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Sobre lâminas e hastes

2018, ACROBATA, nº 8 - junho

Sobre "lâminas finas" e hastes firmes Assunção de Maria Sousa e Silva1 ESTÉTICA quando o escravo surrupiu a escrita disse o senhor:-precisão, síntese e bons modos! é seu dever enxurrada se riu demais em chuva do conta-gotas e sua boca de borracha rota. A Literatura afro-brasileira se firma no sistema literário brasileiro como a "haste fina que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta". (Paulo Pinheiro). A historiografia literária brasileira, construída sob preceitos canônicos, registra a presença de personagens negros modelados por visões que os estigmatizam, construindo-os sob estereotipias paralisantes que os mantém emparedados, em segundo plano e, por vezes, anulados de sua autonomia produtiva. No campo da autoria, os escritores e escritoras negras, durante muito tempo, percorreram o caminho da invisibilidade ou da visibilidade negativa conveniente à justificativa de que os escritos não apresentavam alto estilo e galhardia dos gênios ou dos eleitos pela crítica. Por conseguinte, seus livros, não reconhecidos, eram pouco consumidos pela grande parcela de leitores (as). Fenômeno que se agrava quando lembramos que vivemos num país onde ainda há um escasso número de leitores ou consumidores de livros. Tudo isso acimentado por concepções racistas. Decerto que ainda é incomum encontramos, em livrarias ou em bibliotecas, livros de autoras e autores negros (as) como

Sobre “lâminas finas” e hastes firmes Assunção de Maria Sousa e Silva Doutora em Literatura de língua portuguesa (PUCMINAS). Mestra em Ciência da Literatura – Subárea Poética (UFRJ). Profa. Adjunta UESPI // Professora Titular CTT/UFPI. ESTÉTICA quando o escravo surrupiu a escrita disse o senhor: -precisão, síntese e bons modos! é seu dever enxurrada se riu demais em chuva do conta-gotas e sua boca de borracha rota. (CUTI, CN19, 1996, p. 36) A Literatura afro-brasileira se firma no sistema literário brasileiro como a “haste fina que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”. (Paulo Pinheiro). A historiografia literária brasileira, construída sob preceitos canônicos, registra a presença de personagens negros modelados por visões que os estigmatizam, construindo-os sob estereotipias paralisantes que os mantém emparedados, em segundo plano e, por vezes, anulados de sua autonomia produtiva. No campo da autoria, os escritores e escritoras negras, durante muito tempo, percorreram o caminho da invisibilidade ou da visibilidade negativa conveniente à justificativa de que os escritos não apresentavam alto estilo e galhardia dos gênios ou dos eleitos pela crítica. Por conseguinte, seus livros, não reconhecidos, eram pouco consumidos pela grande parcela de leitores (as). Fenômeno que se agrava quando lembramos que vivemos num país onde ainda há um escasso número de leitores ou consumidores de livros. Tudo isso acimentado por concepções racistas. Decerto que ainda é incomum encontramos, em livrarias ou em bibliotecas, livros de autoras e autores negros (as) como Maria Firmina dos Reis, Luiz Gama, Auta de Sousa, Lino Guedes, Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, por exemplo. A publicação dos Cadernos Negros, em 1978, foi um marco divisor e início da consolidação da escrita de autoria negra no solo brasileiro. Em princípio, restrito a um grupo de jovens poetas Oswaldo de Camargo, Jamu Minka, Celinha, Henrique Cunha Jr., Angela Lopes Galvão, Eduardo de Oliveira, Hugo Ferreira, e Luiz Silva (Cuti), predominantemente do sul e sudeste do Brasil, essa coletânea se expandiu e tornou-se o principal veículo de divulgação da literatura negra, completando, em dezembro de 2017, sua 40ª edição, como dinamizadora da cultura e do protagonismo negro. É inegável, o número crescente de publicações de escritores e escritoras negros (as) brasileiros (as), apesar dos desafios, especialmente no que consiste às dificuldades de inserção no mercado editorial brasileiro, como produtores e divulgadores. Agrava-se, no entanto, tal empreendimento, quando se percebe a resistência dos meios de comunicação de massa e dos formadores de opinião, especialmente, no seio da crítica, por que não dizer dos editorialistas de arte e literatura de plantão dos grandes jornais de circulação nacional, em não incluir autores/as afro-brasileiros, no rol dos “bons” ou “bem lidos, instaurando novo “acorde” de apreciações. Mesmo assim, a escrita literária desses autores se impõe como uma lâmina fina dentro do cenário redutor e reprodutor de hierarquias para reescrever poeticamente ou narrativizar histórias de seus ancestrais, da diáspora negra africana e da resistente participação histórica e política para a formação cultural brasileira. Enquanto as produções questionam as instabilidades e as lacunas do poder constituído, que mascaram as tensões das relações