Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Organizadores Gabriel Sausen Feil Marcos da Rocha Oliveira Sara Feitosa © Organizadores © Gabriel Sausen Feil; Marcos da Rocha Oliveira; Sara Feitosa (Org.), 2019. Autores: Cesar Beras Cristiano Bedin da Costa Fabrício Silveira Fernando Silva Santor Gabriel Sausen Feil Jorge Ramos do Ó Larissa Conceição dos Santos Luiz Daniel Rodrigues Dinarte Magda Rosi Ruschel Marco Bonito Marcos da Rocha Oliveira Paola Zordan Rafael Grohmann Sandra Mara Corazza Sara Feitosa Suzana Kilpp Apoio Técnico e Operacional: Gustavo de Carvalho Luiz Luis André Antunes Padilha Revisão de língua portuguesa: Dra. Jeane Mari Spera Projeto gráfico e editoração: Guilherme André de Campos Impressão e acabamento: Triunfal Gráfica e Editora Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Vania Aparecida Marques Favato – CRB/8 – 3301 T355 Texto / Organizadores: Gabriel Sausen Feil, Marcos da Rocha Oliveira e Sara Feitosa. - São Borja: Unipampa; Assis: Triunfal Gráfica e Editora, 2019. 259 p. : il. Vários autores ISBN: 978-85-61175-89-4 1. Sociolinguística. 2. Comunicação escrita. 3. Comunicação audiovisual. 4. Escrita. 5. Cinema e linguagem. I. Feil, Gabriel Sausen. II. Oliveira, Marcos da Rocha. III. Feitosa, Sara. CDD 301.24 Organizadores Gabriel Sausen Feil Marcos da Rocha Oliveira Sara Feitosa Assis - SP 2019 Triunfal Gráfica e Editora Conselho Editorial Prof Dr Emiliano Venier, Universidad Nacional de Salta (Unsa, Argentina) Profa Dra Iluska Maria Coutinho, Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF, Brasil) Profa Dra Iris Yae Tomita, Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro, Brasil) Profa Dra Jamile Santinello, Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro, Brasil) Prof Dr Jorge Alberto Kulemeyer, Universidad Nacional de Jujuy (UNJu, Argentina) Prof Dr Júlio César Arrueta, Universidad Nacional de Jujuy (UNJu, Argentina) Profa Dra Lina Maria Patricia Manrique Villanueva, Universidad Nacional de Colombia (Unal, Colômbia) Profa Dra Lucrécia Agustina Sotelo, Universidad Nacional de la Patagónia Austral (UNPA, Argentina) Profa Dra Níncia Cecília Ribas Borges Teixeira, Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro, Brasil) Profa Dra Renata Caleffi, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG, Brasil) Profa Dra Silvia Coneglian Vasconcellos, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, Brasil) Profa Dra Yeldy Milena Rodríguez Garcia, Corporación Universitária Minuto de Dios (UNIMINUTO, Colômbia) SUMÁRIO PRÓLOGO OU ANTELÓQUIO, ENCONTRO, TEXTO LÓGICA DAS LÓGICAS 7 11 Gabriel Sausen Feil ESSE METAL INCANDESCENTE... O CONCEITO DE TEXTO EM ROLAND BARTHES E A ESCRITA DE FICÇÃO COMO MÉTODO 25 Fabrício Silveira SIM E NÃO: UMA NOVA IMPOSTURA 39 Sandra Mara Corazza Luiz Daniel Rodrigues Dinarte PROPOSIÇÕES PARA UM ENSINO BARTHESIANO 53 Cristiano Bedin da Costa PEDAGOGIA, CULTURA E ERUDIÇÃO – TEXTO E DOCÊNCIA NA FORMAÇÃO DE PROFESSORES 71 Marcos da Rocha Oliveira TEIA EM CONTAS DE MUITAS PESSOAS 85 Paola Zordan ENSAIO-FÍLMICO: NOTAS SOBRE UMA FORMA AUDIOVISUAL SEM FORMA 101 Sara Feitosa IMAGINÁRIOS E TECNOLOGIAS DO SILÊNCIO NO CINEMA 117 Suzana Kilpp Magda Rosi Ruschel AVENTURA DO TEXTO, PALAVRA PLURAL Jorge Ramos do Ó 137 A INVERSÃO DO CICLO LITERÁRIO: ENTRE A COMUNICAÇÃO LIBERTADORA E A COMUNICAÇÃO DOMINADORA 165 Cesar Beras ÁLVARO VIEIRA PINTO E AS TEORIAS DA COMUNICAÇÃO: DIÁLOGOS POSSÍVEIS? 185 Rafael Grohmann COMUNICAÇÃO IM-POSSÍVEL: LEITURA A PARTIR DA PERSPECTIVA DA METAÉTICA LEVINASIANA 207 Fernando Silva Santor O TEXTO FACE AO DIGITAL: COMUNICAÇÃO, APROPRIAÇÃO E MEMÓRIA EM PERSPECTIVA 229 Larissa Conceição dos Santos Marco Bonito POSFÁCIO: EL TEXTO INTERACTIVO Y SU RELACIÓN CON EDUCACIÓN EN LA CULTURA DIGITAL Yeldy Milena Rodríguez García 251 PRÓLOGO OU ANTELÓQUIO, ENCONTRO, TEXTO Este livro é uma organização dos professores/pesquisadores do Grupo de Pesquisa t3xto – da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), Campus São Borja – e tem como objetivo funcionar como um encontro entre textos em formatos e estilos livres, apropriando-se da noção de Texto, de Roland Barthes, entendida como sistemas significantes, isto é, como tudo aquilo que instiga a produção de novo(s) sentido(s). Tal apropriação é, aliás, o interesse principal do próprio Grupo t3xto: estudar e produzir sobre e a partir de Textos – sejam esses verbais ou não, escritos, imaginados ou musicados, vindos de uma obra comunicacional, acadêmico-científica, artístico-literária ou do senso comum. O interesse está naquilo que instiga a variação dos sentidos ou na própria variação. O objetivo de funcionar como um encontro implica avizinhar textos que são distintos – tanto em termos de conteúdo quanto de expressão, tanto em termos de linhas teóricas distintas quanto de áreas variadas – mas que também compõem, juntos, alguma coisa, alguma sintonia, na ideia de se tornar um bom encontro, no sentido deleuziano: “Tudo é apenas encontro no universo, bom ou mau encontro” (DELEUZE; PARNET, 1998, p.49). [Escolhemos o Texto e seguimos por ele – talvez, pela ficção e método.] “Esse metal incandescente... O conceito de texto em Roland Barthes e a escrita de ficção como método” traduz perfeitamente o sentimento de um fim de semestre – período que fechamos esta edição e que, igualmente, em outro passado, Fabrício o escreveu: o interstício que abriga o “ufa!!! Já está quase no fim” e a expectativa e, porque não dizer, a esperança do novo semestre que está logo ali. Mas o texto de Fabrício suscita muitas outras emoções, sentimentos, sensações que se misturam no sabor e saber do Barthes que nos atinge no mo- mento da escrita. Estamos todos, sim e não, com Sandra e Luiz, em “uma nova impostura”. Mas se este livro é, também, um encontro no presente da escrita, é em função de ser feito por pesquisadores que formam, de algum modo, nas similitudes e nas diferenças, uma teia. É assim que o texto de Sara poderia até prefigurar tal imagem, oferecendo notas sobre o filme-ensaio, uma forma audiovisual sem forma, que mostraria cada um dos pesquisadores e tais escritores juntos, reunidos pelo conjunto deste livro e por uma divisa sussurrada (que nem todos comungam, que seja posto): a ficção como fundação. Ou, como no texto de Suzana e Magda, uma reunião que nos convida a pensar o silêncio como texto e sua feitura com aparatos técnicos que produzem efeitos de silêncio. Encontros entre estranhos contemporâneos (o desviar, leve, de olhos na leitura, a concreção idiorrítimica de nossa conversa infinita) em que Gabriel pode ser posto à espreita vaga de um Roland Barthes nas lições americanas de Ítalo Calvino ao insistir, ao seu modo, no demônio sensível da exatidão em sua “Lógica das lógicas”. E quando, da caderneta de Marcos, a pretensão de uma Mathesis singularis para a pedagogia pode até antecipar a “Aventura do texto; palavra plural” como uma performance escrita de Jorge: textos e autores parecem migrar entre as linhas do livro – já impossível de ser epigrafado. E há Rafael, que nos oferece um resgate do pensamento de Álvaro Vieira Pinto e reflete sobre algumas razões do “esquecimento” do seu nome como autor importante para o pensamento das teorias da comunicação. E na escrita de Cesar está a luta “entre a comunicação libertadora e a comunicação dominadora”, enquanto Cristiano escreve no quadro, insistentemente: “não-barthesianos, abstenham-se”. Diante de tal encontro, resta-nos o mistério, Fernando, como o desviar, leve, do rosto de Maurice Blanchot na foto com Levinas, como o pretexto da imagem-teia-Paola. E nosso leitor impossível, então, já poderia estar lá, nas últimas linhas escritas por Larissa e Marco, como um testemunho de virtualização, como a fantasia de um texto a ser escrito como a memória em perspectiva deste encontro chamado livro. 8 Na altura, cada texto, então, visa por si ao perigo absoluto e paira, como o leitor do futuro e a distorção de seus atributos no tempo: “levíssimo que era” (como cita Calvino, sobre Cavalcanti), “libertando-se com um salto”. [Ao(s) Texto(s), pois! Brindemos alto.] Gabriel Sausen Feil, Marcos da Rocha Oliveira e Sara Feitosa (Organizadores). 9 Lógica das lógicas1 Gabriel Sausen Feil Propedêuticas 1 Quando um texto, seja ele escrito ou falado, diz que alguma coisa, ou ele mesmo, contribui para a cultura ou para a sociedade ou para a educação etc., o que tal texto quer exatamente dizer? 2 Não está aqui em questão o fato de tal texto descrever ou não no que o seu objeto ou no que ele mesmo contribui. Isso geralmente é feito. O que tende a não ser explorado é a partir de qual lógica de contribuição que isso ou aquilo contribui? 3 A neutralidade do texto em relação à lógica se torna problemática por pelo menos dois motivos: por pressupor que há apenas uma lógica possível, uma lógica natural e/ou transcendental (havendo apenas uma, abre-se mão da necessidade de marcação); e por dispensar a necessidade de defesa de um ponto de vista (não simplesmente defesa de uma linha de pensamento, mas de um modo de se apropriar das coisas, da vida). 4 [Quando este texto diz “lógica”, não é no sentido silogístico e/ou no do racionalismo cartesiano, mas no sentido de funcionamento: “como funciona este pensamento?”, “qual é o seu procedimento?”, “o que leva em consideração?”.] 1 Este texto é inédito; entretanto, algumas ideias e mesmo alguns fragmentos já se encontram no texto “Publicidade e máquina de guerra” (FEIL, 2018). 5 Este texto destaca quatro lógicas, encontradas ora na Academia, ora no mercado, ora no cotidiano, ora no submundo, ora na praça pública, ora na igreja, ora na mesa de bar, ora nos anais, indistintamente: lógica da consciência; lógica do sistema; lógica da erudição; lógica do pensamento. 6 [“Quatro lógicas” não passa de uma escolha deste texto. Isso significa que não quer dizer que existem somente quatro lógicas e nem sequer que essas mesmas não poderiam ser apresentadas de outro modo: aglutinadas ou fragmentadas.] 7 Não se trata de algo estanque; as quatro lógicas se misturam e confundem-se. É uma questão de ênfase: determinada ação/ideia ou determinado texto está mais intensamente afinada/afinado com determinada lógica. 8 A questão não é classificatória; nada ou pouco importa classificar tal texto como estando sob esta ou aquela lógica. As lógicas podem coexistir em um mesmo texto. É mais como o jogo proposto por Umberto Eco (1987) em Apocalípticos e integrados: cada lógica, assim como os dois posicionamentos inventados por Eco, não passam de posições hipotéticas. Apresentação da lógica da consciência 1 A lógica da consciência pergunta pelo valor moral da ação/ideia; pelo bem e mal; pelo certo e errado; pela relação com os valores históricos, já assentados. 12 2 Ao contribuir sob uma lógica da consciência, não significa que a ação/ideia esteja sendo moralista; significa, isto sim, que tende a apresentar e defender posicionamentos reconhecidos socialmente como legais, éticos, democráticos, responsáveis, justos e ambientalmente corretos. 3 Diz a lógica da consciência: “é assim que deve ou deveria ser!”. 4 A lógica da consciência exibe-se, de modo mais recorrente, em fontes governamentais, em textos que se envolvem com ações políticas, em documentos diplomáticos, em textos ligados à Organização das Nações Unidas (ONU), à UNESCO e/ou à Cultura de Paz, em livros sobre éticas profissionais e/ou estatutos de ética. Exibe-se também em textos acadêmicos, mas, sobretudo, naqueles de tom teleológico, que buscam esboçar um mundo melhor. 5 A lógica da consciência, não raras vezes, implica o conhecimento para. Isto é, implica entender o conhecimento como algo útil. 6 A lógica da consciência mantém relações com a noção de “questão social”. 7 A lógica da consciência funciona ao modo da noção de “consciência social”, que dá conta da ideia de que, se todos fossem “indivíduos conscientes”, todos concordariam com qual é a sociedade ideal, de modo que todos assumiriam uma mesma versão de realidade. 13 8 O lema da “consciência social”: estudar/informar-se, tornar-se cidadão, idealizar. Estudar/informar-se: encara o conhecimento como um meio para o indivíduo empoderar-se, para que tal indivíduo possa fazer suas próprias escolhas de maneira “consciente”; tornar-se cidadão: pressupõe um modo correto de ser; idealizar: acredita em uma sociedade ideal, de modo que o indivíduo deve lutar por ela. 9 O termo “consciente socialmente” é reservado àquele indivíduo que compreende a realidade do outro, especialmente quando esse outro enfrenta dificuldades sociais; e que não apenas compreende, mas também faz, na prática, alguma ação que deixe isso claro. 10 A lógica da consciência é da ordem do ser, isto é, das subjetividades, da história, da formação. Isso quer dizer que o indivíduo é entendido como detentor de uma consciência cumulativa, pessoal e coerente. 11 A lógica da consciência é dependente das noções de bem e mal, pois, nessa lógica, o indivíduo precisa ter uma clareza sobre quem é o seu inimigo/adversário, já que a sua realização e o seu orgulho dependem da ocupação de um lado, que fica em oposição ao outro, entendido como mal intencionado ou ingênuo. Apresentação da lógica do sistema 1 A lógica do sistema pergunta pela utilidade e operacionalidade da ação/ideia; pela capacidade dessa ação/ideia de se integrar ao que já existe. 14 2 Ao contribuir sob uma lógica do sistema, não significa que a ação/ideia seja acrítica e/ou conformista; significa, isto sim, que tende a preparar o indivíduo para inseri-lo nas profissões estabelecidas e nas emergentes; tende a apresentar aquilo que já se faz, aquilo que já está no sistema. 3 Diz a lógica do sistema: “é assim que funciona!”. 4 A lógica do sistema exibe-se, de modo mais recorrente, em livros elaborados por profissionais das áreas e em livros produzidos por quem alcançou ou alcança sucesso; especialmente, por quem prospera ou prosperou (“saiu de baixo”). 5 A lógica do sistema, a exemplo da lógica da consciência, também tende a implicar o conhecimento para; entretanto, enquanto a da consciência se direciona para algo que esteja sendo entendido como de relevância social, a do sistema se direciona para algo que esteja sendo entendido como de relevância profissional. 6 A lógica do sistema mantém relações com a postura dos integrados de Eco (1987), sobretudo, no que diz respeito não ao não criticar a sociedade (integrados também reclamam!), mas ao interpretar os problemas sociais como um fato neutro; em outras palavras, aceitar os eventos históricos por entender que o melhor a fazer é “operar sobre a história” (p.14), em vez de transformá-la e/ou tencioná-la; e porque “raramente teorizam e assim, mais facilmente, operam, produzem” (p.9). 15 7 A lógica do sistema funciona ao modo das noções de “prosperidade” e de “meritocracia”, que dão conta da ideia de que quem prospera é porque tem mérito próprio e, inversamente, quem não prospera é porque não tem mérito e/ou não merece. 8 O lema da “prosperidade” e “meritocracia”: integrar-se, esforçar-se, prosperar. Integrar-se: o indivíduo não questiona a realidade, mas verifica-a, constata-a, busca entender quais são “as regras do jogo” para melhor jogar; esforçar-se: dada a regra, o indivíduo trabalha em cima dela, não perdendo tempo pensando sobre ela, visto que a sua prioridade é jogar da melhor maneira possível; prosperar: jogando bem, o indivíduo tem seu esforço recompensado com promoção social. 9 A lógica do sistema relaciona-se, ao menos em parte, com o princípio da ascese espiritual das religiões reformistas (ideia do ter o esforço recompensado), com o paradigma capitalista (ideia da ascensão social pelo mérito individual), com o pensamento moderno (ideia do homem como autor de sua própria história), com o espírito positivista (ideia de medir a realidade em vez de criticá-la) e com a política integralista (ideia de que é possível unir todos os indivíduos dentro de um mesmo ideal, pressupondo crença na possibilidade de neutralidade ideológica). 10 A lógica do sistema, a exemplo da lógica da consciência, é também da ordem do ser, isto é, das subjetividades, da história, da formação. Isso quer dizer que o indivíduo é entendido como detentor de uma consciência cumulativa, pessoal e coerente. 16 11 A lógica do sistema, a exemplo da lógica da consciência, é também dependente das noções de bem e mal, pois, nesta lógica, o indivíduo precisa ter uma clareza sobre quem é o seu inimigo/adversário, já que a sua realização e o seu orgulho dependem do contraste que a sua situação estabelece em relação à situação do inimigo/adversário. O seu sucesso depende da sua migração de uma situação entendida como pior para outra entendida como melhor. Situação melhor que já está aí, basta ser ocupada pelos valorosos, de modo que quem não a ocupa, quem não faz essa migração, é entendido como estando do outro lado, o dos preguiçosos ou indolentes. Apresentação da lógica da erudição 1 A lógica da erudição pergunta pela raridade e qualidade da ação/ideia; pela capacidade dessa ação de enobrecer a mente, de diferenciar e singularizar o espírito. 2 Contribuir sob uma lógica da erudição não significa que a ação/ideia seja burguêsa e/ou classista, pois, ao diferenciar e singularizar, não o faz para superiorizar-se, mas o faz por pressupor que o senso comum precisa ser superado e/ou tornado consistente; por se insatisfazer com a arte e o pensamento banalizados. 3 Diz a lógica da erudição: “é assim, dados os meus argumentos, as minhas explicações, as minhas teorias, as minhas habilidades, os meus talentos, os meus cálculos, as minhas fórmulas, as minhas tabelas, os meus gráficos!”. 17 4 A lógica da erudição exibe-se, de modo mais recorrente, em livros científicos, históricos, filosóficos, sociológicos e antropológicos. 5 A lógica da erudição tende a implicar o conhecimento entendido como cultivo e enobrecimento da mente. Assim, o conhecimento não serve para um fim específico. Se serve para algo é apenas para o próprio exercício do intelecto (espécie de musculação do cérebro). 6 A lógica da erudição mantém relações com os argumentos dos apocalípticos de Eco (1987), no que diz respeito, sobretudo, à noção de que a cultura é um fato raro, singular, especializado, não popular. 7 A lógica da erudição funciona ao modo do conceito de kultur, que dá conta da ideia de que “a cultura é um fato aristocrático, o cioso cultivo, assíduo e solitário, de uma interioridade que se apura e se opõe à vulgaridade da multidão” (ECO, 1987, p.8). Aristocrático não no sentido de governo dos mais ricos (absolutamente nenhuma relação com condição econômica), mas no sentido de lógica de afirmação da distinção, em que cultura é tocar violino, cantar liricamente, ser poliglota, criar um sistema filosófico, propor uma teoria etc. Isto é, aquilo que diferencia uma mente das outras. 8 O lema da kultur: esforçar-se intelectualmente, cultivar a mente, fazer cultura. Esforçar-se intelectualmente: o indivíduo aprende a erudição, ou seja, aqueles conhecimentos reconhecidos como especiais e relevantes pelas sociedades an- 18 teriores; cultivar a mente: assim como se cultiva a terra antes de tal terra passar a produzir, o indivíduo cultiva a sua mente através daquilo que a desafia: cálculos complexos, filosofias densas, arte para poucos; fazer cultura: com a mente cultivada, o indivíduo pode, talvez, vir a produzir algo singular, entendido como cultura. 9 A lógica da erudição se relaciona com a seguinte frase de Heráclito, usada por Eco (1987, p.8) para se referir aos apocalípticos: “Por que quereis levar-me a toda parte, ó iletrados? não escrevi para vós, mas para quem me pode compreender. Um, para mim, vale cem mil, e a multidão, nada”. 10 A lógica da erudição, a exemplo das lógicas da consciência e do sistema, é também da ordem do ser, isto é, das subjetividades, da história, da formação. Isso quer dizer que o indivíduo é entendido como um sujeito centrado, como entidade. 11 A lógica da erudição não é condicionada pelas noções de bem e mal, até porque não se trata de uma lógica operacional do comportamento dos indivíduos. O indivíduo, nessa lógica, pensa sobre o bem e mal em vez do bem e mal pautar a sua conduta. Ainda que tal indivíduo não esteja neutro em relação à moral, a sua ênfase está em estudar as formas de comportamento, em teorizar a moral. Apresentação da lógica do pensamento 1 A lógica do pensamento pergunta pela transgressão; pelo caos; pela inventividade. Pergunta por aquilo que move o pensamento: a própria pergunta, o problema, o estranho. 19 2 Se contribuir sob uma lógica do pensamento, a ação/ ideia tende a pressupor que nada é definitivo, que a realidade é inventada, que os consensos são provisórios, que a verdade é efêmera. 3 Diz a lógica do pensamento: “é assim porque alguém inventou!”; “o que era assim já desintegrou-se!”. 4 A lógica do pensamento se exibe na postura e no estilo do indivíduo/artista/escritor. Nem sempre, pois não é dominável. Exibe-se, de modo mais recorrente, nos pormenores, nas nuances, no charme, no quase imperceptível. 5 A lógica do pensamento entende que o pensamento está em fluxo ininterrupto, de modo que as serventias e utilidades não esgotam e nem podem esgotar o ato de pensar. 6 A lógica do pensamento mantém relações com o conceito de cultura de Nietzsche (2004), no que diz respeito à noção de jogo agonístico (nada se estabiliza, tudo o que se forma agoniza, deixa de ser; o eterno subir e descer) e à ideia de que o pensamento precisa ter direito à inutilidade (cultura é diferente de conhecimento técnico, que serve, e diferente de erudição, que se cristaliza); e com o conceito de erotismo de Deleuze (2003), no que tange à ideia de diluição das formas (procedimento que perverte as formas consagradas, jogando-as à suspensão). 20 7 A lógica do pensamento funciona ao modo do que Deleuze e Guattari (1997) chamam de máquina de guerra, que dá conta da ideia de que tudo o que já está formado (a moral, as instituições, as cidades, o Eu, o Estado etc.) mantém uma relação com o seu fora, que o faz variar, com violência ou sutileza. 8 O lema da máquina de guerra: “margear, cercar, arrebentar” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.13-14). Margear: não nega o que já está pronto, mas também não se deixa cooptar, é de um paralelismo marginal; cercar: não confronta o já estabelecido, incomoda, estranha, torna-se insuportável; arrebentar: não busca substituir, tomar o lugar, chegar ao poder, simplesmente fissura a barragem, devolve tudo ao caos. 9 Considerando que a máquina de guerra é da ordem do efêmero e da metamorfose, absolutamente nada é máquina de guerra; uma ação/ideia pode vir a funcionar como máquina de guerra; ainda assim, conforme sempre um ponto de vista válido apenas para o instante em questão. 10 Classificar algo como, necessariamente, máquina de guerra não faz sentido, justamente, porque ela não é um estado, não é da ordem do ser, mas do devir e/ou do por vir, do que está para ser pensado/experimentado. 11 O que mais sofre com a lógica do pensamento é o sentido já posto, a identidade pessoal, a verdade inquestionável, a regra sagrada, enfim, tudo aquilo que, para existir, precisa dar a entender que é intocável. 21 Considerações 1 Com as lógicas da consciência, do sistema e da erudição, o indivíduo e a sociedade negociam, inclusive, de modo consciente; já com a lógica do pensamento a relação é outra: incontrolável, é ela quem invade o indivíduo e a sociedade, coloca-os em variação e os torna vívidos. 2 As lógicas da consciência, do sistema e da erudição são teleológicas, no sentido de que acreditam em um melhoramento da sociedade e/ou do mundo. 3 As lógicas da consciência e do sistema se referenciam em sentidos já postos, já digeridos pela sociedade. 4 As lógicas da erudição e do pensamento focam no sentido por vir, mas, ao fazer isso, a da erudição usa os sentidos já postos para avaliar os novos, enquanto a do pensamento abre mão de qualquer ponto de referência, ainda que use pontos de impulsão. 5 A lógica do sistema entende que o indivíduo deva inserir-se; a lógica da erudição entende que o indivíduo deve distinguir-se; a lógica do pensamento não nega a possibilidade de o indivíduo inserir-se, mas entende que isso somente tem graça se envolver a apropriação como passo necessário para o procedimento de transgressão. 22 Referências DELEUZE, Gilles. Klossowski ou os corpos-linguagens. In: ______. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2003. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. 1227 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. In: ______; ______ Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, v.5. São Paulo: Ed. 34, 1997. ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987. FEIL, Gabriel Sausen. Publicidade e máquina de guerra. In: PEREIRA, João Antônio Gomes; SILVA, Denise Teresinha da. Publicidade: reflexões sobre saberes e fazeres na fronteira gaúcha. Jaguarão: CLAEC, 2018, p.112-120. NIETZSCHE, Friedrich. Sobre o futuro de nossas Instituições de Formação: Seis conferências públicas. Tradução livre de Paulo Rudi Schneider, 2004. 23 Esse metal incandescente... O conceito de texto em Roland Barthes e a escrita de ficção como método Fabrício Silveira O convite para escrever sobre Roland Barthes chegou em boa hora. O recorte dado ao tema – escrever sobre o conceito de texto em Barthes – não poderia ser mais oportuno. O semestre já andava perto do final, naquela altura em que ninguém se atreve a produzir efeitos que não colaborem para seu desfecho imediato, resguardadas todas as formalidades burocráticas, com o peso disfórico, a mistura de tédio e alívio que costumam marcar (e, às vezes, tomam de assalto) esse período acadêmico. Somava-se a isso a convulsão geral do cenário político do país: a greve dos caminhoneiros (que acarretou, na terceira semana de maio, a suspensão das aulas por um período de quatro ou cinco dias e o replanejamento compulsório das atividades docentes), a corrida eleitoral em seus primeiros passos, as manchetes de corrupção com que éramos bombardeados e a polarização enlouquecedora das redes sociais. Fatores de turbulência, como se vê, não faltavam1. Era fácil olhar para os lados e se convencer de que o melhor a fazer era mesmo não fazer nada, deixar que uma certa ordem homeostática se impusesse, que uma certa inércia se produzisse, serenando a todos, como se fosse a derradeira lei da natureza, algo majestoso e imparável como a órbita dos planetas. Escrever sobre Roland Barthes, nesse contexto, tornou-se equivalente a se refugiar numa ilha, um repentino convite para abstrair, blindar-se um pouco, isolar tudo de ruim que pairava à minha volta. Um modo egoísta, sem dúvida, de encontrar algum prazer numa prática de texto – esse prazer difuso, esse rangido, como disse o próprio Barthes, o estrepitar dessa fruição. 1 Em paralelo, a iminência da Copa do Mundo: os holofotes da mídia se dirigindo às preparações do selecionado de Tite, Neymar e as partidas de futebol na Rússia. ... Quando recebi o convite, logo se colocou uma questão – que, aliás, se coloca sempre, diante do chamado para nos responsabilizarmos por alguma coisa cara –: “como fazê-lo?”. Como responder às reflexões de Barthes e às reflexões que ele ainda suscita, tanto em termos de produzir alguma novidade a respeito – considerando-se que Barthes, entre nós, é um autor por demais conhecido e comentado – quanto no sentido de tirar o máximo possível da oportunidade, não só para resenhá-lo, o que já não seria pouco, mas para se deixar contaminar pelo prazer do texto, deixar-se conduzir pelas práticas de escrita e pela própria experiência do texto – que são, afinal de contas, os temas que o preocupavam ao final da vida? Várias estratégias se desenharam em minha cabeça. Primeiro, tomar a ocasião para elaborar (as notas iniciais, talvez, de) um novo projeto de pesquisa, que dialogasse com as questões que me foram abertas por minha estreia na escrita de ficção – meu livro Gigante Figura2 havia sido lançado em abril de 2018 e havia me jogado num universo até então inédito de questões relativas à fabulação narrativa, às regras internas dos mundos ficcionais, às relações entre os textos acadêmicos e os textos literários. Seria então uma chance para sistematizar essas inquietações, dar-lhes o formato habitual de um projeto acadêmico, torná-las um pouco mais palatáveis no que diz respeito aos procedimentos e às rotinas que costumamos enfrentar na vida universitária. A segunda possibilidade – desafiadora, de igual modo – foi a de aproveitar a liberdade editorial que me foi concedida para testar-me outra vez nos domínios da ficção. Seria o caso de aproveitar, por exemplo, o livro recente de Laurent Binet (2015), cujo título é Quem Matou Roland Barthes?, e, a partir dele, inspirando-me nele, propor algo semelhante: flagrar Bar2 Gigante Figura é uma novela histórica, de acento fantástico. Narra episódios da vida de Ugo Battista, um personagem real, nascido na Itália em 1876 e considerado, naquela virada de século, o homem mais alto do mundo. Na superfície, é um exercício de ficção. Menos superficialmente, é um estudo benjaminiano sobre arqueologia das mídias, normatização e inspeção visual dos corpos na modernidade. 26 thes como um personagem literário – por que não? –, envolvido numa trama imaginária que se ambientaria em torno não só de sua figura pública mas também em torno de suas ideias e seus escritos, os ambientes que ele frequentou, as amizades que prezava, o legado cultural que pôde, quando faleceu, nos deixar. O livro de Binet faz justamente isto: imagina um enredo policial cujo estopim é a morte (na ficção, o assassinato) de Roland Barthes, que teria descoberto a sétima função da linguagem – a função “mágica” ou “encantatória”, assim ela foi batizada3 – e estaria, em virtude disso, no centro de um intrincado jogo político atinente à corrida presidencial na França. Um terceiro caminho metodológico (muito mais cômodo) seria o de retornar às minhas fichas pessoais de sala de aula e dar-lhes um formato publicável, organizá-las para que pudessem ser lidas com proveito, para que se tornassem úteis para outros leitores e pesquisadores interessados. Seria então o caso de expor aqui minhas anotações e meus roteiros, um material que fui sistematizando e acumulando ao longo do tempo, em cada tópico revisado, em cada leitura refeita, no correr dos anos, com o propósito de instruir meus alunos, incrementar minhas aulas ou otimizar debates, dando-lhes, quando me cabia, determinados contornos e/ou informações básicas. Foi este o complexo dilema com o qual me deparei. O que escolher? Como fazê-lo? ... Optei por trabalhar sem uma programação rígida e sem qualquer intenção pré-determinada, como se isso fosse possível, como se fosse viável achar – por meio de um certo espontaneísmo, numa sequência de notas de natureza distinta, numa 3 Largamente debatidas, as funções da linguagem foram propostas por Roman Jakobson no artigo “Lingüística e poética”, do livro Lingüística e Comunicação, de 1969. São elas: função emotiva (centrada no remetente); função poética (centrada na mensagem); função conativa (sobre o destinatário); função referencial (contemplando o contexto em que a mensagem está inserida); função fática (alusiva ao modo de contato, ao canal que possibilita o trânsito das mensagens); função metalinguística (é o código falando sobre si próprio). A função “mágica” ou “encantatória”, por sua vez – segundo a fabulação de Binet (2015) –, se detém sobre os efeitos persuasivos produzidos. 27 “tática sem estratégia” – a soma ideal ou a média virtuosa, o justo equilíbrio entre todas as possibilidades acima arroladas. Optei por escrever sem a pressão de checar citações, de fazê-las corretamente, de ser ponderado ou sóbrio, de me distanciar (amparando-me num método, num rigor analítico). Optei por me entregar àquilo que sei sobre Roland Barthes e àquilo que, agora, enquanto escrevo, me recordo dele. O que irá se seguir, portanto, é uma combinação (uma combustão?) espontânea de ensaios reflexivos, anotações privadas e incursões ficcionais. Uma lista de “incidentes”, para utilizar um termo barthesiano4 (BARTHES, 2004b). Acima de tudo, é um modo de homenagear Barthes, é um modo de celebrá-lo5, permitindo que essas textualidades possam, nesse momento, se cruzar, que diversas matrizes textuais possam convergir, apontando para um lugar e uma forma expositiva onde “saberes e sabores” (como o próprio Barthes deve ter adorado dizer) se conjuguem, onde o meu texto se faz mais solto, dá maior liberdade ao pensamento e à ação plasmados na escritura. ... Lembro-me de ouvir João Gilberto Noll se referir à escrita, certa vez, como um embate bruto entre o texto e o corpo inteiro do escritor. Disse-me que se via em luta com as palavras, fazendo-as caber, à força, num parágrafo ou noutro, expulsando-as quase aos socos, colocando-as para correr quando já não se ajustavam mais, dando-lhes rasteiras – levando rasteiras –, até vislumbrar, na duração dessa luta-livre, uma forma que lhe parecesse mais justa e agradável (“há uma ideia de justiça implicada nisso tudo”, ele me disse). 4 Nossa expectativa é de que a própria forma desse texto – o modo como se apresenta (sua fluência, sua estrutura fragmentária, sua narração em primeira pessoa, as ilações que se autoriza a fazer, o seu pensamento elusivo, a progressão aos saltos, as liberdades ficcionais, a retomada episódica de dois ou três temas, o tom confessional, tudo isso) – se coloque a serviço do esclarecimento das posições de Roland Barthes quanto à escrita. Uma experiência semelhante – embora tratando de outros temas e adotando outro tom – foi desenvolvida, recentemente, com apuro e sensibilidade incomuns, por Maggie Nelson, no livro Argonautas (2017). 5 O livro de Laurent Binet foi lançado, na França, dentro da programação comemorativa ao centenário do nascimento de Roland Barthes. 28 Noll teve um professor que fumava enquanto dava aulas. Lembrava-se bastante bem dele. Lembrava-se de que ele penteava os cabelos com cuidado, deixando a testa sempre à mostra, a franja puxada para trás, num volume que se dissipava conforme fosse, a partir dali, chegando à nuca, deslizando a mão, com delicadeza, ao lado esquerdo da cabeça. Vestia-se com elegância, Noll me assegurou. “De um modo que convinha aos dias frios do inverno gaúcho?”, perguntei. Como era adequado, ele respondeu, à sacralidade respeitosa, à nobreza secular dos ambientes acadêmicos. Lembrou-se que ele usava gravatas quase sempre. Não era o dono da melhor caligrafia que Noll havia conhecido. No quadro negro, as letras desse professor pareciam desequilibradas – “umas linhas trôpegas; às vezes, muito juntas” –, dispostas numa leve descendente. Apareciam setas e os desenhos de uma flecha, o que dava ordem ao discurso e esclarecia – para Noll – o sentido das palavras. E disse-me também que gostava de vê-lo apagando o quadro negro, como quem pinta uma parede, com pressa, deixando para trás os rastros do apagador. “E aqueles rastros pareciam sombras. O negativo de uma nuvem”, Noll me esclareceu. Era o sinal de que viria outro conjunto de expressões. “Outra salada de imagens”, acrescentei. Disse-me que nunca havia compreendido a oposição entre “heterodiegese” e “homodiegese” – eram conceitos difíceis: “eu só os entenderia se fosse menos bruto ou se estudasse um pouco mais”, complementou –, mas que, sim, de súbito, havia entendido: aquele professor era canhoto, parecia rir quando fumava e descansava, sempre que podia, a mão direita num dos bolsos do casaco. Meses depois eu me dei conta: Noll havia descrito, sem alarde, uma fotografia de Roland Barthes. ... E o que sei, de resto, sobre Barthes? Sei que foi um dos principais herdeiros teóricos do linguista suíço Ferdinand de Saussure (1857-1913). Sei que se tornou importante por recuperar a obra basilar de Saussure (1995 [1916]) – Curso de Linguística Geral – e dar-lhe o devido reconhecimento, ou contribuir para isso, colocando-a em circulação na cena in- 29 telectual francesa da década de 1960. Sei que fez avançar o projeto teórico saussureano, formulando conceitos e métodos que concretizaram o desejo de Saussure: a construção de uma ciência que estudasse “a vida dos signos no seio da vida social” (e que veio a se chamar, neste registro, Semiologia). Sei ainda que Barthes, mais do que isto – mais do que auxiliar na descoberta e na divulgação da Semiologia –, se encarregou de direcioná-la para objetos e fenômenos comunicacionais mais estritos, tais como a fotografia, uma peça publicitária, o bife com fritas, um Citroën DS, o rosto de uma estrela de cinema, ajudando, de forma indireta, mas não menos importante, a criar uma epistéme comunicacional, necessária à própria fundação do campo de estudos de Mídia, Cultura e Comunicação (os cursos de Comunicação Social que hoje conhecemos). ... O conceito de texto em Barthes nos encaminha ao campo da recepção (onde a textualidade vaza e se traduz, inscrevendo-se no próprio corpo do leitor). E por que assim ocorre? Uma das razões é a importância dada às reações fruitivas, ao prazer da leitura, ao horizonte de envolvimentos (libidinais, heurísticos e associativos) que o texto nos apresenta. Uma “moral da linguagem” resulta subentendida. “É de ética que se trata”, diz Leyla Perrone-Moisés (2002), compreendendo, em Barthes, a discursividade como o fundamento e a limitação da conduta, o modulador do estar-junto, da ação para com o outro. Um texto não existe sem a dinâmica da leitura que lhe traz à vida. Junto disso, supõe-se também uma franca posição política. Trata-se de dominar e transformar a pseudophysis burguesa. Ou seja: estamos diante de um ativismo semiológico, um projeto ético de crítica cultural e literária. O trabalho no interior da linguagem – das estruturas da linguagem, das estruturas do discurso e do imaginário social nela impregnadas– seria o trabalho revolucionário por excelência. Uma semioclastia. O texto como arma de guerra, cavalo de batalha, instrumento de denúncia. 30 ... São dois segredos difíceis de confessar. Espantava-me a impostação de classe em Roland Barthes, um certo comedimento, alguma coisa entre a afetação e a sutileza exagerada, o refinamento e o ar blasé. O subproduto positivo de uma pose esnobe. Isso tudo em meio a uma nuvem de fumaça – a fumaça de um cachimbo (é isto?) –, uma gola rolê e o cabelo muito bem penteado, na maioria das vezes, as roupas de cores neutras, o asseio, que ia da aparência, propriamente dita, o aspecto mais superficial de sua figura, sua simples presença como imagem de si, à sua moralidade, à timidez absurda, eu supunha, um tipo de castidade que eu via (ou projetava) nele. O que sempre me assombrou em Roland Barthes, além disso – além dessa imagem tatuada em meu imaginário estudantil –, foi a capacidade de extrair sínteses precisas de um emaranhado caótico de problemas semiológicos, perceber distinções e trazê-las à tona – como se elas restassem, depois disso, límpidas, numa evidência incontestável, a debochar de nós –, num conjunto de nuances impossíveis de deslindar pelo observador comum, com olhar rápido, volúvel e impaciente. Sempre me espantou também – e essa não é uma característica apartada da anterior – a capacidade de formular conceitos, dar-lhes uma força de pensamento, transformá-los em motores ligados, prontos para acelerar, nos arrastando junto, rumo a um cenário que só descobriríamos enquanto nos movimentássemos em direção a ele. São duas facetas de Roland Barthes que sempre me custou nomear. Dois aspectos do fantasma pessoal no qual o transformei. ... A Semiologia de Saussure, como sabemos – à qual Barthes se devotou no início da carreira –, possui um macro-conceito organizador: a noção de estrutura, que seria recuperada, mais tarde, pelo antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (2012 [1958]) e daria origem ao Estruturalismo. O Estruturalismo volta-se ao entendimento das estruturas culturais e 31 das estruturas da mente (e da racionalidade) humana(s). É maior e mais abrangente do que a Semiologia, direcionada ao exame dos sistemas da linguagem. Estrutura, aqui, é uma categoria geral e explicativa, fundamentalmente não-empírica. Ressalte-se ainda seu caráter a-histórico e sua vocação à análise sincrônica. Na Semiologia, entende-se a linguagem como sistema de signos sem correspondência com o mundo exterior, sem referencialidade externa, pode-se dizer – a linguagem como jogo combinatório, onde os termos se explicam numa permanente ordenação sistêmica, opondo-se uns aos outros, substituindo-se uns aos outros. ... Num vigoroso estudo crítico sobre a obra de Roland Barthes (atento, sobretudo, à produção do jovem Barthes, entre o final da década de 1950 e os primeiros anos da década seguinte6), o teórico italiano Dominic Strinati (1999) listou as fragilidades epistêmicas que ali pôde encontrar. O período em destaque, não convém esquecer, corresponde à publicação do livro Mitologias7, um dos mais badalados de Roland Barthes. 6 A grande maioria dos biógrafos e comentadores de Roland Barthes reconhece a existência de ciclos mais ou menos bem definidos, um “arco de evoluções” (depurando-se o termo de suas conotações evolucionistas mais simplórias: um “arco de movimentações”, diríamos): a fase marxista, de crítica ideológica do signo (bem representada nos livros Mitologias e O Grau Zero da Escrita); a fase da semiologia científica (em Elementos de Semiologia e O Sistema da Moda); a fase nietzcheana-psicanalítica (da qual O Prazer do Texto e Aula são os melhores exemplos); a fase de celebração da literatura (de A Preparação do Romance I e II, O Neutro, dentre outras publicações póstumas). Nesse percurso, admitidas as modulações, o interesse pela significação (suas excrescências e seus excessos) e pelo romanesco (o texto como método, a “crítica-escritura”) se mantêm estáveis. Strinati ataca, com maior visceralidade, apenas uma das fases elencadas. 7 Para Barthes, o mito é um signo cultural, é uma ideologia. O mito é uma distorção, uma naturalização da história. Os mitos são as formas da cultura popular. O mito é um sistema de comunicação. O mito é uma fala, um discurso. O mito não é um determinado objeto ou conteúdo, mas o modo como uma mensagem qualquer é articulada e apresentada, mascarando-se, fazendo-se passar por verdade natural. O mito quer ser um dado do mundo. 32 Primeiro, o problema da prova empírica. Por que a interpretação de Barthes é melhor (ou é aceita como melhor) do que qualquer outra interpretação possível? Se os textos são polissêmicos, como defendem os semiólogos, por que deveríamos confiar mais nessa ou naquela interpretação? O que garantiria – pergunta Strinati – a maior validade dessa ou de qualquer outra leitura? Segundo, o problema do estilo. Somos persuadidos, em Barthes, mais pelo arranjo arquitetônico e pelo acabamento estilístico refinado de seus textos do que pelas evidências empíricas apresentadas. Barthes é retoricamente persuasivo, sem ser empiricamente persuasivo. Terceiro, como aponta Strinati, a ideia de que o mitólogo barthesiano poderia estar atuando também (e em simultâneo) como um projetor de mitos. Barthes pretende demonstrar que os mitos possuem uma forma estrutural abrangente, fundada sócio-histórica e culturalmente. Entretanto, se o problema da prova empírica é, de certa forma, desconsiderado, e se o signo é visto num isolamento artificial, como sabemos se o mito não é o resultado das impressões subjetivas do analista? Assim, o mitólogo poderia ser visto também (e em simultâneo) como o criador de mitos – ou o criador dos mitos que ele próprio acredita estar desvelando. Em quarto lugar, o problema da denotação pura. Existe a denotação pura? É a pergunta mais incômoda de Strinati. Em alguns casos, diz ele, a conotação é tão evidente quanto a denotação (e, muitas vezes, até mais). As significações do mito não são tão secretas ou tão difíceis de reconhecer quanto Barthes argumenta. Saltam aos olhos, sobram exemplos. Quinto: o problema da contextualização. Os mitos podem ser entendidos, com acerto, divorciados dos contextos em que são usados e dos sujeitos sociológicos que os interpretam (e que lhes dão existência)? Afinal, são relacionamentos sociais concretos (um relacionamento familiar, um blefe, uma provocação política, uma relação amorosa – o caso do ramalhete de flores, tão bem analisado [BARTHES, 2003a]) que lhes dão fundamento. 33 Sexto: o problema da definição marxista do conceito de ideologia. Para Marx, interessa o modo como o sistema produtivo gera sentido (ou, nos termos corretos, como a superestrutura é determinada pela infraestrutura). Ora, deveriam interessar, isto posto, os modos como o sentido é infiltrado/codificado nos bens de consumo, na confecção dos produtos midiático-culturais. Atendo-se aos textos, Barthes subestima a ideologia, enquanto tal, no processo de produção mercantil-capitalista. ... O conceito de texto em Barthes se explicita por meio de um conjunto de metáforas. Uma delas é a metáfora da tessitura – o texto como tecido e trama, costura de pré-disposições, saberes e matrizes sócio-culturais. Outra é a metáfora da indeterminação – o texto como vetor de deslocamentos, agente de desconstrução e descontinuidade, atravessador de gêneros narrativos, instituições e valores assentados. Uma terceira é a metáfora do desejo – o texto como realização pulsional, gozo e fruição, afeto e perversidade. Mas como opera esse dispositivo híbrido (cindido e artesanal)? De que modo ele pode “se safar”, preservar-se no interior da “guerra de ficções”, o campo de tiros onde ele atua? É Barthes quem esclarece: Por um trabalho progressivo de extenuação. Primeiro, o texto liquida toda metalinguagem, e é nisso que ele é texto: nenhuma voz (Ciência, Causa, Instituição) encontra-se por trás daquilo que é dito. Em seguida, o texto destrói até o fim, até a contradição, sua própria categoria discursiva, sua referência sociolingüística (seu “gênero”): é “o cômico que não faz rir”, a ironia que não se sujeita, a jubilação sem alma, sem mística (Sarduy), a citação sem aspas. Por fim, o texto pode, se tiver gana, investir contra as estruturas canônicas da própria língua (Sollers): o léxico (neologismos exuberantes, palavras-gavetas, transliterações), a sintaxe (acaba a célula lógica, acaba-se a frase). Trata-se, por transmutação (e não mais somente por transformação), de fazer surgir um novo estado filosofal da matéria linguareira; esse estado inaudito, esse metal incandescente [...] (BARTHES, 2013, p.39). 34 ... Assim que cheguei, encontrei a sala vazia, com as cadeiras dispostas em círculo. Deduzi que a aula anterior havia terminado há pouco. Algumas palavras escritas a giz restavam no quadro negro, uma janela estava aberta e um filete de vento soprava a persiana de alumínio na minha direção. Em cima da mesinha de canto, uma térmica com as sobras do café e meia dúzia de copos plásticos utilizados atestavam que sim: uma turma de alunos estivera ali, trocando impressões, ouvindo falar um professor muito parecido com aquele que eu havia me tornado. Numa cadeira ao fundo, fora do círculo, avistei um suéter bege, dobrado, com a gola larga – parecia surrado de tanto uso, sem marca ou estampa aparentes. Um descuido o deixara ali, esquecido, jogado ao acaso. O tipo de peça que Roland Barthes fazia combinar com a calça nas fotografias que agora me vinham à memória. Acomodei-me próximo à porta. Minutos depois, João Gilberto Noll apareceu, desculpando-se pela bagunça, buscando o apagador. Disse-me que o pessoal já estava a caminho. Em instantes, tudo estaria pronto. A aula estava prestes a começar. ... Durante o segundo semestre de 2018, conduzi, junto ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Unisinos, em São Leopoldo / RS, uma disciplina intitulada “Estéticas da Comunicação: processos experimentais de pesquisa e criação escrita”. A atividade tentou, na esteira das discussões feitas aqui, e dando fluxo ao meu interesse recente pela prática da literatura, atuar como um espaço experimental necessário à investigação acadêmica sobre as mídias. Em diálogo com atividades desenvolvidas desde 2011, seja em projetos de pesquisa, seja em seminários anteriores, procurei enfatizar a dimensão escrita da reflexão que produzimos. Foram explorados, dentro desse escopo, os limites da escrita acadêmica, as relações entre escrita de ficção e escrita científica, os possíveis modos de combinação e/ou mútua interferência entre ambas, bem como suas peculiaridades. Tratei de pautar discussões sobre textualidades de desvio, ficções 35 teóricas e “fantasias de escritura”, como disse Roland Barthes (2005c; CORAZZA, 2010), ou, em outras palavras, experiências textuais e narrativas heterodoxas, pouco padronizadas, e, em essência, minoritárias (não só no sentido demográfico-estatístico, mas conforme à acepção deleuzeana do termo: como potência guardada, impulso e lugar de transformação). Buscou-se fomentar, no decorrer do semestre, exercícios efetivamente experimentais, práticas de escrita definidas pelos riscos que assumiam (ou que aceitavam assumir, melhor dito) – formas, a princípio, tangenciais (no extremo, avessas) ao texto acadêmico mais comum e à epistéme hegemônica que o fundamenta. Como discussões de fundo colocaram-se problemas relativos às teorias literárias, aos gêneros literários (e seus hibridismos – as formas do ensaio, por exemplo), às filosofias da ficção e à história da expressão verbal. O objetivo central foi o de suscitar uma reflexão que desnaturalizasse os hábitos discursivos vigentes na pesquisa científica e instigasse os alunos a compreender melhor as escolhas representacionais, textuais e narrativas que fazem, imprimindo maior consciência e maior teor experimental a seus estudos de tese ou dissertação. De modo acessório, utilizei a experiência literária como “gatilho”, impulso e estratégia de acesso a temas comunicacionais relevantes no mundo contemporâneo: o terrorismo, a pornografia, as fake news, as noções de realismo capitalista e de aceleracionismo, as chamadas narco e necroculturas (dentre tantos outros debates temáticos que seriam possíveis e que mereceriam, com justiça, tratamento e atenção equiparáveis). As formas literárias – no caso, os contos que escrevi e compartilhei com os alunos, semana a semana – funcionaram como mecanismo de antecipação e/ou metalinguagem crítica da forma midiática em suas novas variações e nos novos problemas que suscita. Tais experimentações ficcionais, por hipótese, estariam abrindo espaço para reflexões “indiretas”, alegóricas, produzidas de dentro dos fenômenos, capazes de incorporar perspectivas (ou vozes narrativas) distintas e propiciar a vivência de vários níveis ou franjas da realidade fenomênica. Àquela altura, convinha (e, agora, convém, cada vez 36 mais) acreditar que a pesquisa em Comunicação, ao buscar aperfeiçoar-se, deveria abrir-se a tais exercícios de ficção como método (cf. GUNKEL; HAMEED; O’SULLIVAN, 2017; SHAW; REEVES-EVISON, 2017), procurando melhor compreendê-los para tentar praticá-los com maior proveito. Nunca se tratou – que fique claro – de configurar uma oficina de escrita criativa. Tratou-se, numa transversal, de aproveitar os potenciais da invenção escrita para suscitar pensamento comunicacional mais complexo, orientado aos objetos midiáticos e à experiência social que hoje eles instituem. Recorrer, metodologicamente, à ficção acaso enfraquece ou invalida as pretensões científicas que nutrimos? Uma ciência da Comunicação é viável ao abrir mão da lucidez que certa inflexão literária, auto-reflexivamente dosada, pode lhe trazer? O que se pode aprender sobre pesquisa científica quando se propõe praticar literatura (ou, no mínimo, reconhecer suas engrenagens), bem como pensar, com propósitos epistêmicos, a natureza dessa prática? Foi com essa plataforma de trabalho – convocado por esse conjunto de incidentes e intuições – que Roland Barthes se reapresentou para mim, com força renovada, sem que nunca tivesse – ao final, é bom que se diga –, de fato, desaparecido. Referências BARTHES, Roland. O Prazer do Texto. São Paulo: Perspectiva, 2013. BARTHES, Roland. O Grau Zero da Escrita. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BARTHES, Roland. O Sistema da Moda. São Paulo: Martins Fontes, 2009. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São Paulo: Martins Fontes. 2005a. BARTHES, Roland. A Preparação do Romance I. Da vida à obra. Notas de cursos e seminários no Collège de France 1978-1979. São Paulo: Martins Fontes, 2005b. BARTHES, Roland. A Preparação do Romance II. A obra como Vontade. Notas de curso no Collège de France 1978-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2005c. 37 BARTHES, Roland. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. BARTHES, Roland. Incidentes. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. BARTHES, Roland. Mitologias. Rio de Janeiro: DIFEL, 2003a. BARTHES, Roland. O Neutro. Anotações de aulas e seminários ministrados no Collège de France, 1977-1978. São Paulo: Martins Fontes, 2003b. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 1980a. BARTHES, Roland. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1980b. BINET, Laurent. Quem Matou Roland Barthes? São Paulo: Companhia das Letras, 2016. CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Fantasias de Escritura. Filosofia, Educação, Literatura. Porto Alegre: Sulina, 2010. GUNKEL, Henriette; HAMEED, Ayesha; O’SULLIVAN, Simon (Orgs.). Futures and Fictions. London: Repeater Books, 2017. JAKOBSON, Roman. Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, 1995 [1969]. LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. v.1. São Paulo: Cosac Naify, 2012. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Barthes. O mestre artista. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 nov. 2002. Caderno Mais!. NELSON, Maggie. Argonautas. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2017. SAUSSURE, Ferdinand. Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 1995. SHAW, Jon K.; REEVES-EVISON, Theo (Orgs.). Fiction as Method. Berlin: Sternberg Press, 2017. SILVEIRA, Fabrício. Gigante Figura. Porto Alegre: Riacho, 2018. STRINATI, Dominic. Cultura Popular. Uma introdução. São Paulo: Hedra, 1999. 38 Sim e Não: uma nova impostura Sandra Mara Corazza Luiz Daniel Rodrigues Dinarte Então é simples. Todas as auras foram desfeitas, todos os mistérios solucionados. Uma vez que se descobriu a artimanha, a assunção da ignorância, ninguém mais se arrisca ao suspense e aos charmes laudatórios. Está tudo alocado ali, em um intervalo, reduzido a entradas e saídas, sem espaço válido e sem possibilidade de ocupação, uma inflexão, uma mônada. Ao menos de si, de sua vida, não há quem escreva sem as notações paralelas da própria estupidez, sendo assim, não importa sobre o que se escreva, mas as decisões direcionais são o fundo, da existência o pó, do valor as tendências, do ser as escadas e seus passos rangendo as madeiras de uma casa inabitável. Não há quem sente em sua mesa sem ser observado, escrever é atividade de vitrine. E também já deve ser o tempo em que todas as composições imitativas dos grandes autores já tenham sido saturadas. É possível, não certo, uma vez que ainda muitos o fazem, em costuras pedagogicamente narradas do prazer e da fruição, que a escritura esteja tão explicitamente aberta como prática que seu policiamento é inevitável e que seja perigosamente dada a qualquer referente. Portanto, um sim e um não, ao sabor de posições de segunda e terceira ordem, consistem no fundamento mais volátil e em relação a que não fomos capazes de fazer distrair com nenhum júbilo. É no detalhe que encontramos nossa fragilidade maior, as inflexões mais abstratas não são decididas na vida do detalhe inútil, do luxo textual, é o perigo de termos de recomeçar a percorrer as tendências a-dimensionais do texto em função de que tudo se esvai no retorno da posição outrora rejeitada. Tudo na cultura é dúplice (BARTHES, 1984), o que não se pode entender, obviamente, como a escolha entre o sim e o não. Uma grande frase. Um lugar total de reflexão de todo o universo, feito tão somente de inflexões negociadas conforme há entrada e saída (no caso do sim e não, esquerda e direita, conforme e não-conforme, Sarrasine/Zambinella) de conteúdos que retornam de 39 um estado de aparente e temporária catatonia, que vagaram nos vãos do detalhe e do luxo lançados na transversal do tempo, mesmo que tão somente transformados, e aos quais nos vemos aqui, novamente, tendo de retomar, retraduzir, deles padecer, e, possivelmente, morrer por conta deles... Sic e non. Definidos como a conformidade de um referente dado em oposição à nasalidade latina da rejeição. O sim é até fácil de compreender: o fricativo alveolar surdo em /s/ perfaz um dado, é conforme ao referente, envolve a vida com seu sopro como uma fina camada de ar eleva, ao pensamento, um molde conforme que faz as vezes de comunhão. Mas o não e seu travamento linguodental, vibratório, que em língua portuguesa é completamente anasalado, assemelha-se a uma rejeição mais profunda, uma justa náusea. Não parecem bastar, nem um nem outro, no sentido, na aceitação e na rejeição às pesadas cortinas que se estendem entre nós e a realidade. O Não Será pedir demais. Certamente será objeto de repúdio, mas por isso mesmo é imprescindível que as bases da contradição sejam colocadas em um espaço a-dimensional, como já foi dito, em que a regra de base é a coexistência, onde os contrários não serão postos lado a lado e conviverão em uma harmonia preparada, mas na verdade será o viés a-dimensional desse meio intervalar que poderá sistematizar o rigor desse tipo de metafísica. Sim e Não opostos, mas não contraditórios. Aceitar isso é dificílimo. Negar um termo, isso é em princípio adequado. Mas qual sistemática insere tal negação, qual corpus de negação irá subsidiar tal negação, que somente é uma opção quando entendida de uma forma muito superficial? Ou seja, qual sistemática de negação se irá empreender? A negação justificada por uma rejeição ao Mal? Muito ingênua atitude, uma vez que se substituirá um mundo por outro e se recairá em um niilismo tão somente negativo. E, na pior das hipóteses, se estará velando a atitude religiosa em um sincretismo secular e afeito às mais baixas projeções psicológicas. 