os olhos amendoados com acentuação dos lacrimais, as sobrancelhas altas e ligadas visualmente ao nariz, os lábios de desenho sinuoso, os bigodes em linha contínua com o septo nasal, a articulação em V dos pescoço e estrutura robusta dos corpos, com musculatura e veias evidentes. (OLIVEIRA et al. 2002, p. 24). Os autores que elencaram esses traços como típicos do estilo pessoal de Aleijadinho arrolaram ainda outros – “o canon baixo das esculturas, a implantação paralela do polegar e os pés dispostos em ângulo reto” (OLIVEIRA et al. 2002, p. 23) – como pertencentes a um repertório mais geral de gosto e estilo de época, que apesar disso, rotineiramente é associado apenas ao famoso escultor. Além disso, certas especificidades – “como a barba bipartida deixando a parte central do queixo aparente, as barbas frisadas em rolos, as mechas em vírgula na testa, os malares salientes [...]” (OLIVEIRA et al. 2002, p. 24) – a despeito de dizerem respeito, sobretudo, aos personagens de uma obra específica do escultor, os Passos da Paixão, são procuradas a todo custo em imagens que não fazem parte desse conjunto. Vulgarmente, para um São Jorge ser “um Aleijadinho”, portanto, não basta o corpo de um santo que possua lança, armadura de soldado etc., é preciso também conter a presença dos elementos diacríticos mencionados acima. Muitos deles se referem, entretanto, a imagens, como as dos Passos, feitas para atuarem em uma localização bastante específica. O conjunto em questão continua integrando o adro da igreja para o qual foi esculpido entre 1800 e 1805, a Matriz de Matosinhos da cidade de Congonhas-MG. Essa integração é fundamental para compreender a gestualidade das imagens, exacerbada, feita para ser vista à distância e “incompreensível” se desligada do seu contexto. Não há comunicação direta com o observador: as relações se fazem entre os próprios personagens do grupo, subordinados à ação dramática da cena representada, a martirização de Cristo, comumente chamada de “Paixão”. Na visão dos especialistas, as características desse conjunto, considerado a obra-prima de Aleijadinho, não podem ser tomadas como pertencentes a toda sua produção. Primeiramente, por causa da especificidade de sua localização e também porque são representativas, ainda de acordo com Oliveira et al. (2002), da fase mais madura da trajetória do artista, caracterizada por uma maior estilização em contraposição ao naturalismo de quando estava formando seu próprio estilo71. A partir de comparação com os problemas de autoria colocados por obras literárias Guiomar de Grammont (2008) critica o estabelecimento de convenções nas Artes Plásticas que levam à anacrônica construção de uma individualidade autoral. A autora discute ainda como as 71 Segundo Oliveira et al. (2002), o caminho de Aleijadinho do naturalismo à estilização compreendeu três fases: Primeira fase (Formação do estilo - c. 1760-1774); Segunda fase (A realidade idealizada - c. 1774-1790); Terceira fase (A espiritualidade sublimada - c. 1790-1812). 95 características do que seria o estilo Aleijadinho acabam por dificultar o trabalho das próprias pessoas que as alçaram ao caráter de “padrão”, principalmente quando estas se deparam com um curioso fenômeno: peças que são visivelmente “um Aleijadinho”, mas não se parecem com Aleijadinho. Grammont cita o exemplo de Germain Bazin72, um dos primeiros a estabelecer alguns dos parâmetros que se tornaram praticamente cânones das imagens do artista, que ao defrontarse com uma imagem de Cristo Flagelado a atribuiu inicialmente ao escultor, mas posteriormente hesitou por encontrar na peça a falta do furo no queixo e barba sem a famosa repartição que seria característica de qualquer “Aleijadinho”. Os chamados estilemas autorais não se faziam presentes na imagem, mas o autor sim. Afinal, como uma peça tão extraordinária não seria obra da persona artística mais extraordinária de que se tinha notícia em termos de esculturas de santos coloniais? À luz dessas questões, a autora argumenta que a construção da singularidade de Aleijadinho foi feita às custas de “um efeito de uniformização e empobrecimento do fundo, ou seja, dos outros artífices que viviam no período.” (GRAMMONT, 2008, p. 208) Esse efeito impede que o trabalho de outros artífices venham a lume e esfumaça o horizonte de possibilidades das obras do próprio escultor celebrado, pois tem como guia mental uma obra-padrão que diz respeito à produção estereotipada de um artífice e ao modo como certos lugares comuns sobre essa produção se constituíram como um dos alicerces da edificação do mito Aleijadinho. Esta não é a história de um personagem. É a história de uma imagem que se desdobra em outra e outra. […] Aleijadinhos há muitos, não apenas nos museus e nas casas dos colecionadores, mas também na morada de uma nacionalidade constituída de imaginários diversos ao longo dos últimos dois séculos. (GRAMMONT, 2008, p. 33, grifo meu). Escavar as camadas de interpretações que recobrem a excepcionalidade do artista escapa aos meus objetivos, mas é pertinente observar a multiplicação de “Aleijadinhos” nos museus e nas casas dos colecionadores aventada pela autora. Como me disse Beatriz Coelho, a restauradora com quem dialogo no início dessa sessão: Todo mundo quer ter um Aleijadinho. Porque se for um museu, o museu cresce, o acervo do museu fica melhor. Se for um comerciante, algo que vale dez, se for do Aleijadinho vale cem. Ele teria que ter vivido três vidas para produzir tudo que dizem que é dele. Nessa direção, é interessante perceber como o discurso totalizador característico das grandes narrativas nacionais que institui a obra de Aleijadinho como a verdadeira encarnação da estética barroca brasileira acaba por fazer proliferar os corpos atrelados ao escultor. A problematização da atribuição de autoria como empreitada anacrônica, uma vez que envolve noções 72 Historiador da arte e ex-curador do Museu do Louvre que, como informado no capítulo anterior, visitou igrejas brasileiras a convite do primeiro diretor do então SPHAN, Rodrigo Melo Franco de Andrade. 96 – como as de artista e originalidade – estranhas aos sujeitos históricos envolvidos na produção de imagens não deixa de ser válida, mas pouco diz sobre a operatividade da personalização e atual circulação desses corpos de santos enquanto obras de arte. A pretensa vastidão da obra do artista (e aqui não chamá-lo de artífice é uma forma de me aproximar dos meus principais interlocutores em campo) coloca em relevo uma série de aspectos. As imagens que fogem da tipologia esperada para uma peça do escultor contrariam especialistas ao passo que revelam outros. Exemplo ilustrativo é o de um colecionador que foi processado por ter afirmado que um Cristo de Aleijadinho pertencente a outro colecionador seria “ruim e bixiguento” (CLAUDIO, 2016). A apreciação negativa foi feita por ocasião da exposição na mostra “Brasil Barroco – entre o céu e a terra”, apresentada no Petit Palais de Paris em 1999. De acordo com o proprietário da imagem, o comentário fez um potencial comprador desistir da aquisição da obra, apesar do Cristo em questão ter sido atribuído a Aleijadinho, no passado, por Germain Bazin. O próprio colecionador, autor do diagnóstico fatal para a comercialização da peça, teve a autoria de vários Aleijadinhos de sua coleção contestados por especialistas na publicação O Aleijadinho e sua oficina - Catálogo das Esculturas Devocionais. Nesta obra, Myriam Ribeiro de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos (2002), profissionais de longa atuação no IPHAN73 e reputados como grandes conhecedores da obra de Aleijadinho, afirmam que a maioria das peças atribuídas ao artista teriam sido feitas, na verdade, por seus aprendizes e auxiliares, tendo em vista que a confecção das imagens era realizada em oficinas que congregava artífices com diferentes ocupações e níveis de habilidades. Sendo assim, um conjunto de peças relacionadas a Aleijadinho – posto que apresenta as características da obra do escultor e em função do nome do mesmo constar em recibos – provavelmente foi uma criação de várias pessoas sob graus variados de sua influência: “diretamente de Aleijadinho, ou dele junto de sua oficina, ou de sua oficina sob sua orientação direta” (OLIVEIRA et al. 2002). Essa classificação e a periodização da obra do artista remetem tanto a elementos objetivos, mensuráveis e comparáveis, tais como o cabelo, os olhos e as narinas características e relativas ao aprimoramento paulatino trabalho do mestre; quanto à “força da obra aleijadiana” e às “peças de grande presença e força”. Execuções “canhestras”, “sem o apuro do mestre”, “sem o vigor e força inerentes à obra aleijadiana”, que “não impressionam o espectador”, “inexpressivas” e com “marcas de imperícia” são relegadas aos auxiliares do artista, confirmando sua genialidade “indiscutível”. 73 Myriam Oliveira, como já foi mencionado, é historiadora da arte, atualmente professora da UFRJ e consultora do IPHAN. Olinto Rodrigues e Antônio Fernando integram os quadros do IPHAN e participaram da realização de inventários de milhares de bens tombados pela instituição, especialmente, em Minas Gerais, por isso mesmo foram citados várias vezes por ocasião do trabalho de campo que realizei no IEPHA-MG. 97 Vejamos um extrato da descrição de uma imagem (um Busto de Santo Franciscano): A figura apresenta características formais da obra do Aleijadinho, como o tratamento dos cabelos, a conformação óssea do rosto muito saliente, o desenho das sobrancelhas, os olhos, o nariz, a boca e os lábios recortados, assim como os bigodes saindo das narinas, as barbas contornando o maxilar inferior e as rugas na fronte. Apesar dessas características, não tem a força da obra do mestre. O desenho um tanto canhestro das nuvens da base do busto, os concheados regulares e miúdos na parte inferior, e a expressão apática da figura fazem com que seja atribuída à oficina do Aleijadinho. (OLIVEIRA et al. 2002, p. 288, grifo meu). A referência à “força” também pode ser encontrada em outro documento (COELHO et al., 2003) no qual analistas explanam os caminhos que justificam sua conclusão pela “confirmação de atribuição” de autoria a Aleijadinho, As características formais e estilísticas, tanto da anatomia, quanto da indumentária, correspondem às conhecidas como do Aleijadinho. […] Encontramos, entretanto, um detalhe diferente: antes da restauração, a barba contornava o rosto, sem nenhuma separação, não terminando em duas espirais separadas, com em outros rostos masculinos do Aleijadinho. Durante a restauração foi verificado que a barba era unida por um acréscimo feito em gesso pintado. Essa peça foi retirada, tendo ficado o rosto do Cristo com todas as características do mestre Aleijadinho. Mas o que mais impressiona a quem estuda a Nossa Senhora da Piedade de Felixlândia é a força de expressão que emana dessa escultura, o que nenhum discípulo ou falsificador seria capaz de conseguir. (COELHO et al., 2003, p. 46-47, grifo meu). O trecho acima foi retirado de um documento produzido no âmbito do CEIB, laboratório mencionado no início desse tópico como locus de ‘esquadrinhamento de corpos de imagens’ por meio de procedimentos técnicos diversos. Nota-se, entretanto, que a presença do ‘artista-entidade’ sobrepõe-se à visão de seu trabalho detectada em imagens obtidas a partir de raio-x, tomografia ou da lente de um microscópio. Ela “emana” da obra. O fato dos especialistas concluírem que a “força de expressão” da escultura não poderia ser conseguida por um discípulo do artista ou falsificador nos aproxima da problemática da autoria não só das obras em tese produzidas na oficina de Aleijadinho, ou seja, aquelas concebidas pelo escultor, porém realizadas fisicamente por auxiliares diretos, mas também daquelas relacionadas ao seu trabalho por meio de fraude. Se, como já foi mencionado, “todo mundo quer ter um Aleijadinho” e as peças realizadas pelo artista são altamente valiosas74, é presumível que a grande demanda estimule a produção de Aleijadinhos. 74 O lance mínimo para arrematar um lote de sete peças atribuídas ao escultor colocado a leilão no Rio de Janeiro em 2003 foi estimado em R$ 2,05 milhões. (ISTO É DINHEIRO, 2003). 98 Essa longa incursão no universo de questões em torno das obras de Aleijadinho se fez necessária porque a incontornabilidade dessa figura que, por essência, ofusca, é rentável nesse trabalho à medida que aponta para uma “antropologia da admiração”, como na elaboração de Natalie Heinich (1991), a propósito do “l'effet Van Gogh”. Ao discutir a glorificação do pintor holandês, a autora argumenta como a utilização do termo legenda ou hagiografia não é metafórico, pois a celebração biográfica do artista recupera as principais características das vidas dos santos, abarcando tópicos de dimensão sacrificial e heroísmo, por exemplo. Nessa mesma direção, Roger Bastide (1941, p. 13) já havia salientado o tom hagiográfico que permeia as narrativas sobre Aleijadinho: “assim como em torno do santo, flutua em torno do artista uma auréola de legenda.” Para o autor, o “mito” sobre o escultor compõe um conjunto de representações coletivas em torno dos grandes mestres das artes no Ocidente pautado no modelo do herói, do ser que “escapa à condição humana porque é um mensageiro dos deuses”, perseguido pela “Fatalidade” (BASTIDE, 1941, p. 15, maiúsculo no original). A partir dessas referências, o ‘efeito Aleijadinho’ diz respeito em menor medida a esse deslocamento para o domínio das biografias de artistas de formas de vida consagradas como santificadoras; mas, sobretudo, e indo além dos textos, ao modo como a canonização em questão envolve formas e particularidades autorais capazes de nos colocar na presença de entidades e de especialistas reputados como hábeis para identificar a presença delas. 2.3 A MAGIA DO OLHAR Ter olho. Ser bom observador; ser arguto, perspicaz, vivo. Novo Dicionário Aurélio Ao calcar-me no ‘efeito Aleijadinho’, ao invés de desmontá-lo – reiterando o esforço de colocar em evidência o fato do artista ter trabalhado sobre pouquíssimas imagens dentre o grande número que é atribuído à sua mão maculada – atento-me às consequências da admiração que torna sua obra uma espécie de essência presente nas imagens brasileiras. Nessa direção, considero que o escultor “participa” dos corpos dos santos ao modo teorizado por Lucien Lévy-Bruhl (1938-1939), ou seja, de acordo com princípios de simultaneidade e consubstancialidade entre seres e coisas. Essa possibilidade de associação é importante para não excluir o entendimento da natureza de elementos aparentemente opostos. 99 Tal caminho analítico leva ao domínio da magia, no qual os seres, no nosso caso, obra(s) e artista, não se distinguem substantivamente entre si. Imagino que o enveredamento por essa seara não seja uma surpresa para o leitor, uma vez que se abordaram objetos que têm a “força de expressão” característica de um artista como fator constituinte de sua excepcionalidade enquanto obra de arte. Como visto, ao simular as condições de execução da peça e entrever sua lógica de construção plástica, o especialista pode especular sobre a complementaridade da matéria e das técnicas empregadas, mas termina por ratificar que a imagem é um feito fora do comum, que discípulo ou falsificador nenhum seria capaz de copiar. A identificação traveste-se, nesses termos, do caráter de quase comunhão com a força transcendente de um gênio artístico. A captura dessa força constrói ainda a excepcionalidade de quem pode percebê-la. A atividade de identificação de autoria é, nesse sentido, também uma experiência visionária em que o observador de uma imagem não é um espectador passivo de algo inerte. É importante ressaltar que a despeito de todo aparato tecnológico envolvido atualmente na confirmação da atribuição de uma obra, ouvi reiteradas vezes em campo que a palavra final é a de quem sabidamente “tem olho”. Esse olho que nem todo mundo tem é tratado por muitos colecionadores como “olho bom”, capaz de ver mais, aptidão marcada por aspectos não intelectivos, como intuição e sensibilidade. Podemos aproximar as características da visão do colecionador com o poder do olhar do mágico de que falam Mauss e Hubert (2003), que concretiza sentimentos abstratos e vê além e, por ser particular, pode evitar o infortúnio75. Nesse sentido, a avaliação de um santo como “ruim e bixiguento” pode soar como imprecação de colecionador invejoso, mas também como alerta de quem tem um conhecimento específico de causa. O olho bom é tanto acionado, quanto visto com desconfiança pelos próprios colecionadores, posto que enxergaria além em causa própria, atribuindo peças de suas próprias coleções particulares a grandes artistas. Nesses casos, o olho bom, não passaria, portanto, de olho grande, que quem tem, obviamente, é sempre o outro. 75 O olhar é inclusive um dos caracteres físicos que revelam o mágico quando ele se esconde: trata-se de um olhar vivo e nervoso, que pode fazer com que a pessoa seja temida por sua capacidade de lançar “mau olhado” e, consequentemente, fazer mal ao outro. Para além desses agentes, cuja especialidade se faz visível através do olhar, os autores destacam ainda que as pessoas com inteligência considerada anormal têm olhos diferenciados. 100 Por isso mesmo, de modo geral, o ponto de vista de historiadores da arte, restauradores e outros profissionais do campo do patrimônio cultural baseia-se em um olho adjetivado de uma maneira que gera menos suspeita. Ao invés do olho sagaz que uma pessoa é afortunada por tê-lo, é aquele que pode vir a sê-lo: o “olho treinado”. Trata-se do olho que foi exercitado, que se tornou apto a ver, ou seja, é o olho da experiência, que recorre a um estoque de imagens mentais construído ao longo de anos. O exercício da inteligência do olhar, nessa perspectiva, requer longa frequentação das obras e sua observação arguta em diferentes níveis: visão global; impressão do conjunto; exame dos detalhes; das técnicas e dos materiais empregados; do contexto sociohistórico de fabricação, de uso e de comercialização das peças etc. Por tudo já visto podemos traçar tipos ideais de olho e considerar que ter olho bom é diferente de ter olho treinado. O olho bom, mais do que exercitado, é o olho de alguém com capacidade acentuada de discriminar estímulos sensoriais. O elogio dessa acuidade é propalado e faz parte do ethos dos colecionadores, mas é interessante explorar que tal capacidade não é acionada textualmente sem maiores constrangimentos pelos profissionais do campo do patrimônio mencionados acima. Como me disse um historiador da arte, “um especialista na obra de Aleijadinho nunca vai colocar isso em um laudo, mas para nós fala coisas do tipo: – é obra dele porque eu sinto isso”. É interessante notar que essa ‘certeza interior’ não é completamente apagada nos textos sobre as obras atribuídas ao artista, como visto no tópico anterior. Nem visão trivial, nem investigação científica: quem tem olho enxerga mais do que aquilo que se vê porque, ao ser eleito pelos desígnios do artista, consegue se comunicar com a força de sua obra. Essa transação envolve tanto intimidade – sente-se a presença e emula-se as astúcias técnicas para criá-la – quanto respeito – admite-se que ninguém mais seria capaz de fazê-lo. Se a força criativa do artista sobre-humano arrebata e é, por definição, inexplicável, mensurá-la é uma habilidade que envolve alguma iluminação, uma sorte de esclarecimento sobre a fascinação. Assim, podemos concluir que quando especialistas – sejam eles colecionadores, historiadores da arte, restauradores – reconhecem o artista no santo, generalizam a noção romântica do artista como individualidade criadora expressiva e, além disso, incutem sua lavra pessoal na imagem, pois seus olhos enxergam parte da aura da obra que se apresenta difusa para outras miradas. A imagem configura-se assim como artefato hermético que deve ser decifrado por um olhar particular, vocacionado e hábil. 101 Tipos ideais de olho Olho treinado Análise → percepção objetiva ‖ → re-conhecimento → ordem instrumento profissional desenvolvido ao longo de uma carreira institucional76; depurado de idiossincrasias pessoais, imparcial e aperfeiçoado pela experiência. Olho bom ↓ confirmação de uma hipótese, solução do enigma Julgamento → percepção sensorial ‖ instrumento de desenvolvimento de um dom; dote pessoal, passional e aperfeiçoado no trato com as obras. → revelação → força ↓ confirmação do mistério, celebração do esplendor da obra magistral 2.4 TREINAMENTO E INICIAÇÃO DO OLHAR Considerando que o principal colaborador de minha pesquisa possui formação sacerdotal e sociológica, seu olhar pode ser colocado em posição intermediária entre os tipos ideais de olho delineados acima. Durante o trabalho de campo, Antônio Marques, na maioria das vezes, acionava a categoria olho treinado. Desse modo, ressaltava não só os anos de estudo das obras de arte em si, como também uma bagagem acadêmica que não lhe deixa negar os condicionantes sociais de seu “amor pela arte”77. Quando me propus a aprender com o colecionador, estava claro que uma das minhas empreitadas seria treinar meu olhar: Essa santa é provavelmente baiana, eu também conheço pelo estilo, pela maneira de pintar, pelo pedestal, você vê que ela não é pernambucana e nem mineira. 76 77 Realização de inventários, trabalhos de restauração, conservação etc.. Na argumentação de Pierre Bourdieu (2007, p. 10-11), a ideia de que alguém “tem olho” não passa de “ilusão de ótica” que mascara as condições de existência para o amor à arte, ou seja, os padrões de comportamento adquiridos por meio de uma educação privilegiada. Ao invés de “abordagens esotéricas” em termos de “gosto natural”, predestinação ou sensibilidade inata, portanto, o autor trata a experiência estética como algo marcado por um olhar culturalmente determinado. A ideia de que alguns afortunados têm olho também é discutida por autores que abordam o colecionamento de arte primitiva, seja em termos de gosto (DE L’ESTOILE, 2007, p. 366368), paixão (DERLON; JEUDY-BALLINI, 2008) ou evidenciando “a mística do connoisseurship” (PRICE, 2006). Tais pesquisas problematizam como práticas em torno de objetos – utilizados, sobretudo, para colocar em relevo os limites entre “nós” e “eles” – reforçam certos estereótipos sobre os “outros”, mas também participam da recusa de aspectos da civilização ocidental, invocando, por exemplo, formas de relacionamento com as coisas atravessadas por aspectos mágico-rituais. 102 Já esse aqui é pernambucano, esse pedestal não é autêntico, de uma parte ele é todo autêntico, mas daqui pra baixo ele não é. Se você tiver um olho bom você percebe que foi construído. Está bem harmonioso, mas ele só é autêntico daqui para aqui. Essa santa é provavelmente europeia, provavelmente portuguesa, essa é provavelmente de Pernambuco. Tudo eu sei pelo estilo. Essa é portuguesa, com toda certeza, por esse tipo de pedestal bem elaborado, mas eu ainda penso que essa santa tem alguma coisa de italiana. Aí você vê que é um santo muito próximo da arte grega, olha já a arte baiana como é nordestina. Como se pode perceber, nos momentos iniciais do trabalho de campo, nos quais essas falas foram registradas, o que me era apontado não eram questões de autoria. Fui primeiramente orientada a notar origem (“pernambucana”, “mineira”, “portuguesa”, “italiana”); autenticidade e integridade da peça (se suas partes constituintes lhe foram acrescentadas, subtraídas, modificadas ou substituídas); originalidade do acabamento e, não menos importante, a iconografia. Em paralelo às novas categorias que eu ia aprendendo, não raro minhas indagações eram respondidas com nomes que me eram familiares, como quando escutei que para entender vários tópicos sobre circulação ou exposição das imagens eu teria que ler Durkheim e Baudrillard. Apesar do meu desconcerto inicial ao me dar conta que a interlocução que eu procurava estabelecer envolveria a menção a referências bibliográficas, fazer etnografia ocupando o lugar de aluna de alguém reputado como professor era uma opção que envolvia uma assimetria confortável para ambos os termos da relação. Eu não me sentiria uma intrusa realizando perguntas constrangedoras e, na verdade, era eu quem frequentemente ocupava o lugar de interrogada. Contudo, muito rapidamente Antônio enunciou distinções claras entre o tipo de transmissão de saber que ele detinha e a forma como eu estava acostumada a aprender. Se por um lado, tínhamos muito a trocar no tocante à literatura sobre objetos, por outro, foi enfatizado que eu deveria ir muito além dela. Nesse sentido, a primeira bronca do trabalho de campo foi dada quando contei que meu investimento anterior na compreensão da dimensão estética de ex-votos foi feito, sobretudo, por meio de análises de fotos que eu havia produzido no âmbito de pesquisa de graduação e mestrado78 e por imagens de livros. 78 Os ex-votos que abordei durante esse percurso de pesquisa não são considerados artísticos. Fotografá-los foi justamente um exercício de destacá-los da multidão em que se inseriam para discutir outras formas de singularização das peças. Parte do conjunto de fotos resultante desse exercício resultou no ensaio “E o milagre se fez corpo”, apresentado em 2009 na exposição fotográfica da VIII Reunião de Antropologia do Mercosul, em Buenos Aires. 103 Na opinião do professor, por mais que eu tivesse lidado basicamente com objetos industrializados, feitos de cera, parafina e outros materiais considerados pouco nobres, eu deveria ter me atentado à possibilidade de texturas variadas, densidades, volumes e formas nem sempre decodificáveis pelos olhos, quanto mais em reproduções bidimensionais. Nessa linha de raciocínio, uma neófita no mundo das coisas só deixaria de ser principiante se adquirisse conhecimento de modo – literalmente – palpável79. Eu deveria ter ex-votos para quando precisasse consultá-los, assim como recorremos a um livro na biblioteca pessoal. Na impossibilidade de adquirir uma imagem antiga, eu deveria possuir ao menos um fragmento para frequentar a constituição da escultura. O que estava sendo dito é que o saber sobre as coisas envolve a aquisição não só de um olhar privilegiado, mas de uma certa proficiência sensorial. Assim, para além da visão, outros sentidos precisavam ser convocados e, mais do que isso, adestrados. A integridade de uma imagem exteriormente conservada, por exemplo, pode ser aferida com batidas na madeira. Para quem tem a audição apurada, o teste de percussão indica se o interior da obra está oco, se há indício de infestação de cupins etc. Na organização da exposição de presépios vivenciei uma situação ilustrativa do olho treinado como um olhar atento e (re)conhecedor de algo que já foi foco de sua visão antes. Naquela ocasião, uma de nossas tarefas foi retirar os livros que estavam expostos nas vitrines da FJA para que estas pudessem acolher as imagens da cena da natividade. Um desses livros contava a história do Forte dos Reis Magos. Quando Antônio o viu, desacelerou o ritmo de retirada das coisas das vitrines e ficou olhando demoradamente para uma página da publicação, como se a estudasse. A fotografia em preto e branco que ilustrava a página em questão continha os Reis Magos que dão nome ao Forte, cuja fisionomia e gestualidade remeteram o colecionador ao presépio de Xico Santeiro. Antônio então passou a conjecturar se o artista teria se inspirado nas imagens do monumento para esculpir algumas das pequenas peças que hoje habitam sua coleção. Assim, se vários momentos da organização da referida exposição tornaram patente que o relacionamento com aquelas obras não envolvia apenas o olhar – uma vez que trabalhamos o tempo todo organizando efeitos de posição, cromatismo, manuseio, ornamentação etc. – a situação de confronto com a foto do livro traz a importância da escala para o debate. Os Reis Magos da Fortaleza eram velhos conhecidos de Antônio, mas foi visualizando-os em tamanho reduzido e em formato bidimensional na publicação que ele cogitou a possibilidade de relacionamento daquelas imagens com a produção de Xico Santeiro. 79 Para Benjamin (2006, p. 241), a relação do colecionador com suas coisas é permeada de “instinto prático”, cuja posse permite o aprimoramento: “possuir e ter estão relacionados ao caráter tátil e se opõem em certa medida à percepção visual. Colecionadores são pessoas com instinto tátil. A propósito, com o abandono do naturalismo terminou recentemente a primazia do óptico que dominou o século anterior.”. 104 De acordo com Lévi-Strauss (2005), a arte se insere a meio caminho entre o conhecimento científico e o pensamento mítico ou mágico, logo, é realizada com base tanto em “perceptos”, quanto em “conceptos”. A exploração especulativa do mundo sensível, nessa perspectiva, não é uma forma menos científica de produção do saber (e, consequentemente, de organização do mundo). Lidar com objetos materiais que também são objetos de conhecimento é praticar uma “ciência do concreto”. Aproximar a coleção da ordem do sensível não significa apartá-la de aspectos inefáveis. Para além da concretude da experiência empírica, da acumulação de saber envolvida no treinamento do olhar, o cultivo do olho envolve encontros com obras que desestabilizam percursos. Nas palavras de Antônio: “– É uma coisa meio mística, meio maluca. Às vezes, leva vinte anos para encontrarmos outra peça com aquele detalhezinho que mexeu com a gente lá atrás”. Se não se pode afirmar que nesse momento discursivamente localizado no passado o futuro colecionador já tinha olho treinado, pode-se inferir que ele tinha o olho bom para se tornar treinado. A percepção modificou sua forma de ver, conceber e classificar o mundo ao redor. A recorrência dessa desestabilização no confronto com as coisas “mexeu” com Antônio a ponto da busca por novos encontros se sobrepor à reflexão acadêmica sistematizada, ou seja, à publicação de resultados de pesquisa. Porém, sua coleção vez ou outra foi abordada em termos de “– Uma tese pensada, só falta sentar e digitar”. Nessa perspectiva, seus objetos de estudo são materiais, palpáveis; sobre os quais se produz conhecimento cotidianamente, como poderia ser visto em sua coleção, um produto – sempre a ser incrementado – resultante de anos de pesquisa. O alheamento ao meio acadêmico, portanto, é relativo. A propósito, o colecionador se ressente quando fornece alguma obra para pesquisa ou exposição e dão crédito apenas ao artista ou lhe tratam como um “mero fornecedor de coisas” e não como produtor de conhecimento. É como se sempre precisasse lembrar a todos o que para ele é óbvio: aquele objeto não estaria ali se alguém não tivesse ido em busca dele e, além disso, o inserido em uma lógica de estudo. O tratamento como informante foi colocado como, no mínimo, desrespeitoso, pois corrobora com a representação do colecionador como acumulador autointeressado. Certo dia durante o trabalho de campo, Antônio me intrigou ao dizer que meu lugar de “aprendiz de feiticeiro” estava garantido, mas que se pensássemos em “quadro teórico como religião”, ele ainda estava por saber qual seria a minha. Entendi que o professor esperava uma postura mais propositiva da aluna e tentei amenizar lhe mostrando um artigo que tinha publicado recentemente (GOMES, 2013) a partir do qual conversamos bastante. Além disso, reiterei que meu percurso acadêmico de modo algum se equivalia ao que eu poderia aprender observando-o. 105 Só realizei o jogo de palavras envolvendo feitiçaria algum tempo depois. Colocando a provocação de Antônio em diálogo com Jeanne Favret-Saada (2005), os acadêmicos claramente não se deixam “afetar” pelas “intensidades específicas” das práticas de colecionamento e quando se aproximam delas o fazem de maneira a não se implicarem, em nome da cientificidade, ou seja, mais do que quem eu citava, o que estava em questão é se eu iria além do papel “cômodo” de observadora e aceitaria o convite à experimentação de afetos particulares que nossa convivência poderia propiciar. A princípio, imaginei que o fato de eu demonstrar ter ‘corpo fechado’ à recomendação de possuir coisas fosse ser um obstáculo a tal afetação, mas não era essa a neutralidade axiológica em questão. Paulatinamente compreendi que a constante negociação dos papéis que ocupávamos tornaria o treinamento do meu olhar uma experiência, em larga medida dialógica, em detrimento de qualquer expectativa iniciática. Como resume James Clifford (2008), “a iniciação [do etnógrafo] supõe uma experiência de revelações progressivas, conectadas, em que se vai além das meias-verdades e dos tabus, em que se é instruído por membros autenticamente qualificados de uma sociedade.” (CLIFFORD, 2008, p. 196). 2.5 SOBRE OS OLHOS DE SANTA LUZIA E ALGUNS FRAGMENTOS Comecei a ser apresentada mais detidamente aos santos da coleção de Antônio por meio de duas imagens de Santa Luzia. A iconografia dessa santa não me era completamente estranha. Trata-se de uma santa muito conhecida como protetora dos olhos, logo, muito invocada por pessoas que buscam a cura para problemas de visão. A associação da santa com tal parte do corpo diz respeito a duas versões de sua hagiografia. Uma delas é feita pela referência ao seu nome, que remete à luz, fundamento da visão e da via lucis, o caminho reto e iluminado (VARAZZE, 2006). Outra, bastante corrente no Brasil, ressalta o episódio do martírio na qual a jovem Luzia teve os olhos extraídos. Em decorrência disso, estes últimos se tornaram um atributo particular da santa, que os mostra em um prato ou taça. Vejamos em que termos Antônio me apresentou suas Santas Luzias: Uma Santa Luzia dessa foi encomendada por alguém que tinha dinheiro. Aqui é a mesma técnica do Aleijadinho, uma talha fantástica. Isso é muito erudito. A pessoa que entalhou é provável que seja a mesma pessoa que tenha dourado. Isso aqui é folha de ouro. Essa santa tem mais de cem anos. Essa coroa é prata e ela está absolutamente dentro dos padrões do barroco. Se você compara com essa outra Santa Luzia, essa aqui é tão bonita quanto, só que essa aqui é uma santa do culto doméstico. Autor, o mesmo problema que tinha lá tem aqui. Talvez aquela lá até tenha um recibo e se identifique o autor. Essa aqui nem recibo tem. 106 Ambas as santas chamadas de Luzia, de acordo com o que o colecionador mostrou, têm corpos bastante diferentes. É interessante notar que os dois pares de olhos – os da face e os mostrados em um objeto segurado pela santa – sequer são mencionados. O que se ressalta é que uma das imagens custou caro, foi talhada de forma erudita, dourada com folha de ouro, ostenta um adorno em metal precioso e talvez a pessoa que lhe deu forma tenha emitido um recibo que ateste a venda do seu trabalho. A outra é “– Tão bonita quanto”, porém “– É uma santa do culto doméstico” de autoria não identificada. Tais distinções, tão nítidas para meu interlocutor, para mim constituíam um imenso volume de dados opacos. Nas primeiras descrições de imagens que fiz em minhas notas de campo eu não conseguia mais do que adjetivá-las como mais ou menos ‘interessantes’, ‘reluzentes’ ou ‘vistosas’. Essa caracterização pode até sugerir algum encantamento, mas é pertinente notar que comecei a complexificar essas imagens justamente a partir de outras que, num primeiro golpe de vista, ao invés de despertar minha admiração, me causaram estranheza pelo estado em que se encontravam. São as imagens de santos desfiguradas, os fragmentos mencionados como mercadorias em promoção na descrição da galeria de Antônio Marques presente no primeiro capítulo. Para o colecionador, esses objetos são importantes a despeito de não (mais) personificarem santos imediatamente identificáveis aos olhos mais leigos porque nos contam a respeito da “história” da peça e, além disso, nos ensinam sobre processos de fabricação dos santos. Porque o santo perde a cabeça? Porque em geral, pra ter o olho de vidro, eles dão um corte na cabeça, para colocar o olho por trás... Então, esses sem a parte da frente da cabeça, servem inclusive para você saber como eram feitos os santos [antigos] pintados. Primeiro, é a madeira, depois é estucado com um gesso especial, aí depois é que eles vão aplicando as camadas de ouro, de tinta, colocando olho... essas peças são uma lição. (grifo meu) Por meio desses dizeres, percebi que por mais que seja estranho olhar para um rosto que não ‘olha de volta’, precisava entender a desfiguração como característica instituinte da função dos fragmentos naquele contexto. Nessas peças, a falta dos olhos não é exatamente uma ausência, e sim uma pista sobre o uso de uma solução técnica que buscava incutir efeito de realismo no olhar da imagem. Para tanto, como o colecionador explicou, a cabeça era cortada verticalmente depois de talhada, do alto até debaixo do queixo, na direção das fibras, separando a face do crânio com um golpe seco de formão80. 80 O formão é um dos principais instrumentos de trabalho do escultor. Formado por um cabo de madeira e uma lâmina de aço afiada, de modo geral, é utilizado juntamente com o martelo nas partes da obra que demandam gestos incisivos e enérgicos para trabalhar a madeira, como o desbaste inicial para subtrair partes que não participarão da forma final da imagem e o mencionado “golpe seco” para separação da face e do crânio com vistas à colocação de olhos de vidro. 107 Em seguida, nas duas cavidades correspondentes às órbitas, firmavam-se as contas de vidro, fixando-as, muitas vezes, com o auxílio de um material escuro conhecido como cera do Equador. O rosto era reincorporado à peça com cola ou por meio de cravos e pinos, para o caso das peças mais pesadas que demandavam reforço na fixação, mas frequentemente se desprendia com o passar do tempo. Nessa perspectiva, ao permitir a visualização de processos como os descritos, os fragmentos são indubitavelmente ‘santos-lição’, posto que ensinam àqueles que desejam conhecer mais sobre a feitura de imagens antigas. Figura 33 – Fragmentos/Santos desfigurados e mutilados Foto: Acervo da autora, fev. 2012 Nas situações em que o dano é muito grande e considera-se que pequenos preenchimentos ou complementações não recuperariam a peça, ela pode passar a ser vista como um fragmento; preservado pelo colecionador por dizer mais sobre a riqueza do processo de constituição de uma imagem do que sobre seu aspecto final, agora obliterado. Acredito que a importância conferida a esses objetos por meu interlocutor reside no seu empenho em me ensinar e, para tanto, utilizá-los como ‘santos-lição’. 108 A partir do aporte de Gell (1998, p. 6), e sua perspectiva relacional contida na obra póstuma Art and Agency, cabe pensar como um objeto “age” enquanto integrante de um “sistema de ação”. Assim, somos levados a buscar aquilo que acontece com e por causa dos objetos, que por sua vez constituem-se das relações que instanciam. Um soldado é uma das diversas figuras utilizadas pelo autor para pensar a relação entre pessoas e coisas: “um soldado não é só um homem, mas um homem com uma arma” (GELL, 1998, p. 20). É o objeto que faz do homem o que ele é, já que sua agência só existe em conjunção com a arma que ele tem à disposição. Assim, repensamos o homem, mas também a arma que ele segura. Através dessa linha de raciocínio contextual, visualizo o fragmento enquanto coisa que faz do interlocutor-colecionador um professor. Este, por sua vez, ativa no santo danificado – prenhe de possibilidades de funcionamento – o caráter de lição. Os olhos de Santa Luzia, como visto, são sinais distintivos da imagem dessa santa em particular, mas sequer foram citados na descrição que Antônio fez de duas delas. Já nos fragmentos, são os olhos de vidro – ou melhor dizendo, a ausência deles – que nos direcionam para um modo de construir tecnicamente o olhar e as expressões fisionômicas fixadas por esse elemento no rosto dos santos, ou seja, no contexto em que fui apresentada a algumas imagens, os olhos importavam enquanto artifício e não como atributo específico de uma santa ou, tomando em consideração outras estátuas de divindades, como elemento que possibilita comunicação visual entre quem vê e quem é olhado. Logo, para que eu pudesse aprender com os fragmentos, deveria abdicar do estabelecimento de relação com as imagens pela troca de olhares e aguçar a percepção por meio de outros processos. Insistir em buscar a idiossincrasia de Santa Luzia esperando que o colecionador destacasse aquilo que me era familiar em uma imagem dessa santa – os olhos em um 'pratinho' chamado salva – também não me ajudava a visualizar o que ele queria me mostrar e que eu deveria (me esforçar para) ver. O santo-lição é um dispositivo que permite o estabelecimento de um tipo de relação intersubjetiva distinta daquelas que eu estava acostumada a observar. O vínculo que ele coloca em suspenso envolve o colecionador (e sua aprendiz) com a peça, embebida de história, de marcas e de indícios sobre os aspectos técnicos de sua fabricação e de seus usos, dentre eles, a inserção (ou não) na coleção. Ao invés de olhar diretamente para as imagens – e intuitivamente esperar que elas me olhassem – fui desafiada a mirá-las através do olho treinado de quem vê nelas mais do que as entidades do panteão católico que corporificam. 109 A partir do exposto, pode-se colocar minha mirada em perspectiva, já que no início do processo que tenho me empenhado em descrever busquei um olho que ‘olha de volta’ e também tive a expectativa de encontrar o olho que é atributo e acabei por me deparar com a categoria nativa olho treinado. Esta última ocupa um lugar importante na sequência causal que alinhavei a partir do olho, posto que o colecionador diversas vezes enfatizou o seu próprio como espécie de ponto focal para onde converge sua vivência de anos com as imagens de santo. 2.6 CAMADAS E ACABAMENTOS Não ser olho de santo. Não ser coisa que exija excesso de cuidado, exagerada preocupação de acabamento. (AURÉLIO, 2008) Os olhos de vidro são elementos do rosto dos santos que frequentemente figuram no centro de episódios em que se noticia a agentividade de imagens que choram, piscam e acompanham o deslocamento das pessoas com o olhar. David Freedberg (1989) nos diz a respeito: Eyes […] provide the most immediate testimony of life in living beings; in images – where substance, at the first level, excludes the possibility of movement – they are even more powerfully capable of doing so. If an image is perceived as particularly lifelike, then the absence of the eyes may inspire terror. Their presence enables the mental leap to an assumption of liveliness that may not, in the first instance, be predicated on similarity or on te skill of the artist of craftsman. Hence the perceived liveliness of images with eyes, or the acquisition of vitality by acts of completion involving the insertion of eyes. (FREEDBERG, 1989, p. 202). Apesar desse relevo conferido aos olhos, é preciso ter em conta que outras coisas participam da construção das imagens carregando-a de possibilidades de interação sensorial com os devotos ao torná-las semelhantes ao corpo de uma pessoa: perucas confeccionadas com cabelos humanos, roupas em tecidos luxuosos, joias feitas de metais e pedras preciosas, rubis para efeito de gotas de sangue e cristais para lágrimas. Como bem demonstrou Edilson Pereira (2014), não é possível afirmar quando uma imagem está “completa”, também inspirado em Gell (1998), o autor afirma; “No caso de imagens religiosas, o próprio templo pode ser tomado como uma parte que lhes abriga. A imagem seria, nesse caso, o ‘coração’ do templo, e esse mesmo o corpo.” (PEREIRA, 2014, p. 57). Nessa perspectiva, uma estátua de santo é uma composição instável e não a soma contínua de coisas que em algum momento lhe confere uma forma acabada, pois a totalidade de um corpo que pode ser continuamente expandido é sempre provisória. 110 Sabe-se que as imagens barrocas foram feitas para interagir não apenas com quem as olha, mas também com o ambiente onde figuram. Sendo assim, a noção de movimento que pode ser transmitida pelo olhar diz respeito ainda ao vento e à luz das velas e lamparinas que incide nos olhos de vidro. Essa mesma iluminação vacilante sugere movimentação dos planejamentos quando recai sobre os detalhes dourados das roupagens. Face ao exposto, vale lembrar que não necessariamente uma imagem com numerosos elementos em seu corpo (ou ao redor dele) instancia mais relações do que uma de configuração mais sucinta. A humanização das imagens de vestir, por exemplo, pode ser evidenciada não só quando estão ricamente ornadas e prontas para serem expostas, mas também nas situações em que se prescreve que elas não podem ser vistas “nuas”. Como abordei no primeiro capítulo, na opinião de alguns profissionais que lidam com essas imagens, não só “as vergonhas” delas devem ficar escondidas, como também o processo construtivo daqueles corpos, que não é do conhecimento de todos. De acordo com o que demonstrei a partir das considerações de Taussig (1999, 1997), o tabu sobre a revelação das partes mais recônditas das imagens não se resume apenas ao respeito dos profissionais à lógica devota de relacionamento com os corpos dos santos. Em vista disso, inferi a respeito da transgressão envolvida na exposição do que só poderia ser dado a ver pela mediação de um conhecimento técnico particular. Essa proposta analítica que tematiza o acesso ao sagrado a partir de uma complexa dinâmica de ocultação e revelação também é pertinente para refletir sobre outro tipo de imagem ‘despida’: o fragmento. Lembremos que na análise de Taussig, as desfigurações – de monumentos, símbolos ou corpos – são particularmente reveladoras, uma vez que o defacement, o gesto que desmascara, atrai ao passo que revela a interioridade. O fragmento traz à tona uma materialidade primeira e profunda da imagem. Interditos em alguns ambientes por causa de sua degradação e das causas atribuídas ao processo de perda de suas partes constitutivas, tais corpos de santos, quando conjugados ao olho do colecionador, têm a faculdade de promover a visualização de aspectos técnicos que eram utilizados na produção de imagens antigas. Recupero alguns deles a seguir. Depois de esculpida, as partes anatômicas aparentes da figura eram encarnadas a óleo e em têmpera oleosa e polidas, assim, a pele ganhava aspecto acetinado de porcelana. As partes de indumentária eram estofadas. O estofamento é a preparação para policromia pela aplicação de demãos de gesso dissolvido em cola para corrigir as imperfeições da superfície esculpida, processo que elimina as reentrâncias. Nas palavras de Antônio, 111 Não é qualquer gesso. Tem que ser o gesso cré, que é barato, mas não se compra em qualquer lugar. Ele é especial porque você prepara e ele não endurece de imediato, você passa um mês com ele preparado e ainda pode ir uniformizando a madeira com ele. Com gesso normal não é possível fazer esse nivelamento preciso, que deixa a superfície regular, porque o gesso normal seca rápido e tende a craquelar. A camada de gesso era molhada com água ou albumina (clara de ovo) para facilitar a aderência de folhas de ouro à peça (ETZEL, 1979, p. 66), mas geralmente o prédouramento era feito com aplicação de “bolo armênio”, uma argila de tom avermelhado de origem inicialmente armênia e depois trazida também da África. As folhas de ouro, igualmente importadas, recobriam total ou parcialmente a indumentária e os atributos dos santos. Por serem extremamente delgadas, sua aplicação demandava gestos precisos e delicados. Segundo meu principal interlocutor, Aplicar folha de ouro é um negócio de outro mundo, por isso, a gente entende que esse costume foi sendo deixado de lado pelos santeiros. Ela é finíssima, se você soprar ela se quebra, para você ter uma ideia. Então no lugar de aplicação não pode ter nenhum ventinho. Elas chegam inteiras porque vêm de fora em bloco. (grifo meu). Sobre as folhas de ouro aplicava-se ainda uma pintura, em geral, têmpera, deixando descobertas áreas do metal que compõem ornamentos dos tecidos. Outra possibilidade era a retirada da pintura, deixando linhas douradas aparentes (o esgrafiado, ou sgrafitto) e, ainda, o trabalho de incisões e relevo sob o ouro. Como afirma Eduardo Etzel, “o estofamento foi o acabamento do século XVIII por excelência, e com ele a virtuosidade do artista-santeiro chegou ao seu ponto mais alto.” (ETZEL, 1979, p. 66). Nas oficinas coloniais, esse “artista-santeiro” frequentemente era mais de uma pessoa. O escultor dava forma à matéria-prima da escultura81, o pintor a completava, através da carnação; na maioria das vezes acumulando a função de dourador; em outros casos, o trabalho com folha de ouro ficava a cargo de um terceiro artífice. A carnação era o trabalho mais relevante do pintor, já que podia ressaltar ou atenuar a expressividade talhada pelo escultor, e também indicar, pelo tom e brilho da carne, a idade, a condição física do santo representado, se mais viçoso ou pálido etc. A participação ativa do pintor no processo de criação poderia inclusive modificar a intenção do escultor, tornando tristes ou suplicantes as feições de um rosto terno, por exemplo. 81 Ao longo do texto faço menção, sobretudo, ao trabalho sobre madeira, material da maioria das imagens com as quais lidei em campo. A constituição material diferenciada de um santo será mencionada quando for relevante para a discussão em questão. Por ora, ressalte-se que apesar do predomínio da madeira, desde o período colonial têm-se imagens em barro, pedra sabão, marfim, osso, metal e, mais recentemente, em gesso e resina. 112 Ao acessar as entranhas das obras através do fragmento encontram-se as etapas que constituem o corpo da imagem entendido como representativo da fatura erudita. O santo ideal, nesse sentido, é aquele, como a Santa Luzia do tópico anterior, que se enquadra nos “padrões do barroco” e faz parte de um legado escultórico que remete à “talha fantástica” de Aleijadinho. Ter olho para certas astúcias técnicas não significa ser capaz de produzir imagens tais como aquelas esculpidas no bojo do ‘efeito Aleijadinho’. É nessa decalagem, segundo Gell (2005), que reside o “encanto da tecnologia”. Quando os expectadores de uma obra se indagam sobre os procedimentos empregados para produção de efeito (de vida, movimento etc.) e mesmo assim não conseguem reconstruí-la mentalmente, o artista alcançou um ideal mágico. A maestria reside, assim, na habilidade de produzir imagens que maravilham a ponto de personificarem os processos técnicos que lhe dão forma, dispensando a necessidade de explicação sobre eles e certos tipos de perícia, como Antônio enunciou, são “negócio de outro mundo”. Nesse sentido, tornar visível o trabalho do artista que incrusta os olhos nos rostos dos santos é uma forma de desmistificar a produção do olhar que a imagem lança em direção aos devotos. Esse movimento, entretanto, não elimina por completo o mistério dessas obras. Uma vez que o rosto é uma parte particularmente ‘transparente’ do corpo – e “não conhece nudez, porque sempre já está nu” (AGAMBEN, 2007, p. 70) – o santo mutilado é aquele que assusta ao prescindir da expressividade da face para revelar sua verdade. Seu encantamento específico, para o colecionador, não está no olhar. A beleza oculta e particular dessas peças está nas camadas que concentram o que restou de preciosismo técnico. 113 3 AS MÃOS E AS IMAGENS Num meio dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia Vi Jesus Cristo descer à terra, Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, [...] Tinha fugido do céu, Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. No céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem Figura 34 – São João Batista Menino Foto: Lucas Galeno para o Catálogo Patrimônio Recuperado, sem data, p. 58 E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um trapo à roda da cintura [...] Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três, Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz [...] Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina [...] Depois ele adormece e eu deito-o Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. […] O guardador de rebanhos – VIII Fernando Pessoa/Alberto Caeiro 114 3.1 O CUIDADO COM AS IMAGENS No capítulo anterior aventei o quanto a destreza dos gestos criadores característicos das imagens eruditas envolve o aperfeiçoamento do corpo entalhado com recobrimento de outras camadas de material. O fragmento, o santo desfigurado, além de permitir a visão dessas camadas, compostas de materiais diversos, transfigura-se em aula porque mostra outras possibilidades de acabamento e sugere os motivos do desgaste revelador. Nas palavras do colecionador-professor, Veja esse Santo Antônio aqui. Eu encontrei desse jeito. Eu poderia procurar um bom restaurador e colocar o bracinho, tirava essa tinta, colocava um boa, botava até folha de ouro. Só que fica caro e, além disso, a história dele é essa. A pessoa não teve cuidado, a família... mas... esse Santo Antônio, você olha pra ele e vê uma expressão de tempo maravilhosa, de coisa gasta. O Santo Antônio danificado até poderia ser reconstituído, mas no contexto em questão, sua dignidade reside no seu caráter de coisa gasta que tem expressão de tempo. O uso pouco cuidadoso, por conseguinte, não só gasta a imagem, como também a recobre de marcas. O tempo ‘depositado’ mostra que as lições contidas nos fragmentos não se resumem à possibilidade dos estudos de suas camadas, mas também das impressões deixadas nesses estratos por outros sujeitos que não aqueles que deram corpo e ‘carne’ às imagens. Desse modo, os fragmentos possibilitam inferências acerca dos usos que lhes impregnaram traços até pouco antes do momento em que foram encontrados. Restaurar a peça, remover sua pintura e colocar uma tinta boa, quiçá recobri-la com folha de ouro, são ações ao alcance do colecionador, que deve conhecer profissionais adequados para tais intervenções. Entretanto, “ – A vivência com as peças faz com que um bom colecionador seja também um pouco restaurador”, afirma Antônio, agora não só com fragmento em mãos, mas também com alguns instrumentos utilizados no seu cotidiano com os corpos das imagens: pincéis, trinchas, goivas e outros: “ – Mandar para o restaurador nem sempre é uma boa porque, às vezes, são pessoas que aprenderam a técnica, mas não tem a vivência necessária para saber o que deve mexer ou não.” Os restauradores com técnica e sem “vivência com as peças” – isto é, que as têm em mãos em um momento específico para prestar um serviço para terceiros que convivem com elas de modo permanente – podem remover parte da biografia da imagem que não é composta apenas de preciosismo técnico ou de usos que conservam suas superfícies intactas, incluindo o encontro do colecionador com o exemplar. Nota-se que, se de um lado, o colecionador ressalta ser um pouco restaurador também, por outro, ressalta a opção por manter a peça do jeito que encontrou. A obra ‘descascada’ deixa entrever melhor a forma e os estratos – de materiais, de tempo – que conformam sua história. 115 Apesar disso, a remoção de “esmalte barato”, também chamado de “tinta grossa” ou “tinta de lata”, é uma opção enunciada porque faz parte do repertório de práticas de alguns colecionadores de imagens. Nos estudos sobre arte sacra brasileira de Eduardo Etzel (1975, 1979), a retirada da policromia calca-se no argumento que o santo pintado sem a devida preparação, como é comum nas peças populares, tem sua leitura estética prejudicada. Desta feita, a imagem simplesmente pintada ou dourada de forma improvisada, com purpurina, por exemplo – em oposição àquela que passa pelos processos prescritos de estofamento, colocação de materiais para aderência da folha de ouro etc. – é decapada para fazer ver o trabalho escultórico, visado como o aspecto original do objeto. Realizada a remoção, cabe ao colecionador fazer a preparação “adequada” para a recepção de “tinta boa” ou deixar a imagem sem as camadas em questão. O aspecto de uma imagem popular nem sempre corresponde às suas qualidades artísticas. O santeiro exímio, terminada a escultura no barro ou na madeira, geralmente perdia-se no acabamento usando na pintura o material grosseiro e impróprio que conseguia obter nos mal sortidos armazéns do interior. Daí o uso de tinta grossa que escondia os detalhes plásticos de um trabalho apurado, recobrindo-os. Em épocas mais recentes do século XIX o uso da purpurina dourada ou prateada acrescentou nova camada de tinta, piorando o aspecto das figuras. (ETZEL, 1979, p. 74-75, grifo meu). Nessa direção, o elogio ao trabalho de santeiros é permeado pelo lamento quanto à utilização de “tinta grossa que frequentemente encobria os detalhes da escultura em madeira, enfeiando-a e tornando-a grosseira”. Ao abordar as obras de Dito Pituba, que atuou no interior de São Paulo, o ‘autor-colecionador’ pontua em vários momentos como o acabamento precário, o “abuso da purpurina”, “sacrificou muito a beleza das peças”. Diante do diagnóstico sobre os santos ultrajados pelo próprio artista que lhes deu forma, a remoção da pintura foi a alternativa desse estudioso (ETZEL, 1975, p. 65-66). Para Antônio, o fato de alguém retirar a policromia feita pelo santeiro no momento de finalização da peça é um processo delicado não só porque “apaga a intenção do artista”, mas também pelo seu potencial de “machucar” a peça. Isso porque a tinta aplicada diretamente na madeira adere-se a ela e sua remoção de modo geral implica em retirada não só da pintura, mas também de pequenas lascas do material que a policromia recobria. Entretanto, segundo meu interlocutor, “– Outra coisa é ir arreando as camadas de uma santa que recebeu, de pessoas diferentes, quatro, cinco mãos de tinta e que chega muito danificada até você. Isso eu já fiz. Aí o complicado é que tem que saber a hora de parar.” 116 A pintura sem a devida preparação e o costume da reencarnação ou repintura são, de longe, as práticas apontadas como mais descaracterizadoras da “concepção original do artista”, que também chegava a ser “deformada” (HERSTAL, 1956) por cruzes, bastões, palmas e outros adornos executados em ouro, prata e outros metais menos nobres, como o latão, por ourives. Esses profissionais fabricavam tais peças sem destiná-las a imagens específicas. Os resplendores82 feitos em madeira e policromados pelo próprio santeiro eram raros. Os acessórios decorativos e os atributos executados em separado se perdiam, eram substituídos ou trocados com facilidade, por isso, é muito difícil encontrar uma peça com esses elementos originais. Por serem confeccionados em metais preciosos, muitas vezes, despertavam mais interesse comercial do que a própria imagem e eram vendidos ou roubados, ao passo que o santo ‘desadornado’ escapava do status de mercadoria. Sua cabeça com orifício83 ou ainda os lóbulos das orelhas furados, entretanto, permaneciam como testemunhos da antiga presença de objetos de ourivesaria, como as coroas e os resplendores e os brincos (no caso das santas). Se alguns acessórios poderiam ser dispensados, a importância da preservação da integridade dos corpos das imagens para os devotos pode ser visualizada na colagem de braços, mãos, cabeça e outras partes quebradas ou danificadas; outrora reintegradas aos santos com cera de abelha, breu, barro, resina de árvores silvestres, sebo, sabão em barra e, mais recentemente, parafina de vela, cola branca, adesivos e resinas comerciais como Super Bonder e Durepox. À parte dessas técnicas de conservação dos devotos, Etzel (1979) esclarece que entre os colecionadores Há duas tendências nesse assunto: uma prefere a imagem em sua pureza original ainda que mutilada; outra admite em certos casos a complementação. Observando-se uma peça antiga, nem sempre há necessidade de uma reposição de mãos, por exemplo. Ela é bela como está e a reposição iria alterar o equilíbrio entre a idade do objeto e seu compreensível mutilamento. Seria o mesmo que colocar os braços na Vênus de Milo. Em outros casos, há necessidade de complementação para estabelecer o equilíbrio estético da peça, estando indicada a reposição. (ETZEL, 1979, p. 150). 82 Os resplendores são os acessórios comuns a vários santos e remetem ao halo (ou nimbo), um círculo de luz que circunda a cabeça dos santos ou auréola com raios dando destaque a essa parte do corpo: “O halo, em si, traduz uma característica subjetiva de santidade, de dignidade, de honra e de inteligência, própria da figura da coroa – a qual nem sempre é dada a um santo.” (TAVARES, 1990, p. 157) A coroa, por seu turno, seria reservada às representações da Virgem Maria, do Menino Jesus e do próprio Cristo (COELHO; QUITES, 2014, p. 115) e dos santos que foram reis ou rainhas. 83 Pinos, grampos e hastes também eram incutidos nos santos para propiciar a adaptação de enfeites no topo da cabeça das imagens. 117 O resultado estético pouco harmônico é enunciado, muitas vezes, recorrendo-se a situações em que as imagens são modificadas em nome do equilíbrio da relação entre santo e devoto, permeado por gestos de limpeza, ofertas de presentes em retribuição à graças alcançadas; mas também por “castigos” por não atenderem pedidos ou por constrangimentos infligidos sobre seus corpos para que as demandas sejam atendidas. Quantas vêzes, por não serem concedidas as graças solicitadas, os santos eram mutilados: arrancavam-lhe as mãos, quebravam-lhes os dedos, tiravam-lhes os atributos. Quando, porém, o santo mostrava-se bondoso retribuíam-lhe com presentes: jóias, dinheiro, comida ou mesmo nova encarnação. (HERSTAL, 1956, p. 93-95) Apesar do uso dos verbos no passado feito pelo colecionador de imagens antigas, sabe-se que eles também designam ações praticadas nos dias atuais: “Devotos mantêm relações com as imagens que envolvem proximidade, manuseio, deslocamento, exposição às intempéries, em atos como pegá-las, beijá-las, molhá-las, movê-las.” (MENEZES, 2013) As festas de santo são ocasiões em que essas ações notadamente se multiplicam, a começar pela preparação da imagem com flores e outras coisas que são colocadas sobre seu corpo ou na sua vizinhança. O ato de mostrar o santo nos dias festivos, muitas vezes, é precedido pela limpeza do seu corpo, lavado em água corrente. Raquel Lima (2014) aponta para a preocupação dos devotos com a limpeza dos santos. A partir da descrição de uma situação na qual uma vendedora de artigos religiosos ensina um devoto a lavar Santa Rita utilizando sabonete, esponja e pano novos, pois não usaria “pano de cozinha” para assear a santa, a autora discute como o gesto em questão motiva as pessoas envolvidas a estabelecerem os limites da interação com a imagem. É nessa seara de pensar certas práticas devocionais como ambíguos gestos de cuidado que Renata Menezes (2013) discute os limites e as continuidades entre objeto religioso e objeto de arte. Valendo-se da ação amplamente alardeada como “restauração desastrosa” de um quadro com a face de Cristo em Borja, na Espanha, a autora levanta a hipótese que a senhora octogenária responsável pela renovação da obra “seria menos uma restauradora espontânea e mais uma devota zelosa”84. Nesse sentido, a intenção de D. Cecília seria menos a de realizar uma “restauração” da imagem de Ecce Homo, e mais como a de exercitar seus cuidados com o Cristo de sua igreja, uma limpeza daquele jesuizinho abandonado na parede, coitado, tão largado e tão sujinho, desbotado, tornado indigno (e o uso dos diminutivos aqui é intencional, pois tenta provocar uma sensação de proximidade e intimidade que se encontram descritas nas etnografias sobre devoção). (MENEZES, 2013) 84 A restauração do quadro foi amplamente noticiada em 2012. O rosto de Jesus do episódio foi originalmente pintado por Elias García Martínez, no século XIX, numa das paredes do Santuário da Misericórdia, uma pequena igreja local. 