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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS DEPARTAMENTO DE DIREITO RENATA SOUZA QUIRINO ADOÇÃO HOMOAFETIVA: UM ESTUDO SOBRE O RECONHECIMENTO JURÍDICO DOS DIREITOS LGBTQS E DA HOMOAFETIVIDADE À LUZ DA TEORIA QUEER SÃO CRISTÓVÃO 2020 RENATA SOUZA QUIRINO ADOÇÃO HOMOAFETIVA: Um Estudo Sobre o Reconhecimento Jurídico dos Direitos LGBTQs e da Homoafetividade à Luz da Teoria Queer Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao departamento de direito da Universidade Federal de Sergipe, sob orientação da Prof. Dra. Karyna Batista Sposato. SÃO CRISTÓVÃO-SE 2020 Renata Souza Quirino Adoção Homoafetiva: Um Estudo Sobre o Reconhecimento Jurídico dos Direitos LGBTQs e da Homoafetividade à Luz da Teoria Queer Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe, sob orientação da Prof. Dra. Karyna Batista Sposato. São Cristóvão, de de . BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. ª Karyna Batista Sposato Universidade Federal de Sergipe (UFS) Prof. Dr. ª Miriam Coutinho De Faria Alves Universidade Federal de Sergipe (UFS) M. ª Kalyne Alves Andrade Santos Universidade Federal de Sergipe (UFS) “We, Jah people, can make it work. Come together and make it work” (Bob Marley) “O que me impede de sorrir, é tudo que já eu perdi. Eu fechei os olhos e pedi para quando abrir a dor não estar aqui mais. Sei que não é fácil assim, mas vou aprender no fim. Minhas mãos se unem para que tirem do meu peito o que é de ruim. E vou dizendo tudo vai ficar bem e as minhas lágrimas vão secar. Tudo vai ficar bem e essas feridas vão se curar. Se recebo dor, te devolvo amor e quanto mais dor recebo, mais percebo que eu sou indestrutível.” (Pabllo Vittar) RESUMO A feição da família sofreu profundas mudanças ao longo dos anos. Considerando essas alterações, a Constituição Federal de 1988 ampliou o conceito de entidade familiar, além de consagrar um texto mais protetivo às minorias e à dignidade da pessoa humana. A partir disto, diversas decisões ampliaram ainda mais o espectro de proteção estatal, tornando possível o reconhecimento de mais uma espécie de família: a homoafetiva. Desta maneira, considerando que estas entidades familiares foram equiparadas às entidades familiares heteroafetivas, surge também a possibilidade jurídica da Adoção Homoafetiva. Ocorre que, tanto o reconhecimento das uniões homoafetivas como entidade familiar, quanto a Adoção Homoafetiva e os demais direitos LGBTQs, são frutos da atividade jurisdicional. Desta forma, o presente trabalho visa salientar o baixo reconhecimento jurídico dos Direitos LGBTQs e da homoafetividade, em virtude da heteronormatividade presente no Direito brasileiro. Palavras-chaves: Adoção Homoafetiva, Direitos LGBTQs, Direitos Homoafetivos, Heteronormatividade, Teoria Queer. ABSTRACT The family's features have undergone profound changes over the years. Considering these changes, the Federal Constitution of 1988 expanded the concept of a family entity, in addition to establishing a more protective text for minorities and the dignity of the human person. Based on this, several decisions further expanded the spectrum of state protection, making it possible to recognize yet another species of family: the homoaffective. Thus, considering that these family entities have been equated with heteroaffective family entities, the legal possibility of Homoaffective Adoption arises. It happens that both the recognition of same-sex unions as a family entity and Homoaffective Adoption, are the result of jurisdictional activity. Therefore, the present work aims to highlight the low legal recognition of LGBTQ and Homoaffective Rights due to the heteronormativity present in brazilian law. Keywords: Homoaffective Adoption, Heteronormativity, Queer Theory. LGBTQ’s Rights, Homoaffective Rights, SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ................................................................................................................................. 8 2. HETERONORMATIVIDADE E DIREITO ................................................................................ 11 2.1 SEXUALIDADES E POLÍTICAS (PÓS) IDENTITÁRIAS ....................................................................... 12 2.2 HETERONORMATIVIDADE À LUZ DA TEORIA QUEER .................................................................. 15 2.3 HETERONORMATIVIDADE E DIREITO ........................................................................................... 20 3. O RECONHECIMENTO JURÍDICO DOS DIREITOS LGBTQS E DA HOMOAFETIVIDADE ...................................................................................................................... 27 3.1 A CRIMINALIZAÇÃO DA HOMOFOBIA........................................................................................... 28 3.2 MUDANÇA DE NOME DAS PESSOAS TRANSEXUAIS E TRAVESTIS NOS REGISTROS PÚBLICOS ... 30 3.3 UNIÃO ESTÁVEL E CASAMENTO HOMOAFETIVOS ....................................................................... 33 3.4. REPRODUÇÃO HETERÓLOGA E MULTIPARENTALIDADE ........................................................... 38 4. ADOÇÃO HOMOAFETIVA ......................................................................................................... 41 4.1 CONCEITUANDO AFETIVIDADES ................................................................................................... 41 4.1.1 SOCIOAFETIVIDADE ...................................................................................................................... 45 4.1.2 FILIAÇÃO E PARENTALIDADES SOCIOAFETIVAS........................................................................... 46 4.1.3 TÉCNICAS DE REPRODUÇÃO ASSISTIDA ....................................................................................... 47 4.1.4 MULTIPARENTALIDADE OU PLURIPARENTALIDADE .................................................................... 48 4.2. AS NOVAS FAMÍLIAS E O DIREITO DAS FAMÍLIAS ....................................................................... 49 4.3 HOMOPARENTALIDADE ................................................................................................................. 54 4.4 ADOÇÃO HOMOAFETIVA ............................................................................................................... 59 4.4.1 AS PECULIARIDADES DAS PARENTALIDADES HOMOAFETIVAS ..................................................... 63 4.4.2. O RECURSO ESPECIAL Nº 1.281.093/SP ....................................................................................... 64 5. CONCLUSÃO ................................................................................................................................. 69 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 71 8 1. Introdução Dentro da sigla LGBTQ cabe muitos sujeitos, que ao decorrer dos séculos lutaram por direitos que lhes eram negados. No Brasil, no dia 05 de maio de 2011, esta comunidade conquistou o direito de se casar e de se unir estavelmente, através do julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277. Em razão disto, as entidades familiares homoafetivas conquistaram um direito que há muito já era consolidado entre as famílias heteroafetivas: o direito de adotar conjuntamente. Através deste julgado, nota-se a precariedade da situação das pessoas não-heterossexuais no ordenamento jurídico brasileiro, visto que, assim como a Adoção Homoafetiva, os demais direitos concedidos até o momento são fruto de decisões judiciais e não de normas editadas através do devido processo legislativo. Portanto, o presente trabalho tem como objetivo geral analisar o instituto da Adoção Homoafetiva e, a partir da decisão contida no Recurso Especial nº 1.281.093/SP, analisar no caso concreto tudo que fora previamente discutido sobre o tema. Desta maneira, o estudo propõe como problema a seguinte indagação: Os Direitos Homoafetivos e LGBTQs são reconhecidos juridicamente? Em resposta a esta indagação, surge a seguinte hipótese: a heteronormatividade imbuída na sociedade reflete nas decisões políticas do Estado Brasileiro, de forma que o grau de reconhecimento jurídico da Homoafetividade e dos Direitos LGBTQs se mostra ínfimo, enfatizado pela parca redação de normas que abarquem os direitos desta comunidade. Para isto, realizou-se pesquisa qualitativa e bibliográfica, baseada na doutrina, nos artigos científicos, na legislação e na jurisprudência. Quanto ao método, fora utilizado o indutivo, que parte de fenômenos particulares para leis gerais. Neste sentido, será observado o tema da Adoção Homoafetiva, um fenômeno particular, para entender a situação jurídica das pessoas LGBTQs e homoafetivas dentro do Direito Brasileiro, a lei geral. O pilar teórico utilizado foi o da Teoria Queer, encabeçada pela filósofa americana Judith Butler e pelos autores brasileiros Guacira Lopes Louro e Richard Miskolci. A partir destes teóricos, são discutidos os conceitos de gênero, sexualidade, políticas identitárias e heteronormatividade. Este último se mostra de maior importância para o presente trabalho, visto que pretende-se salientar que a resistência em conceder reconhecimento jurídico aos direitos das pessoas LGBTQs e às famílias homoafetivas acontece em virtude da matriz 9 heteronormativa na qual a sociedade está inserida. Para além disto, o trabalho também se fundamentou na doutrina de Maria Berenice Dias, expoente do Direito das Famílias. A relevância do tema se justifica tanto pela necessidade de produção de conteúdo sobre a Adoção Homoafetiva, em virtude da escassa quantidade de produções acadêmicas a respeito (RODRIGUES; TOSCANO, 2017, p. 492), tanto pela importância de pautar urgência à garantia dos direitos humanos LGBTQs e homoafetivos, imprescindíveis para a dignidade da pessoa humana desta comunidade. O primeiro capítulo tem por tema “Heteronormatividade e Direito”, onde serão demarcados os atores sociais referidos na sigla LGBTQs e os que compõe os relacionamentos homoafetivos. A partir dele, serão debatidos, à luz da Teoria Queer, conceitos como gênero, sexualidade e políticas (pós) identitárias, que são essenciais para a compreensão da reprodução de opressões das pessoas LGBTQs e das famílias homoafetivas pelo ordenamento jurídico brasileiro. É neste capítulo que será observado que, em virtude da falta de normas regulamentando direitos básicos desta comunidade, os sujeitos pertencentes a ela são obrigados a demandar judicialmente para que seus direitos sejam garantidos. O segundo capítulo considera o papel exercido pelo poder judiciário em virtude da ausência de ação dos demais poderes na proteção dos direitos humanos LGBTQs. Para isto, serão analisadas as principais decisões acerca dos direitos homoafetivos e das pessoas LGBTQs, quais sejam: a) A Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, que trata sobre a criminalização da Homofobia e da Transfobia; b) A Ação Direta Inconstitucionalidade 4.275 e a Resolução nº 73 do Conselho Nacional de Justiça, sobre a adequação do nome e gênero das pessoas transexuais e travestis; c) A Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277 e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132, que trata sobre o casamento e união homoafetiva; d) Ações Cíveis sobre o reconhecimento da multiparentalidade e sobre as práticas de reprodução assistidas heterólogas. Assim, a finalidade deste capítulo é salientar o baixo reconhecimento jurídico desta comunidade enquanto sujeitos de direitos no ordenamento jurídico brasileiro, como também destacar os principais argumentos utilizados para embasar estas decisões. A importância desta análise se revela pelo fato de que estas foram as decisões que criaram parâmetros para um nova hermenêutica constitucional inclusiva às pessoas desviantes do padrão heteronormativo imposto. Servindo, desta maneira, como fundamento de muitas outras ações nos mais diversos 10 âmbitos jurisdicionais envolvendo à comunidade LGBTQ. Destacando que, em relação ao tema deste trabalho, foi a ADI 4.277 que tornou a Adoção uma possibilidade jurídica aos casais homoafetivos. O terceiro e último capítulo trata sobre a Adoção Homoafetiva e inicia-se o abordando conceitos sobre as afetividades, homoafetividade, socioafetividade e também sobre as parentalidades, filiações e as técnicas de reprodução assistida, que são imprescindíveis para entender as famílias homoafetivas. Neste sentido, debate-se também, as novas famílias e o Direito das Famílias, fazendo um breve panorama acerca das entidades familiares ao longo da história para entender de que maneira as entidades familiares homoafetivas alteraram o perfil familiar e, consequentemente alargou a noção de Direito de Família, transformando-o em um direito mais inclusivo conhecido como Direito das Famílias. 11 2. Heteronormatividade e Direito Nos dois últimos séculos, a sexualidade tornou-se objeto privilegiado do olhar de cientistas, religiosos, psiquiatras, antropólogos, educadores, passando a se constituir, efetivamente, numa ‘questão’. Desde então, ela vem sendo descrita, compreendida, explicada, regulada, saneada, educada, normatizada, a partir das mais diversas perspectivas. – Guacira Louro.1 O corpo não é um “ser”, mas uma fronteira variável, uma superfície cuja permeabilidade é politicamente regulada dentro de um campo cultural da hierarquia do gênero e da heterossexualidade compulsória. – Judith Butler.2 Antes de adentrar ao debate sobre a Heteronormatividade e o Direito, é necessário demarcar os atores sociais que se apresentam à margem desta norma: as pessoas LGBTQs. A citada sigla representa seis grupos, quais sejam, Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transsexuais, Travestis e as pessoas Queer. Apesar de parecer uma lista extensa, tal sigla não abarca com totalidade as pessoas que não se identificam dentro dos padrões heterossexuais, nem representa de maneira global as necessidades de cada integrante, visto que cada grupo possui suas peculiaridades de pautas e reinvindicações. O autor Fredson Oliveira Carneiro (2016, p. 4), ressalta que a sigla LGBT goza de existência formal em instâncias da sociedade civil e do controle social como alteridades históricas e cita três exemplos, dentre os quais o Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais, o CNCD/LGBT, criado pela Medida Provisória nº 2.216-37 de 2001 e a Comissão Intersetorial de Saúde da População de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transsexuais – CISPLGBTT, do Conselho Nacional de Saúde, criado pela Resolução CNS nº 410, de 2009. 1 LOURO, Guacira Lopes. Teoria queer-uma política pós-identitária para a educação. Revista Estudos Feministas, v. 9, n. 2, p. 541, 2001. 2 BUTLER, Judith P. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 10. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. Tradução, Renato Aguiar. 12 2.1 Sexualidades e políticas (pós) identitárias O debate suscitado neste capítulo sobre sexualidade, categorias identitárias e, principalmente, políticas pós-identitárias, é recente, visto que, segundo Marjorie Garber, a sexualidade não-heterossexual no mundo ocidental, até o século XIX, era considerada uma prática e não uma identidade (1997, p. 13). Neste sentido, observa-se que a palavra “homossexual” só passou a ser incluída ao dicionário Oxford em 1897 (GARBER, 1997). Assim, a partir do conceito de homossexuais, emergiu o de heterossexuais, visto que, [...] significados são organizados por meio de diferenças em uma dinâmica de presença e ausência, ou seja, o que parece estar fora de um sistema já está dentro dele e o que parece natural é histórico. Na perspectiva de Derrida, a heterossexualidade precisa da homossexualidade para sua própria definição, de forma que um homem homofóbico pode se definir apenas em oposição àquilo que ele não é: um homem gay. (MISKOLCI, 2009, p. 4) A homossexualidade e o sujeito homossexual foram invenções datadas do século XIX (LOURO, 2001). Antes disso, as pessoas que se envolviam em relacionamentos nãoheterossexuais eram taxadas como praticantes de sodomia. Prática esta que era reprimida e combatida por ser pecaminosa pelos mais diversos campos de poder. Ao decorrer dos séculos, a sodomia passa a definir um tipo de sujeito: o homossexual (ARAUJO, 2018). Desde então, o discurso da igreja, da psiquiatria, da sexologia e do direito construíram o dispositivo da sexualidade (RAGO; VEIGA-NETO, 2015). Cumpre observar que, a percepção da homossexualidade enquanto atributo do indivíduo fez surgir uma tendência à categorização identitária da sexualidade dos sujeitos e, consequentemente, as políticas identitárias. Assim, em meados do século XX, os homossexuais avocaram pra si a função de definir-se enquanto sujeitos de direito e demandar reconhecimento enquanto tal na forma de movimentos políticos organizados. Contribuindo, desta forma, com a corrente teórica que defendia a política identitária como forma de compreensão das sexualidades dissidentes (MISKOLCI, 2014). É neste contexto que nascem as Paradas do Orgulho Gay (Gay Pride) nos Estados Unidos, que se espalharam para os demais países, possuindo edições até os dias atuais. Essas políticas identitárias, entretanto, partiam de pressupostos excludentes, mesmo entre os que eram oprimidos, pois eram majoritariamente composta por homens gays, brancos, 13 de classe média, que defendiam políticas que só favorecia aos seus pares, mas que eram incapazes de representar os interesses de todas as minorias que se encontravam à margem junto com eles. De maneira que, segundo Guacira Louro, Para muitos (especialmente para os grupos negros, latinos e jovens), as campanhas políticas estavam marcadas pelos valores brancos e de classe média e adotavam, sem questionar, ideais convencionais, como o relacionamento comprometido e monogâmico; para algumas lésbicas, o movimento repetia o privilegiamento masculino evidente na sociedade mais ampla, o que fazia com que suas reivindicações e experiências continuassem secundárias face às dos homens gays; para bissexuais, sadomasoquistas e trans-sexuais essa política de identidade era excludente e mantinha sua condição marginalizada. (2001, p. 544) Desde então, com o avanço do estudo de gênero e sexualidade e, principalmente a emergência da Teoria Queer e da tomada das ruas pelos corpos desviantes, algumas correntes que estudam sexualidade passaram a adotar uma posição política pós-identitária. Desta maneira, estas correntes buscam salientar as armadilhas e paradoxos das políticas identitárias, visto que a dicotomia das identidades heterossexual/LGBQTs serve, também, para justificar a própria opressão aos desviantes da heterossexualidade (BUTLER, 2016). Além disto, chamam a atenção para a necessidade de considerar os atravessamentos de outros fatores, como raça e classe, na organização política dos indivíduos e dos movimentos por eles compostos. Assim, considerando que os sujeitos os quais se identificam na sigla LGBTQ não são homogêneos, possuindo peculiaridades e, portanto, impossibilitando que suas próprias reinvindicações sejam acondicionadas dentro de uma categoria identitária unitária, a política identitária vem sendo, aos poucos, superada por algumas correntes que pensam sobre a sexualidade, visto que os movimentos de liberação gays e lésbicos, uma vez que seu objetivo é a obtenção da igualdade de direitos e que se utilizam, para isso, de concepções fixas de identidade sexual, contribuem para a normalização e a integração dos gays e das lésbicas na cultura homossexual dominante, favorecendo politicas familiares, tais como a reinvindicação ao direito ao casamento, a adoção e a transmissão do patrimônio. (PRECIADO, 2011, p. 7) Destaque-se que, apesar de se enfatizar críticas às concepções fixas de identidade e às políticas identitárias, que favorecem as políticas familiares, isto não representa uma contradição 14 em relação ao tema central do presente trabalho sobre Adoção Homoafetiva, além de outros temas abordados ao longo do texto, que se encontram dentro destas políticas familiares. Tal argumento implica em dizer que os direitos da comunidade não-heteronormativa não devem ser reduzidos aos direitos familiares. As políticas familiares são importantes e representam uma grande conquista paras os casais homoafetivos, entretanto, é necessário pontuar que nem sempre estas políticas alcançam todas as pessoas LGBTQs, de modo que algumas letras da sigla continuam às margens. Portanto, o que percebemos no contexto pós-identitário do século XXI são as multiplicidades de identidade de gênero, sexualidade e desejos sexuais, categorias que não possuem correlação necessária dentro desta ótica (BUTLER, 2016). A sigla LGBTQ, anteriormente conhecida de maneira ainda mais limitada por GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes), se mostra cada vez menos apta a representar a diversidade. Assim, A política das multidões queer emerge de uma posição crítica a respeito dos efeitos normalizantes e disciplinares de toda formação identitária, de uma desontologizacao do sujeito da política das identidades: não há uma base natural (“mulher, “gay” etc.) que possa legitimar a ação política. [...] Ela se opõe às políticas paritárias derivadas de uma noção biológica da “mulher” ou da “diferença sexual”. Opõe-se às políticas republicanas universalistas que concedem o “reconhecimento” e “impõem” a “integração” das “diferenças” no seio da República. Não existe diferença sexual, mas uma multidão de diferenças, uma transversalidade de relações de poder, uma diversidade de potências de vidas (PRECIADO, 2011, p. 8). Para alguns pensadores da sexualidade, como Marjorie Garber (1997), é possível afirmar que existem tantas sexualidades quanto o número de pessoas na terra, de forma que cada uma possui a sua própria. A Teoria Queer, em uma das suas diversas abordagens, propõe que a identidade seja reconhecida com o “significado permanentemente aberto, fluído e passível de contestação, abordagem que visa encorajar o surgimento de diferenças e a construção de uma cultura onde a diversidade é acolhida” (SILVA; OLIVEIRA, 2016a). Podemos tomar como exemplo da fluidez que impossibilita a representação de todos os atores dentro da sigla LGBTQ a rede social “Facebook”, que em 2014 permitiu seus usuários escolherem entre 52 tipos de identidades sexuais3. 