40 Então, a negação necessitaria de uma esteira destrutiva que, mais cedo ou mais tarde, retornaria ao plano de imanência da escritura com uma nova cara, e será (como está sendo) ainda mais dificultosa a sua superação. A dificuldade maior é, e será, a de aceitar que, afinal de contas, todas as línguas são luxuosas, todas as evocações dos gênios são supérfluas e que a palavra, assim que traçada a tinta sobre o papel, é excesso. Nem Sarrasine, nem Zambinella, mas fundamentalmente não o palácio de Balzac, e não a língua francesa, e não o sopro dos pulmões. Porém, de uma maneira mais sistemática e afeita à atividade do trabalhador da negação, o escritor, esse tipo superior, ainda além do destruidor do homem, o abnegado louco que retorna a si trabalha nas suas reminiscências manipulando o próprio presente, não-eu. Ele não. Mas também não, eu, amanhã. Percebe-se que a rejeição ao escritor, ao intelectual, ao tradutor principalmente, cai pesadamente em nossas mesas, não iremos escapar a esse peso e é possível que não consigamos recobrar aquela máquina anterior do devir da escrita, das vozes multiplicadas e das múltiplas línguas. É praticamente indiscutível que as mãos escreventes fiquem funcionando tão somente em uma função histórica, um tipo de coeficiente de realidade (BACHELARD, 1979) muito particular e que qualquer personalismo artístico seja para sempre condenado a uma insistente e chata digressão. Antiquados, como cavaleiros medievais iludidos por moinhos de vento, conquanto se saiba sistematizar a negação. É diferente da ideia do escritor como senhor do tempo, no que se irá negar de antemão todo o fascismo e toda superação daqui para o futuro. Assim como a poesia não é atividade diária, não há programa que se possa prescrever ao que se anuncia como o a-dimensional da escritura. Não se escreve todos os dias. O que se produz diariamente é merda e saliva. Mas, diante disso a que nos vemos obrigados a realizar como atividade diária, como oficina e como mercado, seria mais apropriado que nos colocássemos no lado oposto à nossa atividade, e que, enfim, concordássemos com o lugar a nós reservado. “Sim, veja como são ignorantes esses escritores, eles 41 realmente não sabem de nada”. Essa narrativa, fazendo coro ao ódio, ao lado dos espectadores dessa atividade fabril, murmurar e afirmar qualquer coisa, assim como o fazem os devotos dos santos e dos salvadores que, estranhamente, o fazem em uma entrega cega e voluptuosa: é muito incômodo pensar que a afirmação, seja ela qual for, está do lado deles, e perdemos a capacidade de perceber qual o nosso não e, por consequência, a que dizemos sim. Seja a dificuldade que progride exponencialmente, a de supor qualquer perfil epistemológico, uma vez que não se trata mais em absoluto de escolhas de fundamentos, de perspectivas à mão ou de lugares de fala; é o efeito restrito de uma ratio degradada. Escrever para confirmar o óbvio é tornar a escritura uma vergonha a ser engolida. Por isso, as duras penas da distribuição da escritura sobre perfis muito gerais, que mereceriam um estudo diacrônico para além do lugar e da noção de linguagem, para além da aproximação entre literatura e linguagem após o racionalismo positivista, sugerida por Barthes (1984), teriam em sua anunciada morte o reencontro com essa topologia sem dimensões, feita tão somente de tendências. Um não substancialismo, na esteira das relações entre física e metafísica, química e metaquímica, mas uma metaescrita, semiocrítica, transcriação, signalética (DINARTE, 2018). Saltos a uma zona dehors da linguagem, sonho de tinta (CORAZZA, 2017). A única dimensão elementar passível de oposição é exatamente a tinta. O sim e o não são as tendências sonhadas. E, quando dizemos não, é em função de um sim não oposto, nada de síntese além do corpo sistemático da negação que deve considerar o sim. Aproximação não dialética porque não parte de um modelo existencial, porque o não filosófico, ao modo de Bachelard (1979), é alargamento e transbordamento da existência. O não vibra e dobra, e de tal feita aumenta o arco das disjunções sob um ponto de vista que alucina uma realidade, em vez de definir e selecionar. Muito mais do que em outros, o momento é agora exemplar: os fascismos, logo, o meu fascismo. Pedagogia sem forma e forma sem causa eficiente. Se ainda há perguntas e lacunas, parece que somente a negação sistemática nos fará retomar a capacidade de nos surpreender com alguma coisa. 42 A física a-dimensional Começamos alguns séculos atrás. Giordano Bruno deu forma àquilo que Ptolomeu apenas sugeriu como nossas janelas celestes. Se a física contemporânea lhes deve a abnegação do gênio e a coragem ante os horrores do desconhecido e a violência da inquisição, por outro lado fez suprimir o sonho e o horror, motores de negação perdidos. Tomamos distância, restaram os pontos sem as linhas, as metafísicas reaparecem desgarradas, e retornam as dúvidas como fossem novas, assim como retornam as fogueiras que tratarão de incinerar novamente os corpos e os livros. Começamos com “tomar distância” por um motivo específico, já que nos parece evidente a necessidade de percorrer a noção de espaço como sendo ela mesma uma via para escapar da associação a certos modos de escrever, para que os problemas já colocados acerca da escritura não sejam de pronto aceitos como nossos, e, no limite, como legítimos. Corazza (2017) sugere que para além do revisionismo (e, penso, mesmo o ingênuo) e antes do afã em reelaborar problemas e propor um lugar para a escritura, há outras inflexões possíveis, no sentido de liberar traduções transcriadoras. No caso presente, o sim e o não que nos afoga. Passar de um modo de pensar a outro exige encarar a impotência: do estabelecido, impotente face à exterioridade de noções que escapam ao arranjo atual; da própria urgência de noções indispensáveis aos problemas que parecem anunciar-se como os nossos, embora uma zona de obscuridade ainda as envolva. A intimidade dos sistemas que figuram o trabalho escritural vem sendo há algumas décadas colocada entre parênteses, no sentido de que seus universais dependem muito mais da expiação em relação a elementos exteriores do que da convicção na universalidade de seus axiomas. Dessa simultânea aversão e obstinação pela diferença, os elementos deduzidos são, necessariamente, objetos, antes dos acontecimentos; a partir de um sentimento de urgência, objetos são alinhados com sua vizinhança, aferradas às generalizações mais prováveis, segundo uma gramática precisa. Tal gramática é como o tilintar de uma moeda nas paredes de um poço, e o escritor é 43 aquele que anota todos os ecos, e talvez mesmo ele acredite que os ruídos sejam a confirmação de uma verdade da linguagem, e que a moeda que for lançada e não resultar em nenhum ruído, talvez nem mesmo exista. Enquanto isso, o que se percebe é que esse sem fundo da linguagem talvez seja o motor primeiro, a diferença primeira, o silêncio ensurdecedor de todos os signos que foram calados ou omitidos, tragados por algum ethos da ficção. Sim, a comédia burguesa é o nosso cadafalso. Escritura que apenas confirma impossibilidades, seja de sua separação e lugarização das atividades de pesquisar, conhecer, ensinar, mediar, transmitir, seja de sua localização e prescrição de dinâmicas entre meios. Isso requer uma demonstração que é parcial apenas em aparência, já que continuamos enredados em problemas tanto estáticos quanto dinâmicos. Se por um lado continuamos à procura de espaços como “emaranhado conceitual criador, como uma das potências para que pensemos a didática da diferença” (DINARTE; CORAZZA, 2017, p.98), por outro, os hábitos incrustados em nossa linguagem e nos corpos também se instalam em lugares absolutos, estáveis e, por que não dizer, confortáveis. Ainda assim essa inde-cisão relativa da escritura nos abriga sob moradas tão curiosas quanto o próprio princípio de indeterminação a ser evocado, e a pergunta que nos instiga a pensar espaços poéticos como espaços de tradução didática seria não o “porquê”, mas o “como”. Como inventamos espaços de configuração? Como estes ou aqueles espaços intersticiais funcionam? É por isso que o problema da escritura só pode ser considerado como topológico quando ele entra nessa zona de limite, de indeterminação, onde o silêncio é interpretado como algo que possivelmente ainda não nos seja acessível. Não é que as sintaxes científicas, por sua provisoriedade e pretensa universalidade, devam ser ignoradas, já que não estão aptas a nos fazer compreender e interpretar algum fenômeno. Pelo contrário, elas serão muito valiosas, mas para nos apontar aquilo que ignoravam, e mesmo assim funcionar em um domínio epistemológico, por mais limitado que este nos apareça desde a zona do interstício, da sua fragmentação (ou degenerescência, em uma linguagem filosófica mais 44 precisa). E, enfim, para que desistamos de uma vez por todas da busca pela linguagem perfeita (ou pela máquina de traduzir) e nos tornemos atentos à poética, àquilo que faz que uma linguagem, através dos séculos ou limitada a algumas décadas, nos pareça tão convincente, tão vivo, e por que ainda recorremos (mais ou menos conscientemente) a esta ou aquela sintaxe. Em suma, dizer o não para que alguma afirmação se anuncie desde suas entranhas. É nesse sentido que Bachelard (1979) evoca a mecânica ondulatória de Dirac quanto ao fenômeno de propagação. A sintaxe científica moderna, Bachelard explica, exige a preparação do “domínio de definição antes de definir”, assim como “na prática do laboratório, é preciso preparar o fenômeno para o produzir” (p.19-20). A mecânica quântica de Dirac recusa-se a postular objetos, portanto a propagação deixa em suspenso a zona que seria ocupada pelo objeto que se propaga, como espaço de configuração, uma colocação entre parênteses. O objeto se realiza somente na forma da propagação – novo modo de pensar que mobiliza o realismo ingênuo mesmo que “em silêncio” – e isso faz da mecânica de Dirac, segundo Bachelard, uma mecânica “de saída, desrealizada” (p.20). Nossa frequente “negligência para com a correlação das incertezas geométricas e dinâmicas” (p.31) consiste no bloqueio da indeterminação como princípio incorporado à experiência. A determinação pontual do espaço está fundada na aceitação da substância imutável de uma certa metafísica. Desde o lugar aristotélico, o absoluto do elemento terroso, muitos foram os vieses que se juntaram à noção de espaço na filosofia e na física e, entre aproximações e afastamentos entre substância, vácuo, atomismo e as consequentes viragens epistemológicas resultantes de tais conceituações, o conceito de espaço se torna o ponto frágil de todo o realismo ingênuo e de todas as “nossas experiências com fenômenos atômicos (BACHELARD, 2010, p.31). Tal assunção de um princípio de incerteza, nos explica Bachelard, não deve consistir em uma metafísica da experiência real, em uma analogia ao relativismo absoluto, fruto do impacto da mecânica quântica. Sobretudo, não se trataria de fazer da indeterminação uma generalização de leis intangí- 45 veis, uma vez que o problema de fundo continua a ser o âmbito dos nossos hábitos psicológicos, sendo estes fundados na certeza cartesiana de uma substância permanente, imutável, donde a experiência espacial surgiria como que por direito. Em A Filosofia do Não (1940 [1979]), Bachelard lança mão de um procedimento de ruptura epistemológica para demonstrar a ciência contemporânea (pós-newtoniana) como não estável, não fundada em princípios estabelecidos e afeita à razão aliada à imaginação e à criação. Contra o idealismo e o realismo ingênuo, a filosofia do Não recusa também o negativismo e o niilismo ao constatar a transformação compulsória emanada pela mecânica quântica e pela geometria não euclidiana sobre a totalidade das ramificações da ciência contemporânea. A ciência requer a não aceitação de uma realidade observável como evidência, assim como a operação do pensamento sobre elementos que não se realizam da mesma maneira em todos os momentos da investigação. Ver e conhecer são atividades distintas, condicionadas a diferentes regimes de determinação dos fenômenos, do real e da razão. Assim, a própria historicidade da ciência deve ser compreendida pelas descontinuidades que reinventam, re-traduzem o real a partir dos obstáculos que um corpo teórico impõe ao outro. Não é a evidência de uma “realidade” monótona e permanente que servirá de substrato à ciência. Da mesma maneira, dentre as noções que passam a funcionar em variação contínua, o espaço deixa de ser uma garantia da realidade objetiva para se tornar também variável. Nem intuição natural nem abstração relativizante, o fenômeno é constituído de uma postura aventureira do pensamento, expressa em procedimentos sempre dialetizados com aquilo que é externo ao horizonte atual da ciência. Nos relacionamos mal com a probabilidade. Em nome de “valores epistemológicos”, pensamos em geral na necessidade de escolher entre um ou outro caminho, procedimento ou método. Pensar a escrita no campo da probabilidade, afastando-se da segurança analítica e de suas relações obscuras com o realismo ingênuo, é também colocar em movimento um tipo de poética, estremecendo os axiomas, as categorias e a ambiência 46 dos objetos da língua. Nisso, o experimental da escrita admitirá sempre, assim como Bachelard (1979) aponta em relação à ambiguidade da matemática de Buhl, um segundo olhar, um sobretraçado, arabesco, linha livre. Para as trajetórias analíticas do cálculo de derivada, Bachelard exalta o ilimitado das estruturas finas. Mesmo falando em estrutura, o ilimitado das linhas finas deflagrou no campo da física elementos para experimentos que inventam novas linguagens, novas metodologias de captação de ondas, assim como a atenção do cientista se volta para elementos que escapam à intuição natural. É um espaço real, acesso a exterioridades em princípio “não comprováveis”, mas que é somente imaginado pela finura ilimitada do arabesco sobre linhas de um problema anterior, fraturado. A certeza da localização espacial só poderá constituir garantia de experiência quando talhada sobre o deserto, longe do real, onde a generalidade do princípio não corra riscos de evasão de si. Sendo assim, é preciso lançar-se ao calor desértico ou às ondas do mar... tem sido esse o empreendimento humano há milênios. Mesmo nas condições mais improváveis de fixação, como ocorreu nas grandes navegações do século XV, ou ainda, na física quântica, ou no relativismo absoluto, evoca-se um signo maior, uma lei de duração a ser atualizada em um ponto determinado fora ou apenas adjacente ao real pontual. Com a caravela, inventa-se um modelo direcional (DELEUZE; GUATTARI, 2012), linear, que erra sobre o oceano e cuja “estriagem se estabelece progressivamente” (p.198). Mesmo assim, é um modelo que ocasiona, de certa maneira, uma adjacência planetária, em um primeiro momento de latitude, mas que talvez não tenha compreendido a inclinação das rotas ao sudeste e sul como uma necessária indeterminação espacial. Sendo assim, as latitudes e longitudes acabaram definindo generalizações marítimas de tipo dimensional que só seriam colocadas em cheque muito depois, com o advento do submarino (DELEUZE; GUATTARI, 2012). Disso, podem-se definir dois procedimentos. Um já conhecido, criticado por Bachelard nos domínios da física contemporânea, outro, poético, que faz o traçado longínquo em direção ao deserto e, ao fazê-lo, reencontra um povo por vir, 47 um deserto sempre povoado por aquelas imprecisões outrora reservadas. E nisso não se está circunscrevendo uma “reserva” da causa, ou uma substância mais profunda que legou a si mesma uma fixidez ontológica cuja figura do centro opera o resgate. É a imprecisão mesma que toma conta do procedimento, o abismo, o mar ou a loucura. O Sim Mas a que respondemos, o sim? Já havíamos nos perdido em desejos que erravam entre afirmações e negações parciais, que visavam sempre e ainda a uma sustentação. Carregávamos formas multiplicadas cujos contornos eram tão denotativos quanto pesados, como se diferir fosse um esquecimento do meramente anterior, o tão somente anterior esfacelado, porém um peso da forma; aquele original pasadume passou a reencenar um contorno de direito, equivocadamente a febril passagem ao limite, sob os mesmos passos morais. Esquecimento – mas não o suficiente. A causa eficiente confundida com a suficiência. De um lado, por exemplo, está a negação discursiva. Não se fala sobre o que ocorreu no passado, e, assim, acredita-se recomeçar do zero. De outro, está a afirmação do modo, e com isso um novo contorno é traçado. Sobre tal sistema, instala-se uma ética negativa dos contornos, os lugares vazios que esperam os elementos futuros. Dotados desse sentido projetivo, tais espaços irão cobrar seus direitos. A multiplicação renovada irá se sustentar até um certo limite, quando não será mais possível dividir os espaços e a negatividade apenas conterá a si mesma. A forma acabará por padecer de si mesma, e antes de sua absoluta fragmentação, ainda haverá monstros perigosos na combinatória desse fio de Ariadne, e os deuses se avizinharão do mais baixo, e o sublime do homem será esmagado pelo mais torto, vil e abjeto dos espíritos. Vicissitudes do poder. Também não será o problema de saber se há o tal limite onde o peso se tornará insustentável e todas as formas irão colapsar. Por isso mesmo a reserva e a fantasia (mesmo que ex- 48 postos, na vitrine, museu ou nos porões da insanidade...) antecipada, o regozijo na multiplicidade e a euforia da expectativa. É que enquanto se sustentam esses organismos auto-ditados, enquanto cavalgamos sobre o tabuleiro moral das posições, o Dioniso, o Demônio, o Cosmopolita absoluto, que nos chega como sonho, é pintado com as tintas como nuances do impossível. Ele nos acena como causalidade reversa, a negação das negações, e só poderia viver na medida de um furtar-se da letra. Especificamente na tinta, retirado da letra. Tendência, traçado sem ponto, sorriso sem gato, etc. Sabemos que dizer sim é muito ingênuo, é prova de que a linguagem, ainda se pensa, recomeça do zero a cada elemento afirmado. Linguagem ingênua, sem frase. Frase só pode ser arquitetada em um labirinto maldito, inextensas fonéticas, sintaxe em arabesco e não em árvore sobre o deserto. Não há oásis, não há redenção. Língua sussurrada, gestual e de assovios, esse é o encontro da linguagem e da poesia. Torre das torres, destroçada. Assim, as ameaças de morte se impõem. Avatares de uma discussão alongada e que diferem somente em aparência. São as mesmas cargas pesando sobre os mesmos animais. O medo é justificado, anúncios de uma capilarização das formas que devem morrer para que germinem. Deslocadas dos arbustos do delírio burguês para as sebes de um labirinto sem saída, as formas abafam o eco ensurdecedor da origem. Irá se tornar o corredor da morte? Irá suspender a poesia em um eterno presente? Haverá ainda um respiro, com uma sobrevida alargada ainda, mais algumas décadas de uma confortável quimera? De qualquer maneira, a afirmação depende disso. E o medo é da dor, não da morte. Impostores Então, não poderia se tratar de um ponto, aleatório, em estado de ruminação do mundo, em vez de um ponto claro, sob o sol, destacando do vivo aquilo que lhe aumenta ou diminui a potência? Não poderia ser este ponto, calado e 49 aparentemente frígido, também, não de imediato e nervosamente reativo, ao fim e ao cabo, exatamente uma elevação de potência? Por que responder de pronto? Ora, essa situação de degustação – acusar-nos-iam de solipsismo? – essa historicidade pura e mais sutil, e, portanto, mais subterrânea, não é nosso tempo que nos exige? Vivemos, afinal, de fato, uma transição, ou não passamos de um tipo ignóbil, tão rígidos quanto placas tectônicas? Redescobrir os outros pontos (não os apontar, todavia), é a beleza que nos causa aflição. De tão sórdida, a matriz idealista se disfarçou nos meandros de toda a inclinação dita afirmativa e também humana, e, sub-repticiamente, nos cobra a profecia do congelamento: que tens a dizer? Não dizemos muito. Se o fazemos, perdemos o conhecimento puro, toda a dádiva de frequentar o Deus e de suas coisas ser a morada. Se nos recusamos, somos isolados forçosamente acima, aquém, nunca lá, com eles, e ficamos assim, duvidosos do nosso lugar nesse gradiente. Apesar da errância plácida, deixar-se iludir com épuras sem coordenadas, seria isso, assim, tão inaceitável? Qual é a forma copiada, quando tradutor traduz, o mímico gesticula, o professor ensina? É exatamente aquela mais próxima da simulação, por isso o esforço nunca será no sentido ascendente, da cópia para o original, apesar de, como cópia, não haver nenhum constrangimento em repetir. A forma é uma descida, cuja realidade deixa para trás a transformação e o canto de uma terra violenta e mágica. Da transformação caótica para um novo plano de tendências, camadas parciais que já nem mesmo afirmam ou negam, uma vez que afirmam ou negam qualquer coisa. É possível que estejamos à beira de uma saturação de tal descida, tantas foram as vezes que afirmamos, mas em função de uma negação prévia. Dizer sim, para que o não prevaleça. Mesmo o mito de Ariadne é rebaixado à condição de uma cópia a ser negada – o limite da fogueira. E para além da afirmação vil de uma negação que nega a vida, a afirmação derradeira, em negativo, no limite da saturação de todas as cores, de um mundo do anti-Dioniso. Não a distopia de um mundo em que Dioniso espera Ariadne nos confins do labirinto, mas um microverso 50 que eleva a forma, que restitui o mais baixo como divindade sem criação, Adão sem paraíso, diferença sem repetição. Um Dioniso impassível, de olhar blasé, que não teme mais o retorno das forças reativas porque tudo foi invertido. O tempo, despido de seu caráter de transformação, é feito dogmático. Nisso, o escritor exposto, visivelmente fragilizado porque suspenso nas dobras irreconciliáveis entre mundos, assiste, estarrecido, incompossível segundo sua ética, embora ao lado, dentro de sua bolha vivente a-dimensional, a sua própria condição pequena e alegre. O novo isolamento. Diferente do intelectual, do gênio. O palhaço, o filósofo. A nova doença, a mortal tristeza que corta todos os fios. Nós, as pústulas espremidas que dificilmente vazam. Estranho movimento é este dos que até pouco tempo atrás recusavam, se debatiam e refestelavam sob as temáticas do fascismo, e agora, empurrados pela voracidade da nova religião, a da estupidez glorificada e ficcionada como mundo em si, timidamente acolhem alguns furores, prevendo a própria morte, de certo. Digamos que estes são os novos contempladores, ainda exigentes, ainda flácidos nos movimentos, e recém descoberta a madrugada, cabisbaixos, pensam que, realmente, os poetas tinham toda a razão. Todavia, quando espreitados, eles fogem, unem-se, interessadamente, àqueles que denunciam a vida e marcham rumo à morte. A estes sorrimos, em nosso glorioso desterro. E quanto a nós, seremos ainda capazes de distinguir e tipificar nossas potências de afirmação? Vazar é ainda fazer viver? Quando é que a cegueira nos atinge, qual o grau de penumbra que nos limita a ponto de não mais nos vermos doentes? É que por vezes estamos bêbados, e nossa fortaleza é alta demais. Nos tornamos cínicos. E quando não cínicos, ruins. Ali atrás, o século das narrativas efusivas nos tornou canalhas. Que língua, afinal, ora bolas, nos sobrou para ainda... narrar? O que é isso que estamos fazendo, já que não estamos lá onde os intelectuais se embebedam de palavras que somente eles entendem, e trucidam uns aos outros com a mesma facilidade com que apreciam um poema? Nós, dirão, nem somos mais dignos de crítica, então, por que ainda o fazemos? Ora, porque é simples, muito simples. 51 Referências BACHELARD, Gaston. A experiência do espaço na física contemporânea. Rio de Janeiro: Contraponto, 2010. BACHELARD, Gaston. A Filosofia do Não. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Os Pensadores). BARTHES, Roland. Escrever, verbo intransitivo? In: ______. O Rumor da língua. São Paulo: Brasiliense, 1984, p.30-39. CORAZZA, Sandra Mara. O direito à poética na aula: sonhos de tinta. Anped 2017. Trabalho Encomendado GT24 – Educação e Arte: São Luís, 2017. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. v.5. São Paulo: Editora 34, 2012. DINARTE, Luiz Daniel Rodrigues. O Congresso: tradução signalética do gesto. Tese de doutorado. PPGEDU-UFRGS. Porto Alegre: 2018. 257 f. DINARTE, Luiz Daniel Rodrigues; CORAZZA, Sandra Mara. Espaço Poético como Tradução Didática: Bachelard e a imagem da casa. In: CORAZZA, Sandra Mara (Org.). Docência-pesquisa da Diferença: poética de arquivo-mar. Coleção escrileituras. Porto Alegre: Doisa/ UFRGS, 2017. 52 Proposições para um ensino barthesiano1 Cristiano Bedin da Costa [digamos, por honestidade e à maneira de anúncio já elaborado: não-barthesianos, abstenham-se; o que vem a seguir só poderá entediá-los profundamente] * Em 1976, a assembleia de professores do Collège de France, atendendo proposta de Michel Foucault, elege Roland Barthes para a cátedra de Semiologia Literária, criada especialmente para ele. A aula inaugural, proferida em 7 de janeiro de 1977, iniciará com o questionamento acerca das razões que teriam inclinado um lugar de tamanho prestígio a receber “um sujeito incerto, no qual cada atributo é, de certo modo, imediatamente combatido pelo seu contrário” (BARTHES, 2007, p.7). Pensador sem títulos universitários, Barthes irá lecionar na instituição até 25 de fevereiro de 1980, dia em que será atropelado em frente ao mesmo Collège, no cruzamento das ruas Saint-Jacques e des Écoles. Um mês depois, em 26 de março, a morte o encontrará no hospital da Salpêtrière, em um quarto branco, “tão claro a ponto de quase cegar” (MARTY, 2009, p.116). Os três anos de trabalho no Collège compreendem um período, apresentado na aula inaugural como a idade do desaprender, de “deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos”, experiência que Barthes (2007, p.45), do ponto de vista didático, denomina “Sapientia”, ou seja: “nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”. 1 Uma versão alternativa deste texto foi publicada na Revista Teias (v.18, n. 51, 2017 (out./dez.): Micropolítica, democracia e educação, com o título “Roland Barthes e a aula como fantasia idiorrítmica: proposições para um viver-junto”. Os cursos e seminários2 ministrados nesses anos colocam em prática as principais propostas apresentadas na aula inaugural, na qual Barthes apresentara as linhas gerais do ensino que ali iria ministrar. Como refere Leyla Perrone-Moisés (2012, p.162-170), trata-se de um esforço de constituição de “um ensino não opressivo”, da “desconstrução de toda metalinguagem”, da “renúncia a um enciclopedismo tornado impossível num tempo de excesso de informações”, da “recusa do dogmatismo e, portanto, da própria fala magistral” e, sobretudo, do que se pode denominar moralidade da forma: “uma ética centrada não sobre a conduta em si, individual ou coletiva, mas sobre a linguagem na qual se fundamenta e na qual se efetiva toda conduta humana”. De fato, ao contrário de tantos outros intelectuais de sua época, Barthes nunca foi considerado um militante. No entanto, a questão do poder não deixou de estar presente em sua obra, sendo retomada muitas vezes na aula inaugural e nos cursos que a seguiram. Em entrevista publicada um mês após sua morte, ele marca a linguagem como o seu “próprio limite”, defendendo a ideia de que o intelectual “não pode atacar diretamente os poderes estabelecidos, mas pode injetar estilos de discursos novos para fazer com que as coisas se mexam”. Nesse sentido, a escrita, a docência e a pesquisa compartilham essa espécie de compromisso contestador-estilístico, sendo a retirada (por meio de formas de expressão e condutas clandestinas, não dogmáticas) uma estratégia intolerável a qualquer forma de poder: “Pode-se enfrentar um poder pelo ataque ou pela defesa; mas a retirada é o que há de menos assimilável numa sociedade” (BARTHES, 2004a, p.504-511). Em Roland Barthes por Roland Barthes, essa tática de errância intelectual é citada como uma verdadeira doutrina interior, denominada “atopia (do habitáculo em deriva)” (BARTHES, 2003a, p.62). Neste ensaio, interessa-nos pensar o quanto esse contínuo abandono da própria condição está intimamente ligado ao ideal de uma prática docente que tem 2 Reunidos na coleção “Os cursos e os seminários no Collège de France de Roland Barthes”, dirigida por Éric Marty, e no Brasil publicada pela editora Martins Fontes. 54 como um de seus propósitos centrais neutralizar o poder alojado no próprio discurso magistral, sendo então necessário situá-lo não na perspectiva da lei, mas sim na do desejo: “o mestre sendo um desejante, não um guru” (PERRONE-MOISÉS, 2012, p.166), e que assim abdica – naturalmente – de exercer qualquer domínio sobre um tema ou sobre seus ouvintes. Ao diferenciar a atopia da utopia, Barthes (2003a, p.62) atenta para a necessária relação de dependência da utopia à ordem do sentido já instaurada, uma vez que seu movimento pode ser entendido como um partir deste espaço-tempo para um outro (desejado, fantasiado). Desse modo, uma ordem atual é aquilo do que ela procede, e é em relação a essa ordem que ela pode constituir sua singularidade, diferenciando-se de modo relativo. Por sua vez, a atopia independe de qualquer dado de realidade, já que esta é usada apenas como possibilidade de deslocamento. De certo modo, a atopia configura uma espécie de curto-circuito utópico, ou melhor, trata-se da utopia em seu devir errante, pelo qual já não visa chegar a lugar e tempo alguns, mas apenas deslizar. Se a fantasia depende da utopia, tal como é defendido por este ensaio, é porque, em Barthes, ambas são parte de um processo comum de criação: fantasio uma produção (alucino a obra, a aula, a pesquisa), em detrimento de todos os dados atuais e as amarras do aqui e do agora. Nesse meio, o que está em jogo é a construção de um modo de lidar com o saber, ou seja, um estilo de vida docente, uma vez que “o que pode ser opressivo num ensino não é finalmente o saber ou a cultura que ele veicula, são as formas discursivas através das quais ele é proposto” (BARTHES, 2007, p.41). De que modo, pois, “manter” um discurso sem o impor? De que modo fazer da aula um espaço de criação, propício para a “produção das diferenças” (BARTHES, 2004b, p.414): o trabalho continuado, incansável, de quebra da reprodução de papéis e de repetição de discursos, com as relações tendo que, pouco a pouco, voltar a se originalizar? Na esteira de tais questionamentos, e tomando como guia indicações recolhidas no interior do universo barthesiano, o espaço da aula é aqui defendido como um tipo especial de Viver-Junto, dentro do qual “a coabitação não exclui a liber- 55 dade individual” (BARTHES, 2003b, p.329), ou seja, uma vida em comum na qual o ritmo pessoal de cada um encontra o seu lugar. É a esse imaginário, denominado “fantasia3 de idiorritmia”, que nos voltamos para pensar as relações de ensino e aprendizagem, não importando se o que ele formula é, literalmente, impossível: o sistema idiorrítmico pode muito bem funcionar como uma garantia de produção, desde que seus elementos retornem para o nosso mundo na forma de “clarões de desejo, possíveis excitantes” (BARTHES, 2004c, p.291). Se pudermos captá-los, estar atentos a seus mínimos sinais, talvez possamos também impedir que nossas práticas se imobilizem em sistemas totalitários, burocráticos, moralizadores4. Questão ética, mas também política. O que vem a seguir, afinal, depende da ideia de que há uma relação fundamental entre esses dois domínios, sendo a aula um bloco de espaço-tempo privilegiado para a criação e exploração de zonas de fricção. Vejamos, pois, algumas proposições em cujo cruzamento se encontra, a nossos olhos, uma fantasia idiorrítmica de aula: dizem respeito ao antes, ao durante, ao depois (aqui entendido como o instante do testemunho). Antes O guia iniciático, o fantasma Por onde começar? Para Barthes, na origem de um ensino – assim como na origem de uma pesquisa –, uma fantasia deve sempre ser colocada como guia iniciático (sem o qual 3 Termo deslocado por Barthes do vocabulário psicanalítico, também é traduzido em algumas edições brasileiras como fantasma. Seja como for, trata-se da indicação de uma imagem cuja origem é inconsciente (e que independe, portanto, da vontade do sujeito). O adjetivo fantasmático é utilizado em todas as edições. 4 No resumo do curso Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos, escrito por Barthes (2003b, p.329-331) para o anuário do Collège de France, a fantasia de idiorritmia não deixa de ser associada à imagem de uma realidade irrealizável. Por sua vez, o curso, pela necessária problematização de uma “distância crítica” imaginada para as relações fantasiadas, acaba fatalmente por desembocar “num problema de ética da vida pessoal”. 56 a realização da tarefa estará fatalmente apartada do prazer). Trata-se de uma fábula interior, de uma imagem de origem inconsciente, “um romancinho de bolso que a gente leva sempre consigo e que se pode abrir em qualquer lugar” (BARTHES, 2003a, p.101). Diferente do sonho, cuja natureza monológica nos absorve inteiramente, a fantasia permanece concomitante à consciência da realidade, delimitando um espaço duplo, escalonado, no interior do qual algo se esboça, uma voz inominada se ouve, e é, mesmo sem nenhum aparato material, um começo de produção (uma aula: de que modo precisar o seu início?). O que a fantasia garante, portanto, é “uma volta de desejos, de imagens, que rondam, que se buscam em nós, por vezes durante uma vida toda” (BARTHES, 2003b, p.12). Ao considerar tal imaginário, o ensino fantasmático assegura ao professor a presença de seu afeto (desejo, logo postulo, ou seja: alucino): “a primeira força que posso interrogar, interpelar, aquela que conheço em mim, embora através do logro do imaginário: a força do desejo, ou para ser mais preciso (já que se trata de uma pesquisa): a figura da fantasia” (BARTHES, 2003b, p.8). Enquanto engendramento de forças, sobretudo pela delimitação de diferenças em relação (o desejo como garantia e medida de singularidade de cada sujeito), a fantasia funciona como uma espécie de arcabouço cultural. Ao mesmo tempo, voltar-se para o próprio desejo permite ao professor deslocar-se (mesmo que apenas um pouco) da posição a ele reservada: É a um fantasma, dito ou não dito, que o professor deve voltar anualmente, no momento de decidir sobre o futuro de sua viagem; desse modo, ele se desvia do lugar em que o esperam, que é o lugar do Pai, sempre morto, como se sabe; pois só o filho tem fantasmas, só o filho está vivo (BARTHES, 2007, p.43). Não se trata, tal como assinalado por Éric Marty (2009, p.205), de egotismo, confissão, exibicionismo ou mesmo hedonismo estéril, mas sim da figura do mestre capaz de desconstruir imagens (sobretudo de si), “que se desprende da memória em nome da força da vida viva”. Que a força vital o lance para caminhos insuspeitos ou até mesmo disparatados, eis aí algo que 57 sem dúvida deve ser considerado. No entanto, uma vez aceito como a indicação de uma força desejante, nenhum imaginário, por mais infactível que pareça, necessita ser sufocado em detrimento de um projeto supostamente mais concreto, real ou mesmo necessário. Para Barthes (2004c, p.290-291), enquanto a utopia funciona como testemunho de um campo de desejo, o Político configura o campo da necessidade, “donde as relações paradoxais desses dois discursos: eles se completam, mas não se compreendem”. Enquanto “a Necessidade acusa o desejo de irresponsabilidade, de futilidade, o Desejo acusa a Necessidade por suas censuras, seu poder redutor”. Diante disso, “o desejo precisa o tempo todo ser reconduzido ao Político”, o que significa dizer não só que as utopias são justificadas, como também são necessárias, uma vez que – em aula, em pesquisa – “não são as grandes linhas de uma sociedade futura que temos que desenhar – isto está no próprio Político; são os detalhes dessa sociedade, e é nisso que nos falta utopia, desejo”. A utopia – eis aí sua característica – é minuciosa, clinicamente afiada em seus esboços, nas suas prospecções5. Está no imaginário, portanto (daquele que planeja e ensina, claro; mas não só, veremos), parte essencial do arcabouço material da aula. Explorá-lo, nesse sentido, é criar cintilações, toques, cacos de desejo. Real problema didático. O durante O lugar do corpo A propósito da necessidade de considerar o corpo no espaço do ensino, Barthes (2004b, p.416) provocava: “reponham o corpo no lugar de onde foi expulso e se adivinha todo um deslizamento de civilização”. Para Barthes, nada é mais transgressivo do que o empenho na leitura da expressão corporal em de5 Em Barthes (2004c), a impotência para escrever utopias é até mesmo proposta como um índice de platitude de determinado tempo histórico. 58 terminado espaço, uma vez que o corpo, existência inimitável, é sempre um tanto impossível – “meu corpo não tem as mesmas ideias que eu”, dirá Barthes (2006, p.24) em outra ocasião. Repor o corpo no lugar de onde foi expulso, deixá-lo seguir suas próprias ideias, é um modo de conferir àquele que o vive certa singularidade. É justamente por isso que, na obra barthesiana, o corpo é muitas vezes o ponto de partida, tal como se pode perceber no princípio heurístico que conduz a investigação de A câmara clara, seu último livro: “o que meu corpo sabe da fotografia?” (BARTHES, 1984, p.20). O corpo, não o eu. A carne, não a razão. A natureza, não a cultura. As oposições binárias não são neutras, indicam a afirmação de um ethos comum, mesmo que (em certo aspecto) infeliz: antes de qualquer coisa, o corpo é aquilo que não se compartilha, não se iguala, não encontra correspondências. Em última análise, um corpo, aconteça o que acontecer, esteja onde estiver, não será igual a outro. Em Roland Barthes por Roland Barthes, esse corpo múltiplo participa de um inventário que poderia ser prolongado, quase sem limite: Tenho um corpo digestivo, tenho um corpo nauseante, um terceiro cefalálgico, e assim por diante: sensual, muscular (a mão do escritor), humoral, e sobretudo: emotivo: que fica emocionado, agitado, entregue ou exaltado, ou atemorizado, sem que nada transpareça (BARTHES, 2003a, p.74). A profusão indica, a um só tempo, o corpo orgânico – detentor de peso, volume e profundidade; corpo que ocupa um lugar – e o corpo inteligente, fruto de outro corte; um corpo que age e sofre por conta própria. Se em um sentido tópico tal dimensão corporal indica um isolamento – ter um corpo, testemunhar por ele, é sempre habitar uma solidão, visto que é em oposição ao todo, ao contrato social, que um corpo se constitui –, é essa própria singularidade que evidencia a existência de outros corpos, “precisamente porque pensar, sofrer 59 ou amar implicam um corpo rodeado, e não só, implicam também: um corpo que rodeia” (TAVARES, 2013, p.189). Está nessa possibilidade de definição do corpo como algo que rodeia e é rodeado a correlata possibilidade de tomá-lo, a despeito de sua condição múltipla, como um corpo espacial, que é influenciado pelo espaço e nele intervém. O viver junto Além de um campo problemático a ser explorado, a preparação da aula envolve também o cuidado com o Viver-Junto, do qual ela é cenário: a aula como uma pequena comunidade móvel, na qual cada um dos membros pode “viver ao mesmo tempo em companhia e em liberdade” (PERRONE-MOISÉS, 2012, p.160). Em Ao seminário, texto dedicado à sua prática docente na École Pratique des Hautes Etudes, Barthes (2004b, p.413-414) defende ser necessário “que à geometria grosseira dos grandes cursos públicos suceda uma topologia sutil das relações corporais, de que o saber seria pré-texto”. Nesse sentido, o seminário deveria se basear “muito pouco numa comunidade de ciência, antes sim numa cumplicidade de linguagem, isto é, de desejo”. O Falanstério, agrupamento utópico idealizado por Charles Fourier, no qual o viver em sociedade não esmaga o ritmo e os desejos de cada sujeito, aparece como uma referência a uma forma fantasmática do Viver-Junto. Opondo o espaço falansteriano a seu contrário, que denominará espaço edipiano (espaço repressivo, de exames, interdições e estabelecimento vertical do sentido recomendável), Barthes (2004b, p.413) reserva a si próprio o papel de “liberar a cena onde vão estabelecer-se transferências horizontais”, uma vez que o que importa (o lugar do sucesso do seminário) “não é a relação dos ouvintes com o diretor, mas sim a relação dos ouvintes entre si”. Em certo sentido, tem-se aí um zelo e uma atenção comuns funcionando como ethos articulador das relações. Nesse cenário, o professor não é nenhum sujeito sagrado, “mas apenas um regente, um operador de sessão, um regulador: aquele que dá regras, protocolos, não leis”. 60 A benevolência, a fala pacífica Uma vez que “há uma relação fundamental entre o ensino e a fala”, e que “toda fala está do lado da lei” (BARTHES, 2004b, p.386), o professor, que está do lado da fala, deve ao menos lutar para que no espaço de fala pelo qual ele é responsável não figure nenhuma agressividade. Trata-se de tomar a benevolência como objetivo prático: “ao escutar, ao falar, ao responder, que eu nunca seja o ator de um julgamento, de uma sujeição, de uma intimidação, o procurador de uma Causa” (BARTHES, 2004b, p.410). Leyla Perrone-Moisés (2012, p.126), falando sobre a experiência do Viver-junto dos seminários barthesianos, faz referência a um modo especial de escuta posto em prática por Barthes, na qual a trama gestual do corpo assume o protagonismo da cena, à medida que desenvolve sua própria narrativa, seu próprio texto. Nela, os alunos “se educavam menos pelas respostas do mestre do que pelo modo como ele ouvia”. No limite, o que está em jogo é sempre uma maneira de lidar com o sentido, de táticas de recuo e abandono pelos quais um algo mais, não previsto, possa ter lugar. De certo modo, buscar o que Barthes denomina “fala pacífica”: uma relação desarmada com palavras, ideias e gestos, uma trama capaz de arquitetar uma espécie de suspense: Nos limites mesmo do espaço docente, tal qual é dado, tratar-se-ia de trabalhar para traçar pacientemente uma forma pura, a da flutuação [...] essa flutuação nada destruiria; contentar-se-ia com desorientar a Lei: as necessidades de promoção, as obrigações do ofício [...], os imperativos do saber, o prestígio do método, a crítica ideológica, tudo está aí, mas a flutuar” (BARTHES, 2004b, p.411). Este colocar em suspensão, esta arquitetura de flutuações, distancia a prática da aula de todo compromisso revelador, uma vez que a tarefa didática aí não é pensada em termos de dar a ver ou dar a falar aquilo que não tem cara e voz, tornando-o comum; ao contrário, o que está em causa é um esfor- 61 ço de recuo e retração, ou seja, de inexpressão do exprimível, “como se o pensamento também fosse chamado a cavar em si uma região de refluxo, inabitada e inabitável, uma zona de cegueira e de impossibilidade, de interrupção, a fim de que algo pudesse advir” (PELBART, 2007, p.65). O mesmo diz respeito ao professor: é preciso que ele se retire, enquanto sujeito; é necessário que ele, em certo sentido, perca seu rosto (o rosto no qual se podem ler as palavras da Lei), num movimento que já não representa omissão ou derrota, mas puro zelo: pacífica, a fala é também exata, não gregária. Pelo seu livre jogo, torna-se capaz de instaurar um espaço outro, capaz de contestar mítica e realmente os espaços onde vivemos. A excursão A didática barthesiana é digressiva. A aula, portanto, é uma excursão, com a fala e a escuta “semelhantes às idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe, dela se afasta e depois volta, para trazer-lhe uma pedrinha, um fiozinho de lã, desenhando assim ao redor de um centro calmo toda uma área de jogo, no interior do qual a pedrinha ou a lã importam finalmente menos do que o dom cheio de zelo que deles se faz” (BARTHES, 2007, p.43). Enquanto movimentos do desejo, arrepios do corpo, as idas e vindas ao redor do tema (segurança fantasmática), não permitem a instauração de nenhum caminho reto, nenhuma evolução, nenhum final programado e capaz de oferecer um resultado concreto ao trabalho da aula, articulada então como uma espécie de aventura em meio a diferentes campos de saber. Tráfego, mas também tráfico: conceitos, sons, imagens, nuances de sentido arrastados de um lado a outro, por intermédio do corpo que sente, toca e é tocado. De sua biblioteca interior, o professor (aquele que sonha alto sua pesquisa) retira os materiais que julga pertinentes ao tema pesquisado, arranja-os ao sabor de suas leituras e lembranças, insere-os na trama imprevisível da aula. Em diversos sentidos, trata-se de um oferecimento: ao apresentar o que me toca, ofereço a parte precisa (o naco exa- 62 to) onde faço corpo com o outro, e torço (mais, não posso) para que possamos despertar algum apetite (com o cutelo em mãos, o aluno escolhe o que mais lhe apetece, desmembra o discurso, arranca e toma para si o que tiver mais sabor). Trata-se, pois, da aventura de um corpo inteligente, e por isso intratável: “um simples plural de encantos, lugar de pormenores sutis [...] canto descontínuo de amabilidades” (CORAZZA, 2013, p.88); “corpo que se empurra e volta a empurrar, passa para outra coisa – pensa noutra coisa” (BARTHES, 2009, p.288); corpo de intermezzos, que muda de lugar, muda de postura, muda de tom, impede que o discurso se agarre, engrosse, espalhe-se e desenvolva-se. Uma vez assim concebido, o ensino está intimamente ligado à criação de novos arranjos e ao traçado de novas dimensões de pensamento e existência, não fazendo sentido considerá-lo como esforço linear, natural e progressivo a uma determinada direção, mas sim como constituição de espaços, de novos eixos pelos quais o pensamento poderá se desenvolver. A anotação louca Obviamente, nessa aventura, pode-se tomar notas. No entanto, o registro não visa copiar o saber como modelo, não quer aprisionar o dito e o vivido no espaço da folha, a fim de poder posteriormente representá-los. Ao contrário: a nota é o território da falha da Lei, pela autonomia da escuta ao se destacar do que é dito. Em suma, a nota é escritura, é ação de autoria, e não memória e cópia. Ela se define pela produção, e não por uma representação – tomar a escuta: ação sem dúvida mais subversiva que tomar a palavra. De acordo com Perrone-Moisés (2012, p.127), ao encorajar o que denominava “anotação louca”, Barthes acreditava que, ao acolher em seu discurso apenas o que acenasse a seu desejo, o aluno teria chance de produzir um texto novo, pessoal, “e era o que ele queria receber de volta, e não a imagem especular de seu próprio discurso, por ele conhecido, e portanto tedioso”. Desse modo, ao mesmo tempo que “alguém trabalha, pesquisa, produz, reúne, escreve diante dos outros”, todos “se 63 incitam, se chamam, põem em circulação o objeto a produzir, o processo a compor, que passam assim de mão em mão, suspensos ao fio do desejo, tal como o anel no jogo de passa anel” (BARTHES, 2004b, p.418). A tessitura dos sentidos “O nascimento do leitor deve pagar-se com a morte do Autor”. Com essa fórmula, Barthes (2004b, p.64) encerrava, em 1968, A morte do autor, ensaio-manifesto cujo propósito e provocação permanecem ainda atuais. Para Barthes, o afastamento do autor – personagem a partir da qual a tradição moderna acaba por estabelecer um vínculo íntimo entre os ditos produtor e produto, de modo que “a explicação da obra é sempre buscada do lado de quem a produziu” – configura-se como a abertura de um campo exploratório no qual “a pretensão de decifrar um texto torna-se totalmente inútil” (BARTHES, 2004b, p.63), uma vez que o desafio literário não se constitui pelo segredo, mas sim por uma espécie de deslindamento: em meio à obra, o leitor é aquele que deverá percorrer um espaço, dispersar seus elementos estruturais, e não penetrá-lo na busca por um sentido último e profundo. Trata-se, para Barthes, de assumir o jogo literário como uma atividade “contrateológica” e propriamente revolucionária, “pois a recusa de deter o sentido é finalmente recusar Deus e suas hipóstases, a razão, a ciência, a lei”. Sem dúvida, tal jogo não seria possível sem um entendimento particular da noção de texto, não mais pensando como uma linha de palavras a produzir um único sentido (a transmissão de determinada mensagem), “mas um espaço de dimensões múltiplas, onde se casam e se contestam escrituras variadas, das quais nenhuma é original” (BARTHES, 2004b, p.62). Para Barthes, o texto não é mais que um tecido de “citações sem aspas” (BARTHES, 2004b, p.71), e escrever é sempre adentrar em uma operação já em andamento, estendendo os gestos que a constituem. O escritor, por condição retardatário, é assim aquele cujo único poder está em mesclar escrituras e citações “oriundas de mil focos da cultura”, de modo que, mes- 64 mo que queira exprimir-se, deve ao menos saber que “a ‘coisa’ interior que tem a pretensão de ‘traduzir’ não é senão um dicionário todo composto, cujas palavras só se podem explicar através de outras palavras, e isto indefinidamente” (BARTHES, 2004b, p.62). Necessariamente impuro, o espaço literário exige daquele que o percorre o exercício de uma dispersão que não pode ter parada, mesmo que encontre, na figura do leitor, o espaço próprio de uma inscrição: ele é esse alguém capaz de configurar um arranjo de traços pelos quais é constituído o escrito. Em O prazer do texto, a leitura será pensada como uma espécie de exercício de estrangeiridade, capaz de suportar “sem nenhuma vergonha” a contradição lógica. Para Barthes, o leitor do texto, desde que entregue a seu prazer – “esse momento em que meu corpo vai seguir suas próprias ideias” (BARTHES, 2006, p.24) –, é ficcionalizado como um indivíduo capaz de misturar todas as linguagens, ainda que sejam consideradas incompatíveis; que suporta todas as acusações de ilogismo, de infidelidade, e sobretudo a não unidade de si. Voltar-se para essa figura, percorrer as linhas de sua leitura, é buscar não uma identidade, mas sim o que o separa dos demais, o dado que demarca a sua singularidade. Se o interesse de Barthes deixa de estar voltado para a consideração do texto como objeto intelectual (de reflexão, de análise, de comparação), é porque, ao realizar-se a pleno, o prazer do texto é justamente isso que faz o livro transmigrar para dentro da vida daquele que o percorre, e a escritura do outro escreva fragmentos de nossa própria cotidianidade (BARTHES, 1979, p.10). A distinção estabelecida entre as noções de texto e obra configura-se como eixo central para tais proposições. Enquanto a última é computável, segura-se na mão e encerra-se sobre o significado (ela é aquilo que se mostra e que é visto, enumerado e catalogado conforme a sua verdade, sua filiação e seu sentido), o texto “aborda-se, prova-se com relação ao signo” (BARTHES, 2004b, p.68); enquanto a obra depende da interpretação, o texto não pode ser provado a não ser em uma produção, demonstra-se na travessia que ao mesmo tempo o estende e o constitui. É nesse sentido que, com Barthes, entendemos o texto como uma tessitura não apenas gramatical, mas 65 também subjetiva: no jogo com o signo literário, ele é isso que escorre e que resiste à imposição do sentido, um a mais irredutível aos desígnios do sujeito e da obra, mas que não cessa de os constituir em seus interstícios. Texto quer dizer Tecido; mas, enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais ou menos oculto, o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua teia (BARTHES, 2006, p.74-75). A perspectiva hifológica da análise barthesiana estabelece, tanto para a obra quanto para aquele que a encontra, um corte diferente daquele pelo qual a intencionalidade, o significado e sua interpretação estabelecem as condições gerais para a experiência literária. Esforço semelhante é empregado na análise de outras poéticas criadoras, tal como a fotografia, o cinema, a música e a pintura, configurando aquilo que Italo Calvino, em um bonito ensaio escrito na ocasião da morte de Barthes, entende ser um incansável esforço de coação da “impessoalidade do mecanismo linguístico e cognitivo” a fim de que a “fisicidade do sujeito vivente e mortal” possa ser considerada (CALVINO, 2010, p.84). É justamente nessa tensão, “nesse debate no fim das contas convencional entre a subjetividade e a ciência”, tal como escreve Barthes (1984, p.19), em A câmara clara, que podemos encontrar a indicação de uma ética possível: a resistência a qualquer sistema redutor e o compromisso com o singular e o irrepetível, estando a generalização científica e a sensibilidade poética, portanto, necessariamente enlaçadas. Na esteira de tal compromisso, interessa pensar a aventura da aula em relação às possibilidades de criação de novos sentidos, entendendo o espaço nela constituído como efetivamente um espaço textual, ou seja, um espaço cuja prática a ele vinculada seja capaz de inscrever a significância: um regime de sentido jamais fechado sobre um significado único, den- 66 tro do qual o sujeito, “quando escuta, fala, escreve, e mesmo no nível de seu texto interior, vai sempre de significante em significante, através do sentido, sem jamais fechá-lo” (BARTHES, 2004c, p.297). Uma textualidade, portanto, efetiva-se por uma prática significante, determinada maneira de estar juntos (com as obras, com os saberes, com o outro), onde o movimento do sentido não é mais que a simples sugestão de um disparo, uma centelha capaz de acender o desejo criador. Nesse sentido, pode-se dizer que o trabalho didático é também portador de um convite, cujo aceite implica necessariamente lançar-se em uma aventura de construção de novas paisagens existenciais, ou seja, novas formas para a vida. No entanto, nada disso se faz possível sem uma verdadeira desmistificação do espaço da aula, de modo que a distância entre os seus participantes e o saber a ela vinculado sejam medidos apenas pela qualidade do encontro que os une. Tal como sugere Pellejero (2012, p.66), “relacionar aquilo que vemos, ouvimos, lemos ou tocamos com a nossa própria experiência continua estando na medida daquilo que talvez fosse possível chamar de utopia estética”, caracterizada sobretudo pelo desaparecimento dos limites que acabam por impossibilitar a aproximação entre os desejos do autor e daquele que os encontra. Desejar é tender a, ou seja, colocar-se em intensão: de encontrar, de criar, de compor. Desejar é estar aberto ao fazer. Nesse sentido, não apenas desejamos, mas também somos desejados: por autores, por pensamentos, por obras, tal como indicado em O prazer do texto: “O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura” (BARTHES, 2006, p.11). Pelo desejo, o prazer de ler torna-se prática de escrita, ou seja, testemunha-se uma mudança de intensidade, o contágio, a proliferação. Dar a ler: dar a escrever. No que diz respeito à aula, parece-nos que esse desejo não pode ser outro que não o próprio exercício do pensamento e da correlata construção de novos sentidos. Uma vez desejados pela aula, somos convocados não propriamente a entendê-la, mas sim a multiplicá-la, proliferando seus signos por outras aulas, outras textualidades, por outras maneiras. 67 É só assim, pela criação dessa zona neutra de ressonâncias e de contágios, que a aula pode se configurar como sendo algo mais que uma voz monofônica, presa e dependente de um único sentido: suficientemente próximos, os saberes se tornam capazes de dar a fazer, e não apenas dar a ver, a ouvir, a tocar ou a sentir. O depois A contemporaneidade, o testemunho Pelo texto – espaço estereográfico, que percorro através do trabalho com o plural dos sentidos, pelo jogo móvel dos significantes, pela recusa e deriva do sentido único –, pode-se liberar o Viver-Junto dos limites estritos de uma relação espaço-temporal. Textual, ele diz respeito a uma contemporaneidade, aqui tomada em seu sentido pleno: somos (ou ao menos podemos ser) contemporâneos da força de um pensamento, de maneira que o calendário e a geometria não respondem bem à pergunta sobre o viver com: Viver com um autor não significa necessariamente cumprir em nossa vida o programa traçado nos livros desse autor [...] não se trata de operar o que foi representado, não se trata de tornar-se sádico com Sade, falansteriano com Fourier, orante com Loyola; trata-se de fazer passar na nossa cotidianidade fragmentos de inteligível (fórmulas) provindos do texto admirado (admirado justamente porque se difunde bem); trata-se de fazer falar esse texto, não de o agir, deixando-lhe à distância de uma citação, a força de irrupção de uma palavra bem cunhada, de uma verdade de linguagem; nossa vida cotidiana se torna então ela própria um teatro que tem como cenário nosso próprio hábitat social (BARTHES, 1979, p.7). Faz-se necessário, para “fazer falar” aqueles com quem vivo junto, que esse espaço de produção constituinte do texto não seja interrompido, uma vez que o tornar-se contemporâneo é precisamente a demarcação de uma zona de encontro, 68 dentro da qual a aula pode se constituir como um campo de experimentação de determinado modo de pensar, e não sua mera transmissão. Por essa perspectiva, o que se pode aprender e, portanto, levar adiante, é um certo indício de prazer, ou seja: uma co-existência. Nela, talvez seja possível cumprir a primeira das missões delegadas por Barthes (2004b, p.361) a seus últimos cursos (e que também deveria nortear seus projetos futuros, interrompidos pela morte): “dizer aqueles que se ama”, testemunhar por eles, garantindo assim que não tenham vivido, pensado (e muitas vezes sofrido) em vão. Salvas da frieza ou mesmo do nada da história, essas existências são recolhidas, justificadas em uma produção presente. A aula, a pesquisa, o Viver-Junto, tornam-se então pinturas, dramatizações de vidas distantes, textualmente aproximadas. Para tanto, o professor não diz o que sente; não fala, egoisticamente, a respeito de seu sentimento sobre nada e nem ninguém; ao contrário, ele comunica (se preferirmos: difunde, irradia), encarna, torna possível o toque, a degustação. Sapientia, enfim, o máximo de sabor possível. É pelo texto, portanto, pela dispersão da qual ele é constituído e pela qual se movimenta, que a fantasia do Viver-Junto encontra aquela que podemos considerar sua forma plena: nela, mestre e aprendiz estão comprometidos com uma mesma ordem afetiva, pois sabem que é só por sua produção (esse esforço amoroso que dá continuidade ao jogo), que isso que os toca pode durar um pouco mais. Referências BARTHES, Roland. O obvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. BARTHES, Roland. O grão da voz. