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DIRETORIA GERAL DA INTERCOM 2017-2020 Presidente – Giovandro Marcus Ferreira (UFBA) Vice-Presidente – Fernando Ferreira de Almeida (UMESP) Diretora Editorial – Rosiméri Laurindo (FURB) Diretor Financeiro – Marcelo Briseno (UMESP) Diretora Administrativa – Sônia Maria Ribeiro Jaconi (UMESP) Diretora de Relações Internacionais – Roseli Fígaro (USP) Diretor Cultural – Allan Soljenítsin Barreto Rodrigues (UFAM) Diretora de Documentação – Adriana C. Omena Santos (UFU) Diretora de Projetos – Ariane Carla Pereira Fernandes (UNICENTRO) Diretora Científica – Nair Prata Moreira Martins (UFOP) Secretaria Maria do Carmo Silva Barbosa Genio Nascimento Thaiane Alves Torres Ana Clara Toassa Sprengel Direção Editorial: Roseméri Laurindo (FURB) Presidência: Muniz Sodré (UFRJ) Conselho Editorial – Intercom Alex Primo (UFRGS) Alexandre Barbalho (UFCE) Ana Sílvia Davi Lopes Médola (UNESP) Christa Berger (UNISINOS) Cicília M. Krohling Peruzzo (UMESP) Erick Felinto (UERJ) Etienne Samain (UNICAMP) Giovandro Ferreira (UFBA) José Manuel Rebelo (ISCTE, Portugal) Jeronimo C. S. Braga (PUC-RS) José Marques de Melo (UMESP) Juremir Machado da Silva (PUCRS) Luciano Arcella (Universidade d’Aquila, Itália) Luiz C. Martino (UnB) Marcio Guerra (UFJF) Margarida M. Krohling Kunsch (USP) Maria Teresa Quiroz (Universidade de Lima/Felafacs) Marialva Barbosa (UFF) Mohammed Elhajii (UFRJ) Muniz Sodré (UFRJ) Nélia R. Del Bianco (UnB) Norval Baitelo (PUC-SP) Olgária Chain Féres Matos (UNIFESP) Osvando J. de Morais (UNESP) Pedro Russi Duarte (UnB) Sandra Reimão (USP) Sérgio Augusto Soares Mattos (UFRB) DESIGUALDADES, RELAÇÕES DE GÊNERO E ESTUDOS DE JORNALISMO Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez Organizadores 1ª Edição - SÃO PAULO/SP - Brasil - 2018 Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo Copyright © 2018 dos autores dos textos, cedidos para esta edição à Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM. Direitos Autorais reservados de acordo com a Lei 9.610/98 Direção Roseméri Laurindo Projeto Gráfico e Diagramação Life Editora Organizadores Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez Editoras assistentes Vanessa Heidemann e Raquel de Souza Jeronymo Revisão Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez Ficha Catalográfica Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo / Organizadores: Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez – São Paulo, SP: Life Editora, 2018. 434p. ; E-book ; PDF ISBN: 978-85-8208-114-3 Prefixo Editorial: 8208 Inclui bibliografias. 1. Desigualdades 2. Relações de Gênero 3. Estudos de Jornalismo I. Título CDD - 360 Proibida a reprodução total ou parcial, sejam quais forem os meios ou sistemas, sem prévia autorização dos autores. Todos os direitos desta edição reservados à: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – INTERCOM Rua Joaquim Antunes, 705 – Pinheiros CEP: 05415-012 – São Paulo/SP – Brasil Tel: (11) 2574 8477 | (11) 3596 4747 http://www.portalintercom.org.br/ - E-mail: secretaria@intercom.org.br Apresentação Leonel Aguiar (PUC-Rio) Marcos Paulo da Silva (UFMS) Monica Martinez (Uniso) É com imensa alegria que realizamos a honrosa tarefa acadêmica de apresentar o livro Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo. Composto por 24 capítulos, o e-book resulta de uma chamada para seleção de trabalhos feito pelo Grupo de Pesquisa em Teorias do Jornalismo da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) e está alinhado com o tema do 41º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, que ocorreu em Joinville, Santa Catarina, em setembro de 2018. O objetivo deste dossiê, produzido por 46 pesquisadoras e 12 pesquisadores, foi congregar reflexões e contribuições a respeito da interlocução das questões das relações de gênero com os estudos teóricos do jornalismo. A perspectiva teórica desta publicação parte do princípio de que as desigualdades sociais – econômicas, étnicas, geopolíticas e, especialmente, de relações de gênero, tema do dossiê – tencionam e se manifestam no jornalismo de modo muito mais complexo do que as mazelas que cotidianamente são apresentadas (e representadas) nas pautas noticiosas. Entendemos que esta é uma questão ontológica para o campo jornalístico. As desigualdades estão na organização da esfera profissional, nas linguagens constitutivas da prática jornalística, nas características estético-expressivas e ético-políticas do modo particular de narração dos fatos pelas notícias e por outros formatos jornalísticos. Em um sentido mais amplo, a desigualdade remete à ideia de dessemelhança, diferença; em última instância, ao universo da alteridade, condição sine qua non na democracia, desde que respeitada, para o desenvolvimento de uma sociedade dialógica e tolerante. Por seu turno, a ideia de relações de gênero, como conceito e/ ou noção, remete a diferentes interpretações no terreno das teorias sociais. Em suma: os textos aqui publicados, embora concentrados no campo dos Estudos de Jornalismo, destacam os Estudos das Relações de Gênero como campo do conhecimento dotado de iminência e urgência no atual estágio da sociedade democrática. O e-book está dividido em quatro partes, cada uma com seis capítulos. A primeira parte, intitulada A mulher no mundo do trabalho: dos conflitos de gênero às experiências de resiliência, começa com o capítulo Sentido do trabalho, sofrimento e prazer para as trabalhadoras jornalistas, de autoria de Alice Mitika Koshiyama e Cristiane Oliveira Reimberg. O trabalho analisa sete entrevistas realizadas com jornalistas mulheres que abordam o sentido do trabalho, o ritmo e a pressão da atividade na qual estão envolvidas e o espaço para criatividade e autonomia. As autoras apontam, entre outras questões, que o sentido do que é ser jornalista e do trabalho que realizam possui características da construção social do que é jornalismo. O capítulo 2, A mulher na redação em Portugal: o processo de feminização do jornalismo, escrito por Alfredo Vizeu e Ana Paula Bandeira, demonstra como as jornalistas, mesmo não estando no topo da hierarquia institucional, influenciam, de forma progressiva, não apenas na organização e na distribuição das tarefas de produção da informação, mas principalmente com um novo olhar para os temas de relevância social. O capítulo seguinte, Repensar os parâmetros hegemônicos no jornalismo: a perspectiva de gênero na produção jornalística e na formação profissional, de autoria de Karina Janz Woitowicz e Paula Melani Rocha, discute como os critérios de noticiabilidade determinam o modo de as temáticas de gênero estarem ou não inseridas na pauta jornalística e avança na direção de um diálogo entre as lógicas do mercado profissional e as exigências de formação específica em jornalismo. No capítulo 4, Agenda da imprensa feminista: rupturas e continuidades, Viviane Gonçalves Freitas e Lucy Oliveira partem do pressuposto de que a militância feminista no jornalismo é dinâmica para analisarem as rupturas e as continuidades na agenda da imprensa feminista no período pós-2010. O corpus de pesquisa é composto pelas publicações Nós, Mulheres da Periferia, Think Olga e As Catarinas. No capítulo 5, Transformações do jornalismo e relações de gênero: análise do ciberfeminismo midialivrista dos portais AzMina e Think Olga, as autoras Katarini Giroldo Miguel e Letícia de Faria Ávila Santos problematizam os conceitos de ciberfeminismo e de midialivrismo para, a partir das experiências comunicativas de dois portais ciberfeministas, proporem uma reflexão sobre as estratégias de mobilização engendradas em rede na temática das relações de gênero. Vozes do Leste: os jornalismos literários de Svetlana Alekiévich e Hanna Krall é o título do capítulo 6 no qual Mateus Yuri Passos e Arthur Breccio Marchetto analisam as especificidades da produção dessas duas jornalistas e comparam os resultados dessas análises aos de outros estudos sobre estilo e discurso em jornalismo literário. Para esta abordagem, escolheram duas obras de cada autora. A parte II do livro, denominada Diferenças que transcendem: jornalismo e interseccionalidade, começa com o trabalho das pesquisadoras Claudia Lago, Evelyn Kazan e Manuela Thamani. O capítulo, que recebeu o título Jornalismo e estudos de gênero: e a interseccionalidade, onde está?, investiga os trabalhos de pesquisa que contêm a interface jornalismo e questões de gênero nos principais periódicos brasileiros dedicados especificamente ao campo dos Estudos de Jornalismo: Brazilian Journalism Research e Estudos de Jornalismo e Mídia. O capítulo 8, com a autoria de Andréa Corneli Ortis, Lauren Santos Steffen, Mariana Nogueira Henriques e Flavi Ferreira Lisbôa Filho, analisa duas reportagens telejornalísticas sobre a primeira atleta profissional transexual do país. Uma transexual na Superliga feminina de vôlei: representações de gênero no telejornalismo esportivo é o título do trabalho que realiza uma análise do discurso para identificar os sentidos construídos nas reportagens selecionadas. O capítulo 9, Vidas que importam: problematizações acerca de reportagens veiculadas nas mídias sobre assassinatos de travestis e transexuais no Brasil, escrito por Adriana Sales, Bruna Benevides e Fábio Morelli, analisa reportagens sobre corpos trans e questiona a produção das notícias a respeito das vidas de travestis e transexuais por destacarem apenas suas vulnerabilidades e o contexto violento em que estão inseridas. Já no capítulo seguinte, Tendências queer nos estudos brasileiros de jornalismo e gênero, Gean Oliveira Gonçalves aponta os possíveis diálogos epistemológicos e aproveitamentos metodológicos que os Estudos de Jornalismo podem ter a partir da Teoria Queer. Ao reunir perspectivas críticas dentro dos Estudos de Gênero, essa teoria demonstra como são produzidos os sentidos de normalidade e as normas. O capítulo 11 tem como autoras Dione Oliveira Moura e Hallana Moreira R. da Costa. No texto Mulheres jornalistas e o “teto de vidro gênero/raça/classe” a tensionar a carreira das jornalistas negras brasileiras, as pesquisadoras fazem um mapeamento das ações e relatos de experiências de mulheres negras jornalistas do Distrito Federal, especialmente as que participam das comissões do Sindicato dos Jornalistas, e refletem sobre os motivos de a feminização da profissão não ter proporcionado para as mulheres – e, menos ainda, para as mulheres negras – os papéis de liderança no jornalismo. O capítulo 12, que encerra a segunda parte do e-book, intitula-se Representações e (in)visibilidades da negritude no telejornalismo brasileiro: o negro e as relações étnico-raciais são notícias na TV?. De autoria de Beatriz Becker e Rafael Pereira da Silva, o texto apresenta um estudo das relações étnico-raciais no telejornalismo por meio de uma análise comparativa das narrativas de dois telejornais, realizando a leitura crítica de 72 edições. O capítulo 13, O enquadramento biopolítico de mulheres empobrecidas em fotografias jornalísticas sobre o Programa Bolsa-Família, abre a terceira parte do livro, denominada Representações da mulher na mídia: o universo da política. As autoras, Ângela Cristina Salgueiro Marques e Angie Gomes Biondi, analisam imagens fotojornalísticas, publicadas nos jornais brasileiros de referência, que retrataram as mulheres beneficiadas pelo Programa Bolsa-Família e discutem as implicações estético-políticas desses enquadramentos midiáticos. O capítulo 14, Jornalismo, gênero e desigualdades: análise das notícias sobre a ampliação de direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil e na Argentina, escrito por Danila Cal, Lorena Esteves e Matheus Nery, avalia como o jornalismo narra as desigualdades que envolvem mulheres subalternizadas. Para essa tarefa de pesquisa, selecionaram 40 matérias jornalísticas sobre trabalho doméstico publicados nas plataformas online dos jornais Folha de S. Paulo e Clarín. A seguir, Ana Maria da Conceição Veloso e Patrícia Paixão de Oliveira Leite apresentam, no capítulo O discurso sexista da Folha de S. Paulo e da Veja na campanha de Dilma Rousseff em 2010, um estudo de caso envolvendo matérias jornalísticas publicadas nos dois periódicos de maior circulação no país e observam as marcas do discurso de gênero que realizaram o enquadramento dessa cobertura. Já o capítulo 16, O enquadramento do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff nas revistas semanais: simplificação, silenciamento de atores e utilização de fontes não identificadas como recursos retóricos, parte das referências teórico-metodológicas da framing analisys para estudar o modo como duas das principais revistas semanais de informação constituíram estratégias retóricas para estabelecerem o enquadramento noticioso do período presidencial relativo ao ano de 2015. Os autores desse trabalho são Marcos Paulo da Silva e Raquel de Souza Jeronymo. Jornalismo sindical, local, relações de gênero e cidadania: um estudo sobre a cobertura das eleições gerais de 2010, no Brasil, e seus reflexos no impeachment em 2016 é o título do capítulo 17. De autoria de Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad, analisa um conjunto de matérias de um jornal local e de um informativo sindical de metalúrgicos, ambos editados em uma cidade interiorana mineira, para compreender como o jornalismo lida com a questão de gênero e a presença da mulher nas eleições. Fechando a terceira parte deste livro, Liziane Guazina, Ébida Santos e Francisco Verri discutem como o jornalismo reproduz os valores culturais da sociedade na qual está inserido no texto “Bela, recatada e do lar” ou embaixadora do “Criança Feliz”: por que a primeira-dama é pauta?. Para isso, investigam quais os valores-notícia legitimadores da cober- tura jornalística realizada pelo principal jornal de referência do país que cita a esposa do presidente da República. A quarta e última parte do e-book, que recebeu o título Estudos de gênero no campo jornalístico: visibilidades e invisibilidades, abre com o capítulo das pesquisadoras Monica Martinez e Vanessa Heidemann que aborda Relações de gênero e estudos em jornalismo: mapeamento dos trabalhos apresentados na Intercom. O trabalho visa compreender, no âmbito dos estudos de jornalismo, a produção científica apresentada ao longo dos 40 anos de congressos da Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação que realiza a interface com os estudos sobre relações de gênero. No capítulo 20, Desigualdade, violência e drogas na pauta noticiosa: a tipificação heteronormativa na narrativa jornalística, as autoras Camila Hartmann e Ada C. Machado da Silveira buscam compreender como o jornalismo produz sentido sobre a chamada “nova classe média” e, para isso, analisam as capas das quatro revistas semanais de circulação nacional entre os anos 2000 e 2015. O capítulo seguinte, O jornalismo e os silenciamentos na relação de gênero: um estudo a partir do caso Marielle Franco, apresenta como corpus de pesquisa as notícias publicadas no dia seguinte ao crime por quatro jornais com amplas diferenças editoriais. Ao analisarem os jornais Meia Hora, Zero Hora, Folha de S. Paulo e O Globo, Lídia Schwantes Hoss, Patrícia Regina Schuster e Vanessa Costa de Oliveira realizam uma cartografia do discurso jornalístico em tensionamento com o tema das relações de gênero. O capítulo 22, O feminicídio íntimo sob a ótica do jornalismo popular, analisa as notícias sobre crimes contra as mulheres em um jornal tabloide goiano. De autoria das pesquisadoras Maria Amélia Pedro Saad, Ivia Maksud e Edinilsa Ramos de Souza, o trabalho demonstra como o discurso jornalístico perpetua a dominação masculina e tende a legitimar o feminicídio. O próximo capítulo tem a autoria de Valquíria Michela John, Elyson Richard Gums e Dieize Carol Coimbra e intitula-se Jornalismo esportivo e a (in)visibilidade feminina: análise da cobertura dos portais espnW e Lance! durante e após as Olimpíadas 2016. O trabalho conclui que, mesmo com um grande participação de atletas mulheres no evento, há uma hegemonia da cobertura para os esportes masculinos e para os homens como fontes de informação e comentaristas. O capítulo 24, Jornalismo on-line ao âmbito social: a construção do discurso humanizado à luz do gênero, busca comprovar a importância para a sociedade de um manual de jornalismo humanizado como proposto pelo portal Think Olga. De autoria Paolla dos Santos Souza, Milena Ferreira Hygino Nunes, Talita da Silva Ernesto e Carlos Henrique Medeiros de Souza, o texto aponta que é fundamental promover a transformação da desigualdade de gênero e da violência contra a mulher ainda presente no jornalismo. Temos de confessar que ficamos surpresos com a receptividade que o chamado para este livro teve, bem como com a qualidade, seriedade e densidade das pesquisas que nos foram confiadas para integrar a obra. Um sinal, para nós, de que essa iniciativa de produzir o primeiro e-book do Grupo de Pesquisa em Teorias do Jornalismo da Intercom não foi somente bem-vinda, mas considerada relevante para nossa comunidade científica e que, portanto, pode (e talvez deva) prosseguir com novas obras. Preferencialmente alinhadas, de acordo com o resultado desta experiência, com a temática adotada anualmente pelo tema anual do Congresso da Intercom. Nunca é demais lembrar que essa iniciativa somente teve espaço graças a várias ajudas. A primeira delas, certamente, deve-se ao professor José Marques de Melo (1943-2018), a quem fazemos questão de registrar aqui nossa homenagem. A Felipe Pena, que fundou nosso GP em 2008. A Nair Prata, diretora científica, e Roseméri Laurindo, diretora editorial, que desde o inicio apoiaram a ideia. Nunca poderemos agradecer o suficiente à secretaria da Intercom, que desde sempre nos apoia em todos nossos desafios: Gênio Nascimento e Maria do Carmo Barbosa, nosso muito obrigada. Finalmente, esta obra não seria possível sem a boa vontade e entusiasmo de nossas editoras assistentes, Vanessa Heidemann (Uniso) e Raquel de Souza Jeronymo (UFMS). É pensando em vocês, jovens pesquisadoras e pesquisadores, que canalizamos nossos esforços na esperança de que deem continuidade, no futuro, à nossa comunidade de estudos em jornalismo. Nossa gratidão também a todas as autoras e autores pela presença neste livro com seus trabalhos de pesquisa, que reúnem a um só tempo o vigor da criatividade acadêmica com o rigor teórico para produzir o enlace entre os estudos de jornalismo e das relações de gênero. Prefácio Dulcilia Schroeder Buitoni Professora Sênior ECA-USP Articular gênero e mídia é uma tendência que vem crescendo na pesquisa em jornalismo no Brasil, após décadas de incursões até certo ponto tímidas e/ ou isoladas. Trabalhos recentes mostram que essa perspectiva temática ainda não conseguiu a força que foi desenvolvida em outras áreas do conhecimento. E então, vemos com alegria o surgimento de uma obra que sinaliza caminhos promissores para a investigação de relações de gênero no jornalismo. As pesquisas reunidas neste livro denotam o vigor de uma onda emergente que trabalha com as intersecções entre gênero e jornalismo. No Brasil dos anos 1970, temas sobre a mulher atraíam a atenção principalmente de pesquisadoras, começando a aparecer com alguma frequência. Nas décadas seguintes, o conceito de gênero foi se ampliando para abranger bem mais do que questões femininas. Os capítulos de Desigualdades, relações de gênero e estudos de jornalismo, livro organizado por Leonel Aguiar, Monica Martinez e Marcos Paulo da Silva, caminham nessa linha de maior espectro. Assim, abrangem o mundo do trabalho, a interseccionalidade dos campos, como raça e transgênero, as representações midiáticas da mulher, com ênfase na política, a (in)visibilidade na esfera jornalística e comprovam que as relações de gênero no jornalismo estão sendo investigadas em diferentes eixos, com muita consistência. Este e-book vem reforçar a convicção de que jornalismo e relações de gênero formam um campo de pesquisa que vem se tornando prioritário em nossos dias; a intensidade de seus textos prenuncia uma nova e produtiva onda. A obra vem a ser publicada em consonância com os tempos atuais, em que as reivindicações das mulheres nos Estados Unidos, Europa e Brasil estão resultando em movimentos sociais e encontrando grande espaço na mídia. Mesmo com alguns avanços, inclusive com a conquista de leis que asseguram direitos, ainda continuam as antigas lutas, acrescidas por novas lutas nascidas em torno de novas concepções e novas configurações das relações entre os sexos. Permitam-me voltar no tempo, captando alguns sinais que já antecipavam a emergência dessa força de pesquisa. Alguns nomes são sementes que germinam ainda hoje. O segundo sexo, de Simone de Beauvoir, publicado na França em 1949, foi uma pedra fundamental. A “nossa” Clarice Lispector escrevia a coluna Entre mulheres no jornal carioca Comício e, em 1952, publicou trechos traduzidos do livro de Simone, bem antes da edição brasileira, que saiu em 1960. Outro marco foi La presse féminine (Paris, 1964), da socióloga e militante feminista Évelyne Sullerot: um estudo de cunho histórico, que descreveu as fases da imprensa feminina francesa até os dias da cultura de massa pós Segunda Guerra. Sullerot foi uma das inspiradoras para meus trabalhos de mestrado e doutorado, que resultaram na publicação de Mulher de Papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira (1981 e 2009). Aqui no Brasil, outras mulheres contribuíam decisivamente para a temática de relações de gênero. Três delas foram decisivas para minhas pesquisas em minha pós-graduação. A psicóloga social Ecléa Bosi fez uma pesquisa de campo sobre o que liam mulheres operárias: Cultura de massa e cultura popular, leituras operárias (1972). Miriam Moreira Leite, socióloga e historiadora, fez uma pesquisa no final da década de 1970, que foi publicada no livro A condição feminina no Rio de Janeiro – século XIX (1984); também tem obras sobre Maria Lacerda de Moura, uma feminista brasileira, que publicava uma revista anarquista nos anos 1920; e sobre Retratos de família (1993). A historiadora norte-americana June E. Hahner, que criou o Programa de Estudos sobre a Mulher da Universidade Estadual de Nova York, pesquisou sobre o começo do feminismo no Brasil e teve dois livros publicados: A mulher no Brasil (1978) e A mulher brasileira e suas lutas sociais e políticas – 1850 a 1937 (1981). A primeira dissertação de mestrado por mim orientada, na ECA-USP, trabalha com jornalismo e relações de gênero: Mãe, obrigada: uma leitura da relação mãe/filho no Suplemento Feminino do jornal o Estado de S.Paulo (1985), de Sílvia Lustig. Além da universidade, outros atores sociais apareciam nesse cenário de efervescência de questões que envolviam os papéis da mulher. Na década de 1970, a Fundação Carlos Chagas estimulava pesquisas sobre temas femininos, chegando inclusive a promover concursos de projetos, quando então selecionava pesquisas para serem financiadas. Também tinha uma equipe de pesquisadoras e assessoras, entre elas Maria Malta Campos, Fúlvia Rosemberg, Lia Fukui, Branca Moreira Alves, Carmen Barroso e Cristina Bruschini. O grupo de pesquisa da Fundação Carlos Chagas produziu um vasto levantamento bibliográfico de livros e materiais sobre a condição feminina no Brasil, publicado em 1979: Mulher brasileira: bibliografia anotada. A bibliografia compreendeu principalmente obras acadêmicas: ensaios, pesquisas, estudos publicados sob a forma de livros, artigos de revistas, teses, obras de referência que estavam disponíveis em bibliotecas públicas e particulares. Os títulos foram divididos em quatro áreas temáticas: história; mulher na família; grupos étnicos; e feminismo. O jornal Mulherio, surgido em março de 1981, foi fruto da preocupação das pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas, que desejavam divulgar informações sobre a condição feminina; elas propunham tratar as matérias veiculadas “de uma maneira séria e consequente, mas não mal-humorada, sisuda ou dogmática”. Na primeira fase, de março de 1981 a setembro de 1983, foram publicados 15 números, tendo como responsável pelo projeto a pesquisadora Fúlvia Rosemberg e, como editora, a jornalista Adélia Borges. No início, a publicação do jornal recebeu subsídios da Fundação Ford. Mulherio tinha um logotipo sugestivo, que imitava o corpo feminino; trouxe muito material inovador em termos de foto e texto. A jornalista e psicanalista Maria Rita Kehl fazia parte do conselho editorial e também escrevia artigos. De 1984 a 1988, criou-se o Núcleo de Comunicação Mulherio, que publicou os 24 números seguintes, agora sob a responsabilidade editorial da jornalista Inês Castilho. Foi um período de grande batalha pela autossuficiência do jornal. Em 1985, um grupo de docentes e pesquisadoras da Universidade de São Paulo fundou o Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre a Mulher – NEMGE –, com o objetivo principal de aprofundar, através de pesquisa empírica e estudos teóricos, as articulações entre gênero, etnia e classe social, especialmente no Brasil. Faziam parte deste grupo fundador as professoras Eva Alterman Blay, do Departamento de Ciências Sociais, apontada para coordenação do NEMGE, Carmen Barroso (FFLCH), Rosa Ester Rossini (FFLCS), Maria Amélia Azevedo (IP), Ruth Cardoso (FFLCH), Lia de Freitas Garcia Fukui (FFLCH), Maria Célia Paoli (FFLCH), Elizabeth Lobo (FFLCH), Dulcilia Helena S. Buitoni (ECA) e Miriam L. Moreira Leite (FFLCH). O NEMGE teve períodos de grande atuação, promovendo eventos com universidades de outros estados, realizando seminários, palestras, campanhas de conscientização para alunos e funcionários da universidade, oficinas de direitos da mulher, propondo e obtendo financiamento para projetos, colaborando na formação de novos pesquisadores e publicando resultados de pesquisas e guias educativos. No âmbito da Intercom, houve um GT dedicado às questões de gênero. Começou a funcionar no XIX Congresso Brasileiro (1996), em Londrina. Era o GT 15 Comunicação e Mulher, por mim coordenado. No XX Congresso (1997), em Santos, continuava a mesma denominação. Em 1998, no XXI Congresso, em Recife, tornou-se, por minha proposta, NP 15 Comunicação e relações de gênero: a ideia era possibilitar a discussão de outros temas e concep- ções envolvendo as questões de gênero. Já nesse ano, houve mais variedade nos trabalhos apresentados. O NP 15 Comunicação e relações de gênero esteve em funcionamento nos Congressos XXII (Rio de Janeiro) e XXIII (Manaus). A partir de 2001, houve uma reestruturação com a tentativa de reunir em um único GT gênero, etnia e questões geracionais, que acabou não sendo implantado. Alguns trabalhos sobre gênero apareceram de 2002 a 2005 no GT Comunicação e cultura das minorias. Também distribuíam-se por GTs como Jornalismo, Ficção seriada, Comunicação, espaço e cidadania e outros. Atualmente existe o GT Estéticas, políticas do corpo e gêneros, que pode abrigar pesquisas de comunicação e gênero. Porém, no momento, não há nenhuma denominação que indique especificamente jornalismo e relações de gênero. Nesse sentido, a realização deste e-book pelo Grupo de Pesquisa em Teorias do Jornalismo da Intercom é muito bem-vinda: além de abrir espaço para pesquisadores, responde a uma demanda social urgente. Estudos de jornalismo e estudos de gênero dialogam neste dossiê de 24 capítulos que estimulam e animam convergências e confrontos. Pesquisadores de grande experiência e jovens pesquisadores mostram que as relações de gênero são fundantes de nossas ações pessoais, profissionais e sociais e precisam ser consideradas cada vez mais na comunicação e no jornalismo. Apresentação.....................................................................................................05 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez Prefácio.............................................................................................................11 Dulcília Buitoni PARTE I – A MULHER NO MUNDO DO TRABALHO: DOS CONFLITOS DE GÊNERO ÀS EXPERIÊNCIAS DE RESILIÊNCIA................................18 CAPÍTULO 1: Sentido do trabalho, sofrimento e prazer para as trabalhadoras jornalistas - Alice Mitika Koshiyama e Cristiane Oliveira Reimberg......................................19 CAPÍTULO 2: A mulher na redação em Portugal: o processo de feminização do jornalismo - Alfredo Vizeu e Ana Paula Bandeira..........................................................................35 CAPÍTULO 3: Repensar os parâmetros hegemônicos no jornalismo: a perspectiva de gênero na produção jornalística e na formação profissional - Karina Janz Woitowicz e Paula Melani Rocha...................................................................................................................53 CAPÍTULO 4: Agenda da imprensa feminista: rupturas e continuidades - Viviane Gonçalves Freitas e Lucy Oliveira............................................................................................69 CAPÍTULO 5: Transformações do jornalismo e relações de gênero: análise do ciberfeminismo midialivrista dos portais AzMina e ThinkOlga - Katarini Giroldo Miguel e Letícia de Faria Ávila Santos.................................................................................................89 CAPÍTULO 6: Vozes do Leste: os jornalismos literários de Svetlana Alekiévich e Hanna Krall - Mateus Yuri Passos e Arthur Breccio Marchetto.........................................105 PARTE II – DIFERENÇAS QUE TRANSCENDEM: JORNALISMO E INTERSECCIONALIDADE....................................................................................123 CAPÍTULO 7: Jornalismo e estudos de gênero: e a interseccionalidade, onde está? Claudia Lago, Evelyn Kazan e Manuela Thamani...........................................................124 CAPÍTULO 8: Uma transexual na Superliga feminina de vôlei: representações de gênero no telejornalismo esportivo - Andréa Corneli Ortis, Lauren Santos Steffen, Mariana Nogueira Henriques e Flavi Ferreira Lisbôa Filho...................................................141 CAPÍTULO 9: Vidas que importam: problematizações acerca de reportagens veiculadas nas mídias sobre assassinatos de travestis e transexuais no Brasil - Adriana Sales, Bruna Benevides e Fábio Morelli...........................................................................................157 CAPÍTULO 10: Tendências queer nos estudos brasileiros de jornalismo e gênero Gean Oliveira Gonçalves.........................................................................................................172 CAPÍTULO 11: Mulheres jornalistas e o “teto de vidro gênero/raça/classe” a tensionar a carreira das jornalistas negras brasileiras - Dione Oliveira Moura e Hallana Moreira R. da Costa.................................................................................................................193 CAPÍTULO 12: Representações e (in)visibilidades da negritude no telejornalismo brasileiro: o negro e as relações étnico-raciais são notícias na TV? - Beatriz Becker e Rafael Pereira da Silva............................................................................................................208 PARTE III – REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA MÍDIA: O UNIVERSO DA POLÍTICA.............................................................................................224 CAPÍTULO 13: O enquadramento biopolítico de mulheres empobrecidas em fotografias jornalísticas sobre o programa Bolsa-Família - Ângela Cristina Salgueiro Marques e Angie Gomes Biondi..............................................................................................225 CAPÍTULO 14: Jornalismo, gênero e desigualdades: análise das notícias sobre a ampliação de direitos das trabalhadoras domésticas no Brasil e na Argentina - Danila Cal, Lorena Esteves e Matheus Nery..............................................................................................245 CAPÍTULO 15: O discurso sexista da Folha de S. Paulo e da Veja na campanha de Dilma Rousseff em 2010 - Ana Maria da Conceição Veloso e Patrícia Paixão de Oliveira Leite............262 CAPÍTULO 16: O enquadramento do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff nas revistas semanais: simplificação, silenciamento de atores e utilização de fontes não identificadas como recursos retóricos - Marcos Paulo da Silva e Raquel de Souza Jeronymo....................................................................................................................................278 CAPÍTULO 17: Jornalismo sindical, local, relações de gênero e cidadania: um estudo sobre a cobertura das eleições gerais de 2010, no Brasil, e seus reflexos no impeachment em 2016 - Cláudia Regina Lahni e Daniela Auad............................................................294 CAPÍTULO 18: “Bela, recatada e do lar” ou embaixadora do “Criança Feliz”: por que a primeira-dama é pauta? - Liziane Guazina, Ébida Santos e Francisco Verri......314 PARTE IV – ESTUDOS DE GÊNERO NO CAMPO JORNALÍSTICO: VISIBILIDADES E INVISIBILIDADES..................................................................332 CAPÍTULO 19: Relações de gênero e estudos em jornalismo: mapeamento dos trabalhos apresentados na Intercom - Monica Martinez e Vanessa Heidemann...........................................333 CAPÍTULO 20: Desigualdade, violência e drogas na pauta noticiosa: a tipificação heteronormativa na narrativa jornalística - Camila Hartmann e Ada C. Machado da Silveira.......................................................................................................................................352 CAPÍTULO 21: O jornalismo e os silenciamentos na relação de gênero: um estudo a partir do caso Marielle Franco - Lídia Schwantes Hoss, Patrícia Regina Schuster e Vanessa Costa de Oliveira.......................................................................................................................369 CAPÍTULO 22: O feminicídio íntimo sob a ótica do jornalismo popular - Maria Amélia Pedro Saad, Ivia Maksud e Edinilsa Ramos de Souza........................................383 CAPÍTULO 23: Jornalismo esportivo e a (in)visibilidade feminina: análise da cobertura dos portais espnW e Lance! durante e após as Olimpíadas 2016 - Valquíria Michela John, Elyson Richard Gums e Dieize Carol Coimbra..........................................397 CAPÍTULO 24: Jornalismo on-line ao âmbito social: a construção do discurso humanizado à luz do gênero - Paolla dos Santos Souza, Milena Ferreira Hygino Nunes, Talita da Silva Ernesto e Carlos Henrique Medeiros de Souza.........................................413 PARTE I A MULHER NO MUNDO DO TRABALHO: DOS CONFLITOS DE GÊNERO ÀS EXPERIÊNCIAS DE RESILIÊNCIA Sentido do trabalho, sofrimento e prazer para as trabalhadoras jornalistas Alice Mitika KOSHIYAMA1 Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Cristiane Oliveira REIMBERG2 Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho, São Paulo, SP Resumo Neste capítulo, apresentamos uma reflexão sobre o trabalho das mulheres jornalistas, pontuando a relação psicodinâmica entre sofrimento e prazer, permeado pela precarização, intensificação e violência de um lado e pelo sentido de ser jornalista de outro. O ritmo acelerado e o desrespeito aos direitos trabalhistas atingem tanto homens quanto mulheres, mas a situação delas é aprofundada por discriminações de gênero e uma maior ocorrência de assédio moral e sexual. É o que mostram as entrevistas analisadas pelas autoras assim como a revisão de literatura e alguns casos destacados a partir dos anos 1960. Palavras-chave: Trabalho; Gênero; Jornalistas; Sofrimento; Prazer. Introdução Olhar para o trabalho da mulher jornalista, a partir de um recorte embasado por estudos de gênero, faz-se necessário diante das desigualdades que se manifestam nas relações de trabalho. O objetivo deste texto é dar a voz a essas trabalhadoras e analisar suas falas, considerando estudos de gênero e trabalho. Para fazer esse recorte, utilizamos autoras como Heleieth Saffioti (2013), que já na década de 1960 pensava a situação da mulher no mercado de trabalho, e Helena Hirata (2005), referência em estudos de gênero e trabalho no Brasil, na França e no Japão. 1. Doutora em Literatura Brasileira e mestre em Ciências da Comunicação pela USP. Professora livre-docente de Jornalismo da ECA/USP. 2. Doutora e mestre em Ciências da Comunicação pela USP. Analista em ciência e tecnologia da Fundacentro, instituição de pesquisa federal em saúde e segurança do trabalhador vinculada ao Ministério do Trabalho. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 19 Para tanto, pegamos a íntegra das entrevistas com jornalistas mulheres, realizadas para a pesquisa de doutorado “O exercício da atividade jornalística na visão dos profissionais: sofrimento e prazer na perspectiva teórica da psicodinâmica do trabalho” (REIMBERG, 2015), e fazemos esse novo recorte, que não chegou a ser explorado na tese. Assim, analisamos sete entrevistas realizadas com jornalistas mulheres, de 25 a 51 anos, que falam sobre o sentido do trabalho, ritmo da atividade que realizam, pressão, dores, adoecimento, estresse, sofrimento e prazer no trabalho. Ao usar esse novo recorte, aprofundamos o olhar para o trabalho da mulher jornalista e podemos perceber como o assédio moral e o assédio sexual no trabalho recaem de forma mais dura sobre as mulheres. A preocupação em conciliar a vida familiar e de trabalhadora também aparece em suas falas de forma mais incisiva. Por outro lado, o sentido do que é ser jornalista e do trabalho que realizam possuem características da construção social do que é jornalismo. Também buscamos delinear um olhar ampliado sobre a questão, destacando que as discriminações de gênero marcam o cotidiano das jornalistas desde que elas ingressaram na profissão. A partir dos anos sessenta do século passado, a presença delas nas redações muda o cenário da profissão e hoje elas constituem a maioria. Sua participação no mercado e presença em todos os locais de trabalho pôs em relevo o problema da discriminação de gênero e do assédio sexual e moral contra mulheres jornalistas no Brasil. É um fato constatado na linha do tempo de 1960 aos dias atuais. Estudos feministas embasam a percepção das desigualdades das mulheres na história e na cultura do país, como as pesquisas de Margareth Rago e as reflexões pioneiras da jornalista e psicóloga Carmen da Silva. Levantamentos empíricos de casos mostram a violência de gênero na profissão (o mais conhecido é o assassinato da jornalista Sandra Gomide) até o inventário de ações desrespeitosas enfrentadas no dia a dia de trabalho, constatado em pesquisa de 2017 feita pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo - Abraji. Portanto, a discriminação de gênero atinge as relações de trabalho nas empresas e na prática profissional diária fora da empresa. E jornalistas mulheres perceberam a importância da denúncia: “Deixa ela trabalhar” é a recente campanha contra assédio de jogadores de futebol e torcedores nos estádios de futebol contra jornalistas mulheres. Esses exemplos mostram que não se tratam de casos isolados e, sim, de uma problemática no trabalho jornalístico que precisa ser enfrentada e modificada. 20 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Trabalho e gênero Saffiotti (2013) foi pioneira no Brasil em estudar o trabalho feminino nos anos 1960 a partir de uma óptica de gênero e classe. O capitalismo não leva a uma emancipação feminina, em um cenário de marginalização da mulher em que sua força de trabalho tem um menor valor. A elas são reservadas as piores ocupações. Os salários são menores. Os cargos de liderança são dominados por homens. Os conflitos de classes são atravessados pelas contradições de gênero e de etnia, nos quais as mulheres sofrem mais os efeitos da apropriação privada dos frutos do seu trabalho social do que os homens. O aparecimento do capitalismo se dá, pois, em condições extremamente adversas à mulher. No processo de individualização inaugurado pelo modo de produção capitalista, ela contaria com uma desvantagem social de dupla dimensão: no nível superestrutural, era tradicional uma subvalorização das capacidades femininas traduzidas em termos de mitos justificadores da supremacia masculina e, portanto, da ordem social que a gerara; no plano estrutural, à medida que se desenvolviam as forças produtivas, a mulher vinha sendo progressivamente marginalizada das funções produtivas, ou seja, perifericamente situada no sistema de produção. (SAFFIOTI, 2013, p.65-66). Além disso, a força de trabalho da mulher, em alguns momentos, é mercadoria a ser trocada, em outro, é tão somente valor de uso a ser desempenhado na família (SAFFIOTI, 2013, p.96). Na avaliação da autora, “a liberdade formal dos membros da sociedade capitalista camufla o peso real dos fatores naturais que cada socius carrega no processo social da competição (SAFFIOTI, 2013, p.108). Ela denuncia, nos anos 1960, o uso de critérios irracionais contra as mulheres como debilidade física, estabilidade emocional e pequena inteligência femininas (SAFFIOTI, 2013, p.330) e constata uma pequena capacidade reivindicatória, a não ocupação de cargos estratégicos tanto no mercado de trabalho como nos cargos de direção dos sindicatos (SAFFIOTI, 2013, p.100, 332). Em uma análise dos tempos atuais, Falquet (2016, p. 42) avalia que “a crise econômica profunda e prolongada que afeta a maioria dos países veio lembrar que o mercado de trabalho não tinha se tornado nem um pouco mais acolhedor para a maioria das mulheres não privilegiadas por ‘raça’ e classe”. Prevalecem as lógicas heterossexuais, sexistas, classistas e coloniais. Em sua Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 21 avaliação, o neoliberalismo privilegia um modelo que vem sendo desenvolvido desde a década de 1980 em que a mulher tem que ser “tudo”3 ao mesmo tempo, com uma apropriação individual e coletiva, em que a opressão é invisibilizada com ares de liberdade (FALQUET, 2016, p. 44). Hirata (2005) fala sobre as transformações no mundo do trabalho, a adoção de políticas neoliberais e os impactos da globalização e dessas questões sobre a divisão sexual do trabalho, em um cenário marcado pela flexibilidade e por precariedades, que ao mesmo tempo requer forte envolvimento do trabalhador e acena com a insegurança no emprego, seja pelas flexibilizações, seja pelo aumento do desemprego. A autora fala em uma bipolarização na qual há profissionais altamente qualificadas com bons ganhos em um extremo, “e, no outro, mulheres com qualificação muito baixa, baixos salários e trabalhos sem reconhecimento social” (HIRATA, 2005, p.116). Também aponta que a questão da competência é marcada por um debate que traz características e figuras masculinas nas definições de “criatividade, responsabilidade, iniciativa, capacidades técnicas, autonomia no trabalho”. Assim, “as mulheres raramente estão presentes em cargos que requerem tais características. Quando elas possuem tais competências, são menos remuneradas” (HIRATA, 2005, p.118). O trabalho da mulher jornalista na visão das entrevistadas As mulheres são maioria no jornalismo. Dados levantados por Mick e Lima (2013, p. 33) apontam que elas correspondem a 63,7% do total de jornalistas que atuam na área. Entre os profissionais com até 30 anos, essa porcentagem é ainda maior, ultrapassando 69%. Elas vivenciam essas transformações do mundo do trabalho marcadas pela precarização, flexibilização e intensificação do trabalho, como mostram as sete entrevistas analisadas neste capítulo4. As jornalistas tinham, na época da entrevista, entre 25 e 51 anos, e acumulavam experiências em diferentes meios de comunicação como jornal, revista, TV, rádio e Internet. Elas apontaram um cenário em que vivenciavam longas jornadas de trabalho e que, em alguns casos, não havia direitos trabalhistas respeitados como o registro em carteira. Essa precarização era ligada 3. Modelo de sexagem apontado pela autora em que os diferentes papéis se misturam: donas de casa, mães, trabalhadoras no mercado, trabalhadoras voluntárias e prostitutas. 4. As entrevistas foram realizadas entre dezembro de 2013 e julho de 2014. As jornalistas puderam optar pela identificação ou não de seus nomes. Quando optavam por não serem identificadas, ganhavam um nome próprio fictício. Foram entrevistadas as jornalistas Priscilla Nery, Vivian Fernandes, Aline Scarso, Maria, Fernanda Cirenza, Paula Puliti e Marilu Cabañas. 22 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ao sofrimento no trabalho, em que reconheciam situações negativas, mas ao mesmo tempo declaravam grande envolvimento com a profissão. O trabalho dava sentido à vida, e o reconhecimento e o sentido do trabalho podiam transformar o sofrimento em prazer. Pensamos o sofrimento e o prazer no trabalho a partir da perspectiva da psicodinâmica do trabalho, desenvolvida pelo psicanalista e psiquiatra francês Christophe Dejours (1992, 2012a, 2012b). Em suas obras, o autor mostra como o sofrimento pode emergir quando a organização do trabalho é rígida e vai contra os desejos e as necessidades do sujeito, podendo ganhar aspectos patogênicos e levar à mortificação do sujeito. Por outro lado, o sofrimento está sempre presente no trabalho e aparece quando nos deparamos com o real da atividade. Para Dejours (2012b, p. 25), “o real se deixa conhecer pelo sujeito por sua resistência aos procedimentos, ao saber-fazer, à técnica, ao conhecimento, isto é, pelo fracasso imposto ao domínio sobre ele – o real”. O sujeito é confrontado pelo mundo real, de modo afetivo, e se depara com o fracasso. Ao provar a resistência do mundo, a afetividade se manifesta ao sujeito. “Assim, é nessa relação primordial de sofrimento no trabalho que o corpo realiza a um só tempo a experiência do mundo e de si mesmo”. Nessa relação psicodinâmica, o reconhecimento pode transformar o sofrimento em prazer ao imprimir no trabalho o seu sentido subjetivo (DEJOURS, 2012b, p.40), e o trabalho pode contribuir para a construção do sujeito. No caso do jornalista, o prazer está ligado ao envolvimento que o trabalhador jornalista tem com a profissão e ao sentido que atribui ao jornalismo. O reconhecimento de seu trabalho, tanto pelo outro como por si próprio, quando afere um sentido positivo ao trabalho realizado, faz com que o sofrimento possa ser transformado em prazer. Segundo Dejours (2012b, p.105-106), a retribuição esperada pelo sujeito no trabalho é de natureza simbólica: o reconhecimento, tanto no sentido de constatação – “reconhecimento da realidade que constitui a contribuição do sujeito à organização do trabalho”, quanto no de gratidão pela contribuição dada. No caso das jornalistas entrevistadas, a questão do sofrimento aparece tanto ligada à precarização do trabalho e à organização como quando se deparam com o real da atividade. Em relação ao primeiro aspecto, apontaram a baixa remuneração; as longas jornadas de trabalho; os trabalhos em feriados e finais de semana; o não cumprimento de direitos sociais; a pressão para fazer tudo o mais rápido possível aliada ao risco de ser prontamente substituída; a falta de Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 23 recursos e condições para elaborar uma matéria, inclusive materiais como carro e equipamentos; a pressão da chefia; a perseguição e o assédio moral. Já quando se deparam com o real da atividade de trabalho, o sofrimento emerge quando as jornalistas precisam cumprir uma pauta com a qual não possuem identificação; quando não há liberdade para se expressar ou realizar uma pauta; quando não conseguem fazer o jornalismo em que acreditam; na produção de um bom texto; na apuração; na consulta a diferentes fontes; na falta de reconhecimento da qualidade de seu trabalho; na interferência de interesses comercias. Só uma das jornalistas apontou, ao responder a pergunta sobre o sofrimento no trabalho do jornalista, a questão do sofrimento físico e emocional, exemplificando como cobranças, estresse e desgaste. No entanto, havia questões específicas sobre dores, adoecimentos, estresse e assédio moral, em que esses aspectos foram mais detalhados e também podem ser entendidos como sofrimentos no trabalho. Em relação a dores e adoecimentos ligados a situações de trabalho, as jornalistas relataram dor nas costas, coluna ou ombros; dor de estômago; pressão baixa (devido à falta de tempo para comer em dia de fechamento ou determinadas coberturas); dor de cabeça; infecção genital (caso gerado em uma cobertura em acampamento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST); faringite (na jornalista que atuava em rádio); tristeza profunda, possível depressão, crises de ansiedade e desgaste mental; LER (Lesões por Esforços Repetitivos); além de uma maior tendência a adoecimentos como gripes e à somatização de doenças após períodos de fechamento ou de intensificação do trabalho. Houve relatos em que as dores, muitas vezes em consequência do volume de trabalho e da pressão do tempo, impediram as jornalistas de realizar atividades pessoais quando não estavam trabalhando. Tempo, pressão, intensificação e ritmo acelerado aparecem em diferentes momentos das entrevistas. A corrida contra o tempo é um dos principais fatores relacionados pelas jornalistas quando a questão é a percepção de estresse no trabalho, apesar de essa não ser uma categoria utilizada pela psicodinâmica do trabalho. Também aparecem fatores estressantes como a quantidade de trabalho a ser realizado; o tipo de cobertura e o risco presente – como manifestações por exemplo; a tensão de coberturas de tragédias, grandes acidentes ou catástrofes; as relações interpessoais com equipe, chefia e fontes (entrevistados); as limitações estruturais e de ferramentas para realizar o trabalho; a competitividade no ambiente de trabalho. 