3 CARRERA, Isabella. As 52 opções de identidade sexual no Facebook. 2014. Revista Época. Disponível em: <https://epoca.globo.com/vida/noticia/2014/03/52-opcoes-de-bidentidade-sexual-no-facebookb.html>. Acesso em: 21 jan. 2020. 15 Conclui-se, portanto, que a sexualidade é um conceito com significados múltiplos, tanto quanto existem pessoas e singularidades. Neste sentido, as políticas identitárias ao tentarem conceituar e categorizar as identidades, “seja para defender a integração dos/as homossexuais ou para reivindicar para si uma espécie ou uma comunidade em separado” utilizam-se de discursos que “[...] não escapam da referência à heterossexualidade como norma” (LOURO, 2001) e, portanto, demarcam limites e conformam corpos num modelo excludente. Por outro lado, se mostra utópico querer exterminar as categorias identitárias (homem/mulher, hetero/LGBTQS) na cultura da nossa sociedade, visto que a sexualidade, segundo Focault, é um sistema histórico de discurso e poder (BUTLER, 2016, p. 167). Logo, os detentores deste poder, que se encontram dentro do padrão hegemônico da heterossexualidade, farão o necessário para manter o status quo. E qual seria, portanto, a medida política adequada para construir uma sociedade livre de preconceito e de padrões excludentes? A Teoria Queer não oferece respostas a este questionamento. Pelo contrário, ela provoca as mentes pensantes ao debate e, nas palavras de Guacira Lopes, a Teoria Queer Antes de pretender ter a resposta apaziguadora ou a solução que encerra os conflitos, quer discutir (e desmantelar) a lógica que construiu esse regime, a lógica que justifica a dissimulação, que mantém e fixa as posições de legitimidade e ilegitimidade. [...] Em vez de colocar o conhecimento (certo) como resposta ou solução, a teoria e a pedagogia queer [...] colocam o conhecimento como uma questão interminável. (LOURO, 2001, p. 522) Assim, da mesma maneira, não será apontado neste item caminhos a serem trilhados para o fim ou manutenção das categorias identitárias, que podem atuar como uma fonte de opressão à parcela desviante da norma imposta. A única é proposta pensar criticamente os conceitos de gênero, sexualidade, políticas identitárias e heteronormatividade, sendo este discutido a seguir. 2.2 Heteronormatividade à luz da Teoria Queer A Heteronormatividade é um conjunto de comportamentos e condutas alinhados à sexualidade heterossexual que são esperados de todos os seres humanos. Segundo Richard Miskolci, “A heteronormatividade expressa as expectativas, as demandas e as obrigações 16 sociais que derivam do pressuposto da heterossexualidade como natural e, portanto, fundamento da sociedade” (MISKOLCI, 2009, apud CHAMBERS, 2003; COHEN, 2005, p.24). O mesmo autor, afirma, ainda, que na perspectiva Queer, foco do presente trabalho, “a heterossexualidade não é natural e seu domínio é compreendido como tendo bases culturais e políticas, portanto, sendo baseadas em uma forma sofisticada de hegemonia social.” (MISKOLCI, 2014, p. 17). Afirmar que vivemos em uma sociedade heteronormativa significa dizer que, ao nascer, o órgão anatômico que o bebê possui irá definir não só o seu gênero, mas também irá impor sua sexualidade e seu desejo sexual conforme a norma vigente4. De forma que, se um bebê nascer com uma vagina, ele será registrado como uma criança do gênero feminino e, pela lógica tida como natural numa sociedade heteronormativa, essa criança será identificada como heterossexual e seus desejos sexuais deverão ser direcionados ao gênero oposto. Entretanto, conforme amplamente estudado pela psicanálise, isto passa longe de ser uma fórmula natural. Pelo contrário, chegou-se à conclusão de que Cada criança contem todas as possibilidades sexuais disponíveis a expressão humana. Mas, em qualquer sociedade, apenas algumas destas possibilidades serão expressas, enquanto que outras serão contidas. Quando a criança deixa a fase edipiana, sua libido e identidade de gênero tem sido organizadas em conformidade com as regras da cultura que a está domesticando. (RUBIN, 1993, p. 16) Assim, após crescer, esses comportamentos serão cobrados, regulados, reprimidos e impostos. Os corpos serão domesticados para atender ao padrão heteronormativo que divide a sociedade em papeis de gênero. Estes papeis de gênero, de maneira genérica, ditam que de um lado estão os homens, que não choram, que trabalham, que sustentam a família, que não podem abraçar outros homens sem ter sua masculinidade questionada. De outro, estão as mulheres, que choram e são sensíveis, que não sustentam a família, que cuidam das crianças, dos idosos e da comida, que podem demostrar afeto por outras mulheres sem nenhum questionamento acerca da sua sexualidade. Ocorre, entretanto, que esses papeis de gênero estão longe de ser uma realidade que simplesmente acontece. Emoções não são exclusivas de um gênero, elas são expressões de 4 Tal afirmação não contempla as crianças intersexuais, que nascem com características anatômicas de ambos os sexos (DIAS, 2016, p. 54). Assim como as pessoas LGBTQs, as pessoas intersexuais representam uma transgressão ao modelo heteronormativo pelo simples fato de existirem. 17 sentimentos inerentes aos seres humanos, que independem do órgão anatômico possuído. Assim como o trabalho, o cuidado com a família e o ato de chorar independem do gênero. Resta explicitado que a fórmula dos papeis de gênero não é um fator natural, mas algo a ser repetido, ensinado e controlado, sendo a heteronormatividade uma lei que, além de inflexível, se mostra praticamente impossível de cumprir (BUTLER, 2016). Desta maneira, o gênero e os papéis de gênero provindos dele não são uma expressão das diferenças naturais, mas, sim, uma supressão das similaridades naturais, que requer nos homens a supressão de características normalizadas como femininas e nas mulheres a supressão das características naturalizadas como masculinas (RUBIN, 1993). Isso acontece porque a heteronormatividade é um conjunto de prescrições que fundamenta processos sociais de regulação e controle, até mesmo aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo oposto. Assim, ela não se refere apenas aos sujeitos legítimos e normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo histórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar todos para serem heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente coerente, superior e “natural” da heterossexualidade (MISKOLCI, 2009, p. 8) Portanto, o padrão da heterossexualidade, ao mesmo tempo que prescreve regras para as condutas daqueles que se identificam como heterossexuais, exclui qualquer um que se desvie dessas normas de comportamentos. Todavia, ressalte-se que tal padrão é a todo momento questionado pelos que pensam sobre gênero, sexualidade e direitos humanos das pessoas nãoheterossexuais. Nesta linha, Gayle Rubin afirma que “a organização do sexo e do gênero já teve, uma vez, funções além de si mesma: ela organizava a sociedade” (1993, p. 20), entretanto, atualmente, ela serve apenas para reproduzir a si mesma. De forma que os tipos de sexualidades estabelecidos no passado representam uma anacronia que ainda domina “nossas vidas sexuais, nossas ideias sobre homens e mulheres e os meios de educar nossas crianças. Mas eles carecem de carga funcional que outrora possuíam” (RUBIN, 1993, p. 20). Dentro deste panorama, a Teoria Queer busca questionar o caráter natural da heterossexualidade e contestar a hegemonia desta sexualidade que impõe a lei heteronormativa a todos os corpos, excluindo os que se recusam a mutilar sua essência para caber na forma única da heterossexualidade. Neste sentido, a teórica do pensamento Queer, Judith Butler afirma que 18 O mecanismo cultural regulamentado de transformação do masculino e feminino biológico em gêneros distintos e hierarquizados, é, a um só tempo, comandando pelas instituições culturais (a família, as formas residuais da troca de mulheres, a heterossexualidade obrigatória) e inculcado pelas leis que estruturam e impulsionam o desenvolvimento psíquico individual. (BUTLER, 2016, p. 132) Tal afirmação complementa o citado argumento do antropólogo Gayle Rubin de que a organização de sexo e gênero baseada no modelo heteronormativo serve apenas para reproduzir a si mesma, sem função na atualidade, visto que “não há razão para dividir os corpos humanos em sexos femininos e masculinos, exceto que uma tal divisão é adequada às necessidades econômicas da heterossexualidade, emprestando um lustro naturalista a sua instituição” (BUTLER, 2016, p. 196). Em consonância com este pensamento, Dhyego Câmara, afirma que a nossa sociedade é assentada em uma conjuntura que eleva a heterossexualidade à condição de superioridade, de forma que, “abaixo e distante da qual restam sob o manto de anormalidade todo tipo de conduta tida como infringente à regra. Trata-se dos efeitos da matriz heterossexual” (ARAUJO, 2018, p.651 apud BUTLER, 2016). A heteronormatividade é, portanto, um regime político que impõe aos corpos o desejo sexual pelo sexo oposto, assim como condutas apropriadas para homens e para as mulheres. De maneira que todos que desviem destas condutas, mesmo que nutram desejo pelo gênero oposto, serão marginalizados, excluídos e oprimidos por esta norma que rege a sociedade. Assim, não basta meramente ser heterossexual, mas comportar-se segundo os padrões definidores da heterossexualidade, Nesse sentido, a sexualidade se configura como regulador normativo de condutas porque opera na posição de filtro de inteligibilidade dos corpos, ao mesmo tempo em que possibilita uma taxonomia sexual das subjetividades, todas forjadas segundo uma norma capaz de constranger os corpos em sua direção sob pena de se constituírem como perversos sexuais, como anormais. Tal norma, nesse caso em específico, é a heterossexualidade, e sua ordem, heteronormativa. (ARAUJO, 2018, p. 659) Cumpre-se ressaltar que a Heteronormatividade não é um fenômeno que oprime apenas aos que fogem da regra heterossexual e encontram nos pares do mesmo gênero o amor e o desejo sexual, implica, também, em dizer que é uma norma que oprime as mulheres, por colocar os homens na posição de superioridade no esquema heterossexual homem/mulher, visto que, 19 segundo Guacira Lopes Louro em seu artigo “Teoria Queer – uma politica pós-identitária para educação”, Conforme Derrida, a lógica ocidental opera, tradicionalmente, através de binarismos: este é um pensamento que elege e fixa como fundante ou como central uma idéia, uma entidade ou um sujeito, determinando, a partir desse lugar, a posição do ‘outro’, o seu oposto subordinado. O termo inicial é compreendido sempre como superior, enquanto que o outro é o seu derivado, inferior. (LOURO, 2001, p. 548). Assim, considerando a posição inferior que o gênero feminino possui dentro da heteronormatividade, Gayle Rubin discorre sobre o papel objetificado da mulher dentro dos sistemas de parentesco no seu artigo sobre o Tráfico de Mulheres (1993), ao qual Judith Butler se embasa em Problemas de Gênero (2016, p. 77) para afirmar que as mulheres são objeto de troca que consolida a relação entre homens de diferentes famílias, não possuindo, portanto, uma identidade, apenas refletindo a identidade e os desejos masculinos. Destaque-se que estas afirmações estão localizadas em um contexto demarcado por classe e raça, visto que não se trata de uma verdade universal, existente em todos os conceitos históricos de família, mas, sim, da realidade europeia, branca, da classe detentora de poder econômico. Ademais, uma das conclusões do antropólogo é que, se a troca das mulheres é um princípio fundamental do parentesco, “a subordinação das mulheres pode ser vista como um produto das relações através das quais sexo e gênero são organizados e produzidos” de forma que, “a divisão sexual do trabalho esta implicada nos dois aspectos do gênero – ele cria o homem e a mulher, e cria os heterossexuais” (RUBIN, 1993), assim, o mesmo sistema que oprime as mulheres, oprime a todos por conta da divisão rígida de papeis de gênero que devem ser assumidos perante a sociedade. Em continuidade ao seu argumento, Gayle Rubin questiona o argumento biológico que muitos aderem na tentativa de justificar as divisões de gênero e a característica “natural” da heterossexualidade afirmando que não haveria necessidade do processo histórico de assegurar as uniões heterossexuais por meio de uma interdependência financeira (1993), tendo em vista que dentro dos papeis de gênero no contexto europeu, coube ao homem o dever de sustentar a família. No mesmo sentido, afirma-se que “se a heterossexualidade fosse efetivamente natural e dada não haveria necessidade de empreendimentos e esforços continuados para garanti-la” (RAGO; VEIGA-NETO, 2015). 20 Conclui-se, portanto, que a heteronormatividade, longe de ser um dado natural, é uma lei criada e reproduzida pelas sociedades, em que os homens são colocados no topo da hierarquia, junto com a heterossexualidade e os papeis de gênero advindos desta norma. E qual seria, então, a solução para a desconstrução desta sociedade opressora e excludente às mulheres e às pessoas LGBTQs desviantes da norma? Assim como no item passado, não seria possível chegar a uma resposta embasada na Teoria Queer que apresentasse um meio para atingir o fim da heteronormatividade. Entretanto, Gayle Rubin propõe uma revolução feminista que mudasse as relações de parentesco, em que pais e mães cuidassem dos filhos, que pautasse o fim da heterossexualidade compulsória e a supremacia dos homens sobre as mulheres e, continua seu argumento afirmando que, a vida sexual humana será sempre sujeita a convenção e a intervenção humana. Ela nunca será completamente “natural”, nem que seja pelo fato de que nossa espécie é social, cultural e articulada. [...] A evolução cultura nos fornece a oportunidade de tomar o controle dos meios de sexualidade, reprodução e socialização, e de tomar decisões conscientes para libertar a vida sexual humana das relações arcaicas que a deformam. Finalmente, uma revolução feminista profunda libertaria mais do que as mulheres. Ela libertaria formas de expressão sexual, e libertaria a personalidade humana da camisa de força do gênero. (RUBIN, 1993, p. 20) Feitas estas primeiras considerações à luz da Teoria Queer, é possível adentrar ao debate que trata especificamente sobre Heteronormatividade e Direito, imprescindível para discutir o tema central deste trabalho. 