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. 69 BARTHES, Roland. Inéditos, I: teoria. São Paulo: Martins Fontes, 2004c. BARTHES, Roland. Roland Barthes por Roland Barthes. São Paulo: Estação Liberdade, 2003a. BARTHES, Roland. Como viver junto: simulações romanescas de alguns espaços cotidianos. São Paulo: Martins Fontes, 2003b. BARTHES, Roland. A Câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. Lisboa: Edições 70, 1979. CALVINO, Italo. Coleção de areia. São Paulo: Companhia das letras, 2010. CORAZZA, Sandra Mara. O que se transcria em educação? Porto Alegre: UFRGS, 2013. MARTY, Éric. Roland Barthes, o ofício de escrever: ensaio. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009. PELBART, Pál Pelbart. “Excurso sobre o desastre”. In: QUEIROZ, André; MORAES, Fabiana; VELASCO e CRUZ, Nina. (Orgs.). Barthes/Blanchot: um encontro possível. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007, p.65-74. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012. PELLEJERO, Eduardo. “Modos de fazer / Modos de ver / Modos de pensar (Arte sem superstições)”. In: DIAS, S.O.; ANDRADE, E. C. P.; AMORIN, A. C. R. (Orgs.). MultiTão: experimentações, limites, disjunções, artes e ciências... Feira de Santana: UEFS Editora, 2002, p.66-78. TAVARES, Gonçalo. Atlas do corpo e da imaginação. Lisboa: Editora Caminho, 2013. 70 Pedagogia, cultura e erudição – texto e docência na formação de professores Marcos da Rocha Oliveira Uma palavra plural Estou faminto como o bico dos corvos. – Melhor recomeçar. Não é bem por aí e seria péssimo começar o texto com uma alusão literária. – Estás certo. Mas o texto na primeira pessoa, não importa... – Sugiro começarmos com “Estou faminto como o bico dos corvos”, ou seja, a fantasia do fato biográfico como intercessor. – Danem-se os corvos. Já estou em outro lugar. *** Do Texto ou “Utilidade da Arte Didáctica1” Dias me impingem a célere alegria de começar um texto. Um texto que há muito, talvez uns quatro anos, gostaria de escrever, mas que não o fiz por não ter encontrado o tom e recolhido o suficiente no que diz respeito ao material de referência ou em termos de “anotações loucas” (PERRONE-MOISÉS, 2012, p.127). É sempre bom terminar uma frase mais enigmática – pois sincera – com uma boa referência improvável. Que seja. Prefiro ser o mais sincero possível e aceito que isso decepcione cada um que queira ler ou escrever um texto, digamos, que seja um pouco mais útil. Por mais incrível ou banal que possa parecer, certo vacilo ante o texto que escrevo acompanha a matéria que ele mesmo pretende recobrir; há um vacilo que me faz lutar – com pouco repertório de golpes – com um adversário extenuante, vir1 A expressão é de Coménio (2006, p. 73). tual, não opressivo, mas de controle (como aqueles que já surgem em aplicativos de corrida de rua: sempre mais rápidos que você, com melhores tempos, com maior índice de VO², mas sem nenhum arfar, nenhuma gota de suor, nada de sal cristalizado ao redor da face e nem mesmo no horizonte de um sprint rumo ao escurecer dos olhos). Para ser direto: como falar de uma verdade íntima, a necessidade de certa erudição, sem com isso tornar-se engajado, opressor, moralista? Como falar de repertório, de informação poética, de pedagogia e de cultura com o mínimo risco de instaurar um relativismo extenuado ou uma arrogância soberbete? Como tratar com a devida complexidade um tema que perpassa uma certeza pedregosa a ser trazida ao pensamento sobre ensino e formação de professores? Leitura e escrita e o “monolitismo do saber herdado2” Jorge Ramos do Ó, em seu seminário de leitura3 na Universidade de Lisboa, sempre fala da necessidade de certa erudição. Talvez, se for o caso, tal afirmação seja apenas o risco de minha atenção flutuante e até mesmo um aceno ao desejo de escrever – como encorajava o professor Roland Barthes. É da dicção que a Jorge atribuo que escrevo para dizer daquilo que, apenas para ser preciso com meu próprio trabalho, nomeio erudição. Não falo da mesma coisa que ele, apenas indico seu seminário como local 2 Recomendo fortemente a leitura do texto de Ramos do Ó (2018) sobre o desejo de aprender. 3 O seminário de leitura ocorre regularmente e de modo ininterrupto, recebendo um público flutuante e diverso: alunos vinculados à Universidade, pessoas com interesses pontuais em um ou outro texto, amigos de participantes, toda a gente que se interessar e couber na sala de aula. Para tal seminário funcionar há uma lista de e-mail; de tempos em tempos há um revezamento na administração do envio dos textos a serem lidos. Digo isso para narrar um deslize potente ocorrido recentemente: aquela que estava gerenciando e escrevendo as mensagens aos participantes intitulou o seminário de “seminário de escrita do Professor Jorge”: a troca de “leitura” por “escrita” (aparentemente involuntária) é um testemunho do funcionamento e do desejo que perfaz o referido seminário. 72 da anotação que perseguiu minha fase final de escrita da tese4 sobre pedagogia (OLIVEIRA, 2014). Jorge, ao falar de escrita (e é isso que percorre seu seminário de leitura), encoraja-nos a escrever via a genealogia de suas próprias fraquezas: a dificuldade em ler e escrever é comum a toda a gente. E toda a gente já são muitos e, sendo assim, já podemos escrever com tudo aquilo que nos diz respeito (esqueça os primeiros 5% de sua categoria na maratona, para os quais ainda não é possível ombrear e descobrir a verdade no último quilômetro de prova: apenas corra, com tudo que possui, e não tenha nada para levá-lo de volta para casa ao final). Com tal horizonte, estando onde está ninguém e qualquer um, a fantasia do texto redundou em um exercício mais leve: não escrever o texto que tanto gostaria, talvez útil (confesso minha fraqueza) ou mesmo de certo regozijo íntimo. Mas, aqui estamos, escrever o que toda gente sabe e pode dizer. E esquecer a sombra de algo a ser afirmado como minha Obra – para Barthes, Obra é utilizada no sentido de certa nomeação do autor, de mistificação da totalidade da escrita, da verdade sobre um autor, de tal modo que a “Obra” Barthes irá preferir “escritura” e “texto” (BARTHES, 2003; 2006; 2007; FEIL, 2018; PERRONE-MOISÉS, 2005; 2012). *** Realizar algo, seja qual atividade de criação estejamos cotejando, é um exercício de, ao mesmo tempo, encontrar material para trabalhar e, mais importante, saber deixar de lado tudo aquilo que não importa. Haruki Murakami (2010; 2017), escritor e corredor, tenta ser o mais direto possível ao abordar o seu material de escrita e o trabalho de escrever: um romance é como uma maratona: descarte de tudo que é excessivo; trabalho árduo e contínuo e resultado limpo diretamente relacionados. Nada mais. Nenhuma clemência. Sem indulgências. Se não há a quem culpar, nada a reclamar, você trabalha sem motivos para arrependimento. Esqueça lamentos e nada dire4 A tese foi orientada por Sandra Corazza (UFRGS) e contou com orientação de Jorge do Ó no período de bolsa sanduíche (CAPES PDSE9476/12-1). 73 cione “a todos aqueles que presidem às coisas humanas, aos ministros de estado, aos pastores das igrejas, aos directores das escolas, aos pais e aos tutores”, aos quais só é possível “a graça e a paz de Deus” (COMÉNIO, 2006, p.55). É preciso uma atitude de certo modo agressiva, afirmativa (veja: Murakami escolhe para um livro o título Romancista como vocação, mas subtrai qualquer explicação que não seja imanente, que não seja advinda da prática de escrever, de criar, de fazer textos para qualificar o seu trabalho de escrita – e o mesmo é feito no que se refere ao ato de correr quando abordado em Do que eu falo quando eu falo de corrida). Sendo assim, ao tratar aqui de pedagogia, cultura e erudição (e até algumas vezes de corrida), gostaria de ratificar que não se trata de cultivar hábitos, trejeitos, repertórios recitativos como faria um parvo assertivo. Muito menos de se fazer digno a perceber “a graça e a paz” de um pedagogo idealizado pela didática moderna atribuída a Comênio. Nada mais repulsivo do que querer falsear uma pertença ligada aos discursos de poder: “o Espírito majoritário, o Consenso pequeno-burguês, a Voz do Natural, a Violência do Preconceito” (BARTHES apud PERRONE-MOISÉS, 2012, p.89). Ao sermos eruditos, do modo que trato, até podemos ser tomados por tolos, mas isso já seria outra coisa (como um leitor desavisado ao ler “vocação” no título do livro de Murakami pode dar de ombros e imaginá-lo romântico no que diz respeito a sua concepção de romancista, de escritor). Mas é preciso não temer as palavras. A erudição de que falo consiste em saber escolher aqueles que fazem funcionar um mundo incomum – e muitas vezes, conclamar vozes para uma estratégia específica: fazer todo e qualquer cânone discursivo falar aquilo que quero: uma arte da recitação engajada (mas cujo única mirada é o próprio texto e nunca “a causa”). Por isso, a erudição estará diretamente ligada à minha atividade de escrever e a meus modos de estar em aula; ela, de certa forma, tende a uma aula aberta5. A erudição é, pois, um exercício de uma estilística de si. A tentativa do texto. Em aula, a erudição é “olho por olho a olho nu” (CAMPOS apud CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 2006, p.73). 5 Ver a noção de aula e especialmente de aula aberta em Oliveira (2014), tomando para si aspectos da obra de arte aberta (CAMPOS, 2006b). 74 tomei a mescalina de mim mesmo e passei esta noite em claro traduzindo BLANCO de octavio paz A Educação dos Cinco Sentidos Os três versos da seção anterior são de Haroldo de Campos (1985, p.60). Não faria sentido algum colocar as referências junto aos versos, muito menos a saída via nota de rodapé: um número e tudo já seria outra coisa6. Haroldo de Campos (2006) no texto “Minha relação com a tradição é musical” fala como sua inspiração (trabalho) na escrita advém magicamente da relação com as musas (que seja claro, estou com pressa: trata-se de ironia nada fina de minha parte), do grego Mousa, as filhas da memória (Mnemósine). Advém às musas as derivações musical e museológica, de sorte que Campos possa estabelecer de modo operatório, físico, com o corpo de quem escreve, a sua relação com a tradição7. As musas, para o que me cabe aqui, como as filhas do caos que na jangada da travessia retornam com seus olhos e marcas como testemunhos de cada atividade de criação (DELEUZE; GUATTARI, 1997; OLIVEIRA, 2014), são, também, anotações para aquilo que venho chamando de erudição: um modo de enfrentar de modo criativo e singular a tradição que nos foi legada por intermédio de nossa própria fantasia e escolha, transpondo todo repertório disponível para um presente de criação. Por isso, o problema que me trava a escrita (escrever sobre erudição sem a pecha da idiotia e da opressão sufocante – não tomar-lhe a garganta por entre meus dedos e 6 “Die Bildung der fünf Sinne ist eine Arbeit der ganzen bisherigen Weltgeschichte”. Karl Marx (1844), vertido por Haroldo de Campos (1985) de modo a tornar-se preocupado com a noção de texto: “A educação dos cinco sentidos é trabalho de toda a história universal até agora”. 7 É inconteste como Campos se utiliza das noções de plagiotropia e canto paralelo, por exemplo, para falar de uma espécie de transcriação do passado em presente de criação (como na ocasião de traduções criativas específicas: reimaginação, transparadisação, transluciferação...). A síntese operada na tipologia comparada “músical” e “museológica” é recorrente em toda obra do autor. 75 pronunciar com um masséter desenvolvido “cul-tu-ra!”) pode ser visto sob a tipologia comparada, operativa, modal e adjetivante de musical e museológica. Para Haroldo, a tradição, quando tomada via a derivação que desembocou em música, pode ser utilizada como partitura transtemporal, sem o pesadume da leitura dos sentidos de uma época, sem o fado do contexto como chave explicativa e derivada – porém, descoberta com a genealogia de um presente que por sua vez poderá vir a ser, também, elemento determinante de compreensão de uma época –, de modo que cada execução singular possa ser realizada com harmonizações próprias a um cálculo único de sincronia e diacronia – ou como na frase que recorto: “traduzindo, por assim dizer, o passado de cultura em presente de criação” (CAMPOS, 2006a, p.258). Por isso, assim como eu utilizo a expressão erudição, Haroldo de Campos prefere refutá-la se estiver denotando meramente cultura, e cultura, nesse caso, como a cultura estereotipada e redundante de uma política de identidade de determinado grupo social. Nesse sentido, a relação necessariamente conservadora (como a imagem dos eruditos que nos dão medo pelo seu saber acachapante) com a tradição – de modo a utilizar seus marcadores, nomes, referências e alusões, formas e modos de expressão como léxico comum do empoderamento ou da distinção – pode ser chamada de relação “museológica”, pelo menos se – como o autor ressalva – estivermos presos a uma ideia de museu que necessariamente traz o fantasma do puro conservadorismo e que remeta a “coisa morta, embalsamada, preservada em formol ou em naftalina” (CAMPOS, 2006a, p.258). *** Em “cada signo dorme este monstro: um estereótipo” (BARTHES, 2007, p.15). 76 Pedagogia para a formação de professores8 “Ensinar a arte das artes é, portanto, um trabalho sério e exige perspicácia de juízo, e não apenas de um só homem, mas de muitos, pois um só homem não pode estar tão atento que lhe passem desapercebidas muitíssimas coisas” (COMÉNIO, 2006, p.47). E dizer que arte, ciência e filosofia, como modos de recortar o caos (DELEUZE; GUATTARI, 1997), possuem ou demandam certa estilística não impede, enfim, que a pedagogia também exerça seu maneirismo. Se criar, no sentido que aludimos, expressa-se por estilísticas, estas só versam um instante, no qual o que se faz não está dado (passível de reconhecimento canônico ou comunhão com a névoa de sua atividade específica) – e que, de tal forma, ensinam que o que está dado, em sua expressão, é sempre fluxo (por isso a necessidade de recortar o caos, para criar, de atualizar uma ideia). De outra forma, volta: não é necessário, ou não importa, enfim, que se reproduza o que está feito – aquilo que habita o eco do já sabido, do já dito pela impalpabilidade fantasmagórica de uma atividade específica; mas isso não importa, este fazer-se nevoado por conta da aquisição do comum de certa atividade, somente no sentido que aqui nos cabe, ou seja, nos termos de um interesse ou pesquisa que se insinue à experimentação pedagógica – “agenciar, compor, promover encontros que produzam o máximo de potência”, “escrever sobre currículo, ou escrever no currículo, ou escrever o currículo, sempre com estilo” (TADEU, 2004, p.200). Pois, por outro turno, é sabido de certa interpelação contemporânea à fala sobre educação que se situe no campo do novidadesco, do criativo e do experimental, do diferente e da diversidade – ou que a tais campos vise; como é sabido, também, que tal interpelação se faz em torno das reformulações vitais que as estratégias de controle criam. Mas isso não nos interessa aqui, diretamente. Interessam-nos apenas os processos intensivos de atualização e os modos de relação ímpares entre currículo e didática e, nesse 8 Aqui há uma retomada explícita da tese de Oliveira (2014), com trechos adaptados, supressões e inserções. 77 caso, estilo; estilo não no sentido de algo que se repete, como se diz de um autor ou de uma atividade específica – o estilo teatral, o estilo de Haruki Murakami... – mas no sentido deleuziano. É aí que a pedagogia interessa e inunda outras estilísticas. Necessariamente. E mostra a especificidade da criação à sua maneira – segundo a qual “toda tipologia é dramática, todo dinamismo é uma catástrofe” (DELEUZE, 2006a, p.308). *** – Pedagogo: aquele que em situação de ensino opera por constantes deslocamentos. *** Existem ressonâncias de exterioridade em todas as caóides, o que nos faz rejeitar qualquer purismo procedimental e, ao mesmo tempo, identificar singularidades operacionais em cada atividade de criação. Tais ressonâncias não deixam de se atualizar em uma aula, em uma conferência, em um curso, em um ensino mesmo que regular, por exemplo. É o que mostra Gilles Deleuze, em sua defesa curricular e didática, de um ensino de Filosofia que interesse a músicos e matemáticos, por exemplo, sobretudo quando não fale em música ou em matemática (DELEUZE, 2002). Pois, em certa medida, arte, ciência, filosofia pressupõem reciprocamente a pedagogia; e não é sem essa consistência problemática que o filósofo Gilles Deleuze torneia uma pedagogia do sentido, da imagem e do conceito (DELEUZE, 2006; DELEUZE, 1985; DELEUZE; GUATTARI, 1997); que o escritor Haroldo de Campos cita uma função pedagógica da tradução criativa e um ensino poético de poesia (CAMPOS, 1977; 2005; 2006a); que o semiólogo literário Roland Barthes flerta com um ensino escritural e com uma didática da flutuação (BARTHES, 2004a; 2004b; 2007): o filósofo, o artista, o cientista: só tão incertos e afeitos a imposturas pois passíveis de comporem um pedagogo larvar9. 9 Sobre o sujeito larvar e o método de dramatização ver Deleuze (2006). 78 *** – Aqui poderíamos citar outros exemplos, enumerados tomando os dedos de alguns criadores escolhidos para comporem o que já chamamos de erudição. – Uma espécie de respiro no texto ou esbanjamento alegre de pequenas lembranças. – Sim. – Sem temer a vulgaridade, eu falaria da singela iconização do “é só”, em Virgínia Woolf (saída que hoje, tão maltratadamente, é tornada comum). – Preferiria a isso o “son or” da “orquestre” – som de ouro ou o seu “or”, o “or” de “orquestre” – de Mallarmé travestido em uma tradição concretista (CAMPOS; PIGNATARI; CAMPOS, 2006). – Melhor ainda, para o contexto de erudição aqui proposto, seria aquele que só se mostra na elusão do referente ou do original (e perfeito é o lugar comum tradutor/traidor): o próprio Deleuze – por graça da tradução de “Le Logos se brise en hiéroglyphes” (2005, p. 179) – em estado de concreção ao escrever “o logos se quebra em hieróglifos” (2006, p. 211), frase onde a expressão material das palavras reconstrói sua encenação espiritual: a palavra logos espatifada em hieróglifos... *** Mas eis a especificidade da pedagogia, a situação de ensino não chega a ser o fundo problemático da atividade do filósofo, do escritor, do semiólogo literário. Mesmo se, por exemplo, uma pedagogia do conceito engendrar didáticas específicas para cada duplo diferencial posto em cena, ligando a relatividade do conceito, sua vizinhança, a um modo pedagógico-operatório (de maneira que a absolutidade do conceito, por sua vez, liga-se a sua ontologia), “relativo a seus próprios componentes, aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe resolver” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.33). Mesmo assim, a criação de didáticas, enquanto operações concretas de deslocamento, espécie de ponte movente, não os toma – a não ser no exato momento em que estes entram em uma espécie de devir-monstro, um devir-débil diante de sua ativi- 79 dade, hibridizando suas operações textuais, como poderia dizer Barthes (2004b): é justamente o não-filósofo Gilles Deleuze, o não-escritor Haroldo de Campos, o não-semiólogo Roland Barthes, que arriscam – e de certa maneira desatinam – uma possível preocupação com a criação de didáticas como modo de ensinar o acontecimento e não o fato, de até mesmo conduzir/suster e não instruir (repetir a diferença em Deleuze, recitar a concreção em Campos, prolongar a escritura em Barthes: um pedagogo sombrio e diferenciador – pois coloca a diferença em relação com a diferença – para facilitar a aprendizagem). *** – Pedagogo, o violento! (Erguendo-se da cadeira com o braço para o teto para logo retornar ao texto.) *** De outra forma, longe de fazerem da pedagogia um apêndice ou um aspecto secundário de suas obras, tais criadores alçam as questões pedagógicas e a pedagogia a um nível propriamente transcendental, onde o pedagógico se torna uma forma de pensamento – como afirma e demonstra Charbonnier (2009) sobre Deleuze, pedagogo. Modos de atravessar a clara-névoa própria a cada atividade, veste mortuária de cultivo e aprumo de séquitos, com raro espírito distinto e obscuro. Diria que a pedagogia pensa por didáticas, ou por modos de operar deslocamentos. Isso é algo mesmo encantador e arriscado. Na fenda entre saber e ignorância, a pedagogia assume sua graça útil diante das três caóides; mesmo e sobretudo quando não fala de arte, ciência, filosofia (ou sobre o ensino de...); mesmo ou só mesmo aí, também pode ser interessante perguntar em que a pedagogia pode servir a artistas, cientistas, filósofos: é só quando a bastarda, prima louca, filha minorada, se reúne com as três filhas do caos – as caóides, as três jangadas para atravessar como vencedor o Aqueronte (DELEUZE; GUATTARI, 1997) – é só aí, justamente, que ela pode servir até mesmo a professores. Se a bastarda é a responsável por remar, operar a travessia – imagem comovente do deslocamento – o faz não por ser escrava ou estar subme- 80 tida, mas por insistência em operar deslocamentos, seu único modo de pensar. Se há maior destaque para as três filhas, que importa!, ele se dá apenas por uma distinção moral, não estilística: por esta, distinguem-se pedagogia, filosofia, arte, ciência... Pois, se a ideia é contra-universal, impossível de se estabelecer em um registro geral, ela já se perfaz destinada a um certo domínio – que aqui chamamos de atividade; e este domínio ou atividade, por sua vez, destina-se a certos modos de expressão – nos quais, em cada caso, se distinguirá o que seriam ideias correntes ou névoa e ideias vitais (as que Deleuze chama de ideias – aquelas que são necessárias criar, correlatas ao pensar, ao aprender). “O filósofo, o cientista, o artista parecem retornar do país dos mortos” (DELEUZE; GUATTARI, 1997, p.260), porém, mais que aquilo que cada um deles traz, atualizado, interessa à pedagogia os seus modos próprios de passagem, a condução ou guia por uma travessia – mais precisamente: como eles são atravessados (a atualização do retorno pressupõe a variação didática). Seus recortes no caos são próprios, de modo que os rasgos sempre assinam as rusgas do percurso, seus rastros. De tal forma que se, ao final do deslocamento, eu alinhasse todas essas disciplinas que se definem pela sua atividade criadora, diria que há um limite que lhes é comum. O limite que é comum a todas essas séries de invenções, invenções de funções, invenções de blocos de duração/movimento, invenções de conceitos, é o espaço-tempo. Se todas as disciplinas se comunicam entre si, isso se dá no plano daquilo que nunca se destaca por si mesmo, mas que está como que entranhado em toda a disciplina criadora, a saber, a constituição dos espaços-tempos (DELEUZE, 2009). É no atravessamento de um professor, Gilles Deleuze, que encontrei a mais singela definição da expressão de uma situação de ensino: a própria aula como “espaço-tempo especial” (DELEUZE; PARNET, 2001), onde seu currículo, marca do rasgão da aprendizagem, da condução sem informação, confere a especificidade e a distinção pedagógica: criar didáticas. Só isso. 81 Uma palavra plural Já estou em outro lugar. – Melhor recomeçar? Não é bem por aí e seria péssimo terminar o texto com uma alusão literária solta, que aglutina mais um elemento ao texto. – Estás certo. Mas o melhor seria concluir... pelo menos uma vez ter uma bela frase terminada e deixar sua abertura para o maneirismo da enunciação: uma aula não é uma frase. – Não. Sugiro retomarmos os conceitos e noções utilizados; principalmente aqueles que foram para o título. – É melhor recomeçar. Referências BARTHES, Roland. Amar Schumann. In: BARTHES, R. O óbvio e o obtuso. Lisboa: Edições 70, 2009, p.281-286. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007. BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva, 2006. BARTHES, Roland. O grão da voz: entrevistas 1961-1980. São Paulo: Martins Fontes, 2004a. BARTHES, Roland. O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004b. BARTHES, Roland. Crítica e Verdade. São Paulo: Perspectiva, 2003. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita – A palavra plural. v.1. São Paulo: Escuta, 2001. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Mallarmé. São Paulo: Perspectiva, 2006. CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia: Ateliê Editorial, 2006. CAMPOS, Haroldo de. Metalinguagem & outras metas: ensaios de teoria e crítica literária. São Paulo: Perspectiva, 2006a. 82 CAMPOS, Haroldo de. A obra de arte aberta. In: CAMPOS, Augusto de; PIGNATARI, Décio; CAMPOS, Haroldo de. Teoria da poesia concreta: textos críticos e manifestos 1950-1960. Cotia: Ateliê Editorial, 2006b, p.49-53. CAMPOS, Haroldo de. Depoimentos de oficina. São Paulo: Unimarco Editora, 2002. CAMPOS, Haroldo de. A educação dos cinco sentidos. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Perspectiva, 1977. CHARBONNIER, Sébastien. Deleuze pédagogue: La fonction transcendentale de l’apprentissage et du pròbleme. Paris: L’Harmattan, 2009. COMÉNIO, João Amós. Didáctica Magna: Tratado da arte universal de ensinar tudo a todos. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006. DELEUZE, Gilles. Qu’est ce que l’acte de Création? – Conférence donné dans le cadre dês “Mardis de la Fondation”, le 17 mars 1987. Disponível em: <youtube.com/watch?v=oAH6wLW6W2k>. Acesso em: 16 jun.2009, às 13h. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. DELEUZE, Gilles. Différence et répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 2005. DELEUZE, Gilles. Em quê a filosofia pode servir a matemáticos, ou mesmo a músicos – mesmo e sobretudo quando ela não fala de música ou de matemática. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 27, n. 2, p. 225-226, jul./dez. 2002. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34, 1997. DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. L’ Abécédaire de Gilles Deleuze. Entrevista com Gilles Deleuze. Editoração: Brasil, Ministério de Educação, “TV Escola”, 2001. Paris: Editions Montparnasse, 1997. 1 videocassete, VHS, son., color. DELEUZE, Gilles. Cinema I: A imagem-movimento. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 83 FEIL, Gabriel Sausen. Experimentações metodológicas no ensino em Comunicação Social: “Biografema com a geração beat”. Intercom, Rev. Bras. Ciênc. Comun. [online]. 2018, v.41, n.1, p. 183-195. ISSN 18095844. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/1809-58442018110>. MURAKAMI, Haruki. Do que eu falo quando eu falo de corrida: um relato pessoal. São Paulo: Objetiva/Alfaguara, 2010. MURAKAMI, Haruki. Romancista como vocação. São Paulo: Objetiva/ Alfaguara, 2017. Ó, Jorge Ramos do. Seminário de Leitura. Seminário Contínuo realizado junto ao Instituto de Educação da Universidade de Lisboa, e frequentado entre os meses de Outubro de 2012 e Abril de 2013. Lisboa, 2012-2013. Anotações do Seminário. Ó, Jorge Ramos do. Vincennes, o desejo de aprender na universidade e as nossas vidas. Disponível em: <https://www.publico.pt/2018/06/10/ sociedade/ensaio/vincennes-o-desejo-de-aprender-na-universidade-eas-nossas-vidas-1833100>. Acesso em: 19 ago.2018. OLIVEIRA, Marcos da Rocha. Método de dramatização da aula: o que é a pedagogia, a didática, o currículo? Porto Alegre. Tese (Doutorado em Educação). Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2014. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Com Roland Barthes. São Paulo: Martins Fontes, 2012. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Lição de casa. In: BARTHES, R. Aula. São Paulo: Cultrix, 2007, p. 47-95. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura. São Paulo: Martins Fontes, 2005. TADEU, Tomaz. Um plano de imanência para o currículo. In: ______; CORAZZA, Sandra; ZORDAN, Paola. Linhas de escrita. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 127-205. 84 TEIA em contas de muitas pessoas Paola Zordan Múltiplas indefinidas Um convite é sempre um pretexto. Para alargar projetos, conhecer lugares, conversar. Quando o convite aparece para um texto livre, maior a vontade de se escrever. Mesmo que para compor um livro pudessemos usar qualquer texto, mesmo um texto já escrito e publicado, o desejo por algo novo, um texto ainda não escrito, palavras ainda não pensadas, histórias não contadas, argumentos a serem desenvolvidos, seduz muito mais. Como Leibniz, escrevemos pela circunstância, pelas relações, pelas correspondências, pelos chamados. Esse texto, de algum modo, conta uma aproximação não realizada aos arquivos desse homem cuja vida aconteceu trezentos e cinquenta anos atrás. Um pensador, matemático, jurista, bibliotecário e filósofo, no sentido renascentista do termo. Entretanto, não é um conto, pois não ter conseguido chegar à biblioteca de Leibniz é tratar de impedimentos e não contar uma incursão. O arquivo de Leibniz está lá, na Alemanha, em Hannover, para quando for necessário um acesso, um estudo, uma imersão. Necessidade houve, mas as possibilidades, embora estivessem próximas, obrigaram a um adentramento em arquivos outros, por meio de um documento (coisa) próprio, via carregamento de objeto obra, pela compressão e estendimento da coisa. A coisa se chama Teia, é uma grande superfície não plana, uma rede irregular sem um padrão em seu amarramento, feita de linhas pretas que criam um grande crochê negro, em ponto simples, ponto corrente. Não conto os pontos, portanto, o que posso contar são algumas partes da história de um objeto que também pode ser uma escultura maleável, instalável, vestível, usada como bem se quiser. Uma coisa que envolve a autora e muitas pessoas. Um trabalho em aberto, que poderia ser dito “contemporâneo” (essa nomeclatura questionável), mas sem inserção precisa nos sistemas artísticos legitimados, reconhecido apenas dentro do campo educacional, por professoras, alunos, público espontâneo que interagiu e interage com o projeto desde seu início, em 1993. O que isso tem a ver com Leibniz, os planos de uma ciência universal, seu cálculo diferencial, a defesa do perspectivismo para lidarmos com as controvérsias? Um texto amarra muitas coisas, aqui, um trabalho plástico, gráfico ou pictórico – como podemos ver nas fotos que acompanham as letras nessa passagem TEIA_TEXTO do livro t3xto – ao alemão que hoje estudamos para entender como uma alma se dobra aos outros. As questões não são barrocas, os conflitos não são os do século XVII, mas a urgência de uma jurisprudência perspectivada e de práticas que promovam tolerância é atual. Então, se o projeto de Leibniz tivesse triunfado, as igualdades, fraternidades e liberdades talvez existissem de modo mais humilde e menos belicoso do que se instituiu via racionalistas e enciclopedistas franceses. Tudo o que aqui pode ser contado é o quanto os que subssumem suas vontades próprias para resolver conflitos, apaziguar a ira dos que mandam, contornar o uso de poder da parte dos que ignoram os outros, servem a uma harmonia sempre muito dificil de ser obtida. Leibniz, apesar das grandes missões e de um incontestável legado, conta de uma vida que tendeu a ser apagada. Em torno das aniquilações, gostaríamos de acreditar que, se uma obra existe, a história pode a resgatar. O arquivo sempre viverá, desde que não seja destruído e há, sim, destruições para que esse apagamento ocorra. É político acabar com a base de um pensamento destruindo a materialidade que o conservará pela eternidade. Quebrem as pedras de Heráclito! Silenciem a fala de uma teia. Em um objeto, a cada ponto que o sustenta, um pensamento vive. Pelo menos no que está sendo reproduzido em texto, ninguém morre. 86 87 Singular, segunda Você tem um arsenal de textos guardados, esperando publicação, textos nas gavetas, pastas fechadas, romances dentro de um baú. Tudo poderia ser mais bem aproveitado. Toda essa produção de décadas exigiria uma segunda leitura, uma revisão, um tratamento para edição. Mas você prefere se aventurar nas páginas em branco, criar algo do nada. Porém, veja bem, esse nada está cheio de tudo o que já se escreveu, de tudo o que se lê, de tudo o que fazemos. Nada está em branco, Deleuze não cansava de dizer que as folhas e telas em branco estão cheias de clichês. Num texto saindo do zero há essa vontade de sair dos clichês conceituais etimológicos: texto, tecido, texto. Teses e Teias. Entretanto, entrar num arquivo é sair do dia de hoje, sempre. Viver o novo do dia, em seu pior lugar comum, é assumir que novas experiências ainda não foram contadas. Então, podes dizer, por força desse deus capital que tudo te promete e muito te nega, que uma vida se faz mais do que não se consegue do que pelo que efetivamente realiza. Talvez toda a sabedoria, ars inveniedi, a ciência almejada por Leibniz, seja exatamente abarcar o não visto, portanto, assumindo o sub-conhecido. Assim, chegas num saber universal em que tudo o que não presencias de fato, sem relação corpórea com os espaços onde os monumentos foram erguidos, também compõe pensamentos. Uma mônada sem portas e janelas. Mais uma vez, te voltas aos clichês deleuzianos nas “viagens sem sair do lugar”. Isso tudo diria, então, da potência de toda uma obra, em sua grande e fragmentada extensão, ficar “dentro do armário”? O que é preciso ser assumido em texto? Uma identidade autoral? Qual a graça da identidade de um autor se tudo o que mais interessa é a crônica de sua infâmia? Nem Foucault pode te ajudar ante as mazelas dos arquivos “contemporâneos” que irão se afirmar e ser alguma coisa somente ao cindirem seus traços numa exploração intempestiva, que não cabe a você, sempre bobo, louco, zerado, que o produziu. Você é nulo, acabado, ignorado, sem valor ou razão. Ter cumprido rituais, ter obtido os pontos mínimos para se manter no jogo, ter circulado nos lugares certos, conhecendo os Bispos, Reis, Rainhas e 88 Torres, nada lhe garantirá. Você será sempre Primitivo, Tosco, Tacanho, Tolo. Pois você pensa e pensar e criar e fazer todos rirem é algo que só pode ser permitido a quem já foi excluído de antemão. Você louva as virtudes do Neutro, então fique lá nesse ponto zen que ninguém se importará, afinal, você não está dizendo nada que possa ser levado a sério, o que você carrega no viático é somente da sua própria conta e mesmo que você tenha todas as verdades que ninguém gostaria de saber, na sua irrelevância todas serão escutadas como mentiras 89 Terceira, singular Leibniz nasceu numa terra de contornos constantemente indefinidos, historicamente partida, chamada por diversificados nomes, geograficamente central. O território diz muito sobre a pessoa, ninguém está isento das forças que engendram sua língua. Os conflitos de um povo são também lutas individuais. Ser de terras longes dos maiores reinos, ter que andar muito para chegar a uma corte, não ser recebido, imitar os costumes dos grandes, estar cindido em relação ao poder central, tudo isso explica as missões de Leibniz e seu projeto para edificar a Ciência. Ele ter pensado o melhor dos mundos possíveis via cálculo de probabilidades, ter adentrado no infinitesimal, abrindo o pensamento até as mínimas perspectivas, o faz um ser digno de admiração. O fato de Leibniz ter ido até as grandes cortes, tentado audiências com o Rei Sol, ter se correspondido com quase todos os intelectuais e autores de seu tempo, foi o esforço físico e mental empreendido em prol da harmonia divina. Perfeição almejada matematicamente, apesar das controvérsias que levavam a tão sanguinárias disputas. Nietzsche, que também nasceu na Alemanha, dois séculos depois, já tinha noção de que algo bom não haveria de acontecer. Leibniz jamais poderia imaginar o sangue, as mortes e as dificuldades vindouras que a história resguardou ao povo alemão. Ele, que tentava juntar as mãos de católicos, protestantes e judeus, foi um grande conciliador. As sementes que deixou talvez sejam o que permita, quatrocentos anos depois de sua morte, fazer uma Alemanha perdedora de duas grandes grandes guerras e divisões territoriais seríssimas, despender recursos para abrigar refugiados sírios. Poderia, um estudioso barroco, que se comunicava em inglês, francês e latim, imaginar sua terra ilhada num idioma pouco compreendido pelo mundo e com uma capital cheia de mulheres cobertas por véus? O que pensaria Leibniz de uma brasileira italiana tapuia cigana teiando negro uma coisa sem sentido, inexplicável junto às tílias? Ele se questionaria sobre os não sentidos da arte? É possível pensar em arte quando, em seu tempo, até a dis- 90 cussão de querelas era tomada como uma arte? Sua matemática era ars inveniendi. Deixar questões em aberto não era de seu feitio, ele escrevia cartas imensas para responder a tudo o que, por ventura, deixasse alguma lacuna. Para quem precisava descobrir os segredos da matéria, ele até era um homem contido. Procurava conciliar fés e crenças distintas, então, dentro daquele contexto, acabou inconciliável, sozinho entre seus livros, bibliotecário mor, tal como os monarcas decidiram ser seu destino. Leibniz nunca atravessou um oceano. Ao contrário de Nieztsche, que deu luz aquela estrela dançante para um deus que podemos acreditar, e de Deleuze, com seus carrapatos e gagueiras, Leibniz não nos oferece clichês, essas imagens-pensamentos, afirmados por excesso de incidentes, que dão bússula e âncoras aos que atravessam oceanos. Navegar num texto, pegar Jangadas de Medusa, fazer teias, comer uns aos outros, todos os clichês são por demais franceses para mudarem os cursos sinuosos dos aflúvios alemães. Deleuze sabia disso quando afirmava a diferença nas linhas setentrionais. 91 Primeira, plural Podemos inventariar um rol imenso de coincidências, quanto maior o número, mais chance da coisa se tornar um clichê, mesmo que originalmente a nada igualada. Contamos horas, contamos o que sobra de salário, contamos com as pessoas. Nunca sabemos o que irão contar sobre nossas vidas insignificantes. As contas podem ser preciosas, mas também podem pesar em nosso pescoço. Nós gostamos de colecionar e acumular coisinhas, objetos de desejo, páginas, obras completas, fotografias, cartas e lembranças. Quando um só objeto coleciona pensamentos numa superfície vazada maleável sem forma fixa, não sabemos bem o que fazer. Tentamos nos despojar de autores, artistas, nomes, projetos. Defendemos que nem tudo precisa ser claro, que comunicar não é a tarefa de muitos textos, que se corresponder deixou de ser uma arte que nos cabe. Então, pouco nos falamos, mesmo que nossos autores sejam os mesmos. Não temos mais o que descobrir, apenas constatar que tudo aquilo que criamos já foi assimilado e propagado por outrem. Muito provável jamais seremos lembrados, tão pequeno é o alcance daquilo que fazemos como algo nosso, mesmo que saibamos o quão grande são os pensamentos que geramos como corpo esquecido em paragens pouco prováveis de serem aclamadas. Planícies com declives arredondados nos circundam, aqui e lá, muito acima e muito abaixo das linhas de destaque. Somos aqueles que somente o tempo mostrará, os guardadores de livros, os subsumidos em notas, os arquivistas, os comedores de pó, os dos ventos e dos tempos, os memoriosos, os infames que mal enxergam e das sagas que pouco vendem. Não nos importamos. Nossas parcas façanhas envergonham a terra, jamais seremos modelos e nossas próprias virtudes são exatamente aquilo que nos torna escravos dos interesses, da ignomínia e de poderes vis. Poderíamos nos chamar teutos ou gaúchos, platinos do fim do mundo, bavarescos, bárbaros, queras. Mas somos apenas isso, seres textuais que leem e escrevem e prefeririam nunca ter nascido. Porém, como nascemos, em meio a tantas adversidades, numa vida 92 triste e obscura como castigo por nos permitirmos questionar e pensar, somos obrigados a suportar um mundo que a todo instante fere composições queridas. Somos muitos, no entanto, parece que não existimos. 93 Segunda, plural Vocês preferem não julgar, mas todos os juízos recaem sobre vocês. Vocês estão cansados, isso fica nítido quando só as posições redutoras, sem análise conjecturada de todos os aspectos de uma questão, são as que aparecem, somente duas posições em choque. E tudo acaba se resumindo em esquerdopatias e direitiotices. Pensar, micropoliticamente, os escapes dessa máquina bipolar esmagadora vai se tornando impossível. E mesmo quem pensa vai tomando partido de um ou outro lado do ódio. Um texto, que somente será lido entre vocês, sem nenhum impacto comercial, é o único espaço possível para se sair desse embate imbecil. Vocês ainda estão respirando, então, não reclamem. Vocês são fruto de suas escolhas, ninguém mandou preferirem perspectivas a escolher entre o Bem e o Mal. Assim, fica claro a todos que vocês, que não tomam partido porque preferem ficar analisando e criticando tudo, são o pior dos males. Vocês estão em cima do muro e só podem ser tachados de covardes, mesmo que acreditem estar lutando pelo Conhecimento ou pelo que for que chamem essas baboseiras incompreensíveis que vocês insistem em defender. Vocês estragam a decoração da sala de estar com suas prateleiras cheias de livros. Vocês se acham superiores por estarem com Heráclito, com Spinoza, com Leibniz, com Nietzsche, com um bando de outros infelizes que acabaram rechaçados sem sequer se colocar na peleia. Vocês vão cair e serão mortos em qualquer lado. Vocês têm mais inimigos do que os que apontam nítidas inimizades. Vocês, logo mais, não existirão. E não terão ninguém para salvar suas coleções, suas velharias, seus textos inúteis, suas babaquices chamadas obras, suas coisas monstruosas, seu gosto pela natureza selvagem, seus museus e bibliotecas atolados de múmias, fósseis e desenhos que não interessam ao dinheiro e à felicidade. Mesmo sem dizerem que estão entregando os pontos, vocês já não valem nada. 94 95 Terceira, plural Eles realmente não entendem, nunca entenderão e fazem um grande esforço para que tudo se torne um grande mal entendido. Eles gostam de vencer os outros e dão valor a algo impalpável chamado dinheiro. Eles gostam de Shoppings Centers e jogos em que x disputa com y, tendo sempre um perdedor. Eles são de fácil compreensão, mas de dificílima absorção. Eles admiram, copiam e simplificam. Eles se apropriam de olhares, frases, percepções. Eles vendem. Eles farão de tudo para destruir o autor da coisa. Quando observam que uma criança pode ter problemas porque está lendo demais, eles já estão criando um mundo onde a mãe, a dona da biblioteca, será uma pessoa pertubada, azarada, incapaz de ser feliz. Eles convencem qualquer um de sua incapacidade. Eles querem que você compre tudo. Eles não sabem o que é viver para o outro. Eles não aceitam muito bem as profissões que servem o outro, que atendem os outros, que despendem energia para curar, ensinar e conciliar pessoas. Eles difamam todos que não vivem em função do dinheiro. Eles não suportam vidas derramadas em pessoas, em relação com os outros, constituídas de aulas, audiências, debates e consultas. Eles se aproveitam de quem olha e considera em demasia o outro e fazem o possível para subjugar a sua vontade aos que levam em conta todas as vontades antes de expressar a sua. Eles não aceitam muito bem que há vidas vividas junto a coisas não facilmente consumíveis e vidas voltadas para pessoas não prioritariamente consumidoras. Eles não gostam daqueles povoados por outros, daqueles com nomes e rostos em demasia, cujos arquivos são compostos de muitas outras vidas. Eles não sabem nada sobre a força dos arquivos. Eles riem do infortúnio alheio e acham uma perda de tempo tanta sofrência, por isso preferem passar longe dos hospitais e das escolas. Há também aqueles que, carinhosamente, não cansam de arrasar os que admiram, fisicamente, mentalmente, emocionalmente. Eles tomam para si as melhores palavras. Eles fazem fotografias clichês de suas festas e previsíveis viagens, eles guardam trófeus e algumas lembranças pessoais pífias. Eles não se im- 96 portam com a separação dos resíduos e pouco se importam com o lixo poluindo a natureza. Eles sabem que não deixarão nada que preste para a posteridade, eles não dão valor para o planeta, eles poderiam ser chamados de a Escória, porém eles são um pouco de cada pessoa que “sem querer querendo” tenta isolar o que deles tem. 97 Primeira, singular em meus derramamentos Após andar carregando a Teia pela Alemanha, compreendi melhor as dores de Nietzsche e as ambições, em parte frustradas, de Leibniz. É possível escrever que a vida dos conciliadores será mais fadada ao esquecimento do que a vida dos que se impõem violentamente. Eu estava por lá quando pegou fogo o Museu Nacional. Morri de vergonha pelo Brasil. Não havia lágrimas para apagar o incêndio daquilo que constitutiu uma das mais fortes experiências da minha infância: ver sarcófagos com mais de dois mil anos. Múmias e esqueletos agora acabados. Início de setembro, pior momento do país, eu fora dele, me acabando na terra de Leibniz e de Nietzsche. A Teia ardia junto, sendo carregada numa bolsa negra, feita especialmente para ela, me dando problemas práticos ao mesmo tempo filosóficos nas dificuldades estruturais para instalar o objeto pelas ruas e interagir com o público numa língua estranha, intermediada pelo inglês, esse simplificador universal. O que é isso? Podemos chamar esse trabalho arte? Quer fazer? É simples! Cada ponto um pensamento, cada rompimento de corrente, uma nova amarração, cada apoio uma nova configuração. Eu, no meio da rede negra, em luto. Revirar o que já passou, mesmo que tendo passado recentemente, é mostrar o quão grande pode ser um arquivo e o quanto, por descaso e descuido, mata-se o que eternamente deveria contar o que passou. Meus arquivos não foram esgotados, mesmo quando lembranças importantes tenham sido aniquiladas. Há planos de arquivos que não foram sequer tocados. Essa foi a minha situação: não tocar no arquivo de Leibniz por ser parecida demais com o pensador conciliatório. De fato, minha lua é o seu sol. Ao chegar à Alemanha, ganhei um sol e uma lua replicados em imã, lembranças da catedral de Nuremberg, cidade vital para o desenvolvimento das artes gráficas europeias, mas que, por falta de tempo e dinheiro, ó deu$, não conheci. A cada Igreja, Museu, Sinagoga, um novo arquivo a ser explorado desponta. Não consegui abrir nenhum arcaz, mas acumulei mais de quatro mil imagens para pesquisa. As experiências com a Teia demandam novas produções em vídeo e novos tratamen- 98 tos em imagens bidimensionais. Arquivos geram mais arquivos. A culpa não é de Gutenberg, a prensa móvel só possibilitou mais recombinações. Eu fui convidada, questionada, desenhada, desviada. Junto de Paula, conheci Paulo, um frei capuchinho que nos abençou numa igreja barroca e falou da tragédia do Museu. Paola, Paula, Paulo. Apesar do meu confesso paganismo xamânico daimístico, tenho o nome mais cristão da história dos cristãos. Nome tomado do latim paulus, ou seja, pequeno, por aquele perseguidor de cristãos que se apequenou diante de Deus. Para Nietzsche, São Paulo é o anticristo, o que eliminou Dioniso de Jesus criando uma doutrina, tornando a boa nova do Evangelho uma moral. Para nós, paulinos no nome, a humildade e a cegueira são lições. Se há um deus que nos ofusca são as tramas da história. Sabemos como, a cada vez que uma coisa é contada, vai virando outra coisa. Assim, juntando contas, faço um fio com muitas e muitas peças, crio um novo projeto. Tudo converge na fissura que eu e Paula vivemos pelas contas e colares da República Tcheca. Mais pessoas estão na história. Tudo poderia virar romance, mas mal consigo estruturar um conto, apenas é possível contar algumas peças. Rosários, japamalas, tasbih. Bolinha a bolinha, ponto a ponto, a cada peça um pensamento que se eleva em todas as fés. Em suas práticas similares, o que uma criança entende como colar, pessoas se conectam com o sagrado. Todas as religiões se ligam a uma só calunga. Seja acima, seja abaixo, seja ao oeste pacífico imenso, seja ao oriente por onde sempre ascenderá o sol, deus singular masculino, feminino, triádico monolítico plural é toda a força. Destruições são políticas, jamais religiosas. No fim das contas, quem é destruído é o que acredita sem analisar o problema político perspectivamente. A teia tem entrelaçamentos incontáveis, as perspectivas são múltiplas e as funções beiram aos números irracionais. Mas não interessa, ao texto, o cálculo das derivadas. Não vim aqui escrever o infinito, apenas contar das teias e contas que me ocupam. No inumerável, tudo se entrelaça e as pessoas, ainda que apequenadas ao impessoal de nomes e conjugações, se tornam textos. Tudo o que Leibniz nos deixou 99 acaba impregnando as expressões cujas fórmulas não mais distinguem olhos, bolitas, hipérboles, elipses e volutas. Entre tudo isso, desconto os contextos, assumo os clichês e sigo nas dobras. Referências DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: a lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. DELEUZE, Gilles. Pensamento Nômade In:______. A ilha deserta e outros textos. São Paulo: Iluminuras, 2006, p.351-329. DELEUZE, Gilles. Conversações. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas: Papirus, 1991. DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense,1988. DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976. LEIBNIZ, Gottfried Wilhem. A arte das controvérsias. São Leopoldo, UNISINOS, 2014. LEIBNIZ, Gottfried Wilhem. Discurso de metafísica. Madrid: Alianza Editorial, 1986. NIETZSCHE, Friedrich. O anticristo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. 100 Ensaio-fílmico: notas sobre uma forma audiovisual sem forma Sara Feitosa O ensaio-fílmico ou filme-ensaio é, na atualidade, dentre as expressões audiovisuais, a forma que mais oferece produtos experimentais. Livre de regras e formas pré-estabelecidas, o filme-ensaio herda da forma literária o que Theodor Adorno (2008) identifica como a lei formal mais profunda do ensaio literário, ou seja, a heresia. Este texto, organizado em seis notas, pretende contribuir com a reflexão sobre esta forma audiovisual sem forma. Oferece ao leitor uma compilação, mesmo que abreviada, do debate teórico que permeia o fazer ensaio-fílmico. Não pretende chegar a uma definição absoluta sobre essa forma ou gênero audiovisual. Por se propor ser também um ensaio, assume a imperfeição e as lacunas como parte da construção do pensamento e tem sua origem na necessidade da autora de pensar sobre essa forma de expressão audiovisual que considera das mais instigantes, desafiadoras e que ousa não ter uma forma. A herança do ensaio literário e filosófico O ensaio tem sua origem reconhecida na literatura e é, segundo Phillip Lopate (2007), tanto uma tradição como uma forma, e uma forma bastante diferenciada, alerta o autor. Desde a Grécia clássica essa forma já era utilizada por Cícero, Plutarco e Sêneca. Mas foi com Michel Montaigne e Francis Bacon que se cristaliza como gênero literário. Além da forma literária, o ensaio está presente na filosofia e no audiovisual. Filósofos como Nietzsche, Benjamin, Barthes, Sartre e outros, são exemplos de ensaístas filosóficos. Lopate (2007) comenta, no ensaio La busqueda del centauro: El cine-ensayo, que é mais fácil elaborar uma lista de ensaístas do que definir essa forma multifacetada. 101 Partindo do ensaio literário, Lopate (2007) elenca algumas características do ensaio que podem ser expandidas para a compreensão do filme-ensaio. Para o autor, o ensaio expressa um ponto de vista pessoal. Isso não significa, no entanto, que utilize sempre a primeira pessoa ou que deva ser autobiográfico. Para Lopate (2007), o ensaio rastreia os pensamentos de uma pessoa enquanto ele ou ela tenta desfazer um nó mental. Desse modo, o ensaio pode ser descrito como uma busca que tem como objetivo descobrir o que o ensaísta pensa sobre algo. Segundo Lopate (2007), o motor narrativo que impulsiona essa forma não é: Que opinião se supõe que devo ter sobre X?, mas sim: Que penso realmente sobre X?. Por essa razão, argumenta o autor, “o ensaísta costuma interpretar com frequência o papel de inconformista, atuando contra os princípios predominantes1” (LOPATE, 2007, p.67). Essa caracterização do ensaísta como um inconformista e alguém que rompe com os princípios predominantes, corrobora com o que Theodor Adorno (2008), no texto “O ensaio como forma” – este também um ensaio –, apresenta como explicações do desprestígio do ensaio no âmbito acadêmico. De acordo com Adorno (2008), a pouca importância do ensaio na academia dá-se pelo fato de a ciência privilegiar assertivas universais, de preferência que sejam permanentes e, de acordo com o autor, o ensaio não se submete a essas restrições, ao contrário, constitui-se como algo provisório, descontinuado, tendo a relativização intrínseca à sua forma sendo estruturado de modo como se pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. No ensaio, de acordo com Adorno (2008), o texto único e totalizador, próprio do espírito cartesiano de sistema, cede espaço para o fragmento, algo mais adequado para problematização de temas ou de uma complexidade em que já não cabe uma perspectiva unívoca nem um ideal de certezas livre de dúvidas. Nas palavras de Arlindo Machado (2006, p.4), comentando o texto de Adorno, “ensaio é a própria negação des1 No original: “el ensayista suele interpretar con frecuencia el papel de inconformista, actuando en contra de los principios predominantes”. 102 sa dicotomia, porque nele as paixões invocam o saber, as emoções arquitetam o pensamento e o estilo burila o conceito”. Lopate (2007) lista algumas outras características do ensaio: 1) Um ensaio é uma contínua formulação de perguntas para as quais não se têm que encontrar, necessariamente, as respostas. No caso do ensaio, o processo de construção do pensamento é fundamental e, talvez, o único que importa; 2) O ensaio não é uma mera colagem de citações, embora se possa utilizar de citações para construção de ensaios; 3) O ensaio é um discurso sobre um problema, mesmo que ao fim do ensaio não se consiga chegar a resolução do problema posto; 4) O texto ensaístico tem que transmitir algo mais que informação. Deve ter, antes, um firme ponto de vista pessoal. O ensaio, desde Montaigne, tem conservado algumas qualidades como, por exemplo, o humor, a ironia e o paradoxo. Um princípio da forma ensaio é a contradição, a colisão, daí ser pouco prestigiado no campo científico. De acordo com Adorno (2008), o ensaio não permite que prescrevam seu domínio de competência: a sorte e o jogo lhe são essenciais. Suas verdades são provisórias, efêmeras e cambiantes. Assim, o ensaio descrito por Adorno configura-se como a busca inconclusa e questionadora que não pretende rastrear o eterno no efêmero e sim eternizar o efêmero. Roland Barthes, na sua aula inaugural no Collège de France, em 1977, apresenta-se como um ensaísta e propõe a não separação entre cientistas e ensaístas. Barthes diz que havia produzido tão somente ensaios, “gênero incerto onde a escrita rivaliza com a análise” (BARTHES, 2004, p.7) e explica: “o paradigma que aqui proponho não sugere a partilha das funções: não visa colocar de um lado os cientistas, os pesquisadores, e de outro os escritores, os ensaístas” (p.21). Ao contrário, sugere Barthes: “que a escritura se encontre em toda parte onde as palavras têm sabor” (idem) e conclui que “na ordem do saber, para que as coisas se tornem o que são é necessário ‘o sal das palavras’”. Quando Lopate (2007) diz que o ensaio deve ter algo mais que informação talvez se refira ao sabor do saber e do sal das palavras, de que fala Barthes. 