24 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Outra questão importante relacionada ao sofrimento no trabalho das jornalistas é o assédio moral, que foi tema de pergunta às entrevistadas, e o assédio sexual, que mesmo sem ser tema de uma pergunta específica, apareceu no relato de três mulheres. É importante salientar que um dos casos de depressão e o relato de tristeza profunda estavam ligados a situações de assédio moral. O assédio moral ocorre “quando a dignidade de alguém é atacada de modo repetitivo, sistemático e deliberado durante um período prolongado, geralmente de vários meses” (SELIGMANN-SILVA, 2011, p.502). Essa “prática desmoralizante recebe adesões dos demais e se propaga de modo a isolar cada vez mais a pessoa visada”. Segundo Seligmann-Silva (2011, p.503), “o objetivo é excluir, desqualificar profissionalmente e desestabilizar emocionalmente alguém que, por motivos os mais diversos, tenha se tornado indesejável para o/a perpetrador/a do assédio”. Freitas, Heloani e Barreto (2008, p.37) destacam o aspecto organizacional do assédio moral, pois ocorre no ambiente de trabalho entre pessoas que são parte de uma estrutura organizacional, encontrando o respaldo da organização. Entre as sete entrevistadas, quatro jornalistas presenciaram situações de assédio moral, duas não presenciaram e uma naturalizou a questão do assédio moral como algo recorrente, mas não se lembrava de nenhum caso específico. Das duas que não presenciaram, uma já ouviu relatos de amigos, e a outra viu um caso no departamento comercial de onde trabalhava, mas nunca entre jornalistas. Três jornalistas já foram assediadas moralmente. Uma delas chegou a ter depressão e pensou em desitir da profissão. Em outras ocasiões, ela presenciou casos e viu colegas serem “colocados na geladeira”. A outra jornalista vítima de assédio moral vivenciou uma situação em que a chefia pedia vários textos para ela que não eram publicados, além de viver e presenciar muitas situações de humilhações. O outro caso foi de um assédio moral coletivo, em que o chefe e aqueles que eram mais próximos dele assediavam os demais jornalistas, criando um cenário de perseguição e ameaças. Em relação aos três casos de assédio sexual, uma jornalista foi vítima do chefe: “Foi uma forma de pressão que me deixava muito nervosa. Ele acabou me demitindo porque eu não queria nada com ele”. Outra jornalista vivenciou a situação com um entrevistado em um evento. Ele sentou ao lado da jornalista e a abraçou: “Para não ficar uma situação chata, eu falei ‘preciso ir ali’ e não voltei mais. Não tive mais contato. Eu desisti da entrevista. Foi uma situação bem desagradável e constrangedora”. O outro caso ocorreu com um colega de trabalho, que costumava piscar e fazer gestos para a profissional que a incomodavam. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 25 Apesar de todas essas situações adversas relatadas e de toda precarização vivenciada, as jornalistas afirmam ter satisfação no trabalho e atribuem um sentido positivo ao trabalho do jornalista. Ao serem questionadas sobre o que era prazer no trabalho delas, relataram: a possibilidade de conhecer coisas novas, lugares e pessoas; vivenciar realidades diferentes da sua; mostrar para as pessoas a realidade; o reconhecimento pelo trabalho realizado; fazer uma pauta que sugeriu; situações em que tiveram apoio e infraestrutura para realizar o trabalho; ver que a matéria feita alcançou as pessoas; acreditar que as reportagens impactam na vida das pessoas; vivenciar uma redação e os diferentes tipos de pessoas; sair para a rua; entrevistar as pessoas; a aprendizagem com os entrevistados; obter conhecimento; ter um resultado positivo na vida de alguém ou na sociedade em decorrência de uma matéria; o reconhecimento dos entrevistados; entregar uma matéria que gostou de fazer; ter o reconhecimento do público sobre a importância da matéria; sentir que a matéria ficou muito boa. O próprio sentido positivo que atribuem ao trabalho jornalístico é importante para que mesmo vivenciando um cenário de precariedade, elas acreditem no papel do trabalho do jornalista e transformem os sofrimentos vivenciados em prazer. O que fica visível quando olhamos para as definições dadas pelas entrevistadas sobre o que significa ser jornalista: ser defensor da democracia; ser contra qualquer violação dos direitos; ajudar os cidadãos a entenderem seus direitos e o contexto social; ter um aprendizado de responsabilidade; modificar alguma realidade; tentar fazer alguma coisa pelas pessoas; dar voz a quem não tem voz; ser um intermediário entre a fonte, que pode ser uma autoridade ou um especialista, e o público; traduzir um fato que pode ser de difícil entendimento ao público; ser questionadora; ser uma pessoa curiosa; estar aberta ao aprendizado; ser uma pessoa analítica; levar informação de qualidade; querer transformar o seu meio de atuação; pensar em mudar alguma coisa injusta; fazer algo para o outro. Sofrimento e prazer no trabalho da jornalista Carmen da Silva Esse cenário psicodinâmico de sofrimento e prazer no trabalho das jornalistas, mostrado pelas entrevistadas, é uma realidade que pode ser vista com outras jornalistas e que deve considerar a questão de trabalho e gênero pontuadas no início do capítulo. Podemos afirmar que as discriminações de gênero marcaram a vida cotidiana das mulheres e das jornalistas desde a entrada delas no mercado de trabalho. 26 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Michele Perrot avaliou as dificuldades e os ganhos da luta das mulheres pela igualdade, na sociedade e nas academias (PERROT, 2007). A criação das escolas superiores de jornalismo, a partir dos anos 1960, atraiu as mulheres para a profissão, e elas já constituíam maioria no final do século XX (RIBEIRO, 1998). No entanto, a discriminação de gênero e o assédio moral e sexual no jornalismo foram questões silenciadas até há pouco tempo. Agora são temas de movimentos sociais e de estudos e pesquisas acadêmicas no Brasil. Mas isso não significa que não ocorreram ações pontuais que levantaram a questão da discriminação de gênero no passado. O jornalismo, inclusive, chegou a desempenhar um importante papel nesse quesito com a atuação pioneira no jornalismo feminino da jornalista e psicóloga feminista Carmen da Silva, autora de artigos na revista Cláudia, entre 1963 a 1985, pela igualdade e contra as discriminações. Ela propunha a mudança de valores, de comportamentos e de relacionamentos de mulheres e homens, em permanente diálogo com a vida cotidiana. Em publicação para o público de classe média conservadora, nos anos da ditadura, Carmen conseguiu sucesso. Com sua morte, em 1985, a seção “A Arte de Ser Mulher”, que ela escrevia, foi extinta (KOSHIYAMA, 2005). No contexto histórico do início dos anos 1960, grande parte das pessoas ridicularizava o feminismo. Carmen da Silva rebatia com bom humor e ótima redação. Ela gostava do seu trabalho de conversar com as leitoras, ajudá-las a refletir sobre suas inquietações, desafiar padrões estabelecidos opressivos ou injustos. Achava-se muito bem remunerada (TOSCANO, 2008) e tinha um espaço privilegiado na revista. Para Maryvonne Lapouge & Pisa (1977), revelou que estava impedida de dizer tudo o que queria e sabia. Tinha de dizer de um modo que pudesse ser aceito, seja falando de aborto ou de divórcio. Terminei um artigo sobre a competição, a rivalidade que existe entre as mulheres. Mostro como as mulheres são condicionadas a brigar entre elas. O homem faz coisas nas ciências, nas artes e nas técnicas, que frequentemente é fruto de um trabalho em equipe. A mulher não. Ela foi educada para o casamento e a maternidade, duas situações que excluem o grupo, que são uma atividade privada, exclusiva. Falando de competição, devo-me controlar, porque com certeza a sociedade em que vivemos, a sociedade capitalista, estimula a competição. E a competição e a concorrência são a base da livre empresa. E eu não posso falar disso, não posso dizer: “as estruturas capitalistas, em nossa sociedade atual, ocidental, excitam as rivalidades... Impossível... (LAPOUGE & PISA, 1977, p.54)5. 5. Original em francês Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 27 Carmen da Silva procurava mostrar os problemas das mulheres como parte de um sistema de relações entre pessoas e instituições da sociedade. Questões pertinentes ao cotidiano de homens e mulheres eram também problemas políticos, religiosos, educacionais, econômicos, culturais e jurídicos. As mulheres lutavam pela mudança da Constituição de 1946 que impunha a desigualdade da mulher, definida como um ser semicapaz, tutelada do homem. Carmen faleceu antes da publicação da Constituição de 1988, que garantiu a condição de equidade de gênero, bem como a proteção dos direitos humanos das mulheres pela primeira vez na República Brasileira: No Artigo 5°, I: “Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”. E no Artigo 226, Parágrafo 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos pelo homem e pela mulher”. (apud BARRETO, 2010). A jornalista também chegou a expressar o prazer de fazer jornalismo feminista no texto para as leitoras da publicação alternativa Mulherio, fundada em 1981 e que já desapareceu. Na última página do número inaugural, incitava as mulheres a assumirem seus destinos: “As mulheres não podem se isolar. Na comunicação solidária entre mulheres e no assumir o próprio destino como um ‘fazer’ reside o milagre: o milagre possível, o milagre nosso” (Abracadabra! In: Mulherio, março-abril 1981, ano I, número 0). Sofrimento nas relações profissionais e nas relações de gênero A profissão jornalística naturaliza o assédio moral. Os casos relatados pelas jornalistas entrevistadas não se tratam de episódios isolados. Chefes, quando recebem carta branca para que os subordinados produzam, viram soberanos autoritários contra homens e mulheres. É o sofrimento que ganha forma no trabalho jornalístico, conforme depoimento do jornalista Nivaldo Manzano (2000). Um caso de assédio moral, assédio sexual e violência de gênero foi o assassinato da jornalista Sandra Gomide pelo seu ex-chefe de redação Antonio Pimenta Neves. Ela viveu um namoro com Pimenta Neves, seu chefe na redação do jornal Gazeta Mercantil e que a levou para o jornal O Estado de S.Paulo e a promoveu editora de economia. Ao romper o namoro, ele a matou em agosto de 2000 (KOSHIYAMA, 2005). 28 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Levantamentos nos meios de comunicação ainda mostram outros registros de ações desrespeitosas contra profissionais mulheres cometidas no dia a dia da profissão em pleno século XXI. Grupos de mulheres feministas protestam contra valores e comportamentos da cultura patriarcal e machista em movimentos internacionais como o #metoo. A reação contra o assédio sexual computa prejuízos simbólicos e financeiros para os infratores famosos e poderosos nos Estados Unidos. No âmbito nacional, mulheres têm agido em grupo, como no caso da figurinista da TV Globo, assediada sexualmente pelo ator José Mayer, seu colega de trabalho. A suspensão dele por tempo indeterminado aconteceu após a manifestação de protesto conjunto de atrizes e funcionárias da TV Globo com o movimento: “Mexeu com uma mexeu com todas”. Em todas as categorias profissionais, denunciar o assédio moral e sexual é, em si, um sofrimento. Desgastante, fator de aflições e desgosto por não serem levadas a sério ou sofrerem desqualificações, desmentidos e, em alguns casos, mais perseguições. Em texto recentemente publicado, “Vozes contra a opressão”, Moretzsohn (2018) expõe depoimentos de mulheres. “São relatos de dor, revolta e superação sobre a experiência de serem perseguidas por chefes, colegas e fontes.” Até tempos recentes, os sofrimentos sequer eram publicamente compartilhados. Para mulheres de diferentes gerações, também é sofrimento lembrar situações que “gostariam de ter esquecido, superado ou enfrentado de outra forma, que muitas vezes as levaram a perder a autoconfiança e a autoestima e fizeram tantas adoecerem física e emocionalmente, a ponto de, algumas vezes, desistirem da carreira e até tentarem o suicídio”. (MORETZSOHN, 2018). Lutas contra o sofrimento patogênico no trabalho Se o sofrimento pode ser transformado em prazer por meio do reconhecimento e do próprio sentido que as jornalistas atribuem ao seu trabalho, por outro lado, vimos que ele pode ser patogênico e levar ao adoecimento como nos relatos de tristeza profunda e depressão relatados por nossas entrevistadas em situações em que vivenciaram o assédio moral. O mesmo se pode dizer dos Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 29 exemplos de assédio tirados da literatura ou denunciados atualmente. Mas o que fazer para mudar este cenário de discriminações de gênero, assédio moral e sexual? É importante que as mulheres não se isolem e se apoiem, fortalecendo os laços de solidariedade e não silenciando os sofrimentos patogênicos vivenciados. É um caminho que começa a ser trilhado. As mulheres estão se unindo ao perceber que podem mudar as condições inóspitas no trabalho. Cientes dos seus direitos, jornalistas mulheres organizam-se para informar a categoria e a sociedade sobre as discriminações que sofrem e que devem ser extintas. “Jornalistas contra o assédio”, de 2016, foi uma campanha inicial: o grupo criou uma página no Facebook e elaborou vídeos com a participação de conceituados jornalistas homens falando contra o assédio nos locais de trabalho. Em junho de 2017, mulheres jornalistas relataram assédio moral e assédio sexual de chefes, colegas e fontes de informação, em reunião no Congresso da Abraji, e lançaram uma pesquisa junto com a revista eletrônica Gênero e Número. O relatório “Mulheres no Jornalismo Brasileiro” foi publicado em setembro de 2017 e está disponível para compartilhamento e uso na vida quotidiana profissional. O levantamento, o primeiro do tipo no Brasil, ouviu 42 mulheres em mesas de discussão em Rio de Janeiro, Porto Alegre, Brasília e São Paulo, além de 477 jornalistas de 277 veículos, que responderam a um formulário pela internet. O cenário encontrado pelos pesquisadores mostra um ambiente de redações em que as práticas sexistas são naturalizadas, segundo a coordenadora do relatório e cofundadora da Gênero e Número, Natália Mazotte. Para ela, o constrangimento sofrido pelas mulheres impacta severamente seu trabalho. (MONNERAT, 2017) Chega! Em maio de 2018, jornalistas revelaram o que estão sofrendo, na campanha “Deixa ela trabalhar”. São jornalistas mulheres que cobrem eventos esportivos, declaram ter prazer no que fazem no trabalho, mas sofrem com agressões, assédios e ofensas perpetrados pelos homens: dirigentes, atletas, torcedores machistas. A pesquisa “Mulheres no Jornalismo Brasileiro”, ao revelar publicamente a discriminação contra mulheres jornalistas em todas as etapas da execução do seu trabalho, constatou uma situação que precisa ser mudada a partir da sensibilização de profissionais e da sociedade para o problema. O que pede campanhas permanentes e com múltiplos focos. Dessa forma, apresenta ideias 30 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) para aplicação imediata, que devem ser colocadas em prática: Os resultados da pesquisa mostram que há um longo caminho a percorrer para que a igualdade de gênero se estabeleça no jornalismo profissional. Algumas recomendações simples podem acelerar a transição para um período de justiça com todas as repórteres, editoras e trabalhadoras da imprensa brasileira: 1 - Os veículos devem produzir cartilhas para funcionários e colaboradores definindo o assédio cometido por uma fonte e indicando os procedimentos a serem adotados pelas repórteres quando forem vítimas desses atos. 2 - As redações devem organizar grupos de monitoramento da diversidade de gênero nas redações; esse grupo deve ter um canal de comunicação direto com a direção do veículo e a missão de produzir relatórios periódicos com análise tanto da cobertura, para identificar desequilíbrios no gênero das fontes ouvidas, quanto da composição da redação, para orientar possíveis novas contratações. 3 - Os veículos devem investir em capacitação de todos os repórteres em temas de diversidade; há cursos, palestras, debates e webinars disponíveis que podem auxiliar no combate a este tipo de violência. 4 -Todos os repórteres devem ser orientados a tratar do tema do assédio junto a suas fontes; é especialmente importante ressaltar o caráter de violação à liberdade de expressão que essa conduta acarreta. 5 - As redações devem criar um canal de comunicação interno para que vítimas de abuso e assédio possam fazer a denúncia formal. 6 - As redações devem encarar como pautas relevantes todas as investidas inapropriadas de fontes sobre jornalistas mulheres. Estampar o assédio às trabalhadoras, bem como dedicar espaço às reportagens sobre diversidade de gênero é um passo importante para desestimular o abuso”. (MULHERES NO JORNALISMO BRASILEIRO, 2017). Essas recomendações reforçam o quanto a questão do assédio, seja ele moral ou sexual, tem dimensão organizacional. Não se trata de ações isoladas e, sim, de atitudes naturalizadas e silenciadas pela gestão, que muitas vezes se beneficiam de situações como essas para obter mais produtividade por meio da tensão gerada, para excluir profissionais que desejam descartar e até mesmo se utilizando do machismo da sociedade patriarcal ao fazer da jornalista mulher um objeto sexual que pode dar audiência ou conseguir determinada informação com a fonte pelo fato de ser mulher, numa visão machista que desconsidera o seu saber profissional, afeta a sua dignidade e a sua subjetividade e sentido profissional. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 31 O sofrimento no trabalho que emerge quando a jornalista se depara com o real da atividade deve ser aquele ligado ao fazer profissional e que é facilmente transformado em prazer em um trabalho que tem sentido e reconhecimento, numa relação psicodinâmica em que estão presentes a autonomia e os laços de solidariedade. Já o assédio moral e sexual são violências no trabalho, que ocorrem com o respaldo da organização e precisam ser combatidas. Da mesma forma, a organização do trabalho deve ser repensada. O que temos hoje é um cenário marcado pela precarização e intensificação do trabalho, com o desrespeito dos direitos trabalhistas como o não pagamento de horas extras, o não cumprimento de banco de horas, a não realização de folga a cada seis dias de trabalho e uma pressão extrema, marcada por metas inalcansáveis e por produdividade, que anulam as possibilidades criativas, reflexivas e autônomas que poderiam levar a um jornalismo de mais qualidade e que realmente cumprisse os ideais da profissão que dão sentido ao “ser jornalista”. Referências BARRETO, A. C. T. Carta de 1988 é um marco contra discriminação. 5 de nov. de 2010. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2010-nov-05/constituicao-1988marco-discriminacao-familia-contemporanea#author> Acesso em: 9 jun. 2018. #DeixaElaTrabalhar: jornalistas lançam manifesto em defesa do trabalho das mulheres no esporte. Publicado em 25 março 2018. 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Atualmente, elas representam 48,2% dos jornalistas, seguindo uma tendência do mundo ocidental iniciada no fim do século XX. Com base nas teorias do jornalismo, do gênero e do mundo do trabalho, esta investigação busca mostrar possíveis alterações nas rotinas e processos jornalísticos dentro desse contexto. Realizamos entrevistas individuais com 21 jornalistas de três jornais portugueses. As análises direcionam para mudanças nas práticas da redação. Elas dividem com os homens as responsabilidades no ambiente de trabalho. As investigações de campo mostram que, mesmo sem hegemonia no topo da hierarquia, a influência delas aumenta cada vez mais na gestão de tarefas e no olhar para temas sociais. Palavras-chave: Jornalismo; Jornalismo em Portugal; Feminização; Gênero no jornalismo Introdução Desde os anos 1980, são inegáveis as mudanças nas redações e nos cargos executivos das empresas jornalísticas. A virada do século XX para o XXI foi marcada fortemente pelo que se tem chamado de feminização da força de trabalho jornalístico no mundo ocidental (LOBO et al, 2015; MIRANDA, 2014, 2017; GARCIA, 2009). Porém, estudos globais que tratam da cultura 6. Pesquisa realizada durante o estágio sanduíche da primeira autora deste artigo na Escola Superior de Comunicação Social, em Portugal, em 2017, como parte do doutorado em Comunicação na UFPE, orientado pelo segundo autor. 7. Doutoranda em Comunicação (UFPE), mestre em Jornalismo (UFSC) e graduada em Comunicação Social/Jornalismo (Univali). E-mail: anapaula.bandeira@ufpe.br. 8. Doutor em Comunicação e Cultura (UFRJ). Pós-doutor (PUCRS). Docente do PPGCOM/UFPE. Coordenador do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Contemporaneidade. E-mail: a.vizeu@yahoo.com.br. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 35 das redações, tanto no que se refere ao ambiente de trabalho quanto à forma como as mulheres são tratadas e retratadas nas matérias jornalísticas, consideram serem necessários mais de meio século para que as mudanças iniciadas no fim do século XX evoluam para uma equidade de gênero nas redações (IFJ, 2009), ainda que, em alguns países as mulheres estejam fortemente representadas entre os profissionais das redações. O aumento do número de mulheres nas redações traz questões a serem pensadas a partir da tríade jornalismo, gênero e sociedade. Este estudo busca, portanto, compreender as implicações que o aumento da população feminina no jornalismo traz às práticas e rotinas dentro das redações, por meio das percepções dos profissionais. Trata-se de um fenômeno ligado ao contexto social, no qual as mulheres passaram a ter mais acesso à educação e integraram o mundo do trabalho. E é, sobretudo, pelas lentes do social que se torna possível pensar o jornalismo por meio da perspectiva de gênero (PONTES, 2017, p. 11). O estudo de gênero Em novembro de 2017, o jornal americano The New York Times anunciou a contratação de uma editora de gênero9. Função pioneira. Não se refere a uma seção do jornal para discutir gênero. A proposta é permitir um olhar transversal sobre gênero em todas as editorias. Seis meses mais tarde, é a vez do espanhol El País10 criar o cargo de editora de gênero, igualmente focado na inclusão de mulheres nas distintas histórias trazidas pelo jornal. Ou seja, começa, nos Estados Unidos e na Europa, um movimento editorial que em certa medida formaliza a importância do olhar da mulher, para a mulher e para as questões de gênero. Nosso objeto de trabalho, aqui, é o jornalismo praticado em Portugal. Entretanto, nosso olhar mais abrangente é para a tendência de feminização das redações, no mundo ocidental, que se iniciou nas últimas décadas do século XX. Em artigo publicado pela primeira vez em 1988, Scott (1995) afirmou: a preocupação teórica com o gênero como uma categoria de análise é algo recente. Emergiu no fim do século XX. Agora que estamos na segunda década do século XXI (trinta anos após a afirmativa de Scott), retomamos alguns pen9. Informação obtida em:< http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/11/1935704-the-new-york-times-passa-a-ter-editora-dedicada-a-questoes-de-genero.shtml> e < http://portalimprensa.com.br/noticias/internacional/79916/new+york+times+anuncia+editora+de+genero >. Acesso em: 03 jul. 2018. 10. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/11/internacional/1526063643_313967.html?id_ externo_rsoc=TW_BR_CM>. Acesso em: 03 jul. 2018. 36 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) samentos da historiadora, que define o gênero em duas partes: (1) um elemento constitutivo e relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos e (2) uma forma primária de dar significado às relações de poder. Sob o prisma de um elemento constitutivo das relações sociais, o gênero implica em quatro elementos: (1) símbolos culturais que evocam representações simbólicas; (2) conceitos que interpretam o significado dos símbolos; (3) instituições e organização social; (4) identidade subjetiva. Esses elementos, diz Scott, se inter-relacionam. Na segunda definição, gênero é uma forma recorrente de significar o poder no ocidente, um meio através do qual o poder é articulado (SCOTT, 1995, p. 86-87). Na sociedade moderna, temos a necessidade de uma visão mais ampla sobre gênero, que inclua mercado de trabalho, educação e política (SCOTT, 1995, p.87). Pensar sobre os efeitos do gênero nas relações sociais e institucionais apontados por Scott nos possibilita problematizar as naturalizações, diferenças e outras nuances do gênero no mundo do trabalho do jornalismo. E os fatos ocorridos em torno desse fenômeno, como as iniciativas do The New York Times e El País, demonstram quão atual e relevante é o tema gênero – na sociedade, em geral, e no jornalismo, especificamente. Um olhar sobre os jornais Em Portugal, há seis jornais diários de informação geral com circulação paga: Correio da Manhã, Jornal de Notícias, Diário de Notícias, Jornal I, Público e 24H (OBERCOM, 2015). O trabalho de campo envolveu três jornais - Público, Diário de Notícias e Correio da Manhã – e 21 jornalistas (sete de cada veículo). O Diário de Notícias foi escolhido por ser o jornal diário português mais antigo em circulação, fundado em 1864. O Correio da Manhã tem a maior circulação do país, com média de 105 mil exemplares por edição (OBERCOM, 2015)11. Por fim, o jornal Público, veículo considerado de referência no país, tem a maior circulação entre os jornais considerados “não populares”. Como técnica de trabalho nas redações, realizamos entrevistas individuais em profundidade (DUARTE, 2006; GASKELL; BAUER, 2002) com homens e mulheres jornalistas ocupantes de cargos de chefia intermediária. O recorte de profissionais – deixando de fora repórteres e editores-chefes e 11. Média de circulação paga dos jornais portugueses, em 2015: CM (105 mil); JN (53 mil); Público (20 mil); DN (13 mil). Fonte: Anuário da Comunicação 2014-2015. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 37 diretores de redação - se deu a partir da seguinte constatação de diferentes pesquisas: as mulheres são, atualmente, maioria ou dividem paritariamente os espaços nas redações. Apesar disso, estão em menor número em postos de chefia (MICK; LIMA, 2013; SUBTIL, 2009; GMMP, 2015, GARCIA, 2009). A opção foi pela entrevista em profundidade, que permite buscar informações sobre as rotinas e processos de produção, com as pessoas que põem em prática os conceitos produtivos (WOLF, 1994). Por ser “um recurso metodológico que busca, com base em teorias e pressupostos, recolher respostas a partir da experiência subjetiva de uma fonte, selecionada por deter informações que se deseja conhecer” (DUARTE, 2006, p. 62), a entrevista em profundidade permite obter percepções da realidade da mulher no jornalismo. Foram elaborados conjuntos de perguntas a partir do tripé temático: 1 trajetória pessoal e profissional; 2 - ambiente e rotinas de trabalho; 3 - liderança e processo de produção noticiosa. Como as questões de gênero perpassam nossos questionamentos sobre trajetória profissional, rotina de trabalho, liderança, vida pessoal e expectativas profissionais, uma vez que buscamos compreender a mulher jornalista e sua relação com poder e liderança na redação, entendemos que nosso corpus deveria ser composto por mulheres e homens, a fim de uma interpretação mais ampla e contextualizada do problema de pesquisa. Assim, entrevistamos um total de 12 mulheres e nove homens. Contexto histórico A ascensão das mulheres ao mercado de trabalho se acentuou, no mundo ocidental, sobretudo a partir do fim dos anos 1970. Em 2018, a taxa de participação da mulher no mercado de trabalho mundial é de 48,5%. Entre os homens, o percentual de atuação no mundo laboral é de 75% - 26,5% a mais em relação às representantes do sexo feminino. Mas é uma diferença que vem caindo ano a ano (OIT, 2018). Nas últimas décadas do século XX, o ingresso de jornalistas mulheres cresceu no mundo ocidental a ponto de tornar as redações jornalísticas ambientes de espaços equiparados entre profissionais homens e mulheres. O crescimento vertical na carreira parece natural, à medida que as jovens profissionais recém-formadas nos anos 1990 e 2000 passam a estar entre os grupos mais experientes (sobretudo se pensarmos sob a perspectiva de que o jornalismo é uma profissão eminentemente jovem). Entretanto, quanto mais altos os postos hierárquicos, menos mulheres há neles (MICK, LIMA, 2013; GARCIA, 2009). 38 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Alguns elementos podem nos ajudar a pensar nas possíveis razões para esta realidade. E um deles é o fato de que ainda impõe sobre as mulheres o protagonismo nas tarefas domésticas e de cuidados com os familiares (PNAD, 201612; MARQUES DA SILVA, 2010), dificultando a dedicação que os cargos de gestão demandam. A continuação dessas práticas contribui para que as mulheres mantenham-se, em alguma medida, secundarizadas no trabalho fora de casa. “Por conta das tarefas reprodutivas da vida social, muitas mulheres não progridem verticalmente nas carreiras” (ALVES, 2016, p. 636). Em 20 anos – de 1995 a 2015 –, o panorama mundial do mundo do trabalho feito pela OIT (2016) aponta: 1) as oportunidades de participação no mercado de trabalho para mulheres são 27% menores que para os homens, em escala mundial; 2) elas têm mais chance de ficar desempregadas (6,2%, contra 5,5% para os homens); 3) o trabalho familiar e doméstico continua sendo atribuição muito mais da mulher que do homem (ainda que, nas últimas duas décadas, o percentual de mulheres dedicadas a esse trabalho tenha diminuído 17%); 4) em nível global, o salário das mulheres é 77% do que recebem os homens. Marques da Silva (2010) argumenta que o aumento do número de mulheres em postos de trabalho qualificados não põe fim às desigualdades de gênero. A perspectiva de representação simbólica de Bourdieu (1989) favorece a discussão sobre a dominação masculina como algo presente em toda a perspectiva existencial e nos valores adquiridos ao longo da história. Apesar das recentes mudanças da sociedade ocidental contemporânea, incluindo nelas as conquistas profissionais das mulheres, a dominação masculina ainda “afirma-se na objetividade de estruturas sociais e de atividades produtivas, baseadas em uma divisão sexual do trabalho” (BOURDIEU, 2014, p. 54). Pesquisas internacionais feitas nos anos 1990 já apontavam para o crescimento do número de mulheres empregadas como jornalistas em veículos de comunicação (GARCIA, 2009; SUBTIL, 2009; GMMP, 2015; IWMF, 2011). Em escala mundial (GMMP, 2015), 27% dos cargos de chefia nas empresas jornalísticas são ocupados por mulheres, enquanto que em cargos de execução (repórteres, em geral), elas são 35%. Como possível consequência aos desafios impostos pela sociedade, algumas jornalistas adotaram a cultura machista da redação como forma de avançar em suas carreiras (GMMP, 2015, p. 45). Cultura machista resulta12.Disponívelem:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/ releases/18566-pnad-continua-2016-90-6-das-mulheres-e-74-1-dos-homens-realizaram-afazeres-domesticos-ou-cuidados-de-pessoas.html>. Acesso em: 03 jul. 2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 39 do de um histórico de esmagadora presença masculina nas redações. O que nos remete ao “biorritmo” da empresa jornalística, nas palavras de Traquina (2005) e à teoria organizacional, de Breed (2016), segundo a qual as normas veladas da organização e absorvidas “por osmose” pelos jornalistas influenciam o trabalho. “Apesar da presença das mulheres a trabalhar dentro dos media ter aumentado em todas as regiões do mundo nas últimas duas décadas [fim do século XX], o verdadeiro poder é ainda um monopólio masculino” (GALLAGHER, 2004, p. 89). Assim, se o jornalismo é uma profissão historicamente masculina, essa cultura que perdura e paira sobre as redações pode persistir a despeito das mudanças estruturais pelas quais a profissão vem passando. O gênero do jornalismo português Em Portugal, o jornalismo começou, na segunda metade do século XVI, como uma ocupação predominantemente masculina. O desenvolvimento do jornalismo português se iniciou na segunda metade do século XIX (ROCHA; SOUSA, 2011) como produto de uma sociedade industrial que se estabelecia nesse período. Os avanços da imprensa, contudo, não possibilitaram o ingresso das mulheres na profissão: A entrada das mulheres no jornalismo industrial será lenta e difícil. Naturalmente que a misoginia prevalecente no país será a primeira razão – a mesma misoginia que afastava as mulheres do voto ou da universidade. Mas esta explicação não é suficiente. Se a profissionalização de médicos ou advogados, por exemplo, estava vedada às mulheres porque elas não se podiam formar nestes campos, o mesmo não acontecia com o jornalismo, que não exigia formação particular. Assim, a definição da profissão jornalística a partir de um campo de legitimação que, segundo Denis Ruellan (1993), é constituído por dimensões técnicas e intelectuais da prática jornalística, baseadas nos esforços de distinção que os grupos profissionais fazem para definir e administrar seu espaço ocupacional, parece-nos uma pista interessante para percebermos por que razão as mulheres têm uma tão grande invisibilidade na história da formação do jornalismo (SILVEIRINHA, 2012, p. 171). O mercado de trabalho português abriu as portas para as mulheres com o fim da ditadura e início do governo democrático, no fim dos anos 1970. A 40 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) mudança de regime político representou também alterações no acesso feminino à educação (MARQUES DA SILVA, 2010; GARCIA, 2009). A entrada massiva das mulheres nas redações acontece paralela a um momento de expansão do próprio jornalismo, à luz da liberdade de imprensa (MARQUES DA SILVA, 2010). É o que Subtil (2009, p. 3) chama de “viragem no perfil da profissão e na própria composição social”. Em 1987, as mulheres representavam 19,8% das redações portuguesas. Em 1990, eram 25,4%. Sete anos mais tarde, 32,8% e, em 2009, elas somavam 40,7% (GARCIA, 2009). Dados mais recentes (MIRANDA, 2017; OBERCOM, 2017) reafirmam a tendência de feminização (48% dos jornalistas portugueses são mulheres), da mesma forma que coadunam com as discrepâncias apontadas pelos estudos anteriores acerca da chegada das profissionais mulheres aos cargos de mais alto comando editoriais. Subtil (2009) evidencia a necessidade de atrelar esse crescimento a um contexto de recomposição da estrutura social portuguesa, que se dá com incremento de relações de equidade entre homens e mulheres, observadas, por exemplo, no aumento da escolaridade – nos anos 1960, 29,5% dos universitários portugueses eram mulheres. Três décadas depois, elas eram mais de 60%. Além da chegada massiva das mulheres ao mercado de trabalho. Em 2011, a pesquisadora brasileira Paula Melani Rocha e o pesquisador português Jorge Pedro Sousa empreenderam um trabalho comparativo entre Portugal e Brasil sob a perspectiva da transformação da profissão e da influência do gênero no exercício do jornalismo. Chegaram a conclusões como: 1) as mulheres e os jovens ocupam as redações tanto em Portugal quanto no Brasil; 2) a participação das mulheres muda conforme a natureza do veículo de comunicação (no Brasil, elas estão em maior número em revistas e setores fora da redação; em Portugal, atuam sobretudo nas rádios, agências de notícias e televisão); 3) mulheres ocupam os novos espaços criados no jornalismo. Essa conjunção de fatores, contudo, é compreendida como não suficiente para a redistribuição de poder e sedimentação da igualdade de oportunidades entre homens e mulheres (CERQUEIRA, 2008; SUBTIL, 2009; MARQUES DA SILVA, 2010; ROCHA; SOUSA, 2011; LOBO et al., 2015; MIRANDA, 2017). A partir das entrevistas realizadas para esta pesquisa, pode-se inferir que o consenso geral é de que as escolhas da direção para os cargos de chefia são meritocráticas e que as mulheres já garantiram espaço igualitário em relação aos colegas homens. Observação semelhante é descrita a partir de entrevistas Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 41 a jornalistas portugueses analisadas por Lobo et al (2015), na qual os respondentes, de forma geral, rejeitam possíveis assimetrias de gênero, uma vez que “o jornalismo constitui-se como uma exceção entre a maioria dos universos profissionais e é uma profissão onde a igualdade de gênero foi plenamente avançada” (LOBO et al., 2015, p. 1153, tradução livre). Ao que as pesquisadoras entendem como uma tipificação dos papéis de gênero, incorporados à vida profissional. “Os profissionais da informação não acreditam, em termos gerais, nas diferenças devidas ao gênero” (GALLEGO, 2004, p. 63). Ainda que hoje em dia se tenda a uma equiparação cultural e social entre homens e mulheres, mantêm-se mesmo assim certos tópicos, crenças e práticas sociais nos quais as mulheres saem maioritariamente desfavorecidas: por exemplo, o tratamento das mulheres é mais familiar, menos rigoroso (GALLEGO, 2004, p. 63-64). Ao observar, por exemplo, os números e o expediente dos jornais aqui estudados, observamos que as mulheres atingiram postos de chefia intermediária, mas não estão no topo dos cargos jornalísticos das redações, o que mostra que “o acesso das mulheres à igualdade de oportunidades tem sido parcial e setorial” (MARQUES DA SILVA, 2010, p. 322). No Diário de Notícias, dos quatro cargos de direção, um é ocupado por mulher – JP, nomeada subdiretora. Nas seis editorias de área, contudo, há paridade: cinco homens e cinco mulheres, entre editores e subeditores. No Correio da Manhã, os quatro cargos de direção de jornalismo são ocupados por homens. E nas oito editorias, nove homens e quatro mulheres dividem os cargos de editor e subeditor. É o veículo onde se observam as maiores disparidades no que se refere à distribuição de trabalho por gênero. No jornal Público, assim como no Correio da Manhã, os quatro cargos de direção de jornalismo são ocupados por homens. No Público, há 12 editorias, nas quais atuam sete homens e dez mulheres13. Portanto, numericamente é o veículo estudado, em Portugal, com maior número de mulheres em cargos de chefia. Em Portugal, a taxa de atividade feminina é a mais elevada quando comparada com outros países europeus, nomeadamente com os países do Sul da Europa (PORTUGAL, 2008). No entanto, a igualdade de oportunidades e o percurso para uma cidadania efetiva não têm sido conseguidos nem através do aumento da educação, nem da sua maior 13. Dados obtidos durante a pesquisa de campo, realizada entre maio e junho de 2017. 42 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) presença no mundo do trabalho pago, que, nos finais dos anos 1990, era de 75,1% (MARQUES DA SILVA, 2010, p. 322). Marques da Silva (2010, p. 308) identifica estratégias que passam tanto por buscar uma identidade profissional masculina quanto distinguir-se dos colegas do sexo oposto. Observam-se nas falas dos entrevistados da presente pesquisa situações que poderiam ser consideradas como discriminação de gênero. No entanto, ainda que nos relatos apareçam questões que remetem a obstáculos envolvendo o gênero, a maioria das entrevistadas afirma não ter enfrentado dificuldades profissionais pelo fato de serem mulheres. Questões de gênero e os valores-notícia: uma proposta de análise Desde o século XIX existem discussões sobre gênero nas redações, e ao longo do século XX a temática tornou-se ainda mais complexa. Foram os estudos feministas que estimularam o pensamento em torno da questão de gênero nas redações, sua relevância, o silenciamento ou a colocação dessa “variável” em segundo plano no ethos jornalístico e nos ideais de produção da notícia (PONTE, 2005, p. 160). O debate sobre quem produz se alargou e ganhou novas dimensões, atualmente, nos estudos sobre o conhecimento jornalístico. “Agora, ao menos oficialmente, os homens afirmam que a questão de gênero é irrelevante na sociedade moderna” (STEINER, 2009, p. 117). A autora discute gênero nas redações, e pensa por meio das formas de assimilação de métodos, práticas e ética. Ao raciocínio de Steiner, ponderamos que este pensamento masculino em relação a não relevância da questão de gênero pode, sim, ser ampliada para o universo feminino, no sentido de que a naturalização das relações de trabalho e das rotinas profissionais entre homens e mulheres também as faz pensar como ultrapassado levar em conta questões de gênero. Sobretudo em um tempo em que as mulheres são maioria nas redações. RL é um exemplo. Jornalista de 34 anos, é editora do caderno Vidas (seção conhecida na imprensa portuguesa como “cor-de-rosa”, que lida com o mundo das celebridades), do jornal português Correio da Manhã. Ao ser questionada sobre as possíveis alterações nas redações, nas últimas décadas, em função da chegada massiva das mulheres, RL diz que as redações tendem a ficar diferentes a partir do ingresso de mais jornalistas mulheres. A jornalista avalia que as relações atualmente são de paridade e pondera: “Hoje em dia, já Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 43 quase colhemos isso como um não assunto, no sentido em que já é tão normal [...] as pessoas são pela competência e não por gênero. Acho que quem faz os produtos são as pessoas, independente de serem homens ou mulheres. O olhar de cada pessoa é diferente” (RL, 2017, entrevista à autora). Como ela, outros profissionais apostam nessa igualdade. PV, 37 anos, a editora de Internacional do jornal Diário de Notícias, afirma: “Um jornalista é sempre um jornalista. Homem ou mulher segue os princípios da profissão” (PV, 2017, entrevista à autora). Mas há uma percepção, sobretudo entre as com mais idade, de que há mudanças substanciais. SD, 43, editora adjunta de Cultura do Correio da Manhã, veículo no qual ela trabalha desde os 17 anos, tem uma visão crítica acerca da chegada das mulheres às redações. “A presença feminina, para o bem ou para o mal, muda a rotina da redação. As mulheres mostraram que conseguem fazer muitas coisas ao mesmo tempo e são mais organizadas” (SD, 2017, entrevista à autora). Em seguida observa sob outro aspecto: “Já trabalhei em seção só com mulheres e elas estavam sempre a picar [criticar, ser rude, dizer indiretas] umas as outras”. Ao que conclui: “O melhor é ser misto, com equilíbrio”. PM, 36 anos, editor da seção Portugal (que aborda políticas de educação, saúde, justiça, etc), divide as tarefas de edição com uma mulher e, com base no dia a dia do trabalho, afirma que há mudanças a partir da maior presença feminina nos jornais. “As mulheres podem ter um olhar fresco sobre alguns temas, principalmente na editoria Sociedade [seção que trata de comportamento e questões sociais]. As mulheres podem ter um faro mais apurado para determinados temas sociais” (PM, 2017, entrevista à autora). Pensamento este complementar ao da editora executiva GH, 47 anos. “Acho que trazemos uma visão diferente das coisas. Alargamos o campo de visão da redação. Defendo a igualdade, mas acho que não somos todos iguais, homens e mulheres. Temos a capacidade de perceber as coisas que dizem mais respeito às pessoas” (GH, 2017, entrevista à autora). No entanto, fica latente a reticência à pergunta por parte de alguns profissionais, considerando que, atualmente, as mulheres garantiram seus espaços nas redações em números equivalentes ou superiores aos homens. Fica subentendido, a partir disso, que, sem um olhar mais aprofundado, jornalistas homens e mulheres podem tender à compreensão de que a presença nas redações, ou seja, o aspecto quantitativo, é demonstrativo suficiente de que há uma igualdade de gêneros nas redações jornalísticas. Dentro das redações, os profissionais não costumam problematizar as 44 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) razões por que hoje há mulheres por todas as editorias, espalhadas por diferentes cargos e com distintas funções. Até mesmo porque muitos já entraram no mercado à luz dessa realidade pós anos 1990 (a ausência de memória pode ser mais um sinal do rejuvenescimento das redações). Porém, ao serem estimulados a falar sobre recomposição de gênero, nos permitem apontar três razões macro para a chegada das mulheres às chefias intermediárias: (1) Mudança de mentalidade – essa percepção aparece na forma de apontamentos como “é um reflexo da própria sociedade portuguesa, patriarcal por muitos anos, até a década de 70 [...] a partir da revolução [Revolução dos Cravos, em 25 de abril de 1974, que representou o fim do período ditatorial no país, vigente desde 1933] houve os primeiros passos da emancipação da mulher” (PM, editor de Portugal do DN, 36 anos, em entrevista à autora). O período democrático em Portugal trouxe acesso à informação, acesso à formação a toda a gente. As mulheres, antes do 25 de abril, não podiam votar, não podiam sair do país sem a autorização dos maridos. Com a democracia, mudou muita coisa. Isso, sobretudo na década de 90, depois também da entrada de Portugal na União Europeia, abriu-se um novo mundo, muitos fundos estruturais vieram pra Portugal, mas sobretudo foi o dinamismo que a democracia trouxe, a igualdade. Hoje, nas universidades, há tantas mulheres como homens. Há cursos em que há mais mulheres que homens, como o jornalismo. E depois há a renovação dos trabalhadores e as mulheres passaram a ter seguridade em mostrar aquilo que valem. Já não ficam em casa só a tomar conta dos filhos e passar a roupa a ferro para o marido. E isso as permitiu mostrarem o que valem e o seu mérito, e por isso foram chamadas para cargos de chefia. Eu acho que no jornalismo não há [preconceito e machismo], não me deparei com isso. Aliás, se isso ocorresse eu nunca estaria onde estou. Agora há uma questão: e nas direções? Por que é que há sempre mais homens do que mulheres? Ainda falta esse patamar. Mas é um caminho que se faz caminhando. De fato, eu nunca tive diretora mulher, na época em que passei [tem 27 anos de jornalismo]. (GH, 2017, entrevista à autora). A história do país, para esses profissionais, corrigiu preconceitos ligados às mulheres. NF tem 45 anos, é editor de Desporto no DN e compara o passado com o presente: Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 45 Julgo que mesmo historicamente, há muito mais mulheres no jornalismo do que há trinta anos. E é uma questão também das mentalidades, hoje não há mais aquela coisa retrógrada. Na direção do jornal, agora só há uma, mas havia três mulheres na direção anterior. Eram um diretor, um diretor adjunto e três diretoras adjuntas. E vemos isso com normalidade. Não me importava nada ser chefiado por uma mulher, desde que ela fosse competente (NF, 2017, entrevista à autora). (2) Jornal deixou de ser um ambiente masculino – algumas falas sustentam essa percepção, como a de AP, editor adjunto de Sociedade, no CM. “O mundo da imprensa era masculino. Agora não. Pode ainda haver no topo esse reflexo histórico, mas nas chefias intermediárias já não se nota isso [...] as redações feminilizaram-se, então é uma questão de tempo. Daqui cinco anos as mulheres estarão na direção do CM”. A editora de Vidas, RL, de 34 anos, tem 12 anos de mercado como jornalista, e recorda já ter trabalhado em redação “altamente masculina”. Ela refere-se a um jornal esportivo. “Mas até isso [redações esportivas predominantemente masculinas] já sinto mudar [...] desde que saí da Bola [nome do jornal desportivo] não senti isso em nenhuma outra redação” (RL, 2017, entrevista à autora). (3) As mulheres foram para as universidades – para homens e mulheres que trabalham nas redações jornalísticas de hoje, é perceptível que o caminho da universidade está povoado de mulheres. É como pensa PV, 37 anos, editora de Internacional: Antigamente, só quem ia estudar eram os homens. As mulheres aceitavam o papel de ficar em casa e cuidar dos filhos. Hoje em dia, acho que sobretudo a partir da minha geração, as mulheres já começaram a ter vida própria. E foram educadas naquela base de perceber ‘o que é que eu gosto de fazer e vou lutar por isso e vou ser eu, independente, vou ter a minha profissão, não vou existir através de um marido, eu posso existir por mim própria’. E acho que vem daí, porque nota-se também noutras áreas sem ser no jornalismo (PV, 2017, entrevista à autora). Outra mulher, da mesma geração, com cargo semelhante em outro veículo (DR tem 35 anos e é editora de Economia e Política do CM), aponta um raciocínio na mesma linha: Culturalmente e historicamente, se formos a pensar 30 anos, não havia 46 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) tantas mulheres a fazer um caminho de formação, de carreira. Nos últimos anos isso tem acontecido. Ou seja, não só as próprias organizações passaram a dar mais oportunidades às mulheres, como as próprias mulheres mudaram a maneira de estar. Deixaram de querer estar só como domésticas, como mães, como educadoras e preferiram ir atrás de uma carreira (DR, 2017, entrevista à autora). HR, 35 anos, editor de Cultura e Media do CM, lembra também do fenômeno da abertura de cursos de comunicação e jornalismo em Portugal. Para HR, os cursos de comunicação já começaram atraindo mais mulheres que homens dispostos a cursá-los. Assim, infere-se que o jornalismo passou a ser uma profissão mais “feminina” concomitante ao momento em que o perfil do profissional passou a ser com formação na área. Tem muito a ver também com o boom que houve em Portugal dos cursos de comunicação. Há trinta anos, existia um curso de comunicação social em Portugal. Atualmente existem dezenas. Como tal, também houve muitas mudanças para entrar na profissão. Havia há trinta anos poucos jornalistas licenciados. Atualmente a grande maioria dos jornalistas já vem com licenciaturas. E cursos de comunicação social são na maioria compostos por mulheres. Acho que é a partir daí que começou a ter uma área mais branda nas redações e com os anos de experiência das pessoas que entraram nessa nova fase, essas pessoas também começam a chegar a cargos de chefia, independentemente de serem homens ou mulheres. É uma questão geracional. (HR, 2017, entrevista à autora). O relatório de tendências 2016 das mulheres no trabalho da Organização Internacional do Trabalho (OIT, 2016) foi menos otimista. “Nas últimas duas décadas, os significativos progressos alcançados pelas mulheres na educação não se traduziram numa melhoria comparativa na sua situação no trabalho” (OIT, 2016, p. 3). Butler (2003) afirma que a chave para entender gênero seria não enxergá-lo como um papel, tampouco um estático e dicotômico conjunto de diferenças entre mulheres e homens, mas como um ato relacional. Considerando que Wolf (1994), ao tratar dos valores-notícia e seus pressupostos, coloca o público como um dos fatores implícitos nesse que é um balizador do que vai ou não entrar na pauta dos veículos jornalísticos, temos de considerar uma pontuação feita por Steiner (2009). A autora afiança que, num pensamento dicotômico, tem-se que as mulheres jornalistas pensam mais no público, enquanto que os profissionais do sexo masculino tendem a ter uma Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 47 postura mais “fria” no que tange à recepção. Em certa medida isso se aplica a gestores homens e mulheres com os quais conversamos, que acreditam existir, sim, diferença do olhar masculino e do feminino. Apesar dessas percepções que vão ao encontro do que afirma Steiner (2009), há um discurso forte (de uma maioria) na defesa de que, independente do gênero, o que existe são “pessoas com mais sensibilidade para uma área ou para outra”, como afirmou HR, editor de Cultura e Media, que desde 2010 exerce a função de editor. A colega editora do Vidas, RL, compartilha da opinião de HR. “Acho que quem faz os produtos são as pessoas, independente de serem homens ou mulheres” (HR, 2017, entrevista à autora). São avaliações que vão ao encontro do que defende Butler (2003), ao afirmar ser necessário tratar o gênero no jornalismo como um ato relacional, a fim de avançar nas discussões epistemológicas e não de valores natos de homens e mulheres (STEINER, 2009, p. 127). Ainda assim, é válido pensar num contexto em que convergem os fatos de (1) as mulheres serem maioria entre os jornalistas em nações como o Brasil e estarem se aproximando da paridade em outros países, como Portugal, e (2) os valores-notícia darem ao público um protagonismo referenciado pelo cenário de concorrência empresarial e jornalístico. Importante nesse contexto asseverar que, conforme diz Vizeu (2014, p. 102), os critérios de seleção dentro da redação são “um componente complexo que se desenrola ao longo do processo produtivo”, mas não podemos esquecer as escolhas subjetivas inerentes aos valores-notícia, aos critérios de seleção jornalística. Ponte (2005) analisou a autoria de matérias sobre crianças e infância, e depreendeu: [...] o gênero não é uma variável a ignorar, apesar de ser eminentemente masculino o imaginário da profissão. Há jornalistas que falam de um “jornalismo no feminino”, apontando uma maior atenção aos pormenores e uma apetência por temas da esfera social, não dissociada de uma “ética do cuidado” [...]