AUTARQUIA EDUCACIONAL DO BELO JARDIM
FACULDADE DO BELO JARDIM
CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM ENSINO DE LÍNGUA
PORTUGUESA E SUAS TECNOLOGIAS
BÁRBARA SOARES DA SILVA
A IRONIA COMO RECURSO HUMORÍSTICO NAS TIRINHAS DE
MAFALDA
Belo Jardim-PE
2018
BÁRBARA SOARES DA SILVA
A IRONIA COMO RECURSO HUMORÍSTICO NAS TIRINHAS DE
MAFALDA
Monografia apresentada ao Curso de PósGraduação Lato Sensu em Língua Portuguesa
e suas Tecnologias, como requisito parcial
para a obtenção do título de Especialista em
Língua Portuguesa.
Orientador: Prof. Ms. Cícero José da Silva
Belo Jardim-PE
2018
BÁRBARA SOARES DA SILVA
A IRONIA COMO RECURSO ESTILÍSTICO NAS TIRINHAS DE HUMOR
Aprovada em ____/____/_____.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________________________
Prof. Ms. Cícero José da Silva (orientador)
Mestre-UFPB
__________________________________________________
Prof. Ms. José Sandro dos Santos
Mestre-UFPB
__________________________________________________
Profª. Msª. Aline Simplício da Silva
Mestra-UPE
CONCEITO FINAL: ___________________
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao bom Deus, a quem devo minha existência e que me
sustentou ao longo de todo o curso e me concedeu paciência e sabedoria o suficiente para realizar
esse trabalho.
Aos meus familiares e amigos pelo apoio, carinho e por muitas vezes paciência, em
especial a minha mãe que teve de viver no volume mudo a fim de não atrapalhar meu raciocínio.
Aos professores mais que especiais que me ajudaram a não desistir durante essa jornada,
ouviram minhas reclamações, deram todo o apoio moral e intelectual que podiam e não me
deixaram desanimar (porque são meio palhaços). Ao ilustríssimo orientador, Cícero José, que me
guiou nesse processo de criação justo no momento em que eu pensei que precisaria abandonar o
barco, não poderia ter tido melhor orientação. Ao digníssimo mestre, José Sandro, obrigada por toda
a paciência, ensinamentos, paciência, ajuda, conselhos e mais paciência. Espero poder ser um
pouquinho como ele quando eu crescer e também servir de inspiração aos meus alunos. Tomara que
agora eu deixe de ser abstrata (não tinha como deixar passar essa).
A ironia é a minha arma preferida. Tudo
que
faço
precisa
ter
diversos
significados, adoro a ambiguidade...
-Madonna
RESUMO
Para a maioria das pessoas a ironia não passa de uma camuflagem no discurso para omitir outro e
outros ainda a qualificam como uma figura de linguagem complexa. Contudo, ela tem uma função
muito mais significativa na perspectiva discursiva. No espaço discursivo a ironia comunga do
trágico e do cômico, e a partir dos sinais contextuais da enunciação ela promove uma cumplicidade
entre enunciador e enunciatário fazendo com que este busque compreender o que aquele propôs em
segundo plano no enunciado. Assim, o prazer do leitor pela descoberta causa o efeito de humor. O
objetivo desse trabalho é apresentar a ironia como um estruturador de textos e articulador discursivo
que pode levar ao humor, e que a partir dela, este pode ser compreendido num contexto
interdiscursivo, pois ambos relacionam-se em um tipo de discurso cômico. Nesse sentido, o
presente trabalho traz uma análise de caráter bibliográfico, pautado nos preceitos de
RICHARDSON (1999), de algumas tirinhas da Mafalda, personagem do cartunista argentino
Quino, apontando a relação entre ironia e humor, a partir dos estudos feitos ao longo dos anos sobre
essas duas estratégias discursivas e como elas se correlacionam no jogo discursivo. Nesta
perspectiva, usou-se como base teórica ALAVARCE (2009), BRAIT (1996), ECO (2006),
ESTEVES (2007), MUECKE(1995), POSSENTI (2013), WEEMS (2013), BERGSON (1983),
RASKIN (1985), RAMOS (2017), LINS (2002), MENDONÇA (2003) e QUINO (2010). A partir
dessa pesquisa pode-se observar a complexidade discursiva da ironia e do humor, revelando um
novo significado, muito mais amplo e completo, para ambos.
Palavras-chave: ironia, humor, tirinha, Mafalda, discurso.
ABSTRACT
For most people the ironia is only a camouflage in the speech for omit the other, and anothers
qualify it as a complex language figure. However, it has a much more important function in the
discursive perspective. In the discursive space, the irony communes the tragic and the comic, and
from the contextual signals of the enunciation it promotes a complicity between enunciator and
enunciate, causing it to seek what the enunciator proposed in the background in the enunciation.
Thus, the reader's pleasure for the discovery causes the effect of humor. The aim of this work is to
present irony as a text-structuring and discursive articulator that can lead to humor, and that from it,
it can be understood in an interdiscursive context, because both are related in a type of comic
discourse. In this sense, the present work brings a bibliographical based on the precepts of
RICHARDSON (1999), analysis of some comic strips of Mafalda, character of the Argentine
cartoonist Quino, pointing out the relation between irony and humor based on the studies made over
the years on these two discursive strategies and how they are correlate in the discursive game. From
this perspective, we use as theoretical basis ALAVARCE (2009), BRAIT (1996), ECO (2006),
ESTEVES (2007), MUECKE(1995), POSSENTI (2013), WEEMS (2013), BERGSON (1983),
RASKIN (1985), RAMOS (2017), LINS (2002), MENDONÇA (2003) and QUINO (2010). From
this research one can observe the discursive complexity of irony and humor, revealing a new
meaning, much wider and more complete, for both.
Keywords: irony, humor, comic strip, Mafalda, speech.
LISTA DE FIGURAS
Figura 1...........................................................................................................................42
Figura 2...........................................................................................................................43
Figura 3...........................................................................................................................45
Figura 4...........................................................................................................................46
Figura 5...........................................................................................................................48
Figura 6...........................................................................................................................48
Figura 7...........................................................................................................................51
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO................................................................................................................................10
1. IRONIA E HUMOR: A ARTE DO DISCURSO.......................................................................12
1.1 Introdução à ironia...................................................................................................................12
1.2 O discurso humorístico............................................................................................................19
1.3 Os mecanismos do humor........................................................................................................23
2. GÊNERO TEXTUAL: COMPREENDENDO A TIRA...........................................................27
2.1 A constituição do gênero tira...................................................................................................27
2.2 Mafalda: contexto sócio-político-ideológico...........................................................................35
3. MAFALDA: HUMOR E CRÍTICA............................................................................................41
3.1 A ironia como estratégica de humor e crítica social nas tiras de Mafalda...............................41
3.2 Análise do humor pela ironia na tira........................................................................................42
4. RESULTADOS E DISCUSSÕES...............................................................................................53
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................................................54
6. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA............................................................................................56
10
INTRODUÇÃO
A palavra cria sentidos, é ativa e ativadora, detentora do poder de representar
cognitivamente nossos pensamentos e expor nossas ideias. Mas, em alguns casos, nossas palavras
ganham uma multiplicidade de sentidos a partir dos fatores internos e externos que compõem a
língua. Dizer algo cujo sentido é oposto ao que realmente se quer dizer, embora pareça loucura,
consiste na habilidade e no jeito irônico de lidar com o léxico da língua. De acordo com Bakhtin
(1990) toda palavra comporta duas faces e é constituída pela interação entre enunciador e
enunciatário, logo, para o discurso ser considerado e poder manter-se irônico ele terá que comportar
dois enunciados que se correlacionam e deverá constituir-se pela sincronia do locutor e do
alocutários para produzir sentido ao texto.
O contraste entre a aparência e a realidade é o traço característico desta figura de
linguagem, mas não apenas isso, a ironia não consiste somente no que é dito de forma oposta;
situações, comportamentos e até mesmo uma “revirada de olhos” podem conter um sentido irônico
dependendo do contexto.
Este trabalho tem o intuito de apresentar a ironia não apenas como uma simples figura de
linguagem, mas sim como um recurso utilizado pelo enunciador a fim de moldar o seu discurso com
uma crítica sútil e bem-humorada, argumentando sobre questionamentos a respeito da elaboração,
utilização e funcionalidade do termo irônico no contexto. E não há como falar em ironia sem
considerar o humor, que corresponde ao efeito colateral do dito irônico, afinal esse recurso
linguístico tende a ofertar uma tênue crítica mascarada com um humor delicado em relação ao
cenário observado.
O humor aqui será apresentado como uma construção da linguagem e, ao contrário do que
muitos pensam, não é gatilho para o riso, sendo este apenas um fenômeno fisiológico que pode ou
não acontecer num discurso humorístico. Desse modo, a ironia e o humor são considerados
artifícios comunicativos onde ambos têm, como princípio básico, os jogos de sentido, propiciando o
interlocutor à interação e complementação do sentido do enunciado/situação onde o enunciador diz
implicitamente o que poderia ser dito explicitamente, no qual ironia e humor se combinam e se
completam em um mesmo enunciado. Para tanto, foi adotada uma metodologia de cunho
bibliográfico, a fim de identificar, analisar e explicar a ocorrência do humor a partir de um recurso
discursivo dentro de um gênero textual específico, a tirinha.
11
De acordo com RICHARDSON (1999) a pesquisa qualitativa objetiva o aprofundamento da
compreensão de um fenômeno, no caso a ironia, por meio de profundas pesquisas e análises, que
ocorrerão nas tiras, da consciência articulada dos envolvidos no fenômeno, nesse trabalho, o humor
acarretado pela ironia.
No primeiro capítulo ironia e humor serão abordados separadamente, a fim de melhor
explicar suas construções e efeitos no discurso; em seguida, no segundo capítulo, será apresentado o
gênero tirinha que foi escolhido como corpus para poder exemplificar como a ironia e o humor
podem se manifestar no texto através de elementos verbais e não verbais - multimodais. O terceiro
capítulo trará uma análise sobre o efeito humorístico das tirinhas a partir da ironia em sete tirinhas
escolhidas de Mafalda, personagem do cartunista Quino.
Para tanto foram usadas como fontes principais de pesquisa os estudos feitos por
ALAVARCE (2009), BRAIT (1996), ECO (2006), ESTEVES (2007) e MUECKE (1995) no que
concerne ao efeito e a construção da ironia no discurso considerando o papel do ironista e do
receptor, os estudos de POSSENTI (2013) e WEEMS (2013) sobre o conceito de humor e riso, as
teorias de construção humorística no discurso apresentadas por BERGSON (1983) e RASKIN
(1985) e o olhar de RAMOS (2017), LINS (2002), MENDONÇA (2003) e QUINO (2010) a
respeito das tirinhas como um gênero textual completo e complexo, uma vez que lança mão da
multimodalidade para sua construção e possui uma liberdade crítica pouco oferecida a outros
gêneros textuais.
Preliminarmente, concluiu-se que, no concerne ao conceito de ironia, esta frequentemente é
estudada e analisada de maneira muito simplória e isso acarreta prejuízo para o entendimento
completo da sua complexidade, e no que diz respeito ao humor, bem como com muitos estudiosos,
houve um entendimento equivocado a respeito do seu significado e origem, no qual se acreditava
que ele estava diretamente ligado ao riso, sendo ambos a mesma coisa, o que, no decorrer da
pesquisa, mostrou-se incorreto.
12
1. IRONIA E HUMOR: A ARTE DO DISCURSO
A ironia é a expressão mais perfeita do pensamento.
Florbela Espanca
“O humor é um sentido como o olfato. Assim como quase tudo tem um cheiro, quase tudo tem a sua
graça. Mesmo as maiores desgraças. Pode dizer-se que a graça que elas têm é cruel ou de mau gosto
ou -pior ainda- que não têm piada nenhuma, mas não há desgraça que não tenha a sua graça.”
Miguel Esteves Cardoso
1.1. Introdução à ironia
Um discurso possui diversas formas de manifestação e de interpretação. Há quem aprecie
fazer pequenos trocadilhos em suas sentenças, para agregar um sentido cômico, enigmático ou
reflexivo. No entanto, mais profundo e intenso que um trocadilho é a ironia.
Conhecida como uma figura de linguagem, de estilo ou de retórica; a ironia, bem como as
demais figuras de linguagem, atua no discurso como uma estratégia de interlocução para produzir
um determinado efeito na interpretação do interlocutor, relacionando-se com os aspectos
fonológicos, sintáticos ou semânticos do léxico afetado.
Esse artifício oferece ao ato comunicativo recursos expressivos que ampliam seu campo
significativo, além de, se for o caso, instigar o leitor a suprir as lacunas de uma sentença com novos
significados. E não adianta tentar fugir dessa figura de linguagem, afinal todos já fizemos ou
faremos uso desse recurso para deixar uma mensagem subentendida no enunciado.
Segundo a descrição do Aurélio (2001) a ironia nada mais é do que “1. Modo de exprimir-se
em que se diz o contrário do que se pensa ou sente. 2. Contraste fortuito que parece um escárnio.”
Mas ser irônico, como ressalta MUECKE (1995), não se resume apenas em dizer o contrário do que
se quer dizer, há um apelo linguístico, uma estratégia discursiva, a qual exige a recuperação de
informações através do conhecimento prévio e linguístico do interlocutor.
13
Esse procedimento deve ser realizado tanto por parte de quem produz o ato comunicativo,
quanto por quem é envolvido no contexto discursivo, pois aquele deverá manipular a sua fala
elaborando-a com um gatilho para uma segunda interpretação contrária e negativa, a qual não deve
ser explicada, mas, no momento da interação verbal, no ato enunciativo, os elementos da
comunicação são colocados em pauta em um jogo interlocucionário de preenchimento e de
recuperação de significados possíveis de construção, tendo em vista que a relação da palavra com
aquilo que ela significa é uma relação isomórfica 1.
Dessa forma o interlocutário deverá interpretar a sentença num sentido negativo, ignorando
o enunciado previamente exposto e identificando os sinais que revelam, de forma implícita, a
verdadeira mensagem, a qual não foi citada, embora tenha sido sutilmente insinuada. Notar-se-á,
assim, que o texto não defende a ideia, mas o contrário dela, e uma vez que o sentido irônico esteja
claro na mensagem, o mesmo deixará de sê-lo e passará a ser menos que metáfora. A partir dessa
ideia é possível observar que
(...)ironia, que não é um mero cepticismo linguístico ou retórico, mas é a própria revelação
da contingência no interior da linguagem e da elaboração de multiplicidades, num
referencial de diferenças, que esgarçam a possibilidade de um topos de acesso a uma
unidade, quase sempre enlutada, pois nos é oferecida ora como perdida ou irreferenciável.