103 Um conceito fugidio Não há consenso entre os pesquisadores sobre uma definição de filme-ensaio. Há quem estabeleça como traço fundamental dessa expressão audiovisual o fato de não se tratar de um gênero, pois desenvolve-se de modo a liberar-se de toda restrição formal, conceitual e social (ALTER, 2002). Já Christina Scherer (2001) caracteriza o filme-ensaio como: obras que apresentam uma visão subjetiva, problematiza a possibilidade de representar a realidade, constituindo-se em estilo híbrido com base em narrativas não lineares e fragmentadas, que não temem níveis de sentidos múltiplos. Jacques Kermabon (2005), por sua vez, menciona os contornos imprecisos e em constante transformação de uma forma cujo interesse provém de algo fugidio, que escapa ou desliza de definições ou caracterizações mais precisas, ou seja, a subjetividade do realizador. Para o autor, esse aspecto fugidio é, ao mesmo tempo, o que se apresenta como interesse e problemático do filme-ensaio. Antonio Weinrichter (2007) propõe alguns requisitos ou características de uma obra artística para que esta seja denominada ensaística. O autor alerta, porém, que essas proposições são provisórias e outras tantas podem ser agregadas a elas. Assim, provisoriamente podemos dizer que uma obra audiovisual constitui-se em ensaio quando: 104 • Não propõe uma mera representação do mundo histórico e sim uma reflexão sobre o mundo, criando no processo de produção audiovisual seu próprio objeto de interesse. O ensaio-fílmico não se limita a representar uma realidade preexistente, ao contrário, o filme-ensaio inventa – no sentido deleuziano – sua própria realidade. • Privilegia a presença da subjetividade pensante do realizador, ou seja, há nos filmes-ensaio uma voz reconhecível e essa voz se distingue da voz off típica do documentário do tipo expositivo (também reconhecido na bibliografia como “a voz de Deus”). No filme-ensaio, a voz que guia o texto fílmico não tem a pretensão de apresentar asserções definitivas ou universais, não informa e nem explica o mundo histórico. O filme-ensaio pensa o mundo! • Mistura materiais e recursos heterogêneos (arquivos, comentários, entrevistas, filmes domésticos, intervenção do realizador, fotografias, animação etc.). Essa mistura acaba por criar uma forma própria ou, como observa Alain Bergala (2000), cria obras singulares. Ensaio-fílmico é documentário ou ficção? Não há garantias que se chegue a uma conclusão ou resposta a essa pergunta no presente texto. Na verdade, seria uma pretensão infundada e de pronto não possível de realizar, posto que há algumas décadas vários autores (WEINRICHTER, 2007; BERGALA, 2000; MACHADO, 2006; CATALÀ, 2000, para citar apenas alguns) têm pesquisado e produzido textos sobre a questão e ainda não apresentam uma resposta definitiva a ela. Aqui a ideia é então retomar o que se fala, mesmo que brevemente, sobre o impasse expresso na pergunta feita. Tudo que orbita em torno da ideia “ensaio” – seja o literário, seja o audiovisual – parece encontrar-se em terreno pantanoso. Weinrichter (2007) contesta a ideia de que o filme-ensaio pode ser definido pelo fato de misturar ficção e documentário. Para o autor, essa é uma forma de dizer que o filme-ensaio não é nem ficção, nem documentário. Porém, observa Weinrichter, é certo que os ensaios que conhecemos não somente utilizam formas fictícias ou reconstituições dramáticas, como também tem a realidade (ou a interpretação de realidade do realizador) como matéria-prima para suas narrativas. Weinrichter (2007) segue sua reflexão ponderando os casos em que o diretor do filme-ensaio se põe em cena, como acontece com Orson Welles em F for Fake (1973) e Filming Othello (1978), e, problematiza, Welles fez ficção nos referidos ensaios? Para o autor, a questão é mais complexa, pois se reduzirmos a discussão a esses termos teríamos que concordar que Michael Moore, Alan Breliner, Nick Broomfield e tantos 105 outros realizadores do documentário performativo também fazem ficção pelo simples fato de aparecerem e protagonizarem seus filmes. O ensaio-fílmico, por outro lado, também não é somente documentário. Weinrichter menciona a dificuldade de incluir figuras como Harum Farocki ou Chris Marker nos cânones do gênero documentário. Stella Bruzzi (2000) lamenta que a árvore genealógica do documentário tenha evoluído de uma relativa marginalização da tradição de um documentário mais reflexivo. Vale lembrar que Bill Nichols (2012, p.63), ao descrever o subgênero documentário reflexivo, diz o seguinte: “chama a atenção para as hipóteses e convenções que regem o cinema documentário. Aguça nossa consciência da construção da representação da realidade feita pelo filme”. Nichols exemplifica o subgênero com filmes como Terra sem pão, de Luís Buñuel (1932) e Reagrupamento, de Trinh T. Minh (1982), filmes que constantemente aparecem em textos teóricos como exemplos de ensaio-fílmico. Para deixar as ideias mais claras, vale olhar para a história do ensaio-fílmico. Weinrichter (2007) não deixa dúvida, ao afirmar que a forma ensaio começa a constituir-se na tradição documental, para ao longo do tempo enriquecer-se com aportes, nunca sistemáticas, oriundas do campo do cinema de ficção modernista autoreflexivo, do cinema experimental e da vídeo arte. Uma das fontes mais longevas dessa confluência entre o documentário e a vanguarda experimental encontra-se nas sinfonias urbana da década de 1920. Os filmes Rien que les heurs (1926), de Alberto Cavalcanti; Berlin, Sinfonia da Metrópole (1927), de Walter Ruttman, e O homem da Câmera de filmar (1929), de Dziga Vertov, são citados por Weinrichter como um primeiro sinal da vontade de ver o documentário para além da sua mera condição de índice do real. Embora seja possível perceber, com essa breve discussão, que o filme-ensaio utiliza elementos da ficção e que tem sua origem no gênero documentário, não parece coerente afirmar que essa forma seja documentário ou ficção. O filme-ensaio é um híbrido, mesmo que isso não resulte muito esclarecedor. 106 A vanguarda, o experimental e a vídeo-arte como referências Josep M. Català (2000), ao rastrear as origens do filme-ensaio, aponta o início do século XX, precisamente as vanguardas da década de 20, como fonte da ruptura da estrutura dramatúrgica da comunicação que resultaria em formas inovadoras como o filme-ensaio. Ainda segundo Català, as vanguardas nunca chegaram a assumir que era o movimento vanguardista que originava a falência generalizada dos parâmetros artísticos e estéticos vigente à época. Para Català (2000, p.81), a relação do filme-ensaio com as estratégias vanguardistas “começa onde a experimentação formalista termina e o jogo é mais ou menos inconsequente com os parâmetros estéticos2”. É no ponto em que o público deixa de ser mero espectador do crescente processo de fragmentação do universo neoclássico e começa a relacionar-se de maneira diferente com os resultados desse processo, que o gesto da vanguarda pode começar a ser considerado o germe do filme-ensaio, argumenta o autor. O filme-ensaio tem uma série de variações que se originam das experimentações dos realizadores. Como observa Bergala (2000), cada filme-ensaio é um filme-ensaio, no sentido de ser singular. Essa singularidade é identificada pelo autor na constatação de que um filme-ensaio não pode servir de modelo de nada. E, a cada vez que se faz um filme-ensaio, se experimenta sua forma, nuances e matizes diferentes. É no traço experimental do ensaio fílmico que nasce subgêneros como o filme-diário, inaugurado pelos vários “volumes” de Diaries, notes and sketches, de Jonas Mekas (19681985). Como reflete Weinrichter (2007), a endogamia dos estudos vanguardistas e o traço experimental ao produzir filmes, como os de Mekas, que se contrapõem às formas dominantes do fazer cinema, “parece dificultar que estes tipos de trabalhos se ponham em relação com um documentário sub2 No original: “empieza precisamente donde termina la experimentación formalista y el juego más o menos intrascendente con los parámetros estéticos”. 107 jetivo3” (2007, p.26). Weinrichter (2007) observa, ainda, que videoartistas e realizadores procedentes do mundo artístico tendem cada vez mais a produzir obras de caráter ensaístico. Dentre os exemplos citados pelo autor estão No sex last night, de Sophie Calle (1992), e November, de Hito Steyerl (2004). Ao reiterar a dificuldade de definição do filme-ensaio, Weinrichter (2007) afirma que o caráter híbrido desse tipo de obra seja, talvez, das poucas características que lhe cabe apontar. E conclui que o filme-ensaio pode ser qualificado como uma confluência de várias tradições que passam pelas vanguardas artísticas e experimentais, pela vídeo-arte, mas também pelo documentário. Uma forma audiovisual da “escrita de si” O filme-ensaio, ao expressar uma voz pessoal e explorar temas sociais (BLÜMLINGER, 2007), pode ser entendido como um modo de constituição de subjetividade, uma prática do cuidado de si. Christa Blümlinger descreve o ensaísta fílmico como um “vagabundo intelectual” que leva o espectador por caminhos desconhecidos. O ensaísta está constantemente produzindo auto-experimentação para pensar e expressar o “eu” nos seus ensaios. Embora não seja sempre autobiográfico, como observa Lopate (2007), entende-se aqui que ele é sempre a expressão da subjetividade do realizador. Aqui vale esclarecer o que é neste texto entendido por subjetividade. Não diz respeito à subjetividade como pensada por Platão (2002), ou seja, como um produto da relação entre o homem e um princípio geral de conhecimentos sobre o mundo. Também não é como pensada por Santo Agostinho (2017), para quem a subjetividade é uma construção entre o homem e o mundo que existia dentro dele. Aqui a subjetividade é pensada como em Michel Foucault (2004; 2006), que a entende como uma estratificação de saberes que se impunha ao sujeito de fora para dentro, sem que 3 No original: “parece dificultar que este tipo de trabajos se ponga en relación con un documental subjetivo”. 108 esse sujeito sequer se desse conta disso. Buscando entender “quem somos” e “como nos constituímos no que somos”, Foucault escreve uma genealogia do sujeito e, nos últimos escritos, detém-se em pensar modos de resistência aos processos de subjetivação que circulam na sociedade. Foucault volta aos gregos para buscar elementos que auxilie o homem moderno a fazer da existência uma obra de arte e constituir modos de subjetivação, por meio da filosofia, que contrapõem os modelos impostos pela sociedade. É importante lembrar que para Foucault a filosofia é um modo de vida, é um conhecimento para ser praticado e se pauta pela experiência, pelas práticas, e visa a transformação, ou, nas palavras do autor, “sacudir as evidências”, desalojar aquilo que é familiar. No volume dois da “História da sexualidade: o uso dos prazeres”, Foucault (2006) explicita sua ideia sobre a função da filosofia. “O que é filosofia hoje em dia [...] senão o trabalho crítico do pensamento sobre o próprio pensamento?” (p.13). A filosofia seria, segundo o autor, uma atividade que consiste em tentar “saber de que maneira e até onde seria possível pensar diferentemente em vez de legitimar o que já se sabe” (FOUCAULT, 2006, p.13). É exatamente na confluência desse conceito de filosofia e a noção das práticas do cuidado de si que se entende que o filme-ensaio pode constituir-se em expressão da escrita de si. Vale esclarecer que o cuidado de si, como explica Foucault (2004), consiste em um conjunto de práticas filosóficas cujo objetivo é o sujeito pensar em si para transformar-se, para constituir-se como sujeito livre. Dentre as práticas do cuidado de si está a escrita de si e, nesse tipo de escrita, entram as cartas, mas também o ensaio. Para o autor, o ensaio é entendido como experiência modificadora de si no jogo da verdade. E “não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação” (2006, p.13). O ensaio “é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma ascese, um exercício de si, no pensamento” (2006, p.13). 109 Quando o filósofo propõe o cuidado de si como práticas da liberdade, ele mira na própria resistência aos modos narcísicos de princípio neoliberalista do sujeito “empresário de si mesmo”. O cuidado de si e a escrita de si constituem-se em prática reflexiva para contrapor-se ao modo de subjetivação capitalista que pode ser sintetizada na ideia de “empresário de si mesmo”. As práticas propostas por Foucault que resultam em uma ação sobre si para transforma-se, pela reflexão, no pensar sobre si, é também entendida pelo filósofo como um ato de criação – nesse caso, a criação de um modo de vida. Gilles Deleuze (1999), na conferência proferida em 1987, “O ato de criação”, relaciona o criar a uma necessidade. “É preciso que haja uma necessidade, tanto em filosofia quanto nas outras áreas, do contrário não há nada. Um criador não é um ser que trabalha pelo prazer. Um criador só faz aquilo de que tem absoluta necessidade” (DELEUZE, 1999, p.3). Entende-se que a voz pessoal que caracteriza o filme-ensaio, de que fala Weinrichter, Català, Bergala, é a expressão da necessidade que impulsiona a criação mencionada por Deleuze. Embora nem tudo apontado na bibliografia do filme-ensaio possa ser identificado como uma escrita de si, acredita-se que a escrita de si pode ser uma característica singular para ensaios fílmicos. Isso porque todo filme-ensaio constitua-se como uma proposição do ensaísta sobre o mundo e sobre o próprio realizador. O filme-ensaio, como afirma Bergala (2000), é um tipo de obra em que o realizador utiliza recursos próprios para iluminar uma perspectiva intransferível, que nunca poderia servir de modelo genérico. O filme-ensaio surge quando alguém ensaia pensar, com suas próprias forças, sem a garantia de um saber prévio, um tema que se constitui como tal no processo de produção do pensamento e do filme (BERGALA, 2000). O ensaísta inventa o tema e o objeto de seus filmes e quando o faz é por necessidade (DELEUZE, 1987), o faz como uma proposição e um modo de constituir-se. 110 A montagem como expressão do pensamento As formas audiovisuais contemplam, por definição, uma banda de imagem e uma banda sonora. Segundo Weinrichter (2007), nessa definição há um obstáculo posto para a apreciação do filme-ensaio. A dificuldade, de acordo com o autor, está no fato de que nesse tipo de obra o espectador deve ouvir a voz do ensaísta, em um meio que é visível. É nesse sentido que o autor afirma que o ensaísta deve mostrar em vez de contar. Para superar o obstáculo apontado, Weinrichter (2007, p.27) segue: “podemos pensar a imagem, pensar com a imagem, ou construir [...] uma imagem pensante4”. O autor argumenta que o comentário verbal e a montagem são técnicas que viabilizam a expressão de imagens de pensamento no filme-ensaio. Vale ressaltar que o comentário verbal, a voz do realizador, é parte fundamental dessa concepção de filme-ensaio defendida por Weinrichter. Lopate (2007), é outro autor que defende o mesmo ponto de vista. Inclusive, Lopate é categórico ao afirmar que – na sua opinião – a compilação de imagens sem a retórica verbal do diretor não pode ser classificada como filme-ensaio. Ponto de vista discutível, mas que não trataremos aqui. Weinrichter (2007) defende que a montagem entre palavras e imagens do filme-ensaio não segue o mesmo princípio do cinema convencional: “a sequencialidade que estabelece não cria uma continuidade espaço-temporal e causal, mas sim uma continuidade discursiva5” (p.28). Outro aspecto da montagem do filme-ensaio, relacionado com a ideia de continuidade discursiva, é a diversidade de materiais imagéticos e sonoros de que o ensaísta pode dispor para construção de um filme-ensaio. Arquivos, entrevistas, presença do realizador, reconstituição ficcional etc, constituem possibilidades de articulação na retórica do filme-ensaio. Weinrichter (2007, p.28), afirma: “esta dialética 4 No original: “podremos pensar la imagen, pensar com la imagen, o construir [...] una imagen pensante”. 5 No original: “La secuencialidade que estabelece no crea una continuidade espacio-temporal y causal, sino una continuidade discursiva”. 111 de materiais é a expressão [...] do princípio básico ensaísta: a montagem de proposição6”. Para o autor, é pela montagem de proposição que se pode voltar a ver a imagem, desnaturalizar sua função narrativa e observacional que a constitui na origem, e mirar a imagem como representação, não reduzi-la somente ao que representa. Discutindo o mesmo tópico, ou seja, montagem no filme-ensaio, Blümlinger (2007), entende que o ensaio fílmico é resultado de um movimento que justapõe duas ações do realizador: 1) uma visão radical do realizador que busca romper com o sistema de percepção convencional no uso das imagens; 2) Essa ruptura se expressa por meio de um trabalho conceitual de produção de figuras de pensamento, imagens mentais (DELEUZE, 2018). As imagens mentais, como sugere Deleuze, se inscrevem em uma relação direta com o pensamento fazendo dos objetos exteriores objetos de pensamento, remetem a “atos simbólicos”, a “sentimentos intelectuais”. Um exemplo desse tipo de montagem é apontado por André Bazin, em um artigo sobre Lettre de Sibérie, de Chris Marker (1958), e, descrito por Blümlinger (2007), como um efeito sinestésico dos encadeamentos imagem-som. Com a montagem “de ouvido e olho”, definido por Bazin como horizontal, observa-se uma nova entidade audiovisual: a imagem não remete necessariamente às imagens que a precedem, nem àquelas que a seguem de imediato e, sim, em certo modo lateralmente, àquilo que se diz no comentário do realizador. Assim, argumenta Blümlinger (2007, p.52), “a articulação entre estes dois níveis em vez de completar a enunciação a confunde produzindo um excesso de significados”. É nesse sentido que os ensaios fílmicos têm algo de provocador, por vezes até destrutivo, como observa Blümlinger. Os ensaístas experimentam a rebelião contra o desvio das imagens documentais, do pitoresco, do espetacular e duvidam da univocidade da imagem, conclui a autora. No contexto da produção ensaística, a imagem não é mais a imagem “lida”, no sentido eisensteiniano que, através 6 No original: “Esta dialéctica es la expresión a mayor escala del principio básico ensayístico: el montaje de proposiciones”. 112 da música, é dirigida em uma direção determinada e irreversível, nem tampouco uma imagem como no princípio do cinema sonoro, em que a linguagem era vista como algo dependente da imagem. No contexto contemporâneo, especialmente no filme-ensaio, uma imagem implica uma nova leitura das coisas, enquanto o ato da palavra se converte em uma imagem acústica autônoma. Não há a preocupação ou o compromisso de um encadeamento e sincronização imagem-palavra. A montagem no filme-ensaio embaralha os possíveis sentidos de imagens e palavras possibilitando, muitas vezes, uma polifonia de sentidos. Pier Paolo Pasolini, em 1963, como o experimento La rabbia, aponta para o desejo dos ensaístas, ou seja, inventar um novo gênero a cada filme, que possa ser ao mesmo tempo “um ensaio”, no sentido de ensaiar fazer algo; que possa ser poético, no sentido de que deixe expostos buracos de sentidos, lacunas, que, enfim, não explique tudo, e, por fim, que possa ser ideológico, que inquiete, que desaloje aquilo que é familiar. Referências ADORNO, Theodor. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I. São Paulo: Ed. 34, p.15-45, 2008. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Peguin Companhia, 2017. ALTER, Nora M. Projecting history. German non-fiction cinema 19672000. University of Michigan Press: Ann Arbor, 2002. BARTHES, Roland. Aula. São Paulo: Editora Cultrix, 2004. BERGALA, Alain. Qu’est-ce qu’un film-essai? In: ASTRIC, S. Le film-essai: identification d’un genre (catálogo). Paris: Bibliothèque Centre Pompidou, 2000. BLÜMLINGER, Christa. Leer entre las imagenes. In: WEINRICHTER, Antonio. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Navarra: Gobierno de Navarra y Museo Reina Sofia, 2007, p.50-63. BRUZZI, Stella. New documentar: a critical introduction. New York: Routledge, 2000. 113 CATALÀ, Josep M. El film-ensayo: la didática como un actividad subversiva. In: Archivos de la filmoteca, Valência, n.34, 2000, p.79-97. DELEUZE, Gilles. Cinema 1: imagem-movimento. São Paulo: Editora 34, 2018. DELEUZE, Gilles. O ato de criação. Folha de S. Paulo, São Paulo, jun.1999.Caderno Mais! FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: o uso dos prazeres. São Paulo: Graal, 2006. FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2004. KERMABON, Jacques. Pensar en cinema. In: BREF – le magazine du court metrage, dossier “Le essais cinema-fotographiques”, Paris, 2005. LOPATE, Phillip. A la búsqueda del centauro: el cine-ensayo. In: WEINRICHTER, Antonio. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Navarra: Gobierno de Navarra y Museo Reina Sofia, 2007, p.66-89. MACHADO, Arlindo. O Filme-Ensaio. Intermídias, 5/6. 2006. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas (SP): Papirus, 2012. PLATÃO. Diálogos VII: suspeitos e apócrifos. São Paulo: Edipro, 2011. SCHERER, Christina. Ivens, Marker, Godard, Farman. Erinnerung in essayfilm. Munich: Wilhem Fink Verlog, 2001. WEINRICHTER, Antonio. Un Concepto fugitivo. Notas sobre El Film-Ensayo, In: ______. La forma que piensa. Tentativas en torno al cine-ensayo. Navarra: Gobierno de Navarra y Museo Reina Sofia, 2007, p. 18-48. 114 Audiovisuais citados F for Fake (1973), Orson Welles Filming Othello (1978), Orson Welles Terra sem pão (1932), Luís Buñuel Reagrupamento (1982), Trinh T. Minh Rien que les heurs (1926), Alberto Cavalcanti Berlin, Sinfonia da Metrópole (1927), Walter Ruttman O homem da Câmera de filmar (1929), Dziga Vertov Diaries, notes and sketches (1968-1985) Jonas Mekas No sex last night (1992), Sophie Calle November (2004), Hito Steyerl Lettre de Sibérie (1958), Chris Marker La rabbia (1963), Pier Paolo Pasolini 115 Imaginários e tecnologias do silêncio no cinema Suzana Kilpp Magda Rosi Ruschel Introdução Em suas teses sobre a história, Benjamin (1985) faz alusão a um jogo de xadrez no qual há um jogador fantoche chamado materialismo histórico. Desde tal perspectiva o autor nos convoca a refletir sobre uma história envolvida com uma outra história; e sobre uma história – desenrolando-se no tabuleiro – da qual sumiram da vista dos jogadores algumas peças-chaves do jogo, as quais, porém, talvez pudessem ter configurado historicamente o jogo (e seus resultados) em outros termos. Assim, com vistas ao entendimento do dito havido e do possível de ter sido, ele aponta para a necessária tarefa de “escovar a história a contrapelo” (BENJAMIN, 1985, p.225). Para o autor, “articular historicamente o passado não significa conhecê-lo ‘como de fato foi’”. Significa nos apropriarmos de uma reminiscência “tal como ela relampeja no momento de um perigo” (BENJAMIN, 1985, p.224). Para Gagnebin (1994, p.117), trata-se da “necessidade de outra escrita da história e de uma outra história”. Assim, mereceriam ser considerados como “verdadeiros” tanto o instante da história que se imobiliza pelo pensamento quanto o desenrolar infinito dos instantes do tempo que nunca cessa de desenrolar-se. Nessa dialética, é possível perceber, com paciência e esforço, as cesuras narrativas, que precisariam ser mais bem auscultadas. Conforme Gagnebin (1994, p.115), interpretando Benjamin, “essas paradas e esses silêncios são outros tantos signos daquilo que deve ou quer ser negado pelo historiador oficial ou, num mecanismo muito próximo, pelo eu consciente que se edifica sobre o recalque”. Das Ausdruckslose (o sem expressão) interrompe a narração, ou por excesso ou por carência de informação dialógica, e causa estremecimento nos sentidos enunciados para o verdadeiro da história (narrativa). Assim, para Gagnebin, em sua apropiação de Benjamin, seria de fundamental importância o estremecimento provocado pelo “sem expressão”. Para a autora, esse é o gesto de ruptura salvadora objetivado por Benjamin, que também será o do intérprete alegórico, do tradutor e do historiador, gesto que “é definido aqui como uma fratura inerente à linguagem mesma, particularmente à linguagem poética: é a paragem e o sopro marcados pela cesura que escande o verso ao interrompê-lo” (GAGNEBIN, 1994, p.118). Assim, silêncio como cesura ou recalque da linguagem sonora, encontramos, na técnica do cinema, a música (as trilhas musicais), as vozes (as falas das personagens e dos narradores em off) e os ruídos (os sons emitidos por fontes ou objetos sonoros que atuam na diegese do filme, ambientados dentro e fora do quadro em que se desenrola a ação entre as personagens e que não é o de suas vozes nem a de um narrador em off). Esses ruídos, advindos historicamente do rádio e da TV, são aqueles que acentuam a movimentação das personagens em cena pelo som de seus passos, por exemplo, ou pelo de sua respiração etc. Então, o que é o silêncio, ou, melhor, e indo diretamente ao ponto, como se produzem efeitos de silêncio em cada uma dessas manifestações/expressões sonoras em um filme? Quando e como ele é cesura ou gagueira? Ou ainda, ao contrário, quando e como ele é tecnicamente produzido para expressar paragem e/ou sopro? E o que resulta dessas interrupções (ou silenciamento) do som audível?1 De acordo com Wisnik (1989), o som audível é uma ondulação acústica variável, tanto no tempo de sua produção quanto no de sua escuta. Às vezes, resulta de um encadeamento sucessivo de eventos sonoros; noutras, é um evento que resulta da simultaneidade de várias ondas sonoras. Para o autor, qualquer aparição do som é um misto de intensidade, volume, timbre e duração, essa que é a unidade de tempo que consegui1 Quando dizemos isso estamos propondo que o silêncio não é a ausência de som, mas uma de suas formas ou manifestações, acidental ou programada/desenhada. 118 mos medir mentalmente sem dividi-lo. O autor enfatiza que a duração sonora é uma unidade mental, relativamente variável de pessoa para pessoa, e lembra que os defensores da música in natura dizem que ela é mais importante do que “o tempo mecanizado do metrônomo e a cronometria do segundo” (WISNIK, 1989, p.17). Assim nos parece que, de um lado Wisnick enfatiza que o som só existe no tempo desenrolando-se (o que é meio óbvio), e que (o que não é tão óbvio) a percepção de sua vibração é subjetiva. No entanto, ainda segundo o autor, há um padrão vibratório construído que “condiciona todas as percepções, funcionando como um sinal de sincronização que comandaria o andamento da nossa sensação de tempo [desenrolando-se]” (WISNIK, 1989, p.21); e os sons culturalmente afinados estarão sempre se confrontando e dialogando com o ruído e com os efeitos de presença do silêncio, ritmando o que ouvimos pela alternância entre a repetição e a diferença, o mesmo e o diverso, o contínuo e o descontínuo. Para exemplificar a padronização da vibração sonora que afina culturalmente as vibrações de sons, ruídos e silêncios, Wisnik recorre às transmissões radiofônicas, nas quais “o silêncio é um espaçador que permite que um sinal entre no canal. O ruído é uma interferência sobre esse sinal. O som é um traço entre o silêncio e o ruído” (WISNIK, 1989, p.30). Para exemplificar os tensionamentos do padrão, Wisnik recorre à música intitulada 4’33”, de John Cage, da qual faz parte, quando interpretada, uma longa pausa na música (a princípio sonoramente afinada culturalmente) desenrolando-se, pausa que pode ser entendida tanto como ruído quanto como silêncio. Na opinião do autor, algumas obras (dentre elas a exemplificada), “operam mais como uma marca, uma dobra sintomática e irrepetível, frisando enigmaticamente o campo de escuta possível”. Essas seriam obras que recorrem ao “abandono ao tempo, ao puro movimento do tempo”, e nas quais o silêncio atinge o grau zero do som. Nelas, os compositores visariam “à delicadíssima apresentação de quase-sons (quase ruídos) em oscilações rítmicas, em um tempo onde despontam pulsações e não-pulsações, como se a música buscasse devolvê-las a um estado de indistinção entre ambas (WISNIK, 1989, p.47). 119 Seguindo o autor, pode-se dizer, então, que o silêncio suspende e afina a escuta de sons e ruídos do mundo, que no mais das vezes encontram-se superpostos e embaralhados. Assim, escutar o silêncio implica acionar uma reserva de atenção da memória com vistas a uma escuta diferenciada de algo. À sua vez, Cabrera (2006, p.389) insiste em que “a distinção mudo/sonoro não é essencial à questão dos limites da linguagem das palavras. A linguagem cinematográfica consegue dizer além da linguagem de palavras, tanto no cinema mudo como no sonoro e falado”. Em ambos os casos, o mudo e o sonoro do cinema parecem afetar a dicotomia entre dizível/mostrável e dizível/silenciável, o que é uma contribuição importante para o entendimento do som do silêncio na experiência com imagens fílmicas, pois possibilita entender que, entre outras coisas, por exemplo, e paradoxalmente, “o cinema mudo inaugurava o dizer e o cinema sonoro o calar” (CABRERA, 2006, p.374, grifo do autor). Desde a perspectiva da técnica, verificamos que em muitos manuais de eletroacústica consultados não há referências ao silêncio. Explica-se o fato talvez porque os microfones, em uma câmara anecoica, por exemplo, detectam e gravam até a sonoridade de quaisquer vibrações existentes na paisagem e que, por conseguinte, no atual estágio da técnica, em qualquer paisagem – e mesmo em ambientes acusticamente isolados – não é possível captar e gravar imagens absolutamente silenciosas. Entretanto, esses manuais bem que poderiam dizer, no mínimo, que o silêncio depende da técnica e que a técnica pode produzir efeitos técnicos de silêncio, porquanto todos nós, ouvintes, sejamos surdos ou não, em algumas específicas e pessoais circunstâncias experimentamos a presença de algo a que chamamos de silêncio. Se ele de fato não existe no mundo da vida por que, apesar disso, ele tem sido admitido e pensado por pesquisadores das mais diferentes áreas do conhecimento? O que é, em última análise, essa coisa2 a que insistimos 2 Bergson (passim) insiste em usar o termo coisa para designar qualquer tema, assunto ou objeto, material ou imaterial, de que esteja tratando. Literalmente, ele diz que todas as coisas têm dois modos: o modo de ser (dessa coisa e não de outra) e o modo de agir (dessa coisa e não de outra). 120 em chamar de silêncio? A que mundo ou referência de mundo está circunscrita nossa sensação de o silêncio existir de fato? E voltamos aos teóricos. Por que, Sontag (1987), por exemplo, sugere tratar-se de uma forma estética? Por que Dubois (2004) afirma que o silêncio mostra e engendra, por meio de seus efeitos, a imagem-memória? Por que Wisnik (1989) associa o silêncio a um espaçamento entre o som e o ruído radiofônico? Por que Cabrera (2006) diz que o silêncio é impossível no cinema? O que esses autores presumem ser o silêncio para dizer o que dizem? Sejam quais forem as respostas às questões assim formuladas, entendemos haver: (a) uma estreita relação entre as tecnologias e os imaginários de silêncio, imaginários esses que contradizem as tecnologias e vice-versa; (b) uma estreita relação entre a visada fenomenológica (bergsoniana, no caso deste artigo) e uma visada tecnocultural (benjaminiana, no caso deste artigo), visadas essas aparentemente contraditórias que poderiam ser, talvez, e no entanto, articuladas na perspectiva de o silêncio ser uma experiência sensível do mundo da vida e um construto das mídias. Inventando o silêncio em imagens fílmicas São poucos os estudos que tematizam os construtos de silêncio no desenho do som no cinema. O silêncio como construto ou estética também pouco comparece nos estudos do som na comunicação. Entretanto, já se nota a ampliação dos estudos do som no audiovisual, especialmente no que concerne à forma de gravar, editar e mixar, tanto nos modos analógicos de (re)produção do som quanto nos modos digitais de modelagem do som. Seja sob a prerrogativa da análise técnica (e significante) do inaudível, ou de seu entendimento como ruído sonoro (técnico), o silêncio construído em imagens fílmicas segue desafiando nosso entendimento sobre: Como? Por quê? Com que sentido ou função? Dentre outros (não muitos), encontramos dois textos que interessam bastante ao que nos propomos discutir aqui. 121 Um deles é o artigo de Marcelo Ikeda (2012), no qual o autor objetiva investigar as camadas sonoras de três filmes do cinema brasileiro mais recente que o instigaram a pensar o silêncio como poética do sublime e/ou como estética minimalista, evitando, assim, a contingência de associar as paisagens sonoras tão somente à narrativa. O outro é o artigo de Rodrigo Carneiro (2010), no qual o autor tece considerações sobre as diferentes técnicas que criam efeitos de silêncio e que agem na percepção significante das imagens do filme “Cinema, Aspirinas e Urubus”. Assim, o autor avalia, por exemplo, como o monofônico, o estereofônico e o dolby ingerem sobre as sensações de silêncio nesse filme (e, por extensão, com certeza também em outros). Retrocedamos um pouco no raciocínio dos argumentos propostos no artigo. No início pensávamos o silêncio como ausência de som, ou como um seu antônimo. No curso da pesquisa, porém, esse pensamento foi sendo gradativamente abandonado, especialmente quando nos demos conta de que ele não se coadunava com a fenomenologia bergsoniana que queríamos adotar, por empatia, como perspectiva epistemológica. Para Bergson, o pensamento filosófico e científico é condicionado, pela necessidade de agir (resolver problemas), a assumir duas formas de ilusão: a de que se pode chegar ao movente pelo imóvel e de que se pode chegar ao Ser a partir do não-Ser. É a segunda ilusão que tínhamos no início: a de achar que o não-Som (ou seu antônimo) fosse um outro Ser – o silêncio. Isso foi sendo desmistificado quando nos demos conta de que o progresso da técnica vem ampliando o espectro audível de sons e de ruídos, tanto os do ambiente quanto os das máquinas. E, também, ao mesmo tempo, fomos percebendo haver uma tendência nos estudos do som a relacionar o silêncio a um efeito, a uma sensação ou a uma estética. Seguindo em direção à técnica, uma das questões que se colocava era: como é, hoje, no atual estágio da tecnocultura, a escuta de um audiovisual, na “sala escura, a tela grande, a comunidade silenciosa do público e a luz às suas costas” (DUBOIS, 2004, p.44)? Consoante com Dubois, a propagação das ondas luminosas implica e acarreta, nos domínios percepti- 122 vos do espectador, um agenciamento comparável a uma “sobrepercepção e submotricidade”. É sob a preponderância da propagação da luz que reconhecemos o cinema em seu estado de origem, “o chamado efeito fi, o efeito tela, do investimento psíquico e do fenômeno da dupla identificação, com os mecanismos do movimento e do pensamento, [...] com a ‘bolha’ da sala escura do cinema” (DUBOIS, 2004, p.46). Lembremos, porém, que no início do cinema, quando o filme ainda era tecnicamente apenas visual/visível, na sala de projeção já se escutavam sons que acompanhavam as imagens desenrolando-se na tela. Eles não vinham das imagens projetadas, mas, sim, das máquinas ruidosas de projeção, das manifestações ruidosas dos espectadores e da música que se tocava ao vivo durante as projeções, desde a executada pelas orquestras situadas no fosso do teatro até a das pianolas (quando se tornou muito caro pagar as orquestras e músicos ao vivo). Ou seja, pode-se dizer que, então, naquele momento, não havia como serem escutados pelo espectador nem o som nem o silêncio (mudez do som) dos filmes a que ele assistia. Mas foi escutado dentre outros, e em especial, o som de fosso, termo que foi estendido para designar o som da pianola, e que aqui estendemos também aos ruídos do ambiente da espectação do filme: é um termo que dura na memória e que age sobre a imaginação da técnica e da estética do cinema, e que participa de um imaginário coletivo do que seja som no/do cinema. Vale sugerir que as ondas sonoras que vibravam e reverberavam ao fundo e à margem da materialidade visível dos filmes no som do fosso ainda agem sobre uma ilusão persistente de sons e silêncios que “escutamos” em um audiovisual – imaginário esse que também age sobre o desenho do som no cinema, tanto é que o termo (som de fosso) segue designando uma técnica e um efeito desejado pelos designers. Flávia Costa (2007) assinala que, ao revermos as imagens do primeiro cinema, tendemos a acentuar as descontinuidades narrativas e as narrativas confusas; as cenas naturalistas contrastando grotescamente com as artificiais; o uso lento ou rápido demais das montagens; a sobreatuação dos atores etc. A autora, porém, adverte que esse conjunto de “anoma- 123 lias” da linguagem cinematográfica, defeitos ou limitações técnicas dos seus aparatos devem ser entendidos “como indícios de uma referência cultural heterogênea, ligados ao teatro popular e à literatura barata [assim] como à cultura geral pequeno-burguesa e às pregações religiosas” (COSTA, 2007, p.17). As estranhezas que hoje nos causa o cinema mudo nos instigam a pensar em uma forma de silêncio que resiste ao padrão hegemônico vigente, principalmente a partir do cinema clássico, e que age, desde então, como elemento da estética e da linguagem cinematográfica, e nem só do cinema. Chamam a atenção, por exemplo, os “quadros vivos”, resgatados por Costa (2007, p.19), “encenados em sequência e sem nenhuma conexão narrativa ou temática entre si” e que herdaram do estilo das exibições da lanterna mágica o caráter anárquico dos espetáculos de variedades. Os quadros vivos servem para lembrar as ideias já havidas de um cinema que mostrasse, por meio de trucagens e de montagens peculiares, “as fronteiras entre ficção e documentário, entre sério e ridículo, entre truque e realidade” (COSTA, 2007, p.19). Como construtos de obras in process, acontecendo, se lhes acrescentava um comentador/narrador off (uma voz) e uma música (uma trilha musical) presumidamente adequados ao público presumido dos locais da exibição. Essas obras não escondiam as “imperfeições” (gagueiras da língua, talvez, num certo sentido) no encadeamento da narrativa, e, muitas vezes, o som era justamente o elemento que disfarçava ou evidenciava as “anomalias” da montagem visual. No entanto, nos estudos já publicados pouco se disse ou problematizou sobre esse uso do “som do silêncio” para acobertar eventuais anomalias (agramaticalidades) no encadeamento das narrativas com vistas a torná-las compreensíveis ao espectador. E não é demais lembrar que as lacunas havidas nos quadros e nos planos de um filme acionam imagens-lembrança do espectador, que é quem, ao final, completa as imagens e sons que são apenas insinuados na montagem (pois quase sempre se trata de cortes e recortes de sons e imagens). É ele que decide, assim, muitas vezes, sobre a razoabilidade dos sentidos encetados nas narrativas fílmicas. Ou seja, também as lem- 124 branças de sons e silêncios ingerem e “corrigem” os “erros” eventualmente havidos. De acordo com Dubois (2004), o cinema sempre foi maquinação e maquinaria, experiência psíquica e fenômeno físico-perceptivo. Desde a sonorização dos filmes, a maquinaria produz imagens e sons que distribuem afetos, tanto no contorno de superfícies quanto na propagação de ondas sonoras no tempo, numa dialética entre a potência das imagens e dos sons do filme e a espessurização da sensação, da emoção ou da inteligibilidade do espectador, que é acionado por eles e por seu próprio pensamento sensorial, pensamento esse que está relacionado a lembranças cognitivas pessoais já registradas na memória. Segundo Eisenstein, a mobilização do pensamento sensorial é resultado possível de um método do cinema, alcançada quando a arte consegue subjugar os movimentos do espectador aos movimentos da montagem conflitiva de imagens e sons empreendida em um filme; para “dominar este método, deve-se desenvolver em si mesmo um novo sentido: a capacidade de reduzir percepções visuais e auditivas a um denominador comum”. (EISENSTEIN, 2002, p.31). Interpretando o cineasta e teórico russo, a redução das percepções visuais e auditivas a um denominador comum, sob a lógica orgânica da natureza e sob a lógica racional das máquinas, quando as duas lógicas se encontram na colisão dos planos de um filme, instaura-se uma dialética que é própria da forma artística, e a ação concomitante das duas sobre o espectador confere um dinamismo – singular a cada espectador – ao filme assistido, em que os intervalos (lacunas) agem para produzir tensões e inventar coisas que, de fato, não estão no filme. De acordo com Eisenstein (2002, p.212), há formas de comunicar algo que existem em background no enredo de um filme, formas de montar que influem profundamente na plasticidade expressiva da cena. Uma delas é destacar detalhes, sutilezas e, por que não, histerias silenciosas e laconismos cinemáticos, que, por conta das tensões que criam, “em muitos casos literalmente antecipam não apenas os temas, assuntos e suas interpretações, mas os seus métodos, que sempre nos 125 parecem tão ‘puramente cinemáticos’, sem precedentes e criados pelo cinema” (EISENTEIN, 2002, p.199). Hoje, há mais e outras maneiras de produzir, gravar e mixar os sons, muitas delas advindas da televisão, que inventou outros tipos de som, silêncio e ruído, em grande parte porque, segundo Dubois (2004, p.47), as imagens televisivas sofrem de uma espécie de amnésia: “a imagem-tela ao vivo da televisão, que não tem mais nada de souvenir (pois não tem passado), agora viaja, circula, se propaga, sempre no presente, onde quer que seja”. Desde suas primeiras aparições, a televisão assumiu para si a prioridade da enunciação verbal sobre os sentidos do conteúdo que veicula, e enfatizou no imaginário tecnocultural a oralidade do homo loquens. Diz Dubois (2011, p.211): “A televisão, antes de tudo, fala. E aquele que fala na televisão está in, diante da imagem, na imagem ou, antes dela. Muito raramente, porém, por detrás dela”. Continua o autor: “a voz over clássica, assim como o espaço off, são típicos de cinema. A televisão carece tanto de profundidade quanto de mistério. Na sua tela, tudo se achata ao mesmo tempo” (DUBOIS, 2011, p.211). Duas importantes consequências disso são que o silêncio é banido do “ao vivo” e que o homo loquens passa a ser representado por experientes vozes radiofônicas, que ressaltam certos timbres nos quais se verifica “uma ausência de modulações (intensidades) nos sons” (KILPP, 2003, p.60). Se, por um lado, a TV inventa a mixagem com a voz em primeiríssimo plano, na superfície e em detrimento de uma sonoridade com mais profundidade, por outro, o mascaramento sonoro é até agora a solução encontrada pelos designers para discretizar o natural e inevitável ruído dos estúdios de gravação, o chiado proveniente das fitas magnéticas, o ruído de uma radiofrequência que não respeita os limites físicos de uma sala de som etc. Assim, para se “ouvir” o silêncio em uma cena televisual, é preciso inserir na mixagem alguns sons que abafem os ruídos já citados, da gravação; e, também, do lado do receptor, agir sobre, por exemplo, o ruído do trânsito que entra pela janela da casa do espectador, os ruídos das coisas acontecendo no interior da casa ou do local onde o es- 126 pectador se encontra etc. Desse “truque” (o mascaramento) do designer resulta que todos os espaços lacunares acabam sendo preenchidos, na mixagem, com algum som. Ou seja, se o silêncio é tecnicamente impossível na TV (tanto na gravação quanto na recepção), o mascaramento técnico nos leva a acreditar sensorialmente em sua presença. Tais efeitos, encetados originalmente pela TV porque necessários para que ela agisse, ofereceram ao cinema alternativas técnicas para também inscrevê-los nos filmes como uma estética, que hoje, aliás, está bastante disseminada em muitos filmes. Com certeza essa não foi a única contribuição da técnica da TV para a técnica e a estética cinematográfica. Há que se considerar também, por exemplo, os modos de gravar e armazenar os sons no cinema e na TV com vistas a produzir, na montagem, o que Dubois (2004) chama de “efeito de imediatez”. Hoje, gravamos e simultaneamente ouvimos os sons gravados, diferentemente do que acontecia com o som das imagens animadas em película, que necessitavam de revelação posterior para sua visualização e audição. Aqui, Dubois (2004, p.34) refere-se ao efeito de “ao vivo” nas imagens da televisão; na progressão da técnica3, com a TV surgiu o “se fazendo em tempo real”, possibilitado pela funcionalidade do gravador nagra, aparelho de registro de som em externas e do som direto em set de filmagens; e, mais recentemente, pelos efeitos produzidos por sistemas digitais, sob os quais o som gravado e armazenado age e acontece quase sem que notemos todos os delays (e outras interferências) que ocorrem entre o registro e sua aparição na montagem a que o espectador assiste. Se, de um lado, a técnica amplia o espectro sonoro audível, e passamos a poder ouvir sons onde antes havia silêncio, de outro, ainda há essas gagueiras da técnica, já referidas aqui e antes, que eventualmente produzem efeitos de silêncio. Arlindo Machado (2007, p.119) diz haver uma “instância audiente que orienta o que deve ouvir o espectador”. Se a trilha sonora de um audiovisual é composta por vozes, ruído e música, e se é assim que o espectador é orientado a ouvir, decorre 3 Pontuamos esse instante da progressão porque ele incide diretamente sobre as tecnologias e os imaginários do silêncio. 127 haver, na audição, um enxugamento sistemático da trilha sonora de modo a que se perceba o silêncio como “uma experiência existencial das personagens”, ou seja, uma interrupção das vozes narrativas das personagens. Nem o autor nem nós concordamos com isso, já que, com os mascaramentos sonoros, o que se busca é “dotar o silêncio de uma função significante e invocá-lo para traduzir uma subjetividade limítrofe” (MACHADO, 2007, p.123), e não perscrutar as tecnologias do silêncio em sua relação com os imaginários de silêncio que transcendem personagens de uma determinada trama audiovisual. No entendimento de Bergson (2006, p.231), há intervalos de silêncio entre os sons, pois a audição nem sempre está ocupada de forma consciente. A distinção entre simultaneidade e sucessividade é muito importante na teoria de Bergson (2006, p.16-17) sobre a percepção, distinção que é, por vezes, pensada pelo autor com base na música: quando escutamos uma melodia temos a mais pura impressão de sucessão que se possa ter – uma impressão tão distante quanto possível da simultaneidade – e, no entanto, é a própria continuidade da melodia e a impossibilidade de decompô-la que causam em nós essa impressão. Já em sua teoria sobre a evolução criadora, Bergson (2005, p.113) diz que “a evolução não é apenas um movimento para frente; em muitos casos observa-se uma patinhagem e, mais frequentemente ainda, um desvio ou um recuo”. Nessa direção, pensamos que o efeito de silêncio nos filmes pode ser também resultante de uma patinhagem no desenho do som, similar às gagueiras a que nos referimos antes. Retratos de silêncio Os retratos de silêncio aqui propostos à consideração, aludem principalmente a duas situações: ao silêncio que parece que se ouve em certas imagens visuais (retratos), e ao re-trato, na mixagem, do som gravado e já tratado na filmagem, 128 para produzir mais e outros efeitos do que os simplesmente necessários para tornar audíveis os sons gravados na filmagem. Em nossa pesquisa, após flanar por diversos filmes de diferentes épocas, perscrutando efeitos de silêncio em perspectiva genealógica, autenticamos alguns retratos de silêncio emblemáticos nos filmes The fall, O silêncio, Gravidade e O casamento de Rachel. Adotamos uma audição deslizante e testamos modos de escuta, não simplesmente voltada a captar as repetições do projeto sonoro das máquinas, mas intentando verificar, na latência, uma ressonância harmônica, nos termos propostos por Wisnik (1984, p.50), da tecnocultura e dos imaginários de harmonia da época em que os filmes foram realizados. Os retratos foram constelados pelas seguintes afinidades: (a) no caso de imagens com sonoridades sequenciais, em Expressões de Silêncio, Salões de Silêncio e Códigos de Silêncio; (b) no caso de imagens com simultaneidades sonoras, em Efeitos de Silêncio em Espessuras Sonoras. Muito resumidamente, fazemos a seguir alguns apontamentos sobre os resultados dessa vídeo-escuta, os quais organizamos em quatro modos de seu aparecimento nos filmes analisados. Expressões de silêncio Quadro 1 – Expressões de Silêncio Fonte: The Fall (2006). 129 Esse quadro é uma imagem média do trecho inicial do filme The Fall (2006), do diretor Tarsen Singh. Sente-se o personagem tocar na tela e transbordá-la, surgido em meio a uma densa neblina. Destaca-se, assim, nessa imagem o silêncio (a mudez da personagem) enquanto, porém, rola a eloquente e audível trilha musical do filme. Como o total sonoro é assim colocado em segundo plano, na neblina, ele nos parece ser silencioso, e a música parece-se, assim, a um ruído branco. Conforme Bordwell e Thompson (1995, p.293), “En el contexto del sonido, el silencio adopta una neuva función expresiva”. Salões de silêncio No filme O silêncio (1963), o diretor Ingmar Bergman mescla perspectivas espelhadas de som e luz, e, como a narrativa sempre reitera haver na presença algo que está ausente, a imagem torna-se transparente, reflexiva e reverberante. Isso leva a que nos indaguemos sobre o que não se vê/ouve enquanto, por exemplo, um garoto se movimenta ruidosamente pelos corredores do hotel, tornados um imenso salão (ou bolha) em que apenas se escuta o som dos ruidosos passos do garoto, efeito que é reforçado pela ausência de trilha musical nessa sequência. Quadro 2 – Salões de Silêncio Fonte: O silêncio (1963). Em Bergman, nesse filme, o som do silêncio (ou o do que é silenciado nas imagens mostradas) é o enigma a ser decifra- 130 do pelo espectador. Seu desenho (o do som) é tão primoroso como o da fonografia de filmes montados analogicamente em uma moviola. Tarkovski (2010) diz que Bergman usa o som de forma aparentemente naturista; entretanto o efeito que ele consegue é o de ampliar os sons, isolá-los do seu contexto e acentuá-los. Na opinião do autor, Bergman “escolhe um som e elimina todas as circunstâncias incidentais no mundo sonoro que existe na vida real”. Assim, segundo Tarkovski (2010, p.194), Quando os sons do mundo visível refletido na tela são removidos, ou quando esse mundo é preenchido, em benefício da imagem, com sons exteriores que não existem literalmente, ou, ainda, se os sons exteriores reais são distorcidos de modo a que não mais correspondam à imagem, o filme adquire ressonância. Nos filmes em geral poderíamos pensar que esse tipo de defasagem entre o audível e o visível é um ruído ou uma gagueira da linguagem audiovisual, ou uma seleção de materiais sonoros impróprios, ou ainda uma cacofonia (técnica) do som. Significaria apenas que o filme não recebeu um tratamento sonoro adequado. No caso de Bergman, porém, trata-se da utilização de uma técnica e de uma estética meticulosamente projetada e executada, que nos desafia a refletir sobre o sentido dos sons assim construídos pelo cineasta em um filme que, certamente não por acaso, intitula-se, O silêncio. Códigos de silêncio O filme Gravidade (2013), de Alfonso Cuarón, narra uma aventura no espaço sideral em longas sequências de imagens gravadas às quais se acrescentaram imagens de arquivo, e a todas se acrescentaram ainda efeitos especiais. O desenho do som, executado com alta tecnologia, é, talvez, o elemento que mais impacta e incide sobre os sentidos da narrativa. Em sua montagem, prevalecem as imagens de silêncio em sequência, interrompidas apenas por uma trilha 131 musical que, especialmente no início do filme, alude a uma explosão havida no espaço sideral, e que, sonoramente, é tão forte quanto ensurdecedora para o espectador. Já os efeitos de silêncio relacionam-se aos ruídos diegéticos e das vozes que comparecem nas imagens assistidas sempre e apenas quando há comunicação entre humanos. Considerando a ambiência ou os cenários da narrativa, essa comunicação verbal ocorre quando as personagens estão vestindo aqueles trajes usados para flutuar no espaço fora ou no interior da nave. Nos dois casos, o som da comunicação verbal entre os comunicantes está encapsulado. Ou seja, há uma espécie de bolha acústica para cada personagem, e a comunicação entre um e outro se faz de uma bolha a outra. Quadro 3 – Códigos de Silêncio Fonte: Gravidade (2013). Sob essa lógica enunciativa geral, relativa a uma idéia de que a gravidade (ou sua ausência) incide decisivamente sobre a transmissão de ondas sonoras, há, entretanto, ainda, a lógica enunciativa do silenciamento de um dos comunicantes, ou, por falha técnica, da comunicação entre eles – que é quando, no mais das vezes, ao menos um dos humanos comunicantes cai no “vazio sonoro do espaço sideral”. Isso faz o silêncio prolongar-se inusitadamente e incidir sobre si mesmo como código, dispersandose e confundindo-se com outros códigos. Entre patinagens e mascaramentos sonoros, o zumbido das máquinas, por exemplo, assemelha-se ao zumbido de um vírus na comunicação. Ou seja, em Gravidade, o silêncio é diegeticamente construído como código enunciativo da ausência de comunicação entre os comunicantes quando em relações mediadas pela técnica. 132 Efeitos de silêncio em espessuras sonoras No filme O casamento de Rachel (2008), dirigido por Jonathan Demme, os três elementos sonoros clássicos a que já nos referimos (trilha musical, ruídos e vozes) estão sempre sobrepostos, a tal ponto que: (a) ocorre uma espessurização do som por conta da simultaneidade em que os três elementos comparecem o tempo todo nas imagens para o espectador; (b) por conta de sua profundidade, as camadas sonoras (bandas sobrepostas o tempo todo) são indiscerníveis umas das outras ao espectador. Trata-se de um som “se fazendo ao vivo”, que pode ser associado a uma transmissão televisiva ou radiofônica. No making of do filme, informa-se sobre o que o diretor de filmes de grandes estúdios pretendia com essa experimentação, na qual: (a) as falas tinham de ser improvisadas pelos atores; (b) os atores (em sua maioria, amadores) tinham de ser escolhidos pelo timbre de sua voz (o que se supunha que incidiria sobre a ênfase desejada numa ou em outra cena); (c) os registros deviam ser feitos simultaneamente em todos os ambientes do cenário, com muitas câmeras e microfones, ao vivo e em tempo real; (d) na montagem das imagens em sequência, os sons in e off foram todos sobrepostos, coalescendo na narrativa imagética. Quadro 4 - Efeitos de Silêncio em Espessuras Sonoras Fonte: O casamento de Rachel (2008). 133 Apesar de o som ser total no filme, na espectação das imagens experimenta-se um silêncio que ainda estamos buscando compreender como é produzido – o que fica para outro artigo. Considerações finais Na escuta deslizante de The fall, O silêncio, Gravidade e O casamento de Rachel, fomos tatilmente afetados por um silêncio auferido em imagens fílmicas, algumas das quais foram apontadas neste artigo como quadros. Esses quadros podem ser pensados como imagens médias do silêncio técnica e esteticamente construídos nos filmes à luz de imaginários e tecnologias do silêncio. O passo seguinte da pesquisa em curso nos levou a perscrutar tecnologicamente as sequências audiovisuais – ou seja, a dissecar as bandas sonoras registradas em cada filme e em cada sequência via um software de edição chamado ProTools – com vistas a auferir a correspondência (ou não) entre sensação subjetiva e materialidade sonora objetiva. Até agora, esse procedimento dissecatório confirmou haver correspondência entre as sensações de silêncio e o desenho sonoro de silêncio quando há sonoridades sequenciais. Mas a análise do que ocorre quando se espessuriza o som ainda está por ser feita. A estratégia metodológica incluiu a produção de infonográficos das sonoridades circundantes aos retratos de silêncio das sequências nos filmes do corpus, e não houve como incorporá-los neste artigo. Fica aqui a promessa de tratar deles em futuras publicações. Referências BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. COSTA, Flávia Cesarino. O primeiro cinema: algumas considerações. In: BENTES, Ivana (Org.). Ecos do cinema: de Lumière ao digital. Rio de Janeiro: UFRJ, 2007. 134 BORDWELL, David; THOMPSON, Kristin. El art cinematográfico: una introducción. Buenos Aires: Paidós, 1995. CABRERA, Julio. O Cinema pensa: uma introdução à filosofia através dos filmes. Rio de Janeiro: Rocco, 2006. CARNEIRO, Rodrigo. Relações entre imagens e sons no filme “Cinema, Aspirinas e Urubus”. E-compós. Brasília, DF, v.13, n.1, jan./abr. 2010. DUBOIS, Philippe. Cinema, video, Godard. São Paulo: Cosac Naify, 2004. IKEDA, Marcelo. Silêncios e paisagens sonoras no cinema brasileiro contemporâneo. Cambiassu: Estudos em Comunicação (Online), v. 10, 2012, p. 241-252. GAGNEBIN, Jeanne Marie. História e narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva, 1994. KILPP, Suzana. Ethicidades televisivas. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003. MACHADO, Arlindo. O sujeito na tela: modos de enunciação no cinema e no ciberespaço. São Paulo: Paulus, 2007. SONTAG, Susan. A vontade radical: estilos. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. 