. Como dirá um jornalista, é como se houvesse uma “ordem natural das coisas, não intencional”, que leva a que um jornalista homem vá cobrir a criminalidade infantil mas considere que temas de educação ou saúde serão melhor tratados por jornalistas mulheres, pela sua sensibilidade (PONTE, 2005, p. 161, grifos da autora). Allan (1998) associa o conceito de verdade a uma invocação “masculinizada”, no sentido de que “as orientações dos homens para o ‘mundo dos fatos’ são consideradas as mais ‘apropriadas’ para revelar a verdade imutável do real” 48 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) (ALLAN, 1998, p. 125-126 apud PONTE, 2005, p. 162). Considerando-se a existência dessa “verdade”, faz-se então coerente a busca pela objetividade. Discussão que soa um tanto restritiva, à luz do que ponderamos acima, quando nos amparamos em Butler (2003) para tratar o jornalismo mais como um ato relacional do que de valores natos e dicotômicos entre homens e mulheres. Mais apropriado, parece-nos, é pensar a objetividade como consciência das subjetividades inerentes ao trabalho e, ao mesmo tempo, como forma de manter o profissional vigilante (TUCHMAN, 1978; PONTE, 2005). Sob essa perspectiva, desprendemos do objetivo e do subjetivo as “possíveis” masculinidades e feminilidades, deixando aos jornalistas a missão de lidar com as implicações éticas e políticas sobre a realidade (MEDITSCH, 1992, p. 32). Algumas considerações O jornalismo é uma profissão cujas portas abriram-se definitivamente para as mulheres. Pensar sobre gênero no mundo do trabalho jornalístico é uma forma de ajudar a compreender as relações profissionais e de poder que se fundam com a chegada e atuação das mulheres nessa profissão que por tantos anos esteve atrelada ao universo masculino. A maior incidência de mulheres na profissão contribuiu, em alguma medida, para uma pluralidade de vozes no fazer jornalístico. Quando nos amparamos nas perspectivas construtivistas, que acolhem as notícias como uma construção social da realidade, permeada pela cultura dos jornalistas (TRAQUINA, 2005) e da sociedade onde os profissionais estão inseridos, percebemos que, para além da heteronormatividade, dos valores da empresa e das rotinas produtivas, as subjetividades do sujeito jornalista dizem muito do processo produtivo que leva à notícia. Adotar gênero como categoria para pensar convenções sociais sobre o masculino e o feminino ajuda a perceber a incidência desses “hábitos” nas práticas profissionais e sociais. E na fala dos profissionais percebe-se certa naturalização dessas convenções, que inclusive exaltam os diferentes papéis e visões de homens e mulheres nos ambientes de redação. A feminização altera a dinâmica estrutural das redações, abre espaço para ocupação de cargos de chefia por essa maioria de mulheres, mas ainda assim esbarra em uma barreira social que as vincula à subordinação e inferioridade salarial. Esse conjunto de fatores exige de nós uma leitura atenta às nuances e complexidades do mundo do trabalho, de modo a tentar compreender a influência das questões de gênero no dia a dia das redações. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 49 Referências ALLAN, S. Gendering the Truth: politics of News Discourse. In: CARTER, Cynthia; BRANSTON, Gill; ALLAN, Stuart (Org.). News, Gender and Power. Nova York: Routledge, 1998. p. 121-140. ALVES, J. E. D. Desafios da equidade de gênero no século XXI. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 2, n. 24, p.629-638, maio 2016. 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A reflexão proposta é fruto dos estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero (CNPq) da Universidade Estadual de Ponta Grossa desde 2010, os quais apontam a ausência de perspectiva de gênero nas coberturas jornalísticas da grande imprensa e nos cursos de formação em Jornalismo de Ponta Grossa. O capítulo propõe ainda o fortalecimento, durante a formação profissional, da intersecção entre estudos de gênero e elementos que determinam a seleção dos critérios de noticiabilidade no processo de produção jornalística. Palavras-chave: Jornalismo; Critérios de noticiabilidade; Gênero; Formação profissional. Jornalismo e perspectiva de gênero A conformação do campo de Jornalismo no Brasil foi travada historicamente por lutas políticas e ideológicas, muitas instrumentalizadas nos pe14. Professora do Curso de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Coordenadora do Grupo de Pesquisa Jornalismo e Gênero (CNPq) da UEPG. 15. Professora do Departamento de Jornalismo e do Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). Pesquisadora Colaboradora do Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo (LabJor), UNICAMP. Coordenadora do grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero (CNPq) da UEPG. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 53 riódicos, como os veículos republicanos, monarquistas, anarquistas, imprensa convencional, imprensa alternativa, imprensa feminista. Outras foram travadas entre as deontologias da profissão, mercado e interesses hegemônicos. Contudo, a participação das mulheres no jornalismo e as lutas que elas encabeçaram na conformação do campo em ambas as frentes mencionadas acima, assim como a imprensa LGBTs, foram minimizadas, descontextualizadas ou, até mesmo, desconsideradas na construção “oficial” da narrativa histórica do jornalismo brasileiro. Um retrato disso é o deslocamento para tópicos específicos – imprensa feminina; imprensa feminista; imprensa LGBTs – sem diluir suas contribuições para a conformação do campo. Isso remete em, pelo menos, dois hiatos, um na cultura profissional dos jornalistas e outro no jornalismo com perspectiva de gênero que, embora não sejam sinônimos, não estão dissociados e, em alguma medida, até se sobrepõem. Porém, reiteramos aqui que a pouca visibilidade dessa participação nos registros históricos da conformação do campo do jornalismo no Brasil não apaga, de maneira alguma, suas contribuições nos avanços das transformações da cultura profissional do jornalismo e das coberturas jornalísticas. É necessário fomentar mais estudos nesse sentido, para compreender a complexidade do processo comunicacional e a feminização do jornalismo, considerando os atravessamentos históricos, culturais, econômicos e políticos. Estudos acadêmicos no campo do Jornalismo intersectando jornalismo e gênero no Brasil são considerados recentes e localizados frente às outras temáticas pesquisadas tanto em relação à produção jornalística, recepção, perspectiva histórica como mercado de trabalho (SILVA, 2014; MARTINEZ, LAGO, LAGO, 2016; ESCOSTEGUY, 2008). Levantamento realizado pelo grupo de Jornalismo e Gênero da Universidade Estadual de Ponta Grossa16 no Portal de Periódicos CAPES17, em 23 de novembro de 2013, na base de dados artigos científicos nacionais e internacionais, utilizando um conjunto de duas palavras com referência a estudos envolvendo jornalismo e gênero, aponta indicadores de investigações sobre o tema (WOITOWICZ, ROCHA, 2016). Para as autoras, os dados reiteram que estudos de gênero no campo do Jornalismo ainda são incipientes. 16. O grupo foi criado em 2012 (CNPq) e é coordenado pelas professoras Karina Janz Woitowicz e Paula Melani Rocha. 17. Disponível em: http:// www.periodicos.capes.gov.br/ 54 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Tabela 1. Artigos científicos nacionais e internacionais em Jornalismo e Gênero18 Dados: Número de artigos científicos nacionais e internacionais encontrados no sistema de busca do portal de periódicos da Capes utilizando os seguintes conjuntos de palavras-chave: representações femininas/comunicação; representações femininas/jornalismo; jornalista/mulher; jornalismo/mulher (WOITOWICZ, ROCHA, 2014, p.137). Nesse sentido, o presente capítulo busca contribuir com a temática do livro “Desigualdades, relações de gênero e estudos em Jornalismo”, costurando a discussão pela cultura profissional e produção jornalística com perspectiva de gênero, como essas instâncias impactam na concepção dos critérios de noticiabilidade e inovações nas coberturas jornalísticas com viés de gênero. A reflexão proposta é fruto dos estudos desenvolvidos pelo grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero (CNPq) e pretende estabelecer uma discussão teórica e dialógica entre estudos de gênero e a percepção dos elementos que determinam a seleção dos critérios de noticiabilidade. Para que isso seja possível, apontamos a necessidade da inclusão da perspectiva de gênero na formação do(a) profissional, durante a graduação, utilizando como método um levantamento de documentos (livros, guias e manuais) vinculados aos movimentos sociais e ao campo jornalístico que apontam para tal demanda. O texto apresenta também resultados de pesquisa realizada pelo grupo Jornalismo e Gênero, em Ponta Grossa, que revelou que ainda é embrionária nos cursos da cidade a iniciativa de pensar gênero e suas interfaces no exercício do jornalismo. O capítulo pretende, por fim, apresentar uma revisão bibliográfica, mapeada pelo respectivo grupo, que aborda justamente a temática sugerida neste capítulo. Cultura profissional e a produção jornalística A cultura profissional no jornalismo ao longo do século XX foi majoritariamente formada e conduzida por homens. As redações eram um ambiente masculino, semelhante a outros campos profissionais. Isso não era exclusivo do Jornalismo. Em um país culturalmente regido pela herança do patriarcado19, 18. Vale destacar que um mesmo artigo pode constar em buscas diferentes. 19. Entende-se por patriarcado um regime ancorado na opressão dos homens sobre as mulheres, sustentado em um conjunto de relações sociais, hierárquicas e solidárias entre os homens, as quais os habilitam a controlar as mulheres. O sistema assegura aos homens e seus descendentes o controle da produção diária e da reprodução da vida (SAFFIOTI, 1992). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 55 tanto nas esferas privada como pública, legitimado por um Estado solidário, as interações humanas foram travadas em estruturas hierárquicas também fundamentas sobre o gênero. Há registros da participação de mulheres na produção de periódicos desde o século XIX (DUARTE, 2016; RAGO, 1995;1996; BUITONI, 2009; ROCHA, KOVOSKI, 2017), mas o acesso ocorre de formal gradual e somente aumenta o ingresso feminino após a abertura dos cursos de formação superior, a partir de 1947. Contudo, até o final do século XX as mulheres ainda não representavam maioria no mercado de trabalho em Jornalismo no país. Outro fator a ser pontuado é que o acesso das mulheres às redações ocorreu com maior facilidade nos veículos considerados mais ligados às chamadas soft news (ROCHA, 2004; LEITE, 2015), ou seja, nos jornais impressos e emissoras de rádio o percentual feminino era menor quando comparado aos outros veículos como emissoras de televisão, revistas, agências de notícias e setores considerados extra redação, como assessorias de imprensa e de comunicação. Somada a isso, a concentração ocorreu em maior escala na base da pirâmide do mercado profissional, ou seja, em cargos e funções de menor prestígio em relação às chefias e direção (ROCHA, 2004; LEITE, 2015; PONTES, 2016). Houve também um descompasso no movimento de acesso às mulheres nas redações de acordo com a região do país e localidades com concentração de veículos de mídia. Na capital São Paulo, por exemplo, em 1995, as mulheres já constituíam maioria no mercado de trabalho formal e informal, com 64,8% de presença (ROCHA, 2004). Ao tomar como referência apenas o mercado formal, em 2013 as mulheres já eram maioria com 54,43%. A cidade de São Paulo é a que tem maior concentração de jornalistas atuando no país, enquanto o estado de São Paulo corresponde ao maior mercado empregatício do país com 26,45% dos empregos, somente a capital corresponde a 52,9% desse total (FÍGARO, 2013). Ainda em 2013, de acordo com dados da RAIS (Relação Anual de Informações Sociais), no país, havia 74.487 jornalistas em empregos formais (com registro em CLT), sendo 44,42% de mulheres e 54,58% homens. É bom pontuar que o estado de São Paulo também concentra o maior número de cursos de formação em Jornalismo, somando instituições particulares e públicas, com 47,48% do total no país (MICK; LIMA, 2013). Dados mais recentes, do The World of Journalism (2017)20, reforçam o perfil jovem dos jornalistas brasileiros, com idade entre 22 e 35 anos (57,2%), bem como o crescimento da presença feminina nas últimas décadas (50,8% são homens e 20. Disponível em: https://epub.ub.uni-muenchen.de/32084/1/Country_report_Brazil.pdf. Acesso em: 12 jul. 2018. 56 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) 49,2% são mulheres), o que sugere a maior participação de mulheres no mercado profissional, visto que o principal acesso ao contingente feminino foi a formação superior (ROCHA, 2004). Assim, percebemos assimetrias de gênero caracterizadas na ocupação em relação a: 1) mercados formal e informal de trabalho, 2) cargos e funções, 3) regiões do país, e 4) tipos de veículo interferindo também na prevalência de uma cultura profissional ainda masculina. Não se trata apenas do mapa quantitativo do processo de inserção das mulheres no jornalismo, mas também dos recortes qualitativos que caracterizam esse movimento. Há ainda o paradigma predominante do jornalismo informativo no século XX, sobretudo a partir dos anos 1950 no Brasil, o qual foi ditado pela lógica da busca da objetividade e das duas versões, sobressaindo sempre o lado oficial, detentor de um poder hegemônico, como legitimador e a falta de polifonia de vozes reverberando em multiplicidade de tipos e classificações de fontes. O processo de produção jornalística é guiado pela noticiabilidade, substanciada pelos critérios de noticiabilidade e valores notícias que, no modelo informativo, caracterizou-se por uma intrínseca relação com a doxa (SILVA, 2013) e os valores dominantes na sociedade. Silva (2013, p.82), fundamentado em perspectivas de representação simbólica, interacionismo e marxismo, mostra que a classe dominante tem interesse em defender a doxa, com a “[...] intenção de estabelecer em seu ‘devido lugar’ o modo hegemônico de pensar e arguir o mundo”. Assim, o jornalismo reproduz, mesmo sem querer, esse senso comum na prática diária. No campo empírico, isso significa que não basta simplesmente pautar um acontecimento com pluralidade de fontes para a composição da narrativa, mas sim produzir uma cobertura polifônica com versões oriundas de distintos lugares sociais, culturais, étnicos, de gênero e mesmo selecionar como acontecimento pautas invisíveis à lógica convencional e dominante. A noticiabilidade, absorvida pela cultura profissional, atende acontecimentos que fogem à ordem dominante de conceber a realidade, os quais são apreendidos por critérios de noticiabilidade e valores notícias, construídos sobre o alicerce das normas e valores sociais vigentes. Silva (2014) diferencia valores-notícias de critérios de noticiabilidade, aproximando-se da discussão proposta por Wolf (1994). Para a autora, os valores-notícias correspondem às características do fato em si, já os critérios de noticiabilidade dizem respeito ao conjunto de valores-notícias tratados durante o processo de seleção, produção e construção do conteúdo informativo. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 57 Assim, o objetivo é centrar no debate sobre critérios de noticiabilidade e suas implicações sobre o modo como temáticas de gênero deveriam ser inseridas na pauta jornalística, em um diálogo entre as lógicas do mercado profissional e as exigências da formação na área. Demandas de gênero no campo jornalístico A 4ª Conferência Mundial da Mulher (Beijing, 1995), em sua Plataforma de Ação (ponto J, sobre mulheres e mídia)21, assinala um marco importante no que diz respeito às mulheres e os meios de comunicação, ao destacar o acesso aos meios como uma alternativa para diminuir as desigualdades. Trata-se de entender a comunicação como uma esfera dos direitos humanos e como um elemento estratégico para conquistar uma maior equidade. Sabe-se, contudo, que muito antes de ser referendada em Pequim como um campo relevante para a conquista da equidade entre homens e mulheres, a comunicação já era não apenas feita como também refletida e teorizada enquanto um espaço onde se processam as demandas das mulheres, o que significa a gradativa inclusão da perspectiva de gênero no jornalismo e nos espaços de mídia em geral. Em relação à tematização de questões de gênero pelo jornalismo, Gaye Tuchman (1980), em estudo sobre os impactos da organização do tempo e do espaço sobre o trabalho jornalístico, já observava que alguns movimentos sociais são mais acessíveis do que outros e que as mulheres assumiam status periférico nas notícias, uma vez que as práticas jornalísticas acabam por legitimar o poder institucional. No contexto brasileiro, Márcia Veiga da Silva (2014) mostrou, em pesquisa de caráter etnográfico em uma redação de TV, os aspectos subjetivos que orientam os valores-notícia e que permitem afirmar que o gênero do jornalismo é masculino. Percebe-se, assim, que as práticas de desigualdade permanecem presentes e se agravam com as imagens produzidas pelos meios de comunicação, baseadas em estereótipos e na falta de reconhecimento da diversidade dos grupos sociais. Esta é uma realidade comum, que tem sido sistematicamente investigada e criticada pelas iniciativas de monitoramento de mídia e estudos acadêmicos que analisam coberturas jornalísticas sobre temáticas relativas às questões de gênero.22 21. Disponível em: http://www.unwomen.org//media/headquarters/attachments/sections/csw/bpa_s_final_web. pdf ?la=es&vs=755 22. Entre estas iniciativas, em grande parte desenvolvidas por entidades voltadas aos movimentos em defesa dos direitos das mulheres, pode-se citar algumas realizadas no contexto latino-americano: PORTUGAL, Ana Maria; TORRES, Carmen (orgs.). Por todos los medios: Comunicación y Género. Ediciones de las Mujeres n. 23. Santiago de Chile: Isis Internacional, 1996; TORRES, Carmen (ed.). Género y comunicación: el lado oscuro de los medios. 58 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Diante das limitações do mercado profissional e da busca por alternativas para o desenvolvimento de um jornalismo com enfoque de gênero, destaca-se nas últimas décadas a constituição de redes de comunicação com participação expressiva de mulheres vinculadas às lutas pela igualdade de gênero (SANTORO, 2007). Este trabalho em rede embasa diferentes estratégias de inserção do debate de gênero na agenda social, com a incorporação gradativa das mídias. Este fenômeno tem origem na articulação de grupos de mulheres que, desde os anos 199023, passam a se apropriar das tecnologias como forma de luta política, o que acaba por motivar a criação de redes de jornalistas com visão de gênero (CHAER, 2007). A partir daí, segundo a autora, se multiplicaram os portais informativos, agências de notícias, blogs, revistas, rádios on-line, redes sociais, entre outras iniciativas que se fortaleceram nas últimas décadas e assumiram o propósito de colocar as demandas das mulheres na pauta da mídia. Para Hasan e Gil (2014, p. 45, tradução nossa), […] as redes de comunicação de gênero preocuparam-se especialmente em destacar as mulheres como sujeitos de informação e comunicação, acrescentando-as às críticas pela exploração das mulheres como objetos, como imagens ou como discursos que circulam pela mídia.24 As possibilidades de intervenção no espaço público por meio das mídias, mesmo considerando assimetrias de acesso e de condições de produção (CERQUEIRA; RIBEIRO; CABECINHAS, 2009), revelam as potencialidades para a afirmação das vozes femininas e para as lutas para superar as desigualdades de gênero. Entende-se que a ocupação de espaços de atuação política contribui para tensionar as relações de poder e inserir determinadas demandas na agenda pública, o que passa pela apropriação dos espaços informativos. Ediciones de la Mujer, n. 30. Santiago de Chile: Isis Internacional, 2000; BONDER, Gloria. Mujer y comunicación: una alianza posible. Buenos Aires: Asociación Mundial para la Comunicación Cristiana; CEM – Centro de Estudios de la Mujer, 1995; ALONSO, Martín Oller; MÁRQUEZ, Maria Cruz Tornay (orgs.). Comunicación, Periodismo y Género: una mirada desde Iberoamerica. Sevilla: Ediciones Egregius, 2016; CHAHER, Sandra; SANTORO, Sonia (orgs.). Las palabras tienen sexo: introducción a un periodismo con perspectiva de género. Buenos Aires: Artemisa Comunicación Ediciones, 2007; COMISSÃO DE CIDADANIA E REPRODUÇÃO. Olhar sobre a mídia. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2002. 23. Segundo dados apresentados por Hasan e Gil (2014), em 1993 se tem registro da criação do programa APC-Mujeres en Ecuador, dando origem às primeiras redes de mulheres na internet. Em 1995, o CIMAC impulsionou a criação de redes na América Latina, com a Red Nacional de Periodistas de México. En 1998, na Guatemala, é criada a Red de Mujeres Periodistas; em 2001, a Red Dominicana de Periodistas con Visión de Género; em 2003 a Red de Mujeres Periodistas de Nicaragua; em 2005 a Red Internacional de Periodistas con Visión de Género (RIPVG); em 2008, a Red Nacional de Mujeres Periodistas de Perú; e em 2009, a Red Colombiana de Periodistas con Visión de Género. 24. Do original: “[…] las redes de comunicación de género se ocuparon especialmente de destacar a las mujeres como sujetos de la información y la comunicación, sumándolas a la crítica por la explotación de las mujeres como objetos, en tanto imágenes o discursos circulantes por los medios”. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 59 O jornalismo com perspectiva de gênero, que se desenvolve sobretudo no ambiente digital, tem contribuído para repensar os valores-notícia, as fontes predominantes na cobertura jornalística, bem como o próprio uso de uma linguagem não sexista (SANTORO, 2007). Importantes iniciativas com este viés podem ser identificadas no Brasil por meio do “Mapa do jornalismo independente” da Agência Pública25. Em diversos países, este fenômeno também se encontra em expansão, acolhendo propostas jornalísticas, em sua maioria independentes e colaborativas, que se caracterizam como alternativas em relação às lógicas do jornalismo hegemônico. A proposta de tematizar o jornalismo com enfoque de gênero justifica-se, portanto, pelas demandas em curso na atualidade e pelo crescente interesse e reconhecimento social e acadêmico dos debates em torno das desigualdades de gênero. Neste sentido, a partir da necessidade de estabelecer articulações entre o campo profissional, as demandas sociais e o meio acadêmico, interessa discutir a inclusão da perspectiva de gênero na formação profissional, projetando impactos na qualificação da produção jornalística. Jornalismo com perspectiva de gênero na formação de profissionais Diante da presença crescente do debate sobre igualdade de gênero dentro e fora das universidades, surge o questionamento sobre o modo como os cursos de Jornalismo, que passaram recentemente por alterações curriculares em razão da adequação às Novas Diretrizes Curriculares26, abordam esta perspectiva no processo de formação. Esta preocupação motivou o grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero a realizar uma pesquisa junto aos cursos de Jornalismo da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG) e das Faculdades Santa Amélia (SECAL), ambos localizados em Ponta Grossa (PR) por meio da aplicação de questionários para todas as turmas no ano de 2015.27 O questionário continha 25 questões, sendo apenas duas abertas, e foi dividido em dois eixos principais, além de informações sobre perfil dos informantes, sem identificação: 1) a perspectiva de gênero 25. Entre as experiências jornalísticas, destacam-se: Gênero e Número (http://www.generonumero.media/), Azmina (http://azmina.com.br/), Catarinas (http://catarinas.info/), Nós, mulheres de periferia (http://nosmulheresdaperiferia.com.br/), Think Olga (http://thinkolga.com/), entre outras. 26. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=14242-rces001-13&Itemid=30192. Acesso em: 01 jun. 2018. 27. Os questionários foram aplicados com a ciência e autorização dos coordenadores dos cursos das duas instituições (UEPG e SECAL), com o compromisso ético de não identificação dos(as) informantes. 60 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) no ensino; 2) as questões de gênero na produção jornalística.28 Ao todo, foram respondidos 171 questionários (98 de alunos da UEPG e 73 da Secal) com o objetivo de verificar o contato e o tratamento das questões de gênero nos cursos de Jornalismo de Ponta Grossa. Sobre o perfil dos acadêmicos que participaram da pesquisa, 143 se afirmaram heterossexuais, 15 bissexuais e 13 homossexuais. Estudantes do sexo feminino correspondem a 92 (53,8%) e do sexo masculino somam 79 (46,1%). Na questão sobre a identidade de gênero dos estudantes, o resultado foi de 93 mulheres, 76 homens e uma travesti. Nenhum estudante assinalou a opção transexual. Os acadêmicos possuem de 18 a 44 anos, sendo a faixa etária mais frequente de 18 a 22 anos. Neste texto, serão mencionados apenas alguns resultados dos questionários, de modo a evidenciar as percepções mais evidentes dos estudantes em relação ao modo como compreendem a prática profissional em relação às questões de gênero, conforme abordado por Camargo e Woitowicz (2017). Questões sobre a representatividade das mulheres nas notícias, diversidade de fontes e uso de linguagem inclusiva foram alguns aspectos abordados nos questionários. No que se refere à questão “Na sua opinião, o jornalismo contempla a diversidade das representações de gênero?”, os resultados da pesquisa indicaram uma percepção negativa sobre o tratamento da mídia, totalizando 123 respondentes. Outros 41 questionários informaram que sim e seis pessoas não responderam, conforme consta no Gráfico 1. Fonte: As autoras (2018) 28. Os resultados da pesquisa foram trabalhados em projetos de iniciação científica sobre a temática da inclusão da perspectiva de gênero na formação profissional pelas acadêmicas Gabriela Clair e Bruna Carmargo, sob orientação das professoras Paula Melani Rocha e Karina Janz Woitowicz, respectivamente. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 61 Este dado encontra-se em sintonia com os estudos feitos acerca das representações de gênero na mídia, que em geral constatam a invisibilidade das mulheres e de outras minorias sociais como negros, indígenas, LGBTs, entre outros grupos, bem como a tendência a um tratamento que reforça estereótipos e hierarquias. Outra questão apresentada estava voltada à escolha de fontes para a produção de conteúdos jornalísticos, em que se perguntou se há uma preocupação em contemplar a diversidade de gênero. Os resultados indicaram a prevalência desta preocupação, com 120 respostas, e a presença de 44 respostas negativas para a questão. Seis pessoas não responderam e uma respondeu que a seleção da fonte depende da pauta. O Gráfico 2, abaixo, ilustra os dados apresentados. Fonte: As autoras (2018) Entende-se que a escolha de fontes é uma referência fundamental não apenas para identificar os lugares sociais ocupados por homens e mulheres como para observar o papel do jornalismo na manutenção ou na transformação das representações de gênero. Em estudo realizado pelo grupo de pesquisa Jornalismo e Gênero em março de 2011, tendo como base os textos com manchetes nas capas de seis revistas femininas e uma masculina do grupo Abril (Capricho, Gloss, Nova, Cláudia, Lola, Women’s Health e Men’s Health) e três jornais impressos (Diário dos Campos e Jornal da Manhã, de Ponta Grossa, e Gazeta do Povo, do Paraná), foram identificadas assimetrias no que se refere às pessoas na notícia, entre outros aspectos de interesse do referido estudo. Em relação às revistas, considera-se que os veículos segmentos adequam-se à sociedade de consumo, uma vez que as estratégias de marketing (inspiradas no mundo editorial europeu e americano) marcam o tom das publicações. 62 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Com a força do entretenimento como principal referência da maior parte das revistas, a presença de fontes fica comprometida pelo espaço limitado para informação nas publicações. As mulheres aparecem mais que os homens como fontes em revistas como a Nova e a Cláudia, principalmente na função de personagens, enquanto os homens prevalecem como fontes especializadas nas áreas da saúde e da beleza, predominantemente (ROCHA; WOITOWICZ, 2013). No que se refere aos jornais, a pesquisa indicou a prevalência de fontes masculinas nos três veículos. Na Gazeta do Povo, de um total de 54 textos, foram 144 fontes masculinas a 94 femininas; no Jornal da Manhã, de 48 textos, entre as fontes mencionadas, 70 são do sexo masculino e 22 do sexo feminino; e no Diário dos Campos, dos 75 textos, foram registrados 62 homens e 21 mulheres como fontes nas notícias. Neste sentido, percebe-se a tendência a uma maior visibilidade masculina no espaço dos jornais, bem como a desigualdades que se reproduzem no ambiente social no que se refere às ocupações de maior destaque e à pouca presença de mulheres em campos como a política e a polícia. De acordo com Rocha e Woitowicz (2013), tem-se uma maior presença masculina na condição de fontes especializadas nos jornais, que assumem papel de destaque nas matérias. Observa-se, ainda, que as mulheres são maioria quando se trata de relatar experiências pessoais, enquanto prevalecem homens no papel de fonte especializada e assunto principal das notícias. Estes dados refletem resultados obtidos por diversas outras iniciativas de monitoramento de mídia que revelaram tratamento desigual entre homens e mulheres, sendo a escolha das fontes um dos elementos observados. Desse modo, ao registrar um número representativo de questionários que confirmaram a preocupação com a igualdade de gênero na produção das notícias, acredita-se que a etapa da formação profissional pode contribuir para um tratamento mais equitativo entre homens e mulheres na atividade jornalística, se este aspecto for devidamente trabalhado nos conteúdos regulares dos cursos de graduação. Outra questão do questionário indagava sobre a importância ou não do uso de uma linguagem inclusiva na produção jornalística. A grande maioria dos estudantes, em um total de 114, respondeu afirmativamente, enquanto 47 apresentaram resposta negativa e 10 não responderam, conforme percentuais apresentados no Gráfico 3. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 63 Fonte: As autoras (2018) Diversos são os guias e manuais produzidos por coletivos feministas e entidades ligadas ao jornalismo que propõem o uso de uma linguagem inclusiva, que evite o masculino como referência hegemônica (este movimento, contudo, não parece encontrar o mesmo nível de preocupação no que se refere à mídia hegemônica). Para tanto, é possível utilizar termos neutros e referenciar adequadamente mulheres e pessoas LGBT, de modo a evitar a invisibilidade dos sujeitos representados nas notícias. Entendendo o papel da linguagem na produção do imaginário social, considera-se que o jornalismo deve incorporar a preocupação com o uso de termos e expressões no cotidiano da profissão, desde o momento da formação. Pelos dados apresentados, foi possível observar que não há consenso sobre o assunto, mas sobressaem as respostas positivas sobre a linguagem inclusiva. Um último dado apresentado refere-se à pergunta sobre a importância ou não da inclusão das questões de gênero na formação do jornalista. Sobre este aspecto, as justificativas para as respostas revelam a relação entre jornalismo e cidadania.29 As justificativas apontam que o conhecimento sobre gênero contribui para uma sociedade mais igualitária, inclusiva, com jornalistas que se posicionam contra o preconceito e a discriminação e que contemplam as diferenças. Além disso, é nítido o reconhecimento da formação para um jornalismo de qualidade, que reconhece sua relevância na sociedade, através de seu papel de propiciar debates e gerar reflexões para o público. (CAMARGO; WOITOWICZ, 2017, p. 14) 29. Para um detalhamento das respostas que justificaram a opção afirmativa ou negativa em uma questão aberta, ver Camargo e Woitowicz (2017). 64 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) As respostas apontaram para o reconhecimento das demandas de gênero no jornalismo, com 151 resultados afirmativos e 14 negativos, além de 6 não respondentes, conforme apresentado no Gráfico 4. Fonte: As autoras (2018) Os resultados da pesquisa, embora apresentados parcialmente, indicam que há uma abertura para a inclusão do debate sobre gênero na formação profissional, o que deve refletir a realidade de outros cursos de Jornalismo existentes no país. Contudo, não se pode afirmar que há, nos próprios currículos, a demarcação desta problemática como parte do processo de formação profissional. Em um estudo que considerou a análise dos projetos pedagógicos, entrevistas com coordenadores e professores dos cursos de Jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa (Universidade Federal do Paraná, Universidade Positivo, Grupo Educacional OPET, Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Centro Universitário Autônomo do Brasil, Universidade Estadual de Ponta Grossa e Faculdades Secal), Bruna Camargo (2017) observa que os projetos pedagógicos praticamente não fazem menção às relações de gênero, sendo identificadas disciplinas que abordam indiretamente a temática, tais como aquelas que discutem cidadania e direitos humanos. Entende-se, no entanto, a transversalidade das questões de gênero, que podem perpassar produções práticas e conteúdos teóricos. A autora identificou ainda diversas iniciativas de projetos de pesquisa e extensão realizados nas instituições em que as questões de gênero são trabalhadas, na maioria das vezes por motivação de docentes que possuem trajetória de interesse na área. Considerações As pesquisas desenvolvidas nos cursos de formação superior de Ponta Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 65 Grossa e Curitiba evidenciam que há um espaço nos cursos de Jornalismo para abordar as questões de gênero, o que remete ao compromisso de ampliar o diálogo com setores da sociedade comprometidos com as lutas pela igualdade e oferecer respostas ao mercado profissional. A mudança de perspectiva precisa contemplar pautas, personagens e abordagens capazes de melhor representar o debate de gênero na atualidade, repensando os parâmetros hegemônicos que sustenta(ra)m, até hoje, a atividade jornalística. A academia deve ser o espaço de ruptura da cultura masculina, ainda predominante na sociedade, fomentando a transformação dos estudantes em jornalistas profissionais, comprometidos com o interesse público e social, e instrumentalizados pelo conhecimento. Referências BUITONI, D. S. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. 2ª ed. São Paulo: Summus, 2009. CAMARGO, B. Gênero e formação em Jornalismo: um retrato do tratamento das questões de gênero nos cursos de Jornalismo de Curitiba e Ponta Grossa. Ponta Grossa: Trabalho de Conclusão do Curso de Jornalismo, Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG), 2017. CAMARGO, B.; WOITOWICZ, K. J. Perspectivas de gênero na formação profissional: percepções da atividade jornalística nos cursos de Ponta Grossa/PR. 40º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Curitiba/PR, 2017. Disponível em:http://portalintercom.org.br/anais/nacional2017/resumos/R12-0496-1.pdf. Acesso em: 01 jun. 2018. 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A construção cultural da narrativa noticiosa: noticiabilidade, representação simbólica e regularidade cotidiana. (Tese de doutorado) Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo, 2013. SILVA, M. V. Masculino, o gênero do jornalismo: modos de produção das notícias. Florianópolis: Insular, 2014. TUCHMAN, G. Making news: a study in the construction of reality. London: The Free Press, 1980. WOITOWICZ, K. J.; ROCHA, P. M. Estudos de gênero no jornalismo: perspectivas de análise das mulheres jornalistas e das representações de gênero In: Marcas e discursos de gênero: representações femininas e outros olhares. Ponta Grossa: Editora UEPG, v.1, 2014. p. 131-151. WOLF, M. Teorias da comunicação. Lisboa: Editorial Presença, 1994. 68 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Agenda da imprensa feminista: rupturas e continuidades30 Viviane Gonçalves FREITAS31 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG Lucy OLIVEIRA32 Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, São Paulo, SP Resumo A imprensa feminista, braço da imprensa alternativa, vocaliza a defesa das mulheres como sujeitos políticos, da cidadania e da democracia. Assim, o objetivo deste capítulo é apresentar as rupturas e as continuidades de agenda de publicações da imprensa feminista, em dois momentos distintos: pós-1975 e pós-2011. Para tal, por meio da análise conteúdo, via software MAXQDA, elaboramos uma comparação entre os temas abordados pelos jornais Nós Mulheres, Mulherio e Nzinga Informativo, que circularam nas décadas 1970 e 1980, e pelos sites Nós, Mulheres da Periferia, Think Olga e Catarinas, surgidos pós2011. Considerando as diferenças contextuais e de plataformas, foi possível perceber que a imprensa alternativa ainda representa um importante espaço para o debate de temas silenciados pela grande mídia, ao mesmo tempo em que a agenda feminista se atualiza de acordo com conquistas e retrocessos de direitos. Palavras-chave: Imprensa feminista; Imprensa alternativa; Movimentos feministas; Agenda. 30. A pesquisa de doutoramento (FREITAS, 2017), ponto de partida deste artigo, foi desenvolvida com bolsa Demanda Social (CAPES), de 2013 a 2017, no Programa de Pós-graduação em Ciência Política, da Universidade de Brasília, sob a orientação da professora Flávia Biroli. Agradecemos a Teresinha Pires por seus comentários na organização deste artigo. 31. Pós-doutoranda em Ciência Política na Universidade Federal de Minas Gerais (PDJ/CNPq) – Processo 168943/2017-4. Doutora em Ciência Política (UnB) e mestra em Comunicação Social (PUC Minas). Integrante do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê/IPOL/UnB), do Margem – Grupo de Pesquisa em Democracia e Justiça (DCP/UFMG) e da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política. E-mail: vivianegoncalvesfreitas@gmail.com 32. Pós-doutoranda em Ciência Política pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP/ CEBRAP) e pesquisadora da área de comunicação e política. Doutora em Ciência Política (UFSCar) e mestre em Sociologia (UFAL), integrante do Núcleo de Estudos Comparados e Internacionais (NECI/USP) e do grupo Comunicação Política, Partidos e Eleições (CPPE/UFSCar), além de professional trainer em softwares de análise mista de conteúdo. E-mail: lucyjorn.al@gmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 69 Introdução No contexto em que as mídias digitais se tornam extensão do cotidiano particular, bem como catalisadores de expressões, movimentos e posições políticas, este artigo busca identificar continuidades e rupturas na agenda da imprensa feminista brasileira, que surge ainda na vigência do regime ditatorial militar (a partir da década de 1970) e ganha outras plataformas atualmente (a partir de 2011). Movido pela apropriação das tecnologias de informação e comunicação (TICs) feita pelos movimentos sociais, na segunda década do século XXI (PEREIRA, 2011; RIZZOTTO; MEYER; SOUSA, 2017), o jornalismo alternativo brasileiro – no qual o jornalismo feminista se inclui – ressurge com força, vocalizando pautas que passam ao largo da grande imprensa. É nesse solo que o debate feminista reencontra terreno fértil para sua expressão, fortemente ancorada na visibilidade, nas ações em rede, no compartilhamento de ideias, na pluralização da informação, na horizontalidade do aprendizado e na amplificação de discussões (RIZZOTTO; MEYER; SOUSA, 2017). Assim, a partir do pressuposto de que os movimentos feministas são dinâmicos e se movem conforme o contexto e suas atrizes, este artigo tem como objetivo analisar as rupturas e continuidades na agenda da imprensa alternativa feminista em dois períodos políticos distintos: um ditatorial (pós-1975) e outro democrático (pós-2011). Quanto ao primeiro momento, o ano de 1975 foi marcante e decisivo para as reivindicações dos movimentos feministas estarem na agenda da discussão pública. A Organização das Nações Unidas (ONU) instituiu 1975 como o Ano Internacional da Mulher e o período de 1975 a 1985 como a Década da Mulher. O objetivo dessas ações era possibilitar uma discussão, em nível mundial, das questões que tinham as mulheres como protagonistas, por exemplo, saúde, direitos sexuais e reprodutivos, cidadania, emancipação e violência. Assim, não foram fatos isolados que impulsionaram a retomada dos movimentos feministas, mas uma combinação de fatores – inclusive, a própria volta às atividades dos movimentos sociais com diferentes agendas –, que atuava como catalisadora desse momento (SARTI, 2004; PINTO, 2007; 2010). A respeito do segundo período ressaltado acima, Rizzotto, Meyer e Sousa (2017) apontam o ano de 2011 como um marco para o ativismo digital dos movimentos feministas brasileiros, apesar de iniciativas como o blog Escreva, Lola, Escreva, ter sido criado em 2008. Segundo as auto70 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ras, a realização da primeira Marcha das Vadias33 no país naquele ano chamou a atenção da grande mídia sobre assuntos como machismo e assédio sexual. Nossa hipótese é de que a agenda dos períodos acompanha as mudanças políticas nacionais e também dos movimentos feministas, revelando alterações temáticas em cada período: se antes já não era possível falar de agenda feminista sem que a perspectiva de raça e classe, atualmente, as plataformas digitais são utilizadas para a ampliação de vozes e contraposição à hegemonia de padrões, em especial, dos que se referem ao “ser mulher”, ressaltando sua pluralidade. Este reencontro entre movimentos, mídia e expressões contra-hegemônicas desenham uma agenda de continuidade das pautas encontradas nos jornais feministas das décadas de 1970 e 1980? Quais rupturas e mudanças são percebidas? O que essa agenda nos aponta em termos de mobilização e expressão dos movimentos feministas contemporâneos? Essas são as principais questões que temos como desafio abordar neste artigo. Para tanto, fazemos uma retomada breve da relação entre imprensa alternativa e feminismos, no período compreendido entre os anos 1976 e 1988, ano de promulgação da Constituição Federal, marco do reestabelecimento da democracia. Em seguida, apresentamos os achados reunidos por Freitas (2017) na análise destes periódicos, os quais nos servem de referência para tipificação da agenda do período atual. Na seção seguinte, apresentamos os veículos contemporâneos escolhidos e a análise de conteúdo da agenda a partir do software MAXQDA34. E, por fim, encerramos o artigo com a comparação entre os achados do período ditatorial com o período democrático recente. Metodologia Com vista à comparação, utilizamos as mesmas 22 categorias de análise de agenda apresentadas por Freitas (2017) para os veículos pós-75 (período ditatorial) para analisar os textos dos veículos pós-2011 (período democrático). Ao questionarem a dicotomia público-privado, essas categorias se apresentam como políticas, abrangendo desde temáticas como família e maternidade até a representação feminina nos espaços políticos institucionais (como câmaras, assembleias e Congresso). No trabalho de Freitas (2017), as categorias emergiram dos textos jor33. Sobre a Marcha das Vadias, ver Gomes e Borj (2014). 34. Software de análise quantitativa, qualitativa e mista, desenvolvido na Alemanha e que permite a codificação dos textos analisados, bem como testes estatísticos e análises visuais e descritivas do material. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 71 nalísticos analisados, a partir da análise de conteúdo (BARDIN, 2004)35, permitindo unidade temática e capacidade de replicabilidade em diferentes veículos com fins de comparação. Ao todo, na pesquisa sobre o período ditatorial, foram analisados 4.95236 textos jornalísticos – compreendidos entre matérias, resenhas, notas, editoriais, artigos e charges – de quatro veículos: Nós Mulheres, Mulherio, Nzinga Informativo e Fêmea. Estes foram escolhidos porque representavam um panorama de coletivos feministas brasileiros, atuantes desde a ditadura até a redemocratização Para representar os casos recentes, escolhemos três veículos de comunicação constantes no Mapa do Jornalismo Independente37, lançado em março de 2016, pela Agência Pública38. O material traz uma compilação de veículos primordialmente jornalísticos, que nasceram em rede, coletivos (que não se resumem a blogs) e que não possuem ligações com grandes grupos de mídia, políticos, organizações ou empresas. Diante desses critérios, entendemos que o Mapa seria uma referência que atenderia aos objetivos da pesquisa e selecionamos, entre os 216 veículos listados, aqueles que produziam jornalismo e se autodeclaravam com conteúdo ou postura feminista. Por fim, chegamos a três deles – Catarinas (SC), Nós, Mulheres da Periferia (SP) e Think Olga (SP). Para tanto, realizamos uma pesquisa exploratória de uma amostra do material dos sites, por meio da qual foi possível perceber que, embora apenas o Catarinas se autodeclarasse feminista, todos os três coletivos, mesmo em perspectivas distintas, apresentavam discurso feminista explicitado em suas agendas. Em outras palavras, todos traziam, em seus textos, a defesa da igualdade de direitos entre mulheres e homens, o questionamento quanto à dicotomia público-privado – que remete à divisão sexual do trabalho, à dupla jornada, às discrepâncias salariais – o silenciamento das vozes das mulheres, além de chamar atenção para as opressões entre as próprias mulheres, na intersecção de raça, classe e gênero. 35. A autora pontua o processo da análise de conteúdo em cinco fases, a saber: (i) organização da análise; (ii) codificação; (iii) categorização; (iv) inferência e (v) tratamento informático. 36. Foram analisadas oito edições do Nós Mulheres (204 textos), 42 números do Mulherio (1.757 textos), quatro edições do Nzinga Informativo (102 textos) e 177 números do Fêmea (2.889 textos). Não integram o corpus um número do Nzinga Informativo (n. 5, mar./1989) e do Fêmea (n. 17, jul./1994), não encontrados no momento da produção da tese 37. Quanto ao conceito de jornalismo independente, seguimos aqui o entendimento de que é o jornalismo que atua na “na contramão da grande mídia, caracterizado pela pluralidade de vozes e a participação das mais diversas classes sociais no processo de elaboração e transmissão das notícias, mas também na construção social através do acesso à informação” (6 COISAS QUE VOCÊ DEVERIA SABER..., 2017, s.p.), assim como a imprensa alternativa de décadas passadas. Dessa forma, apesar de aparecer aqui, utilizaremos o termo “jornalismo alternativo” para identificar a imprensa analisada tanto no período ditatorial quanto no atual. 38. Disponível em: <https://apublica.org/mapa-do-jornalismo/>. 