(ESTEVES, 2007. p. 17)
Através do olhar de Esteves, a compreensão da ironia não ocorre apenas pela falta de
confiança e credibilidade na mensagem, mas também na epifania pela imprevisibilidade que o texto
comporta, onde o receptor descobre um novo sentido no que foi dito. Essa instabilidade se oriunda
pela multiplicidade de significâncias dentro do mesmo léxico; as quais, por extrapolarem o
significado superficial do texto, partindo para e por um viés contrário, exigem um leque maior de
opções para decodificações, não se limitando a um olhar cético e limitado. Portanto, faz-se
necessário concordar com Muecke no que diz respeito a
Uma mensagem irônica, até que seja interpretada como se pretendia, tem apenas o som de
uma palmada. Em outras palavras, a Ironia Instrumental é um jogo para dois jogadores
(embora isto não seja tudo o que ela é). O ironista, em seu papel de ingênuo, propõe um
texto, mas de tal maneira ou em tal contexto que estimulará o leitor a rejeitar o seu
significado literal expresso, em favor de um significado “transliteral” não-expresso de
significação contrastante. (MUECKE, 1995. p. 58)
1
Isomórfica: aquilo que tem a mesma forma. O mesmo que isomorfo. (Miniaurélio Século XXI Escolar: O
minidicionário da língua portuguesa. São Paulo, 2001)
14
Compreende-se que a ironia, quando não interpretada como tal, compara-se a um recipiente
vazio, torna-se oca, sem sentido, seu processo de decodificação necessita da ativação de recursos
linguístico-cognitivo do interlocutor envolvido no ato discursivo e de um bom discurso do
emissário, como uma dança, sútil e delicada, onde o par deve estar no mesmo ritmo, na mesma
sintonia. Quando o ironista expõe o seu texto, tanto os sinais da fala quanto o seu contexto
estimularão o interlocutor a ampliar a construção do significado, partindo do literal, buscando no
contexto histórico, e na materialidade linguística elementos que o ajudem a descontruir a mensagem
explícita buscando o significado não expresso e de significação oposta que está implícito.
QUINTILIANO (apud Muecke, 1995, p. 32) caracteriza a ironia como a “elaboração de uma
figura de linguagem num raciocínio completo”, mostrando-a como um recurso discursivo absoluto,
a qual não apenas comporta um sentido explícito no enunciado como também abriga
intrinsecamente uma outra acepção. Sob essa perspectiva, ela se caracteriza como uma figura de
sentido conotativo amplo, o qual necessita de um mínimo de inteligibilidade para ser decodificado.
Implica-se dizer que nesse processo de linguagem o emissor ora induz o interlocutor, ora o
faz pensar que está sendo induzido para um entendimento, quando na verdade ele está fazendo o
oposto disso através dos sinais na linguagem, tais como o comportamento, a entonação e/ou os
gestos, o que fará o interlocutor compreender o inverso do que foi dito. Sob esse viés ESTEVES
(2007) afirma que “não é de estranhar então, que sendo a ironia um jogo, é um jogo que leva ao
limite o próprio conceito de jogo, ao introduzir uma regra suspeita, que se reveste dum estilo
próximo do bluff2”.
Dentro da concepção de ironia, a simulação e a contradição sempre estiveram atreladas,
tanto como tropo linguístico quanto como metodologia interrogativa, isso porque há que se simular
uma ideia para omitir outra, contrária, implícita e irreferenciável. O que configura esses dois
elementos como suporte para diversas definições dessa figura de linguagem, tanto no conceito
filosófico quanto pela retórica (ESTEVES, 2007).
Contudo, os conceitos constantemente atribuídos a essa figura, nem sempre foram iguais e
tão pouco valorizavam tudo o que ela representa dentro do discurso. Nesse sentido, os estudos feitos
por BRAIT (1996) vem nos dizer que a ironia só passou a ter uma interpretação mais ampla e
complexa em relação ao contexto discursivo, a partir do período romântico, mostrando-nos que:
2
Utilizada pelo autor na sua etimologia original, a palavra bluff, em português blefe, consiste no ato ou efeito de
enganar, fazendo com que se acredite em algo inexistente, uma trapaça. Assim, o autor qualifica a ironia como um
termo que joga e manipula o discurso. Para ele, o uso da ironia promove a “perda da inocência da linguagem, da
„virgindade‟ de uma linguagem que dissesse só o que diz,” (ESTEVES, 2007. p. 24)
15
Para os românticos, a ironia passa a ser uma forma de pensar muito sutil e específica que,
no seu caráter oblíquo e cindido, reflete as complexas circunvoluções mentais de gente
extremamente crítica, sensível e refinada, individualista e anárquica, afeita ao trato diuturno
do espírito e das letras. (BRAIT, 1996. p. 32)
Dessa forma, durante esse período, a ironia é concebida como uma ferramenta discursiva
entre os literariamente letrados3, a fim de criar uma polidez argumentativa, refinando suas críticas.
Nesse seguimento, Brait (1996) também afirma que a ironia romântica pode ser entendida como
uma forma da arte em se auto representar. Para tal, temos como exemplo Machado de Assis, que
não se subordinou aos ditames da época, criando narradores interventivos, ora em 3ª pessoa, ora em
1ª pessoa, onde criticava irônica e sarcasticamente os costumes da época. Ratificando o pensamento
apresentado por Brait, Volobuef afirma:
O Romantismo, mediante o recurso à ironia romântica, deixa entrever o fazer poético e
institui a primazia do indivíduo (criador) sobre a obra (objeto criado). Aquilo que se
costuma denominar ironia romântica constitui-se como uma determinada escritura poética
que sinaliza, dentro do texto, a presença de seu autor. Em suma, trata-se da ascendência do
autor em relação à obra. (VOLOBUEF, 1999. p.90-1)
Em consonância a isso MUECKE (1995) nos diz que o conceito da ironia se desenvolveu
lentamente, e que, por muito tempo, ela foi tida apenas como uma simples figura de linguagem,
tendo sido ignorados seus significados mais interessantes: o modo de tratar o oponente num debate,
defendido por Cícero; e sua ação como estratégia verbal de um argumento completo, proposto por
Quintiliano.
Dessa forma, ao pensarmos em ironia, nossa mente automaticamente nos transporta a
alguma situação onde alguém fez uma piada de um jeito “inteligente” sobre algo que outrem disse
ou fez, no qual o ouvinte, para encontrar “a graça da coisa”, deverá preencher as lacunas textuais
e/ou discursivas, ou seja, entender as entrelinhas. De acordo com MACHADO (1988), a ironia
surge quando o sujeito no ato interlocutivo deseja construir um ato enunciativo visando um
determinado, mas que por razões diversas não pode ou não deve explicitá-la, utilizando-se então
desse recurso como uma “contra verdade”, podendo, pois, construir um sentido de forma
diplomática, disfarçando o não-dito no dito.
3
Literariamente letrado é o termo utilizado em oposição à literariamente iletrado. Sendo literariamente iletrado um
termo utilizado para iletrado que não corresponde a analfabeto, mas diz respeito a alguém pouco cultivado no mundo
das letras, sem repertório de leituras canônicas, sem sensibilidade desenvolvida no campo literário. Termos retirados no
livro: Um experimento na crítica literária/C. S. Lewis – São Paulo: Editora UNESP, 2009.
16
Este estilo de linguagem tem por característica primordial subverter o símbolo, utilizando-se
de uma forma de linguagem preestabelecida para então, a partir dela e dentro dela, contestá-la. É o
“não dizer, para ser dito”. A partir dessa definição de ironia, é possível perceber que “o fenômeno
não é a essência, e sim o contrário da essência”. (KIERKEGAARD, 2006). Entendendo, pois, o
fenômeno como a palavra, no caso a ação de expor a ideia, e a essência o pensamento, logo, na
ironia, o que se fala não representa o pensamento, mas o oposto dele, e por ser irônica, a fala
consegue resgatar a ideia principal mesmo sem tê-la mencionado, mas apenas sugerindo-a de forma
contrária. Dessa forma, o conceito de ironia passa a ser apresentado como:
A ironia (simulatio, illusio, permutatio ex contrario ducta; em grego ironia = antífrase),
como tropo de palavra (...) é a utilização do vocabulário que o partido contrário emprega
para os fins partidários, com a firme convicção de que o público reconhecerá a
incredibilidade desse vocabulário. Deste modo, a credibilidade do partido que o orador
defende é mais reforçada e de tal modo que, como resultado final, as palavras irônicas são
compreendidas num sentido que é contrário (...) ao seu sentido próprio. (Cf. LAUSBERG,
1972. p. 163-164).
Percebe-se, portanto, que esse recurso linguístico cria uma distância de sentido entre o que
foi dito e o que realmente se queria dizer. De forma que a sentença empregada no discurso não
tenha credibilidade, pois a mesma, por ser irônica, não defende o que diz, mas defende um sentido
contrário ao que impõe ao ouvinte, o qual se espera, compreenda a incredibilidade do que foi dito e
descubra o sentido oposto e oculto da sentença.
Assim, a ironia também pode ser entendida como uma “troca argumentativa inserida no
vasto processo da argumentação”, MACHADO (1988), fazendo-nos compreender que o texto
irônico possui marcas linguísticas e discursivas que tendem a estabelecer intuitiva ou
conscientemente, alguma forma de contradição perceptível, seja ela através da disparidade, da
incongruência ou de qualquer outra forma que possa ser compreendida pelo receptor. Assim, Brait
nos apresentá-la-á como:
Uma maior depuração entre o que se pode entender por literal, por figurado e por antífrase,
na perspectiva constitutiva do discurso irônico, parece revelar que a ironia é produzida,
como estratégia significante, no nível do discurso, devendo ser descrita e analisada da
perspectiva da enunciação e, mais diretamente, do edifício retórico instaurado por uma
enunciação. Isso significa que o discurso irônico joga essencialmente com a ambiguidade,
convidando o receptor a, no mínimo, uma dupla decodificação, isto é, linguística e
discursiva. (BRAIT, 1996. p. 96)
Considerando assim, o sentido literal como o entendimento puro do texto/sentença sem
nenhum pormenor acrescido, o sentido figurado como algo ainda não explicado, que possui um
17
sentido conotativo e que, em um dado momento, intercala-se com o que foi dito, por uma
associação subjetiva, e vendo a antífrase como o gatilho para o discurso irônico, entende-se que a
ironia compõe um discurso estrategista, o qual manipula as palavras e seus significados,
trabalhando com a ambiguidade
4
das mesmas com a plurissignificação do texto a partir do termo
irônico.
A ironia trata-se, portanto, de uma estrutura comunicativa relacionada à sagacidade, a qual
procura por em exercício os conhecimentos linguísticos do leitor em detrimento das emoções, as
quais atuam em segundo plano como um resultado pela descoberta da ironia, a qual também tem o
intuito de despertar uma consciência reflexiva, fazendo com que o leitor reconheça a natureza
intersubjetiva em sua individualidade, sendo mais ativo e perspicaz em sua leitura, percebendo que
a linguagem não tem significados fixos, podendo apresentar-lhe armadilhas para as quais ele deve
estar intelectualmente preparado. ORLANDI (1998) explica que essa ambiguidade de sentidos
ocorre por meio de uma ruptura que causa uma autodestruição do sentido, desencadeando um
processo de significação que coloca em funcionamento um discurso sobre outro.
Tal processo de ambiguidade provocado tanto pela ironia, como por outros elementos
textuais, cria um novo sentido para o ato comunicativo que se mantem no discurso como uma
camuflagem sem possuir um sentido real, uma vez que a verdadeira mensagem está implícita,
consolidando então o deslocamento dos processos de significação. Dessa forma:
(…) o estudo da ironia exige o reconhecimento de um sentido literal e de outro figurado,
uma vez que esse “recurso” se constitui de um significante para dois significados
contraditórios ou incompatíveis. Aquele que pratica a ironia qualifica o enunciatário, pois o
julga capaz de perceber os índices que sinalizam esse procedimento, participando, assim, da
construção da significação irônica (ALAVARCE, 2009. p. 29).
Pode-se perceber, portanto, que a ironia possui dois sentidos, o literal que é o que foi dito e
apenas ele, e o figurado, que corresponde ao que não foi dito, mas insinuado, ambos em uma
mesma sentença. Nesse processo o enunciador acredita que o enunciatário é capaz de descobrir o
que ele está pensando, mas não está dizendo, compreendendo o pensamento que está oculto no
fenômeno (enunciado), resgatando assim, os dois sentidos do enunciado.
Quem se utiliza da ironia acredita que o receptor é apto para compreender os sinais da fala,
participando no processo de construção de significado, logo tanto o enunciador quanto o
4
A ambiguidade aqui corresponde ao signo que possui dois significados sobrepostos: um que é apresentado
explicitamente ao leitor, mas não deve ser aceito e o outro que é sugerido implicitamente e que comporta uma ideia
contrária ao primeiro e que deve ser admitido pelo alocutário.
18
enunciatário devem encontrar um significado para os dois sentidos, um que cabe somente à fala e
outro, que é o sentido verdadeiro, que não está nela, mas que está no pensamento ocultado e ao
mesmo tempo insinuado por ela.
Existem assim marcas obrigatórias que constituem o discurso irônico, elas criam uma
espécie de código que permite a sua detecção. Estes sinais podem ser encontrados no nível lexical e
no plano sintático. O lexical é caracterizado pelo uso de expressões que estão em desuso e o uso de
superlativos.
Em contrapartida, o plano sintático utiliza-se da inversão da ordem das palavras, atribuindolhes um sentido que não é o real, além do uso de perguntas retóricas. Além disso, o domínio
fonético do enunciador também influencia no entendimento da ironia. Mesmo em um texto, como a
tira, por exemplo, é necessário que o leitor aplique uma certa entonação na fala do personagem,
para que seja compreendido o sentido irônico do texto.