135 Aventura do texto, palavra plural1 Jorge Ramos do Ó Talvez a meditação paciente e a investigação rigorosa em volta do que ainda se denomina escritura, em vez de permanecerem aquém de uma ciência da escritura ou de a repelirem por alguma reação obscurantista, deixando-a – ao contrário – desenvolver sua positividade ao máximo de suas possibilidades, sejam a errância de um pensamento fiel e atento ao mundo irredutivelmente por vir que se anuncia no presente, para além da clausura do saber. O futuro só se pode antecipar na forma do perigo absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e por isso somente se pode anunciar, apresentar-se, na espécie da monstruosidade. Para este mundo por vir e para o que nele terá feito tremer os valores de signo, de fala e de escritura, para aquilo que conduz o nosso futuro anterior, ainda não existe epígrafe (DERRIDA, 2000, p.6). Depois do século XVII, a nossa civilização tem tratado as descrições científicas como se fossem elas mesmas divindades e, a partir de finais da centúria seguinte, sobrepusemos a Deus um amor ao sujeito e “a nós próprios, na adoração da nossa própria natureza espiritual ou poética profunda” (RORTY, 1994, p.45). Este texto propõe-se enfrentar essa tradição. Defenderei aqui a tese segundo a qual um mar de possibilidades criativas se abrirão à nossa frente quando nos descentrarmos do sujeito transcendental. Trata-se de substituir a essencialidade da identidade por um trabalho permanente da redescrição do próprio sujeito e que tome sem receio a autocriação como o fim último da inves1 Uma primeira versão deste texto saiu em Ó, Jorge Ramos do. Para uma escrita académica inventiva: o legado da teoria social pós-moderna. In. KOHAN, Walter Omar; LOPES, Sammy; MARTINS, Fabiana (Orgs). O ato de educar em uma língua ainda por ser escrita. Rio de Janeiro: Nefi, 2016, p.313-326. [Nota dos Organizadores: por convicção, mantivemos as marcas textuais do português de Portugal praticado pelo autor em sua escrita.] tigação e da escrita decorrente dela. As práticas de escrita deveriam impor-se, soberanas, rasurando ou mesmo soterrando todas as declarações que à nossa volta não cessam de teorizar e assimilar a identidade à autoconsciência ou à posse da verdade de si. Por esta via da inquietude face à identidade e da desconfiança relativamente ao conhecido do pensamento, a escrita académica ficaria certamente mais aberta à reinvenção das condições propriamente éticas e estéticas dos próprios escreventes. Numa palavra, à sua própria autotransformação. O legado da teoria social pós-moderna É amplamente sublinhado que o projeto de tomar o social como objeto, teorizando-o e decompondo-o com o propósito de o sistematizar, constituiu uma preocupação da modernidade, cujas origens remontam ao Iluminismo e às hipóteses formuladas pelos grandes philosophes ao redor da emancipação da razão e da liberdade. Ao mesmo tempo fácil será constatar que a reiterada obstinação, característica da ciência das Luzes, com a racionalidade, o universalismo e a ideia de progresso tem sido abertamente questionada e problematizada tanto nos planos epistemológico quanto ético nas últimas décadas do nosso tempo. Isto é ponto assente e não oferece dúvidas. Mas, para sermos rigorosos, deveríamos igualmente reconhecer que toda uma tradição de reflexão, anterior no tempo, antecipava já o pós-modernismo, através de uma fortíssima vigilância crítica relativamente aos limites e restrições da ordem social moderna. Com efeito, tanto as premissas desta, assim como os seus artefactos culturais, foram abertamente abalados, avant la lettre e só para nomear os mais conhecidos, por Nietzsche, Heidegger – vistos estes como fundadores da chamada filosofia da diferença –, Simmel, Weber, Benjamin, Adorno, Horkheimer. A eles devemos, de facto, as primeiras tentativas de problematizar e questionar frontalmente as proposições analíticas do pensamento social moderno. E, por sobre todas, gostaria de 138 destacar as críticas tanto à reiterada presunção de que o conhecimento é progressivo, cumulativo, total, universal e racional, noção esta que a imagem clássica da enciclopédia tão bem corporiza, quanto ao princípio de que é o sujeito que deve estar no centro na análise e da teoria e, ao mesmo tempo, que está na origem do pensamento e da ação. Como se através dos textos e interpretações que nos legaram aqueles colegas nascidos em pleno século XIX pudéssemos começar a compreender, e por vezes de forma intensíssima, o quanto as bases programáticas da modernidade estiveram historicamente tão distantes da verdade que o mundo ia entretanto evidenciando. Refletindo sobre os postulados, as práticas e as realizações da vida moderna, aqueles autores exploraram a “complexidade, a irregularidade e a imprevisibilidade das consequências da modernidade”. Alertam-nos, portanto, para o facto de que a racionalização que sobre a vida político-social se foi sucessivamente fazendo obnubilava – senão mesmo recusava, através de enunciados, apresentados com valor de verdade, nos quais o homem moderno surge como o herói vinculado unicamente à causa ético-política da paz e da harmonia social –, a compreensão das contradições e dos lances mais dramáticos e brutais que ela mesma ia engendrando (SMART, 2002, p.405-407). A condição da análise social se aprofundar supõe, pois, o reconhecer-se que toda a explicação que se imagine absoluta e onipotente, querendo esclarecer a ordem do mundo dos homens e das coisas, está apenas ao serviço da legitimação, isto é, de uma série de práticas, de uma auto-imagem cultural, de um discurso dominante e, no limite, de uma instituição. Ora, o que nós tentamos fazer, a partir da variedade dos campos disciplinares em que nos encontramos hoje, muitas vezes ignorando-os deliberadamente para os transpor, é continuar esse gesto que procura produzir uma instabilidade de sentido face à episteme moderna, posto que admitimos que não apenas o conhecimento científico quanto a ideia de sujeito racional e autônomo têm de ser questionados das mais diversas formas. Trabalhamos em prol de uma metafísica da presença, que rompa com os circuitos fechados de significação e interpretação que durante séculos me- 139 diaram e empobreceram a nossa relação com a realidade. Penso aqui no prólogo que Deleuze redigiu para Diferença e repetição, livro aparecido em 1968. Exprimiu aí, como constituindo o “ar do tempo” que então já se respirava, “um anti-hegelianismo generalizado”. Aquele em que o “primado da identidade” já não bastava para definir “o mundo da representação”. A atualidade do pós-guerra reafirmava a falência de todas as velhas forças que agiam “sob a representação do idêntico”. Para Deleuze o espetáculo que o mundo já apresentava era o dos “simulacros”. E explicava-se: “nele o homem não sobrevive a Deus, nem a identidade do sujeito sobrevive à identidade da substância; todas as identidades são apenas simuladas, produzidas como um efeito óptico por um jogo mais profundo, que é o da diferença e da repetição” (2000b, p.36). Reivindicou ali, também de forma emblemática, a herança de Nietzsche, dizendo que este inaugurara a pesquisa de “novos meios de expressão filosófica”, na demarcação clara de todos quantos desejavam manter acantonada a filosofia ao passado. Deleuze afirmou então que, graças ao autor de A gaia ciência, pudemos todos “descobrir o intempestivo como sendo mais profundo que o tempo e a eternidade”, cabendo nesta perspectiva à filosofia atual ultrapassar “a alternativa temporal-intemporal, histórico-eterno, particular-universal”, melhor dito, tomar como ponto de partida uma crítica radical dos pressupostos subjetivos e dos postulados que a própria disciplina foi assumindo como naturais. De outro modo: depois de Nietzsche a filosofia não é mais a filosofia da história e do eterno, mas “intempestiva, sempre e só intempestiva, isto é, contra este tempo, a favor, espero, de um tempo que virá”. Daqui Deleuze partia para uma confissão metodológica na qual assumia o trabalho inventivo como estando afastado de quaisquer predicados antropológicos: “eu faço, refaço e desfaço os meus conceitos a partir de um horizonte móvel, de um centro sempre descentrado, de uma periferia sempre deslocada que os repete e diferencia”. A positividade do nosso tempo é a que nos faz crer num mundo em que “as individuações são impessoais” e “as singularidades pré-individuais”. Por estas razões Deleuze assumia que um livro de filosofia devia ser como um 140 romance policial ou uma ficção científica. No primeiro dos casos, tomava o princípio da especificidade, querendo significar que os conceitos devem intervir na economia da narrativa unicamente para resolver uma “situação local”, o que significa que se modificam com os problemas (DELEUZE, 2000b, p.3738). No segundo, tinha em mente o princípio segundo o qual o enredo do texto filosófico deveria, como na ficção científica, apontar para uma coerência por vir, que já não seria da ordem do mundo. Daqui deriva a hipótese de uma escrita inventiva, experimental, que se abeira e tateia o desconhecido. Deleuze exprimiu-se nestes termos: Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade do nosso próprio saber, nesta ponta extrema que separa o nosso saber e a nossa ignorância e que faz passar um no outro. É apenas deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torn-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica (DELEUZE, 2000b, p.38). Sistematizando, a relação crítica com a modernidade tende a consensualizar-se em torno do repúdio dos universais, no pressuposto de que não existe qualquer denominador comum que garanta a unidade do mundo, invoque-se para tanto a Natureza, Deus, a Verdade ou o próprio Homem. Como também sugeriu Lyotard (2003) em A condição pós-moderna, publicada pela primeira vez em 1979, a modernidade teria substituído as narrativas divinas e providenciais do destino humano por outras, marcadamente seculares é certo, mas que nem por isso seriam menos universalisantes ou metanarrativas: o predomínio da Razão e do projeto iluminista; a dialética do espírito e a autoconsciência na sequência da filosofia hegeliana; a emanci- 141 pação dos sujeitos racionais ou trabalhadores fixada pelas correntes marxistas. A época pós-moderna em que vivemos – “uma formação social na qual o impacto da secularização, democratização, computadorização e consumo vêm redesenhando os mapas e reescrevendo o estatuto do conhecimento” (JENKINS, 1991, p.60) –, afirma, por sua vez, a incredulidade face a esta visão essencialista da humanidade. As paisagens sociais que se oferecem à nossa interpretação não comportam mais a verdade de que a ciência fala através de um sujeito que se imagina soberano. A análise que nos é exigida terá, ao invés, de dar conta da multiplicação e “maleabilidade das identidades”, da “complexidade e incomensurabilidade dos mundos humanos”, do “cruzamento de fronteiras”, do “hibridismo”, da “colagem” dos discursos contemporâneos, da “montagem e do pastiche” nas produções artísticas e culturais; passa a ser obrigação do investigador perceber e responder à complexidade das propostas e das soluções da vida social, processem-se estas através da “ironia, ambiguidade e ambivalência”, através da “contingência e provisoriedade” ou até mesmo da “indeterminação, insegurança, contradição e violência” (BAUMAN, 1993; CONNOR, 2000; HARVEY, 1989). Os textos que seremos levados a produzir neste contexto interpretativo assumir-se-ão exactamente como sendo isso mesmo, como interpretações. E, em consciência, apenas se podem prestar a um só serviço – o da perpétua expansão da explicação. Não há qualquer denominador comum que garanta que o mundo seja uno ou que sustente a possibilidade de um pensamento natural e objetivo. A principal, e porventura única, lei do pós-modernismo será a de que a informação não cessa de se multiplicar. O aumento de produção social registrado no nosso tempo corresponderá então, unicamente, a um acumular das perspectivas, dos modelos, dos ângulos, dos pontos de vista contingentes dos investigadores que as subscrevem. Eis como se questiona a universalidade das asserções de verdade e se passa a defender que o significado é uma construção activa, dependente tanto da pragmática do contexto quanto de regras próprias dos regimes discursivos. Neste quadro, é como se o trabalho da dialética de Hegel fosse substituído pelos jogos da vontade de potência de que tanto falou Nietzsche. 142 Importa que nos detenhamos com algum vagar sobre o influente texto de Lyotard, uma vez que nele é a “condição do saber nas sociedades mais desenvolvidas” que se toma por objeto de estudo. O diagnóstico que A condição pós-moderna nos apresenta logo nas primeiras páginas é o da crise ou desuso, na contemporaneidade, “do dispositivo metanarrativo de legitimação” a que corresponde, especialmente, “a crise da filosofia metafísica e da instituição universitária que dela dependia”. Lyotard toma pois a evidência segundo a qual a função narrativa vem perdendo “os seus functores, o grande herói, os grandes perigos, os grandes périplos e o grande objectivo”, para se dispersar “em nuvens de elementos de linguagem narrativos, mas também denotativos, prescritivos, descritivos etc., veiculando cada um consigo valências programáticas sui generis”. À sua maneira estes configuram a encruzilhada em que cada sujeito contemporâneo se encontra mergulhado. O essencial do argumento fica devidamente explicitado quando Lyotard afirma que “nós não formamos combinações de linguagem necessariamente estáveis e as propriedades das que formamos não são necessariamente comunicáveis” (2003, p.11-12). O problema da legitimação do saber coloca-se em termos inteiramente diferentes, numa sociedade e numa cultura que não reconhece mais a credibilidade a qualquer discurso unificador ou totalizante, tome ele a forma da especulação ou a da emancipação. Lyotard defende então que, mercê do desenvolvimento das técnicas e das tecnologias a partir da segunda guerra mundial, se registou um deslocamento do “acento para os meios de ação em detrimento dos seus fins”. Desde então, a crise do saber científico parece resultar invariavelmente do estiolamento, por um lado, “da trama enciclopédica na qual cada ciência devia tomar o seu lugar” e, por outro, da chamada independência dos interlocutores envolvidos na divulgação do conhecimento. Quanto ao primeiro destes aspectos, há a assinalar que as configurações clássicas das diversas disciplinas científicas têm sofrido um intenso “trabalho de problematização”, o que se vem traduzindo no “desaparecimento de determinados saberes”, na produção de “encavalitamentos nas fronteiras das ciências” e, por fim, no nascimento 143 de “novos territórios”. Mas, para Lyotard, o rearranjo institucional da “hierarquia especulativa dos conhecimentos” tem levado “as ‘antigas’ faculdades a desagregarem-se em institutos e fundações de toda a espécie”, situação esta que conduz, na maior parte das escolas de ensino superior, a uma lógica de transposição mecânica, e por isso empobrecida, dos “saberes julgados estabelecidos” e ao assegurar, pela didáctica, “mais a reprodução de professores que a de sábios”. Quanto ao segundo aspecto, enfatiza-se, ainda em A condição pós-moderna, o elemento que havia já surgido com a Aufklärung, aqui denominado de “dispositivo da emancipação”. Trata-se da noção corrente que tende a fundar a legitimidade da ciência e a sua verdade a partir da “autonomia dos interlocutores empenhados na pratica ética, social e política”. Ora, nota Lyotard sobre este particular, a ciência atual já não tem mais condições para sustentar a existência de enunciados cognitivos e denotativos que se tomem como de valor prático, de alcance universal, que se desejem impor como leis positivas. Por aqui se fixa uma importante tese acerca da pós-modernidade, aquela que defende que “a ciência joga o seu próprio jogo e não pode legitimar outros jogos de linguagem; por exemplo, o da prescrição escapa-lhe”. É assim que também este autor aponta para o exercício auto-reflexivo, quando defende que o traço marcante da ciência do nosso tempo é a “auto-imanência do discurso sobre as regras que o validam” (LYOTARD, 2003, p.81-82 e 111). Uma vez longe de um metadiscurso de saber, há então que procurar pensar a mudança de estatuto da ciência a partir da “pragmática da investigação” e da sua artesania. No nosso tempo a legitimidade do saber advém, para Lyotard, em primeira linha, da performatividade. O “enriquecimento das argumentações” e a complexidade da “administração das provas” são as características fundamentais que marcam o nosso ofício de investigadores. A aceitação dos enunciados científicos vive hoje da “flexibilidade” dos seus meios e da “multiplicidade” das linguagens. E, o mais desafiante de tudo isso, é que o desenvolvimento do saber pode corresponder tanto a um desdobramento inesperado, a um novo lance do argumento, como à invenção de novas regras, ou seja, a uma mudança do próprio jogo. Lyotard 144 descobre nesta prática da multiplicidade e da multiplicação um deslocamento importante na própria “ideia de razão”. Em vez de uma metalinguagem universal e de uma dialética do espírito, temos ante nós uma pluralidade de sistemas que até se podem assumir publicamente como “formais e axiomáticos”, mas que todos sabemos serem finitos no tempo e no espaço. E explica-se: “aquilo que passava por paradoxo ou mesmo por paralogismo no saber da ciência clássica e moderna pode achar num destes sistemas uma força de convicção nova e obter um assentimento na comunidade dos peritos”. O sentido do saber na pós-modernidade é, desta sorte, deslocado dos domínios do conhecido e da previsão para uma lógica de evolução perspectivada como “descontínua”, “catastrófica”, “não retificável” e até “paradoxal”. A ciência que procuramos fazer “produz não o conhecido mas o desconhecido”, reconhece. Aqui está para mim o essencial: a investigação torna-se útil não por ter um “método científico”, mas antes porque apresenta uma metodologia de trabalho teórico e empírico que, tornando manifestos os pressupostos sobre que ela mesma se constrói, permite ato contínuo a aparição de novas ideias e de novos enunciados. O modelo de legitimação é agora marcado pelo inesperado, melhor dito, por uma atividade diferenciante ou de imaginação. E o conceito de diferença é traduzido por Lyotard por “paralogia”, remetendo este diretamente para as noções de sistema aberto, de co-variação, de consenso local e de informação completa no momento considerado, de metargumentação finita e limitada. O cenário de política científica em que estamos, e ao mesmo tempo por que nos batemos no interior da instituição universitária, malgrado os reveses e refluxos, é, segundo as suas palavras, marcado pelo “desejo de justiça e do desconhecido” (LYOTARD, 2003, p. 87-90, 119 e 133). Preparar o encontro com o desconhecido Creio que o grande problema face à investigação, e que tentamos transpor para a realidade do texto, é e será sempre o de forçar o presente a sair dos processos de significação existentes e seus correlatos interditos, a disponibilizar-se a todo o tipo de encontro com o desconhecido. Eis porque importa 145 sublinhar que os objectos de pesquisa se delimitam, aprofundam e concretizam numa resistência individual, propriamente da ordem ético-política, que se determina em confrontar os enunciados que circulam e se tomam por certezas consensuais, a fim de mudar a consciência de si. Trata-se portanto de um trabalho sobre o sujeito e não tanto sobre os outros. Como se a escrita pudesse assumir não apenas uma dimensão céptica mas mais rigorosamente uma força agonística – em que o que se toma por universal, necessário e obrigatório se passe a perceber como singular, contingente e arbitrário –, e cujo efeito último fosse o de nos desencartarmos da previsibilidade e homogeneidade disciplinar com que se apresentam as identidades e os modos de vida contemporâneos, mesmo se postos a circular com a rotulagem da subjectividade e da mais ampla diversidade individual. Como se ela nos forçasse a entrar no não conhecido e, dessa forma, nos pressionasse ao estabelecimento de novos pactos entre o sujeito da enunciação e o sujeito da conduta. Já regresso por esta via uma vez mais a Deleuze e às suas considerações sobre a potência da escrita, quero dizer, sobre a produção mesma da vida: Escrever não é certamente impor uma forma (de expressão) a uma matéria vivida [...]. Escrever é uma tarefa de devir, sempre inacabada, sempre a fazer-se, e que extravasa toda a matéria que se pode viver ou vivida. É um processo, quer dizer, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir: ao escrevermos, devimos-mulher, devimos-animal ou vegetal, devimos molécula até ao devir-imperceptível [...]. Devir não é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimesis), mas encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de identificação tal que já não nos podemos distinguir de uma mulher, de um animal ou de uma molécula (DELEUZE, 2000a, p.11-12). Escreve-se para tentar aceder ao multiforme da existência. Nessa perspectiva torna-se forçoso admitir que as figuras do Único e do Último – aquelas que na nossa cultura melhor simbolizam o fechamento tanto da identidade de si do sujei- 146 to quanto do saber científico – são exactamente as que a linguagem, como a vamos aqui entendendo, torna impossíveis de serem pronunciadas. Também em vários livros compostos de textos-fragmento do filósofo Giorgio Agamben se sucedem as considerações acerca da escrita enquanto exercício prático de choque contra os enunciados que se alimentam da ilusão da identidade e da verdade. Lembra-nos, em Profanações e cotejando a este respeito Michel Foucault, que a escrita é um dispositivo humano e que a história dos homens outra coisa não é “que o incessante corpo com dispositivos que eles próprios produziram – e antes de qualquer outro, a linguagem”. Também por aqui se começará a poder discutir criticamente as razões pelas quais a figura do autor, ainda tão mitificada entre nós, se deve secundarizar – na terminologia de Agamben: “permanecer inexpressa” – face à obra e ao não-conhecimento que a linguagem sempre determina e encerra. A existir alguma subjectividade, ela é produzida no momento em que o ser vivo encontra a linguagem, e nesta se põe em jogo “sem reservas”. Somos o que conseguirmos exibir nessa irredutibilidade. O que está em causa na escrita “não é tanto a expressão de um sujeito quanto a abertura de um espaço em que o sujeito que escreve não pára de desaparecer”, esclarece Agamben (2006, p.100 e 83-84). “Qualquer é a figura da singularidade pura”, adianta em A comunidade que vem, livro em que procura trabalhar o problema do conhecimento fora da dicotomia entre o “caráter do indivíduo” e a “inteligilidade dos universais”. O ser que falta acontecer, o ser por vir é, para Agamben, o “ser qualquer”. E essa singularidade pura de que nos fala não remete para a identidade, mas antes para a “indeterminação” e para a relação com a ideia, isto é, na sua definição precisa “para a totalidade das suas possibilidades”. Então o que alguém, um qualquer, acrescenta a uma singularidade é apenas a deslocação de um “limite”, um “espaço vazio”, uma “exterioridade pura”. Qualquer deve ser tomado pois como “o acontecimento do exterior” (1993, p.11-12 e 53-54). Em Profanações encontra-se uma discussão detalhada acerca da etimologia, significação e usos de Genius, deus que a tradição latina começou por apresentar como protetor de cada 147 homem desde o seu nascimento. Agamben mostra aí, recolhendo exemplos de diferente origem – registando a sua presença constante em narrativas que reiteram uma aproximação do génio ora do ato da geração, ora das qualidades físicas e morais inatas de cada um, ora de uma relação secreta que cada um pode ter com o seu deus –, como também este conceito tem estado associado ao que é “mais impessoal, a personalização daquilo que, em nós, nos ultrapassa e excede”. Sugere, com esta análise, que a espiritualidade não remete apenas para o que se considera nobre e transcendente. A tese de Agamben neste particular é a de que “todo o impessoal em nós é genial”, que a nossa vida se joga naquilo que nos não pertence ou que qualquer iniciativa de se apropriar de Genius, “de o obrigar a assinar em seu nome, está, necessariamente, votada ao fracasso”. É à luz desta evidência que se podem entender tanto as operações irónicas das vanguardas – de inoperacionalidade, descaracterização, des-criação ou, mesmo, destruição da própria obra de arte – como a ideia frequentemente associada a Duchamp segundo a qual “o artista verdadeiramente genial é aquele que é desprovido de obra”. Não obstante, o fundamental passa por entender que, aceitar viver com a presença de Genius, significa que se admite uma relação de intimidade de um ser estranho, “estar constantemente em relação com uma zona de não conhecimento”, que se sobrepõe à noção de si mesmo e de consciência. Genial é aqui sinónimo de impessoal, já se vê. E a criação, o consubstanciar desse caminhar para o desconhecido, em que o Eu “assiste, alegre, ao seu próprio esfacelamento”. Traduzindo e adaptando ao desejo de escrever: “sinto que, algures, Genius existe, que existe, em mim, um poder impessoal que impele à escrita”. E Agamben conclui: “Genius é a nossa vida naquilo que não nos pertence” (2006, p.9-23). São pois forças-outras que nos atravessam, capturam e põem em jogo quando escrevemos. Poderemos tomar partido, separar, dividir, confrontar – enfim dizer alguma coisa –, mas nunca exprimir o Todo sobre as coisas ou nós mesmos. Duplicidade e não unicidade é o que resulta do abandono ao trabalho insistente sobre a palavra. Qualquer “ato de acabamento do pensamento”, sublinha Agamben em Ideia da prosa, “deve 148 dissolver-se inteiramente na linguagem”, tornando-se assim possível projectar e decifrar novas formas de vida. E a sua conclusão a este respeito só podia remeter-nos para a evidência de que “é precisamente a ausência de um objecto do conhecimento que nos salva da tristeza sem remédio das coisas” (1999, p.102 e 46). É a falta – a falta incessante – que a escrita exprime. A imperiosa necessidade de bem associar o seu exercício a uma consciência do infinito da linguagem há-de fatalmente conduzir-nos até Maurice Blanchot. E a ter de permanecer junto aos seus textos com a maior atenção, tal a amplitude de planos, superfícies e figuras que faz suceder com a finalidade de dar conta desse enigma, dessa estranha paixão do incessante a que também se dá o nome de escrita. Esta, para Blanchot, afirma um eu vasto, esparso, descontínuo, cindido, impessoal; materializa uma narrativa que se produz e relata a si própria, que muda incessantemente de direcção porque, na procura do acontecimento, se descaminha dele e vê espelhar-se no seu âmago a diferença, o contraditório, quando não mesmo o absurdo; faz sonhar a obra como navegação contra o vazio ou a mais pequena lacuna, mas o que mais ocorre suceder-lhe é ligar-se a um tempo-outro, indeterminado, até que, quando enfim se dá o momento da sua própria concretização, eis que se percebe novamente exposta a um vazio, a um apagamento, ao deserto, a uma distância, a um novo pôr-se a caminho. Blanchot tudo fez para nos convencer que a felicidade da criação supõe a indeterminação da obra, a exclusão de qualquer alusão a um fim ou destino último – sempre o questionamento e, como há pouco com Agamben, o mesmo movimento de procura e afirmação da exterioridade. Ele vai decompondo, dir-se-ia com a atenção de um joalheiro, os mil problemas que a prática da escrita desenterra. Jamais deixa de a vincular à metamorfose e, por isso, a seu ver a lei secreta desta prática é a do livro por vir. É justamente para essa região, de todas a menos reflectida, que me quero dirigir já a partir dos seus textos. Blanchot toma preferencialmente a literatura como domínio preferencial, mas o certo é que as suas análises sobre os escritos de Homero, Mallarmé, Sade, Proust, Kafka, Mellvile, Musil, Joyce, Borges, Beckett, entre muitos outros, o fizeram amiúde penetrar 149 também nos territórios da filosofia, com referências frequentes a Heráclito, Espinosa, Nietzsche, Heidegger, Wittgenstein, Levinas etc. Ademais, a sua voz brilha sem parar em muitos dos movimentos de arranque teórico-metodológico de Barthes, Deleuze, Foucault ou Derrida, nomes que não cessam de nos visitar neste texto. O efeito Blanchot associa-se, creio, à possibilidade de uma pesquisa à volta da linguagem poder somar argumentos em favor da palavra plural – fundada não mais numa lógica dos pares antinómicos igualdade-desigualdade, predominância-subordinação, mas, antes, na dissimetria e na reversibilidade – e da compreensão da “potência de infinito” que a escrita transporta no seu interior. O primeiro dos três volumes de A conversa infinita, publicado em França em 1969, começa então por anunciar e explicar a “exigência do escrever” como estando ao serviço da tese do “fim do livro” ou da “ausência de livro”. Todo um programa teórico se parece ir construindo em análises de caso destinadas a questionar e abalar o movimento tendente à unificação e à totalidade da “civilização do Livro”. A pesquisa sobre a literatura que Blanchot empreende procura estabelecer, nos escritores que nos precedem no tempo, a performatividade trangressora da escrita, melhor dito, a experiência limite que ela manifesta (2001, p.36 e 39, 8 e 9). Em seu entender, o trabalho escritural é desde sempre atingido por um efeito de desmultiplicação ou pela aproximação a outros espaços, porque é a própria verdade ou lei que por ele se vê posta em causa. Retiro da abertura daquele primeiro volume de Maurice Blanchot um fragmento que, na economia geral da minha narrativa, desejaria pudesse soar a manifesto, quero dizer, à questão decisiva de explicitar um território em torno do qual alguém assuma um compromisso irrevogável, de transgressora pertença vital: Escrever, a exigência de escrever: não mais a escrita que sempre se pôs (por uma necessidade nada evitável) a serviço da palavra ou do pensamento dito idealista, ou seja, moralizante, mas a escrita que, por sua força propriamente liberada (força aleatória de ausência), parece consagrar-se apenas a si mesma, permanecendo sem identidade e, pouco a pouco, libera possibilidades totalmente diferentes, um jeito anónimo, distraído, diferido 150 e disperso de estar em relação, um jeito por intermédio do qual tudo é questionado, e, para começar, a ideia de Deus, do Eu, do Sujeito, depois da Verdade e do Uno, depois a ideia de Livro e da Obra, de maneira que essa escrita (entendida no seu rigor enigmático), longe de ter por meta o Livro, assinalaria antes o seu fim: escrita que se poderia dizer fora do discurso, fora da linguagem. [...] Quando me refiro ao ‘fim do livro’, ou melhor, à ‘ausência de livro’, não penso aludir ao desenvolvimento dos meios audiovisuais de comunicação com que tantos especialistas se preocupam. Que se interrompa a publicação de livros em benefício de uma comunicação pela voz, pela imagem, ou pela máquina, isso em nada modificaria a realidade daquilo que denominamos ‘livro’: ao contrário, a linguagem, como palavra, nele afirmaria ainda mais sua predominância, sua certeza de ser uma verdade possível. Em outras palavras, o Livro indica sempre uma ordem submetida à unidade, um sistema de noções em que se afirma o primado da palavra sobre a escrita, do pensamento sobre a linguagem, e a promessa de uma comunicação que algum dia será imediata e transparente. Ora, é possível que escrever exija o abandono de todos esses princípios, ou seja, o fim e também a conclusão de tudo o que garante a nossa cultura, não para voltar idilicamente atrás, mas, antes, para ir além, ou seja, até ao limite, com o objetivo de tentar romper o círculo de todos os círculos: a totalidade dos conceitos que funda a história, nela se desenvolve e da qual ela é o desenvolvimento. Escrever, nesse sentido, [...] supõe uma mudança radical de época – a própria morte, a interrupção – ou, para falar hiperbolicamente, o ‘fim da história’, e nisso passa pelo advento do comunismo, visto que o comunismo continua sempre a estar além do comunismo. Escrever, então, passa a ser uma responsabilidade terrível. Invisivelmente, a escrita é convocada a desfazer o discurso no qual, por mais infelizes que nos acreditemos, mantém-nos, nós que dele dispomos, confortavelmente instalados. Escrever, desse ponto de vista, é a maior violência que existe, pois transgride a Lei, toda a lei e sua própria lei (BLANCHOT, 2001, p.8-9). 151 Quem se recolhe e se preserva na solidão da escrita está forçado a compreender que a obra não termina. O que se expressa num livro será recomeçado ou mesmo destruído noutro. Em O espaço literário, volume publicado ainda em meados dos ano 50, Blanchot refere-se a esta evidência como sendo a do “privilégio do infinito” – a existência de um lugar concreto, fechado, onde a solidão mais essencial dá corpo a uma prática que não cessa nunca. Todos os desfechos ou desenlaces que o escritor ou o artista experimentam, seja por pressão do editor, por razões financeiras ou outras circunstâncias da vida comum, não impedem o prosseguimento e a retoma do trabalho que deixou para trás. Nesta perspectiva, há então que compreender que “o infinito da obra é tão só o infinito do próprio espírito”. O escritor escreve “um livro, mas o livro não é ainda a obra”; sucede-lhe terminar e publicar o primeiro mas ele sabe que só pertence à segunda. E, por isso, volta a pôr as mãos à obra, a redizer, regressa a um tema privilegiado, repisa, retoma a palavra num ponto qualquer para então novamente a dispersar em nova diversidade de pensamentos ou de assuntos. A narrativa expressa uma potência de nascente que não logra encontrar um desfecho firme. Ora, sobre este preservar-se no recomeço há que tirar algumas conclusões. Desde já esta: que o texto pertence “à sombra dos acontecimentos, não à realidade, à imagem, ao objecto”. Para Blanchot, as palavras podem confundir-se com “aparências” e, por isso, é fundamental que não nos equivoquemos mais a seu respeito, tomando-as como representando o “poder de verdade”. A obra apenas revela que escrever “é o interminável, o incessante”. O escritor, prossegue, “já não pertence ao domínio magistral em que exprimir-se significa exprimir a exactidão e a certeza das coisas e dos valores segundo o sentido de seus limites” (2001, p.11-16). Deste modo a autoridade de uma afirmação escrita passa a estar no que se escreve e não mais na assinatura do autor. Por esta importante razão, também Blanchot insiste tanto na necessidade de “quebrar o vínculo” ou em “romper o elo” que une “a palavra ao eu”. A relação não é entre um autor que fala para um leitor com a autoridade de quem domina e fornece o entendimento. E, se se aceita que escrever mais não é 152 que descobrir e incorporar o interminável e o incessante, então ter-se-á de ir mais fundo e tirar outra consequência. Blanchot registra aqui uma transformação decisiva. Passa ela por renunciar ao eu, aceitando que “o escritor pertence à linguagem que ninguém fala, que não se dirige a ninguém, que não tem centro, que nada revela; ele pode acreditar que se afirma nessa linguagem, mas o que afirma está inteiramente privado de si”. No escritor, encontra-se a mediação e o murmúrio que vão permitindo à linguagem, num processo de disseminação infinita, ir-se convertendo em imagem e argumento. Ele faz-se eco do que não pode deixar de ser dito. As mudanças que se detectam no curso da linguagem não supõem que o escritor trabalhe numa região que se move por princípios racionais, que levem a glorificar-se a consciência, o progresso e a superação, num movimento ascensional em direção à verdade última e ao universal. E já regressamos ao argumento central que aqui me traz. O escritor – o investigador – não está no trilho de “um mundo mais seguro, mais belo, mais justificado, onde tudo se ordenaria segundo a claridade de um dia justo”; e também “não descobre a bela linguagem que fala honrosamente para todos”. O que se exprime nele, sustenta ainda Blanchot, é uma decorrência do facto “de que, de uma maneira ou de outra, já não é ele mesmo, já não é ninguém”. Temos então que a máquina sem fim da linguagem determina o “apagamento” daquele que escreve. E que, em vez da autoridade de um sujeito soberano ou de um herói, estamos perante enigmas e questões que se revezam (2001, p.17-18). Os escritos literários de Stéphane Mallarmé e de Jorge Luís Borges podem tomar-se como ilustrações impressivas do infinito da linguagem e consequente apagamento do autor. Num pequeno capítulo de O livro por vir, e a propósito deste escritor argentino, Blanchot começa por afirmar que toda a verdade da literatura se encontra “no erro do finito”, logo nos esclarecendo que é o estar a caminho – essa circunstância do escritor sonhar o fim sem contudo o poder encarar – que permite transformar o que se imagina finito em infinito. Borges é aqui tomado como o “homem essencialmente literário”, ou seja, aquele que nos surge “sempre pronto a compreender se- 153 gundo o modo de compreensão que a literatura autoriza”. As ficções e falsificações de Borges, que dão conta de um sujeito “desértico e labiríntico” – aquele que caminha sem poder parar –, reiteram a ideia segundo a qual o mundo e o livro se refletem e confundem eternamente, numa multiplicação “cintilante”. Nos seus trabalhos literários, deixa portanto de haver limites de referência, o que normalmente se toma por real e irreal, tudo acontecendo na reciprocidade de um jogo de espelhos. Borges terá, por consequência, assimilado que a literatura “comporta algo de perigoso”. E o risco não decorre dela nos levar a imaginar que existe algures entre nós “um grande autor, absorvido em mistificações imaginosas”, mas, bem diversamente, em “nos fazer sentir a aproximação de uma estranha potência, neutra, impessoal”. Blanchot cita Borges, que terá escrito acerca de Shakespeare: “‘parecia-se com todos os homens, exceto no facto de se parecer com todos os homens’”. Ou seja: Borges vê em todos os autores um só autor. O único sentido que a narrativa tem é o que nos faz entender que não estamos perante “acontecimentos que se realizam realmente, nem perante pessoas que os realizam pessoalmente, mas perante um conjunto preciso e indeterminado de versões possíveis” (1984, p.103-106 e p. 158-159). No ensaio dedicado a Mallarmé, começa por se interrogar sobre qual o significado da palavra Livro neste poeta e logo a ideia da impersonificação se impõe: “o livro que é o Livro é um livro entre outros”. O devir do desaparecimento falante do autor reaparece com outra intensidade quando Blanchot reproduz esta conhecida afirmação do poeta de L’Après-midi d’un faune: “‘a obra implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras, pelo choque da sua desigualdade mobilizada’”. Tudo como se o livro só o pudesse ser quando deixasse de remeter para aquele que o teria escrito. As palavras apenas designam a extensão das suas relações e, nessa medida, o espaço em que se projetam vai-se disseminando. Regista-se em seu torno um movimento de máxima dispersão e diversidade. A compreensão da espessura e das várias dimensões do espaço produzido pela linguagem terá sido fundamental para Mallarmé, que afirmou ter experimentado sin- 154 tomas inquietantes e abismos desesperantes causados pelo ato simples de escrever. Nele, elucida-nos Blanchot, “uma frase não se limita a desenrolar-se linearmente: abre-se; através dessa abertura escalonam-se, desprendem-se, espaçam-se e estreitam-se de novo, a diferentes níveis de profundidade, outros movimentos de frases, outros ritmos de palavras que se relacionam entre si segundo firmes determinações de estrutura”. A origem criativa da aventura do movimento poético pode, assim, ser definida como a de um espaço que se aproxima de outro espaço, de uma prática analítica que procura entender, através da sua mobilidade falante, não o real conhecido do tempo presente, mas aceder a outra coisa. A partir dos problemas teóricos que Mallarmé se colocou a si próprio, Blanchot pode, pois, aprofundar as suas teses fundamentais associando a escrita à construção da mudança. Uma delas é que a presença da poesia e de toda a literatura “é uma presença por vir: vem para além do futuro e não cessa de vir quando aí está”. E outra é que “a obra é a espera da obra; só nesta espera se reúne a atenção impessoal que tem por caminhos e por lugar o espaço próprio da linguagem” (1984, p.234-255). Porque nela é a atração pelo exterior que domina, a escrita materializa a experiência mais radical da alteridade, a da saída de si. Ora, também o discurso filosófico é marcado por conceitos que visam, sem sucesso, atingir o que Blanchot denomina de “reino seguro” ou “espaço de permanência” onde a verdade possa ser ressuscitada. Com efeito, incansavelmente se procura edificar um mundo, “a fim de que a secreta dissolução, a universal corrupção que rege o é” possa ser suspensa ou mesmo esquecida ante a coerência do aparato conceptual, as noções, objectos e relações estabelecidas entre eles por meio da nossa análise. Mas eis que uma outra busca se transforma na abertura de uma crise, e um novo movimento para fora que faz desvanecer o sentido, a ideia, o universal. Na palavra filosófica, é igualmente o exterior que fala. Por essa razão a possibilidade é, para Blanchot, muito mais do que a realidade. A primeira funda a segunda e é assim que, também ele, chega à noção de potência e ao trabalho da construção da diferença. A possibilidade, esclarece-nos, “é o ser mais o poder de ser”. E, 155 de um modo mais rigoroso e porventura mais instigante, afirma sobre as dimensões essenciais da nossa existência individual: “é somente com o poder de sê-lo que se é aquilo que se é; aqui vemos logo que o homem não tem somente possibilidades, mas ele é a sua possibilidade”. Outra vez, estamos ante o desafio de enfrentamento a todos os poderes estabelecidos a partir de uma dimensão auto-reflexiva. As relações “no mundo e com o mundo” passam a ser compreendidas como relações de potência, estando esta “contida na possibilidade”. Quando alguém toma a palavra, e mesmo ficando nos “traços mais aparentes da linguagem”, entra sempre numa relação de potência: “eu pertenço, quer saiba quer não, a uma rede de poderes da qual me sirvo, lutando contra a potência que se afirma contra mim”. Também para Blanchot “toda a palavra é violência, violência tanto mais temível quanto secreta” (2001, p.73, 85-6). Interrogamo-nos sem trégua, e não mais ontem que hoje, sobre o tempo e as formas de vida que ele instala. Ainda de acordo com o testemunho de Maurice Blanchot, a capacidade de nos mantermos em exercício neste jogo relacional com o curso do mundo e conosco mesmos está dependente de perceber que a maneira de ser da escrita se define pelo questionamento e que este, uma vez desencadeado, não termina nunca. A palavra torna-se o lugar da dispersão e da fuga do sentido porque existe uma fantástica força que produz um revezamento permanente entre o todo e o ser. Ora, essa força ou poder materializa-se no próprio ato de questionar. Em A conversa infinita sucedem-se as páginas destinadas a elucidar-nos como uma estrutura cognitiva vai sempre desviando “o questionamento de ser questão e de obter uma resposta” definitiva que apazigúe o espírito. Há invariavelmente nas nossas perguntas um contacto com algo de mais fundo que “se furta a toda a questão e excede todo o poder de questionar; o questionamento é a própria atração deste desvio” (BLANCHOT, 2001, p.41-61). É este que sobrecarrega a palavra escrita de uma relação de infinidade e estranheza, produzindo um campo essencialmente dissimétrico e descontínuo, que inviabiliza o discurso de se esterilizar. O trabalho da questão impede o pensamento de tender para a unidade e de realizar o todo. 156 Questionar é buscar, e buscar é buscar radicalmente, ir ao fundo, sondar, trabalhar o fundo e, finalmente, arrancar. Esse arrancar de raiz é o trabalho da questão. Trabalho do tempo [...]. Freud afirma mais ou menos que todas as questões atabalhoadas das crianças lhes servem de revezamento para a questão que elas não formulam, e que é a questão da origem. Da mesma forma, interrogamo-nos acerca de tudo a fim de manter em movimento a paixão pela questão, mas todas elas se dirigem para uma única, a questão central, ou a questão de tudo [...]. A questão inaugura um tipo de relação caracterizada pela abertura e o livre movimento [...]. A questão espera a resposta, mas a resposta não apazigua a questão e, embora ela encerre, não termina com a espera que é a questão da questão [...]. Toda a questão, hoje, já é a questão de tudo. Essa questão de conjunto, que não deixa nada de fora e nos confronta constantemente com tudo, numa paixão abstracta extenuante, está presente, para nós, em todas as coisas [...]. Questionar é jogar-se na questão. A questão é esse convite ao salto, que não se detém num resultado. É necessário um espaço livre para saltar, e é necessário um solo firme, é preciso um poder que, a partir da imobilidade segura, transforme o movimento em salto. O salto, a partir e fora de qualquer firmeza, é a liberdade de questionar (BLANCHOT, 2001, p 41-53). São também vários os textos em que Deleuze, ele mesmo ou em parceria com Guattari, reflete acerca da experiência limite proporcionada pela escrita, em explícita ligação às noções blanchotianas da relação do texto com o de fora, do inacabamento e do anonimato da linguagem. No livro Kafka: Para uma literatura menor é o tema do espaço delimitado por uma vontade de escrita, que se exerce para apenas exprimir infinito de si mesma, a dominar a minuciosa análise da dupla Deleuze-Guattari. Kafka é ali tomado como o caso da mais pura paixão pela escrita, confundindo-se esta com a própria vida do autor de Metamorfose. Descobrem nele uma verdadeira máquina de escrita em que todas as diferentes componentes da expressão literária comunicam entre si na tarefa de deslocamento da questão e por isso de desterritorialização do 157 pensamento. Os dois filósofos chegam a afirmar que nunca se terá construído uma obra literária tão completa através de movimentos que sempre se goram, mas nunca deixam de operar e relacionar-se estruturalmente entre si. Em Kafka, a paixão de escrever não cessa, embora mudem os respectivos limiares de intensidade: são “cartas paradas porque uma devolução as bloqueia”; “novelas que param porque não podem desenvolver-se em romances, divididas nos dois sentidos que tapam a saída”; “romances que o próprio Kakfa pára porque são intermináveis e simplesmente sem limite, infinitos”. No seu processo criativo há um arrastamento ou uma linha de fuga, na conhecida terminologia de Deleuze, que lhe permite questionar de frente e em simultâneo a ordem política, económica, burocrática ou jurisdicional. Essa paixão extenuante de compreender o funcionamento das instituições terá, também, permitido a Kafka antecipar e “extrair sons ainda incógnitos que pertencem ao futuro próximo – fascismo, estalinismo, americanismo, as forças diabólicas que estão a bater à porta” nos anos 30. Deleuze & Guattari encontram nesta dinâmica, em que a expressão precede o conteúdo e o arrasta, a tese fundamental deste seu livro. Viver e escrever só se opõem no que ambos denominam “literatura maior”; em Kafka, pelo contrário, estas duas dimensões fundem-se e constituem as condições objetivas do exercício de uma “literatura menor”, isto é, de uma prática de escrita que oferece à língua “condições revolucionárias”, por intermédio da “ligação do individual com o imediato político” e do “agenciamento coletivo da enunciação”. Notam que, mesmo moribundo, Kafka era “transido por um fluxo de vida invencível” que lhe vinha tanto das cartas, das novelas, dos romances como “do seu inacabamento mútuo por razões diferentes, comunicantes e permutáveis”. Tudo é questão de tudo, como se acabou de ler há pouco em Blanchot. Por essa razão, o primado da escrita em Kafka só pode ter um significado que não se confina de modo algum ao que vulgarmente entendemos por literatura. E o significado é este: a enunciação constitui-se como um desejo contingente, situado histórica, política e socialmente no seu tempo, mas que se projeta “acima das leis, 158 dos Estados e dos regimes”. Temos então na escrita de Kafka uma “micropolítica, uma política do desejo que põe em causa todas as instâncias”. As razões que o terão levado a abandonar este ou aquele texto configuram, afinal, um vasto mapa de transformações e intensidades, dir-se-ia moleculares, que nos dão conta não de um fracasso, mas de uma análise multivariável que se determina em antecipar-ultrapassar dos limiares estabelecidos por uma qualquer ordem. Quer dizer, há na experiência da escrita de Kafka a possibilidade de descortinar uma “desterritorialização absoluta” por oposição às “territorializações relativas que o homem produz sobre si mesmo” quando viaja, por exemplo. O enunciado mais não é que a possibilidade de organização de um combate cognitivo dominado pela possibilidade de relançar a análise, produzindo uma “linha de fuga viva” ante a transcendência com que a lei sempre se anuncia. Tarefa urgente e interminável a do confronto com todas as formas de desejo e poder, já se vê. Deleuze & Guattari concluem: “nunca houve autor tão cómico e alegre do ponto de vista do desejo; nunca houve autor mais político e social do ponto de vista do enunciado”. Em Kafka, “tudo é riso, a começar pelo Processo; tudo é político, a começar pelas cartas a Felice” (2003, p.41 e 69-79). Os mesmos haviam já problematizado em O que é a filosofia, e ainda a partir de Blanchot, a noção de acontecimento, ligando-a a conceitos centrais no seu trabalho como sejam os de nuvem, fluxo, bifurcação ou de transposição de limiar. A uma prática do interminável, do que não acaba nem começa. A seu ver a escrita ligar-se-ia, igualmente, a uma experiência que se distingue da do estado corrente de coisas por que passamos, nós próprios e o nosso corpo, porque produz um tipo de acontecimento que é simultaneamente “incorpóreo e de pura reserva”. Nestes termos, escrever seria aquele “acontecimento no qual nos afundamos ou nos elevamos, o que recomeça sem jamais ter começado nem acabado, a internidade imanente” (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p.138). A dívida em relação a Blanchot é reforçada nos momentos em que Deleuze procurou incorporar na sua linguagem filosófica o tema da relação com o exterior. Trata-se, para ele, de imaginar uma linha, uma 159 articulação que não está no pensamento ou nas coisas em si, mas se encontra em toda a parte onde o pensamento enfrente algo que seja mais longínquo que o mundo exterior e, ao mesmo tempo, mais próximo que o mundo interior. Um processo de “reinversão perpétua” do adjacente e do longínquo. Para Deleuze, o pensamento estrutura-se nessa dinâmica e é convocado a enfrentar “qualquer coisa como a loucura, e a vida, qualquer coisa como a morte”. A linha do exterior seria então o nosso “duplo”, precisamente o que nos atravessa “com toda a alteridade do duplo” (DELEUZE, 2003, p.151). Num artigo amiúde referenciado, e que tem o sugestivo título Pensamento nômade Deleuze refere-se às características dos textos de Nietzsche – particularmente os seus aforismos – como se da sua leitura ficasse a impressão de se estar face a um novo tipo de objeto, para de novo insistir na relação com o fora. Quando olhamos ao acaso para um livro qualquer do autor de Assim falou Zaratustra, sucede “que não passamos mais por uma interioridade”, seja a da alma, da consciência ou do conceito, princípios que fizeram sempre parte da filosofia. Esta deixa aqui de ser mediatizada e dissolvida por interioridade – Nietzsche “funda o pensamento, a escrita sobre uma relação imediata com o fora”. Deleuze clarifica a sua ideia nos termos seguintes: O que é uma bela pintura ou um desenho muito belo? Há um quadro. Um aforismo também é enquadrado. Mas a partir de que momento se torna belo o que está no quadro? A partir do momento em que se sabe e se sente que o movimento, que a linha que é enquadrada vem de outro lugar, que ela não começa nos limites do quadro. Como nos filmes de Godard, pinta-se o quadro com a parede. Dizemos [igualmente dos textos de Nietzsche ou de Kafka, por exemplo] que são atravessados por um movimento que vem de fora, que não começa na página do livro nem nas páginas precedentes, que não cabe no quadro do livro e que é absolutamente diferente do movimento imaginário das representações ou do movimento abstrato dos conceitos tais como eles acontecem habitualmente através das palavras e na cabeça do leitor. Alguma coisa salta 160 do livro, entra em contato com um puro fora. É isto, creio, o direito ao contrassenso para toda a obra de Nietzsche. Um aforismo é um jogo de forças, um estado de forças sempre exteriores umas às outras. Um aforismo não quer dizer nada, não significa nada, não tem significante como não tem significado. Seriam maneiras de restaurar a interioridade de um texto. Um aforismo é um estado de coisas, cuja última força, ou seja, ao mesmo tempo a mais recente, a mais atual e a provisória-última, é sempre a mais exterior. Nietzsche o diz muito claramente: se você quiser saber o que eu quero dizer, encontre a força que dá um sentido, se for preciso um novo sentido ao que eu digo. Conecte o texto a essa força. Desta maneira, não há problema de interpretação de Nietzsche, há apenas problemas de maquinação: maquinar o texto de Nietzsche, procurar com qual força exterior ele faz passar alguma coisa, uma corrente de energia (DELEUZE, 2006a, p.323-324). Em síntese, na perspectiva que aqui tomo, o problema que envolve o ato de escrever é o de saber como produzir enunciados que abandonem os princípios a toda a hora expressos pela lei – e pelas instituições que a introduzem no corpo social através das mais variadas rotinas de representação disciplinar e unitária da herança cultural, fazendo para isso uso do saber como um corpo de prescrições e um círculo em que se desenrolam verdades –, puxando a linguagem para fora dos seus sulcos habituais e fazendo-a comunicar com o que será o seu próprio exterior. Os enunciados de alguma teoria social a que deitei mão para melhor sugerir a força inventiva do exercício escritural não cessam de nos falar de inacabamento, de desvio, de desaparecimento orgânico, de devir estrangeiro ou da intensidade de uma corrente de energia que vem e puxa para fora. Convergem na metáfora do nomadismo, no rigoroso sentido de um deslocamento perpétuo operado pela experiência mesma da escrita – a hipótese de uma aventura, de uma partida que sobrevém à máquina administrativa que acompanha todos os grupos sedentários e o aparelho de Estado. A escrita consubstanciaria, nestes termos, uma potência migratória para o pensamento e, nessa relação com o fora, 161 a possibilidade de viajar no mesmo lugar. Viagem-imóvel intensa, imperceptível, inesperada, subterrânea, anónima, mas capaz de engendrar práticas extratextuais e renovadas possibilidades de existência. Referências AGAMBEN, Giorgio. Profanações. Lisboa: Livros Cotovia, 2006. AGAMBEN, Giorgio. Ideia da prosa. Lisboa: Livros Cotovia, 1999. AGAMBEN, Giorgio. A comunidade que vem. Lisboa: Editorial Presença, 1993. BAUMAN, Zygmunt. Postmodern ethics. Oxford: Blackwell, 1993. BLANCHOT, Maurice. A conversa infinita: A palavra plural. v.I. São Paulo: Editora Escuta, 2001. BLANCHOT, Maurice. O livro por vir. Lisboa: Relógio d’Água, 1984. CONNOR, Steven. Cultura pós-moderna: Introdução às teorias do contemporâneo. São Paulo: Edições Loyola, 2000. DELEUZE, Gilles. Pensamento nômade. In: ______. A ilha deserta e outros textos: Textos e entrevistas (1953-1974). São Paulo: Editora Iluminuras, 2006, p. 319-329. DELEUZE, Gilles. Conversações. Lisboa: Fim de Século, 2003. DELEUZE, Gilles. Crítica e clínica. Lisboa: Edições Século XXI, 2000a. DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio d’Água, 2000b. DELEUZE, Gilles ; GUATTARI, Félix. O que é a filosofia? Lisboa: Editorial Presença, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Kafka: para uma literatura menor. Lisboa: Assírio & Alvim, 2003. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2000. HARVEY, David. The condition of postmodernity: An enquiry into the origins of social change. Oxford: Basil Blackwell, 1989. JENKINS, Keith. Re-thinking history. London: Routledge, 1991. 162 LYOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna. Lisboa: Gradiva, 2003 RORTY, Richard. Contingência, ironia e solidariedade. Lisboa: Editorial Presença, 1994. SMART, Barry. Teoria social pós-moderna. In: TURNER, Brian S. (Ed.). Teoria social. Lisboa: Difel, 2002, p.405-436. 163 A inversão do ciclo literário: entre a comunicação libertadora e a comunicação dominadora1 Cesar Beras Introdução Partimos da compreensão de que o processo de racionalização (especialização2) que ocorre no contexto de surgimento do capitalismo moderno explicita um conjunto de diferenciações entre funções que aconteciam simultaneamente e dentro de um mesmo sentido, ou seja, para efeitos da análise aqui pretendida, a produção de livros e sua distribuição já tinham uma conotação comercial, mas aliada à difusão e construção de conhecimento crítico; estas funções vão gradativamente se diferenciando e se opondo como esferas autônomas. Assim, a produção do livro como atividade cultural que, ao se reproduzir, tinha intrínseca em si a atividade comercial, vai se separando desta, sofrendo, como vamos buscar demonstrar, sistematicamente tentativas, muitas vezes efetivas, de dominação do polo comercial. Ou seja, o livro vai virando cada vez mais um mero objeto de consumo de massas, com pouco ou nenhum potencial crítico. Nesse cenário, o ponto de partida para a experimentação conceitual, que se pretende realizar, é a identificação de duas possibilidades comunicativas referentes ao processo de produção, distribuição e recepção de um livro (neste caso, mas que pode servir para outros bens culturais), o que se denomi1 O presente texto é um material inédito, resultante da pesquisa que realizamos atualmente, dentro da linha de sociologia do cotidiano que articula o processo de racionalização capitalista, a construção do conhecimento crítico como condição de liberdade e atividade das livrarias tensionadas entre as possibilidades de serem um esfera pública ou somente uma esfera comercial. Um produto desta pesquisa como um todo é o livro Palmarinca: livros, capitalismo, sentimentos e resistência, lançado em novembro de 2018, que aborda o caso específico de uma pequena livraria de Porto Alegre. 2 Com base nas reflexões de Max Weber (2006; 2002). na de ciclo literário. Possibilidades porque estão em disputa, e logo em luta entre si, e não como algo dado, natural e já resolvido; não se trata, portanto, de etapas históricas sucessivas e em constante evolução, mas de posições antagônicas que, ao se oporem, vão construindo uma tessitura sócio-histórica sempre em aberto. E que aqui serão representadas como tipos ideais, conforme a perspectiva metodológica weberiana3. De um lado teremos, portanto, uma comunicação libertadora constituída, por sua vez, por uma dimensão valorativa e uma dimensão construtiva que, em permanente retro-alimentação entre si, buscam dar conta das condições de liberdade construídas pelos indivíduos dentro da estrutura social vigente. Isso acontece conquanto tenhamos, de forma articuladas entre si, uma comunicação valorativa – no campo da produção de ideias e, logo, o espaço da diversidade e pluralidade da construção simbólica, dimensão constitutiva de uma comunicação crítica e pública – e uma comunicação construtiva proposta pelo ciclo literário que dá conta da relação com a sociedade, o mercado e o Estado, estabelecendo contato entre o processo de produção e as condições sociais em que esta ocorre e, para isto, dialoga com tais condições, ou seja, sendo mudada e mudando-as simultaneamente. De outro lado, inversamente, podemos vir a ter uma comunicação dominadora que não realiza tal movimento crítico, mas reproduz o status quo vigente, não de forma plural e nem dialogando com as condições sociais de forma crítica, mas reproduzindo a lógica vinda com este movimento de busca incessante do lucro, fruto do processo de racionalização capitalista no ciclo literário do livro. Há uma constante tensão entre os dois polos – crítico e comercial – em que a atividade empresarial busca autonomizar-se, rompendo com a atividade criativa, subvertendo-a em nome do barateamento de custos, do atendimento e da geração de demandas de massa de forma 3 Para aprofundar tal reflexão, ver Weber (2006). A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais, onde são expostas as características centrais de construção não de tipos gerais e pretensamente unívocos, mas tipos ideais, que não existem na realidade de forma pura e buscam contrastar com esta para lhe extrair seu sentido particular, ou seja, as características próprias e essenciais do fenômeno analisado. 