72 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Para a análise, foi considerado todo material disponível nos sites até 31 de março de 2018, incluídos nas abas “notícias” ou “artigos”, dando um universo geral de 1.272 unidades de textos39. Estas foram classificadas nas 22 categorias oriundas do trabalho de Freitas (2017), com o uso do software MAXQDA40, considerando o tema predominante ao qual se referiam. Os resultados desta análise subsidiaram a comparação entre as agendas dos veículos pós-1975 e as das publicações do período contemporâneo (pós-2011), apresentadas nas considerações finais deste capítulo. Feminismos e jornalismo alternativo no Brasil Quando ainda a comunicação era analógica e o compartilhamento de experiências se dava por meios impressos, a imprensa alternativa foi a grande possibilidade para que as discussões dos grupos progressistas se difundissem tanto dentro quanto fora do país, chegando, inclusive, às/aos exiladas(os) políticas(os). Jornais como Versus (1975-1979), Opinião (1972-1977), Pasquim (1969-1988) e Movimento (1975-1981) desafiavam a censura, faziam humor do que era triste, buscavam falar de um Brasil que os grandes jornais omitiam, inovavam na linguagem e na esperança por dias livres e sem medo. A imprensa alternativa ou nanica41, muito presente na cena brasileira, nas décadas de 1960 a 1980, como uma importante expressão de discurso insurgente contra o regime militar, deixou sua marca em razão de um perfil de jornalismo que se diferenciava da grande imprensa, seja pela escassez de recursos ou porque denunciavam, de maneira sistemática, as torturas e as violações dos direitos humanos, além de criticar o modelo econômico (KUCINSKI, 1991)42. Em países da Europa ocidental como a França, um novo movimento feminista, no começo dos anos 1970, levava às ruas debates como o direito das 39. O corpus ficou distribuído da seguinte forma: 596 textos de Catarinas; 402 textos do Nós, Mulheres da Periferia; e 274 textos do Think Olga. 40. A codificação foi realizada em pares e teve a participação da estudante de graduação em Educação Especial da UFSCar Larissa Domingues Caporasso, à qual agradecemos pela contribuição. Sua parceria se deve à experiência que esta possui em pesquisas de âmbito nacional com análise de conteúdo categorial por meio de software. A escolha do software se deve à capacidade de processamento de um corpus robusto, bem como a facilidade de categorização em relação a outros instrumentos semelhantes. Além disso, uma das pesquisadoras é professional trainer do software, o que, além de permitir a licença gratuita do uso, comprova a experiência no uso desta ferramenta para análise de conteúdo. 41. Kucinski (1991, p. XIII) associa o termo alternativa a quatro significados principais: “o de algo que não está ligado a políticas dominantes; o de uma opção entre duas coisas reciprocamente excludentes; o de única saída para uma situação difícil e, finalmente, o do desejo das gerações dos anos 1960 e 1970, de protagonizar as transformações sociais que pregavam”. Já a palavra nanica tem inspiração no formato tabloide adotado pela maioria dos jornais alternativos, enfatizando sua reduzida escala de valores para reprodução. 42. O autor pesquisou um universo de 150 periódicos, no período de 1964 a 1980. Destes, metade chegaram a um ano de vida. Mas o restante não passou dos primeiros números. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 73 mulheres ao corpo e ao sexo, o uso da pílula anticoncepcional, a participação das mulheres na política institucional, nas atividades produtivas e de direção, além das transformações aceleradas do que se entendia como família. Kucinski (1991) destaque que tais discussões eram tratadas com escárnio pela imprensa alternativa de então. O caráter libertário do Pasquim, por exemplo, convertia-se em total escárnio quando o assunto em questão eram os movimentos feministas. Soihet (2005) destaca que o jornal, ao assumir uma postura misógina, tentando silenciar e desqualificar pela zombaria a luta das mulheres por seus direitos, colocava-se bem aquém da proposta de se ter um aguerrido combate ao pensamento retrógrado. As sátiras eram sempre marcadas pelo juízo de que as feministas assumiam cotidianamente “atitudes consideradas inadequadas à feminilidade e às relações estabelecidas entre os gêneros”. Assim, a priorização conferida pela ONU a essa agenda de direitos, com a institucionalização de 1975, conforme mencionado anteriormente, possibilitou que tais discussões chegassem à arena pública no Brasil, mesmo que com atraso de alguns anos. Nesse momento, surgia “uma nova combinação de ideias e desejos de luta, um novo ativismo político, contribuindo para o processo de abandono do paradigma clássico de ativismo baseado exclusivamente no conceito de ‘luta de classes’” (KUCINSKI, 1991, p. 79). Entre os veículos da imprensa alternativa, a imprensa feminista, foi a de maior sobrevida e expressividade, destacando-se entre o nicho de jornais que debatiam questões ainda sem visibilidade, quer seja na grande imprensa, quer seja naquela classificada como alternativa. As relações de poder existentes e naturalizadas nas esferas privada e pública ganhavam o caráter político que, até então, não se considerava. Cabe salientar que há diferenças significativas entre a imprensa feminina e a imprensa feminista que merecem ser detalhadas aqui. Em primeiro lugar, quando a imprensa feminina surgiu, no século XIX, os textos eram escritos por homens e direcionados para as mulheres, a fim de haver a ampliação dos papéis femininos tradicionais, vinculados ao lar ou ao convento. Mesmo ao longo do tempo, o desenvolvimento das sociedades diversificou as temáticas para literatura e artes domésticas, salientando o caráter secundário do jornalismo que nasceu com a função de entretenimento, utilidade prática ou didática (BUITONI, 2009). Em contrapartida, a imprensa feminista refere-se a um jornalismo feito por mulheres, a respeito das mulheres e para mulheres, com o intuito de ser um espelho fiel delas, com suas contradições, desejos, conquistas, problemas, lutas, questionamentos. As temáticas abordadas trans74 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) passam áreas diversas como saúde, educação, trabalho, sexualidade e política governamental, sem cair em estereótipos e destacando o valor de cada mulher em sua singularidade (BORGES, 1982). Godard (2002) considera imprescindível o papel dos periódicos feministas dentro do campo da imprensa alternativa já que, dessa forma, seria possível perceber os processos engendrados de reprodução social e de criação de valor cultural. Os periódicos feministas têm existência fora do modelo dominante de publicação capitalista, às margens e em oposição, seja por meio de sua posição limite no que diz respeito ao mercado ou quanto a seu compromisso com a ideologia contestatória. [...] Significativas práticas que desafiam a ordem simbólica, os periódicos feministas estabelecem contra-instituições que legitimariam modos alternativos de conhecimento e estruturas editoriais. [...] [As feministas] conscientemente, têm como objetivo produzir uma posição para um assunto específico de leitura, uma leitora feminista que se dedique à crítica da leitura dominante e, por extensão, da publicação e de outras práticas econômicas. (GODARD, 2002, p. 212-213). Essa perspectiva é respaldada por Leite (2003, p. 240) ao ressaltar que “a imprensa feminista representou um espaço de experimentação de uma forma muito especial de fazer política, refletindo sobre as descobertas das mulheres sobre si mesmas e sobre as ideias feministas que floresceram na década de 1970”. Neste sentido, Freitas (2017) chama atenção para o fato de que essa imprensa feminista não era homogênea, podendo-se identificar nichos e especificidades dentro dos próprios movimentos e em sua atuação via jornalismo alternativo brasileiro. Para tanto, a autora pesquisou publicações de alguns grupos feministas que estavam presentes na cena pública entre 1976 e 2014 – escolhidos porque representavam um panorama de coletivos feministas brasileiros, atuantes desde a ditadura até a redemocratização – e constatou, pelos menos, quatro perspectivas de agendas distintas no debate feminista: a marca de classe (Nós Mulheres43, 1976-1978), a pluralidade (Mulherio44, 1981-1988), a identidade racial e de gênero (Nzinga Informativo45, 1985-1989) e a horizon43. Acervo da Fundação Carlos Chagas (FCC). 44. Acervo da Fundação Carlos Chagas (FCC). 45. Acervo do Arquivo Edgard Leuenroth, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 75 talidade (Fêmea46, 1992-2014). No Nós Mulheres, a marca de classe ocorria ao se buscar difundir e associar as críticas à opressão sofrida pelas mulheres não só a uma relação desigual de gênero, mas também voltada para a exploração com viés de classe, ou seja, o discurso tinha um foco evidente na justiça social, desde que ela também se convertesse em cidadania para as mulheres. Já as pesquisadoras da Fundação Carlos Chagas produziam o Mulherio com a despretensiosa ideia de, por meio dele, fazer o intercâmbio entre as diversas instituições e pesquisadoras(es) voltados para os estudos sobre a mulher brasileira que começavam a ser desenvolvidos por todo o país nos primeiros anos da década de 1980, ressaltando a pluralidade. O Nzinga Informativo trazia em suas páginas o debate sobre a dupla opressão – racismo e sexismo – que afetava (e ainda afeta) as mulheres negras, independentemente a qual classe socioeconômica pertencessem. O Fêmea buscava abarcar as realidades desiguais de “mulheres brancas, negras e indígenas; urbanas e rurais; trabalhadoras em geral e trabalhadoras domésticas”, tendo como ponto de partida que as reivindicações feministas se pautavam na ideia de que “sem as mulheres (todas e cada uma delas) os direitos não são humanos”. Já na era dos likes e dos milhares de seguidores, em contrapartida com as tiragens reduzidas dos impressos de quatro décadas atrás, a imprensa alternativa brasileira encontra na Internet uma plataforma capaz de hospedar e fomentar as vozes que emanavam das ruas e da sociedade. Um exemplo importante é o surgimento do Mídia Ninja, formado por comunicadores voluntários e em rede que, a partir da cobertura “no chão” dos protestos e atos contra o aumento das passagens em São Paulo, em junho de 2013, passa a se tornar referência do modo desse novo fazer jornalístico47. Ao mesmo tempo, blogs com temáticas feministas começaram a se popularizar, alcançando grande repercussão, o que fez como que as ativistas percebessem “a Internet como um novo instrumento de expressão”, com custo reduzido e expressiva potencialidade como espaço de debates e difusão de ideias. A igualdade de gênero também ganha espaço nas páginas do Facebook, como plataforma independente, replicadora ou divulgadora do conteúdo de blogs e sites. Cabe ressaltar que os movimentos feministas e, consequentemente, seus veículos jornalísticos não apenas mudam de plataforma na segunda década do século 46. Acervo do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA). 47. Outro exemplo é o coletivo Jornalistas Livres, que surge a partir da reunião de jornalistas independentes que começaram a cobrir os protestos de março de 2015 contra a presidenta Dilma Rousseff. O coletivo existe até hoje e, juntamente com o Mídia Ninja, é um dos principais veículos alternativos de informação na Internet, conforme Burgos Media Watch (http://media.pburgos.com/). 76 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) XXI, mas também sua agenda, como reflexo do contexto social no qual se inserem, apresenta temáticas antes impensáveis, como a violência de gênero na Internet. A seguir, demonstramos com mais detalhes como essa agenda distinta se conformou. A agenda da imprensa feminista pós-197548 Na segunda metade dos anos 1970, o jornal Nós Mulheres (1976-1978), com sede em São Paulo, objetivava mostrar que o cotidiano das mulheres trabalhadoras tinha valor, inclusive um valor político, de luta e resistência em pleno período de ditadura militar no Brasil. Uma dessas possibilidades era, segundo o jornal, a participação das mulheres tanto nas associações de classes, nos sindicatos, quanto na política partidária, com a ressalva de que o exercício da democracia ia muito além do momento do voto, sendo construído a cada dia, por meio da luta pela igualdade de direitos e justiça atrelada à atuação profissional. O Nós Mulheres representa o espírito das exiladas que participavam dos círculos de debate na França e chegavam com o desejo de levar a discussão sobre o feminismo para a classe operária, na perspectiva de compromisso com ideais democráticos e socialistas (TELES, 1999; MORAES, 2012; WOITOWICZ, 2014), circulando no momento da retomada dos movimentos sociais no Brasil. Tendo Anamárcia Veinsecher como jornalista responsável, o jornal, que não divulgada sua tiragem, nasceu diretamente dos movimentos de base, com matriz ideológica clássica das esquerdas, mas com autonomia clara para a luta feminista, com base marxista, reflexo também de uma base de ativismo ampla, contando com a participação de clubes de mães engajadas em lutas em favor de creches na zona sul de São Paulo. Em entrevista a Bernardo Kucinski, a jornalista Adélia Borges declarou que o Nós Mulheres foi “o primeiro jornal feminista brasileiro a colocar que o privado também era público e a levantar questões como a sexualidade, a criança, a privilegiar o ângulo da liberdade” (KUCINSKI, 1991, p. 80-81). A politização dos espaços e da vida cotidiana aparece bem marcada nas oito edições, nos formatos de editoriais, crônicas, cartas, matérias, charges e notas. É importante destacar que, como dito acima, o contexto em que o Nós Mulheres circulou ainda era o da repressão do regime militar, apesar de também ser o da volta dos movimentos sociais à arena pública. Como identificado por Freitas (2017), a expressão dessa efervescência é nítida nas oito edições que tem, 48. A marca temporal faz referência à institucionalização de 1975 como o Ano Internacional da Mulher, pela Organização das Nações Unidas (ONU), citado anteriormente. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 77 entre as principais categorias temáticas de sua agenda, organizações de mulheres (20%), trabalho (17%) e política institucional (14%). Se somadas, a primeira e a terceira categorias temáticas perfazem 34%, valor significativamente importante para um jornal com um perfil mais votado para o debate de classes. Na década seguinte, os jornais Mulherio (1981-1988) e Nzinga Informativo (1985-1989) atuaram em vertentes distintas, embora, em certa medida, complementares. O primeiro, que nasceu no interior da Fundação Carlos Chagas (FCC), tinha como pilar de ação o trabalho de pesquisadoras da fundação que buscavam o sentido da democracia e da cidadania além de suas salas e dos debates teóricos. Para elas, os movimentos de mulheres e feministas se faziam nas ruas, com o contato entre os grupos, com a interação pela via do diálogo, a fim de que os direitos das mulheres também fossem considerados na agenda dos debates dos primeiros anos da redemocratização, a começar pela Constituinte. Não é possível desconsiderar que as páginas do jornal também fomentavam a reflexão quanto à importância da inserção das mulheres nos espaços de debates, sendo que, para isso, era necessário que as atividades domésticas não permanecessem como responsabilidade exclusiva delas, mas dividida entre todos os membros da casa. A temática fora discutida no Nós Mulheres, com a perspectiva da responsabilização socializada, cobrando do Estado e das empresas sua participação na desoneração do tempo das mulheres. Organizações de mulheres (16%), família (13%) e direitos sexuais e reprodutivos (10%) representam os três maiores índices de abordagem das 42 edições de Mulherio (FREITAS, 2017). O jornal tinha como uma de suas premissas não ressaltar uma vertente ou um grupo em detrimento dos demais movimentos feministas ou de mulheres. Sua principal ação era divulgar a atuação dos grupos que, na década de 1980, se espalhavam por todo o país. As atividades desses grupos em favor dos direitos das mulheres, do debate sobre a opressão sofrida e como isso era prejudicial para a democracia que, aos poucos, voltava à cena brasileira eram a grande aposta da publicação. Em sua linha editorial defendia, como os outros três jornais analisados por Freitas (2017), que não era possível falar de direitos das mulheres e igualdade de condições de cidadania sem que fossem consideradas como sujeitos políticos, com atuação efetiva na arena institucional. O Nzinga Informativo se destaca em relação aos demais por ter sido organizado por um coletivo homônimo de mulheres negras, com sede na periferia do Rio de Janeiro, que as inseriam como protagonistas dos debates e público principal da publicação. A temática é recorrente nas outras publicações, 78 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) em perspectivas diferentes. Dessa forma, é possível perceber o entendimento interseccional de maneiras distintas sobre a visão dos jornais quanto às opressões que recaem sobre as mulheres. A valorização da população negra e, em especial, das mulheres negras, é o ponto central do Nzinga Informativo, que acaba tendo como as três principais categorias temáticas comunidade negra (62%), organizações de mulheres (8%) e política institucional (4%), nos cinco números do jornal (FREITAS, 2017). O peso relativo das três principais categorias temáticas é bem diferente em comparação com as dos outros jornais. A predominância observada em relação à comunidade negra, que engloba temas como discriminação racial, movimentos negros, mulheres negras, cultura negra e escritoras/es negras/os, é justificada por ser o Nzinga Informativo um jornal que prezava pela divulgação e valorização dos ritos e costumes da comunidade negra. Um dos temas significativos do debate trazido pelo veículo é a discriminação racial em andamento na África do Sul, por meio do apartheid, na época de sua circulação. As críticas à política racial não eram apenas para chamar a atenção do que acontecia no país africano, mas também servia como alerta para a segregação interseccional – raça, classe e gênero – que ocorria (e ainda ocorre) no Brasil e que restringe o acesso à cidadania plena. Com isso, é possível perceber temas interseccionais, mas, em especial, agendas distintas nos três informativos analisados como resumido no quadro a seguir: Tabela 1 – Cinco principais categorias temáticas nos jornais analisados49 Fonte: Elaboração das autoras, a partir dos dados de Freitas (2017) 49. Freitas (2017) apresenta as dez categorias temáticas mais frequentes nos três jornais citados acima e no Fêmea, que aqui foi retirado por não integrar o escopo deste artigo. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 79 A agenda da imprensa feminista pós-2011 Com a considerável redução de custos de produção, além da articulação em rede e redução das distâncias, a Internet possibilita que novas iniciativas e veículos feministas ganhem expressividade pós-2011. Do universo mapeado no Brasil e entendido como jornalismo independente ou alternativo, decidimos por focar em Nós, Mulheres da Periferia (2012-), Think Olga (2013-) e Catarinas (2016-). Os três sites surgem no período de fomento de novos coletivos de informação em rede e dos movimentos de rua, representando um novo momento do debate feminista, mesmo que a esfera pública ainda não seja efetivamente tão plural e democrática na Internet. Em ordem cronológica, o primeiro deles, Nós, Mulheres da Periferia, tem como data de fundação a do lançamento de um manifesto de mesmo nome, publicado em 7 de março de 2012, no jornal Folha de S.Paulo. Formado por oito jornalistas e uma designer50, o site nasce com um objetivo claro: ser uma fonte de pautas sobre as questões que envolvem as mulheres periféricas – negras, brancas, magras, gordas, trabalhadoras, mães, diversas. Aqui tratamos o termo “periférico” no sentido dado pelas próprias autoras do veículo, ressaltando o caráter de “bairros afastados do Centro”. Marques e Freitas (2017), em artigo sobre o site Nós, Mulheres da Periferia, destacam que o texto do manifesto de fundação chamou a atenção de leitoras e leitores habituais do veículo impresso, bem como viralizou como um manifesto entre outras mulheres jovens ou não tão jovens, que se sentiram “representadas, lembradas e retratadas”. Entretanto, apesar da publicação do manifesto e sua repercussão em 2012, as notícias passam efetivamente a ser produzidas e veiculadas no site do grupo apenas dois anos depois – em março de 2014, de acordo com o próprio arquivo do coletivo disponível online. Além do núcleo formador, o banco de artigos é composto por textos de colaboradoras(es) diversas(os). A inspiração tanto para o texto-fundação quanto para a agenda discutida no site ou na fanpage é a vivência, as visões e as experiências cotidianas das mulheres periféricas, das quais fazem parte suas fundadoras. Isso se reflete, por exemplo, na descrição das autoras ao final de muitos textos. Além de nome, idade, profissão, formação, acrescenta-se o bairro onde moram, ressaltando sua 50. As integrantes do coletivo “Nós, Mulheres da Periferia” são: Jéssica Moreira, 23 anos (Perus, Zona Noroeste); Semayat Oliveira, 26 anos (Cidade Ademar, Zona Sul); Cíntia Gomes, 31 anos ( Jardim Ângela, Zona Sul); Bianca Pedrina, 30 anos (Carapicuíba, Grande SP); Mayara Penina, 24 anos (Paraisópolis, Zona Sul); Priscila Gomes, 31 anos (Vila Zilda, Zona Norte); Regiany Silva, 25 anos (Cidade Tiradentes, Zona Leste); Lívia Lima, 27 anos (Artur Alvim, Zona Leste); e Aline Kátia Melo, 31 anos ( Jova Rural, Zona Norte). 80 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ligação com zonas ou territórios considerados periféricos em São Paulo – cidade onde o coletivo foi criado. Isso demonstra a relevância da clivagem territorial na agenda do coletivo, marcadamente destacada nas palavras do manifesto de fundação. Se a periferia tivesse sexo, certamente seria feminino. [...] Somos negras, brancas, jovens, idosas, mães de outras meninas. Gostamos de fotografia, balé, funk, teatro. Na entrevista de emprego, o local onde moramos cria constrangimento. “Sim, tomo ônibus. Trem. Dois metrôs. E ônibus de novo”. No happy hour, é comum escutar: “Lá entra carro? Essa hora é perigoso. Quer dormir na minha casa?”. A resposta é não. Saímos cedo, voltamos tarde, mas sempre voltamos. (MANIFESTO, 2012, s.p.). Vários textos têm como estrutura narrativa o relato de experiências individuais destas mulheres no cotidiano das cidades, do trabalho e da periferia. Entretanto, essa abordagem não reduz o conteúdo a uma perspectiva atomizada e individual, mas, como destaca Ribeiro (2017), o lugar de fala que ocupam se institui exatamente pela realidade de um coletivo que comunga das mesmas restrições de acesso e luta pela igualdade de oportunidades, pelo lugar social ao qual se vinculam. Nesse sentido, a agenda do site traz esse caráter individual e social, indicador e articulador de temas que perpassam toda a produção do coletivo, como a dupla jornada de trabalho; o transporte das(os) trabalhadoras(es) (trens e metrôs); a identidade negra, refletida nos cabelos ou na cor da pele; a socialização diferenciada para meninos e meninas; a discriminação interseccional de raça, classe e gênero; o ter que provar a cada momento que ser mulher, pobre e negra não desqualifica ninguém; além do direito de se expressar por sua própria voz, sem intermediários. Outro destaque é a proeminência de artigos e matérias sobre iniciativas artísticas e de jornalismo alternativo como forma de expressão, resistência e luta das mulheres periféricas. Assim, no universo de 402 textos analisados, as categorias que mais se destacaram foram “mídia e produção cultural” (20%), “pobreza e periferia” (15%) e “comunidade negra” (13%). O segundo portal analisado foi fundado em 2013. Think Olga intitula-se como uma organização não-governamental (ONG), um hub de conteúdo51 que tem como missão empoderar mulheres por meio da informação e retratar 51. Este é um jargão do marketing de conteúdo que descreve um domínio (página) da internet com conteúdo diverso, voltado para públicos específicos. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 81 suas ações em locais onde a voz dominante não acredita existir nenhuma mulher, seguindo a linha do jornalismo independente e gratuito. A busca da atuação por meio da informação justifica-se porque o grupo acredita que este seja o ponto de partida para a igualdade e que seja preciso elevar o “nível da discussão sobre feminilidade”. Assim, pretende-se “criar conteúdo que reflita a complexidade das mulheres e as trate com seriedade e como pessoas capazes de definir os rumos do mundo”. Interseccionalidade, transparência, colaboração e inovação são os quatro pilares valorativos que regem as ações da organização52. Interessante perceber que o principal mote de suas matérias são fatos e questões que aparecem ligados às mídias digitais e à Internet. Tanto que o coletivo encabeça diferentes campanhas online contra a violência sexual, física e assédio, como forma de concentrar e vocalizar denúncias. São os casos, por exemplo, da campanha #SomosTodosClaudia53, “Chega de Fiu Fiu”54 e #MeuPrimeiroAssedio55. Essas iniciativas, bem como a divulgação de outras violências na Internet, fizeram com que a categoria “violências contra mulheres” fosse a de maior destaque no site, com percentual de 26%, no montante de 274 textos. Outras duas mais proeminentes foram “discriminação das mulheres” (18%) e “mídia e produção cultural” (15%). A primeira impulsionada fortemente por matérias que tratavam dos estereótipos femininos e suas representações pelos meios de comunicação, e a segunda, por artigos que abordavam iniciativas colaborativas na Internet envolvendo arte, cultura, mídia e ativismo. Por fim, o terceiro e último veículo analisado foi o Catarinas. Fundado em 2016, a partir da reunião de jornalistas, ativistas, artistas, blogueiras e diferentes mulheres do estado de Santa Catarina, o site nasceu com o objetivo de fazer jornalismo com perspectiva de gênero. 52. Disponível em: <https://www.thinkolga.com/sobre/>. 53. Nesta campanha, o site publicou desenhos enviados em homenagem à Claudia Silva Ferreira, mulher negra arrastada e morta pela Política Militar no Rio de Janeiro em 21 de março de 2014. Ao todo, mais de 200 desenhos, gravura e outros materiais visuais foram enviados e publicados no site. 54. A campanha surgiu depois da repercussão de um texto assinado pela apresentadora da MIX TV Marina Santa Helena sobre assédio sexual. A matéria gerou o compartilhamento de depoimentos de outras mulheres e homens sobre assédio na rua, mas também xingamentos e agressões verbais nas mídias digitais contra a apresentadora. Para se posicionar contra a “normalidade” do assédio sexual na rua, o site lançou a campanha “Chega de Fiu Fiu!”, que mobilizou os internautas a compartilharem relatos, fez um levantamento online de dados sobre assédio e também gerou um documentário. 55. Organizada a partir do caso da menina Valentina, de 12 anos, que participou do reality show “Master Chef ” e foi alvo de comentários pedófilos nas mídias sociais. A hashtag lançada pelo site contra a ação dos pedófilos viralizou e atingiu, em dois dias, a marca de mais de 80 mil relatos de mulheres assediadas ainda na infância. 82 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A linha editorial de Catarinas se encontra na intersecção entre o jornalismo como um direito e os direitos humanos como uma premissa básica para a produção do jornalismo. Também se identifica como feminista, pretendendo o diálogo com as diversas linhas teóricas e políticas do feminismo, mediando suas perspectivas diante da realidade. Dentro da compreensão ética do exercício profissional do jornalismo, Catarinas se coloca com uma unidade ativista do jornalismo enquanto direito e do feminismo enquanto estratégia de ação para a superação desta sociedade que ainda reserva lugares para as mulheres. (LINHA EDITORIAL, s.d., s.p.). Dos três sites analisados, é o único que se intitula feminista, sendo que o Nós, Mulheres da Periferia fala de “mulheres” e o Think Olga de “feminino”. Sua agenda concentra-se nos temas de gênero, feminismos e direitos humanos, mas, com o passar do tempo, essa pauta se amplia pelos 596 textos analisados, tendo uma aproximação forte com discussões ligadas ao campo político institucional (como eleições e o impeachment da presidenta Dilma Rousseff ) e também com relação aos movimentos sociais (agrários, urbanos, habitação, transporte etc). Tanto que muitas de suas matérias tratam de diferentes atos e manifestações de rua ligadas à defesa de direitos nas mais diferentes vertentes. Vale ressaltar que, apesar de ser o veículo com menor tempo de existência, é o de maior produção, o que demonstra um ativismo também por meio da divulgação de notícias e matérias. Ao todo, as três principais categorias foram: “mídia e produção cultural” (18%); “direitos sexuais e reprodutivos” (13%) e “política institucional” (11%). Com isso, é possível perceber que, nos três sites analisados, a categoria que se repete em destaque é “mídia e produção cultural”. Em dois deles – Catarinas e Nós, Mulheres da Periferia –, ela fica em primeiro lugar na frequência, demonstrando uma alteração importante na agenda: o campo da comunicação, da arte e, em especial, dos projetos colaborativos e online passa a ser um espaço importante da luta, vocalização e resistência feminista. A contraposição poderia ser o site Think Olga que abertamente tem, nas ações online e em temas de repercussão nas redes sociais, seu principal mote. Entretanto, a principal categoria averiguada foi “violência contra a mulher”, apesar de muitos desses casos ocorrerem nas mídias digitais. Apenas no Nós, Mulheres da Periferia a categoria “trabalho” aparece entre as cinco maiores, demonstrando que a questão ainda é uma pauta fortemente ligada à periferia. Catarinas também destaca a questão da política institucional. Por fim, vale destacar a categoria temática Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 83 “discriminação de mulheres”, no Think Olga, fortemente referenciada nas matérias sobre estereótipos e representação das mulheres nos media. Tabela 2 – Cinco principais categorias temáticas nos sites analisados Fonte: Elaboração das autoras Além disso, em comparação com os veículos analisados no período pós1975, as categorias “educação”, “família” e “história de mulheres”, que se destacaram anteriormente, não aparecem entre as principais dos sites pós-2011, assim como “mídia e produção cultural”, que não era principal no primeiro recorte temporal analisado, mas agora tem uma proeminência alta. Nesse sentido, percebemos rupturas importantes nas agendas dos movimentos de antes e de hoje, bem como continuidades. É o caso das categorias temáticas “violências contra mulheres”, “discriminação de mulheres”, “direitos sexuais e reprodutivos”, “comunidade negra” e “organização de mulheres”, que se mantiveram entre as cinco principais, nos seis media, durante os dois períodos analisados. Outro destaque é que a categoria “custo de vida”, que chegou a representar 4% das publicações do Nós Mulheres, sequer pontuou nos veículos do pós-2011. Nenhum deles publicou matéria que abordasse essa temática, demonstrando que é uma questão intrinsecamente pertinente ao período anterior, quando se enfrentava altas de inflação. Nessa perspectiva, a questão da violência de gênero na Internet é um destaque no sentido de que não apenas é um tema impossível de aparecer no jornalismo pós-1975 pela inexistência da rede mundial de computadores acessível individualmente, mas também como uma marca de que a violência de gênero se espraia em diferentes dimensões da vida social, entre elas a digital, tornando-se uma questão a ser debatida na contemporaneidade. 84 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Por fim, cabe ressaltar que, apesar do surgimento de novas proeminências e declínios de algumas temáticas antes tidas relevantes, as mudanças na agenda promovidas pelo andamento histórico dos movimentos são percebidas também na tensão interna dessas próprias categorias. Ou seja, quando analisamos os descritores das categorias em cada período, percebemos que muitos desaparecem e outros apontam para um novo vocabulário dos movimentos – como é o caso de temas como violência online; representação das mulheres na publicidade; empreendedorismo feminino e economia solidária; Escola sem Partido/Escola sem Mordaça; mulheres encarceradas; gordofobia/homofobia/transfobia; sororidade; diversidade; e violência obstétrica. Estes temas tencionam a própria configuração das categorias que – com vistas à comparação – foram mantidas conforme agenda dos veículos pós-1975. Considerações finais Na produção deste capítulo, apontamos e detalhamos, reiteradas vezes, a importância da prática comunicacional para os coletivos feministas, uma vez que as mulheres como sujeitos políticos tem, nos diversos veículos, a expressão de luta e de ruptura. Por essa razão, compactuamos do entendimento de Marques e Mendonça (2018, p. 42) quanto à formação dos sujeitos, ao percebê-los não definidos a priori ou como um efeito da política, mas como “meio de manifestação concreto e corpóreo da prática política”, sendo a própria política uma “prática comunicacional e conflitiva de constituição e redefinição constante de sujeitos, suas ações e formas de agenciamento”. As mulheres, esses sujeitos políticos que foram retratadas pelos seis media aqui apresentados – considerando os dois períodos comparados –, não são meros exemplos de épocas distintas, de debates outros, de maneiras diversas de engajamento. A representação de agenda que destacamos, mais do que rupturas ou continuidades, ressalta que “no processo de suas próprias lutas, o feminismo foi capaz de transformar sua agenda e também sua reflexão sobre o mundo social” (BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 8). Nesse sentido, as tensões das categorias e a emergência de novas saliências apontam para o deslocamento causados na agenda dos movimentos pelas transformações e reflexões. Demonstram, ainda, a capacidade do jornalismo alternativo espelhar a realidade social, trazendo à superfície questões invisibilizadas na grande mídia, em especial, por ser realizado junto às “fontes”, pelas “fontes”, para fontes, bem como produzido a partir de um olhar horizontal, vindo do chão, da vivência, da exDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 85 periência cotidiana dessas mulheres. Assim, entendemos que novas questões emanam dos resultados encontrados, como quais outras categorias temáticas podem ser pensadas para síntese de nosso tempo? Quais agendas resistem, quais se transformam? Como o jornalismo alternativo, vocalizador dessas demandas, é, ao mesmo tempo, fonte geradora dessas vozes? Podemos falar de novos feminismos, de novas agendas, de uma nova comunicação? Reflexões que, com toda certeza, carecem de um olhar urgente e ávido de pesquisa, bem como mostram o vigor e a fertilidade da questão para o desenvolvimento de futuros trabalhos. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. 3.ed. Lisboa: Edições 70, 2004. BIROLI, F.; MIGUEL, L. F. Introdução. In: MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. Feminismo e política: uma introdução. São Paulo: Boitempo, 2014. pp. 7-16. BORGES, A. Mulherio, um jornal feminista. Comunicação e Sociedade, São Paulo, n. 8, pp. 125-133, nov./1982. BUITONI, D. S. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009. FREITAS, V. G. De qual feminismo estamos falando? Desconstruções e reconstruções das mulheres, via imprensa feminista brasileira, nas décadas de 1970 a 2010. 2017. 198f. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Instituto de Ciência Política, Universidade de Brasília, Brasília, 2017. GODARD, B. Feminist periodicals and the production of cultural value: the Canadian context. 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Identificamos uma prática jornalística (e ciberjornalística) que se confunde com o ativismo nos próprios modos de fazer e na difusão, estabelece uma dinâmica de financiamento coletivo pouco sustentável, explora os recursos tecnológicos, pauta assuntos fora da ordem do dia e não se preocupa com os preceitos tradicionais de imparcialidade e objetividade. Palavras-chave: Midialivrismo; Ciberjornalismo; Ciberfeminismo; AzMina; Think Olga. Intenções e percurso da pesquisa Nossa investigação exploratória parte do entendimento que a internet e a comunicação em rede possibilitam uma renovação da linguagem, dos recursos técnicos, das propostas de interação e participação, assim como da construção coletiva de informação e opinião, transformando as práticas jornalísticas (MAZZARINO, MIGUEL, 2016). Nesse sentido, organizações e movimen56. Jornalista, doutora em Comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo, docente nos cursos de Jornalismo e no Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: katarini.miguel@ufms.br. 57. Jornalista, mestranda no Programa de Pós-Graduação, Mestrado em Comunicação, da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. E-mail: le.lele.avilla@hotmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 89 tos sociais procuram desenvolver conteúdos com levante social, dando espaço para temas como representatividade, direitos humanos, relações de gênero e de poder, questionando a lógica midiática convencional. Uma dinâmica que sinaliza para um jornalismo midialivrista, que desenvolve a narrativa contestadora do tempo real, aproveita do potencial tecnológico para difundir a contrainformação e merece ser explorada. Amparamo-nos na definição de Malini e Antoun (2013) sobre midialivrismo e ciberativismo para conceituar o fenômeno e entendê-lo empiricamente, a partir das experiências comunicativas dos portais ciberfeministas AzMina (azmina.com.br) e Think Olga (thinkolga.com), em uma tentativa que vai além da caracterização e propõe uma reflexão sobre as pautas, as técnicas, subvertidas da pragmática jornalística e as estratégias de mobilização engendradas em rede na temática das relações de gênero. Problematizamos também o próprio conceito de ciberfeminismo, buscando entender sua autodefinição e as diferentes interpretações que o situam, por exemplo, como pensamento pós-feminista, inerente às mulheres net-ativas que se apropriam das tecnologias para transmitir um discurso difuso, desafiando os papeis de gênero, de identidades e dos corpos (CRITICAL ART ESEMBLE, 2006). No plano empírico, trabalhamos no recorte das características gerais dos portais, em um primeiro momento, de forma exploratória e descritiva, examinando as diferentes faces relativas ao sujeito de pesquisa, recorrendo, em nossa autonomia de pesquisadoras, aos autores que caracterizam o ciberjornalismo e as mídias sociais digitais, como Canavilhas (2014), Palácios (2003) e Recuero (2009). E reconhecemos que são produções jornalísticas bastante difusas e não pautadas em preceitos tradicionais do jornalismo tais como objetividade e imparcialidade, tampouco estabelecem uma periodicidade regular ou obedecem certa atualidade, daí a dificuldade em colocar um marco temporal para as análises. De qualquer forma, concentramos a coleta, assim como o trabalho de acompanhamento e caracterização, no mês de março de 2018, ampliando a observação no mês de abril para avaliar repercussões, ponderando o potencial episódico para a cobertura sobre o tema, devido ao Dia Internacional da Mulher, com o agravante do assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL – RJ). Em um segundo momento, buscamos levantar, considerando a especificidade dos espaços virtuais, propriamente as pautas, os tipos de publicações, seus gêneros e formatos, os recursos de visibilidade e mobilização que, a princípio, extrapolam (ou forjam) o âmbito jornalístico. Ademais das pesquisas bibliográficas, que são o alicerce para o entendimento do contexto, é prudente ressaltar que não tratamos com métodos rí90 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) gidos ou padrões já pré-estabelecidos, já que é próprio do ambiente em rede as mutações e alterações em curto espaço de tempo. Nesse sentido, o “pesquisador precisa também exercitar sua capacidade de perceber as idiossincrasias oferecidas pelo campo empírico, questionando-se permanentemente e construindo uma sensibilidade para a pesquisa” (FRAGOSO, RECUERO, AMARAL, 2011, p.106). Trata-se de uma pesquisa em andamento que dará subsídios para uma dissertação de mestrado, em fase inicial, sobre o jornalismo ciberfeminista praticado por coletivos midialivristas. As respostas são provisórias porque as próprias perguntas estão em construção. Na nossa hipótese, como se delineia no contexto a seguir, o jornalismo se transforma em rede e, fora da estrutura convencional dominada (ainda) por empresas hegemônicas de comunicação, pode ser um aliado no caminho da igualdade de gênero, para além de influenciar a mídia convencional e repensar o modelo de negócios para produzir informações. Potência na comunicação em rede: transformações do jornalismo e a proposta midialivrista em uma cobertura feminista Nos limites dos mundos virtuais e presenciais, nos quais o conceito de sociedade enraizou-se à visão de tempo como particularidade escassa e necessária de ser otimizada, as interações digitais estão remodelando os padrões de ativismo coletivo. A era tecnológica, fundamentada não simplesmente por aprimoradas ferramentas virtuais, permitiu às práticas digitais, espaço nas rotinas diárias, envolvendo novas formas de sociabilidade e de comunicação (RECUERO, 2009). Nosso contexto é a cibercultura como cultura da contemporaneidade, moldada pelo advento tecnológico que inunda todas as formas de sociabilidade, e aqui especialmente, responsável pelas mudanças jornalísticas mais radicais: o jornalismo não tem mais tempo ou espaço definidos. Uma variabilidade de características levantadas por Shwingel (2012) tenta moldar o pretenso ciberjornalismo, de acordo com os usos, intenções e as potencialidades. A interatividade e a multimedialidade, por exemplo, permitem o recurso de várias mídias em um único conteúdo, maior qualidade de absorção da informação e participação. Já a hipertextualidade, materializada na conexão entre links, gera uma visão sistêmica e a leitura não-linear dos conteúdos; a customização/personalização, admite uma ampla escolha dentre as ofertas existentes e a criação de nichos informativos; ademais da memória, Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 91 própria da configuração em rede, que assegura o armazenamento dos conteúdos e uma ruptura espacial. Há ainda a instantaneidade que proporciona atualização e a distribuição contínua e em tempo real (PALACIOS, 2003) e a ubiquidade, permitindo o acesso para produzir e acessar conteúdo de qualquer tempo-espaço (CANAVILHAS, 2014). Para além da convergência. As relações de poder entre o público e o consumo não são mais as mesmas; os fluxos interacionais alteram-se a todo instante, e a convergência midiática cria novas possibilidades comunicativas, “um misto de transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais” ( JENKINS, 2009, p.29). E como as variantes comunicativas já não são concentradas nas grandes corporações midiáticas, nunca foi tão fácil produzir conteúdo de largo alcance, e desenvolver mecanismos de interação na cibercultura (CARDOSO; CASTELLS, 2005). Em meio às potencialidades da comunicação em rede, os públicos podem navegar por diversos centros comunicacionais, interagir virtualmente, reconhecer-se enquanto tribos, elaborar e selecionar conteúdos, desenvolver estratégias de mobilização, liderando lutas e travando pautas antes ignoradas por veículos tradicionais de comunicação. As estratégias, na ótica do ciberativismo denominado por Ugarte (2008), apoiam-se nas propriedades do discurso, das ferramentas e potencialidades da web e ainda na visibilidade que a amplitude da internet disponibiliza. O ciberativismo parte, portanto, de um conceito relacionado à transferência de poderes hierárquicos que não mais ficam centralizados em certas redes e passam a se distribuir de uma forma mais igualitária. “Um ciberativista é alguém que utiliza Internet para difundir um discurso e colocar à disposição pública ferramentas que devolvam às pessoas o poder e a visibilidade que hoje são monopolizadas pelas instituições” (UGARTE, 2008, p. 58). Nesse contexto, está o midialivrismo, a partir da proposta de mídias relacionadas justamente às mobilizações e aos movimentos de protesto, buscando interações e reivindicações de direitos, pautando temas de interesse coletivo e a prática de um jornalismo contra hegemônico que não se preocupa com os princípios de objetividade e imparcialidade, por exemplo, forjados nos veículos de comunicação tradicionais. O midialivrismo repensa o modelo de negócios, a forma de fazer jornalismo e se afasta de interesses corporativistas. Os conteúdos não atendem grandes audiências, mas nichos e diferentes interesses; dão visibilidade aos posicionamentos, com potencial de engajamento. Nas palavras de Mallini e Antoun (2013, p.143), o midialivrismo “substitui as formas democráticas representativas e midiatizadas por núcleos centralizados 92 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) (Estado), e seus órgãos de ação (instituições) por uma democracia de participação interativa, constituindo uma rede de ação direta”. Os públicos das mídias destas organizações sabem o que encontram ao procurá-las como fontes de informação: informação com opinião, posicionamento e crítica. E voltam a estes veículos, agendam-se por meio deles e acabam por replicar sentidos para seus próprios públicos nas redes sociais, gerando uma reverberação infinita, que amplia, relativiza as temáticas e, ocasionalmente, pauta os meios tradicionais comerciais. (MAZZARINO, MIGUEL, 2017, p. 119). Esses movimentos jornalísticos não são propriamente uma novidade, mas tiveram suas concentrações ampliadas pelas possibilidades interacionais dispostas na cibercultura. Tem suas bases nas lutas antidisciplinares dos anos 1960 e 1970 e buscam sobremaneira a liberação da palavra. Mallini e Antoun (2013) colocam o midialivrista como o hacker das narrativas, aquele que faz do meio de comunicação um movimento social em prol das mais variadas causas. A troca de informações e a possibilidade de interação desenvolvem o poder comunicativo apesar dos impasses físicos; relacionam pessoas e ideais que, mesmo separados por telas, conseguem fundar vozes nos espaços públicos (SOUZA, 2015). Uma dessas causas é a própria produção de informações sobre relação de gênero, uma linha de significações voltadas ao movimento ciberfeminista, em que as reivindicações do feminismo não apenas acontecem no ambiente em rede e são amparadas pelas tecnologias, como se organizam dentro dessa lógica midialivrista. O termo ciberfeminismo surgiu dentro de uma conjuntura de reivindicações de direitos e de emancipações, em 1985, pela autoria da escritora Donna Hawaray, no “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista”. A utilização das novas tecnologias comunicacionais permitiu mais acesso às campanhas dos movimentos feministas, popularizando as pautas e construindo novos discursos. O ciberfeminismo em sua multiplicidade permite tanto o questionamento político através da atuação de redes ativistas (como no caso do Brasil) bem como a manifestação e construção de novos símbolos, linguagens e representações do feminino perante essas redes tecnológicas através da atuação de mulheres artistas em diferentes partes do mundo (LEMOS, 2009, p, 87). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 93 As ondas feministas convertem-se em uma pluralidade, até então não encontrada, e ganham aspectos mais interseccionais (voltado para o reconhecimento das diferentes identidades sociais), abarcando reivindicações e fundando vertentes: o feminismo negro, lésbico, o ecofeminismo e até o feminismo radical. A cibercultura permitiu espaços para estas mobilizações e fez com que as interações sociais pudessem acontecer com maior facilidade e amplitude pelo uso das ferramentas digitais para a prática compartilhamento de informações e mobilizações. Como explica Souza (2015, p.24), existe uma maior união e encontro de mulheres que, “anteriormente à margem da produção política, artística, entre outras áreas, encontram quem ouça sua voz, apoie-a e a compreenda, mesmo estando separada por uma tela e muitas vezes longe geograficamente”. Não nos compete aqui uma demarcação rígida do conceito, mas entender sua própria configuração e autodefinição. A própria Think Olga se define como uma Organização Não-Governamental (ONG) feminista que desenvolve conteúdo relacionado à gênero e, apesar de não explicitar a prática midialivrista, cita diretamente o empoderamento através da informação, e denomina-se enquanto um hub (mistura) de conteúdos, que utiliza das diversas mídias sociais, como o Facebook, para propagar informações em rede58. A ONG foi impulsionada com a campanha ciberativista “Chega de Fiu-Fiu”, realizada em 2013 e ainda em andamento, que denuncia a naturalização do assédio contra mulheres em espaços públicos, criando estratégias de mobilização coletiva que se apropriam da visibilidade das redes para tratar de temas de interesse público e combater violências de gênero. Com isso, a Think Olga inaugura a uma estrutura comunicativa com produções jornalísticas e campanhas de escopo ciberfeministas. O portal AzMina, que agrega a Revista AzMina (azmina.com.br), surge em 2015 e vem ao encontro do ciberfeminismo ao se caracterizar como “ (…) instituição sem fins lucrativos cujo objetivo é usar a informação para combater os diversos tipos de violência que atingem mulheres brasileiras, considerando as diversidades de raça, classe e orientação sexual”59. Com produções jornalísticas viabilizadas por campanhas de financiamento coletivo, colaborações voluntárias, arrecadações e um lema que indica “sem rabo preso”, AzMina entra em uma corrente midialivrista que não só estabelece um novo modelo de negócios para a prática jornalística, mas foge também daquele fazer jornalismo, declarado imparcial e espelhado. Vai ao encontro das renovações colocadas 58. Disponível em: <http//thinkolga.com/sobre/>. Acesso em: 21 mai. 2018 59. Disponível em: <http://azmina.com.br/quem-somos/>. Acesso em: 21 mai. 2018 94 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) por Malini, Antoun (2013, p.151): A nova mídia desenvolve sua cobertura como um documentário ficcional cujo roteiro vai sendo escrito através das fabulações narradas pelos próprios participantes. Se ela pode abandonar a isenção jornalística e permanecer veraz, deve ser porque sua evidente adesão ao acontecimento se faz para proveito da vida do jornalismo. Disposta a construir o acontecimento por todos os meios que o sistema hipermídia é capaz de operar, recebe uma contrapartida ética endereçada pelo próprio acontecimento para sua atitude, devolvendo-lhe a força da verdade. Porque nela o acontecimento recebe de volta o esplendor de sua neutralidade e estranheza, tornando-se de novo um combate, um campo de batalha onde uma cibervitalidade esboça seus primeiros gestos balbuciando suas primeiras palavras (ANTOUN, MALINI, p. 151, 2013). Isso posto, na sequência iremos nos atentar as formas de fazer (ciber) jornalismo no ambiente midialivrista, focado nas causas feministas, com uma proposta exploratória e reflexiva, a partir das duas estruturas comunicativas supracitadas. A experiência dos portais AzMina e Think Olga: estrutura, conteúdo e modelo de negócios em consonância A partir dos conceitos relacionados ao ciberjornalismo (SCHWINGEL, 2012; CANAVILHAS, 2014), midialivrismo (MALINI, ANTOUN, 2013) e ciberfeminismo (HARAWAY, 2000), desenvolvemos uma análise exploratória e comparativa dos portais ciberfeministas Think Olga e AzMina, buscando refletir, em suas divergências e convergências, sobre os tensionamentos referentes à produção de conteúdo jornalístico versus estratégias de mobilização feministas, ademais de analisar as características gerais dos portais e suas variantes nas redes sociais. Nossa observação se concentrou no mês de março, por conta do Dia Internacional da Mulher (8) o que, teoricamente, gera mais pautas relacionadas. Sobre a estrutura e layout dos portais, Think Olga prioriza temáticas menos factuais, tanto que não há data de publicação; explora mais campanhas, apresenta um visual de cores predominantemente branca e rosa, de fácil assimilação com o feminino supomos, e divide as seções em A Olga (quem somos), Projetos, Artigos (mais proximidade com o jornalismo propriamente), Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 95 Vídeo+Galeria (conteúdo audiovisual), Agenda, Especiais (material informativo para downloads e Colabore (na tentativa de se manter economicamente). AzMina segue a mesma dinâmica, mas o layout é mais colorido e iconográfico, contrasta o rosa com azul, numa posição até binária, e prioriza imagens e notícias em slides rotativos na página inicial, dando mais característica de produto jornalístico. As postagens trazem datas e estabelecem certa cronologia. As seções são Especiais (no caso com reportagens investigativas), Arquivo, Quem somos, Assine (visando o financiamento), Republique (disponibilizando e estimulando a difusão dos conteúdos publicados pela revista). Os dois portais fazem uso das características do ciberjornalismo, usam das potencialidades em rede para desenvolver conteúdos segmentados, denunciatórios, mobilizadores e explicitamente feministas, voltados a um público específico, com mecanismos de levante e ação coletiva (estratégias ciberativistas) que fundem informações com campanhas, e questionam o próprio fazer jornalístico enquanto reprodutor de preconceitos sociais. A Think Olga, por exemplo, disponibiliza, na seção Especiais, manuais jornalísticos para sugerir padrões de coberturas nas temáticas de racismo, violência contra a mulher, pessoas com deficiência, aborto, estereótipos nocivos e LGBT60. Um estímulo para uma cobertura jornalística mais pluralizada e atenta às nomenclaturas e abordagens eticamente adequada a cada um dos grupos e causas. A multimedialidade, ou seja, a utilização de várias mídias para a produção de um único conteúdo, é recurso do ciberjornalismo explorado em cada portal com intensidades diferentes. AzMina é mais focada no texto e na imagem para realizar um jornalismo investigativo (como eles definem), interpretativo e dissertativo nas pautas feministas. A Think Olga abusa do audiovisual para divulgação dos projetos e campanhas para a mobilização virtual colaborativa, tanto que mantém a seção específica Vídeos+Galerias. Além disso, Think Olga explora as características da ubiquidade e da instantaneidade através da utilização de lives, vídeos transmitidos em tempo real, de seus debates e entrevistas, além de coberturas de manifestações. A prática de compartilhamento ao vivo, reconhecida dentro da abordagem midialivrista (MALINI, ANTOUN, 2013), procura transmitir conteúdos com realidades mais cruas e sem edição. Já a hipertextualidade, como possibilidade de visão sistêmica, é utilizada pelos dois portais; a partir dos links inseridos nos finais de cada texto, é possível acessar outros conteúdos referentes às matérias produzidas, continuando a informação dentro das possibilidades da memória do site. Um exemplo disso é 60. Disponível em: <http://thinkolga.com/especiais/>. Acesso em: 22 mai. 2018 96 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) a cobertura da AzMina no caso da vereadora Marielle Franco (PSOL -RJ), supostamente executada por conta do seu trabalho denunciativo de milícias e violências policiais, que utilizou dos hiperlinks para contextualizar os assuntos e apresentar outras matérias desenvolvidas com a mesma perspectiva pelo portal, ajudando o leitor a criar sua rota de leitura e interpretar o fato. Ainda sobre o caso Marielle, AzMina desenvolveu uma série de 11 textos, entre reportagens, notícias, entrevistas e artigos de opinião sobre o assunto, contextualizando as informações, e tensionando o pertencimento político da mulher na sociedade. A Think Olga, por outro lado, elaborou apenas uma produção em março sobre o mesmo caso, denominado “Racismo, Presente!”, um artigo de opinião que aborda a violência contra mulheres negras no Brasil. Daí uma nítida diferença entre os portais no que se refere ao investimento jornalístico propriamente. AzMina também desenvolveu um conteúdo ilustrativo de forte apelo social sobre o caso Marielle. Com o desenho da vereadora, a chamada “Quantas mais vão precisar morrer?” faz referência à luta relacionada à visibilidade da mulher na política e ainda, à violência contra a mulher. Com a ordem: “imprima e leve na rua” e o uso da hashtag - etiquetas temáticas para provocar engajamento e desenvolver campanhas, frases de apelo social com temas de interesse coletivo para ganharem espaço em rede -, #mariellepresente, as estratégias de mobilização virtual fundam-se na rede para alcançar espaços físicos e remodelar os espaços de luta. Outras campanhas de mobilização em rede como #CarnavalSemAssedio e #MamiloLivre são exemplos das estratégias midialivristas que confundem jornalismo com mobilização. A campanha #CarnavalSemAssedio surgiu em 2018 pela AzMina e desenvolveu um guia para esclarecer o assédio, incentivar o debate, pautar a temática nas redes e transcendê-la, inclusive com apoio do Ministério Público de São Paulo. Em consonância, #MamiloLivre também propõe a luta pelos direitos femininos ao questionar a censura ao corpo da mulher, discutindo a liberdade de gênero nas ruas e nas redes sociais, em uma tentativa de politizar o corpo, que configura e pluraliza o ciberfeminismo. A Think Olga traz o ciberativismo desde sua origem. “Chega de Fiu-Fiu” foi a primeira campanha da ONG. Realizada pela internet, envolveu a pesquisa com oito mil mulheres sobre casos de assédios em ruas, ônibus, metrôs e outros espaços públicos, aproveitando do potencial das redes para buscar, difundir informações e revelar realidades que precisam ser combatidas: 98% das mulheres disseram já ter sofrido assédio, 90% já trocaram de roupa Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 97 antes de sair de casa por medo de ataques e 81% já haviam deixado de fazer algo, como ir a um lugar, sair a pé, com receio dos assédios61. Dez dias após a divulgação dos resultados, o blog postou um texto de agradecimento em que afirma ter tido mais de 10 mil compartilhamentos da página que apresenta as respostas obtidas nas primeiras cinco horas dela no ar. Por causa disso, o Think Olga recebeu mais de 140 mil visitas no mesmo período de tempo e, nos dias seguintes, o número de compartilhamentos continuaram crescendo e o debate, que anteriormente era considerado pela equipe do blog como quase inexistente e ignorado pelo público, foi ampliado ainda mais, com novos depoimentos aparecendo e homens que até então não tinham noção do mal que faziam ao assediar uma mulher se mostrando arrependidos. Essa resposta inesperada, já que o aguardado por elas era “ser apenas uma luz sobre um problema – uma primeira exploração em um território ignorado”, acabou servindo de inspiração e incentivo para que a campanha se transformasse em ações maiores e mais abrangentes e, assim, não parasse por aí (SOUZA, 2015, p.43-44). A criação do mapa “Chega de Assédio” foi uma estratégia para identificar de forma colaborativa os pontos críticos de denúncias; as vítimas podem compartilhar ou denunciar o caso, marcando no mapa o local, dia e horário do ocorrido e levantando estatísticas a partir dos recursos multimídias e de geolocalização próprios da internet e do ciberjornalismo. A campanha também é transmidiática, na medida em que a problemática se desenrola em diferentes plataformas comunicativas, cada qual com uma linguagem e atendendo públicos de interesse. Produziu para impressão e download uma cartilha informativa combatendo a lógica das cantadas e elogios nos espaços públicos, com informações e serviços de acolhimento, além do recente vídeo-documentário “Chega de Fiu-fiu”. O jornalismo relacionado ao feminismo interseccional do AzMina prioriza pautas sobre mulheres até então marginalizadas pela mídia hegemônica. Com um recorte denunciatório e interpretativo, produziu, por exemplo, o especial “Pequenas Esposas” sobre o casamento infantil em comunidades ciganas, fazendo uso da imersão jornalística nas diferentes realidades, relatos de personagens e entrevistas com ativistas da causa, para pautar temas urgentes e fora da ordem do dia, como a exploração sexual infantil. Entre as reportagens do especial estava “Das bonecas ao altar: por que há tantos casamentos infantis 61. Disponível em: <https://thinkolga.com/2018/01/31/chega-de-fiu-fiu/>. Acesso em: 21 mai. 2018. 98 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) entre os ciganos brasileiros”, que traz as histórias das crianças casadas, sob a égide de uma cultura milenar, para o debate, com pluralidade de fontes (ativistas, historiadores, antropólogos) e personagens, sistematizando a história de forma literária e com recursos multimidiáticos. “Shanya* aperta os olhinhos num sorriso de menina, como quem está pensando duro na resposta. Tem 15 anos, lábios vermelhos e o colo rodeado por um vestido de contas amarelas e franjas vermelhas. Passa a filha de cinco meses de um braço ao outro e repete: — Meu sonho, assim? — Isso, o maior sonho da sua vida. Dá-se por vencida. Não sabe – ou a pergunta não faz sentido no mundo dela. Largou a escola, casou-se aos 13 anos e era meio que isso aí. Tem algo mais depois disso e dar filhos ao marido? Um menininho de dois anos se achega nas duas e brinca com os pezinhos da bebê. Shanya se sente na obrigação de nos explicar: — Esse aí é o prometido da minha filha, pra ela ver se casa quando fizer 13 anos. E os amigos e familiares riem e acham fofo. E o tio, Rogério Almeida, complementa: — Quando crescerem eles se acertam, mas a gente promete assim pra mostrar que gostaria que fosse isso. Em família de brasileiros, as meninas namoram um e depois outro, aqui não tem isso, não. Pode até separar depois de casar, mas a virgindade da mulher é garantida no primeiro casamento. O homem é arretado, liberado, mas a mulher não desperta o conhecimento. É Boa Vista do Tupim, cidade de 18 mil habitantes no sertão baiano, localizada a 327 quilômetros de Salvador. Shanya e a filha pertencem à comunidade cigana local que, por sua vez, faz parte da nação de cerca de meio milhão de ciganos brasileiros. Seu grupo étnico, os calon, deixou a vida nômade pra fincar pé em cidadezinhas nordestinas como aquela há mais ou menos 25 anos. Largaram carroças e barracas, mas mantiveram as vestes coloridas, os dentes de ouro, a vida leve e a cultura patriarcal”. (Trecho retirado da reportagem do portal AzMina62) A coletânea “Pequenas Esposas” foi desenvolvida por meio do Programa Bolsas de Reportagem da Revista AzMina, financiamento coletivo (crowdfunding) de grandes reportagens. Também foram financiadas nesses moldes pautas sobre a exploração sexual de meninas nas rodovias brasileiras, a violência 62. Disponível em: <http://azmina.com.br/2017/06/das-bonecas-ao-altar-por-que-ha-tantos-casamentos-infantis-entre-os-ciganos-brasileiros/>. Acesso em: 22 mai. 2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 99 do sistema judiciário no acolhimento à mulher (seja em relação às denúncias ou ao recebimento da vítima), a maternidade lésbica e os desafios da presença de mulheres no exército. Essa estratégia renova (ou ao menos ensaia) um novo modelo de negócios para a produção jornalística, não pautado em publicidade, mas sim no levantamento de recursos por meio de uma rede de conexões entre os leitores, colaboradores e jornalistas interessadas em desenvolver conteúdo de forma independente. Com menos adesão às reportagens propriamente, a Think Olga utiliza intensamente as redes sociais, não apenas para replicar o conteúdo do próprio site, mas cunhar linguagens específicas, como a audiovisual, e promover campanhas como #ConexõesQueSalvam, em parceria com o Facebook, para combater a violência virtual contra as mulheres, oferecendo informações e canais de denúncia. O Facebook é também espaço para lives (vídeos ao vivo) e entrevistas sobre assuntos semanais como a série de vídeos #EuVouContar, que traz 52 relatos de mulheres que fizeram aborto, em formato de depoimento, sempre anônimo, aproximando, de maneira testemunhal e fundada nas redes, o fazer jornalístico da mobilização e do ativismo. Ambos os portais contam com um modelo de negócios baseado no financiamento coletivo e na arrecadação de fundos contínua e intensificada em campanhas específicas. No caso da AzMina, a possibilidade de opinar nos formatos e nas pautas é realidade. Por meio do Conselho Editorial de Leitor@s, os assinantes fixos podem participar de reuniões de pauta, interferir nos formatos e discutir assuntos pertinentes à elaboração editorial. Com uma variação de 10 a 50 reais, as colaborações fixas e assinaturas do site são uma das formas de captação de recursos para as produções; dinheiro utilizado, segundo AzMina, para custear as matérias, salários e custos burocráticos. A produção do portal AzMina conta com cerca de nove mulheres na equipe e mais 15 colaboradoras, entre jornalistas, publicitárias, psicólogas, advogadas e outras profissionais, mas sempre mulheres. Na Think Olga existe a seção colabore que leva para um site de financiamento coletivo onde é possível escolher valores, frequência e formas de pagamento. Ainda que seja preliminar colocar o modelo como exitoso, já que os financiamentos são muitas vezes pontuais e insuficientes, as iniciativas mostram resistência e independência na produção jornalística, reforçando a veia midialivrista. O documentário “Chega de Fiu-Fiu”, produzido pela Think Olga, foi fruto de um financiamento coletivo que atingiu a meta em 24 horas. O filme está disponível on-line e prevê uma campanha de veiculação em lugares públi100 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) cos, como escolas municipais e estaduais, órgãos públicos, organizado pelos próprios cidadãos, para transcender as redes digitais e atingir diferentes espaços públicos. Essas novas práticas jornalísticas evidenciam as possibilidades e os jornalismos em questão, aproveitando das potencialidades de difusão, amplitude, visibilidade para desenvolver conteúdo segmentado, interpretativo, engajados e midialivrista, fugindo do modelo de negócios tradicional e pautado em levantes sociais que não interessam para os veículos tradicionais. Considerações e achados possíveis Partindo da internet como espaço infinito de produção, distribuição e armazenamento de conteúdo, as relações comunicativas desenvolvidas ali, e que transcendem a ideia virtual, apresentam características relacionadas à fugacidade, pois muitas vezes são dispersas, amplas e não se fixam em padrões comuns. A abundância de informações cria conflitos comunicacionais, e não podemos ter uma visão única da internet como espaço apenas de solidariedades e liberdades, porém há possibilidade de um novo tipo de inserção social e política. A comunicação em rede pluraliza o debate, possibilita engajamento e interação em diferentes assuntos e ajuda a remodelar os movimentos sociais, que se apropriam do contexto tecnológico para desenvolver estratégias de mobilização e pautar seus interesses. O ciberfeminismo, como reivindicação dos direitos de gênero a partir das condições da internet, utiliza a rede para o levante social, produzindo conteúdos e amplificando debates: conquista um espaço de disputas e reconhecimentos de questões dos direitos das mulheres, das violências e opressões dos espaços públicos e das necessidades de diálogo sobre temas pouco explorados nas mídias convencionais como sexualidade feminina, exploração sexual, aborto, machismo, representatividade política, como acompanhamos nos portais Think Olga e AzMina. Com isso, a prática jornalística se pluraliza, atende grupos e reivindicações e ajuda no delineamento de uma proposta midialivrista, ainda em curso. Os públicos das mídias destas organizações sabem o que encontram ao procurá-las como fontes de informação: informação com opinião, posicionamento e crítica. E voltam a estes veículos, agendam-se por meio deles e acabam por replicar sentidos para seus próprios públicos nas reDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 101 des sociais, gerando uma reverberação infinita, que amplia, relativiza as temáticas e, ocasionalmente, pauta os meios tradicionais comerciais. (MAZZARINO, MIGUEL, 2017, p. 119). As estruturas comunicativas aqui analisadas são exemplos de veículos que trabalham entre o híbrido de jornalismo e levante social ciberfeminista, através da utilização da informação como potencializadora de um jornalismo engajado com a igualdade de gênero. Além disso, as divergências dos formatos de produção de conteúdo entre os dois portais mostram como os recursos do ciberjornalismo podem ajudar a desenvolver diferentes tipos de jornalismo, mas também mobilizações heterogêneas e necessárias para a construção de um espaço democrático. Enquanto o AzMina produz um conteúdo jornalístico semanal, voltado para a multimedialidade e ubiquididade, congregando textos, imagens, infográficos, em consonância com uma tipologia interpretativa que resulta em reportagens de profundidade; as produções informativas do ThinkOlga apropriam-se dos espaços das redes sociais, em especial o Facebook, para desenvolver debates em vídeos, entrevistas e conteúdos ao vivo, divulgados em tempo real, para difundir campanhas e histórias para a conscientização virtual das pautas de gênero. Notamos também que as estratégias ciberativistas estão explícitas na cobertura jornalística, a partir das próprias pautas, abordagens, tons imperativos e nos elementos de visibilidade como as hashtags, desconstruindo a imparcialidade do jornalismo convencional. Os dois portais, na esteira midialivrista, ainda propõem formas de fazer jornalismo independentes, por meio de financiamento coletivo, rede de colaboradores, linha editorial com participação das leitoras, além das formas de divulgar conteúdos e difundi-los sem amarras pelas redes, incentivando de forma livre o amplo compartilhamento. Com essa investigação preliminar, que irá compor uma pesquisa de mestrado, esperamos introduzir reflexões sobre as transformações do jornalismo – seus diferenciais e potencialidades em uma estrutura midialivrista –, especificamente aquele praticado por grupos e coletivos que defendem interesses das mulheres, como é o caso do feminismo nativo do ciberespaço. Visualizamos, em um pano de fundo, como uma reflexão inicial que trará suporte para o aprofundamento do tema e para novas pesquisas que intentam compreender maneiras do fazer jornalístico que não buscam uma pragmática da profissão, mas o comprometimento com a igualdade de gênero. 102 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Referências CANAVILHAS, J. Webjornalismo: 7 características que marcam a diferença. Covilhã: Livros LabCom, 2014. CARDOSO, G.; CASTELLS. M. A sociedade em rede: do conhecimento à ação política. Centro Cultural de Belém, 2005. CRITICAL ART ESEMBLE. Desobediencia civil eletrónica. In: REUNION DE OVEJAS ELECTRONICAS. Ciberactivismo. Sobre usos políticos y sociales de la red. Barcelona: Virus editorial, 2006. HARAWAY, D. J. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: Antropologia do Ciborque: As Vertigens do Pós-humano. SILVA, T. T. (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2000. 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Madrid: Biblioteca de las Indias Eletrónicas, 2007. 104 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Vozes do Leste: os jornalismos literários de Svetlana Alekiévitch e Hanna Krall Mateus Yuri PASSOS63 Arthur Breccio MARCHETTO64 Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP Resumo A partir de um close reading Richards (2017) de trechos de A Guerra Não Tem Rosto de Mulher, Vozes de Tchernóbil e The Woman from Hamburg, pretendemos compreender as especificidades do jornalismo literário produzido por mulheres eslavas, a partir do trabalho da bielorussa Svetlana Aleksiévitch e da polonesa Hanna Krall. Buscamos distinguir as particularidades de estilo e voz de cada autora, suas estratégias narrativo-discursivas. Ao final da análise percebemos que compartilham um tema-chave: o silenciamento das vozes de mulheres, a quem ao mesmo tempo muitas informações importantes são negadas. Porém, as autoras trabalham com abordagens bastante distintas – Aleksiévitch completa as lacunas de informação e cria um ambiente envolvente para o leitor, enquanto Krall evidencia as lacunas e transmite em sua reportagem um mundo que permanece cheio de silêncios e enigmas. Palavras-chave: Jornalismo literário; Jornalismo eslavo; Narrativa e experienciação; Svetana Aleksiévich; Hanna Krall. Vozes do Leste A premiação do livro Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear, da bielorussa Svetlana Aleksiévich, com o Prêmio Nobel de Literatura em 2015, de um lado, abriu as portas do mundo para uma mais ampla recepção do jornalismo literário como uma prática literária de alto reconhecimento pela crítica e pelos leitores. Por outro lado, o reconhecimento desse valor despertou interesse, no campo de estudos de jornalismo literário propriamente dito, não apenas pela produção de Aleksiévitch em particular, mas também pela de ou63. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). E-mail: mateus.passos@gmail.com 64. Mestrando em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo (Umesp) com bolsa Capes. Graduado em Jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo. E-mail: arthur.marchetto@gmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 105 tros jornalistas literários que escrevem em línguas eslavas, como russo, ucraniano e polonês, entre outros. Até então, apenas o polonês Ryszard Kapuściński (1952-2007) ocupava certo lugar canônico nesse cenário global de pesquisa. Nesse sentido, o impacto desse reconhecimento pode ser identificado em três dimensões principais. A primeira, como já sinalizado, é a valorização de algumas configurações do trabalho jornalístico, como arte e como literatura. A segunda, o crescimento de um interesse editorial e acadêmico por jornalistas literários oriundos de países eslavos. Finalmente, a terceira é uma atenção de igual ordem pela produção de mulheres no jornalismo literário. No Brasil, identificamos a valorização principal de Eliane Brum como jornalista literária cuja sensibilidade e capacidade empática a singularizam como repórter e narradora (LIMA; MARTINEZ, 2014). No entanto, considerando o campo de produção de jornalismo literário como um universo vasto configurado não apenas por um gênero ou forma singulares, mas por um conjunto amplo e diverso de gêneros discursivos65 bastante distintos entre si, situados em um ponto de intersecção entre o jornalismo e a literatura (PASSOS, 2016), compreendemos que aos eixos de modalidade textual e de gênero se acresce o do contexto cultural, a configuração dos sujeitos diretamente relacionada à sua experiência do lugar e do momento histórico em que se formam e atuam – o que, evidentemente, tem o gênero como uma de suas dimensões. Nos instiga, a partir dessa constatação, indentificar as diferentes configurações que o jornalismo literário poderia assumir ao ser produzido por mulheres de cultura eslava, que vivenciaram um processo histórico singular na União Soviética. Procedimentos metodológicos Buscamos neste capítulo compreender especificidades narrativas das obras de duas jornalistas literárias eslavas. A primeira é Svetlana Aleksiévitch por meio de suas duas obras traduzidas para o português: A Guerra Não Tem Rosto de Mulher (2016) e Vozes de Tchernóbil (2016a). A segunda é a polonesa Hanna Krall – de projeção internacional menor, mas crescente, e bastante reconhecida em seu país. Por ainda não existir 65. Compreendendo gêneros discursivos pelos termos de Bakhtin (2016), que os define como enunciados relativamente estáveis em termos de tema, composição e estilo. Essa noção bakhtiniana não pretende organizar/hierarquizar gêneros em um conjunto pequeno de nomenclaturas, pois os vê como um campo de infinitas possibilidades: variações em quaisquer desses três elementos essenciais configurariam novos gêneros, muitas vezes derivados de gêneros já estabelecidos ou “formas híbridas” que combinam características de um ou mais gêneros ou conjunto de gêneros. 106 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) traduções de sua obra em português, foi selecionado o livro The Woman from Hamburg and other true stories (2005), única coletânea de suas reportagens disponível em inglês. Pretendemos distinguir as particularidades de estilo e voz de cada autora, suas estratégias narrativo-discursivas e o modo como apresentam o ponto de vista não-oficial, o que compreendemos como um traço geral do jornalismo literário (PASSOS, 2016) – em contraponto à reprodução das ideologias ligadas a instituições de poder governamentais ou financeiras –, e em especial à forma de reconstruir a vivência de mulheres para que a leitura permita simular sua experienciação. A partir dessa premissa procuramos compreender o trabalho das duas autoras como mobilizações de gêneros discursivos distintos, e, a partir de seleção qualitativa, realizamos close readings de trechos dos livros escolhidos que nortearam as discussões apresentadas. Compreendemos o procedimento do close reading a partir de Richards (2017), cuja definição o delineia como leitura atenta às minúcias do texto, buscando identificar nos detalhes e no específico pistas para caracterizar estratégias textuais de forma mais ampla. É preciso, naturalmente, fazer ressalvas quanto a certa limitação das análises pelo fato de, em ambos os casos, estarmos lidando com traduções e não com os textos originais. Temos consciência de não lidar com as palavras ou construções exatas das repórteres, mas sim com escolhas realizadas pelos tradutores no esforço de reconstruir ou mesmo recriar os textos de Aleksiévitch e Krall em outros idiomas. Hanna Krall: lacunas e silêncios Nascida em Varsóvia em 1935, Hanna Krall é hoje a segunda repórter polonesa mais traduzida no mundo, ficando atrás apenas de Ryszard Kapuściński, e influenciando jornalistas de gerações mais jovens como Mariusz Szczygieł, autor de Gottland e um dos mais renomados autores da geração contemporânea de jornalismo literário polonês. Krall foi a única sobrevivente de uma família de judeus massacrada durante o Holocausto. Ela foi resgatada de um veículo que transportava moradores da cidade para o gueto onde os judeus foram durante muitos anos forçosamente confinados, e posteriormente abrigada e escondida entre a população polonesa “ariana” (CULTURE.PL, s/d). Ao contrário de outros escritores que viveram aquele momento de exceção, como Primo Levi (1919-1987), Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 107 Krall não fez até o momento qualquer trabalho memorial ou de ficção em que lida diretamente com essa experiência da infância. No entanto, ela reconhece como uma vivência única e valiosa que, se por um lado a teria tornado “décadas mais velha” do que pessoas que nasceram no mesmo local poucos anos depois e não vivenciaram a perseguição ao judeus, por outro lhe daria também maturidade precoce e uma capacidade ímpar de compreender seus personagens – boa parte deles também judeus (OGIOLD, 2001). Iniciou sua carreira aos 20 anos no jornal diário Zycie Warszawy e, em 1966, tornou-se correspondente na União Soviética para a revista Polytika. Parte do trabalho de reportagem que produziu durante a estada de quatro anos na publicação foi compilada em 1972 no livro Na wschód od Arbatu [A leste de Arbat, tradução nossa]. Seu primeiro trabalho de grande impacto viria poucos anos depois, publicado em partes na revista Odra em 1976 e na forma de livro no ano seguinte – sob o título de Zdążyć przed Panem Bogiem [Ponha-se diante de Deus, tradução nossa]. A reportagem tinha como protagonista Marek Edelman, um dos líderes do Levante do Gueto de Varsóvia, ato de resistência contra o transporte dos moradores para o campo de concentração de Treblinka. Ao longo das décadas seguintes, Krall alternaria o trabalho como freelancer com empregos fixos em jornais e revistas, desenvolvendo um estilo narrativo que causaria espanto a Tom Wolfe (2005) pelo caráter distinto que apresenta em relação à abordagem estílistica que ficou mais fortemente vinculada ao Novo Jornalismo e ao jornalismo literário – na qual eventos testemunhados ou relatados eram reconstruídos em cenas minuciosas, com riqueza de descrições de modo a se caracterizar o estilo de vida dos sujeitos retratados. O estilo de Krall seguiria numa linha diversa, na qual a narração dos acontecimentos parece ser reduzida ao mínimo, ao essencial, com uma crueza de linguagem não muito diferente da prosa kafkiana. Não raro com saltos cronológicos de meses ou anos, e com a passagem de informações essenciais do plano mais evidente do texto para uma lacuna a ser preenchida durante a leitura, pontas soltas a serem atadas por cada leitor (ISER, 1976), com um ou outro comentário pessoal. Ao adotar uma estratégia textual em que o autor não desaparece por trás da história e a deixa fluir “naturalmente”, em vez disso a evidenciando como uma reconstrução – como artifício que causa estranhamento, como diria Chklovski (2013). Adotado mesmo em obras de ficção, esse procedimento teria, a seu ver, o papel de torná-las mais fiéis ao que considera a verdade dos fatos, pois interpretar, explicar e ordenar logicamente os acontecimentos tornaria o trabalho de re108 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) portagem inverídico: Meu trabalho como repórter me ensinou que histórias lógicas, sem enigmas e lacunas de informação, nas quais tudo é evidente, tendem a não ser verdadeiras. Coisas que não podem ser explicadas de modo algum realmente acontecem. No fim, a vida na Terra é verdadeira, mas não pode ser logicamente explicada. (KRALL, 2005, loc.2040, tradução nossa).66 Essa é a abordagem utilizada dos textos de Taniec na cudzym weselu [Dançando no casamento de outra pessoa, tradução nossa], coletânea de reportagens parcialmente reproduzida no livro The Woman from Hamburg and other true stories, tradução em língua inglesa que utilizamos como fonte e que reúne também alguns dos textos publicados em Dowody na istnienie [Provas de existência, tradução nossa]. Ambas as fontes trazem histórias sobre judeus que viveram o Holocausto ou o cotidiano judaico polonês anterior a 1939, com base em entrevistas em profundidade – acabando por assumir a feição de conversas efetivamente e acima de tudo humanas, como é típico da práxis do jornalismo literário (MARTINEZ, 2016) – que Krall teve com diversos dos personagens e em pesquisa documental. A reportagem que dá título ao livro, Ta z Hamburga [A mulher de Hamburgo, tradução nossa], traz um enredo inicial com alguns paralelos em relação à distopia The Handmaid’s Tale, de Margaret Atwood. Na obra de ficção, mulheres férteis são forçadas a agir como barrigas de aluguel para as esposas de militares que tomaram o poder – e dispensadas após darem à luz. Situação parcialmente análoga, na reportagem, à de Regina, judia alemã acolhida em meio à perseguição nazista por Barbara e Jan, casal de poloneses que residia em Lviv, Ucrânia, e durante mais de um ano passa a viver boa parte das horas de cada dia dentro de um guarda-roupas, para que pudesse se ocultar de qualquer visita que pudesse denunciá-la. Regina engravida de Jan. Ameaçada pelo marido, Barbara acoberta o caso e passa a usar travesseiros por baixo da roupa, simulando uma gravidez. Quando Helusia nasce, Barbara a leva para apresentá-la aos vizinhos como sua própria filha. Dias depois, quando batiza a filha – a informação que contém o nome da arquidiocese é o único momento em que o texto precisa o local onde esse momento da história se ambienta –, 66. No original: My work as a reporter has taught me that logical stories, without riddles and holes in them, in which everything is obvious, tend to be untrue. And things that cannot be explained in any fashion really do happen. In the end, life on earth is also true, but it cannot be logically explained (KRALL, 2005, loc.2040). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 109 o casal realiza uma festa para alguns convidados que dura até o amanhecer. Regina, que não há muito tempo acabara de dar à luz, passa o tempo todo no guarda-roupas. Meses depois, quando o exército soviético retoma a cidade, ela desaparece. A partir daí, há diversos saltos cronológicos que demarcam o modo como se articula a relação entre as três mulheres – Barbara, Regina e a própria Helusia. O casal retorna à Polônia e Jan se demonstra obcecado, num primeiro momento, por encontrar Regina. Em vez disso, é procurado por dois homens que a representavam e queriam recuperar a criança. Helusia passa a receber pacotes de Hamburgo com presentes. Barbara se refere a Regina, que os havia enviado, como madrinha de Helusia. Se num primeiro momento os envios a incomodam profundamente, posteriormente passa mesmo a pedir à filha que pedisse alguns itens, como tecidos para seu vestido de primeira comunhão. Com o tempo, Regina e Helusia passam a se corresponder. Na verdade, Helusia escreve cartas, enquanto Regina envia apenas presentes e cheques, com uma ou outra fotografia ocasional – mas encontram-se pessoalmente apenas duas vezes. A primeira quando, aos 25 anos, Helusia descobre que Regina é sua mãe. A segunda 22 anos depois, quando Regina a convida para passar alguns dias em sua casa. Os dois encontros terminam com um surto angustiado de Regina, que em ambos os casos pede à filha que não venha mais vê-la, pois sua presença a faz reviver as aflições e o medo experienciados do passado. A estratégia textual de Krall, como dissemos, envolve um distanciamento no tom e um trabalho em torno de lacunas de informação e de pistas para decifrá-las – mecanismo que, como aponta Wolfgang Iser (1976), promove um novo nível de interação entre texto e leitor, tornando o processo de leitura mais ativo. Por um lado, isso faz com que o texto seja articulado de uma forma bastante distinta daquilo a que convencionamos chamar de reportagem. Isso porque as personagens não são indexadas no presente da forma costumeira, especialmente aquelas que mais provavelmente serviram de fonte a Krall. Não sabemos com que trabalham, como vivem, sua existência de modo mais amplo: só interessa ao texto seus papéis no desenvolvimento dessa trama central. Nesse sentido, chamam a atenção tanto os silenciamentos – um dos tipos de lacuna – quanto as pequenas pistas que podem nos levar a algumas conclusões. Uma dessas pistas surge quando Helusia confronta Regina pela primeira vez, e esta começa a repetir obsessivamente algumas frases, como “É verdade. Eu dei à luz a você. (…) Eu precisei. Eu tive que concordar com tudo. Eu queria viver. Não quero me lembrar do seu pai. Não quero me lembrar da110 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) quela época. Também não quero me lembrar de você.” Enquanto ouve, a filha desata a chorar (KRALL, 2005, loc. 155).67 Fica subentendido que a relação entre Jan e Regina não era consensual. Já os silenciamentos se colocam de forma mais marcada na ação das duas mães de Helusia e um dos primeiros exemplos podem ser vistos quando Barbara descobre o adultério de Jan: Num dia de verão, a esposa voltou das compras. O casaco de seu marido estava pendurado na antesala; ele tinha chegado do trabalho um pouco mais cedo do que o costumeiro. A porta do quarto da judia estava trancada. Certo dia de outono seu marido lhe disse: “Regina está grávida” (KRALL, 2005, loc.92, tradução nossa)68 Krall não evidencia textualmente aquilo que parece óbvio ao leitor. Em vez disso, o ocultamento da afirmação remete ao silêncio de Barbara sobre o assunto, mesmo antes de ser ameaçada pelo marido. Algo que é espelhado pelo comportamento de Regina, que só falava quando lhe dirigiam a palavra, e remete à opressão a que ambas estavam submetidas, seja por medo da perseguição nazista, seja por medo do marido ou, de forma mais ampla, da opressão e julgamento de uma sociedade machista. Em outro momento da reportagem, Helusia procura um escritório de advocacia para processar a mãe – os motivos não ficam claros. A altercação entre ela e seu advogado é também sustentada a partir de lacunas dialógicas – apenas a fala o advogado é reproduzida, enquanto as reações de Helusia podem ser intuídas: Antes de tudo, temos que provar que ela é sua mãe. Você tem testemunhas? Não? Bem, então veja… O depoimento da Sra. Barbara S. deveria ter sido gravado. Deveria ter sido notarizado. Agora tudo o que resta é um exame de sangue. Você está determinada a processá-la? Então por que veio procurar um advogado? (KRALL, 2005, loc.205, tradução nossa).69 67. No original: “It’s true. I gave birth to you (...). I had to. I had to agree to everything. I wanted to live. I don’t want to remember your father. I don’t want to remember those times. I don’t want to remember you, either.” (KRALL, 2005, loc. 155). 68. No original: “One summer day, the wife came home from shopping. Her husband’s jacket was hanging in the anteroom; he had come home from work a little earlier than usual. The door to the Jewess’ room was locked. One autumn day her husband said, “Regina is pregnant” (KRALL, 2005, loc.92)” 69. No original: “First of all, we have to prove that she is your mother. Do you have witnesses? No? Well then, you see. The testimony of Mrs. Barbara S. should have been recorded. It should have been notarized. Now all that remains is a blood test. Are you determined to sue? So why did you come to a lawyer’s office?” (KRALL, 2005, loc.205). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 111 A estratégia narrativa de Krall nos permite sentir e experienciar a opressão e o desespero – especialmente nas repetições obsessivas de frases por Regina – justamente por não dizer explicitamente que tal contexto era opressivo, que tal comportamento era desesperado. A interação do leitor com o texto por meio das lacunas e as conclusões que tiramos dele é que trazem o envolvimento com as situações e personagens. Svetlana Aleksiévitch: memórias, sentimentos Svetlana Aleksievitch nasceu em 1948 no oeste da Ucrânia. Formada em jornalismo pela Universidade de Minsk, Svetlana começou sua carreira na editoria de cartas no jornal das fazendas coletivas, Сельская Газета [ Jornal Rural]. Posteriormente trabalhou como repórter em outros jornais locais e como correspondente para a revista literária Неман [Neman]. Sua produção, conhecida principalmente nas terras eslavas, sempre foi voltada para as testemunhas de eventos dramáticos na ex-URSS e lhe rendeu prêmios como o Erich Maria Remarque Peace Prize, em 2001, o National Book Critics Circle Award, em 2006, e o Prémio Médicis Ensaio, em 2013, pelo O Fim do Homem Soviético (CORREIO BRAZILIENSE, 2015). Ao longo de sua carreira, Svetlana publicou seis livros. O mais recente é Время секонд хэнд [Tempo de segunda mão – publicado em português como Fim do homem soviético], de 2013. Nele, ela abordou a derrocada da União Soviética em diversas perspectivas, inclusive incluindo conteúdo do pequeno livro que escreveu em 1993, Зачарованные смертью [Encantados com a morte], no qual discutiu o suicídio de jovens soviéticos. Ela também publicou Чернобыльская молитва [Oração de Tchernóbil – publicado em português como Vozes de Tchernóbil] em 1997, que recolhia depoimentos dos envolvidos no desastre na usina nuclear. Em 1989 escreveu Цинковые мальчики [Rapazes de zinco] sobre a Guerra no Afeganistão de 1979 a 1989, com o título fazendo referência aos mortos que voltavam dos campos de batalha. Foi no ano de 1985 que lançou seus dois primeiros livros У войны не женское лицо [A guerra não tem rosto de mulher], seu livro de estreia, que tratava da perspectiva feminina da guerra e Последние свидетели: сто недетских колыбельных [Últimas testemunhas: cem cantigas nada infantis], um relato sobre crianças órfãs de guerra. Svetlana manteve a mesma estratégia de apuração e narrativa ao longo das suas publicações: colheu depoimentos, costurou todos eles numa colcha de 112 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) retalhos e gerou uma narrativa polifônica sobre a vida interior e não-oficial de acontecimentos traumáticos para a vida soviética. Na introdução de A Guerra não tem rosto de mulher, lemos trechos do diário de produção que revelam o pensamento por trás do processo criativo da jornalista e guiam a interpretação de seus livros. A escritora afirma que, durante a infância, ouviu das mulheres de sua vila, principalmente de sua avó e de sua mãe, uma versão sobre a guerra muito diferente daquela contada pelos livros, uma abordagem canônica repleta de palavras “masculinas”. Para ela, [...] a guerra “feminina” tem suas próprias cores, cheiros, sua iluminação e seu espaço sentimental. Suas próprias palavras. Nela, não há heróis nem façanhas incríveis, há apenas pessoas ocupadas com uma tarefa desumanamente humana. E ali sofrem apenas elas (as pessoas!), mas também a terra, os pássaros, as árvores. Todos os que vivem conosco na terra. Sofrem sem palavras, o que é ainda mais terrível (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.12). Para organizar um formato adequado que desse vazão a essas vozes caladas, Svetlana investiu nos depoimentos e criou uma esfera intimista que violou os entraves que supervalorizavam a versão histórica neutra para chegar naquela versão repleta de minucias e, segundo a jornalista, daquilo que é humano. Mais de uma vez me deparei com essas duas verdades convivendo em uma mesma pessoa: a verdade pessoal, relegada à clandestinidade, e a verdade geral, impregnada do espírito do tempo. Do cheiro dos jornais. A primeira raramente consegue ficar de pé diante da pressão da segunda (ALEKISÉVITCH, 2016a, p.133). Em seu trabalho, a memória adquiriu um importante papel enquanto recriação do passado e dos sentimentos. Mesmo atenta para os riscos de alteração, Svetlana afirma que a dor dos relatos aniquila a possibilidade de qualquer falseamento. Por isso passa a prestar atenção nas minúcias, nos sentimentos, naquilo que parece pequeno e humano, ao invés dos grandes feitos e do heroísmo. De um lado, o livro de Svetlana retratou as atrocidades da guerra, suas torturas e mutilações, a vida dos prisioneiros, o ódio, a morte e o estupro. O corpo a corpo que marcou a memória de diversas depoentes com os barulhos Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 113 dos ossos quebrando e a brutalidade do conflito. As dificuldades do inverno, dos serviços realizados... Do outro lado, vemos as minúcias, o amor, a vontade de usar vestidos e maquiagens, a inabilidade dos soldados em lidar com a menstruação, o vestido de noiva feitos de ataduras. O relato da mulher para quem ter que usar cuecas era a pior coisa da guerra, o contato com as flores, a terra e os animais. Todos esses fatores servem para estruturar o que Svetlana caracteriza como história dos sentimentos e da alma. No terceiro capítulo do livro, intitulado “Fui a única a voltar para minha mãe”, Svetlana vai ao encontro de Nina Iákovlevna Vichniévskaia, enfermeira-instrutora do Primeiro Batalhão da 32ª Brigada de Tanques do Quinto Exército. Nina participou de um dos maiores conflitos entre tanques, o embate de Prókhorovka, um enfrentamento de 1200 tanques de assalto entre o lado soviético e o alemão. No seu trajeto, encontra dois homens que lutaram no front. A visão deles demonstra na prática o que Svetlana introduziu em seu diário; eles enaltecem a visão oficia da história e menosprezam as mulheres e seus relatos. Em primeiro lugar, ao falar da guerra, os homens defendem a guerra sob a perspectiva da pátria, da Grande Ideia e de Stalin. Em seguida, um dos homens relata como recebeu duas mulheres em seu pelotão e as enxotou sob a premissa de que era trabalhoso e inútil adaptar o ambiente militar para elas e tê-las sob seu comando. Mesmo reconhecendo a importância das mulheres nos conflitos bélicos em toda a história da Rússia, os homens argumentam que se sentem culpados ao ver uma mulher dividindo o front com eles. Svetlana pergunta se elas não estavam salvando a pátria também, como qualquer soldado estava e um dos homens responde: “Isso mesmo, claro... Eu iria com uma mulher dessas numa missão de batedor, mas não me casaria com ela. Pois é... Estamos acostumados a pensar nas mulheres como mãe e noiva. A bela dama, enfim” e, no fim, afirma que “guerra é coisa de homem. O que foi, por acaso tem pouco homem sobre quem escrever no seu livro?” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p. 117). Depois de comentários breves sobre a importância da mulher na frente de batalha como mensageira e enfermeira, sobre Stalin e suas estratégias militares, eles culminam no assunto do amor na guerra. Ao perguntar se existia amor na guerra, Svetlana ouve dos homens que ele encontrou mulheres bonitas, mas não as enxergava como mulheres: durante a guerra elas eram irmãs. Mesmo assim, depois do fim do conflito, não conseguiam ficar com elas. Apesar da má 114 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) fama que alguns tinham delas, o homem afirma que “elas eram, em sua maioria, mulheres direitas. Puras. Mas depois da guerra... Depois da sujeira, depois dos piolhos, depois das mortes... A gente queria algo bonito. Claro. Mulheres bonitas...” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.119). Elas foram desprezadas pelos homens. Na continuação desse capítulo, como contraposição ao diálogo, Svetlana apresenta uma mulher “masculinizada” que conta a sua visão de guerra com todos os detalhes. Antes de encontrar a subtenente Nina, Svetlana recebe a sugestão de confirmar quaisquer informações no Conselho de Veteranos. Na casa de Nina, a jornalista é recebida com um aperto de mão e nota que a decoração e os livros são todos relacionados ao cenário bélico; as bonecas usam fardas, o papel de parede tem tons militares, os chifres de um alce seguram um capacete de tanquista. Depois do primeiro contato, Svetlana reflete sobre como é preciso se esforçar para acessar a memória pessoal e os sentimentos do indivíduo, especialmente nesses casos, onde a guerra deixou marcas tão profundas. Em seu relato, Nina prepara um texto que abandona, para falar da alma. Expõe como as meninas estavam eufóricas para entrar no exército, mas eram aceitas à contragosto. O depoimento começa quando Nina relata a curiosidade e o choque que permeavam as novatas do esquadrão. Descreve como teve que se esforçar para ser aceita na unidade de tanques devido à sua estatura baixa, 1,60m, e na dificuldade que isso acarretaria para o cargo – quando um soldado é ferido “você tem que arrastá-lo para fora pela escotilha. Você consegue puxar um rapaz desses? Sabe como são fortes são os tanquistas? Quando você tem que entrar no tanque, está sob fogo inimigo. (...) Você sabe como é quando um tanque pega fogo?” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p.123). Nina Vichniévskaia apresenta também preocupações estéticas e práticas acerca dos penteados e dos uniformes militares feitos exclusivamente para as medidas masculinas, situações que se repetem ao longo do livro. Além disso, ela relata as dificuldades de se adaptar ao sistema militar. “Para nós, meninas, tudo no Exército era complicado. Achávamos muito difícil entender os sinais de distinção. Quando chegamos ainda existiam losanguinhos, cubinhos, tracinhos, e tinha que deduzir qual era a patente”. No fim, “não gravávamos quem era tenente, quem era capitão, gravávamos outras coisas: se era bonito ou feio, ruivo ou alto” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p.127). Nina também comenta sobre o a amor, quando descreve o relacionaDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 115 mento entre sua amiga e outro soldado, e sobre a descoberta da sexualidade, quando um tenente se insinua para ela antes de um ataque perigoso. De todas as suas amigas, descritas como mais aptas, Nina foi a única a voltar para sua mãe. Por fim, recita de maneira inesperada um poema que escreveu na frente de batalha: Uma moça ousada subiu na blindagem Estava defendendo sua pátria. Não se importava com balas, ou com estilhaços Ardia o coração daquela moça. Lembre-se, amigo, de sua beleza modesta, Quando ela for carregada sobre um pedaço de lona... (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.131). Por fim, conclui o relato refletindo sobre o porquê de ter ficado viva: “Por que fiquei viva? Para quê? Eu acho… Eu entendo que foi para contar isso…” (ALEKSIÉVITCH, 2016a, p.132). A pressão que a versão hegemônica e canonizada dos fatos faz é forte. Assim como outras mulheres ao longo do livro, Nina escreveu para Svetlana pedindo que algumas passagens fossem suprimidas sob a preocupação de que sua imagem de heroína ruísse. Em Vozes de Tchernóbil, Svetlana adota uma forma textual que a princípio parece derivar da que Kapuściński empregara em obras como Cesarz [O Imperador], com o uso de longos depoimentos de seus entrevistados. No entanto, Kapuściński costura os depoimentos com outros longos trechos narrativos em que sua voz autoral se faz sentir. Já Aleksiévitch, com seu estilo mais consolidado e com uma produção menos suspeita, indexa sua presença em alguns poucos momentos em que os entrevistados de dirigem diretamente a ela e em um pequeno capítulo – “Entrevista da autora consigo mesma sobre a história omitida e sobre por que Tchernóbil desafia a nossa visão de mundo”. Em seu escopo mais amplo, o livro é uma coletânea de monólogos de testemunhas não da explosão do quarto reator da usina nuclear de Tchernóbil, próxima à fronteira da Ucrânia com a Bielorússia, mas da disrupção de vidas causada pela explosão e pela contaminação nuclear. São monólogos de agricultores, médicos, aldeões, parteiras, engenheiros, liquidadores, jornalistas, professores de pequenas vilas, pais e mães, esposas e maridos, pessoas deslocadas de seus lares à força ou que continuaram a residir em zonas contaminadas. Num escopo mais amplo, está em jogo no livro a voz da ideologia do cotidiano (BAKHTIN, 2012), da voz e dos valores populares que escapam e por vezes se chocam com as instituições de poder adminstrativo, coercitivo e científico; 116 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) mesmo os especialistas ouvidos cumprem ali menos o papel de analistas do que o de testemunhas, de sujeitos ativos em meio ao caos. O livro se abre com “Uma solitária voz humana”, monólogo de Liudmila Ignátineko, esposa de um dos bombeiros chamados para apagar o incêndio na usina e selar o reator, de modo a evitar que os danos se agravassem ainda mais. A narrativa é pontuada o tempo todo por omissões do poder público e de agentes em posições de chefia: seu marido, Vassíli, foi convocado para apagar o que acreditava ser um incêndio comum e enviado, como seus companheiros, sem qualquer proteção contra a radiação, sofrendo exposição a uma dose de radiação quatro vezes superior à considerada letal. A falta de cuidados se estendeu aos profissionais de saúde do primeiro hospital onde os bombeiros receberam tratamentos: “Muitos médicos, enfermeiras e, sobretudo, as auxiliares daquele hospital, depois de algum tempo, começaram a adoecer. Mais tarde morreriam. Mas na época ninguém sabia disso...” (ALEKSIÉVITCH, 2016b, loc. 141). A situação de confusão e desinformação se agrava quando aliada à presença estranha e opressiva do exército, lavando as ruas com um estranho pó branco e portando máscaras de gás. Logo a ação do poder público se torna ainda mais autoritária quando os bombeiros são deslocados à força para Moscou – operação realizada pelas costas de seus familiares, não muito distante de um sequestro: À noite, já não me deixaram entrar no hospital. Havia um mar de gente ao redor… Fiquei em pé debaixo da janela da enfermaria; ele se aproximou e gritou alguma coisa para mim. Parecia desesperado! Alguém na multidão entendeu o que ele disse: seriam levados àquela noite para Moscou. Todas nós, esposas, nos juntamos. Decidimos: vamos com eles. “Que nos deixem ir com os nossos maridos! Vocês não têm direito!” Lutamos, nos atracamos com os soldados, que já haviam formado um cordão duplo e nos empurravam. Foi então que um médico surgiu e confirmou que os doentes seriam levados de avião para Moscou, e que seria preciso roupas para eles, pois as usadas na central haviam sido queimadas. Os ônibus já não circulavam, então atravessamos a cidade correndo. Quando finalmente voltamos com as sacolas, o avião já tinha partido. Fomos enganadas de propósito. Para evitar que chorássemos, que gritássemos. (ALEKSIÉVICH, 2016b, loc. 157) Liudmila conseguiu se deslocar até Moscou com os sogros – embora não se recorde do caminho – e localizou a clínica de radiologia onde os bomDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 117 beiros haviam sido alocados; para entrar e rever o marido, precisou subornar um vigia e ocultar a gravidez. Ali, abraçou-o o quanto pôde; enfermeiros e médicos procuravam afastá-la dele, mas demoraram a explicar o porquê – “Isso já não é um homem, é um reator nuclear. Vão queimar os dois” (ALEKSIÉVICH, 2016b, loc. 326) – e testemunhou seu definhamento, o descolamento de mucosas e da pele; ao final, perdeu também a filha que estava gestando. Esse monólogo, como os demais, retrata de forma pulsante o drama de Tchernóbil não em suas dimensões ambientais, mas como tragédia pessoal e psicológica. Reflexões sobre estilo e voz autoral Destaca-se as estratégias textuais distintas das autoras. Em A Guerra Não tem Rosto de Mulher quanto em Vozes de Tchernóbil a operação do texto de Aleksiévitch se dá por meio de cenas mais longas e descritas com maior riqueza de detalhes, promovendo o testemunho virtual dos acontecimentos (KNORR-CETINA, 1999; HARTSOCK, 2015) – a possibilidade de imergir na narrativa e imaginar-se parte dela, experienciar os acontecimentos como se fosse testemunha ocular deles, envolver-se emocionalmente. Krall, ao contrário, promove um distanciamento entre texto e leitor: a fruição de suas reportagens se dá numa via mais analítica do que passional. A distinção pode ficar mais clara ao se observar duas passagens em que ambas tratam de eventos semelhantes – o afogamento de uma crianças faminta e o abandono de outra em meio à rua e à perseguição pelas tropas nazistas. O trecho de Svetlana integra o capítulo “Da conversa com o Censor que diz” em A guerra não tem rosto de mulher: Existe um trecho na Svetlana, esse aqui no “Alguém nos entregou… Os alemães descobriram onde ficava o acampamento dos partisans. Cercaram a floresta e fecharam as passagens por todos os lados. Nos escondemos em um matagal fechado, fomos salvos pelos pântanos onde a tropa punitiva não entrava. Um lodaçal. Ele encobria muito bem tanto as pessoas quanto os equipamentos. Passamos alguns dias, semanas, com água na altura do pescoço. Havia conosco uma operadora de rádio que tivera um filho havia pouco tempo. A criança estava com fome… Pedia o peito. Mas a própria mãe estava passando fome, não tinha leite, e a criança chorava. Os soldados da tropa punitiva estavam por perto… Tinham cachorros… Se os cachorros escutassem, todos nós morreríamos. Todo o grupo, umas trinta pessoas. Entende? 118 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) O comandante tomou a decisão… Ninguém se animava a transmitir a ordem para a mãe, mas ela mesma adivinhou. Foi baixando a criança enroladinha para a água e segurou ali por um longo tempo… A criança não gritou mais… Nenhum som… E nós não conseguíamos levantar os olhos. Nem para a mãe, nem uns para os outros…” (ALEKSIÉVITCH, 2016, p.32) Já o trecho de Krall – um depoimento longo, atípico em sua abordagem – faz parte da reportagem Dybuk [The Dybbuk, tradução nossa70], selecionada do livro Dowody na istnienie [Provas de existência, tradução nossa] para a coletânea The Woman from Hamburg and other true stories: Sim, numa conversa ao telefone. Ele estava vivendo em Iowa; liguei para ele quando cheguei em casa. Achei que não fosse acreditar em mim, que ao menos ficaria surpreso, mas não se surpreendeu nem um pouco. Ele me escutou calmamente e depois disse: “Eu sei o que é esse choro. Quando o atiraram para for a do esconderijo ele ficou na rua e chorou bem alto. Era aquele choro – o choro da minha criança que foi jogada na rua.” Era a primeira vez que falei com meu pai sobre meu irmão. Ele tinha um coração fraco e eu não queria chateá-lo. Eu sabia que meu irmão tinha morrido, como todos os outros; o que mais eu teria para perguntar sobre isso? Agora descobri que o menino estava escondido em algum lugar com a mãe, a primeira esposa de meu pai, junto com mais ou menos uma dúzia de outros judeus. Não sei onde, se foi no gueto ou no lado ariano. Às vezes imagino uma cozinha com pessoas amontoadas. Elas estaavm sentadas no chão, tentando não respirar. Ele começou a chorar. Elas tentaram silenciá-lo. Como se acalma uma criança que chora? Com doces? Com brinquedos? Eles não tinham nada disso. Seu choro ficou mais e mais alto, e as pessoas amontoadas no chão estavam todas pensando a mesma coisa. Alguém sussurrou: “Vamos todos morrer por causa de uma criancinha.” Ou talvez não fosse uma cozinha. Talvez fosse um porão, um bunker. Meu pai não estava com eles; somente ela estava presente, a mãe de Abram. Ela ficou com os outros. Ela sobreviveu. Ela foi morar em Israel, talvez ainda esteja lá, eu não perguntei, eu não sei… Meu pai morreu. (KRALL, 2005, loc.1521, tradução nossa)71 70. No folclore judeu, existe um espírito humano que vagueia pelo mundo em busca de um refúgio no corpo de alguém vivo devido aos pecados cometidos na vida pregressa. Esse espírito é conhecido como Dybbuk ou Dibbuk. 71. No original: “Yes, in a phone conversation. He was living in Iowa; I called him after I got back home. I thought he wouldn’t believe me, that at the very least he’d be taken aback, but he wasn’t taken aback at all. He listened calmly, and then he said, “I know what that cry is. When they threw him out of the hiding place he stood in the street and cried loudly. That was the cry—the cry of my child who was thrown out into the street.” This was the first time I had talked with my father about my brother. Father had a weak heart; I didn’t want to upset Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 119 Para além disso, Krall segue também na contramão de um dos valores básicos da narrativa do jornalismo literário, a que mais a ancora à prática da reportagem: a precisão de dados; porém, como afirmamos, utiliza a imprecisão como trunfo ao promover uma interação mais ativa entre texto e leitor: as informações continuam ali, mas não de forma evidente – por vezes é preciso garimpá-las, por vezes intui-las. O mundo que reconstrói textualmente é um complexo mosaico em cacos no qual cabe ao processo de leitura reunir os pedaços e lhes conferir sentido. A omissão de informações – entre indivíduos, entre pessoas e instituições – desponta como tema comum às duas repórteres: personagens femininas, principalmente, aparecem atiradas a um mundo que não se esforça por integrá-las, por lhes inteirar dos acontecimentos, que muitas vezes lhes omite o essencial; elas, por sua vez, precisam silenciar e omitir informações para sobreviver. A partir dessa representação a história das mulheres eslavas parece ser, por um lado, a narrativa de seu apagamento pelas sociedades machistas – o apagamento de sua experiência, de suas conquistas e lutas tanto quanto de sua opressão – e, por um lado, a de seu silenciamento frente às dinâmicas sociais em que já se antecipa que seriam apagadas e caladas. Na materialidade da reportagem, Svetlana Aleksiévitch busca responder ao silenciamento com voz, com informação – suas obras parecem ter como missão o preenchimento dos vazios de informação, completar um mosaico mais complexo. Parecem acreditar no poder do jornalismo para mudar o registro da História, para revelar o que está oculto, para atribuir novo sentido e entendimento aos eventos. Hanna Krall, por outro lado, não acredita na solução e no preenchimento das lacunas, na ordenação lógica dos acontecimentos – o que, como vimos, tornaria as histórias inverídicas a seus olhos. Em vez disso, registra os silêncios na trama e em seu próprio estilo: em vez de propor seu trabalho de reportagem como contraponto ou solução para os silenciamentos – especialmente os silenciamentos de mulheres –, sua preocupação maior é a de registrar como se dão as interações humanas em torno do silêncio. Nesse him. I knew that my brother had died, like everyone else; what more was there to ask about? Now I found out that the boy had been hidden somewhere with his mother, my father’s first wife, along with a dozen or so other Jews. I don’t know where, if it was in the ghetto or on the Aryan side. Sometimes I picture a kitchen and people crowded together. They were sitting on the floor, trying not to breathe. He started crying. They tried to quiet him. How do you calm a crying child? With candy? A toy? They didn’t have toys or candy. His crying grew louder and louder, and the people crowded together on the floor were thinking the same thought. Someone whispered: “We’re all going to die because of one little kid.” Or maybe it wasn’t a kitchen. Maybe it was a cellar, or a bunker. My father wasn’t with them; only she was, Abram’s mother. She stayed with the others. She survived. She settled in Israel, maybe she’s still living there, I didn’t ask, I don’t know.… My father died.” (KRALL, 2005, loc.1521) 120 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sentido, sua proposta de jornalismo literário aproxima-se mais ao campo da literatura ao exigir do leitor que indague e faça inferências em torno dos ingredientes ausentes, em vez de lhe entregar a refeição completa (ISER, 1976). Referências ALEKSIÉVITCH, S. A Guerra Não Tem Rosto de Mulher. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. ALEKSIÉVITCH, S. Vozes de Tchernóbil: a história oral do desastre nuclear. São Paulo: Companhia das Letras, 2016a. (ebook) BAKHTIN, M. O Freudismo. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2012. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. CHKLOVSKI, V. A arte como procedimento. In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura – Textos dos formalistas russos. São Paulo: Editora Unesp, 2013. CORREIO BRAZILIENSE. Quem é Svetlana Alexijevich? Conheça a vencedora do Nobel da Literatura. Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/ noticia/diversao-e-arte/2015/10/08/interna_diversao_arte,501775/conheca-a-bielorussa-que-venceu-o-premio-nobel-de-literatura.shtml>. Publicado em: 8 out. 2015. Acesso em: 29 mai. 2018. CULTURE.PL. Hanna Krall. Disponível em: <https://culture.pl/en/artist/hannakrall>. Acesso em: 27 mai. 2018. HARTSOCK, J. C. Literary journalism and the aesthetics of experience. Amherst: University of Massachussetts Press, 2015. ISER, W. Der Akt des Lesens: theorie asthetischer Wirkung. München: Wilhelm Fink, 1976. KNORR-CETINA, K. A comunicação na ciência. In: GIL, Fernando (Org.). A ciência tal qual se faz. Lisboa: Edições João Sá da Costa, 1999, p. 375-393. KRALL, H. The Woman from Hamburg and other true stories. New York: Other Press, 2005. (ebook) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 121 LIMA, E. P.; MARTINEZ, M. Eliane Brum: new star in Brazil’s Literary Journalism firmament. In: KEEBLE, R. L.; TULLOCH, J. (Orgs.). Global Literary Journalism v.2 – exploring the journalistic imagination. New York: Peter Lang, 2014, p. 171-181. MARTINEZ, M. Jornalismo literário: tradição e inovação. Florianópolis: Insular, 2016. OGIOLD, K. Mózg to jest przereklamowany organ. Nowa Trybuna Opolska, 2 nov.2001. Disponível em: <http://www.nto.pl/artykuly-archiwalne/art/3948257,mozg-to-jestprzereklamowany-organ,id,t.html>. Acesso em: 27 mai. 2018. PASSOS, M. Y. De fontes a personagens: definidores do real no jornalismo literário. In: SOSTER, D. A.; PICCININ, F. (Orgs.). Narrativas midiáticas contemporâneas: perspectivas epistemológicas. Santa Cruz do Sul: Catarse, 2017, p. 86-97. RICHARDS, I. A. Practical criticism. London: Routledge, 2017. SIMS, N. True Stories: a century of literary journalism. Evanston: Northwestern University Press, 2007. WOLFE, T. Radical chique e o Novo Jornalismo. 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Por outro lado, já apontavam para a possibilidade de consolidação desta relação, especialmente a partir de trabalhos de discentes de pós-graduação, disposição esta que parece estar se concretizando não apenas com a defesa de teses e dissertações, mas com o aparecimento de congressos específicos e dossiês temáticos na área da comunicação, bem como a incorporação dessa temática em congressos tradicionais. Também no âmbito profissional o universo das questões de gênero tem se feito presente, como indicam as campanhas contra o assédio, como o #deixaelatrabalhar, ou #jornalistasContraoAssédio, denunciando as contradições de uma profissão cada vez mais feminilizada (MICK e LIMA, 2013). Apesar deste movimento, um olhar exploratório inicial indica que as pesquisas ainda são tímidas ao enfocar as relações de gênero a partir de uma perspectiva interseccional (CRENSHAW, 2002), tão cara à boa parte da produção do campo dos Estudos de Gênero no Brasil e na América Latina. Este artigo problematiza esta relação, investigando a produção discursiva na interface Jornalismo e Estudos de Gênero nos principais periódicos dedicados especificamente aos Estudos de Jornalismo (Brazilian Journalism Research e Estudos de Jornalismo e Mídia). Com isso espera-se não apenas identificar esta ausência, mas especialmente indicar teoricamente a importância e necessidade desse aporte para o enfrentamento das desigualdades que se perpetuam, atravessadas pelas construções de gênero. Palavras-chave: Jornalismo; Estudos de gênero; Interseccionalidade; Raça-etnia; Classe social. 72. Cláudia Lago é professora da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA-USP. Email: claudia.lago07@usp.br 73. Evelyn Kazan é mestranda do PPGCOM da ECA-USP. Email: evelynmkazan@gmail.com 74. Manuela Thamani é mestranda do PPGCOM da ECA-USP. Email: manuelathamani@gmail.com 124 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Gênero e jornalismo: ainda uma tênue relação? Em 2016, Martinez, Lago e Lago apontavam para uma tênue relação entre os estudos de gênero e os estudos em Jornalismo. Analisando o banco de dados da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), de 2003 a 2014, constataram apenas cinco trabalhos que se referenciavam em alguma medida no sólido campo dos estudos de gênero. Posteriormente, Lago e Martinez (2017) analisaram trabalhos publicados de 2014 a 2016 nas revistas A2 da área. Desta feita o objetivo foi ampliar para a Comunicação como um todo e o foco foi o perfil de pesquisadores/as que se dedicaram à temática. Neste levantamento, encontraram 13 artigos que se relacionam com os estudos de gênero, envolvendo 17 pesquisadores/as, especialmente das regiões Sul e Sudeste. Perceberam também a predominância de artigos de alunos/as de pós-graduação em parceria com orientadores/as, estes/as últimos/as muitas vezes com pouca trajetória nestes estudos. Significativo também é a presença de estudos que parecem ser tangenciais aos/as autores/as e não seu foco principal de interesse. Lago e Nonato (2017), analisando novamente a base de dados da SBPJor, desta vez os trabalhos apresentados nas comunicações livres dos congressos anuais da entidade, no período de 2014 a 2016, também apontam para a pouca presença desta relação entre pesquisa em jornalismo e questões de gênero. Mais ainda, identificam a quase inexistência, neste ambiente, de pesquisas que tragam à baila as questões étnico-raciais. Até aquele momento, portanto, pesquisas sobre a mídia em geral e o jornalismo especialmente, não se detinham de forma significativa em relação às questões de gênero. Este quase silenciamento tem o efeito de se tornar gritante, se pensarmos que o Jornalismo é uma poderosa “tecnologia de gênero” (DE LAURENTIS, 1994; BENTO, 2010) que não apenas representa, mas opera a construção e circulação de representações de grupos, identidades, valores, com a visibilização de temas e sujeitos e invisibilização de outros. Que constrói versões naturalizadas de “homem/masculino”, “mulher/feminino”, das sexualidades possíveis e “corretas”, das formas de viver aceitáveis – e as não aceitáveis. Dos corpos “certos” e dos corpos desviantes, em todas as direções possíveis. E dos lugares aceitáveis para sujeitos e seus corpos, certos e errados75. 75. Corpos negros, por exemplo, em uma sociedade racista como a nossa, são pouco aceitáveis em inúmeros espaços, devendo se restringir aos espaços da marginalidade; assim como corpos feminilizados também devem ser contidos – em que pese que as contenções variam a partir de recortes outros, como raça e classe. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 125 Esta invisibilidade, no entanto, há pouco tempo tem se rompido com a explosão de pesquisas e do interesse pelos estudos de gênero e sexualidade, em movimento que os trabalhos anteriores citados já haviam antevisto. A discussão furou o telhado de vidro (com o perdão da metáfora) das pesquisas e ganhou amplitude, como pode-se observar, por exemplo, dentro de importantes congressos da área, que adotam a temática, ou a tangenciam, em seus encontros anuais (SBPJor 2017 e 2018, Abrapcorp 2018, Intercom 2018). Além disso, as pesquisas passam a ser visíveis também em periódicos importantes da área, que ou aderem diretamente ao tema, como a Brazilian Journalism Research, edição 2018/1, cujo dossiê foi “Gênero e Jornalismo”, ou, ao tratarem temas relacionados, abrem espaço para as discussões, como a Revista Matrizes, que no volume 10, número 3, de 2016, traz um tributo a Stuart Hall que discute a aproximação do feminismo junto aos Estudos Culturais. Este “boom”, se é que podemos assim denominá-lo, também pode ser notado nos diversos congressos da área76 que, nos mais variados níveis (da graduação à pós), têm observado um crescente em propostas que entrecruzam gênero, sexualidades e mídia e especificamente, gênero, sexualidades e jornalismo. Nesse caso, a maioria dos trabalhos parece ser de alunos/as e não de pesquisadores/as com carreiras consolidadas, salvo algumas importantes exceções que há anos dedicam-se ao cruzamento gênero e mídia. Mas esta onda provoca movimentos nos espaços de pesquisa, estimulando orientadores/as a incorporar essas perspectivas e obrigando a imersões para manter o diálogo com seus/ as orientandos/as. Como toda onda, no entanto, esta aponta para um futuro indefinido. Será que os estudos se consolidarão e ampliarão o escopo teórico-metodológico, assumindo a necessária relação com os estudos de gênero e sexualidade, tão importantes em outros campos de pesquisa no Brasil77? Em termos atuais, qual a feição destes estudos quando realizados em relação com a Comunicação? E com o Jornalismo em particular? Neste capítulo, pretendemos avançar na resposta à última indagação, partindo de um pressuposto: o de que as pesquisas são ainda tímidas em abraçar certas perspectivas dos Estudos de Gênero e Sexualidade e, especialmente, bastante incipientes ao incorporar a mirada interseccional, tão cara a estes es76. Esta afirmação está ancorada na percepção de uma das autoras (Lago), a partir de sua vivência como organizadora e parecerista de eventos científicos e publicações. É um tipo de “empiria selvagem”, termo cunhado por Heloisa Buarque de Almeida, renomada pesquisadora dos estudos de gênero, que, se não pode ser tomada como dado de pesquisa, tem sua validade como orientador de percepção e subsídios para hipóteses de trabalho. 77. Para pensar a produção em gênero e sexualidades no país, a partir dos dados da mais antiga publicação devota a esse campo, a Revista Estudos Feministas, ver Lago e Uziel, 2014. 126 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) tudos atualmente. Apesar de Ann Phoenix e Pamela Pattynama (2006) terem apontado nos anos dois mil que “interseccionalidade, é certamente uma ideia em processo de florescimento”, passada mais de uma década, observamos que interseccionalidade ainda é uma perspectiva analítica pouco aprofundada ao que tange os estudos de gênero no campo da comunicação e do Jornalismo em especial. Para pensar sobre isso nos debruçamos na produção sobre gênero nos dois principais periódicos dedicados às pesquisas em Jornalismo (Qualis B1), a Brazilian Journalism Research (BJR), editada pela SBPJor, e a revista Estudos em Jornalismo e Mídia (EJM), editada pelo Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Iniciamos a análise, contudo, indicando a perspectiva interseccional e o porquê de sua essencialidade. A perspectiva interseccional O termo interseccionalidade é atribuído à teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989), reconhecida por ter cunhado o conceito na década de 80. No entanto, a preocupação em interseccionar questões de gênero e étnico-raciais é bem anterior, sendo um dos seus marcos simbólicos o ano de 1851, no qual Sojourner Truth, mulher negra, fez seu famoso discurso intitulado “Não sou eu uma mulher?”, em uma convenção de direitos das mulheres em Akron, Ohio. Com pensamento contundente, ela diz: Aquele homem ali diz que é preciso ajudar as mulheres a subir numa carruagem, é preciso carregar elas quando atravessam um lamaçal e elas devem ocupar sempre os melhores lugares. Nunca ninguém me ajuda a subir numa carruagem, a passar por cima da lama ou me cede o melhor lugar! E não sou uma mulher? Olhem para mim! Olhem para meu braço! Eu capinei, eu plantei, juntei palha nos celeiros e homem nenhum conseguiu me superar! E não sou uma mulher? Eu consegui trabalhar e comer tanto quanto um homem – quando tinha o que comer – e também aguentei as chicotadas! E não sou uma mulher? Pari cinco filhos e a maioria deles foi vendida como escravos. Quando manifestei minha dor de mãe, ninguém, a não ser Jesus, me ouviu! E não sou uma mulher? 78 Truth, já naquela época, estabelecia uma linha divisória que evidenciava que as mulheres, em que pesem serem oprimidas dentro das estruturas patriarcais, sofrem opressões de ordens distintas conforme outros importantes mar78. GELEDES.Sojourner Truth. Disponível em:<https://www.geledes.org.br/sojourner-truth/>. Acesso em: 24 mai.2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 127 cadores sociais. No caso, a raça. Contextualizando a luta pelos direitos das mulheres, Angela Davis (2016) reforça que à época do discurso proferido por Truth as mulheres negras já “aspiravam ser livres não apenas da opressão racista, mas também da dominação sexista” (DAVIS, 2016, p.70). Ainda em seu debate exploratório e acadêmico, Davis (2016) nos mostra a evolução das nuances das opressões, em que apresenta a necessidade de se considerar a intersecção de raça, classe e gênero para ler e interpretar a realidade. Nessa perspectiva, declara que não existe hierarquização das opressões, e assim, mesmo sendo marxista, refuta o pensamento da esquerda ortodoxa, que defende a primazia da questão de classe sobre as demais opressões. É ampla a contribuição das mulheres negras feministas estadunidenses para pensarmos as mulheres não como categoria única, e sim partindo de diferentes quadrantes. Esse debate não está, contudo, restrito a pesquisadores do hemisfério norte. A pensadora feminista brasileira Lélia Gonzalez (1984), em seu exercício de olhar a interseccionalidade para a construção de narrativas acadêmicas, nos apresenta uma discussão muito provocativa sobre opressão de saberes como produto de classificação racial da população. A autora explora como os privilégios social e racial podem gerar uma produção de conhecimento que é calcada em um racismo estrutural. Ou seja, uma contaminação do racismo estrutural no que é produzido enquanto reflexão científica sobre a sociedade, promovendo assim problemas epistêmicos. Gonzalez (1984) refletiu sobre o modo pelo o qual os estereótipos ocorrem em relação à identificação das mulheres negras na sociedade: mulata, doméstica, mãe preta. E nesse sentido, produz discursos desestabilizadores da epistemologia dominante, estabelecendo um diálogo com os trabalhos de Linda Alcoff, que também atua na construção de uma epistemologia contra-hegemônica. Em “Uma epistemologia para a próxima revolução”, Alcoff (2016) realiza um debate crítico em torno do qual contesta um certo domínio da discursividade ocidental, que vai desconsiderar os conhecimentos das parteiras, o saber médico dos povos colonizados, e mesmo a própria ontologia dos povos originários, questionando provocativamente a universalidade deste pensamento: É realístico acreditar que uma simples “epistemologia mestre” possa julgar todo tipo de conhecimento originado de diversas localizações culturais e sociais? As reivindicações de conhecimento universal sobre o saber precisam no mínimo de uma profunda reflexão sobre sua localização cultural e social. (ALCOFF, 2016, p.131) 128 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A perspectiva interseccional aponta para a necessidade de se perceber, em cada momento ou aspecto analisado, o cruzamento de várias discriminações e opressões que incidem sobre os sujeitos. O exemplo mais claro, sempre evidenciado, é o das mulheres negras, que sofrem o racismo e o sexismo. Mas outras vias podem se cruzar nesse processo, como a idade, o local de origem, a sexualidade – entrecruzamentos que criam realidades muito complexas e que precisam ser olhados nessa complexidade, sob pena de não se perceber fatores intervenientes que aguçam a vulnerabilidade dos sujeitos e dos grupos identitários. A interseccionalidade, definida por Crenshaw (1989) como a interdependência das identidades e relações de poder é uma condição na nossa constituição como seres humanos. Não somos somente homens ou mulheres, mas também trans ou cis; idosos, adultos ou jovens; nos encontramos em determinada classe social; entre outras tantas dimensões da diversidade. A definição de Crenshaw dialoga com Hall (1987), que conceitua esse sujeito que «assume identidades diferentes em diferentes momentos» como sujeito pós-moderno, que vai se caracterizar, ainda segundo Hall, por não ter uma identidade fixa. Parafraseando Beauvoir (1980), com o intuito de desestabilizarmos os “amadores de fórmulas simples”, a interseccionalidade é elemento fundamental a ser desenvolvido na práxis e na teoria, se almejamos explicitar as muitas possibilidades de composição de narrativas dos sujeitos sobre si e sobre o mundo. Essa é uma perspectiva que pode propiciar a construção de um olhar mais elaborado no campo da pesquisa científica. Em seguida, portanto, passamos a tentar identificá-la no corpus selecionado para análise. Análise dos artigos na BJR e EJM Como indicado anteriormente, selecionamos estes dois periódicos por sua centralidade na publicização das pesquisas em Jornalismo no Brasil. Com o auxílio das ferramentas de busca dos sites depositários do banco de dados dos periódicos, pesquisamos o aparecimento da palavra “gênero” em todos os indicadores de busca no período de 01 de maio de 2015 a 01 de maio de 2018. Com isso, obtivemos quatro textos na EJM e quatorze textos na BJR. Utilizamos apenas a palavra “gênero” porque nos interessava textos que estivessem realmente colados a essa perspectiva. Dos dezoito textos encontrados em um primeiro momento, excluímos três por não tratarem de gênero relativo aos Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 129 estudos de gênero, e sim à categorização de tipos de produção jornalística. Com isto obtivemos um texto na EJM e quatorze textos na BJR. A desproporção deve-se ao fato da BJR ter publicado, em abril de 2018, um Dossiê específico sobre Gênero e Jornalismo, com doze textos. A tabela abaixo indica os textos e autores/as a publicação e a data e traz um pequeno resumo do texto: Tabela 1 – Sistematização dos dados 130 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 131 Fonte: As autoras. Apesar de não ser objeto do texto presente, algumas inferências da tabela podem ajudar a contextualizar o momento. A primeira é a tendência de crescimento em importância da temática, e o do Dossiê da BJR pode ser percebido como reflexo disso. Apesar da constatação de trabalhos de pesquisadores/ as do nordeste e centro-oeste, e dois internacionais (Portugal e Burkina Faso), a maioria dos trabalhos é de pessoas do eixo sul-sudeste. Dos 15 trabalhos analisados, oito são de pesquisadores/as, em carreiras em diversos estágios de consolidação, que têm desenvolvido pesquisas junto aos estudos de gênero, enquanto os outros sete são produtos de parcerias entre pesquisadores/as com aderência ao campo e outros/as, sendo que destes cinco são produtos de relações de orientação. A partir da seleção dos textos, realizamos uma leitura exploratória em cada um deles, buscando perceber as marcas de uma mirada interseccional. Tendo como horizonte metodológico a análise de conteúdo aos moldes de Bardin (2011), no entanto não nos detivemos em todos os processos sugeridos pela autora, basicamente nos restringindo à leitura flutuante que nos permitiu uma interpretação dos textos a partir de sua lógica interna. Observa-se que os focos dos artigos são bastante variados, bem como as construções teóricas e metodológicas postas em circulação. Também são distintos em sua aderência ao campo dos estudos de gênero, com alguns em bastante diálogo, como o exemplo de Minas de Luta na Mídia: Enquadramentos e Percepções das Ocupações Escolares em São Paulo, e outros muito pouco, ainda dentro de uma perspectiva anterior, mais relacionada aos estudos sobre mulheres79, como é o caso do texto O discurso das mulheres fotojornalistas ou ainda 79. Há uma larga bibliografia sobre a construção do campo de estudos de gênero. Martinez, Lago e Lago (2016), citado, fazem alguns apontamentos nesta direção 132 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de Gênero e Mídias: autópsia de um jornalismo feminino em Burkina Faso. Em relação à adoção da perspectiva da interseccionalidade, esta diversidade também aparece com extremos, como o texto Ativismo Digital Materno e Feminismo Interseccional, que tem a discussão como mote e o uso de bibliografia tradicional destes estudos, contrapondo a textos que ignoram a questão: Respeita as minas!; Gênero e mídias: autópsia de um jornalismo feminino em Burkina Faso; A dispersão dos sentidos acerca da “lei anti-homofobia” nos jornais brasileiros; O discurso das mulheres fotojornalistas. O texto Minas de luta na mídia, por sua vez, parte da discussão de gênero no contexto da interseccionalidade e pontua ao analisar a ausência da voz das meninas: “A ausência de voz parece ser ainda mais saliente – em razão inversa às situações de repressão documentadas pela mídia – quanto às jovens negras. Convém lembrar que a discussão de gênero, no contexto do qual falamos, deve considerar a interseccionalidade como importante variável…” (CASTILHO, ROMANCINI, 2018 p. 299), e especialmente no grupo focal, ressaltarem a perspectiva de estudantes negras e suas falas sobre a invisibilidade. De forma semelhante, no texto Direitos reprodutivos e jornalismo interroga-se sobre intersecções, como expresso pelo trecho seguinte, em que se analisa a cobertura da revista IstoÉ: “Em uma visão geral, é possível classificar a abordagem da revista como positiva quanto à importância dos direitos civis das mulheres e da igualdade de gênero. A narrativa é construída sob posicionamentos de mulheres da sociedade, incluindo a temática de raça” (CARDOSO, ROCHA e LIMA, 2018, p.174). Outros textos, apesar de não se referirem diretamente à bibliografia que aponta para a perspectiva interseccional, a colocam como um pano (talvez um véu) de fundo. É o caso de Muita cena e pouca comunicação política?, em que a perspectiva aparece somente em um momento, e como caráter problematizador da Marcha das Vadias, na menção: “Marcha das Vadias não é consensual entre as feministas...de um lado o feminismo interseccional, de outro o posicionamento pautado na teoria queer” (PRUDENCIO, RIZZOTTO E SILVA, 2016, p.97). As autoras não discorrem sobre interseccionalidade para além dessa constatação da não unanimidade. Ou o caso de “Um Jornalismo Sui Generis”, em que a intersecção gênero e sexualidade aparece a partir de problematização explícita no corpus analisado quando, em alguns momentos, as leitoras lésbicas questionam a revista por voltar-se universalmente ao público gay, mas, na prática, enquadrar apenas gays homens80, ou seja, evidenciando 80. Em uma discussão que até hoje perpassa o movimento, sobre a pouca visibilidade de outros sujeitos que não homens gays, e que se expressa, entre outros fatores, na discussão da nomenclatura do próprio movimento atualmente: LGBT, LGBTQI… Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 133 intersecções outras que, em última medida, desuniversalizam as sujeições. Na mesma linha, O poder dos media e as políticas públicas, apesar de não se referir especificamente à bibliografia e nem ampliar a discussão, em certo sentido aponta para a questão da intersecção quando enfoca a relação sociogeográfica envolvida no tráfico sexual, ou de O Signo da relação, que, ao abordar sujeitos em vulnerabilidade, pontua as possibilidades de intersecção, especialmente ao dar instruções da possibilidade de um tratamento jornalístico adequado a esses sujeitos: “O desejo de exercitar o olhar plural no cotidiano como forma de compreensão das desigualdades sociais por meio da busca pela diversidade e pelo cruzamento de diferentes marcadores de diferença (raça/etnia, nação/ localidade, classe social, gênero, geração/idade, deficiência)” (GONÇALVES e MEDINA, 2018, p. 74). De forma bastante incipiente, por se tratar de um texto com proposta metodológica, Análise de Categorizações de Pertencimento nos estudos de comunicação também aponta em direção à perspectiva ao indicar que “esta perspectiva metodológica é operacional para as pesquisas sobre tópicos como gênero, sexualidade, etnia e identidade” (BRAGA, GASTALDO e GUIMARÃES, 2016, p.216). Por fim, temos três artigos que, em comum, problematizam o Jornalismo a partir dos estudos feministas e de gênero e, ao fazer isso, prestam algum tributo a uma perspectiva ampliada, que pense e pese as possíveis intersecções. É o caso de Erro, dúvida e jornalismo genereficado, que ao citar Susan Harding lembra que classe, raça, cultura, crenças e pressupostos de gênero são constituintes do que o pesquisador apresenta como produto de sua investigação (e, por extensão, do que o jornalista apresenta). A mesma perspectiva é encontrada em Feminino no livro de repórter e em A cultura do estupro entra na pauta. O primeiro deles – ao enfocar um jornalismo possível a partir de uma objetividade feminista, aos moldes de Haraway (1995), em contraponto à objetividade androcêntrica do jornalismo ocidental – aponta para a necessidade de pensar um sistema que preveja a complexidade social (em direção à percepção e respeito às diferenças). O segundo, pensando o gênero como categoria analítica e teórico-epistemológica, frisa a importância de se pensar em outros marcadores como classe e raça, pois esses “estão articulados a regimes políticos de poder e saber formulados no âmbito do pensamento dominante, subordinados às normas sociais hegemônicas até hoje tomadas como ‘naturais’” (STOCKER e DALMASO, 2018, p.262). 134 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Considerações finais Este artigo já nasceu se sabendo provocativo. Gênero é assunto amplo e diz respeito a todas e todos nós. Comporta um leque variado de pessoas que existem no amplo espaço entre o feminino e o masculino. Ao se interseccionar com sexualidade, raça, etnia, classe social, faixa-etária e outros marcadores, gênero se configura em um olhar complexo, porém necessário, para o enfrentamento estrutural da nossa sociedade. Há um crescimento de pesquisas em torno da temática “gênero” e muitas estão efetivamente ancoradas no campo dos estudos de gênero. Mas é ainda necessário que as/os pesquisadoras/es reconheçam que existem multiplicidades nesse objeto de pesquisa, ampliem a mirada interseccional na construção das narrativas acadêmicas. Com já mencionado anteriormente, autores/as como Kimberlé Crenshaw e Stuart Hall são notadamente conhecidos por suas vastas contribuições no campo acadêmico, o último especialmente junto à Comunicação. E tão profícuos como Crenshaw e Hall, há outras mulheres e homens que trabalham com a mirada interseccional em suas pesquisas científicas, o que nos leva a questionar a possível hipótese para a baixa adoção do olhar interseccional: a inexistência de referencial teórico. Quando iniciamos nossa pesquisa, tínhamos em mente que a perspectiva interseccional seria muito pouco explorada nos textos. Na verdade, descobrimos que ela é ignorada em alguns, mas está como pano de fundo em outros, sem ser efetivamente trabalhada. E a pergunta inicial, como acontece quando procuramos responder às perguntas, amplia-se: deixar de indagar sobre a presença da interseccionalidade para pensar nas condições de produção de pesquisas que olhem para além do que seus pesquisadores/as são capazes de perceber de imediato a partir de seus lugares. Pesquisas que iniciem com o questionamento, por parte de seus/as agentes, de seu lugar de produção de conhecimento. Em seu livro Ensinando a Transgredir, a educação como prática da liberdade, Bell Hooks (2017), inspirada por Sandra Bartky, reflete sobre o comportamento feminista: “para ser feminista é preciso antes se tornar feminista”. Pensar questões de gênero ou até mesmo lamentar a condição da mulher não vai significar expressão de consciência feminista. É necessária uma mudança de comportamento para conseguir se aprofundar no assunto. Tal provocação nos inspira e nos leva a uma segunda hipótese: para ter uma mirada interseccional, é preciso Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 135 antes tornar-se interseccional? Isto é, há um processo para a construção dessa identidade que refletirá nas atitudes de pesquisa? E o que seria esse processo? Estas perguntas estão por ser respondidas. Mais ainda, estão por ser colocadas como inquietações que ajudem a produzir pesquisas que não fechem os olhos para a complexidade do mundo social. 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Para operacionalizar os conceitos de representação e gênero, utilizaremos como aporte teórico os Estudos Culturais e, como metodologia, a análise do discurso de linha francesa para identificar os sentidos construídos nas duas reportagens. Como resultados, foram encontradas três regiões de sentido dominantes: a) biologização, b) normatização e c) receio. Palavras-chave: Estudos Culturais; Representação; Gênero; Telejornalismo esportivo. Introdução Os estudos de gênero e jornalismo vêm ganhando cada vez mais representatividade na atualidade, colocando em análise objetos de estudo diversi81. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades. E-mail: ortis.andrea@gmail.com. 82. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFRGS e em Letras - Português/Inglês pela PUCRS. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades. E-mail: lauren.ssteffen@gmail.com. 83. Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Graduada em Comunicação Social – Jornalismo pela UFSM. Membro do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades. E-mail: mari.nhenriques@gmail.com 84. Professor Doutor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria. Orientador do trabalho e líder do Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Audiovisualidades. E-mail: flavi@ufsm.br Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 141 ficados e problematizando as representações midiáticas de gênero enquanto fonte de poder e de dominação. Os efeitos provenientes ultrapassam a esfera simbólica e podem ser sentidos na forma de desigualdades sociais cotidianas. No âmbito esportivo, novas questões tensionam as divisões fortemente demarcadas entre feminino e masculino, presentes nas categorizações das equipes, provocando discussões sobre o uso de critérios biológicos para tais definições. Para contribuir com os estudos nesse campo, este trabalho tem o objetivo de analisar como a atleta Tifanny Abreu, primeira transexual na liga profissional de vôlei do país, foi representada em duas reportagens exibidas nos programas Esporte Espetacular, da Rede Globo85, em janeiro de 2018, e Esporte Fantástico, da Record86, em fevereiro do mesmo ano. Tifanny disputou a Superliga feminina de vôlei em 2017, fato que gerou polêmica devido as suas possíveis vantagens biológicas em relação às outras colegas de equipe. Para operacionalizar os conceitos de representação e gênero, utilizaremos como aporte teórico os Estudos Culturais. Quanto à metodologia, faremos uso da análise de discurso de linha francesa para identificar os sentidos construídos nas duas reportagens. Como resultados, foram encontradas três formações discursivas: a) biologização, b) normatização e c) receio, as quais revelam as regiões de sentido dominantes presentes no discurso telejornalístico. O conceito de gênero pelo viés dos Estudos Culturais O campo dos Estudos Culturais emergiu em meados da década de 1950 e tem como objetivo central compreender os espaços e as condições nos quais a cultura se forma, transforma, produz e se reproduz, dando voz aos grupos sociais até então discriminados ou ocultados. Essa ampliação do conceito de cultura valida, então, as variadas formas de expressão e ratifica a abordagem crítica e interdisciplinar do campo, que entende e analisa a cultura como um campo de conflito e negociação de formações sociais de poder e atravessadas por tensões relativas à classe, gênero, raça e sexualidade. Os movimentos feministas, por exemplo, concederam vasto material aos Estudos Culturais e seus temas foram incorporados aos debates sobre gênero na década de 1970. Entretanto, cabe destacar que mesmo que os estudos de gênero tenham aparecido no contexto dos Estudos Culturais apenas nos anos 1970, as preo85. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=jKVRJgdkYsY>. Acesso em: 14 mai. 2018. 86. Disponível em: <https://esportes.r7.com/esporte-fantastico/videos/desempenho-de-tiffany-a-primeira-atleta-trans-do-volei-profissional-brasileiro-causa-polemica-21022018>. Acesso em: 14 mai. 2018. 