2.3 Heteronormatividade e Direito Diante de tudo que fora apresentado neste capítulo, é possível afirmar que, assim como a sociedade e a cultura são fundadas em um regime político-social heteronormativo, o direito também o é. Na concepção marxista, o direito é desenvolvido e fundamentado em bases teóricas para assegurar a dominação de uma classe sobre outra, para garantir o que estrutura o processo de produção e reprodução da vida social burguesa (PEREIRA, 2019). Tal mecanismo é semelhante ao da heteronormatividade, que busca garantir a superioridade e dominação de uma 21 sexualidade sobre outra. Desta forma, o capitalismo, o direito e a heteronormatividade são sistemas que estão intrinsecamente ligados. Em suma, a finalidade do direito, dentro da concepção marxista, é proteger e garantir a propriedade privada capitalista, que só pode ser perpetuada ao seu proprietário através dos laços de parentesco que, conforme explicitado anteriormente, depende da troca e subordinação das mulheres dentro de um espectro heterossexual e da matriz heteronormativa. Assim, conforme explica Francisco Pereira (2019, p. 86), A concepção jurídica tem sido, ao longo da história, um dos repositórios mais importantes e ativos na construção de uma concepção de mundo burguesa, na defesa das instituições, na manutenção da ordem, na organização, ordenação e sedimentação das relações sociais dominantes. Torna-se claro, portanto, que o direito se pauta em uma lógica heteronormativa, em que os direitos LGBTQs estão “sempre implicados nessa relação de transgressão da ordem, seja ela ética, política, moral e, também, jurídica” (ARAUJO, 2018, p. 644). Esta lógica é corroborada pela parca menção de direitos desta população na redação de códigos e leis vigentes, além do processo legislativo, que tem espelhado a prevalência dos setores mais conservadores da elite política do país. O processo legislativo, berço das leis e códigos, é comandado historicamente pela parcela pertencente às categorias hegemônicas das sociedades: homens, brancos, ricos, vindos das áreas de maior concentração de renda. Portanto, as legislações podem ser consideradas a perpetuação das opressões sociais, como a heteronormatividade e LGBTQfobia, aos que pertencem à parcela da população considerada subalterna. De maneira exemplificativa, nestas legislações estão previstas expressamente apenas uniões entre homens e mulheres (art. 226 da Constituição Federal e art. 1.514 do Código Civil). A troca de nome, que para as pessoas transexuais, travestis, não-binárias e queers significa a garantia do direito à identidade e à dignidade da pessoa humana, é prevista apenas em caso de prenomes vexatórios ou gramaticalmente incorretos. Portanto, Dhyego Câmara afirma que numa sociedade pautada pela heteronormatividade “quanto menor a distância entre os corpos tido como perversos sexuais e a norma, mais normais eles serão considerados, e, nesse sentido, maiores condições de acesso aos direitos lhe serão apresentadas” (ARAUJO, 2018, p. 653). Frise-se que autor pontuou que, mesmo dentro das minorias das pessoas desviantes, ainda há os que mais se aproximam da norma. Tal afirmação deve ser entendida dentro de um 22 panorama interseccional, em que raça, gênero e classe estão constantemente atravessados, implicando em diferentes tratamentos a depender do grupo em que o individuo se encaixe. Isto implica dizer que, não se pode tirar de vista que uma pessoa não-heteronormativa sofrerá pela sua sexualidade e/ou identidade de gênero, da mesma forma que será concomitantemente oprimida ou protegida pela sua classe e pela sua raça (CRENSHAW, 2004). Tome-se como exemplo um homem branco, gay, que possui uma condição financeira elevada e uma pessoa travesti, negra, que necessita prostituir seu corpo para garantir sua subsistência. Ambos são oprimidos pelo sistema heteronormativo, entretanto, a figura do homem gay, que não sofre com o racismo e o preconceito de classe é mais aceita e, de certa forma, tolerada pela sociedade, possuindo, inclusive, decisões jurídicas que representam conquistas históricas que validam seu modo de vida. Todavia, as pessoas travestis são ignoradas pelas instâncias de poder, com baixo acesso à prestação jurisdicional, intoleradas pela sociedade, relegadas à uma posição de vulnerabilidade extrema, salientada pelo Brasil ser o país que lidera o ranking de assassinatos de transsexuais e travestis no mundo, segundo dados internacionais da ONG Transgender Europe (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020). Por estes motivos, Dhyego Câmara afirma que a efetividade dos direitos e garantias considerados fundamentais pelo ordenamento jurídico brasileiro (igualdade, liberdade, privacidade e o princípio de não-discriminação), cuja fundamentação se radica na dignidade da pessoa humana, está condicionada ao tipo de pessoa que se apresenta diante de tal direito. (ARAUJO, 2018, p. 647) Ocorre que, conforme já mencionado nos itens anteriores, principalmente a partir dos anos 70, a pessoas LGBTQs e as minorias em geral, empregaram esforços para participar e compor as esferas políticas de poder, de forma que torna-se claro o porquê de as casas legislativas se tornarem verdadeiras trincheiras quando se trata de direitos humanos LGBTQs. De um lado, há forças contra-hegemônicas, desviantes da ordem e, de outro, há forças hegemônicas reacionárias que aplicam esforços diretos para barrar leis que sejam de alguma maneira protetivas à população desviante da heterossexualidade. Podemos citar o momento histórico legislativo abordado por Fredson Oliveira Carneiro, no qual Marcos Feliciano, assumiu a Comissão de Direitos Humanos e Minorias (CDHM) da Câmara dos Deputados em 2013, desenrolando-se em paralelo a uma série de projetos e tentativas de barrar e oprimir a população LGBTQs e outras minorias. Ressalte-se que Feliciano foi eleito deputado pelo Partido Social Cristão de São Paulo, é empresário e pastor de igreja 23 ligada à Assembleia de Deus e compõe a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), cujos objetivos expressos em seu estatuto é influenciar o processo legislativo utilizando-se dos “propósitos de Deus e conforme Sua Palavra” (CARNEIRO, 2016, p. 105). Durante a presidência da comissão pelo pastor, foram pautados projetos como O Projeto de Decreto legislativo, conhecido como “Cura Gay”, de autoria do deputado João Campos, que pretendia suspender os efeitos da Resolução nº 001/1999 do Conselho Federal de Psicologia, que impede os psicólogos de tratar a homossexualidade como doença a ser curada [...]; o Projeto de Lei que previa restrição em cultos religiosos, de Washington Reias, PMDB/RJ, que permitia às igrejas a expulsão de pessoas de seus cultos e desobrigava as igrejas de celebrarem casamentos homoafetivos; a proposta de plebiscito para decisão quanto ao reconhecimento da união civil entre pessoas do mesmo sexo; o projeto de decreto legislativo para sustar efeitos da Resolução nº 175 do CNJ, que obrigou cartórios de todo o país a registrar casamentos homoafetivos, em cumprimento à decisão do STF, ambos projetos de André Zacharow; bem como o PL nº 6583/2013 (Estatuto da Família), de Anderson Ferreira, PR/PE, que, em explícita afronta ao STF, trazia a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, por meio de casamento ou união estável, ou comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes (monoparental). Esse projeto foi acompanhado de enquete no site da Câmara, que questionava a concordância ou discordância com essa definição de família. (CARNEIRO, 2016, p. 120) A mobilização dos congressistas para aprovar leis se mostra menos perversa do que a mobilização para sustar efeitos de decisões que favorecem a população desviante da norma heterossexual e de gênero. Diversas esferas do Estado, conforme apontado acima, empreenderam uma espécie de bloqueio institucional para que agendas ligadas aos direitos LGBTQs e das minorias não fossem aprovadas, de forma que este grupo se sentiu coagido a judicializar suas vidas diante da indiferença e hostilidade às suas pautas (ARAUJO, 2018). Coube, então, ao judiciário agir como guardião da Constituição e, de fato, garantir às pessoas LGBTQs o acesso a direitos. A partir deste fenômeno, se torna translúcido que a maior parte dos institutos do Direito não inserem indivíduos homossexuais no rol de beneficiados e, quando inserem, é pela jurisprudência e, muitas vezes, heteronormativizando-os. Destarte, há uma homofobia institucionalizada nas instituições jurídicas, em decorrência da própria matriz heteronormativa que permeia Direito. (VICENTE; RIBEIRO, 2012, p. 8) 24 A população LGBTQs conquistou através de decisões, como as Ações Declaratória de Inconstitucionalidades do STF e as Resoluções e Provimentos do CNJ, direitos que deveriam ser garantidos a todos, como direito ao nome, ao casamento e à união estável, à adoção e registro de crianças por casais homoafetivos e, em recente decisão, um novo tipo penal que criminalizou a homofobia através de uma interpretação extensiva à lei de racismo. Foi necessária uma luta árdua e histórica para que isso ocorresse. De modo colateral, as vidas dos que desviam da norma e dos que lutam por direitos humanos universais foram perdidas neste processo, cabendo, inclusive, resgatar a memória da deputada Marielle Franco, que foi assassinada por ameaçar a ordem heteronormativa capitalista excludente. Marielle Franco, mulher negra, bissexual, foi a quinta candidata a vereadora mais votada nas eleições municipais de 2016 do Rio de Janeiro, sendo eleita com 46.502 votos, na sua primeira disputa eleitoral. No dia 14 de março de 2018, a vereadora foi assassinada junto com seu motorista, Anderson Gomes, por tiros direcionados ao carro em que estavam. Na denúncia, foi dito que era incontestável que Marielle foi sumariamente executada em razão da atuação política nas causas que defendia.5 A vereadora havia assumido a relatoria da comissão que acompanhava a intervenção federal no Rio de Janeiro. Tal papel que significava ela investigaria todo o processo de intervenção instituído pela Presidência da República, o qual fora desempenhado com esmero, denunciando grupos de extermínio e agentes violadores dos direitos humanos. Talvez este seja o possível motivo para que sua vida tenha sido ceifada.6 Durante seu mandato, Marielle também presidiu a Comissão de Defesa da Mulher e havia proposto projetos de lei voltados à defesa de direitos de minorias e a assistência social. Entre eles estavam a criação de espaço de acolhimento de crianças durante a noite, enquanto seus pais estudam ou trabalham, uma campanha permanente de conscientização sobre assédio e violência sexual, um estudo periódico de estatísticas sobre mulher atendidas por serviços 5 BRASIL, BBC News. As mais novas dúvidas em torno da investigação do assassinato de Marielle. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50517116>. Acesso em: 31 jan. 2020. 6 GOMES, José Clayton Murilo Cavalcanti. Quem matou Marielle atiçou um formigueiro. 2018. Disponível em: <http://www.justificando.com/2018/10/18/quem-matou-marielle-aticou-um-formigueiro/>. Acesso em: 31 jan. 2020. 25 públicos da cidade, a oferta de assistência técnica gratuita em habitação para famílias de baixa renda e um dia de combate à LGBTfobia.7 Até a conclusão deste trabalho, o mesmo tratamento que recebe as pautas LGBTQs no congresso foi dado às investigações sobre quem matou a vereadora, restando apenas inconclusões. Marielle Franco somou-se às estatísticas de mortes LGBTQs apenas pela sua conduta combativa e protetiva das minorias. Assim como ela, existiram muitos que perderam suas vidas só pelo fato de sua existência transgredir a norma. Por conta disto, a oposição das alas conservadoras às conquistas judiciais das minorias se mostra tão perversa, pois essas pequenas vitórias foram conquistadas através da luta e do sangue da população LGBTQ. Cabe ressaltar que, assim como o congresso que se tornou uma trincheira e as legislações representam o reflexo de um embate travado entre os defensores das minorias e os que querem manter o status quo, essa disputa de poder também existe dentro do judiciário. Razão pela qual, Câmara afirma que Não obstante a legitimidade das decisões judiciais e o desafio inarredável do papel contramajoritário do judiciário em um Estado Democrático de Direito, não existe qualquer garantia de que seu posicionamento se perpetuará no tempo de maneira condizente com o respeito à diversidade, às pautas progressistas e à proteção de indivíduos marginalizados, sobretudo quando lhe são apresentadas em juízo demandas LGBTI, as quais têm o condão de carregar para o interior do campo jurídico o peso da carga moral que recai sobre esses sujeitos.(ARAUJO, 2018, p. 646) As decisões que asseguram os direitos das minorias pelos tribunais superiores, dentro de um ordenamento jurídico pautado em um direito positivista como o brasileiro, se mostram um mecanismo de defesa precário, que pode a qualquer momento ser superado, sendo aplicado entendimentos diversos aos que aparentavam estar consolidados, cambiando conforme a composição de forças do órgão julgador. A heteronormatividade do ordenamento brasileiro e da sociedade que o cria impede que as pessoas desviantes dessa norma possuam plena garantia de direitos. De maneira dupla, essas decisões são ameaçadas não só por uma mudança de entendimento ou cambio de forças, como 7 BRASIL, BBC News. As mais novas dúvidas em torno da investigação do assassinato de Marielle. 2019. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-50517116>. Acesso em: 31 jan. 2020. 26 também pelos ataques diretos dos membros das casas legislativas que buscam de maneira institucional excluir os que se encontram à margem da proteção do Estado. Desta forma, concluímos que a matriz heteronormativa se expressa no direito pela ínfima redação de textos normativos que incluam o direito da população desviante ou LGBTQ. Fazendo com que exista uma omissão normativa quando esse grupo se encontra como destinatário da proteção jurídica. Ela também se expressa pelos embates de forças no processo legislativo que, por reflexo de sua composição majoritária, acaba sendo berço de produções embasadas na negação ou retrocesso de direitos, funcionando como uma espécie de bloqueio institucional contra os direitos dos que não se encaixam na lei heteronormativa. Assim, estudando as recentes decisões dentro do panorama nacional, as cortes superiores se insurgem como protetoras da norma Constitucional e dos direitos humanos universais que, embora não óbvio para o citado grupo hegemônico, abarca incontestavelmente o direito das pessoas LGBTQs. Tornando-se, desta forma, agentes das maiores conquistas da comunidade desviante da matriz heteronormativa. Por fim, cumpre ressaltar que, da mesma forma que um entendimento favorável foi emplacado nestas decisões, um novo entendimento pode vir a ser aplicado nas próximas causas, pois o processo decisório é mais dinâmico e menos rígido que o processo de criação de leis e emendas. Sendo possível concluir que não se mostra valido relegar apenas aos tribunais o poder de decidir sobre direitos humanos inerentes às pessoas LGBTQs, considerando a precariedade deste meio, conforme explicitado anteriormente. Suscitado debates essenciais para a melhor compreensão do tema central do presente trabalho, passamos para o próximo capítulo que, em continuidade ao que fora afirmado neste, abordará as principais decisões judiciais concernentes à população LGBTQ. 27 3. O Reconhecimento Jurídico dos Direitos LGBTQs e da Homoafetividade Quando um indivíduo ou um grupo de indivíduos é mantido numa situação de inferioridade, ele é de fato inferior, mas é sobre o alcance da palavra ser que precisamos entendernos. A má-fé consiste em dar-lhe um valor substancial quando tem o sentido dinâmico hegeliano: ser é ter-se tornado, é ter sido tal qual se manifesta.[...] isto é, sua situação oferece-lhes possibilidades menores: o problema consiste em saber se esse estado de coisas deve se perpetuar. – Simone de Beauvoir.8 O capítulo anterior concluiu que a garantia de direitos da comunidade LGBTQ tem se dado por via das demandas judiciárias em virtude da heteronormatividade vigente nas instâncias que possuem o poder de criar e aprovar as leis. Desta forma, de maneira precária, o judiciário vem possibilitando o acesso às garantias fundamentais aos que antes eram excluídos da proteção jurídica. Assim, “é nesse ambiente de intensa judicialização das relações sociais que o STF demostraria uma postura ativista, suprindo lacunas ou ocupando espaços que ate então figuravam no âmbito de atribuições dos demais poderes” (FERRAZ et al., 2013, p. 38). Algumas destas decisões serão analisadas neste capítulo para salientar não só o baixo reconhecimento jurídico desta comunidade enquanto sujeito de direitos no ordenamento jurídico brasileiro, como também para destacar os principais argumentos utilizados para embasar estas decisões, que refletem, inclusive, na questão da Adoção Homoafetiva, tema central desta monografia. Neste sentido, serão abordadas a ADO 26, que criminalizou a homofobia, a ADI 4.275 e a resolução nº 73 do CNJ, que permitiu as pessoas trans e travestis a modificação registral para adequação ao nome e identidade de gênero auto percebidos, além da ADI 4.277 e ADPF nº132, que reconheceram as uniões e casamentos homoafetivos e, por fim, as decisões sobre parentalidades: homoparentalidades, multi e pluriparentalidades. 8 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. Tradução Sérgio Milliet. p. 21. 28 3.1 A Criminalização da Homofobia Em votação histórica, 8 dos 11 ministros do STF, em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO 26), votaram a favor da criminalização da Homofobia e Transfobia. A corte suprema decidiu pela interpretação conforme à Constituição, em face dos artigos 1º, III, 3º, I e IV; 5º, XLI, XLII e § 1º da CF, à Lei de Racismo (L. nº 7.716/89), sendo aplicado seus tipos penais integralmente às condutas homofóbicas e transfóbicas, até que seja editada a lei penal específica pelo Congresso Nacional. Na conclusão do seu voto, o ministro relator Celso de Mello julgou a ação parcialmente procedente nos seguintes termos: 1) DECLARAR, nos termos do § 2o, do artigo 103 da Constituição Federal, a inconstitucionalidade por omissão do CONGRESSO NACIONAL, por ausência de edição de lei penal incriminadora que torne efetiva a previsão constitucional do inciso XLI do artigo 5o da Constituição Federal, caracterizando- se, consequentemente, o estado de mora inconstitucional e determinando que seja cientificado para a colmatação do estado de mora constitucional. 2) VOTAR, para conceder interpretação conforme à Constituição, em face dos artigos 1o, III, 3o, I e IV; 5o, XLI, XLII e §1o, da Constituição Federal, à Lei no 7.716/89, no sentido da integral aplicação de seus tipos penais às condutas homofóbicas e transfóbicas, até que seja editada a lei penal específica pelo Congresso Nacional. (ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, Tribunal Pleno, DJe de 01/07/2019). A peça inicial, proposta Partido Popular Socialista, defende que a homofobia e a transfobia são espécies do gênero racismo, visto que neste conceito se insere toda ideologia que pregue a superioridade de um grupo em relação a outro. Assim, considerando que a homofobia e a transfobia são a crença que as pessoas não-heterossexuais e as pessoas trans são inferiores às pessoas heterossexuais e cisgênero9, estas condutas estariam inseridas no conceito de racismo. Neste viés, o plenário do STF entendeu que: O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, 9 Pessoas cisgênero são aquelas em que o órgão anatômico de nascença corresponde ao gênero culturalmente imposto pela sociedade para este órgão (homens nascem com pênis, mulheres nascem com vagina). Sendo as pessoas Trans as que se identificam com gênero distinto ao designado para seus órgãos anatômicos de nascença. 29 enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole históricocultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito [...] (STF - ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJe de 01/07/2019). Os autores da ação afirmaram, ainda, que a homofobia e a transfobia são discriminações atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais. Desta forma, mesmo que não enquadradas ao conceito de racismo, subsidiariamente, se enquadravam no mandamento constitucional do art. 5º, XLI, da CF, que dispõe que “a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais”. Sendo, assim, necessária a produção legislativa de lei que proteja a comunidade LGBTQ destas condutas, diante do quadro alarmante de violência e assassinatos das pessoas desta comunidade no país, pelo simples fato de não atenderem ao padrão heteronormativo. Destaque-se mais uma vez que o Brasil lidera o ranking de assassinatos de transexuais e travestis no mundo, segundo dados internacionais da ONG Transgender Europe (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2020). Em respostas aos argumentos trazidos, o Senado afirmou que não existia no texto constitucional mandamento expresso de criminalização da homofobia e transfobia, sendo esta, portanto, uma escolha legislativa, de forma que o princípio da separação dos poderes deveria ser respeitado pelo Supremo. Entendimento este que recebeu apoio em termos similares da COBIM – Convenção das Igrejas Evangélicas Meonitas, da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida, da Associação Nacional de Juristas evangélicos e da AGU. Diante disto, foi possível observar que os princípios da dignidade da pessoa humana, das liberdades e direitos fundamentais foram postos de lado em nome do princípio da separação dos poderes. De maneira que o ministro Alexandre de Moraes em seu voto destacou que, Em que pese a excelência dos diversos posicionamentos, na presente hipótese, flagrante a insuficiência protetiva aos direitos e liberdades fundamentais contra qualquer tipo de discriminação homofóbica e transfóbica. (ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJe de 01/07/2019). 