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RESENHAS Editor de seção: Milton Colonetti DOI: http://dx.doi.org/10.1590/2316-40186013 e-ISSN: 2316-4018 Recebido em 24 de junho de 2019. Aprovado em 21 de janeiro de 2020. Eduardo Reina – Cativeiro sem fim São Paulo: Alameda, 2019 Rodrigo Simon de Moraes* Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditadura militar no Brasil (Reina, 2019) não é um romance. Com títulos como “Giovani e Juracy”, “Lia Cecília” ou “Índios Marãiwatsédé”, os capítulos tampouco formam uma reunião de contos ou poesias. Produzido de maneira independente, Cativeiro sem fim é um relato jornalístico que revela um fato até hoje oficialmente negado pelo Estado brasileiro: o sequestro de menores por pessoas ligadas às Forças Armadas durante a Ditadura Militar. São conhecidas as aproximações ocorridas entre literatura e jornalismo no Brasil, em especial na década de 1970, na esteira da abertura política (Arrigucci Jr., 1979). Os chamados “romancesreportagem” tinham como intenção principal “desficcionalizar o texto literário e com isso influir, com contundência, no processo de revelação do real” (Santiago, 1982, p. 52), o que levou os escritores a se depararem com o dilema de fazer conviver no interior do texto o que Walter Benjamin chamou de tendências políticas e literárias. A esse respeito, afirma Benjamin (2012, p. 130): “a tendência de uma obra literária só pode ser correta do ponto de vista político quando for também correta do ponto de vista literário”. Mas Benjamin adverte para o tratamento dialético da questão que, segundo ele, “não pode de maneira alguma operar com essa coisa rígida e isolada: obra, romance, livro” (2012, p. 131). Para exemplificar, o autor alemão escolhe o caso de Serguei Tretiakov que, antes de lançar Os generais, atuou na criação de jornais murais e na direção do jornal do kolkhoz. A quem possa apontar que as tarefas de Tretiakov eram as de um jornalista, pouco tendo a ver com literatura, Benjamin diz tê-lo escolhido justamente para mostrar “como é vasto o horizonte a partir do qual temos que repensar a ideia de formas ou gêneros literários [...] se quisermos alcançar as formas de expressão adequadas às energias literárias do nosso tempo” (2012, p. 132). No Brasil, ao tomarmos como verdadeiras as muitas reflexões que identificam os atos de violência da história nacional como constitutivos da cultura brasileira (Ribeiro, 1999; Schollhammer, 2000; Ginzburg, 2012), talvez possamos olhar para Cativeiro sem fim da mesma maneira como Benjamin olhou para a renovação na imprensa soviética, ou seja, como instância decisiva: “Por isso qualquer análise do autor como produtor deve manter o passo com ela” (Benjamin, 2012, p. 134). Uma das reflexões sobre as características sanguinolentas de nossa formação histórica foi feita por Antonio Candido (1993) no artigo “Censura e violência”. No texto, Candido diz ser impossível avaliar a extensão do impacto que o cerceamento da liberdade de expressão dos meios de comunicação teve na mentalidade de toda uma geração: “Censura acompanhada de medidas coercitivas, que vão até a morte, como foi o caso de Vladimir Herzog” (Candido, 1993, p. 206). Pois é justamente o diretor do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, quem aponta perversa forma de censura que o relato de Reina consegue driblar ao trazer à luz os dados investigados: Apesar de ter tido uma das mais violentas e vigorosas ditaduras do continente, com milhares de mortos e desaparecidos, o Brasil tem em seus registros oficiais um único caso de criança sequestrada por motivos políticos durante o regime militar (Sottili, 2019, p. 8). O livro mostra que o número é muito maior que um único caso. Dos dezenove sequestros relatados, onze são ligados à guerrilha do Araguaia e aconteceram entre os anos de 1972 e 1974, durante as gestões dos generais-presidentes Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel. As vítimas eram filhos de militantes enviados à região ou de camponeses que aderiram ao * Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. orcid.org/0000-0002-5852-5796. E-mail: rodrigo.simon@hotmail.com estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 60, e6013, 2020. 