Torna-se, portanto, possível perceber a mudança do termo irônico como figura de
linguagem, onde ele é obtido apenas para contradizer algo que se queira ser dito, para uma
estratégia discursiva e argumentativa, onde não somente o enunciador, mas também o ambiente e as
estratégias discursivas, como as marcas da oralidade, interferem na sentença enunciada, causando
um momento reflexivo para então se obter o entendimento do fenômeno. Dessa forma podemos
compreender que:
A essência da ironia consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar a outra
pessoa, mas poupando a esta uma réplica contraditória fazendo-lhe entender - pelo tom de
voz, por algum gesto simultâneo, ou (onde a escrita está envolvida) por algumas pequenas
indicações estilísticas - que se quer dizer o contrário do que se diz. A ironia só pode ser
empregada quando a outra pessoa está preparada para escutar o oposto, de modo que não
possa deixar de sentir uma inclinação a contradizer. (FREUD, 1969. p. 199)
Desse modo, Freud, no que diz respeito ao enunciado irônico, leva em consideração tanto o
enunciatário quanto o enunciador e o processo instaurador da ironia, criando uma tríade para a
criação e compreensão do discurso irônico, afinal a ironia só conquista o êxito comunicativo
quando o enunciador consegue se fazer entendido pelo ouvinte, o qual interpretará o discurso como
irônico através dos sinais que o ironista insere na mensagem, tais sinais alertarão o enunciatário das
intenções opostas ao discurso do interlocutor e assim ele compreenderá o contrário do que foi
sugerido. Portanto, como disse PESSOA (1990) “a essência da ironia consiste em não se poder
descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se, porém esse segundo
sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz.” Dessa forma, a essência não
19
será identificada por nenhuma palavra do texto, mas estará implícita na sentença, sendo então
descoberta pelo entendimento negativo do discurso, o qual não defende a essência, velando-a com
um segundo sentido o qual será explícito e antagônico.
Portanto, torna-se imprescindível discutir acerca do discurso humorístico e suas implicações
no desfecho do texto, uma vez que, tanto o humor quando a ironia brincam com o enunciado e com
o interlocutor para construir o seu sentido.
1.2 O discurso humorístico
Saber discursar é um privilégio concedido a poucos, mas a capacidade de fazer o outro rir
sem o menor esforço em situações inimagináveis é ainda mais rara. A maioria das pessoas tem um
amigo que “quando ele conta fica mais engraçado” e, veja bem, cada pessoa tem apenas um amigo
assim, aquele que revela o humor em situações sérias e, às vezes, tristes, nos fazendo rir como
crianças com sorvete em dia de verão.
O riso, advindo do bom humor, é sal para a vida, acrescentando alegria, leveza e poupandonos de eventos penosos. Para FREUD (1969) a “função psíquica do humor, é justamente evitar que
o peso do real nos esmague”, por ele as sensações se transmutam e desarma-se a seriedade.
BAKTHIN (2003, p. 374) ratifica tal afirmação dizendo-nos que “tudo o que é autenticamente
grande deve comportar um elemento de riso, caso contrário fica ameaçador, aterrorizante ou
grandiloquente e, em qualquer caso, limitado. O riso levanta as barreiras, abre o caminho”.
Embora o discurso humorístico não, necessariamente, acione o riso, ele precisa ser
desencadeado por um fator cômico, de tal maneira que o efeito do humor surja, não pelo tema, mas
pela forma como é construído e tratado, podendo manifestar-se na sentença devido a diversos
fatores, tais como: ironia, sarcasmo, quebra de expectativas, mudança de eixo temático, dentre
outros. Assim sendo,
...o humor não é, em última análise, sobre trocadilhos ou frases espirituosas. [...] o humor
continua vivo e bem porque é um processo, que reflete os tempos e as necessidades de seu
público. É o desenvolvimento social ou psicológico de ideias que não são facilmente
manipuladas por nossas mentes conscientes. (WEEMS, 2016. p. 10)
20
A construção do discurso humorístico dá-se pela seleção das palavras, as quais produzem
vários efeitos de sentido e proporcionam a dinamicidade do texto, afinal não há temas ou assuntos
que sejam engraçados por si mesmos. O humor é cultural, portanto, o que é risível para um grupo
pode não ser para outro e tal processo ocorre devido ao meio social e cultural no qual cada
indivíduo está inserido, influenciando, pois, sua forma de interpretar o enunciado, para POSSENTI
(2013, p. 27) “os “textos” humorísticos, embora, evidentemente, não sejam sempre “referenciais”,
guardam algum tipo de relação (a ser explicitada, já que humor não é sociologia nem História) com
os diversos tipos de acontecimento”.
Percebe-se, portanto, que tanto o discurso humorístico quanto o irônico compreendem em
uma estratégia discursiva com o propósito de propiciar certa leitura e interpretação acarretando em
determinados efeitos de sentido tipicamente ligados ao fazer rir, pois o riso nada mais é do que o
efeito colateral da compreensão de humor no texto, é o regozijo da mente e a liberdade do
inconsciente. Para SCHOPENHAUER ([1989] apud MORREAL. 1987, p. 52) “a razão do riso em
todo caso é simplesmente a repentina percepção da incongruência entre um conceito e os objetos
reais que foram pensados através dele em alguma relação, e o riso por si só é apenas a expressão
dessa incongruência”.
Dessa forma, PAGLIOSA (2005) explica que diante de um texto humorístico uma
informação nos é dada a fim de ser interpretada. No entanto, no decorrer da sentença um dado novo
diverge das expectativas ativadas no primeiro olhar. Nesse sentido, POSSENTI (2013) subdivide os
textos humorísticos em duas categorias: [a] os que surgem a partir de acontecimentos “concretos”,
nos quais sua interpretação depende, a certa medida, de um saber preciso e relativo a tais
acontecimentos, como é o caso das charges jornalísticas; e [b] os que não necessitam de
acontecimentos e que exigem, para sua interpretação, a mobilização de fatores de outra natureza e
outras ordens de memória que são atemporais, como a tira.
A partir dessa concepção podemos compreender o discurso humorístico como um conjunto
de “[...] maneiras de dizer no interior de diversas situações, um ato de enunciação com fins
estratégicos para fazer de seu interlocutor um cúmplice” (CHARAUDEAU, 2006, p. 21-22). Assim,
bem como a ironia, esse tipo de discurso permeia por diferentes situações de comunicação, sendo
uma estratégia do enunciador para seduzir o enunciatário a fim de induzi-lo a fazer concepções
epilinguísticas e buscar através de pistas linguístico-discursivas o humor na sentença, sendo um
processo oriundo de uma afetação situacional e histórico-social.
21
Percebe-se, pois, que o texto humorístico funciona a partir da memória e/ou dos
acontecimentos, tanto para sua produção quanto para a interpretação, não podendo, portanto, ser
visto apenas com função de entretenimento (fazer rir), visto que para sua compreensão faz-se
necessário o conhecimento de fatores extralinguísticos. Portanto,
„um texto se relaciona a uma esfera, tem uma construção composicional e um estilo.‟ Podese dizer que o humor é uma esfera – na qual circulam diversos gêneros... Para caracterizar o
humor como uma esfera (...) o exemplo mais típico para construir uma analogia é a
literatura. (BAKHTIN [1979: 279] apud POSSENTI, 2013, p. 103)
Consideramos assim, o humor como uma abordagem, a qual faz parte de um conjunto
linguístico que engloba outros discursos e os molda a fim de gerar comicidade (nesse caso, o senso
de graça e não o riso propriamente dito, sendo este uma consequência e não o objetivo). Na esfera
humorística deparamo-nos com um jogo de linguagem apresentado em dois níveis: [a] o da
armadilha lúdica onde se acredita que não há outra significação no enunciado que não seja o
explícito e [b] o da explicação o qual, através das pistas linguístico-discursivas, busca pela
intertextualidade as informações implícitas, fazendo com que o leitor não apenas caia na armadilha,
como também a perceba e aprecie. Nesse sentido, faz necessário compreender que:
A ideia é que o humor e seu sintoma mais comum – o riso – são subprodutos do fato de
possuirmos um cérebro que confia e aprecia o conflito. Isso porque ele constantemente
lida com a confusão ou ambiguidade, assim nossa mente saca a arma, comete erros e
geralmente fica confusa em sua própria complexidade. Mas isso não é ruim. Pelo contrário,
isso nos fornece uma adaptabilidade e uma razão constante para rir. (WEEMS, 2016. p. 16)
Percebe-se que o discurso humorístico constrói-se a partir do duplo sentido destinando a
língua ao equívoco, pois se utiliza de duas informações conflitantes onde uma sobrepõe-se a outra.
Tal estratégia é apreciada pelo enunciatário, devido à complexidade de suas particularidades e exige
um pensamento mais aguçado e uma perspicácia para sua completa e correta interpretação. Sob esse
aspecto compreendemos o conceito de dois scripts proposto por RASKIN (1985)5, que consiste em
um texto que comporta dois sentidos opostos entre si, mas compatíveis com o enunciado onde o
segundo sentido, que está implícito, se sobrepõe ao primeiro por uma quebra de expectativa.
5
A Teoria Semântica do Humor baseada em Script (SSTH) foi introduzida por Victor Raskin em "Mecanismos
Semânticos do Humor", publicado em 1985. Embora seja uma variante dos conceitos mais gerais da teoria do humor da
Incongruência, é a primeira teoria a identificar sua abordagem como exclusivamente linguística. Como tal, ele se
preocupa apenas com o humor verbal: palavras escritas e faladas usadas em piadas narrativas ou enigmáticas
concluindo com uma linha de soco.
22
Segundo POSSENTI (1998) o texto não é o único fator relevante no processo de leitura,
caso a mensagem não seja compreendida, será ou por falta de conhecimentos de mundo; ou
linguísticos, por não entender o jogo de palavras; ou histórico/geográfico, por não se posicionar no
contexto em que o discurso foi produzido, afinal, qualquer expressão humorística gira em torno de
alguma situação, real ou imaginária.
Todo discurso humorístico necessita dessa tríade para o jogo de interpretação, posto que
“nenhum tema é, por si só, criador de riso. (...) o que faz rir deriva da técnica, não do conteúdo do
texto humorístico.” (POSSENTI, 2013, p. 140). Sendo, portanto, o enunciado humorístico
construído através das linguagens verbal e não verbal e devido ao jogo de vozes relacionadas, pois o
enunciador provoca distrações durante o seu discurso, seja pela forma de falar, expressões faciais
e/ou corporais, guiando o receptor por um caminho e iludindo-o em relação ao ponto de chegada.
Assim, quando o riso surge, vem apenas como um reconhecimento da qualidade da estratégia
discursiva em ludibriar.
POSSENTI (1998, p. 49) nos aponta ainda que “o que caracteriza o humor é muito
provavelmente o fato de que ele permite dizer alguma coisa mais ou menos proibida. Mas não
necessariamente crítica”. Por ser uma técnica de desarmamento do sério, o humor tem um “quê” de
ingenuidade, isto porque, historicamente, ele está atrelado à inocência infantil e a seriedade à fase
adulta do ser.
Por conseguinte, o riso de acordo com KANT ([1790, p. 177] apud MORREALL [1987, p.
47]) “é um afeto resultante da transformação repentina de uma tensa expectativa em nada”, afinal há
graça em tudo que foge do “padrão” e quebra nossas expectativas, sendo o riso um efeito resultado
da surpresa pela armadilha enunciativa e externalizado pelo inconsciente e, partido dessa concepção
WEEMS afirma que:
Sob certas circunstâncias, quase qualquer coisa pode nos fazer rir, razão pela qual o humor
deve ser considerado um processo, e não uma visão ou um comportamento. É o resultado
de uma batalha em nosso cérebro entre os sentimentos e os pensamentos, uma batalha que
só pode ser compreendida ao se reconhecer o que causou o conflito. (WEEMS, 2016. p. 13)
Pela concepção de Weems, o discurso humorístico é criado por um processo de aglutinação
de dois outros discursos, ambos dissonantes, mas que se completam, diante dessa ambiguidade,
proposta pelo enunciador, o receptor tenta conectar as informações produzindo uma nova ideia, a
partir disso o humor surge porque há divertimento nesse processo entre o descobrir e o criar.
Percebe-se assim que tal discurso “valoriza mais o significante que o significado, explora mais a
23
enunciação que o enunciado, busca antes elaborar o discurso que a diegese” (DUARTE, 1995. P.
66).
Para ECO (1984) o cômico, por mostra-se ao mesmo tempo, metalinguístico, metatextual e
metassemiótico, pode promover um distanciamento do enunciador em relação às questões propostas
em seu discurso e também representar uma crítica consciente e explícita, mas que nem sempre é
levada a sério. Assim o humor tende a ignorar as normas culturais fingindo ingenuidade e
“inocentemente” por em xeque temáticas relevantes.
Considerando que o humor tende a diminuir a carga de significância do enunciado, percebese que seu uso “está fortemente relacionado à inteligência” (WEEMS, 2016. p. 13), pois, o riso
pode ser utilizado como ferramenta para uma crítica camuflada de ignorância e inocência, tendo em
vista que ele quebra a seriedade e a importância do tema.
Assim a comicidade decorre de uma contradição entre forma e conteúdo, fenômeno e
essência, pois algo importante é abordado com descaso. Assim, o exercício do humor supõe,
portanto, a capacidade de entrar conscientemente em um jogo em que existe fingido auto
esquecimento ou ignorância, realizado, principalmente, no campo na metalinguagem. Por isso, fazse necessário estudar o que compõe o humor a partir dos mecanismos linguísticos (linguagem
verbal e não verbal).
1.3 Os mecanismos do humor
Falar em mecanismos induz nossa mente a pensar em técnicas (ou passo a passo) e quando isto
está relacionado ao humor imaginamos rapidamente aquelas piadas clichês que mesmo as tendo
ouvido diversas vezes, ainda assim, rimos; ou também aqueles temas básicos dos comediantes
relacionados a diversas desgraças, das quais rimos sem saber o porquê ou talvez porque toda
desgraça tenha a sua graça.
O efeito de humor, e por consequência o riso, decorrem da surpresa e esta, por sua vez, é
provocada pela passagem de discursos que estão sobrepostos, mas sua dedução, como nos diz
POSSENTI (2013) é intuitiva. Muitas pessoas podem ler determinado texto e não estabelecer uma
relação de humor. Ler necessita reflexão, ao reler a palavra, relemos o mundo e lhe conferimos
novos sentidos. A leitura, antes de qualquer coisa, deve ser uma leitura meditada. “Meditar,
24
aceitando uma etimologia imaginária (mas muito sugestiva), é me ditar, é ditar-me palavras
maduras, que nascem da reflexão, da disponibilidade para ouvir em minha mente uma voz mais
verdadeira” (PERISSÉ, 2014. p. 60). A profunda reflexão é fundamental na busca pela passagem
provocadora de riso e para explicitar sua causa, seja ela linguística ou situacional. A partir disso,
cria-se uma expectativa para que certos fenômenos se repitam, os quais sempre serão o gatilho para
esse discurso, tais como a surpresa, a ambiguidade, textos incoerentes, etc.
Sob esse viés, podemos nos deparar com a forma do humor irônico o qual tem por característica
provocar não apenas o riso, mas também a crítica (essa em especial); pois, quando algo é ironizado,
o riso surge porque há a crítica, a ridicularização do outro, tornando-o inferior ao produto do
discurso. Sob esse viés,
A comicidade, dizíamos, dirige-se à inteligência pura; o riso é incompatível com a emoção.