118 Se for cruzada a reflexão acima com a noção de vivência com as imagens de meu principal interlocutor, é interessante notar como o paradigmático episódio que tirou um Ecce Homo do anonimato e o tornou “o Cristo de Borja” amplificou o abismo entre o cuidado realizado no contexto de uma relação de devoção e a conservação/restauração mobilizada pelo saber empírico acumulado ao longo dos anos de prática de colecionamento. Se no primeiro contexto a convivência com as peças pode propiciar o acesso e a liberdade para intervenção nelas; no quadro de ações do segundo, têm-se agentes com parâmetros muito distintos de cuidado. A ambivalência cuidar/destruir assume especial dimensão no contato com líquidos para além das situações em que a imagem é banhada. O gesto de asseio pode ser sucedido pela borrifação de perfume nos santos. Edilson Pereira (2014) pensa a atribuição de um cheiro particular a um santo como constitutivo das histórias de cuidado de algumas das imagens com as quais travou contato em sua etnografia da Semana Santa de Ouro Preto-MG. O perfume tanto as singulariza, no sentido de Koppytoff (1986), já que passam a ter um aroma próprio; quanto as potencializa enquanto presenças ativas de divindades, já que o “odor de santidade” é uma característica comum a diversos santos. Há ainda que se considerar a benção, o rito de passagem marcador da mudança do status das imagens. Como aventa David Freedberg (1992), a necessidade de tal rito não significa que antes de serem subsumidas a ele as imagens sejam mera materialidade. A possibilidade de transmutação em coisa sagrada, muitas vezes, é antevista no próprio material de confecção dos santos, que “deve conter alguma coisa [...] por pequeno que seja que sugira sua natureza divina” (FREEDBERG, 1992, p. 53-54). Nesse sentido, a madeira é o material mais utilizado por ser considerado matéria viva e quente, mesmo depois de ter sido cortada, ao passo que a pedra e o metal são vistos como mais inertes. O marfim traz consigo sua “nobreza indiscutível”, seu caráter de material precioso por essência explica sem maiores delongas porque é apropriado para dar forma a seres divinos. Essa antecipação do sagrado proporcionada por algumas matérias-primas é celebrada no âmbito da coleção, por isso, a predileção de tantos colecionadores pela madeira e, em menor medida, pelo barro. Estes materiais vivos, diferentemente do marfim, são fáceis de encontrar, o que possibilita que as imagens feitas a partir deles continuem sua trajetória sagrada habitando acervos de arte. A biografia delas, portanto, se inicia quando elas ainda nem tinham forma de santo e é acrescida de valor quando as peças peregrinam para a coleção após terem passado por utilizações rituais, como será visto adiante. 119 O gesso, nessa perspectiva, só é precioso para os colecionadores de arte quando as obras feitas com esse material documentam o início do processo de industrialização que atinge os corpos dos santos. Trata-se de um material que só não pode ser visto como essencialmente profano porque apresenta, de certo modo, o sagrado em sua forma negativa, anunciando o ocaso das imagens dos santeiros. Nessa perspectiva, os primeiros santos de gesso corporificam o enunciado de Walter Benjamin sobre o “valor de culto” não se entregar sem resistências. Ao, inicialmente, serem moldadas sobre imagens de barro e de madeira, as primeiras peças industriais guardam as características daquelas que ganharam forma pela lavra de artistas. Esse modo de funcionamento que remete à produção de relíquias de contato é interrompido quando o molde das peças de gesso deixa de ser uma imagem – carregada de potência por ser feita de material sagrado – e passa a ser um objeto industrial constituído de matéria inerte. Para o devoto, entretanto, a imagem em gesso pode ser carregada de valores de outra ordem. A prescrição da bênção se faz, sobretudo, para despojar a peça de seu caráter de mercadoria. Durante o rito, as imagens são tocadas pela água benta aspergida por um sacerdote. Desde Durkheim (1989) sabe-se que os ritos de consagração colocam em operação a “contagiosidade do sagrado”85, aqui interessa pensar a água como veículo desse contágio. Em sua etnografia da bênção, Menezes (2005) caracteriza precisamente o rito em questão enquanto ato verbal que engloba uma dimensão física. Como descreve a autora, [...] o padre borrifa água benta, as pessoas movimentam-se em direção ao balde, estendem as mãos ou objetos para serem molhados, espalham sobre estes ou sobre si mesmas a água que recebem. E como a bênção só se conclui com os atos de “molhar” e “ser molhado”, o contato com a água e o aproveitamento que dela é feito são componentes essenciais da parte física (MENEZES, 2005, p. 29). A água, indiscutivelmente um elemento fundamental para eficácia do rito, é potencialmente destruidora da integridade física da obra porque mesmo inocentes gotículas podem formar manchas na superfície da imagem, ilhas de umidade atrativas para insetos e fungos, regiões de desprendimento de policromia etc.. 85 Diz o autor: “Longe de ficar preso às coisas que trazem a sua marca, [o sagrado] é dotado de uma espécie de fugacidade. Até o contato mais superficial ou mais mediato basta para que ele se propague de um objeto a outro. […] é sobre esse princípio da contagiosidade do sagrado que repousam todos os ritos de consagração.” (DURKHEIM , 1989, p. 384-385). 120 3.2 SANTO ANTÔNIO, OS MENINOS E OS SUPLÍCIOS Os colecionadores não mencionam apenas as degradações involuntárias provocadas por devotos em seus ritos de ativação da potência das imagens – como a benção abordada no tópico acima – mas também os atos que as maculam propositadamente. Esses se direcionam, principalmente, aos corpos de Santo Antônio, citados como os mais frequentemente manuseados pelos devotos com o objetivo explícito de pressioná-lo. Em alguns casos, trata-se apenas de mudá-lo de posição no altar doméstico, colocando-o virado para parede ou de cabeça para baixo até que o pedido seja concretizado. Em outros, a imagem chantageada é enforcada pela suspensão por um cordão, amarrada à perna de uma mesa ou ainda imersa de ponta cabeça em água. Conta Cascudo (1988): As moças submetem as imagens de Santo Antônio a todos os suplícios possíveis, na esperança de um rápido deferimento. Algumas chegam até mesmo a tirar o Menino Jesus dos Braços de Santo Antônio para restituí-lo somente depois de realizado o milagre; viram o santo de cabeça para baixo, tiram-lhe o resplendor e colocam sobre a tonsura uma moeda pregada com cera; e, por fim, quando tarda o milagre, e cansadas de tanto esperar, atam o santo com uma corda, e deitam-no dentro de um poço, o que deu lugar, de uma vez, a desaparecer a imagem, porque era de barro e derreteu-se completamente ao contato d'água! (CASCUDO, 1988, p. 90). Ainda de acordo com o autor, “em Portugal e Brasil diz-se que o santo era visitado comumente pelo Menino Deus, e a iconografia antonina reproduz abundantemente a tradição.” (CASCUDO, 1988, p. 90) Nessa direção, o menino carregado por Santo Antônio, um de seus principais atributos, é o alvo preferencial para coagi-lo a “arrumar” namorados e maridos para as devotas. A escultura do bebê ou criança destacada da figura principal, configurando um corpo independente bem-definido à parte, inclusive pode ser entendida como atendimento à demanda de uma imagem em que esse elemento específico é passível de ser “roubado” de forma temporária e, posteriormente, restituído, caso o santo seja solícito na “arrumação” dos parceiros. Não raro exemplares de Santo Antônio chegam aos colecionadores portando a ausência do menino atributo e, por conseguinte, uma suspeita de sequestro de parte constitutiva da imagem, como na descrição de Luís Saia: Santo Antônio Madeira – 20 cm de altura São Miguel Paulista. SP. 1940. Exemplar típico de interpretação popular da imaginária católica tradicional. A linguagem indicativa é a tradicional: o cordão da Ordem de São Francisco e o Menino Jesus nos braços do santo. Quando foi documentada, a figura do Menino já não acompanhava a imagem, o que se explicaria pela tradição popular de retirar dos braços do santo a figura de Jesus, até que o pedido seja satisfeito. Nas feiras de São Paulo são vendidas pequenas imagens de Santo Antônio, feitas de modo que a retirada do menino seja particularmente fácil. Coisa caipira. (SAIA, 1974, p. 35, grifo meu). 121 Ao mencionar algumas das ações diversas de devotos em relação ao santo “casamenteiro” elencadas acima, Antônio, meu interlocutor, pondera que a figura do menino pode não ter sido devolvida porque o santo não atendeu o pedido que lhe direcionaram, mas também porque as pessoas se esquecem de fazer a devolução, porque quando tentam realizá-la não sabem do paradeiro da peça a ser restituída... Mas principalmente por causa das vicissitudes que afetam os atributos e acessórios produzidos à parte, que, como visto, por serem encaixados em vez de esculpidos como parte integrante das imagens são mais suscetíveis à perda, queda, substituição etc.: “É muito fácil perder o menino de Santo Antônio porque ele não é colado na imagem, assim com em São José e em Nossa Senhora, então essas peças tem muitos meninos perdidos. Eu tenho uma caixa só de meninos encontrados dentro de oratórios!” O ‘estoque’ de meninos permite que Antônio remaneje a peça encontrada desatrelada de sua imagem original para outras que lhe chegam sem a figura de Jesus quando pequeno, no entanto, não é qualquer menino que combina com o colo ofertado pelo santo à criança, alguns são desproporcionais, não se encaixam no braço da parte adulta da imagem, já o problema com outros é o estilo demasiado discrepante da figura a ser completada. Por essas razões, presenciei o colecionador encomendando “um menino para esse Santo Antônio” a um santeiro, instruído então a dar forma a um garotinho que combinasse com aquela imagem antiga levada até o ateliê. O escultor colocou o santo em questão sob uma redoma fornecida pelo próprio Antônio. Apesar da proteção da obra nessa espécie de sala de espera onde ela aguardaria sua vez de ser trabalhada – já que o artista tinha outras encomendas para finalizar – o colecionador não deixou de exprimir que só deixa uma imagem estimada como aquela com quem tem muita confiança e, mesmo nesses termos, a separação temporária “dói”: O ciúme da gente é uma coisa de louco, eu fico fora de mim se acontecer alguma coisa. E infelizmente é mais comum do que se imagina, uma peça daquela pode ter ficado quase intocada por mais de um século dentro de um oratório e na movimentação que a gente faz quando traz para casa, leva para uma exposição, quando vai limpar, complementar; esbarram, deixam cair... E dói de novo só de pensar. As palavras do colecionador exprimem o risco envolvido quando a intervenção em uma imagem transcende o espectro de intervenção que ele se julga apto a manejar. Antônio tem alguma habilidade como restaurador e, portanto, poderia fazer reparos leves em um menino, mas não possui a perícia necessária para dar forma à figura em questão partindo do zero, ou seja, tendo em mãos apenas a matéria-prima em seu estado bruto e as ferramentas necessárias para desbastar a madeira, estofá-la com gesso, recobri-la com tinta... 122 Os suplícios nos corpos das imagens também derivam da ação de insetos e fungos, responsáveis por processos de deterioração que devem ser interrompidos pelo colecionador. Antônio me ensinou que uma das técnicas consiste em “trancar” a imagem dentro de saco plástico após a dedetização até que o cupinicida ou outro produto químico eficiente na eliminação dos agentes prejudiciais seja absorvido e evaporado: “– Para o bicho morrer mesmo, porque se a peça está muito furada, muito carcomida, se você apertar, ela pode se acabar.” Por isso, a consolidação da estrutura física degradada pode requerer que buracos sejam tapados e galerias sejam preenchidas, o que é realizado, muitas vezes, com a inserção de extratos de madeira ou cera. Esta última é indicada principalmente quando o estrago é considerável. É ainda preciso ter em conta as modificações tributadas às condições climáticas. O excesso de umidade da região Norte do país ou a falta de partículas de água no ar na região central, como acontece em Brasília, provoca movimentos na estrutura da madeira e o risco de destaque da camada de estofamento, devido à sua dissolução ou ressecamento contínuo. Os colecionadores dessas regiões precisam ser cuidadosos com a climatização dos ambientes onde guardam seus santos ou privilegiar aqueles nos quais a pintura foi feita diretamente na madeira, tornando-os mais resistentes, apesar do “acabamento menos sofisticado”. A passagem do tempo em si não estraga a imagem. Uma certa roupagem conferida pela temporalidade, a expressão de tempo, é inclusive benquista, como visto anteriormente. Considera-se que a exterioridade das imagens antigas é especialmente incrementada quando a sua superfície foi escurecida paulatinamente pelas fuligens originadas nas chamas dos fogões a lenha e das velas. Nos estudos de Etzel (1979), a descrição do processo de envolvimento dos santos com a fuligem – chamada de picumã – evoca a ideia de “pátina do tempo”: Quando por acaso [a imagem] não tenha sido repintada, a pátina do tempo em casas enfumaçadas lhe dá o aspecto usual escuro, marrom pela impregnação de gordura e de fuligem. Nestas condições, limpá-la seria remover esta camada escura que é a marca registrada e o selo de sua autenticidade. (ETZEL, 1979, p. 75, grifo meu). No caso da fuligem, interessa remover uma parte sem limpar completamente a imagem conservando-se uma pátina que enalteça a beleza da peça na sua antiguidade. Não convém uma restauração para dar à imagem o aspecto de nova. (ETZEL, 1979, p. 149). O picumã é referenciado no Dicionário do Folclore Brasileiro, de Cascudo (1988, p. 741), como pucumã: “Chamam-se assim teias de aranha, que pendem das chaminés dos fogões, cheias de poeira e outros detritos.” A mistura é utilizada como remédio caseiro para indicações variadas, mas, sobretudo, para estancar o sangue de ferimentos abertos. Desta feita, é interessante notar as múltiplas potencialidades do complexo de substâncias em questão, estimado na medicina popular por seu poder de fechar cortes e também visto como “selo de autenticidade” que lacra o aspecto de antigo de algumas imagens e por isso mesmo não deve ser removido. 123 Annete Weiner (1992, p. 39) também observa o encrustamento de pátina como consequência da passagem do tempo que altera os objetos sem, entretanto, diminuir seu valor, mas, como já abordado, nem toda ‘pele’ sobreposta à imagem é indício de autenticidade. As imagens pintadas sem a preparação com estofamento ou aquelas reencarnadas para o atendimento de propósitos devocionais estão sujeitas a terem suas camadas mais externas removidas pelos colecionadores interessados nas formas cujos detalhes consideram mascarados por pinturas feitas de forma amadora e utilizando-se de materiais grosseiros. A retirada da 'roupa de festa' com a qual os devotos recobrem a imagem quando solicitam que ela seja reencarnada, nesse sentido, pode significar até mesmo a dissolução da camada de ouro (ou de outro material utilizado pelo artista popular para finalidade de douramento) com vistas a, paradoxalmente, dar a ver o que “vale como ouro”: o trabalho escultórico. O senso comum de que imagens são raspadas por pessoas interessadas em vender o material precioso retirado de forma criminosa não se justifica. Como já informamos, as folhas de ouro são extremamente delgadas e, portanto, a quantidade de ouro utilizada na nobre cobertura dos santos é insignificante. A ‘desencarnação’ tem outras razões. Quando a imagem chega às mãos do colecionador com vestígios de policromia, se estiverem ressecados, é preciso hidratá-los e fixá-los com cola branca misturada em água – composto que se torna um filme transparente quando seca. Nos casos em que se opta pela remoção dos traços de policromia ainda presentes é necessário “arrear” a imagem, ou seja, retirar esses resíduos de revestimentos. Como não se sabe por quantas ‘repaginadas’ o santo passou, nem a composição química dos materiais utilizados para tanto, é preciso remover a camada de pintura mais evidente sem violência, para acessar gradualmente as demais. A remoção química com solventes diversos é combinada com a retirada mecânica dos compostos realizada com estilete ou canivete. Quando a imagem já “está quase só no gesso”, com poucos resíduos de tinta, uma opção é mergulhá-la em água durante dois ou três dias para dissolver a camada, processo facilitado pelo intumescimento da madeira provocado pela submersão no líquido. Outra forma de acelerar o processo é fervê-la em água. “ – Mas, às vezes, nem fervendo a tinta sai toda”, relata Antônio. Há a possibilidade destas buscas pela proeza técnica escondida, tornarem, por outro lado, a imagem “limpa demais”, como se tivesse sido submetida à “higienização museológica” cujo resultado final não agrada ao meu interlocutor porque ao fim e ao cabo: “– Descaracteriza a peça”86. Em vista disso, ele prefere a limpeza superficial realizada com pano, pincel e trincha, 86 A despeito da colocação do meu interlocutor sobre a prática de higienização levada a cabo nos museus, as diretrizes museológicas atuais também não recomendam a assepsia generalizada. Um “ótimo estado de conservação” diz respeito “... ao objeto [que] apresenta suas características originais preservadas, podendo possuir uma tênue 124 evitando ao máximo o desprendimento da(s) policromia(s), mas se a intervenção que deixa o objeto com aspecto de novo for inevitável, este pode ser revertido, ou ao menos suavizado, com aplicação de betume87, que permite a graduação do escuro em diferentes “tons de antigo”. 3.3 FORMAS, (DES)PROPORÇÕES E CONFUSÕES QUE ENCANTAM Já foi visto como ‘vestimentas’ e outras adições feitas por santeiros e por devotos têm o potencial de modificar os corpos das imagens, podendo inclusive, por meio do acabamento grosseiro, acrescentar grande contingente de fatura popular às peças de acabamento erudito. A transformação de uma imagem popular em erudita, por outro lado, não se mostra como alternativa atraente para os colecionadores. Em vista disso, a retirada da pintura de má qualidade feita pelo santeiro ou da reencarnação realizada a pedido do devoto, geralmente, não é seguida do processo de acabamento refinado, mesmo considerando que os colecionadores conheçam seu funcionamento ou profissionais que saibam executá-lo. Se a imagem é decapada para dar a ver o trabalho esmerado do artista na escultura, por que o que é encontrado sob a tinta espessa ganha novas roupagens, como um “tom de antigo” atingido com pinceladas de betume, mas não é lapidado para ter o brilho dos santos eruditos? Se até então nos detivemos principalmente nos revestimentos das imagens, para responder tal questão é preciso analisar em que medida as formas sob as camadas mais externas dos santos populares são diferentes das dos eruditos. Se recorrermos à “capela de engenho”, essa notável instituição incorporada à Casa Grande de que nos fala Gilberto Freyre (2000), vamos ao encontro das imagens como objetos cruciais para o funcionamento da Igreja no Nordeste colonial. Conjugadas a outros objetos de devoção, elas eram também elementos constitutivos do interior da própria Casa Grande, onde lhes era destinado um espaço específico, o “quarto dos santos”. ... não houve um senhor branco, por mais indolente, que se furtasse ao sagrado esforço de rezar ajoelhado diante dos nichos [...] o terço, a coroa de Cristo, as ladainhas. Saltava-se das redes para rezar nos oratórios [...] rosários, bentos, relicários, patuás, Santo Antônios pendurados no pescoço, todo material necessário às devoções e às rezas [...]. Dentro de casa, rezava-se de manhã, à hora das refeições, ao meio-dia e de noite, no quarto dos santos; os escravos acompanhavam os brancos no terço e na salve-rainha [...]. (FREYRE, 2000, p. 254, grifo meu). pátina do tempo, o que não impede sua perfeita leitura estética.” (CADERNO de Diretrizes Museológicas, 2006, p. 55, grifo meu) Nessa direção, “uma das preocupações permanentes dos profissionais de conservação é de que a higienização dos objetos, ou seja, a ação de eliminação de sujidades, como poeiras e partículas sólidas, se restrinja a uma limpeza superficial, sem causar danos à peça.” (ibid., p. 132) 87 Substância mineral escura e viscosa, resultante da decomposição de matéria orgânica. 125 Nesse quadro cultural, a religião diz respeito a uma esfera da existência cujo funcionamento está mais sob o jugo do patriarca do que da Igreja. Esse espectro de relativa autonomia também incide sobre os santos feitos para serem louvados na intimidade dos lares mais modestos. São santos que “refletem” a religião, mas são menos oficiais, mais espontâneos e dizem sobre o tamanho limitado do orçamento de quem os compra, que por sua vez tende a reduzir a dimensão dos corpos das imagens. O atendimento da demanda de santos para culto doméstico é citado como um dos fatores que impulsionou a expansão da produção de imagens para além das oficinas ligadas às ordens religiosas. Nos ateliês e em outros espaços leigos de produção de santos, as técnicas de fabricação passavam muitas vezes ao largo da utilização dos cânones clássicos para a construção das figuras e dos padrões iconográficos. A expansão, portanto, não implicou simplesmente em maior produção, mas também em variações nos corpos das imagens. A variedade em questão tornou os santos, alvo de paixão de muitos colecionadores de arte, que veem as imagens como o verdadeiro “berço da arte brasileira” (ETZEL, 1986). O nascimento de nossa arte, nesse sentido, teria se dado quando as feições do brasileiro começaram a aparecer nos santos, não mais baseados apenas em rostos europeus e em outros padrões ensinados pelos escultores das ordens religiosas. Na realidade estabeleceu-se na sequência do tempo um acentuado imbricamento de técnicas e estilos, assim como de artistas que, eruditos e populares nos extremos da qualificação, misturaram-se na sua competência, surgindo a execução de imagens que possuem predicados comuns a várias épocas, como também às técnicas de execução. (ETZEL, 1986, p. 9). Erudito e popular, apesar do alegado “imbricamento”, passam a funcionar como polos opostos entre os quais os santos colecionados são situados em função de sua fatura mais ou menos correspondente às técnicas e aos cânones do período. Num primeiro golpe de vista, o porte da imagem é um dos fatores que a remete para um ou outro polo da oposição mencionada. Os santos produzidos para o culto doméstico, de pequena dimensão, são mais aproximados do popular, pois se entende que eles são mais representativos da realidade daqueles que os encomendavam para acomodá-los em suas casas e mais distantes dos padrões estrangeiros desejados para as imagens que eram direcionadas às igrejas: [as imagens pequenas são] as mais típicas, uma vez que as grandes, de encomenda, eram geralmente baseadas em modêlos estrangeiros. As menores, executadas pelos simples santeiros, muitas vêzes sem escola, sem a preocupação de satisfazer um determinado gôsto, são muito mais espontâneas e ingênuas. Por isso de maior originalidade e mais características da arte brasileira (HERSTAL, 1956, p.19). 126 Um dos pontos de evidência das características marcadamente brasileiras nos corpos das imagens é o rosto. As mencionadas feições brasileiras inclusive passam a remeter a biótipos regionais. Nessa direção, os santos que interessam ao meu interlocutor são aqueles que, mais que “cara de brasileiro”, têm “cara de nordestino”. Em suas palavras, Os santos populares refletem mais a realidade. Eles têm a cara do nordestino, sofrida, marcada, e também o porte, magro e contorcido. São diferentes dos europeus, com cara realmente de santo. Os santeiros nordestinos colocam nos santos a cara do pai, da mãe, de um parente. Mais do que apontar para o rosto do santo como reflexo da “realidade”, os dizeres do colecionador também evocam o “porte nordestino” das imagens. Pode-se entender pouco ou quase nada sobre tal característica olhando apenas para o tamanho dos santos. Aqui, mais do que suas dimensões em centímetros, o que importa são suas feições “sofridas” e “marcadas” e, além disso, como eles atualizam certa gestualidade. O direcionamento do olhar para a “cara” do santo é facilitado por uma peculiaridade das imagens populares, que de modo geral possuem cabeças desproporcionais – ora muito grandes, ora muito pequenas – em relação ao restante do corpo. A noção de cânon ou cânone em escultura diz respeito justamente à altura do corpo dividida pelo tamanho da cabeça (medida do queixo até o alto do crânio). A escultura clássica tem como referencial a “regra de Policleto”, que prevê que a altura total da figura humana adulta seja de 7 a 8 vezes a altura da cabeça. Quando indaguei Antônio sobre a noção de cânon, fui alertada que “– nem os clássicos usavam a regra clássica”. O cânon das imagens eruditas, aquelas que, em tese, são proporcionalmente harmônicas, varia entre 6, 7 ou 8 cabeças. Já os aspectos físicos dos corpos das imagens populares definitivamente não são retratos fiéis da aparência dos homens como aqueles buscados pelos escultores que tentam se guiar por manuais clássicos. Eduardo Etzel, a quem tenho longamente recorrido nesse capítulo, foi um estudioso de imagens que as esquadrinhava com base em padrões de Atlas de Anatomia. Os corpos que ele colecionava eram alvo de seu olho clínico de médico. Seu saber advindo da Medicina floresce nos trechos de sua obra em que ele menciona, por exemplo, imagens de criança que têm cabeça de adulto88, anjos “cabeçudos” e outras figuras desproporcionais. 88 O cânon para o corpo recém-nascido é de quatro cabeças para a altura do corpo; para as crianças, quatro e meia; chegando no adulto, a sete cabeças e meia para a altura do indivíduo (ETZEL, 1995, p. 55). 127 Figura 35 – Proporções do "Doríforo", de Policleto (século 5 a.C.)89 A cabeça não é a única variável para aferição de desproporção anatômica. Eduardo Etzel sublinha o destaque dado pelos artistas populares às mãos e aos pés: A desproporção anatômica que se observa nas imagens populares salta aos olhos, sendo característica que paradoxalmente agrada o observador. O cânon destas imagens foge ao normal, assim como os pés e as mãos. O caboclo que labuta eternamente na lavoura tem os pés e as mãos seus elementos fundamentais. Descalço no passado, só modernamente adotou o chinelo “havaiana”. Daí pés rudes, embrutecidos pelos insultos de tocos e pedras, acidentes na sua deambulação. As mãos que manejavam a enxada e a foice também se avantajavam na luta pelo ganha-pão. Talvez por isso os santeiros - homens do povo – tenham dado às mãos e aos pés um destaque especial. O corpo é usualmente avantajado, peças curtas e encorpadas num desconhecimento da anatomia mas com grande sensibilidade quanto à pessoa humana que deve ser forte e potente como uma representação da divindade. (ETZEL, 1979, p. 71, grifos meus). A especulação sobre a quase intencionalidade do engrandecimento dos pés e das mãos leva à desproporção que atrai e fascina porque diz respeito a imagens produzidas pelos santeiros “homens do povo” para o povo. Se prosseguirmos inventariando as características das imagens populares, é preciso ter em conta que as que migram para coleção são aquelas que, além de pequenas, podem ser qualificadas como obra humanizada, simples, vendida como mercadoria barata, como explicitou Antônio: Quando no passado as pessoas não tinham dinheiro pra pagar, o que elas encomendavam? Essas imagens mais simples, mais populares. Igualmente pro culto doméstico, igualmente pros oratórios, mas sem ouro, olha. Você vê que elas são muito simples. Aí fica uma imagem barata. Aí o artista também é menos conceituado, é menos clássico, tem menos contato com as fontes eruditas da arte. Então, é que vai aparecendo as figuras com cara de nordestino, com cara de brasileiro. 89 Disponível em: <http://educacao.uol.com.br/disciplinas/artes/arte-na-grecia-antiga-3periodo-classico-490-80-ac-a-330-20-ac.htm>. Acesso em: jan. 2017. 128 As imagens populares são “simples” porque nelas não se empregam as técnicas escultóricas utilizadas nos santos de fatura erudita. Se por um lado, a produção que não toma “o cânon” da escultura do corpo humano como referencial pode ser lida como caricata e ingênua; por outro é tomada como genuína e original, justamente por não se atrelar de forma estrita a outros cânones, no caso, os que fornecem os referenciais iconográficos de representação dos santos. Nessa ótica, Eduardo Etzel menciona tanto “confusões iconográficas que estão dentro das prerrogativas do santeiro popular” (ETZEL, 1975, p. 98), quanto acrescenta a essas prerrogativas a “liberdade de composição” (ETZEL, 1975, p. 99). Ao encontrar o rosário de Nossa Senhora do Rosário não só na mão da santa da referida invocação, mas também na do Menino Jesus segurado por ela, o autor argumenta que Ao santeiro deve ter parecido lógico que o menino Jesus também segurasse um rosário, pondo de lado sua idade e impossibilidade de manejá-lo. Mas deve ter encantado seus clientes como o faz ainda hoje conosco. […] Acreditamos que na tranquilidade da vida rural, com isolamento da povoação, tudo se passava com certa condescendência, sem a exatidão e as exigências que caracterizam nossos dias. Uma imagem de Maria com as mãos em prece, pés descalços, pode ser Nossa Senhora da Conceição ou Santa Maria, como depois veio a ser Nossa Senhora Aparecida, no “mais ou menos” da pasmaceira decadente da segunda metade do século XIX. Fez deliberadamente Conceição com vasta lua ou pisando a cobra, mas também esculpiu Nossa Senhora com o Menino, que pode ser uma Nossa Senhora do Parto, com grande lua aos pés. E por que não um rosário nas mãos do Menino Jesus? Tudo isto representa uma iconografia sem maior rigor hagiográfico, embora em trabalho criterioso e de boa qualidade. (ETZEL, 1975, grifos meus). Segundo Antônio, é previsível que o santo popular confunda o espectador que o mira a partir dos guias iconográficos, já que os artistas misturam possibilidades e criam combinações inesperadas. Se ele [o autor da publicação que folheávamos] tivesse olhado para esses arcos com mais atenção e pesquisado sobre o significado deles, saberia que é uma ponte, um viaduto, e esse santo é São Gonçalo, padroeiro dos engenheiros [e não São Domingos, como é afirmado na publicação]. Quando ele [São Gonçalo] aparece com a viola é o padroeiro dos músicos, dos boêmios, como é muito comum de se ver na tradição mineira, paulista e até aqui também no Nordeste. Mas o popular confunde mesmo, porque não pode ser lido pela ótica da arte oficial, onde os artistas seguem cânones. Estudar os grandes é fácil, os atributos são aqueles que são previstos para o santo. Mas na arte popular se combina, se modifica, se agrega a cara e as cores do sertão... (grifo meu) Nos termos do meu interlocutor, os artistas populares não são confusos, alguns espectadores de suas obras é que são confundidos pelas possibilidades de combinação exploradas nos santos. Assim, o trato com as imagens populares exige mais que erudição. Elas não podem ser decodificadas simplesmente com o auxílio de um dicionário de iconografia ou de termos artísticos. A liberdade e a criatividade do artista popular conferem certa originalidade às imagens antigas que, deslocadas de seus contextos devocionais, precisam ser compreendidas a partir de 129 uma expertise sensível às suas particularidades. As obras imprevisíveis são complexas e constituem a complexidade do trabalho do colecionador, que não pode de modo apressado taxar como erro o que é “ilegível segundo a ótica da arte oficial”. Para entender um santo com a cara e as cores do sertão, é preciso se embrenhar pelos seus caminhos. Voltaremos a eles mais no próximo capítulo. A partir das indicações que colidi durante minha interação com Antônio Marques, cotejadas com a literatura produzida por ‘autores-colecionadores’, sumarizo os polos onde as imagens são alocadas de acordo com a forma de classificação de sua fatura: Imagem popular Imagem erudita Culto no âmbito privado (altares domésticos e de capelas de fazendas) Culto nas igrejas Santos de feições, brasileiras e, para o caso da principal coleção pesquisada, nordestinas, sertanejas Santos de feições europeias Policromia simples realizada pelo próprio escultor Policromia com folhas de ouro realizada por profissional especialista nessa etapa da produção Barata Cara Desproporcional, assimétrica Proporções harmônicas Rigor formal, cânones “clássicos” Feita por escultores autodidatas ou Feita por escultores com referências clássicas sem formação institucional (ensino formal ou informal) Criação a partir da iconografia tradicional, combinação de possibilidades: os artistas conferem a marca da inventividade plástica ao repertório temático e formal da iconografia erudita Atribuição de autoria feita a partir do arrolamento de peças com detalhes semelhantes Materiais simples (madeiras facilmente encontradas, esmalte sintético) Fidelidade à iconografia tradicional (previsibilidade da forma final) Fontes documentais (recibos dados pelos artistas às igrejas e irmandades) podem auxiliar na atribuição de autoria Materiais nobres (madeiras nobres, gesso, pigmentos, olhos de vidro, douramento com folhas de ouro) Figuras frontais, rígidas, retas, hieráticas, atávicas, austeras, tratamento contido, concisão formal, gestos tímidos Posturas corporais movimentadas Panejamento exuberante que sugere movimento das vestes e insinua a gestualidade do santo Pequenas Grandes Corte impreciso, sem profundidade dos volumes, talha rasa, feita com gestos bruscos, adestramento escultórico precário, mau acabamento Corte preciso, com a devida profundidade para acolher outras camadas de materiais que culminam no acabamento típico da fatura erudita 130 3.4 ABRINDO A CAIXA DE MENINOS Os repetidos encontros de Antônio com os meninos perdidos de Santo Antônio, bem como com as imagens desfalcadas levam-no a considerar que há muita “invenção” dos colecionadores em torno dos usos que os devotos fazem dos santos. A fabulação sobre o popular é contestada por sua experiência empírica que relativiza leituras correntes sobre as “coisas do povo”. O Santo Antônio do colecionador não se resume ao santo casamenteiro, é a imagem que tem um menino cujo paradeiro pode nos contar sobre uma trajetória objetiva e bem menos mágica do que aquela das chantagens e das simpatias. Vale lembrar que nem só a devoção a Santo Antônio é atrelada à manipulação da imagem para se obter ação sobre outras coisas e pessoas. São Gonçalo também é casamenteiro. Além disso, como narra Gilberto Freyre, é festeiro e boêmio. Sua imagem é o corpo que praticamente “torna-se carne” na leitura desse autor sobre o relacionamento lírico, sensual e permissivo entre devotos e santos do Catolicismo luso-brasileiro. os santos e os anjos só faltando tornar-se carne e descer dos altares nos dias de festa para se divertirem com o povo; os bois entrando pelas igrejas para [serem] benzidos pelos padres; as mães ninando os filhinhos com as mesmas cantigas de louvar o Menino-Deus; as mulheres estéreis indo esfregar-se, de saia levantada, nas pernas de São Gonçalo do Amarante; os maridos cismados de infidelidade conjugal indo interrogar os “rochedos dos cornudos” e as moças casadouras os “rochedos do casamento”; Nossa Senhora do Ó adorada na imagem de uma mulher prenhe. (FREYRE, 1998, p. 21-22). Na contramão dessas leituras, para meu interlocutor, é importante mostrar que a iconografia de São Gonçalo não resume à do santo farrista. Ao abordá-lo como padroeiro dos engenheiros, o colecionador direciona nossa atenção para um elemento específico de um dos São Gonçalos da sua coleção, focalizando como o artista popular desloca a ponte ou o viaduto que geralmente aparece nas mãos do santo para debaixo dos seus pés. A possibilidade do atributo ser visto apenas como uma peanha elaborada da imagem, ou seja, passar despercebido enquanto sinal diacrítico do santo padroeiro dos engenheiros, é facilitada pelo imaginário em torno da iconografia mais difundida de São Gonçalo. A despeito do imaginário sobre São Gonçalo como o santo que traz a viola, para Antônio, a ponte é o detalhe revelador90 que deve ser destacado. Assim, a plasticidade e a capacidade de incorporação do Catolicismo brasileiro, tão salientada por Freyre e por seus seguidores, são buscadas pelo colecionador diretamente no corpo da imagem e não no que os devotos fazem com ela. Antônio prefere o santo sério para falar de como leva sua prática de colecionar o sertão a sério. 90 A necessidade de atentar para o detalhe revelador é desenvolvida por Carlo Ginzburg em seu famoso texto “Raízes de um Paradigma Indiciário” (1989). Abordo a importância das proposições do historiador italiano mais adiante. 131 Colecionar não é só celebrar. É admitir que imagens se quebram quando estão sendo transportadas e não porque viviam em festa. É precisar encomendar um menino perdido apesar de ter uma caixa cheia deles e mesmo assim correr o risco de ter que continuar buscando o atributo que combine com as suas imagens de Santo Antônio. No universo particular do colecionador, elas são únicas e por isso desestabilizam qualquer versão vulgar que não as trate como tais. Nessa direção, Antônio insiste que os danos se dão no uso e que estes, como foi colocado anteriormente, são causados inclusive pelas movimentações que o próprio colecionador e os agentes no seu entorno fazem com o objeto após sua entrada na coleção (exposição, limpeza, complementação etc.). Você já me viu transtornado quando achei que a gente tinha perdido aquele presépio91. Não tem jeito, nisso de ir para lá e para cá pode acontecer de tudo, principalmente, quando não temos como transportar de modo adequado, fica tudo nas nossas costas. E na hora que você pensa que perdeu ou que alguém quebrou uma peça sua o desespero é tão grande que não importa se a pessoa que fez é amiga, parente, empregado. Eu fico louco! No oratório, a peça está protegida, muitas vezes fica fechada, no alto. Mas na mão das pessoas... Então é isso, acontece, não tem jeito. Mas daí a inventar que se come pedaço da imagem é... Olha que explicação sem sentido para não admitir que a imagem sofreu um dano. E mesmo que ela já tivesse chegado nas mãos do colecionador assim, tem que pesquisar mais, deixar espaço para dúvida... Não tem que explicar tudo. (grifo meu). A explicação sem sentido questionada pelo colecionador diz respeito a uma Nossa Senhora do Leite em terracota citada por Etzel (1979, p. 15) cuja “perna esquerda do Menino Jesus foi “comida” por uma devota em cumprimento de promessa”. Quando lhe mostrei a publicação e a legenda da imagem, discutimos se as aspas no verbo atuariam no sentido de torná-lo figurativo, já que o autor da publicação não deixa isso evidente. Antônio então me instruiu a observar que a perna quebrada é a parte mais exposta, exterior, vamos dizer, saliente da imagem. Acontece que ninguém quer assumir que quebrou a peça que apareceu danificada. Então é melhor dizer que uma mulher comeu a perna do santo tendo feito antes uma promessa. Mais uma explicação baseada no folclore, isso não tem fundamento antropológico. (grifo meu). Alguns dias depois de eu ter lhe mostrado a foto da imagem com o menino de perna “comida”, o colecionador me enviou uma foto com a seguinte mensagem: Veja que o pezinho do Menino Jesus está quebrado de um jeito muito próximo daquele que você falou para eu olhar no livro do Etzel, que diz que o pezinho esquerdo foi comido por alguém. Essa peça é portuguesa, do século XIX, em porcelana, encontrada aqui no Rio Grande do Norte. A porcelana é da família da terracota. 91 Episódio narrado no início do capítulo anterior. 132 É interessante perceber como a ideia de fundamento antropológico acionada pelo colecionador diz respeito à necessidade não só de conhecer as condições de produção dos artistas, como também os usos das imagens feitos pelos devotos e, não menos importante, as manipulações – inclusive discursivas – levadas a cabo pelos colecionadores. Assim, Antônio também apontou como absurda a explicação das mutilações a partir da prática de se “fazer chá” com pedaços da imagem, como aparece em um livro sobre a coleção de Márcia de Moura e Castro. Segundo o colecionador, algum devoto pode até ter feito chá com partes do santo, mas tal gesto não pode ser generalizado como uma ação recorrente e os “ferimentos” devem ser atribuídos a fatores generalizáveis, como queda, perda e descolamento de encaixes mal colados. Os “maus-tratos” apontados por meu interlocutor, nesse sentido, não são propositais como as “maldades” dirigidas a Santo Antônio ou os “machucados” que seriam intencionalmente provocados em outras imagens. Para os colecionadores de arte primitiva entrevistados pelas antropólogas francesas Brigitte Derlon e Monique Jeudy-Ballini (2008), o uso credita o objeto de “verdade”, de “realidade” ou ainda de “vida”: “se o objeto não tiver vivido, sua vida [na coleção] não existe.” (DERLON; BALLINI, 2008, p. 53). Nessa perspectiva, certos colecionadores dizem que as peças que nunca tiveram uma utilidade antes da entrada na coleção “não têm alma”, o que é uma maneira de dizer que o uso humaniza os objetos. O que torna evidente que uma máscara primitiva viveu, como visto, a propósito da pátina do tempo e do picumã para as imagens, pode ser a sujeira, outra camada de tinta ou de verniz. Desse modo, as coisas que se depositam sobre o objeto recobrindo-o no sentido literal, como uma pele, por outro lado, reenviam a uma dimensão que não reside nem na matéria, nem na intenção que presidiu a realização das máscaras. O objeto remete a um outro lugar: geográfico, temporal, mental e a “emoção” envolvida nessa operação é tamanha que, de acordo com as autoras, se para seus interlocutores é preciso pensar que o objeto foi bem utilizado pelos indígenas, o conhecimento das condições precisas desse uso está longe de parecer indispensável. A insistência recorrente dos colecionadores em usos rituais, mágicos e sagrados é entendida tanto como corroboração de estereótipos primitivistas, quanto como recusa de certos aspectos da civilização ocidental. Ao acionar a discussão em torno da aura emanada por uma máscara que é autêntica porque viveu, não pretendo afirmar que o que está em jogo no colecionamento de objetos primitivos pode ser automaticamente transposto para a prática que acompanhei durante meu trabalho de campo. Entretanto, como tais máscaras são analisadas como instâncias que colocam os colecionadores na presença de realidades que estão além dos objetos, aqui são também pertinentes para pensarmos como o “outro” que dança e faz chá com as imagens pode ser tão distante e exotizado quanto um trobriandês o é por colecionadores parisienses. 133 3.5 O COLECIONADOR E SUA MAGIA Bolo armênio. Cera do Equador. Folha de Ouro. Tinta grossa. Tinta boa. Cores do sertão. Gesso-cola. Dourar. Arrear. Fixar. Trancar. Estabilizar. Listar os ingredientes que compõem as imagens, bem como seus procedimentos de manipulação, não necessariamente nos aproxima de uma receita. Conhecer, no caso, não é saber fazer. Não há fórmula exata. A eficácia dos gestos que manipulam as imagens não reside em sua realização mecânica impecável, isso seria mera técnica, que coordena gestos, instrumentos e agentes físicos. O colecionador sabidamente maneja técnicas, mas de forma a magicamente combiná-las para chegar ao efeito desejado. O altar do mágico é o seu caldeirão mágico. A magia é uma arte de dispor, de preparar misturas, fermentações e manjares. Seus produtos são triturados, moídos, amassados, diluídos, transformados em perfumes, em bebidas, em infusões, em pastas, em bolos com formas especiais, em imagens, para serem fumigados, bebidos, comidos ou guardados como amuletos. Essa cozinha, química ou farmácia, não tem somente por objeto tornar utilizáveis as coisas mágicas, ela serve para dar-lhes a forma ritual, que é parte, e não a menor, de sua eficácia. Ela própria é ritual, muito formal e tradicional; os atos que comporta são ritos. Esses ritos não devem ser classificados indiferentemente entre os ritos preparatórios ou concomitantes de uma cerimônia mágica. A preparação dos materiais e a confecção dos produtos é o objeto principal e central de cerimônias completas, com ritos de entrada e ritos de saída. Essa cozinha é no rito mágico o equivalente ao que é a preparação da vítima no sacrifício. (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 90, grifos meus). Ao tratarem dos “ritos manuais” no “Esboço de uma teoria geral da magia”, Mauss e Hubert (2003) mostram como a arte de dispor as coisas vale-se de outras fabricações, pois utiliza imagens, escapulários, talismãs e uma infinidade de outros objetos produzidos por outros ofícios e que atuam como “ritos continuados” (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 90). Os atos solenes, por mais díspares que sejam, buscam em sua generalidade modificar o estado de pessoas e coisas. O intuito ao transformar um estado dado é fazê-las sair de uma condição prejudicial por meio de um saber eminentemente prático e de ideias que prescindem da teoria: “fala-se delas como de coisas concretas e de objetos materiais; lança-se um encanto, uma runa; lava-se, afunda-se na água, queima-se um sortilégio.” (MAUSS; HUBERT, 2003, p. 98). Essas ações têm poder criador, elas fazem. O efeito obtido não é da mesma ordem que a soma de gestos sensíveis. O resultado faz ver outra coisa. Nessa direção, podemos analisar a retirada de (re)pintura, vista como um anteparo enganador, como um sortilégio dos colecionadores para assegurar seu encantamento com as obras. A fórmula é narrada por Etzel (1975, p. 81): “De algumas imagens retiramos a pintura; pudemos assim observar o rosto lavrado com alguns cortes apenas, obtendo o efeito desejado com sobrancelhas, olhos, nariz, boca e até bochecha.”. 134 Ao tratarem da remoção de policromia, colecionadores e restauradores não costumam se deter no processo, ou seja, na concretude de suas ações prospectivas. O importante não é como se traz à tona, mas o que vêm à superfície. Desta feita, o preciosismo técnico salientado refere-se ao que estava recoberto. Os danos mais evidentes e agressivos estavam localizados na camada pictórica que, além de uma repintura grosseira e de péssima qualidade, apresentava desprendimento e grandes áreas de perdas. Com a remoção da repintura, a imagem só teve ganhos em relação ao seu aspecto, deixando aparente uma pintura delicada em tons de marrom com desenhos fitomorfos, esgrafiados e punções que trouxeram novamente à luz um douramento realizado com folhas de ouro de grande qualidade, que resistiu a todas às agressões a ele imposto. Acreditamos que a legibilidade adquirida pela peça tenha contribuído para a elevação do seu valor estético e também atendido aos anseios de uma comunidade que aguardava o retorno das três imagens restauradas. (COLNAGO FILHO, 2011, sem paginação). No caso dos santos populares antigos, que, como visto, já saem mal pintados ‘de fábrica’, o conhecimento das condições sociais de produção das imagens por parte dos colecionadores é praticamente um oráculo da tragédia, pois traz a certeza que a obra não teria como escapar do destino inevitável de um acabamento precário. Revendo e estudando a obra de Pituba 50 anos após sua morte, temos que respeitar suas intenções ao pintar peças de madeira; mas impõe-se o estudo da escultura em si, da lavra da madeira, pois aí vamos encontrar os verdadeiros elementos da sua arte. Hoje, distantes do cenário local, podemos separar o joio do trigo, isto é, observar a criatividade sem o véu da espessa camada que a cobre e avaliar a obra através desse anteparo enganador. (ETZEL, 1975, p. 82). É interessante como o colecionador precisa declarar textualmente seu respeito às intenções do artista para deixar claro que a ação de remoção não vai destruir a imagem, mas mostrar sua verdade artística. A prática de colecionamento de coisas, especialmente daquelas entendidas como sagradas, envolvem constantes “operações de justificação” (BOLTANSKI e THEVENOT, 1991), logo, é atravessada por situações de prova, de demonstrações de princípios de justiça. Nessa chave de entendimento, quando Antônio me contou que tem uma peça não pintada de um artista que nunca deixou de dar cor às suas obras, explicou que queria mostrar para os alunos como o artista fazia as emendas nas peças, então foi até a casa dele e pegou a peça antes do acabamento, como um empréstimo. Vê-se então como é necessário mostrar que há ganho de valor estético, de visualidade de processos técnicos, enfim, de aspectos que dão plausibilidade ao gestos de manipulação. Desse modo, os agentes em questão antecipamse a possíveis denúncias trazendo eles mesmos ao centro do julgamento, os testemunhos materiais que fundamentam suas ações. 135 Discorremos sobre como a ocultação das qualidades apreciadas pelos colecionadores pode decorrer da ação dos devotos e suas experiências de devoção atravessadas por práticas de manipulação dos santos. Estas incluem rituais que os ratificam como coisas sagradas, gestos voltados à manutenção da integridade dos corpos das imagens e, em alguns casos, a sua mutilação deliberada. Lembremos que a bênção é a cerimônia pública, conforme descreve Freedberg (1992, p.108-110), caracterizada por ações que desde “[...] os primeiros tempos [da civilização ocidental] consistiam em lavar, ungir, coroar ou bendizer os objetos, convertendo-os em algo [...] adequado para a adoração e capaz de conceder favores.”. A menção à bênção como bendizer é importante para nos lembrar que a confirmação da natureza divina do objeto envolve coisas (aspersor, água etc.), mas também palavras, como já abordado. De acordo ainda com o autor que teorizou o “poder das imagens”, é por meio de fórmulas e homílias que o espírito ingressa no objeto e, para tanto, a mediação de um ser vivo é indispensável. Sacerdotes, nesse sentido, são atuantes na conjunção de “fusão do signo e significado” (FREEDBERG, 1992, p. 50). A entrada de santos na coleção também não se faz sem a mediação de certos ritos levados a cabo pelos colecionadores. Entretanto, ao passo que na mudança de status de um objeto para coisa sagrada o sacerdote influirá, sobretudo, verbalmente, na transmutação do santo para objeto de arte observa-se a preponderância dos ritos manuais realizados no âmbito privado. A remoção de uma (re)pintura não seria uma espécie de benção às avessas? Tal gesto, entretanto, não constitui uma passagem absoluta de um modo de funcionamento em que o objeto é ‘receptáculo do sagrado’ e se transmuta em ‘recipiente do belo’. Muitos aspectos que participavam da eficácia da imagem enquanto sagrada são preservados, como por exemplo, as propriedades de certos materiais. Quando o colecionador retira estratos de materiais “vagabundos” e industrializados para dar a ver a madeira, está trazendo à tona um material vivo. Nesse sentido, a madeira de lei, como mogno, jacarandá e outras, estava destinada desde sempre a eternizar um ser divino. Tecnicamente, uma das singularidades das imagens brasileiras é a falta do aproveitamento do material usado. Tendo examinado milhares de peças, posso afirmar que, com raras excepções, até fins do século XVIII, tôda imagem brasileira era inteiramente policromada. O santeiro brasileiro gostava do colorido. Peças de barro em côr natural, como é comum na Europa, aqui nunca aparecem. Quanto às de madeira, sòmente na época de 1800 algumas peças de jacarandá deixam ver a beleza do material. Anteriormente, mesmo que o santeiro usasse, para fins de maior durabilidade ou maior precisão do entalhe, madeira nobre, policromava-a da mesma maneira que a madeira inferior. O que parece mais estranho é esconder sob a camada de policromia um material tão precioso como o marfim, o que é comum nessas imagens quando autenticamente brasileiras. As de Gôa e portuguêsas não levavam encarnação nenhuma, ou apenas, parcial. O santeiro baiano, mesmo usando marfim para fragmentos da imagem: cabeça, rosto ou mãos, pintava-os também. (HERSTAL, 1956, p. 27-29, grifos meus). 136 O colorido pode até tornar a imagem devocional autenticamente brasileira, mas a tinta não atrai alguns colecionadores tanto quanto uma certa materialidade primordial dos santos. A devoção, no âmbito da coleção, volta-se não só ao trabalho artístico, mas também aos materiais que antes de ganharem forma de imagem já a incitam, ou seja, anunciam o sagrado que têm o poder de corporificar mais tarde pela ação de um escultor. Nessa direção, Antônio considerou um acinte, por exemplo, quando foi convidado a colaborar em um projeto cujo resultado do trabalho de artistas seriam oratórios de Eucatex92. Os santos colecionados por meu interlocutor não foram esculpidos necessariamente em madeira nobre, mas também não são de “madeira branca”, propícia à infestação de bichos. Apesar do nome, esse tipo de madeira caracteriza-se mais pela contextura mole, pouco rija, do que pela coloração clara em si. Na coleção de Antônio prevalecem peças feitas em umburana, também chamada de imburana93, uma árvore pequena, esgalhada e típica da caatinga. A forma de exposição da coleção também guarda algo de sagrado, não que as estantes e prateleiras das casas de Antônio94 sejam altares como aqueles organizados pelos devotos. Enquanto esses últimos contêm velas, santinhos, bíblias e outros objetos religiosos; nos arranjos formados pelo colecionador, as imagens eram rodeadas por outras que lhe são irmanadas, por objetos que ajudassem no seu cuidado, como pincéis e redomas, e ainda por coisas que auxiliassem na compreensão de sua natureza, como fotos e catálogos de arte. Apesar dessa distinção em relação à exposição do devoto, nas residências do colecionador não observei, por exemplo, nenhuma imagem de cabeça para baixo. Pelo contrário, há um respeito em relação à forma adequada de expor um santo que observei desde a primeira vez que visitei a Galeria que pertencia ao colecionador. Naquele espaço comercial, por exemplo, os crucifixos ficavam, em sua maioria, junto à parede e no alto, como é tão comum nas igrejas e nas casas dos devotos95. 92 Marca comercial de compensados, placas formadas por camadas finas de madeira superpostas, coladas e prensadas. 93 E ainda conhecida popularmente, como cumaru-do-ceará, cumaru das caatingas, imburana de cheiro, cerejeira rajada ou cumaru de cheiro. 94 Na ocasião do trabalho de campo, o colecionador abrigava seus objetos em uma casa em Natal e em outra na cidade vizinha de Pium. Ambos os espaços também eram utilizados por ele como moradia. Atualmente, Antônio mora em um apartamento em Natal. Com a mudança, a casa na capital foi organizada para funcionar como uma espécie de escritório de transações, funcionando não só como espaço de guarda e exposição, mas também de comercialização de objetos. A habitação da casa de Pium – partilhada com inúmeras obras – continua sendo de registro mais íntimo. 95 Vide Figura 6: Visão panorâmica da Galeria do CT 1; capítulo “Em busca de caçadores de imagens”, p. 48. 137 A exposição do santo colecionado, de acordo com Antônio, precisa enaltecer a autoria do escultor. Nessa direção, o colecionador considera desrespeitoso o trabalho de artistas que criam composições a partir de imagens de santos. É o caso de Farnese de Andrade96, que criou toda uma obra própria “em cima” de objetos que, apesar de não serem considerados por uma opinião mais ampla como obras de arte, trazem em si traços autorais antes mesmo da intervenção do artista. A arte dele não justifica o que ele faz com os santos, eu acho eu acho sem respeito pela arte anterior. Eu vi um trabalho de Farnese com uma santa de um dos santeiros de Pernambuco que eu mais gosto, a santa completamente deslocada. Ele fazer isso com uma boneca que você compra na esquina, tudo bem, mas com um santa daquela não se faz isso. Ao utilizar em suas assemblages97 imagens que, diferentemente de bonecas, são vistas como obras de arte, Farnese torna-se um profanador; ao passo que, na opinião de meu interlocutor, poderia ser um revelador de autorias desconhecidas. A questão da apropriação do talento criador alheio também é colocada na relação com as obras mutiladas, por isso, é considerado inadequado reconstituí-las completamente. Já abordamos a relação de Antônio com os fragmentos em termos de suas possibilidades pedagógicas enquanto ‘santos-lição’. Numa visão alternativa, a imagem “arruinada” é registro do infortúnio do tempo: o que pode ser feito para aliviar o sentimento de perda presente nas ruínas? O que pode ser feito para tentar contornar o caráter melancólico e assustador, do desfalecimento e do ruir dessas imagens, que pereceram, mesmo estando a serviço de Deus? Na maioria das vezes, nada. Um restaurador consciente de suas atitudes éticas, impossibilitado de operar milagres e falsificações, tem somente a possibilidade de conter as degradações, estabilizar a estrutura material dos componentes construtivos da imagem e mantê-la como um registro. a degradação da matéria constituinte das imagens por vezes chega a um grau tão acentuado que a única maneira de mantê-las é na forma de registros históricos, onde essas ruínas vão ter agora somente a função de relatar o infortúnio do tempo e discutir os componentes dialéticos entre passado e futuro. O que elas representam não apenas indica o que foi este passado, mas por vezes carregam consigo os lamentos da felicidade perdida neste passado. (COLNAGO FILHO, 2011, s/p, grifos meus). O autor-restaurador que se declara impossibilitado de operar milagres nos trechos acima narra em sua dissertação de mestrado que não se atreveu a brincar de Deus quando encontrou uma obra extremamente degradada no almoxarifado da Universidade Federal do Espírito Santo. A solução foi entronizar a “provável imagem de uma santa” em um nicho que adorna a entrada do núcleo de conservação e restauração da instituição de ensino. 96 97 * 1926, Araguari, MG † 1996, Rio de Janeiro, RJ. Termo cunhado na década de 1950 pelo artista francês Jean Dubuffet para designar suas composições criadas a partir de objetos que depreciavam métodos e materiais da arte tradicional. 138 A imagem que apraz o colecionador que “também é um pouco restaurador”, como visto, não é intocável. Seu corpo é constantemente manipulado para emanar a aura ideal, mas por que em algumas situações esses feiticeiros combinam materiais para chegar ao efeito desejado e em outras se veem incapazes de fazê-lo? Se, inspirados nas proposições de Mauss e Hubert (2003), entende-se os gestos dos colecionadores (e outras pessoas que manipulam as imagens) como atos simpáticos, ficamos uma vez mais diante dos limites das manipulações. Os gestos não podem afetar a imagem como um todo, sob o risco do apagamento do mana do artista. Ressaltar a beleza da obra é diferente de torná-la sua própria obra. 3.6 MAQUIAGEM E MALEFÍCIOS: OS RISCOS DAS MANIPULAÇÕES Não se pode esquecer que as manipulações são frequentemente interditas, posto que no imaginário que a humanidade formou sobre a magia tendem para o malefício (MAUSS e HUBERT, 2003, p. 59). Nesse imaginário – e substancializando por ora uma distinção que adiante questionaremos – a magia, ao contrário da religião, opera às escondidas e é potente na geração de efeitos físicos negativos. A manipulação mais moralmente condenada entre os apreciadores de imagens é a “maquiagem” de obras. Trata-se da ação transformadora de imagens de fatura recente em antiguidades. Para que isso se passe, santos atualmente esculpidos e policromados de acordo com os padrões eruditos pretéritos98 são submetidos a processos que lhes conferem o aspecto de antigos. Assim, imagens são enterradas; expostas a cupins e outros agentes danosos; revestidas com materiais específicos para que pareçam tão velhas quanto peças produzidas nos séculos XVIII e XIX. O artista habilidoso na produção de santos maquiáveis, segundo Antônio, precisa ser sincero, deixar claro que suas obras são réplicas ou cópias exatas de santos barrocos que, apesar de remeterem ao passado, devem cintilar de tão novas, considerando as folhas de ouro recém-aplicadas. E também precisa saber para quem vende, pois restauradores, apontados como aliados potenciais dos comerciantes desonestos, podem neutralizar esse aspecto de fabricação recente: “– Quem faz isso não é colecionador, é comerciante desonesto que só quer saber de lucro”, afirma Antônio, alargando a rede de relações (e acusações) em torno das imagens forjadas, na qual pode-se incluir os artistas que fornecem a matéria-prima já potencialmente trabalhada para o gesto ilícito. 98 Como as imagens produzidas “ao estilo antigo” expostas no Aeroporto Santos Dumont e na Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas mencionadas no primeiro capítulo. 139 Então, você vê como é complicado o mundo dessas artes. Uma imagem dessa aqui eu já encontrei em SP como sendo autêntica. Eu mesmo já comprei uma pensando que era autêntica, de tão bem feita a maquiagem. Quando eu cheguei em casa, aí eu... é interessante, a pessoa que já tem uma sensibilidade, eu já estava deitado, “será que aquela santa é autêntica? Eu tô achando que não é.” Aí me levantei, liguei para o artista, era um de Pernambuco. “Olhe, você fez uma santa assim e tal?”. Ele disse que sim e perguntou porquê eu queria saber isso. Eu disse que só queria saber. Mas liguei pra quem me vendeu: “se prepare, porque amanhã eu tô aí pra você me devolver meu dinheiro.” Ela foi vendida por 10 mil reais e ele devolveu. Como é possível perceber a partir do relato, considera-se que os artistas que produzem os santos “neobarrocos” nem sempre o fazem visando o embuste. Entretanto, suas produções podem ter o status adulterado para antiguidade quando mudam de mão, especialmente se os materiais utilizados forem semelhantes aos utilizados pelos santeiros coloniais. A utilização de madeira obtida em demolições e outras substâncias pouco modernas contribui para dificultar o diagnóstico da peça enquanto falsa, ao passo que o emprego de materiais industrializados – tais como pregos e tintas sintéticas – torna a fraude óbvia, ao menos para quem tem a percepção minimamente aguçada. A técnica mais sofisticada, por conseguinte, reside na manipulação adequada de recursos antigos para enganar. Como diz Etzel (1979, p. 136, grifo meu): “Falsifica, fabrica com arte e malícia, sobrepõe-se aos séculos, cria-se a ilusão de tempo transcorrido. A imagem copiada em pouco tempo é apresentada, e todos a aceitam e admiram pensando nos séculos que a envolvem como uma aura.”. A detecção de fraudes só pode ser adquirida através de anos de contato com obras, de décadas de treinamento do olho. Ao falar uma vez mais de olhar numa seara tão pautada pelas fórmulas manuais e orais é preciso fazer menção à metodologia pensada pelo historiador Carlo Ginzburg (1989, p. 150-151) como a forma de saber que “emergiu no final do século XIX – mais precisamente, na década de 1870-80 – e começou a se firmar nas ciências humanas como um paradigma indiciário baseado justamente na semiótica. Mas as suas raízes eram muito antigas.” E, conforme argumenta o autor, são formas de saber tendencialmente mudas – no sentido de que [...] suas regras não se prestam a ser formalizadas nem ditas. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento, entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição. (GINZBURG, 1989, p. 179). A ideia de connoisseurship, um conhecimento de alto nível adquirido por conhecedores de arte que, dentre outras astúcias, distinguem originais das cópias, funda-se nos “fulminantes diagnósticos” de médicos que com rápidos olhares detectam a doença. Nesse quadro de referência, o olho do conhecedor é olho clínico que enxerga na realidade opaca “zonas privilegiadas”, acessadas por meio da 140 atenção a certos sinais. As pistas a serem seguidas, no caso de Sigmund Freud, são sintomas; no caso de Sherlock Holmes, indícios; e signos pictóricos no caso do crítico de arte italiano Giovanni Morelli. A trama de saberes indiciários é deslindada por Ginzburg através de suas raízes na semiótica médica: “Freud era um médico; Morelli formou-se em medicina; Conan Doyle havia sido médico.” Foi seguindo pistas infinitesimais que Morelli identificou os verdadeiros autores de quadros que tinham sido atribuídos a autores errados e outros tantos falsificados. Para tanto, porém (dizia Morelli), é preciso não se basear, como normalmente se faz, em características mais vistosas, portanto mais facilmente imitáveis, dos quadros... Pelo contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis, e menos influenciados pelas características da escola a que o pintor pertencia: os lóbulos das orelhas, as unhas, as formas dos dedos das mãos e dos pés. Dessa maneira, Morelli descobriu, e escrupulosamente catalogou, a forma de orelha própria de Botticelli, a de Cosme Tura e assim por diante: traços presentes nos originais, mas não nas cópias. (GINZBURG, 1989, p. 144). Um catálogo de formato de orelhas, nesse sentido, pode ser mais precioso para captar a realidade mais profunda do conjunto da obra de um autor do que suas marcas impressivas mais evidentes. A atenção aos “vícios” e “cacoetes” dos artistas desmistificava falsários e corrigia atribuições errôneas porque os pormenores em questão eram negligenciados, mas... E quando a obra de um artista já foi tão estudada que até o formato que ele dava a unha das estátuas que esculpia é conhecido? Nesse caso, pode-se pensar no esquadrinhamento de autoria como uma fonte de informação que tanto facilita a revelação de golpes, quanto promove a possibilidade de reproduções fiéis à integridade do conjunto de características particulares de um autor. Contudo, como já foi exposto, conhecer a fórmula não é necessariamente saber fazer. Se a obra é considerada um feito extraordinário, para simulá-la com precisão é preciso mais do que expertise. Nesse caso, o manipulador precisa também ser um pouco mágico e conseguir se comunicar com um gênio artístico difícil de ser alcançado por qualquer um. É sabido que catálogos de Aleijadinho são inflados por obras relacionadas a ele e que não resistem a um exame mais minucioso de pessoas reputadas como especialistas, mas também escutei em campo que algumas imagens, entretanto, quase mereceriam a atribuição, de tão bem artificiosamente fabricadas. Nessa direção, um restaurador já falecido e cuja astúcia é considerada incomparável por colecionadores, comerciantes de arte e profissionais do patrimônio era conhecido como “Aleijadinho do Mal”. A alcunha torna explícita a relação entre poder da técnica e fabricação de malefício. Ao modificar imagens de modo a torná-las identificáveis como Aleijadinhos, o restaurador em questão tinha o poder não só de incutir os “cacoetes” já inventariados do escultor colonial nas obras, mas também a “força” característica do artista emulado. 141 De acordo com Bruno Latour (2008), a identificação da mão humana na construção de objetos é tabu porque dessacraliza a imagem e anula a transcendência característica das divindades. Por isso, os ícones acheiropoiète, aqueles não feitos pela mão do homem – faces de Cristo, retratos da Virgem, o véu de Verônica – são celebrados e cultuados como verdadeiras imagens divinas, produzidas sem a intermediação humana. Se pensarmos a essência da imagem brasileira a partir do que caracterizei como ‘Efeito-Aleijadinho’, temos obras que foram produzidas por mãos estropiadas e (também) por isso, sobre-humanas. Sendo assim, a licença para realização de manipulações em Aleijadinhos pode ser concedida se o produto final homenagear e enaltecer a autoria em questão (ao invés de tentar se passar por ela). São muitos os artistas que produzem santos como “o mestre”, mas deixam claro que o trabalho é uma “inspiração” e não uma fraude deliberada, tanto que assinam suas obras. Em 2014, o escultor Elias Layon requisitou a autoria de duas imagens que constavam em um “Catálogo Geral da Obra” de Aleijadinho. O artista inclusive apontou que as peças originais nas quais teria se inspirado também constavam na publicação. Quem realizou as adulterações se valeu de recursos tais como a raspagem da assinatura do artista da base das imagens; alteração da policromia; a amputação de um braço e a introdução de um olho de vidro no globo ocular de uma delas (BORTOLOTI, 2014). O autor do referido catálogo geral, Márcio Jardim, já expediu “laudos de autenticidade” que ratificam a autoria de Aleijadinho a um número bem maior de obras em relação às atribuídas ao escultor por outros especialistas. À denúncia de Layon se somou a de Márcio Bernardes, que identificou uma peça de sua autoria arrolada como obra do artista colonial em um catálogo de uma exposição realizada na Caixa Cultural de Brasília. Myriam Oliveira chegou a afirmar que tal exposição não contava com nenhuma obra de Aleijadinho. A questão é que a participação na mostra e, consequentemente, em catálogos e outras formas de divulgação não deixa de ser uma instância (de consagração, diria Bourdieu) que ratifica a autoria controversa. Nos casos em que a dúvida sobre a autoria e a procedência das obras ganha a esfera jurídica, com frequência, o Estado recorre a centros de pesquisa e seus arsenais para análise de pigmentos e de suportes, datação isotópica e outras ferramentas que podem auxiliar no consenso sobre a “idade” do material utilizado uma obra. Contudo, a “paternidade” do trabalho escultórico permanece como empreitada de especialistas que decifram traços expressivos particulares. Afinal, como aponta Bruno Latour (2008), 142 A cascata de imagens é ainda mais impressionante quando se olha para a série reunida sob o rótulo de ciência. Uma imagem científica isolada não tem significado algum, não prova coisa alguma, não diz nada, não mostra nada, não tem referente. Por quê? Porque uma imagem científica, até mais do que uma imagem religiosa cristã, é um conjunto de instruções para alcançar outra mais além. Uma tabela de números leva a um gráfico que leva a uma fotografia que irá levar a um diagrama que irá levar a um parágrafo que irá levar a uma afirmação. A série como um todo tem um significado, mas nenhum de seus elementos tem qualquer sentido. (LATOUR, 2008, p. 139-140, grifo meu). A ideia de “cascata de imagens” é interessante perceber como a tentativa de ‘enxugar’ o número de obras atribuído a Aleijadinho acaba por pluralizar Aleijadinhos por catálogos, processos, exames, reportagens, laudos, pareceres etc. Não cabe aqui explorar as complexas redes sociotécnicas em que se imiscuem as aventadas controvérsias. As contendas entre historiadores da arte, técnicos do patrimônio, antiquários, restauradores e colecionadores tornam claro que a obra do artista em questão não contém apenas elementos “inconfundíveis”. A alegada excepcionalidade de formas precisa ser validada em laboratórios de físico-química, ultrassonografia etc., comprovada por documentação histórica, chancelada por especialistas e, muitas vezes, ratificada em tribunais. Os episódios de escultores que reivindicaram obras catalogadas como Aleijadinhos narrados acima motivaram a formação de uma comissão do IPHAN e do IBRAM com vistas à elaboração de uma lista oficial – uma espécie de catálogo raisonné99– do que teria sido de fato esculpido por Aleijadinho. A comissão, formada por voluntários, conta com a consultoria da historiadora Myriam Ribeiro; o restaurador Antônio Fernandes; a técnica Lucienne Elias e o promotor Marcos Paulo de Miranda para assessoria jurídica100. De todos esses nomes, apenas o de Lucienne Elias não havia ainda sido citado durante meu trabalho de campo. Eu estava ciente da autoridade da apreciação dos demais. Em termos weberianos, posso dizer que o carisma desses profissionais faz parte da burocracia patrimonial e, por isso mesmo, foi rotinizado. Não se pauta, portanto, no fervor da devoção, mas não deixa de se valer do resfriamento dela, pois recorre à expertise de pessoas dotadas de um olho agraciado. O caráter racional, abstrato e impessoal da justiça e da administração conjuga-se assim à pessoalidade específica de profissionais que podem fazer revelações, pois possuem um dom não acessível a todos. 99 “Expressão francesa utilizada internacionalmente para designar o catálogo completo da produção de determinado artista, com indicações, como origem, medidas, técnica, natureza do suporte, detalhes de assinatura e datação, bibliografia e ainda outros dados que caracterizem perfeitamente cada obra, da qual é também fornecida uma ilustração fotográfica.” (LEITE, 1988, p. 115). 100 Descrevo minha interação com Marcos Paulo no primeiro capítulo da tese (Tópico 1.4 – Santos Desaparecidos). 143 A dificuldade de se encontrar um árbitro neutro entre os especialistas para compor uma listagem arrazoada de obras de um autor explica a complexidade envolvida na empreitada do Estado quando ele toma para si a palavra final que estabelece o que é ou não é um Aleijadinho. Quem atesta a validade do atestado? Aquele que assinou o título que licencia para atestar. Mas quem deu licença a este? Somos levados a uma regressão ao infinito, ao final da qual “é preciso parar” e podemos, como os teólogos, escolher atribuir o nome de Estado ao último (ou ao primeiro) anel da longa cadeia dos atos oficiais de consagração. [...] Ao enunciar, com autoridade, que um ser, coisa ou pessoa, existe em verdade (veredicto) em sua definição social legítima, isto é, é o que está autorizado a ser, o que tem direito a ser, o ser social que ele tem o direito de reivindicar, de professar, de exercer (por oposição ao exercício ilegal), o Estado exerce um verdadeiro poder criador, quase divino. (BOURDIEU, 1996, p. 113-114). ***** Ao trazer à baila o quanto os corpos das imagens são trabalhados, procurei incluir na análise as mãos que transformam os aspectos das imagens. Vimos que não é com qualquer aura que a imagem peregrina para coleção. Se a ideia de aura evoca um suposto halo luminoso que só os iniciados veem, vimos que essa aparição também é convocada manual e materialmente. Nesse sentido, algumas substâncias que recobrem as imagens são vistas como disfarces da sua “verdade”, enquanto outras reforçam sua autenticidade. Latour (2008, p. 117) propõe “que quanto mais humanos há, mais o trabalho humano se mostra, melhor a apreensão da realidade, da santidade, da devoção”. O foco do autor, nessa linha de raciocínio, leva mais às incertezas, às situações em que, frequentemente, hesitamos diante das imagens, já que nos relacionamos com elas em situações ambíguas a ponto de não sabermos ao certo se nossos gestos serão construtivos ou destrutivos. Temos, então, um “iconoclash”: Iconoclasmo é quando sabemos o que está acontecendo no ato de quebrar [uma obra de arte] e quais são as motivações para o que se apresenta como um claro projeto de destruição; iconoclash, por outro lado, é quando não se sabe, quando se hesita, quando se é perturbado por uma ação para a qual não há maneira de saber, sem uma investigação maior, se é destrutiva ou construtiva. (LATOUR, 2008, p. 112-113). A partir dessas indicações, não cabe dizer quem ultraja a imagem, se é a devota de Santo Antônio que o coloca de cabeça para baixo; o restaurador que realiza decapagens ou adições no corpo da imagem; o autor que a descreve dançando lascivamente ou o colecionador que a preserva do jeito que a encontrou. Afinal de contas, é “como se a desfiguração de um objeto pudesse inevitavelmente gerar novas faces; como se o desfiguramento e o “refiguramento” fossem necessariamente coetâneos.” (LATOUR, 2008, p. 114). 144 Assim, as imagens abordadas são potencialmente ricas para reflexão justamente pela quantidade de mãos que as tocaram e que as fizeram funcionar como sagradas, como instrumentos pedagógicos, como belas, como obras de arte que fascinam. Para que os fetiches possam fazer, eles precisam antes serem feitos. Não se fabrica, contudo, a partir de qualquer matéria. Para que a produção seja eficaz, é preciso agenciar materiais, gestos e enunciações específicas, como procurei colocar em evidência. Mostrar o quanto as imagens são manipuladas material e simbolicamente significa pensá-las como coisas em produção contínua, que nunca atingem um acabamento definitivo porque estão imiscuídas em um fluxo de relações sociais mais complexo do aquele compreendido entre polos passivos de produção e recepção. 145 4 PRELÚDIO SOBRE A INVENTIVIDADE (DOS SANTOS) DO SERTÃO [...] Oia Santo Santo Onofre Menino Deus Senhora Santana Santa Teresa do Menino Jesus Seu Olavo seus vidros conduz Pelo Flos Santurum das rótulas Uma loira pergunta - Qué destrocá um São Roque por um buchê? Olha ceia! As mulheres do Mangue sorriem – Todas temos Na parede do quarto A Santa Ceia É a de Leonardo Todas temos […] O santeiro do Mangue Oswald de Andrade 4.1 SÃO JORGE E SÃO MIGUEL NA SALA DE ANTÔNIO Com base em diversas considerações do principal interlocutor dessa pesquisa, no capítulo anterior anunciei que o entendimento de um santo com a cara e as cores do sertão pressupõe o enveredar-se por essa região. Nessa esteira de pensamento pode-se compreender como as imagens reunidas por Antônio o reenviam a um encontro com um mundo específico. Recordo-me bem dos seus dizeres em uma das primeiras situações em que meu olhar foi direcionado para determinado santo da coleção: “– Veja esse São Jorge. Um santo guerreiro, mas que esse artista transformou em um sertanejo humilde como ele”. Entender essa operação levada a cabo pelo artista, consequentemente, implica elucidar porque uma peça hoje exposta na sala de um apartamento em Natal possui o poder de convocar a ideia de “sertanejo humilde” para a corporeidade da imagem. Ao apontar para certas características da obra, o colecionador explicita como o São Jorge que tem espaço na coleção ganhou feições específicas. Elas derivam da transformação da 146 difundida iconografia deste santo na qual ele aparece montado de forma imponente e combativa em um cavalo branco, matando um dragão feroz. O caráter de “humildade” do santo colecionado é mobilizado por um conjunto de elementos. Suas expressões faciais, ao invés de sugerirem valentia e incitação à batalha, mostram certa placidez e resignação, principalmente pelo olhar perdido e nada engajado com a situação de embate. As incisões nos joelhos e o tom metálico que cobre a maior parte do corpo evidenciam que a vestimenta é uma armadura. A proteção que ela oferece não se estende à cabeça do santo, onde no lugar do elmo com penacho tem-se um chapéu de sol. Figura 36 – São Jorge “sertanejo humilde” Foto: Acervo da autora, jul. 2015 O animal montado por São Jorge é um jegue manso com sela simples, em vez do cavalo bravo altivo e adornado. A movimentação das patas dianteiras do jegue mais parece descansar sobre o dorso da criatura combatida, o dragão, que na iconografia mais conhecida do santo é frequentemente pisoteado. O dragão ameaçador e em movimento sinuoso entre as patas do cavalo ganha corpo na imagem esculpida como um réptil achatado e estático, com formato pouco definido apesar da forma arredondada em uma das extremidades, que dá ideia de cabeça, e pontiaguda em outra, sugerindo um rabo. A arma comprida e fina segurada pelo ‘santosertanejo’, aparentemente frágil como o graveto ou palito que lhe dá forma, mais se assemelha a um cajado com o qual ele se apoia no monstro, em vez da lança usada para traspassar o dragão. Como se vê, é possível decompor a imagem de São Jorge nos elementos listados acima a partir do frame (BATESON, 1972) no qual o colecionador apontou para o sertanejo no santo guerreiro. Essa forma de enquadramento não só ‘recorta’ a imagem de São Jorge da reunião de santos em que ela está inserida, como também funciona como uma lupa com a qual se detecta e se aumenta as marcas (nem sempre relativas ao uso) que corroboram o enunciado do colecionador. O compartilhamento dessa moldura de sentido foi atualizado e eventualmente modificado por diversas imagens. 147 Uma imagem que definitivamente capturou meu olhar nessa direção foi São Miguel, santo que segundo Cascudo (1988, p. 490), de certa forma, rivaliza com São Jorge. Este autor descreve o “popularíssimo” São Miguel como: Príncipe da milícia celestial, o guerreiro de Deus, aquele que combate Satanás, desde o princípio dos tempos. […] É um dos modelos fixados pelos pintores do Renascimento, figurando um homem novo e vigoroso, armado de espada fulgurante ou lança de prata, com elmo romano, derrubando um dragão ou um demônio. (CASCUDO, 1988, p. 576-577). Figura 37 – São Miguel Foto: Acervo da autora, jul. 2015 Logo, a iconografia tradicional deste santo também remete a uma cena de embate e uma vez mais, no âmbito da coleção, a figura guerreira aparece de certa forma ‘apaziguada’ na criação de um artista popular. A hagiografia do arcanjo101 Miguel inclui sua associação ao juízo final em referência direta no livro do Apocalipse, que o identifica ainda como o “chefe de milícias celestes”, condutor dos anjos à vitória na batalha contra o mal. Além da balança, sua representação costumeira inclui asas, vestimenta de guerreiro, bem como uma espada ou lança com a qual subjuga o demônio, que pode aparecer sobre a forma de serpente, de dragão ou meio-humano. Em algumas representações, o demônio tenta roubar as almas dispostas sobre o prato da balança (GIORGI, 2011, p. 284-287). Na foto acima se pode observar os atributos citados anteriormente: asas, balança, espada e demônio. Ao invés da figura do homem vigoroso mencionado por Cascudo, se vê um sujeito com expressão facial triste e aflita, com olhos caídos e olhar perdido que não encara o demônio. A espada segurada por uma das mãos, posicionada na altura do abdômen, é direcionada para o alto e não para a criatura que jaz sob os pés do santo. Ela tem volumes mais definidos em relação à combatida por São Jorge, suas extremidades aparentam ser cabeça e cauda e avançam para fora da base quadrada que sustenta a cena de ‘combate’. A melhor definição do inimigo como sendo um dragão também pode ser vista nas asas que surgem lateralmente ao seu ‘tronco’, mas o esmero do artista é direcionado às asas do próprio arcanjo, como será visto abaixo. 101 “Arcanjo” é o nome dado à categoria de anjos responsáveis pela transmissão de mensagens importantes. Juntamente com São Rafael e São Gabriel, São Miguel Arcanjo é uma das principais entidades da hierarquia angélica, tendo atingido tal importância que os três adquiriram o estatuto de santos. 148 A balança, devido à sua grande proporção em relação ao conjunto como um todo, parece mais ser um elemento de desequilíbrio do eixo do ‘santo-sertanejo’ do que o instrumento de poder usado por São Miguel para pesar os méritos e deméritos daqueles que estão no purgatório. A despeito desse ‘peso’, é segurada apenas pelo encontro dos dedos polegar e indicador de uma das mãos do santo, dando a impressão que o atributo precisa ser mostrado (e não necessariamente sustentado). É interessante notar que os pratos da balança são ligados ao eixo dela por cordas, o que introduz um elemento flexível distinto da madeira na escultura. Diferentemente do São Jorge que abordamos acima, que do pescoço para baixo, com exceção das mãos, tem o corpo todo coberto por armadura, o traje de guerra de São Miguel é mais leve, colorido, não cobre parte dos braços e das pernas. A calça curta marrom é em parte recoberta pela meia túnica laranja com botões, barras e detalhes ornamentais em dourado e gola em vermelho. O V formado pela gola na parte superior do tronco prolonga-se visualmente para fora, através das asas pontiagudas que surgem das costas do santo, crescendo até a altura dos olhos. Os grafismos em azul, vermelho e dourado não sugerem penas nas asas de fundo amarelo, que devido aos desenhos e ao colorido se parecem mais com as de uma borboleta do que com as de uma ave. Olhando a face posterior da peça vemos que as asas são formadas por dois triângulos presos nas costas de modo a formar um V invertido entre eles ou ainda um W se olharmos o conjunto composto por asas e tronco. Nessa parte de trás da imagem, a túnica é praticamente lisa; os detalhes em dourado, azul e vermelho concentram-se nas asas de fundo amarelo. Apesar da leveza emprestada às asas pelas cores, não temos a impressão que o santo alado vai se elevar em voo, seus sapatos aparecem bem fixados ao dragão. A plasticidade da representação de um santo que é anjo, soldado e juiz, quando também é “humilde como o sertanejo”, como se pode (dar a) ver, torna São Miguel terreno, em oposição patente aos ares celestiais fixados pelos pintores do Renascimento evocados por Cascudo. No arcanjo nordestino, os atributos não estão sendo mobilizados, como se ele não precisasse mais guerrear, pesar almas e seus pecados, liderar exércitos. O santo humanizado, nesse sentido, pode se parecer com o sertanejo terreno, mas sua santidade está dada pela conformação a um tipo iconográfico convencional e é mostrada pela balança, pelas asas, pelo dragão morto, pela espada em punho. Figura 38 – Face posterior de São Miguel Foto: Antônio Marques, jul. 2015 149 Os processos que levam à convencionalização iconográfica são diversos. Podemos citar, a título de ilustração, os relatos hagiográficos da Legenda Áurea, que eliminaram os elementos considerados heréticos das vidas dos santos, apresentadas então conforme a ortodoxia. Esta obra, escrita no século XIII por Jacopo de Varaze, trazia, além da biografia dos santos, certos elementos de suas iconografias. O conteúdo de fundo moral e pedagógico da famosa coletânea hagiográfica enfatizou o papel dos santos como exemplos, buscando purgar suas trajetórias do excesso de elementos mágicos herdados de práticas pagãs. A hagiografia de São Jorge, por exemplo, de acordo com a historiadora da arte Rosa Giorgi (2011, p. 88), foi transformada numa espécie de conto de fadas a partir da Legenda. O animal montado pelo santo medieval que viveu entre os séculos III e IV passa a ser sempre um cavalo branco, que simboliza suas qualidades irrepreensíveis. Além do dragão, outro atributo que entra em cena é uma princesa que é salva pelo santo. A imagem de São Jorge como um príncipe de conto de fadas, por conseguinte, nasce da confluência entre um texto que traz um modelo de santidade e a imagem que ele fomenta. A articulação entre texto e visualidade, entretanto, não nos diz apenas sobre a imagem prescrita e desejada. De acordo com Carlo Ginzburg (2001), as citações proféticas nos textos judaicos – tais como “ecce homo” (“eis o homem”); “eis a virgem”; “eis o Cordeiro de Deus” (GINZBURG, 2001, p. 116) – incitaram uma gama de representações icônicas inesperadas. Para o autor, o uso de certas frases nominais deu origem a imagens de culto cristãs que trazem consigo uma dimensão narrativa de ênfase no milagre dramatizado na representação. Em certos momentos históricos, essa dimensão se torna mais escassa, mas continua guardando relação com as experiências místicas ou proféticas. A partir dessas sugestões, se estamos lidando com santos apresentados em termos de “eis o sertanejo”, também estamos travando contato com imagens sobrecodificadas, que se somam a outras relacionadas ao sertão. Como não enxergar, por exemplo, São Jorge e São Miguel como retirantes? Nessa leitura, os inesperados sapatos de couro de São Miguel, em vez das sandálias com as quais é habitualmente representado, serviriam para proteger as solas dos pés em sua saga de fuga da seca. O santo que, como arcanjo, poderia voar, mas na interpretação em pauta precisa enfrentar o terreno árido do sertão, ganha o auxílio de um calçado mais resistente, como as botas da imagem de São José que leva a família para o Egito às pressas. 150 De acordo com Stanislaw Herstal (1956), Uma das imagens mais tipicamente brasileiras é a de São José de Botas. Na Europa encontra-se uma ou outra vez um São José calçando botas; aqui o número cresceu até tornar-se um tipo à parte. O enigma das botas era explicado como indicação da fuga para o Egito. Esta explicação, no entanto, parece artificial, pois conhecemos diversos santos que calçam botas do mesmo tipo: São Pedro, São Joaquim e outros. (HERSTAL, 1956, p. 87, grifo meu). O historiador Durval Albuquerque Junior (2001) argumenta que a “invenção do Nordeste” foi feita a partir de um conjunto de imagens e enunciados – literários, científicos, políticos e religiosos que reconfiguraram o olhar do país em direção à parte do antigo Norte. São discursos variados que se unem e produzem um discurso outro que não é nenhum deles, mas uma reunião de enunciados e de imagens formadoras de um arquivo que vai ser utilizado por diferentes agentes em distintos contextos. A força motriz desse conjunto constitui-se basicamente de dois elementos. O primeiro remete à região como um recorte natural: o Nordeste é naturalmente seco e tem uma natureza particular semiárida. Tal recorte, por conseguinte, promove a visibilidade de uma certa paisagem. O segundo é o da paisagem cultural, diretamente tributado a Gilberto Freyre, região de raiz ibérica, rural, religiosa, artesanal, produto do cruzamento das três raças e, portanto, harmonizadora de contrários e miscigenada. Essa “maquinaria” problematizada pelo historiador começa a se configurar no contexto político da cobertura jornalística sobre a “grande seca” de 1877-79, que resulta nos primeiros romances sobre a calamidade regional. José do Patrocínio foi ao Ceará cobrir a tragédia e escreve Os Retirantes, publicado em 1879, criando o tema da retirada e do retirante. O “romance de trinta”102 continua a inscrever a paisagem árida e o cenário dramático da retirada do sertanejo na “geografia imaginária” do país, estabilizando uma série de “temas regionais” de “forte poder de impregnação”. Tais temas dizem respeito à decadência da sociedade açucareira; ao beatismo contraposto ao cangaço; ao coronelismo com seu complemento, o jagunço e à seca com a epopeia da retirada. A propósito dessa última temática, o autor mostra como A imagem do Nordeste passa a ser pensada sempre a partir da seca e do deserto, ignorando-se todas as áreas úmidas existentes em seu território. A retirada, o êxodo que ela provoca, estabelece uma verdadeira estrutura narrativa. Uma fórmula ritualística de se contar uma fuga de homens e mulheres do sertão que lembra a própria narrativa cristã da saída dos judeus do deserto. (ALBUQUERQUE JUNIOR, 2001, p. 138, grifo meu). 102 No qual se inserem, por exemplo, os autores Raquel de Queiroz, José Lins do Rego e José Américo. 151 A partir dessa forma de ver que se impõe, os sapatos de São Miguel retirante são como aqueles do São José de botas peregrino, que viaja longas distâncias em fuga. Não há como relativizálos como faz Herstal (1956), apontando que as botas também aparecem nos pés de outros santos. Ao evocar êxodo, tanto o jegue montado por São Jorge, como os sapatos de São Miguel se conectam a uma narrativa cristã atualizada com cor local. Assim, o que precisa ser combatido não é nenhum dragão, mas a seca, provocada por um sol inclemente diante do qual só resta fugir. Nessa direção, se em termos iconográficos, o círculo formado pela aba do chapéu utilizado por São Jorge poderia até sugerir um halo, a auréola característica dos santos, o ato de mostrar a imagem em termos de “eis o sertanejo humilde” inspira interpretações nas quais se torna difícil não enxergar o chapéu como um instrumento de proteção contra o sol causticante de um mundo rural e periférico. Mesmo não estando presente na imagem em si, o sol é constitutivo da paisagem sertaneja, assim como o jegue típico, o solo árido, as cores ocres. Como vimos, os santos com cara de sertanejo trazem em si mais do que feições peculiares. A dupla ‘liberdade’ em relação aos cânones escultóricos e religiosos resulta na expressividade plástica mobilizada por linhas de força associadas pelo colecionador ao típico, ao cotidiano e ao regional. Percebe-se, então, como o ponto sublinhado por meu interlocutor agrega ao nosso olhar a paisagem constitutiva da imagem, que agora emolduramos como ‘imagem-paisagem’. O sertão, mobilizado por muitos detalhes, produz esse tipo de obra autêntica que é destacada no imperativo de olhar para “esse São Jorge” (o colecionado) e não para imagens de São Jorge genéricas. Uma outra operação consiste em produzir ‘O’ São Jorge em questão como singular no interior de uma classe de objetos que interessam a colecionadores. A cara de gente humilde provém dos próprios santeiros, que produziram suas imagens no seio da religiosidade do povo para ocupar altares de capelas de fazendas, de beira de estrada ou ainda oratórios e outros nichos domésticos. Assim, a ‘imagem-paisagem’ é entendida como expressão plástica diretamente relacionada à dinâmica de baixa penetração da “Igreja oficial” e seus oragos de traços europeus no sertão. O santo humilde não traz em si somente o horizonte inescapável da fome e da seca, ele nos transporta para uma realidade outra, a do mundo encantado do sertão. Ainda de acordo com Albuquerque Jr. (2001), o Nordeste sertanejo não coincide exatamente com aquele pensado por Freyre a partir da Zona da Mata pernambucana: É um “reino […] bruto, despojado e pobre”, cuja visibilidade em tais termos é reforçada pela obra de Ariano Suassuna, que tem como cenário uma região feudal, medievalizada, um espaço ainda sagrado, místico, que lembra a sociedade de corte e de cavalaria, com seus profetas, peregrinos e cavaleiros andantes. 152 Tudo isto posto, fica claro porque eu não tive a menor dificuldade em ver o sertanejo apontado nos santos, a despeito de, em vários momentos, não ter conseguido enxergar outros elementos destacados nas imagens por Antônio. Afinal de contas, mesmo não tendo seu olho treinado, eu era familiarizada com o potente repertório que inventa o Nordeste, o nordestino e o sertanejo. Um colega estrangeiro e, portanto, não conhecedor do repertório em questão, ao me ver descrevendo a imagem de São Jorge abordada acima, perguntou-me se tratava-se de um homem montado em um pônei ou em uma figura de carrossel. A reação ao São Miguel que também descrevi anteriormente foi chamá-lo de “homem borboleta”. Outro colega alertou-me que a peça “parece o Anjo do Klee”, o personagem do quadro descrito por Benjamin em sua famosa tese IX sobre o conceito de História: Há um quadro de Klee intitulado Angelus Novus. Representa um anjo que parece preparar-se para se afastar de qualquer coisa que olha fixamente. Tem os olhos esbugalhados, a boca escancarada e as asas abertas. O anjo da história deve ter esse aspecto. Voltou o rosto para o passado. A cadeia de fatos que aparece diante dos nossos olhos é para ele uma catástrofe sem fim, que incessantemente acumula ruínas sobre ruínas e lhas lança aos pés. Ele gostaria de parar para acordar os mortos e reconstituir, a partir dos seus fragmentos, aquilo que foi destruído. Mas do paraíso sopra um vendaval que se enrodilha nas suas asas, e que é tão forte que o anjo já não as consegue fechar. Esse vendaval arrasta-o imparavelmente para o futuro, a que ele volta as costas, enquanto o monte de ruínas à sua frente cresce até o céu. Aquilo a que chamamos o progresso é este vendaval. (BENJAMIN, 2005, p. 87). A aquarela de Paul Klee que tanto impactou Benjamin pertencia ao autor, que a adquiriu em uma feira em Munique. A incorporação da imagem em sua teoria teria sido fruto da “identificação mística” do autor com o Angelus Novus. Nessa perspectiva, o "anjo da história" é uma visão melancólica do processo histórico como um ciclo incessante de desespero. Quando Benjamin vai a Paris, a obra fica por um tempo sob a guarda de Georges Bataille. Em setembro de 1940, o autor cometeu suicídio durante uma tentativa frustrada de fugir do regime nazista. Seu amigo Scholem herdou o Angelus Novus. A viúva de Scholem doou o quadro ao Museu de Israel, que fica em Jerusalém, onde a obra permanece até hoje103. A interpretação da aquarela em termos de “Anjo da história” fez com que essa obra do pintor suíço passasse também a ser o “anjo do Klee” encarnado pela visão de Benjamin. Essa transformação de um ser angelical em mensageiro do caos mostra-nos como uma imagem pode não só nascer da dimensão narrativa, como propõe Ginzburg (2001), como também, na direção inversa, incitar leituras de cunho apocalíptico. O vendaval do capitalismo e seus dispositivos de consumo levam necessariamente à catástrofe e arrasta o anjo de rosto voltado para o passado. 103 As informações sobre o quadro foram coletadas na página da instituição: http://www.imj.org.il/imagine/collections/item.asp?itemNum=199799. 153 A criatura alada arrebata o espectador com seus olhos arregalados, boca e asas abertas. Se o anjo nada pode fazer contra o progresso desenfreado – a não ser expressar corporalmente o absurdo de sua empreitada – o colecionador, por sua vez, pode coletar e ordenar fragmentos para ativar a memória e recompor a experiência. A coleção, nesse sentido, é a trincheira contra o universo moderno desencantado. Por ora cumpre prosseguir pensando a fabricação dessa trincheira tendo em vista o agenciamento das ideias de Nordeste e nordestino, sertão e sertanejo. Figura 39 – Angelus Novus , de Paul Klee 4.2 SÃO MIGUEL NA CASA DE LUZIA A figura de São Miguel também foi importante na minha interação com a santeira Luzia Dantas e sua filha Dalva quando as visitei em Currais Novos - RN. A artista me explicou que alguns elementos da iconografia de certos santos são indispensáveis na fabricação de suas imagens: “Santa Luzia tem que ter uma coroa bonita porque ela era muito vaidosa. São Francisco não pode ser feito sem os pombinhos... Santana Mestra está sempre mostrando um livro para Nossa Senhora. Padre Cícero tem que estar de batina e chapéu.” E apesar do Arcanjo Miguel ser comumente representado sobre o demônio, Luzia me explicou porque não esculpe essa criatura, pois não quer responsável pela entrada de “diabinhos” na igreja caso as pessoas levem a peça para benzer. A santeira, portanto, receia que a ativação – por meio da bênção – da potência sagrada dos santos implique na entrada de seres malignos no espaço sacro. Desse modo, a destacada ausência desses seres no corpo da imagem mostra como a autoria de uma representação iconográfica consagrada pode ser eivada de subjetividade. 154 Outro fator que leva Luzia a não incluir os diabinhos na imagem é a “feiura” deles. A preocupação da artista com a beleza também diz respeito às expressões das partes indiscutivelmente sagradas das imagens, como foi registrado por outros pesquisadores: “Às vezes, a pessoa traz uma foto para eu me inspirar pro rosto do santo encomendado e, às vezes, a foto é feia. Quando eu faço meu rosto, deixo todos bonitos.” (LIMA e LIMA, 2008, p. 223). Figura 40 – São Miguel na casa de Luzia, Coleção de Dalva Dantas Foto: Acervo da autora, fev. 2012 Já Dalva, filha de Luzia, em nosso encontro destacou, principalmente, o refinamento da escultura da mãe: Esse São Miguel, por exemplo, dá pra ver que hoje a roupa dele tem mais pano, mais detalhe, envolve mais a peça, o rosto é mais afinado. A saia dele é maior, a asa também. […] As peças de mãe se destacam pelo acabamento, por exemplo, do olho. Em muitas imagens de outros artistas, os olhos são “cegos”, ou seja, a íris não é desenhada. O fato de Dalva ressaltar que, atualmente, as peças de Luzia são mais rebuscadas me fez pensar nas que eu havia visto no Museu Câmara Cascudo104. Neste local, as obras da artista me foram apresentadas juntamente com as de sua irmã, Ana Dantas, já falecida105. As principais diferenças apontadas pela santeira entre as peças de sua autoria e as de Ana foram o rosto mais comprido e o olho mais puxado em relação aos que a irmã conferia às produções. Contudo, o acionamento das peças do MCC é importante principalmente para colocar em tela as diferenças de características formais perceptíveis no universo de obras da própria Luzia. As obras musealizadas são menos ricas em detalhes, rígidas; ao passo que suas produções contemporâneas são consideradas mais aprimoradas e movimentadas. Segundo a artista, seu aprendizado se deu com o tempo e a principal inspiração para o aspecto barroco que sua obra foi ganhando foram os trabalhos de Aleijadinho: “– Eu admirava muito o trabalho dele, aquele movimento”. 104 105 Conferir tópico 1.3.1 do capítulo inicial da tese. * São Vicente, RN, 1935 † ? 155 De acordo com Luzia, ela fez as primeiras peças para brincar. Como sua família não tinha dinheiro para adquirir brinquedos, ela começou a esculpir bonecos e animais com imburana, madeira típica da região que era trazida até sua casa pelos irmãos, para ser usada como lenha. Depois começou a fazer ex-votos e as cenas da vida nordestina, já para comercializar. As encomendas aumentaram e sua irmã Ana, que trabalhava com costura, também começou a esculpir. Luzia é devota de Nossa Senhora do Carmo, mas a primeira imagem que fez foi Nossa Senhora de Fátima, a pedido de uma mulher que queria pagar promessa. Hoje, ela faz qualquer santo, mesmo que não conheça a iconografia. Nesse caso, pode se valer de uma foto, como já foi mencionado, ou até mesmo de outra estátua. A santeira me mostrou um São Lucas em gesso que lhe levaram para que ela fizesse um exemplar em madeira. A artista ainda faz ex-votos e as cenas da vida nordestina, mas em menor número, e sob encomenda. Ela disse que a demanda por santos aumentou e que há outros artistas que podem fazer ex-votos e as cenas por um preço mais baixo que o dela. Quando perguntei se o reconhecimento lhe rendera demandas diferentes das habituais, ela contou aos risos de um estadunidense que solicitou um Papai Noel e teve o pedido recusado. A artista e sua filha não me mostraram nenhuma cena ou tipo regional. No pequeno acervo doméstico que me foi apresentado, a única escultura de sua autoria que não é um santo é a de uma menina com um laçarote na cabeça, brincando com um gato, que imaginei ser uma indiazinha. Luzia explicou que a esculpiu inspirando-se em sua filha e que não vende “por dinheiro nenhum do mundo”, apesar de já ter recebido diversas ofertas. Para manter peças em casa, a artista precisa sempre esclarecer aos visitantes, muito bem-recebidos, que nem tudo está à venda. Nessa direção, Luzia e a filha me mostraram um conjunto de imagens cujos santos que o constituem só não foram vendidos porque qualquer interessado é logo informado que tais santos pertencem à “Coleção de Dalva”. Figura 41 – Imagens de autoria de Luzia Dantas, Coleção de Dalva Dantas Foto: Acervo da autora, fev. 2012 156 Dalva é quem acompanha Luzia em feiras e exposições que acontecem Brasil afora. Ela vive na cidade vizinha de Sta. Cruz, onde trabalha como fisioterapeuta, mas acompanha de perto o trabalho da mãe indo todo fim de semana para Currais Novos. A jovem lamentou que as pessoas não se importem se um trabalho é feito à mão ou não, pois estão apenas interessadas no preço. A essa altura, os santos feitos à máquina entraram em pauta. Comentei que havia conversado sobre o assunto com Antônio Marques e ela se mostrou preocupada: “– Mas ele lhe disse quem faz? Tome cuidado, porque isso pode dar até processo.” Novamente me vi diante do jogo de acusações em torno da mecanização da fabricação de santos106. Luzia disse que já lhe ofereceram que ela desse o acabamento em santos esboçados em máquinas e ela recusou terminantemente. Segundo a santeira, produzir com a ajuda das máquinas é muito mais fácil e rápido. “– Desse jeito eles vão acabar com a madeira. Eles dizem que em um dia fabricam 100 peças, eu passo a semana inteira para fazer uma... e olhe lá. É por isso que essa turma de Pernambuco vende praticamente de graça.” Não foi a primeira vez que escutei essa referência à “turma de Pernambuco”. É nesse estado que se localiza a cidade de Ibimirim, onde no início dos anos 2000 foi desenvolvido, no âmbito das ações do Comunidade Solidária, o Programa de Artesanato e Geração de Renda. A ação foi realizada “com o duplo objetivo de revitalizar “saberes” e “fazeres” ameaçados de se perderem no tempo ou na massificação dos padrões globalizantes e de encaminhar possibilidades de comércio para essa produção”, como explica Ruth Cardoso na apresentação do catálogo da exposição Santos e Santeiros de Ibimirim, realizada no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular entre 19 de dezembro de 2000 e 28 de janeiro de 2001. As imagens expostas eram representativas de duas vertentes da produção que os santeiros foram incentivados – por meio de cursos e encontros temáticos – a realizar. Uma tem inspiração na imaginária barroca e suas principais escolas brasileiras: Pernambuco, Bahia, Minas Gerais, Maranhão e Rio de Janeiro. Apesar da explícita inspiração nos santos antigos, a qualidade da escultura dos alunos santeiros foi considerada tamanha que se dispensou a pintura para mostrar “a umburana em sua cor e textura” (GONÇALVES, 2000, p. 31). Além dessa continuidade da escola barroca em sua matriz popular, outros artistas foram estimulados a “contextualizar o santo”, o que implicou principalmente na integração de animais da caatinga à produção: 106 Abordo a questão das chamadas “esboçadeiras” no contexto de minha primeira interação com Antônio, explorada no tópico 1.2 do 1º capítulo. 157 Afinal, por que o São Francisco – de longe, a imagem mais produzida e mais vendida -, sendo considerado por muitos o precursor da ecologia, não poderia ter junto a eles outros bichos além de pombos? Por que não incorporar outros elementos da fauna e da flora, a exemplo da mais genuína tradição do barroco tropical? Por que não fazer uso de elementos ecológicos de um ecossistema tão específico como o da caatinga? Por que não as cabras, os bodes, as onças, as raposas, os tatus e os frutos, representativos da aridez da caatinga? E a questão mais pertinente: por que e para que fazer uma intervenção dessas? As respostas vieram com os resultados das primeiras experimentações, ficando claro que estava abrindo um novo nicho de mercado, com um filão diferenciado de consumidor, integrado por colecionadores e amantes das artes populares, que não compram peças por devoção ou fé, mas por seu valor artístico. Acresça-se a isso a enorme satisfação gerada nos santeiros pela realização de peças autorais, em que suas identidades, habilidades e talentos apareceriam, fugindo ao simples anonimato das artesanias e manualidades, impregnando as peças de identidade cultural e de expressão ecológica. (GONÇALVES, 2000, p. 21) É interessante notar que a fabricação de um santo inspirado nas antigas escolas pernambucana ou baiana de imaginária católica não torna um santo “contextualizado” no cenário nordestino. Mais do que uma localização geográfica, o que está em questão, portanto, é a capacidade de uma imagem se tornar a alegoria de uma região árida e ainda ser impregnada de “expressão ecológica”. Se a preocupação com a escassez de matéria-prima era algo distante do universo dos santeiros à época da realização do projeto (GONÇALVES, 2000, p. 28), é curioso que mais de uma década depois, a intervenção em pauta seja considerada responsável por sorrateiramente incentivar o uso de maquinário em parte do processo produtivo das obras107 e, com isso, acelerar a destruição do meio ambiente. Pode-se dizer que a produção de Luzia integra a primeira vertente descrita acima, ou seja, a santeira inspira-se no barroco, mas não recobre a madeira e não inclui elementos que considera interferir na obra. Mesmo no tocante às cenas e aos tipos regionais a artista já havia declarado, ainda na década de 1970, no auge desse tipo de produção, como será visto adiante, repelir intrusões que tornassem suas peças menos realistas. As figuras de gente ou de bicho [de Luzia Dantas] são reproduções perfeitas, algumas dando ideia de movimento, como a vaquejada. Todas marcadas por uma fidelidade “fotográfica”, sem fantasias nem acréscimos. Foi assim que ela fez a Nossa Senhora dos Navegantes para a cidade de Touros, com 80 cm de altura – sua maior escultura. Peças desse porte, Luzia só faz para atender a encomendas especiais. Seu maior gosto é pelas vaquejadas, retirantes, casas de farinha, pelos tipos e costumes regionais, em geral – tudo em torno de 30 cm. (COIMBRA, [1980] 2009, p. 235-236) 107 No catálogo supracitado não há qualquer menção à utilização de equipamentos que não as ferramentas tradicionais. 158 Atualmente, a santeira gosta de ter algumas “peças grandes” prontas, pois a qualquer momento ela pode ser convidada para alguma feira. São Miguel e São Jorge são as obras mais requisitadas. A iconografia dos referidos santos guerreiros exige mais trabalho da artista e, por isso, ela cobra um valor maior por eles e um exemplar de cerca de 30 cm custa em torno de R$ 300,00. O esmero nas imagens, a recusa de mecanizar parte do processo de produção e a grande procura por obras faz com que raramente Luzia possua o pequeno estoque desejado para o caso de um convite de exposição – visando comercialização ou não – de última hora. Entretanto, quem visita sua casa é colocado em contato com diversas obras em processo. Desse modo, se pode entender o lar em questão como galeria, na qual Dalva atua de certa forma como mediadora da principal atração: o fazer artístico de Luzia. Na varanda, pedaços de madeira e ferramentas espalhados indicam que ali é o local de trabalho da santeira. Foi onde conversamos inicialmente, mas, com o cair da noite, fomos para a sala. Bem na entrada para esse cômodo há um móvel com mais algumas ferramentas e imagens em processo de finalização. Por trás desse móvel estava afixado na parede um grande pôster fotográfico e traz a imagem de algumas peças de Luzia, com a santeira em segundo plano, trabalhando em uma delas. Figura 42 – Luzia face ao pôster com sua foto. Alguns de seus instrumentos de trabalho, obras em processo e a escultura que fez inspirada em sua filha Dalva. Foto: Acervo da autora, fev. 2012 159 O pôster descrito foi exibido originalmente em uma importante feira de artesanato e mostra uma faceta constitutiva do valor das imagens: evidenciar o processo de transformação de matériaprima por meio do trabalho manual. Quando pedi para ver as ferramentas na varanda, Luzia começou a esculpir um pedaço de madeira para me mostrar como as utilizava, numa espécie de ritual com a qual parece estar acostumada. O resultado do registro de diversas ocasiões em que a santeira foi visitada por pesquisadores também foi exposto para me receber. Sobre uma mesa, Dalva dispôs livros (alguns autografados por seus autores, como Lélia Coelho Frota), catálogos, publicações e recortes de jornal em que a mãe é mencionada, bem como troféus, medalhas e placas de homenagens que ela recebeu por sua obra. Esse cuidado mostrou o quanto elas são acostumadas a receber jornalistas e outros interessados no trabalho da artista. Figura 43 – Matéria-prima (umburana) na garagem da casa de Luzia Figura 44 – Início do processo de escultura de uma imagem na varanda de Luzia Figura 45 – Luzia apresentando seu saber-fazer Figura 46 – Luzia apresentando seu saber-fazer e a variação das ferramentas utilizadas Figura 47 – Luzia apresentando uma obra em processo na sala de sua casa Figura 48 – Santa Luzia e livros que abordam o trabalho da santeira Fotos: Acervo da autora, fev. 2012 160 Antônio Marques possui a maioria dos livros que foram expostos para me receber na casa de Luzia. Desta feita, depois de cumprida a ‘lição de casa’ que consistia em visitá-la, eu deveria me dedicar a estudar o que já se produziu sobre aquela que me foi apresentada como “a maior santeira do estado”. Para entender tal destaque, eu deveria saber que o posto de maior nome da arte popular do RN já pertenceu a outro artista, qual foi o legado deste e o papel de intelectuais diversos em sua divulgação. Trata-se de Xico Santeiro, cuja importância no âmbito das práticas de colecionamento de meu interlocutor foi evidenciada na abordagem da exposição de presépios que abre o segundo capítulo desta tese. 4.3 SANTEIROS, IMAGINÁRIOS E ESCULTORES POPULARES: A INVENÇÃO DE UMA LINHAGEM Uma das publicações que eu deveria estudar é o catálogo referente à exposição 7 brasileiros e seu universo: artes, ofícios, origens, permanências, promovida em 1974 pelo Departamento de Ação Cultural do então Ministério da Educação e Cultura. O texto que abre a coletânea é Prelúdio do Artista Popular de autoria de Câmara Cascudo. Antes de dissertar sobre a figura que estava sendo celebrada na exposição, o “artista popular brasileiro”, o folclorista declara a necessidade de “ressuscitar” seu encontro com um santeiro, mas ainda não se trata de Xico Santeiro e sim Zé Leão, personagem de “Tempo-de-Sertão” do autor, pontuado de casas simples e de oratórios humildes: “inconcebível uma residência sem o pequenino armário, de forma ogival, escondendo e denunciando os protetores da família, os deuses larários do catolicismo brasileiro.” (CASCUDO, 1974, p. 13) Esses deuses eram produtos do trabalho zeloso dos “imaginários do sertão”: No meu Tempo-de-Sertão, oeste do Rio Grande do Norte, ribeiras do Rio do Peixe e Pianço na Paraíba, santeiro era o beato fervoroso, exagerado, numa afetação monopolizadora do zelo litúrgico. O nome de quem “fazia” santos era imaginário, o imagier, imagiste, imager, na França irradiante. Fora exigência vocabular portuguesa. Santeiro, sendo sinônimo e não ironia ao “rezador” (“Homem rezador não presta e não prestou!”), ouvia-se nas populações do litoral, perto da “pancada do mar” e das ondas infatigáveis. Tanto assim que o Dicionário de Morais, nas quatro primeiras edições, registra santeiro como beatão supersticioso. José Leão, do Assu, que visitei em maio de 1934, era imaginário. Joaquim Manuel de Oliveira, trabalhando à vista do Atlântico, em Natal, era Xico Santeiro. (CASCUDO, 1974, p. 13, grifo meu). O imaginário havia sido abordado pela primeira vez em “Temas Açuenses, José Leão, fazedor de santos”, uma das dezoito crônicas escritas por Cascudo como relato de uma viagem ao interior do Rio Grande do Norte, reunidas no volume Viajando o Sertão. 161 Atravesso os areais da cidade de Capunga onde, numa casa caindo de velha e negra de velhice, mora José Leão, sexagenário, fazedor de santos. […] É o tipo do Imaginário primitivo, sereno, resignado, incompreendido, passando fome, trabalhando sem esperança, sem ambiente, sem auxílio, sem estímulo, insensível e obstinado, artista legítimo, com uma intuição de escultura, um senso decorativo, um tino de moldar as fisionomias que lembra a rudeza elegante máscula de Memling. José Leão mostra-me dezenas de santos, crucifixos, anjos, ovelhas místicas. Não tem instrumentos. São pedaços de canivetes, troços de puas, restos de enxós, um formão quebrado, cacos de louça, pires bolorentos, quengas de coco seus ferros e godelets. Longe de ter a monomania da beleza dos Santos moldados em gesso e feitos à máquina, iguais e bonitinhos, José Leão grava na imburana plástica rostos humanos, possíveis e naturais. […] Eu tive nas mãos uma Nossa Senhora do Perpétuo Socorro verdadeiramente maravilhosa. Um S. José, um S. João Batista, que estão sem preço, pedem uma página de elogio pela firmeza incrível com que aquele velho gravou os traços morais na árvore que lhes deu nascimento e vestiu-os com uma precisão minuciosa e pictórica dum desenhista à Herouard. (CASCUDO, 1975 [1934] p. 17-18 e 1974, p. 15). Nessa descrição não é difícil enxergar a construção da biografia de um artista que tem uma forma de vida característica dos santos – eivada de resignação, pobreza e incompreensão – tampouco a identificação de particularidades autorais, ou seja, Xico pode ser visto como um Aleijadinho regional tanto por sua trajetória próxima daquelas contadas nas hagiografias, quanto por sua elevação à condição de excepcional levada a cabo por pessoas que registraram quais as formas específicas de suas imagens que dão a ver seu talento. Por isso, é mister verificar a descrição dos detalhes dos santos fabricados pelo imaginário primitivo com ferramentas improvisadas. Pode-se ainda perceber como outras imagens declaradamente constituem-se um ponto melancólico da incursão de Cascudo ao interior do estado. Vistos como representativos da memória ancestral cristã no tempo lento da vida sertaneja, os santos guardam certos segredos, antes intocados e que agora parecem ameaçados pela civilização moderna (NEVES, 2005). Desse modo, para além do encontro com Zé Leão, um sexagenário “escultor sem escola”, o autor lamenta a substituição dos Santos108 de madeira pelos exemplares de gesso. Os primeiros, “velhos santos primitivos, feios e leais” estavam sendo “apeados dos altares” ou deixados “destronados” em altares laterais, enquanto os segundos assumiam o posto de honra do altar-mor. Onde andam os Santos de madeira? Devem ser centenas. Não vi nenhum. Lá fora, na Europa, eles dia a dia, merecem maiores honras de colecionadores e agiólogos [sic]. Um trabalho de madeira é sempre um esforço pessoal, direto, próprio. Fique feio ou deslumbrante, o caso é que é um produto da inteligência humana, sem o auxílio da máquina polidora. Um trabalho de gesso, cartão ou massa, sempre bonito, é sempre o resultado frio da máquina, produto igual, monótono em sua beleza, sem o calor da mão humana, rude ou apta, mas sincera. (CASCUDO, 1975 [1934], p. 26, grifos meus). 108 Grafados ao longo de todo o ensaio de Cascudo com S maiúsculo, assim como o termo Sertão. 162 E sentencia: “Se os Santos de madeira são impróprios para o Culto ao menos conservemo-los como objetos de Arte, Arte primitiva, tosca, iniciante, mas Arte fiel a si mesma.” (CASCUDO, 1975 [1934], p. 26). A demanda de conservação de objetos sagrados como arte é um dos excertos do texto de Cascudo que permite começar a melhor elucidar sua atuação na condição que até então generalizei como de “folclorista”. De acordo com Luís Rodolfo Vilhena (1997), folclorista é aquele que no plano dos estereótipos se tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico ligado por uma relação romântica ao seu objeto, que estudaria a partir de um colecionismo descontrolado e de uma postura empiricista. Por isso mesmo, os chamados estudos folclóricos são vistos como uma fase superada, ao invés de serem convocados a um debate mais profícuo com as Ciências Sociais. Nessa direção, a proposta do autor é colocar em perspectiva as diferentes filiações teóricas e os méritos intelectuais variados desses intérpretes particulares da nacionalidade. Câmara Cascudo foi responsável pela mais extensa obra nesse campo. Trata-se d“o inventor do folclore entre nós”, como diz Albuquerque Jr. (2013) em A feira dos mitos, obra na qual discorre sobre a contribuição dos folcloristas na corroboração de ideias de Nordeste que se impuseram. Sua contribuição, portanto, é fundamental para compreender o lugar do Nordeste na “paisagem imaginária” do Brasil, palco por excelência de um conjunto de manifestações culturais que foram objeto de apropriação e nomeação por parte de um importante grupo de intelectuais que atuaram nesta área do país entre o final do século XIX e meados do século XX. Segundo Albuquerque Jr. (2013), não é mera coincidência que a região tenha concentrado grande parte dos estudos de folclore e que nela tenham nascido e vivido aqueles que são ainda considerados os maiores estudiosos desta matéria. Se o Nordeste freyreano, pensado a partir do engenho da Zona da Mata, é o caminho para chegar às raízes brasileiras, com Cascudo o âmago da nacionalidade vai ser encontrado no sertão, onde, em vez da Casa Grande e do quarto dos santos da civilização material de Freyre, temos casas simples e oratórios humildes habitados pelas criações dos imaginários. O intelectual potiguar olha para tudo isso como etnógrafo, pois são esses “outros” do interior que preservam valores não mais presentes no mundo da cidade e das letras. Adiante será visto como esse distanciamento cultural subjetivo pode variar em se tratando da abordagem das imagens na obra cascudiana. 163 A transformação em arte dos santos que estavam desaparecendo dos altares – prefigurada no texto de 1934 – é indubitável no contexto de publicação do Prelúdio, quatro décadas mais tarde, em um catálogo de exposição. A despeito disso, o autor insiste nas imagens enquanto produtos instauradores de dimensões canônicas atemporais e universais no universo mítico e particular do Sertão: Imaginário e Santeiro iniciaram a escultura recriadora da cultura coletiva. Fazendo santos, não se afastavam dos cânones senão em mínima percentagem; santas de orelhas triangulares, malares salientes, faces mulatas pintadas de róseo, cabeças chatas, mas sisudas, e dignas na severidade da missão imóvel e generosa. Foram a velocidade inicial, abrindo a picada no matagal cerrado do Estado no Brasil. […] O imaginário, desde o século XVII, naturalmente depois que o holandês deixou Pernambuco, esvaziando temor, da Bahia ao Maranhão, trabalhou, vulgarizando os santos vindos de Portugal. Com outras dimensões, reproduzia-os, quase sem deformação, que o ambiente faria inevitável: colorido das faces, fisionomia, o nariz étnico, o desvio proporcional dos membros superiores, o traje, simplificado na essência e enfeitado de ramagens ouro-banana. Ouro e rubro, de Espanha. Azul e branco, de Portugal. Os verdes e roxos, italianos. Muito santo cavaleiro em Portugal ganhou sandálias no outro lado do oceano. O Menino-Deus só podia ser gordinho, bochechudo, porque gordura e beleza eram equivalências estéticas sertanejas. Santos sérios e santas tristes. Júbilo, só no Paraíso, sem verificação perscrutadora. São José viajando para o Egito, São José Caminheiro, São José do Egito, calça longas botas, embora haja peregrinado a pé. Tirando o rosto, só se descobre pele no joelho. […] Permito-me insistir na importância do santeiro como exemplo primeiro e divulgador para o artista popular contemporâneo. [...] Mantinha a fidelidade criadora, a obstinação mental, a doce e fecunda autovalorização realizadora. (CASCUDO, 1974, p. 13-14, grifo no original). A visão de Cascudo do nascimento do “artista popular contemporâneo” devota honrarias aos imaginários, modelos incomparáveis de “fidelidade criadora”. Dessa forma, o despontar de novos sujeitos no cenário artístico fica em segundo plano em nome da homenagem aos finados servos materializadores da fé. Em seu texto em tom de necrológio, além de celebrar Zé Leão 109, o autor rememora Xico Santeiro 110, com quem se encontrou na capital do estado. Xico, contudo, também nasceu no interior, com o nome Joaquim Manuel de Oliveira. O movimento do sertão ao litoral é que transforma o imaginário em artesão ilegítimo, como evidenciam as denúncias das encomendas que desvirtuaram sua Santa produção, levando-o a fabricar “calungas e bichos de vadiação”: 109 * 1868 † 1940. 110 * Santo Antônio do Salto da Onça, RN, 1898 † Natal, RN, 1966. 164 Xico Santeiro, filho, sobrinho, pai de imaginários, preferia os santos a outra qualquer ocupação. As “encomendas” é que o desviaram para os tipos populares e a ergolofia da vivência econômica hereditária e regional, carro de bois, casa de farinha, bolandeira de algodão, jangadas e as figurinhas habituais do tráfego, embora sem a imaginação ágil de Vitalino de Caruaru. E sobre ele neblinavam as sugestões para venda fácil, Antônio Conselheiro, Padre Cícero, Padre João Maria, o santo dos natalenses, Getúlio Vargas, até Bethoven, copiando mesmo modelos africanos ou sedução de revista ilustrada. Com a precariedade instrumental, a cegueira invasora no opacamento das cataratas, fazia a ponta de canivete, alisando com lâmina gilete um Santo Antônio, de polegada de tamanho, com as cores rituais, surpresa de precisão e realismo. Um Santo Antônio de polegada, com hábito e cordão, livro, o Menino-Deus e um ramo de lírios na mão visível. Espalhou centenas e centenas dessa miniaturas, incríveis para os seus olhos bruxeleantes. O Presidente Getúlio Vargas possuiu um exemplar no bolsinho da carteira. Santinho feitos unidade por unidade, impregnados da devotada paciência laboriosa. As séries mecânicas conseguiram essa simples magia catalítica? (CASCUDO, 1974, p. 17, grifo no original). As cenas e figuras regionais produzidas por Xico são mencionadas como sugestões de venda fácil, frutos de encomendas e, portanto, entendidas como criações artificiais. Tais obras passaram a ser produzidas por santeiros quando intelectuais lhes atribuíram o status de artistas, na esteira de movimentos que buscavam a valorização do autenticamente nacional. Como afirma Silvia Coimbra (2009), A presença da escultura popular no circuito oficial de arte é consequência do crescente interesse de intelectuais e artistas por esses produtos da imaginação e do trabalho do povo, vistos como manifestação cultural significativa, de caráter estético. Tem suas raízes no Movimento Modernista de 1922 e no Movimento Regionalista do Recife, iniciado em 1923, tendo sido consolidada com a primeira Exposição de Cerâmica Popular Pernambucana, organizada por Augusto Rodrigues e apresentada por Joaquim Cardoso em 1947. (COIMBRA, 2009, p. 17). É pertinente notar que a consolidação da presença da escultura popular no circuito oficial de arte é relacionada a uma iniciativa de exposição da criação popular (no caso, cerâmica) ‘assinada’ por seus organizadores. Seus nomes, nessa direção, acoplam-se ao do pernambucano Vitalino Pereira dos Santos111, personagem-chave dos “encontros ou descobertas” (FROTA, 2005, p. 28-29) promovidos por intelectuais com homens do povo. O ceramista foi “localizado” (FROTA, 1974) pelo pintor Augusto Rodrigues em 1947 e consagrado no mesmo ano em exposição coletiva em que suas obras foram destaque no Rio de Janeiro. A menção incontornável a Vitalino, cuja “imaginação ágil” é aludida por Cascudo, é importante para perceber que nem sempre o artista popular tinha histórico de atuação como imaginário ou santeiro, ao contrário do que o Prelúdio do autor tenta estabelecer. 111 * Ribeira dos Santos, PE, 1909 † Caruaru, PE, 1963. 165 As primeiras esculturas de Vitalino, posteriormente transformadas em cenas regionais, foram feitas para serem utilizadas como brinquedos. O pernambucano produzia bonequinhos de argila – “loiça de brincadeira” – com as sobras do barro usado por sua mãe na produção de utensílios domésticos, para serem vendidos na Feira de Caruaru. Após ser “descoberto” como ceramista tornou-se nacionalmente conhecido por suas cenas de bandas de pífano (Vitalino era tocador desse instrumento), de rituais (casamentos, velórios etc.), de animais do sertão e de outras situações da vida do nordestino. Com o sucesso, Vitalino se muda para o Alto do Moura, em Caruaru, e no seu entorno surge uma “verdadeira escola de ceramistas”. O Alto, hoje, é considerado pela UNESCO o maior centro de arte figurativa das Américas, onde muitas famílias vivem da profissão de ceramista. O artista não viveu para ver a sua obra tornar-se o emblema da famosa Feira de Caruaru, quiçá da arte popular brasileira. “Vitalino morreu por haver contraído varíola, pobre e famoso, aos 54 anos de idade.” (FROTA, 2005, p. 410-414). O impacto da obra de Vitalino aventa um movimento mais amplo no qual parte de um Brasil predominantemente rural passou a ser mostrada aos centros urbanos pelas obras de pessoas que viviam (n)os contextos que lhes inspiravam. A descoberta e a exposição dos trabalhos dessas pessoas – mobilizada pelo interesse de setores intelectuais e artísticos pela temática do sertão – fixou cenas corriqueiras da realidade do sertanejo no “campo da criação plástica popular” (MASCELANI, 2002, p. 13-17). No catálogo da exposição 7 brasileiros..., ou seja, na mesma publicação em que Cascudo institui os imaginários como ancestrais inatingíveis dos artistas populares, Veríssimo de Melo, outro atuante folclorista do RN que conheceremos melhor adiante, aborda Xico Santeiro como figura central do surgimento do culto à escultura em madeira autoral no contexto potiguar: Não há notícia de outro artista popular que se destacou em Natal, anteriormente a Xico Santeiro, interessando tanta gente na valorização da arte popular. Com ele, inicia-se na cidade verdadeiro culto à escultura em madeira, tanto de imagens de santos quanto de figuras e tipos nordestinos. O que era antes atividade inusitada de raros intelectuais passou a ser mania de muita gente. Colecionadores surgiram, de uma hora para outra, em toda parte. Pequenos museus de instituições particulares e públicas passaram a exibir peças de Xico ao lado de objetos de vária procedência. Nesse sentido, Xico é um pioneiro entre nós. O que não quer dizer que antes dele não existiram outros artistas. Escultores anônimos sempre houve no Nordeste, o que se comprova pela riqueza de imagens nos oratórios sertanejos de mistura com peças de origem portuguesa. Xico, porém, foi o primeiro desses humildes artistas a ser conhecido e divulgado pela imprensa, apontado na rua, procurado dia e noite em sua casa, fotografado, entrevistado, televisionado. 