166 imediata, que levam a uma cisão entre a atividade de venda e a atividade criativa, sendo não mais a segunda a geradora da primeira, mas agora de forma inversa. Temos, portanto, de forma ideal típica, a oposição entre uma função de construção do conhecimento crítico e a necessidade de ganhar dinheiro, ou seja, entre o espaço constitutivo da produção de um esfera pública versus somente a busca e obtenção de lucro. Isso tudo tem impacto no próprio ciclo literário, pois tende a regular a produção e a distribuição não por elementos de acesso à cultura, mas de acesso a uma mercadoria capitalista, ou seja, algo que vende, algo transitório, algo massivo. Assim, para dar conta da reflexão experimental aqui proposta, organizaremos o presente artigo em quatro partes: 1) uma breve conceituação do processo de inversão do ciclo literário; 2) uma discussão sobre os perigos de ler e a emergência de um comunicação libertadora; 3) a autonomização do processo de comercialização e emergência de uma comunicação dominadora; e, por último, algumas considerações sobre a tensão constante entre as duas formas de comunicação trabalhadas. A inversão das formas de comunicação da esfera literária Pode-se perceber que a emergência e o desenvolvimento do capitalismo levam a uma inversão sócio-históric do sentido crítico do ciclo literário (produção, distribuição e recepção) para um sentido acrítico; isto não é definitivo e nem inexorável, mas uma tendência forte e em constante busca de hegemonia dentro do contexto atual (capitalismo contemporâneo). Nesse cenário teórico, vamos explorar tal inversão do ciclo, relacionando os tipos ideais weberianos de ação social – a tensão entre a plena tradicionalização que pode vir a ter um viés conservador e uma plena racionalização, que leva a mercadologização e perda da função crítica e dos dois tipos intermediários e, logo, do provável sentido que estaria na base do processo de funcionamento do ciclo – com os tipos desenvolvidos por nós – da comunicação libertadora, ou seja, pública e crítica, 167 e de uma comunicação dominadora de caráter mais empresarial/comercial – para assim buscar captar as transformações ocorridas e as novas possibilidades daí suscitadas. A utilização de tipos ideais se dá na perspectiva weberiana de perceber os fenômenos sociais como imersos em uma fluidez histórica, da qual só é possível se aproximar de forma provisória, pois tais fenômenos estão em constante mudanças, geradas pela interpenetração dos diversos e diferentes interesses dos indivíduos e, portanto, constituídos por uma dimensão “polissêmica”, quer dizer, configurado por diferentes vozes e perspectivas de sentido que estão em disputa entre si. Nesse sentido, o tipo ideal busca capturar especificidades dentro de um processo que aparece como um todo aos nosso olhos, mas que está longe de ser homogêneo; ainda assim, um produto possível, específico e transitório: “Em cada fenômeno cultural há inúmeros conflitos de interesses que tornam a vida polissêmica. O tipo ideal visa organizar logicamente, mas não substituir esta dinâmica histórica real. Simplesmente compreendê-la. Dimensionar os diferentes pontos de vista possíveis” (WEBER, 2006, p.116). Weber distingue quatro tipos ideais de ação: a tradicional, a carismática, a com relação a valores e a com relação a fins. Cada uma tem um centro constitutivo diferente; não obstante se misturem na vida real, mantêm sempre um objetivo central em sua gênese. Podemos sumariar os diferentes tipos em características amplas, mas que permitam focar a racionalização do ciclo literário. Portanto, há dois extremos na concepção weberiana: no primeiro, a ação tradicional, com base na autoridade do eterno ontem, do passado, temos a reprodução de status quo e de hábitos e costumes que se perpetuam dentro da história: “La masa de todas las acciones cotidianas, habituales, se aproxima a este tipo, el cual se incluye en la sistemática no sólo en cuanto caso límite sino porque la vinculación a lo acostumbrado puede mantenerse consciente en diversos grados y sentidos” (WEBER, 2002, p.20). No outro extremo, teremos a ação racional com relação a fins, que não se pauta por tradições, ou autoridades consagradas, mas por uma permanen- 168 te relação entre meios e fins, diríamos de cálculo constante entre uma situação objetiva e a possibilidade de superação desta na perspectiva da maximização de interesses individuais: “Actúa racionalmente con arreglo a fines quien oriente su acción por el fin, medios y consecuencias implicadas en ella y para lo cual sopese racionalmente los medios con los fines, los fines con las consecuencias implicadas y los diferentes fines posibles entre sí” (WEBER, 2002, p.21). A articulação entre meios e fins perpassa tanto a orientação com relação a valores, como a com relação a fins, mas tem, como traço diferencial geral, o fato de a primeira ser considerada na perspectiva da segunda como irracional, pois quebra a relação de planificação do cálculo ao tornar o valor como um dado absoluto; assim o compromisso com a causa (seja esta qual for) vem primeiro, para além da posição individual e da ação mais eficiente e preocupada com a satisfação imediata e objetiva do que é necessário para a sobrevivência (WEBER, 2002, p.20). Assim, neste caso, o processo adaptativo se dá por motivações externas, ou seja, voltado para rotinas e padrões de vida que buscam a acumulação material pelo domínio e extração da natureza das necessidades para a sua reprodução existencial. No meio desses dois extremos, teremos duas outras motivações: a carismática e a valorativa. Ambas partem do rompimento com uma rotina, da sua recriação constante, pois motivam-se pela esfera íntima, ou seja, por motivações de dentro para fora, o oposto dos outros tipos situados na extremidade: “tienen de común el que el sentido de la acción no se pone en el resultado, en lo que está ya fuera de ella, sino en la acción misma en su peculiaridad” (WEBER, 2002, p.20). Weber opõe metodicamente paixão e razão para identificar as posturas diferenciadas na ação social, estabelecendo tal oposição para compreender o funcionamento do processo de racionalização e onde ele é prejudicial ao ser humano, no caso, no processo de secundarização das paixões, ou de sua mecanização. Assim, as ações afetivas, as duas identificadas como fundantes da esfera da intimidade: “Actúa afectivamente quien satisface su necesidad actual de venganza, de goce o de entrega, de beatitud 169 contemplativa o de dar rienda suelta a sus pasiones del momento (sean toscas o sublimes en su género)” (WEBER, 2002, p.21). A diferença entre elas é o grau de planejamento, ou seja, de possível rotinização, para Weber, orientada por objetivos valorativos que têm de diferente das formas extremas uma “não preocupação” com as consequências imediatas, mas com a consecução de sua “causa”. Dessa maneira, cruzando de forma livre os tipos ideiais weberianos clássicos e os tipos ideais construídos por nós ao longo do presente trabalho, como forma de evidenciar o processo de racionalização do ciclo literário do livro, podemos inferir que as possibilidades de uma comunicação libertadora reside sócio-historicamente em um ciclo motivado, principalmente no processo distributivo, ou por uma ação carismática, com base no líder guerreiro, no grande demagogo, no profeta, para ficarmos nos exemplos do próprio Weber, ou na ação valorativa que pressuporia o livro ou como uma causa em si, ou como o instrumento principal de uma causa maior. Temos, portanto, uma forma de construção do conhecimento (libertadora) que, ao ser crítica de uma forma de adaptação predominante, a externa, é amplamente plural e heterogênea em sua composição e articulação, pois constitui um processo necessariamente aberto. A finalidade não é a priori o tipo específico de mudança, mas sim a mudança, que necessariamente deve dialogar com os elementos íntimos e, logo, subjetivos dos indivíduo. Tabela 1 - Tipo de ação social x elemento central x forma de adaptação Ação tradicional (Extremo racional) Ação carismática (Irracional) Ação valorativa (Irracional) Ação c/ relação a fins (Extremo racional) Passado eterno Extraordinário Causa (luta) Interesses Individuais Adaptação externa Adaptação interna (esfera da intimidade) Adaptação externa Motivação comunicação dominadora Motivação comunicação libertadora Motivação comunicação dominadora Fonte: Elaboração do autor 170 O ciclo – assim em uma perspectiva de comunicação libertadora ao articular suas duas dimensões: comunicação valorativa e comunicação construtiva – realiza a experimentação do livro de forma plural, logo, com uma tensão dos valores comunicados, com luta nas condições de produção e de vida social e com perspectivas também conflitantes de afirmação da liberdade (e o que pode vir a ser isso), mas, indiferente a isso, permite a sua problematização e logo afirmação como elemento central da experimentação do próprio livro. Sua disputa de sentido é sua condição de existência e da própria possibilidade de um dos sentidos vir a ser predominante. De outro lado, por sua vez, temos a possibilidade de uma comunicação dominadora, base de uma motivação quer em um extremo, conservadora, no caso as formas de dominação tradicionais, quer no outro extremo, maximizadora dos interesses privados e, como já amplamente demonstrado, base do capitalismo moderno e, digamos, seu leit-motiv principal, a ação com relação a fins. Diferente do tipo de comunicação anterior, esta bloquearia a comunicação plural, diversa e crítica, pois necessitam – ou por exigências do passado (patriarcalismo e suas forma patrimoniais, formas culturais tradicionalizadas e seus regionalismos etc...) ou por imperativos da adaptação externa, cada vez mais complexos a partir de constantes inovações tecnológicas e a consequente emergência de novas necessidades humanas – ambas as formas, manter-se no poder como forma de sua reprodução. Nessa perspectiva, o processo comunicativo vai propiciar valores quer tradicionais, quer efêmeros, condições de adaptação desiguais e concentradas, e uma forma de liberdade expressa quer no passado, quer no interesse privado, ou seja, uma liberdade condicionada. No interior dessa forma de comunicação, que se busca naturalizar como forma preponderante em um mundo cada vez mais competitivo, haverá certamente também uma pluralidade interna de como realizar a dominação e de como se faria isto. Também sentidos em disputa, pois subjetivos e situacionais (dependem do contexto que, por sua vez, pode vir a interferir no processo de motivação). Portanto, nessa tensão entre duas possibilidades – crítica e acrítica – do ciclo literário, temos no processo só- 171 cio-histórico uma inversão situacional, que retomamos no quadro a seguir, onde, com o avanço do desenvolvimento do capitalismo, temos a predominância de um sentido acrítico que permeia os três diferentes momentos. Percebe-se que, no momento da produção do livro, temos uma posição de autonomia do produtor e da difusão de sua obra preservando a qualidade original de sua atividade intelectual. Isso tende gradativamente a ir se invertendo para uma constante perda de autonomia, no momento em que a atividade cultural vai se autonomizando e adquirindo a forma de um campo específico e autônomo (BOURDIEU, 1996), onde o(a) autor(a), para poder se manter, necessita adaptar seu processo criativo a elementos externos, ou seja, precisa negociar sua intimidade e subjetividade, sacrificando sua originalidade. Tabela 2 - Fases históricas do capitalismo x sentido do ciclo literário Fase histórica Início do capitalismo (transição) Ciclo literário Produção Distribuição Recepção Sentido crítico Autonomia Ampliação acessibilidade Crítica política Sentido acrítico Consolidação do capitalismo Antinomia central Perda da autonomia (Especialização cultural) Especialização comercial Relativização da capacidade crítica Crítica x comércio = Inversão da capacidade crítica do ciclo literário Fonte: Elaboração do autor Paralelamente, no momento da distribuição, percebemos a transição, sempre crescente e atual, de uma situação de ampliação do acesso com base nas formas de distribuição, via a expansão da atividade comercial para uma situação de especialização comercial. Nesse processo haverá, por sua vez, a inversão do processo de universalização do acesso aos bens culturais para a sua apropriação como algo lucrativo, que pode vir a reduzir sua função crítica, pois tal especialização torna o livro cada vez mais um mero objeto de consumo, o que leva a uma cisão entre o polo cultural e o polo comer- 172 cial, antes complementares, mas agora tensionados em função da busca cada vez maior do lucro. E, na confluência das transformações anteriores, simultaneamente, pode-se verificar que, no momento da recepção, inicialmente vinculada à experimentação da intimidade, da construção da individualidade e, portanto, uma forma crítica e política (pois altera ou pelo menos complica as relações de poder e o status quo medieval e mesmo também o burguês, pelo menos inicialmente) deriva agora, sempre inversamente, a uma posição de relativização da crítica, pois reduzida à dimensão comercial, ficam as possibilidades de recepção limitadas às leis de oferta e procura e de custo x benefício típicas do capitalismo, perdendo em qualidade, diversidade e, logo, criticidade. Essas transformações não são absolutas e muito menos lineares, mas fruto das contradições e mazelas do desenvolvimento do capitalismo e da sociabilidade que daí se depreende, que tende a levar os processos de reprodução da condição humana a formas cada vez mais especializadas e orientadas pela adaptação externa (comida, bebida, trabalho etc...) e, portanto, racionalizadas pela lógica do lucro. Nesse sentido, tais transformações envolvem três dinâmicas de movimento que, articulados entre si, tensionam as possibilidades comunicativas envolvidas na experimentação de livros: uma dinâmica que vai identificar as transformações ocorridas no ato de ler ou dos perigos da leitura para o status quo vigente; outra que vai perceber o processo constante, dentro do sistema vigente, de autonomização do processo de comercialização, enfatizando-se o livro como mercadoria e uma terceira4, que dá conta da tensão, também constante, entre o livreiro – responsável direto pela distribuição e circulação do livro – como um agente cultural, que valoriza e potencializa o bem cultural que comercializa e o livreiro como somente um empresário 4 Dado ao limite analítico deste artigo, que busca se centrar na construção de tipos ideais na perspectiva de captar os sentidos possíveis nas formas de experimentação da leitura, não vamos abordar a dinâmica específica da tensão entre agente cultural versus empresário comercial, que tem como objetivo captar os sentidos possíveis da atividade livreira em si, reflexão que buscamos realizar no conjunto geral da pesquisa sobre racionalização, liberdade e livraria, mas que extrapolam neste momento a reflexão aqui pretendida, pois demandaria uma análise exaustiva das livrarias em si. 173 que visa ganhar dinheiro, sendo o livro somente o meio disponível no momento. Vamos, nas próximas seções, detalhar de forma mais aprofundada cada uma das duas dinâmicas centrais que serão aqui abordadas e que estão na gênese e desenvolvimento das possibilidades de uma comunicação libertadora versus uma comunicação dominadora. Uma discussão sobre os perigos de ler e a emergência de uma comunicação libertadora Conforme já construímos neste texto,, a experiência da produção, da distribuição ou da recepção de um livro pode oscilar conforme as possibilidades de um comunicação libertadora que está em permanente tensão com uma comunicação dominadora dentro de um contexto capitalista. A primeira, ao se apropriar da literatura, a utiliza na construção de valores democráticos e comprometidos com formas de vida emancipadas e que se propõem como atitude a modificar para melhor e para todos as condições de vida. A segunda, inversamente, se propõe a conservar valores e status quo já afirmados e que cessam as possibilidades de constante universalização da democracia e da liberdade humana que são construídas por meio dos fluxos “incomensuráveis da história” (WEBER, 2006), ou seja, como possibilidades em disputa no centro da sociabilidade humana. Nesse sentido, vamos analisar, de forma sintética, o funcionamento de tal oscilação na dinâmica da recepção, que seria a ponta externa do ciclo, o polo do consumo, da apropriação crítica, ou não, do que foi produzido e distribuído, e que pode sim, pela forma de reação, alterar o funcionamento do ciclo. Mas o central aqui é perceber alguns elementos significativos na forma de recepção que identificamos como os perigos de ler, ou seja, do que a leitura pode modificar na postura dos indivíduos. Dois exemplos ilustram de forma derradeira essa tensão, com base na pesquisa de Chartier (2014), que capta passagens, 174 podemos dizer, dramáticas, que demonstram a “radicalidade” da experiência de ler um livro lá no início do processo de expansão do seu acesso. O primeiro dá conta de um diálogo, logo após 1476, ou seja, do advento da invenção da prensa de Gutemberg, entre um camponês e um estudante de Salamanca, uma imagem literária extraída de uma comédia de Lope de Vega, na qual a tensão entre o novo e amplo acesso e a reação aos possíveis efeitos deletérios para a cultura se expressa francamente: Barrildo: ‘Ouço dizer que estão imprimindo tantos livros agora que todo mundo pode escrevê-los. É fantástico’. Leonelo responde: ‘E quanto mais o livro soa como baboseira sem sentido, mais alto todo mundo aplaude. Não nego que a impressão trouxe à tona alguns gênios e ajuda preservar sua obra, mas ao mesmo tempo destruiu a reputação de outros permitindo que nós os lêssemos’ (CHARTIER, 2014, p.110). O processo de ampliação ao acesso, que tem uma reação quase natural por parte de quem de forma elitizada acessava a literatura, demonstra no mínimo duas coisas: a) a capacidade de ampliação do universo e de questionamento ocasionada pela leitura que assusta os que já conheciam tal potencial, que agora começa a ser universalizado, assim a preocupação com a reputação conota uma perda de espaço, mas simultâneamente uma modificação possível nas relações de poder; e também mostra b) a capacidade de ampliação da produção crítica democrática, pois potencializa a possibilidade de circulação de outros pontos de vista, assim de certa forma aqui já se pode perceber a emergência de uma comunicação libertadora identificada nesse processo de ampliação. O segundo exemplo mencionado, de Chartier (2014), completa a ilustração anterior e aponta para como eram significados os efeitos corporais do ato de ler: “O discurso assumiu um tom médico, construindo uma patologia da leitura excessiva, considerada como doença que acometia o indivíduo ou como epidemia coletiva” (CHARTIER, 2014, p.120). Novamente identificamos aqui um processo de reação à expansão do acesso a literatura, pois vai refletir no amplo consumo que demonstra 175 reações ao “renascido produto do livro” que impactam as autoridades e configuram um lema: é perigoso ler em excesso. Assim, a leitura será associada a enfermidades típicas, vejamos: A leitura incontrolada era tida como perigosa porque combinava imobilidade corporal e excitação da imaginação. E introduzia a pior das enfermidades: estômago ou intestinos ingurgitados, nervos pertubados, exaustão corporal. Profissionais da leitura – isto é, homens de letras – eram os mais expostos a tais distúrbios, considerados as fontes de hipocondria, sua doença característica. Mas o exercício solitário da leitura também conduzia a imaginação dispersiva, rejeição da realidade e preferência por fantasias. Isso implicava uma estreita ligação entre leitura excessiva e ‘prazeres solitários’, que produziam os mesmos sintomas: palidez, preocupação e prostração (CHARTIER, 2014, p.120). O exemplo é deveras ilustrador das possibilidades de uma comunicação libertadora já na identificação dos sintomas da, digamos, nova doença, a de ler: imobilidade corporal e excitação da imaginação, que se transformaram em fontes de preocupação no momento que a experiência de ler é individual e silenciosa e, assim, se torna incontrolável e ao mesmo tempo uma possível fonte de crítica social. Temos a observância de transformações corporais, demonstrando de certa forma o poder do conteúdo absorvido, seu impacto sensitivo, sua capacidade de perceber a realidade não de forma passiva, mas trocando energias, se modificando na experiência de ler, ou seja, a leitura pode provocar atitudes, e aí que se torna comunicação e não somente uma contemplação do mundo ou a absorção de um produto para alguma necessidade efêmera. O próprio Chartier (2014) salienta que se inicia aqui, ou potencializa-se, um processo de mudança nos comportamentos e representações. O perigo era maior quando a obra sendo lida era uma novela ou um romance e o leitor ou a leitora havia se retirado para a solidão. A essa altura, a leitura era julgada com 176 base em seus efeitos corporais, e aquela somatização de uma prática, cujos perigos haviam sido tradicionalmente descritos com o auxílio de categorias filosóficas e morais, talvez fosse o primeiro sinal de uma mudança acentuada tanto de comportamentos como de representações (CHARTIER, 2014, p.120). E isto – a somatização identificada que conecta comportamento e significação – é que torna o livro, desde o início do desenvolvimento da humanidade, algo perigoso, pois sua experimentação, como já discutimos alhures, é também da própria condição humana, mas, pelos efeitos demonstrados, não necessariamente de forma passiva, quer dizer, tal experiência pode modificar a própria forma de viver e isso significa em última instância que pode modificar as condições dessa forma de viver. Evidentemente que não se quer aludir que o ato de escrever e/ou de ler em si é revolucionário, caso contrário já se tinha saído do capitalismo há muito tempo, mas que tais atos encerram sim os passos iniciais para a emancipação, ou pelo menos para a sua problematização. E, não obstante, temos uma tensão antinômica, centro de nossa reflexão aqui com a atividade comercial que reflete diretamente nas formas, condições e possibilidades do momento de recepção da literatura. Por mais que leiamos em um espaço privado, esse espaço é configurado já por significações mais gerais impactadas pelo sistema que vivemos, o capitalismo. Isso quer dizer, de forma sumária, que a comunicação valorativa é, per si, tensionada por diferentes perspectivas que impactam na comunicação libertadora, reduzindo-a a uma comunicação dominadora centrada em uma comunicação inicialmente construtiva que vai se unilateralizar na dimensão comercial. Tal fenômeno pode ser melhor explicado não pela recepção em si, mas pelo processo de produção, quando, com base em Bourdieu (1996), observaremos a autonomização da cultura e sua consequente especialização cultural. Chegamos, assim, à segunda dinâmica de transformações no conjunto do ciclo literário, da autonomização da função comercial, que discutiremos na próxima seção. 177 A autonomização do processo de comercialização e emergência de uma comunicação dominadora O emergente capitalismo e seus hábitos culturais, centrados em uma ética comercial, impactam diretamente na esfera literária, principalmente nesta época ainda de pouca diferenciação entre os diferentes momentos do ciclo, na parte da produção. Gera-se uma oposição entre a produção intelectual e o mundo eminentemente regido pelo dinheiro. Bourdieu (1996, p.64) enfatiza isso: Não se pode compreender a experiência que os escritores e os artistas puderam ter das novas formas de dominação às quais se viram sujeitos na segunda metade do século XIX, e o horror a figura do ‘burguês’ por vezes lhe inspirou, se não se tem uma ideia do que representou a emergência, favorecida pela expansão industrial do segundo império, de industriais e de negociantes com fortunas colossais (como os Talbot, os De Wendel ou os de Schneider), novos-ricos sem cultura dispostos a fazer triunfar em toda a sociedade os poderes do dinheiro e sua visão de mundo profundamente hostil às coisas intelectuais. Temos uma distinção sócio-histórico, pois inscrita na realidade do século XIX, mas também filosófica, como autoconcepção e autocompressão do papel do escritor, ator, músico etc. como um produtor intelectual, totalmente diferente do mundo prático, instrumental, regido pela economia. A cultura não é econômica, mas sim a produção da arte de forma livre e descompromissada. Assim, a repulsa referida tensionava entre a emergência da nova sociedade nascente, que tinha os principais recursos econômicos, e uma necessidade crescente do escritor/ artista em obter financiamento para realizar seus produtos. A imagem invocada por Bourdieu (1996, p.60) é esclarecedora: Flaubert sentiu muito bem o princípio da nova economia: ‘Quando não nos dirigimos à multidão, é justo que a multidão não nos pague. A economia política. Ora, sustento que uma obra de arte digna desse nome e feita com 178 consciência é inapreciável, não tem valor comercial, não pode ser paga. Conclusão: se o artista não tem rendas, deve morrer de fome! Acha-se que o escritor, porque não recebe mais pensões dos grandes, é muito mais livre, mais nobre. Toda a sua nobreza social agora consiste em ser o igual de um vendeiro. Que progresso!’. Nesse sentido, têm-se elementos centrais que diferenciam nesse momento cultura e economia: a) a arte consciente é impagável e isso dramatiza a relação criando uma barreira intransponível para a época, mas, como veremos, atropelada pelo capitalismo que depende da constante especialização das diferentes esferas humanas na perspectiva da adaptação externa; e b) a tensão entre liberdade de criação e não dependência econômica, novamente uma distância radical de um sistema centrado no dinheiro. De forma esquemática, estamos verificando o início de um processo especial de autonomização da cultura. O elemento, sociológico, que vai induzir a isso é o da dependência direta de financiamento, o que leva à perda da autonomia da cultura perante o mercado e agora uma inversão, pois a cultura, para ser entendida como tal, precisa ser comercializada. Assim, a autonomização referida é uma cultura comercializada sustentada por dois eixos: a) a mercadologização da produção e distribuição, conforme identificaremos a seguir, em Bourdieu, e b) a construção de ligações duradouras que reforçam uma certa esfera literária com um financiamento mais estável. Doravante trata-se de uma verdadeira subordinação estrutural, que se impõe de maneira muito desigual aos diferentes autores de acordo com sua posição no campo, e que se institui através de duas mediações principais: a de um lado o mercado, cujas sanções ou sujeições se exercem sobre as empresas literárias, seja diretamente, através de cifras de venda, do número de recebimentos etc., seja indiretamente através dos novos postos oferecidos pelo jornalismo, a edição, a ilustração e por todas as formas de literatura industrial; do outro lado as ligações duradouras, baseadas em afinidades de estilo de vida e de sistema de valores, que especialmente, por intermé- 179 dio dos salões, unem, pelo menos, uma parte dos escritores a certas frações da alta sociedade e contribuem para orientar as generosidades do mecenato do Estado (BOURDIEU, 1996, p.65). Os efeitos dessa autonomização são implacáveis e criam uma rede de dependência da produção para com a distribuição (BOURDIEU, 1996, p.68): a) a dependência dos diretores de jornal, agora imprescindíveis, pois decidem o que é publicado, o que é vendido, o que é aceito e, logo, são idolatrados e não questionados; b) a fabricação pelo gosto do público e, logo, a inversão do processo de produção, antes em busca de um público, agora buscado pelo público. Novamente Flaubert (apud BOURDIEU,1996, p.61) ilustra o que está acontecendo: Quanto mais se põe consciência em seu trabalho, menos se tira lucro dele. Sustento esse axioma com a cabeça sob a guilhotina. Nós somos operários de luxo; ora, ninguém é bastante rico para pagar-nos. Quando se quer fazer dinheiro com sua pena, é preciso fazer jornalismo, folhetim ou teatro. Vamos ter, nesse período, a emergência do que podemos denominar de uma resignação forçada: a produção artística sofre o assédio racional da constante monetarização das relações sociais, pois, como já dito, até escritor precisa comer e para isso precisa de dinheiro. E aqui começa a ser posta em toda a sua crueza a antinomia entre a função crítica e a função comercial. O centro disso é a oposição entre uma arte pura e a nova arte moderna emergente, em que é possível, segundo Bourdieu (1996), perceber dois mundos opostos entre si: o da economia antieconômica e o da economia da industria literária e artística. A esfera literária clássica do ponto de vista econômico (remuneração da obra produzida) é baseada em três grandes caraterísticas: 1) na lógica da arte pura como produção intelectual expressiva e de forma independente, de livre iniciativa e visão particular do mundo, que se desvincula e nega a prática comercial, pois, esta exige quesitos não propostos pelo produtor e que interferem na autonomia de sua autoria e rebaixam 180 os objetivos intelectuais originais, 2) na afirmação de valores de desinteresse do lucro a curto prazo, ou seja, o desprezo pela efemeridade e 3) logo, inversamente, a produção a longo prazo, a busca da eternidade. Portanto, o centro estruturante de todas essas características é o capital simbólico, ou seja, a acumulação de relações, prestígio, notoriedade e sucesso. É visível o contraste com a nova economia literária, típica do novo sistema econômico. Esse sistema representa a especialização do ciclo literário e também vai apresentar três grandes caraterísticas: 1) a redução do comércio especial da lógica da arte pura, para mais uma atividade comercial qualquer, regida pelo lucro como veículo de sustentação financeira, ou seja, a forma única no capitalismo de sobreviver; 2) a consequente busca do sucesso imediato e provavelmente temporário; ao virar um objeto de consumo em massa estabelece-se uma lógica de procura independente do “gênio criativo” para necessidades de satisfação e de lazer de um novo público; 3) o que vai comandar é a demanda pré-existente, se for romance, será romance que o artista precisa fazer, por mais mundano que isso possa ser; isso, por sua vez, alimentará a lei da oferta e da procura, a primeira condicionadora da produção e do trabalho do artista, que agora necessita se adaptar à demanda e não mais gerá-la. O centro estruturante dessas caraterísticas é a preocupação, tipicamente burguesa, de ocultar os fins últimos do interesse comercial, representado por um processo de recusa das formas mais grosseiras, ou seja, quer se vender, mas não se venderia qualquer porcaria. Considerações finais Percebemos, portanto, um processo de captura das formas de produção artística – e em especial o livro, em lógica orientada pelo mercado – e a necessidade de financiamento; nesse sentido, cada vez mais a atividade cultural adquire um status comercial. O processo de racionalização da cultura, que buscamos demonstrar, e que leva a sua autonomização, vai se expressar na subordinação estrutural ao capital, como vimos em Bourdieu (1996). 181 Teremos, portanto, uma “autonomia dependente”, um processo contraditório que, ao delimitar o campo da produção literária, aumenta sua dependência financeira (recursos) e política (rede de relações, decisões etc...). Nesse processo podemos identificar o cerne da antinomia entre função crítica e função comercial, no momento que a atividade literária produz significado e simultaneamente vira mercadoria. Assim, a autonomia entre ambas esferas, que existia no início da gênese do capitalismo, transforma-se e se especializa pela subordinação da cultura ao mercado. Isso reconfigura a organização do ciclo literário, proporciona uma gradativa inversão do seu sentido crítico, não o eliminando, mas reduzindo-o ao máximo e de forma permanente, atrelando a toda uma indústria cultural que vai se erigir por dentro do capitalismo e cooptando aqueles que dependem de sua arte para sobreviver. Assim, buscamos indicar um breve roteiro de análise que busca captar a emergência sócio-histórica de elementos que buscamos tipificar idealmente, de forma experimental, e que denominamos livremente de um processo de dominação libertadora versus um outro de comunicação dominadora. Tais formas são puras e partem de tendências geradas pelo desenvolvimento do capitalismo moderno e sua constante especialização das diferentes esferas da atividade humana. A tentativa, na experimentação, é de demonstrar que tais formas – a libertadora e a dominadora – não são fases históricas superadas, mas possibilidades em constante luta entre si. A leitura de livros pode vir a ser um ato de consumo e lazer sem nenhum compromisso crítico, mas pode ser também um perigoso movimento subjetivo que transforma a subjetividade e intimidade, e simultaneamente pode vir a transformar o mundo, ou até pode ser um pouco de cada uma dessas possibilidades. Mas, sobretudo, há uma tensão permanente e constitutiva da sociabilidade humana que necessita cada vez ser mais refletida. O presente texto, inédito, foi um singelo convite para tal reflexão, fruto das pesquisas desenvolvidas atualmente na perspectiva da construção e desenvolvimento de uma sociologia do cotidiano. Afinal, ler um livro pode ser sempre uma aventura que muda nosso dia a dia. Qual o sentido da mudança? Esse é o debate que propomos. 182 Referências BOURDIEU, Pierre. As regras da arte. São Paulo: Companhia da Letras, 1996. CHARTIER, Roger. A mão do autor e a mente do editor. São Paulo: Editora UNESP, 2014. WEBER, Max. A “objetividade” do conhecimento nas ciências sociais. São Paulo: Ática, 2006. WEBER, Max. Economía y Sociedad: Esbozo de sociología compreensiva. Madrid: Fondo de Cultura Económica, 2002. 183 Álvaro Vieira Pinto e as Teorias da Comunicação: diálogos possíveis1? Rafael Grohmann Introdução O campo da comunicação, como qualquer campo científico ou social (BOURDIEU, 1983), é alvo de disputas e conflitos em busca de uma hegemonia teórica em determinado tempo e espaço. Uma pergunta central no debate teórico e epistemológico da comunicação é: afinal, o que é comunicação? As definições sobre “o que” e “como” pesquisar, incluindo os objetos e problemas de pesquisa, passam por essa indagação e mostram como se responde a ela. Ou seja, delineiam-se rumos teórico-conceituais e metodológicos para o campo. Esse “lugar de disputas” passa por dimensões simultâneas, a saber, epistemológicas e políticas. Por um lado, os debates epistemológicos têm se consolidado no campo, pelos debates em congressos, seminários e revistas científicas. Por outro, há de se ter em mente, como afirma Muniz Sodré (2012), que o prestígio do campo comunicacional não se dá pela “objetividade” do conhecimento gerado, mas pela produção de valor social, cultural e político. A comunicação, pois, é considerada atualmente um lugar central de mobilização de saberes das diversas ciências em tempos de “financeirização da comunicação” (SODRÉ, 2014). Ou seja, “hoje, é grande o consenso quanto ao fato de que a comunicação, em sua prática, é a ideologia mobilizadora de um novo tipo de força de trabalho, correspondente à etapa presente de produção das mercadorias por comando global” (SODRÉ, 2014, p.85). Diante disso, é central que o pesquisador tenha (cons)ciência de seu papel e das consequências de seus posicionamentos e escolhas. Com esse cenário, objetivamos pensar o conceito de comunicação, com base no humano e no material, segundo o conceito 1 Texto apresentado no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação em 2015. de tecnologia em Álvaro Vieira Pinto (2005a; 2005b). Embora esse filósofo carioca tenha escrito o livro em 1973, e morrido em 1987, sua contribuição teórica é essencial para a reflexão sobre a comunicação, nesses tempos em que: a) a tecnologia, por vezes, é pensada ou com o máximo de felicidade ou com apenas a carga de pessimismo, sem dar lugar às contradições; b) tem-se pensado a comunicação justamente com base nas “coisas”, no “pós-humano” e no “imaterial”. Com isso, tomamos o cuidado para não naturalizar ou fetichizar os conceitos (GUSMÃO, 2012). O Conceito de Tecnologia em Álvaro Vieira Pinto Álvaro Vieira Pinto não foi um pensador do campo da comunicação stricto sensu, mas um filósofo preocupado com o desenvolvimento nacional autônomo e, com seus escritos, nos auxilia a teorizar a comunicação atualmente. Um dos exemplos é o seu embate com a cibernética e a teoria matemática da informação. Em sua visão, não podemos apenas importar conceitos “de fora”, mas observar como eles importam para compreender a realidade brasileira. Isto é, trata-se de conceber a tecnologia pelas “epistemologias do sul” (SANTOS; MENEZES, 2010). O que ele nos provoca a refletir, então, é: como compreender a comunicação no contexto do hemisfério sul, considerando as especificidades sociais, culturais, políticas e também comunicacionais? Isso evita o perigo de essencializar as tecnologias e a comunicação, considerando as desigualdades e diferenças dos contextos comunicacionais e tecnológicos (CANCLINI, 2005; MORLEY, 2015). Do ponto de vista teórico, Vieira Pinto foi influenciado principalmente pelo materialismo histórico-dialético de Karl Marx, com pitadas de Heidegger e Sartre. Além disso, foi considerado um dos “mestres” de Paulo Freire. Alguns de seus livros são “Consciência e Realidade Nacional” e “A sociologia dos países subdesenvolvidos”, além dos dois volumes de “O conceito de tecnologia”, livro sobre o qual nos debruçaremos nesse artigo. O autor o escreveu no ano de 1973, mas os ma- 186 nuscritos só foram recuperados após a sua morte, em 1987, e publicados no ano de 2005. Mais do que Heidegger, é Marx a principal influência de Vieira Pinto (2005a) no livro. Ele concebe a técnica e a tecnologia – tomada como uma “epistemologia da técnica” – com base no materialismo histórico, o que tem como pressuposto um olhar dialético. “Só a dialética material e histórica permite apreender a gênese do homem, porque explica sua condição de ser social” (PINTO, 2005a, p.189-90). As contradições são inerentes aos movimentos históricos da sociedade: nem só emancipação nem apenas dominação, nem as “mil maravilhas” nem o “maior pesadelo do universo”. Não se trata, então, de celebrar nem de demonizar as tecnologias, mas de compreendê-las em suas contradições e possibilidades na vida real. Portanto, o ponto de partida de Vieira Pinto é entender a tecnologia com base no sujeito social e do trabalho humano. Marx (2011), nos Grundrisse, já afirmava que o processo de produção do capital é também um processo tecnológico, o que ele chama de “maquinaria”. Entretanto, nem a máquina nem a natureza são protagonistas do processo, mas o trabalho humano. A natureza não constrói máquinas nem locomotivas, ferrovias, telégrafos elétricos, máquinas de fiar automáticas etc. Elas são produtos da indústria humana; material natural transformado em órgãos da vontade humana sobre a natureza ou de sua atividade na natureza. Elas são órgãos do cérebro humano criados pela mão humana; força do saber objetivada [...]. Até que ponto as forças produtivas da sociedade são produzidas, não só na forma do saber, mas como órgãos imediatos da práxis social; do processo real da vida (MARX, 2011, p.589). Ou seja, a tecnologia é parte da práxis social, não se tratando de uma idealização ou de um dever-ser: o que importa é o plano material. Vieira Pinto (2005a), então, constata que “toda possibilidade de avanço tecnológico está ligada ao processo de desenvolvimento das forças produtivas da sociedade, a principal 187 das quais cifra-se no trabalho humano” (PINTO, 2005a, p.49). Para o autor, os estudos de tecnologias devem considerar a historicidade constitutiva do homem. O ser humano hominiza-se pelas capacidades das atividades de comunicação e trabalho (FIGARO, 2014b). A comunicação e as tecnologias estão indissoluvelmente ligadas aos processos produtivos como categorias que constituem os processos sociais. Vieira Pinto (2005a) afirma que o trabalho pode ser definido como um fenômeno total da sociedade, pois a revela em todos os aspectos. Aliás, as tecnologias são inventadas para atender às necessidades humanas, para aliviar o trabalho humano. “Os homens nada criam, nada inventam nem fabricam que não seja expressão das suas necessidades, tendo de resolver as contradições com a realidade” (PINTO, 2005a, p.49). O homem é o único animal capaz de produzir e também produz a si mesmo. Para Vieira Pinto (2005a), o homem, simultaneamente, se constitui em “animal técnico”: “a técnica está presente por definição em todo ato humano” (PINTO, 2005a, p.62). Contudo, a técnica é subordinada ao humano, pois a História não é produto da técnica nem a técnica pode ser considerada como motor do processo histórico. “A palavra ‘técnica’ desligada da essencial relação com o trabalho humano, em sua expressão mais geral, permanece no plano da abstração, no estado de ideia entificada” (PINTO, 2005a, p.177). Com isso, o autor vai contra uma “substantivação da técnica”, que a essencializa e oculta o papel do homem em sua produção, “como se as máquinas não fossem um dado da cultura, não tivessem origem e caráter social, mas surgissem espontaneamente e trabalhassem sozinhas” (PINTO, 2005a, p.180). Fica evidente, então, que Vieira Pinto (2005a) defende uma concepção humanística da técnica contra uma concepção naturalista da máquina, pois em nenhum momento as máquinas se desligam dos homens. Por exemplo, “os chamados ‘cérebros eletrônicos’ são apenas eletrônicos. O cérebro está em outro lugar, na cabeça dos inventores e construtores” (PINTO, 2005a, p.93). Tanto as tecnologias são um produto da cultura humana que até os algoritmos são frutos do trabalho humano, acumulado ao longo dos tempos. Não existiriam iPhones e Google 188 Glasses se não fosse o desenvolvimento histórico tecnológico da sociedade humana. As técnicas não ficam imóveis; elas avançam principalmente por causa do acúmulo de bagagem provenientes da cultura e do trabalho. Esquecer a História é um passo para produzir teorias que refletem as condições hegemônicas da sociedade, tal qual Ampuja (2015) afirma sobre a “midiatização da teoria social”. Por isso, Vieira Pinto (2005a) ignora a existência de uma “era” ou “explosão tecnológica”, pois o homem sempre produziu novas técnicas e tecnológicas – essa pretensa “era”, então, deveria se referir a toda e qualquer época da história. Do mesmo modo, critica o conceito de “sociedade do consumo”, já que, para ele, todas as sociedades foram do consumo, inclusive as comunidades pré-históricas. Então, ao rechaçar expressões como “explosão tecnológica”, Vieira Pinto criticava, em 1973, o que é considerado “novo” em 2015. Para o autor, expressões como essas podem ser consideradas uma “importantíssima arma do arsenal dos poderes supremos”, como uma ideologia mobilizadora dos saberes para reforçar estruturas de poder – tema a que voltaremos adiante. O conceito de comunicação também é problematizado pelo autor, não só o de tecnologia. Inclusive, chega a falar do ponto de partida de uma “teoria da comunicação”: a comunicação como ligada às formas superiores de organização do material, como um traço distintivo do homem e “que nada tem a ver com o sensacionalismo das descobertas atuais da ‘informática’. Sem partir dessa concepção inicial, dificilmente conseguiremos esclarecer qualquer problema da teoria da comunicação” (PINTO, 2005b, p.479). A comunicação, então, pode ser definida como uma relação que se dá por meio da atividade humana. As “coisas” (como os autômatos), então, não comunicam, pois não possuem existência e convivência social e, portanto, não trabalham. No segundo volume, o autor critica principalmente Marshall McLuhan (1969) e a teoria matemática da informação, afirmando lhes faltar uma perspectiva dialética não idealista. Ao colocar o “meio” e a “informação” como centrais em suas teorias, acabam por não ter uma visão sobre o sujeito social. Por isso, segundo o autor, “não conseguem apreender 189 na comunicação um existencial do homem, um traço distintivo, exatamente aquele pelo qual se assinala e identifica sua separação do ‘reino animal’” (PINTO, 2005b, p.478). Considerar o homem por inteiro como o centro da teoria da comunicação significa, desde já, distanciar-se de processos comunicacionais lineares e deterministas. Na década de 1970, Vieira Pinto (2005a) já colocava o homem perante as tecnologias não como somente um “ser emissor” ou um “ser receptor”, mas como “sujeito social”. “A unidade de conteúdo e forma na tecnologia exprime o caráter dialético do processo em que o homem figura ao mesmo tempo como autor e receptor dos bens culturais e econômicos produzidos” (PINTO, 2005a, p.283). É na inter-relação com as tecnologias (na forma de ação e recepção) que o homem produz e é produzido. Isso é pensar as tecnologias com base nos processos comunicacionais, eles próprios baseados na circulação, cujas condições de produção e consumo estão materializadas nas mensagens, nos sujeitos sociais e nos dispositivos. Não se trata de fracionar o sujeito em caixinhas e limites entre as diversas nomenclaturas existentes para ser “receptor”, como comenta Scolari (2009) acerca do taylorismo digital em volta da nomenclatura “usuário”, em que os sujeitos são reduzidos aos seus “usos” e “cliques”. As tecnologias, então, servem às necessidades dos seres humanos, como produção e desenvolvimento científico, funcionando, portanto, como uma “mediação” entre o homem e a natureza. A técnica, então, por um lado, pode gerar transformações, sobretudo na introdução de novas máquinas, que modificam os processos produtivos. Mas, em hipótese nenhuma, ela pode ser agente própria de qualquer ação, pois deriva do conhecimento humano e “pertence ao sujeito real, o homem, ou seja, em termos sociais, às massas trabalhadoras” (PINTO, 2005a, p.174). Dessa forma, uma verdadeira mudança somente aconteceria com a transformação das condições sociais, principalmente das classes trabalhadoras. O recado de Álvaro Vieira Pinto é claro: sozinha, a tecnologia não transforma nada. Por isso, o autor se 190 afasta tanto dos pressupostos de que a máquina domina o Homem como dos que creem que ela salva2 a humanidade. Chegam até a infundir no trabalhador a esperança de obter das próprias máquinas a ‘salvação’, quando desviam a atenção dele das coisas fundamentais que deve exigir e o fazem reclamar, como solução perfeita para as dificuldades de sua existência, melhorias ‘trabalhistas’ das técnicas, da legislação, sempre ditada pela classe possuidora das fábricas, do instrumental e dos locais de trabalho (PINTO, 2005a, p.168). Com isso, Vieira Pinto reivindica uma concepção de comunicação e de tecnologia que pense a mudança social com base nas classes sociais e suas lutas. Afinal, as tecnologias são produzidas e consumidas de forma desigual – que não é sinônimo de “diferente” (CANCLINI, 2005) – pelas diferentes classes. Como afirma Pinto (2005b, p.620), “a expressão ‘transferir as honras para as máquinas’ de fato quer dizer transferi-las para a classe dominante, a proprietária das matérias-primas”. Por isso, devemos olhar para a comunicação e as tecnologias por meio da “teoria do valor” (MARX, 1980), questionando as formas de exploração das classes trabalhadoras em relação às tecnologias, pois “as relações de exploração de classe são determinadas pelo modo de extração de trabalho excedente dos produtores diretos” (SAAD-FILHO, 2011, p.64): as tecnologias servem a quem? Como é produzido seu valor? Como são as condições de trabalho dos trabalhadores que produzem essas tecnologias como “classe-que-vive-do-trabalho” (ANTUNES, 2001) propriamente? Portanto, as classes sociais não somem com a comunicação contemporânea (MURDOCK, 2009) e a internet. Apenas se metamorfoseiam, pois as tecnologias não se movem deslocadas da sociedade. Como diz Pinto (2005a, p.87-88), 2 Verbos estes – “dominar” e “salvar” – carregados de sentidos teóricos e políticos. 191 as classes poderosas sempre tiveram ao seu dispor servomecanismos, fossem eles o escravo dos faraós e dos sátrapas, o cavalo dos barões feudais ou os engenhos mecânicos, agora aperfeiçoados com caráter eletrônico e autonomizados [...]. Muito daquilo agora dito por uma nova ciência, a cibernética, na verdade sempre existiu, apenas com outros nomes, porém com a mesma função essencial em relação ao homem. Em suma, o que Álvaro Vieira Pinto nos convoca a pensar é a comunicação e a tecnologia: a) de forma dialética, como condições materiais de vida e como produto do trabalho humano, o que implica confrontá-la com uma visão idealista de comunicação ou que pense a “materialidade” apenas como sinônimo de dispositivo midiático; b) com base nas lutas de classes e nas desigualdades provenientes, considerando produção de mais-valia e exploração; b) analisando as possibilidades de transformação social da realidade histórica com vistas à emancipação das classes trabalhadoras e à autonomia das realidades nacionais, considerando, assim como Losurdo (2015), as “lutas nacionais” como uma forma da luta de classes. Pois, analisar a realidade tecnológica, pelos sujeitos sociais e pela circulação (dos processos comunicacionais e do capital) no Sul, não é a mesma coisa que teorizá-la com base na Europa, pois as espacialidades e o atravessamento de forças advindos de posições geopolíticas produzem sentido para o campo da comunicação (FIGARO; GROHMANN, 2015; MORLEY, 2015). Na América Latina também se produz conhecimento teórico sobre a comunicação, e, muitas vezes, para confrontar hegemonias de fora. Com isso, a contribuição de Álvaro Vieira Pinto para o campo da comunicação deve ser analisada com olhos no futuro, não como peça estanque de um museu. Como, então, podemos localizar seu pensamento dentre autores e correntes teóricas que têm pensado a comunicação atualmente? 192 Implicações teóricas para a Comunicação: aproximações e distanciamentos Localizar o autor em um campo científico, ou seja, seu lugar, nos termos de Bourdieu (1983), significa compreender não somente seus posicionamentos, mas seus possíveis diálogos teóricos, nem sempre concordantes, o que nos faz refletir sobre distanciamentos e proximidades, como diálogos imaginários, tanto perante as implicações teóricas para a comunicação daqui para frente quanto para a compreensão das raízes desse mapa científico. Uma questão de fundo epistemológico é: como se problematizam os sujeitos? Vieira Pinto (2005a; 2005b) os concebe, como já vimos, com base no marxismo, principalmente a partir da “ontologia do ser social”, proveniente do materialismo histórico-dialético. Não se trata de um indivíduo liberal nem de um sujeito assujeitado, mas de alguém que é, ao mesmo tempo, individual e social. Segundo Lukács (2012, p.27), “a indagação acerca da especificidade do ser social contém a confirmação da unidade geral de todo ser e simultaneamente o afloramento de suas próprias determinidades específicas”. Isso equivale considerá-los tanto “produtores de suas representações, de suas ideias [...] [quanto] condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e pelo intercâmbio que a ele corresponde” (MARX; ENGELS, 2007, p.94). Parte-se, então, dos sujeitos ativos, reais, da vida concreta e prática para a compreensão da realidade. De acordo com Marx e Engels (2007, p.534), “toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que conduzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática”. Por isso a importância da práxis, em sentido tanto objetivo quanto subjetivo, pois o que interessa a essa concepção de “ser social” é o primado das relações. É nas relações e conexões entre “sujeito/ ser” e “objeto/ mundo” que se encontra a chave para a compreensão da realidade, bem como suas contradições, como criação e alienação. É, então, essa práxis social que, segundo Figaro (2014a, p.4), “faz do sujeito um ser de comunicação. É um processo que se 193 retroalimenta, numa dinâmica que se explica na ontogênese e na filogênese humana”. Portanto, uma teoria da comunicação marxista deve considerar a comunicação como prática material, “que o trabalho e a linguagem são mutuamente constituídos, e que comunicação e informação são instâncias dialéticas da mesma atividade social, a construção social de sentido” (MOSCO, 2009, p.44). É com esse pano de fundo epistemológico que Álvaro Vieira Pinto trabalha a sua noção de tecnologia e que permite ver a sua localização no campo. Uma questão recorrente no campo da comunicação, especialmente entre os pesquisadores de teoria e epistemologia da comunicação, é: “o que é especificamente comunicacional” (SIGNATES, 2013) em determinado autor ou conceito? Compreendemos que a comunicação possui seu olhar e seu ponto-de-vista próprios, mas sempre em uma ressignificada articulação com discursos de outros campos, ressignificações estas que, segundo Baccega (1998, p.103), “redundam, obviamente, em novas posturas epistemológicas, a partir das quais se procurará dar conta da efetividade dos processos comunicacionais”. Sem esse diálogo, e somente em busca de um hipotético saber puramente comunicacional, estaremos construindo uma ciência estéril. Uma das críticas recorrentes é a de que tal autor ou trabalho seria “sociologizante”, de modo pejorativo, crítica essa que poderiam fazer no campo da comunicação a Álvaro Vieira Pinto (2005a, 2005b), por exemplo. Mas o que seria pensar as interações, as relações de comunicação, sem levar em conta a sociedade onde se vive? Como diz Wolton (2003, p.16), “não há teoria da comunicação sem uma teoria implícita, ou explícita de sociedade”. Ou seja, mesmo quando ela não é teorizada explicitamente, há concepções de poder e sociedade envolvidas. Afinal, se produz ciência de determinado lugar, ponto-de-vista e temporalidade. Como afirma Lukács (2012, p.293), “a ciência brota da vida, e na vida mesma – saibamos ou não, queiramos ou não – somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo ontológico”. E, precisamente, as contribuições de Vieira Pinto, ao campo da comunicação, passam por conce- 194 ber a comunicação com base nessa realidade concreta e material do sujeitos. Com isso, de quais perspectivas ele se afasta? Primeiramente, como já afirmado, ele se afasta da cibernética, criada na segunda metade da década de 1940 por Norbert Wiener (1940), que pensava em um mundo maquínico automatizado, “moralmente muito superior ao tradicional, em que o homem deixa de ser sujeito, com todos os males que daí nascem, para se tornar o fluído ou embreagem angelical de um só e vasto maquinismo” (RÜDIGER, 2011a, p.109). Isto é, na cibernética, a máquina é o central, com a sociedade sendo somente “um conjunto de circuito e canais” (RÜDIGER, 2011a, p.110). O que podemos ver, então, é que há também aí uma concepção de sociedade, mas uma concepção negativa do próprio ser humano e de suas possibilidades de transformação, segundo a qual o sujeito desaparece perante as máquinas. Nesse sentido, consideramos que, assim como Marx, Vieira Pinto (2005a; 2005b) era um humanista otimista em relação a essas possibilidades de transformação. Toma-se, na cibernética, assim como na teoria matemática da informação (WEAVER, 1978), a comunicação pela mera transmissão ou informação, o que vemos não ser o caso em Vieira Pinto (2005a; 2005b). Assim como a cibernética, Marshall McLuhan (1969) pode ser considerado devedor do “paradigma midiológico”, segundo Rüdiger (2011b), ou medium theory, considerando o “meio” como a questão central para a comunicação, reduzindo a questão comunicacional aos meios técnicos, aparatos midiáticos e dispositivos tecnológicos. Os meios de comunicação “tornam-se o conteúdo dos que surgem mais tarde e [...], por essa via, eles definem o modo de ser do mundo” (RÜDIGER, 2011b, p.131). Isto é, portanto, uma abordagem determinista e não dialética da realidade em prol de uma materialidade que não é a mesma reivindicada por Vieira Pinto (2005a; 2005b), que é a materialidade/ concretude da vida social, mas a materialidade como “pele” (KHERCKHOVE, 2006), por exemplo, dos dispositivos midiáticos. O que os rege é que o ser humano deixa de ser o cerne das concepções teóricas para conceber o meio e a máquina, tal qual no exemplo do “cérebro eletrônico” que Vieira Pinto (2005a) rebateu. Como se fossem fios de um mesmo novelo de lã da pro- 195 blemática da cibernética, há a questão do pós-humanismo, trazida, entre outros, por Katherine Hayles (1999) e, no Brasil, por Santaella (2007), que diz: o sema comum que as une encontra-se no hibridismo do humano com algo maquínico-informático, que estende o humano para além de si. Assim, a condição pós-humana diz respeito à natureza da virtualidade, genética, vida inorgânica, ciborgues, inteligência distribuída, incorporando biologia, engenharia e sistemas de informação (SANTAELLA, 2007, p.129). Por definição, a concepção de comunicação com base no humano em Vieira Pinto (2005a; 2005b) se contrapõe ao pós-humanismo, pois acha que não pode haver fusão do homem com algo maquínico, visto que este foi pensado pelo próprio ser humano. Em alguma medida, seguindo o pensamento do filósofo brasileiro, os pós-humanistas possuem, em alguma medida, uma concepção linear da História e, principalmente, os trabalhos mais “celebratórios” e acríticos em relação às tecnologias se esquecem de que quem as produz são os próprios homens, pois a ciência produzida pela biologia, pela engenharia e pelos sistemas de informação, por exemplo, são realizadas pelo trabalho humano, e não por ciborgues. Aliás, o fato de colocarmos a centralidade no pós-humano auxilia a ocultar a importância dessa “inteligência distribuída” para o capitalismo e sua produção de valor. Como afirma Rüdiger (2011a, p.214), “estamos em meio agora a uma onda pós-humanista, cuja força e interesse, notamos, provêm do fato de estar parcialmente encaixado nas engrenagens empresariais e tecnológicas que estruturam nossa civilização” (RÜDIGER, 2011a, p.214). Por isso, em Vieira Pinto (2008), vemos como a louvação da técnica e dos tecnocratas nos levam a ocultar a dimensão política da técnica, pois os dispositivos não são meras técnicas e, aliás, revelam relações de poder. Por isso, concepções midiacêntricas, cibernéticas e pós-humanistas se revelam ajustadas às prescrições hegemônicas, representando a face comunicacional ajustada do “cool capitalism” (MCGUIGAN, 2009). Segundo Muniz Sodré (2002, p.22), 196 a astúcia das ideologias tecnicistas consiste geralmente na tentativa de deixar visível apenas o aspecto técnico do dispositivo midiático, da ‘prótese’, ocultando a sua dimensão societal comprometida com uma forma específica de hegemonia, onde a articulação entre democracia e mercadoria é parte vital de estratégias corporativas. Essas ideologias costumam permear discursos e ações de conglomerados transnacionais e de ideológicos dos novos formatos de Estado. Sodré (2002), nesse sentido, concorda com Vieira Pinto (2005a; 2005b), para quem os processos comunicacionais não podem ser deslocados do modo de produção capitalista. O finlandês Marko Ampuja (2015) pensa o mesmo. Em sua crítica aos autores que prometem o “sublime digital” e, nesse caso, principalmente Manuel Castells, Ampuja (2015) afirma que, em uma perspectiva crítica, “a emancipação depende não da transformação das estruturas tecnológicas, mas mais propriamente da transformação dos sistemas políticos e estruturas de poder privado dentro das quais aquelas estão incorporadas” (AMPUJA, 2015, p.66). Por isso, considera que as análises centradas somente nos aparatos técnicos “deveriam ser tratadas com suspeitas” (AMPUJA, 2015, p.66). Além das abordagens aqui já tratadas, a concepção de comunicação proposta por Álvaro Vieira Pinto (2005a; 2005b) também se distancia de duas abordagens atuais e recorrentes no campo da comunicação, sobre as quais, entretanto, abordaremos brevemente, mais com o intuito de início do que esgotamento da discussão, que merecem, certamente, um artigo para análise de cada abordagem. São elas: a teoria-ator rede de Bruno Latour (2009; 2012) e o marxismo autonomista, principalmente italiano, presente em autores como Negri e Hardt (2005) a partir da questão do “imaterial”3. Na teoria ator-rede de Bruno Latour (2009; 2012) – aliás, com muita circulação no Brasil atualmente – em sua ten3 Poderiam entrar outras abordagens, como a “tecnoutopia liberal humanista” (Rüdiger, 2011a) de Pierre Lévy (1999; 2014) e suas concepções de “inteligência coletiva” e “esfera semântica”, mas que, por falta de espaço, fica a reflexão para outro momento. 