Descreva-se um defeito que seja o mais leve possível: se me for apresentado de tal maneira
que desperte minha simpatia, ou meu medo, ou minha piedade, pronto, já não consigo rir
dele. Escolha-se, ao contrário, um vício profundo e até mesmo, em geral odioso: ele poderá
tornar-se cômico se, por meio de artifícios apropriados, conseguirem, em primeiro lugar,
fazer que ele me deixe insensível. Não digo que então o vício será cômico; digo que a partir
daí poderá tornar-se cômico. Ele não deve comover-me: essa é a única condição realmente
necessária, embora não certamente suficiente. (BERGSON, 2004. p. 108)
Compreendemos que tanto o cômico quanto o irônico brincam com a sagacidade do receptor
e para que em ambos os discursos desencadeie-se o riso é necessário que o enunciatário não se sinta
inserido como vítima ou que tenha alguma ligação direta com o discurso, ele deve ser um
espectador que assiste de camarote os jogos linguísticos presentes no enunciado. Dessa forma, o
leitor torna-se indiferente a sentimentos como a compaixão e a piedade, e poderá deter-se apenas no
discurso, apreciar suas armadilhas e regozijar-se com a descoberta, independente da seriedade ou
importância do tema abordado, para BERGSON (2004. p. 102) “talvez não seja por ser pequeno que
um defeito nos faz rir, mas como por nos fazer rir o achamos pequeno, nada desarma tanto quanto o
riso”.
Essa análise externa reflete sobre o riso, o qual teve seu esclarecimento nos ensaios de
BERGSON (2007, p. 2) da seguinte forma: [1] é uma condição exclusivamente humana, tanto em
causa quanto em ação, para ele “[...] não há comicidade fora daquilo que é propriamente humano”;
[2] necessita de eco, ou seja, não se pode rir sozinho ou por motivo algum e [3] ele exige que
apenas a sagacidade do receptor esteja ativada devendo suas emoções estar reclusas, pois, se de
alguma forma o afeto pelo tema ou pela vítima for acionado o efeito de humor torna-se incompleto.
25
Ainda de acordo com Raskin (1985), para que o humor seja construído, a sentença precisa
transmutar do modo bona-fide, onde há a preocupação em explicar o fato para que seja
completamente compreendido sem abrir margem para outras interpretações, para o modo no-bonafide, o qual se interessa não na fidelidade ao fato, mas na forma como ele será abordado a fim de dar
margem a uma determinada interpretação. Nessa abordagem discursiva há a quebra das máximas de
Grice6 (1975) que desencadeará o humor e o aparecimento do riso.
De acordo com POSSENTI (2013) as técnicas aplicadas no discurso humorístico têm por
característica a descoberta de outro sentido, preferenciamente inesperado, desse modo, o humor
provavelmente resultará no riso sendo este um fenômeno psicológico que liberta o receptor de
excessos mentais, energéticos e nervosos que possam estar acumulados. Pela risada livramo-nos das
tensões e criamos um sentimento de alívio, mesmo que momentâneo.
A característica marcante do texto humorístico é o seu sentido polifônico, o que é
surpreendente, pois por, na maioria das vezes, serem textos curtos, como as tiras, não indicam esse
tipo de construção tão complexa.
No que concerne a compreensão do efeito humorístico no discurso há uma ideia equivocada
de que só existe humor se existir o riso, além de haver uma generalização sobre tudo o que é risível
ser considerado humor. Assim, para PIRANDELLO (1996) o vulgo não entende os contrates
secretos e a sutileza da sobreposição dos scripts no verdadeiro humorismo e passa a classificá-lo de
forma ampla, qualificando num mesmo “pacote” a burla, a troça, o rebaixamento, dentre outros.
Nesse contexto, MENNUCCI (1923. p. 165) também nos diz que “[...] para o povo, humorismo,
graça, cômico e sátira são sinônimos perfeitos”.
É importante ressalta que o humor busca brincar com o jogo de enunciados, ele consiste em
uma forma inocente e inteligente de divertir a mente, lidando diretamente com a inteligência. No
humor as palavras são lançadas de tal maneira que criem múltiplos significados e essa
heterogeneidade dependerá do contexto no qual estão inseridas, da situação, da disponibilidade do
receptor e da discursividade do enunciador, assim, BERGSON (2004. p. 110) nos diz que “as
palavras profundamente cômicas são as palavras ingênuas nas quais o vício se mostra a nu”.
6
As máximas de Grice consistem em um conjunto de regras que devem conduzir o ato conversacional. São princípios
descritivos do comportamento linguístico dos falantes e normas específicas de conduta linguística que descrevem os
raciocínios que os alocutários fazem para interpretar os enunciados. Por regerem o comportamento
comunicativo dos falantes numa interação verbal, são classificadas em quatro máximas: da qualidade, da quantidade, da
relevância e do modo. Se, por acaso, forem descuradas podem por em causa a eficácia do ato comunicativo.
26
Assim, o humorismo trata os fatos de forma despretenciosa, não no intuito de menosprezar,
mas com a intenção de aplicar-lhe um olhar diferente do habitual. Para POSSENTI (2013) o cômico
surge no discurso por meio de uma abordagem engenhosa, que na maioria das vezes apresenta-se de
forma indireta (daí a surpresa) permitindo ao leitor o despertar de outros sentidos que são
constantemente retidos.
Entende-se, assim, que a compreensão do enunciado pelo enunciatário é fator decisivo para
a produção do significado das palavras e, por sua vez, do humor. Para toda interpretação há uma
manipulação do material linguístico diretamente relacionado ao desenvolvimento particular de
compreensão do personagem e do leitor, dessa forma “a técnica envolve tanto a consideração de um
pano de fundo conhecido quanto a associação “certa” entre os diversos sentidos possibilitados por
determinado material linguístico” (POSSENTI, 2013. p. 144).
Uma das formas de compreender esse jogo discursivo é através dos gêneros textuais e, em
especial, das tirinhas, pois as mesmas possuem um alto grau de complexidade, uma vez que
utilizam de elementos verbais e não verbais para dar sentido ao texto, e comportam a estrutura
discursiva (implícito e explícito) que ironia e humor exigem.
27
2. GÊNERO TEXTUAL: COMPREENDENDO A TIRINHA
“Não seria maravilhoso o mundo se as bibliotecas fossem mais importantes que os bancos?”
Mafalda
2.1 A constituição do gênero tirinha
Ao nos depararmos com um romance, uma crônica ou uma reportagem percebemos que eles
possuem estruturas e técnicas narrativas diferentes, embora todos estejam, tecnicamente, contandonos algo. As diferenças nessas narrativas existem porque cada uma pertence a um gênero específico.
Os gêneros são como o “playgroud” das produções textuais, extraordinariamente dinâmicos e
maleáveis, existindo muitos deles e ainda sendo possível criar muitos outros. No contexto
discursivo eles contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas e são tidos como:
Entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação
comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das
ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos
estanques e enrijecedores da ação criativa. (MARCUSCHI, 2002, p. 1)
Percebe-se assim que os gêneros não são limitadores criativos, pelo contrário, eles se
moldam a fim de comportar a complexidade do texto de acordo com o público e o meio no qual é
veiculado, e, se determinados gêneros não comportarem o texto, outro pode ser criado, e este por
sua vez, comportará todas as produções que se assemelham àquele, baseado no conteúdo temático,
estilo e construção composicional. Assim,
A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as
possibilidades da multiforme atividade humana e porque em cada campo dessa atividade e
integral o repertório de gêneros do discurso, que cresce e se diferencia à medida que se
desenvolve e se complexifica um determinado campo. (BAKTHIN, 2011. p. 262)
Dentro dessa diversidade e desse contexto criacional destacamos as tirinhas ou quadrinhos,
um tipo de gênero bastante peculiar, pois envolve dois tipos de linguagem (verbal e não verbal -
28
multimodais) que o torna bastante complexo, uma vez que o leitor precise interpretá-las ora isoladas
ora em concomitância para poder inferir sentido ao texto. As histórias em quadrinhos, bem como
outras demonstrações da linguagem, resgatam e retratam em suas narrativas a memória
sociocultural individual e global de um determinado contexto histórico. Segundo Sonia Luyten
(1989), nenhum gênero, do passado ou do presente, ultrapassou em quantidade a produção das
histórias em quadrinhos.
De acordo com Cirne (1972, p.23), “os quadrinhos são uma narrativa gráfico-visual,
impulsionada por sucessivos cortes, que agenciam imagens”, é como montar uma história a partir de
fotografias e acrescentar-lhes falas. Para ele, as HQs só começaram a ganhar popularidade após o
surgimento do Menino Amarelo (1895), criado por Richard Outcault. Antes disso, os quadrinhos
não possuíam o que chamamos de balão, assim, as falas dos personagens eram colocadas ao redor
do quadro e não havia nada as ligando ao personagem. Dessa forma é possível depreender que
O balão é de longe o elemento mais codificado da HQ. Os autores despejam nele um
tesouro de inventividade, de modo que essa criação, puramente convencional, se integra até
aos desenhos realistas. O código dos balões merece uma descrição em linhas gerais fora o
conteúdo linguístico, a forma dos balões na verdade é por si só uma mensagem icônica.
(GUYOT, 1994. p. 12)
É importante ressaltar que além da estrutura dos balões, onde cada uma tem uma
significância para a interpretação do texto, a localização dos mesmos dentro dos quadrinhos não é
casual, ao colocar as falas do Menino Amarelo dentro de seu camisolão, Richard deu início ao uso
do balão e ajudou o leitor a entender que quem estava falando era o personagem e não o narrador.
Esse procedimento ofereceu uma maior dinamicidade aos quadrinhos e destacou a linguagem
visual, a qual se constitui como elemento básico dessas histórias e apresenta-se como uma
sequência de quadros que trazem uma mensagem ao leitor.
Os quadros que compõem a história se assemelham as janelas que demonstram a realidade
de forma fragmentada. Eles são o principal recurso das HQs e podem mudar de forma e dimensão
por razões narrativas. Dimensões variadas de quadrinhos numa mesma página, mais compridos ou
mais longos que o habitual reduzem o ritmo da leitura e apresentam uma cena de forma detalhada.
Quadros menores que o padrão aceleram a leitura em consequência da apresentação de detalhes ou
ações rápidas. Já os quadros sem as linhas servem para valorizar uma cena.
De acordo com RAMOS (2017) podemos classificar os quadrinhos como um hipergênero,
comportando-se, portanto, como um grande guarda-chuva que abriga subgêneros (tirinhas, charges,
dentre outros), autônomos e distintos, mas com a mesma linguagem quadrinizada, utilizando os
29
mesmos códigos e elementos narrativos, tais como a linguagem dos quadrinhos (balão,
onomatopeia, metáforas visuais); recursos de ordem verbal escrita e visual e a composição das
narrativas ancoradas em formas próprias de representação da fala.
De acordo com o que nos apresenta o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa a tirinha
nada mais é que um “segmento ou fragmento de história em quadrinhos, geralmente com três ou
quatro quadros, e apresentado em jornais e revistas numa só faixa horizontal” (apud RAMOS, 2017.
p.11). No entanto, definir esse gênero textual por esse prisma é apresentar apenas uma sombra
malformada de algo bem maior e complexo, pois elas não se caracterizam apenas como um gesto de
comunicação terminante, mas também como produtoras de efeitos de sentido entre os locutores.
Percebe-se que tanto a ironia quanto a tirinha foram subjugadas em suas definições, pois
comportam em si muito mais do que nos é apresentado. Contudo, a definição do dicionário ainda
nos pode ajudar a, pelo menos, compreender o que é a tirinha quanto a sua estrutura. Esse gênero ou
subgênero, não tem um nome fixo, sendo denominado: tira, tirinha ou quadrinhos, dependendo do
meio no qual é veiculado.
Nascida da necessidade dos jornais em diversificar seu conteúdo diário junto ao público,
esse gênero ganhou expressividade nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. A tirinha
mantém uma participação ativa na imprensa tanto com temáticas banais quanto com questões
sociais, políticas e filosóficas. Devido a sua linguagem mista como jogos linguísticos ela é capaz de
censurar e servir de bandeira ideológica burlando a crítica à exemplo de Mafalda.
O que se pode perceber é que essa ramificação das histórias em quadrinhos não é longa, haja
vista os gibis ou comics os quais têm grandes enredos, enquanto aquelas são mais curtas e
apresentam começo, meio e fim em poucos frames. Segundo RAMOS (2017) as tiras também são
denominadas “tirinhas” por, inicialmente, terem sido publicadas para o público infantil, havendo
registro dessa nomenclatura para esse subgênero desde a década de 1970. O autor também ressalta
que
Pelo perfil infantil, o uso do diminutivo era um recurso linguístico corrente para se
relacionar a esse público-leitor. Não por acaso, alguns diários usavam o nome do jornal,
acrescido do sufixo –inho(a), para dar título a seus suplementos infantis: Folhinha, no caso
da Folha de S. Paulo; Estadinho, no do Estado de S. Paulo; Diarinho, no Diário de
Pernambuco e também no Diário do Grande ABC; A Tardinha, no A Tarde, de Salvador.
(RAMOS, 2017. p. 50)
30
De todo modo, o uso desse sufixo (-inho/a) endossava outro tipo de discurso, associando as
tiras a uma forma de linguagem e a conteúdos menos densos e relevantes, criando uma atmosfera
banalizadora perante o gênero.
A forma como a HQ era veiculada nos jornais através do caderno infantil também
alimentava essa visão menosprezadora, uma vez que: [a] por não haver compilações em livros de
todas as tiras já publicadas nos periódicos ela se tornava uma leitura irrelevante e pouco instrutiva e
[b] uma vez que a literatura voltada para o público infantil também era desvalorizada desde o seu
surgimento, em meados do séc. XVIII, sendo permeada de preconceitos e banalizações acerca de
sua importância, vista apenas como uma ferramenta pedagógica e tendo o seu valor artístico
ignorado; a tira[-inha] seria duplamente marginalizada.