166 […] Talvez se possa explicar, simploriamente, tudo isso, menos pelo despertar de uma consciência artística, na província, do que por motivos de ordem política e social. Ele atingiu a sua maior notoriedade numa época de exaltação e supervalorização de tudo que levava o selo da “popularidade”. […] Também não se deve subestimar o trabalho de divulgação da obra de Xico Santeiro feito por gente ilustre da cidade, professores, administradores, políticos, jornalistas, todos externando sua admiração à obra rústica do nosso maior “imaginário”. Vários fatores se congregam para projetar a produção do escultor popular. Mas a contribuição do próprio artista foi significativa pelo seu valor intrínseco. Xico foi o primeiro a produzir, em massa, no Rio Grande do Norte, essa humanidade de figuras nordestinas e santos de madeira. (MELO, 1974, 20-21, grifos meus). Os próprios Câmara Cascudo e Veríssimo de Melo participaram ativamente da divulgação do trabalho de Xico, ambos lhe apresentavam “gente importante”, que, assim como eles, compravam suas obras e lhes encomendavam outras. Foram as “encomendas” que motivaram o santeiro a esculpir outras figuras que não os santos. A primeira escultura profana que Xico fez em Natal foi a pedido de Protásio de Melo. “O retrato do nego véio Fabião das Queimadas”, como ele nos dizia. Protásio fazia sempre encomendas de santos a Xico. Um dia mostrou-lhe um desenho de Fabião, o cantador, de autoria do Prof. Hostílio Dantas. Indagou de Xico se ele seria capaz de talhar uma figura daquelas. Xico prometeu que faria e fez. Daí em diante, começou a fazer outras peças que lhe foram pedindo. Durante trinta anos, fez milhares de peças, que vendeu a colecionadores da cidade, de outros Estados e até do estrangeiro. Falava com orgulho do Cristo que enviou ao Papa Pio XII112, por intermédio do Dr. Paulo Pinheiro de Viveiros, recebendo bênção especial. Muita gente importante adquiriu peças de Xico, […] (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 23, grifo meu). Xico disse a Veríssimo que Cascudo “gostava muito das imagens em miniatura de Santo Antônio, para dar de presente às moças.” (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 22), o famoso folclorista, por sua vez, declarou ignorar “qualquer representação plástica anterior ao século XIX” (CASCUDO, 1974, p. 13), salvo aquelas produzidas por imaginários e santeiros, na sua visão, fiéis às mesmas preocupações dos escultores medievais. Por isso mesmo, Cascudo se posicionou abertamente contra as encomendas que eram feitas a Xico, que, além dos santos, esculpiu tipos de rua, pescadores, mendigos, cangaceiros, rendeiras e outras figuras que quebravam a linha de continuidade traçada pelo intelectual entre o “artista do Povo” e “um escultor do tempo das catedrais góticas”: Muita gente de gosto possui trabalhos de Joaquim Manuel de Oliveira [nome de batismo de Xico Santeiro]. Muitos admiram sua habilidade, intuição e acabamento. Outros, mais imaginativos que artistas, deformam o sentido originário do Santeiro, de técnica secular, fazendo-o executar cousas estranhas à sua inteligência, fazendo-o concorrer com os escultores de madeira, os homens da Arte clássica ou moderna. Joaquim Manoel vive em nossos dias a tradição dos Santeiros portugueses de Évora e de Braga. Conserva a 112 Cascudo (1974, p. 17) também menciona um Cristo enviado ao “Presidente Kennedy”. 167 fidelidade ao azul, ao ouro, ao vermelho, típicos das velhas imagens. Dá-lhes um ar inocente e reservado, um tanto carrancudo e severo mas doce e natural, que encontramos nos santos de outrora, os Santos feios […]. Devíamos pedir a este artesão legítimo apenas, e muito humanamente, as obras de sua Arte instintiva e secular. Nada que o obrigasse a transformar sua perícia em adaptações e adivinhações. Perderia o setor popular e jamais alcançaria o plano artístico. (CASCUDO, 1974, p. 16, grifos meus). Albuquerque Jr. (2013) argumenta que a insistência na construção do Nordeste como o “reino encantado do sertão”, tão presente na obra do escritor Ariano Suassuna, torna notório o combate à inventividade perpetrado pelos folcloristas. O Nordeste diretamente ligado ao passado medieval da Península Ibérica é uma região feudal, espaço ainda sagrado e místico e logo, barroco, antirenascentista, anti-industrial. Tais elementos são patentes nos textos de Cascudo. Embora concordando com o historiador que a fabricação da cultura popular não pode ser entendida sem o recurso ao folclore, considero pertinente não se ater apenas ao lamento antimoderno desse campo discursivo. Se na visão de Albuquerque Jr., o folclore, por essência, tenta evitar que os homens se apropriem de sua história, o que se vê com Cascudo é a impotência do intelectual diante do progresso. Nessa direção, mais do que a construção de uma “maneira de ver [o Nordeste] que se impõe”, tem-se a tentativa de organização do presente que claramente lhe escapa, evocando uma consciência de tempo perdido. Em resumo, e indo ao encontro dos objetos que mobilizam essa tese, as “peças profanas” são condenadas pelo folclorista, mas não ficam de fora do texto, pelo contrário, se multiplicam nele. Assim, se Cascudo inventa a figura do fazedor de santos que se esvai – seu Prelúdio, nesse sentido, é quase um réquiem – e se seu santeiro só pode ser imaginário, é potente também enquanto imaginado. O interessante é que ao fabulá-lo, o intelectual nos coloca na presença de santos peculiares, suas cores e filiações a panoramas artísticos mais amplos. E também nos põe diante de duas personalidades artísticas. No Prelúdio e outros ensaios acionados a partir dele, a perspectiva de Cascudo está longe de se restringir à oralidade ou a produções anônimas. Por mais que a criação individual seja submetida ao coletivo, não deixa de impactar o intelectual com certos traços autorais. Dissolver a “maquinaria imagética Nordeste” (ALBUQUERQUE JR., 2013; 2001) não exigiria desinventar alguns dos estereótipos sobre o “inventor do folclore” entre nós? Nos textos de Cascudo utilizados, o autor não toma os objetos como desprovidos de autoria individual ou como meros documentos etnográficos. Pelo contrário, ao falar de santos impregnados de labor devoto e revestidos de cores rituais, o folclorista encontra a beleza das imagens trilhando um caminho muito semelhante àquele que deságua no estético, tal qual definido por Marcel Mauss em seu Manual de Etnografia: 168 Où trouver de l’esthétique? D’abord dans l’ensemble des techniques et tout particulièrement dans les techniques supérieures : le vêtement est un ornement plus encore qu’une protection, la maison est une création esthétique, le bateau est souvent très décoré. Dans toutes les populations qui nous intéressent, la décoration fait partie de la technique, à laquelle s’ajoutent en outre des éléments religieux, représentations et équilibres religieux... L’esthétique contribue à l’efficacité, aussi bien que les rites (le nombre des objets purement laïques serait assez restreint). Inversement, il y a toujours un élément d’art et un élément technique dans tout objet du culte. (MAUSS, 1926, p. 66). 4.4 OS LIMITES DA ENCOMENDA No tópico acima, a partir do texto de abertura do catálogo 7 brasileiros... a mim indicado porque ajudaria a entender a importância dos principais santeiros do RN, foi visto como Cascudo tenta estabelecer uma linhagem para o artista popular. A publicação na qual essa argumentação se insere é bastante polifônica. Antes da apresentação de ilustrações das obras e breve apresentação dos artistas, temos 96 páginas de textos, antecedidos por uma pequena nota que explicita a proposta de conjugar reflexões de folcloristas e de críticos de arte. Focar-se-á nas considerações dos autores do catálogo que abordaram a produção de imagens de santos enquanto arte popular, mas é válido salientar que esta última noção é colocada em suspenso na “crítica antropológica” de Luiz Felipe Baêta Neves. Lélia Coelho Frota também ensaia algumas reflexões à luz da antropologia, convocando Lévi-Strauss e seus desenvolvimentos acerca do “pensamento selvagem” para o debate. Essa diversidade de perspectivas atenta para a temporalidade específica da publicação. O texto que abre a coletânea é um exemplo de estudo produzido por integrantes oriundos de institutos históricos e academias de letras, que podem ser vistos mais como instâncias de consagração do que de promoção à pesquisa e criação. Com a marginalização acadêmica desse tipo de produção (VILHENA, 1997), que de forma recorrente se valeu do apoio do Estado para ser realizada e das gráficas oficiais113 para ser publicada (ALBUQUERQUE JR., 2013, p. 55), as produções do povo ganham guarida nos museus – que muitas vezes são órgãos de “extensão” de universidades – e suas iniciativas que contribuem para a fabricação da noção de cultura popular. 113 O Prelúdio foi escrito a partir das crônicas que originaram o livro Viajando o Sertão. A incursão que deu origem ao livro tem caráter oficial. O autor foi convidado para viajar acompanhando o interventor federal, Mário Câmara, e outras autoridades locais na condição de especialista nas coisas regionais. As crônicas foram publicadas individualmente no jornal natalense “A República”, que foi por muitos anos o principal órgão da imprensa potiguar, acumulando a função de Diário Oficial do Estado com a de periódico informativo e literário. A primeira edição de Viajando o Sertão coube à Imprensa Oficial do Rio Grande do Norte. A segunda e a terceira ficaram a cargo da gráfica Manimbu, pertencente à Fundação José Augusto, órgão estadual de cultura. Para compor a parte do Prelúdio na qual aborda Xico, Cascudo se vale de textos que tinha publicado anteriormente em um jornal local apresentando o santeiro à população de Natal (RAMOS, 2015). 169 Assim, o Prelúdio de Cascudo continua a alimentar a cadeia de textos que institui o imaginário como predecessor do santeiro e este, por sua vez, do escultor popular114. É significativo que este texto abra a publicação que também contém as considerações acerca de Xico Santeiro e Luzia Dantas feitas por Veríssimo de Melo, que foi aluno e é considerado um pupilo de Cascudo115. Além dos santeiros potiguares abordados pelos autores do RN, o catálogo também compreende um texto sobre arte popular em Minas Gerais, de autoria de Márcio Sampaio. Nele, os escultores de santos em madeira e pedra-sabão não são chamados de imaginários ou santeiros. Ao escrever sobre sua busca de artistas pelo interior de Minas Gerais, Sampaio narra seu o encontro com o “profeta” Bené da Flauta em Ouro Preto. O artista conversa com o autor enquanto dá o polimento na cara de um Santo Onofre em pedra-sabão. No final do relato, a interação do artista com as imagens que esculpe é descrita como um verdadeiro baile entre o céu e a terra: Por fim, põe-se a dançar, enquanto arruma umas esculturas sobre uma tábua, no chão, para mostrar como são, bonitas no conjunto: Santo Onofre reúne a Santa Terezinha, num colóquio amigo. Certamente, comentam as coisas do céu. Adiante, a cabeça de uma mulher, de um homem barbado, de umas figurinhas de anjo trazem o mesmo sorriso, como se conhecessem, na terra, a felicidade, que não é privilégio só dos santos do céu. É o mesmo sorriso que está sempre na boca de Bené, atrás da barba esbranquiçada de pó de pedra-sabão, o mesmo ar de felicidade do homem que parece um mendigo nas suas roupas sujas e rasgadas, mas que traz consigo uma secreta alegria que imprime em tudo que diz e faz. (SAMPAIO, 1974, p. 32). Em seu percurso, Márcio Sampaio ainda encontra artistas que, trabalhando o “lenho sagrado” refazem imagens barrocas, como uma “réplica da Santana Mestra de Aleijadinho”. No fim do caminho, o autor encontra Geraldo Teles de Oliveira, “a voz do céu”. G.T.O., como ficou conhecido, é descrito como um artista delirante e que “ainda vive a infância”, misturando “toda sorte de personagens que lhe contavam a avó índia, o negro que o embalou no berço, e o avô que lhe deu o livro dicionário e o levava às festas do povo” (SAMPAIO, 1974, p. 33) e o impulso criador de G.T.O foi um sonho obsessivo, no qual viu o que deveria criar. 114 Encontrei o texto em questão integralmente republicado no catálogo da mostra “Santeiros Imaginários”, realizada no Paço das Artes em São Paulo, em 1977 e ainda na compilação de registros de catálogos “Artes Plásticas do Rio Grande do Norte”, realizada pelo artista plástico Dorian Gray Caldas (1989). O prelúdio é referência recorrente em catálogos de exposições que abordam o trabalho dos santeiros, como pode ser visto nos textos de Mascelani (2002, p. 108) e Lima (2010). 115 Veríssimo faz parte da geração de intelectuais – ligados tanto à política local, quanto à universidade – que busca precisar e incorporar o folclore do estado natal no interior do então já estabelecido folclore nordestino e brasileiro (ALBUQUERQUE JR., 2013). É nesse quadro que se pode compreender seu esforço em documentar a trajetória de Xico Santeiro. 170 O relato do crítico de arte lembra que dentre os sujeitos populares que estavam sendo alçados à condição de artistas, alguns eram tidos como produtores de “arte bruta”. Essa denominação foi criada na década de 1940, pelo artista francês Jean Dubuffet, para designar criações que, em tese, emanam diretamente do inconsciente sem serem lapidadas por padrões culturais e artísticos. Tal tipo de arte foi localizado, sobretudo, mas não só, entre pacientes portadores de transtornos mentais que viviam em instituições psiquiátricas e, atualmente, também é chamada de outsider art. Na parte do catálogo dedicada aos dados biográficos de G.T.O., Márcio Sampaio reitera a tormenta dos sonhos e visões que transformou um vigia de hospital em escultor popular de sucesso depois de sua “descoberta” (SAMPAIO, 1974, p. 100) pelo arquiteto Aristides Salgado. Nas fotografias que antecedem as imagens das obras do artista em fundo neutro, ele aparece sorridente, tocando viola em seu quintal, povoado tanto por suas obras quanto por galinhas. Abordando o relato de um crítico de arte e curador que não reivindica o lugar de estudioso do folclore, mas entendendo sua ênfase na dança e na musicalidade, quando, na verdade, a produção levada a público no texto tratava-se de esculturas, como reflexo do enorme relevo conferido pelos folcloristas à literatura oral, à música e aos folguedos como vias de acesso privilegiadas ao popular (VILHENA, 1997). O tom literário da apresentação dos artistas é um exemplo de uma das acepções do verbo folclorizar, de que fala Vilhena (1997), que em vez de remeter a um objeto de estudo termina por associar esse campo ao anedótico. Em todas as ocasiões, durante o trabalho de campo, em que fui a casa ou outro local de trabalho de artistas populares, tanto naquelas em que fui sozinha quanto nas que acompanhei Antônio e/ou Nildo, tive a sensação de que os artistas seguiam uma espécie de roteiro: sempre me mostravam as ferramentas e ressaltavam quais eles mesmos tinham confeccionado e, mais do que isso, colocavam-se em ação para demonstrar a utilização delas. Nem sempre os encontrávamos em plena atividade, porque muitas vezes chegávamos até eles à noite, mas os artistas não hesitavam em parar o que estavam fazendo116, retornavam ao ambiente de trabalho – às vezes, uma parte integrante da casa, como a varanda e a sala de Luzia Dantas (como narrei no tópico 4.2 desse capítulo), outras vezes um ateliê ou oficina à parte – e faziam o que parece ser uma parte constitutiva dele: mostrar para pesquisadores como, com o quê e com quais gestos dão forma às suas obras117. 116 Não encontrei nenhum deles tocando viola, ou dançando, na maioria dos casos, em que chegávamos na parte da noite, os artistas viam televisão em família. 117 Edmundo Pereira (2016) discute os “protocolos” envolvidos nas situações de registros fonográficos, que também tendem a ser eventos de interação bastante padronizados. Agradeço ao autor por, na condição de co-orientador, ter me alertado sobre a rentabilidade da problematização da casa e/ou ateliê dos artistas como uma galeria. 171 Depois de ler tantas apresentações de artistas populares em catálogos e em outras formas de apresentação de exposições, tenho a impressão que Cascudo estabeleceu não só um imaginário sobre os fazedores de santos, prescrevendo que os autênticos sempre terão instrumentos improvisados, como também uma mise-en-scène na qual os artistas se engajam porque sabem da expectativa de seus visitantes. A autenticidade, nessas situações, é um valor compartilhado na performance que dá origem às obras. Os visitantes em questão são “intelectuais” que, na maioria dos casos, quando não são clientes, são potenciais divulgadores das obras dos artistas anfitriões. Assim, quando fui até Currais Novos para conhecer Luzia Dantas, ela e sua filha não só me mostraram matériaprima, ferramentas e santos, como também diversas publicações em que a artista é mencionada, medalhas, fotos que retratavam sua participação ou de suas obras em feiras de arte e, não menos importante, gratidão a Antônio Marques pelo apoio na venda e na divulgação das obras. Por ora, volto a tratar dos encontros de outros sujeitos com os santeiros. Veríssimo de Melo (1974) não deixa dúvida que as “cenas da vida do povo” – compostas por arranjos diversos de situações e de figuras dos “tipos nordestinos” – seriam obras cuja autoria deriva diretamente da relação de escultores com pessoas interessadas em suas criações. Para tanto, o autor não traça uma linha rígida entre o Xico escultor de tipos solicitados por colecionadores e o Xico imaginário. Esta abordagem é preciosa, sobretudo, porque não há hesitação em falar das diferentes obras do artista como mercadorias, ao passo que o dinheiro é um elemento evitado nas observações de Cascudo sobre a circulação das imagens. Esculpir os vultos de santos, trocados (desrespeito falar em compra), constituía dignidade oficiosa, um que fazer respeitoso pelo contato temático. Trocar por vender, vulgarizadíssimo, fora costume na Índia do século XVI, sendo a barganha o único processo aquisitivo: “Não tém peso, dinheyro, ou medida, mas só comprão e vendem, trocando as cousas humas por outras” (Frei Gaspar de S. Bernardino, Itinerário da Índia. Lisboa, 1611). No Auto da Feira (1527), diz o Tempo: “Venha trocar, qu’eu não hei de vender/Todas as virtudes qu’ouverem mister”. Gil Vicente entendia que as virtudes não podiam ser vendidas. Imaginem os santos, delegados do poder de Deus... (CASCUDO, 1974, p.14, grifos do autor) José Leão, como todos os santeiros antigos, residia nas vilas ou arruados com capela, consertando os vultos velhos e atendendo a encomendas de novos para as fazendas nas cercanias. Às vezes, pela “festa”, numa excursão, levava as obras, expondo-as na casa onde se hospedava, nunca oferecendo de porta em porta porque seria desrespeito aos santos, equiparados a farinha e feijão. Compostura de mestre, com o segredo das formas. (CASCUDO, 1974, p. 15, grifo do autor). 172 Etnografias recentes realizadas em contextos devocionais de comércio de objetos religiosos (GOMES, 2011; LIMA, 2014) mostram que a interdição de tratar a oferta e a aquisição de mercadorias em termos de compra e venda não significa necessariamente que as transações não envolvam dinheiro, mas sim que a alusão ao elemento pecuniário deve ser preterida por meio de jogos de linguagem. Nessa direção, se pode entender que quando Cascudo fala que os santos eram necessariamente trocados, o folclorista arroga-se do lugar do devoto, uma operação frequente em seus escritos, como observa José Reginaldo Gonçalves (2004) sobre o intelectual caracterizado como “etnógrafo-nativo”: “Ele assume explicitamente, como autor, um ponto de vista sob o qual escreve não "sobre a", mas "a partir da" própria cultura popular. Assume, deste modo, as categorias dessa cultura, particularmente da cultura popular do Nordeste.” (GONÇALVES, 2004, p. 41). Feita essa importante ressalva, é válido retomar os trechos acima nos quais mesmo o santeiro que não recebe dinheiro – já que os santos não podem ser vendidos tais quais víveres de mercado – não aparece apenas como fazedor de imagens, mas também como restaurador de trabalhos mais antigos. Veríssimo narra ainda os reparos que levavam o pai de Xico a circular. Menino em João Pessoa, Xico talhava imagens miúdas de Santo Onofre e Santo Antônio, vendendo-as na rua a dez tostões a peça. Entre 1910 e 1919, o pai de Xico morou, com a família, em várias cidades da Paraíba. Xico o ajudava na arte. Quando o velho cegou, em 1919, Xico passou a tomar conta da família. No lugar Lagoa Seca, em Pernambuco, o Padre José Carlos Marim muito o estimulou. Endireitava aí os santos da igreja e atendia a encomendas da redondeza. (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 22, grifos meus). Nessa versão sobre a socialização de Xico, desde menino o santeiro já vende o fruto de seu trabalho e se torna arrimo de família consertando santos e atendendo encomendas, ou seja, a produção de imagens era um meio de sobrevivência, complementada pela manutenção dos já existentes nas igrejas. Vê-se, assim, que as obras do artista em seu tempo de imaginário não necessariamente eram produzidas em um mundo à parte dos escultores eruditos. E, como se pode notar, já diziam respeito a pedidos de terceiros. O progressivo sucesso como escultor de tipos populares, entretanto, é que vai torná-las especialmente valiosas: A princípio, [Xico] vendia peças a vinte, vinte e cinco mil réis. Nos últimos tempos, cobrava três, cinco, dez cruzeiros por uma peça, sem falar nas maiores, especiais, como o Cristo que fez para o Presidente Kennedy (foi entregue ao irmão, Robert Kennedy, em Natal), o que esculpiu para a nossa Escola de Música. (VERISSIMO DE MELO, 1974, p. 23, grifos meus). 173 Entre 1961 e 1964, a Prefeitura de Natal ficou a cargo de Djalma Maranhão, grande admirador de Xico Santeiro. Nesse período, uma casa é doada ao artista e uma grande coleção foi formada pelo Prefeito, que se tornaria seu “maior mecenas”. De acordo com Everardo Ramos (2015), o político comprava a primeira peça de cada novo tema tratado pelo escultor. Com o golpe militar, o Prefeito precisou se exilar e suas iniciativas consideradas subversivas – tais como campanhas de alfabetização, mostras de obras de arte popular em barracas de feira e em galerias montadas em praças públicas – foram desmanteladas e interrompidas. Algumas peças desse período hoje integram o acervo do Museu de Cultura Popular Djalma Maranhão, mas não se sabe o paradeiro da maioria delas (RAMOS, 2015). Já se aventou sobre a dificuldade de associação entre gramáticas do comércio, da devoção e da criação popular, que remete a transações sustentadas por uma “economia moral” no âmbito da qual certas coisas são resguardadas da comoditização (KOPYTOFF, 1986). Nessa perspectiva, o dinheiro é potencialmente poluidor e contaminador das relações sociais, no sentido de Mary Douglas (1976), ou seja, ameaça certa ordem desejada. Durante a realização do trabalho de campo no cenário em que os santos são alvo de desejo de colecionadores, contudo, percebi que o envolvimento do dinheiro nas transações não é o principal tabu. As interdições pairam mais precisamente sobre a ideia de “encomenda”, ou melhor, o problema não está em oferecer valores pelas peças, mas sim em requisitar obras estranhas ao universo de produção dos artistas. Por ter acompanhado essa dinâmica, inicialmente me surpreendi com o fato de Veríssimo de Melo (1974) mencionar o próprio irmão Protásio como o cliente frequente de Xico Santeiro que leva o escultor a criar sua primeira “peça profana”, um “Fabião das Queimadas”118. Trata-se de um cantador e tocador de rabeca, ou seja, a figura que deveria ser transposta de um retrato para madeira era um tipo regional e, portanto, correspondia a um dos modelos iconográficos consagrados pela “invenção do sertão” de que fala Albuquerque Jr. (2001). Como já explorado nesta “maquinaria imagética-discursiva”, a paisagem nordestina é sempre seca e povoada por figuras particulares, associadas ao rural e ao artesanal. Tais figuras estavam sendo materializadas e multiplicadas por Vitalino, Mestre Noza e outros artistas nordestinos quando Xico Santeiro recebe a encomenda de Protásio. 118 * Santa Cruz, RN, 1848 † 1928. 174 O tipo físico de Fabião foi descrito por Câmara Cascudo em seu livro Vaqueiros e Cantadores (1984, p. 320), e, apesar de seu nome ter se popularizado no aumentativo, o poeta seria “um negro baixo, entroncado, robusto, de larga cara apratada e risonha, nariz de congolês e uns olhos tristes de escravo. Conservava a dentadura intacta e um bom humor perene”, mas a aparência do cantor fixada por Xico estaria contida em uma fotografia que lhe foi entregue quando o artista solicitou um modelo para executar a encomenda. Em seu mais recente estudo sobre a obra de Xico Santeiro, Everardo Ramos (2015) coteja “a única fotografia que se conhece de Fabião” com a sua reprodução em forma de escultura realizada pelo artista. Tudo remete à referida fotografia, desde a pose característica do cantador – a perna direita flexionada e apoiada sobre um banquinho, a rabeca contra o braço esquerdo – até o paletó comprido e o chapéu de abas largas rebatidas para cima, à maneira dos cangaceiros, além da barba acentuada. (RAMOS, 2015, p. 94, grifo meu). Depois de atender a encomenda de Protásio, Xico continuou fazendo a figura de Fabião. Ramos compara duas peças praticamente iguais, com a diferença que em uma delas o nome do cantor gravado na base da peça aparece com um erro (Fabião das Qeimadas) e, na outra, a grafia é correta. Diante disso, o autor aventa que o Xico se corrigiu de uma peça para outra. O erro ortográfico também é apontado na base de outra obra: “Inácio das Catigeira”, ou seja, Inácio da Catingueira (na grafia correta), célebre cantador paraibano do século XIX. Essa nova identidade explica certamente as pequenas diferenças em relação à imagem original: o personagem agora não tem mais barba, só bigode, e seu instrumento não mais uma rabeca, mas uma viola. O caráter aleatório dessas modificações – na verdade, Inácio da Catingueira tocava um pandeiro, não uma viola, e não sabemos de registro que informasse sua aparência física – prova, no entanto, que o importante era o aspecto geral do modelo, a imagem criada e repetida de Fabião das Queimadas, que o escultor reproduzia literalmente ou com pequenas variações para representar qualquer cantador, inclusive os que não têm uma identidade precisa. (RAMOS, 2015, p. 95). Porém, nem todas as obras encomendadas por Protásio se tornaram protótipos repetidos pelo santeiro. Quando Veríssimo de Mello (1974) narra a demanda pela primeira “escultura profana”, não menciona que o pedido do irmão incluía outro tipo nordestino – um Antônio Conselheiro – e um “Buda de Kamakura”, divindade igualmente apresentada a Xico por fotografia. Desse modo, aos temas regionais produzidos aos milhares agregam-se outros, “novidades”, como o Buda, que foi circunstancialmente reproduzido, ou bustos de personalidades (RAMOS, 2015). 175 A escultura do Buda desestabiliza, apesar de seu presumido caráter divino, porque não corresponde ao repertório iconográfico nordestino que estava sendo sacralizado no circuito de arte e nos estudos de folcloristas. O produto da encomenda, portanto, é visto como uma criação artificial especialmente motivada por uma incumbência, ao passo que outras coisas demandadas aos escultores ‘naturalmente’ dizem respeito ao seu universo, geralmente descrito como simples, quando não miserável, mas também lúdico e musical. Uma encomenda de um Fabião não soa absurda porque Xico conviveu com gente como o cantor. A propósito, um dos aspectos que sempre se ressalta nas biografias de artistas populares é a participação dos mesmos em bandas de música: Vitalino tocava pífano, Xico tocava trombone e bombardino.119 Além disso, a escultura do famigerado Buda foi pintada e Xico recobria as peças com tinta em seu período de imaginário, quando em tese atendia apenas demandas de devotos, mas é de conhecimento geral que, quando estes últimos já se valiam das imagens de gesso e a clientela dos santeiros passou a ser, sobretudo, composta por intelectuais e colecionadores, os santos deixaram de ser pintados, ao passo que os tipos nordestinos já nasceram “ao natural”. Em algumas versões, diz-se que a demanda pelas peças cresceu tanto que os artistas não tinham mais tempo de finalizá-las dando-lhes o acabamento tradicional. Em outras, os encomendantes pediam abertamente que a peça não fosse pintada para dar a ver o trabalho escultórico (ou de modelagem, no caso dos ceramistas como Vitalino). Figura 49 – Buda e Rendeira esculpidos por Xico Santeiro Fonte: originalmente reproduzidos em Ramos (2015, p. 42) 119 Diz Veríssimo de Melo (1974, p. 22): “Foi nessa localidade [Lagoa Seca, em Pernambuco] que Xico aprendeu música, tocando trombone. Durante dez anos, tocou trombone e bombardino. Lia música apenas na clave de fá, tendo, em Natal, tocado na Orquestra “Santa Cecília”, no Alecrim”. 176 Antônio Marques afirma que essas argumentações não convencem mais ninguém: “Noza foi instruído até a parar de lixar! Isso é gosto de intelectual, é a ideologia que diz que o popular fabrica o grosseiro, a imagem crua, é para mostrar o popular rústico.”. A madeira e a argila são os materiais ideais para tanto, pois remetem à terra árida e rachada do sertão e naturalmente possuem, portanto, “cor local”, inclusive quando trincadas. Mestre Noza120, o escultor e gravador mencionado por Antônio, juntamente com Vitalino e Xico Santeiro, compõem, para o colecionador, uma tríade de artistas que foram contemporâneos e se notabilizaram como os grandes nomes da arte popular de seus estados, e todos deixaram de pintar suas obras. Em uma entrevista, Noza (CARVALHO, 2014) relatou que após uma viagem ao Rio de Janeiro em 1963 foi instruído a fazer “figuras” – como as de mulher com trouxa de roupa na cabeça, homem com enxada, homem com rifle, esmoler – e, além disso, a não mais usar tinta nas peças. Apesar de ter seguido as recomendações, conta ainda que deixou de vender um Cristo porque havia lixado a peça. Nessa mesma publicação em que o artista narra a ‘nordestinização’ de suas obras para um entrevistador, encontra-se sua recusa de atender todas as imposições da clientela. Trata-se de um catálogo sobre uma coleção formada por santos esculpidos por Noza a pedido de um colecionador, Renato Casimiro. Memorialista e professor universitário aposentado do campo das Ciências Biológicas, Renato recentemente doou seu acervo de obras de Noza - composto por 59 imagens - para a Universidade Federal do Ceará. A encomenda original, entretanto, era de nada menos que cem imagens, inspiradas pelos nomes das ruas de Juazeiro do Norte, batizadas com nome de santo. Noza, que havia se notabilizado como “o escultor do Pe. Cícero” respondeu a encomenda com pouco mais da metade do pedido, que estava lhe demandando tempo demais para ser atendido e recusas de outras encomendas de comerciantes insistentes. Como a oficina do artista já estava praticamente especializada no corte da imagem com leve corcunda do santo local121, é este personagem que emana da maioria das figuras. Nas palavras do encomendante: 120 121 * Bandeira, PE, 1897 † São Paulo, 1983. Noza teria sido o primeiro escultor a fazer uma imagem de Padre Cícero e narra, na entrevista supracitada, que mostrou sua obra-protótipo ao próprio “Padin”. O sacerdote, ao se ver representado, assustou-se com a curvatura pronunciada de sua coluna. A obra então lhe serviu como um espelho que mostrou especialmente um dos aspectos do envelhecimento de seu corpo. 177 [...] infelizmente, a maioria [dos santos], vista por trás, guarda a semelhança de um Padre Cícero visto pelas costas, com a cabeça ligeiramente inclinada para o lado direito. Isto era o resultado do aprendizado de Zefa e Loura que já faziam partes das peças. Como a maior solicitação era de estátuas do Pe. Cícero, Noza apanhava uma outra e lhe dava um acabamento que mais se identificava com um dos santos solicitados. Contudo, em diversas delas não foi possível reproduzir o Patriarca de Juazeiro. São os casos de São Sebastião, de N. Sra. do Perpétuo Socorro, etc. […] Paguei ao Noza, regiamente, porque sempre deplorei que sua arte fosse tão mal remunerada e vivesse quase a implorar a caridade pública. (CASIMIRO, 2014, p. 26). O relato sincero do colecionador aborda ainda outro episódio em que uma atitude sua visando incrementar a renda do escultor é frustrada. Casimiro havia comprado de Noza uma Via Sacra talhada em tacos122, mas lhe devolve a coleção porque depois de conversar com um amigo, avaliam que o melhor que poderiam fazer pelo artista: “ – Era meter em sua cabeça que não mais vendesse tacos, e sim cópias de impressão tipográfica [...]”. O artista, entretanto, vende o conjunto “ao primeiro gringo que aparecera”. (CASIMIRO, 2014, p. 26). Figura 50 – Imagens de Pe. Cícero de autoria de Mestre Noza, do exemplar policromado às imagens ‘nordestinizadas’ Fotos: Giovanni Sérgio, em Arte Popular na Coleção de Antônio Marques (2012, p. 20) A sugestão de desperdício de talento conjugada à acusação da impossibilidade de condução de uma carreira por conta própria remete às considerações de José Sérgio Leite Lopes e Sylvain Maresca (1992) sobre a alegada “falta de jeito” do jogador Garrincha em explorar sua criatividade em campo, tornando-a um projeto durável e rentável. A demanda de comportamento profissional direcionada a amadores que foram encorajados a ganhar dinheiro com sua originalidade, portanto, avulta-se como fadada a denunciar ingenuidade, indisciplina e falta de assiduidade ao trabalho. 122 Noza também talhava matrizes de xilogravura e, antes do reconhecimento, cabos de revólveres. 178 Quando conversei com Antônio sobre a encomenda frustrada do colecionador a Noza, meu interlocutor relatou não gostar dessa coleção, afinal, “Noza era bom em fazer Padre Cícero”. Ademais, acrescentou que um bom colecionador não faz uma encomenda de cem santos de uma vez, porque é sabido que as peças necessariamente vão ter características seriais, pouca dedicação aos detalhes etc. Isso é coisa de quem quer ser colecionador de uma hora para outra ou, de repente, virar o maior colecionador do artista x ou y, aí quando doa a coleção se promove assim. Mas, desse jeito, ele sempre vai ter as mesmas peças, ao invés de imagens de várias fases do artista. O colecionador se faz aos pouquinhos, é um guardião, vai guardando uma coisinha que encontra aqui na casa de uma pessoa, outra ali no casa do artista mesmo, quando você chega lá e está pronto. Os santos antigos, dos santeiros que já morreram, a gente procura até sem saber se eles foram feitos... Dos novos, a gente compra quando ninguém ainda dá valor, mas quando o artista fica famoso a gente entende todo o processo, o rumo que a obra foi tomando. Mas para fazer isso tem que ter vivência com artista, saber no que ele é bom, não basta chegar lá e dar para eles uma empreitada que você tira da sua cabeça. A compra diretamente do artista, como se vê, pode não ser vista como problemática desde que a criação não tenha sofrido (demasiada) interferência. Entretanto, segundo Antônio, os colecionadores não admitem facilmente quando também são criadores. Em 2013, acompanhados de Nildo, sócio de Antônio, em um museu de arte popular, fomos convidados pelo mediador da exposição a entrar em uma sala restrita à visitação de adultos. O local era dedicado a obras de arte erótica que teriam sido descobertas escondidas na casa de um artista popular. Ao sairmos da sala reservada, Antônio foi categórico: “– O artista nunca faria tantas peças, ainda mais desse tema, para ficar com ele mesmo. Isso foi encomenda de colecionador para criar essa coisa toda”. Nesse mesmo museu, o olho de especialista dos colecionadores captou uma peça de Noza, um Inácio da Catingueira, que, diferentemente da maioria das peças expostas na instituição, não identificada com o nome do autor. Para meus acompanhantes na visita, a autoria do artista – que eles tanto admiram e tratam como um dos principais santeiros do Nordeste e do Brasil – era evidente e deveria ser afixada em plaquinha de identificação próxima à escultura. Conversamos com alguns funcionários do museu e fomos informados que algumas peças realmente carecem de identificação, mas em alguns casos nem o próprio colecionador que as reuniu estava muito certo, já que comprou, por exemplo, fornos fechados cheios de obras de cerâmica, que muitas vezes continham obras de mais de um artista. 179 Em outras situações também presenciei Antônio desconfiando da autoria atribuída a certas peças de artistas populares reconhecidos no mundo da arte. O enfraquecimento da visão de Xico com o passar do tempo é uma das explicações para o fato de suas obras produzidas na velhice serem muito distintas das do auge de sua produção. Entretanto, durante a realização do trabalho de campo, meu interlocutor me relatou diversas vezes suspeitar que os genros de Xico produziam tais obras e o santeiro mais experiente as assinava. A procedência de tal desconfiança seria os relatos dos próprios familiares, que contaram ao colecionador que ninguém queria comprar se não tivesse o nome do famoso escultor. De fato, um dos genros de Xico narrou a produção familiar para um casal de pesquisadores (LIMA e LIMA, 2008, p. 220), corroborando o que Antônio havia me contado: “Quando seu Chico123 morreu, a viúva queria que a gente continuasse o trabalho. Ela disse para eu não botar mais o nome dele. Ela disse para eu assinar Zé, e então botei Zé Santeiro”. A mais recente exposição com peças de Xico Santeiro foi realizada no Museu Câmara Cascudo entre 20 de maio e 28 de novembro de 2015. As obras que foram expostas na mostra Xico Santeiro – uma escola de arte popular integram o acervo da instituição, recentemente acrescido de 77 obras doadas pelo extinto Diário de Natal, além de peças pertencentes ao Museu de Arte da Universidade Federal do Ceará e de dois colecionadores particulares, incluindo Antônio Marques. No catálogo da exposição (RAMOS, 2015), algumas obras foram reproduzidas acompanhadas de uma interrogação entre colchetes, outras, apesar de assinadas por Xico, foram atribuídas aos seus genros Zé Santeiro e Zé da Neusa. Essas operações corroboram a ideia de que o artista configurou uma escola de arte popular e que as pessoas que trabalharam ao seu redor foram seus discípulos. Ao contrário de uma denúncia de autoria forjada, tem-se, portanto, a reafirmação de uma autoria que se expande. Xico foi Mestre, assim como Noza, que citava suas ajudantes na empreitada de esculpir Pe. Cíceros em documentários, entrevistas e aparecia com elas nas fotografias. No Alto do Moura, muitas peças foram assinadas pela “Família Vitalino”. Como afirmou Antônio Marques na apresentação do catálogo da exposição, 123 Xico assinava as peças com X, apesar de algumas publicações trazerem a grafia Chico. Seu nome de nascença, como já mencionei, era Manuel e a alcunha Xico teria surgido de um dos intelectuais que frequentavam sua casa. Teria ele também sugerido o X ou os erros de ortografias nas peças? A coleção do Museu Câmara Cascudo conta com um busto de Xatobian esculpido pelo artista. Trata-se de Assis Chateaubriand (*Umbuzeiro, PB, 1892 † São Paulo, SP, 1968), proprietário dos Diários Associados, maior conjunto de jornais e revistas no Brasil da primeira metade do século XX. Chateaubriand foi colecionador e mecenas de muitos artistas. O referido busto no MCC indica como a produção de Xico alcançou círculos de apreciadores que extrapolam o nicho dos colecionadores de arte popular. 180 Na qualidade de discípulos da primeira hora, ambos [Zé Santeiro e Zé da Neuza, os genros de Xico] participam da mostra e do livro apresentados agora, com obras de cunho artístico inquestionável. Já era tempo de se fazer justiça a esses dois continuadores do aprendizado de Xico Santeiro. (XICO SANTEIRO..., 2015, p. 14, grifo meu). Nota-se que o confronto de coleções leva não só ao acréscimo de mãos às obras que teriam sido esculpidas apenas pelas de Xico, mas também à explicitação da contribuição dos discípulos promotores da continuidade do legado expressivo do artista. Essas justificações constroem o sentido de colecionar obras de Xico feitas pelos seus genros, ao passo que as variações dessas peças reiteram uma individualidade criadora. Ao fim e ao cabo, tudo é Xico, mas as pequenas obras policromadas são vistas como características da produção mais antiga do escultor popular em sua fase de imaginário e, por isso, hoje, são as de maior interesse. Depois de todo esse percurso, entendo o que estava em jogo quando Antônio Marques me emprestou um catálogo para que eu entendesse a importância de Xico Santeiro. Com tal gesto, o colecionador me versou no diálogo de vozes que inventam o escultor popular; denunciam o imaginário que profana suas obras ao se render às sugestões de venda fácil; louvam a iniciativa do artista que, mais do que criar, passa a ensinar sua arte tornando-se, assim, mestre. 4.5 O ENCONTRO COMO A COLETA EM ATO E seu sertão, principalmente da região do Seridó-Acari, seduz quem por ali passar. Árvores preciosas parecem dar sustento ao corpo e ao espírito: o babaçu, a carnaúba e a oiticica. Santos e sertanejos se alternam como temas máximos da expressão de seus artistas, que, orgulhosos e sabedores da cultura da terra, colocam cangaceiros na Santa Ceia e esculpem santos com suas próprias feições. Esse é o milagre e o privilégio que a liberdade de expressão na arte nos propicia. Acima de tudo, este Estado é a terra de Câmara Cascudo, um dos mais importantes folcloristas e estudiosos da cultura popular brasileira. Sua contribuição é inestimável e hoje faz falta um garimpeiro cultural como ele, principalmente porque as mudanças estão ocorrendo rapidamente, imposição da civilização contemporânea, que tem muita pressa e parece não importar muito com suas raízes mais profundas, com aquilo que permite que ela mesma, tão sofisticada, se mantenha em pé. (LIMA e LIMA, 2008, p. 216). Ao longo do capítulo foi visto como os santos produzidos pelos escultores populares são, em certa medida, materializações contíguas à ideia do sertão como o lugar da autenticidade e do povo. Enxergar o sertão nesses termos auxilia a compreender certas motivações para a procura de imagens, mas não auxilia a vislumbrar as nuances de seu funcionamento. O que está em jogo no processo de colecionar o sertão por meio de imagens? Quais elementos elas devem conter para que ‘peregrinem’ para a coleção? 181 Como afirma o próprio autor que demonstrou a operatividade da noção de “invenção do nordeste” (ALBUQUERQUE JR., 2001), ressaltando sua inspiração foucaltiana, as palavras e as coisas nem sempre coincidem. Nesses termos, a “dizibilidade” do sertão pode não coincidir com sua “visibilidade”. A invenção da região em sua forma tangível retira a policromia das imagens com sucesso para revesti-las de “gosto de intelectual”. Esbarra, entretanto, em uma centena de santos encomendados em vista da variedade iconográfica que o artista resume no santo de sua especialidade. A recusa de Noza em prosseguir realizando santos que não corporificassem a imagem que ele criou e multiplicou é uma afirmação de sua inventividade (WAGNER, 2010). Vale lembrar que a negativa de Noza em fazer santos que davam mais trabalho que o corte já macio e coletivizado de um Padre Cícero é lida pelo colecionador como uma concessão do artista à pressão dos comerciantes de artesanato. É curioso perceber que o comércio local de Juazeiro, voltado a romeiros humildes, possa ser mais atraente que o mecenato de um colecionador letrado, que declara sempre ter deplorado o fato do artista precisar implorar a caridade pública. A imagem do santeiro que precisa esmolar, simplesmente não corresponde à do artista arguto que tem gringos à sua porta para comprar a produção que ali circunstancialmente encontra. No relato do colecionador que teve parte da encomenda abortada, o fato do escultor popular vender peças para o primeiro que passa é um gesto de passividade diante da sua situação de penúria. A pressão do mercado lhe tira até mesmo a possibilidade de desenvolver criativamente novas formas de escoamento de sua arte – em vez de vender a matriz, comercializar a impressão – ou trabalhar com iconografias de santos menos conhecidos ao passo que não reproduzidas no artesanato. Nessa ótica, o santeiro tende a ser aproximado da ideia de repetição e apatia à criação, ao passo que o colecionador se evidencia como figura ativa que fornece ideias – provenientes dos mais diferentes contextos – para que o artista possa inovar. Ademais, é preciso considerar que a clientela dos santeiros e o escopo de produção de obras claramente se modificou, mas o impulso (re)criador não deixa de passar pela devoção. Objetos devocionais, tais como as imagens, não necessariamente precisam ser únicos para atuarem enquanto formas transformadas de presença dos santos. Foi visto que uma santeira se recusa a esculpir diabinhos, mesmo considerando que eles integram uma iconografia consagrada. No quadro da minha experiência etnográfica, antes de ser um escultor popular, o fazedor de imagens é um devoto que continuamente toma significados convencionais como base para improvisação inventiva. A criação, portanto, não prescinde da iconografia e pode, pelo contrário, valer-se dela para estender significados e gerar fluxos contínuos de invenções. 182 A afirmação da inventividade nesses termos (inspirados em Wagner, 2010) não pode deixar de considerar que apesar da notoriedade indiscutível, e da integração em redes de circulação igualmente evidente, os artistas populares não fazem fortuna a partir de sua obra, precisam de subsídios do Estado e frequentemente morrem pobres. Isto posto, Embora a tentativa de influenciar e participar das obras não diga respeito somente às relações entre clientes e artistas populares, podendo ocorrer com qualquer artista, também é sabido que os escrúpulos quanto à percepção do direito de influir na obra alheia são maiores quando se trata da relação entre iguais. É sobre a desigualdade dos termos da relação entre artistas populares e seus consumidores que é importante refletir, não apenas sobre a qualidade das influências. (MASCELANI, 2002, p. 30). A etnografia da encomenda insere-se no bojo de preocupações sobre os “atos de colecionar” de Johanes Fabian (2010, p. 62), segundo o qual “objetos que compõem coleções são encontrados; eles têm que estar em algum lugar antes de serem coletados.”. Os atos de colecionar, desta feita, não prescindem dos atos de coletar, vistos como eventos contingentes e situados historicamente. Nessa linha de abordagem procurei pensar os encontros entre colecionadores com os objetos de suas coleções não só como momentos reveladores e consagradores de potências criativas dos artistas, mas também como instauradores e continuadores de circuitos de trocas em que posições assimétricas podem se inverter. Afinal, Cascudo inventa o imaginário ou Zé Leão inventa o folclorista atento a uma forma de autoria particular? Mesmo considerando que não é o caso do meu principal interlocutor, é preciso ressaltar que muitos dos participantes dos encontros abordados nem sempre se colocam como colecionadores. São os estudiosos, críticos de arte, inventariadores de artistas desconhecidos. Tais episódios, entretanto, longe de serem neutros, colocam relações de distintas naturezas em operação. Como afirma Fabian (2010), o embaraço em se admitir as transações envolvidas na aquisição dos objetos de conhecimento baseia-se nas suspeitas despertadas pelo ato de colecionar: Não ser contaminado pelo mercado é um ideal que abraçamos em nossos esforços de manter nossa integridade, seja como acadêmicos seja como connaisseurs de objetos. Essa é provavelmente a principal razão pela qual não gosto de ser chamado de colecionador. Mas nessa busca de integridade enfrentamos um dilema. Mesmo que sejamos mais ou menos bem sucedidos em mantermo-nos fora do mercado (não comerciando objetos para lucrar, vendendo nossa expertise a negociantes para atestar autenticidade visando ao estabelecimento de preços de mercado e assim por diante), não podemos ignorar o fato de que a comodificação é co-constitutiva de objetos e coleções precisamente em virtude da temporalidade que é própria a processos de comodificação, processos no curso dos quais as coisas se tornam mercadorias. (FABIAN, 2010, p. 67-68, grifo meu). 183 Por fim, se pode analisar como o controverso Buda em madeira pintada, que se torna item de coleção, esvazia a narrativa de “invenção da tradição” (HOBSBAWN, 1997). A peça bemacabada, fiel ao retrato deixado pelo encomendante, estudado com régua e compasso ao invés das ferramentas improvisadas, coloca em evidência um artista que repete não apenas nos termos definidos como ideais para evocar uma região pobre por um lado e culturalmente rica por outro. O Buda de Xico Santeiro também inventa, mas no lugar de uma melodia nostálgica temos uma cacofonia, um curto-circuito, já que somos convidados a pensar através da encomenda de uma divindade exótica que, ao contrário dos santos de Noza, nem cor e corpo local tem. Ou seja, às vezes, as coisas concebidas por múltiplas autorias para ser uma atualização estética do Nordeste cortado à ponta de faca falham na vivificação do mito. Longe de meramente se esculpirem ao som de músicas típicas quando dão forma aos santos e aos tipos, os artistas trabalham em meio aos debates acalorados sobre a natureza de suas obras e, não menos importante, à necessidade de se sustentarem com seu trabalho, observando, por exemplo, a descrição de uma obra da santeira Luzia Dantas oferecida pelo valor de R$ 800,00124 em um site de vendas na internet: Nossa Senhora Aparecida da Artista Luzia Dantas Nossa Senhora Aparecida, de madeira, entalhada e policromada, 25 cm, da renomada artista Luzia Dantas, catalogada no Livro de Artes: "O Reinado da Lua" e "Em nome do Autor" e no "Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro, Século XX". Peça rara da principal artista do RN125. Quando li a descrição da imagem, não foi a santa em questão que veio à minha cabeça, mas a pilha de livros que a santeira e sua filha Dalva me mostraram quando as visitei em Currais Novos. As pessoas que coletaram o saber-fazer de Luzia, como se pode ver, não apenas classificaram suas obras, mas ativaram a circulação delas em circuitos mais amplos. Cumpre observar que há um erro na descrição da santa: a peça não é policromada. Apesar de Luzia ter gradualmente alterado as características de suas obras, afastando-as dos traços esperados nos tipos nordestinos e aproximando-as dos santos eruditos, a artista não utiliza tinta no acabamento. Dessa forma, as peças da santeira vendidas no Brasil e no exterior continuam atreladas ao regional, a despeito da “nítida herança do repertório barroco” e da “fina proporção” – características apontadas no verbete dedicado à artista por Lélia Coelho Frota em seu Pequeno Dicionário da Arte do Povo Brasileiro (2005, p. 285). 124 Trata-se do preço mediano em relação a outras obras da artista oferecidas pelo mesmo vendedor. A peça de menor valor – R$ 520,00 – era um “São José de Botas de Luzia Dantas” e a de maior – R$ 1.400,00 – um “São Jorge de Luzia Dantas”. 125 Grifo meu. Fonte: http://produto.mercadolivre.com.br/MLB-705747904-senhora-aparecida-da-artista-luzia-dantas-_JM 184 5 DA IMAGEM AO MILAGRE “O corpo do homem é sempre a metade possível de um atlas universal.” As palavras e as coisas Michel Foucault 5.1 OS MILAGRES QUE NEM TODOS VEEM No início do capítulo anterior coloquei em foco imagens de São Miguel e São Jorge sem conferir maior atenção ao artista que as esculpiu, pois o interesse era primordialmente mostrar como os santos em questão, ao serem tratados como sertanejos, compõem um repertório diversificado atrelado ao típico, ao popular e ao regional. As peças em questão são pequenas, não têm olhos de vidro, não foram estofadas, tampouco douradas e sim pintadas com esmalte sintético. Sabemos que esses aspectos participam da qualificação dessas imagens enquanto populares. Para prosseguir pormenorizando-as, é imprescindível ainda ressaltar a ausência de um elemento: a assinatura. Um olho treinado na observação dos santos do sertão aparenta com facilidade os exemplares que descrevemos. Muitas semelhanças podem ser percebidas cotejando-se as peças. O material, as cores, as dimensões são parecidas, assim como as bases e as criaturas combatidas sobre elas, as expressões fisionômicas do rosto dos santos, a gestualidade enrijecida de seus membros... Antônio convocou outras obras para me mostrar tais similaridades: Veja esse São Jorge. Um santo guerreiro, mas que esse artista transformou em um sertanejo como ele. Esse eu encontrei com uma parente do artista, 15 anos atrás. E esse São Sebastião aqui, que você vê que é do mesmo artista porque os traços são muito semelhantes – olha o nariz, a forma do bracinho, o desenho do cabelo – esse eu encontrei em uma feira no Recife, na semana passada. Eu posso colocar os dois aqui [no mesmo nicho da estante de casa] porque sei que são do mesmo artista, mas preciso saber disso para procurar por aí. E, às vezes, é uma procura de anos, você sabe com alguém aqui que fulano tem uma imagem, vai buscando, fica sabendo acolá que alguém está se desfazendo das coisas de família... E como eu faço isso há muito tempo, já posso juntar outras obras a os santos, porque os santeiros também faziam ex-votos e tipos do sertão, como essas bandinhas aqui [retira a peça de uma estante que fica em frente a dos santos e a coloca em cima da mesa]. Veja o nariz desse tocador de trompa como é o mesmo do São Jorge. Nenhuma dessas peças foi assinada, mas eu sei que são do mesmo artista ou pelo menos da mesma família de artistas. 185 As peças em questão não foram assinadas, mas o colecionador sabe quem foi o santeiro que as esculpiu, tendo o conhecido pessoalmente, ainda em atividade. Os santos em tela são obras de Julio Cassiano 126, artista que se notabilizou também pela produção de obras voltadas a finalidades não necessariamente devocionais. Dentre elas, destacam-se esculturas de banda de música inspiradas na sua experiência de tocador de sax-tenor e soprano em um conjunto de músicos de sua cidade, a Banda Euterpe Jardinense (FAGUNDES, 2015). Figura 51 – Banda de música de autoria de Júlio Cassiano, madeira policromada, Coleção de Antônio Marques Foto: Ana Paulina, originalmente reproduzida em Fagundes (2015) A banda de Julio Cassiano é um conjunto escultórico composto de doze figuras masculinas tocando instrumentos: três clarinetes, um sax-tenor, um saxofone, um bumbo, um tarol, um bombardino, uma tuba, pratos, trombone e baixo. Os músicos – geralmente na altura de 20 cm – estão colocados em três colunas, formando filas de quatro figuras, todos fardados e pintados a óleo, em cores vivas. No exemplar da foto acima, além dos doze tocadores, há um maestro à frente do grupo, que não segura nenhum instrumento e tem os braços rentes ao corpo. O conjunto de músicos não é homogêneo, a despeito do aspecto uniforme conferido pela vestimenta que se repete em todos integrantes da banda. Os instrumentos que eles portam são diversificados e também podemos perceber variações em seus tons de pele. As formas simples de composição do rosto, enriquecidas pela policromia em esmalte sintético, são praticamente as mesmas que encontramos em São Jorge e São Miguel, apesar de alguns músicos terem bigode e da expressão facial não sugerir a aflição do arcanjo sertanejo que descrevemos. A detecção de um padrão de corte e de pintura das formas dos santos e dos músicos, obras adquiridas no ateliê do artista nas décadas de 1950 e 1960, vendidas por seus parentes e ainda por comerciantes em uma feira de antiguidades, também arregimenta para a coleção, objetos encontrados em espaços de santuários católicos destinados à exposição de exvotos, objetos que, como já mencionei, são chamados de milagres no contexto nordestino. 126 * Areia, PB, 1899 † Jardim do Seridó, RN, 1987. 186 Os imaginários e os santeiros não conferiam feições apenas a oragos, eles também eram solicitados a esculpir partes do corpo dos devotos e outras formas plásticas ofertadas aos santos. Nessa direção, é comum que ex-votos em formato de cabeças humanas tenham os traços e expressividade semelhantes aos das imagens feitas pelo mesmo santeiro. Capturá-los em meio às multidões de peças presentes nos santuários, entretanto, demanda o olho treinado nos modos de representação característicos dos santeiros. Figura 52 – Prancha com fisionomias faciais de ex-votos e santos de Julio Cassiano, coleção de Antônio Marques Fotos: Ana Paulina (FAGUNDES, 2015) e acervo da autora, jan. 2013 Seguindo a prancha acima, da esquerda para direita, podemos visualizar como Julio Cassiano colocava as mesmas sobrancelhas, olhos, nariz, boca e orelhas em um ex-voto de cabeça feminina, em outro masculino, no São Miguel, no São Jorge e no músico de sua banda. O formato do rosto de modo geral é oval, o queixo arredondado e o nariz triangular. Todas as figuras são imberbes. Os olhos são desenhados em branco e preto nos orbitais talhados, aprofundando-se nas laterais do nariz e abaixo da testa, onde aparecem traçadas as sobrancelhas finas e longas. Os cabelos são escuros e na maioria das peças repartem-se ao meio, deixando aparecer as orelhas. Nos ex-votos, o esmalte vermelho destaca não só as bocas incisas, mas também os ferimentos que cobrem extensões variadas da bochecha direita, inexistentes nos santos e no músico. Os milagres não necessariamente são representações de partes do corpo feridas. Muitas vezes, a região afetada é representada em sua integridade. É preciso considerar também que a doação de um pedaço do corpo pode ser uma maneira de remeter ao todo. As cabeças são as partes mais frequentemente utilizadas nessa direção, ou seja, a oferta de peça com esse formato não necessariamente significa menção à enfermidade nessa parte do corpo. A forma em questão é potente para simbolizar o devoto em si. A simbolização em pauta, em diálogo com a análise de Raquel Lima (2014) sobre os processos metonímicos e metafóricos concernentes ao relacionamento entre devotos e santos, envolve uma linguagem verbal e corporal significativa e instanciadora de objetos diversos. Nessa perspectiva, assim como a autora propõe no tocante às imagens de Santa Rita e seus corpos múltiplos e ambivalentes, o ex-voto é uma das possibilidades do devoto “se distribuir”. 187 Nossa interlocução é, uma vez mais, com Alfred Gell (1998), inspirado nos desenvolvimentos analíticos de Marilyn Strathern, o autor nos traz a ideia de pessoa fractal, que tem a faculdade de se distribuir e de se expandir, posto que não se configura como uma entidade discreta, ou seja, sua „natureza‟ pode ser contínua em relação a de outras pessoas e coisas. A distinção entre esses últimos termos, inclusive, deixa de fazer sentido, posto que “human beings are also things” (GELL, 1998, p. 125). Assim, pessoas podem ser reconhecidas como objetos de arte e vice-versa, constituindo partes de um sistema de ação social que mobiliza certos princípios estéticos. Nessa concepção alargada de arte, as obras atuam como agentes sociais, logo, podem ser tratados como pessoas, pois, quando dotadas de agência, nos fornecem índices da ação de outras pessoas e podem modificar o curso da ação social. Tratase de um referencial muito distinto, portanto, daqueles que enxergam as obras de arte como fornecedoras de sentenças codificadas sobre o mundo. Apesar da ideia de um corpo que se distribui e, nesse processo, se transforma em parte – mas que também pode se metamorfosear de muitas outras maneiras – parecer quase autoevidente para reflexão sobre os ex-votos predomina a chave de leitura da substituição. De acordo com Antônio Marques, esse é o ponto extremamente frágil da análise de Maria Augusta Machado da Silva (1981), autora do livro Ex-votos e orantes no Brasil, muito citado devido ao seu caráter pioneiro e relevância da instituição que a publicou, o Museu Histórico Nacional. A publicação é centrada no caráter museológico e apresenta uma abrangente e importante classificação tipológica das formas ex-votivas127. Entretanto, na visão de meu interlocutor, a formulação em torno de “cabeças orantes” que seriam deixadas nos santuários para que fiquem rezando no lugar do doador delas não se sustenta. Nessa direção, Silva (1981) acertou ao tratar ex -voto como testemunho de gratidão e veículo de divulgação do poder do santo. Entretanto, ao especular sobre outras motivações para a prática, incorre no erro característico dos estudiosos que só se aproximam dessas peças após a migração delas para museus (etnográficos, históricos, de arte etc.) que as apartam de seus usos rituais originais. A partir das peças em cera, Giordana Charuty (1992) argumenta que é necessário complexificar a discussão sobre os “corpos em pedaços” e tomá-los como mais do que “ofertas substitutivas”. As “representações de si” que ganham formas expressivas não só substituem, mas constituem atos produzidos em rituais terapêuticos que envolvem a manipulação do corpo e da alma. 127 Um resumo delas consta nos Anexos. 188 A chave de leitura da substituição contém outra análise simplista recorrente: a da troca instrumental com as divindades. Nesta, o ex-voto é visto como prática de desobriga, como se dar uma coisa a alguém não fosse se doar, se vincular mais. Como demonstrei alhures (GOMES, 2013), se os objetos trocados não representam a relação de devoção em sua totalidade, é justamente nessa parcialidade que reside a sua força como problemas de pesquisa, pois é ela que possibilita que as alegrias e as aflições do cotidiano ganhem feições particulares. Deixando por ora a análise sobre a natureza da relação e voltando à discussão dessas feições propriamente ditas, volto-me aos machucados, às feridas e às cicatrizes como problemas plásticos colocados para o santeiro prioritariamente no momento da execução dos ex-votos. Argumento, por conseguinte, que tais agruras à flor da pele são atributos das representações dos corpos dos devotos. Assim, se nos capítulos anteriores tematizei imagens “machucadas”, posto que seus corpos sofreram algum dano, agora trato de peças com estigmas e outros tipos de ferimentos porque eles são importantes para dar a ver a mensagem que o devoto quer comunicar. Figura 53 – Prancha com milagres e imagem de santo de autoria de Julio Cassiano, Coleção de Antônio Marques Fotos: Ana Paulina, originalmente reproduzidas em Fagundes (2015); Foto de santo: Acervo da autora, jan. 2013 Na prancha acima se têm figuras de corpo inteiro. A primeira é um ex-voto cujas manchas vermelhas espalhadas sugerem a afetação de praticamente todo o corpo. Na figura feminina, que aparece em seguida, o mal concentrado entre as pernas da mulher parece ter sido extirpado e coube ao artista evocá-lo através de uma incisão na madeira e do desenho em vermelho de uma sutura que a cobre. A terceira figura pareceria imaculada se não lhe faltassem partes dos braços, as mãos e um dos pés. O pé parece ter sido levado pelo desgaste da peça através do tempo, mas a ausência das mãos pode ter sido intencionalmente provocada pelo artista para figurar uma deficiência física. 