30 Os argumentos sustentados demonstram, de maneira indireta, o descaso frente a realidade das pessoas LGBTQs no Brasil, sendo o princípio da separação dos poderes valorado com maior importância do que o da dignidade da pessoa humana e o próprio direito à vida. Assim, a partir desta decisão, o STF mais uma vez assumiu a posição de vanguarda, visando assegurar a cidadania plena desta comunidade frente ao conservadorismo e à heteronormatividade excludente das demais instâncias de poder. Observe-se que a decisão do STF considerou o padrão de proteção às minorias através de leis penais ou de leis que prevêem tipos penais, como a do Feminicídio, o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Estatuto das Pessoas com Deficiência. De igual forma ocorreu para efetivar a proteção constitucional aos consumidores e colmatar a exigência do inciso XXXII do artigo 5º (“o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor”). Ao editar o Código de Defesa do Consumidor, o Congresso Nacional entendeu que a plena defesa do consumidor, exigida constitucionalmente, somente estaria satisfatoriamente regulamentada com a previsão de medidas administrativas, civis e tipos penais específicos. (ADO 26, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, DJe de 01/07/2019). Argumentos abolicionistas penais a parte, a decisão foi de grande importância para a causa LGBTQ, pois trouxe à tona os debates sobre a homofobia e a transfobia para as instâncias institucionais de poder, valorando estas condutas como negativas, mesmo que de maneira simbólica. É de se considerar que o movimento legislativo e judiciário de proteção às minorias se deu através das edições de leis penais ou de leis que prevêem tipos penais em seu texto. Assim, entendimento contrário ao que fora adotado na ADO 26 poderia representar mais um reflexo do sistema heteronormativo e LGBTQfóbico em que vivemos. 3.2 Mudança de nome das pessoas Transexuais e Travestis nos Registros Públicos No dia 01 de março de 2018 foi julgada procedente a ADI 4.275, que decidiu dar interpretação conforme a Constituição e o Pacto de São José da Costa Rica ao art. 58 da Lei 6.015/73, reconhecendo às pessoas transgênero, que desejarem, o direito à substituição de prenome e gênero diretamente no registro civil, independentemente da cirurgia de 31 transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes. A decisão se baseou nas seguintes premissas: Primeira: O direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero. Segunda: A identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la. Terceira: A pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental. (STF – ADI 4275 DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, DJe 07/03/2019) Para dar eficácia à decisão, o CNJ regulamentou na resolução nº 73/2018 os trâmites do processo de troca de nome das pessoas transexuais e travestis, visto que tanto para o grupo favorecido pelas decisões, tanto para os cartórios, o procedimento ainda era confuso. Desta forma, no art. 2º da mencionada resolução é disposto que toda pessoa maior de 18 anos completos que esteja habilitada à prática de todos os atos da vida civil “poderá requerer ao ofício do RCPN a alteração e a averbação do prenome e do gênero, a fim de adequá-los à identidade autopercebida”. De maneira bastante burocrática, o art. 6º da resolução nº 73/2018 do CNJ cita os documentos necessários, quais sejam: I – certidão de nascimento atualizada; II – certidão de casamento atualizada, se for o caso; III – cópia do registro geral de identidade (RG); IV – cópia da identificação civil nacional (ICN), se for o caso; V – cópia do passaporte brasileiro, se for o caso; VI – cópia do cadastro de pessoa física (CPF) no Ministério da Fazenda; VII – cópia do título de eleitor; IX – cópia de carteira de identidade social, se for o caso; X – comprovante de endereço; XI – certidão do distribuidor cível do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XII – certidão do distribuidor criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XIII – certidão de execução criminal do local de residência dos últimos cinco anos (estadual/federal); XIV – certidão dos tabelionatos de protestos do local de residência dos últimos cinco anos; XV – certidão da Justiça Eleitoral do local de residência dos últimos cinco anos; 32 XVI – certidão da Justiça do Trabalho do local de residência dos últimos cinco anos; XVII – certidão da Justiça Militar, se for o caso. Além destas exigências, há notícias de cartórios que pediram documentações além das citadas na resolução e adotam procedimentos diferentes do que foram previstos pelo CNJ, o que dificulta ainda mais o processo. Também houve relatos de cartórios que se recusaram a fazer o procedimento ou alegaram desconhecimento da ADI e da Resolução nº 73. Neste sentido, a Articulação Justiça e Direitos Humanos alega que, Segundo a presidente da União Libertária de Travestis e Mulheres Transexuais (ULTRA), Melissa Massayury, o coletivo já recebeu diversas reclamações de pessoas que encontraram dificuldades na retificação em cartório. “Infelizmente, nem todos os cartórios do Brasil estão seguindo as orientações do Provimento do CNJ […] Alguns cartórios nem têm conhecimento sobre o provimento que atende as demandas das pessoas trans. Os cartórios só começam, de fato, a atuar quando uma pessoa trans chega até eles. (JUSDH, 2018) Para auxiliar nessas dificuldades, a Associação Nacional de Transexuais e Travestis (ANTRA) e o Instituto Prios criaram o projeto Eu Existo. Através deste projeto, elaboraram uma cartilha de orientação que compila os documentos e procedimentos necessários para retificação do nome (GOMES, 2019). Nesta cartilha10 são dadas instruções para denunciar aos órgãos responsáveis por fiscalizar os cartórios, como as corregedorias dos Tribunais de Justiça, Defensoria Pública e o Conselho Nacional de Justiça, os cartórios que se negarem ou agirem contrário ao previsto na resolução, além de outros meios de reclamações através do site da ANTRA ou do Projeto Eu Existo.11 Em Sergipe, foi editado o provimento nº 07/2018 pela Desembargadora Iolanda Santos Guimaraes, que dispôs sobre alterações na Consolidação Normativa Notarial e Registral (provimento nº 23/2008), em observância à ADI 4.275 do STF e, desta forma, regulamentou o procedimento dos cartórios sergipanos quanto ao tema. Em virtude destas decisões e provimentos, a Casamor, associação filantrópica que acolhe pessoas LGBTQs em situações de 10 ANTRA. Cartilha Alteração Nome e Gênero. 2018. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/11/cartilha-alteracao-nome-e-genero2.pdf. Acesso em: 02 mar. 2020. 11 A relação dos telefones de todas as defensorias públicas do Brasil pode ser acessada em: http://www.cnj.jus.br/poder-judiciario/defensoria-publica. A relação dos telefones de todas as corregedorias dos tribunais de justiça pode ser acessada em: http://cnj.jus.br/poder-judiciario/corregedorias-estaduais. Denúncias e reclamações também podem ser feitas ao Conselho Nacional de Justiça: corregedoria@cnj.jus.br. Site da ANTRA pode ser acessado em: https://antrabrasil.org/. Email do projeto Eu Existo: euexisto@prios.org.br. 33 vulnerabilidade, idealizada pela militante transfeminista Linda Brasil, realizou diversos mutirões para orientar e ajudar as pessoas Trans e Travestis no processo de adequação do nome e gênero.12 Por fim, observe-se que na Argentina foi aprovada a Lei nº 26.743, que declara a diversidade sexual e de gênero como direito individual e “traz a visibilidade para as cirurgias de transgenitalização e demais modificações corporais” assim como “descontrói preconceitos existentes sobre a temática” (SILVA; OLIVEIRA, 2016b). Inspirados neste modelo, os deputados Jean Wylls (PSOL) e Érika Kokay (PT) propuseram o Projeto de Lei João W. Nery (Pl. 5002/2013), em homenagem ao primeiro homem transexual brasileiro a ter realizado cirurgia de adequação de gênero, servindo como marco na luta da população trans (SILVA; OLIVEIRA, 2016b)13. Entretanto, ao contrário da Argentina que aprovou o projeto com 55 votos, o Projeto de Lei brasileiro foi deturpado, sendo afirmado pelos parlamentares conservadores que ele visava impor às crianças a “ideologia de gênero” (CARNEIRO, 2016, p. 181). Em virtude do Projeto de Lei 5002/2013 não haver sido aprovado até o momento, a ADI 4.275 e a Resolução nº 73 do CNJ se mostram de grande importância para comunidade LGBTQ, visto que a auto identificação e o direito personalíssimo ao nome são imprescindíveis para a garantia dos direitos humanos e da dignidade desta comunidade. Apesar de ser uma via precária de obtenção de direitos, que ainda apresenta inúmeras dificuldades e resistências, já representa um avanço importante para a garantia de direitos básicos das pessoas transexuais e travestis. 3.3 União Estável e Casamento Homoafetivos Como será visto, desde antes do século XX, a população LGBTQ provocou grandes mudanças na feição da família brasileira. Entretanto, apenas no século XXI podemos visualizar seus reflexos no ordenamento jurídico brasileiro e no Direito de Família, que se tornou o Direito das Famílias. Um destes reflexos foi o reconhecimento do casamento e da união estável 12 INFONET. Casamor faz mutirão de retificação de nome e gênero das pessoas trans. 2018. Disponível em: https://infonet.com.br/noticias/cidade/casamor-faz-mutirao-de-retificacao-de-nome-e-genero-das-pessoas-trans/. Acesso em: 02 mar. 2020. 13 A lei João W Nery (PL 5002/2013), também conhecida como Lei de Identidade de Gênero, propõe que toda pessoa tem direito ao reconhecimento de sua identidade de gênero, ao livre desenvolvimento de sua pessoa conforme sua identidade de gênero e a ser tratada de acordo (art. 1º). Além disto, a lei define o que seria “identidade de gênero” e demais procedimentos em torno da questão. 34 homoafetiva enquanto entidade familiar, que foi significativo em virtude dos efeitos derivados desta decisão. A partir da equiparação da entidade familiar homoafetiva à heteroafetiva na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4.277, possibilitou-se àqueles casais, além de direitos antes exclusivos aos pares heterossexuais, como os patrimoniais e sucessórios, os direitos de parentalidade e filiação, como adoção homoafetiva e a reprodução assistida. Neste sentido, o Conselho Nacional de Justiça, através do Provimento nº 52, em 2016, uniformizou o modelo de certidão de nascimento para que constasse apenas ascendência, não mais havendo distinção de gênero (pai e mãe). Para além destas importantes mudanças, a decisão também serviu como parâmetro para um nova hermenêutica constitucional inclusiva às pessoas desviantes do padrão heteronormativo imposto, sendo encontrada como fundamento de muitas outras ações nos mais diversos âmbitos jurisdicionais envolvendo à comunidade LGBTQ. Ao tratar sobre o tema, o ministro Gilmar Mendes (2013, p. 20) afirma que, diante da existência incontroversa de uniões entre pessoas do mesmo sexo, “no Brasil e no mundo, pautadas por laços de afetividade, convivência comum e duradoura, à semelhança de outros tipos de uniões expressamente referidas em nossa Constituição como entidades familiares”, surgiu a arguição de legitimidade constitucional ao reconhecimento jurídico dessas ligações, sobretudo, em face da ausência do modelo institucional mínimo de proteção da chamada união homoafetiva, a trazer, além de insegurança jurídica, visíveis prejuízos ante a negativa de direitos na esfera estatal e no âmbito das relações públicas e privadas. O limbo jurídico sem dúvida contribui para o agravamento da discriminação e da violência vez por outra noticiada pelos veículos de comunicação (MENDES, 2013, p. 20) As relações homoafetivas não ultrapassavam o plano fático, sendo excluídas do plano jurídico. Desta maneira, quando demandada a tutela jurisdicional, por vezes, estas relações eram reconhecidas dentro da seara Direito Empresarial ou das Obrigações, enquanto sociedades de fato (DIAS, 2012, p. 41). Maria Berenice aponta que a negativa de enquadrar estes arranjos na seara do Direito de Família demonstrava uma “tentativa de preservação da instituição da família dentro dos padrões convencionais” (2012, p. 42). Assim, Os vínculos afetivos extramatrimoniais, por não serem admitidos como família, eram condenados à invisibilidade. Ainda assim, existiam. Chamada a Justiça para solver as questões de ordem patrimonial, apenas com a preocupação de não chancelar o enriquecimento sem causa, primeiro foi 35 identificada uma relação de natureza trabalhista, só se vendo labor onde existia amor, depois, a jurisprudência passou a permitir a partição do patrimônio, considerando uma sociedade de fato o que nada mais era do que uma sociedade de afeto. (DIAS, 2012, p. 41) Desta maneira, com o surgimento de novas doutrinas e diante da falta de leis federais e locais regulamentando a união homoafetivo, as demandas de tutela ao Poder Judiciário conduziram à afirmação da união homoafetiva como entidade familiar equiparável à união estável (MENDES, 2013, p. 20). Sendo este o contexto em que surgiu a ADPF nº 132 e a ADI 4.277, que foram julgadas no dia 05 de maio de 2011. A ADPF nº 132, ajuizada pelo então Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, alegava lesão a preceitos fundamentais da Constituição Federal por parte do Estatuto dos Servidores Civis do Rio de Janeiro (DL. Nº 220/1975), visto que certas vantagens só eram concedidas para pessoas da família ou para cônjuge, de modo que os servidores em uniões homoafetivas, até então não reconhecidas juridicamente, ficavam excluídos. A ADI 4.277, por sua vez, fora proposta pela Vice-Procuradora Geral da República, com o pedido de interpretação conforme à Constituição do art. 1.723 do Código Civil, o qual reconhece como entidade familiar apenas a união estável entre homem e mulher. O julgamento da ADI pautouse nos seguintes pontos: 1. ARGUIÇÃO FUNDAMENTAL DE DESCUMPRIMENTO (ADPF). PERDA DE PARCIAL DE PRECEITO OBJETO. RECEBIMENTO, NA PARTE REMANESCENTE, COMO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA E SEU RECONHECIMENTO COMO INSTITUTO JURÍDICO. CONVERGÊNCIA DE OBJETOS ENTRE AÇÕES DE NATUREZA ABSTRATA. JULGAMENTO [...] 2. PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA.[...] 3. TRATAMENTO 36 CONSTITUCIONAL DA INSTITUIÇÃO DA FAMÍLIA. RECONHECIMENTO DE QUE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL NÃO EMPRESTA AO SUBSTANTIVO “FAMÍLIA” NENHUM SIGNIFICADO ORTODOXO OU DA PRÓPRIA TÉCNICA JURÍDICA. A FAMÍLIA COMO CATEGORIA SÓCIO-CULTURAL E PRINCÍPIO ESPIRITUAL. DIREITO SUBJETIVO DE CONSTITUIR FAMÍLIA. INTERPRETAÇÃO NÃO-REDUCIONISTA. [...] 4. UNIÃO ESTÁVEL. NORMAÇÃO CONSTITUCIONAL REFERIDA A HOMEM E MULHER, MAS APENAS PARA ESPECIAL PROTEÇÃO DESTA ÚLTIMA. FOCADO PROPÓSITO CONSTITUCIONAL DE ESTABELECER RELAÇÕES JURÍDICAS HORIZONTAIS OU SEM HIERARQUIA ENTRE AS DUAS TIPOLOGIAS DO GÊNERO HUMANO. IDENTIDADE CONSTITUCIONAL DOS CONCEITOS DE “ENTIDADE FAMILIAR” E “FAMÍLIA”. [...] 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA “INTERPRETAÇÃO CONFORME”). RECONHECIMENTO DA UNIÃO HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES [...] (STF – ADI 4277, Rel. Min. Carlos Ayres Britto, Tribunal Pleno, DJe 14/10/2011) Observa-se que os pontos mencionados da decisão reconheceram a união homoafetiva como instituto jurídico e, consequentemente, como entidade familiar, baseando-se nos princípios constitucionais do pluralismo, da fraternidade constitucional, na proibição de discriminação em razão do sexo, além dos direitos à liberdade para dispor sobre a própria sexualidade enquanto direito fundamental, à autonomia da vontade, à intimidade e à vida privada. A decisão também entendeu que a Constituição Federal não previu o conceito de Família de maneira taxativa, de forma que não pode ser dada uma interpretação reducionista. Desta maneira, ampliou por meio da jurisprudência a proteção estatal a mais espécies de famílias, que já havia sido alargada pelo Poder Constituinte de 1988. O ministro Gilmar Mendes afirma, ainda, que seu voto na ADI se pautou no respeito à liberdade de orientação sexual, de desenvolvimento da personalidade, além dos princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação do desenvolvimento do indivíduo, da segurança jurídica, da igualdade, da vedação da discriminação por sexo, que em sentido amplo abarcaria a orientação sexual. Cabendo, portanto, o reconhecimento da união homoafetiva como relação jurídica legítima, que demanda a proteção do Estado, que até hoje 37 não fora regulamentada pelo Congresso, mas que serviria como forma de evitar a discriminação (MENDES, 2013, p. 21) Em decorrência da ADI, além do já mencionado Provimento nº 52, o CNJ editou a Resolução nº 175, que veda que as autoridades competentes se recusarem fazer a habilitação para o casamento, a celebração de casamento civil ou a conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. Nesta mesma perspectiva de proteção à entidade familiar homoafetiva, também houve Recurso Extraordinário 646721, reconhecido com Repercussão Geral, que vedou a distinção de regime sucessório entre companheiro homoafetivo em união estável, sendo aplicável tanto para cônjuges, quanto para companheiros, o regime previsto do art. 1.790 do Código Civil, conforme jurisprudência: DIREITO CONSTITUCIONAL E CIVIL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. REPERCUSSÃO GERAL. APLICAÇÃO DO ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL À SUCESSÃO EM UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. INCONSTITUCIONALIDADE DA DISTINÇÃO DE REGIME SUCESSÓRIO ENTRE CÔNJUGES E COMPANHEIROS. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável, hetero ou homoafetivas. O STF já reconheceu a “inexistência de hierarquia ou diferença de qualidade jurídica entre as duas formas de constituição de um novo e autonomizado núcleo doméstico”, aplicando-se a união estável entre pessoas do mesmo sexo as mesmas regras e mesas consequências da união estável heteroafetiva (ADI 4277 e ADPF 132, Rel. Min. Ayres Britto, j. 05.05.2011) 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição de 1988. Assim sendo, o art. 1790 do Código Civil, ao revogar as Leis no 8.971/1994 e no 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou o companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. (STF – RE 646721 RS, Rel. Min. Marco Aurélio, Tribunal Pleno, Julgamento 10/05/2017) Assim, o Recurso Extraordinário fora provido com a seguinte tese: “No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 38 do CC/2002”. O mencionado Recurso complementou a decisão da ADI 4.277, provendo a segurança jurídica em relação às questões patrimoniais e sucessórias antes inexistentes aos pares em relacionamentos homoafetivos. Destaque-se novamente a importância desta decisão para o tema central deste trabalho. Apenas a partir do reconhecimento das relações homoafetivas enquanto entidade familiar, equiparável em direitos às entidades familiares heteroafetivas, se tornou possível fundamentar com maior segurança as adoções conjuntas por casais do mesmo gênero e a homoparentalidade, em virtude dos argumentos favoráveis a esta comunidade suscitados na ADI 4.277. 