étnico-raciais, elas também descortinam, insistentemente, as formas de racismo e discriminação, por uma estética vigorosa e desviante dos preceitos estéticos dominantes. Como autores e autoras conscientes das mazelas sociais de seu país ou do seu lugar de pertencimento, poemas, contos, novelas e romances intencionam revelar, questionar, denunciar e contestar as formas viciantes e colonizadoras que ainda persistem, à medida que a neocolonização provoca e realimenta a exclusão e a desigualdade, alicerçadas por um racismo imperioso e massacrante. Várias formas de construções poéticas e narrativas, afiliadas a diversos e diferentes dicções estético-literárias se aprumam. De modo que podemos ilustrá-las, recorrendo à veia mordaz e irônica de Luís Gama ou à visão antiescravagista de Maria Firmina dos Reis. Sob outro diapasão, vale lembrar a força contestadora de Lima Barreto; o universo clássico e inovador de Machado de Assis; a poética militante de Solano Trindade, por exemplo. Falamos de autores que literariamente, de uma maneira ou de outra, situaram-se fora das normas vigentes. É por esse viés que a vertente afro-brasileira ou negra está alicerçada e revigorada pelas presenças de Carlos de Assumpção, Oliveira Silveira, Adão Ventura, Paulo Colina, Oswaldo de Camargo, Luiz Silva (Cuti), Nei Lopes, Muniz Sodré, Joel Rufino dos Santos, Abelardo Rodrigues, Éle Semog, Salgado Maranhão, Ricardo Aleixo, Edimilson de Almeida Pereira, Ronald Augusto, Guellwaar Adún, Allan da Rosa, entre muitos. Vozes de diferentes tendências estéticas que tencionam, problematizam e modificam o cenário literário brasileiro. A produção feminina negra no cenário brasileiro, antecipada por Maria Firmina dos Reis, Auta de Souza e Carolina Maria de Jesus, redimensiona a trilha nas vozes de Mãe Beata de Yemonjá, Esmeralda Ribeiro, Geni Guimarães, Lia Vieira, Ana Maria Gonçalves, Cidinha da Silva, Cristiane Sobral, Alzira Rufino, Mel Duarte, Elizandra Sousa, Jenyffer Nascimento, Jarid Arraes, Mel Adún e muitas outras, com visões de mundo cujas preocupações partem das questões que afligem o feminino, interseccionadas à raça e a gênero, procurando, ao mesmo tempo, representar ou reencenar as memórias de fundo matrilinear, ancestrais, e da diáspora. Tais enfoques parecem configurar seus modos de escritas que afinam o aspecto da representação, da construção poética e narrativa que se funda na palavra como modo de inserção, isto é, na palavra-ação, na palavra-reinvindicação quanto ao lugar dos segmentos marginalizados e subalternizados, sob o ponto de vista deles mesmo. Referendando a ideia de que “seus passos vêm de longe”, essas mulheres negras (não pelo fenótipo, mas especialmente pelo compromisso com o segmento social que representa) partem da vivência, da memória e da história do povo negro, revelando a condição subalterna da mulher negra, trazendo para o corpo-escrita as dores, a violência sexual, a violência de gênero, a espoliação, a exploração social, a resignação, mas também a resiliência, a perspectiva da solidariedade e da esperança. Ora sobressaem poemas com releitura do passado, evidenciando o “imaginário opressor” na perspectiva de construir novas formas de saber que se contraponham a visões cristalizadas; ora poemas que prezam pela ressignificação das subjetividades femininas inseridas numa sociedade marcada pela hierarquização de gênero e de raça. Do mesmo modo, as narrativas exploram tramas por onde correm a opressão social e de gênero que regulam as relações interpessoais. Arenas do embate ostensivo contra a relação de poder entre os sujeitos. Por esta esfera discursiva podemos pensar em estéticas ativistas em que as palavras soam como navalhas, conforme nos apresenta o poema “Cuidado! Há navalhas”, de Miriam Alves, cujo eu poético se rebela contra as armadilhas da concessão ideológica aceitas por autor/as negros/as. Vejamos o fragmento, a seguir. [...] Palavras de concessões são mordaças aveludam os sons do passado ensurdecem sentimentos forçam minha negação pressionam meu ser. [...] (ALVES, 1985, p. 27) O poema de Miriam Alves atenta-nos para os entraves, para as formas de amordaçamento que persistem a fim de mobilizar o corpo social negro, no entanto o corpo-escrita anuncia resistência. Como vemos o celeiro é amplo e cada época e contexto influenciam as temáticas e os processos de construção literária. Assim, afirma-se a consciência de enfrentamento pela voz das mulheres negras no cenário literário brasileiro, sem perder absolutamente a força de suas subjetividades que se alinha ao coletivo na construção de uma rede de “solidariedade” como bem enuncia Conceição Evaristo. Talvez tal intento consista em algo inovador na literatura brasileira, visto que o que sempre prevalece é a idolatria e o individualismo. Essas mulheres escrevem inspiradas em suas crenças e seus anseios, tal qual Lívia Natália em “Poema–ebó” (pelo 20 de