189 Essa possibilidade lembra que os ex-votos são objetos biográficos (HOSKINS, 1998), pois se relacionam com um evento específico (no caso, de doença) ocorrido durante a vida de seu doador, mas que após a oferta ao santo, a peça pode se modificar por fatores que não dizem respeito a quem a ofertou. Essas alterações, apesar de significativas na biografia da peça, em tese, não influenciam a trajetória do doador. As trajetórias dos ex-votos serão objeto de análise do próximo capítulo. O último corpo da prancha, como é evidenciado na base da obra, é uma imagem de São Sebastião. É interessante notar que o artista não destaca em vermelho os ferimentos causados pelas flechas que atingem o mártir. Somadas à posição característica do martírio do santo em uma árvore128, as flechas bastam para evocá-lo, ao passo que o artista reserva o vermelho cor de sangue para salientar os corpos adoentados dos devotos. Por fim, trazemos os ex-votos representativos de membros inferiores e superiores, de dimensões maiores, semelhantes ao tamanho natural de mãos e pés humanos, diferenciando se das obras representativas de cabeças e corpos inteiros das figuras acima. De acordo com o estudo descritivo de Ana Paulina Fagundes (2015, p. 51), “as mãos são representadas levemente curvadas com dedos juntos, inclusive o polegar, e unhas com uma talha plana diagonal realçada por pigmento de cor branca, bege, cinza, lilás ou rosada, se diferenciando da cor representativa da pele.”. A mão do devoto é uma forma de ver de modo ampliado o esmero do artista nas pequenas mãozinhas de santos e músicos da banda, pois têm o mesmo padrão de corte, as linhas simples e a policromia das demais peças produzidas pelo artista. Figura 54 – Prancha com detalhes das mãos de São Miguel, de São Jorge e do músico da banda, esculturas de autoria de Julio Cassiano, da Coleção de Antônio Marques Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 Figura 55 – Prancha com milagres em forma de mãos e pé, esculturas de autoria de Julio Cassiano, Coleção de Antônio Marques. Fotos: Ana Paulina originalmente reproduzidas em Fagundes (2015) 128 Note-se que se trata de um mandacaru, grande cacto de porte arbóreo e uma das plantas mais características da caatinga nordestina. Nessa obra, portanto, a referência à região não passa pela ausência de policromia. 190 A reunião de peças de diferentes naturezas é fundamental para que o colecionador possa afirmar a presença reiterada da individualidade criativa de um artista. Ao evidenciar a repetição das indubitáveis marcas de Julio Cassiano nas obras, outra intenção de Antônio Marques é mostrar que a imagem não é uma produção particular e que os mesmos artistas que produzem santos também esculpem outras coisas, principalmente os chamados milagres. Nessa linha de raciocínio, o ex-voto é uma arte católica, ao contrário do que foi afirmado por pesquisadores que filiaram o objeto votivo a outras tradições, como será visto nos próximos tópicos desse capítulo. 5.2 A DESCOBERTA DO EX-VOTO NORDESTINO 5.2.1 O milagre atrás do altar A primeira menção aos milagres de madeira na literatura sobre arte popular foi feita por Luís Saia. Seu trabalho deriva de incursão ao sertão realizada no âmbito da “Missão de Pesquisas Folclóricas”, organizada em 1938 por Mário de Andrade, então responsável pelo Departamento de Cultura do Município de São Paulo. O objetivo da empreitada era recolher documentos, textos, indumentárias, filmes e fotografias que pudessem esclarecer sobre o folclore musical, inicialmente nas regiões Nordeste e Norte do Brasil129. O músico e maestro Martin Braunwieser, o técnico de gravação Benedicto Pacheco e o auxiliar geral Antônio Ladeira acompanharam o então estudante de engenharia e arquitetura Luís Saia na equipe da Missão. A metodologia empregada pelo grupo foi fruto da promoção, pelo Departamento, do curso “Instruções práticas para pesquisa de Antropologia Física e Cultural”, ministrado em 1936 por Dina Dreyfus, etnóloga da equipe de Paul Rivet no Museu de Etnografia do Trocadero. Dina acompanhava o marido Claude Lévi-Strauss, contratado pela recém-fundada Universidade de São Paulo, juntamente com outros professores franceses, tais como Roger Bastide e Fernand Braudel. Assim, a formação de técnicos da Prefeitura de São Paulo para pesquisa de campo foi realizada em diálogo com teorias e formulações também discutidas em nível internacional. O curso de Dreyfus estimulou a fundação da Sociedade de Etnografia e Folclore (SEF), considerada a primeira organização coletiva desse gênero criada no Brasil, iniciativa também vinculada ao Departamento de Cultura de São Paulo. 129 A Missão partiu do Porto de Santos, em fevereiro de 1938, e retornou ao Porto do Rio de Janeiro em julho do mesmo ano. Percorreu 28 cidades, ao longo de seis estados brasileiros: Pernambuco, Paraíba, Ceará, Piauí, Maranhão, Pará. Partir de São Paulo em direção ao Nordeste e ao Norte significava, na visão dos envolvidos, ir em busca das autênticas raízes culturais brasileiras, ao passo que na capital paulista e seu entorno o que se observava era o avanço da industrialização e a chegada de diversas culturas estrangeiras. Antes de enviar os pesquisadores, Mário já havia sido “Turista aprendiz” no NE. Foi hospedado e ciceroneado por Cascudo em 1927, na temporada potiguar de sua emblemática “viagem etnográfica” (ANDRADE, 2015). 191 O fato da pesquisa da Missão ter priorizado, desde o início, o registro fono e filmográfico de cantos e danças fez com que a atenção aos objetos fosse secundária nas rotinas de trabalho (BONFIM, 2007; BATISTA, 2004). Um grande número de objetos coletados decorreu da atenção à música, como os relacionados ao universo das cerimônias de religiões afro-brasileiras. Cerca de quinhentos deles foram “doados” pela Polícia para a equipe da Missão, que em diversas situações de registro das músicas foi confrontada com a repressão aos cultos e a apreensão de instrumentos e outros artefatos do universo religioso. Ao passo que estes objetos foram negociados por Saia com a autoridade policial e esculturas de orixás foram encomendadas a Augusto, interno de hospital psiquiátrico no Recife, a coleta de ex-votos pelo chefe da Missão é descrita como fruto do “acaso”, pois os pesquisadores nada sabiam da tradição do “milagre de madeira”. Ainda em junho de 1938 , Saia enviou para Mário de Andrade um plano de trabalho para estudar os ex -votos coletados pelo interior dos estados de Pernambuco, Paraíba, Ceará e Piauí. Após seu retorno, o estudo foi levado a cabo e resultou em uma comunicação sobre os milagres apresentada para os membros da SEF e transformada em livro em 1944. É então na publicação monográfica Escultura popular brasileira (1944), de autoria do arquiteto-etnógrafo da Missão, que encontramos seu relato de encontro com o objeto votivo que nos interessa por ora: A vontade de achar coisas me levou, como sempre, às procuras mais indiscretas: remate dos muros de construção, caixas cheias não sei de que, atrás do altar... Precisamente atrás do altar desta capela [situada em Meirim, sertão pernambucano] encontrei uma cabeça de madeira que no primeiro momento julguei tratar-se de uma parte de santo de roca. Mas, segundo informou o cicerone improvisado, era um milagre. Recolhi-o. (SAIA, 1944, p. 9, grifo original). Saia começa a desvendar os mistérios estilísticos contidos nos milagres comparandoos com a escultura antropomórfica dos índios brasileiros que conheceu por meio do casal Lévi-Strauss. É ainda subsidiado por bibliografia indicada por Roger Bastide, que o leva a interpretar a tradição de exortar a doença para uma imagem à luz de James Frazer e seu Ramo de Ouro. Por conseguinte, entende que a “magia da medicina local” reside na possibilidade de transferir e expulsar os males para um objeto que deve ser deixado em igrejas, capelas ou cruzeiros, pois, como lhe informou o “guia” de um desses locais, “[...] o Cruzeiro guarda o milagre, senão a doença fica por aí.” (SAIA, 1944, p. 15, grifo original). 192 A principal magia simpática realizada por Saia, por sua vez, será a transferência do referencial teórico de Gilberto Freyre para os objetos. A ênfase conferida pelo autor de Casa Grande e Senzala à presença negra no Catolicismo brasileiro, indicativa da capacidade de incorporação da religião nos trópicos, torna-se visível nos milagres. […] não me parece restar a menor dúvida que a tradição, ainda viva no Nordeste, da escultura popular em madeira é de origem afronegra. Pelo menos por exclusão se é obrigado a aceitar esse fato. Se de um lado é impossível explicar a escultura dos milagres como originária da ameríndia, [...] de outra parte, uma análise mesmo superficial do material estudado (que representa sem dúvida a generalidade do fenômeno) mostra a impossibilidade de se filiar a sua concepção e técnica à escultura católica. Se a peça que me foi trazida da Bahia não fôsse de cedro legitimamente nacional, poder-se-ia julgá-la de direta proveniência africana pela semelhança de composições e soluções plásticas. (SAIA, 1944, p. 14, grifo no original). O chefe da comitiva de Mário de Andrade não filia o ex-voto à tradição santeira católica – seja ela dos escultores de Minas Gerais ou dos populares de modo geral, incluindo aqueles do próprio Nordeste, que conheceu na “zona do Joazeiro do Padr e Cícero” – porque não vê continuidade entre as soluções utilizadas pelos artistas para conceber, compor e organizar as partes do corpo humano nos santos e nos milagres. Nessa leitura, ao esculpir um santo o artista resolve o arranjo de olhos, cabelo, boca, pernas, vestimentas etc. obedecendo à concepção erudita, o que significa prezar pelo naturalismo da representação de corpo inteiro. Já o artista primitivo dá corpo à peça por meio da indicação plástica. A distinção fundamental entre a escultura tradicional católica (popular ou erudita) e a escultura primitiva ou neo-primitiva (caso dos milagres), está na maneira diversa porque uma e outra são concebidas. Enquanto na escultura católica tradicional a base conceptiva é a representação de um conjunto orgânico necessariamente completo (por exemplo, um santo), na primitiva ou neo -primitiva só interessa a indicação plástica daqueles símbolos das partes do corpo exigidos imediatamente pela destinação da peça. Assim, se ao primitivo interessar a representação de um ôlho ou dedo, êle apenas esculpirá os símbolos plásticos relativos ao ôlho ou dedo, desprezando as outras partes do conjunto antropomorfo. Muito de propósito usei a fórmula indicação plástica, uma vez que a arte primitiva em geral, e em particular e escultura, tem uma preferência marcada pelo esquema representativo, ao contrário da escultura tradicional católica que, mesmo estilizando, é sempre uma reprodução naturalista. Êste compromisso inicial com o esquema, cujo desenvolvimento estilístico pode acidentalmente atingir o caráter naturalista, e que é observável em tôdas as artes dos povos chamados primitivos, talvez lhes venha da maior proximidade histórica em que estão com as origens do fenômeno artístico. O primitivo é avesso ao naturalismo, não por incapaz de praticá-la nas artes plásticas, mas porque a funcionalidade da sua arte o leva a outros caminhos. (SAIA, 1944, p. 17, grifo no original). 193 Para Saia (1944, p. 17), o fato dos ex-votos serem criados para “funcionamento imediato” não os torna peças simples. O autor, pelo contrário, vê a funcionalidade dos milagres como algo que, ao afastar a concepção da representação antropomorfa completa, aproxima o trabalho do artista dos fenômenos de composição abstrata. O escultor que os domina goza de liberdade plástica criadora de uma variedade infinita de interpretações visuais partindo de elementos mais ou menos fixos e invariáveis: “É que seu ponto de partida é um esquema simbólico, e este sim, é fixo, sendo, entretanto, a interpretação dele condicionada por fatores que podem variar de um modo absolutamente ilimitado.” O santeiro, diferentemente disso, precisaria se ater aos processos tradicionais. O arquiteto recolheu poucos milagres representando órgãos internos, o que atribuiu a pouca noção de anatomia dos escultores. O caráter naturalista observado em alguns exvotos representando o corpo inteiro, que poderia indicar uma aproximação com a escultura de santos, foi visto como acidente. É, principalmente, pela análise das obras em forma de cabeça que Saia identificou seis soluções técnicas constantes na escultura afro-negra, relevantes “quer pelo seu valor tectônico quer pelo seu funcionamento estético, a saber: 1) corte africano 2) Nariz – eixo 3) Cubismo 4) ôlho em baixo relevo 5) Fixação ideográfica de detalhes 6) Pintura” (SAIA, 1944, p. 18). Tais marcas impressivas lhe permitem ser categórico no desatrelamento das obras da tradição católica, mesmo tendo-as recolhido em igrejas e capelas. O milagre, que ao primeiro olhar de Saia, lhe pareceu um santo de roca, seis anos mais tarde foi confirmado como “uma escultura mágica pelo funcionamento, autênticamente mestiço como fenómeno de arte e de tradição técnica afronegra pela origem” (SAIA, 1944, p. 19). A escultura dos negros não é vista como mera contribuição, mas como razão de ser do ex-voto nordestino, cujo teor europeu, quando mencionado, não passa pela Igreja, mas pelo potencial dos milagres de agirem “como estimulante dos dados de cultura pagã que existiam e existem no popular europeu”. (SAIA, 1944, p. 12). 194 5.2.2 As exposições de milagres Cerca de vinte anos após a publicação do estudo sobre os ex-votos coletados na Missão, Saia constatou que o interesse sobre os milagres tinha crescido a ponto de valiosas coleções terem se formado, como as do artista Lula Cardoso Ayres, do colecionador Abelardo Rodrigues e do galerista Giuseppe Baccaro (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965). Na apresentação da exposição de uma dessas coleções no Museu de Arte Moderna do Rio, o arquiteto versou sobre os desdobramentos de sua descoberta: E não é sem uma ponta de orgulho, de colecionador frustrado e pesquisador por vocação que verifico o acerto do meu faro; a prova disto é esta exposição. O reconhecimento enorme e definitivo da validade desta tradição de escultura popular e das obras primas que frequentemente o povo é capaz de produzir, é a melhor recompensa para um pesquisador bem aquinhoado pela sorte. (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965, [s. p.], grifos meus). É curioso que Saia se qualifique como “colecionador frustrado”, uma vez que além de coordenar a coleta dos objetos e registros da Missão, contribuiu largamente para o enriquecimento do acervo pessoal de Mário de Andrade, católico praticante e colecionador de imaginária católica desde antes das mobilizações modernistas. O escritor colecionava imagens antigas e encomendou ao chefe da Missão, “santos católicos, até populares, e mesmo comprando se necessário” para sua coleção particular (BATISTA, 2004, p. 22, itálico no original)130. O interlocutor de Mário não só atendeu ao pedido relativo aos santos, como também remeteu ao amigo outros tipos de manifestação da religiosidade, como os ex-votos. À parte das mais de mil peças enviadas para a Discoteca Pública Municipal de São Paulo131, Saia reservou para Mário, milagres de grande beleza e apuro técnico, que foram dispostos pelo escritor sobre os móveis de sua casa, já povoada de imagens, quadros e livros. As cabeças esculpidas e expostas como itens de decoração e coleção não mereceram atenção do modernista enquanto objeto de estudo (BATISTA, 2004). 130 Esse acurado estudo aponta que as requisições de Mário de Andrade aos amigos podem também ter incrementado seu acervo particular com artefatos carajá – duas bonecas e uma coifa – que chegaram às suas mãos por meio de Dina e Claude Lévi-Strauss (BATISTA, 2004, p. 34). O Departamento de Cultura presidido pelo escritor apoiou as expedições do casal ao Centro-Oeste brasileiro, também financiadas pela USP. Pesquisadores brasileiros que estudaram as expedições em questão não encontraram registro das peças em museus do país (SENA, 2011, p. 95). “Além dos discos registrados, contendo perto de 1.500 melodias, a Missão trouxe na sua bagagem 1.126 fotografias, 17.936 documentos textuais (cadernetas de anotações, cadernos de desenhos, notas de pesquisas, notações musicais, letras de músicas, versos da poética popular e dados sobre arquitetura), 19 filmes de 16 e 35 mm, mais de mil peças catalogadas entre objetos etnográficos, instrumentos de corda, sopro e percussão.” Fonte: <http://www.centrocultural.sp.gov.br/Colecoes_Missao_de_Pesquisa_Folclorica.html >. 131 195 A participação dos ex-votos na configuração da casa de Mário pode ser vista nas imagens filmadas pouco antes de sua „exposição doméstica‟ ser desmontada e os objetos serem encaminhados para o Instituto de Estudos Brasileiros da USP132. As imagens da Morada do Coração Perdido foram editadas por ocasião da iniciativa que repovoou a casa com alguns de seus objetos „originais‟, tornando-os parte da exposição permanente aberta ao público na Casa Mário de Andrade133. Saia e outras pessoas próximas a Mário impediram que o desejo de dispersão de seu espólio, manifestado pelo escritor, fosse levado a cabo. A notoriedade do modernista fez com os objetos continuassem reunidos enquanto parte de uma obra 134. Já as peças coletadas pela Missão de Pesquisas Folclóricas, para fins de exposição em um museu que seria criado após o retorno dos pesquisadores, não chegaram a ser expostas de modo permanente ao olhar de um público mais amplo135. O material recolhido foi catalogado por Oneyda Alvarenga, outra aluna do curso de Dina Dreyfus, e hoje se encontra sob a responsabilidade do Centro Cultural São Paulo e as peças podem ser vistas mediante agendamento. A estreita colaboração entre Saia e Mário, azeitada no DC, prolongou-se na regional paulista do SPHAN e juntos eles fizeram viagens pelos arredores de São Paulo, nas quais visitaram feiras, compraram santos e outros objetos feitos por artistas populares. Andrade concilia o trabalho como funcionário público e a atividade de colecionar para fins particulares, já seu auxiliar e sucessor no SPHAN paulista continua a se especializar em coletar com vistas à promoção de pesquisa e exposição das obras e, como mencionei anteriormente, ao incremento da coleção do amigo136. 132 O espólio de Mário de Andrade foi tombado em âmbito federal em 1946 – um ano após a morte do escritor – e adquirido pelo Governo do Estado/Universidade de São Paulo em 1968. 133 Maiores informações sobre o <https://oficinasculturais.org.br/mariodeandrade/>. vídeo e a exposição mencionada em: 134 Assim como comentei na subseção 1.3.2 a respeito da Casa de Câmara Cascudo, a abertura do universo privado de um colecionador configura o espaço expositivo com nuances do que tem sido chamado de museu-casa e de museu biográfico, ou seja, observa-se a mescla tanto de objetos que eram utilizados no cotidiano da residência no passado, quanto outros que explicitam qual foi a importância do morador ilustre. Rememora-se o tempo em que a casa recebia visitas – que participaram da construção de um legado intelectual – transformando-a em um local que recebe visitantes. 135 A ideia da criação do museu se tornou inviável com a exoneração de Mário de Andrade do Departamento de Cultura de São Paulo em 1938, enquanto seus auxiliares ainda circulavam pelo Norte e Nordeste. O intelectual inclusive recomendou que os pesquisadores se embrenhassem pelo sertão para impossibilitar o contato dos novos gestores públicos da Municipalidade de SP, que poderiam ceifar a empreitada a qualquer momento. 136 O arquiteto assumiu o cargo deixado por Mário quando este se mudou para o Rio de Janeiro, de onde continuou colaborando para a estruturação do Serviço de Proteção ao Patrimônio. O anteprojeto do órgão feito pelo escritor polivalente não raro é mencionado como arrojado – e, portanto, politicamente inviável para o período de governo centralizador – porque já elaborava grande parte da política de patrimônio imaterial que só foi implementada nos idos dos anos 2000. De sua parceria intelectual com Saia, entretanto, também decorreram as primeiras normatizações do órgão acerca da circulação de bens materiais móveis, portanto, a dupla Saia e Mário também demonstrava preocupações com o patrimônio material, mas não necessariamente o que ficou conhecido sob a rubrica de pedra e cal 196 Ao dar continuidade aos estudos sobre a escultura em madeira, Saia inscreve seu nome do campo da criação popular como autor da descoberta do milagre do sertão nordestino. Desse modo, não é o “colecionador frustrado” que passa a ser acionado nas mostras que expõem os ex-votos e sim o pesquisador-descobridor, uma vez que os objetos em questão vieram a público por causa de seu “faro”. No catálogo da primeira exposição exclusivamente dedicada aos milagres em um museu de arte de que se tem notícia, o autor indicou que sua tentativa inicial e pioneira de interpretação dos ex-votos, publicada em 1944, não era integralmente defensável duas décadas mais tarde, mas reafirmou sua “tese principal”, a da influência da escultura afro negra nos milagres, vista, sobretudo, através do corte africano. De fato, esse corte representa uma forma elaborada e detentora de características próprias e definidas. De outra parte, uma tentativa de aproximação da escultura dos exvotos com a escultura religiosa católica tradicional esbarra com uma dificuldade intransponível: nenhuma das soluções convencionalisadas da escultura católica comparece nesta tradição popular, senão revestida de um desanimador caráter de circunstância. (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965, [s.p.], grifos meus). O catálogo – um livreto de nove páginas – ora em análise, é outro exemplo de publicação realizada por ocasião de uma exposição e que traz diferentes perspectivas sobre os objetos apresentados. No texto seguinte às considerações de Saia mencionadas acima, o proprietário da coleção exposta, Giuseppe Baccaro, aborda claramente a figura do santeiro: A preocupação realística estava longe; logo, a classificação de “antropomórfico” revelava-se precária quando não inútil (como dizer que um homem é um humano). É de entender-se: o santeiro deve ter trabalhado rápido, para dizer o essencial com a maior economia de meios. Despojando a imagem dos movimentos não concretos, pôs a nu as marcas da força, fixou austeramente sua postura arcaica. Às vezes, um perfil é apenas um segmento cortado por um triângulo, ao qual podemos, querendo, dar nome de nariz. A cavidade logo abaixo - chamamos de bôca? - é a marca duma ferroada de formão. (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965, [s.p.], grifo meu). Praticamente uma década depois da exposição no MAM, Saia (1974) reafirma – em seu texto no catálogo 7 brasileiros e seu universo – que o ex-voto é uma manifestação universal e que a particularidade no milagre nordestino é a utilização de soluções plásticas da escultura afro-negra. Uma delas é o corte africano, dado a ver na parte do corpo mais frequentemente eleita pelo devoto para se representar: a cabeça. Nas palavras do autor, e mais precisamente com o que habitava o interior dos monumentos. As incursões pelo Brasil, a vivência de colecionador de Mário e a de pesquisador-coletor de Saia foram fundamentais para o delineamento de ações, como o cadastro de negociantes de obras de arte; o inventário de colecionadores particulares; a proibição da saída de obras produzidas antes do período monárquico para o exterior e o tombamento de acervos e coleções (e não só de monumentos arquitetônicos). 197 Corte africano é um talhe côncavo que toma toda a extensão do rosto humano, de alto a baixo. Neste corte dominante se inserem os olhos, a boca e o nariz, numa forma variável de soluções indicativas. Quando o corte africano aparece associado à solução de nariz-eixo, as peças alcançam uma proximidade maior ainda com as peças autênticas da escultura afro-negra, […]. O que caracteriza a solução nariz-eixo é a marcação de uma linha vertical de simetria, que domina o conjunto, deixando um pequeno espaço para indicação do queixo e da boca. (SAIA, 1974, p. 41). Assim, se para Baccaro, precisamos nos esforçar, por exemplo, para ver um nariz em uma cabeça e o problema colocado para o santeiro é basicamente “trabalhar o essencial”, com Saia têm-se elaborações que aproximam o problema do escultor dos milagres das saídas utilizadas no mundo da arte. Em vista disso, o que na descrição de colecionador aparece como esboços de nariz e boca feitos por um santeiro apressado, no olhar de Saia é solução técnica. O arquiteto se distancia da noção de arte popular associada ao passado e ao pitoresco para atrelá-la a uma forma de criação particular e engenhosa, sem esquecer de sua finalidade ritual. O ex-voto de Saia, nessa perspectiva, é praticamente uma peça moderna de design, que une utilidade prática à preocupação estética. A reflexão sobre a criação popular associada à satisfação de necessidades cotidianas foi amplamente explorada pela arquiteta Lina Bo Bardi137 em iniciativas tais como a exposição A mão do povo brasileiro, realizada no Museu de Arte de São Paulo (MASP) em 1969. Ao atuar como curadora da mostra que ocupou o emblemático prédio por ela projetado, Lina se valeu de caixotes de madeira barata como suportes expográficos e povoou-os de “objetos de uso, utensílios da vida cotidiana. Os ex-votos foram apresentados como objetos necessários e não como “esculturas”, as colchas são colchas, os panos com aplicação são “panos com aplicações”, […]. (BO BARDI, 1994, p. 33). A verdadeira imagem do Nordeste estaria nesses objetos e não naqueles que, mesmo sendo provenientes dessa região, teriam sido transformados em “arte pela arte” num processo de “alienação artística” conduzido pela elite e seus doutores, visando tornar palatável a arte dos miseráveis. Sendo assim, o desenho curatorial da exposição não deixou de considerar a literatura de cordel e a cerâmica de Caruaru, mas não lhes dedicou destaque. Para Bo Bardi, o objeto feito à mão não necessariamente deveria ser mais estimado do que o feito à máquina. A industrialização em curso no país só poderia ser vista como ameaçadora para os preocupados em conservar ao invés de estimular possibilidades criativas originais passíveis de desenvolvimento inclusive com métodos e materiais modernos. 137 * 1914, Roma, Itália † 1992 São Paulo, São Paulo. 198 Na perspectiva da arquiteta ítalo-brasileira – fortemente influenciada pelo impacto de iniciativas europeias de cunho nacionalista e autoritário – o folklore seria uma forma de colocar certas produções em seu devido lugar, ou seja, na periferia e, portanto, um agente ativo na “petrificação” da inventividade. O balanço da civilização brasileira “popular” é necessário, mesmo se pobre à luz da alta cultura. Este balanço não é o balanço do folklore, sempre paternalisticamente amparado pela cultura elevada, é o balanço “visto do outro lado”, o balanço participante. É o Aleijadinho e a cultura brasileira antes da Missão Francesa. É o nordestino do couro e das latas vazias, é o habitante das vilas, é o negro e o índio. Uma massa que inventa, que traz um contribuição indigesta, sêca, dura de digerir. (BO BARDI, 1994, p. 12). Apesar da alegada indigestão, a presença da arte popular pouco a pouco estava se consolidando no circuito das artes plásticas. A pertinência estética dos objetos foi inclusive chancelada por notáveis colecionadores e marchands, que ao incluírem certas produções em suas coleções particulares e galerias, junto com Aleijadinhos e afins, ampliaram o escopo de interesse por obras populares. Segundo Maria Lúcia Bueno (2005), o mercado de arte brasileiro inicialmente estruturou-se como comércio de bens de luxo e de artigos raros garimpados no interior do país: móveis antigos, estatuária barroca e objetos de arte popular. De acordo com a autora, “o núcleo de colecionadores responsável por um comércio regular era quase todo de estrangeiros de origem judaica. O quadro só se modificou na virada dos anos 70, com a consolidação do capitalismo no País, quando surgiu a figura do comprador de arte brasileiro.” (BUENO, 2005, p. 39). Lina e seu marido, Pietro Bo Bardi, são figuras importantes desse universo que estrutura o mercado de arte no país. O casal de origem italiana veio para o Brasil após Pietro138, crítico e historiador de arte, ser convidado pelo mecenas e colecionador milionário Assis Chateubriand para criar o MASP. Pietro foi diretor do museu por quase 30 anos e também desenvolvia atividades de comercialização de arte em uma galeria. O italiano Giuseppe Baccaro – que abordamos acima enquanto proprietário da coleção de ex-votos nordestinos que figurou na primeira exposição exclusivamente dedicada aos milagres em um museu de arte – veio para o Brasil em 1950 para trabalhar na organização de bienais e, assim como muitos outros europeus que fixaram residência no Rio de Jane iro e em São Paulo durante e no pós-Segunda Guerra Mundial, participou da institucionalização do mercado de artes. Baccaro foi criador de uma importante galeria e casa de leilões de São Paulo. As exposições dos milagres nordestinos em museus de arte moderna são indicativas da afinidade destas instituições com o mercado de arte que paulatinamente se desvencilhava da imagem do antiquário para oferecer formas estéticas inovadoras como bens de consumo. 138 * La Spezia, Itália, 1900 † 1999 São Paulo, São Paulo. 199 5.2.3 Outros encontros com os milagres Como nos conta James Clifford (1996), no início do século XX, o manancial de novas formas e valores foi visto pelos europeus na África, na Oceania e na América. O acentuado interesse pelo outro uniu artistas, amantes das artes e etnólogos a ponto da pesquisa de campo desses últimos ser financiada por mecenas interessados na ampliação das coleções francesas. A produção dos chamados povos primitivos passa então a incrementar não só os depósitos dos locais de guarda e exposição de material de estudo, mas também a nutrir o ans eio dos artistas – principalmente os surrealistas – por inspirações alheias aos dogmas e à censura. A vanguarda buscou romper com as convenções ocidentais explorando elementos inversos à lógica – o sonho, a loucura, a alucinação, a embriaguez, o transe – tidos como formas de acesso privilegiado à realidade profunda do ser humano. Pablo Picasso139, em depoimento a André Malraux (1974), contou: Todo o mundo costuma falar das influências que os negros tiveram sobre mim... Quando fui ao velho [museu do] Trocadero... Estava sozinho. Queria ir embora. Porém ficava, ficava. Compreendi que aquilo era algo muito importante. Algo me acontecia de verdade? As máscaras não eram como as outras esculturas. Em absoluto. Era algo mágico... Intercessoras, mediadoras. Estavam contra tudo, contra os espíritos desconhecidos e ameaçantes. Seguia mirando os fetiches, e compreendi: eu também estou contra tudo. Também acredito que tudo é desconhecido, que tudo é inimigo. Tudo! Não os detalhes – as mulheres, os meninos, o tabaco, brincar – mas tudo. (MALRAUX, 1974) Já no Brasil, a procura por outras formas de expressão plástica foi colocada – principalmente pelos modernistas – como uma forma de descobrir nós mesmos. O Nordeste e sua religiosidade, como visto ao longo desta tese, avulta-se nesse cenário como um reservatório de formas abstratas e figurativas simbólicas. Os ex-votos, nesse quadro, são objetos que confluem perfeitamente para a empreitada então em voga: perturbar a imagem privilegiada de ordem consubstanciada por um organismo íntegro. O corpo fragmentado em milagres, os chamados ex-votos anatômicos, são nossos equivalentes plásticos das máscaras que tanto impactaram Picasso e outros espectadores: Nos primeiros ex-votos que vi achei graça. Era a forma de que minha confusão se vestia. Os sucessivos, vistos sempre em equilíbrio sobre prateleiras caseiras ou até mesmo televisores, começaram a comover-me. Não achava mais graça nesta apresentação sub-decorativa de um objeto explicitamente trágico. Foi com esta participação afetiva que veio surgindo a compreensão dos “milagres” com 139 * Málaga, Espanha, 1881 † Mougins, França, 1973. 200 fenômeno de outra ordem. Reparei que o ex-voto conseguia “neutralizar” qualquer objeto de uso ornamental ao seu redor. Acompanhado a potes balangandãs cerâmicas vitalinos entalhes muranos pratarias carajá s - ou a qualquer outra peça do arsenal decorativo “à la mode” - logo os relegava àquela função pela qual a presença vale apenas por ocupar um lugar, encher um espaço. Enquanto isso, o “milagre” dava provas tamanhas de vida outra, que me obrigava a mudá-lo de lugar, a isolá-lo numa parece, num pedestal... E lá do alto, continuava a ditar certa lei, a querer uma séria organização do espaço em volta. Percebi que saía de si mesmo. Como as obras de grande escultura - que não precisam necessariamente ser grandes no tamanho para parecer esculturas - um palmo de madeira marcado pela mão do santeiro conseguia as vezes preencher dimensões de monumento, “pesava” absurdamente em qualquer plano. […] Era uma experiência fascinante, e catei ex-votos toda vez que quis repeti-la do começo. […] Das paredes desta exposição, quatrocentas esculturas nos condenam. (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965, [s.p.], grifo meu). As esculturas que tanto impressionam e agem sobre o espectador, diferentemente de vitalinos, não contêm em sua descrição nada que possa relacioná-las aos seus produtores. Na exposição Ex-votos do Nordeste – Coleção Giuseppe Baccaro, os milagres são então mostrados sob a rubrica de quem os “catou” e ofereceu para exposição pública, um colecionador. Na direção oposta ao enfatizado anonimato dos produtores de milagres, algumas séries de obras relativas aos ex-votos são imediatamente atribuíveis a artistas (ao menos por parte de quem tem o olho minimamente versado na história da arte brasileira). Os milagres do sertão são uma constante na obra de diversos artistas que, desse modo, “catam” os ex-votos de forma diferenciada, a saber, tornando-os índices seus respectivos trabalhos. O ex-voto é praticamente um emblema da obra de Antônio Maia140, que inicialmente pinta o objeto votivo – em sua maioria, cabeças – em meio a outros elementos religiosos e pouco a pouco „destaca-o‟, num exercício de simplificação chamado de abstracionismo informal: “Maia transforma o ex-voto em símbolo, abstratizando-o, despojando-o de todo o pitoresco para concentrar-se apenas em sua tradução expressiva.” (LEITE, 1988, p. 300). Mário Cravo Neto141 também associou seu nome aos objetos votivos ao realizar a série fotográfica Ex-voto, na qual retrata as esculturas de modo a explorar os relevos e entalhes com o uso da luz. Farnese de Andrade, que já citei no capítulo 3, usou os ex-votos de modo reiterado em seu trabalho. Em suas obras expostas em círculos artísticos das grandes cidades, Farnese declaradamente utilizou elementos de suas memórias de infância vivida em contexto de Catolicismo interiorano, assim como o pintor Antônio Maia e o fotógrafo Mario Cravo Neto. 140 * Carmópolis, SE, 1928 † Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008. 141 * Salvador, Bahia, 1947 † idem, 2009. 201 Dentre os artistas citados, entretanto, Farnese é o único que se apropriou e manipulou as obras em si, ao passo que os demais recriaram em outros suportes as esculturas que lhes inspiraram. O artista comprava as imagens de santos e ex-votos de madeira em antiquários, já que em 1960, quando começou a utilizar esses objetos em suas obras, eles estavam em moda como decoração e estava difícil encontrá-los “ao acaso” (COSAC, 2005). As imagens de gesso, por sua vez, eram recolhidas de despachos e oferendas que Farnese encontrava ao longo da orla carioca na qual fazia constantes caminhadas. As oferendas são objetos ou arranjos de objetos destinados a entidades das religiões de matriz africana. O termo despacho designa oferendas propiciatórias realizadas no espaço público, bem como o que deve voltar para a natureza após utilização ritual nos terreiros e em rituais privados142. O gesto de despachar pode significar, portanto, ofertar para uma entidade ou lidar de maneira adequada com o que já foi ofertado. Por ser constituído por coisas oriundas dessas práticas religiosas, o trabalho de Farnese é visto em associação com as ideias de objet trouvé e ready made. A primeira diz respeito ao reconhecimento, por parte do alguém, de qualidades estéticas em coisas encontradas fora dos circuitos artísticos. A “descoberta” é exposta e submetida à apreciação como obra de arte após sofrer pouca ou nenhuma alteração (CHILVERS, 2007, p. 383). Já as coisas ready made são artigos em massa, selecionadas ao acaso e sem o exercício do gosto, como salientou Marcel Duchamp (CHILVERS, 2007, p. 438). Nota-se que tais ideias também são potentes para pensarmos o trânsito de objetos rituais para o âmbito das coleções que temos colocado em perspectiva. As imagens recolhidas por Farnese já haviam passado pelo processo recomendado de „descarte‟: o despacho. Já os ex-votos eram oriundos de uma zona de mercantilização para o qual esses objetos são atraídos por serem esteticamente significativos, movimento que os desvia de sua utilização ritual enquanto parte da exposição dos feitos de um santo. Tal exposição nas salas dos milagres não é permanente e também envolve debates sobre a destinação ideal. No próximo capítulo analisaremos mais detidamente as formas de encaminhamento dos ex-votos após a deposição e a exposição nos santuários onde são ofertados. Nesse ponto da análise cumpre continuar explorando como os encontros de pesquisadores, artistas e colecionadores com os ex-votos são decisivos para que tais objetos, já investidos de funcionalidade estética e expositiva em seu loci rituais, sejam atrelados a outros sujeitos e contextos criativos. 142 De acordo com Mariana Renou (2011, p. 166): “As oferendas devem ter um destino específico, na própria “natureza”. O ideal é que “oferenda” e “natureza” se fundem harmonicamente e conservem o equilíbrio e o estado das forças de ambas. […] Se o ritual já passou e as divindades já receberam, ainda assim temos elementos que vieram da própria “natureza” compondo a oferenda, que foram preparadas ritualmente transformando-se em outras coisas, compostas de outras forças e possibilidades.”. 202 Ao invés de esculpido, o milagre também pode ser pintado sobre a madeira. Luís Saia relatou ter “topado” com ex-votos desse tipo no litoral da Paraíba e da Bahia (SAIA, 1944), ou seja, o encontro com as chamadas “tabuinhas votivas” contendo cenas milagrosas não se deu no âmbito do sertão. Os ex-votos pictóricos presentes na literatura dizem respeito a uma prática difundida por portugueses, que teria encontrado condições de difusão, sobretudo, em Minas Gerais e na Bahia. Por isso, os quadrinhos são tradicionalmente tomados como registros históricos visuais de uma prática votiva herdada da Metrópole. A colecionadora Márcia de Moura e Castro relata seu encontro com as peças: Quando iniciei minhas andanças pelo interior de Minas Gerais encontrei, por acaso, na sacristia de uma capela antiga, uns pitorescos quadrinhos que desde logo despertaram meu interesse, tanto pelos temas como pela espontaneidade do traço. […] Pelas datas assinaladas verifiquei que alguns deles estariam ali esquecidos há mais de dois séculos. Desde então tenho-me dedicado a procurar e estudar esses ex-votos sob diferentes ângulos: como expressão da arte popular, como fato histórico e como fenômeno religioso.” (CASTRO, 1994, p. 9, grifo meu). Lélia Coelho Frota (1981, p. 24) observa que a nomenclatura milagre era utilizada em Portugal devido à fórmula inicial das legendas dos ex-votos pictóricos: “Milagre que fez [o santo tal]”. O brasileiro manteve a nomenclatura e continuou a pintá-los de acordo com a “tipologia ibérica”, que se distribui em três planos: No terço inferior, a legenda com o nome do miraculado e as circunstâncias e data em que ocorreu o milagre; no terço médio, a figura do miraculado em seu quarto, preferencialmente deitado em posição pré-mortuária; no plano superior, em geral à direita, a representação da divindade propiciadora da graça. (FROTA, 1981, p. 43). Os exemplares brasileiros apresentam a mesma disposição de elementos do quadro, o mesmo processo de pintura à têmpera sobre madeira, uma configuração arcaica que teria sido abandonada desde o século XV pelos pintores europeus. É justamente esse caráter arcaico que interessa Clarival do Prado Valladares, pesquisador de Manifestações genuínas do comportamento arcaico brasileiro, cujo fenômeno “epígono” seria o estilismo praticado por nomes, como Alfredo Volpi, Rubem Valenti e o já citado Antônio Maia, artistas que tinham como clientela colecionadores interessados em estilos individuais. Os ex-votos pictóricos, diferentemente disso, eram obras genuínas feitas para o atendimento de propósitos devocionais. Em seu estudo sobre os ex-votos da sala dos milagres da Igreja do Senhor do Bonfim na Bahia, Valladares (1967, p. 15) coloca em evidência as peças que mais o “impressionaram, por uma qualidade artística ou por alguma razão de ordem científica” e as obras foram observadas em duas oportunidades: 1939/1940 e 1960/1961. 203 Valladares (1967) descreve alguns dos quadrinhos com desenho ou pintura oferecidos pelos devotos aos santos, a partir da transcrição do texto original contido no objeto e de um verdadeiro diagnóstico da imagem: 1) Milagre feito pelo Senhor do Bonfim ao Ten. José de Bittencourt Berenguer Cezar Jr. que levou um tiro no dia 12 de agosto de 1855 pelas 3 horas da tarde no lugar denominado Pau Pombo no cam° da Feira de Santa Anna. Quadro a óleo assinado por J. G Tour° Sª. Homem branco, cabelos castanhos partidos do lado direito, bigode e cavanhaque, olhos azuis, conformação facial pentagonal, nariz fino e pouco adunco. Constituição de mínimo desenvolvimento muscular. Pose: o retratado está em atitude ântero-lateral esquerda, sentado, de busto nu, braços cruzados, sendo que o direito apóia o esquerdo. Traja calça de sêda azul-cinza. No espaço escápulo-umeral esquerdo, entre o bordo externo do homoplata no seu ângulo externo superior, está pintada, em côres quase reais, uma ferida perfurante circular com necrose hemorrágica em volta e extensão de uns 12 cm de diâmetro. O ferimento revela bordos assimétricos, irregulares, perda de substâncias e pouca secreção purulenta no centro. (VALLADARES, 1967, p. 45, grifo meu). Importante indicar que um dos elementos do diagnóstico é a assinatura do riscador de milagre. O olho que busca tira o artista do anonimato é, mais uma vez, literalmente clínico 143. Clarival Valladares nasceu na Bahia e formou-se como médico no Recife, onde atuou também como auxiliar de pesquisa de campo de Gilberto Freyre, como é apontado na orelha de seus livros. Em seu trabalho sobre a sala dos milagres localizada em Salvador, citada acima, o médico-crítico de arte não explica o baixo número de milagres de madeira em forma de cabeça como um retrato da pouca incidência de moléstias nessa parte do corpo, tipo de leitura frequente por parte de pesquisadores oriundos da área da saúde que observam as exposições de ex-votos como mananciais iconográficos das patologias locais144. A presença pouco expressiva das cabeças, de acordo com Valladares, se devia à menor frequência das ofertas tridimensionais na capital em relação ao interior; afirmação que reforça que os ex-votos esculpidos são milagres do sertão. O autor também menciona a “cobiça” gerada pelo valor escultórico dessas peças. Àquela altura, os ex-votos em questão já eram “mais facilmente vistos nas prateleiras dos colecionadores do que aos pés do santo.” (VALLADARES, 1967, p. 20). Na década de 1960, os milagres estavam migrando das salas dos milagres para as salas das casas das pessoas, como já abordei. Os dizeres do autor confirmam o trânsito em pauta e acrescentam que o movimento transformava os objetos de devoção não apenas em itens de decoração, mas também de coleção. 143 Na trilha de Ginzburg (1989), sabemos que o treinamento em Semiótica Médica é um recurso que qualifica pessoas como connaisseurs de arte. Eduardo Etzel, cujas considerações sobre a imagem sacra brasileira foram amplamente utilizadas em capítulos anteriores, também era médico. 144 Ver, por exemplo, Monsempes (1977). 204 Apesar do caráter de genuinidade atrelado aos ex-votos pictóricos, na opinião de Valladares (1974), o comportamento arcaico brasileiro ganha corpo, sobretudo, na escultura religiosa produzida no período colonial e nas reminiscências grupais e regionais ainda existentes145. Nesta perspectiva, entende que “nossos mestiços do sertão arcaizaram os protótipos barrocos importados da imaginária católica” (VALLADARES, 1974, p. 64), num comportamento oposto do raciocínio lógico, premissa inevitável do comportamento clássico. No arcaico, a ideia do divino é um valor absoluto e concreto, comandatário de toda a sociedade. Ninguém é obrigado a raciocinar, enquanto todo mundo submete seu destino ao sobrenatural. Cada um é obrigado a crer, aceitar e apelar para o desconhecido e, em função desse relacionamento, os objetos de culto, de devoção e de crenças são feitos sob características distintas. (VALLADARES, 1974, p. 63, grifo no original). Um aspecto marcante apontado pelo autor nas peças arcaicas é a frontalidade excessiva, a rigidez e o rigor simétrico, que as torna hieráticas, “virtualizando soberania” e Valladares (1974) ressalta que [os ex-votos do sertão] têm um atributo caracterizador que é o hieratismo da figura, sempre submetida a relevante contrição. Não é correta a informação de que o ex-voto do sertão seja apenas uma escultura primária, destituída de expressividade. A contrição naquela excessiva gravidade é o ponto de aferição entre a figura humana e o seu relacionamento ao sobrenatural. (VALLADARES, 1974, p. 65, grifo no original). Para o autor, “o olhar posto no absorto”, a contrição e o hieratismo contido na expressividade dos ex-votos confere-lhes um caráter diferenciador e, por isso, “ninguém confunde uma cabeça de santo com uma de ex-voto, nem esta com a de um manequim.” (VALLADARES, 1974, p. 66) A constatação de Valladares depõe contra o relato do encontro de Saia com o milagre atrás do altar, que ao deparar-se com uma cabeça de madeira julgou tratar-se parte de um santo de roca146 (SAIA, 1944, p. 9). Entretanto, a opinião de ambos conflui na exclusão do trabalho dos santeiros na feitura dos objetos votivos. Valladares infere que, em algumas situações, o próprio devoto improvisa uma peça tosca; que em outros recorre a um carpinteiro que “tem estoque aguardando promessa indistinta: uma cabeça, uma perna, a mão direita ou esquerda, uma cabeça de cavalo ou burro, uma pata dianteira ou a traseira” (VALLADARES, 1974, p. 65); e por fim, que algumas peças de significativa “correspondência ao acontecimento patológico de feridas, tumores, abscessos, barriga-d'água, hérnias, ferimento a bala ou a faca” (VALLADARES, 1974, p. 65), provavelmente, decorrem de encomenda a partir de relato. A alusão a carpinteiros e marceneiros especializados não é acrescida de outras informações sobre esses produtores de ex-votos. 145 Obras de imaginária católica, imaginária sincrética de cultos africanos, incluindo objetos litúrgicos, ex-votos esculpidos em madeira ou modelados em barro, carrancas das barcas de remeiros do São Francisco, arquitetura popular (casas sertanejas, igrejas, capelas, túmulos) e, eventualmente, alguns exemplos da cerâmica nordestina. 146 Cf. tópico 5.2.1 do presente capítulo. 205 5.3 QUEM É O AUTOR DO MILAGRE? A arte dos ex-votos Ao contrário da imaginária católica que, mesmo estilizada, constitui sempre uma representação naturalista de um todo necessariamente completo, a escultura de milagres tem características plásticas que revelam nítidas marcas de sua origem afro-brasileira. Por um lado, seus canônes estéticos traduzem uma concepção de representação própria às culturas africanas, sendo criados com base em um compromisso com um esquema representativo, e não com a reprodução de um modelo. Trata-se de um esquema simbólico que, partindo de elementos mais ou menos fixos e invariáveis, apresenta no entanto uma variedade infinita de interpretações plásticas. Por outro lado, algumas de suas soluções técnicas são também constantes na escultura africana: o corte transversal da figura; o nariz que, alongando-se, torna-se o eixo diretor do conjunto, o reducionismo “cubista” que leva a uma simplificação purista das formas a serem representadas de maneira simbólica, o olho em baixo relevo, a fixação ideográfica de detalhes como olho, sobrancelha, orelha; a pintura utilizada não como cópia da natureza, mas para marcar como representação esquemática a noção que se deve fixar, como as doenças da pele, que são assim representadas. Por fim, a predominância da representação da cabeça nos ex-votos associa-se à concepção corrente entre as culturas ditas “primitivas”, não-ocidentais, de que a doença, sempre causada por um agente externo maléfico, não precisa manifestar-se em uma parte específica do corpo, mas pode atingir de um modo geral a saúde e a vida de uma pessoa, como no caso da loucura, ou mesmo do mau-olhado e das desgraças, igualmente considerados como doenças e tratados como tais. São essas características plásticas que revelam nos milagres não a influência da devoção da tradição católica, mas uma expressão de sagrado que deriva de um imaginário afro-brasileiro. O texto acima foi copiado de um painel que acompanha a exposição permanente da coleção de ex-votos do Museu Afro-Brasil, localizado no Parque do Ibirapuera, em São Paulo - SP. Como se pode notar, trata-se praticamente da transposição de trechos do texto de Saia (1944), que relaciona a escultura de santos à representação de um conjunto orgânico necessariamente completo, de caráter naturalista; ao passo que os ex-votos são representações esquemáticas e estilizadas do modelo, no caso, o corpo humano. O pressuposto em torno da escultura de imagens como figuras de corpo inteiro pode ser relativizado, haja vista que no capítulo 1 abordei os santos que não possuem todo o corpo esculpido, chamados de imagens de vestir ou de roca. Como já foi comentado, a propósito, quando Saia encontrou um milagre pela primeira vez imaginou tratar-se da cabeça de um santo desse tipo. Além dessa possibilidade de complementação do corpo da imagem com elementos não escultóricos (gradeado de ripas, tecido, cabelo etc.), há que se mencionar que a representação antropomorfa parcial pode ser santificada como tal. No interior do estado de SP ocorrem dois fenômenos significativos nessa seara. Uma perna de cera – formato e material muito recorrente nas Salas dos Milagres – é louvada em uma capela como Santa Perna (FRADE, 2006). O objeto em questão foi encontrado no rio Paraíba, tal qual Nossa Senhora Aparecida, Padroeira do Brasil. Uma cabeça encontrada no rio Tietê por dois pescadores é cultuada em Cachoeira Paulista como Santa Cabeça. 206 Mesmo excluindo o recurso a esses cultos não tão comuns a partes do corpo, pode-se ainda questionar a ideia do santo como conjunto orgânico completo a partir das próprias peças “colhidas” por Saia. Os estudiosos da coleção de Mário de Andrade colocaram em dúvida, por exemplo, a inventariação de um menino em madeira e cera como sendo uma imagem. São fortes as indicações de que se tratava de um ex-voto ou de um atributo de imagem reaproveitado e trabalhado para função votiva (BATISTA, 2004, p. 52 e 264). O esquematismo e a estilização também não são observáveis em todas as cabeças enviadas para Andrade, uma vez que algumas obras apresentam soluções realistas. O fato é que o reconhecimento de qualidades estéticas nos milagres realizado por Saia pode ser visto como o início de uma cadeia que torna estudiosos inventores do s ex-votos enquanto obras que encerram soluções plásticas negras e mestiças. Os cânones da estética sertaneja encontrada nos objetos votivos e que passa a ser evidenciado nas exposições são, principalmente, o “corte africano” – que ecoa a partir do texto do pesquisador da Missão – e o “hieratismo da figura” – tematizado por Clarival Valladares. Nessa direção, me surpreendi quando Antônio Marques me apresentou, em dos cômodos da sua casa de Cotovelo, em que guarda ex-votos, um boneco de João Redondo. Olhe como esse boneco é criação da mesma artista que fez esse ex-voto, Dadi. Ela colocou esse cabelo [cacheado, em material sintético], coloriu os olhos e a boca, juntou a roupa, que forma esse corpo tipo uma luva por onde se coloca a mão para movimentar o boneco e então temos um objeto para outra finalidade, o manulengo, que no teatro típico daqui é chamado de João Redondo. Essa apresentação foi inicialmente surpreendente por abordar uma expressão autoral, ou seja, associada a uma artista reconhecida pela particularidade do seu trabalho e não apenas a uma noção geográfica e cultural. Não se tratava de um boneco de João Redondo “do sertão” ou “do Nordeste”, mas sim de uma criação de Dadi 147, mas o mais inusitado foi ser confrontada com um ex-voto com a mesma expressão de um personagem de teatro, pois no senso comum e nas leituras informadas pelos autores tratados acima, o milagre é associado mais imediatamente ao sofrimento e o boneco à alegria e à diversão. No contexto potiguar, entretanto, as imagens feitas para provocar o riso não são entendidas como completamente separadas das representações sacras. As cômicas e paródicas apresentações de bonecos de João Redondo também são chamadas de “presepadas”. Esta expressão as relaciona diretamente aos presépios e suas possibilidades dramatizadas de representação (por pessoas e imagens) e celebração (os pastoris, espetáculos do ciclo natalino) do nascimento de Jesus (PEREIRA, 2010). 147 * Jaçanã, Rio Grande do Norte, 1938. 207 A continuidade entre o ex-voto e outras obras também foi mostrada por Antônio Marques a propósito das peças tematizadas no início deste capítulo (vide pranchas do tópico 5.1) e, ainda, pelas peças feitas por Teodora, irmã de Julio Cassiano. De acordo com o que o colecionador me explicou, é raro que ex-votos tenham pedestal porque eles não são feitos para exposição tal qual nós concebemos. Por isso mesmo, é mais frequente que esses objetos contenham um prego ou aro de metal em sua face posterior ou superior ou ainda orifícios que possam ser atravessados por cordão para que possam ser pendurados nas salas dos milagres. Já a maioria das imagens é fabricada pelos próprios artistas sob bases que propiciem sua exposição vertical sobre algum suporte (geralmente um altar). O acréscimo de pedestal ao milagre que tem a forma, vestimenta e gestualidade profana e nada hierática de uma menina é justificado para que a peça em questão possa ser exposta tal qual a imagem que porta atributos iconográficos, panejamento anguloso e postura de uma figura esculpida para remeter à sacralidade de uma santa. Ademais, acrescentou Antônio Marques, caso necessário o pedestal octogonal de cor neutra – fabricado sob encomenda e juntado à peça por um santeiro de sua confiança – pode ser retirado sem danos à obra. Figura 56 – Imagem de santa e ex-voto de figura feminina de autoria de Teodora, coleção de Antônio Marques Figura 57 – Face posterior da imagem de Santa Luzia de autoria de Teodora, coleção de Antônio Marques Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 A imagem em questão é Santa Luzia. Seus cabelos são partidos ao meio e penteados em mechas. A indumentária é composta de manto com florões que se abre sobre a túnica longa com delicados detalhes dourados, que deixa aparecer apenas a ponta dos sapatos da santa. Já as vestes da figura feminina utilizada como ex-voto são pouco solenes. Não cobrem toda a extensão dos membros superiores e inferiores. O caimento da blusa indica a anatomia dos seios. O cabelo é preso em um simples rabo de cavalo. A despeito dessas diferenças, suas feições apresentam o mesmo esboço de sorriso, nariz largo, sobrancelhas finas e compridas sobre olhos expressivos e caídos. 208 As „aulas‟ com as referidas obras tornaram indubitável o fato de alguns milagres serem produzidos pelos mesmos escultores e escultoras que deram forma a imagens. Além disso, nessas situações, Antônio me alertava que se eu olhasse com atenção poderia perceber familiaridades entre as imagens de diferentes santeiros que são indiciárias de parentesco entre eles. As esculturas de Teodora, por exemplo, são bastante bojudas se comparadas às peças esguias de seu irmão Julio Cassiano. Ambos, entretanto, conferem expressões faciais às imagens que parecem se ressoar, além de utilizarem o mesmo colorido e Figura 58 - Antônio realizando comparações formais e iconográficas entre imagens de sua coleção acabamento nelas. Foto: Acervo da autora, jan. 2013 A semelhança entre obras produzidas por diferentes artistas em uma mesma oficina pode ser intencional, como já abordei. O aparentamento das peças de Julio, Teodora e de outra irmã deles, Paulina, é de certo modo, compreensível, devido ao parentesco e ao fato de terem aprendido o ofício com tios que trabalhavam como imaginários. Entretanto, certas similaridades muito sutis não deixam de ser intrigantes considerando que ele sempre produziram a partir de cidades diferentes. O trio de irmãos exerceu o ofício de santeiros quando esta atuação já alçava os fazedores de imagens à condição de artistas. A produção da caçula dentre eles, Paulina, inclusive não é policromada, seguindo a lógica de „nordestinização‟ dos corpos de santos a qual o mercado condicionava a aceitação da produção desses escultores. Figura 59 – Prancha com bases de imagens “assinadas”, coleção de Antônio Marques Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 Diante dessa integração ao circuito de arte popular, é curioso que esses artistas comercializassem peças nas quais não imprimiram seus nomes: os milagres. As razões para a ausência de “assinatura” nessa parte específica da produção de esculturas não são objeto de consenso. 209 Para pensar a respeito, é interessante direcionar o foco para a exposição Liturgias Contemporâneas – Farnese de Andrade e os ex-votos, realizada em 2012 no Museu Casa do Pontal, no Rio de Janeiro. Ao propor o diálogo entre arte popular – carro-chefe da instituição – e a arte contemporânea de Farnese de Andrade – que se conectava com o acervo da Casa do Pontal por meio da participação de ex-votos, a iniciativa envolveu uma seleção de obras feitas por Farnese de Andrade nas quais alguns objetos votivos, conhecidos como ex-votos, são apropriados pelo artista, tornando-se parte de sua composições […] e 141 ex-votos da coleção do Museu Casa do Pontal, procedentes de Canindé/CE, de autoria desconhecida. (MASCELANI, 2012, p. 7 - 8, grifos meus). Muitas das obras de Farnese são realizadas a partir de diferentes objetos. Além das imagens de santos e ex-votos, cuja utilização por parte do artista já mencionei em outras passagens da tese, suas montagens incluíam ainda oratórios, gamelas, bonecas, armários, gavetas e caixas. Sendo assim, ao longo da exposição, não era difícil reconhecer as composições de autoria de Farnese, geralmente constituídas por mais de um objeto. Entretanto, artifícios expositivos utilizados em certos módulos – como a disposição lado a lado e sem etiquetas de identificação de obras do artista e do acervo da instituição – provocavam uma intencional dificuldade de reconhecimento de autoria. O campo da arte, nos dizeres da antropóloga e curadora da exposição Ângela Mascelani (2012, p. 91) é, “campo instaurador, por excelência, de sacralidades contemporâneas”. Sendo assim, a dessacralização do objeto decorrente de sua retirada de um contexto ritual não deixa de ser uma forma de transfigurá-lo para sacralizá-lo de outra maneira, ou, em termos colocados anteriormente, “artificando-o”. Diante do exposto, penso que a artificação em questão consagra os acasos que levam à formação de coleções de ex-votos. De acordo com Mascelani (2012), a aquisição da coleção da Casa do Pontal – formada pelo colecionador francês Jacques Van de Beuque – se deu de maneira “fortuita” (MASCELANI, 2012, p. 8-9)148 e peças dessa coleção, como foi dito acima, foram conjugadas com as obras de Farnese. A alusão aos objetos coletados na orla pelo artista aparece em um dos módulos da exposição no qual a imagem do mar em movimento é projetada sobre um painel côncavo. À frente desse painel foram dispostos dois módulos, e sobre cada um deles um ex-voto de corpo inteiro em madeira, que pareciam ser banhados pelas ondas que iam e vinham. 148 Em sua tese de doutorado (MASCELANI, 2001, p. 131), a autora menciona que o colecionador de arte popular e criador do Museu do Pontal recebeu autorização do Arcebispo de Canindé para formar o que seria sua primeira coleção expressiva. 210 A imagem do mar quebrando na praia, tanto cobrindo quanto desvelando, é uma metáfora significativa para a reflexão sobre os colecionadores e seus achados, pois a ideia de que os objetos vão até as pessoas é muito reiterada nesse universo. As intenções, esforços e „redes de pesca‟ utilizadas para retirar as coisas de seus fluxos tendem a ser ocultadas, ao passo que os encontros inesperados são ressaltados. Antes de se identificarem como buscadores, portanto, os colecionadores tendem a se autorreferir como afortunados. Alguns encontros são vistos como desanimadores, pois são circunstanciais. Outros, tidos como significativos – apesar de derivarem das “procuras mais indiscretas”, como disse Saia – também são atrelados ao acaso. Ao tematizar as buscas de objetos para a atividade dos surrealistas, Eliane Robert Moraes (2002) explora o “acaso objetivo” como um dos pilares da atividade desses artistas: O acaso passava a ser produtor de um sentido, posto que surpreendido por um desejo anterior ao próprio encontro que, por fim, viria a objetivá -lo. […] O acaso objetivo obedeceria, assim, às mesmas leis que presidem à organização dos sonhos, colocando igualmente o sujeito em comunicação misteriosa com o mundo. (MORAES, 2002, p. 42-43). Para a manipulação dos ex-votos que venho analisando, os “acasos objetivos” se fazem presentes quando não nas exposições em museus de arte, nos materiais gráficos relativos a elas. As narrações em torno dos encontros com os objetos votivos em textos anteriores ao impacto das ideias surrealistas no mundo artístico e intelectual não envolvem a produção de um vínculo traçado de antemão pelo destino. Thomas Ewbank (1976), por exemplo, esteve em diversas igrejas por ocasião de sua visita ao Rio de Janeiro em 1846 e descreveu, com a minúcia peculiar a certos viajantes, a respeito da constante presença dos ex-votos nas igrejas. Ewbank declara abertamente que estava em busca dos objetos e pedia para ver sacristias, pois haviam lhe dito que em toda igreja podiam-se ver, em maior ou menor número, ofertas votivas por curas milagrosas. O encontro com peças em altares e em quartos atrás deles, portanto, não é nada casual. Já naquele período, o viajante observou que as ofertas dos devotos estavam sendo afastadas dos altares: Soubera que, embora anteriormente fossem pendurados nos altares, tais objetos eram agora restritos às sacristias e corredores laterais. […] [nos fundos da igreja de São Francisco de Paula] A cerca de três metros do soalho, estendem-se longas vigas de madeira, nas quais as ofertas estão suspensas por meio de cordões e fitas. Existem aqui quarenta e nove placas votivas, cada uma das quais com o nome do devoto que a ofereceu, a enfermidade que o prostou e o santo que devolveu a saúde. […] Cabeças, mãos, braços, pés, pernas, etc.; de dimensões naturais, mas moldados em cera, misturam-se com as placas. […] Os objetos eram de qualquer forma muito interessantes para serem abandonados. (EWBANK, 1976, p. 119-120). 