197 tativa de reposicionar o social com base nas associações e nos actantes, a argumentação é mais refinada em relação à discussão sobre o pós-humano, pois ele não entende que os humanos seriam substituídos por máquinas. Para ele, como ele poderia ser ameaçado pelas máquinas? Ele as criou, transportou-se nelas, repartiu nos membros das máquinas seus próprios membros, construiu seus próprios membros, construiu seu corpo com elas. Como poderia ser ameaçado pelos objetos? Todos eles foram quase-sujeitos circulando no coletivo que traçavam. Ele é feito destes objetos, tanto quanto estes são feitos dele. Foi multiplicando as coisas que ele definiu a si mesmo (LATOUR, 2009, p.136). Ou seja, há uma valoração do “humano”, mas nem tanto. O homem não é “ameaçado” pelas máquinas, mas, para o autor, devemos considerar que a sociedade e o social não existem e “precisam ser traçados por meio de mudanças sutis na conexão de recursos não sociais” (LATOUR, 2012, p.61). Isto é, considera-se que as ciências humanas colocaram por muito tempo o “ser humano” como centro das atenções e não se deram conta dos “híbridos” e de que os seres humanos também são “feitos de objetos”. Esse tipo de pensamento é trazido ao Brasil principalmente por André Lemos (2013), em “A Comunicação das Coisas”. Para ele, “humanos comunicam. E as coisas também. E nos comunicamos com as coisas e elas nos fazem fazer coisas, queiramos ou não” (LEMOS, 2013, p.19). Cabe salientar que, tanto em Lemos (2013) como em Latour (2012), não há uma desvalorização total do ser humano, pois consideram, por exemplo, que “a mediação com não-humanos é parte constitutiva do humano” (2013, p.21). Entretanto, há uma equalização de importância entre “sujeitos” e “objetos” como híbridos; as coisas possuindo a capacidade de se comunicar e a comunicação estão na materialidade dos dispositivos (LEMOS, 2013, p.22), não na materialidade da vida social, como Vieira Pinto (2005a; 2005b) traz com base na concepção marxista. É, então, essa tentativa de igualdade que distancia a teoria ator-re- 198 de da obra de Vieira Pinto, pois este não enxerga “sujeitos” e “objetos” como “híbridos”, embora, como já afirmado na “ontologia do ser social” marxiana, confere-se prioridade às relações4, mas considerando o “sujeito social” como central. Então, Vieira Pinto (2005a) se distancia dessa abordagem justamente por crer que o sujeito social, é sim, “o senhor da situação”, pois as coisas podem até fazer “coisas”, mas não possuem convivência social nem trabalham, e que os gadgets, afinal, são produzidos por seres humanos. Isso não é, de forma alguma, desconsiderar que os dispositivos fazem parte do cotidiano humano, pois ela é também parte integrante da práxis social, mas, de acordo com o autor, não se pode igualar a “ontologia do ser social” a uma “ontologia digital” ou dos objetos, por exemplo5. Outra abordagem presente nas ciências humanas e que possui algum nível de ressonância no campo da comunicação é a de Negri e Hardt (2005), por exemplo, pela questão do “imaterial”6. Negri é filiado ao chamado marxismo autonomista na Itália e possui influências de Espinosa7, principalmente em relação à questão do “desejo de potência” em seus conceitos. O conceito de “trabalho imaterial” aparece em “Multidão” para abordar como esse tipo de trabalho estaria suplantando o chamado “trabalho industrial”. Para Negri e Hardt (2005), o 4 Há, certamente, muitas divergências entre a concepção de “relações”, na ontologia do ser social, e do conceito de “associações”, na teoria-ator rede, mas há que se considerar que pode ser um bom ponto de aproximação esse trecho de Lemos (2013, p.24): “a Internet emancipa ou é totalitária? [...] O Twitter é pura emulação de pensamentos imperfeitos ou ferramenta revolucionária? Eles não são nem uma coisa nem outra, podendo ser uma coisa ou outra a depender da associação em jogo”. Há questões epistemológicas divergentes; no entanto, pensar as tecnologias e suas contradições no mundo concreto e real – sem idealizações – faz parte do projeto de Álvaro Vieira Pinto (2005a; 2005b). 5 Também para Dominique Wolton (2010, p.42), “falar de ‘comunicação entre objetos’ [...] supõe colocar uma cruz em cima da comunicação humana”. 6 Tema também caro a autores como André Gorz e Mauricio Lazzarato. Este último também problematiza a relação “homem-máquina” no livro “Signos, máquinas, subjetividades” (LAZZARATO, 2014), mas não o problematizaremos neste momento. 7 O autor holandês também influenciou uma série de filósofos, inclusive o francês Gilles Deleuze. 199 trabalho imaterial serve para produzir cooperação, comunicação e relações sociais: “a produção de comunicação, relações afetivas e conhecimentos em contraste com carros e máquinas de escrever, é capaz de expandir diretamente o campo do que compartilhamos” (NEGRI; HARDT, 2005, p.156-157). Com isso, os trabalhadores seriam mais “autônomos” e não dependeriam de patrões. Então, estaríamos em um capitalismo de um novo tipo devido à imaterialidade dos produtos, da força de trabalho e da comunicação mesma. No entanto, não há trabalho nem comunicação que não tenha, ao menos, uma faceta material e que, portanto, é proveniente do humano – como defende Vieira Pinto (2005a; 2005b). Segundo Dantas (2012, p.17-18): o trabalho informacional é material, pois é transformação, pelo corpo humano e sua mente, através de próteses adequadas (ferramentas e tecnologias), de materiais portadores de signos que contém valor pelo signo que portam. Trabalho imaterial somente se for aquele feito por Deus no ato da criação... (DANTAS, 2012, p.17-18). Então, um dos equívocos de Negri e Hardt (2005) é desconsiderar o trabalho humano em relação às tecnologias, além de descolar a questão do trabalho chamado imaterial de uma teoria do valor (AMORIM, 2009; JAPPE, 2006). A produção da mais-valia se metamorfoseia no capitalismo, mas não é enterrada: há uma reorganização da lógica de valorização do capital e da subordinação das classes trabalhadoras. “Mesmo se considerássemos a informação o subproduto do trabalho dito imaterial, ainda assim ela é constituída por tempo de trabalho explorado e não pago” (AMORIM, 2009, p.139). Žižek (2012) também critica os autores de “Império” e “Multidão” por se equivaler aos “ideólogos do capitalismo ‘pós-moderno’”, e portanto, ao que Vieira Pinto (2005a) coloca como ideólogos da “explosão tecnológica” e, por isso, salvadoras. Para Žižek (2012, p.19), “o paradoxo é: o que Negri celebra como a única chance de superar o capitalismo, os ideólogos da ‘revolução da informação’ celebram como a ascensão do novo capitalismo ‘sem atrito’” (ŽIŽEK, 2012, p.19). 200 Em suma, o que todas essas abordagens discutidas têm em comum, além de um distanciamento do posicionamento de Álvaro Vieira Pinto, é que, em maior ou menor grau, a cibernética, o pós-humanismo, as ideias de McLuhan, a teoria-ator rede e a obra de Antonio Negri possuem muito prestígio intelectual no campo da comunicação e suas ideias circularam ao longo dos últimos tempos. É importante frisar que não há, aqui, a intenção de deslegitimar a existência dessas teorias para a comunicação, pois é pela multiplicidade de teorias que se fortalece o campo. No entanto, certas hegemonias teóricas também ajudam a explicar como Vieira Pinto foi, por muito tempo, “esquecido” como um autor importante para a área. Precisamos pensar além de um Zeitgeist acadêmico, como se o autor de “ontem” não mais importasse no ritmo desse cool capitalism (MCGUIGAN, 2009). É de bom tom salientar que também há autores que se aproximam, em alguma medida, dos conceitos e ideias de Álvaro Vieira Pinto, vendo as tecnologias e a comunicação com base no trabalho humano, na realidade concreta e material, nas classes sociais e na teoria do valor. Podemos falar, a título de exemplo e em linhas muito gerais, de Huws (2014), analisando o cibertariado e os trabalhadores chamados “criativos” na economia digital global; e de Fuchs (2014a; 2014b), buscando compreender questões de trabalho digital, redes sociais e internet, em geral, por meio de uma teoria marxista da comunicação. Contudo, Vieira Pinto é um dos poucos (e certamente um dos primeiros) a refletir com base na realidade brasileira, trazendo um sentido de país à comunicação. Referências AMORIM, Henrique. Trabalho imaterial: Marx e o debate contemporâneo. São Paulo: Annablume, 2009. AMPUJA, Marko. A Sociedade em Rede, o Cosmopolitismo e o “Sublime Digital”: reflexões sobre como a História tem sido esquecida na teoria social contemporânea. Revista Parágrafo, v.1, n.3, 2015. ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. São Paulo: Boitempo, 2001. 201 BACCEGA, Maria Aparecida. Comunicação e linguagem: discursos e ciência. São Paulo: Moderna, 1998. BOURDIEU, Pierre. O Campo Científico. In: Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983. CANCLINI, Néstor García. Diferentes, desiguais e desconectados. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2005. DANTAS, Marcos. Trabalho com informação: valor, acumulação, apropriação nas redes do capital. Rio de Janeiro: Centro de Filosofia e Ciências Humanas da UFRJ, 2012. FIGARO, Roseli; GROHMANN, Rafael. A recepção serve para pensar: é um ‘lugar’ de embates. In: ENCONTRO ANUAL DA ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROGRAMAS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM COMUNICAÇÃO – Compós, 2015, Brasília/DF. Anais.... 2015. Brasília: Compós, 2015. FIGARO, Roseli; GROHMANN, Rafael. A comunicação como processo de interação verbal e produção de sentidos. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO – Intercom, 37, 2014, Foz do Iguaçu/PR. Anais.... Foz do Iguaçu: Intercom, 2014a. FIGARO, Roseli; GROHMANN, Rafael. O campo da comunicação e a atividade linguageira no mundo do trabalho. Revista Chasqui, n.126, out.2014b. FUCHS, Christian. Digital Labor and Karl Marx. London: Routledge, 2014a. FUCHS, Christian. Social Media: a critical introduction. London: Routledge, 2014b. GUSMÃO, Luís de. O fetichismo do conceito: limites do conhecimento teórico da investigação social. Rio de Janeiro: Topbooks, 2012. HAYLES, Katherine. How We Became Posthuman: Chicago: University of Chicago Press, 1999. HUWS, Ursula. Labor in the Global Digital Economy: the cybertariat comes of age. New York: Monthly Review Press, 2014. JAPPE, Anselm. As aventuras da mercadoria. Lisboa: Antígona, 2006. KERCKHOVE, Derrick de. A pele da cultura. São Paulo: Annablume, 2009. 202 LATOUR, Bruno. Reagregando o social. Salvador/Bauru. EDUFBA/ EDUSC, 2012. LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos. Rio de Janeiro: Ed. 34, 2009. LAZZARATO, Maurizio. Signos, máquinas, subjetividades. São Paulo: N-1 edições, 2014. LEMOS, André. A comunicação das coisas: teoria ator-rede e cibercultura. São Paulo: Annablume, 2013. LÉVY, Pierre. A esfera semântica. Tomo 1: computação, cognição e economia da informação. São Paulo: Annablume, 2014. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Edições 34, 1999. LOSURDO, Domenico. A luta de classes: uma história política e filosófica. São Paulo: Boitempo, 2015. LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012. MARX, Karl. Grundrisse. São Paulo: Boitempo, 2011. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007. MARX, Karl. Teorias da mais-valia: história crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. McGUIGAN, Jim. Cool Capitalism. London: Pluto, 2009. McLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 1969. MORLEY, David. Televisão, Tecnologia e Cultura: uma abordagem contextualizada. Revista Parágrafo, v.1, n.3, 2015. MOSCO, Vincent. The Political Economy of Communication. London: Sage, 2009. MURDOCK, Graham. Comunicação contemporânea e questões de classe. Revista MATRIZes, São Paulo, v.2, n.2, p.31-56, 2009. NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Multidão. Rio de Janeiro: Record, 2005. PINTO, Álvaro Vieira. A sociologia dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. 203 PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. v.1,Rio de Janeiro: Contraponto, 2005a. PINTO, Álvaro Vieira. O conceito de tecnologia. v.2, Rio de Janeiro: Contraponto, 2005b. RÜDIGER, Francisco. As teorias da cibercultura: perspectivas, questões e autores. Porto Alegre: Sulina, 2011a. RÜDIGER, Francisco. As teorias da comunicação. Porto Alegre: Penso, 2011b. SAAD-FILHO, Alfredo. O valor de Marx. Campinas: Ed. Unicamp, 2011. SANTAELLA, Lúcia. Pós-humano – por quê? Revista USP, São Paulo, n.74, 2007. SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez, 2010. SCOLARI, Carlos. Hipermediaciones: elementos para una teoria de la comunicación digital interactiva. Barcelona: Gedisa, 2008. SIGNATES, Luiz. O que é especificamente comunicacional nos estudos brasileiros de comunicação na atualidade? In: BRAGA, José Luiz; FERREIRA, Jairo; FAUSTO NETO, Antonio; GOMES, Pedro Gilberto (Org.). 10 Perguntas para a produção de conhecimento em comunicação. São Leopoldo/RS: Ed. Unisinos, 2013, p.19-29. SODRÉ, Muniz. A Ciência do comum: notas para o método comunicacional. Petrópolis: Vozes, 2014. SODRÉ, Muniz. Comunicação: um campo em apuros teóricos. Revista MATRIZes. v.5, n.2, jan/jun. 2012, p.11-27. SODRÉ, Muniz. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. WEAVER, Warren. A matemática da comunicação. In: COHN, Gabriel (Org.).Comunicação e indústria cultural. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1978, p.25-37. WIENER, Norbert. Cibernética e sociedade. São Paulo: Cultrix, 1967. WOLTON, Dominique. Informar não é comunicar. Porto Alegre: Sulina, 2010. 204 WOLTON, Dominique. Internet, e depois? Uma teoria crítica das novas mídias. Porto Alegre: Sulina, 2003. ŽIŽEK, Slavoj. O ano em que sonhamos perigosamente. São Paulo: Boitempo, 2012. 205 Comunicação im-possível: leitura a partir da perspectiva da metaética levinasiana Fernando Silva Santor Todos nós somos um mistério para os outros...e para nós mesmos (Erico Verissimo). Introdução Seria um erro afirmar que a Comunicação é indispensável para a condição humana? Ou seria uma afirmação demasiado óbvia? Não significa que não existam formas diversas1 de comunicar; a afirmação apenas implica a Comunicação humana. Etimologicamente, a palavra comunicação provém do latim2 communicatio, -onis, que, como substantivo, significa participação, interpelação. Já o verbo transitivo communico, com as terminações -as, -are, -avi, -atum, significa pôr em comum, partilhar, participar algo, tornar comum, dividir alguma coisa com alguém, reunir, associar. Em certa medida, quando comunicamos, colocamos todos esses significados em circulação. Quando decidimos colocar em comum, dividir ou associar uma ideia, estamos colocando a comunicação em ato. Mas pensar a Comunicação exige a presença do questionamento acerca da diferença entre o ato e o seu objeto. Comunicar é ato, mas o que é comunicado o é independentemente do ato. A intriga presente na questão inicial questiona justamente a possibilidade de colocar em comum aquilo que é próprio de 1 Mesmo que saibamos pouco sobre a comunicação dos demais seres vivos, o que sabemos indica uma limitação simbólica em comparação com a comunicação humana. Já as máquinas, por sua vez, comunicam, mas sempre dentro de parâmetros pré-determinados ou possíveis de serem calculados. Há também, porém de outra ordem, uma limitação, ou melhor, uma restrição simbólica. 2 Conforme Dicionário Escolar Latino-Português, Ministério da Educação e Cultura, Rio de Janeiro, 3ª edição, 1962, página 212. cada um, mas também o que é próprio de cada Outro, e nisso reside certa contradição. A condição do humano é a sua separação, a sua unicidade, a qual só se mantém como tal como segredo. Colocar em comum implica, por outro lado, a supressão da separação e da singularidade em nome da sincronia e da representação. Portanto, comunicar é colocar em comum de uma maneira na qual aquilo que se pretende comunicar entre em consonância, em sincronia, com o que é representado. É, portanto, sempre antecipação; é pretender significar. Nessa pretensão, antecipa-se o receptor e a relação, antes tida como um colocar em comum, caracteriza-se numa consonância. Deixa de ser relação, e passa a ser jogo. A sincronia entre o ato e o conteúdo tem como consequência a interpretação de que comunicar é colocar em consonância objetivos, sem perceber que o objetivo já é ele mesmo antecipação. Coloca-se em comum a representação, o jogo. Não há, portanto, espaço para uma situação que permita a relação de Comunicação. Há uma pretensão, uma antecipação, que busca sincronizar as representações. No melhor dos cenários, concordamos. Em outras palavras, a normalidade do que se acredita ser um ato comunicativo implica a noção de diálogo entre consciências, buscando, como finalidade, o bem compreender ou o bem comunicar. Nesse sentido, comunicar e informar não teriam diferenças significativas quanto ao mecanismo de compreensão, apenas quanto ao mecanismo de propagação. Enquanto a comunicação pretende ser uma troca plural, a informação trafega unidirecionalmente. No entanto, ambas supõem, ou buscam, a compressão mútua entre os polos. Informar e comunicar, para além das diferenças técnica e tecnológica – já sublinhadas pela literatura da área3 da comunicação social –, são próximos em relação à maneira como supõem o papel do saber, do conhecimento, da consciência e da representação. A diferença mecânica é qualitativa, mas de uma ordem política, ideológica e cultural que pressupõe, ou não, a participação de diferentes agentes. São, portanto, conceitos sócioantropológi3 Ver, por exemplo, entre outros, Informar não é comunicar, de Dominique Wolton. 208 cos que, justamente por serem de tal forma, estão já inscritos em uma perspectiva, em um posicionamento. Essa visada, no entanto, desconsidera a principal característica da Comunicação: a pluralidade e a possibilidade de não compreensão implicada nessa pluralidade: a relação. É reduzir a sua condição inter-humana a um mecanismo lógico-matemático; é reduzir o seu potencial humano a uma economia de trocas simbólicas. Trocas simbólicas já estão inscritas num sistema, ou seja, já pressupõem valores e julgamentos. A literatura da área da comunicação possui um foco prioritário com ênfase na compreensão e na economia da troca, fazendo da comunicação – e da informação – elementos traduzíveis num conceito cambiável comum, tal como o dinheiro. Tanto o foco na emissão quanto na recepção questionam as possiblidades de tradução, de compreensão, mas eliminam o excesso como erro: buscam a equalização e a simetria. A comunicação, mecanicamente analisada, busca eficiência. Por outro lado, o texto em tela não trata sobre o bem compreender ou de bem comunicar – que já seriam modalidades que a comunicação pode assumir – em seu sentido prático, mas da própria noção que rege o conceito. Para que seja possível colocar em comum é necessário, antes de tudo, que existam, ao menos, dois separados. Aqui conduziremos nossa reflexão sobre a Comunicação como relação que mantém a separação, ou seja, a unicidade de cada sujeito. Em De Dieu qui vient a l’idée, Emmanuel Levinas, ao tratar da linguagem e da proximidade, salienta que não se trata de uma troca de ideias entre razões (LEVINAS, 2004a, p.216-217), mas de uma proximidade ainda sem razão (em um sentido positivo) como condição de possibilidade do sentido. Na mesma obra, o autor franco-lituano argumenta que filósofos, teólogos, políticos e a própria opinião pública colocaram o diálogo como central nas discussões do pós-primeira guerra mundial, ao acreditarem que essa era a resposta sensata para acolher o espírito humano. No entanto, a pretensa “troca” entre razões – que ocorre no que é definido como ato comunicativo – nada mais é do que o comércio de intenções já sistematizada. Fica à mercê das ideologias. Tratar-se-ia apenas da moralidade do bom negócio, da dominação, ou seja, da sincronia e da representação. 209 Por esses motivos, nossa preocupação, aqui, está centrada no mecanismo do pensamento implicado na Comunicação. Isso porque o foco na eficiência pode esconder uma falsa conformidade indicando apenas um recurso aos mesmos significados e não a Comunicação entre sujeitos. Falar e ser compreendido implicaria apenas o compartilhamento de significados, de um sistema, comuns. Não sugere, no entanto, o respeito à alteridade do Outro – em sua absoluta separação – nem os excessos de significados que a Comunicação carrega. Compreender significa, apenas, a sincronização em um ato de posse. Talvez resida aí uma expectativa demasiada que deságua numa frustração pois o ato de comunicar – sui generis – parece indicar, ou ter como horizonte, a compreensão mútua. No entanto, este texto procura discutir se a Comunicação permite uma aproximação, mesmo que não coincidência; fazendo dos mencionados equívocos apenas um sintoma de um descompasso, mas não de uma negatividade. Tendo como fundamento a metaética levinasiana, tentamos traçar uma proposição a respeito da Comunicação im-possível; a separação da Alteridade Absoluta. É, enquanto im-possível, paradoxalmente e ao mesmo tempo, uma ruptura radical com o poder e a totalidade e um acolhimento. Isso significa dizer que, contrariando a objetividade esperada, a Comunicação sofre, no seu ato, o rebentamento que o excesso traz ao seu limite. Em certa medida, a Comunicação im-possível sugere uma incompreensão – que não é perda, nem negatividade – como respeito pela Alteridade, pela responsabilidade pré-originária por ela. O vestígio do excesso – e da falta pela incompreensão do todo incompreensível – sugere também a afetação possível apenas por meio do acolhimento – tal é a característica da separação e do segredo. Razão e conhecimento; Metafísica e transcendência Para Levinas, o problema da tradição filosófica ocidental é, como consequência da sua própria maneira de entender o pensamento, o de tratar a alteridade como relativa, ou 210 seja, é pela representação e pelo conhecimento que as coisas do mundo existem, incluindo o outro. É evidente que desde os gregos se reconhece a separação entre o ser cognoscente e o ser conhecido. Mas a fórmula que implica o ser cognoscente e o ser conhecido, ou, em termos husserlianos, a visada da visão, demonstra que a separação não é absoluta. De acordo com o filósofo, e ainda dialogando com a tradição filosófica, o ser humano não é o fundamento da Razão, mas é definido por ela. Assim, a razão não se dirige a outro, mas faz um monólogo com o Mesmo. A autonomia se tornaria universal e o pensamento englobaria o pensador e o pensado. A fundamentação na razão coincide com o que é entendido como psiquismo, consciência de si, subjetividade, saber e espírito, os quais são admitidos como correlatos ao lugar natural do sentido (LEVINAS, 2004a, p.212). Todas as experiências são convertidas em unidades do saber, em que a exterioridade se torna imanência, o pensamento porta o pensado. O pensamento aprende ao mesmo tempo em que apreende o outro, fazendo com que a representação da exterioridade se acomode em uma interioridade (p.213). A acomodação é a sincronia do ser e do ente que é expressa pelo eu penso, que é, ao mesmo tempo, consciência de si e sistema. A unidade do inteligível é a coincidência do ser-em-ato com aquele que o constitui. Como consequência, a transcendência é relativa, é uma satisfação, e o “mundo dado” é o mundo possuído. Segundo Levinas, “O espírito é a ordem das coisas – ou as coisas em ordem – cujo pensamento seria apenas lembrança e armazenamento4” (LEVINAS, 2004a, p.215). Assim, se a razão, a atividade de pensar, é onde reside a racionalidade (p. 214), então em um diálogo, comumente entendido como comunicação, “Essa troca de ideias será mantida em uma única alma, em uma única consciência, em um cogito que permanece Razão5” (p.216). Consciências múltiplas, mas onde a alteridade é suprimida. Conheci4 No original: “L’esprit c’est l’ordre des choses – ou les choses en ordre – dont la pensée pensante ne serait que le recueillement et le rangement”. 5 No original: “Cet échange d’idées tiendra, en fin de compte, dans une seule âme, dans une seule conscience, dans un cogito que reste la Raison”. 211 mento do outro como de um objeto, como uma coisa. O pretexto da verdade comum parece eliminar a diferença tornando-a indiferença. Nesse sentido, “Desvelar pela ciência e pela arte é essencialmente revestir os elementos de uma significação, ultrapassar a percepção” (2000, p.61). O desvelado, o que tem significado, é representado e indica que a significação é anterior à aparição. Isso porque as categorias a priori já estariam instaladas antes da aparição. Assim, o horizonte é aberto, na contemplação, à aparição do objeto. Um objeto apareceria ao pensamento pela ação do pensamento que o pensa. Conforme Levinas, a significação remete, no fim de contas, para o ser que existe em vista da sua própria existência. É assim tirada de um termo que é fim de si mesmo. De maneira que quem compreende a significação é indispensável à série em que as coisas adquirem um sentido, como fim de série (LEVINAS, 2000, p.81). Na representação, e na significação que ela demanda, as experiências são convertidas em ensinamentos, em conhecimento, fazendo da inteligibilidade a finalidade desejável. O cogito cartesiano é uma atividade intelectual preocupada com o verdadeiro (LEVINAS, 1984, p.13-14) e, nesse sentido, “o pensamento é o modo pelo qual uma exterioridade se encontra no exterior de uma consciência que não cessa de se identificar, sem ter de recorrer para tal a nenhum signo distintivo e é Eu: o Próprio” (p.14). É por essa razão que o outro, como exterioridade pensada pelo Eu, já é próprio e já não é mais Outro. Seu segredo está aberto para a pesquisa e a sua essência está à disposição para ser analisada. Ocorre que essa demarcação do outro como imanência se configura como uma temporalização, o fato-de-ser, como presença. Essa presença permite a construção da memória e da história, mesmo que não seja do Outro, mas sobre o outro. É só por meio da representação que se acessa o passado e se tem a percepção de um tempo. Em certo sentido, isso implica que o alargamento do conhecimento só poderia trazer como consequência a adequação do saber ao ser fazendo que “nada 212 de absolutamente novo, de diferente, de estranho, que nada de transcendente, poderia afetar ou alargar verdadeiramente um espírito destinado a contemplar tudo” (LEVINAS, 1984, p.15). O eu penso engloba a totalidade do pensável e “constitui a autonomia do saber que se basta a si próprio”, ou seja, “se presta a consciência de um eu” (p.15). É ainda dizer que o fenômeno, captado, exclui todo o excedente, exclui a alteridade do Outro; já é posse. O fato é idolatrado justamente por essa razão; a verdade dos fatos é esse congelamento, essa supressão da alteridade; sua anulação; invoca-se aquilo que não pode mais falar. “Tal conhecimento convida o cognoscente a uma interminável psicanálise, à procura desesperada de uma verdadeira origem pelo menos em si mesmo, ao esforço de despertar” (2000, p.52). O objeto é iluminado pela visão que o olha! A significação sempre foi entendida como relação, mas Husserl colocou a significação no olhar que fixa os conteúdos que toma; uma visão que visa a um visado, ou seja, à intenção. O referir-se é uma necessidade, um querer. “Percepção e apreensão a partir da presença, a partir do ser-dado e, consequentemente, aquisição, incorporação em si e, portanto, na apropriação, promessa de satisfação feita a um eu ávido e hegemônico” (LEVINAS, 1984, p.15-16). A presença é tomada como satisfação e sua síntese são reunidas em diversos graus de idealização. O saber é, assim, a promessa da técnica, da sistematização. Ao mesmo tempo que desvenda o mundo e domina o mundo, eliminando a separação. É a doutrina de um saber absoluto, da “liberdade do homem satisfeito”, ou seja, a racionalidade que se sobrepõe sobre toda a alteridade das coisas e dos homens. A síntese e a sincronia são mais fortes que a diversidade e a diacronia. “Basta à fenomenologia husserliana interrogar as intenções do pensamento para saber onde o pensamento quer chegar” (p.17). Mas se esse fosse o único caminho para compreender o pensamento, então não haveria lugar para a transcendência, a metafísica, a alteridade ou a novidade absoluta. Todo o buscado já seria imanência, já aparece. Para Levinas, a investigação a esse respeito precisa encontrar um outro caminho que não a redução fenomenológica. O início do saber e, portanto, da ontologia já não são o ponto inicial. 213 A questão da transcendência, em Levinas, não constitui uma perspectiva teológica nem da perspectiva kantiana, ou seja, não se trata de pensar o divino nem as condições a priori do pensamento. Transcendência implica, para Levinas, a Ideia do Infinito em nós. Significa a retomada e a manutenção da etimologia de origem latina que significa transpor, ultrapassar, ir além, mas sem implicar a divindade. Nisso consiste uma noção singular a respeito de como o pensamento opera, modificando, como consequência, a maneira como o entendemos. O pensamento opera de uma maneira diferente da do desvelamento – mesmo que Heidegger tenha insistido no fim da metafísica como desconhecimento da diferença ontológica entre ser e ente (LEVINAS, 1984, p.18) –, como “uma intriga espiritual totalmente diferente da gnose” (p.19, grifos do autor). Mas o excesso, aquilo que ultrapassa o conhecimento, precisa vir de algum lugar, e mais, precisa ser de uma natureza diferente e de uma maneira distinta, a qual, no entanto, tem a força necessária para deixar vestígios. A novidade e a imprevisibilidade são maneiras de esse excesso se “manifestar” (mesmo que manifestar não seja aqui a palavra ideal – já que se refere ao que se mostra, à presença, ao conhecimento – por isso as aspas). O curioso, nessa situação, é que a significação só se mantém na ruptura, ou seja, quando há busca e insatisfação. As coisas ganham sentido enquanto estão sendo buscadas e não na sua finalidade, é aí que a consciência aparece, se torna visível. Colocar em questão é uma insatisfação da consciência. Por esse motivo, Levinas explica que “O significado nunca é uma presença completa” (LEVINAS, 2000, p.82), ou seja, ser caracterizado como tema implica o significar, mas não, necessariamente, ao fato de remeter ao pensador que o pensa. É por isso que o mundo nunca é exaustivo, o que seria um absurdo. Por isso, Levinas questiona: “que outra coisa se pode procurar sob o pensamento além da consciência?” (1984, p.20). É um pensamento que não compromete a transcendência ao compreendê-la nem conduz o transcendente à imanência; precisa estar fora da dialética implicada do pensante e do pensado, da noese e do noema, da visão e do visado. Parece ser uma situação impossível, mas que já havia sido descrita por Descartes. 214 Nas palavras de Levinas: A relação do Mesmo com o Outro, sem que a transcendência da relação corte os laços que uma relação implica, mas sem que esses laços unam num Todo o Mesmo e o Outro, está de fato fixada na situação descrita por Descartes em que o “eu penso” mantém com o Infinito, que ele não pode de modo nenhum conter e de que está separado, uma relação chamada ‘ideia do infinito’ (LEVINAS, 2000, p.35-36). A ideia do infinito ultrapassa a sua ideia. Todas as demais “teríamos podido, em rigor de termos, justificar por nós próprios” (LEVINAS, 2000, p.36). Para Levinas, a prova da ideia do infinito é dada por Descartes, nas Meditações, e mantém-se verdadeira. Na perspectiva cartesiana, tratava-se da prova de Deus, no entanto, para Levinas, trata-se tão somente da Ideia do Infinito em nós e demonstra a separação da Alteridade Absoluta. Levinas argumenta que “A noção cartesiana de ideia do Infinito designa uma relação com um ser que conserva a sua exterioridade total em relação àquele que o pensa” (p.37), o que também indica a distância da ideia de divindade, pois a relação com um ser Absoluto o tornaria relativo e uma contradição de termos. É, portanto, uma relação diferente da objetivação. A Ideia do Infinito contém mais do que o pensamento é capaz de conter. Surge, inicialmente, como uma noção paradoxal – não se poderia saber sobre o que não é possível saber – mas que, em verdade, é a própria condição de possibilidade do sentido. Ideia do Infinito, Desejo e Rosto A Ideia do Infinito supõe uma separação radical, pois para que seja possível haver transcendência é preciso haver um fora – mas não uma exterioridade correlata de uma interioridade, algo a ser desvelado, mas um separado de uma distância intransponível. Seguindo os passos de Descartes, Levinas analisa a Ideia do Infinito argumentando que a separação é correlata da 215 noção de criação ex nihilo, ou seja, do nada – não no sentido da antítese ao ser, mas como a ausência de qualquer coisa. A grande força da ideia de criação, tal como o monoteísmo a propõe, consiste em que a criação é ex nihilo – não porque isso represente uma ação mais miraculosa do que a informação demiúrgica da matéria, mas porque assim o ser separado e criado não saiu simplesmente do pai, mas é-lhe absolutamente outro. A própria filialidade só poderia apresentar-se como essencial ao destino do eu se o homem mantiver a recordação da criação ex nihilo, sem a qual o filho não é um verdadeiro outro (LEVINAS, 2000, p.51). Por essa razão, aquilo que antes parecia paradoxal, agora refere-se à situação em que o começo não é saber do começo. Se por um lado “A exterioridade do conteúdo pensado, em relação ao pensamento que o pensa, é assumida pelo pensamento e, neste sentido, não ultrapassa a consciência” (LEVINAS, 2000, p.86), por outro, o que excede não é revelado, mas mantém-se como arquioriginalidade. A separação mostra que é possível haver uma ordem cronológica antes da ordem lógica. A Ideia do Infinito ultrapassa a ideia do finito que o pensa; embora a Ideia do Infinito seja cronologicamente anterior, é logicamente posterior ao pensamento que o pensa. A causa do ser está ainda por vir, colocando a ontologia como secundária e abrindo espaço para a metaética como filosofia primeira6. “A causa do ser é pensada ou conhecida pelo seu efeito como se fosse posterior ao seu efeito. 6 Seria necessário um texto específico para detalhar a noção de ética como filosofia primeira; aqui só podemos, no máximo, sumarizar os principais aspectos. A ética, como metaética, é entendida por Levinas como a humanidade do humano e não tem qualquer relação com as noções de normatividade. É ética porque respeita a humanidade do humano, que é o Outro homem: sua singularidade, separação e segredo. Se a novidade e a imprevisibilidade vêm de fora, então a relação é transcendente, metafísica e, nesse sentido, anterior a qualquer gnose, conhecimento. Isso implica o fato de que o próprio pensamento é mobilizado do exterior sem dele fazer representação. Levinas vai ainda mais fundo nessa questão ao indicar que a própria subjetividade, como substituição, supõe essa relação desinteressada – ou seja, sem intencionalidade – com a alteridade absoluta: Outrem enquanto separado. 216 [...] A posterioridade do anterior – inversão logicamente absurda – só se produz, dir-se-ia, pela memória ou pelo pensamento” (p.42). Essa inversão absurda é a situação da diacronia em que as unicidades separadas organizam os seus tempos e as suas histórias, ou seja, “Não haveria ser separado se o tempo do Uno pudesse cair no tempo do Outro” (p.44). Cada interioridade poderia, caso contrário, ser inserida em um tempo comum e histórico. A totalidade dominaria a separação. Pela interioridade cada ser recusa-se a universalização, cada ser é único, resiste à totalidade. O real não deve determinar-se apenas na sua objetividade histórica, mas também a partir do segredo que interrompe a continuidade do tempo histórico, a partir das intenções interiores. O pluralismo da sociedade só é possível a partir desse segredo; atesta esse segredo (LEVINAS, 2000, p.45). A impressão ou “sensação” de cronologia é a consequência do conhecimento que situa o presente do pensamento em que o antes aparece e é acolhido pelo psiquismo, pensamento, subjetividade. O psiquismo é o começo, mas um começo absurdo para a história porque é um começo único, mas também, por assim dizer, contínuo. Pelo psiquismo, aquilo que excede é o começo cronológico daquilo que será tido como princípio lógico, mesmo que posterior. Esse tempo diacrônico não serve ao projeto porque não pode ser totalizado. A separação é necessária para que exista uma pluralidade. Mas o psiquismo é também egoísmo. A memória retoma, faz regressar e suspende o já realizado do nascimento – da natureza. [...] Pela memória, fundo-me a posteriori, retroativamente: assumo hoje o que, no passado absoluto da origem, não tinha sujeito para ser recebido e que, a partir de então, pesava como uma fatalidade (LEVINAS, 2000, p.43-44). O pensamento do Eu não contém o infinito do Outro. A atenção e o pensamento são importantes para a consciência, mas são mobilizados de fora. É um movimento; mas um movi- 217 mento que prova o excesso e a anterioridade da relação à consciência de... A relação é ética e a consciência, ontológica. Mas a separação também é necessária para que possa haver a Ideia do Infinito, a qual não anula a separação. É uma relação que não anula a ipseidade e que não anula a distância. É uma relação “sem relação”; é transcendência (LEVINAS, 2000, p.48). A ideia do Infinito não parte, pois, de Mim, nem de uma necessidade do Eu que avalie exatamente os seus vazios. Nela, o movimento parte do pensado, e não do pensador. É o único conhecimento que apresenta esta inversão – conhecimento sem a priori. A ideia do Infinito revela-se, no sentido forte do termo. [...] Mas esse conhecimento excepcional já não é por isso mesmo objetivo. O infinito não é ‘objeto’ de um conhecimento – o que o reduziria à medida do olhar que contempla – mas o desejável, o que suscita o Desejo, isto é, o que é abordável por um pensamento que a todo instante pensa mais do que pensa (LEVINAS, 2000, p.49, grifos do autor). A separação mostra, portanto, que não forma totalidade com uma outra margem já que não se trata de uma relação dialética: a separação é radical. Daí decorre que pensar o Infinito não é pensar um objeto. “Mas pensar o que não tem os traços do objeto é na realidade fazer mais ou melhor do que pensar” (LEVINAS, 2000, p.36). Platão, no Fedro, já falava sobre o infinito como o delírio que vem de Deus ou como o pensamento alado. Em Levinas, não se trata de irracionalidade, nem de um pensamento que se perde ao vento, mas demonstra o Desejo pela Ideia do Infinito. O Desejo do Infinito não busca a posse do desejado, mas, pelo contrário, não busca satisfazer, mas suscitar – é um desejo desinteressado que Levinas chama de bondade (LEVINAS, 2000, p.37). Ocorre aqui uma inversão tremenda: da objetivação passa-se a uma generosidade irrestrita. “Essa relação por cima das coisas doravante possivelmente comuns, isto é, suscetíveis de serem ditas – é a relação do discurso. O modo como o Outro se apresenta, ultrapassando a ideia do Outro em mim, chamamo-lo, de fato, rosto” (p.37). O rosto não é tema 218 nem conceito, não é uma imagem plástica, nem fenômeno. Ele exprime-se (p.38); ele não é ontológico. Isso porque o conteúdo da expressão é a própria expressão; é a presença do Outro como alteridade absoluta. Para Levinas, “Abordar Outrem no discurso é acolher a sua expressão onde ele ultrapassa em cada instante a ideia que dele tiraria um pensamento” (LEVINAS, 2000, p.38). É receber de Outrem para-além do Eu. O rosto do Outro é anterior à própria subjetividade do Eu, antes do poder, da posse e da iniciativa. Ou seja, é anterior à própria ideia de imediato já que o contato consciente já é produzido posteriormente à tomada de consciência pelo sujeito. O verdadeiro imediato é o frente a frente (p.39), é metafísico. Ou seja, O infinito é característica própria de um ser transcendente, o infinito é absolutamente outro. O transcendente é o único ideatum do qual apenas pode haver uma ideia em nós; está infinitamente afastado de sua ideia – quer dizer, exterior – porque é infinito (LEVINAS, 2000, p.36, grifo do autor). O que potencializa essa relação é a presença do Rosto do Outro na sua nudez. Essa presença é a maneira da sensibilidade. Para Levinas, a sensibilidade não deve ser entendida como algo de segunda categoria preterida do pensamento, mas, pelo contrário, como o próprio começo da possibilidade do pensamento. O Rosto do Outro, enquanto não-conhecido, é, ao mesmo tempo, a caracterização da separação e do segredo e a abertura para a transcendência na Ideia do Infinito. É uma relação, cabe destacar, des-interessada, pois o Rosto do Outro não é objeto nem tema, não é representado e nem passível de posse. “A relação com o rosto não é conhecimento de objeto” (LEVINAS, 2000, p.62). A nudez do rosto, para o filósofo, denota justamente essa incapacidade de tomar-lhe algo. Não há nada que possa ser tomado. A ausência é de objeto e não de outra individualidade. Isso porque a proximidade não é da mesma ordem que a experiência (2004a, p.223). O espírito para Levinas é definido por essa transcendência, pela relação imediata com Outro, anterior ao mundo pensado, antes 219 do psiquismo e antes da subjetividade. O Outro está em si, está perfeitamente nu, ou seja, sem ornamentos, já que “a nudez é o excedente do seu ser sobre a sua finalidade” (2000, p.61). A aproximação contrasta com o saber e o Rosto contrasta com o fenômeno (2011, p.137). Na aproximação, o Outro deixa rastros, vestígios – que é o significado do que Levinas denomina como Rosto. É uma insinuação an-árquica, ou seja, sem começo definível por um conhecimento e que não pode ser confundida com indicação. “O rastro onde se ordena o rosto não se reduz ao signo: o signo e a sua relação com o significado são síncronos no tema” (p.137). Aproximação é relação e não tematização. “Tematizar esta relação é perdê-la, sair da passividade absoluta do si” (p.137). Trata-se de um conhecimento excepcional, pois não é objeto de um conhecimento, mas é o desejável, aquilo que suscita o Desejo, “isto é, o que é abordável por um pensamento que a todo o instante pensa mais do que pensa” (LEVINAS, 2000, p.49, grifos do autor). Para Levinas, há uma clara diferença entre necessidade e Desejo, sendo o primeiro o reconhecimento de uma falta o que, como consequência, já é a antecipação do objeto. Já o segundo é a ausência da falta, é o excesso; desejo pelo que sobra. Sobra porque não tenho consciência da falta. O Desejo alimenta-se da fome e não do alimento; alimenta-se do invisível. Essas figuras de linguagem representam a natureza do Desejo em Levinas. Uma possibilidade de relação des-interessada que não se orienta pela falta, mas pelo excesso. A passagem da percepção ao conceito é a constituição do objeto. A sensibilidade, por outro lado, por possuir “uma razão de outra ordem”, tem a característica de manejar a contradição da Ideia do Infinito. A verdade procura-se no outro, mas através daquele que não tem falta de nada. A distância é intransponível e, ao mesmo tempo, transposta. O ser separado está satisfeito, é autônomo e, no entanto, procura o outro numa procura que não é espicaçada pela falta da necessidade, nem pela recordação de um bem perdido; uma tal situação é linguagem. A verdade surge justamente onde um ser separado do outro não se afunda nele, 220 mas lhe fala. A linguagem que não toca o outro, ainda que tangencialmente, atinge o outro interpelando-o, ou dando-lhe ordens, ou obedecendo-lhe com toda a retidão dessas relações. Separação e interioridade, verdade e linguagem – constituem as categorias da ideia do infinito ou da metafísica (LEVINAS, 2000, p.49-50). Nesse sentido, a relação com o Absolutamente Outro requer uma experiência antes da mediação das Ideias (LEVINAS, 2000, p.58). Como a necessidade do Mesmo é uma falta que leva à uma busca, sabe-se, de antemão, que a significação da linguagem não pode nascer disso sob pena de ficar restrita. Ela depende do Desejo do Infinito para ganhar sentido. “A significação está no excedente absoluto do outro em relação ao Mesmo que o deseja, que deseja o que não lhe falta, que acolhe o Outro através dos temas que – sem se afastar dos sinais assim dados – o Outro lhe propõe ou dele recebe” (TI, p.83). O alter ego, a constituição de Outrem como meu outro, destrói a alteridade, constitui o Outro como objeto e, portanto, posse. O eu penso já se constitui em um eu posso. É por isso que o Rosto é revelação. Linguagem e Comunicação im-possível O que expressamos até aqui não significa que Levinas tenha desconstruído a tradição filosófica que o precede, pelo contrário, ele busca aprofundar aspectos que se situam no limite da compreensão sobre a humanidade do humano. Heidegger também entende que a “coexistência é colocada como uma relação com outrem, irredutível ao conhecimento objetivo, mas assenta também, ao fim e ao cabo, na relação com o ser em geral, na compreensão, na ontologia” (LEVINAS, 2000, p.55). Enquanto para o filósofo alemão o fundo do ser é o limite, um nós, um conhecimento possível, para Levinas, trata-se apenas de definir a consciência como começo e, portanto, poder. Levinas vai além e diz que a relação não é simétrica nem síncrona nem recíproca. A unidade do Eu e a alteridade do Outro estão absolutamente separadas; não há conhecimento que os possa 221 unir: a violência da totalidade apenas suprime a alteridade. É nesse preciso sentido que a relação metafisica como Ideia do Infinito surge como resposta a essa questão; e a possibilidade de pensar o Outro, fora da redução do conhecimento, deixa de parecer um absurdo. A troca que a coincidência da comunicação busca, como reconhecimento e representação, acaba por tornar a normalidade da própria comunicação um posicionamento no tempo. Quando se pretende extrair significados de uma comunicação representada, já temporalizada, só se extrai a identidade do Eu consigo mesmo. O pensamento universal, ou seja, a objetividade e a universalidade, teria de ser anterior ao discurso e, portanto, dispensar a comunicação. “Uma razão não pode ser outra para uma razão” (LEVINAS, 2000, p.59). Isso é o mesmo que dizer que, A comunicação seria precisamente impossível se ela devesse começar no Eu, sujeito livre para quem qualquer outro não seria senão a limitação que convida à guerra, à dominação, à precaução e à informação. Comunicar é certamente abrir-se; mas a abertura não é completa se ela espera o reconhecimento (LEVINAS, 2011, p.135). Por isso, para Levinas, a linguagem – lugar privilegiado da Comunicação –, no entanto, promove a relação que permite a ultrapassagem dessa sincronia. A pluralidade de pensantes e de consciências não é contingente, mas é a socialidade originária da qual o diálogo parte, da qual nasce. A dimensão inter-humana se abre na linguagem. Não se trata de uma compreensão, mas de uma relação que não pode ser medida pela consciência de si. A socialidade da linguagem não se reduz à transmissão de saberes entre múltiplos eus (LEVINAS, 2004a, p.219-220). Para o filósofo, a linguagem impõe condições extraordinárias no que se refere à relação do Mesmo e do Outro (ou metafísica). Isso porque na linguagem os “termos não são limítrofes nessa relação, que o Outro, apesar da relação com o Mesmo, permanece transcendente ao Mesmo” (2000, p.27). A essência do discurso, por manter a distância entre os 222 falantes – a separação radical –, justifica o direito de outrem e demonstra, ao mesmo tempo, que o Eu se afirma e se declina nessa proximidade com o transcendente. “O Discurso é assim experiência de alguma coisa de absolutamente estranho, ‘conhecimento’ ou ‘experiência’ pura, traumatismo do espanto” (2000, p.60). Mas a coerência da linguagem, a qual, ao mesmo tempo que suprime o outro coloca-o de acordo com o Mesmo, demonstra uma dupla função. Ora, na sua função de expressão, a linguagem mantém precisamente o outro a quem se dirige, que interpela ou invoca. É verdade que a linguagem não consiste em invocá-lo como ser representado e pensado. Mas é por isso que a linguagem instaura uma relação irredutível à relação sujeito-objeto: a revelação do Outro (LEVINAS, 2000, p.59-60). Para além da representação, a Comunicação é também relação: daí a sua dupla maneira de ser considerada por Levinas. É nesse sentido que, nos textos mais maduros, Levinas diferencia essas duas maneiras utilizando dois termos diferentes: o Dizer e o Dito. Essa diferença de termos é importante do ponto de vista argumentativo, pois, caso contrário, fica suposto que a linguagem, como sistema de signos e representação, é também relação. Trata-se, no entanto, de duas formas (e não necessariamente etapas, pois não se trata de ordem lógica). Quando Levinas refere-se à linguagem como “relação com a nudez liberta de toda forma, mas que tem um sentido por si mesma, [...], significante antes de projetarmos luz sobre ela, que não se apresenta como privação sobre o fundo de uma ambivalência de valores [...] mas como valor sempre positivo”, ele refere-se ao Dizer, que fica demonstrado no Rosto. Em outras palavras, “Uma tal nudez é o rosto” (LEVINAS, 2000, p.61), já que o rosto volta-se para mim e “é por si próprio e não por referência a um sistema” (p.61). Já o sistema de signos e representações, ao qual a palavra linguagem também faz referência, é designado por Levinas como Dito. Enquanto o Dizer é proximidade, metafísica, Ideia do Infinito, o Dito é sistema, 223 representação, sincronia. O Dizer é an-árquico, enquanto o Dito é lógico. “É também aí que se desdobra – ou intervém, ordenando o eu como eu e tu como tu – a relação extraordinária e imediata do diá-logo que transcende essa distância sem suprimi-la [...]. Esta é outra maneira de acessar o outro do que saber: aproximar o próximo7” (2004a, p.221). O Dizer é um antes – de um passado imemorial, pois é diacrônico –, mas não é um diálogo anterior. É a gratuidade sem satisfação da Ideia do Infinito. É uma diferença que não se confunde com uma indiferença, é um sentimento desinteressado – em contraste com a intencionalidade do Dito. Por isso, o diálogo é um pensamento para além do pensamento. A desmedida do pensamento significa no diálogo e não o contrário (LEVINAS, 2004a, p.230). No Dito, por outro lado, o pensamento do sujeito continua uno porque retorna, poderia opor-se, mas acaba sempre em sincronia. “O pensamento finito cinde-se para interrogar-se e responder-se, mas o fio se reata. O pensamento reflete sobre si mesmo, interrompendo sua continuidade de apercepção sintética, mas procede ainda no mesmo ‘eu penso’ ou a ele retorna” (2004b, p.208-209). Sujeitos múltiplos, pensantes, trocam ideias, mas as ideias fazem-se representação “que nomeia ou expõe um saber”. Acaba por permanecer em uma só consciência, uma só Razão, uma interioridade egóica. A linguagem pode ultrapassar o discurso, justamente porque a alteridade pode assim proceder, mas a representação é sempre realizada pela memória e pela imaginação: reunião do ser do ente em um ente. “Momento capital da representação e da visão como essência do pensamento!” (LEVINAS, 2004b, p.210). Mas o aquém e o além ultrapassam essa visão. A representação do sistema do Dito representa o presente vivo que é o tempo da consciência, mas também é a consciência do tempo. Pela representação da presença, há memória, história e futuro. A ideia de fluxo, de 7 No original: “c’est là aussi que se déploie – ou s’interpose, en ordonnant le je comme je et le tu comme tu – la relation extraordinaire et immédiate du dia-logue que transcende cette distance sans la supprimer [...]. Voilà une autre façon d’accéder à l’autre qu’en connaissant: approcher le prochain”. 