3.4. Reprodução Heteróloga e Multiparentalidade Em decorrência da Resolução 2.168 de 2017 do Conselho Federal de Medicina, permitiu-se o uso de técnicas de reprodução assistida em casais homoafetivos e, inclusive, a gestação compartilhada, em que o embrião obtido a partir da fecundação do(s) oócito(s) de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira. A reprodução heteróloga implica em utilização de material biológico doado por terceiro para gerar uma criança por um par que possua ou não conexão com o doador. Desta maneira, diversas demandas judiciais surgiram para tratar sobre a homoparentalidade dentro do contexto da reprodução assistida heteróloga, como a vista a seguir: Registro Civil. Averbação de dupla maternidade de filha de mãe biológica que mantém união estável com a outra autora e que planejaram juntas a gravidez por inseminação artificial de doador anônimo. Considerações sobre decisões do STJ e do STF que recomendam não mais criar óbice quanto ao reconhecimento das uniões estáveis homoafetivas, nem ao reconhecimento por autorização judicial sem natureza contenciosa de dupla maternidade no registro de nascimento. Desnecessidade de ação judicial em alguma Vara da Família. Recurso do Ministério Público improvido. (TJ-SP - APL: 00220968320128260100 SP 0022096-83.2012.8.26.0100, Relator: Maia da Cunha, Data de Julgamento: 27/03/2014, 4ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 30/07/2015) Destaque-se que chegou ao STF um pedido, em sede de Recurso Extraordinário, de licença maternidade concernente à mãe não gestante por casal homoafetivo que gerou a criança 39 através da reprodução heteróloga14. O pedido, cujo mérito ainda não fora analisado pela corte suprema, foi reconhecido com Repercussão Geral. Através deste Recurso, torna-se claro que muitos direitos relativos às famílias homoafetivas e à comunidade LGBTQ ainda estão em desenvolvimento e carecem de previsão normativa. Conforme mencionado, ocorre também os casos de multiparentalidade quando um casal homoafetivo recorre a um terceiro para realizar a reprodução heteróloga, mas esse terceiro não é um doador anônimo. Por vezes, pode ser alguém que também possui o desejo de compartilhar o sonho de gerar em conjunto a criança, como no seguinte caso: Apelação cível. Declaratória de multiparentalidade. Registro civil. Dupla maternidade e paternidade. Impossibilidade jurídica do pedido. Inocorrência. Julgamento desde logo do mérito. Aplicação artigo 515, § 3º do CPC. A ausência de lei para regência de novos. E cada vez mais ocorrentes - fatos sociais decorrentes das instituições familiares, não é indicador necessário de impossibilidade jurídica do pedido. É que “quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito (artigo 4º da Lei de Introdução ao Código Civil). Caso em que se desconstitui a sentença que indeferiu a petição inicial por impossibilidade jurídica do pedido e desde logo se enfrenta o mérito, fulcro no artigo 515, § 3º do CPC. Dito isso, a aplicação dos princípios da “legalidade”, “tipicidade” e “especialidade”, que norteiam os “Registros Públicos”, com legislação originária pré-constitucional, deve ser relativizada, naquilo que não se compatibiliza com os princípios constitucionais vigentes, notadamente a promoção do bem de todos, sem preconceitos de sexo ou qualquer outra forma de discriminação (artigo 3, IV da CF/88), bem como a proibição de designações discriminatórias relativas à filiação (artigo 227, § 6º, CF), “objetivos e princípios fundamentais” decorrentes do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana. Da mesma forma, há que se julgar a pretensão da parte, a partir da interpretação sistemática conjunta com demais princípios infra-constitucionais, tal como a doutrina da proteção integral o do princípio do melhor interesse do menor, informadores do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90), bem como, e especialmente, em atenção do 14 RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. LICENÇAMATERNIDADE. UNIÃO HOMOAFETIVA. INSEMINAÇÃO ARTIFICIAL. EXTENSÃO DA LICENÇAMATERNIDADE À MÃE NÃO GESTANTE. DIREITO À IGUALDADE, À DIGNIDADE HUMANA E À LIBERDADE REPRODUTIVA. MELHOR INTERESSE DO MENOR. PLURIPARENTALIDADE. MANIFESTAÇÃO PELA REPERCUSSÃO GERAL. (STF - RE 1211446 RG, Rel. Min. Luiz Fux, Julgado em 07/11/2019) 40 fenômeno da afetividade, como formador de relações familiares e objeto de proteção Estatal, não sendo o caráter biológico o critério exclusivo na formação de vínculo familiar. Caso em que no plano fático, é flagrante o ânimo de paternidade e maternidade, em conjunto, entre o casal formado pelas mães e do pai, em relação à menor, sendo de rigor o reconhecimento judicial da “multiparentalidade”, com a publicidade decorrente do registro público de nascimento. Deram provimento. (TJRS, AC 70062692876, 8ª C. Cív., Rel. Des. José Pedro de Oliveira Eckert, Julgado em 12/02/2015). Considerando o melhor interesse da criança e o ânimo de paternidade e maternidade mencionado na decisão, justifica-se o reconhecimento da pluriparentalidade, que fora regulado pelo CNJ no provimento nº 63 de 2017. Destaque-se que quanto maior a rede de proteção, cuidado e afeto, melhor para a criança. De forma que, se a pessoa que doar o material genético for reconhecida por si mesma e pelo casal que o utilizou como pai ou mãe da criança, também deve ser reconhecida a multiparentalidade, em virtude dos princípios do melhor interesse da criança e da doutrina da proteção integral aos infantes. Em conclusão ao presente capítulo, podemos observar que os direitos das pessoas LGBTQs ainda precisa evoluir dentro da esfera legislativa, visto que estes são reconhecidos apenas em virtude de decisões do Poder Judiciário. Sem a tutela jurisdicional, muitos dos direitos fundamentais, inerentes à dignidade da pessoa humana, não seriam garantidos a esta parcela da população. Assim, “nota-se o deslocamento de problemas que poderiam ser solucionados na arena política, pelos representantes eleitos e são transferidos para a esfera judicial” (FERRAZ et al., 2013, p. 38). Até o presente momento as decisões têm sido em favor desta comunidade, como podemos concluir a partir das que foram abordadas neste capítulo. Entretanto, não há garantia de que os entendimentos continuarão neste sentido. Finalizadas as discussões necessárias, adentraremos ao capítulo final para analisar o tema central desta monografia. 41 4. Adoção Homoafetiva Mais que um valor jurídico, o afeto tornou-se um princípio jurídico fundamental e norteador das relações familiares, conjugais e parentais. – Maria Berenice Dias.15 A paternidade não é só um ato físico, mas, principalmente, um fato de opção, extrapolando os aspectos meramente biológicos, para adentrar com força e veemência na área afetiva. – Julie Delinski16. A Adoção Homoafetiva pode ser entendida como parte dos direitos humanos homoafetivos, visto que a Constituição Federal elegeu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º), a família como base da sociedade, concedendo proteção especial do Estado (art. 226), ao mesmo tempo em que vedou tratamento desigual entre cidadãos (art. 5º). Entretanto, tal afirmação não se fundamenta na realidade histórica de discriminação e preconceito sofridos pelas pessoas LGBTQs, que se encontram, ainda hoje, às margens do ordenamento jurídico. É justamente nestas margens onde se encontra o tema da Adoção Homoafetiva. Ocorre que, no tecido cultural e jurídico da nossa sociedade foram operadas mudanças significativas em favor da pluralidade de famílias e respeito às diversidades de sexualidades, que serão discutidas ao longo do presente capítulo. Desta forma, para tratar sobre a Adoção Homoafetiva se faz necessário, primeiramente, conceituar afetividades, como a própria homoafetividade, socioafetividade, filiações e parentalidades. Cabe, também, discorrer sobre as mudanças na família e no direito que rege essas relações, o Direito das Famílias, denominação adotada por Maria Berenice Dias por ser mais inclusiva. 4.1 Conceituando Afetividades Através das mudanças na Constituição promulgada em 1988 foram operados diversos efeitos no ramo do Direito Civil, no qual se encontra o Direito das Famílias. Dentre estas 15 16 DIAS, Maria Berenice. Filhos do Afeto. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Revista Dos Tribunais, 2017. DELINSKI, Julie Cristine. O novo direito de filiação. São Paulo: Dialética, 1995. 42 mudanças, destacam-se o aumento do conceito de entidade familiar e a vedação à distinção de filiação, sendo descartado o conceito de filhos bastardos e, a partir disto, consolidada uma visão mais plural das famílias. Em consequência disto e das novas doutrinas, o Direito das Famílias consagrou o princípio da afetividade como sua pedra angular. Cabe ressaltar que, nem a Constituição Federal, nem o Direito das Famílias definiram em seus textos o conceito de família ou entidade familiar. Esta tarefa fora realizada pela Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) que, em consonância com a norma constitucional, definiu família como “a comunidade formada por indivíduos que são ou se consideram aparentados, unidos por laços naturais, por afinidade ou por vontade expressa” no seu art 5º. Assim, junto com a jurisprudência, a Lei 11.340/2006 contribuiu com a consolidação da doutrina da socioafetividade, deixando para trás o caráter puramente biológico das relações familiares. Estas mudanças serão discutidas a fundo nos próximos itens. Avancemos para o debate das afetividades. 4.1.1 Homoafetividade O termo homoafetividade surgiu, principalmente, dentro do Direito das Famílias, sendo seu uso amplamente difundido pela jurista e desembargadora aposentada, Maria Berenice Dias. A intenção era se desprender de conceitos como homossexualismo ou homossexualidade, que remontam estigmas e preconceitos. Assim, segundo Cláudia Regina, Berenice Dias utiliza este termo para realçar que o afeto é um aspecto central nos relacionamentos que fogem à norma heterossexual e demonstra que, na decisão em que o Supremo Tribunal Federal reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, o termo homoafetividade foi utilizado “para identificar o vínculo de afeto e solidariedade entre os pares ou parceiros do mesmo sexo, que não constava dos dicionários da língua portuguesa” (NICHNIG, 2014). Neste sentido, O termo “homoafetividade” é utilizado para visibilizar e romper com o paradigma de que a homossexualidade está necessariamente restrita ao ato sexual. Que sim, a homossexualidade envolve relações afetivas e/ou sexuais entre pessoas do mesmo sexo. (NICHNIG, 2014, p. 40 apud CEZÁRIO; KOTLINSKI, NAVARRO, 2007, p. 38) 43 A homoafetividade surgiu para pintar um quadro positivo das relações afetivas fora da matriz heterossexual. Entretanto, cabe debater o contraponto deste termo trazido pela perspectiva abordada por Roger Raupp Rios. Este autor defende que o termo foi abraçado pela doutrina e jurisprudência do Direito das Famílias por inserir estas relações desviantes no espectro normalizante da heteronormatividade, cobrindo-a com o manto da afetividade, conceito muito mais palatável e “higiênico” do que postular o respeito pela diversidade sexual. Desta forma, a homossexualidade só é aceita quando não questionar os padrões da heteressexualidade e “desde que anule qualquer pretensão de originalidade, transformação ou subversão do padrão heteronormativo” (RIOS, 2013, p. 15). Esta visão o leva a afirmar que A sexualidade heterossexual não só é tomada como referência para nomear o indivíduo "naturalmente" detentor de direitos (o heterossexual, que nunca necessitou ser heteroafetivo para ter direitos reconhecidos), enquanto a sexualidade do homossexual é expurgada pela "afetividade", numa espécie de efeito mata-borrão. (RIOS, 2013, p. 17) Tal entendimento é corroborado por Claudia Regina Nichnig, ao afirmar que “considerando o viés conservador dos poderes Judiciários e Legislativos Brasileiros” enfatizar o afeto nestas relações e afastar a questão da sexualidade “tornou mais fácil de ser reconhecido como direito e digerido pelos ministros/as como um direito a ser respeitado”(2014). Desta maneira, para Raupp Rios, apesar da intenção progressista em relação ao termo homoafetividade, ele continua sendo uma expressão que não se aparta de conteúdos conservadores e discriminatórios, considerando que a identificação do “afeto” como fator distintivo dos relacionamentos e identificador dos vínculos familiares, cumpre função anestésica e acomodadora da diversidade sexual às normas da heterossexualidade compulsória, na medida em que propõe a “aceitação” da homossexualidade sem qualquer questionamento mais intenso dos padrões sexuais hegemônicos. Isto porque a “afetividade” acaba funcionando como justificativa para a aceitação de dissonâncias à norma heterossexual, servindo como um mecanismo de anulação, por compensação, de práticas e preferências sexuais heterodoxas, cujo desvalor fica contrabalanceado pela “pureza dos sentimentos”. (RIOS, 2013, p. 15). O autor suscita, ainda, a questão da assimilação dos direitos sexuais ao Direito de Família que, para ele, representa um risco, visto que “pode se cristalizar numa tendência que 44 designo de assimilacionismo familista”, a qual ele caracteriza pela conjugação de duas ideologias, o assimilacionismo (onde membros de grupos subordinados ou tidos como inferiores adotam padrões oriundos de grupos dominantes, em seu próprio detrimento) e o familismo (aqui entendido como tendência a subordinar o reconhecimento de direitos sexuais à adaptação a padrões familiares e conjugais institucionalizados pela heterossexualidade compulsória). (RIOS, 2013, p. 15) A questão da incorporação de pessoas não-heterossexuais à matriz heteronormativa como via para obtenção de direitos já fora problematizado no primeiro capítulo do presente Trabalho de Conclusão de Curso. Ocorre que, tal proposição acerca da assimilação dos relacionamentos não-heterossexuais ao “familismo”, suscitou reflexão quanto ao debate sobre as formas de se relacionar. Aproveita-se este gancho, portanto, para discutir sobre a monogamia como ferramenta da heteronormatividade. Por vezes, nota-se que os formatos não-monogâmicos costumam ser atrelados ao estilo de vida e demanda política das pessoas LGBTQs. No entanto, defende-se neste trabalho que o modelo monogâmico não se trata de um padrão familiar assimilado, pois, no entendimento aqui esposado, fundamentado pela Teoria Queer, nenhum desses modelos deveria ser exclusivo de uma sexualidade específica. O que significaria dizer que, o modelo monogâmico não é um monopólio heterossexual - apesar deste haver sustentando o sistema heteronormativo, o capitalismo e as relações de parentesco, conforme explicitado anteriormente - assim como o modelo poligâmico ou do amor livre não é um monopólio das pessoas não-heterossexuais. Assim, dentro da perspectiva Queer, a monogamia pode ser desconstruída enquanto pilar da matriz heteronormativa, visto que, por vezes é exercida em um relacionamento nãoheterossexual, que por si só situa-se fora desta matriz, o que, todavia, não implica estar isento de reproduzir preconceitos e papeis normativos, mas implica dizer que nem todas as pessoas LGBTQs almejam possuir vários parceiros. Estando tal afirmação, inclusive, imbuída de um ranço preconceituoso por achar que este grupo é promíscuo e necessita de múltiplos parceiros para se sentir realizado, o que não também não é considerado um problema, nem tecido juízos de valor a respeito, mas que não deveria ser a norma. A tentativa é desatrelar o padrão monogâmico como norma heterossexual imposta as pessoas não-heterossexuais e o não-monogâmico à população LGBTQ, abordando estes modelos como opção para qualquer tipo de relacionamento, independente dos indivíduos os 45 componha. Desta forma, procura-se fugir de normas que impõe padrões, qualquer que seja, e acolher todos os tipos e formatos de relacionamentos e indivíduos. Em suma, o modelo de relacionamento, monogâmico ou não, independe do direcionamento do desejo sexual e do gênero de cada individuo, sendo categorias acessíveis para qualquer relação humana, que deve ser protegida enquanto um direito não restrito ou atrelado aos que desviam da heteronormatividade, porque de fato não o é. Retornando às afetividades, após breve incurso nas formas em que estas são exercidas, serão abordados conceitos de socioafetividade. 4.1.1 Socioafetividade O socioafeto permeia as relações no Direito das Famílias, mostrando-se muito mais relevante do que o vínculo sanguíneo. Tal fenômeno implica grande mudança na feição das famílias brasileiras, que gradualmente perde seu caráter patriarcal, tradicional, formado apenas por uma unidade conjugal heterossexual e prole. O principal fator para a identificação de vínculos familiares deixou de ser o compartilhamento genes e passou a ser o afeto, a vontade de proteger, de formar e compartilhar um projeto de vida em comum entre os membros da família (QUIRINO, 2018). Neste sentido, João Baptista Villela (2014), em seu artigo sobre a Desbiologizaçao da Paternidade, afirma que a citada transformação na entidade familiar fez com que esta perdesse seu caráter econômico, social e religioso para se afirmar fundamentalmente como grupo de afetividade e companheirismo, imprimindo considerável reforço ao esvaziamento biológico da paternidade. Surgindo, a partir da citada perspectiva, o conceito de socioafetividade, que é definido por Rodrigo da Cunha Pereira como sendo uma “expressão criada pelo Direito brasileiro para representar a relação exercida entre duas ou mais pessoas caracterizada pelo forte vínculo afetivo e pelo exercício de funções e lugares definidos de pai, filho ou irmãos” (2019). Por sua vez, Maria Berenice Dias afirma que: A constância da relação entre pais e filhos caracteriza uma paternidade que existe não pelo simples fato biológico ou por força da presunção legal, mas em decorrência de uma convivência afetiva. Constituído o vínculo da parentalidade, mesmo quando desligado da verdade biológica, prestigia-se a situação que preserva o elo da afetividade. (2016, p. 402). 46 O afeto se exterioriza, inclusive no mundo jurídico, pelas condutas objetivas de cuidado e responsabilidade no exercício dos deveres inerentes à parentalidade, dentro do contexto das relações e convivências familiares (DIAS, 2017). Assim, para o Direito, a socioafetividade significa que o fato de pessoas escolherem conviver e compartilhar suas vidas deve ser respeitado e protegido enquanto entidade familiar, independente de sua composição, da existência de matrimônio ou de laços sanguíneos. Significa, também, que não há apenas um modelo familiar, mas que todos devem buscar basear-se no modelo afetivo, em que os membros estão unidos por laços que vão além da genética. Do conceito de socioafetividade derivam-se o de filiações e parentalidade(s) socioafetivas que serão brevemente discutidos a seguir. 