211 Mais adiante retomo a discussão sobre a exposição de ex-votos em contextos rituais. Alguns desenvolvimentos ainda se fazem necessários a respeito das mostras nos museus de arte. A ideia de uma comunicação misteriosa com as coisas diz respeito não apenas aos contextos em que elas são encontradas, mas também naqueles onde são expostas. Vejamos algumas modalidades de comunicação da ideia em questão. Para além [da procura] de encontros fortuitos, outra reiteração observada concerne ao anonimato da produção votiva. Por conseguinte, os nomes inscritos nesses eventos artísticos e, consequentemente, nos catálogos que os registram, são os dos colecionadores que reúnem as peças, dos estudiosos que refletem sobre elas ou dos artistas que as utilizam em suas criações (atuações face aos ex-votos que podem se sobrepor). A condição de produção contemporânea é relacionada às coleções, análises e composições realizadas por tais sujeitos. Já o popular é situado fora do continuum da História da Arte, mesmo que os objetos em questão tenham sido produzidos na mesma temporalidade das obras tomadas como contemporâneas. De acordo com Mascelani (2001, p. 8-9), “os ex-votos guardam o anonimato característico deste tipo de produção, na qual o artista/escultor popular se retrai a favor do suplicante que encomendou a obra”. De fato, é preciso ter em conta que a assinatura pode confundir quem olha o ex-voto, pois existe o risco do nome do artista ser lido como se fosse o da pessoa que ofertou o objeto. Nessa direção, é comum que o devoto acrescente à peça um bilhete com seu nome, uma fotografia do tipo 3x4 ou ainda da cena associada à intervenção divina que quer ressaltar, como um acidente de carro ou uma cerimônia de formatura. Esses „acréscimos‟ reiteram os ex-votos como objetos compósitos, produtos de atos criativos que envolvem não só um autor, mas no mínimo quatro: o evento motivador da oferta, o devoto, o fabricante (e/ou artista) e o santo. É preciso ainda considerar que certos visitantes das salas dos milagres se inscrevem nas peças já ofertadas, registrando sua presença diretamente sobre as peças deixadas por outros, assim como fazem de modo mais generalizado nas paredes e outras estruturas do espaço de exposição. O nome deixado pode ser acompanhado de uma lista de familiares e outras pessoas, seja porque elas estão acompanhando quem “assina” pelo grupo no momento da visita, seja porque se pede e/ou se agradece ao santo por/em nome delas. Em um ex-voto de madeira em forma de cabeça, da coleção de Antônio Marques, pode-se perceber diversos nomes próprios, datas e mensagens, tais como “Victor 98”, “Jesus eu amo” e “Adrianna 8ª C”, “Maissa ♥ Dal”. Nesse caso, as diferentes grafias e suas tonalidades, bem como a variedade de intenções que deixam entrever tornam evidente que as inscrições foram feitas por pessoas distintas. 212 Figura 60 – Ex-voto contendo nomes Figura 61 – Detalhe do ex-voto da figura anterior contendo e inscrições diversas de devotos, inscrições diversas, Coleção de Antônio Marques Coleção de Antônio Marques Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 Se podemos falar dos fazedores de santos como santeiros é complicado tratar os fabricantes de milagres como milagreiros, afinal, para o devoto, milagreiro é o santo. Inclusive, em muitos objetos isso é expresso textualmente na fórmula “Milagre que fez [Santo tal]...”. Nessa perspectiva, o autor do milagre é o santo e os demais agentes apenas lhe conferem uma forma. A curadora do Museu Casa do Pontal também aciona a noção de tabu para explicar o anonimato das peças: “A motivação para construir e oferecer um ex-voto é sempre de ordem religiosa. Sua circulação em outros circuitos é cercada de tabu. Muitos escultores em madeira e artistas da cerâmica preferem não fazê-los, e quando os fazem, resguardam-se no anonimato.” (MASCELANI, 2002, p. 109, grifo meu). Para o colecionador, que foi meu principal interlocutor na pesquisa em Natal, abordar a questão em termos de tabu é mistificá-la. Segundo Antônio Marques, quem conhece a produção de ex-votos desde a saída deles das mãos de quem os confecciona, sabe que os objetos não são assinados porque essa produção é entendida como menor em relação à escultura de santos. A mãe de Luzia Dantas, por exemplo, esculpia brinquedos em casca de melancia para as filhas brincarem. Essas esculturas motivadas pela impossibilidade de compra de itens industrializados – uma constante na biografia dos escultores populares – não é vista como motivo de orgulho. Por isso, na linha de raciocínio do colecionador, a celebração do potencial estético da arte popular deve ser acompanhada de pesquisa que possibilite a promoção dos produtores de expressões votivas como artistas, mas nem sempre os escultores estão interessados. Antônio relatou que o artista Félix negou ter fabricado um ex-voto que inegavelmente tinha sido feito por ele. Para o colecionador, o artista não se lembrava de ter esculpido aquela peça 213 porque produziu muitas ao longo da vida, tidas como banais e nada dignas de nota, como colheres de pau. Porém, seriam ambos os objetos – produzidos sem pretensão artística no sentido convencional – igualmente valorados? Cabe investigar por que o artista hesita. No capítulo 4 afirmamos que o fazedor de imagens, antes de ser um artista, é um devoto. Se concordarmos com meu interlocutor e considerarmos que os santeiros devotos também são fabricantes de milagres, e que estes últimos objetos são frequentemente aproximados pelas autoridades eclesiásticas da superstição e da feitiçaria, podemos ente nder a não assinatura não como um gesto de altruísmo, mas sim como uma ação de cautela. Desse modo, os produtores de ex-votos se preservam das críticas de quem enxerga esses objetos como suspeitos e ameaçadores da hierarquia oficial católica. A desconfiança dos sacerdotes em relação aos ex-votos pode auxiliar a entender tantos relatos de acervos devocionais “abandonados” atrás de altares ou em sacristias, encontrados “ao acaso” por colecionadores. E também lança luz sobre as diversas biografias de escultores de milagres que são incentivados a esculpir santos por padres e outros agentes da Igreja. Os artistas deixam de dar forma a partes do corpo de devotos para se dedicarem à escultura de corpos santos. Além do fato do artista não querer se associar a algo que não é visto com bons olhos pela Igreja, é preciso ainda considerar a reiteração, por parte dos pesquisadores, do relacionamento da produção votiva com o universo de matriz africana149. Também no capítulo 4 foi visto que os artistas são conhecedores – e, por que não dizer, colecionadores – da produção acadêmica que lhe diz respeito e, além do mais, se preocupam com o destino que a peça pode ter depois de vendida. Posto que cabeças, outras partes e ainda representações do corpo inteiro também são ofertadas a entidades das religiões afro-brasileiras e, para alguns escultores populares, é delicado assumir a criação de objetos potencialmente utilizados em oferendas150. Já mencionei o imaginário preconceituoso em torno das religiões tidas como mágicas, como afirmam Mauss e Hubert (2003, p. 67), “para o catolicismo, a idéia de magia envolve a idéia de falsa religião”, o que isso coloca em questão no tabu em pauta é a utilização de ex-votos para a suposta realização de “trabalhos” com vistas a causar efeitos nefastos a outrem. 149 Cumpre observar que não há menção à possibilidade de variedade de estilos da produção artística africana. Fala-se em “escultura afro-negra” como se África e negros fossem noções contíguas e homogêneas. 150 Dos muitos locais de exposição de ex-votos que já visitei, o único onde a oferta de objetos é explicitamente atrelada aos praticantes de religiões afro-brasileiras localiza-se no conjunto do Carmo, em Cachoeira, na Bahia. No segundo pavimento há uma pequena sala com alguns poucos ex-votos pendurados no teto. Os responsáveis pela instituição informaram que os objetos são levados por membros do candomblé, que depois de passarem pelo rito de iniciação visitam a imagem de Cristo Morto que fica naquele pavimento e deixam objetos no seu entorno. A partir de mapeamento da prática votiva católica no Nordeste, Bonfim (2007) observou que o convívio entre tradições católicas e afro-brasileiras nos santuários baianos é de fato singular em comparação com o que se passa nos demais estados nordestinos. 214 O recurso à leitura maussiana do dom é praticamente incontornável nas pesquisas que analisam a oferta de ex-votos às divindades. Lélia Coelho Frota (1981), entretanto, não se restringe ao nível da troca ou da circulação de coisas com valor agregado. A autora vale-se dos dizeres de Mauss e Hubert (2003) para afirmar que os ex-votos pictóricos não dizem respeito ao domínio mágico das receitas e dos segredos, cuja recorrência às coisas sagradas pode resultar em sacrilégio: “Ora, este não é o caso dos ex-votos, cujo código é coletivo, e cujo vocabulário, sancionado pela Igreja, instrumenta imagens e palavras do ritual sagrado.” (Mauss e Hubert, 2003, p. 42). Os próprios Mauss e Hubert (2003) relativizam os extremos que associam magia//segredo//malefício e religião//culto público//sacrifício, uma vez que essas distinções notadamente têm fundo mais teológico do que socioantropológico. Entre esses polos há toda uma “massa confusa de fatos”: “São as práticas que não são nem interditas, nem prescritas de um modo especial. Há atos religiosos que são individuais e facultativos; há atos mágicos que são lícitos.” (Mauss e Hubert, 2003, p. 59), se os ex-votos não são proibidos, tampouco todas as suas possibilidades plásticas são igualmente avaliadas. Sabemos que a definição do estatuto, do significado e das funções da imagem sempre mobilizou a Igreja e que é, principalmente, a representação tridimensional que se encontra no cerne de problemáticas do Cristianismo e sua relação com outras religiões. A escultura, ao mimetizar a realidade corpórea nas três dimensões “reais” do corpo, é mais frequentemente alvo de desconfiança do que a pintura, que precisa simular uma terceira dimensão. Em vista disso, é compreensível que a assinatura de um produtor de ex-votos tenha primeiramente sido identificada em uma tabuleta e não em um ex-voto anatômico. O testemunho visual dos ex-votos pictóricos continha, na maioria das vezes, relatos por escrito que tornam a interpretação das obras menos indeterminada. Além disso, o riscador de milagres registrava visualmente o feito de um santo específico e incluía o ofertante na figuração. Em contraposição a essas obras com textos e imagens explicativas que desvendam o milagreiro e o agraciado, a produção dos escultores é olhada de soslaio. As placas contendo agradecimentos – que podemos tomar como correlatos modernos dos antigos e hoje escassos ex-votos bidimensionais pintados – continuam a povoar o interior ou espaços contíguos às igrejas, ao passo que as ofertas tridimensionais são geralmente alocadas em espaços exteriores. Tais locais são chamados de Sala dos Milagres, Casa dos Milagres, Quarto dos Milagres. Em alguns lugares nos quais os ex-votos ganham o nome de promessa, temos Sala das Promessas etc. 215 5.4 QUEM É O AUTOR DE UMA EXPOSIÇÃO DE MILAGRES? 5.4.1 Curadoria compósita Curador²: [De curar + -dor.] S.m. Bras. Feiticeiro ou rezador que, supostamente, cura pessoas mordidas por ofícios venenosos, ou que, com sua arte, as torna respeitadas por esses animais. Curadoria [De curador + -ia¹] S.f. Cargo, poder ou função de curador, curatela. Dicionário Novo Aurélio A maior parte do material utilizado acima sobre as exposições e argumentações concernentes aos ex-votos foi fornecida por Antônio Marques para que eu as estudasse. Além dos catálogos e materiais correlatos, o colecionador me mostrava obras de diversas proveniências e eu lhe apresentava fotos e dados dos diversos espaços expositivos de ex-votos que já visitei. Essa troca foi intensificada quando meu interlocutor resolveu transferir a galeria comercial que administrava no Centro de Turismo em Natal para outro comerciante de arte e investir na ideia da criação do Museu do Ex-voto – a Casa dos Milagres151 – para abrigar parte de sua coleção. Como me disponibilizei para auxiliá-lo nessa empreitada, também deveria conhecer o projeto da CM e, nele, Antônio Marques aborda a “reserva” da “Igreja Oficial” em relação aos ex-votos, que não incentiva a prática, mas a relega a um espaço “anexo” ao templo oficial: a Casa, Sala ou Quarto dos Milagres: “Assim, discretamente “afastados”, os ex-votos podem coexistir com a fé católica.” (CARVALHO JR., [s.d.], p. 21), além dessa clara descontinuidade espacial e hierárquica entre as igrejas ou capelas (que guardam as imagens dos oragos aos quais os espaços devocionais são dedicados) e os locais destinados à exposição dos ex-votos ofertados a esses santos (que guardam, portanto, uma forma de imagem dos devotos), outra prática da Igreja Católica utilizada como justificativa para a criação do museu foi a destruição de milagres, que acontece de forma recorrente em muitos santuários. Abordarei o „descarte‟ de ex-votos de modo mais aprofundado no próximo capítulo. No presente ponto da discussão, cumpre destacar que essa problemática aparece no pro jeto da CM enquanto demanda de pesquisadores que precederam Antônio Marques. O colecionador cita que os primeiros esforços de preservação dos ex-votos decorreram do incentivo de Mário de Andrade em relação à coleta realizada por Luís Saia, no final dos anos 1930. O seguinte trecho de Saia foi citado: 151 Doravante CM. 216 No “Cruzeiro da Menina” ou na casa do Padre Cícero, em Juazeiro, seriam necessários vários dias de trabalho para verificar peça por peça e fazer uma seleção criteriosa. Numa passagem de viajante apressado, como foi a minha, não há condições sequer para ver rapidamente algumas peças: o que ficou sem ser visto, por baixo dos montes de milagres, é coisa considerável. Inútil e mesmo contraproducente um colhedor desaparelhado e bisonho, ou um simples curioso. Das diversas coleções que tenho visto, a quantidade de coisa mal escolhida faz pena... e faz injustiça enorme aos bons artistas que povoam o Nordeste. Seria interessante que tal trabalho tivesse o mínimo de organização. Em primeiro lugar, teria que se mapear os locais de boa ocorrência. Uma pessoa capaz deveria visitálos, pelo menos uma vez por ano, e selecionar uma limitada, mas eficiente quantidade de peças. (SAIA, 1974, p. 22 apud CARVALHO JR., [s.d.]). Nessa direção, A Casa dos Milagres – Museu do Ex-voto – que será implantada na antiga capela do Centro de Turismo de Natal não deixa de ser uma resposta – embora com meio século de atraso – às colocações feitas por Luís Saia, o colaborador mais próximo de Mario de Andrade no quesito escultura popular. (CARVALHO JR., [s.d.], p. 23). Antônio Marques discorda do colaborador de Mário de Andrade quanto ao atrelamento da escultura de ex-votos à arte afro-negra152, mas dialoga com Saia e suas preocupações enquanto proponente da CM. Estas, como se vê, não dizem respeito apenas à preservação dos objetos, mas à necessidade de uma pessoa que os escolha adequadamente “por baixo dos montes de milagres”, de modo periódico e que, para tanto, tenha ciência dos locais de ocorrência do fenômeno votivo. Como Antônio cultiva uma coleção de cerca de 5.000 peças votivas seguindo esses princípios há anos, propôs a cessão – em regime de comodato – de parte dela para exposição no museu público a ser criado e administrado por uma associação que ele presidiria 153. A formação de parcerias com a Igreja seria levada a cabo com vistas à formação de acervo próprio da CM, que aos poucos ficaria menos dependente das peças do colecionador. Esse acervo formado gradualmente pertenceria ao Estado, diferentemente das obras provenientes de sua coleção particular, que continuariam sendo de sua propriedade. 152 De acordo com o colecionador, a assertiva de Saia é improcedente porque a prática do milagre de madeira ocorre no sertão, região pouco habitada por negros, pois no RN estes historicamente “ficaram na costa”. Essa leitura é uma constante na historiografia tradicional bastante vulgarizada do estado (ver, p. ex., Cascudo, 1975), na qual as especificidades étnicas tendem a ser apagadas (CAVIGNAC, 2003). 153 Esse modo de gestão foi inspirado no estatuto do Museu Afro-Brasileiro, citado na seção 5.3 deste capítulo. A Associação Museu Afro-Brasil foi criada em 2005 e qualificada como Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP). Em 2009, constituiu-se como Organização Social, vinculada à Secretaria de Estado da Cultura, recebendo recursos do Governo Estadual de SP. Para essa constituição, como entidade privada de caráter público, houve a doação de cunho pessoal do artista plástico, colecionador e curador Emanoel Araújo, de 2.163 obras para o Estado de São Paulo, além da doação de 314 obras da Associação Museu Afro-Brasil, bem como a doação de duas coleções internacionais de obras de arte: Arte ancestral e contemporânea do Benin e Artes do Povo Bijagó. 217 A instalação da CM foi prevista para um local específico: o espaço do Centro de Turismo que já funcionou como capela. O espaço em questão tem formato retangular, 130 metros de área construída e já havia sido utilizado para a realização de celebrações católicas destinadas aos presidiários (quando o prédio foi utilizado como cadeia pública) e seu interior foi descaracterizado quando o Centro de Turismo foi reformado, em 1975/76. Desde então, segundo o colecionador, a capela permaneceu “– Fechada e subaproveitada”, sendo utilizada nos dias atuais exclusivamente pela Associação dos Empreendedores do Centro de Turismo (ASECTUR), por ocasião de assembleias e reuniões de associados. A implantação da CM envolveria “– Tirar partido das possibilidades arquitetônicas [da antiga capela] existentes, inclusive dos detalhes”, como as “arcadas laterais”, nas quais “serão instaladas réplicas estilizadas dos principais santuários religiosos do Rio Grande do Norte” (CARVALHO JR., [s.d.], p. 8). Figura 62 – Arcadas laterais da antiga capela do CT Foto: Acervo da autora, fev. 2012 Tendo em vista a sinalização positiva da Secretária Extraordinária de Cultura Isaura Rosado quanto à viabilização da iniciativa no final de 2012154, Antônio propôs que a FJA financiasse uma visita aos santuários que seriam replicados na CM, onde fotografaríamos e produziríamos outros tipos de dados a respeito das salas dos milagres que seriam utilizados na concepção e execução do Museu. O pedido do colecionador foi atendido e contamos com carro, motorista e combustível fornecidos pela FJA. 154 Período em que a então Governadora do Estado Rosalba Ciarlinni e a bancada potiguar no Congresso Federal propuseram uma emenda parlamentar em torno de investimentos na área da cultura. Os recursos foram obtidos no âmbito dos esforços de estruturação de Natal para a Copa do Mundo de 2014. Esperava-se que o montante de vinte milhões de reais fosse suficiente para uma atenção especial ao Memorial Câmara Cascudo, à Fortaleza dos Reis Magos – que receberia o investimento mais robusto, em torno de dois milhões de reais – e à Pinacoteca, onde os valores empregados seriam mais modestos. Marcelo Dantas – curador/designer reputado como criador de inovações em exposições permanentes valendo-se de jogos e imagens virtuais, como é possível observar nos museus da Língua Portuguesa, da Gente Sergipana e do Caribe – foi convidado pela FJA para “assinar” novos desenhos curatoriais no âmbito da reestruturação dos museus potiguares. 218 Antes de viajarmos, nos encontramos com Irene van den Berg Silva, pois Antônio tinha planos de visitar o santuário estudado por ela e conhecer pessoalmente o “personagem” Seu Bento, que ergueu e, à época, administrava o local onde acontece o culto às Covinhas das Meninas. Dentre muitas outras coisas, o colecionador perguntou à antropóloga sobre qual a melhor forma de presentear Seu Bento. Irene disse que o ideal seria levar brinquedos para ele distribuir no Dia das Crianças/festa nas Covinhas, mas sublinhou que Seu Bento recebe a todos muito bem, independentemente de agrados e se sentiria muito lisonjeado com nossa presença. Em sua tese de doutorado, a pesquisadora esboçou uma cartografia dos locais de devoção no RN (SILVA, 2010). Em vista disso, durante o encontro, conversamos sobre as Covinhas localizadas no município de Rodolfo Fernandes, onde seu estudo concentrou-se, mas também sobre muitas outras devoções. Meus interlocutores potiguares localizavam-nas “no elefante”, figura traçada pelos contornos do mapa do RN. Irene descreveu uma dessas coordenadas com as seguintes palavras: “– Tem a Mártir Francisca, em Tenente Ananias, longe, lá na tromba do elefante... Lá as mulheres deixam muitos vestidos de noiva”. Esse apontamento nos lembra que qualquer coisa pode ser oferecida como ex-voto, mas as salas dos milagres costumam concentrar mais objetos relativos à especialidade de seus santos. O fato de Santa Luzia ser protetora da visão, por exemplo, condiciona que muitos milagres em forma de olhos (em pares ou individualmente) sejam levados até os locais de devoção a essa santa. Nessa linha de raciocínio, também se pode pensar em um desenho curatorial dos espaços de exposição dos ex-votos em seu loci rituais, no caso, esboçado pelo poder de cura que se sobressai dentre todos atribuídos a uma divindade. Entretanto, essa curadoria das salas dos milagres, assim como a autoria dos ex-votos, só pode ser pensada como compósita. Fomos avisados por Irene a respeito da predileção de Seu Bento – criador e administrador do Santuário das Covinhas, que visitaríamos na cidade de Rodolfo Fernandes – pelas cartas e fotografias em relação a outros objetos ofertados pelos devotos. Os ex-votos escultóricos, segundo ela, são muito malcuidados e quando pediu para vêlos “– Estavam jogados em um canto, tinha até marimbondo...”. Os rearranjos por parte dos responsáveis pela manutenção dos espaços expositivos são frequentes e tendem a agrupar os objetos por sua semelhança, reunindo, por exemplo, cabeças em uma mesma prateleira, pernas em outra, cartas e fotos nas paredes etc.. Na literatura sobre santuários de maior porte encontramos referência a casos em que os objetos passam por um controle prévio e explícito antes de serem expostos (MENEZES, 1996; SOUZA, 2012). Lygia Segala (1999, p. 17, grifo meu) assinala quem em Aparecida (SP), no 219 maior santuário mariano do mundo, “há uma equipe treinada que seleciona, organiza, classifica as peças votivas por assunto e material e expõe as oferendas. [...] Purificam-se “os milagres”, elegendo, na ordem expositiva, as expressões adequadas de reconhecim ento.”. As salas dos milagres pouco “purificadas” não raro são descritas como lugares abjetos e vertiginosos (GOMES, 2013), principalmente considerando que esses espaços também abrigam coisas que já estiveram nos corpos dos devotos – umbigos de bebê, tumores retirados em biópsias, objetos engolidos ou aspirados por acidente, cálculos renais, dentes, unhas e tufos de cabelo, por exemplo – até outras não tão „naturalmente‟ orgânicas, mas que também „poluem‟ devido ao desgaste causado pelo tempo. Coisas degradadas, os extratos orgânicos mencionados acima e objetos industrializados tais como maços de cigarro, garrafas de cachaça, fotos e peças em gesso e parafina são abundantes na Sala dos Milagres onde passei tempo considerável do meu trabalho de campo do mestrado (GOMES, 2011). Minha referência de pesquisa era esse espaço onde coisas aparentemente banais são dignas de serem mostradas como feitos de um santo, ao passo que os ex-votos esculpidos em madeira ou moldados em cerâmica são raros. A administração da sala em questão afirmava que tudo deveria ser exposto, pois nenhum milagre é mais importante que o outro155. Em vista disso, pensar em um espaço expositivo para objetos reunidos por critérios prioritariamente estéticos – e que pudesse ser considerado como a “estilização” de um santuário – tornou-se um desafio que imaginei superar mais facilmente com o auxílio do material sobre exposições de coleções particulares de ex-votos. Mesmo que a migração dos milagres tidos como esteticamente significativos para museus de arte ou para locais onde são utilizados como objetos de decoração imponha que eles sejam de stacados de seus vizinhos habituais nas salas dos milagres, as exposições em novo contexto não deixam de ser evocações da degradação da matéria e de patologias diversas: O ex-voto é a própria voz da palavra feita sangue e chagas. É a crucificação multiplicada por milhões, oferecida sem terremotos. Sacrifício colossal praticado num fundo silêncio. Miséria catalogada, doenças ilustradas, casuística de lazaretos ao ar livre. […] E desta aparente terrível tensa imobilidade, como a das coisas feitas a funcionar “de dentro”, a forma substanciada do “milagre” concentra-se na expressão da dôr antiga, antiga. Das paredes desta exposição, quatrocentas esculturas nos condenam. (EX-VOTOS DO NORDESTE, 1965, [s.p.]). 155 Apesar de eu ter percebido que a exibição de certos objetos era preterida para dar outros a ver e que algumas peças específicas – como muletas e cadeiras de rodas – deixavam temporariamente a exposição quando havia a demanda de empréstimo por parte de familiares de pessoas adoentadas. 220 Integrando uma mostra de arte, por exemplo, os ex-votos recebem novos significados, sem que os anteriores desapareçam completamente. Contudo, a despeito das qualidades estéticas, sua função sagrada nunca é inteiramente esquecida e, às vezes, eles chegam a provocar medo e cautela naqueles que apenas os observam. As formas humanas, sobretudo quando se tratam de partes e pedaços, evocam a fragilidade do mistério da vida. (MASCELANI, 2012, p. 56). A alusão à aversão e ao medo gerado no encontro com as exposições torna patente que estar diante dos ex-votos nessas exposições implica no confronto com uma forma de materialidade da devoção do outro. A coleta dos milagres e a posterior exposição enquanto obra de arte são gestos que, ao invés de transfigurar os objetos em questão em obras tornadas familiares, insistem na não liberação das peças de sua motivação mágica primeira. Sendo assim, seja em meados do século passado ou nas primeiras décadas do atual, o milagre que peregrina para a coleção não é despojado de sua condição ritual. Esta se afigura como irredutível, por mais que a exposição no campo da arte implique na “higienização” dos objetos criticada por Sally Price (2016). A limpeza de objetos museais para consumo público abordada pela antropóloga e curadora de diversas exposições de arte primitiva envolve o silenciamento de certos momentos da trajetória das obras. Na seara dessas indicações, a higienização museológica relativa aos ex-votos tende tanto a asseá-los em sentido lato para exposição em museus de arte e como itens de decoração, quanto a dissolver a possibilidade de mirá-los enquanto produto de um trabalho autoral. A atmosfera de “mistério” que seria observada nas salas dos milagres torna-se uma espécie de verniz que acompanha os objetos para as exposições de arte. Nessa direção, os exvotos são lustrados enquanto obras motivadas por intercorrências da vida de pessoas religiosas. Em vista disso, o milagre nunca é plenamente reconhecido como “arte pela arte”. O corpo em partes é visto como ameaçador pelo observador desavisado ou mesmo utilizado como artifício retórico e estético pelas pessoas de modo a explorar o potencial visual já patente nas exposições em loci rituais. A acumulação de milagres assombra por sua potência de remeter ao que é perecível, precário, visceral, enfim, sujeito à morte. A imagem de corpos despedaçados é frequentemente evocada nas descrições das instigantes assemblages produzidas pelos devotos. Em minha perspectiva dos espaços de exposição dos milagres, entretanto, os corpos em pedaços não necessariamente são corpos despedaçados. A conversão desse olhar em proposta curatorial implica em não reiterar a ênfase no objeto votivo como prisão da dor, do desespero, do sofrimento e de dificuldades afins. Dessa forma, os objetos podem ser apresentados como libertos desse caráter estático de assentamento do mal e de modo a ressaltar a natureza extática dos milagres. 221 Em reflexão anterior ao meu encontro com os ex-votos artificados (GOMES, 2013), eu já havia enfatizado como os presentes dos devotos para os santos, mesmo os aparentemente mais repugnantes, nos direcionam […] a uma espécie de arrebatamento do objeto. Na Sala dos Milagres, coisas que em outros espaços não são vistas como dignas de exibição pública inserem -se em um conjunto que multivocaliza a santidade [...] e torna notória a lógica de superabundância de relações de devoção que perpassa o ambiente. Assim, apregoa-se não só o poder do santo, mas também o dos objetos que, a despeito de serem vistos por muitos como certezas manifestas das misérias humanas, são, sobretudo, celebrações da potência de uma relação, em que não só se pede e se agradece, mas também se exibe, se celebra, se propicia, se lembra, se materializa. (GOMES, 2013, p. 191). A classificação de um milagre como obra de arte incrementa esse arrebatamento, operando de modo semelhante à utilização da fotografia por Artur Omar para capturar “faces gloriosas”: Na fotografia, o corpo glorioso, como na tradição cristã, não é propriamente um corpo, mas uma figura estética, a própria transformação, ou transfiguração, do corpo em imagem. O que a fotografia realiza é, como na ressurreição mística, a extração de um „tesouro‟, de uma pérola, arrancada da natureza, do real, do transitório. „Tesouro‟ que sem esse suplemento técnico, sem o registro fotográfico, não saberíamos ver. (BENTES, 1997, p. 10). É também em diálogo com a teologia que Giorgio Agamben (2007) situa a fotografia na problemática das figurações do corpo: A respeito da ressurreição da carne, os teólogos cristãos se perguntavam, sem conseguir encontrar resposta satisfatória, se o corpo iria ressuscitar na condição em que se encontrava no momento da morte (quem sabe velho, calvo e sem uma perna) ou na integridade da juventude. Orígenes abreviou tais discussões sem fim afirmando que não será o corpo que irá ressuscitar, mas sua figura, seu eidos. A fotografia, nesse sentido, é uma profecia do corpo glorioso. (AGAMBEN, 2007, p. 25). Face a esses referenciais, o crescimento do uso da fotografia como ex-voto – geralmente entendido como perda expressiva (BONFIM, 2012) e racionalização da tradição do ex-voto anatômico (MARTINS, 2002) – se torna presságio de reencantamento da tecnologia. Por meio da foto, assim como faz com o milagre tridimensional, o devoto não só propagandeia que o santo é seu cúmplice, como também passa a participar do seu corpo distribuído. Nessa ótica, ex-votos são troféus, formas tangíveis de trunfo sobre o infortúnio. Como a vitória sobre as situações negativas nem sempre é possível, os objetos prolongam tais situações fugidias no fluxo da vida, “como se”156 o corpo do devoto, assim como o do santo, pudesse permanentemente apresentar suas chagas em imagens triunfantes. Na elaboração preciosa de Raquel Lima (2014), “o termo “como se” se apresenta como um recurso de linguagem que permite marcar a ambiguidade de não ser, mas parecer ser, ao mesmo tempo em que nos remete para a ambivalência de ser e não ser.” (LIMA, 2014, p. 86) 156 222 Obviamente, eu não esperava que Antônio concordasse com uma proposta tão filistina 157 para elaborar a CM. Minha sugestão de „tônica‟ para a exposição era que sua configuração não apagasse a figura do colecionador e a historicidade da formação da coleção. No meu entendimento, era preciso evidenciar que os ex-votos foram coletados segundo critérios, sobretudo, estéticos, enquanto que nas salas dos milagres, outras formas de seleção podem ser observadas. Contudo, ao ver minhas fotos de ex-votos muito mais variados (em termos de material, fatura etc.) em relação àqueles que eu imaginava na CM, Antônio aventou que seria interessante ter alguns deles no “nosso museu”. Ao notar minha estranheza diante da sugestão, uma vez que as peças em questão – por exemplo, fotografias – não tinham lugar em seu acervo, o colecionador asseverou que um museu “mais antropológico” poderia contar com itens como aqueles. Desse modo, portanto, minha participação no que tenho explorado como curadoria compósita ficou mais evidente e, aos poucos, fui percebendo como meu interlocutor estava concebendo seu museu particular como um espaço que também abrigaria peças que antes não teriam espaço em sua coleção, ou seja, a exposição contaria com objetos votivos comuns em salas dos milagres, mas que nem sempre são reclassificados como obras de arte. Inspirada pelas discussões realizadas em um curso de curadoria que fiz e m Recife 158, perguntei a Antônio o que ele considerava „o forte‟ de sua coleção. Ele pensou um pouco para responder, “– Eu acho que é minha coleção de cabeças”. Sugeri algumas formas de chamar atenção para elas na exposição, como justapor as estimadas cabeças do colecionador a fotos de pessoas com traços semelhantes àquelas esculpidas, ou ainda a imagens de santos também com traços similares. Se em salas dos milagres, os santos também se fazem presentes 159, na CM seria interessante destacar e explorar que eles podem ser obras dos mesmos artistas que fazem os ex-votos, chamando atenção desse modo para o processo de pesquisa envolvido na constituição da coleção. Nos termos de Alfred Gell (2005), se o analista da religião precisa se valer do “ateísmo metodológico”, submetendo crenças e afins ao crivo sociológico, a análise da arte em perspectiva antropológica requer o chamado “filistinismo metodológico”, ou seja, a resoluta indiferença ao valor estético das obras de arte. 157 O Curso de Curadoria, intitulado: “Por que escolher se transformou em um ofício?”, ministrado por Eder Chiodetto, curador do Museu de Arte Moderna de São Paulo, aconteceu nos dias 23 e 24 de novembro de 2012, no âmbito do IV Theória. Este evento foi promovido pela Fundação Joaquim Nabuco, que abriga o Museu do Homem do Nordeste, sob o tema “Nordestes Emergentes, visto através da imagem entendida como ferramenta privilegiada da prospecção social”. 158 159 A motivação para tanto ficará mais clara no próximo capítulo. 223 Ainda pesquisando possibilidades que nos inspirassem a fomentar outras perspectivas para CM, mostrei-lhe fotos de uma exposição dedicada aos ex-votos ofertados a Nossa Senhora de Nazaré em Belém do Pará, organizada pelo Museu do Círio, que, por sua vez, é gerido pelo Governo do Estado do Pará. Contrastamos esses registros com as de outra exibição, referente à mesma devoção, organizada pela Igreja e exposta nas dependências da Basílica de Nossa Senhora de Nazaré. Meu objetivo, ao confrontar tais registros, foi estimular nossa reflexão sobre a diferença entre uma exposição de ex-votos promovida no registro da „cultura‟ e outra voltada para a religião. Porém, nem sempre a nomenclatura museu diz respeito a instituições não religiosas que expõem ex-votos enquanto artefatos culturais. Há museus que funcionam no interior ou em espaço anexo às igrejas e em função destas. Alguns deles compreendem locais de exposição de milagres e espaços onde expõem objetos de valor histórico; ao passo que outros são inteiramente dedicados aos ex-votos, ou seja, são o que tenho generalizado aqui como Sala dos Milagres. A denominação Museu é mais frequente quando uma sala dos milagres passa por processo de reconfiguração em toda sua extensão (e não por meio de pequenos rearranjos contínuos e cotidianos). Foi o caso da sala da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo, mais conhecida como Igreja Nosso Senhor dos Passos, localizada em São Cristóvão, Sergipe. Mostrei fotos desta para Antônio e sua avaliação foi que tal espaço “– É muito sofisticado para um museu de ex-votos”. De fato, quando visitei o local fui surpreendida pela sensação de “cada coisa em seu lugar”. Não havia objetos amontoados; muitos ex-votos em madeira apresentavam pedestais incomuns para esse tipo de oferta; as fotografias eram acondicionadas em porta -retratos e não eram afixadas diretamente sobre as paredes, sendo que estas apresentavam consideráveis superfícies „em branco‟. Em diversas salas dos milagres, a falta de espaço para exposição é tamanha a ponto de tornar normais a formação de camadas de fotos e outras ofertas que vão sendo coladas sobre as outras; o „soterramento‟ dos ex-votos tridimensionais sob outros e o aproveitamento do teto como suporte de onde pendem coisas diversas. Conversando com algumas pessoas em São Cristóvão e Aracaju, entendi porque a organização daquela sala dos milagres, que funciona no claustro da igreja, soava um tanto quanto estranha. A sala – descrita por Bonfim (2007) como “caprichosa” – historicamente ficava aos cuidados dos frades carmelitas e voluntários da irmandade. A organização amadora foi desmontada, os objetos passaram por processos visando sua conservação, registro, catalogação e nova diagramação da exposição e foi reaberta ao público em 2009. 224 O tratamento técnico organizou os ex-votos anatômicos de acordo com o corpo humano: em um extremo da sala ficam os pés e no outro as cabeças. Na entrada de acesso ao claustro, que abriga a exposição, há um coração e após passar por ele, o visitante depara-se com um painel com “ex-votos de órgãos humanos”: pulmão, coração, intestinos etc. O costumeiro aproveitamento do teto também foi feito recompondo a hierarquia “natural” dos pés à cabeça observável na silhueta humana. Uma historiadora com a qual conversei sobre esse ambiente discordou da organização que reconstituiu a totalidade da figura humana usando membros que dizem respeito a tantos corpos. Segundo tal interlocutora, essa “não é a lógica do devoto” e, sem deixar de expor a lógica de historiadora, também demonstrou preocupação com a reunião em um mesmo suporte de peças fabricadas e ofertadas em diferentes períodos históricos. Face ao exposto, fica evidente que pensar em apenas uma lógica norteadora para a exibição dos ex-votos é limar várias outras possibilidades que se conjugam nas salas dos milagres. O resultado pode ser avaliado como excesso de ordem, de evocação de [falso] mistério ou dor, de confusão. 5.4.2 Em busca de milagres Antônio ouvia as considerações e relatos que expus no tópico anterior com atenção, mas sempre indicava que era importante eu conhecer os santuários que seriam estilizados na CM. Só assim eu poderia entender como ele elaborava o museu inspirando-se diretamente na vida religiosa do interior potiguar. 5.4.2.1 Nas Covinhas, quase Ceará Nossa incursão pelos santuários começou em 12 de janeiro de 2013, quando Antônio, Nildo e eu partimos de Natal em um carro da FJA dirigido por Ismar, funcionário da Fundação. Nosso primeiro destino foi Rodolfo Fernandes, município da região oeste do Rio Grande do Norte, que dista 390 km da capital do estado e faz fronteira com o Ceará. Nosso objetivo era visitar as Covinhas das Meninas, devoção que conhecíamos via o estudo de Irene Van Den Berg Silva (2010). O local de culto que nos interessava fica dentro da Fazenda Sossego, cujo proprietário é Seu Bento, realizador do santuário. Após sonhar com duas meninas que lá teriam morrido de sede quando se perderam dos pais retirantes em uma grande seca, Seu Bento delimitou o lugar da cova das crianças e sobre elas construiu uma pequena edificação com uma torre e um campanário. 225 No interior da capela havia bancos de madeira, as covas das Meninas e, mais adiante, o altar. Nele, abaixo da cruz, destaca-se o “retrato falado” das Meninas, um quadro desenhado por um artista a partir da narração de Seu Bento sobre como se deu seu encontro onírico com as crianças. Apesar da presença de um grande número de imagens de santos diversos no espaço, não observamos representações tridimensionais das Meninas no santuário. Figura 63 – Altar do Santuário das Meninas, com o retrato falado ao centro Foto: Acervo da autora, jan. 2013 As covinhas são uma construção em alvenaria, de formato retangular, rodeada por um fosso, e por grades. Ao pé das grades, havia restos de velas que foram acesas ali, apesar do recado pendurado na grade: “Por favor não acendar [sic] velas dentro da igreja. Obrigado”. A folha A4 utilizada para impressão dessa solicitação encontrava-se cheia de nomes de devotos escritos à caneta. No interior da cova, no centro, havia uma cruz em madeira com flores artificiais e fitas penduradas. A superfície da cova é recoberta por piso e sobre ele, têm-se as pedras pelas quais Seu Bento indicou o lugar onde as meninas, que lhe apareceram em sonho, haviam sido enterradas. Sobre as pedras havia muitas garrafas, algumas com água; guloseimas, como pirulitos e bombons; mamadeiras contendo leite, e chupetas, algumas ainda dentro comercializadas. da Ao embalagem, observar como tais são objetos, Antônio os classificou: “não são ex-votos, são ofertas, oferendas...”. Figura 64 – As covinhas em primeiro plano Foto: Acervo da autora, jan. 2013 226 Junto à parede esquerda da capela havia uma mesa com duas caixas de sapato cheias de cartas e fotografias. Uma delas traz na tampa a descrição do que se espera que seja deixado ali: os “milagres alcançados”. Sobre a mesa também havia um livro e um caderno para registro de presença, mas essa parecia ser gravada de modo especial nas paredes, que estão todas marcadas com assinaturas de devotos. Não identificamos uma sala dos milagres propriamente dita, mas a capela em si era evidentemente um local de deposição de muitas formas de agradecimento. Quando Antônio perguntou por “milagres de madeira”, Seu Bento nos levou até um cômodo localizado ao fundo de um galpão que fica ao lado da igreja. No canto dessa sala havia uma imagem em gesso, que acredito ser Nossa Senhora de Fátima, e, ao lado dela, um monte formado por roupas, pedaços de tecidos, um par de muletas e ex-votos em madeira. Esses objetos não estavam expostos, pareciam abandonados ali. Depois de muito procurar, Antônio e Nildo selecionaram dois ex-votos em madeira em forma de pé. Figura 65 – Suportes para registro de presença e Figura 66 – Ex-votos coletados acondicionamento de relatos de milagres no Santuário das Covinhas Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 O colecionador perguntou ao idealizador do santuário se ele não conhecia artistas da região que esculpiam ex-votos. Seu Bento disse que sim. Antônio o orientou a encomendar alguns, “– Mas peça para ele fazer de imburana, pra gente colocar no Museu. Esses que você tem aqui são de madeira branca, que não dura muito e dá muito bicho”. Fomos para uma sala à direita daquela em que estávamos, onde observamos painéis com fotos nas paredes e uma pequena mesa com imagens de santos em gesso e vasos com flores artificiais. Esses objetos me pareceram menos abandonados do que os da sala anterior, apesar de alguns estarem jogados aleatoriamente no chão. Silva (2010) mostra como esse espaço, principalmente durante a festa do dia 12 de outubro, ganha feição de “Sala dos Milagres”, que abriga ex-votos, presentes que são distribuídos para as crianças e queimadores de velas (SILVA, 2010, p. 70-72). 227 Visitamos outros pontos do santuário que ficam na parte externa da capela. Um deles que também é incrementado pela presença dos devotos é um cruzeiro, onde era possível observar flores, tijolos, pedras, velas, garrafas e uma imagem em gesso, sendo esta alocada dentro de uma caixa de alvenaria, pintada de amarelo e com visor em vidro, que parecia estar ali de forma permanente. Antônio presenteou Seu Bento com um quadro que, na opinião do colecionador, parecia ter sido “– Inspirado nas duas Meninas, pintado por um artista baiano, Chico Liberato” e Seu Bento ganhou também um quadro de Nossa Senhora Aparecida, mas esse parecia ter sido fabricado em escala industrial e não foi atribuído a nenhum artista em especial. Na capela havia exemplares dessa santa em vulto, que ganharam a companhia do quadro com a Padroeira do Brasil. O quadro com as meninas, no entanto, Seu Bento preferiu deixar em sua casa, pois poderia ser furtado no local mais público. Seu Bento nos contou que queria ser enterrado no santuário quando morresse e que não tem como passar o terreno para a Igreja, como é solicitado, porque “– Infelizmente não tem como ninguém ir no céu e pegar uma procuração com as Meninas”. A dinâmica da edificação e da manutenção dos espaços do santuário é realizada por iniciativa própria de Seu Bento e seus familiares e financiada pela contribuição dos romeiros. A estrutura é bastante precária, apesar de haver energia elétrica, não há água encanada. Antônio há muito era curioso para conhecer Seu Bento, descrito por ele como um “beato”, “personagem”, “criador de cultura”, enfim, um “atualizador do mito”, uma vez que história das meninas corria há muitos anos, mas foi ele quem construiu o santuário. Sendo assim, não fomos a Rodolfo Fernandes necessariamente em busca de ex-votos ou de artistas, mas de um outro tipo de milagre e seu realizador. Nildo, por sua vez, não escondeu a frustração com o santuário: “ – Mais de quatro anos que planejávamos vir às Covinhas... Lendo o trabalho da Irene parece que é uma coisa tão grande... mas é tudo tão precário, vê se tem como a gente falar em turismo religioso aqui... não tem nem água!”. O „mote‟ do incentivo ao “turismo religioso” foi utilizado junto à FJA para agregar relevância ao Museu do Ex-voto, que se localiza justamente em um Centro de Turismo. Desse modo, o turista que vai a Natal atrás das praias e no CT em busca de souvenirs e produtos regionais também tomaria conhecimento dos santuários potiguares. 228 5.4.2.2 Em Tenório, no Seridó paraibano Quando Antônio solicitou transporte à FJA para nossa visita aos santuários, justificou em ofício a necessidade de irmos até o município de Tenório, localizado na Paraíba, bem próximo da fronteira deste estado com o RN. Durante a viagem, entretanto, Ismar – motorista que nos conduzia – alegou não estar autorizado a adentrar o estado vizinho e nos mostrou o documento que indicava as cidades por onde passaríamos. Combinamos de arcar com o combustível que não havia sido previsto pela administração da FJA e Ismar cedeu. A demanda de chegar até Tenório extrapolaria os limites do RN, mas não sairia do escopo de uma região de forte continuidade de padrões culturais: o Seridó. Tal região interestadual é tida como espécie de essência do sertão do RN e da Paraíba, essência esta que seria especialmente mobilizada pela religiosidade popular. Segundo Antônio, no passado, os seridoenses potiguares e paraibanos rezaram para os mesmos corpos de santos. Em suas andanças, os santeiros, muitas vezes, não alcançavam o litoral de seu próprio estado, mas atravessavam essa região no coração do sertão oferecendo suas imagens. O colecionador estava em busca de um ex-voto de um desses artistas, a saber, Salomão Fontes Rangel, que veio a ficar conhecido como o Santeiro de Tenório 160. Antônio tomou conhecimento da existência do milagre por meio de um livro escrito por um padre com a colaboração de um fotógrafo (RIETVELD, 2006). Para realizar a publicação, segundo meu interlocutor, o autor teria feito uma festa e solicitado aos moradores da cidade que levassem as imagens de Tenório que tivessem: “– Aí é óbvio que todo mundo queria ter uma peça dele e isso gerou erros graves de atribuição nesse livro”. Antes de viajarmos, quando me emprestou a publicação, Antônio me passou um „dever de casa‟: “– Encontre um erro nesse livro.” Quando estávamos percorrendo os santuários fui indagada e respondi que não encontrei “o erro”: “– Esse Cristo não é dele”, disse, me mostrando a página, “veja como os traços do rosto são diferentes de um outro que sabemos que é dele. Tem coisas que foi o sobrinho dele que fez e o padre também não se preocupou em distinguir”. 160 * 1892 † 1975. 229 Apesar de eu não conseguir perceber o erro que havia sido desafiada a ver, ter a publicação em mãos foi interessante para notar como os grifos do colecionador são partes de um quebra-cabeça que ele vai juntando a outras informações para chegar até os objetos que deseja. Na página com a fotografia do ex-voto que motivou a ida à Paraíba, por exemplo, ele grifou o nome de Anita, com quem estaria a peça, e em outros trechos do exemplar sublinhou mais nomes e informações sobre pessoas que também colaboraram com a publicação. Juntando esses dados, ele sabia que Anita era uma antiga professora na cidade de Tenório. Em um município pequeno, de menos de 3.000 habitantes, não seria difícil descobrir se ela já fosse falecida. Chegando à cidade, paramos perto de uma praça e perguntamos a um casal que estava na janela de casa se sabiam onde era a casa de D. Anita. Eles informaram que ela estava morando em outra cidade, Juazeirinho. “– Mas onde ela morava aqui?”. Eles indicaram e fomos em busca da casa, pois, como disse Antônio, “ – Às vezes, as pessoas vão e as imagens ficam”. Fomos até a residência indicada, onde estaria morando uma sobrinha de Dona Anita, mas a informação não procedia. Tentamos em mais algumas casas, sem sucesso. Ismar demonstrava impaciência com o desvio da rota, as péssimas condições da estrada e o calor escaldante do sertão em janeiro. Antônio resolveu abortar a busca: “ – Tem que vir com uma pessoa daqui, e com tempo”. O insucesso somado às reclamações do motorista quanto fez com que o colecionador se referisse à empreitada como “– O fracasso da nossa viagem”. No entanto, a experiência foi importante para que eu vislumbrasse que, apesar dos “achados” e das coisas encontradas “por sorte”, a busca por objetos também é uma busca por publicações, pessoas e informações que possam levar até eles 161. 161 Presenciei outro momento de atenção ao colecionamento de pistas em uma das noites que passamos em Jardim do Seridó. Quando visitamos a casa de Pe. Jocimar (Prefeito da cidade, colecionador e comerciante de arte que assumiu a concessão da galeria no CT) também estavam presentes dois amigos do “padre-prefeito”, Nanael, professor e artista; e Diego, historiador. Diego é pesquisador da História do Seridó e entregou algumas monografias a Antônio. Os trabalhos versavam sobre devoções locais e parecia m ter sido solicitados a ele com antecedência. O historiador e Nanael falaram de fazendas e fazendeiros da região, sobre herdeiros de espólios, contaram a história de várias santas padroeiras, as reinterpretações locais etc. Antônio pediu que eu anotasse diversos nomes e informações que eles mencionaram, como: “Ercina, de Caicó, tem a coleção de um santeiro que é importante, porque foi o padre que trouxe” e “Senador Guerra, que trouxe a Santana de Caicó”. 230 5.4.2.3 Na Santuário do Lima, em Patu O santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis, também conhecido como “Santuário do Lima”, localiza-se na Serra do Lima, na cidade de Patu. O santuário destaca-se na paisagem serrana devido à altitude em que está situado e à sua arquitetura com cobertura metálica em forma de cone. É formado por duas igrejas, uma no térreo, onde são colocadas urnas com os restos mortais dos padres que a ela pertenceram, e outra no primeiro andar, onde fica a imagem de Nossa Senhora dos Impossíveis. O santuário dispõe de estrutura de acomodação para visitantes e romeiros e também de vias para que seja acessado por veículos. Outras imagens figuravam na igreja “de cima” por ocasião de nossa visita. “Imagens francesas restauradas que datam do século passado” habitavam o presépio montado por Ricardo Veriano, bem maior do que o que o artista organizou na Galeria da FJA por ocasião da exposição de presépios. O conjunto de imagens da natividade „destoava‟ do ambiente “neo-concreto” da igreja, facilmente associável ao estilo de templos pós-Vaticano II, ou seja, caracterizado por poucos santos e projeto arquitetônico com valorização da verticalidade, da luz e do „vazio‟. Para montar o presépio em Patu, Ricardo contou com apoio da FJA e ainda “– Com a colaboração de crianças, idosos, domésticas e camponeses locais” e contextualizou a cena do nascimento de Jesus na “– Realidade da seca nordestina através da técnica da taipa de pilão, também conhecida como pau a pique”. A Sala dos Milagres fica à direita do santuário e, segundo Antônio, sua organização é em muito condicionada pelas ações de Ricardo Veriano, que já foi Secretário de Cultura de Patu. A impressão de baixo número de ex-votos na sala se explicaria, a princípio, pela organização a qual o espaço foi submetido. A reunião de grupos de objetos em suportes separados (teto, prateleiras, vitrines etc.) influenciaria a sensação de espaço vago entre as coisas. Outra explicação aponta para as retiradas constantes de Veriano, que utiliza as peças na decoração de sua casa. Quando passamos por lá, ele nos mostrou alguns “achados” em bronze162. Na visão de Antônio, essas subtrações não são condenáveis, tampouco suas suspeitas de que algumas peças da sala sejam obras do próprio Veriano que lá as expõem. Meu interlocutor desconfiou que um ex-voto (uma pintura de feições sobre a indicação de uma face em gesso) que Ricardo sugeriu que fosse incorporado à CM seja de autoria do artista. Essa peça não foi coletada, mas outras foram selecionadas. 162 Durante sua gestão como Secretário de Cultura, Veriano recebeu o pesquisador Luiz Bonfim no Santuário do Lima. Segundo o pesquisador, o informante lhe mostrou um espaço extremamente bem-cuidado, com desenvolvida vocação para o turismo religioso e sala dos milagres com inovações nos processos expositivos (fotografias penduradas em varais). Bonfim registra ainda que foi presenteado com um “artefato” (BONFIM, 2007). 231 Figura 68 – Suporte contendo o exvoto sugerido por Veriano Figura 67 – Visão geral da Sala dos Milagres do Santuário da Serra do Lima Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 Figura 69 – Exemplos de uma mesma parte do corpo: seios, confeccionados a partir de diferentes matérias-primas, como tecido e madeira, e de reaproveitamentos – como de sutiã e de meias A prática apontada como inadmissível pelo colecionador foi a de utilização de ex-votos como lenha no fogão inglês de religiosos que já ficaram a cargo do santuário. O sacrilégio em torno das “cabecinhas usadas como combustível” foi interrompido após esforços de Antônio e outros agentes, como Veriano, para que as peças fossem mantidas “enquanto testemunhos da fé ou ainda como obra de arte”. Meu interlocutor destaca que o desdém em relação aos milagres não dizia respeito apenas aos administradores do santuário. Quando passou por Patu em sua viagem pelo sertão em 1934, Cascudo observou paredes lotadas de ex-votos e apesar de ter ouvido do padre que dezenas deles eram retirados periodicamente163 não registrou nenhum tipo de desacordo com a prática. 5.4.2.4 No Monte do Galo, em Carnaúba dos Dantas O Santuário de Nossa Senhora das Vitórias fica no município de Carnaúba dos Dantas e o local onde está situado também é conhecido como “Monte do Galo”. Fomos recebidos por Leléu, zelador do santuário, que logo em nossa chegada avisou Antônio que havia separado um saco de ex-votos em madeira. A subida para o cume do monte é feita por rampas e escadarias e, por conseguinte, não pode ser feita de carro. O zelador faz o trajeto de moto em seu cotidiano e foi assim que ele nos levou. Antônio subiu primeiro. Disse o folclorista: “A capelinha, num rococó de simplicidade extrema e acolhedora, tem as paredes cobertas de ex-votos. O Padre Francisco Scholz diz-me que retira, vez por outra, algumas dezenas pela impossibilidade de o lugar comportar as novas testemunhas da intercessão.” (CASCUDO, 1975 [1934], p. 35-36). 163 232 Enquanto Leléu não voltava para nos buscar, eu e Nildo fomos caminhando. Meu companheiro de subida disse não se importar com o esforço, uma vez que já tinha feito aquele trajeto difícil várias vezes “– Com saco de ex-votos nas costas”, depois que estabeleceram laços com o zelador, a empreitada de coleta ficou mais fácil. No percurso, bem-íngreme e serpenteado, estão dispostas as 14 estações da Via Sacra, intercaladas em alguns pontos por barracas de artigos religiosos que imagino só serem utilizadas durante as festas. Na chegada da subida, os peregrinos e devotos encontram uma capela, o cruzeiro, a representação de um galo, um Quarto dos Ex-votos e outro cômodo que serve como depósito desses objetos. O Quarto dos Ex-votos tem as paredes desgastadas e é relativamente organizado. A parede que fica em frente à porta tem uma bancada e uma prateleira, ambas repletas de imagens de santos, ex-votos em madeira, gesso etc. Entre essas estruturas, inclusive entre a prateleira e o teto, estão afixados quadros, fotos, propagandas eleitorais, cartas etc. As paredes laterais estão cobertas até a metade com ex-votos de madeira empilhados, sendo a maior parte deles representações de membros superiores e inferiores do corpo humano. Há uma cômoda de madeira próxima à parede onde fica a porta de entrada. Nas gavetas desse móvel estão guardadas algumas ofertas que, na opinião dos administradores do santuário, não devem ser expostas ao público, como garrafas de cachaça. Figura 70 – Antônio selecionando cabeças com auxílio do zelador do Santuário Figura 71 – Seleção de outros formatos de milagres Foto: Acervo da autora, jan. 2013 O zelador do santuário, ao direcionar nossa atenção para certos ex-votos, tornou patente que tem buscado compreender quais peças são interessantes para composição de acervos externos ao local de culto. Seu interesse parece estar voltado, sobretudo, aos diferentes tipos de madeira que podem ser esculpidas. “– Essa é pereiro”, ou então, “– Esse [ex-voto] é bonito, mas é de madeira branca, então não separei”. 233 Ainda no Quarto dos Ex-votos, Antônio escolheu alguns que acreditava terem sido fabricados pelo mesmo artista e me mostrou os traços semelhantes das peças. “– Olha como esses são primitivos.” Esse exercício foi feito com duas esculturas em forma de cabeça. Apesar de terem sido confeccionadas em madeiras diferentes, o mesmo formato das sobrancelhas (unidas), do nariz e da boca (aberta, aparecendo os dentes) Figura 72 – Peças fabricadas provavelmente pelo mesmo escultor, sendo uma delas em madeira branca Foto: Acervo da autora, jan. 2013 denunciavam a feitura pela mesma pessoa. O altar que fica no interior da capela não pode ser acessado, mas apenas visualizado por meio de uma grade. O zelador nos mostrou que a grade havia sido consertada recentemente, pois é violada com frequência por ladrões interessados no cofre onde os fiéis depositam dinheiro. Calcula-se que no último roubo tenham sido levados mais de R$ 2.000,00. As paredes da capela, de modo semelhante ao que se passa nas Covinhas, são cobertas de assinaturas de visitantes. Esse registro da visita no Monte do Galo também contraria o pedido dos administradores do santuário, que escreveram no chão, em letras bem grandes: “Irmãos romeiros, favor não riscar as paredes nem acender velas dentro da capela”. Durante a curta estada no Monte do Galo pude ver a abundância de um objeto cujo desaparecimento vem sido aventado há anos. Apesar dos estudos sobre os ex-votos lamentarem que a tradição do milagre de madeira estar acabando, há que se perguntar se os outros suportes (fotografia, peças de parafina etc.) não estariam se justapondo aos já existentes ao invés de suprimi-los. 5.4.2.5 No Monte das Graças e da Santa Menina, em Florânia O Santuário de Nossa Senhora das Graças localiza-se no “Monte das Graças”, que fica a 2 km da cidade de Florânia. A subida, que pode ser feita de carro, é ornada com as 15 estações da Via Sacra. No alto do monte há uma capela, uma praça de oração, uma “casa de votos” e um centro de estudos e treinamento pastoral, batizado com o nome de Centro de Estudos Linguagem e Reflexão Dom Heitor Araújo Sales. Quatro estátuas se destacam na frente da capela: Pe. Cícero, Pe. Ibiapina, Frei Damião e Pe. Cortez. Os restos mortais deste último, inclusive, foram trasladados para o interior da capela em 2005 e o maior desenvolvimento do santuário é atribuído a ele. 234 Há várias versões sobre a origem do santuário, sendo que a mais propagada delas conta que, em 1946, um frade chamado Otávio sonhou com uma menina que teria falecido de fome e de sede ao se perder de seus pais, quando procurava um cacto para se alimentar. Em 1947, ao buscar o monte, o frade reconheceu o local que aparecera em seu sonho. Um dos sinais que o levaram a tanto foi uma umburana, árvore típica da região164, que exalava um perfume santo. O odor de santidade indicou o local preciso onde ele encontrou o corpo da menina enterrado até a cintura com um pedaço de cardeiro (tipo de cacto) na mão. Conta-se que o corpo santo foi levado para a casa paroquial, e lá ficou escondido por muitos anos, tendo sido encontrado durante uma faxina e novamente ocultado em um fundo falso de guarda-roupa. Outra versão diz que uma imagem da menina é que ficou escondida, pois atraía demasiada atenção e os padres queriam evitar tumultos. A umburana foi praticamente destruída porque seus galhos e folhas foram tomados como milagrosos. Na data do cinquentenário do santuário, em 27 de novembro de 1977, o bispo diocesano autorizou a colocação da imagem de Nossa Senhora Menina (em gesso) na casa dos ex-votos que fica ao lado do santuário. Contudo, o incentivo à devoção a Nossa Senhora Menina, leitura oficial oferecida como alternativa ao culto à Santa Menina, não foi levado adiante porque a representação da mãe de Jesus quando criança também estava sendo difundida pela Igreja Católica Brasileira, dissidência da Igreja Católica Romana. A localização do templo no alto de uma colina fez com que Nossa Senhora do Monte fosse cogitada como invocação oficial do santuário, mas concluiu-se que esta poderia ser confundida com a “santinha do monte”, a menina que morreu de sede (FILHO, 2002, p. 25). Por isso, a ideia da promoção de Nossa Senhora do Monte foi descartada e, em seu lugar, colocaram Nossa Senhora das Graças, cuja devoção estava em evidência àquela altura (1947) porque Catarina de Labouré, freira francesa que presenciou aparições da Virgem, acabava de ser canonizada. Assim, a imagem que ocupa o principal lugar no altar da capela tem os atributos da Nossa Senhora que apareceu para a Irmã Catarina: ela pisa sobre uma serpente, tem as mãos estendidas (deles desprendem-se os raios de suas graças) e sua cabeça é adornada por uma coroa de estrelas. Na Casa dos Ex-votos, os objetos me pareceram bem „disciplinados‟. As fotos estão todas expostas em porta-retratos e não são diretamente afixadas na parede. Estas, entretanto, contêm inúmeras mensagens escritas à caneta pelos devotos. As imagens de santos, que ficam sobre uma prateleira na parede do lado esquerdo, estão organizadas das menores para as de maior dimensão, destacando-se, no fim da série, duas imagens de Pe. Cícero e uma de Frei Damião entre elas. 164 A maioria dos milagres e santos de madeira que temos abordado desde o capítulo 4 tem como principal matériaprima a umburana, também chamada de imburana. 235 Em outras prateleiras, têm-se roupas, cadernos, representações de casas e partes do corpo humano, quadros de santos etc. Notadamente, há um trabalho de seleção do que será exposto e no sentido de não deixar que os ex-votos se acumulem, pois, a despeito do afluxo de visitantes (e, por conseguinte, potenciais ofertantes) ao santuário, praticamente não há objetos empilhados. São muitas as coisas que remontam aos religiosos que atuaram no local ou que são louvados como santos no Nordeste, como Pe. Cícero, Frei Damião e Pe. Ibiapina. Por sua vez, as referências à Santa Menina, devoção que remonta às origens do santuário, são poucas. Também é interessante pensarmos que o padecimento com a seca pelo qual teria passado a menina não é mencionado por meio dos objetos nesse santuário. Contudo, quando se trata da história similar das Meninas das Covinhas, o fato de elas terem morrido de sede é explicitado pelas diversas garrafas, mamadeiras e outros recipientes com água que ficam sobre suas covas. Em Florânea não travamos contato com nenhum colaborador de Antônio na formação de sua coleção particular e/ou acervo da CM. Apesar disso, a visita ao Santuário das Graças/da Menina foi particularmente interessante. A ambiguidade de invocações do santuário também pode ser visualizada no posicionamento das imagens na capela e na sala dos milagres. Nossa Senhora das Graças ocupa a capela, uma construção de maior vulto; ao passo que a Santa Menina fica na modesta Casa dos Ex-votos, acompanhada dos milagres ofertados a ela. A imagem da Menina fica dentro de um cubo de acrílico e não é possível tocá-la sem retirar esse anteparo. Há também um grande painel com a figura de Pe. Cortez. A gestualidade do sacerdote na pintura sugere sua benção ao espaço. Encontram-se justapostos os restos da umburana – que indicou a localização do corpo da menina no passado –, uma cruz e a imagem da Santa Menina. Figura 73 – Santa Menina, a umburana e Pe. Cortez Figura 74 – Exposição „disciplinada‟ de fotos e imagens Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 236 O fato da imagem da menina habitar o ambiente onde geralmente ficam os corpos dos devotos é potente para indicar o quanto a já mencionada posição periférica desse tipo de local expositivo diz sobre a natureza liminar das coisas ali expostas. Como nos ensina Mary Douglas, poderes mágicos são muitas vezes atribuídos a pessoas e lugares socialmente marginalizados. Em muitos casos, como no santuário em questão, o caráter de liminaridade mostra-se, na verdade, “liminoide”, condição descrita por Victor Turner a propósito de estados potencialmente mais criativos e subversivos dos locais, pessoas e coisas inseridos em processos rituais. 