1 Cecília Paiva Ximenes Rodrigues – Além da ruína –––––––––––– movimento. Houve ainda casos originados no Rio de Janeiro, Paraná e Pernambuco, além de cinco crianças indígenas levadas de uma aldeia no Mato Grosso. O livro mostra ainda que um dos objetivos do sistema de sequestros patrocinados pelos militares era a criação das crianças sob a ótica de uma ideologia contrária a dos pais, militantes que se opunham à ditadura militar. Ao menos seis adolescentes foram levados para quartéis, em uma tentativa de cooptação baseada em ações “psicossociais” semelhantes às adotadas em outras ditaduras de países da América do Sul. No prefácio, o também jornalista Caco Barcellos – autor do livro que em 1992 revelou as circunstâncias em que vítimas foram mortas por um grupamento de elite da Polícia Militar de São Paulo (Barcellos, 1992) – ressalta que, se em uma primeira leitura a narrativa de Cativeiro sem fim o impressionou pelo ineditismo das histórias, a releitura o levou à conexão entre os fatos narrados e o ano de 2018, em que os brasileiros travaram um “longo combate dialético de ódio e intolerância até eleger pelo voto um presidente [...] que prometeu varrer do mapa seus oponentes esquerdistas” (Barcellos, 2019, p. 11). O sequestro de crianças por pessoas ligadas às Forças Armadas durante a ditadura militar no Brasil e a intersecção entre literatura e jornalismo são questões trabalhadas por Eduardo Reina já faz algum tempo. Em 2003, o autor lançou No Gravador, livro de contos baseados em reportagens policiais; em 2016 saiu Depois da rua Tutóia, romance que conta a história de uma bebê roubada por militares de sua mãe, que deu à luz enquanto estava presa no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-Codi). Diante da gravidade dos fatos narrados, Reina acerta ao fazer de Cativeiro sem fim um relato jornalístico, potencializando assim a força de seu registro como documento. Referências ARRIGUCCI JR., David (1979). Jornal, realismo, alegoria: o romance brasileiro recente: In: ARRIGUCCI JR., David. Achados e perdidos: ensaios de crítica. São Paulo: Polis. p. 79-115. BARCELLOS, Caco (1992). Rota 66: a história da polícia que mata. Rio de Janeiro: Globo. BARCELLOS, Caco (2019). Prefácio. In: REINA, Eduardo. Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditatura militar no Brasil. São Paulo: Alameda. p. 11-15. BENJAMIN, Walter (2012). O autor como produtor. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Brasiliense. v. 1. p 129-146. (Obras Escolhidas). CANDIDO, Antonio (1993). Censura e violência. In: CANDIDO, Antonio. Recortes. São Paulo: Companhia das Letras. p. 204-207. GINZBURG, Jaime (2012). Crítica em tempos de violência. São Paulo: Editora da USP; Fapesp. REINA, Eduardo (2003). No gravador. São Paulo: R.G. Editores. REINA, Eduardo (2016). Depois da rua Tutoia. São Paulo: 11 Editora. REINA, Eduardo (2019). Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditatura militar no Brasil. São Paulo: Alameda. RIBEIRO, Renato Janine (1999). A dor e a injustiça. In: COSTA, Jurandir Freire. Razões públicas, emoções privadas. Rio de Janeiro: Rocco. p. 7-12. SANTIAGO, Silviano (1982). Vale quanto pesa. Rio de Janeiro: Paz e Terra. SCHOLLHAMMER, Karl Erik (2000). Os cenários urbanos da violência na literatura brasileira. In: PEREIRA, Carlos Alberto et al. Linguagens da violência. Rio de Janeiro: Rocco. p. 236-259. SOTTILI, Rogério (2019). Apresentação. In: REINA, Eduardo. Cativeiro sem fim: as histórias dos bebês, crianças e adolescentes sequestrados pela ditatura militar no Brasil. São Paulo: Alameda. p. 7-10. 2 estud. lit. bras. contemp., Brasília, n. 60, e6013, 2020.