4.1.2 Filiação e Parentalidades Socioafetivas No ordenamento jurídico vigente, a filiação se desvincula do contato sexual dentro do casamento, sendo “superados antigos dogmas relativos às finalidades reprodutivas destas comunidades, antes apresentadas como condições necessárias para o reconhecimento da entidade familiar” (RIOS, 2013). Desta maneira, a filiação passa coexistir dentro do contexto da adoção, da reprodução assistida e de outras origens (art. 1.593 do Código Civil). Este último, pelo seu amplo sentido, alargou ainda mais as possibilidades de filiação, sendo, inclusive, a fundamentação da socioafetividade, demonstrando que a biologia não figura como condição única para a filiação. Estas mudanças foram essenciais para acompanhar as complexidades das famílias que sempre foram além do conceito pai-mãe-filhos e todo o contexto patriarcal e sexista que as envolvem. Rodrigo da Cunha Pereira ilustra a filiação e paternidade socioafetiva com o exemplo milenar da família de Nazaré: A família de Nazaré foi, é, e continuará sendo uma das mais expressivas formas de família socioafetiva. José, o carpinteiro não era o pai biológico de Jesus, mas era o marido de sua mãe Maria, e o criou como se filho fosse. Ninguém na face da terra duvida que José é o pai de Jesus, mesmo sabendo que ele não era o genitor. (PEREIRA, 2015) Ao lado da filiação socioafetiva, há a parentalidade socioafetiva. Em “A Família em Desordem”, Elisabeth Roudinesco (2013, p. 157) afirma que a palavra parentalidade se 47 generalizou a partir dos anos 70, definindo pai segundo sua qualidade de pai ou sua faculdade de alcançar uma função dita “parental”. Utiliza-se esta expressão no presente trabalho pelos mesmos motivos da citada autora em sua obra, qual seja, a inversão e apagamento da dominação masculina nas relações familiares. Do que fora dito, depreende-se que a parentalidade passa a derivar do estado de filiação, seja ele de origem biológica ou afetiva, não o contrário, e se faz necessário que toda parentalidade seja necessariamente socioafetiva (DIAS, 2016). De forma que as presunções de paternidade previstas no Código Civil se tornaram um conceito ultrapassado, visto que, quando o fator biológico importar, ele pode ser facilmente aferido por um exame de DNA. O pai deixa de ser apenas o esposo da mãe, até porque a paternidade não acontece apenas dentro desta lógica. 4.1.3 Técnicas de Reprodução Assistida O desenvolvimento das técnicas de reprodução assistida criou uma nova forma de parentesco civil (art. 1597, inciso V do Código Civil) que ocorre quando há dificuldade ou impossibilidade de um ou de ambos gerar um filho (DIAS, 2017, p. 375). Escolhe-se uma das espécies de reprodução assistida para tratar no presente trabalho, por ser a que mais se relaciona com tema central, sendo ela a heteróloga, ou seja, quando utiliza-se material biológico doado por terceiro. A Ação de Declaratória de Inconstitucionalidade 4.277, permitiu que pares homoafetivos se unissem estavelmente e, consequentemente, se casassem. Assim, através destas primeiras conquistas, os casais homoafetivos, equiparados aos “heteroafetivos”, obtiveram o direito de utilizar destas técnicas para gerar filhos. Decorrente da citada decisão, o Provimento nº 63 de 2017 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) admite no registro de nascimento do individuo gerado por reprodução assistida, a inclusão do nome de duas pessoas do mesmo sexo como pais ou mães. O art. 16, § 2º dispõe que “No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna”. Inclusive, 48 em decisão recente e inédita, o Tribunal Regional Federal da 3ª Região concedeu licença maternidade para as duas mães que geraram seus filhos por reprodução assistida heteróloga17. Em suas atribuições, o Conselho Federal de Medicina na Resolução 2.168 de 2017, permitiu o uso de técnicas em casais homoafetivos e, inclusive, a gestação compartilhada, em que o embrião obtido a partir da fecundação do(s) oócito(s) de uma mulher é transferido para o útero de sua parceira. Tal prática enfatizou um novo fenômeno para o direito brasileiro, a multiparentaridade ou pluriparentalidade, que será abordado a seguir. 4.1.4 Multiparentalidade ou Pluriparentalidade A pluriparentalidade ou multiparentalidade, por sua vez, ocorre quando a criança possui vínculo socioafetivo com mais de dois familiares. A constituição acertou ao ampliar o conceito de família, pois hoje em dia, sob a doutrina da socioafetividade, cabe proteger estes laços familiares, independente de qual formato tenham, pois eles apenas fortalecem a rede de amor e proteção dos seus componentes. A dupla maternidade e/ou paternidade ou a multiparentalidade pode surgir em diversos contextos. Famílias recompostas, em que filhos de uniões anteriores que passam a compor uma nova família em verdadeiro vínculo de socioafetividade, fruto da adoção ou de técnicas de reprodução assistida heteróloga. Todavia, apesar de não haver previsão normativa em nenhuma das hipóteses citadas, tampouco haver entendimento pacificado pela doutrina ou jurisprudência, o CNJ, no já citado Procedimento nº 63, em seu artigo Art. 10, dispõe que “O reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais”, abrindo o precedente, desta forma, para o instituto da multiparentalidade ou pluriparentalidade. Podemos citar a doutrinadora Maria Berenice Dias como referência nestes temas, pois ela reconhece a equidade entre as entidades familiares heterossexuais e homossexuais que, consequentemente, implica para as duas entidades a possibilidade do uso da reprodução heteróloga e, em relação a multiparentalidade ela acredita que 17 JUSTIFICANDO. Justiça reconhece direito à licença maternidade para casal de mães. 2018. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2018/07/16/justica-reconhece-direito-a-licenca-maternidade-paracasal-de-maes/>. Acesso em: 17 jun. 2018. 49 Coexistindo vínculos parentais afetivos e biológicos ou apenas afetivos, mais do que apenas um direito, é uma obrigação constitucional reconhecê-los. Não há outra forma de preservar os direitos fundamentais de todos os envolvidos, sobretudo no que diz com o respeito à dignidade e afetividade. (DIAS, 2017, p. 406) Flávio Tartuce, apesar de citar a professora Maria Helena Diniz e sua visão conservadora sobre o assunto, segue a linha de pensamento da professora Maria Berenice. Ao seu ver, se hoje a jurisprudência afirma a igualdade entre as entidades familiares, não cabe oposição ao direito de reprodução assistida heteróloga. Entretanto, quanto à multiparentalidade o autor apresenta críticas ao comentar sobre o informativo nº 512 do STJ: Com o devido respeito, entendemos que essa forma anterior de julgar representaria um retrocesso, uma volta ao passado, desprezando a posse de estado de filhos fundada na reputação social (reputatio) e no tratamento dos envolvidos (tractatus). Ademais, abria a possibilidade de um filho “escolher” o seu pai não pelo ato de afeto, mas por meros interesses patrimoniais, em uma clara demanda frívola. (TARTUCE, 2017, p. 226). Os autores Chaves e Rosenvald também concordam com a possibilidade da reprodução assistida em casais homoafetivos e considera que “pensar em sentido contrário é pretender reduzir o princípio da pluralidade de entidades familiares, afrontando a dignidade humana, a igualdade substancial e a liberdade” (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 582). Na questão da multiparentalidade seguem a linha do professor Tartuce, pois apresentam preocupação a respeito dos possíveis males que ela pode trazer: [...] admitida a pluripaternidade, estar-se-ia tolerando, por igual, a plurihereditariedade, gerando inconvenientes explícitos, como uma estranha possibilidade de estabelecimentoda filiação para atender meramente a interesses patrimoniais. (FARIAS; ROSENVALD, 2015, p. 599). Diante de tudo que fora afirmado nos itens anteriores, após breve tentativa de debater e conceituar afetividades, é possível, finalmente, adentrar o tema central do presente trabalho. 4.2. As novas famílias e o Direito das Famílias 50 As famílias, tal como existem atualmente, são frutos de uma verdadeira revolução, tanto no plano fático da cultura, quanto no jurídico. De maneira exemplificativa, será abordado o conceito de famílias analisado por Raupp Rios e Belmiro Welter, cabendo ressaltar que são vastas as realidades culturais e espaços históricos, os quais o estudo profundo tornaria o trabalho de análise desproporcional em relação a proposta desta monografia, sendo possível, entretanto, citar brevemente como se deu o transcurso destas mudanças no contexto citado. A princípio, a família tinha um caráter institucional, em que a hierarquia entre os membros ditava as formas como eles se relacionavam, sendo o pai localizado no topo desta hierarquia, fundada no patriarcalismo. Se seguirmos a concepção marxista abordada anteriormente, a família existiu com o propósito de perpetuar a posse da propriedade privada entre seus membros, de forma que o aspecto reprodutivo se encontrava no centro das relações matrimoniais, pois a prole era necessária para garantir a manutenção da propriedade em uma mesma estirpe. Para além disto, não se pode olvidar que “a religião doméstica, as mitologias e o cristianismo, foram, além de crenças, fundamentos utilizados para justificar e estabelecer os ditames morais das famílias antigas e medievais” (WELTER, 2009, p. 47), que também defendia a reprodução como obrigação matrimonial. Raupp ilustra o momento histórico que serve como pano de fundo para a análise deste modelo familiar, datando sua análise ao final do século XVIII, pois Até o final do século XVIII, - três grandes códigos explícitos - além das regularidades devidas aos costumes e das pressões de opinião - regiam as práticas sexuais: o direito canônico, a pastoral cristã e a lei civil. Eles fixavam, cada qual à sua maneira, a linha divisória entre o lícito e o ilícito. Todos estavam centrados nas relações matrimoniais: o dever conjugal, a capacidade de desempenhá-lo, a forma pela qual era cumprido, as exigências e as violências que o acompanhavam, as carícias inúteis ou indevidas às quais servia de pretexto, sua fecundidade ou a maneira empregada para torná-lo estéril, os momentos em que era solicitado (períodos perigosos da gravidez e da amamentação, tempos proibidos da quaresma ou das abstinências), sua frequência ou raridade: era sobretudo isso que estava saturado de prescrições. (RIOS, 2013, p. 4 apud FOCAULT, 1988, p. 38) Nesta espécie de modelo familiar, os membros da família possuíam baixo grau de autonomia entre si. Tudo dependia do patriarca, que regia não só as relações, como controlava as vidas de cada um dos membros da entidade familiar. Para Belmiro Welter (2009, p. 44), os legados históricos brasileiros influenciaram a elaboração de diretrizes da família que 51 estabeleciam “o patriarcalismo, a incapacidade da mulher diante da figura opressora do homem, a monogamia, a família como sinônimo de casamento, que era indissolúvel, e a desigualdade entre os filhos”. Estes legados remontam o início do século XVI, em que portugueses foram confrontados no Brasil com famílias indígenas baseadas em costumes muito diferentes da moral cristã europeia. Entretanto, no processo de exploração dos corpos brasileiros, não sendo o caso em que as mulheres “gentis” criavam seus filhos, que não eram reconhecidos pelos pais brancos, sozinhas pela força do seu trabalho, elas eram conformadas ao modelo familiar eurocêntrico, e passavam a adotar a religião católica, acolher os princípios da monogamia, do patriarcalismo e da indissolubilidade do casamento, que regiam “o matrimônio cristão, iniciando a típica família brasileira” (WELTER, 2009, p. 42). O autor ressalta ainda que a discriminação dos membros da família faz parte da história brasileira e rememora o modelo Casa-Grande e Senzala, estudado por Gilberto Freyre, para afirmar que a mulher branca “era destinada ao casamento; a mulata ao sexo, e a negra, ao trabalho, demonstrando o preconceito impuro do homem.” (WELTER, 2009, p. 41) Em uma espécie de pulo para tempos menos remotos, mas que ainda possuem reflexos nas relações atuais, a mudança dos atores políticos que compõe a família operou uma revolução dentro dela própria, buscando diminuir as discriminações e desigualdades existentes no seio familiar. As mulheres se emanciparam e, dentre tantas conquistas, tomaram controle da sua sexualidade e dos meios contraceptivos. Em outro front, as crianças passaram a ser consideradas sujeitos de direito, em que a situação peculiar de pessoa em desenvolvimento deve ser respeitada. Ocorreu, por conta disto, uma virada no entendimento sobre a família, deslocando a parentalidade para o amor e não para a procriação, pois “a possibilidade de obter gratificação sexual sem os riscos da gravidez e, já agora, a possibilidade inversa, de promover a reprodução sem atividade sexual, com a fecundação in vitro, tenderão a fazer da paternidade rigorosamente um ato de opção” (VILLELA, 2014, p. 413). De forma que, o modelo institucional de família declinou na segunda metade do século XX, diante das diversas inovações legislativas, que refletiram as profundas mudanças na dinâmica familiar nestes tempos, que paulatinamente enfraqueceram o modelo institucional hierárquico e patriarcal, conforme afirma Roger Raupp Rios (2013). Dentre estas, o autor destaca a nova compreensão do divórcio e a igualdade de direitos entre os cônjuges. 52 O casamento que antes era considerado sagrado, passou a representar um meio de legitimação dos cônjuges perante o Estado, para enfim, perder efetivamente sua força sacramental e simbólica por conta do aumento do número de divórcios, conforme afirma Elisabeth Roudinesco (2004). De forma que, para a autora, o casamento “foi cada vez mais assimilado a um rito festivo que acontecia não mais como ato fundador de uma célula familiar única e definitiva, mas como um contrato mais ou menos duradouro entre duas pessoas” (2004, p. 153). Conforme explicado anteriormente, estas mudanças ligadas ao matrimônio teve consequências no entendimento sobre a família, de forma que, para ROUDINESCO, Despojada dos ornamentos de sua antiga sacralidade, o casamento, em constante declínio, tornou-se um modo de conjugalidade afetiva pelo qual cônjuges – que às vezes escolhem não ser pais – se protegem de eventuais atos pernicioso de suas respectivas famílias ou das desordens do mundo exterior. É tardio, reflexivo, festivo ou útil, e frequentemente precedido de um período de união livre, de concubinato ou de experiências múltiplas de vida comum ou solitária. (2003, p. 197) No momento em que o conceito de família se desatrelou do conceito de casamento, “foi indispensável reconhecer que a Constituição Federal conferiu tutela jurídica ao afeto” (DIAS, 2017). Este contexto propiciou que o princípio e a doutrina da socioafetividade florescessem, de forma que, para Gustavo Tepedino, tal mudança foi uma conquista representada pela prevalência no direito “da realidade fática da família como comunidade de pessoas de carne e osso sobre a família no modelo formal e institucional de reprodução sexual e acumulação econômica em torno da autoridade patriarcal” (2016). Abandonando seu caráter fortemente patrimonial e hierárquico, a família passa a ser uma rede de apoio eudemonista e núcleo de desenvolvimento humano (VILLELA, 2014). Estas mudanças no tecido cultural das sociedades modernas foram cristalizadas pelos ordenamentos jurídicos, inclusive, pelo ordenamento jurídico brasileiro que, através da Constituição de 1988, alterou de maneira significativa o entendimento jurídico sobre a família, afetando, consequentemente, todo o sistema infraconstitucional. Se desprendendo das formas excludentes fundada nos legados históricos abordados previamente, a Constituição Cidadã, apesar de não definir o que é Família, tarefa que fora posteriormente executada pela Lei Maria da Penha, previu três espécies familiares: a família derivada do casamento, a família decorrente da união estável e a família monoparental, 53 dispondo, no seu artigo 226 que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Um dos principais impactos da citada mudança incidiu, sem dúvidas, no Código Civil de 2002, conforme já abordado no início deste capítulo. De forma que, segundo a professora Karyna Sposato, Se evindencia, ahora, um profundo diálogo normativo doctrinal entre el derecho de família y el derecho constitucional. Tal dialogo se intensifica debido a princípios jurídicos aplicables al derecho de família, a partir del Código Civil de 2002. Cuando la familia pasa a ser concebida por la doctrina como un lugar de afecto y desarrollo social, se refuerza la importancia de las relaciones afectivas familiares desde nuevos elementos como la afectividade, la desformalización de las relaciones de afecto y las uniones o matrimonios entre personas del mismo sexo (SPOSATO, 2019, p. 179) Desta forma, não só a legislação infraconstitucional passou por um processo de constitucionalização, mas também todas as decisões acerca do assunto devem ser norteadas pelos princípios previstos na CF e pela doutrina da socioafetividade, que se encontra em plena sintonia com os princípios constitucionais basilares. Ocorre que, a família se apresenta ainda mais plural do que previsto na lei constitucional, assim, essas mutações sociais “permitem que a família se agregue de modo a ultrapassar os limites da previsão jurídica” (DIAS, 2017), de forma que coube às decisões judiciais expandir esta proteção a um espectro ainda mais abrangente. Ressaltando-se, portanto, a decisão contida na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.277, onde fora decidido sobre o casamento e união estável homoafetivas, conforme abordado no capítulo 2 deste trabalho, e que, em espécie de inovação hermenêutica, declarou-se a inconstitucionalidade tanto do artigo 1.723 do Código Civil18, quanto do próprio artigo 226, § 3º da Constituição19, para reconhecer as uniões entre pessoas do mesmo gênero e equiparar em direitos às uniões entre pessoas de gênero opostos (SPOSATO, 2019). Cabe suscitar a indagação de Raupp Rios (2013) sobre os modelos familiares previstos na constituição em relação aos casais homoafetivos, 18 Art. 1.723 do CC: É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família. 19 Art. 226, § 3º da CF: Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento. 54 Praticamente sem nenhuma exceção, a pesquisa sobre as uniões homossexuais no direito de família conduz à pergunta a respeito da qualificação destas uniões em uma das três espécies familiares dispostas no texto constitucional; não se considera, por exemplo, a hipótese da configuração de uma outra espécie de comunidade familiar, ainda que não prevista explicitamente. Todavia, apesar da eterna necessidade de avanços, incluindo o reconhecimento de espécies de comunidade familiares ainda mais plurais, tornou-se claro o direito dos casais nãoheterossexuais de unirem-se e serem reconhecidos enquanto entidade familiar que goza dos mesmos direitos dos casais compostos por pessoas heterossexuais, dentre eles, o direito de adoção, que gera a homoparentalidade, conceito discutido a seguir. 