5.4.2.6 No santuário de Santa Rita, em Santa Cruz O último santuário visitado foi o de Santa Rita de Cássia, um complexo turístico religioso localizado na cidade de Santa Cruz. Trata-se do santuário mais próximo de Natal, e de construção mais recente. Em 27 de junho de 2010 foi inaugurada no local uma imagem de Santa Rita que é considerada a maior estátua católica do mundo, com 56 m de altura. O santuário foi construído com recursos dos governos municipal, estadual e federal, num empreendimento que se iniciou em 2007 e envolveu aproximadamente seis milhões de reais. A construção foi obra de Alexandre Azevedo, arquiteto que havia construído a estátua de Frei Damião, na Paraíba, e filho daquele que fez a de Padre Cícero. Devido à sua altura e ao fato de estar encravada sobre o morro conhecido como Monte Carmelo, às margens da BR-226, a estátua também é atração para aqueles que transitam pela BR, rota para quem adentra o estado em direção ao Seridó e ao estado da Paraíba. Após alcançarem o Alto, como é chamado o local onde fica o complexo de estruturas do santuário (que, além da estátua, compreende uma “Praça dos Romeiros”, “Capela do Santíssimo”, “Sala de Promessa”, loja de artigos religiosos e um restaurante), em geral, as pessoas passam antes na “Sala de Promessa” e depois se dirigem para a frente da estátua. A imensa Santa Rita é vista de frente para quem passa pela cidade, de lado no caminho do santuário, e na entrada dele, a santa encontra-se de costas para as pessoas. Face às dimensões monumentais do santuário, a Sala de Promessa é um tanto quanto fria. A impressão é que os objetos foram colocados em um canto e não podem ocupar toda a ampla sala que, como foi aludido, serve de local de passagem. Logo na entrada, destaca-se um manequim, como os encontrados em vitrines de lojas, vestido com o hábito característico da iconografia de Santa Rita, mais adiante há outro trajando um vestido de noiva. Antônio nunca havia visto essa forma de exposição de roupas ofertadas como ex-votos. 237 Figura 75 – Manequins e colecionadores na Sala dos Milagres Figura 76 – Estrutura expositiva linear Fotos: Acervo da autora, jan. 2013 À direita da sala, encostadas na parede, encontram-se vitrines divididas em módulos, nos quais estão expostos ex-votos variados: representações de casas, de partes do corpo humano, imagens de santos, brinquedos, sapatos etc. Sobre as vitrines foram dispostos vasos de flores artificiais. Acima das vitrines há um mural de fotos afixado na parede. No canto direito da sala (no esquerdo está a porta de passagem/saída), há mesas de plástico e sobre elas, novamente temos ex-votos diversos. Abaixo delas, é possível ver diversos sacos pretos cheios de objetos, que evidenciam que nem todo ex-voto ofertado é exposto. Na mesa que fica mais próxima à saída há um livro de visitas. Figura 77 – Nildo observa a exposição Foto: Acervo da autora, jan. 2013 238 A visita a esse santuário foi a mais rápida dentre todas. Para entender um pouco mais da dinâmica do local, solicitei à Raquel Lima seu relatório do trabalho de campo lá realizado em 2010 165. Cotejar nossos dados foi interessante para perceber a permanência e o „desuso‟ de certas práticas. Os dados produzidos pela pesquisadora em 2010, por exemplo, não indicam que a Sala dos Milagres fosse fria ou esvaziada. Outra prática mais „quente‟ observada por ela foi o uso de um sino tocado pelos visitantes, que, incentivados por funcionários do santuário, realizavam pedidos durante o ato. Raquel Lima indicou que as informações que recolheu poderiam ser diferentes caso ela tivesse realizado a observação alguns dias depois, pois um novo padre assumiu as funções de pároco no santuário e fez algumas mudanças, “entre elas a demissão de Socorro, responsável pela Sala de Milagres.” (LIMA, 2014, p. 11), penso que esse fator pode ser determinante para atual configuração do espaço que abriga os ex -votos. Neste, observei um quadro com o nome de várias Ritas e lendo o relatório em pauta entendi que se trata da concretização de algo que, à época do campo realizado por minha colega, estava ainda nos planos da administração do santuário: “Para o santuário há planos de se fazer um cantinho chamado “eu me chamo Rita”, um painel onde as pessoas registrariam seu nome e colocariam uma foto. A intenção é aumentar o número de crianças batizadas de Rita, e assim a devoção à Santa.” (LIMA, 2010, p. 7). Segundo o motorista que nos acompanhava, Ismar, depois da construção da imagem gigante: “ – Tomba [o prefeito de Santa Cruz que empreendeu a construção, deputado estadual no momento da realização do trabalho de campo] nunca mais perderia uma eleição. Quando perguntarem “ – Quem foi Tomba?”, vão dizer “ – É o que fez a santa!”, aí todo mundo vai votar nele.” 5.4.2.7 Na Fundação José Augusto, em Natal Após o retorno da viagem aos santuários, eu e Antônio nos dedicamos à produção de relatórios para prestarmos contas à FJA. Ele pediu que eu fosse sucinta e disse que também faria suas observações. Como a maioria dos dados constantes em meu relato foi utilizada para descrever a viagem logo acima, por ora gostaria de chamar atenção para as “considerações finais”, nas quais destaquei alguns pontos. 165 Produzido no âmbito de sua pesquisa de doutorado sobre o culto à Santa Rita (LIMA, 2014). 239 Inicialmente, sublinhei as nuances entre as configurações das Salas dos Milagres, Quartos dos Ex-votos, Sala da Promessa e outros espaços equivalentes, remetendo-as diretamente ao trabalho dos zeladores/administradores dos santuários. Argumentei que antes de afirmarmos que em um centro de peregrinação são ofertados mais ex-votos de uma tipologia, é preciso perguntar se a maior quantidade de um tipo de objeto se sobressai devido ao trabalho das pessoas que cuidam dos espaços em questão. Além disso, me arrisquei a traçar algumas hipóteses sobre como o controle do que é exposto pode influenciar no que é (ou não) ofertado, sugerindo a existência de uma espécie de „efeito cascata‟. Após visitar dezenas de salas dos milagres em diversos locais do Brasil, observei que o acervo numeroso suscita no devoto a vontade de deixar seu testemunho de fé e relação com o santo. Em outras palavras, a abundância do acervo parece instar quem o admira a se inscrever no mesmo. Isto posto, nos locais em que a exposição é visivelmente mais controlada, o crescimento do acervo também é contido. Acredito que certas estratégias expositivas direcionam o devoto a ofertar certos objetos e não outros. Desse modo, penso que nas Covinhas, por exemplo, não há muitos ex-votos em madeira porque os que foram ofertados não estão expostos, caso estivessem, incentivariam outros devotos a levar objetos semelhantes. Antônio fez Observações complementares ao relatório de viagem aos santuários do Rio Gran de do Norte, em janeiro de 2013. Em alguns pontos do texto, ele remete ao meu relato, como por exemplo, “... tudo começou na década de 1980, como relata em detalhes maiores a pesquisadora Lilian Gomes, no relatório que antecede as presentes observações.” A respeito das Covinhas, observou que “o santuário não tem uma “manutenção”: há muito lixo, desorganização, objetos “soltos” ou deslocados dos seus lugares. São limitações dadas pela ausência de colaboradores e pelo próprio “quadro” cultural do seu mentor, sr. Bento.” Por isso, “enquanto santuário integrante de um Museu do Ex-voto, valeria figurar como uma “citação”, como uma “referência” menor...”. As conclusões do colecionador foram escritas em outro documento, Observações quanto à coleta de ex-votos, que transcrevo por completo a seguir, destacando alguns trechos: Apesar de nossa viagem não ter por finalidade a coleta de ex-votos, não foi difícil trazer amostras significativas dos santuários visitados. Ficou claro que, para todos os santuários, deveria haver uma orientação correta, com objetivo de melhor preservação. Para evitar que sejam “queimados” ou descartados, é preciso que seja implantada u ma “política de preservação”. Luiz Saia, auxiliar de Mário de Andrade em pesquisa pelo Nordeste do Brasil, no final dos anos 1930 já recomendava que após cada período de festa, de peregrinação, romaria, fosse realizada uma coleta sistemática 240 dos ex-votos, única forma de serem preservados... Há muitas idéias que podem ser discutidas e colocadas nesse tópico aqui abordado. Em primeiro lugar, dependemos que a própria comunidade saiba preservar o acervo que ela julgar importante para a identificação do santuário. Os ex-votos “excedentes” poderiam ser destinados a um museu central, representante de todos os santuários. Essa proposta requer uma articulação com os representantes da Igreja oficial e os agentes populares. Vale lembrar que os santuários visitados encontram-se situados em paróquias específicas e estão sob jurisdição de dioceses diferentes: Mossoró (Patu), Caicó (Monte do Galo e Florânia) e Santa Rita de Cássia (Natal). O único que faz exceção, por sua independência, por ser um santuário de “cunho particular” (situado em propriedade particular e não de igreja institucional) é das “Meninas das Covinhas”, embora Seu Bento reafirme sempre: “o santuário não é meu... é das Meninas, é dos romeiros...” Conclusão final: uma grande parte da história religiosa das camadas populares do Rio Grande do Norte e estados vizinhos (particularmente a Paraíba) está vinculada à “vida” desses santuários. Anteriormente a essa viagem já mantivemos contatos com agentes da Igreja oficial (párocos, bispos, etc.) e da igreja do povo (zeladores de casas dos milagres). Houve, sempre, em nossas conversas, uma aceitação total da proposta de se criar um museu público, em Natal, com a finalidade de preservar os ex-votos... Esse diálogo precisa ser retomado, registrado em documento oficial. A criação de um museu público não exclui a possibilidade de abrir nele coleções particulares, em regime de comodato. Esse tema também merece uma reflexão mais alongada. Levamos os textos para Isaura (Secretária Extraordinária de Cultura), que se mostrou muito interessada em tudo que expusemos e sugeriu que o Museu também abarcasse a devoção ao Pe. João Maria 166 e aos mártires de Cunhaú 167. Isaura reiterou seu apoio e disse que se dependesse dela a inauguração da CM seria já no Agosto da Alegria de 2013. Alguns dias depois conversamos com Ângela Ferreira, museóloga recém-contratada pela FJA para atuar nos museus que seriam aprimorados no âmbito dos esforços de estruturação de Natal para receber os turistas da Copa do Mundo de 2014. Ângela nos alertou que a exequibilidade da CM em um semestre seria um verdadeiro milagre. De acordo com a profissional, o acervo precisaria passar por catalogação e um plano museológico deveria ser concebido a partir da elaboração de um conceito, empreitadas para as quais a Fundação não disponha de pessoal naquele momento. 166 Abordei tal culto no capítulo 1, ver 1.4.b. 167 Tratam-se dos “... mártires dos engenhos de Cunhaú e Uruaçu, respectivamente localizados onde hoje ficam os municípios de Canguaretama e São Gonçalo do Amarante. Os massacres que produziram os mártires ocorreram em 16 de julho de 1645, no engenho de Cunhaú, e em 3 de outubro de 1645, em Uruaçu. Os assassinos eram índios (tapuias e potiguares) e holandeses chefiados pelo mercenário alemão Jacob Rabbi. Os massacres ocorreram devido a suspeita, por parte dos holandeses, de uma conspiração portuguesa contra o domínio holandês. Morreram cerca de 180 pessoas ao todo, mas apenas se sabem informações sobre 30 deles, motivo pelo qual são os únicos arrolados nos processos canônicos. Foram mortos por não abraçarem a fé reformada, pois seriam poupados se o fizessem. Os 30 mártires foram aprovados como beatos em junho de 1998, pela Comissão das causas dos Santos […].”. Fonte: <http://www.cerescaico.ufrn.br/rnnaweb/historia/colonia/processos.htm>. 241 Só com registro de todas as obras expostas seria possível manter o controle de entrada e saída das peças do espaço expositivo. Caso tal esforço não fosse realizado, o sumiço de alguma obra menor dificilmente seria constatado. Segundo Ângela, no jargão museológico, muito antes de ser vista como mera papelada, “– A documentação é o pulmão do museu, o coração é o acervo.”. O amadurecimento de um “conceito” da exposição também foi apontado como imprescindível para o local de exposição “não ser algo caricato” ou, dada a natureza das coisas a serem mostradas, “deslizar” para o funcionamento como “local de prática religiosa”. Na opinião da museóloga, “– O conceito dessa exposição em específico seria comunicar/socializar o ex-voto na condição de ser a materialização da fé das pessoas, por que o ex-voto é isso.”. Eu já havia conversado com Antônio Marques sobre o que eu considerava um dos maiores desafios da configuração da CM: tornar patente que o espaço não era u ma sala dos milagres, mas uma evocação desse tipo de local de culto construída a partir de uma coleção que não foi formada de forma aleatória. “– Sim, mas você sabe bem que não temos como controlar isso”, disse ele, de modo a me deixar intrigada se ele gostaria ou não de deixar espaço para dúvida quanto à natureza „cultural‟ do espaço ou se, numa proposição semelhante à de Ângela, buscaria comunicar sentidos específicos por meio da exposição das obras. 242 6 AS OUTRAS MORADAS DOS MILAGRES Neste capítulo inicialmente apresento a Casa dos Milagres, exposição montada com parte do acervo de Antônio Marques, meu principal interlocutor. Exploro como os arranjos dos objetos suscitam respostas particulares e o modo como o colecionador busca publicizar seu devotamento à arte do povo. Dedico-me, em seguida, à reflexão sobre trajetórias de coisas específicas. Para tanto, utilizo como mote os ex-votos destacados em uma vitrine especial na CM. A biografia desses ex-votos é pertinente para a continuidade da elucidação sobre a dimensão de coleta que antecede a entrada de objetos no âmbito da coleção, lançando luz sobre distintas formas de apropriação deles em locais de culto, ateliês/oficinas de artistas e outros locais nos quais o fenômeno votivo irrompe. Trata-se de problematizar os gestos de coleta que levaram à formação da coleção de milagres, bem como a tônica dessa formação, valendo-me especialmente das situações em que os objetos mudam de mão. 6.1 NA CASA DOS MILAGRES 6.1.1 Uma mostra com nome de museu Diante da impossibilidade de estruturação do Museu do Ex-voto nos termos previstos (formação e regularização de uma associação, processo licitatório, catalogação do acervo em toda sua extensão, elaboração de plano museológico etc.), uma exposição foi inaugurada em agosto de 2013 como espécie de prévia da Casa dos Milagres, ocupando o espaço para o qual a iniciativa foi concebida: a antiga capela do Centro de Turismo, na cidade do Natal-RN. A respeito da mostra Casa dos Milagres – Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques, contudo, meu interlocutor foi enfático ao dizer: “– Nós não temos que sair, agora é só ir aperfeiçoando”, indicando que o que era para ser temporário se convertia na própria criação da CM168. Chega-se à exposição por uma porta que é acessada diretamente da rua, ou seja, não é necessário adentrar a parte “comercial” do Centro de Turismo. No alto da portada foi instalada uma placa que anuncia: Casa dos Milagres Museum. O visitante é recebido ao som de música clássica. De acordo com Antônio e Nildo, o objetivo dessa sonorização é proporcionar “o encontro do erudito com popular”. 168 A interrogação em torno da mostra já ser o museu em si ou não fica maior se consideramos que na abertura da exposição uma “pedra fundamental” foi solenemente descoberta pelo colecionador e pela então governadora do RN, Rosalba Ciarlini. A placa registra que “em 28 de agosto de 2013, dentro da programação do Agosto da Alegria, o Governo do Estado do RN inaugurou o Museu do Ex-voto – Casa dos Milagres, no Centro de Turismo”. 243 Da porta até praticamente o fundo da sala se estende um tapete vermelho, que culmina no altar da capela, elevado acima do chão por degraus. A cor forte do tapete no chão, o posicionamento de frente para porta de entrada e a elevação da estrutura confluem para atrair a atenção do visitante. A estrutura é descrita no catálogo da mostra com as seguintes palavras: A nave central da capela, retomando sua dimensão antiga, é presidida por uma imagem de Cristo de Ambrósio Córdula, esculpida em madeira, que de tão bonito lembra uma obra expressiva de Aleijadinho. Logo abaixo, no altar-mor, Nossa Senhora da Apresentação (Padroeira de Natal) encontra-se entronizada, ladeada por jarros e candelabros. (CARVALHO JR., 2013, p. 17). Figura 78 – Da entrada da Casa dos Milagres ao altar Foto: Edilson Pereira, ago. 2014 Observa-se que Jesus está na posição de crucificado (cabeça abaixada, braços abertos e pés sobrepostos), mas não há uma cruz atrás da imagem. É muito comum que Cristos cheguem aos colecionadores de objetos sacros sem a cruz, que em alguns casos se solta com o tempo e as movimentações as quais é submetida, podendo também, em outras situações, ser retirada para dar a ver o trabalho escultórico. Por causa da posição corporal característica, mesmo sem o suporte da crucificação, sabe-se que se trata de um Cristo morto. Interessante perceber que o colecionador encomenda a imagem de Jesus de grande porte – é a maior obra da CM – solicitando características frequentes dos pequenos Cristos manipulados em coleções particulares. 244 O visitante que fita Nossa Senhora da Apresentação169, posicionada um pouco acima do nível dos olhos de uma pessoa de altura mediana, e eleva o olhar para ver o Cristo, enxerga, acima dele, um “divino” e se continuar direcionando os olhos para cima depara-se com o teto da capela inundado por um „mar‟ de leves bandeirinhas de papel azul. Esse „céu‟ se movimenta com o vento praticamente contínuo e típico de Natal que entra pela porta e pelas janelas laterais. Tal forma de preenchimento do teto foi uma improvisação170. Segundo Antônio, a equipe que montou a CM obviamente cogitou pendurar os ex-votos a partir do teto, como é comum nas salas dos milagres, mas eles poderiam cair na cabeça dos visitantes. Sendo assim, a ocupação da estrutura foi pensada em função da fragilidade do telhado da capela, que poderia não aguentar o peso de milagres pendentes. A nave central é uma estrutura permanente da exposição, mas sua face traseira foi pensada tendo em vista a possibilidade de realização de mostras temporárias com obras de artistas populares. Logo, nesses nichos localizados atrás do altar encontram-se os santos da exposição não pintados, ao passo que as imagens que ocupam os santuários estilizados (descrevo-os logo abaixo) foram policromadas assim como as „originais‟ que visitamos e fotografamos nos locais de devoção apresentados no capítulo anterior. Os primeiros santos que ocuparam os nichos foram os de Luzia Dantas, como forma de homenagem à artista. Em novembro, eles deram lugar a presépios de diversos escultores. Em agosto de 2014, entre Santa Rita e Nossa Senhora Aparecida podiam ser observados as figuras de Lampião e Maria Bonita171. O alinhamento de imagens e de tipos nordestinos em madeira “ao natural” reuniu na prateleira peças de um mesmo artista: João Gregório. Algumas das peças expostas nessa parte da sala, dedicada a mostras temporárias, podem ser compradas pelos visitantes. Figura 79 – Tipos nordestinos e imagens de autoria de João Gregório Foto: Edilson Pereira, ago. 2014 169 De autoria do mesmo artista que esculpiu o Cristo, Ambrósio Córdula, reputado como exímio realizador de imagens ao estilo antigo. 170 Dentre as diversas soluções expositivas encontradas pela equipe da CM, essa foi a mais admirada pelos participantes do Seminário Internacional de Museologia durante o qual expus minha pesquisa na École du Louvre. 171 A configuração foi fotografada por Edilson Pereira, a quem agradeço pelos belos registros visuais produzidos por ocasião de sua visita à CM. 245 Explorado o núcleo principal da capela e seu verso, prossigo com a descrição da mostra fazendo referência à numeração das estruturas expositivas mapeadas no plano de orientação abaixo: Figura 80 – Plano de orientação oferecido pela CM aos visitantes Fonte: Material impresso da mostra Logo após a entrada da capela, há um totem com um livro de visitas e, acima deste, um banner apresenta a exposição (ver 1 no plano de orientação), abaixo reproduzo o texto explicativo da mostra. Casa dos Milagres Museum Santos e Ex-votos na Coleção de Antônio Marques A presente mostra reúne 2.552 objetos religiosos, particularmente santos e ex-votos. As peças foram coletadas, em sua maioria, no Rio Grande do Norte. Apenas 5% vêm de fora do RN, da Europa, da América Latina, e de outros estados brasileiros, em particular, Ceará e Bahia. A coleção foi formada com a finalidade de salvar do esquecimento objetos que até pouco tempo não eram considerados como “obra de arte”. A colaboração de inúmeras pessoas – algumas das quais citadas no catálogo – foi fundamental para a sua configuração atual. Foi preciso aproximadamente meio século para reunir os objetos sacros expostos. Todavia o mais importante é que eles fazem parte do núcleo fundamental do futuro museu “Casa dos Milagres”, instituição não-governamental sem fins lucrativos, com apoio fundamental do Governo do Estado, através da Secretaria Extraordinária de Cultura e da Secretaria de Estado do Turismo. 246 Se continuarmos acompanhando a parede que fica à direita de quem entra na CM, nos deparamos com um painel de duas faces com “gravuras de santos” (ver 2). Essa estrutura contém exemplos daqueles elementos que eu não imaginava expostos em uma mostra da coleção de Antônio, afinal, eles não eram alvo da prática de colecionamento do meu interlocutor. Quando visitei a exposição172, entendi que esses objetos – assim como flores, velas e toalhas de altar – foram dispostos de modo a compor a expografia recorrente em salas dos milagres. É válido registrar que as gravuras também são estimadas pelo colecionador porque nelas podem ser identificadas as fontes iconográficas onde artistas diversos buscaram a inspiração inicial para esculpir certos santos. Mais adiante temos outro painel duplo, dedicado à exposição de “ex-votos em metal” (ver 3), nomeado “Oropa, França e Bahia”. Essa estrutura contém os milagres europeus e latino-americanos mencionados no banner de apresentação da exposição, além de alguns “garimpados” em Bom Jesus da Lapa (BA). São peças bidimensionais em variados tipos de metal – prata, bronze, latão – e que lembram pequenas joias. Os exemplares menores são chamados de milagritos em países de língua espanhola, ou seja, são milagres no diminutivo. Estes objetos foram emoldurados em quadros cobertos com vidro e estes por sua vez foram dispostos no referido painel. A exposição deles, da forma descrita, lembra a exibição de um mostruário de pingentes em uma joalheira. O anteparo de vidro, nesse caso, funciona tanto para que as peças não sejam tocadas, quanto para dificultar que sejam levadas. Figura 81 – Ex-voto em metal Foto: Giovanni Sérgio, originalmente reproduzida no catálogo da exposição Casa dos Milagres (2013) No painel seguinte estão os “retratos da fé” (ver 4): são fotografias recolhidas em salas dos milagres, colocadas em porta-retratos e afixadas na estrutura expositiva. No centro da primeira fileira há um quadro maior com dezenas de fotografias 3 x 4 cm. Em geral, os demais abrigam o típico formato de fotografia 10 x 15 cm com cenas diversas da vida dos devotos, como ritos de passagem (formaturas, casamentos, batizados etc.) e também momentos críticos de enfermidade (pessoas acamadas; acidentadas, com partes do corpo mobilizadas; fotos de membros com feridas ou outras moléstias etc.) que dificilmente encontramos em álbuns de fotos de família, porém são numerosos na maioria das salas dos milagres. 172A montagem aconteceu quando eu já havia finalizado o trabalho de campo em Natal. Visitei a mostra por ocasião de um breve retorno à capital potiguar realizado em julho de 2015. 247 Rente à parede do fundo da sala, há uma estante de madeira com cinco prateleiras contendo “Ex-votos do Ceará” (ver 5). Alguns deles contam com pedestal, com exceção de um tronco (sem braços e com cabeça), todos os demais milagres são cabeças. Ao lado desse expositor há uma placa descritiva: “Ex-votos do Ceará – Ex-votos em madeira provenientes do Ceará – São Francisco do Canindé 173 e Juazeiro do Norte. Estas peças deram origem, no início dos anos 1960, à coleção de ex-votos aqui exposta. O acabamento rústico e a cabeça achatada são características marcantes.” (grifo meu) Logo ao lado, o espaço “Festas Religiosas” (ver 6) apresenta o Calendário de Festas Religiosas de Tradição Católica no Rio Grande do Norte, também disponibilizado no catálogo da mostra (CARVALHO JR., 2013, p. 47), composto por três colunas: data, local e devoção. A estrutura expositiva seguinte é novamente uma estante de madeira com cinco prateleiras e comporta “Ex-votos em cerâmica” (ver 7). Diferentemente daquela contendo “Exvotos do Ceará”, que lhe é simetricamente oposta e povoada essencialmente por cabeças, essa contém exemplares de milagres em forma de pés na prateleira que fica mais próxima ao chão. Nos níveis superiores aparecem dois seios desestabilizando a prevalência das cabeças. Paralelamente a essas estruturas dispostas junto à parede do fundo da sala há uma espécie de divisória. No lado voltado para parede (ver 8) tem-se o espaço destinado aos “artistas populares” já descrito acima; e no lado, voltado para entrada da capela, foi montado o “altar-mor” (ver 9) aludido anteriormente como a estrutura que captura a atenção do visitante logo que a porta é transposta. O tapete vermelho que percorre o centro da sala levando ao altar foi doado pelo pessoal do Teatro Alberto Maranhão, gerido pela FJA. Em suas laterais foram dispo stas seis vitrines retangulares de estrutura metálica e superfícies envidraçadas, também reaproveitadas de outros museus da fundação (idênticas às que utilizamos na exposição de presépios e uma observada na sala dos milagres do Santuário do Lima). Dentro das vitrines foram distribuídos os seguintes grupos de milagres: “Ex-votos – animais domésticos” (ver 10), “Ex-votos – membros e órgãos do corpo humano” (ver 11), “Ex-votos – estruturas ósseas, articulares e órgãos dos sentidos” (ver 12), “Ex-votos – casas residenciais” (ver 13), “Ex-votos materiais diversos” (ver 14) - “Ex-votos exumados” (ver 15). 173 Ou seja, os primeiros ex-votos de Antônio Marques também procedem do local onde o colecionador Jacques van de Beuque, formador do acervo do Museu Casa do Pontal adquiriu suas primeiras peças votivas. 248 A presença de uma “Sala de devoção ao Pe. João Maria” (ver 16), ao fundo e no lado esquerdo da sala, mostra o acolhimento de uma das sugestões da Secretária Extraordinária de Cultura na expografia da CM. Como mencionei no capítulo anterior, Isaura Rosado recomendou que o museu compreendesse, além dos santuários que visitamos, a devoção ao “santo dos natalenses” e aos “Mártires de Cunhaú”. A imagem do sacerdote cultuado em Natal presente na CM foi esculpida em madeira pelo artista Chico Santeiro 174. A ausência de peças que remetam à devoção aos Mártires de Cunhaú e “outros critérios da curadoria” foram explicitados no catálogo: O objetivo da presente mostra não pode ir além do seu título, isto significa que estamos apresentando peças artísticas e religiosas de uma coleção particular, sem a pretensão de uma abordagem abrangente do tema, mesmo tendo como horizonte os santuários do Rio Grande do Norte. A curadoria destacou aqueles santuários que tem maior presença de romeiros e, consequentemente, maior ocorrência de ex-votos. Um levantamento rigoroso dos lugares e locais de devoção popular possibilitaria um acervo bem mais abrangente. Em decorrência deste critério deixamos de registrar centros religiosos de importância para a história cultural e religiosa do nosso estado. Exemplo claro é a ausência de uma referência pontual dos Mártires de Cunhau e Uruaçu, e até mesmo da Igreja de Santos Reis, localizada nas Rocas. Nosso tema, definido pelo título da exposição, também deixou de abordar aspectos religiosos de tradição judaica, evangélica, afro-brasileira, indígena, espírita e outros, embora fundamentais para a formação de nossa identidade cultural. Essa explicação não deixa de ser um indicativo para a tarefa de promover urgentemente a visibilidade de outras tradições religiosas. Mesmo abordando apenas alguns santuários católicos, não nos foi possível trazer à tona toda a riqueza neles encontrada. Impraticável, sem meios adequados, dar conta da diversidade e da quantidade dos objetos votivos depositados nos espaços sagrados. Diante desse fato, nesta primeira mostra, fizemos a opção de selecionar os ex-votos a partir de três critérios fundamentais: - Representação do corpo humano; - Representação de animais domésticos; - Representação de casas residenciais. Quanto às imagens sacras, a curadoria esclarece que o critério de seleção adotado foi sempre o da relação de destaque – oragos – que elas mantem com os santuários abordados. No entanto, imagens da devoção popular podem surgir de forma surpreendente em qualquer parte da exposição. É a complexidade do fenômeno da religiosidade e da estética popular que não se deixa aprisionar por regras acadêmicas. (CARVALHO JR., 2013, p. 27, grifo no original). 174 Este, com Ch mesmo. Acredito que dificilmente Antônio colocaria peças de Xico de forma permanente na CM, pois os visitantes mais atentos à importância do trabalho do Aleijadinho do RN poderiam não resistir à tentação não só de tocá-las, mas de levá-las... 249 Assim como previsto no projeto, os santuários foram estilizados no interior das arcadas originais da antiga capela. A proposta de ocupação da capela tirando proveito das possibilidades arquitetônicas já existentes foi importante para que a implantação da CM não fosse vista como ameaça de descaracterização do espaço. A utilização pretérita como local de cerimônias religiosas impunha algumas configurações, como a localização do altar-mor, mas por que Antônio imaginou santuários estilizados no interior das arcadas? Em suas considerações sobre a função sociológica da porta, Roger Bastide (2006 [1951]) nos explica a existência de […] portas sem parede, portas que o arquiteto destacou da casa para jogá-las no meio da rua: os arcos do triunfo. O arco do triunfo, com suas colunas, suas abóbadas, seus frontões mostra a que ponto, no pensamento místico das multidões, a porta é um dos elementos essenciais do cerimonial e como a beleza perecível da madeira esculpida ou a beleza mais permanente da pedra talhada, do mármore colorido, acrescenta grandeza e nobreza ao gesto do homem que caminha, que transpõem o umbral de todo um mundo. [...] Apenas a igreja conserva a porta como espetáculo artístico, como uma moldura de quadro em que a tela pintada é substituída por um pintura sempre cambiante - a dos indivíduos que entram e saem e aos quais a escadaria, pela disciplina que impõe aos músculos, confere momentaneamente um ar de dança ou de procissão ritual. (BASTIDE, 2006 [1951], p. 130-132, grifos meus). Na esteira dessa argumentação de Bastide175, as “portas sem parede” da CM, as arcadas da antiga capela do CT, são molduras para as obras expostas em seus interiores. Mais do que direcionar a atenção para um enquadramento específico, no entanto, promovem uma certa “magia da abertura”, tornando uma forma de bênção o ato de transpassar uma porta. Nesse sentido, o visitante da CM é potencialmente um romeiro, seu acesso a santuários é, ao modo e de acordo com as possibilidades do espaço e do curador, solenizado. Figura 82 – Sala de devoção ao Pe. João Maria, vista através da arcada Foto: Giovanni Sérgio originalmente reproduzida no Catálogo da exposição Casa dos Milagres (2013) 175 Ricamente ilustrada com fotos de Pierre Verger. 250 Na estilização do Santuário de “Nossa Senhora das Vitórias” (ver 17) tem-se uma imagem dessa santa de autoria de Elias Sultano, feita em resina e madeira policromada e com adereços do escultor Gean de Santa Cruz. Figura 83 – Estilização do Santuário de Nossa Senhora das Vitórias, sendo visitada por Leléu176 e família Foto: Helenice Dantas177 O “Santuário da Menina” (ver 18) é a atração da arcada seguinte. Como se vê, a estilização do culto que acontece no Monte das Graças em Florânea contemplou a imagem que fica na sala dos milagres desse santuário e não a que fica na capela principal (Nossa Senhora das Graças). Quem esculpiu a menina foi Gean de Santa Cruz. Assim como a peça do santuário, a da capela ganhou um manto em tecido preso com um laço de fita no pescoço da imagem. Figura 84 – Estilização do santuário da Santa Menina. Foto: Edilson Pereira, ago. 2014 176 Leléu é zelador do santuário em questão e „curador-colaborador‟ da CM, como aventei no capítulo anterior. 177 http://blogdotoscanoneto.blogspot.com.br/2015/01/carnaubenses-visitaram-casa-dos.html 251 Adiante se tem o “Santuário de Nossa Senhora dos Impossíveis” (ver 19) com sua respectiva imagem em madeira policromada, feita pelo artista Chico Santeiro. A santa é apresentada à frente de um fundo vermelho e sob uma cortina branca de renda que se abre. Ao lado, e à frente da imagem, há vasos com flores. Por fim, o “Santuário de Santa Rita de Cássia” (ver 20), cuja imagem em madeira policromada de autoria de Ambrósio Córdula é mostrada dentro de um oratório ricamente ornamentado, à frente do qual, foram dispostos um par de castiçais com velas e um de jarras de porcelana contendo flores brancas. Figura 85 – Estilização dos Santuários de Sta. Rita, em primeiro plano; o de Nossa Senhora dos Impossíveis, à direita e, ao lado desse, o da Sta. Menina 178 Os santuários estilizados foram compostos tanto por imagens encomendadas especialmente para figurar na CM, quanto por peças que já pertenciam ao acervo do colecionador, como é o caso da maioria dos milagres que rodeiam os oragos. A maior parte desses ex-votos pendurados na parede utilizada como suporte para estilização dos santuários é composta de braços, mãos, pernas e pés. Os membros inferiores concentram-se embaixo e na sequência acima deles têm-se os superiores, logo depois, representações do corpo inteiro e na parte mais alta, quase tocando o teto, uma prateleira sobre a qual foram dispostas cabeças, sendo que algumas delas pendem desse suporte. Essa disposição evidencia que as cabeças são consideradas superiores mesmo em relação às representações antropomorfas completas, ou seja, àquelas que Saia (1944) instituiu na literatura “como se” fossem imagens. 178 Foto originalmente reproduzida de http://www.cultura.rn.gov.br 252 Acima da portada também foi colocada uma prateleira de onde pendem fitas coloridas de cetim e onde foram dispostos “Ex-votos atribuídos a Chico Santeiro de Currais Novos” (ver 23a). São milagres pintados em forma de busto, ou seja, esculturas que compreendem o peito e a cabeça de uma pessoa. Segundo Antônio, essas peças foram adquiridas na casa do artista que as esculpiu sob encomenda e os encomendantes não voltaram para buscá-las. Figura 86 – Milagres em forma de busto de autoria de Chico Santeiro Foto: Edilson Pereira, ago. 2014 A expressiva face de uma dessas peças ilustra a capa do catálogo da mostra. A parte posterior da obra, na qual se destacam os cabelos estriados terminando em um esmerado coque, figura na contracapa. Apesar de ter sido destacado dos ex-votos que lhe são aparentados e ser apresentado sobre um totem (ver 23) em separado dos demais bustos que ficam acima da portada, nota-se que o milagre „mestre de cerimônia‟ da publicação não tem exatamente o mesmo relevo na configuração da exposição. Figura 87 – Capa e contracapa do Catálogo Casa de Milagres Fonte: Reprodução, Natal-RN, 2013 253 Próximo ao totem do milagre „mestre de cerimônia‟ do catálogo há uma estrutura dedicada aos “Roteiros da Fé Potiguar”. Ao nível dos olhos encontra-se o mapa com o “elefante” formado pelos limites do RN, no qual foram destacados os municípios com “santuários e locais de devoção popular com presença de ex-votos”, os que serviram de inspiração mais direta para a CM aparecem em laranja e os “outros locais de devoção popular” do estado são marcados em verde. Assim, as localizações geográficas específicas dos santuários estilizados são informadas ao visitante, que também fica sabendo sobre a ocorrência de milagres em muitas outras coordenadas do interior potiguar. Ao direcionar a atenção para os locais onde o sagrado irrompe, essas indicações possibilitam que o expectador da mostra também se torne um explorador do território do RN. A explicitação dos caminhos – tantas vezes trilhados pelo colecionador em busca de objetos da fé – convida à fruição dos pormenores de uma viagem de descoberta. Figura 88 – Mapa das devoções potiguares do catálogo da mostra. Fonte: Reprodução, Natal-RN, 2013 254 6.1.2 Devotos, turistas e visitantes Muitos visitantes claramente identificam a dinâmica da CM com aquela dos santuários e dos espaços contidos nestes e onde se oferta objetos aos santos. Assim, ao adentrarem o espaço da mostra/futuro museu seguem direto para os altares e se ajoelham para rezar diante das imagens. Eles querem tocar nas peças, a gente pede para não tocar, porque é uma obra de arte. Tudo de modo delicado, não chego gritando, eu explico que pode danificar a pintura. Mas tem uns que a gente vê que estão tão envolvidos com a prática que eu deixo, não tem como. Teve uma senhora que já entrou ajoelhada, eu falei “não, senhora, não, não”, mas ela foi de joelhos até lá, e disse “eu fiz promessa, eu tenho que entrar”. E o que eu posso fazer? Eu deixei. Essas palavras são de Paulina179, que foi quem acompanhou a realização desses gestos de forma mais próxima e durante mais tempo, pois atuou como mediadora da mostra180. Segundo ela, era muito comum que as pessoas já entrassem na capela de joelhos, tirando o chapéu ou “se benzendo”, isto é, fazendo o sinal da cruz. Vale notar que o desejo de toque, recorrente nos relatos sobre exposições diversas, na CM afigura-se como incrementado pela experiência devocional. Os ex-votos também convidam ao estabelecimento de relação por meio do tato, mas as mãos dos visitantes buscam, sobretudo, aquelas imagens que são corpos desdobrados dos patronos dos santuários. A contundência de alguns gestos era tamanha a ponto de Paulina não conseguir se imaginar desqualificando essas respostas às obras, apesar da ameaça que poderiam significar para a pintura dos santos. Como mencionei em outro momento da tese, Paulina integrou um grupo de pesquisa da UFRN que em diversas ocasiões se valeu das peças de Antônio Marques para realização de pesquisas. Em vista disso e de ter catalogado o acervo exposto na CM, tinha grande familiaridade com as obras, tendo inclusive elaborado seu TCC em Artes Visuais (FAGUNDES, 2015) a partir de análises que conduziram à identificação e atribuição de alguns milagres de autoria até então anônima a artistas populares atuantes no estado 181. 179 Sou 180 grata à Raquel Lima por tê-las registradas em áudio por ocasião de sua visita à CM em agosto de 2014. E, para tanto, foi contratada como estagiária pela FJA. Com auxílio de Antônio, Paulina identificou “12 grupos principais de peças com semelhanças estilísticas marcantes entre si” (FAGUNDES, 2015, p. 48). O grupo mais numeroso é o formado pelas peças de Julio Cassiano, seguido pelos de Neném de Chicó, Ramiro Barboza, Zé da Neuza e Daniel Alves. Na impossibilidade de atribuição de alguns dos conjuntos a nomes específicos, foram ressaltadas suas particu laridades fisionômicas: “olhos inchados”, “sobrancelhas unidas”, “Tininim” (por conter traços que lembram o personagem homônimo da obra “A Turma do Pererê”, criada pelo cartunista Ziraldo), “cílios riscados”, “boca saliente” e “cabelos ondulados”. Um grupo particular de ex-votos de membros inferiores foi nomeado M.S. em referência à inscrição que se repete nas diferentes peças e que provavelmente remetem à autoria das figuras. 181 255 No capítulo precedente abordei em que termos a necessidade de catalogação é vista como imprescindível para a manutenção do controle do acervo. No momento de concepção da CM, essa empreitada forneceria os subsídios necessários para a elaboração de um plano museológico e durante a realização da mostra serviria como ferramenta de precaução contra a subtração de peças. O que surpreendeu a equipe do museu, entretanto, foi a leitura de alguns visitantes de que o local, assim como as salas dos milagres, seria um espaço de recepção permanente de ex-votos. Na ótica dessas pessoas, portanto, a composição da expografia se daria por agregação contínua de milagres. A exposição foi acrescida de novas peças desde que foi aberta ao público. Uma senhora pediu para o filho levar uma mão esculpida em madeira e colocar a peça no altar de Nossa Senhora dos Impossíveis. A devota fez tal solicitação após ver a notícia da inauguração da CM na televisão e ter realizado uma promessa para ser paga lá. Dinheiro e bilhetes deixados para os santos também foram encontrados por Paulina. Esses itens se enquadram no que Antônio Marques qualifica de oferenda: um “gesto espontâneo” motivado pela comoção de estar face a face com aquelas imagens. Nessa perspectiva, o “ex-voto em sua concepção tradicional” é uma representação plástica concebida antes da visita ao santuário e criada especialmente para ser ofertada. A mediadora também narrou situações em que as pessoas percebem de imediato que a CM “é um museu”. Paulina identifica estes visitantes porque eles se detêm primeiramente no conteúdo das vitrines e ao invés de se dirigirem logo aos altares, como é o caso dos devotos, preocupam-se em deixar seus nomes no livro de visitas, por exemplo. Na visão da mediadora, as obras não incitam apenas desejo de inscrição e curiosidade: Os [visitantes] que já conhecem o que é, já explicam para o outro que não sabe. As crianças perguntam muito para os pais: - O que é isso? Aí que eles explicam que são as pessoas que fazem promessa e tal. Aí eu já percebo que conhecem a tradição. Só que muitas vezes eles estranham o material. A maioria dos turista s que chega aqui conhece o de cera, aí acham diferente ser de madeira, cada peça é única, tem peça muito naturalista, alguns se surpreendem pela representação do ferimento ou da doença em si. Tem gente que se sente bem, que sente uma paz. Tem outros que não se sentem tão bem, já saem, as fotos impressionam. Mas a grande maioria gosta. Eu que estou aqui todo dia, penso que se eles transmitem uma energia, é de positividade, é um agradecimento, foi uma cura. (grifos meus) . 256 Dentre os “Retratos da Fé”, como apontei no tópico anterior, há fotos de situações críticas. No relato de Paulina, percebe-se que esses ex-votos não incitam desejo de toque e podem repelir o olhar do visitante, pois a “representação do ferimento ou da doença em si” impressiona. Acredito que isso justifica o „brotar‟ de singelos corações entre essas fotos. Os milagres com esse formato – pintados de vermelho e pendurados por meio de fita de cetim da mesma cor – suavizam o quadro de dor formado pelas fotografias que trazem tantas agruras. Antônio relatou ter ouvido críticas por criar uma exposição de feições delicadas a partir de peças que, em seus contextos “originais”, exalariam a pungência do sofrimento das pessoas. Assim, a mostra foi descrita como “alegre demais” por um visitante. Uma exposição inspirada nas “verdadeiras salas dos milagres” não poderia ter um caráter tão festivo. Segundo o colecionador, entretanto, “– A CM é justamente uma casa de festa”. O que precisa ser solenizado, nessa ótica, não é a dor, mas a relação entre devotos e os patronos dos santuários estilizados e, principalmente, os objetos que ela produz. O Secretário de Turismo do RN chegou a sugerir que a capela da Casa dos Milagres fosse novamente consagrada pelo Bispo, assim o espaço voltaria a ser palco de missas e rezas de terços. Alguns organizadores de excursões de romeiros passaram a utilizar a mostra como primeira parada da jornada ritual que iniciavam em direção a algum dos muitos santuários do RN. Ao narrar um desses episódios, Antônio asseverou: “– É o museu da ambiguidade!”. Quando participei das reuniões voltadas à implantação do museu, percebi que essa ambiguidade era benquista, ou seja, a mostra seria organizada de modo a não deixar explícito que se trataria de um espaço não religioso. Essa percepção ficou mais evidente quando observei a configuração da exposição respeitando as estruturas arquitetônicas originais da capela, ou seja, com finalidades religiosas, como a nave central sendo presidida pela imagem de Cristo crucificado e logo embaixo um altar com Nossa Senhora da Apresentação. Conforme imagem na página a seguir, é possível notar como essa estrutura expositiva apresenta poucos elementos em relação aos muitos e heteróclitos presentes nos santuários estilizados. 257 Figura 89 – Altar-mor da CM Foto: Giovanni Sérgio originalmente reproduzida em www.cultura.rn.gov.br Esta parte da expografia da mostra, portanto, remete à posição de imagens encontradas na maioria dos templos católicos, inclusive respeitando-se a orientação pós-Vaticano II que recomenda a exposição, preferencialmente, de apenas três imagens nos templos: o Cristo (única requerida), a Virgem Maria e o santo padroeiro da igreja ou de devoção da comunidade. A ordem de exposição deve corresponder à justa hierarquia de devoção priorizando sempre Cristo. Tratase de uma Igreja que prescinde de ser povoada de corpos de santos. Na CM, essas imagens passíveis de serem consideradas excessivas não estão no altar principal, como já foi dito, mas nas representações dos santuários que foram organizadas nas arcadas de uma das paredes laterais. Os anos de seminarista do colecionador e a longa experiência percorrendo santuários em busca de objetos lhe renderam grande conhecimento tanto das práticas litúrgicas recomendadas, como daquelas que não deveriam ser incentivadas. Isto posto, insta refletir que os atos devocionais observados em um ambiente onde se exibiria, a princípio, obras para apreciação da “dimensão estética da religiosidade popular” não se devem unicamente ao que um olhar desavisado poderia tomar como um mal-entendido. 258 Mesmo que isso não seja declarado abertamente, ao que tudo indica, tais gestos são esperados e atualizados em narrativas porque incrementam o discurso sobre a complexidade das práticas do Catolicismo do povo. Afinal, foi o olhar atento ao longo de anos para os suportes materiais de tais práticas, como os ex-votos, que permitiram a acumulação deles e, consequentemente, aquela exibição. Desse modo, vê-se que os objetos foram reunidos na mostra também de modo a exaltar a religiosidade vivida, a despeito da censura do clero, nas “irmandades, santuários e capelinhas de beira de estrada”, para usar o título do texto de José Oscar Beozzo (1977) que tão bem sintetiza os locais onde meu interlocutor, assim como esse autor, situa a ocorrência de práticas do Catolicismo leigo e popular. Apresentado esse cenário, dentre outras questões, podemos indagar: o que acontece quando um ex-voto ganha o estatuto de arte, mas é (re)apresentado ao público de forma muito similar à maneira como era mostrado em uma Sala dos Milagres de santuário? A realização da mostra/futuro museu se avultou como ocasião privilegiada para observar como usos rituais não são de todo obliterados no espaço configurado para apreciação estética e que, muito pelo contrário, tais usos podem inclusive ser fomentados a partir de certos dispositivos de apresentação. Bruno Brulon (2013) afirma que o processo de musealização tem potencial de equivaler a uma sacralização, uma vez que o museu pode promover a regeneração simbólica do objeto. A performance museal da CM, como visto acima, não compreende apenas a reprodução dos ambientes das salas dos milagres. Esses espaços dos santuários foram reelaborados de forma criativa através do arranjo do acervo em certas estruturas expositivas. Nesse sentido, os objetos não são meramente cenográficos, pois, em sua mise-en-scène, atuam e possibilitam a re(ativação) da força ritual de um espaço. Assim, a combinação de santos, ex-votos, toalhas, flores e altares relativiza o caráter lateral da parede que abriga os santuários (tendo em conta a centralidade do altar-mor). Os arranjos sob as arcadas são potentes a ponto de serem vistos como moradas de divindades sem que precisem passar por consagrações oficiais. Nessa linha de raciocínio, uma bênção vinda do Bispo não seria criadora dessa potência, e sim ratificadora. O gesto autenticaria a CM como um lugar propício para a celebração de vínculos diversos com os santos. Sendo assim, o fato de alguém cogitar sua realização também passa a ser articulado nas narrativas de Antônio Marques sobre os efeitos da exposição nos visitantes. 259 6.1.3 O destino da coleção de milagres Em sua difundida definição de “Coleção”, Pomian (1984) opõe o destino incerto dos objetos oriundos de coleções particulares ao daqueles guardados sob o cuidado das instituições museológicas: “Contrariamente à coleção particular que, na maior parte dos casos, se dispersa depois da morte daquele que a tinha formado e sofre as repercussões das flutuações da sua fortuna, o museu sobrevive aos seus fundadores e tem, pelo menos em teoria, uma existência tranquila.” (POMIAN, 1984, p. 82), não acredito que seja pertinente abordar as biografias dos objetos em termos de descontinuidade tão delineados. A “existência tranquila” no museu, de que fala Pomian, pode ser inclusive planejada pelo colecionador como futuro para os objetos que reúne, a exemplo da Casa dos Milagres organizada por Antônio Marques. Pode-se pensar no batismo do local como “Casa dos Milagres” remetendo tanto às exposições de santos e ex-votos nos seus contextos „originais‟ – ou seja, devocionais – quanto à fundação dos alicerces de uma morada protegida e duradoura para parte significativa da coleção particular. O colecionador poderia ter optado por outras denominações frequentes nos santuários, tais como “Quarto das Promessas” ou “Salas dos Milagres”, mas ao invés de optar por esses nomes que remetem a partes de um lar, optou pelo todo evocado pela noção de casa. O gesto de construção de uma casa – quando se poderia ter optado pela instituição de um “museu” ou de uma “galeria” – especificamente para abrigar uma coleção nos coloca na presença de uma forma de mostrar que publiciza sem deixar de remeter ao privado. No entanto, é importante frisar que se trata de um registro do privado que não é absolutamente íntimo. Coleções particulares são dadas ao olhar das visitas nas residências de seus proprietários, ainda que para um público mais restrito 182. Em vez de opor guardar e mostrar, por conseguinte, faz mais sentido pensar em „exibição reservada‟. Além disso, é preciso ter em conta que a inserção em uma coleção particular não implica na exclusão de possibilidade de circulação do objeto em outros contextos. A referência constante às casas de colecionadores como lugares onde habitam quantidades insondáveis de coisas pode acionar a ideia 182 Como evidenciam o título e o subtítulo da matéria “Casa onde a arte faz morada – Marchand transforma a própria residência em um espaço diversificado para o artista potiguar expor trabalhos” (Diário de Natal, 7/11/1997). A residência noticiada foi vendida por Antônio para compra de um imóvel mais amplo, cuja entrega pela construtora se arrastou por anos. Após meu retorno do campo, em uma de nossas conversas por telefone, perguntei ao colecionador se ele finalmente se mudaria para o esperado apartamento e ele prontamente respondeu: “– Sim, ficou pronto, mas agora não tenho como pensar nisso, estou quase me mudando para a Casa do Milagres”. 260 de uma prática de acumulação que “estaciona” os objetos ao subsumi-los a um conjunto que, na sua avidez de completude, parece engoli-los. Porém, os objetos transitam – individualmente ou inseridos em grupos representativos de recortes da coleção – por mostras, exposições, salões, museus, galerias, são emprestados para composição de cenários, ilustração de reportagens e pesquisas etc. Para além dessas movimentações mais pontuais, a dimensão pretendida para a coleção como um todo pode acabar por implicar no seu deslocamento para outro espaço. Caso esse processo possa ser orquestrado pelo colecionador, é presumível que o local de destino da coleção seja familiarizado para que as coisas se sintam “em casa”, e não o contrário. Busca-se que a impressão da narrativa do colecionador extrapole o corpus da coleção e afete o próprio espaço. Isso é notável em locais construídos especificamente para abrigar e mostrar coleções, tais como os Museus Chácara do Céu183 e Casa do Pontal184, ambos indissociáveis das figuras dos colecionadores que os conceberam. No caso da CM, como visto, parte da coleção foi alocada em um espaço já existente, mas que foi disciplinado para que um discurso sobre o popular fosse performatizado. A transformação definitiva da CM em museu depende de algumas variáveis. O colecionador não cogita doar o acervo para o órgão estadual de cultura, que apoiou a realização da mostra, porque entende que o Estado não tem condições de cuidar das peças de modo adequado. Devido a preocupações semelhantes, muitas coleções são doadas segundo condições, tais como o não desmembramento do conjunto, a forma de exposição ou a interdição de empréstimos, por exemplo. Em outros casos, é a família que, quando se vê às voltas com espólio de um ente falecido, opta pelo encaminhamento dos bens para fora do âmbito privado. Ainda que a exposição inaugural da CM tenha sido considerada um sucesso – e atraído atenção da mídia local, de amantes da arte, turistas, curiosos, devotos e romeiros 185 – a consolidação, enquanto Museu do Ex-voto, ainda é incerta. O apoio da FJA na estruturação da 183 A Chácara do Céu, no bairro de Santa Tereza, Rio de Janeiro, foi concebida pelo industrial Raimundo Castro Maya para acolher suas obras modernistas, enquanto peças de mobiliário e de artes decorativas ficaram no Museu do Açude, no Alto da Boa Vista, também no Rio de Janeiro. Sobre o processo de institucionalização e conversão da coleção privada do industrial em museus públicos, hoje a cargo do IBRAM, ver Batista (2012). 184 A Casa do Pontal fica em um sítio no Recreio dos Bandeirantes, no Rio de Janeiro e foi idealizada por Jacques Van de Beuque para exibir sua extensa coleção de obras de arte popular. A musealização da coleção foi analisada por Ângela Mascelani (2001). 185 Atendo-me apenas a algumas publicações impressas que dedicaram páginas à mostra, e que podem, portanto, serem vistas como formas de „catalogação‟ da iniciativa, noto que a Casa dos Milagres figurou na capa da Revista Ícone – Turismo e Cultura do Nordeste (2014, ano I, n. 2); e nas matérias “Nossa Senhora dos Novos Tempos” e “Fé esculpida, desenterrada e preservada”, respectivamente publicadas na Revista Preá (FJA, 2014) e no anuário da Casa Cor/Franquia Rio Grande do Norte de 2015. 261 mostra envolveu a cessão de itens que estavam sem uso em outros museus potiguares; a produção do catálogo da exposição e a contratação de Paulina como estagiária. Desse modo, a então estudiosa do acervo passou à condição de mediadora da CM. Após concluir sua graduação, Paulina se mudou para outro estado para realizar o mestrado e seu cargo não foi mais ocupado. A mostra deixou de ser aberta diariamente. Antônio e Nildo se revezaram por um tempo tentando suprir a lacuna da jovem, mas na impossibilid ade de abrir as portas da CM com regularidade, passaram a fazê-lo de modo esporádico (especialmente quando solicitados por escolas, jornalistas, amigos etc.). Com a saída de Isaura Rosado da direção da FJA no final de 2014, o suporte da fundação à iniciativa – que já era considerado exíguo – se tornou praticamente inexistente. Ao conhecer a exposição, o então novo Secretário Extraordinário de Cultura, Rodrigo Bico, declarou ter gostado da iniciativa e que a mesma mereceria atenção da FJA 186. Entretanto, nenhuma parceria mais efetiva para manutenção do espaço foi estruturada. A permanência da capela fechada por longos períodos culminou na descoberta de uma infestação de cupins. Parte do mobiliário reaproveitado de outros equipamentos culturais não resistiu aos insetos. Os ex-votos e demais objetos do acervo, em sua maioria, feitos de madeira resistente a pragas, não chegaram a ser danificados. A desintegração literal de suportes da exposição foi vista como prenúncio desanimador do que estaria por acontecer com os santos e milagres. A ameaça concreta das imagens, cabeças e obras afins expostas na CM se tornarem “comida de cupim” fez com que Antônio Marques cogitasse desmontar a exposição e retornar com as peças para casa. Em vista disso, o colecionador foi sondado quanto à possibilidade da transferência do acervo para o Museu Câmara Cascudo. Como foi exposto no primeiro capítulo, o acervo do MCC conta com objetos como os da Casa dos Milagres, alguns inclusive foram parar lá por intermediação do colecionador, outros foram atribuídos a escultores populares com auxílio de seu olho treinado. Entretanto, a possibilidade das coisas irem parar na reserva técnica de uma instituição não lhe parece muito animadora. Antônio tem receio que as peças sejam meramente guardadas, pois acredita que, além de preservadas, elas precisam ser mostradas. Desse modo, entendo que para meu interlocutor a musealização precisa não apenas conservar as coisas, mas também resguardar uma forma de se relacionar com elas, isto é, proteger um vínculo específico. “Para Bico, Casa dos Milagres merece atenção da FJA”. Publicação da assessoria de comunicação da FJA na página eletrônica da instituição em 2 de fevereiro de 2015. 186 262 A publicização da coleção nos coloca diante de questões que vão além do aparente aspecto de coroamento da carreira do colecionador, como por exemplo: a passagem mais definitiva da coleção do espaço privado para o público seria liminar a ponto de ameaçar uma relação de décadas entre Antônio e seus objetos? Tal relação é perpassada pela construção de hierarquias e lógicas particulares que podem não coincidir, por exemplo, com um plano museológico ou com a definição de um conceito unívoco da ideia a ser transmitida pelas coisas expostas. O próprio tempo institucional não foi seguido, pois, para que a CM existisse logo, o colecionador precisou „queimar‟ etapas (licitação, confecção do plano museológico e expográfico etc.). Fazer “do jeito que deu” também seria, em alguma medida, justificativa para fazer de modo altamente personalizado? Vale acrescentar que a falta de pessoal especializado do quadro da FJA 187 foi tanto lamentada quanto entendida pelo colecionador como fresta para que tudo fosse executado segundo seus exigentes direcionamentos, o que me leva a refletir sobre o quanto expor sua coleção seria expor-se. Abaixo desenvolvo essa reflexão através do olhar para uma das vitrines dispostas na nave central da capela. Minha atenção se dirigirá aos milagres destacados nessa estrutura expositiva específica, posto que eles são particularmente interessantes para discutir uma série de questões relacionadas à biografia cultural das coisas. A vitrine em questão é retangular, sua estrutura é feita de metal e as superfícies inferiores, superiores e laterais são de vidro transparente. O fundo do móvel foi forrado com material branco, sobre o qual se destacam esculturas em madeira escurecida – em formato de cabeças, braços, pernas e outras partes do corpo – com aparência visivelmente desgastada. Sobre a vitrine têm-se três caixas de acrílico e no interior de cada uma delas uma cabeça, que adiante passarei a tratar por C1, C2 e C3. Figura 90 – Vitrine especial na nave central da capela Foto: Marília Gonçalves, mai. 2015 187 A FJA contava com apenas um museólogo em seu quadro de funcionários quando o apoio da instituição começou a ser buscado para implantação da CM. A carência de profissionais da área tomou maior proporção com o projeto de reestruturação de museus divulgada em 2013. Uma museóloga foi então contratada para atuar na melhoria dos equipamentos culturais que poderiam ser alvo de visitação turística durante a Copa do Mundo de Futebol de 2014. 263 C1 e C3 são cabeças femininas esculpidas em madeira e pintadas com tinta a óleo. Ambas possuem algumas avarias, porém seus respectivos estados de conservação são visivelmente melhores em relação à peça do centro. Trata-se de C2, uma cabeça masculina cujo aspecto degradado se assemelha à quase ruína dos ex-votos do interior do móvel. Qual seria o sentido de justapô-las assim? 6.2 NAS CASAS E NAS COLEÇÕES DAS PESSOAS As cabeças femininas (C1 e C3), que hoje estão na exposição da CM, não foram encontradas pelo colecionador em alguma sala dos milagres, como poderia ser presumido em se tratando de ex-votos. Antônio Marques foi procurado pela viúva de um advogado que buscava se desfazer dos objetos que o marido deixara. “– Muita coisa ela estava vendendo, móveis, peças de Vitalino, de Xico Santeiro, mas as duas cabeças ela ia me dar mesmo, provavelmente achava que eram insignificantes, que não valiam nada, mas alguém lhe disse que eu gostava desse tipo de coisa”. O colecionador aceitou o presente e solicitou à viúva um preço para o “lote” que formou na reunião de outras coisas que lhe interessaram. O advogado que detinha as peças foi deputado estadual, professor de História e memorialista. Apreciador da cultura popular do estado, costumava enfeitar sua casa, em especial, sua biblioteca, com obras de artistas potiguares. As cabeças em questão poderiam ter sido compradas diretamente do artista que as fabricou ou em alguma loja, mas a inscrição “Cruz da Prêta” indicava que, ao menos, uma delas chegou a ser ofertada como ex-voto antes de ser transformada em item de decoração. O antigo proprietário também poderia ter recebido as peças como presente de alguém que as coletou na Cruz ou mesmo tê-las recolhido diretamente por ocasião de uma de suas muitas viagens ao interior com fins de campanha política ou realização de levantamentos históricos. O ponto a ser salientado é que após seu falecimento seus familiares não se dispuseram a continuar com a posse dos objetos. Como foi dito acima, ao buscar um comprador para as coisas do marido, a viúva procurou negociar as que Antônio poderia revender e lhe ofertou gratuitamente o par de esculturas, pois sabia que lhe agradariam, apesar de não possuírem valor comercial evidente para ela. Esta transação nos coloca diante de algumas figuras: a de fornecedora eventual da viúva/herdeira, a do comerciante de arte e de antiguidades e ainda a do colecionador; e ilumina a respeito do funcionamento interrelacionado desses papéis, bem como sobre as justificativas acionadas em situações de transferência de bens entre familiares e compradores/revendedores. 