142 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) cupações em torno do tema são anteriores e se relacionam com a emergência do movimento feminista nos anos 1960. Durante muito tempo, sexo foi considerado o mesmo que gênero, disseminando o chamado determinismo biológico, uma compreensão que se sustenta nas diferenças biológicas entre homens e mulheres para justificar o fato de a mulher ser considerada inferior ao homem por ser o seu oposto, o sexo frágil (BEAUVOIR, 1980). Dessa forma, pode-se afirmar que estudar gênero fez com que inúmeras lutas por igualdade fossem travadas na sociedade. Essas lutas, também conhecidas como ondas feministas, aconteceram em quatro etapas, porém, interessa-nos, aqui, dar foco à terceira onda, que teve início nos anos 1990. Nesse período, o movimento feminista reivindicava que o gênero também fizesse parte da constituição do sujeito. Compartilhava a ideia de que não existia uma identidade fixa e estável e que essa deveria ser articulada ao reconhecimento de diferenças entre as mulheres e que não pode ter um sentido completamente unificado. Reconhece-se, agora, que não existem valores universais ao redor da figura da mulher e, dessa forma, os enfoques devem ser individualizados e pensados para além do binômio homem-mulher. É nessa onda que teóricas como Judith Butler, Monique Wittig, Angela Davis e Julia Kristev começam a buscar uma total desnaturalização do gênero, afirmando que este é construído por dispositivos de poder, discursos médicos, legais e sociais. No Brasil o tema começou a ser debatido recentemente e um dos principais nomes é Berenice Bento que, na mesma linha das teóricas anteriores, questiona e refuta um sistema binário que “produz e reproduz a ideia de que o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas constitutivas dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial” (BENTO, 2008, p.17). Entretanto, cabe dizer que a inclusão da transexualidade nos debates feministas ainda gera polêmica. Há correntes que defendem que mulheres trans, são, de fato, homens e que roubariam o lugar das mulheres – nascidas mulheres (cisgênero) - dentro do movimento. Outra linha argumenta que, por nascerem homens, não teriam vivido a experiência de ser mulher da mesma forma que as outras mulheres, já que, em algum momento da vida, tiveram um “nível de privilégio masculino” (ALMEIDA, 2017). Ou seja, permeia por entre esses grupos uma espécie de lógica legitimadora e diferenciadora entre as performances das mulheres biológicas das transexuais. Para Bento (2008, p. 48), “é a legitimidade que as normas de gênero conferem a cada uma delas, instaurando, a partir daí, uma disputa discursiva e uma produção incessante de Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 143 discursos sobre a legitimidade de algumas existirem e de outras serem silenciadas e eliminadas”. Por outra via, é importante pensarmos a questão da transexualidade à luz da terceira onda. Essa fase, como já destacado, ressalta a existência de diferentes formas de ser mulher, relacionadas à vivência de cada uma delas. A partir disso, negar que o debate da transexualidade faça parte das lutas feministas, por acreditar que essas mulheres possuem uma experiência diferente das “demais mulheres”, é dizer que existe uma experiência comum de ser mulher. Ideia essa justamente combatida pela terceira onda, que defende os diversos marcadores sociais que nos diferenciam como mulheres. Dessa forma, o que se sugere, agora, é que pensemos em um transfeminismo, “um movimento de e para mulheres trans que entendem que a sua liberação está intrinsecamente ligada à liberação de todas as mulheres e além” (KOYAMA, Emi, 2011, p.1, tradução nossa). Ou seja, trata-se de um pensamento que vá, efetivamente, além de corpos masculinos ou femininos. Representações de gênero no telejornalismo esportivo A partir do momento em que os Estudos Culturais se debruçam sobre as dinâmicas, as vivências cotidianas e as significações dos mais diversos grupos sociais, torna-se importante compreender os processos e produtos culturais daí advindos, suas representações e produção de sentidos. Nesse contexto, o telejornalismo esportivo é uma das instâncias responsáveis por construir uma imagem da realidade a milhões de brasileiros, narrando modos de existência através de sons e imagens que têm uma participação significativa na vida das pessoas, uma vez que pautam, orientam, interpelam o cotidiano dos telespectadores, participando da circulação e consolidação de definições e representações ideológicas dominantes. Neste contexto, certos elementos são constantemente reiterados nos telejornais para retratar identidades de gênero, constituindo-se um quadro de referência comum compartilhado. Tais construções podem operar como lugar de reforço de estigmas, atuando para a permanência de estereótipos e preconceitos por meio de estratégias de redundância (SOARES, 2010). Assim, o meio segue o modelo que lhe interessa para manter a estrutura de poder e anula todos os que rompem ou tentam romper com o modelo social dominante. Por isso, o estudo do telejornalismo esportivo torna-se central para as discussões acerca das representações de gênero, uma vez que se reconhece 144 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) “a capacidade de pôr em marcha processos de identificação que reforçam o sentido de identidade do indivíduo, quer dizer, sua consciência de pertencer a uma determinada categoria social ou comunidade” (CASETTI; CHIO, 1999, p.320, tradução nossa). Dessa forma, diante do espaço privilegiado do telejornalismo esportivo para construir, atualizar e reforçar determinadas representações, é fundamental perceber quais elementos são reiterados nas narrativas midiáticas no que diz respeito às simbologias de gênero, operando na construção de expectativas e pressões quanto às características relacionadas a homens e mulheres. Nesse contexto, compreender o conceito de representações midiáticas torna-se fundamental, já que os entendimentos acerca da construção de sentidos sobre Tifanny Abreu passam pela representação dada a ela. O conceito de representação social foi primeiramente proposto por Durkhein, em 1898, no mesmo sentido de representações coletivas, ou seja, categorias de pensamentos que determinada sociedade elabora e expressa de sua realidade, tendo seu surgimento relacionado a fatos sociais (MINAYO, 1995), pois, no século XX, as sociedades contemporâneas, caracterizadas pela fluidez e intensidade das trocas comunicativas, têm na mídia um forte vetor de (re)produção dessas representações sociais. Os meios são mais que apenas difusores de informação, mas também “são responsáveis pela produção dos sentidos que circulam na sociedade” (MORIGI, 2004, p. 3). Sendo assim, o que agora chamamos de representações midiáticas são os modos pelos quais a mídia, através de seus discursos, palavras, mensagens e símbolos, elabora seus textos verbais ou não-verbais e produzem sentidos sobre uma dada coletividade, buscando, desse modo, trazer nos produtos midiáticos as formas como os grupos sociais se identificam, pensam as suas relações e se organizam em sociedade. Ao pensarmos as representações midiáticas relacionadas ao telejornalismo esportivo, podemos perceber, de modo geral, casos expressivos de preconceito em relação ao gênero e à homossexualidade, ainda sendo vista como tabu pela maioria dos jogadores de futebol, por exemplo. São raros os casos em que atletas se sentem à vontade para tornar pública a sua identidade de gênero com medo de represálias de colegas e da violência nas ruas. A heteronormatividade é o padrão esperado e aceito dentro do esporte, criando um estereótipo machista relacionado com a força e a virilidade do homem. Tais demarcações parecem ter o objetivo de purificar o esporte, reservando apenas aos heterossexuais a chance de participação, já que a constatação de que existem homossexuais em campo parece constituir uma marca negativa, o que Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 145 escancara o ambiente machista e misógino que ainda hoje atravessa a prática esportiva. Se pensarmos esse cenário em relação a pessoas trans, a problemática é ainda maior. É com base nessa realidade que inserimos nossa pesquisa ao buscar analisar as simbologias de gênero construídas no discurso telejornalístico sobre uma atleta trans. A Análise de Discurso, nesse sentido, irá fornecer as bases metodológicas para mapearmos os sentidos e os silenciamentos presentes na narrativa telejornalística. Análise de discurso A Análise de Discurso (AD) procura compreender como a linguagem cria sentidos, enquanto trabalho simbólico constitutivo do sujeito e de sua história. Segundo Eni Orlandi (2009), essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a continuidade quanto o deslocamento do sujeito e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. O jornalismo narra a sociedade para a própria sociedade por meio de um texto construído a partir de elementos exteriores ou anteriores, como a história, o senso comum e a cultura. Assim, a análise de discurso não considera a linguagem transparente, ou seja, não crê na imanência do sentido. Ela não procura identificar qual o sentido do texto, mas se pergunta como determinado texto significa. Ela produz um conhecimento a partir do próprio texto, pois o vê como tendo uma materialidade simbólica, uma espessura semântica: ela o concebe em sua discursividade (ORLANDI, 2009). Um dos pontos de partida da análise é a identificação das formações discursivas (FDs), ou “uma espécie de região de sentidos, circunscrita por um limite interpretativo que exclui o que invalidaria aquele sentido” (BENETTI, 2007, p. 112). Portanto, as formações discursivas materializam formações ideológicas, as quais estão intrinsecamente relacionadas com a ordem da história. Este trabalho utilizará a Análise de Discurso como metodologia, porque ela se aplica no propósito de identificar sujeitos, desvendar sentidos e analisar linguagens. A análise de discurso se enquadra em nosso objetivo de pesquisa ao considerar o telejornalismo esportivo e o produto televisivo como formas de produção de conhecimento que, através da linguagem, criam, reproduzem e transportam sentidos. 146 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Formação de sentidos A partir da análise crítica das duas reportagens exibidas nos programas Esporte Espetacular, da Rede Globo, e Esporte Fantástico, da Record, sobre a atleta Tifanny Abreu, primeira transexual na liga profissional de vôlei do país, encontramos três formações de sentido (FDs) dominantes: a) biologização, b) normatização e c) receio. As formações discursivas serão exemplificadas por sequências discursivas, que estão transcritas de forma literal, mantendo os traços da língua falada. Já as partes destacadas em negrito são os sentidos dominantes (SDs) que justificam as formações discursivas encontradas na análise. a) Biologização A primeira formação de sentido encontrada nas duas reportagens relaciona-se às características biologizantes que são acionadas por repórteres e entrevistados, principalmente, como forma de oposição à presença de Tiffany em quadra. Neste ponto, existe uma forte demarcação de binaridade de gênero, opondo traços masculinos e femininos, principalmente relacionados a características biológicas da estrutura corporal. Cabe observar, em um primeiro momento, que em ambas as reportagens existe a intenção de sinalizar a mudança de sexo da atleta e de destacar, em variadas oportunidades, o nome de nascença de Tiffany – o qual ela mesma não gosta de mencionar – como uma forma de relembrar que em uma época era homem e depois virou mulher. Exemplo disso é quando, no Esporte Espetacular, a jornalista Fernanda Gentil apresenta a reportagem: “Tiffany Pereira de Abreu, 33 anos, nasceu Rodrigo”. No Esporte Fantástico, essa construção se dá por parte do locutor da reportagem que diz: “Já com um visual feminino, Rodrigo continuou atuando em equipes masculinas”. Além disso, nesse mesmo programa, a demarcação da mudança de sexo ainda vem acompanhada de uma subjugação do feminino, induzindo a pensar que Tifanny só é uma boa jogadora feminina porque antes era um homem – ideia essa visível na frase da apresentadora do programa, a jornalista Mylena Ciribelli: “A jogadora de vôlei Tiffany mudou de sexo, mas ela vem se destacando dentro das quadras brasileiras e aí já viu né... tá sendo cotada pra atuar dentro da seleção feminina”. Ademais, o uso da conjunção adversativa “mas” indica que apesar dela ter mudado de sexo, ela vem se destacando, criando uma relação de interdependência entre os dois fatos. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 147 Outro aspecto bastante presente é a marcação da idade em que Tiffany fez a transição. No Esporte Espetacular, essa formação aparece na fala da entrevistada Karina Hatano, mestre em medicina esportiva: “Quanto mais tarde se fizer o tratamento hormonal para mudança de sexo, mais vantagens esse atleta vai apresentar, porque a ação da testosterona ela vai fazer com que tenha todas essas formações diferentes do homem, como aumento da massa muscular, aumento do número de células vermelhas, do coração e, consequentemente, quanto mais tarde se fizer a cirurgia, o legado dessa testosterona vai ser maior pra atleta.” No Esporte Fantástico, essa ideia está presente na fala de Ana Paula, ex-jogadora da seleção brasileira de vôlei: “A Tiffany fez a transição já quando todas as benesses do hormônio masculino já estavam instaladas e finalizadas no corpo do Rodrigo”. Esse argumento é o principal utilizado para questionar a presença da jogadora em quadra, com uma ideia bastante essencialista de que, se ela nasceu como um homem, sempre será um homem. Junto a isso, em diversos momentos das duas reportagens, a diferença homem x mulher é trazida com força e isso se dá, principalmente, na fala de outras atletas ao serem questionadas sobre a presença de Tiffany nas quadras. No Esporte Espetacular, essa ideia aparece na fala de Paulo de Tarso, técnico do Pinheiros, quando diz “O que a gente quer é que seja analisado porque existe uma diferença” e também na da jogadora Malu, do Brasília: “Ela é uma atacante muito forte. Ela se sobressai em alguns momentos sim. Não sei se tem a ver porque foi homem ou não foi”. No Esporte Fantástico, a marcação da diferença é ainda mais clara. Ana Paula apresenta-se fortemente contrária à participação de Tiffany nos jogos com base na biologia: “A puberdade dela inteira, ela se desenvolveu como sexo masculino. Não é homofobia, é fisiologia”. A mesma atleta também afirma que “essa pauta é uma falsa inclusão que exclui mulheres”. Ou seja, o que está sendo dito é que Tiffany poderia roubar o espaço das atletas mulheres. Jaqueline, jogadora do Barueri, também destaca que “a força física que é muito diferente da nossa”. Esse mesmo telejornal ainda apresenta o trecho de uma matéria de um jornalista italiano que afirma: “Um furacão de músicos e poder, mais perto de seu passado recente como homem do que seu presente como mulher”. Destacando, mais uma vez, a construção opositiva e binária de homem e mulher. Por fim, o que ainda é possível observar é que em nenhum momento das reportagens foi trazida, em uma perspectiva científica, de que forma os hormônios atuam no corpo de Tiffany. São apresentados dados, números e legislações, entretanto, é sabido que a hormonização acarreta uma série de al148 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) terações que estão além apenas da questão físico-corporal. Essa abordagem se dá apenas através de falas da própria jogadora como uma forma de defesa da sua permanência nas competições. No Esporte Espetacular, Tiffany afirma que “se eu tivesse a força que eu tinha antes, se eu tivesse o voleibol que eu tinha antes, realmente, eu não tinha coragem de estar aqui porque eu ia machucar uma pessoa, mas hoje eu posso atacar o forte que for porque eu não machuco ninguém do outro lado. Porque eu tenho uma força de mulher forte, nada mais que isso”. No Esporte Fantástico, a atleta ainda relata algumas alterações físicas que sente: “Uma coisa que se nota muito é o cansaço físico. Eu necessito dois dias a mais que as meninas pra descansar e eu canso muito mais rápido que elas. Não tenho muito físico por causa da hormonização e cirurgia. Depois que você faz a cirurgia, você muda, você se adapta, você vira totalmente uma mulher, então eu não consigo mais jogar como antes”. Na fala da atleta, é possível perceber que, além de todas as mudanças físicas, há também aspectos psicológicos que não são abordados nas construções das reportagens. b) Normatização A segunda formação de sentido encontrada em ambas as reportagens corresponde ao posicionamento do repórter e entrevistados perante as normas e questões técnicas que autorizam Tifanny a jogar voleibol. Podemos perceber, nas duas, que as opiniões se dividem: há àqueles que creem que a atleta está dentro dos padrões impostos e, também àqueles que acreditam que Tiffany é dotada de uma força maior e que não está sendo testada como deveria. Na reportagem veiculada pelo programa Esporte Espetacular, da Rede Globo, percebemos, inicialmente, que é o próprio repórter, Anselmo Caparica, quem deixa claro que a jogadora não é páreo para disputar a Superliga Feminina, já que, seu desempenho é superior ao das outras atletas: “Em cinco jogos, foram 115 pontos, média de 23 por partida, desempenho superior ao da oposta Tandara, do Osasco e da Seleção Brasileira, maior pontuadora da competição, com média de 20 pontos”. O repórter, em contraponto ao afirmado anteriormente, tenta amenizar o fato de a jogadora ser a maior pontuadora da competição por ter nascido homem, e traz dados do Comitê Olímpico Internacional, o COI, como forma de comprovar que a atleta está dentro dos padrões: “Segundo o Comitê Olímpico Internacional (COI), não é necessário fazer a cirurgia de mudança de sexo para disputar competições femininas. Basta ter um nível de testosterona Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 149 abaixo de 10 nanomol por litros de sangue. Tifanny tem apenas 0,2 nanomol”. Ainda, finaliza afirmando: “É uma atleta testada regularmente. Ou seja, está dentro das regras”. Portanto, há dois momentos que demarcam o posicionamento do repórter: um de que Tifanny Abreu é dotada de mais força que as demais jogadoras por ter nascido, biologicamente, como homem; e o segundo que, apesar desse fato, ela está seguindo as regras impostas pelo COI. Já na reportagem exibida pelo programa Esporte Fantástico, da Record, as mesmas marcas são encontradas. No entanto, nesta, há forte presença de entrevistados que são contrários à presença de Tifanny Abreu na Superliga Feminina, deixando claro que a atleta não poderia estar participando do campeonato. O repórter Mauro Júnior, como forma de aproximar-se dos(as) telespectadores(as), fala diretamente com quem está assistindo e, traz a seguinte frase: “Pra você ter uma ideia, esta semana na derrota do Bauru para o Praia Clube por 3 sets a 2, com 39 pontos no jogo, a Tifanny bateu a marca de uma atleta consagrada na Superliga. O recorde anterior de 37 pontos pertencia a Tandara, do Osasco”. Ou seja, o repórter traz uma informação que confirma o fato de Tifanny ser mais forte que as restantes, afinal, ultrapassou a marca de outra atleta. O repórter, a exemplo de Anselmo Caparica na matéria do Esporte Espetacular, também traz a legislação do COI para comprovar que a jogadora está, afinal, autorizada a disputar o torneio: “A legislação do COI diz que uma atleta transgênero está autorizada a disputar competições de alto rendimento entre mulheres desde que a quantidade de testosterona, o hormônio masculino, não passe de 10 nanomol por litro de sangue, no período de um ano antes da competição”. Portanto, ao mesmo tempo em que tentam demonstrar que Tifanny está burlando as regras, trazem a legislação para confirmar o contrário, que ela está, de fato, apta a jogar. Afinal, Mauro Júnior afirma: “Para comprovar isso às autoridades, Tifanny teve que apresentar vários exames”. Na tentativa de dar espaço às outras jogadoras, a equipe entrevista a ex-jogadora Ana Paula que apela para suas experiências pessoais como forma de demonstrar que a atleta não está recebendo o mesmo tratamento que ela, biologicamente mulher, teve ao longo de sua carreira: “No meu primeiro teste de dopping eu tinha de 16 pra 17 anos e fui testada durante 24 anos da minha carreira. Ou seja, o parâmetro que foi altamente rigoroso pra mim durante toda a minha vida, ele foi abandonado pra Tifanny”. A contribuição da endocrinologista Elaine Costa também foi trazida na tentativa de comprovar que a jogadora não está no lugar certo: “O nível 150 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de testosterona pra medir, como critério pra inclusão de transexuais, de pessoas trans em times, não é parâmetro. Eu acredito que ela tenha vantagens, a começar pela altura”. Ou seja, as marcas presentes na fala da especialista deixam claro que não basta somente medir o nível de testosterona, afinal, há outras vantagens presentes no corpo de Tifanny, como a altura. A fala da especialista em relação à altura da jogadora é a deixa para que o repórter Mauro Júnior traga algumas regras em relação à rede usada nas competições: “Se a comparação for em relação à altura da rede, faz sentido. Os homens jogam com a rede a dois metros e quarenta e três centímetros do chão. As mulheres, a dois metros e vinte e quatro, dezenove centímetros a menos”. Assim, reafirma o pensamento da endocrinologista de que, de fato, Tifanny possui uma vantagem referente à sua altura, afinal, a rede em que joga atualmente possui 19 centímetros a menos que a masculina. Portanto, através dessas marcas de sentido percebemos que a maioria das falas destacadas, sejam elas de entrevistados ou dos próprios repórteres, reafirmam o preconceito pelo qual Tifanny Abreu vem sofrendo desde que passou a atuar na renomada competição. c) Receio A terceira formação discursiva encontrada por meio da análise crítica das duas reportagens diz respeito ao posicionamento das fontes entrevistadas com relação à autorização concedida a Tifanny para jogar em uma liga feminina de vôlei no Brasil. Os entrevistados, na maioria das vezes, demonstraram receio em manifestar uma opinião sobre o caso, seja positiva ou negativa. As respostas evasivas sugerem que os entrevistados buscaram se isentar de responsabilidade sobre o caso, relegando a outros órgãos e entidades a função de decidir se Tifanny deveria ou não jogar. Na reportagem que foi ao ar no programa Esporte Espetacular, a fala do médico João Grangeiro, presidente da Comissão Nacional de Médicos de Vôlei (CONAMEV), mostra que nem mesmo o presidente de uma comissão médica especializada no assunto optou por deixar claro seu posicionamento, mostrando que apenas seguiu passivamente uma diretriz do Comitê Olímpico Internacional, usando-a como desculpa para não se posicionar: “O que a CONAMEV, na realidade, levou em consideração pra que a CBV pudesse liberar a atleta foi tão somente a diretriz do Comitê Olímpico Internacional”. Paulo de Tarso, técnico do clube Pinheiros, também evidenciou no seu discurso, por meio da repetição do pronome “ninguém”, o reforço de que não Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 151 existe nenhum posicionamento, como se sustentar que ele não é “nada” o deixasse em uma posição neutra, ignorando o fato de que se omitir também é, de certo modo, uma forma de posicionamento: “O que a gente quer é que seja analisado esse tipo de diferença. Foi só isso. Ninguém é contra, ninguém é transfóbico, ninguém é homofóbico, ninguém é absolutamente nada”. Já Tandara, jogadora do Osasco, terceiriza a responsabilidade, explicando que quem deve opinar são os especialistas, demonstrando, mais uma vez, o receio de dar sua opinião não só como jogadora, mas como mulher e ser humano: “É de encher os olhos sim, com certeza, pela atitude, pela coragem dela, né. Mas, assim, eu deixo pra que os fisiologistas, os especialistas, que sabem realmente disso, que eles se manifestem”. Essa mesma atitude aparece na fala de Paulo Coco, técnico do Praia Clube, colocando apenas que essa questão deveria ser mais discutida pelos órgãos responsáveis: “Os órgãos que regulamentam o esporte, no caso, o Comitê Olímpico Internacional e a Federação Internacional, acredito que devam rever, discutir mais, essa normatização”. A jornalista Fernanda Gentil, apresentadora do programa, mostra em sua fala que o receio levou ainda muitos profissionais ligados ao esporte a silenciarem diante da temática, deixando de aproveitar o espaço em uma emissora de audiência nacional para trazer à tona um debate fundamental para a sociedade democrática atual: “Olha, vários profissionais do vôlei procurados pela nossa produção evitaram a polêmica e não quiseram falar. (...) Também não quiseram opinar o técnico do Osasco, Luizomar de Moura, e do Rio de Janeiro, Bernardinho. As jogadoras da Seleção Thaísa, Gabizinha e Vanessa, além da ex-líbero da Seleção, Fabi, também não”. Na matéria exibida no programa Esporte Fantástico, da Record, também é possível encontrar a mesma região de sentido na fala dos entrevistados: receio de opinar, medo de defender um posicionamento. José Roberto Guimarães, técnico da Seleção feminina de vôlei, usa uma sequência de orações condicionais para dizer, por fim, que não há problema no fato de Tifanny jogar, desde que respeitadas tais condições: “Se ela for aprovada pra jogar, se ela tiver condições, eu não vejo problema nenhum”. Além disso, usa verbos vagos para se posicionar, dizendo que não cabe a ele decidir, mas tampouco deixa claro quem deve emitir um parecer sobre o assunto: “Acho que o importante é pensar no trabalho da seleção daqui a pouco, ver como as coisas vão acontecer, e deixar pra que as pessoas que tenham capacidade pra essa decisão que decidam”. Mesmo quando há um posicionamento contrário em relação à autoriza152 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ção concedida à jogadora, sempre há um atenuante no final, evitando a demarcação muito pesada de uma posição sobre o assunto. Na fala da jogadora Tandara, essa tentativa de suavização fica clara: “Hoje eu não concordo pelo fato de ela participar numa Superliga feminina. Não é nem pelo fato de tirar o espaço de outras jogadoras que estão chegando ou ameaçar quem tá chegando. É muito delicado isso”, bem como na fala de Ana Paula, ex-jogadora de vôlei: “A gente já escuta que no mercado existem agentes esportivos oferecendo atletas trans que estão aptas já pra atuarem no vôlei feminino. É muito preocupante”. Tais adjetivos auxiliam a demarcar que o assunto é um tema polêmico, sobre o qual, mesmo havendo uma opinião contrária, há o medo do julgamento social de serem classificadas como pessoas preconceituosas. Outra atleta entrevistada foi Érika, do Barueri, que adotou o mesmo posicionamento, deixando para a ciência o papel de estabelecer o consenso e definir o futuro de Tifanny, eximindo-se de tomar partido de um dos lados. A ciência é, assim, o discurso de poder evocado para definir o correto, o justo, o aceitável na sociedade: “Eu desejo só pro ser humano Tifanny boa sorte, que ela consiga, né, fazer aquilo que ela ame dentro da lei, dentro daquilo que for justo. E o resto depois os médicos ou quem estuda, cientista, não sei, que podem falar”. Thaísa, atleta do Barueri, através do uso de orações condicionais sequenciadas, também relega à ciência a responsabilidade de decidir, apelando a uma entidade abstrata para se eximir de dar um posicionamento, como se o que a ciência decidir deve ser acatado sem possibilidade de resistência ou contestação social: “Se os médicos estão dizendo que ela pode, que ela tem condição e que tá dentro dos critérios, então ela tá dentro dos critérios. Paciência, tenta bloquear ela e defender”. José Elias, preparador físico da seleção, também fala em “determinações científicas”, “investigações” e “parâmetro”, usando uma linguagem científica em uma tentativa de aproximar o seu discurso de uma neutralidade ilusória: “Como nós somos regidos pelas determinações científicas, então mais investigações são necessárias, né. Enquanto isso, o parâmetro que define dá o direito à pessoa de continuar jogando”. O receio de se posicionar, evidenciado por meio do silenciamento, da terceirização da responsabilidade e do uso de expressões evasivas, não deixa de ser, no entanto, uma forma de posicionamento, que, em vez de estimular o debate crítico sobre o assunto, contribuindo para dar mais visibilidade para as questões de gênero na esfera pública, apenas reforça ainda mais a marginalização do tema, dificultando o diálogo com a sociedade e o direito à informação de qualidade. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 153 Considerações finais Esse trabalho evidencia a necessidade de se pensar as interseccionalidades de nossas lutas e as vivências de feminilidade tanto das mulheres cisgênero quanto das mulheres trans, para que possamos voltar a ter como foco de nossas lutas o desmantelamento do patriarcado, a proteção dos corpos sexuados e subalternizados. Como afirma Berenice Bento (2008), a transexualidade é uma experiência identitária caracterizada pelo conflito com as normas de gênero existentes. Como vimos, existe uma regra: homem e mulher, masculino e feminino, pênis e vagina, só que toda regra possui uma exceção, e essas são, justamente, as pessoas transexuais. Precisamos contestar as representações que estão em circulação, construindo definições alternativas, já que, por mais completa que seja uma representação, ela sempre deixará algo à margem e, portanto, sem reconhecimento. Nesse sentido, o telejornalismo esportivo pode contribuir para dar visibilidade a outras representações de gênero, refletindo sobre como é possível dar conta da complexidade de representar tais identidades. Como jornalistas, devemos buscar novas estratégias narrativas, pautas diferenciadas, sujeitos marginalizados para contar essas histórias de forma diferente, para mostrar o outro lado, para dar voz a quem nunca é ouvido. Tornando visíveis sujeitos que diariamente são marginalizados pela sociedade, poderemos contribuir para fortalecer valores essenciais no mundo democrático atual: o respeito e a solidariedade. É essencial ultrapassar o discurso repetitivo e estereotipado, desconstruir preconceitos, avançar para debates mais complexos e dar abertura para reflexões políticas, sociais e econômicas em torno do esporte a fim de podermos cumprir o papel social do jornalismo com o interesse público e mostrar o potencial do esporte como catalisador social, promotor da cidadania e construtor da criticidade. É preciso pontuar ainda a autonomia do telejornalismo esportivo em construir representações que não só reforçam a ideologia dominante, mas também silenciam e atualizam fatos da realidade social. Essa constatação demonstra que o contexto não determina, mas exerce pressões e fixa limites, os quais são frutos de condições sociais e históricas específicas. Retratando a diversidade e a complexidade da cultura vivida, percebemos que o telejornalismo esportivo insiste em reiterar permanentemente os mesmos valores e imagens na intenção de perpetuar a ideologia dominante, manter a ordem política e econômica, reproduzir preconceitos e estereótipos e marginalizar 154 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) representações alternativas, o que demonstra que toda classe dominante se dedica significativamente à produção material de uma ordem social e política. Dar representatividade a novas narrativas, mais plurais e democráticas, que respeitem a individualidade dos sujeitos e que deem conta do contexto social em que estão inseridos é tarefa primordial do jornalismo. Dessa forma, poderemos tornar essas produções reconhecidas e valorizadas pelo público, instigando à construção de outros projetos, atraindo apoiadores, auxiliando na formação crítica da audiência. Como pesquisadores(as) da comunicação, também somos narradores(as), e temos o dever de representar quem é esquecido, intencionalmente, pelos meios de comunicação, contribuindo para a mudança cultural e para a justiça social. Referências ALMEIDA, F. Transfeminismo: a pauta que nos ensina ir além do binarismo homem e mulher. 2017. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2017/11/29/ transfeminismo-pauta-que-nos-ensina-ir-alem-do-binarismo-homem-e-mulher/>. Acesso em: 07 mai. 2018. BEAUVOIR, S. O segundo sexo. Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970. BENETTI, M. Análise do discurso em jornalismo: estudo de vozes e sentidos. In: BENETTI, M.; LAGO, C. (Orgs.). Metodologia de pesquisa em Jornalismo. Petrópolis: Vozes, 2007. BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008. CASETTI, F.; CHIO, F. Análisis de la televisión: instrumentos, métodos y prácticas de investigación. Barcelona: Paidós, 1999. KOYAMA, E. The transfeminist manifesto. 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Acesso em: 07 mai. 2018. 156 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Vidas que importam: problematizações acerca de reportagens veiculadas nas mídias sobre assassinatos de travestis e transexuais no Brasil Adriana SALES 87 Bruna BENEVIDES88 Fábio MORELLI 89 Associação Nacional de Travestis e Transexuais - ANTRA Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Assis, SP Resumo Quando é que travestis e transexuais são noticiadas? Como são? Por que, geralmente, se noticia e explora suas vulnerabilidades e situações de violência? Se consideramos que o trabalho dos jornalistas é importante para a formação da opinião pública, est@s profissionais são responsáveis – ao menos, deveriam – pelo compromisso ético no modo como alguns setores da sociedade lidarão com as diferenças e como elas serão tratadas. Por meio de uma análise de reportagens já veiculadas sobre corpos trans e travestis no Brasil, especial atenção às de 2017, pretendemos disparar diálogos ao expormos os discursos ali presentes, sejam eles pouco compromissados politicamente com as vidas das vítimas ou aqueles que tratam essas vidas como importantes, as abordando de modo respeitoso e humano, potencializando, assim, a visibilidade como exemplos positivos às práticas jornalísticas. Palavras-chave: Transfobia no jornalismo; Travestis e Transexuais; Nome social; Cidadania. Introdução Assassinatos na calada da noite, tiros, apedrejamento e facadas, normalmente precedidos de espancamentos, métodos de tortura e pouca possibilida87. Graduada em Letras pela UFMT, Mestre em educação pela mesma instituição, Doutora em Psicologia pela UNESP/Assis, Ativista social da ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa de Psicologia e Cultura Queer (PsiCUqueer). 88. Militar, Presidenta do Conselho LGBT de Niteroi, Secretária de Articulação Política da ANTRA, Membro da Diretoria da ABGLT; e Autora do Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais Brasileiras em 2017 (ANTRA/2018) 89. Cientista Social pela UNESP/Marília e Mestre em Psicologia pela UNESP/Assis. Professor Colaborador de Sociologia da Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR) – Campus de Apucarana. Pesquisador do Grupo de Pesquisa de Psicologia e Cultura Queer (PsiCUqueer). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 157 de de legítima defesa são alguns dos aspectos que norteiam os crimes contra travestis e transexuais. A ineficiência não apenas dos registros, mas também das investigações, foi a razão de a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) mapear, em todo território brasileiro, os registros desses crimes. Esse levantamento se baseia, principalmente, em reportagens que abordaram os assassinatos de pessoas travestis e transexuais e, também, em informações que, por vezes, existem exclusivamente em redes sociais, como o Facebook. Trata-se de uma força tarefa entre as organizações não governamentais afiliadas à ANTRA pelo Brasil (juntas somam aproximadamente 120 instituições) em conjunto com a troca de informações entre a sociedade civil. Tais dados vêm apontando, de modo alarmante, o avanço brutal destes eventos de morte com requintes de crueldade. Esse mapeamento nos dá pistas também de como as redes midiáticas e de dados da segurança pública tem marcado, de modo resistente, os muitos avanços que o movimento trans brasileiro tem demandado e conquistado: como o uso do nome social90. As referidas instituições – mídias e segurança pública – reproduzem a recusa em garantir questões mínimas das estilísticas das existências e corroboram com os padrões binários e biologizantes da sociedade que vivemos na contemporaneidade machista e misógina que produz dados de feminicídio. Valores esses expressos não só na ausência de notícias sobre conquistas e sucessos de pessoas trans e travestis, mas também pelo fato de que, quando ocorrem, tratam de situações próximas desses crimes com evidente desrespeito ao nome social, publicação de imagens de seus corpos violentados e pela tentativa de culpabilização das vítimas expressa em discursos que visam demonstrar possíveis envolvimentos com drogas e/ou com prostituição. De acordo com esses dados, só no ano de 2017 foram 179 assassina91 tos . Todos eles levantados e cadastrados por meio de recursos que a própria ANTRA recorreu a fim de aglutinar dados mais sistematizados dos esparsos crimes ocorridos em localidades diferentes, mas com motivações semelhantes: a transfobia92. Este capítulo possui como objetivo trazer algumas reflexões que 90. Entende-se por nome social o nome pelo qual travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans, se reconhecem e são reconhecidos, identificados e denominados na sociedade, independente do constante em seus registros civis. Não é apelido, pseudônimo e não é usado por pessoas cisgêneras. (ANTRA, 2018). 91. O mapeamento completo realizado pela ANTRA é possível ser consultado no mapa sistematizado: https:// www.google.com/maps/d/u/0/viewer?ll=-13.072303542292522%2C-42.23556529999996&z=5&mid=1yMKN g31SYjDAS0N-ZwH1jJ0apFQ . Acesso em: 15 mai. 2018. 92. Termo que diz respeito a uma série de atitudes ou sentimentos negativos em relação às pessoas travestis, transexuais e transgêneros, devido a sua identidade de gênero. Seja intencional ou não, a transfobia pode causar severas consequências para quem por ela é assim discriminado. Normalmente é motivada por desconhecimento, alienação, valores morais baseados em argumentos do senso comum, por vezes com cunho religioso que geram invisibilidade, ignorância e preconceito. 158 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) foram possíveis a partir da intensa observação dos dados de 2017, cujo foco se deu sobre o trabalho de jornalistas e suas formas de abordar essas situações a fim de denunciar violações da população travesti e transexual. Nesse sentido, o texto abordará, num primeiro momento, a diferenciação entre gênero e orientação sexual – confusão presente em notícias que se referem a travestis, por exemplo, como homossexuais – e, num segundo momento, a explicitação de dados que apontam para a necessidade em se preservar os nomes de registro de pessoas trans e travestis, respeitar seus nomes sociais, bem como suas imagens, evitando também discursos que contribuam com certa criminalização da vítima e sua consequente impunidade aos criminosos. Identidade de gênero e orientação sexual Por se tratar de uma demanda conceitual do movimento feminista, inicialmente, o termo “gênero” esteve ligado diretamente às mulheres cisgêneras. Apesar de ter começado dessa maneira, tal expressão adquiriu aspectos que vão além delas. Judith Butler (2014) será quem vai defender o gênero como performance. Se reconhecemos o gênero de alguém pelo seu corte de cabelo, vestimentas, maneiras de falar, de andar, de se comportar ou de agir, significa que os símbolos que nos permitirão dizer que se trata de um homem ou de uma mulher são estabelecidos socialmente por meio de um processo histórico que classifica essas diferenças, já que tais distinções são externas ao corpo e consensualmente estabelecidas pela sociedade, não pelo indivíduo. Por ser estabelecido socialmente, o gênero pode variar de acordo com o contexto cultural. No nosso atual contexto, ele é atribuído aos indivíduos de forma compulsória e subjetiva por meio de processos discursivos, isto é, um conjunto de práticas institucionais (família, escola, igreja, mídias, políticas públicas, leis etc.) que designam quem somos, mesmo antes do nascimento, a partir da genitália e ensinam gradualmente como homens e mulheres devem se comportar, agir, pensar, sentir, se expressar e se reconhecer na sociedade. Segue um exemplo: o fato de termos um número massivo de mulheres que são as principais responsáveis pelos afazeres domésticos e maternos no Brasil, não é porque elas nasceram com essa função previamente dada pela sua fisiologia, não é uma destinação nata, mas porque socialmente isso foi imposto e, de modo convencionado, essa função passou a ser ensinada aos corpos com vagina. Não é nada raro vermos forninhos, bonecas ou outros utensílios de cozinha – sem contar os acessórios ligados à beleza e à higiene – sendo os brinDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 159 quedos com os quais meninas, desde cedo, vão aprendendo seus lugares como cuidadoras. Nessa dinâmica, as mulheres acabam passando por processos que docilizam os seus corpos a serem obedientes e destinados às tarefa do lar. Enxergar o gênero como performance significa ver que ele é resultado de um conjunto de práticas e regras discursivas que, ao longo dos anos, estabelecem condutas sociais distintas para homens e mulheres e dependem diretamente dos aspectos culturais e sociais de uma determinada sociedade. Logo, a direta relação entre mulher e vagina e homem e pênis não é um dado do corpo, mas da sociedade. No nosso contexto, a definição de gênero desde o nascimento depende menos de nossas vontades individuais e mais de desejos de produção de vidas coletivas e socialmente aceitáveis a partir de um padrão pré-estabelecido. Assim, há certa dificuldade em cogitar e existir de modos mais plurais quanto ao gênero, pois estamos limitados a um “binarismo de gênero”, isto é, parece não haver alternativas possíveis para além do masculino e do feminino como performances de gênero, estando o primeiro necessariamente num corpo com pênis e o segundo num corpo com vagina. É o que a família, novelas, escola e igreja, por exemplo, nos ensinam (LOURO, 2010,2016; FOUCAULT, 2009; DE ALMEIDA, 2003). Se o gênero não é um dado intrínseco ao corpo, mas um concluso social, isso quer dizer que afirmá-lo como performance é também ampliar suas possibilidades de ser vivenciado de outras maneiras que não apenas as comumente ligadas ao que está posto como sendo masculino e ao feminino, assim como a possibilidade de performá-lo sem a necessária correspondência entre masculinidade e pênis ou feminilidade e vagina. Em outras palavras, se o gênero é performance temos a possibilidade de o reinventar, o recriar, o embaralhar e alterar as estabelecidas concepções do que é ser homem ou mulher. Entretanto, a (in)adequação às performances de gênero estabelecidas não ocorrem de maneira tão igualitária, simétrica e pacífica. Aquelas pessoas que correspondem aos gêneros como estabelecidos – reforçando: masculinidade = pênis; feminilidade = vagina93 – serão inteligíveis, serão reconhecidas, protegidas, aceitas, compreendidas, vistas cidadãs. Quando há pessoas que não se adequam às normas de gênero estabelecidas, recriando feminilidades 93. Gostaríamos aqui de dizer que não compactuamos com os discursos que veem o gênero como uma correspondência da genitália. Definitivamente, o vemos como uma construção social e sem nenhuma ligação com o genital, e que se dá no processo de desenvolvimento das pessoas e de suas identidades autopercebidas a partir do meio em que estão inseridas. Entretanto, ainda há discursos que veem, de forma equivocada, o gênero como resultado de uma configuração genótipa e biológica, que ainda é recorrente e muito presente na maneira como ele é marcado compulsoriamente no nascimento. Durante este capítulo, nos momentos que a menção à genitália estiver presente será para explicar que esta relação foi construída sob certa autorização científica, mas não pretendemos reforça-lo como se o exercício do gênero fosse, de fato, dado pela genitália, mas o é de maneira psicossocial. 160 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) num corpo com pênis, masculinidades num corpo com vagina ou, até mesmo, inventando uma inédita forma de experienciá-las – alternativa possível, mas muito raramente executada – serão ininteligíveis, ou seja, incompreendidas, vistas como possíveis sujeitos de uma sub categoria, aberrações demonizadas e caçadas, que terão a abjeção e a marginalização como locais para vivenciarem suas existências, pois deixam de serem vistas e vistos como cidadãos que merecem respeito e proteção.(SALES, 2018; PERES, 2015; PELÚCIO, 2009). A ininteligibilidade de pessoas que performam gêneros diferentes da norma é o processo pelo qual passam travestis, mulheres e homens transexuais, intersexos, pessoas não-binárias, entre outras expressões de gênero, simplesmente por serem existências que rompem com as performances de gênero como estabelecidas e reivindicam outras formas de expressar seus gêneros. Levando-as/os a processos de exclusão e de vulnerabilidades, resultando inclusive em mortes, assassinatos e perseguições como nos mostram as reportagens que serviram de base para este capítulo. Assim, quando falamos de identidade de gênero, nos referimos não só às maneiras tradicionais e estabelecidas de vivenciar o masculino e o feminino, mas também às diversas formas possíveis de existir social e culturalmente, abrindo uma variedade de jeitos não apenas de se vestir, andar, usar o cabelo, falar, agir ou se comportar, mas também de como configurar e (re)criar corpos por meio de tecnologias médicas e farmacêuticas, inventando novas configurações corporais. Identidade de gênero nada tem a ver com orientação sexual. Esta última diz respeito ao modo como exercemos nossa sexualidade, isto é, qual gênero – ou gêneros – costuma atrair nossos desejos de se envolver afetiva e sexualmente. A orientação sexual costuma ser identificada como: heterossexual (atração entre gêneros opostos); homossexual (atração entre gêneros semelhantes) e bissexual (atração por ambos os gêneros). Uma travesti, por exemplo, possui uma identidade de gênero feminina, assim, deve ser vista e tratada por meio de adjetivos, pronomes e artigos femininos; já no que se refere à sua orientação sexual, ela pode ser considerada heterossexual, no caso de ela se sentir atraída por homens e também pode se tratar de uma travesti lésbica, caso ela se sinta atraída por mulheres, como também pode ser uma travesti bissexual, no caso de ela se atrair tanto por homens quanto por mulheres. Logo, não há relações diretas entre travestilidade e homossexualidade, como algumas reportagens apontaram, pois travesti é uma identidade de gênero e homossexualidade/ heterossexualidade/bissexualidade são identidades ligadas à orientação sexual. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 161 Tais confusões são efeitos do que chamamos de cisheteronormatividade. Esse é o nome de um regime compulsório e estabelecido socialmente no qual obriga os corpos com pênis a desempenharem performances masculinas e os corpos com vagina performances femininas, estando ambos sob pena de sofrerem constante patrulhamento para estarem adequadas ao que está normatizado e seren submetidos a sanções sociais no caso de inconformidade. Além disso, é um regime que não só estabelece a heterossexualidade como a única forma possível de vivenciar nossas sexualidades, mas também de se comportar, isto é, mesmo no caso de não se tratar de heterossexuais, um casal homoafetivo, por exemplo, deve se comportar de acordo com o modelo hetero, não se beijando ou trocando carícias em público e, de preferência, que casem, estabeleçam contratos monogâmicos e, assim, se afastem de valores sexuais e afetivos que se distanciem da referência que o casamento heterossexual cristão possui (MORELLI, 2017). Já no caso das travestilidades e transexualidades, esse regime protege aquelas e aqueles que mais próxim@s estiverem do masculino ou do feminino, não demonstrando nenhuma característica ambígua ou que, ao menos, permita identificar que se trata de uma pessoa trans. O regime cisheteronormativo estabelece uma linha classificatória e hierárquica que protege e acaba garantindo mais cidadania aos heterossexuais e pessoas que não só tenham seus gêneros correspondentes ao que foi imposto a partir da genitália do modo convencional, mas também quando os performam de acordo com o que está estabelecido socialmente para ser reconhecido como homem ou como mulher. As pessoas que possuem esses corpos considerados socialmente coerentes com o gênero que foi atribuído no nascimento a partir de suas genitálias e atendem às performances de gênero normativas são chamados de cisgêneras, e as que cruzam as normas de gênero, e não se reconhecem como pertencentes ao gênero que foi atribuído, podendo ou não alterar seus corpos e indumentárias, por exemplo, são transgêneras. Tod@s que rompem com a heterossexualidade ou com a cisgneridade passam por processos de exclusão, marginalização e abjeção, perdendo direitos e proteção em decorrência de seus gêneros inconformes. Tal regime é o que nos permite explicar as altas taxas de perseguição e de assassinatos contra pessoas travestis e transexuais, simplesmente por romperem com normas de comportamento estabelecidas socialmente que vivem, em seus corpos e em suas experiências de vida, os efeitos das sanções morais. Nesse contexto, a defesa das identidades de travestis, transexuais, transgêneras, intersexos, entre outras, é política, pois busca não apenas a visibilidade 162 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de suas existências e o reconhecimento de vidas dignas e urgentes de respeito e proteção, mas também porque busca ultrapassar esses códigos e dispositivos que estão presos a verdades de referências ocidentais universais, ampliando, assim, as referências identitárias e os diversos possíveis modos de existir. Apostamos, então, nos posicionamentos de resistências, que clamam por dispositivos embaralhados, andróginos, democráticos, revolucionários e que subscrevem formas corporais que se contrapõem aos discursos e códigos que aprendemos como sistemas de verdades. Aqui privilegiamos as potências rizomáticas94 subversivas, ou seja, as linhas de fuga que ampliam as referências, que positivam as corporalidades travestis (transbordantes) e as vidas como valor maior. A escolha por apontar relações tão excludentes e violentas contra a população travesti e transexual brasileira tem como objetivo embaralhar alguns desses códigos mirando os processos de exclusão de direitos, do uso de nome adequado ao seu gênero (feminino/masculino) e das posições cisheteronormativas que circulam nas mídias jornalísticas e registros policiais. Ao eleger vozes de pesquisadoras travestis e pessoas que se debruçam sobre a produção de conhecimento, ao falar com vivência, torna-se fundante entrelaçar conceitos, teorias e ferramentas de pesquisa por meio do processo dialógico com outras vozes de maneira equânime e coletiva. Essas relações sinalizam para defendermos as expressões de vidas trans na perspectiva de corporalidades fluídas, vibráteis, que não se separam de outros eventos da vida, como crenças, valores, ética, políticas e vivências psicossociais, pois cada linha, cada dispositivo eleito como aceitável ou não, marcam qual tipo de sociedade se quer e qual tipo de corpo não se quer. Se até aqui consideramos o gênero como um produto discursivo que se materializa nos corpos, cabem algumas perguntas: quais são os discursos do jornalismo brasileiro em relação às performances de gênero? Estariam elas reforçando as identidades de gênero como estão estabelecidas ou contribuindo para novas formas possíveis de experienciá-las garantindo respeito? Estariam eles contribuindo com a redução ou com o aumento dos processos já estabelecidos de estigmatização e exclusão de pessoas travestis e transexuais? O discurso, como o enxerga Michel Foucault (2013; 2014), é permeado por relações de poder em que os elementos que ganham corpo e poder social 94. Em referência a Deleuze &Guattari (2014), chamamos de potências rizomáticas aquelas práticas e identidades, como as mencionadas, que rompem com normativas sociais e morais ao abrir precedentes para outros modos de existir, isto é, aquelas vidas e expressões que escapam e fogem do imaginável e previsível adquirindo, por vezes, contornos inimagináveis ou, ainda que imagináveis, imprevisíveis e incontroláveis. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 163 são produtos da história de quem venceu na fala, inscrevendo-o no corpo, nas leis, nas práticas, etc. Assim, somente por meio de uma análise do discurso presente nas 179 reportagens veiculadas sobre assassinatos de pessoas travestis e transexuais – análise que será empreendida e sistematizada no tópico a seguir – é que poderemos ter pistas para as repostas das perguntas acima levantadas O trabalho de jornalista e o respeito às existências travestis e transexuais De acordo com um relatório da ONGTransgenderEurope (2012), o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, se apresentando como extremamente hostil e desafiador para uma população que oficialmente não tem reconhecida sua cidadania, como são travestis e transexuais. Devido a essa marginalização cidadã, não existem dados reais, populacionais, demográficos ou qualquer outro que possa demonstrar, em números, suas existências, o quanto estão excluídas e como são empurradas para a marginalização. No Brasil atual, é mais fácil contar as pessoas trans assassinadas, do que fazer seu levantamento populacional delineando melhor os seus aspectos sociais, tais como: religião, classe social, raça, escolaridade, entre outros95. Em 2017, chegamos ao maior índice de assassinatos de pessoas trans dos últimos 10 anos. Lembrando incansavelmente da subnotificação desses dados, ocorreram 179 Assassinatos de pessoas Trans, sendo 169 Travestis e Mulheres Transexuais (94% dos casos foram contra pessoas do gênero feminino) e 10 Homens Trans. Destes, encontramos notícias de que apenas 18 casos tiveram os suspeitos presos, o que representa 10% dos casos. Diante dos dados, chegamos a estimativa de que a cada 48h uma pessoa Trans é assassinada no Brasil e que a idade média das vítimas dos assassinatos é de 27,7 anos. (ANTRA, 2018). Mesmo assim, ainda é uma batalha fazer com que se acredite que a principal motivação desse alarmante índice é o ódio contra pessoas trans e travestis que, na palavra transfobia, apresenta sua melhor definição. Ainda que esta seja a principal motivação para esses crimes, o fato de não termos nenhuma lei específica, com termos e cláusulas especiais, faz com que os crimes sigam impunes assim como as ignorâncias que os motivam. A negação de tal motivação é exatamente o que nos faz pensar o quanto 95. É nesse sentido que esforços estão sendo realizados para que no censo IBGE de 2020 as populações trans e travestis contem como identidade a serem levantadas com suas respectivas tabulações sociais. Para saber mais, consulte: https://antrabrasil.org/2018/05/16/antra-oficia-dpu-e-esta-envia-recomendacao-ao-ibge-sobre-a-populacao-trans-no-censo-2020/. 