novembro). Dono das encruzilhadas, morador das soleiras das portas de minha vida, Falo alto que sobreia o sol: Exu! Domine as esquinas que dobram o corpo negro do meu povo! Derrama sobre nós seu epô perfumado, nos banha na sua farofa sobre o alguidá da vida! Defuma nossos caminhos com sua fumaça encantada. Brinca com nossos inimigos, impede, confunde, cega os olhos que mau nos vêem. Exu! Menino amado dos Orixás, dou-te este poema em oferenda. Ponho no teu assentamento este ebó de palavras! Tu que habitas na porteira da minha vida, seja por mim! seja pelos meus irmãos negros Filhos de tua pele ébano! Nós, que carregamos no corpo escuro os mistérios de nossas divindades, te vemos espelhado nos nossos cabelos de carapinha, nos traços fortes de nossas faces, na nossa alma azeviche! Mora na porteira de nossa vida, Exu! Vai na frente trançando as pernas dos inimigos. Nos olhe de frente e de costas! Seja para nós o que Zumbi foi em Palmares: Nos liberta, Exu, Laroiê! (NATÁLIA, 2015, p. 138 – 139) O apelo evocativo-divinatório evidencia por qual maneira a poetisa traduz o princípio da ancestralidade como elemento basilar de seu pertencimento étnico para, a partir daí, remeter à importância do heroísmo negro na reconstrução histórica. Os versos, “Seja para nós o que Zumbi foi em Palmares / Nos liberta, Exu, / Laroiê! ”, surgem como assertiva de que a luta de homens e mulheres negras se embasam na força da ancestralidade, elemento propulsor da libertação. Daí sobressai a palavra-ação e a palavra-reivindicação, anunciadas anteriormente, que referendam gestos e gritos de alerta contra a exploração e a violência que sobressalta o corpo feminino negro. Essa precarização forçada do corpo feminino subjacente à ideologia do patriarcado, apresenta-se na poética de denúncia de Conceição Evaristo, devidamente ilustrado nos versos do poema “A menina e a pipa-borboleta”. A menina da pipa ganha a bola da vez e quando a sua íntima pele, macia seda, brincava no céu descoberto da rua, um barbante áspero, másculo cerol cruel rompeu a tênue linda da pipa-borboleta da menina. E quando o papel, seda esgarçada, da menina estilhaçou-se entre as pedras da calçada, a menina rolou entre a dor e o abandono. E depois, sempre dilacerada, a menina expulsou de si uma boneca ensanguentada que afundou num banheiro público qualquer. (EVARISTO, 2017, p. 50) O poema acima instiga e atormenta até os insensíveis à questão da violência contra as mulheres. A lâmina-escrita de Conceição Evaristo reitera correntemente a ideia de que a “escrevivência” das mulheres negras “não pode ser lida como histórias para ‘ninar os da casa grande’ e sim para incomodá-los em seus sonos injustos” (EVARISTO, 2005; 2007). A saber, traduz os modos de operacionalização de subjugamento do corpo negro, uma vez que, comumente, isso se processa por ambivalência do olhar de sedução e de repulsa do outro. (FANON, 2005; MBEMBE, 2014). Enfim, na literatura de autoria negra, ou como queiram defini-la - afro-brasileira ou afrodescendente -, parece não prevalecer uma unicidade nem tampouco reforçar a ideia de refúgio em guetos. O que vigora, se levarmos em conta o empenho de uma orgânica sistematização da nova crítica literária afro-brasileira em curso, é a pluralidade e a diversidade de vozes, sem hierarquização de domínios específicos de determinadas formas literárias. A palavra que espeta e não verga produz beleza, seduz e encanta o (a) leitor (a), pois, criada do pretume de vozes, alicerça a rede de solidariedade que faz valer novas visões estéticas. Referências ALVES, Miriam.“Cuidado! Há navalhas.” In. Estrelas no dedo. Poemas. São Paulo: Edição da autora, 1985 BETHÂNIA, Maria; PINHEIRO, Paulo. “Carta de Amor”. In. Oásis de Bethânia. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, c2012. 1CD. CUTI. “Estética”. In. Cadernos negros. v. 19. São Paulo: Quilombhoje, 1996, p. 36. EVARISTO, Conceição. “A menina e a pipa-borboleta” In. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de janeiro: Malê, 2017. EVARISTO, Conceição. Texto apresentado na mesa de Escritoras Afro-brasilerias, no XI Seminário Nacional Mulher e Literatura/ II Seminário Internacional Mulher e Literatura, Rio de Janeiro, 12005. EVARISTO, Conceição. “Da grafia-desenho de minha mãe um dos lugares de Nascimento de minha escrita” In. ALEXANDRE, Marcos Antônio. (Org) Representações Performáticas Brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte, Mazza Edições, 2007, p 16-21. FANON, Frantz. Os condenados da terra. (Trad. Enilce Alberfaria Rocha, Lucy Magalhães). Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005. MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. (Trad. Marta Lança). Portugal: Antígona, 2014. NATÁLIA, Lívia. “Poema – ebó”. In. Ogum’s Toques Negros: Coletânea Poética. ÁDUN, Guellwar; ADÚN, Mel; RATTS, Alex. (Orgs.). Salvador: Editora Ogum’s Toques Negros, 2016, p. 138 – 139.