Sendo assim, muitos escritores eram contra a sua inserção no mundo infantil, uma vez que,
em suas concepções, as tiras além de piorarem a imagem da literatura, em nada auxiliariam a
criança em seu desenvolvimento, muito pelo contrário, o fato de possuir imagens limitaria a
imaginação do pequeno leitor, tendo em vista que a leitura (em especial a literatura) relacionava-se
apenas com a palavra, a imaginação e sensibilidade do leitor. Dessa forma, Ramos nos diz que
Havia, na época, a interpretação de que textos com imagens provocariam preguiça no ato de
ler. Partia-se do pressuposto de que a leitura se resumia somente às palavras. A escritora
Cecília Meireles era uma das que compartilhavam dessa visão. No livro Problemas da
literatura infantil, de 1951, ela dizia que a presença de figuras era uma inversão do processo
da imaginação quando transformada em palavras. Esse seria “um dos perigos”, nas palavras
dela, a serem assinalados nas histórias em quadrinhos. (RAMOS, 2017. p. 52)
Essa opinião de Cecília é compartilhada por muitos até hoje, de acordo com RAMOS (2017)
embora as tiras tenham sido incluídas oficialmente nos documentos de ensino, ainda há ecos desse
preconceito literário, o qual é compreensível, mas não justificável. Para os escritores era mais
valioso, enriquecedor e divertido, tanto para o texto quanto para o leitor, imaginar as facetas dos
personagens do que tê-las estampadas facilmente no texto. Esse pensamento se faz presente até em
obras como A Bela e a Fera (1991) na qual o personagem Gaston manuseia curiosamente o livro
que Bela está lendo e pergunta “Como você pode ler isto? Nem tem imagens!”, a fala do
personagem seria uma prova de que pessoas mais preguiçosas preferem ver as imagens a ter que
imaginá-las. Outros autores e estudiosos corroboram como essa perspectiva, o que resulta em um:
...discurso pejorativo e restritivo, endossado por órgãos governamentais e por especialistas
em educação e leitura infanto-juvenil, consolidou algumas das raízes sobre a forma como
os quadrinhos foram vistos ao longo das décadas seguintes. Eles seriam uma leitura
31
inferior, de má qualidade, uma subliteratura. Não é de estranhar que as tiras e outras formas
de quadrinhos tenham tido um papel marginal na escola por décadas. (RAMOS, 2017. p.
53)
Contudo, de acordo com o autor, ao longo dos anos torna-se perceptível que os textos apenas
com palavras repelem leitores menos criativos e estes por sua vez nunca entram em contato com a
literatura, em contra partida, os textos que se valem da linguagem verbal e não verbal (multimodal)
tornam-se mais dinâmicos e atrativos, facilitando o processo de interpretação de tais leitores, bem
como nos afirma RAMA e VERGUEIRO (2004) ao expor os quadrinhos como um sistema
narrativo composto por dois códigos que atuam em constante interação e ocupam um papel
especial, reforçando um ao outro e garantindo que a mensagem seja entendida.
Sob esse viés, CANDIDO (1995, p. 245) afirma que “toda obra literária é antes de mais nada
uma espécie de objeto, de objeto construído; e é grande o poder humanizador desta construção”.
Assim, toda produção que leva a reflexão, construção de sentido e fruição deve ser valorizada no
campo literário, afinal, ler é colher e, no campo das tirinhas, a colheita é farta, pois essa desencadeia
um processo duplo na interação entre dois códigos, o escrito e o imagético (semiótico), onde se
torna essencial a leitura dos textos e das imagens.
As tiras são um gênero bastante flexível variando seu formato de acordo com o suporte no
qual é veiculada. No início, durante o século XX, por serem mais comuns nos jornais, não havia
muitas mudanças na sua estrutura no que corresponde ao posicionamento de casa quadro, que
costumava se apresentar em uma tira tradicional com quatro frames, contudo, devido ao
crescimento das mídias virtuais no século XXI, houve uma maior flexibilização no seu formato, o
qual pode ser agrupado em seis categorias: tiras tradicionais, tiras duplas ou de dois andares, tiras
triplas ou de três andares, tiras longas, tiras adaptadas e tiras experimentais.
MENDONÇA (2005) ao nos esclarecer as tiras como um subtipo das HQs e, portanto, de
caráter sintético, diz-nos que elas podem ter seu conteúdo apresentado de duas formas: (a) fechadas,
com temáticas diferentes, que não são obrigadas a seguir uma linha do tempo, apresentando-se
sempre com um novo enredo ou (b) podem seguir uma temática que se repete ao longo dias com
uma sequência.
Nesse viés estético, FEIJÓ (1997) nos diz que nas tiras há muito mais para se ler do que
apenas as imagens e as palavras, trazendo como exemplo os balões de fala, nos quais cada tipo de
tracejo transmite uma ideia. Os de linhas tracejadas transmitem a ideia de que o personagem está
falando em voz muito baixa; os que formam o balão simples com o rabicho indo diretamente na
boca do personagem indica a fala com o tom normal da voz; os de formato de nuvem com rabicho
32
também em nuvem indicam o pensamento do personagem; os que possuem um traçado em zig-zag
indicam a voz de um aparelho eletrônico; quando o rabicho está fora do quadro significa que a voz é
emitida por alguém que está fora da cena; um balão com múltiplos rabichos indicam que há vários
personagens falando a mesma coisa ao mesmo tempo. E não são apenas esses, os balões podem
variar de acordo com a criatividade do autor.
Dentre as linguagens visuais que compõem o gênero quadrinhos destacamos as
onomatopeias7, as quais podem variar de país para país, dependendo de como as culturas as
utilizam. As onomatopeias, quando presentes nos quadrinhos ou tiras, representam muito mais do
que a simples imitação do som; elas dão “vida” à história, emoção, intensidade. Para o leitor, tornase muito mais interessante e estimulante ler o “VRUUMMM” do carro e descobrir que ele saiu em
alta velocidade (tanto pela representação do som quanto pelas letras em caixa alta), do que
simplesmente ler uma legenda com os dizeres “ele saiu em disparada”.
Recentemente, de acordo com os apontamentos feitos por RAMOS (2017), as onomatopeias
ganharam formas e tamanhos especiais a fim de melhorar a dinamicidade do texto. Atém pouco
tempo elas eram postas de forma aleatória no quadro e a partir dessa nova modelagem do gênero
elas aparecem ligadas ao desenho. Outro recurso comumente empregado na produção textual das
tiras são as metáforas visuais, que consistem no uso de diversos símbolos com significações
variadas. Para os xingamentos há as cobras, caveiras e bombas; os corações para expressar alguém
que está apaixonado, podendo aparecer flutuado perto do personagem, no lugar dos olhos, dentre
outros; a lâmpada acesa sob a cabeça para indicar que o personagem acabou de ter uma ideia, dentre
outros.
Outra característica dos quadrinhos são as linhas de movimento que servem para marcar a
trajetória de algum objeto ou parte do corpo, do ponto de início (ponto A) ao final do movimento
(ponto B), por exemplo, uma espécie de serpentina, eventualmente acompanhada de pequenas
nuvens demonstra o deslocamento ou a aceleração súbita. Pode-se dizer que essa característica dá a
impressão de que o desenho ganha vida e se movimenta, dando, assim, mais ação e dinamismo,
tornando-se um elemento indispensável à produção dos quadrinhos.
Em se tratando do contexto criacional da tira, as mais conhecidas são as tiras cômicas, as
quais, por serem mais divulgadas, são consideradas a única forma possível de tira. Elas são
caracterizadas pela quebra da expectativa para a produção de humor. Essa técnica, fundamentada
7
Segundo Ramos (2017) e Eisner (1988), nas tirinhas, a onomatopeias classificam-se apenas como linguagem visual,
pois elas não são uma palavra, mas a representação do som e servem como acessório da imagem, fazendo parte do
“movimento/ação” do objeto e, se se referem apenas a ele, ficam, portanto, no plano visual e não no textual.
33
pela teoria dos 2 scripts, cria uma situação inesperada no último frame, mas que é comportada por
todo o discurso da tira, trata-se de uma armadilha que tende a criar um cenário para o leitor e
apresentar outro. Dessa forma,
Os gatilhos que levam à compreensão do sentido humorístico planejado pelo autor (e que
devem ser desvendados pelo leitor) não precisam ser necessariamente verbais. Nas tiras
cômicas, podem ser também somente visuais ou então um misto dos dois, tendo elementos
verbais e visuais. (RAMOS, 2017. p. 68)
Assim a interpretação é feita por meio das pistas linguísticas e visuais apresentadas, que se
articulam a dados contextuais e aos conhecimentos prévios que se acredita ter o leitor, acionando
assim o gatilho para a descoberta do humor.
Há também as seriadas, que têm por característica a construção de uma narrativa maior do
que a habitual (no tocante a esse tipo de gênero); as cômicas seriadas, um gênero híbrido, pois
comporta uma mescla das tiras cômicas e seriadas. “Da primeira, o elemento que se faz presente é o
desfecho inesperado, levando a uma situação humorística. Da segunda, a estratégia narrativa em
episódios” (RAMOS, 2017. p. 92).
No aspecto narrativo a diferença entre a tira cômica seriada e a cômica está no desfecho,
visto que esta apresenta uma evolução da narrativa entre uma história e outra, como um alinha do
tempo, e um final na última narrativa, em detrimento daquela, a qual apresenta situações
humorísticas autônomas, ligadas apenas pela mesma temática.
As tiras livres, que diferem da regularidade estética apresentada pelas outras e são moldadas
por marcas variáveis que nem sempre mostram uma narrativa. Sendo possível perceber que
Essa forma de produção procura apresentar um tratamento estético diferente, tanto da
elaboração da parte verbal quanto da visual. Ela também se distancia do humor e da ação,
aspectos presentes nos demais gêneros de tira. O resultado é algo mais solto,
despreocupado com a rigidez de eventuais padrões de gênero preestabelecidos. (RAMOS,
2017. p. 101)
Como o próprio nome sugere, elas são livres das regras que normalmente classificam uma
produção como tira. Segundo RAMOS (2017) essa maleabilidade no modo de criação e de
composição é a característica básica dessas produções, basicamente a regra desse tipo de tirinha é
não ter regras. Ela possui uma maior liberdade temática, estrutural e estética, não tem como
característica o humor ou a sequência narrativa, seu intuito é levar à reflexão, pois “tende a
representar situações pensadas pelo desenhista para cada caso” (RAMOS, 2017.p. 101).
34
Entre esses diferentes campos, um outro tipo de tira está cada vez mais evidente, a
“metatira”. Como o próprio nome sugere, esse tipo de tirinha utiliza-se da metalinguagem em suas
produções. A estratégia de brincar com a própria linguagem sempre foi muito utilizada nas tiras
cômicas como estratégica de construção de humor.
O termo “metatira” tem sido creditado à pesquisadora Lélia Silveira Melo Souza por ter sido
a primeira a utilizar essa nomenclatura no Brasil, separando esse tipo de tirinha das cômicas e
estabelecendo um nome subtipo. Embora o nome seja novo, a técnica é bem antiga e remonta ao
tempo em que as tiras ainda estavam se iniciando nos jornais. Em 1919 a série Krazy Kat já
utilizava da metalinguagem.
De acordo com Cirne, em seu livro A linguagem dos quadrinhos, de 1971, há diferentes
níveis de metalinguagem: um que poderia abordar a crítica, a exploração autorreflexiva e/ou dos
signos constituintes de determinada linguagem-objeto, no caso algo que explorasse a própria tira e a
linguagem dos quadrinhos, e outra “que se completa com a participação direta ou indireta do
consumidor ou do autor” (Cirne, 1971, apud RAMOS, 2017. p. 117).
RAMOS (2017) explica que a metalinguagem, dentro dos dois eixos apontados por CIRNE
(1972), pode manifestar-se de formas variadas quanto a sua produção narrativa, contudo, no que se
concerne ao cenário quadrinista brasileiro, há uma tendência dela aparecer através da subversão de
recursos da linguagem dos quadrinhos; do questionamento do personagem sobre o processo de
criação da narrativa, da constituição do gênero ou a respeito dos limites aplicados ao formato
utilizado; da modificação na leitura tradicional da narrativa e da exploração da relação estabelecida
entre personagem, leitor, autor e série, nos quais se encaixam os casos de representação
autobiográfica do desenhista. Embora essa não seja uma regra para o uso da metalinguagem nas
tirinhas, a proposta sintetiza algumas das formas mais comuns para a produção das mesmas.
Segundo MELO (2003) uma das características marcantes dos quadrinhos é o seu caráter
lacunar, tendo em vista que a significação da tira vai muito além da simples manifestação verbal, a
função do leitor é preencher o que não foi dito pela recuperação do implícito e pela percepção dos
efeitos de sentido desejados pelo autor, e ele fará isso através das imagens e dos demais
componentes textuais que demandam a realização de inferências.
O autor ainda nos revela que as inferências consistem em processos mentais de
decodificação a partir do reconhecimento, pressuposição, processamento, validação e conclusão de
uma palavra ou enunciado em um contexto. Textos como as tirinhas, que fazem uso do humor, são
considerados dúbios e exigem que o leitor realize várias inferências para construir o sentido. Eles
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abrem muitas linhas de possíveis inferências e estas devem ser pautadas na relação entre o leitor e a
posição política, social, econômica e pessoal que ele ocupa e o resultado desse processo de
cognição leva, frequentemente, ao riso.
Portanto, a “função fundamental da arte dos quadrinhos, que é comunicar ideias e/ou
histórias por meio de palavras e figuras, envolve o movimento de certas imagens no espaço”
(EISNER, 1988. p. 38). Assim o processamento textual das tirinhas, a partir da mescla das
linguagens verbal e não verbal, contempla uma série de recursos estilísticos e formas de expressão
capazes de produzir uma comunicação com o leitor, direta e eloquente. Para estudar essa relação
entre texto e imagem para a criação de sentido, humor e crítica no enunciado iremos explorar as
tirinhas de Mafalda, a partir da influência do contexto sócio-político-ideológico na construção de
suas críticas.
2.2 Mafalda: contexto sócio-político-ideológico
Mafalda foi uma tira escrita e desenhada pelo cartunista argentino Quino, ela nasceu devido
a uma encomenda para uma campanha publicitária de uma linha de eletrodomésticos denominada
Mansfield. A personagem acabou sendo engavetada e, somente em 29 de setembro de 1964, foi
apresentada ao público. Sua trajetória engloba o período entre 1964 e 1973, através de três
publicações: “Primera Plana”, “El Mundo” e “Siete Días Ilustrados”, usufruindo de uma altíssima
popularidade na América Latina e Europa a personagem nasceu numa época marcada pelo
encadeamento da ruptura no processo de produção das histórias em quadrinhos, elas estavam saindo
do “lado negro da força” e atraindo holofotes positivos no mercado literário.
As transformações ocorridas na Europa desencadearam mudanças significativas em relação
ao público alvo dos quadrinhos, iniciando-se na Itália um processo de classificação do gênero e em
1967, Eco em seu livro Apocalípticos e Integrados deu o pontapé inicial para consolidar as HQs
como objeto de estudo.