4.3 Homoparentalidade Conforme dito, a família composta por pessoas que se situam às margens da heteronormatividade ainda necessita de grandes avanços relativos à garantia de direitos e proteção jurídica do ordenamento jurídico vigente para que o princípio da dignidade das pessoas humanas, norteador da Constituição Federal de 1988, seja garantido a todos os brasileiros. Dito isto, é necessário discutir as nomenclaturas que essas entidades familiares assumem, visto que A questão de nomeação é um importante aspecto para destacarmos o quanto expressões de denominação remetem a classificações e definições parentais, situando um indivíduo numa determinada rede de relações e de categorias de pertencimento, ou seja, num sistema de parentesco. O emprego de expressões diversas para designar as parentalidades gays e lésbicas indica, que estas representam um desafio na criação de estratégias de composição ou de resistência ao modelo heteronormativo socialmente prevalente (MACHIN, 2016, p. 352). Assim como o termo “homoafetividade” fora problematizado anteriormente, o termo “homoparentalidade” também será. Isso porque ele entrelaça sexualidade com parentalidade, deixando acentuado o fator da homossexualidade ao lado do cuidado com os filhos. Tal denominação não ocorre nas parentalidades em que os gêneros são distintos. Não há conceito de “heteroparentalidade”, sendo este o marco universal, a ser referido apenas por “parentalidade”. Todavia, Zambrano afirma que, ao “nomear um tipo de família até então sem nome, permite-se que ela adquira uma existência discursiva, indispensável para indicar uma 55 realidade, possibilitando o seu estudo e, principalmente, sua problematização” de forma que esta nomenclatura facilita “a emergência de um campo de luta político onde as demandas de (homo)parentalidade ficam fortalecidas” (ZAMBRANO, 2006, p. 128). A autora ressalta, no entanto, que o estudo da homoparentalidade se mostra insuficiente para abordar a parentalidade das pessoas transexuais e travestis que se identifiquem como heterossexuais, de forma que nestes relacionamentos há gêneros distintos, não cabendo, portanto, o termo. O mesmo aplica-se ao termo “homoafetividade”. Estes relacionamentos estão, junto com os relacionamentos homoafetivos, à margem da norma heteronormativa, visto que apesar da diversidade de gênero no casal, ainda há argumentação sobre a “natureza biológica” dos gêneros. Entretanto, no presente trabalho, será adotado o termo homoparentalidade e homoafetividade, visto que o objetivo central é discutir a Adoção Homoafetiva. Todavia, é responsável ressaltar a necessidade de pontuar que ele não é abrangente para todos os pertencentes da sigla LGBTQ e a importância de ser fomentado mais estudos sobre cada uma dessas letras, visto a peculiaridade inerente a cada grupo. Ultrapassada a discussão acerca das nomenclaturas, observa-se grande resistência e preconceito por parte da sociedade em reconhecer as entidades familiares homoafetivas e as possibilidades de homoparentalidades, apesar de existirem por muito tempo e já haverem obtido conquistas legais através do judiciário. Por conta deste preconceito, fruto da matriz heteronormativa em que vivemos, uma serie de argumentos contra as homoparentalidades são levantados, sendo estas julgadas como inapropriadas. Defende-se que as crianças criadas por pais homoafetivos teriam seu desenvolvimento prejudicado pela falta da figura materna ou paterna, e dos papeis de gênero presentes nos relacionamentos heteronormativos, de modo que “os argumentos são de que as crianças irão crescer sem ter referências do masculino e feminino ficarão psicóticas, serão discriminadas” afirmando em continuadade que “ao final de tudo, serão também homossexuais, colocando em risco de desaparecimento a própria civilização.” (ZAMBRANO, 2006, p. 144). Ocorre que, nenhum destes argumentos em desfavor das famílias homoparentais foram demonstrados cientificamente, pelo contrário, os estudos científicos ainda não têm uma resposta sobre esta questão, mas acreditam que a orientação sexual dos pais não influencia a dos filhos visto que, se assim fosse, pessoas que tiveram pais com orientação sexual heterossexual não podiam ter uma orientação homossexual. Não há como 56 prevalecer o mito de existência de influência direta da orientação sexual dos pais/mães homossexuais sobre a dos filhos. (SANTOS, 2015, p. 99) Assim, Berenice Dias afirma que “[...] filhos com pais do mesmo sexo demonstram o mesmo nível de ajustamento encontrado entre crianças que convivem com pais dos dois sexos. Nada há de incomum quanto ao desenvolvimento do papel sexual dessas crianças”, da mesma forma que “não foi detectada qualquer tendência importante no sentido de que filhos de pais homossexuais venham a se tornar homossexuais” (DIAS, 2006, p. 113). Elisabeth Zambrano, por sua vez, cita uma série de estudos para defender que Não é o sexo dos pais/mães um fator importante para o bom desenvolvimento da criança, mas a qualidade da relação que os pais conseguem estabelecer com os filhos. A ausência de pais dos dois sexos não parece ter nenhuma incidência sobre o desenvolvimento da identidade sexual e o desenvolvimento psicológico geral das crianças, como demonstram os estudos feitos por Flaks et al. em 1995; Chan et al. em 1998; Brewaeys et al. em 1997, Kirkpatrick et al em 1981 e Golombok et al. em 1997 (in Stacey, Biblarz, 2001). (2006) Cabe, também, trazer à luz o argumento de GROSSI et al. (2007), questionando a “normalidade” exigida à filhos dentro do contexto da homoparentalidade. Por vezes, o modelo heteronormativo de família nuclear e da heterossexualidade compulsória são elevados ao pedestal da normalidade e universalidade, perpetuando discriminações que impedem o reconhecimento jurídico pleno dos sujeitos e das famílias que se situam foram do espectro da heteronormatividade. Na tentativa de assegurar que casais homoparentais são aptos a criação de filhos sem que estes cresçam com tendência maior a ser homossexuais, colateralmente, assume-se que esta sexualidade é valorada como algo negativo a ser evitado, de forma que para se afirmar o direito dos pais homossexuais, nega-se o direito do filho à orientação homossexual. A esse respeito, Roudinesco (2003) observa que, “ao buscarem convencer aqueles que os cercam de que seus filhos nunca se tornarão homossexuais, eles se arriscam a lhes dar, de si próprios, uma imagem desastrosa” (GROSSI et al., 2007, p. 285) De maneira que, os citados argumentos são fundados em crenças excludentes e preconceituosas. Além da sexualidade ser inerente à dignidade da pessoa humana, devendo ser respeitada e protegida nos mais diversos contextos, é a capacidade de cuidar e a qualidade do relacionamento familiar que define a boa parentalidade, não a orientação sexual dos pais (ZAMBRANO, 2006). Tal argumento é corroborado pela decisão da Corte Interamericana de 57 Direitos Humanos (CIDH), no primeiro julgamento concernente a violação aos direitos da diversidade sexual (RIBEIRO, 2018). O caso ficou conhecido como Atala Riffo e crianças vs Chile. Riffo é uma juíza do Chile, mãe de três filhas e, após seu divórcio, iniciou um relacionamento com outra mulher, de forma que, o casal de mulheres e as três filhas da juíza passaram a residir todas juntas. Por esta razão, o pai das meninas acionou a justiça chilena, alegando que o relacionamento homossexual colocava em risco o desenvolvimento das três crianças, requerendo o pedido de guarda exclusiva. O pedido fora julgado procedente, de modo que Atala perdeu a guarda das filhas, fundamentado no risco para o desenvolvimento das crianças em virtude do relacionamento homoafetivo. Ao apelar na CIDH, a corte declarou que não desempenha função de “quarta instância”, entretanto, restou declarado que o Chile era internacionalmente responsável por ter violado i) o direito à igualdade e à não discriminação, consagrado no artigo 24 (igualdade perante a lei), combinado com o artigo 1.1 (obrigação de respeitar e de garantia) da Convenção Americana, em prejuízo de Karen Atala Riffo; ii) o direito à igualdade e à não discriminação, consagrado no artigo 24 (igualdade perante a lei), combinado com os artigos 19 (direitos) e 1.1. (Obrigação de respeitar e garantir) da Convenção Americana, em prejuízo das meninas M., V. e R.; iii) o direito à privacidade consagrado no artigo 11.2 (proteção da honra e da dignidade), em conjugação com o artigo 1.1. (Obrigação de respeitar e garantir) da Convenção Americana, em prejuízo de Karen Atala Riffo; iv) os artigos 11.2 (proteção da honra e da dignidade) e 17,1 (proteção da família) em conjunto com) o artigo 1.1 (obrigação de respeitar e garantir da Convenção Americana, em detrimento de Karen Atala Riffo e meninas M., V. I.; v) o direito de ser ouvido, consagrado no artigo 8.1 (garantias judiciais), conjugado com os artigos 19 (direitos) e 1.1 (obrigação de respeitar e garantir) da Convenção Americana, em prejuízo das meninas M., V . e R., e vi) garantir a equidade consagrado no artigo 8.1 (garantias judiciais), em conjunto com) o artigo 1.1 (obrigação de respeitar e garantir da Convenção Americana, em relação ao processo disciplinar, em detrimento de Karen Atala Riffo. (RIBEIRO, 2018, p. 226) Neste caso, ainda foram apresentados relatórios científicos, considerados representativos e autorizados nas ciências sociais, “para concluir que a convivência de menores 58 de idade com casais homossexuais não afeta per se seu desenvolvimento emocional e psicológico.” (BIEGER, 2018, p. 47). Estes citados estudos concordaram que, i) as atitudes de mães ou pais homossexuais são equivalentes às de mães ou pais heterossexuais; ii) o desenvolvimento psicológico e o bem-estar emocional das crianças criadas por pais gays ou mães lésbicas são comparáveis aos das crianças criadas por pais heterossexuais; iii) a orientação sexual é irrelevante para a formação de vínculos afetivos das crianças com os pais; iv) a orientação sexual da mãe ou do pai não afeta o desenvolvimento das crianças em matéria de gênero a respeito do sentido que têm de si mesmas como homens ou mulheres, seu comportamento no papel de gênero ou sua orientação sexual; e v) as crianças de pais homossexuais não são mais afetadas pelo estigma social que outras crianças. A perita Jernow também mencionou várias sentenças de tribunais nacionais que se referiram a pesquisas científicas como prova documental para afirmar que o interesse superior da criança não é violado com a homossexualidade dos pais (BIEGER, 2018, p. 47). Desta forma, conforme já mencionado, resta salientado que a relação de parentalidade/filiação independem da questão de gênero e sexualidade, sendo mais importante a estrutura familiar e a capacidade para o cuidado e proteção. Se faz necessário, portanto, deixar de lado estes argumentos que negam os direitos humanos, tanto dos casais homoafetivos, quanto das crianças que merecem uma família e toda a proteção jurídica derivada desses laços, visto que não se fundamentam em evidências científicas. A partir do respeito das uniões homoafetivas enquanto entidade familiar será possível construir um novo entendimento sobre família, de forma que a adoção homoafetiva, em conjunto com todas as formas de homoparentalidade, permitirá desatrelar a função parental aos papeis de gênero. Nem sempre existirá uma mãe ou um pai, mas sim uma dessas figuras em dobro, sem que, para isso, um assuma a função paternal e outro a função maternal, pois ambos assumirão a parentalidade e construirão uma nova visão acerca da família, fora da matriz heteronormativa, em que todos atuam na criação dos filhos e filhas (ZAMBRANO, 2006). Para além disto, Elisabeth Zambrano observa, também, que a ausência de um terceiro que exerça a função “oposta” não deve representar uma ameaça. Primeiramente, porque quando o casal for composto por mulheres, a “manutenção da idéia de que o “terceiro” teria que ser o pai-homem promove um deslizamento do simbólico para o real, evidenciando o vínculo que a psicanálise sustenta com a manutenção de uma “ordem familiar” patriarcal” (2006). 59 Por fim, reflete-se sobre a proteção constitucional da família monoparental, em que só há a presença de uma figura, a materna ou paterna, sem que isso implique em prejuízo para o respeito e proteção desta entidade familiar. Tal entendimento deveria ser estendido para todas as espécies de família, pois o que de fato importa para o desenvolvimento saudável da criança é o cuidado, carinho, proteção, educação, sendo todos esses fatores possíveis de serem proporcionados tanto por famílias monoparentais, como por famílias homoafetivas. Ressalte-se que o fato de a família ser formada por pares do mesmo gênero não implica dizer que na formação da criança não haverá a presença do gênero oposto ao dos pais ou mães, como acreditado. A rede de apoio da família funciona nestes momentos da primeira infância, de forma que avós, avôs, tios, tias, irmãs, irmãos, a família estendida e a comunidade, todos se envolvem durante a criação e desenvolvimento da criança, de modo que, de fato, existirá pluralidade de figuras e modelos a serem seguidos. Além do fato de que Zambrano afirma que casais de homens não escapam da presença feminina no cotidiano, pois “os trabalhos com a primeira infância são profundamente feminilizados” (2006, p. 137), pontuando ainda, a terceirização das tarefas domésticas que, por via de regra, ainda são exercidas por mulheres. Diante de tudo que fora exposto anteriormente, será buscado salientar o baixo reconhecimento jurídico destinado às pessoas LGBTQs, fruto da heteronormatividade que impera no direito brasileiro, através da análise da Adoção Homoafetiva ou Homoparental. 4.4 Adoção Homoafetiva Por muito tempo, a adoção foi vista pelo olhar dos adultos, carregado com desejos de construir família, mesmo frente à impossibilidade através dos métodos biológicos convencionais. Entretanto, em virtude da emancipação das crianças enquanto sujeitos de direitos e das novas doutrinas fundadas nas Convenções Internacionais protetivas do Direito das Crianças e dos Adolescentes, o foco de tal procedimento alterou-se para onde deveria ter estado desde o princípio: para o melhor interesse da criança e do adolescente (OLIVEIRA, 2017). Neste sentido, a emancipação das crianças enquanto sujeitos de direito, No Brasil, foi a partir do novo cenário político e social, ocorrido por volta dos anos 80, contando também com Declaração Universal de Direitos da Criança legada pela Assembleia Geral da ONU, em 1959 e com a convenção das nações Unidas sobre os Direitos das Crianças, a qual determinou, em 60 novembro de 1989, que se atentasse para os direitos humanos das crianças, ocorreu um movimento significativo em relação à proteção da infância. (RODRIGUES; TOSCANO, 2017, p. 488) A adoção é um procedimento jurídico que, de maneira irrevogável e irreversível, cria vínculos de filiação e parentalidade, em que são atribuídos ao adotado todas as condições de filiação, sendo vedado constitucionalmente qualquer tipo de distinção em relação às filiações biológicas (art. 227, §6º da CF). Ela surge, portanto, como um instrumento Estatal que visa proteger crianças e adolescentes de estruturas familiares inadequadas, que os expõe a situações de risco, como falta de condições básicas para sobrevivência digna, abusos, maus-tratos, envolvimentos com drogas, entre tantos outros fatores que não se revelam propícios para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes. Por outro parâmetro, Maria Berenice defende que a adoção pode ser reconhecida como uma espécie de filiação socioafetiva, pois decorre de uma manifestação de vontade (2017, p. 46). Frise-se que a destituição do poder familiar e a colocação da criança ou do adolescente em acolhimento institucional, longe da sua família de origem e comunidade, deve ser uma medida ultima ratio, visto a importância da convivência familiar e dos laços afetivos para o desenvolvimento regular, além da proteção prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990) ao direito de convivência, salientado pela repetição por 11 vezes da preferência pela família natural ou extensa (DIAS, 2017). As situações de acolhimento institucional, portanto, devem ser exceções e perduradas pelo menor espaço de tempo possível. Neste sentido, Weber (2007) salienta que crianças e adolescentes institucionalizados são afetadas psicologicamente devido a uma restrita inserção social e a uma dificuldade de se estabelecer e manter vínculos afetivos dentro dessas instituições. Ademais, segundo a mesma autora, verifica-se a formação de uma autoimagem negativa, o que por sua vez interfere no desenvolvimento humano dessas pessoas, bem como nas relações interpessoais que estabelecem. (SANTOS et al., 2007) Os abrigos e instituições de acolhimento não se comparam ao seio familiar, em que as crianças e adolescentes possuem cuidados e afeto que levam em consideração suas características, peculiaridades e personalidade. Estes cuidados são direcionados particularmente a cada um deles, o que via de regra não ocorre nos ambientes institucionais, em que o tratamento dispensado é impessoal e igualitário para todos que lá se encontrem. 61 Trata-se de um vínculo de proteção objetiva (da fome, da rua, das intempéries), mas não de um vínculo afetivo, imprescindível para atender o melhor interesse da criança e do adolescente e proteção da sua situação peculiar de desenvolvimento, que só pode ser concretizado dentro da estrutura familiar. Por isso a manutenção da criança e do adolescente no seu ambiente familiar é sempre preferível frente ao acolhimento institucional. Entretanto, quando a entidade familiar de origem não for capaz de prover uma situação adequada, colocando a criança e o adolescente em situação de risco, se faz necessário a destituição do poder familiar, que implica no acolhimento institucional, sendo a colocação da criança em uma nova família a medida urgente a ser tomada, para que este tempo de institucionalização seja o mínimo possível (OLIVEIRA, 2017). Tendo em vista a importância da família no desenvolvimento das crianças e adolescentes, a adoção se revela como medida de extrema importância para a criação de laços protetivos da infância e adolescência. Esta é uma medida utilizada não só para a formação de famílias compostas por casais heterossexuais, como também das compostas por casais homossexuais. Ocorre que, toda a importância da adoção como forma de proteção e concretização de princípios básicos da infância e adolescência, como o do melhor interesse e da proteção integral das crianças e adolescentes, são postos de lado frente à prevalência do preconceito contra as pessoas LGBTQs e as famílias homoafetivas, visto a dificuldade e resistência que estes modelos familiares enfrentaram ao participarem dos processos de adoção (MACHIN, 2016). Segundo Maria Berenice, para burlar o sistema heteronormativo excludente, os casais formados por pessoas do mesmo gênero buscaram a adoção unilateral ou monoparental, pleiteada por um único adotante. Neste tipo de adoção, não era necessário comprovar a convivência conjugal, nem matrimônio, requisitos obrigatórios da adoção conjunta ou biparental. O requisito matrimonial só passou a ser possível para casais homoafetivos a partir da decisão do STF em 2011, sendo, portanto, impossível de ser cumprido pelos casais nãoheterossexuais até a data do julgado. Note-se que, com o surgimento das doutrinas da socioafetividade, a filiação e a parentalidade homoafetiva, mesmo antes da ADI 4.277, reconhecendo as uniões estáveis e casamentos homoafetivos, já deveriam ter sido garantidas, visto que, segundo Berenice Dias (2017), o princípio da afetividade gera vínculo familiar entre as pessoas que não possuem vínculos reconhecidos pelo sistema. A autora, afirma, ainda que “A filiação socioafetiva 62 assenta-se no reconhecimento da posse do estado de filho: a crença da condição de filho fundada em laços de afeto” (2016). A doutrina cita três critérios para caracterizar a posse do estado de filiação: a) tractatus: quando as pessoas se relacionam entre si mesmo e perante a sociedade como pais e filhos; b) nominatio: quando a pessoa é conhecida pelo nome patronímico, não só no registro, mas também nas suas interações sociais (nome social); c) reputatio: é a repercussão do tractatus e o reconhecimento da situação que se concretiza socialmente (TARTUCE, 2017). Nas filiações socioafetiva de pais LGBTQs, todos os critérios são devidamente preenchidos de forma que não há como negar o vínculo familiar sem se fundamentar em preconceitos e discriminações aos desviante da norma heterossexual. Destaque-se que, o Estatuto da Criança e do Adolescente, de 1990, em conformidade com a Constituição Federal, “já não restringia família à existência de dois sexos como casal parental. No entanto, tornar explicita a orientação sexual, correspondia, muitas vezes, a ter seu pedido de adoção negado” (MACHIN, 2016, p. 351), de maneira que a adoção unilateral passou a ser, por muito tempo, a saída para estas composições familiares não-heterossexuais. Esta modalidade de adoção dentro do contexto das famílias homoparentais se mostrava, além de discriminante da sexualidade dos pais/mães, prejudicial aos filhos/as, que mesmo possuindo dois pais ou duas mães, somente possuíam garantia de direitos ligados a filiação em relação a um deles. Desta forma, a criança ou adolescente adotada só teria direitos patrimoniais e sucessórios em relação à figura parental constante no seu registro. Da mesma forma, caso a união fosse desfeita, só teria direito a demandar judicialmente alimentos ou qualquer direito decorrente do vínculo de filiação em relação ao pai ou mãe que constava no registro, demonstrando claro desrespeito à vedação de tratamento desigual entre filiações, visto que a filiação homoafetiva restava prejudicada frente à filiação heteroafetiva. Analisadas a importância da adoção, tanto para as crianças, quanto para as entidades familiares homoafetivas, suas dificuldades e entraves, serão abordadas no próximo item as peculiaridades concernentes às parentalidades de casais compostos por mulheres frente aos casais compostos por homens e de que maneira isso se correlaciona à Adoção Homoafetiva. 