224 temporalidade, é uma noção emprestada pela representação dos entes, e o discurso se trama dessa maneira. Para Levinas, a linguagem carrega a possibilidade de contato com o desconhecido que não quer ser e nem se deixa ser conhecido – é separação e segredo. A linguagem permite manifestar um ser que se fecha sobre si mesmo. Sobre si mesmo não há novidade, há novidade na relação. “O começo do próprio saber só é possível se se quebrar o enfeitiçamento e o equívoco permanente de um mundo onde toda a aparição é dissimulação possível, onde falta o início. A palavra introduz um princípio nesta anarquia” (LEVINAS, 2000, p.84). Na palavra o sujeito aparece, mas assiste à sua própria aparição. E, na “franqueza do rosto o mundo é revelado e ganha significado” (p.84, grifo nosso), já que a significação inicia no Rosto do Outro que faz apelo ao Mesmo – é a condição de possibilidade do sentido. A relação com o Outro não ocorre fora do mundo, mas coloca o mundo possuído em questão. É só pela relação com Outrem que é possível a generalização e a universalização; ou seja, a ética, no sentido metaético, antecede a linguagem e está nela implicada. Por isso, a transcendência não é uma visão de Outrem, mas uma doação original de sentido (LEVINAS, 2000, p.155). “As análises da linguagem que tendem a apresentá-la como uma ação significativa entre outras menospreza a oferta do mundo, a oferta de conteúdo que responde ao rosto de outrem ou que o questiona e abre apenas a perspectiva do significativo”; em outras palavras, isso significa dizer que “a ‘visão’ do rosto não se separa da oferta que é a linguagem. Ver o rosto é falar do mundo. A transcendência não é uma óptica, mas o primeiro gesto ético” (p.156). Como interioridade, o homem permanece fenomenal, mas é por meio da linguagem que comporta um excedente, que um ser existe para outro, é mais que a sua existência interior. Nesse sentido, a “experiência absoluta não é desvelamento, mas revelação”, pois a manifestação de um rosto, para além da forma, é já discurso e “Desfaz a cada instante a forma que oferece” (LEVINAS, 2000, p.53, grifos do autor). A significação, ou a condição de possibilidade do sentido, não é uma essência 225 a ser desvelada e oferecida à intuição intelectual; a significação é a presença da exterioridade. É a produção de sentido, a arqui-originalidade do sentido; “é um acontecimento irredutível à evidência; não entra numa intuição” (p.53), pois, “O que se apresenta como independente de todo o movimento subjetivo é o interlocutor, cuja maneira consiste em partir de si, em ser estranho e, no entanto, apresentar-se a mim” (p.54). A expressão é diferente da aparição já que o Dizer é anterior “aos signos verbais que ele conjuga, anterior aos sistemas linguísticos e às cambiantes semânticas”; o Dizer “é proximidade do um ao outro, compromisso da aproximação, um para o outro, a própria significância da significação” (LEVINAS, 2011, p.27). O que aparece aparece para uma visão que visa, enquanto a expressão é acontecimento original da significação como possibilidade de sentido. A novidade seria impossível se a totalidade fosse possível de deduzir pela imagem de Outrem. A novidade só ocorre pelo excesso e pelo princípio an-árquico que é a Ideia do Infinito. Já no Dito o Dizer se subordinam ao seu tema, ao sistema linguístico, à ontologia; é “a contrapartida exigida pela manifestação” (p.28). É evidente que o Dizer só pode ser dito pelo Dito, mas o faz traindo-o pois aqui tudo, assim como o Outro, surge como manifestação do ser, como fenômeno – é a anfibologia do ser e do ente, ou seja, o equívoco criado pela consciência na busca pela sincronia da essência. Conforme Levinas, “Enunciado nas proposições, o indizível (ou o an-árquico) abraça as formas da lógica formal, o para lá do ser põe-se em teses dóxicas, cintila na anfibologia do ser e do ente – anfibologia onde o ente dissimularia o ser” (p.29). A temporalização pelo verbo permite que a essência seja compreendida como fenômeno do sensível vivido. É o jogo ontológico da consciência. Por isso o Dizer acaba por inscrever-se, por trair-se, no Dito. A identificação é o reencontro; é prestação de sentido. O Dizer é aproximação; é significação, mas não prestação de sentido; está antes de toda a objetivação. Prestação, doação de sentido já é representação (LEVINAS, 2011, p.68-69). “O Dizer é certamente comunicação, enquanto condição de toda a comunicação, enquanto exposição” (LEVINAS, 2011, p.69). Comunicar não é fazer passar uma mensagem, um pensa- 226 mento de um Eu para um outro Eu, como se o outro Eu percebesse esse pensamento. “A intriga da proximidade e da comunicação não é uma modalidade do conhecimento. A abertura da comunicação – irredutível à circulação de informações que pressupõe – efetua-se no Dizer” (p.69). Atravessa o noema da intencionalidade. O Dizer é uma vulnerabilidade, mas é também acolhimento. Não é o Eu, ou um nós, que sustenta a Comunicação, pelo contrário, é o tecido da socialidade como resignação, antes da subjetividade; antes da manifestação (LEVINAS, 2011, p.136). Mas o diálogo implica ruptura, mesmo que instantaneamente recuperada pela representação. A ideia de diálogo pressupõe esse entre-meio. Essa ruptura pressupõe a presença do Outro como relação e não como conhecimento, portanto não entra no discurso nem na representação, mas deixa marcas. As marcas do excesso, da novidade e da dúvida são as condições de produção de sentido, mas seguem sendo uma não-presença (2004b, p.213). É preciso retomar a intriga inter-humana anterior. O discurso é apenas uma negociação de informações intercambiáveis intencionalmente, mas a Comunicação do Rosto, do face a face, é de uma alteridade inextinguível e inassumível. Essa aproximação é “mais antiga” que a consciência de... (p.214). A abertura coloca o idêntico em questão; não se trata de colocar a verdade do “lado de fora”. O que aparece é mais do que a aparência. A Comunicação é, sem dúvida, um Dito, mas carrega vestígios de um Dizer original trazido pelo Rosto do Outro; a Ideia do Infinito. Nas palavras do filósofo: É a partir da subjetividade compreendida como si – a partir do excesso e da despossessão, da contração na qual o Eu não aparece a si, mas se imola – que a relação com o outro pode ser comunicação e transcendência, e não uma outra forma de procurar sempre a certeza ou a coincidência consigo. Coincidência consigo da qual, paradoxalmente, se pretende extrair a comunicação (LEVINAS, 2011, p.135). Aquilo que se materializa, que aparece como fenômeno, é apenas a parte acomodada pela sincronia da representação 227 que represa o Dizer – o Infinito proveniente do Rosto do Outro – em discurso ordenado, um Dito. O que é comunicado surge ao interlocutor como objeto de uma comunicação fechada e formalizada. No entanto, os excessos da nudez do Rosto afetam para-além daquilo que é possível representar. É no excesso que reside a própria condição de possibilidade do sentido, da socialidade e da humanidade do humano. É a própria separação da alteridade absoluta que não cai sob o movimento do desvelamento. Ela excede. A impossibilidade é a própria doação de sentido antes de qualquer representação: tal é a característica da Comunicação im-possível. Referências LEVINAS, Emmanuel. De outro modo que ser ou para lá da essência. Lisboa: Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, 2011. LEVINAS, Emmanuel. De Dieu qui vient à l’idée. Paris: VRIN, 2004a. LEVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004b. LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e Infinito. Lisboa: Edições 70, 2000. LEVINAS, Emmanuel. Transcendência e Inteligibilidade. Lisboa: Edições 70, 1984. PLATÃO. Fedro ou Da Beleza. Lisboa: Guimarães Editores, 2000. 228 O texto face ao digital: comunicação, apropriação e memória em perspectiva Larissa Conceição dos Santos Marco Bonito Reflexões iniciais As mudanças decorridas ao longo da história da escrita, até a chegada do texto virtual, estão intimamente relacionadas às transformações sociais e culturais, mas também às práticas e formas simbólicas que circulam na nossa sociedade (BONACCORSI, 2013). A introdução da abordagem histórica na comunicação deveria voltar-se à análise das “práticas articuladas em torno dos modos de comunicação” (BARBOSA; RIBEIRO, 2011, p.14), privilegiando o estudo dos atores e a forma com que estes se relacionam com a história através da comunicação – papel mediador da comunicação –, em vez de limitar-se ao estudo dos veículos, ou dos objetos comunicacionais fora de seu contexto de uso – virada pragmática nos estudos sobre a história da comunicação. São, enfim, as nossas relações, práticas e ações na sociedade, ao longo do tempo, que nutrem a história. E, da mesma forma, são elas também as responsáveis pelas mudanças e evoluções na comunicação. Assim, poderíamos afirmar que a comunicação humana sempre foi objeto da história. De igual modo, a história sempre esteve relacionada à comunicação, pois a evolução dos meios de comunicação altera a nossa relação com o tempo, estando, assim, intrinsecamente ligada à história que se constrói na atualidade – história das culturas, das mentalidades, do tempo presente (SANTOS, 2016). Na atualidade, observa-se a forma como o surgimento do “digital” altera a nossa maneira de agir, ou de interagir com relação à escrita. Não apenas lemos ou escrevemos diferentemente por meio dos suportes digitais, mas também mudamos nossas práticas de apreensão e de reescrita, com textos agora facilmente “modeláveis”, podendo ser alterados, ressignificados, e colocados novamente em circulação, com uma velocidade que jamais seria alcançada pela escrita impressa. Como resultante, as práticas de escrita tradicionais são afetadas pelos códigos e formatos adotados pelo virtual/digital. Mas também as mídias digitais são moldadas e influenciadas pelas práticas associadas à escrita. Faz-se necessário observar a historicidade dos sistemas de comunicação e dos processos comunicacionais (BARBOSA, 2009), considerando sua inscrição em um contexto cultural definido pela prática social, isto é, onde os usos e as apropriações dos sujeitos refletem a forma e evolução da comunicação. Nesse sentido, por meio de um ensaio de caráter teórico-reflexivo, pretende-se analisar diacronicamente a evolução das práticas comunicacionais que culminam, na atualidade, em novos-velhos formatos perante o digital. Estamos diante de “novas” tecnologias de informação e comunicação ou apenas ressignificando antigas práticas adaptadas a outros processos e dispositivos? Busca-se, entre outras implicações, evidenciar a emergência de novas formas de memória e de memorização, possibilitadas pelo advento do world wide web e da expansão das mídias digitas. Novas formas de comunicar: do papiro ao digital Entre as potencialidades das mídias digitais, Jeanneret (2012) salienta integração e enriquecimento da escrita, em suas diferentes dimensões. A escrita, ou o desenvolvimento das formas escritas, influenciaram a concepção das mídias digitais – digitação linear, edição e formatação dos documentos em estruturas semelhantes a folhas de papel etc. –, mas também as mídias têm influenciado a forma como escrevemos, lemos e nos relacionamos com a escrita – uso de computadores e de editores de texto, estereotipagem das produções textuais, entre outros. O fato de a escrita na era digital assumir traços semelhantes aos das formas de comunicação primitivas, acionando 230 recursos como pictogramas e ideogramas, conduz Jeanneret (2008) a afirmar a existência de uma mediação memorial que repousa sob as mídias digitais. Isso porque os dispositivos de comunicação atuais, sobretudo os digitais, se apoiam ou se inspiram em práticas sociais antigas, que após sucessivas evoluções culminam em formas instituídas como as vemos hoje. Como exemplo, evoluiu-se da escrita nas pedras, rochas, paredes, às tábuas, posteriormente aos papiros, em seguida às folhas, livros, com o advento da impressão, e atualmente as telas dos computadores (tablets, smartphones etc.) ainda dispostos de forma quadrada ou retangular com inscrições horizontalmente dispostas. Nesse sentido, salienta Jeanneret (2008) que o traço escrito – as marcas dessa escrita – deve ser observado como uma enunciação, na qual são operadas escolhas diante de um dado contexto. Pode-se, com isso, afirmar que as mídias digitais prescrevem nossas práticas sociais. Elas alteram as formas de leitura, escrita e apreensão textual, tanto quanto tais práticas afetam a produção e desenvolvimento de novas mídias ou ferramentas que se adaptem às nossas necessidades. [...] il faut tenir compte de plusieurs types de réalités: la matérialité et la technicité du support informatique, la complexité des formes écrites qu’il a intégrées et déployées, mais aussi les conceptions de ce qu’est écrire et lire qui ont accompagné son développement (JEANNERET, 2012, p.395). A escrita, e em especial o texto, tem sua materialidade alterada pelos suportes digitais, modificando sua existência – do impresso ao virtual – mas também sua experiência – visualização parcelar, não linear, mediada por um dispositivo informático. Dessa forma, o texto digital não é desmaterializado “mais il perd son caractère d’objet individualisé et devient un événement, réitéré à la demande par le geste de lecture gestualisée qui le requiert, sollicitant la procédure machinique” (JEANNERET, 231 2012, p.398). O autor fala em uma dupla materialidade que caracteriza a escrita digital, isto é, uma dimensão física, relativa ao suporte que lhe permite a exibição na tela, e outra semiótica, que remete à sua visualização – dimensão visual. Com relação às evoluções e mudanças nas práticas ligadas à escrita, perante as mídias digitais, Jeanneret (2012, p. 400) salienta, on peut décrire certaines tendances de fond qui, sans être irréversibles, se sont fortement affirmées ces derniers temps, parce qu’elles correspondent à la fois à des choix techniques et à des ressources politiques et économiques: l’idéal de dissociation entre forme et contenu, la reconfiguration des rapports entre acteurs de l’écrit, la mise à l’écritures des pratiques et la désingularisation des formes documentaires. Observa-se uma prevalência ou homogeneização dos formatos de escrita e edição textual na web, conduzindo a uma predileção semiótica (JEANNERET, 2014), mediada pelas mídias e instrumentos digitais (arquitextos) e influenciada pela crescente industrialização das práticas sociais. Como reflexo, observa-se uma uniformização nas formas de escrita e transmissão das informações, moldada pelos programas de edição e de publicação digitais. Os sites seguem um padrão de formatação, e sua distinção entre categorias (chat, blog, site, rede social) e gênero (notícia, diversão, científico, etc.) se dá por meio desta formatação semioticamente pré-estabelecida e reconhecida socialmente, pelos signos textuais, iconográficos e semióticos. Le triomphe général de l’image du texte se fait en effet sur une double base opérationnelle: projection dans tous les secteurs de l’information et de la communication des mêmes formats textuels, maximisation des modes de circulation entre ces textes et, par eux, entre les modes culturels, politiques, marchands de l’échange (JEANNERET, 2012, p.401). 232 A leitura e a apropriação do texto virtual pressupõem uma lógica própria, um reconhecimento do quadro de leituras e das ferramentas próprias às mídias digitais; da mesma forma é possível conceber um ato de leitura, uma gestual que permite a leitura-escrita por meio de tais mídias. A escrita torna-se objeto e ferramenta das mídias digitais, pois serve à operacionalização dos processos textuais (redação), mas também forma parte da estrutura que determina o funcionamento de tais mídias (linguagem informática). Para Davallon et al. (2003, p.25) “les médias informatisés sont ainsi définis comme des ‘machines textuelles’ auxquelles on accède et que l’on manipule à travers et par l’écriture”. Quando o texto se transporta do papel à tela digital não se altera apenas o suporte de escrita, mas também a forma como escrevemos, concebemos tal texto e, consequentemente, como iremos nos relacionar com ele. Existe uma dinâmica própria ligada à escrita, à leitura, à circulação e apropriação dos textos virtuais. Na concepção de Davallon et al. (2003), a escrita é entendida como um meio de expressão, de comunicação, dotado de uma realidade material, visual e linguística que a torna legível, visível e, consequentemente, apreensível. Isto é, leva-se em conta a dimensão material, gráfica e visual da escrita e reconhece-se a importância e as implicações desses elementos no processo de apreensão do texto. As mídias digitais são vistas como uma tecnologia social pois, l’organisation de l’espace qu’ils mettent en scène passe par l’écriture (« l’écrit d’écran ») et le « texte » (« le texte de réseaux ») et suppose des objets porteurs de signes, saisis par des interprètes et non simplement des instruments dotés d’un cadre de fonctionnement et mis en œuvre, d’une façon ou d’une autre, par des utilisateurs (DAVALLON et al., 2003, p.34). Isso significa que a análise dos dispositivos técnicos, tais que as mídias digitais, pressupõe considerar as dimensões logico-computacional (técnica) e escritural (semiológica), que 233 se configuram nas práticas de “uso” e de interação com os dispositivos. Reforça-se aqui o termo “uso”, comum na linguagem informacional, arquivística e sobretudo computacional, e salienta-se a distinção estabelecida por Jeanneret (2008) entre prática e uso, a qual considera-se pertinente e necessária para um estudo concebido em ciências da informação e da comunicação, l’usage est un élément de la pratique culturelle, celui qui concerne les situations où les sujets sociaux sont confrontés à des dispositifs conçus par d’autres qu’eux. Il n’y aurait donc pas, pour moi, des usages de l’information, mais plutôt des pratiques informationnelles (JEANNERET, 2008, p.44). Ou seja, é preciso observar os dispositivos técnicos inseridos no contexto das práticas informacionais, submetidas a um processo comunicacional que os torna apreensíveis aos usuários, graças a uma interface que possibilita a mediação entre texto e leitor. Para Davallon et al. (2003), essa mediação pode indicar uma certa “manipulação” ou “pré-formação” dos modos de uso do dispositivo – e, consequentemente, de apreensão do texto – relacionados aos formatos, natureza dos dispositivos, quadros de edição e de enunciação editorial, entre outros. Dessa forma, devem ser considerados três espaços de análise: “l’objet technique institué comme média d’une part, le formatage du processus de communication par le média d’autre part et, enfin, la façon dont les usagers s’approprient le dispositif” (DAVALLON et al., 2003, p.35). Observa-se o texto digital/virtual, ao mesmo tempo, como um objeto técnico e textual, isto é, reconhecendo sua materialidade e a sua complexa composição poli-semiótica – imagens, ícones, palavras, etc. (JEANNERET et al., 2003, p.96). Assim, a escrita virtual configura uma modalidade de texto específica, um objeto composto, no qual o suporte, as modalidades de escrita e enquadramento, e diferentes signos se conjugam na formação do “texto virtual”. 234 A escrita na web segue procedimentos e padrões muito semelhantes àqueles do livro. Ele é um objeto material, comunicacional, condicionado e influenciado por seu suporte, mas também pelas regras de organização que regem a sua escrita. Os textos são intencionalmente construídos, logo, as escolhas efetuadas em sua escrita respondem aos interesses e condições de leitura, acesso e apreensão pré-estabelecidos. A escrita na web e a formação da memória digital Para Dodebei (2011), o desenvolvimento da escrita constitui um marco na criação e, consequentemente, transmissão, da memória coletiva nas sociedades. Se antes a formação da memória limitava-se ao pensamento humano, expresso pela narração, pela oralidade, com a escrita as possibilidades de comunicação são ampliadas; mais recentemente com o digital, as barreiras do tempo e do espaço são ultrapassadas, e o registro informacional e memorial é alterado, mediante o suporte virtual e a capacidade ilimitada oferecidos pela web. Em relação aos modos como a memória é patrimonializada e tomando-se as tecnologias da comunicação como enfoque e escopo da discussão, pode-se indicar que os povos ágrafos constroem suas memórias coletivas de uma forma virtual, pela herança de seus antepassados, da mesma forma como toda a humanidade procedia antes que fosse desenvolvida a tecnologia da escrita (DODEBEI, 2011, p.38). Com o advento das tecnologias de informações digitais, os acervos e patrimônios históricos, materiais ou imateriais, passam a compor a memória digital, disponível e acessível através de suportes eletrônicos como a web. O fenômeno da digitalização de documentos, virtualização de informações e salvaguarda de acervos documentais, fotográficos, visuais e auditivos em um espaço virtual (ciberespaço), sublinha a questão da conservação do patrimônio, mas também coloca em evidência a sua disseminação e recuperação em uma esfera digital e globalizada, onde emerge o conceito de patrimônio digital. 235 O modelo de observação do patrimônio virtual, com base na memória, mostra que ele é passível de modificações e reinterpretações pela sociedade, ao passo que o seu acesso passa a ser facilitado pelas mídias digitais. A preservação do patrimônio e, consequentemente, da memória virtual, repousa na disseminação de informações. Assim, a memória é construída por meio do compartilhamento de informações em meio digital, em um processo de construção compartilhado de significados ou de ressignificação, com base no repertório individual e na interação coletiva. O patrimônio, ao ser digitalizado, não perde a sua materialidade. O suporte é alterado e seu horizonte de abrangência ampliado no contexto da world wide web, o que permite sua salvaguarda e recuperação, mas não garante a conservação dos formatos originais, nem os exime de alterações. Isso porque no espaço virtual as informações tendem a ser selecionadas pelos leitores e reinterpretadas de acordo com as percepções pessoais, mas também são influenciadas pelos julgamentos e críticas que circulam na esfera cibernética. Registro, memorização e digital memory Observa-se, assim, a emergências de novas formas de memória, ou de memorização, possibilitadas pelo advento do world wide web e pela expansão das mídias digitas, tais como as memórias documentárias eletrônicas, em respostas à necessidade de preservação dos patrimônios – culturais, artísticos, literários, históricos etc. –, a memória informática (ERTZSCHEID et al., 2013) ou memória digital (DODEBEI, 2006). Outrossim, fala-se na formação de uma memória informática pela coleta e arquivamento de traços, dados, informações disponibilizadas e trocadas no espaço web. Em ciências humanas e sociais, os estudos dos traços dos internautas podem apresentar-se como uma alternativa à compreensão de suas práticas perante as mídias digitais, pois sua análise permite, entre outras coisas, “comprendre comment les usagers pratiquent avec tel ou tel dispositif ou tel logiciel, selon un cadre préconçu” (ERTZSCHEID et al., 2013, p.57). 236 Apoia-se, para tanto, na análise dos traços explícitos e implícitos deixados pelos usuários na web: os primeiros dizem respeito às escritas e outras produções diversas, textos, imagens, dados, que são intencionalmente publicados na web com o intuito de serem difundidos – porém passíveis de exclusão). Já os traços implícitos remetem aos “passos”, rastros, vestígios deixados pelo internauta e que revelam suas ações, escolhas, o percurso do seu acesso na web. O traço, neste último caso, designa “une marque laissée par l’utilisateur d’une application informatique, témoignant d’un contact passé avec cette application qui en programme l’inscription” (ERTZSCHEID et al., 2013, p.55). Os documentos, por sua vez, podem ser analisados como fontes, objetos de memória, portadores de traços, de indícios presentes de algo já ausente (ERTZSCHEID et al., 2013). Para os autores, o estudo dos “traçados virtuais” – percurso dos usuários na web – não podem ser generalizados, ou observados como representativos de uma prática real, pois mesmo no ato de registro do caminho percorrido pelo usuário podem ser notadas interferências do motor de busca, de acordo com os interesses e intenções deste último, relativos à salvaguarda de informações. Da mesma forma, os registros informáticos não revelam o contexto no qual a ação do internauta se configura, e menos as influências da aplicação de busca na própria prática social – sites sugeridos, tópicos relacionados no momento da busca, limitações etc. Faz-se necessário, nesse sentido, ressaltar o caráter estruturante da escrita que condiciona “le déploiement de la mémoire” (JEANNERET, 2010, p.33). A escrita possibilita o registro da memória, mas altera sua forma de circulação, de transmissão – do oral ao signico, textual –, pois “dans leur effort pour pérenniser les êtres culturels, les médias informatisés rencontrent la mémoire sociale des formes médiatiques: ils configurent le futur au passé composé” (JEANNERET, 2010, p.36). De acordo com Ertzscheid et al. (2013), observa-se a evolução de uma “web de stock”, de arquivamento e estocagem fixa de dados, para uma “web de fluxo”, em que a lógica da troca, do intercâmbio de informações, se desvincula do suporte material. Na esteira dessas mudanças, o Open Access 237 é visto como um movimento em favor da memorização pública, da salvaguarda e constituição de um patrimônio textual científico mundial. Como consequência, emergem diversos questionamentos sobre o registro de informações na web (especialmente dados pessoais), para fins publicitários e de controle, supondo a formação de um “mercado da memória”. O registro de nossas memórias íntimas, percursos na web, escolhas pessoais, são arquivadas e vendidas às diferentes empresas interessadas em promover produtos e serviços, e dispostas a pagar para receber informações sobre as práticas e preferências dos internautas. Se pose alors la question triviale du devenir d’une société potentiellement hypermnésique, ou plus précisément, la question de la viabilité du devenir d’une société dans laquelle tout est à tout moment « retrouvable » , « réaccessible », « réactivable » (ERTZSCHEID et al., 2013 p.66). O historiador Roy Rosenzweig pontua também algumas dificuldades relacionadas ao autorialismo, à conservação e registro permanente, muitas vezes impossibilitados pela internet. Ao mesmo tempo, ele interroga o processo de (re)escrita da história e a livre difusão pelos web sites, tais como wikipedia, e suas implicações na prática específica dos historiadores. Por outro lado, Dodebei (2011, p.40-41) reflete acerca das promessas de preservação da informação e da memória na web: Que garantias de leitura e reprodutibilidade os arquivos digitais propõem à sociedade? [...] prematuro pensar que podemos igualar a memória eletrônica à memória humana, embora a princípio ambas operem com critérios de seleção, seja do dado que constitui os bancos ou bases eletrônicas, seja das lembranças que formam nossa memória. Observa-se, assim, uma metamorfose comunicacional e mnemônica alavancada pelo advento da web e das práticas, 238 processos e dispositivos que dela decorrem. Não cabe dúvida com relação às contribuições e potencialidades relativas às tecnologias de informação e comunicação atualmente disponíveis, mas um espaço precisa ser dedicado também à reflexão crítica acerca da “economia da internet”, os contornos e limites do webstockage, bem como as implicações dos novos formatos e práticas digitais nos processos de escrita e de memorização. Apontamentos e perspectivas Nesse sentido, questiona-se a respeito das potencialidades e limitações dos conteúdos e informações disponibilizados na web como, por exemplo, os acervos organizacionais, histórias empresariais, museus virtuais, que buscam conservar e difundir a memória de uma instituição para além de suas fronteiras organizacionais (SANTOS, 2017). Existe uma responsabilidade histórica a respeito do que é dito e publicado na web, ou apenas se trata de uma “versão dos fatos” de óticas mais bem particulares? Que importância assume a comunicação diante da virtualização das práticas sociais (políticas, de consumo, de socialização, etc.)? Estão as organizações conscientes de seus papéis na construção de uma memória digital e, consequentemente, na reatualização da memória social? No contexto atual, em que a virtualização dos fatos, eventos e relacionamentos torna-se uma realidade, é imperativo analisar como os processos de reconfiguração da memória são afetados pelas mídias e ferramentais digitais, de maneira a (re)compor a memória digital (DODEBEI, 2006). Referências BARBOSA, Marialva C.; RIBEIRO, Ana Paula Goulart (Org.). Comunicação e História: partilhas teóricas. Florianópolis: Insular, v. 1, 2011, 278 p. BARBOSA, Marialva C. Comunicação e história: presente e passado em atos narrativos. Comunicação, Mídia e Consumo, São Paulo (Impresso), v.6, p.11-27, 2009. 239 BONACCORSI, Julia. Approches sémiologiques du web. In: BARATS, Christine (Dir.). Manuel d’analyse du web en sciences humaines et sociales. Paris: Armand Colin, 2013, p.125-141. DAVALLON, Jean; NOËL-CADET, Nathalie; BROCHU, Daniel. L’usage dans le texte: les « traces d’usage » du site Gallica. In: SOUCHIER, Emmanuël ; JEANNERET, Yves ; LE MAREC, Joëlle (Dir). Lire, écrire, récrire. Objets, signes et pratiques des médias informatisés. Paris: BPI - Bibliothèque publique d’information, 2003, p.45-90. DODEBEI, Vera. Contribuições das teorias da memória para o estudo do patrimônio na web. In: Anais do VII ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISA EM CIÊNCIA DA INFORMAÇÃO, 2006. Disponível em: <http://200.20.0.78/repositorios/handle/123456789/494>. Acesso em: 28 set.2018. DODEBEI, Vera. Memória e patrimônio: perspectivas de acumulação/ dissolução no ciberespaço. Aurora, v.10, 2011, p.6-50. DODEBEI, Vera. Patrimônio e memória digital. Morpheus, Ano 4, n. 8, 2006. ERTZSCHEID, Olivier et al. A la recherche de la « mémoire » du web: sédiments, traces et temporalités des documents en ligne. In: BARATS, Christine (Dir.). Manuel d’analyse du web en sciences humaines et sociales. Paris: Armand Colin, 2013, p.53-68. JEANNERET, Yves. Critique de la trivialité. Les mediations de la communication, enjeu de pouvoir. Éditions non standard, Le Havre, 2014. JEANNERET, Yves. Écriture et médias informatisés. In: CHRISTIN, Anne-Marie (Dir.). Histoire de l’écriture. De l’idéogramme au multimedia. Paris: Flammarion, 2012, p.395-402. JEANNERET, Yves. Des harmoniques du web: espaces d’inscription et mémoire des pratiques. MEI, v.32, 2010, p.31-39. JEANNERET, Yves. La relation entre médiation et usage dans les recherches en information-communication. COLÓQUIO MEDIAÇÕES E USOS DE SABERES E INFORMAÇÃO: Um diálogo França-Brasil, 1, 2008, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: Fiocruz, 2008, p.37-57. 240 JEANNERET, Yves et al. Formes observables, représentations et appropriation du texte de réseau. In: SOUCHIER, Emmanuël; JEANNERET, Yves; LE MAREC, Joëlle (Dir.). Lire, écrire, récrire. Objets, signes et pratiques des médias informatisés. Paris: BPI - Bibliothèque publique d’information, 2003, p.93-158. ROSENZWEIG, Roy. Scarcity or abundance? Preserving the past in a digital era. The American Historical Review, v.108, n.3, 2003, p.735762. SANTOS, Larissa C. A virtualização do passado: estratégias de comunicação organizacional In: PAVAN, Maria Angela; LISBÔA FILHO, Flavi Ferreira; MORAES, Ana Luiza Coiro (Org.). Histórias e memórias da comunicação institucional e publicitária. Campina Grande: EDUEPB, 2017, v.1, p.291-311. SANTOS, Larissa C. Entre memória, história e narrativa: interfaces mediadas pela comunicação. Sessões do Imaginário (Impresso), v.21, n.35, p.98-104, 2016. doi: http://dx.doi.org/10.15448/1980-3710.2016.1.21217 241 SOBRE AS/OS AUTORAS/AUTORES Cesar Beras Doutor em Sociologia e pós-doutor em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Organizador dos livros Sociologia do rock (2015), Tececendo a construção do conhecimento (2015) e A violência intrafamiliar na Fronteira Oeste em uma sociedade capitalista (2018). Autor dos livros Orçamento Participativo de Porto Alegre: possibilidades para a democracia Deliberativa no Brasil (2009), Democracia, Cidadania e Sociedade civil (2010, relançado em 2013), e Palmarinca: livros, capitalismo, sentimentos e resistência (2018). Pesquisador do IHGRGS. Membro do Grupo de Pesquisa t3xto. E-mail: beras@portoweb.com.br Cristiano Bedin da Costa Professor no Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) – Área de Didática, Currículo e Formação de Professores. Doutor em Educação pela UFRGS. Psicólogo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Atuou na Universidade do Vale do Taquari – Univates (2012-2016), desempenhando diversas atividades nos níveis de ensino, pesquisa e extensão. É membro dos Grupos de Pesquisa CEM - Currículo, Espaço, Movimento (Univates), DIF - Artistagens, Fabulações, Variações (UFRGS) e Escrileituras da Diferença em Filosofia-Educação (UFRGS). Organizador do ciclo de debates Arredores da imagem (UFRGS). Integrante da Zona de Investigações Poéticas - ZIP (UFRGS-UERGS). Interessa-se pelas relações entre Arte, Literatura e Filosofia, tomadas como intercessores do pensamento em Educação. Com Barthes, Deleuze e Foucault, pesquisa estratégias de criação em meio às formações curriculares contemporâneas. E-mail: cristianobc@ufrgs.br Fabrício Silveira Jornalista. Mestre e Doutor em Comunicação. Pósdoutor pela School of Arts and Media, University of Salford, Salford, UK. Atualmente, realiza estágio pós-doutoral junto ao Programa de Pós Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: fabriciosilveira@terra.com.br Fernando Silva Santor Mestre em Comunicação Midiática pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação (POSCOM) da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) (2010) e graduado em Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda pela Universidade de Cruz Alta (UNICRUZ) (2001). Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), no Curso de Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda. Membro do Grupo de Pesquisa t3xto e coordenador da Linha de pesquisa Sentidos e o Infinito; membro coordenador do Observatório Missioneiro de Atividades Criativas e Culturais - OmiCult; e membro colaborador da Unidade de Investigação & Desenvolvimento do Instituto de Estudos Filosóficos da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, UC. E-mail: fernandossantor@gmail.com 244 Gabriel Sausen Feil (Org.) Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS); mestre em Educação nas Ciências pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (UNIJUÍ); graduado em Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda pela mesma Universidade. Professor Associado da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Na graduação, atua no Curso de Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda; na pós-graduação, atua no Mestrado em Comunicação e Indústria Criativa (PPGCIC). Líder do Grupo de Pesquisa t3xto. Interessa-se por experimentações filosóficas em comunicação, educação e literatura e por atividades criativas-máquina de guerra. E-mail: gabriel.sausen.feil@gmail.com Jorge Ramos do Ó Professor Associado no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa e professor convidado na Universidade de São Paulo (USP), onde tem lecionado sobretudo nas áreas da história da educação, história cultural e teoria do discurso. As suas publicações incluem estudos em história cultural e política, com ênfase particular no período do Estado Novo (1933-1974), bem como em história da educação e da pedagogia em Portugal, analisadas numa longa cronologia (séculos XIX e XX). Para além de diversos artigos, comunicações e trabalhos em coautoria, tanto em revistas científicas como em monografias, publicou os seguintes livros: O lugar de Salazar: Estudo e Antologia (1990), Os anos de Ferro: O Dispositivo Cultural durante a política do Espírito(1933-1949) (1999), O Governo de si mesmo: Modernidade Pedagógica e Encenações Disciplinares do aluno Liceal (último quartel do século XIX - meados do século XX) (2003), Modernidade Pedagógica: Estudos Comparados Portugal-Brasil (1820-1960) (2008) e Ensino Liceal (1836-1975) (2009). Coordenou projetos de investigação financiados por instituições como a Casa Pia de Lisboa, o Ministério da Educação e a Fundação para a Ciência e a Tecnologia. É o editor da Sisyphus - Journal of Education. E-mail: jorge.o@ie.ulisboa.pt 245 Larissa Conceição dos Santos Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Integrante do Laboratoire Gripic (CELSA/ UNIVERSITÉ PARIS-SORBONNE) e do Grupo de Pesquisa t3xto (UNIPAMPA), Linha “Fluxos textos transmidiáticos”. Doutora em Sciences de l’Information et de la Communication pela École des Hautes Études en Sciences de l’Information et de la Communication, da Université Paris-Sorbonne (CELSA/PARIS-SORBONNE) e Doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: larissasantos@unipampa.edu.br Luiz Daniel Rodrigues Dinarte Tradutor/intérprete de LIBRAS da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como tradutor intérprete de LIBRAS em cursos de formação de Tradutores e Intérpretes de Libras. Doutor em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da UFRGS, na Linha de Pesquisa Filosofias da Diferença e Educação. Mestre em Educação pelo mesmo programa. E-mail: dionisio.z@gmail.com Magda Rosí Ruschel Graduada em Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda (1985), graduada em Psicologia Social (2003), mestre em Ciências da Comunicação (2008) e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Professora na mesma universidade. Tem experiência na área de Comunicação Sonora, atuando principalmente nos seguintes temas: produção audiovisual com ênfase no desenho do som, interfaces sonoras, comunicação e psicologia e comportamento do consumidor. E-mail: magdar@unisinos.br 246 Marco Bonito Professor Adjunto da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Integrante dos Grupos de Pesquisa Processocom (UNISINOS) e t3xto (UNIPAMPA), Linha “Fluxos textos transmidiáticos”. Doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). E-mail: marcobonito@gmail.com Marcos da Rocha Oliveira (Org.) Licenciado em Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) (2007/2). Mestre (2010/1) e doutor (2014/1) em Educação pela mesma universidade, como bolsista CAPES. Realizou Estágio de Doutoramento no Exterior (CAPES 9476-12-1), no Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Concluiu pesquisa de Pós-Doutorado no Departamento de Ensino e Currículo da Faculdade de Educação da UFRGS (2018). É pesquisador nos grupos de pesquisa DIF - Artistagens, Fabulações, Variações (UFRGS), t3xto (UNIPAMPA) e ZIP - Zona de Investigação Poética (UERGS/UFRGS). E-mail: marqosoliveira@gmail.com Paola Zordan Artista visual, professora do Departamento de Artes Visuais e do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Líder do grupo de pesquisa ARCOE, Arte, Corpo e EnSigno, articula o M.A.L.H.A., Movimento Apaixonando pela Liberação de Humores Artísticos, criando intervenções e performances em espaços públicos e institucionais. Trabalha com escultura social, poéticas e micropolíticas. Doutora e Mestre em Educação pela UFRGS, membro da Linha de Pesquisa Filosofia da Diferença e Educação, desenvolve temas entre historiografia da arte, formação de professores e esquizoanálise. Licenciada em Educação Artística, bacharel em Desenho, foi professora de artes em escolas básicas da rede de ensino em Porto Alegre. E-mail: paola.zordan@gmail.com 247 Rafael Grohmann Doutor e mestre em Ciências da Comunicação da Universidade de São Paulo (USP). Realiza pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Comunicação (PPGCOM) da Universidade Federal do Rio e Janeiro (UFRJ), sob a supervisão do professor Muniz Sodré. Foi professor e coordenador do Mestrado Profissional em Jornalismo do FIAM-FAAM (20152018) e professor do Mestrado em Comunicação da Faculdade Cásper Líbero (2018). Foi professor contratado temporário III da Escola de Comunicações e Artes da USP (2017-2018). Editor associado da revista E-Compós. Vice-Coordenador do GT Recepção, Circulação e Usos Sociais das Mídias, da Compós, e do GP de Teorias da Comunicação, da Intercom. Integrante do Centro de Pesquisa em Comunicação e Trabalho (ECA/USP). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). E-mail: rafael-ng@uo.com.br Sandra Mara Corazza Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Faculdade de Educação, Departamento de Ensino e Currículo, Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEDU). Pesquisadora de Produtividade 1 C do CNPq (2002-). Líder dos Grupos de Pesquisa DIF - Artistagens, Fabulações, Variações e Escrileituras da diferença em filosofia-educação. Experimentadora de Filosofia-Educação; Escrileituras da Diferença; Currículo e Didática da Tradução. De modo empírico-transcendental, pesquisa a especificidade e o impulso vital do ato de educar, dispondo-o como a tradução de matérias originais (teorias, práticas, métodos), criadas pela arte, pela ciência e pela filosofia. Em territórios transdisciplinares, translinguísticos, transemióticos, transculturais e transpensamentais, demonstra que os professores-pesquisadores exercem um trabalho intelectual afirmativo e uma função inventiva autoral sobre essas matérias, as quais, ao serem traduzidas, didática e curricularmente, interpretam, criticam, reconstroem e, assim, transcriam a realidade e a liberdade, o pensamento e a subjetividade. E-mail: sandracorazza@terra.com.br 248 Sara Feitosa (Org.) Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Indústria Criativa (PPGCIC) –Mestrado Profissional e dos cursos de Jornalismo e Comunicação Social – habilitação Publicidade e Propaganda da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA). Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), com estágio sanduíche no Centre D’Étude sur les Images et les Son Médiatiques, da Université Sorbonne Nouvelle – Paris 3. Integrante da rede de pesquisadores do Observatório Ibero Americano de Ficção Televisiva (OBITEL/Brasil) e do Grupo de Pesquisa t3xto (UNIPAMPA), Linha “Fluxos textos transmidiáticos”. E-mail: sarafeitosa@unipampa.edu.br Suzana Kilpp Graduada em Sociologia, mestre em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e doutora em Ciências da Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). É professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação, do curso de Comunicação Digital e do eixo Comunicação Social do curso de Jornalismo da UNISINOS, e pesquisadora do CNPq. Tem experiência nas áreas da História e da Comunicação, com ênfase em Comunicação, principalmente nos seguintes temas: tecnocultura audiovisual, audiovisualidades, televisão, história da arte e das mídias, técnicas e estéticas audiovisuais. Coordena o grupo de pesquisa Audiovisualidades da Tecnocultura: Comunicação, Memória e Design. Email: SUKILPP@unisinos.br 249 POSFÁCIO El texto interactivo y su relación con educación en la cultura digital Yeldy Milena Rodríguez García La definición de texto, entendido como conjunto de palabras que transmiten un mensaje, hoy tiene un significado renovado, dadas las posibilidades digitales que ofrecen la interacción y el uso de nuevos lenguajes semióticos, como por ejemplo en el hipertexto o textos que se construyen de forma colaborativa, que resignifican el uso del texto, lo complementan y resaltan su rol en el contexto educativo. El filósofo y sociólogo estadounidense Theodor Nelson, introdujo el concepto de hipertexto, en la década de 1960, para designar la nueva lectura no lineal e interactiva que surgió con la aparición del internet. El hipertexto, refiere un sistema que permite enlazar fragmentos de textos entre sí, lo que permite a la persona acceder a la información a través de temas relacionados en vez de hacerlo de forma secuencial. Para llevar a cabo el proceso de hipertexto(,,,), la World Wide Web (www) utilizó el protocolo HTTP, acrónimo de Hyper Text Transfer Protocol que en español significa Protocolo de Transferencia de Hipertexto, que consiste en un protocolo de comunicación entre sistemas de información que permite la transferencia de dados entre redes de computadores para enlazar páginas HTML o páginas web y archivos multimedia1. Se suele usar de forma discriminada las denominaciones de hipertexto e hipermedia, pero existen diferencias. El primero contempla únicamente textos escritos, mientras que el segundo presenta audios, imágenes, vídeos, imágenes gráficas, infografías, por ejemplo: redes sociales, blogs, productos informáticos como flash power point. La diferencia entre la lectura en hipertexto, con respecto a los libros impresos es 1 “Hipertexto”. En: Significados.com. Disponible en: https://www.significados. com/hipertexto/ Consultado: 20 de junio de 2019, 04:53 am amplia, ya que en los libros impresos la lectura se realiza en forma secuencial de principio hasta el final, y en el caso de los hipertextos, los lectores pueden realizarla en forma no lineal, es decir, pueden visualizar la información sin una secuencia sino siguiendo sus propios intereses (Villardino, 2009). La aparición del hipertexto, como concepto, no ocurre únicamente en los medios digitales, sino puede ir más allá, ya que el mismo se empleó en el desarrollo de algunas obras, por ejemplo: Rayuela de Julio Cortázar, en la que el autor ofrece una lectura no secuencial, con fragmentos de otras personas, enlaces de otras historias. Las relaciones entre comunicación, uso de diversos formatos textuales, la cultura digital, la educación y desarrollo tecnológico; han dado lugar a importantes cambios en la transmisión de la información y la construcción de conocimiento, estos cambios establecen un escenario enriquecido para potenciar procesos educativos en la actualidad (Watzlawick,1991). Existe una relación directa entre comunicación y educación, no existe educación sin comunicación y viceversa. Es en esta simbiosis, como surge la educomunicación, que nos ofrece una filosofía y una práctica de la educación y de la comunicación basada en la participación, el diálogo y la autogestión que no requiere solo de tecnologías sino de un cambio de actitudes y de concepciones pedagógicas y comunicativas (Rodriguez,2017). La relación entre educación y comunicación se flexibiliza a los conceptos cambiantes en comunicación, uso de nuevos formatos textuales, y en general la cultura digital. De acuerdo con Barbas (2012) citando a Kaplún (1998), a cada forma de concebir la educación y la sociedad le corresponde una práctica de comunicación, unas prácticas textuales y existen prácticas comunicativas que no se corresponderían con algunas concepciones de educación que requieren ser revisadas por los colectivos educativos y posibilitar la adaptación de los formatos textuales digitales como el hipertexto, o hipermedia en la educación y hacer un análisis profundo sobre el impacto que dicho tipo de textos digitales tienen en la construcción de conocimiento para las nuevas generaciones que se educan a lo largo de la vida, gracias a la red de cerebros que es el internet. 252 Las tecnologías digitales hoy soportan la interconexión e interactividad entre los dispositivos electrónicos de comunicación, además soportan la velocidad con la que se procesa la información digital y nos ofrecen una sociedad conectada que nos permite conocernos, relacionarnos y crear en escenarios donde el espacio y el tiempo transforman sus parámetros (Cabero, 2007). Las profundas y fluctuantes relaciones entre educomunicación, cultura digital y desarrollo tecnológico en que vivimos hoy propician un espíritu crítico en las personas e instituciones educativas, que posibilita investigaciones referentes al impacto que pueden tener estas transformaciones en todos los sectores de la actividad humana y en particular en los procesos de enseñanza aprendizaje mediados por la tecnología. Sería utópico pensar en un único modelo de comunicación, que sea útil en los procesos educativos que enfrentamos hoy; en realidad el reto para la educación en la cultura digital, está en ser flexible y resiliente a los cambios vertiginosos en las formas de comunicarnos, mediar, evaluar y tener en cuenta los medios comunicativos que le sean útiles a sus estudiantes según la caracterización que se tenga de ellos institucionalmente; es decir esta era nos demanda conocer mucho mas intimarte a las personas que educamos, su forma de aprender, los estilos y canales cognitivos, hábitos de estudio, habilidades de pensamiento, preferencias comunicativas, conectividad con la que cuentan, tipos de recursos educativos que les son más significativos, entre otros temas; que permitan elegir asertivamente desde la planeación curricular los medios y las mediaciones para la enseñanza y el aprendizaje (Rodriguez,2017). La actual cultura de medios digitales demanda involucrar la formación de redes de aprendizaje, de colaboración y comunidades de práctica significativas. Estas mediaciones causan cambios conductuales y cognitivos cerebrales que fortalecen la construcción de conocimientos necesarios en la era digital, como: aprender a conocer, sentir, hacer, convivir y ser (López, A 2009). ¿Cómo innovar en la comunicación y uso de otros formatos textuales para la educación en la cultura digital? El reto de la innovación en educación en un mundo de cambios vertiginosos, una cultura digital liquida; es planteado por el soció- 253 logo y filosofo Zygmund Bauman, “en sus obras sobre la filosofía de vida, donde plantea que los valores y lo que se considera ético y moral ha cambiado radicalmente en los últimos años, a causa de los cambios políticos y sociales ocurridos a partir de la segunda mitad del siglo XX. En el libro “Modernidad líquida”, Bauman explica los fenómenos sociales de la era moderna y qué es lo que nos diferencia de las generaciones anteriores. Otras obras que surgen después del año 2000, año de publicación de Modernidad líquida, resumen sus conceptos sobre la realidad que nos rodea: Amor líquido (2003), Vida líquida (2005) y Tiempos líquidos: vivir una época de incertidumbre (2007)”. Estas realidades culturales no pueden ser desconocidas cuando se plantean los currículos para formar personas que se desarrollaran en épocas de incertidumbre, así que si se requiere innovación es para pensar estos currículos acordes a las realidades sociales cambiantes. La realidad líquida de Bauman, consiste en una ruptura con las instituciones y las estructuras fijadas. En el pasado, la vida estaba diseñada específicamente para cada persona, quien tenía que seguir los patrones establecidos para tomar decisiones en su vida. En la modernidad, el filósofo polaco afirma que las personas ya han conseguido desprenderse de los patrones y las estructuras, y que cada uno crea su propio molde para determinar sus decisiones y forma de vida. En la vida líquida según Bauman, la sociedad se basa en el individualismo y se ha convertido en algo temporal e inestable que carece de aspectos sólidos. Todo lo que tenemos es cambiante y con fecha de caducidad, en comparación con las estructuras fijas del pasado (Bauman, 2000). Varios temas explicados por Bauman, se han convertido en la realidad del funcionamiento social en la actualidad, por ejemplo, la relación de las nuevas generaciones con conceptos como el amor, la educación y el trabajo: “Aún debemos aprender el arte de vivir en un mundo sobresaturado de información. Y también debemos aprender el aún más difícil arte de preparar a las próximas generaciones para vivir en semejante mundo”. 254 La crisis económica vivida en 2008, en las instituciones financieras y las economías del mundo, cambió la forma de pensar de muchos jóvenes estudiantes. Antes de la crisis, la sociedad daba por hecho que, si las personas estudiaban, tendrían buenas oportunidades laborales, pero luego de esta crisis económica las cosas cambiaron. Los jóvenes que han conseguido trabajo, tienen que reinventarse, hacerse a perfiles únicos, aprender otros idiomas, flexibilizarse y adaptarse a trabajar en diversos contextos, antes no presupuestados, además cada poco tiempo y afrontar nuevos retos laborales, puestos por debajo de su formación ó el desempleo. La pérdida de credibilidad de la educación formal tradicional, que usaba textos clásicos escritos, se da por que se perfila como algo anticuado por no proveer a los jóvenes las herramientas necesarias para encontrar un trabajo de forma rápida; esto acompañado con la actual invención de cursos informales que enseñan oficios concretos de forma rápida y certifican dicho aprendizaje, con lo que las empresas actualmente tienden a preferir contratar personas que sepan un oficio, en concreto y no profesionales que conllevan una nomina más cuantiosa para la empresa. Estas realidades de incertidumbre, de modernidad liquida, crisis económica, de pérdida de credibilidad de las instituciones educativas formales, hace que la innovación en educación para la cibercultura, sea un camino obligatorio si se quiere permanecer vigente. El siglo XIX estuvo dominado por medios homogeneizarte, para el mundo de producción fordista, en un sistema educativo que se instaló como modelo de reproducción de conocimiento a través de la repetición y memorización en disciplinas divididas, en este sistema las personas que se educan tenían un rol pasivo de receptores no actores de su proceso educativo (UNESCO, 1982). Actualmente las cosas han cambiado y las personas que se educan asumen un rol activo frente a la construcción de su conocimiento, es por esto que la evolución del texto en el mundo digital, al hipertexto e hipermedia juega un papel importante en las formas de educarnos en un mundo permeado 255 por la cultura digital, donde la incorporación de la tecnología en todos los ámbitos de la vida cotidiana es indiscutible. La sociedad pasó a incorporar cada vez más en su vida cotidiana estos dos aparatos electrónicos (,,,)La comunicación, principal medio de vehiculación de la Educación, ganaba un aliado muy fuerte: la radio, la televisión y el cine. En la década de 1960, en los Estados Unidos, surgieron varias críticas por la falta de usos de los nuevos medios de comunicación en la Educación. Uno de los libros de esta época que más reivindicó los nuevos medios de comunicación y los nuevos materiales didácticos basados en ellos fue el libro intitulado “La Escuela sin muros” (E. McLuhan y Carpenter, 1974). Las instituciones educativas ante los retos de las variaciones y uso de los formatos textuales se enfrentan a la llamada Pedagogía de la complejidad, que describe como las transformaciones en la comunicación, la forma de leer, de atención de las personas en los contextos digitales nos posibilitan otras formas de comportamiento diferente a la tradicional, para Levy, estamos inaugurando nuevas formas de ser humanos. Levy escribió que “Hoy en día, un movimiento general de virtualización afecta no sólo la información y la comunicación, sino también a los cuerpos, al funcionamiento económico, a los marcos colectivos de sensibilidad, o al ejercicio de la inteligencia” (Piérre Lévy, 1995, p. 7). Los fenómenos hipertextuales e hipermedia de la comunicación actual en red potencian la cultura de la participación y la colaboración, donde surge el concepto de “Emirec”, que explica la recepción activa y la posibilidad de creación de las personas; en esta conceptualización los estudiantes superan la reproducción lineal del conocimiento y se resalta el hacer creativo de las personas que se relacionan con los textos, potencia las posibilidades de activar la comunicación en doble vía, acerca a una lógica horizontal de gestión de la educación. ¿Cómo las instituciones educativas, ponemos en práctica modelos colaborativos y de producción colectiva del conocimiento? Este es el reto frente a las posibilidades textuales y 256 de interacción, pues de nada sirve las tecnologías sin en acompañamiento y trabajo en el empoderamiento de los estudiantes pata que sean los actores principalísimos de su proceso cognitivo, este modelo interactivo textual implica una nueva ecología de la educación y la didáctica que vincule diferentes actores, diversos culturalmente, donde las capacidades de crear, transformar y adaptar y relación transformen y fortalezcan las relaciones sociales y construcción cultural de los participantes, nativos o inmigrantes digitales. Marc Prensky en 2001 observaba que nuestra sociedad está actualmente compuesta por dos tipos de ciudadanos y ciudadanas, (,,,) los que son “nativos digitales” y los que son “inmigrantes digitales”. Para este autor el primer grupo se alejaba cada vez más del segundo grupo. En esa época el autor quería describir que diferentes se convirtieron las nuevas generaciones nacidas después de la invención de los ordenadores personales, de la Internet, de los juegos electrónicos y de los celulares de última generación y cuán inadecuada se había convertido la educación ofrecida por sus profesores, los “Inmigrantes Digitales “ (Prensky, 2001). Los nuevos textos, en la pedagogía digital interactiva modifican la relación de los actores del aprendizaje o de la lectura. Las instituciones de educación deben motivar a los estudiantes a ser protagonistas, diseñar contenidos educativos que adopten las tecnologías interactivas y las nuevas formas textuales digitales, además de crear un ambiente de colaboración y de aprendizaje significativo en los espacios de aprendizaje digital, para que el conocimiento sea realmente original, fruto del descubrimiento de algo nuevo, o de la aplicación de la información, con el fin de crear, recrear o construir algo nuevo. El aprendizaje conectado e interconectado implica nuevos lenguajes, y una narrativa digital diferente para que las personas creen su propio ambiente educativo, hipertextual, convergente, interactivo; de forma que las personas y las instituciones narran su propia interpretación partiendo de sus datos y perspectivas propias. Este tipo de textos interactivos digitales fortalecen la gestión del tiempo, posibilitan aprender a resolver problemas, motivan la recopilación de información e in- 257 terpretación de datos, así como potencian el análisis de textos e imágenes. Las nuevas formas textuales potencian la transformación de la información en conocimiento. “Vemos las cosas, no como son, sino como somos nosotros”. Immanuel Kant (1724-1804). *** Yeldy Milena Rodríguez García bsC. MsC. Magister en redes Sociales y Aprendizaje Digital. PhD Comunicación Educación en Entornos Digitales UNED España. Vicerrectora Académica. Corporación Universitaria Minuto de Dios UNIMINUTO. Investigadora en construcción de conocimiento en entornos digitales. +0573124892719. Bibliografía APARICI R. & GARCÍA M D. 2017 Comunicar y educar en el mundo que viene Editorial: Gedisa. España. Páginas: 196 ISBN: 978-84-16919-65-9 APARICI, R. (2010). Educomunicación: Más allá del 2.0. Madrid: Gedisa. Assmann J. (2002). The Mind of Egypt: History and Meaning in the Time of the Pharaohs. p. 127. AUSUBEL D. NOVAK. J. HANESIAN. H. (1997). Psicología educativa: un punto de vista cognoscitivo. México: Trillas. BAUMAN ZYGMUNT 1999. La globalización: consecuencias humanas Fondo de Cultura Económica, México BLUMER, H. (1982). El Interaccionismo Simbólico: perspectiva y método. Barcelona: Hora, S.A. CABERO, J., CÓRDOBA, M. y BATANERO, J.M. (2007). Las TIC para la igualad. Nuevas tecnologías y atención a la diversidad. Sevilla: Eduforma. DELGADO C. JD. DIOSSA J. L. 2004. Revista Colombiana de Sociología. No. 23 pp. 299-3U4. Recuperado de: http://bdigital.unal.edu. co/16398/1/11285-27319-1-PB.pdf 258 DIJK, J. VAN. (2006). The Network Society: Social Aspects of New Media (2nd ed.).London: Sage Publications. DURKHEIM, É. (2011). Educação e Sociologia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Editora Vozes. LÉVY, P. (1995). ¿Qué es lo virtual? Buenos Aires: Paidós. LÉVY, P. (1999). Cibercultura. São Paulo: Editora 24 Ltda Ley 1341 de 2009, Congreso de Colombia. Disponible en: http://www. crcom.gov.co/?idcategoria=41717 MCLUHAN, C., & POWERS, B. R. (1993). Aldea Global (2a). Barcelona: Editorial Gedisa. KAPLUN M. (1998). Una pedagogía de la comunicación. PRENSKY, M. (2001). Digital Natives, Digital Immigrants Part I. On the Horizon, 9(5), 1–6. https://doi.org/10.1108/10748120110424816 RAFAEL MORÁN, J. (2017). Reseña: Comunicar y educar en el mundo que viene (R. Apararici & D. García Marín). Chasqui. Revista Latinoamericana de Comunicación 400.10.16921/chasqui.v0i136.3517. RODRÍGUEZ GARCÍA, Y. M. (2017). Reconceptualization of education in the digital era: educommunication, learning networks and brain: key factors in the current scenarios of construction of knowledge. Revista de Comunicación de la SEECI, nº 42, 85-118 doi: https://doi.org/10.15198/ seeci.2017.42.85-118 Recuperado de http://www.seeci.net/revista/index. php/seeci/article/view/454 15 Febrero de 2019 RODRÍGUEZ Y. (2017). RECONCEPTUALIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN EN LA ERA DIGITAL Educomunicación, redes de aprendizaje y cerebro: una visión desde la neurociencia cognitiva a los procesos de construcción de conocimiento en entornos digitales. Recuperada de: http://e-spacio.uned.es/fez/eserv/tesisuned:ED-Pg-CyEEDYmrodriguez/RODRIGUEZ_GARCIA_YeldiMilena_Tesis.pdf UNESCO. (1982). Declaración De Grünwald Sobre La Educación Relativa a Los Medios VILLARINO, H. (2009). Karl Jaspers: la comunicación como fundamento de la condición WATZLAWICK, P., BAVELAS, J. B., & JACKSON, D. (1991). Teoría de la Comunicación. Humana. Barcelona: Editorial Herder. 259