A história apresenta Mafalda, uma menina de seis anos, que odeia a injustiça, a guerra, as
armas nucleares, o racismo, as convenções dos “adultos” (as quais, para a personagem, não
possuem uma boa fundamentação) e sopa (para a personagem sopa nem pode ser considerada uma
refeição). Mafalda é filha de um corretor de seguros e de uma dona de casa que deixa a faculdade
36
para cuidar dos filhos e do lar. Segundo Quino (2010), os próprios pais são o reflexo de um típico
casal decadente da classe média argentina. Assim,
[...] a Mafalda muitas vezes fez refletir os próprios leitores sobre a validade dos hábitos, das
crenças, dos prejuízos e da opinião comum, ajudando assim a construir uma sociedade
melhor. [...] Mafalda continua sendo, na memória coletiva dos argentinos, a menina
perguntona, questionadora e irreverente e inesperada, que na sua época pôs tantas questões
que incomodavam a sociedade argentina (2010, [s.p]).
A personagem adora os direitos humanos, a democracia e os Beatles e está constantemente
preocupada com a humanidade e a paz mundial. Comporta-se como uma típica menina na sua idade
vai à escola, tem amigos, passeia, brinca, mas tem uma visão mais aguçada da vida do que os
demais personagens e vive questionando o mundo à sua volta, os problemas políticos, de gênero e
científicos, principalmente no contexto dos anos 60 em que se encontra, refletindo sobre os
conflitos sociais que as pessoas enfrentavam, sobretudo com a progressiva mudança dos costumes e
a incipiente introdução da tecnologia. “Mafalda vive em um mundo que não estima, não respeita,
humilha e rejeita reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina” (QUINO, 2010, p.
10). Todo esse contexto social conturbado é refletido na tira, não somente através de Mafalda, mas
também pelos demais personagens, a garotinha conta com uma turma de personalidade e pontos de
vista bastante peculiares e marcantes:
Ela é rodeada por uma pequena turma de personagens muito mais “unidimensionais”:
Manolito, coroinha integrado do capitalismo de bairro, que sabe com total certeza que o
valor primário neste mundo é o dinheiro; Felipe, sonhador tranquilo; Susanita, beatamente
doente de espírito materno, narcotizada por sonhos pequeno-burgueses. E, finalmente, os
pais da Mafalda, que como se não lhes bastasse o quanto é duro aceitar a rotina cotidiana
(recorrendo ao paliativo farmacêutico de “Nervocalm”), são esmagados, além do mais, pelo
tremendo destino de ter que cuidar da Contestatária. (ECO, 1967. p.1)
A partir do termo “unidimensional” usado por Eco percebemos que os demais personagens
da tira concentram-se em apenas um ponto, ao contrário de Mafalda que tem diversas preocupações,
embora todas elas estejam relacionadas ao futuro da humanidade, os demais estão preocupados
apenas com o próprio futuro, característica bastante criticada por Mafalda em várias tirinhas.
Além desses a tira ainda é composta por Guille “Gui”, irmão caçula da protagonista, esperto
demais para sua idade, um jovem aprendiz “contestatário”; Miguelito, com uma personalidade única
e um coração enorme, embora seja um personagem egocêntrico, que parece achar que o mundo gira
à sua volta; Liberdade, filha de uma interprete, sua família revela-nos um novo parâmetro no qual a
37
mulher não se restringe às atividades domésticas; e Burocracia, a tartaruguinha dada por seu pai a
Mafalda e Guile, seu nome é irônico e foi batizada assim por ser extremamente vagarosa.
ECO (1965) definiu Mafalda como uma “heroína iracunda que rejeita o mundo assim como
ele é [...] reivindicando o seu direito de continuar sendo uma menina que não quer se
responsabilizar por um universo adulterado pelos pais”. A personagem acredita que os adultos
subverteram o conceito de certo e errado e ela se nega a crescer e ter que “tomar de conta” do
mundo caótico que os adultos deixaram para ela. Seus comentários são sempre ácidos e vão de
encontro aos ideais da sociedade de consumo.
Através de seu alterego Mafalda faz comentários entrecortados de ironia e sutileza e, embora
a personagem sempre objetiva em suas indagações, a suavidade se dá por a personagem ser apenas
uma garotinha, uma criança que, na sua ingenuidade, coloca em xeque questões cruciais, mas numa
linguagem tão simples que o choque é amenizado, a linguagem radical torna-se graciosa e a
curiosidade da garota frente a tais questões diverte. Além disso, Mafalda, por ser uma heroína e não
um herói, começa subvertendo as lógicas do quadrinho e da vida, abrindo espaço para questões de
gênero.
Para ECO (1965) Mafalda não é somente um personagem de quadrinhos; ela é um
personagem da década de sessenta que representa a sociedade argentina. “Se, ao defini-la, usou-se o
adjetivo “contestatária”, não foi por uma questão de uniformização em relação à moda do anticonformismo a qualquer preço”(ECO, 1965. p.85). Mafalda constantemente mostra-se
inconformada, daí a origem do termo “contestatária”, uma vez que ela indaga sobre tudo e sempre
num tom depreciativo, crítico e irônico.
Mesmo sendo apenas uma criança, suas tiras modificam o sentido da infância, o qual
conhecemos como o período da “inocência”. Em Mafalda há a perda da ingenuidade e a redução da
infantilidade e surge a preocupação com a formação de um cidadão moderno, isso pode ser visto em
algumas de suas produções onde as crianças buscam desenvolver o comportamento de um adulto,
como quando ao brincar Mafalda diz “estamos brincando de governo” e ela e seus amigos
restringem-se a apenas ficarem sentados de pernas cruzadas. A inocência, por vezes, é representada
por um dos amiguinhos da protagonista, Miguelito, como se ele realmente quisesse fazer seu papel
de criança no mundo, contudo essa inocência sempre se mostra descontextualizada, uma vez que os
demais personagens têm personalidade forte e opiniões bem marcantes para crianças de apenas seis
ou sete anos.
38
Mafalda surge num mundo dividido e assolado pela guerra e pela miséria. Temas como
armas nucleares, bombas e pobreza extrema são frequentemente abordados. Sua história possui um
perfil humanista, preocupado em notificar a sociedade a respeito dos problemas sociais. Ela
apresenta uma América Latina submetida econômica e politicamente aos Estados Unidos, ao
sistema capitalista de consumo num país que não tem condições de suportar tal economia, gerando
uma desigualdade social extrema.
Assim, em suas narrativas, Mafalda nos apresenta temas como a guerra do Vietnã e a
situação política e econômica do seu país, a Argentina, com a qual muitos outros países latinoamericanos compartilham as mesmas dificuldades, seja naquela mesma época ou em décadas
distintas, pois muitas das temáticas de Mafalda são atemporais.
GUBERN ([1992] apud OLIVEIRA [2008]) afirma que Mafalda atravessou a chamada
década prodigiosa, antecipando-se à explosão contestadora de 1968. Sua contestação é intelectual e
psicológica, que abarca temas como o autoritarismo dos adultos, o racismo, a fome, a explosão
demográfica e a injustiça social, problemas que não correspondem apenas àquela época ou àquele
país. Mafalda é capaz de pôr em crise todas as proposições tradicionais e desbancar as convenções e
costumes mais enraizados.
Na realidade, a Mafalda, em matéria de política, tem ideias muito confusas, não consegue
entender o que acontece no Vietnã, não sabe porque existem os pobres, não confia no
Estado e a presença dos chineses a preocupa. Só uma coisa ela sabe claramente: ela não se
conforma. O universo de Mafalda é o de uma América Latina nas suas áreas metropolitanas
mais desenvolvidas; mas é em geral, a partir de muitos pontos de vista, um universo latino e
isto faz com que a Mafalda seja, para nós, muito mais compreensível do que muitos
personagens dos quadrinhos americanos; além do mais, a Mafalda é, em última análise, um
“herói do nosso tempo” e não se deve pensar que esta seja uma definição exagerada do
personagenzinho de papel e tinta que Quino nos propõe. (ECO, 1967. p.1)
Perbece-se que o autor apresenta Mafalda não como uma heroína, mas uma anti-heroína.
Não aparece para salvar as pessoas, ou facilitar a vida, ou até mesmo trazer mensagens de paz, ela
aparece para criticar comportamentos e situações e pôr a sociedade em questionamento. A “antiheroína” foi criada para replicar questões políticas, econômicas, culturais e sociais, ela não foi feita
para apaziguar o leitor, mas para instigá-lo à reflexão, permitindo a atemporalidade dos temas
abordados, mantendo, ao mesmo tempo, o efeito humorístico e reflexivo.
De acordo com POSSENTI (1988) Mafalda é uma menina cujo discurso não tem nada de
infantil, pois sabe mais sobre política e outros temas adultos do que se imagina para uma criança,
sabendo, inclusive, mais que os próprios adultos. A personagem enuncia discursos contra
39
ideológicos, marcados por uma visão não conformista. Para a época em que foi escrita, seus
discursos poderiam ser chamados de subversivos, pondo em xeque as verdades oficiais e a dos
adultos. O prazer em ouvir ideias contestadoras que não nos traz paz de espírito deve-se ao fato de
Mafalda ser uma criança. Um traço comum do discurso referente às piadas de crianças é a violação
das regras de discurso, basicamente, só pelo fato dela ser criança é permitido que se diga o que se
pense sem censura, caso fosse um adulto isso não seria possível.
Diferentemente daquele tipo de tiras em que os autores narram uma história que enaltece um
herói, ou que usam temas banais e corriqueiros em suas narrativas a fim de apenas provocar o
humor, as tiras de Mafalda revelam a intenção de abordar a problemática social, sugerindo críticas e
levando a julgamentos. Diante dessa realidade a personagem mostra-se descontente, questionadora,
contestadora e acaba chocando o mundo dos adultos, em especial seus pais, com sua objetividade,
levantando questionamentos até então ignorados pelos adultos, e não por falta de informação, mas
por opção; para que pudessem continuam a viver suas vidas simplistas, sem grandes contratempos e
sem precisar refletir ou pensar no outro, ou no coletivo de forma significativa.
O leitor é constantemente confrontado por uma representante da juventude, uma juventude
que quer se preocupar, quer ter voz e ação, alguém que, com sua simplicidade lógica e honestidade,
busca um sentido igualmente lógico no mundo que está vivendo. Se Mafalda não entende o que
ocorre no Vietnã, seus pais tão pouco, mas ao contrário deles, ela se mantem informada, escuta a
rádio e assiste aos noticiários, é uma cidadã ativa, á sua forma, já os adultos que fazem parte do seu
círculo de amizade tendem a ignorar e fingir que o tema não diz respeito a eles e esperam que tudo
se resolva só. O comportamento da nossa menininha é inquietante e perturbador, leva o leitor a dois
extremos: ou a ama ou a odeia, e faz mais, faz com que ele (também) questione o mundo em que
vive.
De acordo com LINS (2002) Mafalda é uma criança que age como um adulto críticopolitizado divulgando seus ideais e pensamentos para uma nova juventude que buscava a liberdade
de expressão e tentava explorar sua criticidade. Apesar de ter sido criada durante a década de 60 as
questões abordadas continuam atuais, principalmente porque a relação entre os personagens na
interação apresenta uma dinamicidade resultante do trabalho visual e na composição dos
personagens aliados, ainda, à força dos diálogos. Torna-se possível depreender que a personagem:
Mafalda pertence a um país denso de contrastes sociais que, apesar de tudo, gostaria de
integrá-la e de torná-la feliz, mas ela se recusa e rejeita todas as ofertas. Ninguém nega hoje
que os quadrinhos (quando alcança níveis de qualidade) é um testemunho do momento
social: e na Mafalda vemos refletidas as tendências de uma juventude irrequieta, que
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assumem o aspecto paradoxal de uma desaprovação infantil, de um eczema psicológico da
reação aos meios de comunicação de massa, de uma urticária moral causada pela lógica dos
blocos, de uma asma intelectual originada por fungos atômicos. Como os nossos filhos se
preparam para tornar-se – por uma escolha nossa – tantas Mafaldas, não nos parece
imprudente tratar a Mafalda com o respeito que se deve a um personagem real. (ECO,
1967. p.1)
As tiras de Quino nos apresentam um mundo caótico vista a partir do olhar de uma criança
com ideias de adulto, não como qualquer adulto, mas um conscientizado e conscientizador. A
personagem traz à tona indagações simples, mas que incomodam e criticam; pequenas alfinetadas
numa sociedade submissa e oprimida. A garotinha de seis anos não “segue o fluxo”, não se deixa
levar por um caminho o qual ela sabe que não trará bons frutos. Mafalda tem o olhar simples da
criança e o raciocínio perspicaz do adulto, nos apresentando uma sociedade de indivíduos ativos,
contestadores, insubmissos e ativadores, totalmente o oposto do que era vivido por ela nas tiras.
Todas essas características dessa menininha teimosa e questionadora serão agora analisadas
a partir de um viés discursivo que mostra como a ironia e a “inocência infantil” pode mascarar
críticas severas e enganar o leitor fazendo-o divertir-se com temas que, em situações diferentes,
seriam preocupantes.
41
3. MAFALDA: HUMOR E CRÍTICA
“Como sempre o urgente não deixa tempo para o importante”
Mafalda
3.1. A ironia como estratégica de humor e crítica social nas tiras de Mafalda
As tiras da Mafalda são narrativas humorísticas permeadas de ironia compostas pela relação
entre o verbal e o visual. Suas narrativas tendem a discutir determinados temas que sugerem críticas
sociais e para isso Quino faz uso da ironia e do humor. Em Mafalda o humor ocorre de modo no
bona fine (RASKIN, 1985). Neste tipo de discurso o leitor busca, imediatamente, fazer inferências
que lhe auxiliem a identificar e compreender o que está implícito, porque ele já sabe que a
personagem irá fazer uma crítica, a qual é proporcionada pela quebra da expectativa.
Segundo LINS (2002), o leitor somente compreende o jogo interativo se souber dentro de
qual enquadre ele foi composto. Sendo esses enquadres identificados pela associação entre pistas
linguísticas e paralinguísticas, pela maneira como as palavras são ditas e não apenas pelo que
significam. No caso das tiras de Mafalda, Quino mostra aos seus leitores suas análises do contexto
social-histórico-político do momento, levando-os a verem a triste realidade da América Latina além
de outros países em conflito.
Mafalda, ciente desses conflitos demonstra desejo de discutir essas situações, a fim de que,
de alguma forma, possa participar efetivamente do que acontece no mundo. Mundo este que
desempenha um papel importantíssimo nas tiras, aparecendo ocasionalmente de maneira concreta,
através de globo terrestre. A preocupação da personagem para com ele é transmitida através de suas
críticas, pois para a garotinha a exposição de suas opiniões a faz participar ativamente dos
problemas sociais.
Nesse sentido, ORLANDI (1983), explica que a ironia se dá pela ruptura do sentido,
desencadeando um processo de significação em que há o desenvolvimento de um discurso sobre o
outro e no qual um discurso evoca o outro, consolidando assim a mudança dos processos de
significação previamente instalados.
42
Assim, a análise das tiras selecionadas tem por objetivo mostrar como a ironia é usada para
produzir humor e que este não está restrito a um tipo de texto ou discurso, mas que se apresenta
como um efeito de sentido que se inscreve pela formação discursiva.