63 4.4.1 As peculiaridades das parentalidades homoafetivas Em outra perspectiva sobre tema da Adoção Homoafetiva, cumpre observar as diferenças entre casais lésbicos e casais gays. Primeiramente, destaque-se que os indivíduos que compõem estes relacionamentos sofrem grande influência do modelo heteronormativo e dos papéis de gênero impostos pela matriz heterossexual. Isto porque, de um lado, a maternidade, mesmo dentro de um relacionamento lésbico, é vista como natural e, inclusive, “pode aproximá-las da vivência de outras mulheres não-lésbicas (‘uma mulher como outras’)” enquanto de outro, “entre os gays a busca pela paternidade não os insere num contexto de proximidade ‘como outros homens’, mas tende a sugerir um lugar de monstruosidade ou pedofilia” (MACHIN, 2016, p. 354). Assim, a visão sobre a paternidade homoafetiva é carregada por preconceito, que rememora o sujeito sodomita, enquanto a maternidade homoafetiva é naturalizada pela imposição da maternidade enquanto propósito da mulher e do casamento. Rosana Machin (2016), conclui que os modelos familiares de casais compostos por mulheres se diferenciam dos compostos por homens, na medida em que entre os casais lésbicos predomina a busca ou uso de tecnologias reprodutivas, dentre elas, a reprodução heteróloga, abordada anteriormente neste capítulo. Já entre os casais compostos por homens, a autora afirma que predomina a adoção, considerando a necessidade de recorrer a uma genitora e o receio que este vínculo “possa colocar em risco lugar de pais, ou mesmo, vir a significar a perda da criança para a mãe biológica num processo judicial futuro” (MACHIN, 2016, p. 352). Sob este viés, embasada em pesquisas empíricas, Miriam Pillar Grossi afirma que O casal de lésbicas, com uma diferença etária de pelo menos 15 anos em relação ao casal gay, se constitui no projeto de maternidade, enquanto que a paternidade para o casal de homens é um desejo que se concretiza, aparentemente, por acaso. O filho não era um projeto possível ou viável no casal de homens, que vivenciaram a homossexualidade como exclusão do modelo familiar. Seus relatos, sobre a chegada do menino na família, enfatizam a mudança do comportamento sexual anterior, visto como promíscuo. O filho “limpa” a homossexualidade dos pais e assume um lugar de “salvador” para estes homens, legitimando-os socialmente com o marcador social da identidade de gênero da paternidade, como mostrou Tarnovski ao 64 analisar alguns casos de pais gays. [...] Para as lésbicas, jovens de menos de 30 anos, que tiveram na paixão pela outra a revelação de sua homossexualidade, a maternidade nunca foi vista como excludente, ao contrário, fazia parte do projeto de conjugalidade desde o princípio. (2003, p. 272) Desta maneira, considerando que o Conselho Federal de Medicina na Resolução 2.168 de 2017, permitiu o uso de técnicas em casais homoafetivos e a possibilidade de gerar um filho no interior do relacionamento lésbico, além das apontadas resistências e dificuldades no processo de adoção, as tecnologias de reprodução têm se mostrado a preferência dos casais lésbicos que visam construir uma família, sendo a adoção uma escolha predominante dos casais gays, segundo aponta Machin (2016). Restando evidenciado, assim, que as práticas de parentalidade se revelam muito mais que apenas os valores do casal, pois são, também, resultados “das possibilidades institucionais que circundam a reprodução” (FONSECA, 2008, p. 776). Não só a reprodução, como a parentalidade também é resultado das possibilidades institucionais. Em notícia datada de 2015, o CNJ afirma que a segunda Adoção Homoafetiva conjunta realizada legalmente aconteceu em Alagoas, frisando que a primeira adoção havia acontecido em 200520, expondo de maneira implícita o quanto as famílias homoafetivas ainda são uma exceção legal, em virtude de políticas institucionais excludentes, visto que a notícia de adoção homoafetiva ocorreu 10 anos após a primeira. Tal fenômeno não condiz com a realidade fática das famílias homoafetivas, entretanto, condiz com a realidade heteronormativa do direito que resiste em conceder tratamento igualitário às pessoas LGBTQs e às entidades familiares compostas por estas pessoas. 4.4.2. O Recurso Especial nº 1.281.093/SP Em virtude desta realidade de falta de políticas e normas que assegurem o direito das crianças e adolescentes de possuírem uma família independente da sexualidade dos que exercerão a parentalidade, surgem as demandas sobre o tema no judiciário. Foram procuradas jurisprudências no site do Supremo Tribunal Federal a respeito do tema, motivado pelo efeito CNJ – Conselho Nacional de Justiça. Alagoas é o 2º a realizar uma adoção homoafetiva legalmente. 2015. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/alagoas-e-o-2-a-realizar-uma-adocao-homoafetiva-legalmente/>. Acesso em: 22 fev. 2020. 20 65 erga omnes conferido as decisões desta corte, que vincula os tribunais a decidirem em mesmo sentido. No entanto, os resultados obtidos foram parcos, inviabilizando a pesquisa jurisprudencial nesta corte. Isto porque, quando pesquisado o filtro “adoção homoafetiva”, no recorte temporal de 06/05/2011 até 06/01/2020, das 14 respostas obtidas, nenhuma tratava diretamente sobre o reconhecimento ou a garantia ao direito de adoção por parte de casais formados por pessoas do mesmo gênero. Diante deste cenário, a jurisprudência será utilizada de maneira instrumental para analisar como fora decidido um caso de adoção unilateral por parceira homoafetiva da mãe biológica, em decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida pela relatora Nancy Andrighi em sede de Recurso Especial nº 1.281.093/SP. A partir deste julgado, será debatido pontos principais da decisão, evidenciando problemáticas discutidas anteriormente neste capítulo. Para fins de contextualização, a criança pela qual a adoção unilateral estava sendo requisitada era fruto de reprodução assistida heteróloga e fora planejamento do casal, gozando de posse de estado de filha da companheira da mãe biológica. Neste caso, o juiz de primeiro grau concedeu a adoção unilateral à companheira da mãe biológica da criança, motivo pelo qual o Ministério Público interpôs recurso, que fora negado, posteriormente apresentando Recurso Especial, alegando violação dos artigos 6º, 42 §2º e 43 do Estatuto da Criança e do Adolescente, arts. 1.626, parágrafo único e 1.723 do Código Civil, sustentando que não se vislumbra a existência de 'reais vantagens' para a adotanda. Realmente, a adotanda, hoje uma criança, amanhã uma adolescente, passará por uma série de constrangimentos e discriminações, sempre que exibir em seus documentos pessoais sua inusitada condição de filha de duas mulheres. A lei diz que nenhuma criança será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação etc. (ECA, art. 5o), porém é notório que a presente adoção fornece elemento propício a gerar futura discriminação, de sorte que se afigura lícito concluir pela inexistência de reais vantagens à adotanda, estando ausente o requisito a que alude o artigo 43 do ECA. (fls. 293/294, e-STJ) (STJ - REsp n. 1.281.093/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, Data de Julgamento: 18/12/2012, DJe 04/02/2013) A princípio, resta clara a medida institucional excludente do ministério público, além de atentatória aos princípios de proteção integral e melhor interesse das crianças. O Ministério Público do Estado de São Paulo defendeu ser preferível a precariedade de direitos frente a mãe socioafetiva, do que a parentalidade homoafetiva e, desta forma, desconsiderou a posse de estado de filha frente à companheira da mãe biológica, pois afirmou que seria constrangedor 66 possuir o nome de duas mães no registro da criança para fundamentar a negativa de direitos inerentes à filiação. Em resposta, a ministra Nancy Andrighi argumenta que, da mesma forma que a criança sofreria preconceito por possuir o nome de duas mulheres em seu registro, também sofreria se houvesse o nome de apenas uma, “que igualmente poderia dar ensejo a tratamento diferenciado”, pois o mesmo sistema heteronormativo que oprime as pessoas LGBTQs, também oprime as mães solteiras21, julgando que a discriminação que a criança poderia sofrer na sociedade não era suficiente para obstar o pedido de adoção, “por ser perfeitamente contornável e ser suplantada, em muito, pelos benefícios outorgados pela adoção”. Assim, continua seu voto defendendo que, Não pode o sistema jurídico albergar, ainda hoje, essas incongruências ou forçar aqueles que buscam, voluntária e regularmente, dar amparo, carinho e cuidado a uma criança sem lar, a se sujeitarem a arranjos marginais, que muitas vezes se mostram frágeis e insuficientes para garantir a segurança psicológica social e jurídica de quem deveria ter primazia nessa situação: o adotando. [...] Os obstáculos interpostos à plena aceitação e legalização desse notório fato social são tartamudeios calcados em preconceitos que, como posto inicialmente, não tem mais guarida no sistema jurídico nacional, até mesmo pela cristalização da legalidade da união estável homoafetiva, pelo STF. (STJ - REsp n. 1.281.093/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, Data de Julgamento: 18/12/2012, DJe 04/02/2013) Desta maneira, considerando ADI 4.277 que reconhece as uniões e casamento homoafetivos, equiparando-os às uniões heteroafetivas, a relatora afirma a possibilidade jurídica do pedido, visto que se a adoção é possível para o extrato heterossexual, também deve ser para a fração homossexual, pontuando os motivos pelos quais não deveria haver nenhum empecilho para adoção de crianças por casais homoafetivos, quais sejam a óbvia cidadania integral dos adotantes; segundo: para a ausência de prejuízo comprovado para os adotados e; terceiro: para a evidente necessidade de se aumentar, e não restringir, a base daqueles que desejam adotar, em virtude da existência de milhares de crianças que longe de quererem discutir a orientação sexual de seus pais, anseiam apenas por um lar. (STJ - REsp n. 1.281.093/SP, 21 Termo machista, imbuído com o ranço sacramental do casamento enquanto meio de reprodução, designado para as mulheres que exercem sozinhas a parentalidade quando, por muitas das vezes, a figura paterna exime-se de sua responsabilidade, recaindo sobre elas a culpa e o estigma pela ausência ou comportamento falho do genitor. 67 Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, Data de Julgamento: 18/12/2012, DJe 04/02/2013) O argumento da Ministra considera a situação das crianças e adolescentes no Brasil que aguardam para serem reinseridas em uma família. Muitas delas acabam crescendo e atingindo a maioridade dentro dos acolhimentos institucionais, visto que muitos casais tem preferência por crianças menores de 3 anos e de etnia caucasiana, com a finalidade de invisibilizar o fato de que trata-se de um vínculo gerado pela adoção (OLIVEIRA, 2017, p. 62). É neste cenário que emerge a importância das famílias homoparentais e da adoção homoafetiva, pois estes pares tendem preferir crianças com perfis mais diversos, inclusive, os que estão na chamada adoção necessária, que são as mais difíceis de ocorrer, dentre elas, as crianças acima de 6 anos, com problemas de saúde e com etnias diferentes dos adotantes (OLIVEIRA, 2017). De forma que, Essa posição encontra similar entre os estudos relativos à adoção internacional entre lésbicas e gays, que revelam haver entre estes casais maior abertura para adoções de crianças distintas de suas características étnicas/raciais (across racial lines), portadoras de problemas de saúde ou mesmo necessidades especiais (Brodzinsky & Pertman, 2012; Faar & Patterson, 2009). (MACHIN, 2016) Na mesma decisão, a ministra afirma que a Constituição Federal, não limita os direitos de cidadãos ao exercício pleno de sua cidadania por orientação sexual. Apontando, inclusive, países em que há legislação sobre a Adoção Homoafetiva, como a Holanda Suécia, Bélgica, Inglaterra, Alemanha, Províncias canadenses de Quebec e Nova Scotia, alguns Estados americanos e, inclusive, o Uruguai, que já em 2009, aprovou lei permitindo a adoção por casais homoafetivos. Em conclusão a esta breve análise, percebe-se ampla consonância do que fora apresentado sobre adoção homoafetiva no presente trabalho com o julgado paradigma do STJ. Diante do exposto, observa-se que a adoção homoafetiva é fundamentada na ADI 4.277 e ADPF 132, que tratam sobre a união e casamento homoafetivos e, até o presente momento, não há norma ou decisão do STF tratando especificamente do tema. De maneira que, a Adoção Homoafetiva é a interpretação da interpretação conforme a constituição do artigo 1.723 do Código Civil e 226, § 3º da Constituição. Sendo notável, portanto, a precariedade dos direitos humanos LGBTQs, pois, conforme já previamente discutido, as decisões jurisdicionais podem ser superadas, em fenômeno conhecido como virada jurisprudencial. Nada garante que o novo 68 entendimento terá um viés protetivo aos direitos das minorias, visto que as decisões dependem da composição de forças do órgão julgador. Assim, torna-se claro o baixo reconhecimento jurídico dos direitos relativos à população LGBTQ e a proteção jurídica das relações homoafetivas, que sempre precisam se provar dignas e combater a resistência em conceder tratamento igualitário à estas relações, de maneira claramente atentatória ao texto constitucional. O comportamento demonstrado pelo Ministério Público de São Paulo fundamentado em preceitos heteronormativos excludentes no caso apresentado é o mesmo adotado pelas mais diversas instâncias de poder. Portanto, diante da ausência de normas expressas assecuratória dos direitos das pessoas e famílias LGBTQs, cumpre salientar projetos como o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero (PL nº 134/2018) que visa em seu art 1º “promover a inclusão de todos, combater e criminalizar a discriminação e a intolerância por orientação sexual ou identidade de gênero” para garantir a “efetivação da igualdade de oportunidades, a defesa dos direitos individuais, coletivos e difusos das minorias sexuais e de gênero”. Assim como o Estatuto das Famílias (PL nº 470/2013), que institui a família como um direito fundamental de todos, protegendo-as em qualquer de suas modalidades e, desta forma, defender a família a partir de uma ideia de alteridades e multiplicidade, fora do contexto da família nuclear heterossexual. (GROSSI et al., 2007, p. 297) Apenas assim, o ordenamento jurídico brasileiro garantirá seus princípios constitucionais cristalizados na Carta de 1988, acompanhando a tendência internacional de respeito aos direitos humanos e proteção à dignidade das pessoas LGBTQs. 69 5. CONCLUSÃO O presente trabalho buscou compreender conceitos sobre gênero, sexualidade, políticas identitárias e heteronormatividade, utilizando-se dos fundamentos da Teoria Queer, para analisar o instituto da Adoção Homoafetiva no ordenamento jurídico brasileiro. Para isto, também foram observados conceitos previstos no Direito das Famílias e no Estatuto da Criança e do Adolescente, onde se encontra a temática da Adoção, quais sejam, os conceitos de socioafetividade, homoafetividade, parentalidades e os princípios do melhor interesse e da proteção integral das crianças e dos adolescentes. O tema em questão se apresenta como relevante não só para a população LGBTQ e aos casais homoafetivos, que devem ser respeitados enquanto sujeitos de direitos, gozando das mesmas garantias e proteções jurídicas designadas à parcela heterossexual da sociedade, como também para as crianças e adolescentes que estão em situação de acolhimento institucional. Desta maneira, o presente trabalho visa contribuir tanto para o debate acerca da adoção homoafetiva, que possui escassa produção acadêmica, como também para a defesa dos direitos LGBTQs, através das ferramentas proporcionadas pela Teoria Queer, em tempos que o Presidente da República eleito é alguém que afirmou publicamente ser um homofóbico orgulhoso22. Diante de tudo que fora exposto, foi possível concluir que, quanto ao tema da Adoção Homoafetiva, a partir da análise do REsp. nº 1.281.093/SP, restou salientado que o princípio de melhor interesse da criança e dos direitos das entidades familiares homoafetivas deveriam prevalecer, entretanto, em decorrência da heteronormatividade das instâncias de poder, estes princípios e direitos são apagados. Mesmo o risco para o desenvolvimento saudável de crianças e adolescentes em acolhimentos institucionais ser algo observável pelo senso comum, a homofobia e o preconceito prevalecem. Esta mesma lógica se aplica aos outros direitos concernentes a população LGBTQ, visto que apenas o Poder Judiciário concretizou a esta população as garantias constitucionais inerentes à dignidade da pessoa humana. Assim, conclui-se pelo baixo reconhecimento jurídico dos direitos LGBTQs e homoafetivos, visto que o direito brasileiro está imbuído de uma visão heteronormativa que dificulta a garantia de direitos inerentes a esta população, salientado tanto pela parca redação 22 El PAÍS. Brasil criminaliza homofobia e reforça queda de braço com conservadorismo. 2019. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/06/14/actualidad/1560496365_764572.html. Acesso em: 09 mar. 2020. 70 de normas pelo devido processo legislativo, quanto pelas decisões abordadas neste trabalho, em que a tutela jurisdicional se torna o único meio de obtenção legal de direitos. Por fim, cumpre enfatizar a necessidade de seguir o exemplo internacional e aprovar normas que regulamentem esses direitos, como nos mencionados Estatuto das Famílias (PL nº 470/2013) e o Estatuto da Diversidade Sexual e de Gênero (PL nº 134/2018), para que a população LGBTQ obtenha proteção jurídica e, consequentemente, políticas públicas imprescindíveis para a garantia de seus direitos humanos fundamentais. 71 REFERÊNCIAS ANTRA, Associação Nacional de Travestis e Transexuais. Cartilha Alteração Nome e Gênero. 2018. Disponível em: https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/11/cartilha-alteracao-nomee-genero2.pdf. Acesso em: 02 mar. 2020. ARAUJO, Dhyego Câmara de. Heteronormatividade jurídica e as identidades LGBTI sob suspeita. Revista Direito e Práxis, v. 9, n. 2, p.640-662, jun. 2018. BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. Tradução, Sérgio Milliet. BENEVIDES, Bruna G.; NOGUEIRA, Sayonara Naider Bonfim (Org.). 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