264 A venda de objetos e a doação das cabeças foram motivadas por uma mudança de apartamento, posto que no novo local de moradia os membros da família não teriam espaço suficiente para abrigar tudo que herdaram, mas nem todas as justificações para passar objetos adiante se referem a restrições espaciais. Em antiquários e feiras de antiguidade, ouvi muitas pessoas alegando “modernização” da decoração de ambientes para se desfazer de coisas. Essa empreitada tende a tornar os espaços menos povoados delas, principalmente as que remetem ao “antigo”. A herança de imagens de santos e de outros objetos religiosos coloca problemas particulares, visto que estes objetos se relacionam a práticas de culto nem sempre herdadas pelos familiares de seus proprietários. Alguns são mantidos não exatamente por motivações devocionais, mas por razões afetivas, como uma forma de lembrar dos antepassados por meio de algo fundamental para a vivência religiosa deles. E mesmo essas obras com potencial afetivo podem ser limadas quando submetidas ao crivo da renovação de um ambiente. Quando há espaço para imagens em ambientes modernizados, a opção das pessoas é, em geral, pelos “santos da moda”. Durante a pesquisa de campo, São Francisco, São Miguel e Santo Expedito foram exemplos recorrentes de santos facilmente encontrados em lojas, no entanto, é importante precisar que não se trata da iconografia de São Francisco que ressalta sua esqualidez e seu sofrimento. O São Francisco que está em alta continua magro, mas é alegre e rodeado de animais188. As imagens de São Miguel e Santo Expedito, frequentes nos dias atuais, são corpos de santos guerreiros e imponentes. Já as imagens antigas apresentadas no primeiro capítulo de forma corriqueira têm feições tristes ou severas e, em vista disso, de acordo com meu interlocutor, dificilmente são admitidas nos processos de redecoração de ambientes. O não lugar das coisas antigas e o apego a modismos são avaliados como descabidos, mas, por outro lado, possibilitam que os objetos cheguem às mãos do colecionador. Sendo assim, despertam sentimentos muitas vezes contraditórios naquele que fica feliz ao ser procurado para comprar certas coisas, mas que, por outro lado, acredita que as pessoas deveriam minimamente se constranger por vendê-las. Era quando retomava sua experiência de antiquário que Antônio narrava como a herança de um conjunto de coisas, seja ele entendido como coleção ou não, pode se conformar como um legado complicado para os herdeiros. Muitas vezes eles cresceram ou viveram longas relações na copresença de certos objetos, tratados por seus proprietários como parte da família e , por isso, 188 Para chamar minha atenção para esse fato, Antônio me mostrou esculturas de São Francisco de diferentes períodos. De fato, o número de animais ao redor do santo, geralmente passarinhos, cresce com o passar do tempo. 265 em alguns casos, geravam ciúmes de esposas e filhos. Nesse sentido, a convivência com as coisas não necessariamente resulta no mesmo apreço que os falecidos donos nutriam em relação a elas. Em vez da afetividade de quem as reuniu, pode vir à tona o sentimento de ocasião para renovação do ambiente, como abordado, ou mesmo de libertação. A família se vê diante da possibilidade de se desfazer do produto de anos de acumulação – não raro, vista como desnecessariamente dispendiosa e compulsiva – dos antepassados. Passar as coisas adiante também pode ser um gesto doído, apesar de necessário para o desligamento progressivo de um ente querido. Se certos objetos são intrinsecamente ligados às pessoas de modo a despertar memórias afetivas, em alguns casos, essa ligação acaba por presentificar ausências que devem ser superadas com o encerramento do processo de luto. Peter Stallybrass (2016, p. 21) afirma que nos momentos de crise em que os objetos adquirem vida e se avultam como coisas animadas por amores, histórias e manipulações, “essas matérias triviais, a matéria da matéria, parecem desenhar-se como desproporcionalmente grandes” e, por isso mesmo, “legados são cargas indesejadas” (STALLYBRASS, 2016, p. 38). Uma jovem me contou que não gostaria de continuar com os santos que pertenceram ao pai porque não via sentido em continuar com eles na falta de quem repetidamente contava a história de como os encontrou: “– Eu choro e lembro dele quando vejo, já ele estaria aqui rindo, lembrando de alguma viagem incrível e contando casos pra gente.” Como se vê, a familiaridade com as obras nem sempre produz efeito de participação na tônica que orientou sua reunião. Em alguns casos, o destino das coleções é estabelecido pelos próprios colecionadores que as formaram; seja por anteverem os dilemas familiares que podem ser provocados por seus legados materiais, seja por ambição de preservação do acervo reunido. Nesse cenário, a musealização desponta como garantia de salvaguarda e como iniciativa relevante para o destino da coleção. Por isso mesmo, pode ser empreendida pelo próprio colecionador ou delegada em testamento a terceiros. Se a doação é um ato que parte do autor da coleção, seja ela realizada postumamente ou não, o mesmo não pode ser afirmado para os casos de venda. Segundo Antônio, os colecionadores se engajam em trocas e em vendas de peças isoladas, mas dificilmente vendem uma coleção inteira e quando o fazem escolhem o comprador, dando preferência a in stituições museais, por exemplo; não se trata de um “quem dá mais” [dinheiro]. 266 As cabeças oferecidas a Antônio não constituíam parte de uma coleção sistemática, mas eram parte de um grupo de itens de decoração estimado pelo antigo proprietário das peças. A formação de um “lote” para a venda delas foi uma saída prática – vendem-se vários objetos de uma só vez – que também pode ser vista como uma medida respeitosa em relação ao trabalho de reunião dos objetos – vende-se para alguém que, se não vai ficar com eles, vai lhes dar um bom destino. Nos lotes, mesmo que na condição de mercadorias, os objetos deixam os lares de seus antigos proprietários imiscuídos em partes do conjunto, cuja lógica de formação, motivou suas respectivas aquisições. A opacidade do preço de cada obra no âmbito do lote desfaz-se através do olho do comprador, que as classifica de acordo com seu valor individual, singularizando-as; ou opta por mantê-las agrupadas, de modo a valorizar a série em que estão inseridas. Essas ações podem ter finalidade de inserção na própria coleção ou de direcionamento a possíveis interessados. Por isso é comum que colecionadores sejam antiquários, apesar de isso implicar na suspeita recorrente de menor amor às peças e maior ligação com interesses financeiros. Diante do exposto, percebemos que os espólios têm tanto o potencial de dissolver coleções, quanto o de contribuir para a elaboração de outras. A capitalização empreendida pelos herdeiros nesse importante momento de mudança de mão dos objetos não é uma via de mão única. A transformação de um bem em mercadoria pode ser uma forma de alienação que precede sua reinserção em uma coleção, já que os objetos que não interessam mais a uma família podem ser alvo do desejo de outras pessoas. 6.3 NAS CRUZES Quando Antônio se deparou com o par de esculturas de cabeças que a viúva lhe doou, logo suspeitou que um dia elas foram ex-votos, apesar de serem plasticamente mais delicadas e realistas em relação ao recorrente aspecto estilizado dos milagres nordestinos. O fato de C1 conter uma grande ferida era um sinal claro de sua condição enquanto milagre. Como já explorei, o realce das agruras pelas quais podem passar o corpo do devoto é elemento recorrente nos objetos votivos anatômicos. Assim, é comum vermos partes do corpo esculpidas nas quais se destaca um machucado, uma cicatriz, um curativo ou a marca de uma cirurgia. 267 Ao continuar a examinar as peças, o colecionador encontrou os seguintes dizeres na base de C1: “Cruz da Prêta – Parelhas”. Essa inscrição confirmou sua suspeita de que ao menos aquela obra já teria sido um ex-voto antes de ter ido parar na prateleira da biblioteca de um advogado em Natal. Os milagres podem conter inscrições por diversas razões. A expressão imagética exerce um papel fundamental na prática votiva, mas a escrita não está de todo ausente e inclusive concorre para a visualidade das imagens em questão 189. O nome do devoto pode ser acrescentado à peça, bem como uma narrativa sobre a motivação para a oferta do objeto ou ainda informações a respeito do momento e do local de deposição do objeto: “Cruz da Prêta Parelhas” se encaixa nessa última possibilidade. A inscrição poderia ter sido feita por quem produziu a peça, por quem a ofertou ou mesmo pelo advogado que a utilizava como item de decoração, que antes de expô-la, teria se preocupado em registrar sua proveniência; uma forma de indexação, portanto. O que importa é que se tratava de uma informação objetiva sobre o local da devoção no contexto da qual foi ofertado aquele exvoto e é para lá que o colecionador deveria se dirigir se almejasse encontrar outros exemplares tão singulares quanto aqueles que lhe foram doados. Figura 91 – Inscrição na base de C1 Foto: Marília Gonçalves, mai. 2015 Parelhas é o nome de uma cidade do interior potiguar190, de forma provável, era lá que estaria a cruz onde foram deixados aqueles milagres. A inscrição passa a então a atuar como uma espécie de coordenada, um elemento que diz sobre a posição de obras no espaço geográfico, particularmente quando é cruzada com o conhecimento da prática votiva. Ela não seria decodificada por alguém que desconhecesse que cruzes são locais de deposição de ex-votos. Como problematizei anteriormente, em uma sala dos milagres, “mesmo cartas e bilhetes parecem ter uma visualidade própria que extrapola seu caráter textual: mais do que para serem lidas, elas estão ali para serem exibidas. Estão, portanto, afixadas em prateleiras e paredes, e não reunidas em arquivos ou livros, por exemplo.” (GOMES, 2013, p. 187). 189 190 Localizada a 246 km de Natal, na região do Seridó. 268 Algumas linhas se fazem necessárias a esse respeito, considerando que até então abordei os ex-votos, sobretudo, enquanto objetos concebidos para exposição em salas dos milagres e/ou como itens colecionáveis. Luis Saia (1944) cita o interior dos estados nordestinos como a localização do “manancial” de milagres e foi justamente nos “cruzeiros de acontecido” das imediações de cidades e vilas – “Tacaratú, Itabaiana, Patos, Areias, Alagoa Grande...” (SAIA, 1944, p. 10) – que ele recolheu a maior parte da centena de ex-votos remetida a São Paulo para compor o acervo de pesquisas folclóricas da Missão de Pesquisas Folclóricas idealizada por Mário de Andrade. A narração sobre o primeiro encontro com os milagres nesse tipo de lugar aborda o estado de conservação variado das peças e menciona, sem maiores desenvolvimentos, o critério de escolha: o interesse que elas despertaram em Saia. Na cidade de Tacaratú, onde ficamos aboletados, visitando um cruzeiro** ao ar livre, no alto de um morro próximo, achei uma regular quantidade de peças, umas já completamente desfeitas pelas intempéries, outras meio queimadas e outras visivelmente novas. Colhi as que me pareceram mais interessantes. (SAIA, 1944, p. 9) O grifo no trecho é do próprio autor, que esclarece em nota: “** Cruzeiro é o nome nordestino das cruzes que marcam o lugar onde alguém foi assassinado ou morreu num acidente.” (SAIA, 1944, p. 9). Contudo, alguns cruzeiros – erguidos em pontos altos das cidades, em montes e em morros – podem marcar a ocorrência de outros tipos de eventos, como a celebração do aniversário das localidades, mas, de fato, os cruzeiros qualificados como “de acontecido” ativam a memória de eventos dramáticos. São cruzes localizadas, em sua maioria, nas bordas de estradas para lembrar as mortes que ali ocorreram, sejam elas relativas a acidentes automobilísticos, homicídios, suicídios ou outras causas. Mortes disruptivas e trágicas, como nos lembra Eliane Freitas (2006), a propósito de eventos ocorridos no RN, são potencialmente elevadoras de pessoas ao panteão de santos. O falecimento dramático é capaz de evocar a memória de temas religiosos caros ao universo cristão, como o sacrifício, a via crucis e o sofrimento purificador. Nesse contexto, a santidade não necessariamente se relaciona a uma vida virtuosa, mas, sobretudo, à redenção provocada pelo sofrimento extremo e pela violência incomum afligida no momento da morte. A “Cruz da Prêta” de Parelhas também é chamada de Cova da Negra, o que evidencia que a cruz protagonista do caso em tela não apenas marca o local de um falecimento, mas também o de um enterramento. A preta – ou negra – em questão não tem nome próprio, assim como tantas 269 outras figuras santificadas no sertão, e teria morrido de fome e de sede ao fugir do cativeiro durante a grande seca de 1877191. Seu corpo, segundo relatos, foi encontrado já em estado de decomposição sob uma movimentação de urubus. O local da sepultura foi sinalizado com uma cruz de madeira, aos pés da qual as pessoas começaram a rezar pelo repouso da alma da escrava fugida e a deixar pedras e ex-votos. Anos depois uma capela foi construída sobre a cruz. A construção existe até hoje, no bairro Cruz do Monte. Julie Cavignac (2009) discorre acerca da recorrência de narrativas sobre figuras de negros e outros sujeitos mortos em circunstâncias dramáticas nos “reinados encantados do Nordeste brasileiro”. Dado o contexto da morte, a “passagem” era feita sem que a alma tenha sido devidamente “encomendada”. O morto sem sepultura era extremamente temido, “pois morrer sem enterro significava virar alma penada” (REIS, 1991, p. 171). A alma da pessoa enterrada em local não sagrado, nessa perspectiva, demanda muitas orações. Assim, a inumação precária também diz sobre um não lugar da alma, que pode ficar vagando atormentada, e para que isso não aconteça deve-se rezar por ela. As cruzes e os cruzeiros em questão são, portanto, monumentos fúnebres, formas de recordar os sujeitos envolvidos em “acontecidos”, os fatos cujo desenrolar escapam ao controle humano. Se logo após o episódio trágico à comunidade improvisar uma cruz, quer seja com a madeira tosca que tiver ao seu alcance, de modo provável , posteriormente, ela será substituída por um exemplar confeccionado de pedra e cal e o local ainda poderá ser incrementado de modo a se tornar uma pequena capela votiva, principalmente diante da ocorrência de feitos milagrosos atribuídos ao falecido, como no caso da Cruz da Prêta. Certas práticas realizadas nos cruzeiros de acontecido são corriqueiras nos cemitérios, tais como o acendimento de velas, a oferta de flores e a realização de orações nas proximidades de túmulos. No entanto, essas ações direcionadas aos mortos comuns, visitados por sua família e por seus amigos, quando voltadas aos “mortos milagrosos” dizem respeito a um culto público, sendo acrescidas de prestações rituais específicas, dentre as quais se destaca a realização de pedidos e o pagamento de promessas (FREITAS, 2006). Nesse contexto, os ex votos emergem como objetos diacríticos que não só são importantíssimos no sistema d e trocas entre devoto e santo, como também sinalizam para o observador externo a presença de devoção em relação a um morto específico no ambiente cemiterial. 191 Como “as Meninas das Covinhas” de Rodolfo Fernandes e a “Santa Menina” de Florânea. 270 Podemos estender essa consideração relativa aos santos de cemitérios para os cruzeiros de acontecido. Nem todos estes últimos referem-se a fatalidades que culminaram em mortos especiais santificados, mas em alguns há práticas coletivas de culto a partir das quais se pode inferir que naquele local houve algum evento „detonador‟ de uma devoção. Como foi aventado acima, a materialidade das orações feitas pela alma de um morto pode ser visualizada pela presença de seixos paulatinamente depositados na cruz, como explica Câmara Cascudo no verbete dedicado às “Pedras” em seu Dicionário do Folclore Brasileiro: Quem viaja pelo interior do Brasil encontra quase sempre, ao pé das cruzes, que assinala o lugar onde morreu, mataram, ou sepultaram um indivíduo, pequenos montes de seixos. Cada um destes, sabe-se, representa uma oração. O viajante que passa por ali reza em favor da pobre alma do morto um padre-nosso, ou uma ave-maria, e depois, lança uma pedra ao pé da cruz, de maneira que, dentro de algum tempo, um monte de seixos se ergue sobre a humilde sepultura. (CASCUDO, 1998, p. 693, grifo meu). Nesse quadro, podemos pensar as pedras como elementos que vão de encontro à condição de precariedade trazida à tona pela cruz que irrompe na paisagem. Ao deixarem-nas, os devotos oram para que a alma encontre seu caminho no plano espiritual e, ao mesmo tempo, conferem dignidade à sepultura improvisada no plano terreno. Na percepção de Duvignaud (1997, p. 63), a mirada para as pedras, ou para o culto delas, é justamente uma forma de compreender o poder fixador da cruz, “objeto de uma projeção sagrada e pólo de um lugar ritual”. Para o autor, o sagrado das cruzes rurais as precede, encontra-se no solo ou nas pedras sobre a qual elas são fincadas. Nesse sentido, as cruzes são teofanias materiais que devem ser vistas em si e não como símbolos que remetem à instituição da Igreja e seu crucificado fundador. São coisas “plantadas” que dizem respeito a uma visão de mundo na qual o Cristianismo é apenas um aspecto e são eficazes nos mais diversos contextos de culto porque cristalizam forças disseminadas de modo a irradiá-las e afirmar sua origem, que, assim como a das pedras, reside na solidez da matéria e, por isso mesmo, é permanente, detém o tempo, “escapa à dissolução geral, à morte.” (DUVIGNAUD, 1997, p. 66). As coisas dotadas de forças internas, nessa perspectiva, nunca são apenas coisas. Elas são formas de imobilizar a duração da história sem interromper o dinamismo da vida social. Assim, os símbolos não figuram como instrumentos de conservação da memória coletiva. Se esta última é inegavelmente sujeita a esquecimentos e a durações variadas, atrelá-la a uma coisa, seja no bojo de concepções célticas, cristãs ou romanas, é estabilizá-la enquanto portadora de energia latente e imanente da matéria. Nos termos da dicotomia universal da carne e do osso, isso significa substituir o perecível pelo durável, fazendo a matéria suprir o que a morte destrói (DUVIGNAUD, 1997, p. 73-82). 271 Durante a viagem que realizei com Antônio e Nildo (para visitarmos as salas dos milagres que poderiam ser replicadas na CM), as cruzes pontuando as bordas das vias eram numerosas a ponto de me fazerem refletir sobre a segurança daquele percurso, afinal, indicavam quanta gente já morreu ali. O temor não cresceu mais porque elas chamavam atenção não só pela quantidade, mas pela forma como eram abrigadas e adornadas. Já andei por estradas em diversas regiões do Brasil, onde as cruzes sempre estiveram presentes, mas não na companhia de outros objetos. Aquelas da beira da estrada que nos levava a Rodolfo Fernandes estavam sob construções que parecem casinhas, pequenas grutas ou igrejinhas. Ao pé de muitas delas, havia velas, pedras e flores. Outras ainda continham terços, fitas... Algumas dessas composições estavam abandonadas, mas a maior parte me pareceu bem-cuidada, o que me causou estranheza. Antônio e Nildo explicaram que elas marcam não só os locais de acidentes fatais, mas também podem ser erigidas por devotos em agradecimento aos santos e, em alguns casos, se tornam locais de culto. Em vista disso, nossa primeira parada foi em um cruzeiro que avistamos do lado esquerdo da estrada. Foi então que realizei: as salas dos milagres são locais de grande confluência de ex-votos, mas outras concentrações deles podem ser localizadas em diferentes paisagens. Naquela ocasião não havia nenhum ex-voto na cruz que nos deteve a caminho dos santuários. Figura 92 – Cruzeiro de beira de estrada. Foto: Acervo da autora, jan. 2013 272 Em contraposição ao aspecto de durabilidade dos seixos, a deposição de um milagre de madeira em uma cruz pode implicar em deterioração acelerada, dada à exposição direta às condições ambientais. Desse modo, eles podem se mostrar menos atrativos do que aqueles deixados nas salas dos milagres, mas, como visto, a referência a um local como “Cruz alguma coisa” pode, na verdade, ser relativa não apenas a uma cruz, mas a uma capela que foi erguida sobre ela ou em suas proximidades. Em decorrência disso, nem toda cruz ou cruzeiro fica ao ar livre192 e isso explica porque um ex-voto coletado em uma cruz poderia estar bem-conservado, para além da hipótese dele ter sido retirado do local em questão muito rapidamente após a oferta. Para explorar esta hipótese a contento é importante enfocar não só a deposição de ex-votos, mas continuar prestando atenção aos momentos e gestos pelos quais eles são retirados dos locais onde foram ofertados. Para tanto, recorro inicialmente a um cruzeiro de acontecido que se diferencia dos que abordei anteriormente pelo fato de ser localizado no contexto urbano. Na cidade de Jardim do Seridó estivemos na “Cruz da Menina”, onde faleceu Maria de Lourdes, uma criança de nove anos que foi atropelada e teve a cabeça esmagada por um caminhão quando se dirigia à casa de uma pessoa da comunidade para buscar leite. O local fica na borda de um mangueiral, separado da via pública por fios de arame farpado. Diversos objetos são depositados através dos largos intervalos entre os fios. Ao lado da cruz, uma cascata de parafina se forma a partir do interior de uma estrutura de metal em formato de capela, evidenciando a grande quantidade de velas que foi acesa ali. Na ocasião de nossa visita havia tantas flores artificiais sobre a cruz que não era possível visualizá-la, mas apenas entrever sua base retangular de concreto, que se ergue desde o chão lembrando uma lápide. Nessa estrutura, de modo semelhante ao que costumamos ver nos cemitérios, foi afixado um retrato da menina em formato oval, que além da imagem da criança contém suas datas de nascimento e morte (* 07/08/1946 - † 01/04/1954), e ainda a mensagem: “A inocência do coração é o orvalho que rega a prece feita com amor”. Entre esses elementos familiares para lembrar a morte de alguém especial, outra mensagem surpreende: “Amigo (a), ao agradecer os favores espirituais, não retribua depositando lixo. Obrigado!” Com esses dizeres pode-se perceber que nem tudo que é depositado ali é visto como uma retribuição legítima à Menina. Não observei nenhum elemento naquela cruz que fosse muito diferente dos que vi em 192 Em alguns casos, inclusive, a devoção concorre para o desenvolvimento de complexos que são institucionalizados com o nome significativo de “Santuário da Santa Cruz”, numa manobra que busca apagar o evento que originou localmente a cruz para que se saliente o martírio de Cristo. 273 outros contextos: terços, gravuras impressas e imagens de santos, flores de plástico e de papel, bonecos de pano, tecidos, cadernos, bombons e outros tipos de guloseimas etc. Doces são ofertas muito frequentes para crianças santificadas. Apesar disso, seriam eles as retribuições indesejadas, dado que derretem e atraem insetos à maneira do que se passa com lixo deixado na rua? Figuras 93 – Cruz da Menina Maria de Lourdes Figura 94 – Detalhe da Cruz, em Jardim do Seridó Foto: Acervo da autora, jan. 2013 Não conversei com a pessoa que deixou a mensagem para saber exatamente o que é entendido como lixo por ela ou pela coletividade na qual ela se inclui. Talvez esses elementos indesejados nem estivessem ali, pensando que a solicitação foi atendida ou que foram retirados logo após a deposição indevida. Essa última possibilidade, bem como a própria existência da mensagem aos devotos, torna evidente que o local está aos cuidados de alguém, apesar de não estar inserido no espaço de alguma instituição. Em uma das ocasiões em que observei a praça Pe. João Maria em Natal, abordada no primeiro capítulo em 1.3.2 (figuras 16 e 17, p. 63), encontravam-se dispostos na base do monumento uma cabeça em gesso e uma imagem de um padre, provavelmente o próprio João Maria, também em gesso. No corpo da coluna, destacavam-se, além das fitas mencionadas, das fotografias e de um santinho de papel, uma imagem de gesso de Nossa Senhora de Fátima, um pé e cinco bonecos de tecido. A semelhança entre estes últimos tornava patente o fato de terem sido feitos pela mesma pessoa. Trata-se de Dona José Soares da Silva, uma senhora que os fabrica manualmente, assim como outras partes do corpo em tecido, e expõe tais peças para venda em uma barraca que fica a alguns metros da estátua. Frente ao quadro observado, suponho que a ausência de peças em madeira decorre tanto da facilidade que o devoto possui ao encontrar exemplares de tecido ali mesmo na praça onde vai ofertar 274 algo ao Pe. João Maria, quanto ao fato da referida senhora também coletar peças que pode vender a outros devotos, como as de gesso; e outras que podem ser alvo de colecionadores e a antiquários, como as de madeira193. Em uma das situações em que conversei com essa senhora, eu estava acompanhada por Nildo, que lhe pediu para guardar peças de madeira que poderiam lhe interessar. Ela, com um olho na linha e agulha que manuseava e outro na movimentação em torno do busto do Padre, foi incisiva: “– Eu não tenho como esperar você passar de novo, vendo o quanto antes o que pego aqui”. Assim como se passa nas salas dos milagres, a existência de pessoas que cuidam de outros locais de deposição dos exvotos claramente influi na exposição deles, bem como na sua circulação posterior. Diante do exposto, é possível elencar algumas variáveis para pensar a formação de uma coleção de milagres. Há o fator “golpe de sorte”, por exemplo, quando se visita um espaço sagrado num dia em que tenha sido ofertado um objeto interessante. É importante coletá-lo antes que outro colecionador ou curioso se apoderem dele e ainda se antecipar a um possível descarte realizado para dar espaço a novas ofertas dos devotos, mas para que as circunstâncias conduzam a um “achado”, é importante conhecer a dinâmica dos espaços de devoção: saber quem os administra; quais são as políticas de descarte; os momentos de maior afluxo de objetos (como as romarias); a tônica da oferta em cada local. A senhora da praça de Natal ou um zelador de uma sala dos milagres de um santuário longínquo podem ser figuras fundamentais para capturar ex-votos significativos e encaminhá-los às pessoas interessadas nesse tipo de obra. As redes de relações, portanto, são fundamentais. Em entrevista durante uma reportagem sobre a inauguração da CM 194, Antônio disse que o fato de ter sido seminarista lhe rendeu muitos amigos padres, que lhe orientavam sobre a localização de peças. No catálogo da mostra há agradecimentos a vários religiosos: um monsenhor, frades Capuchinhos de São Francisco de Canindé, um frei, um ex-padre. Quando o colecionador nota resistência de um pároco em fornecer peças, pode recorrer ao seu círculo de amizades que compreende pessoas próximas a autoridades eclesiásticas e solicitar cartas com textos que recomendem a colaboração com sua empreitada. Foi apresentando esse tipo de credencial nos santuários que Antônio começou a coletar milagres no Ceará. Atualmente, a chancela oficial é permanente no caso do Santuário do Lima, em Patu. A retirada de ex-votos é autorizada a título de colaboração com a CM. 193 Dona Maria José também foi informante de Luís Bonfim (2007) quando este pesquisador registrou o culto na praça. Apesar da senhora ser tratada por esse pesquisador como “vendedora ambulante”, noto que tal classificação não é de todo apropriada, pois a despeito de não se tratar de uma loja, trata-se de um endereço de comercialização fixo. “Museu transforma a fé em arte no RN”, disponível em: http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/bom-diarn/videos/t/edicoes/v/museu-transforma-a-fe-em-arte-no-rn/2781705/. 194 275 6.4 NAS MÃOS DOS “ICONOCLASTAS” Foi acionando suas redes de relações que Antônio descobriu que muitos ex-votos da Cruz da Prêta haviam sido enterrados no passado, a mando de um missionário que passara pelo local. Com isso, o par de esculturas ofertado pela viúva – utilizado como pista para rastrear a existência da própria cruz – passou a ser visto como sobrevivente da ação de sepultamento. A inscrição em uma das cabeças obtidas em Natal foi o detalhe revelador que permitiu o aparentamento daquela peça com outras que estariam debaixo da terra em Parelhas. A grafia de “Prêta” com acento circunflexo, como se usou até a década de 1970195, indicava que aquela peça não era de fatura recente ou, no limite, teria sido esculpida por alguém que aprendeu a ler e a escrever de acordo com uma normatização pretérita do português e que ainda a utilizava. A primeira opção era mais factível, provavelmente aqueles milagres teriam sido ofertados há algumas décadas e quem os recolheu o fez não muito após a deposição, posto que o estado de conservação das peças era bom. De posse da informação do enterro dos ex-votos, Antônio e um amigo – igualmente colecionador e comerciante de arte – procuraram o lugar do “sacrilégio” e se mobilizaram para que as peças fossem desenterradas, dividindo em partes desiguais os mais de cem exemplares resultantes da façanha 196, mas por que a proeza da exumação foi necessária? Se a alusão à destruição de ex-votos não tivesse sido feita em tantas passagens da tese, causaria estranheza sabermos que objetos com notório poder de ressaltar os feitos dos santos e de despertar o interesse de tantos agentes sejam destruídos sem maiores explicações. Acima fiz referência a descartes realizados para dar lugar a novos ex-votos. Não é difícil imaginar que a acumulação contínua culmine em saturação do espaço nos cemitérios, pois os ex-votos são deixados em espaços específicos e delimitados: os túmulos de mortos especiais. Já os contornos dos cruzeiros de acontecido – muitas vezes localizados em descampados – não são tão evidentes. Apesar disso, a disposição dos objetos neles não costuma acontecer de forma esparsa e desordenada. A tendência é que fiquem aglomerados na frente da cruz ou que a circundem, criando um efeito visual que a ressalta como marco. Nessa direção, o controle da quantidade de coisas auxilia a delimitar a extensão da irrupção do sagrado no espaço, que não é indefinida. Segundo Azeredo (2008), o acento circunflexo em “prêto” foi usado no Brasil até 1971. Só nesta década foram feitas as modificações sugeridas no Acordo Ortográfico de 1945. 195 O amigo ficou com um maior número por ter ficado na dianteira da “expedição”, conduzindo os homens que foram pagos por ambos os colecionadores para escavar e trazer as peças à superfície. Essa tomada de frente foi facilitada pela proximidade entre Jardim do Seridó, cidade de moradia do amigo em questão, e Parelhas, onde fica a Cruz da Prêta, que é de, aproximadamente, 23 km e que podem ser percorridos de automóvel em 20 minutos. 196 276 Ainda no tocante aos locais de deposição a céu aberto, torna-se pertinente refletir sobre outros constrangimentos à agregação constante de novos ex-votos sem que se faça a retirada de outros. É importante ter a ação dos fatores climáticos em conta, pois os objetos estarão em contato direto com a chuva, com o sol e com o vento. Somado a isso, a mescla de ofertas de diferentes naturezas pode concorrer para a degradação „natural‟ mais rápida do conjunto de exvotos. Doces podem atrair formigas, certos tipos de madeira serão alimentos para cupins e a matéria orgânica constitutiva de algumas ofertas – tais como umbigos de bebê, tumores e tufos de cabelo – concorrerá para uma decomposição diferenciada. A questão da restrição de espaço é mais pronunciada nas salas dos milagres, l ocalizadas em locais de maior afluência de devotos e, por extensão, de ex-votos. Geralmente, os descartes acontecem antes das romarias, pois é preciso liberar espaço para novos objetos. As formas de se desfazer das peças são variadas. Elas podem ser queimadas, enterradas ou jogadas diretamente no lixo, o fato dessa última solução não ser a opção mais frequente não é fortuito. Como nos lembra Corbey (2003), é importante considerar que a destruição ou a “profanação” podem se constituir como parte essencial do ciclo de vida de objetos rituais. Tais atos neutralizam o poder das coisas, potencialmente danoso quando elas circulam por espaços imprevistos ou caem nas mãos erradas. Nessa chave de leitura, o ex-voto fora do local sagrado é perigoso e ameaçador de uma ordem. A destruição emerge então com um ato de precaução, pois exclui a possibilidade de circulação indevida 197. No entanto, é importante vislumbrar outras perspectivas. No entender de alguns, quando os santuários jogam ex-votos fora não estão preocupados em neutralizar o poder dos objetos, mas sim em pragmaticamente dizer que eles não são mais do que mera matéria. Por essa linha de raciocínio, não há problema algum em transformá-los em lenha, por exemplo. O fogo, tantas vezes utilizado como rito purificador, nesse caso, não significa nada mais que um meio de aproveitamento de uma fonte de energia. Vistos de uma perspectiva mais institucional, os relatos de destruição dos ex-votos remetem ao combate à superstição e às práticas pagãs que sempre permearam o Catolicismo. Os ex-votos hoje destacados na CM, por exemplo, teriam sido enterrados a mando do missionário que passou pela Luís Saia indagou ao “guia” que lhe levou até um cruzeiro porque os ex-votos eram depositados naquele local, ouviu a seguinte resposta: “– Porquê o Cruzeiro guarda o milagre, senão a doença fica por aí.” (SAIA, 1944, p. 15, grifo no original). 197 Quando 277 Cruz da Prêta sob a alegação que “seriam coisa do diabo”. Na concepção de Antônio e seu amigo, entretanto, eram obras de arte que foram literalmente sepultadas. A indignação com o ultraje levouos até as autoridades eclesiásticas locais, que lhes autorizaram a realizar a exumação, estratégia recorrente nos gestos de coleta de Antônio. A postura da Igreja não é propriamente iconoclasta, é ambivalente, pois envolve tanto destruição quanto chancelamento da “salvação” de ex-votos. A busca de „purificação‟ do Catolicismo pós-Vaticano II só explica, em parte, o destino dos objetos, já que a „limpeza‟ decorrente de orientações oficiais não implicou numa mesma destinação para tudo que não era mais visto como necessário no novo modelo de Igreja mais calcado na espiritualidade. Se os santos encontraram abrigo, por vezes dentro de museus montados nas próprias igrejas, ao serem tomados como obras de arte sacra, por que o mesmo não se passou com os objetos ofertados a eles? As ambiguidades e as hesitações que permeiam a destinação dos ex-votos dizem respeito ainda à reflexão sobre a propriedade dessas peças. A quem elas pertenceriam? Aos devotos que as ofertaram? Aos administradores dos santuários onde foram deixadas? Aos santos? À Igreja? Isso não é uma questão para Antônio, posto que, segundo ele, elas teriam como destino certo a destruição, podendo ir para diretamente para o lixo, ou ainda, serem enterradas ou queimadas quando atingirem um volume que demande a retirada para dar espaço a novas ofertas. Entre os extremos da destruição e da conservação, observa-se a reconversão em mercadoria no próprio âmbito de alguns santuários. Os compradores são devotos, mas também podem ser colecionadores e comerciantes de arte. Antônio conta que várias vezes já adquiriu milagres “com [vestígios de] vela, sebo da mão das pessoas” em Flexeira-PE. Da última vez que comprou ex-votos na lojinha do santuário de São Severino, foi direcionado pelo funcionário para o local de deposição adequado, ao que respondeu: “– Obrigado pela indicação, mas eu não comprei para o santo!”. A existência de peças para venda e a constante colocação da necessidade de destruição de exvotos por causa das grandes quantidades que se acumulam ainda hoje nos santuários é oportuna para mostrar que, ao contrário do que se diz correntemente, a tradição do milagre de madeira não está acabando. A oferta de alguns ex-votos assinados por seus escultores para exposição na CM pode inclusive indicar que a relação dos escultores com esse tipo de produção é dinâmica. 278 Figura 95 – Prancha com ex-votos assinados Fotos: Marília Gonçalves, mai. 2015 A conversão de católicos e praticantes de religiões de matriz africana para denominações protestantes concorre para afluência de imagens para coleções. Trata-se de um momento virtualmente iconoclasta, dado que a condenação da devoção aos santos pelos evangélicos baseia-se largamente na acusação de ser um culto às imagens, que constituem, nessa medida, um fator diacrítico acionado de modo corriqueiro no estabelecimento de diferenças entre evangélicos e seus “outros”. Em contraposição ao barulho dos protagonistas de episódios iconoclastas de grande repercussão midiática – como o “chute na santa”198 – os gestos silenciosos em relações às imagens por parte das pessoas que estão abandonando uma religião podem ser reveladores de conversões que não se desenrolam em termos de rupturas bruscas. São, nesse sentido, indiciários de processos que não necessariamente estilhaçam as representações envolvidas na adesão anterior. Entre a destruição pública e a transferência para outros donos ou lugares, o descarte no lixo não figura como possibilidade de encaminhamento daquilo que não é mais visto como necessário para vivência de uma religião. Situações em que “terreiros” são desfeitos (seja por morte do pai-de-santo ou mãe-de-santo) e de conversão de pessoas ao Protestantismo são citadas por Andrea Paiva (2009) como motivadoras de dádivas para a coleção do Museu do Negro em uma igreja no Centro do Rio. Na etnografia de Três Famílias, Luiz Fernando Dias Duarte e Edlaine Gomes (2008, p. 184) nos apresentam Elza – “guardiã de objetos sagrados rejeitados e deserdados devido à conversões de familiares e conhecidos” – e as movimentações de sua prática de colecionamento: 198 Episódio ocorrido em 1995, no dia 12 de outubro, dia de Nossa Senhora Aparecida, quando a imagem da Padroeira do Brasil foi atacada com um chute pelo bispo Sergio Von Helder, da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), em um programa de televisão. 279 Entre seus objetos favoritos e dignos de um lugar especial em seu quarto estão imagens e quadros de santos, além do Sagrado Coração de Jesus e da Sagrada Família. Essa coleção não ocupa grande espaço no conjunto da casa, mas se destaca por ostentar a forte adesão ao catolicismo. A coleção vem recebendo novos objetos, por vias curiosas. Sua nora lhe contou que uma conhecida não sabia o que fazer com uma estátua de São Jorge que estava há tempos na família. A conversão ao pentecostalismo lhe impusera o afastamento da devoção ao santo. Não queria quebrá-la como demonstração explícita de seu novo pertencimento religioso. Embora demonstrasse forte adesão ao novo credo, não de sejava destruir a imagem, embora necessitasse romper afetiva e efetivamente com ela. O dilema foi resolvido com a adoção de Jorge por Elza, que propôs recebê-lo em sua casa. A exdevota convertida não teve que levar às últimas consequências a iconoclastia de sua nova confissão, e a católica ficou satisfeita por salvar a imagem de sua devoção. (DUARTE; GOMES, 2008, p. 184, grifos meus) Nos limites do quadro de questões colocados pela tese, cabe pensar tais gestos ao passo que implicam em transações relevantes para a circulação de objetos religiosos, tais como a doação – que pode ganhar feições de “adoção”, como vimos acima – ou a venda para antiquários e para colecionadores ou ainda a deposição em locais acessados por eles. Imagens de santos também podem ser deixadas em capelas, salas dos milagres e cruzes por outros motivos que não dizem respeito às situações de trânsito religioso evocadas acima, como o fato de terem se quebrado acidentalmente. Peças avariadas são vistas como veículos de “azar” e, por isso, devem ser direcionadas para locais específicos. Na Umbanda, segundo Tadeu Mourão (2012, p. 185190), um objeto que se quebra misteriosamente indica que a casa de seus adeptos está “sofrendo demanda”, ou seja, as entidades estão em embate espiritual contra seus inimigos, ou melhor, “Como a representação imagética da entidade possui um pouco da sua energia, esse objeto, acreditam por vezes os fiéis, pode servir como um espécie de receptor de energias negativas que, ao se condensarem na imagem, deixam de afetar os fiéis.” (MOURÃO, 2012, p. 185). Também nesses casos, a forma de se desfazer das imagens não conduz ao lixo, mas a lugares sagrados ou a fluxos de água corrente, situações que novamente podem acabar facilitando que elas sejam encontradas por colecionadores e seus fornecedores. Voltando à trajetória dos ex-votos desenterrados, após receber as peças que voltaram à superfície, Antônio as tratou para interromper o processo de degradação em curso. Depois disso, expôs os milagres salvos da destruição na parede da garagem de uma de suas casas, onde outros ex-votos já participavam da decoração. As obras exumadas foram dispostas em uma fileira no alto e o aspecto corroído delas deixava evidente que passaram por um percurso diferenciado em relação aos demais objetos que preenchiam a parede. 280 A configuração da exposição privada já anunciava o apreço do colecionador por aqueles exvotos. Enquanto muitos outros se encontravam em caixas ou eram armazenados de outra forma na casa, os que foram desenterrados eram mostrados, quase que como recepcionistas de quem chegava na casa. Além da trajetória singular, alguns deles também se diferenciavam pela atribuição de autoria. Ao observar os traços de uma das cabeças, o colecionador identificou características da obra de Salomão Fontes Rangel, também conhecido como “Santeiro de Tenório”, numa referência à cidade onde viveu no norte do estado da Paraíba, quase na divisa com o Rio Grande do Norte. Os cabelos “escorrendo” para a testa das imagens conformam um dos principais detalhes reveladores da presença de autoria de Salomão. “– Isso é muito Salomão”, me dizia Antônio, cada vez que me mostrava as peças do santeiro, apontando para a parte em que os cabelos desenhados com tinta alcançam as testas das faces policromadas. Os fios pintados abaixo da linha que divide a testa e o couro cabeludo não chegam a configurar franjas exatamente. O desenho sugere mais um “bico de viúva” 199 invertido. Apesar desse „avanço‟ dos cabelos sobre a testa, eles não chegam a encobrir as têmporas. Além do tratamento semelhante aos cabelos, o colecionador captou ainda similitudes no tratamento facial, na solução plástica do pescoço, no entalhe das peças como um todo. Esse vocabulário particular que veio à luz por meio da comparação entre C1, C2 e C3 também foi encontrado em outras peças do acervo do colecionador, como as imagens de santos. Apesar de serem mais valiosas em termos monetários, estas foram preteridas na exposição em relação aos ex-votos que indicaram o caminho para a Cruz da Prêta. O par de cabeças esculpidas por Salomão que Antônio, “– Jamais imaginou que encontraria em Natal” foi exibido juntamente com um exemplar de traços semelhantes e igualmente atribuíveis ao santeiro, porém desfigurados pela ação do enterramento ocorrido em Parelhas. Depois desta exposição, a queima ou destruição dos objetos votivos não pode mais ser tolerada. A título de ilustração do que não deve ser feito com eles , dezenas de peças encontram-se expostas, em uma vitrine especial, na nave central da capela. São ex-votos de aparência calcinada, decorrente do fato de terem sido enterrados, há quase meio século, na “Cruz da Prêta”, na Cidade de Parelhas – RN, segundo relato da comunidade local. Recentemente foram exumados e, hoje, estão presentes na exposição. Nesse mesmo conjunto encontram-se duas cabeças, em perfeito estado de conservação, pois foram coletadas no mesmo lugar – Cruz da Prêta – bem antes da ação iconoclástica e de desrespeito à cultura do povo (CARVALHO JR., 2013, p. 21, grifos meus) 199 Prolongamento de forma triangular do cabelo que converge de modo a formar um V na parte central do alto da testa. 281 Como se vê, o colecionador/curador justapôs ex-votos em diferentes estados de conservação para mostrar o “que não deve ser feito com eles”. Nesse contexto, o foco nos milagres desenterrados ilumina não só a respeito da inflexão na vida ritual desses objetos, mas também evidencia como eles, ao serem levados para um ambiente museológico, tornam-se defesas incontestes de um discurso de “salvação”. Assim, se salva a arte que passa despercebida aos olhos de muitos e denuncia-se o desrespeito à “cultura do povo”, ou seja, a intolerância ou, no melhor dos casos, a “reserva” da “Igreja Oficial” em relação às práticas do “catolicismo popular”, que resulta na destruição constante ou esquecimento dos ex-votos. A passagem “do cultual ao cultural” não é feita de forma abrupta, pois não se pretende apagar a dimensão devocional daqueles objetos. Nesse processo, a assinatura do colecionador/pesquisador/curador lhes é acrescentada, de modo a lembrar que eles só estão ali porque foram selecionados, recolhidos, salvos, tratados, guardados e, enfim, apropriadamente expostos. Na casa do colecionador, de certo modo, a narrativa que se quer imprimir ao ex-voto não se completa. É na antiga capela/agora exposição/futuro museu que ela ganha forma, pois ali a ambiguidade objeto votivo/obra de arte é reiterada e celebrada, de modo a expor tanto a exuberância material de uma prática, quanto a especialidade do olhar que a capta. Como bem notou Notteghem (2012, p.48), a pesquisa sobre reutilizações de objetos de culto católicos e suas transformações ontológicas é um espaço privilegiado para verificar a pertinência da noção de “biografia do objeto” inaugurada por Appadurai (1986), contudo, também é ocasião de percebê-la como indissociável das [biografias] das pessoas. Assim, convertem-se não só objetos, mas também aqueles que se engajam com as coisas e ainda as instituições onde eles se movem. A proposição da autora de que os objetos são o lugar de mobilização dos indivíduos para redefinir sua relação com a religião é particularmente fértil para o contexto que pesquisei, no qual um ex-seminarista torna-se colecionador, professor, marchand, curador... e, significativamente, “sacerdote das artes”, como ele vez ou outra aparece em reportagens sobre sua coleção. Por fim, é necessário colocar em perspectiva o fato da “retórica da perda”, no contexto que observei, também de despontar como um „problema do excedente‟. O entendimento dessa curiosa clivagem é adensado se temos em vista o descarte de coisas que são entendidas como bens preciosos por certos agentes. Uma vez que os ex-votos sabidamente concentram valor(es), o ato de se fazer deles aniquilando suas formas também pode ser entendido como um gesto agonístico. 282 Segundo Georges Bataille (2013, p. 26), “enquanto jogo, o potlach é o contrário de um princípio de conservação”. A utilização de cabeças, como lenha ou o sepultamento de milagres, nessa lógica, são práticas de consumação ostentatórias que desafiam o colecionador a esbanjar à altura. O dispêndio de Antônio Marques, entretanto, passa pela exibição de sua expertise ao mostrar as coisas de modo suntuoso. Meu interlocutor afirma ter gastado mais de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para expor imagens e milagres que, na opinião de tanta gente, não valem nada. O desperdício envolvido na lida com o que, ao menos discursivamente, é tão valioso que não pode ter preço, tem sido recompensado por retribuições diversas dos visitantes da CM. A inclusão de novos ex-votos na mostra reitera que vale a pena preservá-los, como se a beleza mostrada na capela encantasse os santos e os incitasse a motivar a produção compósita de novos milagres. Além das ofertas feitas por devotos que buscam reiterar os vínculos com seus santos de devoção na CM, o acervo também cresceu pela doação de peças feita por artistas. Diante disso, e confrontando a concepção corrente de que escultores não gostam de associar seu nome à produção de ex-votos, o colecionador exibe belos milagres „assinados‟. Os artistas que ofertaram as peças à CM, portanto, passaram a afirmar junto com Antônio que a impressão de autoria em fragmentos de corpos alheios não envolve tabu algum. Quem mistifica, nessa linha de raciocínio, é quem poderia dar a ver a autoria das obras, mas prefere não fazê-lo ao afirmar que se trata de uma ação perigosa. 283 CONSIDERAÇÕES FINAIS OU ESPELHOS (IN)TRINCADOS Esta tese envolveu itinerâncias diversas. Pouco após configurar a proposta de pesquisa em torno de 'caçadores de imagens', me deparei com a formulação de Alfred Gell (2001) de pensar as obras de arte justamente como armadilhas (e vice-versa). A argumentação do autor, como tantas outras que iluminaram meu trabalho, foi tramada a partir de uma exposição. Na mostra em questão, uma rede de caça foi exibida em um espaço intitulado "Galeria de Arte Contemporânea". Como armadilha que é, por definição, a rede impede a livre passagem, constituindo-se, portanto, como uma excelente metáfora recursiva de captura e contenção. Outros objetos, contudo, quando “armados” com cuidado, detêm e mantêm em suspensão. Galerias são, nessa perspectiva, lugares de captura por excelência, mas objetos que circulam fora desses espaços também podem ser vistos como obras de arte. O paralelo entre minha proposição e a leitura de Gell (2001) também foi construído tendo em vista que fui particularmente capturada em uma “Galeria de Artes Antigas e Contemporâneas”, como descrevi no primeiro capítulo. Dentre as muitas interações que empreendi na busca de interlocutores em minha primeira jornada de trabalho de campo, fui enredada por um 'caçador de imagens', seu olho treinado e os detalhes das obras que ele carregou de índices para que eu pudesse vê-las. Logo percebi que os objetos que capturariam minha atenção depois do encontro com o colecionador seriam, de certo modo, nós prévios da rede armada por ele a partir de sua Galeria. Redes, entretanto, não só capturam, mas também deixam passar200. Essa é a lógica de funcionamento da estrutura na figura ao lado. Outrora uma porta de confessionário, atualmente, é utilizada como painel de apresentação do espaço expositivo. A obra recepciona o visitante com uma definição de ex-voto: “Em Latim, “Ex-voto suscepto” significa – de acordo com o desejo, de acordo com aquilo que foi preferido”. Logo, aquele que chega é tanto convidado a olhar pela janela, quanto a conhecer o interior da mostra e a estabelecer outras relações com aqueles objetos. Figura 96 – Porta da Sala de Milagres ou Sala das Promessas, Igreja de Nossa Sra. do Carmo (Sr. dos Passos), em São Cristovão – Sergipe 200 Sou grata a Guillermo Sanabria por ter me inspirado a refletir por essa seara. 284 Pensando em Antônio Marques como articulador de obras similares, tornou-se evidente que sua armadilha não seria capaz de apanhar todo o espectro de objetos de devoção que me mobilizava. Vale lembrar que as movimentações enunciadas pelo colecionador pareciam se restringir às bifurcações erudito x popular e patrimônio do povo x patrimônio oficial. Com efeito, foi nas frestas possibilitadas pela insuficiência dessas formas de classificação que procurei transitar por caminhos que não fossem traçados de antemão. Para tanto, inicialmente foi necessário desestabilizar a ideia do objeto enquanto espelho perfeito, aquele que reenvia ao colecionador apenas a imagem desejada por ele, tão presente na literatura sobre coleções (BAUDRILLARD, 2004; CLIFFORD, 1994). Esse espelho de forte viés psicanalítico não precisa ser completamente estilhaçado, porque em alguma medida reflete ideias caras ao universo pesquisado. Contudo, foi analiticamente rentável trincá-lo para que seus fragmentos reflitam tanto o que o espelho íntegro dava a ver, quanto o que precisa ser entrevisto por meio de suas camadas. Em diversos momentos, a etnografia implicou em interações com coisas vistas como perigosas. A estranheza inicial no contato com os fragmentos se converte em seu oposto nesse momento da reflexão. Em outras palavras, assumo o risco de lidar com o espelho trincado de alguém que tanto me fez olhar para ele. Por meio desse jogo, lido com a imagem desejada e com a desfigurada, a saber, aquela refletida para além do campo de visão que o colecionador tenta delimitar. A análise foi produzida com especial atenção aos aspectos mencionados por Walter Benjamin (1987, 2006) como “dados objetivos” da relação de um colecionador autêntico com seus objetos. Trata-se, portanto, de uma decapagem de certas camadas oníricas que constituem a coleção enquanto “morada de sonho” e refúgio. As coleções não são universos estanques imunes ao tempo ou desconectados da realidade social na qual o colecionador está inserido. Muito trabalho precisa ser feito para que elas possam se erguer como g rupos de objetos que sugiram esse caráter de alheamento e impermeabilidade ao curso de atividades humanas. A necessidade de realização de transações situa inevitavelmente o colecionador numa rede de conhecimentos e contatos. Nessa rede, como demonstrei no segundo capítulo, a produção de autoridade apreciativa é pensada em termos de olho. Quem tem olho nota as forças expressivas particulares e próprias das coisas autênticas. Considerando que certos usos incutem valor às imagens abordadas ao longo da tese, no terceiro capítulo explorei como essas obras não são apenas miradas a partir de uma posição privilegiada, mas também manipuladas. Ao trazer à baila o quanto os corpos das imagens são trabalhados, procurei incluir na análise as mãos que transformam os aspectos das obras. Vimos que não é com qualquer aura que a imagem peregrina para a coleção. 285 A despeito da ideia de aura evocar um suposto halo luminoso que só os iniciados veem, trabalhei com a possibilidade – sempre arriscada – dessa aparição também ser convocada manual e materialmente. Nesse quadro de sentido, uma imagem repintada pode ser considerada “suja”. Já o encontro com uma obra recoberta por teia de areia e fuligem é motivo de celebração, tendo em vista sua antecipação à ação de “caçadores de antiguidades”: Em nosso trabalho de pesquisa de campo em São Paulo, foi freqüente ficarmos diante de oratórios domésticos intactos, sem terem recebido a visita de caçadores de antiguidades. A regra nestes casos é encontrarmos um oratório fechado, cheio de pó e fuligem, que tornam tudo escuro, inclusive as teias de aranha. Aberto o oratório, geralmente cheio de papéis, tocos de vela, flores de papel, notas de dinheiro sem valor, baratas, encontram-se no meio de tudo isso as imagens e usualmente um crucifixo. São sempre de várias épocas [...]. Bem atrás, mais escuras, quebradas, a cabeça colada com vela ou cera preta de mato, alguns [exemplares de] Paulistinhas. (ETZEL, 1979, p. 90) No quarto capítulo evidenciei como o apreço de estudiosos pela produção de imaginária católica transforma corpos de santos em tipos regionais. Para meu principal interlocutor, o que chamei de „nordestinização‟ das imagens resultou em “declínio técnico”, uma vez que o sucesso da estilização do regional, a partir do pouco refinamento, incentivou o abandono da policromia. Entretanto, abordei como os santos antigos pintados também são „imagempaisagem‟: aquela que condensa uma ideia específica do Nordeste, a do sertão. A produção dessa aura, nesse caso, é, sobretudo, discursiva e vale-se da “maquinaria imagética Nordeste” (ALBUQUERQUE JR., 2013; 2001). No quinto capítulo, primeiramente, explorei como Antônio Marques justapõe obras de diferentes naturezas – bandinhas de música, imagens e milagres „que nem todos veem‟, de modo a afirmar a individualidade criativa de um artista. Por meio dessa operação, o colecionador demonstra que a imagem não é uma produção particular e que os mesmos artistas que produzem santos também esculpem outras coisas, como os ex-votos. Por meio de uma extensa revisão de literatura acerca das distintas formas de encontrar, pensar e expor o milagre problematizei como os objetos em questão, já investidos de funcionalidade estética e expositiva em seu loci rituais, são atrelados a outros sujeitos e contextos criativos. Apresentei em seguida, a etnografia da incursão pelos “principais santuários do RN”, mobilizada com vistas à organização da Casa dos Milagres. Ao longo da descrição, procurei sublinhar as nuances entre as configurações das salas dos milagres, quartos dos ex-votos, salas das promessas e outros espaços equivalentes visitados. Se em capítulos anteriores ressaltei o caráter instrutivo do fragmento na transmissão do conhecimento, ao retomar nossa busca por milagres e encaminhar essas considerações para o encerramento do trabalho, não posso deixar de destacar como meu interlocutor também mobiliza a viagem como instrumento de formação. 286 Depois de “estar lá” – em confronto com exposições suntuárias ou avarentas, decepcionantes ou provocadoras – no sexto e último capítulo caracterizei a Casa dos Milagres. A mostra/futuro museu é apenas uma das moradas dos milagres que abordei nessa parte final da tese. A partir da configuração da exposição e seu caráter de „mapa desdobrado do sertão‟, argumentei a respeito da potência de certos arranjos de imagens e ex-votos na incitação de respostas devocionais às obras. Além disso, sublinhei como Antônio Marques publiciza seu devotamento à arte do povo de forma a atentar os visitantes da CM para seu papel de “guardião”. Argumentei que a ocupação da capela no Centro de Turismo foi uma forma de dispor uma argumentação. Alguns itens da exposição foram mostrados como especialmente representativos das ações do colecionador para “salvar” obras de arte da destruição. Meu intuito foi provocar a seguinte questão: se os milagres podem transitar por diversos espaços, de caráter sagrado ou não, quais são os (des)caminhos que os levam a encontrar morada em uma coleção? Procurei demonstrar como os gestos de coleta (BONDAZ, 2014) influem nas mudanças de estatuto e nas maneiras de ver os objetos. Sendo assim, não dizem respeito apenas a um ato localizado, mas a um processo que coloca em jogo aspectos variados: técnicos, cognitivos, afetivos, e, em menor medida, administrativos ou legais. Figura 96 – Detalhe de impresso da campanha de recuperação de bens culturais do IPHAN. Fonte: Acervo da autora A trajetória dos ex-votos da vitrine especial da mostra pode ser vista como uma verdadeira hagiografia do objeto. A exumação de cabeças e milagres afins nos aproxima de outras formas de ratificação da autenticidade das coisas sagradas. Na lógica do Furta Sacra (GEARY, 1990), as coisas difíceis de encontrar, mas que se deixam apanhar, são aquelas que de alguma forma entraram em comunicação com os autores da façanha e não ofereceram resistência, atribui-se poder ao próprio objeto e ao modo de obtê-lo. Obviamente desenterrar ex-votos é uma ação que causa suspeição, pois pressupõe o contato com coisas impregnadas de forças diversas, potencialmente maléficas. Ao menos, desde Van Gennep (1978), os ritos de passagem foram investidos da função de reduzir os efeitos nocivos característicos dos processos de mudança do estado de pessoas e coisas. Em vista disso, e considerando minha proposta de „ritualizar‟ os processos envolvidos nos trânsitos de objetos que 287 já estiveram envolvidos em relações de devoção, entendo a exposição como rito de mostrar201. A Casa dos Milagres é a oferenda instrutiva do colecionador para propalar sua visão. Afinal, a boa magia franqueia os mistérios a todos, e a má procura simplesmente mitificar. Ainda no intuito de dar a ver o que vislumbrei através de espelhos (in)trincados, explico porque iniciei essas considerações finais mencionando itinerações. Na provocação de Ingold (2010), devemos abrir mão de redes dadas previamente e pensar por meio da malha, que, assim como a teia da aranha, é construída no percurso. O itinerar envolve improvisar, interligar e, porque não, deixar vazar. Sendo assim, depois de mostrar tantos enredamentos – por formas, texturas, segredos, expertises, etc. – cumpre assinalar a importância de minha tentativa de tessitura do trabalho vislumbrando a possibilidade de linhas de fuga. Agora coleciono cacos de louça quebrada há muito tempo. Cacos novos não servem. Brancos também não. Têm de ser coloridos e vetustos, desenterrados – faço questão – da horta. Guardo uma fortuna em rosinhas estilhaçadas [...] Vidros agressivos ferem os dedos, preço de descobrimento. a coleção e seu sinal de sangue, a coleção e seu risco de tétano, a coleção que nenhum outro imita. Escondo-a de José, por que não ria nem jogue fora esse museu de sonho. Coleção de cacos Carlos Drummond de Andrade Figura 98 – Milagre em forma de olhos Fonte: Catálogo Casa dos Milagres, 2013, p.17 201 A etnografia desse rito analisa sua execução para além dos registros preliminares que podem ser encontrados nos catálogos. Tais publicações documentam o que se pretende mostrar em museus e exposições, mas não compreendem as relações sociais mobilizadas durante as exibições. 288 REFERÊNCIAS - Referências Bibliográficas ALBUQUERQUE JR., D. M. A Feira dos Mitos: a fabricação do folclore e da cultura popular (Nordeste, 1920-1950). São Paulo: Intermeios, 2013. ______. A invenção do Nordeste e outras artes. Recife: FJN; Ed.Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. AGAMBEN, G. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007. ANDRADE, M. O turista aprendiz. Brasília: Iphan, 2015. APPADURAI, A. (Org). A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008. AZEREDO, J. C. (Coord.). Escrevendo pela nova ortografia. São Paulo: Instituto Antônio Houaiss/Publifolha, 2008. BAPTISTA, A. P. P. O Eterno ao Moderno: arte sacra no Brasil, anos 1940-50. 2002. Tese (Doutorado em História Social)- Programa de Pós-Graduação em História Social, UFRJ, 2002. BASCHET, J. Introduction: l‟image-object”. 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A variante moderna desse tipo de ex-voto encontra-se nos jornais e textos divulgados pelo rádio. f) Ofertas de bens destinados a divulgar a devoção ao agente do milagre, tanto em espécie como em joias, ou em objetos preciosos de uso litúrgico. Como variante do tipo, podem ser enquadradas as ermidas e capelinhas construídas em agradecimento e desobriga de voto. g) Ofertas de elementos simbólicos, como velas, medidas e flores. h) Cruzes penitenciais usadas em peregrinações votivas e ex-votivas. i) Participação, em circunstâncias especiais, de cerimônias litúrgicas durante as quais o agraciado usa vestes miméticas do agraciador. Como variante do tipo, pode incluir o uso obrigatório de vestes e cores miméticas, durante determinados períodos. Outra variante é a imposição de nomes de santos a recém-nascidos. j) Ofertas de elementos ligados ao traje nupcial e de cabelos, indicando soluções felizes para problemas de casamento e reprodução. Enxovais de bebês relacionamse com desobrigas de votos em favor de recém-nascidos e crianças em seu primeiro ano de vida. k) Representações de casa, edifícios, chaves e carros. l) Ofertas, em espécie, de carteiras de cigarro e garrafas de bebida. m) Ofertas de várias espécies, assinalando a gratidão do dono pela cura de animais ou a mercê que os salvou de grave perigo.(FAGUNDES, 2015) Segundo Fagundes (2015), essa classificação de ex-votos se resume a quatro grandes categorias: os antropomorfos, as esculturas e as imagens que emulam o corpo humano e suas partes: pés, mãos, cabeça, coração, olhos (ver figuras 3, 8 e 9); zoomorfos são as representações de animais; simples, aqueles objetos de uso pessoal no dia -a-dia ou no culto religioso, que são deslocados para a função votiva (ver figura 62 – altar com garrafas de água, colares e chupetas); e especiais ou representativos de valor monetário ou de consumo, como dinheiro, joias (ver figura 79 de “milagrito”), alimentos, etc.