3.2. Análise do humor pela ironia na tira
Serão analisadas 7 tiras que se referem ao sistema sócio-político-ideológico e versam sobre a
condição educacional, social e cultural, além de abordar o cenário infantil. Nas tiras abordadas, a
personagem levanta questionamentos e põe em xeque situações complexas e desconfortantes com
um tom irônico que causa leveza e diverte.
Tira 1:
A primeira tira apresenta uma situação que versa sobre valores e o universo infantil e como
os conceitos criados pelos adultos são frequentemente deturpados por eles mesmos.
Figura 1 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
No primeiro quadro, Mafalda está assistindo à TV e presencia a cena de um beijo. A mãe da
garota ao perceber aquilo, sente-se desconfortável e não acha “correto” que a filha assista àquele
tipo de conteúdo, tido por ela como impróprio para a idade, provavelmente acreditando que isso
incitaria a sexualidade da menina, e acreditou que um conto infantil, no caso “O pequeno Polegar”,
seria muito mais educativo e teria um tema adequado à idade da filha.
Contudo, como nos é apresentado pela menina no terceiro quadro, o conceito da mãe é
contraposto, pois a história contém uma cena de grande violência, na qual o pai, acidentalmente,
43
acaba matando seus filhinhos enquanto tentava liquidar o personagem principal da história. A partir
da quebra da expectativa, criada no terceiro quadro, Mafalda consegue fazer uma observação
irônica a respeito do fato, questionando se para qualquer idade não seria mais interessante ver a
representação do amor ao invés do ódio, representado aqui por um assassinato.
Partindo do princípio que as tiras de Mafalda são compostas pelo modo no bona fide,
sabemos que o leitor encontrará algo que contrarie de algum modo a fala da mãe, assim, o trecho do
livro lido pela personagem no terceiro quadro é o gatilho para o humor na tira, pois este apresentase por uma situação irônica, onde está apresenta o contrário do que é sugerido no primeiro quadro.
A partir dessa situação, Mafalda pôde fazer sua observação, igualmente irônica, partindo do que lhe
foi revelado no terceiro quadro.
A ironia divulgada pela garotinha, seguindo as ideias propostas por Orlandi (1983), se deu
pela violação do sentido empregado, pela mãe da menina, ao texto infantil; levando-nos a ter a
mesma reflexão que Mafalda apresenta no último quadro. Além disso, o contexto irônico
empregado na tirinha pode ser compreendido pelo leitor tanto pelos elementos textuais, quando
Mafalda diz “Essa é boa!” é sabido que não há nada de bom naquilo e mais uma vez o texto
contrasta-se à verdadeira mensagem; quando pelos visuais, pois o leitor deve perceber que pela
construção do balão a personagem não falou essa frase ela apenas pensou, e tal qual a piada, a ironia
deve ser apenas entendida e não explicada, caso contrário o jogo “perde a graça”.
Tira 2:
A segunda tirinha versa sobre a cultura, os meios de comunicação e como aquela está se
propagando. Mafalda questiona o que é considerado cultura e traz à tona outros conceitos de
cultura, em outras palavras, o que é “cultura de verdade”.
Figura 2 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
44
No primeiro quadro da tira Felipe nos traz a revelação de que a TV é “um veículo de
cultura”. Após tal afirmação os personagens e o leitor são confrontados com uma nova mensagem,
pois lhes são apresentados os termos “Toma! Bang! Bang! e Augh!” que se referem a situações de
violência e não são considerados cultura, criando assim, uma quebra da expectativa.
Assim, ao analisarmos a tira, enquanto o leitor reflete sobre os efeitos positivos dos meio s
de comunicação e em especial da TV, o programa televisivo que Mafalda assiste vem contradizer o
que foi primariamente proposto, revelando um contexto irônico. Diante disso, Mafalda traz sua
observação revelando que se ela fosse a cultura “saltava do veículo e ia a pé”. O humor manifestase na fala de Mafalda mediante a mudança de significado do signo, uma vez que a garota toma o
termo veículo a um automóvel e não a um facilitador do processo de envio e recebimento de
informação, chegando à conclusão que este não está progredindo e que, caso a cultura insista em
permanecer nesse veículo, corre-se o risco de não “chegar” ao seu destinatário.
De acordo com WEEMS (2016), o humor manifesta-se a partir de um processo que reflete
os tempos do seu público, no caso da tira, Mafalda brinca com a programação que lhe é oferecida e
questiona indiretamente o que está sendo apresentado á população, se se deve dar credibilidade às
mídias e se a cultura deveria ser propagada por algo tão suspeito.
Dessa forma, o receptor deve buscar pela memória discursiva conhecimentos que o ajudem a
compreender a informação implícita, percebendo que muitos programas são considerados apenas
como passa tempo para massas e em nada acrescentam pessoal ou culturalmente. A fim de fazer
com que seu discurso atravesse a sociedade em fios ideológicos materializados no discurso social.
Essa nova interpretação desencadeia o humor que se apresenta comicamente no último quadrinho
através da fala da garota, a qual, ao invés de fazer um discurso sociocultural, optou por ser
espirituosa e aprazível. Nessa vertente, Possenti (2013, p. 28) nos diz que para que textos
humorísticos possam ser devidamente interpretados pelo leitor, este precisa “perceber algum jogo
de linguagem (um duplo sentido, um deslocamento etc.)”.
Tira 3:
A terceira tira condiz ao universo infantil e explora o diálogo e, em especial, os dialogismos
específicos de cada indivíduo e/ou grupo social, ressaltando o comportamento humano diante do
que é irreconhecível.
45
Figura 3 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
Na tira acima vemos um desencontro de ideias que estão presentes no 1º e 2º quadros, tal
fato ocorre devido ao uso de duas expressões não usuais que são conhecidas apenas pelos seus
falantes, mas não pelo ouvinte. No 1º balão Mafalda utiliza a expressão lexical “pirambaba” a qual
é alheia aos conhecimentos de Felipe, e o mesmo, ao questionar a garotinha sobre o significado da
palavra, acaba por usar, no 2º quadrinho, outra expressão: “no fundo da alma”, que não é conhecida
por Mafalda.
Quando Filipe tenta se explicar, no 4º quadro, e não consegue se fazer entendido, Mafalda
usa, no quadro seguinte, a expressão que transformará o seu discurso em um texto irônico “Você foi
muito claro, Felipe! Claríssimo!”. A personagem usou duas formas de superlativo (muito
claro/claríssimo) para expressar uma ideia totalmente oposta e enfatizar a sua fala, pois o leitor
compreende que o garoto não conseguiu explicar o seu ponto de vista sobre o que é a alma, portanto
não pode ter sido claro em seu discurso. Vê-se então que o fenômeno é o oposto do pensamento, e o
que Mafalda fala, não representa a ideia, mas esta pode ser resgatada no entendimento do leitor pelo
uso dos superlativos.
Assim como afirma ESTEVES (2007) a ironia surge pela multiplicidade linguística no
interior da linguagem, dessa forma, podemos explorar os superlativos usados por Mafalda e buscar
o que está implícito neles. Se nos prendermos apenas ao texto verbal, provavelmente a ironia não
seria interpretada. Há, portanto, a necessidade de trazer à tona os elementos não verbais,
apresentados pela forma de descaso que a menininha apresenta, pois ao dizer a frase “Você foi
muito claro, Felipe! Claríssimo!”, ela dá as costas ao colega, mostrando que não se importa tanto
assim com que o que disse que é a suposta explicação do menino lhe foi totalmente irrelevante.
O humor surgiu no último quadro em decorrência do discurso irônico, quando Felipe se
classifica como um “reles pirambaba” dando sentido ao que, para ele, não tinha significado. Ora,
considerando que o item lexical para ele não tem significado algum (pirambaba= 0) e Felipe não
46
teve utilidade alguma para Mafalda, já que o garoto não soube explicar o significado de “fundo da
alma” (Felipe= 0), ele seria, portanto, tão insignificante para Mafalda quanto pirambaba era para
ele.
Assim, de acordo com CHARAUDEAU (2006) o humor consiste em uma enunciação com
fins estratégicos que tornam o leitor um cúmplice para que ambos consigam alcançar a armadilha,
dessa forma, Felipe, ao dar, indiretamente, significado à pirambaba, induz o leitor a descobrir qual é
esse significado e divertir-se com a comparação.
Tira 4:
A quarta tirinha aborda as questões sociais presentes no universo de Mafalda e como as
pessoas interpretam o mundo em que vivem, os problemas que ele apresenta e como o ser humano
pode apresentar-se insensível para com o seu meio social.
Figura 4 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
Na tira temos duas representações do mundo: o projetado, representado pelo globo terreste,
o qual a personagem afirma estar doente; e o mundo real que é apresentado ao pai da garotinha no
terceiro quadro. Mafalda tem ciência de que o mundo (o real) está passando por problemas sérios,
afinal a garota lê jornais, assiste ao noticiário e ouve a rádio; e associa esses problemas às doenças.
Para Mafalda, o globo, por ser uma representação do mundo real, também teria em si representações
dos problemas do mundo, como se fosse um espelho; desse modo, se ela cuidasse do reflexo, logo,
o verdadeiro também estaria passando pelos seus cuidados e consequentemente melhoraria, um
claro exemplo de ação e reação.
A ironia apresenta-se pela inversão dos personagens no discurso, pois quem aparece
preocupado com a situação do mundo é Mafalda. Ora, para uma criança de seis anos brincar deveria
ser sua única preocupação, contudo, nossa personagem apresenta-se bastante interessada em cuidar
e ajudar o mundo a melhorar da situação na qual se encontra. É perceptível ainda que, mesmo tendo
47
esse olhar “maduro”, Mafalda carrega o espírito inocente da criança, e acredita que se deixar o
globo descansando isso fará com o mundo melhore.
O pai da menininha, ao deparar-se com essa situação, diverte-se, pois acredita que seja
apenas uma brincadeira e não encara os problemas do mundo com seriedade. É possível que ele
acredite que o mundo que mafalda fala não é o mundo que ele vive, um pensamento bastante
comum em mentes medíocres, as quais acreditam que os problemas mundiais estão em um patamar
inacessível no qual não podemos fazer nada para ajudar.
No entanto, ao sair de casa e deparar-se com uma criança, toda suja e mal cuidada, vendendo
jornais ao invés de estar na escola ou brincando, ele percebe que sim, o mundo está realmente
doente e precisa ser tratado com urgência. Percebemos, portanto, a sobreposição dos scripts,
apresentado por RASKIN (1985), a partir do termo “mundo”, no qual, no primeiro script, está
sendo representado por um objeto, e no segundo, pela sociedade; e o contexto discursivo comporta
a interação de ambos.
O humor se dá quando o pai de Mafalda toma consciência e percebe que a brincadeira da
filha não tem nada de inocente e reflete um estado alarmante da sociedade na qual eles se
encontram, fato que o faz perder o semblante feliz e adotar uma postura deprimida.mSegundo
POSSENTI (1998) o humor ocorre porque o leitor não se inclui no texto, ele não percebe que o
mundo retratado pela garotinha é o mesmo em que vive, em outras palavras, ele é apenas um
expectador. Caso o leitor perceba que o problema apresentado por Mafalda também existe na sua
cidade, no seu bairro, o discurso perde seu contexto humorístico.
No quarto quadro o leitor é levado a crer que o homem viu, durante o caminho até o
trabalho, muitas outras representações da “doença” do mundo e isso o deixou desanimado e
lamentoso. Percebe-se também que os demais colegas de trabalho também não se deram conta desse
problema até que o pai da garota chegou comentando. Isso leva o leitor a acreditar que todos, ao
saírem do trabalho, terão a mesma experiência que o pai de Mafalda, ao deparar-se
“conscientemente” dos infortúnios do mundo.
Tira 5e 6:
As seguintes tiras tratam do contexto escolar e infantil, apresentando uma crítica ao método
educacional, ressaltando que a forma como determinados assuntos são trabalhados não enriquecem
nem são aproveitáveis pelos alunos.
48
Figura 5 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
Figura 6 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
Nas duas tiras apresentadas Mafalda crítica as formas de construção frasal que lhe são
apresentadas no contexto estudantil. Na primeira tira, sua conversa com Susanita gira em torno de
uma atividade doméstica, é perceptível para o leitor que elas tendem a frizar as letras “m” e “s”,
uma vez que estas estão presentes na maioria das palavras e, embora pareça forçado criar um
diálogo baseado na aliteração, para elas, é bastante natural, sendo notável que ambas se
compreendem muito bem.
Contudo, no último quadrinho é exposto ao leitor que aquela conversa não era tão natural
assim, e que as garotinhas aprenderam aquelas frases na escola. Mafalda e Susanita estavam tendo
uma conversa considerada literária devido a utilização da aliteração que consiste na repetição de
fonemas idênticos ou parecidos no ínício de várias palavras na mesma linha ou verso. É um recurso
bastante utilizado na prosa poética e na poesia, a fim de obter um certo efeito estilístico e criar
sonoridade. Assim, as meninas acreditam que ao utilizar esse recurso poético elas estariam
igualando-se aos poetas, pois estariam no mesmo nível intelectual.
Além disso, por ser uma técnica aprendida na escola, as garotas tendem a crer que possuem
uma conversa mais culta e que alguém que não frequenta o eixo educacional não teria a capacidade
49
de criar um diálogo como o delas. No entanto, esse elogio é uma máscara para o verdadeiro
discurso: a crítica, e é nesse ponto que se manifesta a ironia.
Partindo da premissa de que a personagem sempre tende a criticar, percebemos que ao unir
duas partes do enunciado dela: “o bom de ir” e “ter conversas literárias”, surge o questionamento “o
que tem de bom em aprender a ter uma conversa que ninguém entende?”. Assim, Mafalda traz uma
crítica às práticas alfabetizadoras da escola que criam um discurso forçado, marcado pela repetição
à exaustão para fixar os conteúdos. Na fala das garotas fica claro que ela aprenderam o som das
letras “m” e “s” nas palavras através da aliteração, uma estratégia educacional muito comum no
modelo de ensino tradicional.
Outro ponto crucial que auxilia o leitor a compreender essa técnica de ensino é o formato
das letras nos primeiros balões. Comumente as tiras são escritas em letra bastão, mas no início dessa
narrativa elas estão em letra cursiva, o mesmo tipo de letra que as crianças são “treinadas” a usarem
na escola. Muitos materias didáticos trazem frases (que se relacionam com os conteúdos abordados)
para que os alunos copiem-nas diversas vezes em letra cursiva, eles usam esse método para
melhorar e/ou aprimorar a caligrafia dos estudantes. A partir, dessa observação é perceptível que as
meninas não criaram aquele diálogo, mas que foram induzidas a aprendê-lo.
Além disso, a crítica está presente também nos elementos não-verbais na tira, pois ao
examinarmos as expressões faciais das garotinhas nos primeiros quadros notamos um olhar vazio,
como se elas nem soubessem o que estavam falando, como se estivessem apenas repetindo algo que
fora tantas vezes ensaiado, como se, de alguma forma, tivessem passado por uma lavagem cerebral
e não dizem aquilo por si, mas por as terem feito dizer.
Já no último quadro, Mafalda se apresenta com os olhos arregalados (note o semicírculo em
volta do olho) dando a entender que ela está tentando “enxergar” a utilidade daquele discurso e o
semissorriso mostrando que a menina está se esforçando em acreditar que tudo aquilo é realmente
bom e valioso e se ela ainda não percebeu é porque não compreendeu direito os métodos de ensino.
O humor da tira aparece pela sobreposição de ideias, pois em um discurso explicitamente
otimista, Mafalda implicitamente aponta de forma sarcástica o quão irônico é ir a um lugar a fim de
aprender conisas úteis e retornar com uma bagagem lotada de inutilidades.
Na segunda tira a situação se repete e Mafalda nos é apresentada lendo um livro, o qual
possui um texto com uma estrutura semelhante a do diálogo da tira anterior. É perceptível, pela
expressão da garota, que ela não está empolgada com a leitura, pelo contrário, a mão no queixo, as
sobrancelhas esguidas, os olhos pequenos e que não demonstram vivacidade (uma peculiaridade do
50
espírito infantil), a boca pequena e em formado de meia-lua para baixo nos revela que se trata de
um texto considerado enfadonho.
No último quadro nos é revelado que Mafalda estava lendo um livro didático e através da
ironia ela critica não os escritores, mas o sistema de ensino. Quando a personagem expõe “autores
sacrifícados”/ “escrever coisas inteligentes”/ “ensinar a ler”, ela nos quer dizer que o sistema
boicota a criatividade dos escritores e, ao invés deles criarem textos que levem a reflexão e fruição,
limitam-se a escrever tolices e a servirem a um sistema falido e sem perspectiva. São autores que
abriram mão da sua liberdade criacional para cercar-se em uma redoma chamada livro didático.
Mafalda usa de eufemismo ao dizer “preferem nos ensinar a ler”, pois implicitamente há um
lamento pelos escritores que sucumbiram aos ditames e aceitaram resumir toda sua sabedoria em
livros alfabetizadores, elaborando estratégias inoperantes e distantes da realidade dos alfabetizados.
Eles são sacrificados porque tiveram de colocar sua criatividade e expressividade em gaiolas,
tornaram-se limitados, Mafalda realmente acredita que eles mereçam um monumento, uma
homenagem, porque se é preciso coragem para ser livre, é necessária ainda mais coragem para
engaiolar-se.
O humor é manifestado no final da frase do último balão quando a personagem diz
“preferem nos ensinar a escrever”. Ainda em consonância com a ironia, Mafalda apresenta um novo
conceito ao termo alfabetizar, como se isso não tivesse tanta importância, não merecesse o glamour
que o meio acadêmico oferta quando comparado a tudo o que os autores poderiam fazer (escrever)
se não tivessem de dedicado a isso.
Considerando que (de acordo com o que é apresentado pela tira) a criança tem saberes
limitados, uma vez que ainda está aprendendo a ler e a interagir conscientemente com o mundo a
sua volta, Mafalda menospreza quem se dedica a seres tão ínfimos ao invés de se autoexplorarem
com textos mais complexos para um público amadurecido. Em ambas as tiras, ela evidencia a
utilização de frases simples, sem contextualização e sem continuidade narrativa que são utilizadas
como objeto de ensino e aprendizagem, retratadas por meio do discurso direto e pela utilização de
palavras do mesmo campo semântico.
Assim, bem como nos explica WEEMS (2016), o humor acionado por Mafalda, em ambas
as tiras a partir do dito irônico, proporcionou dinamicidade ao texto, pois será necessário que o
leitor faça as devidas inferências, a partir dos elementos verbais e não-verbais (multimodais) a
respeito dos processos de ensino-aprendizagem e do universo infantil para compreender o
enunciado que está implícito.
51
Tira 7:
A útima tira trata do comportamento social revelando-nos uma crítica a certos hábitos
humanos que faz com que a garotinha compare a humanidade a moscas.
Figura 7 - martinsfontes: 10 anos com Mafalda. 2010
No primeiro quadro da tira a cima, a mãe de Mafalda está interessada em saber o que a filha
está fazendo, provavelmente devido a quietude que se encontrava na casa, uma vez que crianças
costumam ser bastante barulhentas e quando estão em silêncio é porque, possivelmente, estão
aprontando. Contudo, no segundo quadro, é apresentado ao leitor um balão referente à Mafalda, a
qual respondeu que estava apenas observando a “humanidade”. Quando ela nos é apresentada no
último quadro admirando algo à janela, percebemos que a garota não olha através da mesma, mas
sim as moscas que insistentemente batem no vidro buscando a liberdade.
Quando Mafalda, ironicamente, compara a humanidade às moscas, o leitor é impulsionado a
interpretar o discurso pelo modo no bona fine e a fazer inferências que o auxiliem a compreender
em que o comportamento do inseto se assemelha ao do ser humano e porque essa semelhança tornase irônica. O humor nesse discurso advem da descoberta da armadilha proposta pela garota,
expondo o comportamento de persistir no erro.
No caso das moscas, a busca pela liberdade faz com que elas continuem batendo contra o
vidro por pura inocência, uma vez que, enquanto uma minoria possui uma memória complexa e
privilegiada para a espécie, grande parte das moscas tem memórias que duram apenas alguns
segundos8. Esse é o gatilho que a personagem deseja acionar para o leitor, incitando-o a aplicar essa
lógica nos parâmetros sociais e políticos e inferir, a partir de conhecimentos científicos e biológicos
no mundo animal, que muitas pessoas cometem os mesmos erros porque têm memória curta e não
8
https://ocerebrodamosca.wordpress.com/2013/01/05/corpos-de-cogumelo-aprendizagem-e-memoria-em-insetos/
Acessado em: 02/07/2018.
52
buscam pela própria história o quanto as escolhas erradas podem prejudicá-lo, enquanto uma
minoria que tem uma memória privilégiada tenta lutar em prol do coletivo.
Contudo, o leitor só se regozija em tal ironia porque, segundo o conceito de BERGSON
(2004) tanto ele quanto a personagem não se sentem incluídos no termo “humanindade”, eles não
são como moscas que insistem no erro, em outras palavras, a luva não lhes calça as mãos, pois para
que haja comicidade ambos devem contemplar os jogos linguísticos sem estar ligados a eles como
vítimas, mas apenas como apreciadores.
Portanto, a partir das tiras apresentadas é possível perceber que a ironia pode apresentar-se
tanto pelo modo verbal ou pelo não-verbal isoladamente, como também pelo diálogo entre ambos –
multimodalidade. E em ambas situações tanto a palavra quanto a imagem apresentam-se carregadas
de outros discursos assegurando ao texto uma multiplicidade de sentidos.
Tanto a ironia quanto o humor decorrem de um processo de compreensão e expressão no
qual o leitor é cúmplice do enunciador a fim de incutir significado ao texto. Segundo BAKHTIN
(1990, p.113) “a palavra é uma espécie de ponte lançada entre mim e os outros. Se ela se apoia
sobre mim numa extremidade, na outra apoia-se sobre o meu interlocutor. A palavra é o território
comum do locutor e do interlocutor”. Dessa forma, o ironista sustenta-se no enunciatário esperando
que ele decodifique sua mensagem e encontre a armadilha.
O processo de decodificação do que está implícito e a assimilação da verdadeira mensagem
é, em outras palavras, um caça ao tesouro discursivo e, resgatar a ironia a partir das pistas
linguístico-discursivas é o ápice do processo interpretativo. Sabendo, portanto, que uma das
características da produção do humor no texto, segundo POSSENTI (2013), é o rebaixamento e que
este pode se dar no texto por diversos mecanismos, dentre eles a ironia, e esta, por sua vez tende a
rebaixar e/ou criticar de forma sutil, tornasse notável que o resultado da descoberta do dito irônico
resulta no humor discursivo. Se o discurso irônico não gerar comicidade, significa que a mensagem
implícita não foi decodificada, fazendo referência ao jogo de caça ao tesouro, significa que o baú
não foi encontrado, logo o enunciado perde a sua funcionalidade.
53
RESULTADOS E DISCUSSÕES
A partir dos estudos feitos durante a produção dessa pesquisa foi adquirido um novo olhar
para o papel da ironia no texto, bem como um maior entendimento sobre o que realmente significa
humor e como analisá-lo, não só no texto irônico, mas também no gênero tira. Através desse novo
senso interpretativo foi compreendido que as palavras inseridas num discurso humorístico são
marcadas por fatores sociolinguísticos, culturais e históricos, os quais caracterizam um texto como
risível para um grupo e não risível para outro.
A partir da existência desses fatores e a forma como eles se dispõem no texto é que podemos
caracterizá-lo como humorístico, esclarecendo, portanto, que humor não é rir, pois enquanto este
está relacionado ao texto, o riso faz parte de um conjunto de ações desenvolvidas e externalizadas
pelo subconsciente do interlocutor a partir das inferências que ele faz para descobrir a armadinha
discursiva. Segundo os autores pesquisados, a confusão entre humor e riso é o principal empecilho a
uma interpretação adequada de textos humorísticos e em especial a tirinha, isso porque quando
questionado o humor da tira em um contexto que não causou riso ao leitor, este tende a acreditar
que a tira não teve humor, que o texto “não tem graça”.
Esse tipo de gênero frequentemente utiliza-se de algum elemento linguístico que possua pelo
menos duas interpretações possíveis, uma óbvia (e falsa) e outra implícita (e dominante), é aqui que
entra a ironia, que extrapola a simples definição de figura de linguagem que aprendemos nas aulas
de gramática. O discurso irônico é constituído de informações tácitas e de ambiguidades, nele tudo
é importante e nenhuma palavra deve ser ignorada, em outras palavras, a ironia enfeitiça o discurso
e confunde os sentidos, exigindo, portanto, do interlocutor, conhecimentos extralinguísticos para
que o processo de comunicação se estabeleça com sucesso.
Por conseguinte, tais conhecimentos auxiliará o leitor a fazer operações epilinguísticas,
utilizando-se de conhecimentos sobre a língua, o comportamento linguístico que se espera de um
sujeito em determinada situação e o contexto em que se produziu o texto. Desse modo,
compreendeu-se que a ironia é um jogo discursivo proposto pelo enunciador, no qual ele acredita
que o interlocutor será capaz de matar a charada e descobrir o termo implícito, o qual será
despertado no texto pela quebra da expectativa discursiva resultando no humor.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
A ironia, no sincretismo verbo-visual, produz um sentido que extrapolar o suposto
significado pré-concebido da palavra, ela representa uma criticidade indireta no discurso, remetendo
ao leitor um outro significado. De acordo com BRAIT (1996) a ironia pode ser encarada como um
discurso que, através de determinados mecanismos linguístico-discursivos, oferece-se como um
paradoxo argumentativo, apresentando-nos um jogo linguístico duplo, no qual, de forma indireta e
implícita, instaura críticas e questionamentos, sendo papel do alocutário fazer as devidas
inferências, a partir do contexto sócio-histórico-cultural, para descobrir a duplicidade de sentidos no
enunciado.
A descoberta da crítica, por parte do enunciatário, que se manifesta pelo sublinhado jogo de
palavras, leva ao humor, sendo este o resultado da descoberta do inesperado no discurso. Sabe-se,
portanto, que o humor surge a partir da quebra da expectativa e pelo surgimento de um segundo
frame que se soprepõe ao primeiro, o qual é proposto ao leitor de forma direta. Esclarecendo que o
riso em nada se relaciona com os aspectos linguísticos e não é obrigatória a sua presença em um
enunciado para que esse possa ser considerado humorístico.
Assim, os resultados dessa pesquisa, a partir da análise das tirinhas de Mafalda, revelaram a
ironia como um mecanismo discursivo que brinca com os conhecimentos do leitor fazendo-o
também produtor do discurso, uma vez que ele precise inferir, a partir das sutilezas textuais, os
enunciados implícitos e sua funcionalidade. A pesquisa de caráter qualitativo auxiliou na clareza de
interpretação do discurso irônico, uma vez que a ironia costuma ser subestimada em sua definição e
análise. Percebeu-se que ironizar não é apenas dizer o contrário, mas sim usar “truques” discursivos
para esse dizer ter o efeito desejado, caso contrário a mensagem não atinge o seu objetivo.
Ao analisar as tirinhas foi percebido que os personagens utilizam da ironia ou para dizerem
aquilo que não acreditam ser, como no caso da terceira tira referindo-se à clareza de Filipe ao tentar
explicar o termo “no fundo da alma”, violando as máximas propostas por Grice, problematizando o
enunciado; ou utilizando da inferência, como nas tiras cinco e seis, na qual o leitor precisa conhecer
os procedimentos de ensino-aprendizagem, permitindo que o leitor perceba as pistas linguísticas
que levam a conclusões sobre os implícitos textuais; ou, ainda, empregam os atos de fala, como no
caso da primeira tira, onde a ironia se estabele a partir da leitura do conto infantil.
55
A partir das análises e das pesquisas esclareceu-se o que o significado do humor e em
especial do discurso humorístico, destacando que, ao contrário do que muitos podem acreditar, se
um texto é humorístico isso não, necessariamente, significa que ele provocará riso em quem o ler.
Em Mafalda a ironia mascara a crítica, e o humor ocorre por dois motivos: [1] descoberta da
armadinha disscursiva por parte do leitor, o que leva ao divertimento, pois ele não foi enganado
pelo discurso “inocente” ou pelo modo bona fine; [2] segundo POSSENTI (2013) há humor porque
as críticas são feitas por crianças, e a criança tem, por natureza, uma leveza discursiva, quebrando
portanto, a seriedade do tema e como, para FREUD (1969) toda seriedade tem uma pitada de
humor, uma vez ignorada a primeira, a outra se sobressai.
Percebeu-se, portanto, que uma pesquisa de cunho qualitativo a cerca desse tema, ironia e
humor, faz-se extremamente necessária, não apenas para desmistificar os conceitos equivocados
que são aplicados em ambos, mas também para despertar uma leitura crítica e avaliativa, na qual o
enunciatário não se contentará em apenas receber o enunciado, mas será instigado a interagir com as
palavras e com o jogo discursivo que elas proporcionam.
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http://www.mafalda.net/index.php/PT/a-historia visitado em: 10/04/2018