164 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) a transfobia está naturalizada e é permitida em nossa sociedade. A vítima mais jovem noticiada tinha 16 anos e a mais velha 53 anos. O Mapa aponta que 67,9% das vítimas tinham entre 16 e 29 anos. Quanto mais jovem, mais suscetíveis à violência e à mortandade, ao contrário daquelas pessoas que ultrapassam a estimativa de vida de 35 anos (ANTRA 2018) que veem a possibilidade de ser assassinada/o diminuir com o avançar de sua idade. Negar a motivação transfóbica destes assassinatos é, antes de mais nada, jogar a culpa (por terem sido mortas) nas vítimas, ao tentar justificar que foram assassinadas - de forma quase sempre extrema - por estarem em ambientes violentos, em sua maioria na prostituição de rua ou sugerir que estavam envolvidas em atos ilícitos. É esquecer que foram o Estado e a sociedade, com todos os seus mecanismos simbólicos de exclusão, que as colocou ali, naqueles lugares, a saber: o não-lugar, como gostamos de nos referir no movimento social. De acordo com a ANTRA (2018), 90% da população de travestis e mulheres transexuais está na prostituição por falta de oportunidades, devido a exclusão familiar, social e escolar. Na média, é aos 13 anos de idade que a maioria das travestis prostitutas iniciam seu trabalho na rua por terem sido expulsas de casa ou por estarem em ambientes familiares não acolhedores e violentos. Vemos ainda que 70% dos assassinatos foram direcionados aquelas que são profissionais do sexo e que 55% deles aconteceu nas ruas. Desses dados, 80% dos casos foram identificadas como pessoas negras e pardas, retificando o triste dado dos assassinatos da juventude negra no Brasil. O que denota um alto grau de racismo e o ódio às prostitutas, em um país que ainda não existe uma lei que regulamente a prostituição que, apesar de não ser crime, sofre um processo de criminalização e é constantemente desqualificada por valores sociais pautados em dogmas religiosos que querem manter o controle dos seus corpos. Colocando-as ali, naquele único espaço possível de existirem, sem direito a um nome, à educação formal e à possibilidade de concorrer no mercado formal de trabalho, sem cidadania e sem respeito, é que estamos legitimando todas as formas de opressão que são impostas a elas e eles. Trata-se de uma luta para sobreviver com toda a violência perpetrada pela estrutura binária cisheteronormativa e cristã que não dá conta desses corpos que as persegue, demoniza, silencia e desumaniza. Utilizam-se, assim, da transfobia para caçar pessoas trans, exatamente como faziam durante a ditadura militar na vergonhosa limpeza urbana que promoviam ao perseguir e matar travestis e demais pessoas LGBTI, por meio da Operação Tarântula (OLIVEIRA, 2016) ou, como mais Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 165 recentemente, o fez o prefeito de São Paulo, em outubro de 2017, ao mandar prender prostitutas travestis que estavam trabalhando na praça da república96. Mesmo inseridas nesses espaços e práticas transfóbicos que promovem violências simbólicas, psicológicas ou mesmo físicas, as travestis e transexuais têm que se apoderar do seu corpo para garantir a subsistência de suas vidas, exatamente naqueles mesmos locais, perigosos e marginais. Ora, se elas são empurradas a estarem nesses locais marginais, muitas vezes de forma precoce por suas famílias, sem possibilidade de frequentar a sala de aula, tampouco de abandar esses locais que se tornam fonte de suas sobrevivências, fica a questão: como podem, ao serem mortas, ter ignoradas exatamente o motivo que as colocou ali? Como podem não ser abordados os processos de exclusão que delimitam a esquina como um espaço de trabalho mais adequado do que o mercado formal? A mídia exerce um papel fundamental nesse processo ao conferir ou negar humanidade a essas pessoas, que até então, no imaginário social, não passam de seres abjetos, com vidas precarizadas e subversivas, que desafiam a norma binária de gênero e exercem a liberdade de construir e desconstruir, não apenas seus corpos, mas suas próprias narrativas de ser e existir. Ao contar o assassinato de uma travesti, o jornalista está dando pistas para que o leitor, ao ter acesso às essas informações, tenha construída uma imagem pré-determinada sobre quem, como e porque aquela pessoa foi assassinada. Consequentemente toda a população trans também passa a ser identificada por estes mesmos atributos impostos, sem nenhuma possibilidade de resposta e isso acaba sendo replicado em muitos outros veículos da mídia, perpetuando estigmas e incentivando a transfobia institucional nos meios de comunicação. Em muitos casos, ele assume o papel de investigador, juiz e carrasco, justificando o crime, na maioria dos casos; ora atribuindo culpa à vítima, omitindo ou impondo causas; ora sugerindo envolvimentos em atos ilícitos; ou ainda dizendo a que gênero aquela pessoa pertence - mesmo sem nenhum conhecimento a respeito das teorias ou estudos de gênero ou mesmo sem se importar com a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual. Expõem seu nome de registro para justificar o porquê de tê-la tratado no masculino, no caso de travestis e mulheres transexuais, ou no feminino, em relação aos homens trans e pessoas transmasculinas, demonstrando uma total falta de compromisso ético com a vítima, seus familiares e amigos/as. São comuns os casos em que, além da tentativa de apagamento daquelas 96. Fonte: http://www.nlucon.com/2017/10/pm-prende-10-travestis-sem-que-elas.html. 166 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) existências, ainda exponham seus corpos mutilados, desnudos, esquartejados, sem nenhum pudor. Num sadismo quase sexual, ao fazer questão de desmoralizar ainda mais a imagem da vítima e, consequentemente, de nossa população – que, diga-se de passagem, já é extremamente hipersexualizada e fetichizada. Isso traz ainda mais sofrimento à memória das vítimas, de forma completamente irresponsável e que não colabora com as investigações, como muitos pensam. Ao contrário, apenas transforma o assassinato de pessoas trans em um verdadeiro show de horrores, aberto à acusação, ao julgamento e novamente à culpabilização das vítimas pelo mal brutal que lhe acometera. Vivemos em uma sociedade punitiva, especialmente daquelas pessoas que ousam desafiar a norma e, exercendo sua liberdade, construir corpos ilegítimos, como se merecessem aquele fim por serem vistas/os quase como não-humanos. Assim é exatamente ao viralizar este tipo de material que as/ os jornalistas estariam corroborando com a violência ali apresentada. Ao publicar este material de forma desnecessária, jornais, mídias sociais ou outros meios de comunicação não se dão conta que de fato não agregam nenhum valor informativo às matérias, na mesma medida que contribuem com a invisibilização dos processos de exclusão. Desse modo, podem incentivar sentimentos perturbadores caso não constem informações sobre o conteúdo e ainda violam direitos post mortem como a honra, imagem, intimidade, privacidade e inviolabilidade de seus restos mortais, garantidos pelos princípios da dignidade da pessoa humana por meio da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 e também da Constituição Brasileira de 1988. Não muito diferente da forma como eram retratadas na época da ditadura e nos anos seguintes, vemos constantemente se repetir o tratamento que a mídia impõe sobre as pessoas trans. Deliberando sobre quem somos, reforçando estigmas sobre as travestilidades, e criando uma diferenciação higienista a respeito das pessoas transexuais. Assim, aumentam ainda mais a confusão sobre que sujeito seria essa travesti vista apenas como marginal, enquanto a transexual passa por um processo de aceitação quando representada dentro de um modelo esperado de ser mulher. É a mídia que faz essa segregação, que marca corpos travestis como subalternos e que devem se manter lá, ao mesmo passo em que vende a ideia de que a mulher transexual representaria exatamente o oposto, inclusive por ser lida e equivocadamente apresentada sob um viés patologizante pela medicina, reforçando sua redenção ao adequar-se ao que a sociedade espera de alguém que performa feminilidade. Nesse processo, é importante observarmos tranversalidades nessas existências marcadas pela excluDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 167 são que se intensificam quando olhamos pelo viés do recorte de classe e raça. Nos anos 80, Goulart de Andrade, em seu programa “Comando da Madrugada”97 fez, de forma muito corajosa, uma série de matérias e reportagens sobre os travestis(sic), referindo a elas no masculino e retratando-as como se fossem homens cisgêneros gays, sem nenhuma menção a diferença entre orientação sexual e identidade de gênero, temas que ainda eram distantes da realidade nas discussões à época, mas não muito diferente de como vemos até hoje nas matérias, jornais e na mídia em geral. O programa fez questão de retratar a população trans exatamente neste único lugar possível de elas [re]existirem - o não lugar - nas esquinas, guetos das madrugadas, retratadas como centauros urbanos com hábitos noturnos, marginalizadas, perigosas, e sempre em extrema vulnerabilidade. Ainda que não seja muito diferente do que se vê hoje em dia, vivemos um momento histórico no qual há toda uma organização do movimento nacional de travestis e transexuais. Dentre elas, a ANTRA que tem ocupado grande parte do seu tempo apresentando novas perspectivas, a fim de contrapor essa imagem que segue sendo vendida e comprada como se fosse uma marca de nascença ou algo inerente a ser trans. Imagem essa que ignora toda a problemática que temos denunciado através de ações afirmativas e lutas coletivas ao redor do país e do mundo. Não muito diferente disso, é comum que a mesma imagem seja reforçada a cada novo caso de assassinato, o que muito preocupa o avanço das pautas por sobrevivência da população trans. Hoje, lutamos muito mais para não morrer e combater a violência a que estamos expostas, do que pensar em ganho de direitos perdidos ou mesmo inserção em espaços. Visto que, muitas vezes, é feito um trabalho enorme de inclusão, mas o trânsito das pessoas nesses locais perpassa pelo preconceito que, aliado à ignorância, cria e mantém um ambiente não acolhedor e violento, que novamente lhes impõe a exclusão. Exclusão familiar, escolar, social e em todos os demais ambientes fazem com que aquelas pessoas que foram incluídas, de alguma forma, acabem novamente sendo expulsas - desta vez de forma simbólica – desses espaços “inclusivos” e voltando para o não-lugar que lhes foi designado. São travadas verdadeiras batalhas diárias para o combate a essas violências e violações. O movimento nacional organizado tem se pautado no combate a essas manifestações de intolerância e racismo estrutural, como uma de suas principais bandeiras. E apesar dos desafios, temos visto uma pequena mudança na situação preocupante em 97. Vídeo disponível online: https://www.youtube.com/watch?v=NkoHPQib2Ro. 168 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) que vemos a população trans inserida. De acordo com o relatório final do Mapa dos Assassinatos de Travestis e Transexuais Brasileiras em 2017 (ANTRA, 2018), percebemos uma tímida, porém importante mudança no reconhecimento das identidades trans, bem como no uso e respeito do nome social de travestis e transexuais assassinadas nas matérias que nos informam esses dados. Se em 2016, das 144 pessoas assassinadas, apenas 22% dos casos relatados respeitaram o nome social e identidade de gênero das vítimas; em 2017, este índice aumentou para 68% dos 179 casos. O que sinaliza, apesar de toda a repressão e caça às discussões de gênero no país, que os estudos, trabalhos, pesquisas, debates, diálogos e resistências dos corpos e gênero-divergentes, têm conseguido provocar esta reflexão tão importante para que, mesmo mortas, assassinadas pelo ódio, suas histórias continuem vivas. Considerações finais Qual a intenção de reafirmar um nome masculino em uma pessoa que se autopercebe98 como sendo pertencente ao gênero feminino e que reivindica este lugar? O desrespeito ao nome social é recorrente. E o apagamento das identidades de gênero acaba por denunciar essa confusão entre as identidades de gênero e orientações sexuais. Negar a identidade é apagar sua existência e as possibilidades que poderia experimentar. Existiria aí, uma intenção - talvez motivada pelo desconhecimento, em manter a população trans exatamente onde está? Para que assim seu assassinato continue a passar impune, para que suas existências sejam deliberadamente apagadas e para que ninguém reclame seus corpos nus, violentados e expostos nas manchetes dos jornais? Trazemos essas reflexões para que possamos pensar em estratégias junto aos meios de comunicação a fim de que possam contribuir de forma positiva para o resgate da cidadania e na luta contra o preconceito. Tal processo seria melhor executado e mais eficaz caso houvesse o respeito à dignidade humana, deixando de expor imagens, fotos, nomes de registro, confusão entre gênero 98. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em San Jose, na Costa Rica, determinou parâmetros garantindo proteção à identidade de gênero autopercebida com a determinação de que seja mais ágil e simples a adequação do registro civil e da documentação de homens e mulheres trans em todos os países da América Latina membros da entidade, inclusive o Brasil, além do Caribe. O parecer, que tem o nome de Opinião Consultiva 24, foi emitido pela Corte em 9 de janeiro de 2018. Fonte: https://www.anadep.org.br/wtk/pagina/materia?id=36383. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 169 e sexualidade. Entretanto, seria ainda mais eficaz se os meios de comunicação de massa pudessem melhor informar sobre as condições sociais com as quais vivem pessoas trans e travestis, bem como compartilhar suas conquistas e bandeiras de luta, criando, assim, uma verdadeira rede nacional. Referências ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ANTRA). Mapa dos assassinatos de travestis e transexuais no Brasil em 2017. ANTRA: 2018. Disponível em: <https://antrabrasil.files.wordpress.com/2018/02/relatc3b3rio-mapados-assassinatos-2017-antra.pdf>. Acesso em: 15 mai. 2018. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014. DE ALMEIDA, H. B. Telenovela, consumo e gênero: “Muitas mais coisas”. Bauru: Edusc, 2003. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: Capitalismo e esquizofrenia 2 – vol. 1. 2ª ed. São Paulo: Editora 34, 2014. FOUCAULT, M. História da sexualidade I: a vontade de saber. 19ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 2009. _____. 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Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 171 Tendências queer nos estudos brasileiros de jornalismo e gênero99 Gean Oliveira GONÇALVES100 Universidade de São Paulo, São Paulo, SP Resumo O presente capítulo tem como objetivo apresentar possíveis diálogos epistemológicos e aproveitamentos metodológicos que os Estudos em Jornalismo podem ter a partir da Teoria Queer. A Teoria Queer reúne perspectivas críticas dentro dos Estudos de Gênero que sinalizam como são produzidos os sentidos de normalidade e as normas, bem como os espaços sociais, culturais e políticos de diferença e de desigualdade. Dessa forma, interessa-nos promover um debate de como os Estudos do Jornalismo podem se beneficiar ao incorporar ideias, críticas e perspectivas queer tanto nas investigações científicas (na Ciência da Comunicação) quanto nas investigações jornalísticas (na prática da reportagem). Palavras-chave: Teoria queer; Epistemologia; Metodologia; Pesquisa em jornalismo; Estudos de gênero. Do LGBT ao queer Antes de falarmos sobre a Teoria Queer, é preciso compreender quem é o sujeito político LGBT. É uma sigla que, no Brasil, designa a experiência de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, homens e mulheres transexuais. Internacionalmente, o T indica a presença de pessoas transgêneras no movimento, ou seja, o espectro de pessoas cuja identidade de gênero não se alinha à designação de gênero do nascimento, uma vez que existem pessoas cisgêneros, aqueles em concordância com o gênero designado para elas. 99. Uma versão preliminar deste capítulo foi anteriormente apresentada no 15º Encontro Nacional de Pesquisadores em Jornalismo, promovido pela Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor), na Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP), em novembro de 2017. 100. Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Bolsista do CNPq sob orientação da Professora Dra. Cremilda Medina. Jornalista voltado aos direitos da população LGBT, aos temas de gênero e sexualidade na comunicação social. E-mail: geangoncalves@usp.br. 172 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) É importante compreender que na dimensão de gênero há a identidade de gênero101, que diz respeito à experiência interna e individual do gênero, profundamente sentida por cada pessoa, que pode ou não corresponder ao gênero atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (o que envolve, por livre escolha, modificação da aparência ou funções corporais por meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero dadas inclusive pela vestimenta, modo de falar e demais maneirismos. Já a sexualidade traz à tona a dimensão da orientação sexual102, a capacidade de cada pessoa de experimentar uma atração emocional, afetiva ou sexual por indivíduos de gênero diferente, do mesmo gênero ou de mais de um gênero, assim como de ter relações íntimas e sexuais com essas pessoas. As denominações identitárias contempladas na população LGBT caracterizam a existência, política, social e cultural, de outros arranjos sexuais e de gênero não contemplados por um pensamento heterossexual. São identidades que ao mesmo tempo são fontes possíveis de existência, de percepção, de reconhecimento e de prazer, mas também são indicadores de desigualdade, de vulnerabilidade e de opressão de sujeitos e segmentos populacionais. Portanto, é fundamental pensar gênero e sexualidade como dimensões complexas com uma gama de atores culturais, sociais e políticos. É certo que toda classificação apresenta o risco e o déficit de ser excludente ou não compatível com a complexidade de interpretações e de como as pessoas se apropriam e fazem uso dela. O queer, por exemplo, é tomado no Brasil, muitas vezes como103 uma nova marca identitária: como termo universal para quem não está de acordo com as definições dominantes de masculinidade, feminilidade e sexualidade, um sinônimo para as identidades LGBT; ou para aqueles que vivenciam uma fluidez de gênero ou do desejo sexual; ou ainda como nova identidade daqueles que são estranhos ou dissonantes do que se espera de quem ocupa uma das identidades LGBT. Todavia, com a ampla vocalização da teoria e prática feminista desde os anos 1970, diferentes autoras e autores foram responsáveis por importantes contribuições conceituais para se examinar as questões de gênero e sexualidade na contemporaneidade. Entre tais provocações epistemológicas estão os inti101. Definição elaborada a partir do documento Princípios de Yogyakarta, carta sobre a aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero. Documento referencial das Nações Unidas. 102. Também proveniente do texto dos Princípios de Yogyakarta. 103. No texto “Traduções e torções” (publicado na Revista Periódicus, 1ª edição de 2014), Larissa Pelúcio, professora da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – Unesp, dedica-se a apontar como o pensamento queer em terras brasileiras se tornou uma teoria de combate com poucos frutos e elaborações no ativismo. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 173 tulados Estudos Queer. Uma vertente de teorias e práticas políticas que a priori poderia ser definida pela inquietante crítica a normalização das identidades. Diferente do contexto político dos Estados Unidos, de onde a palavra é proveniente, no Brasil, queer é uma palavra que ganha sentido, em muitos espaços, como uma perspectiva de estudos. Temos localmente apropriado o termo, sobretudo, como achado teórico e conceitual para a produção de saber no campo do gênero e da sexualidade. Do inglês, queer é uma palavra com uma carga pejorativa que pode ser traduzida como estranho, esquisito, ridículo, raro ou extraordinário (LOURO, 2015), mas que é uma injúria, algo similar as ofensas “bicha” ou “viado” que tantos jovens com comportamentos diferentes das regulações do masculino escutam no Brasil. Como parte de uma estratégia de valer-se de algo ofensivo, a comunidade LGBT dos Estados Unidos realizou, desde os anos 1970, um movimento de apropriação linguística e passou a utilizar a palavra como fonte de orgulho para expressar as práticas de vida em desacordo com as normas socialmente aceitas. Prática semelhante no âmbito do uso social da linguagem também se dá no Brasil. No entanto, queer, em determinados contextos, nomeia o conjunto populacional com desejo de romper as amarras do projeto de poder normativo e regulador que as heterossexualidades constituíram. Nesse sentido, considero queer uma força, um empreendimento crítico que desestabiliza, uma perspectiva política que aponta para a construção de modelos de masculinidade e feminilidade ao mesmo tempo que possibilita uma nova mentalidade em torno dos corpos que não se encaixam nesses modelos, ou seja, indica a existência e aceitação de quem sempre foi percebido como estranho às normas de gênero e sexualidade. Queer é a denúncia de imposições de comportamentos aos corpos de forma que nos coloca a pensar sobre os processos de instauração ou de osmose das normas culturais. Queer também passa a expressar, na opinião de críticos das estratégias políticas dos movimentos LGBT, uma forma de expressar um desacordo com lésbicas, gays e bissexuais que atuam ou colaboram para uma política de assimilação ou de limpeza das condutas sexuais dissidentes à hegemonia heterossexual, isto é, àqueles que utilizam o modelo heterossexual como perspectiva legítima de vida a ser seguida. Portanto, queer é tanto uma postura ético-política quanto uma vertente de estudos das normalizações. Não é possível pensar, sentir e agir de modo queer sem a influência dos novos sujeitos históricos que passam a demandar direitos e segurança para seus 174 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) modos de ser e viver nas sociedades pós-industriais: Se o movimento gay e lésbico tradicional tinha como preocupação mostrar que homossexuais eram pessoas normas e respeitáveis, o movimento queer vem para dizer: “olha, mesmo os gays e lésbicas respeitáveis em certos momentos históricos serão atacados e novamente transformados em abjetos”. A maior parte das pessoas, sobretudo as que estavam com o HIV, não faziam parte desse grupo pelo qual o movimento homossexual forjado na década de 1960 lutava. Em sua maior parte, o movimento homossexual emerge marcado por valores de uma classe-média letrada e branca, ávida por aceitação e até mesmo incorporação social. (MISKOLCI, 2015, p. 24) De acordo com o sociólogo brasileiro Richard Miskolci (2009), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), originada a partir dos Estudos Culturais norte-americanos e do pós-estruturalismo francês, a Teoria Queer ganha notoriedade como contraponto crítico à política de identidades dos movimentos sociais, uma vez que a perspectiva de minoria sexual termina por manter e naturalizar a norma heterossexual. Os primeiros teóricos queer rejeitaram a lógica minorizante dos estudos socioantropológicos em favor de uma teoria que questionasse os pressupostos normalizadores que marcavam a Sociologia canônica. A escolha do termo queer para se autodenominar, ou seja, um xingamento que denotava anormalidade, perversão e desvio, servia para destacar o compromisso em desenvolver uma analítica da normalização que, naquele momento, era focada na sexualidade (MISKOLCI, 2009, p. 151). Baseada em uma interpretação do sujeito da filosofia pós-estruturalista, descontruído e constituído, como mutável, circunstancial e fragmentado, os estudiosos queer começam a apontar que nada é natural, nenhuma experiência é dada, as divisões binárias do gênero, e por consequência dos corpos alvos da sexualidade, como outra dicotomia, são atribuídos a partir de parâmetros formulados por regimes de verdade: [...] não é o momento do nascimento e da nomeação de um corpo como macho ou como fêmea que faz deste um sujeito masculino ou feminino. A construção do gênero e da sexualidade dá-se ao longo de toda a vida, continuamente, infindavelmente. Quem tem a primazia nesse processo? Que instâncias e espaços sociais têm o poder de decidir e insDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 175 crever em nossos corpos as marcas e as normas que devem ser seguidas? (LOURO, 2008, p. 18) Além das teorizações que problematizam o pressuposto de curso natural da heterossexualidade e o lugar de desvio da homossexualidade, a Teoria Queer é marcada pelas obras dos filósofos franceses Michel Foucault e Jacques Derrida. A partir de Foucault, expõe-se o caráter discursivo e repressivo da sexualidade em nossas sociedades. Mostra-se como a sexualidade se tornou objeto do poder disciplinar por meio de sexólogos, psiquiatras, psicanalistas, educadores, de forma a ser descrita e, ao mesmo tempo, regulada, saneada, normalizada por instâncias sociais como as Religiões, a Ciência e a Justiça na tentativa de delimitar as formas aceitáveis e as formas perversas da sexualidade. É por meio das reflexões de Michel Foucault (1988) que se aponta ainda o movimento contemporâneo de proliferação de identidades, prazeres específicos em conjunto com os discursos sobre a sexualidade. Já na leitura de Derrida, postula-se um método: a analítica da desconstrução. Para o filósofo, a razão ocidental opera, tradicionalmente, por dualismos: a partir de uma posição se formula o lugar do “outro”, o oposto ao normal é hierarquizado como inferior. Acompanhando o pensamento de Derrida, essa lógica pode ser abalada com um processo estratégico de desestabilização dos pares por meio da denúncia da complementariedade e interdependência das oposições de forma a minar e perturbar o próprio discurso que o afirma. Desconstruir é um ato analítico de desfazer polaridades e tecer um quadro de referência mais rico e complexo. É possível compreender os Estudos Queer como uma empreitada que expõe a imposição da heterossexualidade como um regime político-social que regula corpos, um dispositivo de poder com base em marcadores sociais de diferença que efetiva posições sociais de hegemonia e outras de subalternidade, isto é, uma ordem compulsória que garante privilégios políticos, culturais e econômicos para uns e não para outros. Os estudos “queer” sublinham a centralidade dos mecanismos sociais relacionados à operação do binarismo hetero/homossexual para a organização da vida social contemporânea, dando mais atenção crítica a uma política do conhecimento e da diferença (MISKOLCI, 2009, p. 154). 176 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Como campo epistemológico, a Teoria Queer proporciona ferramentas para perceber e explorar melhor as relações que implicam a heterossexualidade como expectativa, demanda e obrigação social, já que ela é fundamentada pela cultura como natural e ordem legítima da sexualidade, mas não só. Permite ainda pensar como operações históricas incitam hegemonias e subalternidades em virtude da imposição social de normas e convenções culturais. Nesta ação, o poder não é algo associado com um grupo, com uma instituição ou com um indivíduo, mas um elemento relacional e cultural que é variável e contextualizado. As confluências de um ativismo político e de um pensamento teórico em torno da condição marginal das pessoas LGBT produziram este campo que coloca em xeque os modos como se produz a desigualdade. Neste foco, olha-se com mais atenção para confluências (raça, classe, gênero e sexualidade) e com isso se preocupa com as violências impostas aos trabalhadores do sexo, aos homens e às mulheres transexuais, às travestis, às mulheres negras periféricas, às bichas negras e afeminadas104. Sujeitos que lidam com múltiplos estigmas e são relegados à abjeção em diferentes espaços sociais. A teoria chega às comunicações e ao jornalismo Os estudos sobre a visibilidade de grupos vulneráveis, chamados popularmente como minorias, vem se mostrando mais presente no campo da Comunicação desde os anos 1990. Análises sobre o papel do jornalismo, da ficção televisiva, da publicidade e outros gêneros e suportes midiáticos tornaram-se o eixo central das pesquisas de graduação e pós-graduação que percebem que o discurso midiático, seja ele de consumo, de expressão cultural, de informação ou de entretenimento, é fundamental para o reconhecimento da pluralidade social, para a construção de afetos dos sujeitos e a aproximação com os territórios dos indivíduos menos transitados em nossas culturas. Frente a esse paradigma e pelo diálogo com a literatura antropológica, sociológica e filosófica, passando pelos estudos culturais e subalternos, e sobretudo pelos saberes constituídos pelos movimentos feminista e LGBT, é que na última década o campo da Comunicação debruça com maior intensidade sobre a perspectiva de gênero. As transformações políticas e culturais nos últimos cinquenta anos re104. O uso dessas palavras para algumas pessoas pode soar pejorativo. Todavia, o uso em questão é político. Demarca que há pessoas cuja performance de gênero atrelada à sexualidade às mantêm à parte da aceitação, dos ideais masculinos e que detêm corpos dissidentes. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 177 percutiram na produção do conhecimento. Desenvolveram-se novas percepções, novos sentidos e uma terminologia de gênero. Entre as novas compreensões, toca, principalmente, a noção do gênero e da sexualidade como algo que é forjado tanto no meio cultural como seria por fatores biológicos. Uma diluição do peso dado as explicações e paradigmas provenientes das Ciências Biológicas, da Medicina, das Ciências Jurídicas e de certas vertentes da Psicologia, da Psiquiatria e da Psicanálise, enquanto saberes normativos, cuja leitura disciplinar identifica modos de ser e práticas aceitáveis, saudáveis e normais em contraposição aquelas que serão objeto de correção, de cuidado ou punição criminal. É com a inserção da sexualidade e do gênero na esfera cultural, da constituição histórica, do sociológico e do antropológico, é que surgiram estudos que corroboraram para conhecer e respeitar formas de vivências sexual e de gênero não hegemônicas. No entanto, outros estudos serão alimentados pelo fato de que é extremamente importante começar a questionar a hegemonia heterossexual como modelo e regime cultural, social e político. Um olhar queer sobre a cultura convida a uma perspectiva crítica em relação às normas e convenções de gênero e sexualidade que permitem – e até mesmo exigem – que muitas pessoas sejam insultadas cotidianamente como esquisitas, estranhas, anormais, bichas, sapatões, afeminados, travestis, boiolas, baitolas, e por aí vai. Pensem sobre essas pessoas e ficará um pouco mais claro, espero, por que queer não é sinônimo de gay ou de homossexual. Também espero que percebam que nada, ou muito pouco, adianta buscar passar da injúria para uma tabela de identidades, de forma que fosse possível dizer assim: “eu vou respeitar fulano, porque fulano é tal coisa”. A ideia não é apenas descobrir a forma correta de chamar alguém, mas, antes questionar esse processo de classificação que gera o xingamento: a primeira experiência com relação à sexualidade de todo mundo, seja daquele que foi rejeitado e aprendeu que não era normal, seja de quem adotou as normas e se inseriu socialmente de uma forma mais fácil, digamos assim, é a experiência da injúria (MISKOLCI, 2015, p. 33). O termo Teoria Queer é atribuído a historiadora italiana Teresa de Lauretis, que está radicada nos Estados Unidos. Em uma conferência na Universidade da Califórnia em 1990 cujo debate deu origem a um especial de uma revista acadêmica com o título Queer Theory: lesbian and gay sexualities, o nome surgiu, na fala de Lauretis, como uma tentativa de fechar uma unidade 178 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) para um conjunto de pesquisas, pesquisadoras e pesquisadores muitas vezes dispersos e até mesmo discordantes. Assinala-se que seria uma corrente nascida a partir dos anos 1990, em virtude da divulgação de livros influenciadores como Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade (originalmente publicado em março de 1990), da filósofa Judith Butler, e A epistemologia do armário (lançado em 1990 e ainda não traduzido completamente no Brasil), da teórica Eve Kosofsky Sedgwick, ambas dos Estados Unidos. Esses estudos se organizaram a partir de alguns pressupostos: a sexualidade como um dispositivo; o caráter performativo das identidades de gênero; o alcance subversivo das performances e das sexualidades fora das normas de gênero; o corpo como um biopoder, fabricado por tecnologias precisas. Em torno desse programa mínimo, propõe-se queering, o campo de estudos sobre sexualidade, gênero e corpo (BENTO, 2006, p. 81). No Brasil, a Teoria Queer teve entrada por meio do campo da Educação, espaço privilegiado de reflexão sobre a formação dos sujeitos. A educadora gaúcha Guacira Lopes Louro articulou pioneiramente e de forma criativa à realidade brasileira tais reflexões, a partir da experiência dela na Universidade da Califórnia, em virtude de uma oportunidade de estudos, no fim nos anos 1990. Desde que aportou no Brasil, ainda na década de 1990, a Teoria Queer provocou questionamentos quanto às possíveis traduções, ou seja, os modos como tal estofo teórico seria absorvido e significado para as experiências marginais brasileiras. Em síntese, os estudos queer no Brasil necessitariam de uma perspectiva para além do norte global. Não por uma questão geográfica, mas sim de um conhecimento adequado, relevante e arejado pelas vivências latino-americanas. Neste quadro, apontamentos críticos são feitos à teoria queer e possibilidades epistemológicas estão sendo desenhadas agora que o pensamento queer se torna uma expressão política de alguns movimentos sociais e artísticos brasileiros. Os estudos queer foram percebidos no Brasil no início dos anos 2000: como uma teoria de ação/reflexão, capaz de se valer dos aportes de Foucault, Derrida, do feminismo da diferença, dos estudos pós-coloniais e culturais para desafiar não somente a sexualidade binária e heterossexual, mas a matriz de pensamento que a conforma e sustenta. Certamente, Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 179 não foi recebida assim de forma unânime. Algumas pessoas viram nos aportes teóricos e conceituais das/dos teóricas/os queer uma possibilidade de atualizar os estudos gays e lésbicos que já se fazia no Brasil desde a década de 1980 (PELÚCIO, 2014, p. 8). A professora Guacira, a partir da veiculação do texto Teoria Queer: uma política pós-identitária para a educação (2001), na Revista Estudos Feministas, foi responsável pela circulação dessa vertente de estudos na área educacional brasileira e por uma nova proposta acadêmica que atingiu as mais diversas áreas do conhecimento, entre elas, a Comunicação e o Jornalismo. Como os estudos queer são aplicados na Comunicação? Em um rastreamento das Teses e Dissertações105 produzidas no Brasil e disponibilizadas no Portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes, o termo queer é componente do título, do resumo ou das palavras-chave de 37 pesquisas de mestrado e doutorado da área de Ciências da Comunicação. Desse total, em apenas um dos resultados a pesquisa não tinha como enfoque os estudos queer, mas sim o seriado televisivo Queer as Folk. Não se trata de constituir um Estado da Arte, todavia, é perceptível, principalmente, em comparação com mapeamentos sobre comunicação e gênero (ESCOSTEGUY; MESSA, 2008), estudos das homossexualidades na comunicação social (LAZARIN; RODRIGUES, 2014) e estudos de gênero na pesquisa em jornalismo (MARTINEZ; LAGO; LAGO, 2016) que uma vertente queer, ainda que tímida, aparece no campo da Comunicação a partir de 2006106, com grande impacto em pesquisas mais recentes, de 2015 a 2018, quando se alcança 26 estudos com esse lócus teórico. Os estudos queer são apresentados, majoritariamente, nas dissertações, 22 das 26 pesquisas encontradas. Dessa maneira, acredito que há uma onda de pesquisadoras e pesquisadores em formação que são responsáveis por incorporar os estudos queer à Comunicação e aos Estudos em Jornalismo. A pesquisa de gênero nos estudos de Jornalismo vem ganhando projeção, dessa forma é que o referencial queer começa a ser explorado e tensionado nas diversas experiências de pesquisa. Neste levantamento, a leitura queer para as questões de gênero e sexualidade são mais marcantes nos estudos sobre ci105. Conferir tabela com os registros do levantamento no Apêndice. 106. GOMIDE, 2006. 180 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) nema e documentário (12), mas os estudos em jornalismo (10)107 ocupam a segunda posição. É possível observar os primeiros usos da Teoria Queer em trabalhos sobre o Jornalismo como “Identidade Capturada. A Parada do Orgulho Gay de São Paulo em 2007 nos Telejornais”, mestrado de Irineu Ramos Ribeiro, defendido em 2008 na Universidade Paulista” e com “Masculino, o gênero do jornalismo: um estudo sobre os modos de produção das notícias”, mestrado de Márcia Veiga da Silva, defendido em 2010 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Parte dessa inserção se deve também as leituras e interpretações de Michel Foucault, Judith Butler, Teresa de Lauretis, Eve Kosofsky Sedgwick mais comuns nas Ciências Humanas e Sociais e pela proeminência do trabalho de Guacira Lopes Louro. Dentro das universidades brasileiras, é notável que, enquanto campo de investigação ao estudar a comunicação, as perspectivas de gênero abriram espaço para ensaiar a compreensão de inúmeras complexidades das relações humanas. As teorias de cunho queer acabam por implodir as identidades fechadas como naturais e imutáveis e permitem denunciar as concepções de masculinidade, feminilidade e sexualidade ligadas com uma norma social compulsória. Tornando queer (queering) o jornalismo A comunicação social detém a capacidade de apresentar paisagens simbólicas por meio de imagens, descrições e narrativas. Ao olhar o contexto contemporâneo com as lentes de gênero, é possível verificar transformações culturais provenientes das lutas por representação qualitativa nos meios midiáticos, principalmente, nas narrativas jornalísticas: Imagens homofóbicas e personagens estereotipados exibidos na mídia e nos filmes são contrapostos por representações ‘positivas’ de homossexuais. Reconhecer-se nessa identidade é questão pessoal e política. O dilema entre ‘assumir-se’ ou ‘permanecer enrustido’ (no armário – closet) passa a ser considerado um divisor fundamental e um elemento indispensável para a comunidade. Na construção da identidade, a comunidade funciona como o lugar da acolhida e do suporte – uma espécie de lar (LOURO, 2001, p. 543). 107. RIBEIRO, 2008; VEIGA DA SILVA, 2010; VEIGA DA SILVA, 2015; FRANCISCO, 2016; CAEIRO, 2016; BORELA, 2017; INSFRAN, 2017; GONZATTI, 2017; GONÇALVES, 2017; MACHADO, 2017. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 181 As pessoas vivem em meio a múltiplos discursos generificados, muitos desses discursos são projetados pelo Jornalismo. Assistimos a uma explosão visível das sexualidades, mas sobretudo, as disputas em torno das fronteiras tradicionais de gênero e da sexualidade é que expõem os limites entre o que é masculino ou feminino, entre o que constitui o que é o homem e o que é a mulher, entre quem é heterossexual e quem é homossexual. Muito dos teóricos e das teóricas do campo de estudo do jornalismo, com destaque aos queer, ambicionam uma mudança epistemológica que efetivamente rompa com tais lógicas dicotômicas e com os efeitos de classificação, de hierarquia, de dominação e de exclusão de corpos. Dessa forma, o que está em disputa são as narrativas e os meios pelos quais elas se disseminam e são apresentadas. Como ato social, repousa no Jornalismo a capacidade de apresentar sentidos, de constituir diálogos. Desse modo, o Jornalismo é uma forma de conhecimento de gênero. “O Jornalismo constrói suas narrativas tomando como base principalmente o discurso tecido pelos envolvidos” (LAGO, 2014, p.182). Portanto, haverá no Jornalismo discursos de gênero, sentidos em disputa. Corrobora com essa ideia, os apontamentos de Cremilda Medina (2006), grande pesquisadora em jornalismo, para quem as mediações jornalísticas são constituídas de três famílias de conteúdos: serviços informativos, a reportagem e a opinião assinada. Ao informar, interpretar e opinar, o Jornalismo pode consagrar ou ampliar os modos de ver e de se relacionar com o mundo. Como narrativa cultural, o jornalismo detém potências: de apresentar uma sociedade plural, de interpretar disputas e conflitos, de questionar as posições centrais e as marginais. Tornar evidente a heteronormatividade e pôr em questão as classificações e os enquadramentos nocivos. Além de explorar transgressões, singularidades e fluidez. O alvo direto da Teoria Queer é o regime de poder-saber. Nesse sentido, as narrativas jornalísticas são fundamentais. De acordo com a professora Guacira Lopes Louro (2008), há instâncias e espaços sociais com o poder de inscrever em nossos corpos sentidos e normas. De forma sutil, a construção de aprendizagens e práticas dos gêneros e das sexualidades se dá por potentes pedagogias. As narrativas midiáticas participam dessa construção em virtude do papel de sedução e do impacto orientador que está presente em telenovelas, anúncios publicitários, jornais, revistas, filmes, programas de TV, sites e blogs da internet, entre outros. 182 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Para Louro (2008), a construção dos gêneros e das sexualidades se dá também por orientações e ensinamentos que parecem absolutos, “especialistas” em família, da escola, da igreja, de instituições legais e médicas são quase soberanos. Fazem parte das vozes que assentam e reiteram por várias instâncias normas culturais. O jornalismo ecoa as orientações que provêm desses especialistas. No entanto, também é significativo que o jornalismo, muitas vezes, dá projeção às vozes masculinas, vozes que socialmente estão conectadas ao poder político, econômico e científico. Sobre isso, Marcia Veiga da Silva (2010), ao observar as rotinas jornalísticas, diz que o Jornalismo se relaciona diretamente com os saberes legítimos, que devem ser partilhados e tomados como norteadores nos modos como os sujeitos aprendem a se constituir e a ler o mundo. A mídia e o jornalismo estão constituídos por gênero e produzem relações de gênero e de poder que resultam em saberes acerca disso. Investigar os modos como o jornalismo está perpassado por gênero é o primeiro caminho para entender como o jornalismo acaba contribuindo para o processo de (re)produção de valores e representações hegemônicos de gênero que, em última instância, refletem a existência de um padrão heteronormativo. É perceber o jornalismo, por uma ótica de gênero, relacionado com os modos como se constrói o conhecimento sobre as coisas (e pessoas) do mundo. (VEIGA DA SILVA, 2010, p. 63) O Jornalismo teria, portanto, o peso de uma atividade semelhante a escola. Escuta mentalidades e discursos hegemônicos com pouca margem para derivações de verdade. Os profissionais de Comunicação – em especial, os jornalistas – exercem um papel fundamental na apresentação simbólica do mundo. Entre as quais, põe em evidência elaborações sexuais e de gênero a partir de esquemas binários e heterocentrados. Guacira Lopes Louro (2015) apresenta um ponto essencial ao debate sobre as representações jornalísticas. Ela indica que as representações culturais em qualquer meio são atravessadas por significados atribuídos a partir do que circula em sociedade. No Jornalismo, não poderia ser diferente, a heterossexualidade é abordada como referência. Dá ressonância a sentidos de gênero. Dá coerência a profundas imposições culturais. Nesse contexto, muitas das representações operam pela reiteração do que é hegemônico: Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 183 Distintas e divergentes representações podem, pois, circular e produzir efeitos sociais. Algumas delas, contudo, ganham uma visibilidade e uma força tão grandes que deixam de ser percebidas como representações e são tomadas como sendo a realidade. Os grupos sociais que ocupam as posições centrais, “normais” (de gênero, de sexualidade, de raça, de classe, de religião, etc.) têm possibilidade não apenas de representar a si mesmos, mas também de representar os outros. Eles falam por si e também pelos “outros” (e sobre os outros); apresentam como padrão sua própria estética, sua ética ou sua ciência e arrogam-se o direito de representar (pela negação ou pela subordinação) as manifestações dos demais grupos. (LOURO, 2015, p. 16) A produção da heterossexualidade na mídia é acompanhada da rejeição ou assimilação da homossexualidade em termos de conceber discursos dos modos de ser normal. Sentimento que é rigidamente incutido tanto na produção das masculinidades quanto nas feminilidades. Exemplo disso é a vigília das expressões físicas dos afetos entre homens, assim como quais gestos devem ser empregados por homens e comportamentos adequados para as mulheres. Há um disciplinamento para os corpos, de modo que o jornalismo muitas vezes, sutilmente, encoraja determinadas posturas, estilos e práticas masculinas na política, no trabalho, no esporte e na cidadania por meio de valores e orientações em torno do poder, da liderança, da competição e da violência. Já as posturas, estilos e práticas femininas estão asseguradas pelo modo como as mulheres são medidas, domesticadas e coagidas em torno da beleza, da família, da vida doméstica, do sexo e da saúde. Tais pedagogias são exercidas mais diretamente em revistas de gênero, mas também estão presentes nas demais narrativas do jornal, do rádio, da TV e da internet. O que seria necessário para rever as práticas de gênero no Jornalismo e nas narrativas? Deslocar sentidos, desnaturalizar ideias, reconfigurar discursos parecem ser o caminho indicado pela Teoria Queer. Na prática, observo com mais potência trabalhos de campo, narrativas com lógicas femininas, como as reportagens em livro O nascimento de Joicy: transexualidade, jornalismo e os limites entre repórter e personagem, da jornalista brasileira Fabiana Moraes (Arquipélago, 2015), e A guerra não tem rosto de mulher, de Svetlana Aleksiévitch (Companhia das Letras, 2015). Obras jornalísticas cuja autoria não se vale da manutenção da abjeção de certos corpos, mas que têm como potência justamente ressaltar o lugar e a importância da voz e dos corpos dos sujeitos nos sentidos cotidianos e históri184 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) cos. São textos jornalísticos que escapam das rotas seguras; implodem manuais e gramáticas; caminham pelo incerto e pelo plural, se aventuram por uma investigação queer. Uma investigação queer trata-se de considerar outros modos de fazer pesquisa e reportagem, ir à margem das limitações dadas pelo Jornalismo e pela Ciência positiva, precisa, masculina e universal. Essa abordagem investigativa implica ainda em outras proposições: localizar/situar o saber (HARAWAY, 1995) e a produção simbólica, bem como se aventurar pela plasticidade da língua, por outros modos de comunicação. É com esse investimento metodológico e epistemológico que se apontam outros lugares e possibilidades de gênero que inscrevem desejos e comportamentos, narrativas que rompem as normas fechadas de que tipos de pessoas podemos desejar ou podemos ser. É possível olhar para narrativas jornalísticas como possíveis contradiscursos ao sistema corpo-sexo-gênero e aos vetores produtores de violências, desigualdades e exclusões. Em outras palavras, é preciso saber a partir de quem e de quais saberes se dá o reconhecimento do normal, do adequado, do sadio e, por consequência, de quem é colocado como sujeito humano. [...] os movimentos sociais organizados (dentre eles o movimento feminista e os das “minorias” sexuais) compreenderam, desde logo, que o acesso e o controle dos espaços culturais, como a mídia, o cinema, a televisão, os jornais, os currículos das escolas e universidades, eram fundamentais. A voz que ali se fizera ouvir, até então, havia sido a do homem branco heterossexual. Ao longo da história, essa voz falara de um modo quase incontestável. Construíra representações sociais que tiveram importantes efeitos de verdade sobre todos os demais. (LOURO, 2008, p. 20) Trata-se de interrogar por quais mecanismos são implementas hierarquias e relações de poder. Saber como a diferença é naturalizada através dos processos culturais, bem como apontar que as classificações dos gêneros e da sexualidade não dão conta das possibilidades de práticas e de identidades. Contudo, isso não significa que haja um livre trânsito sexual e de gênero, visto que há em vigor pessoas em posições marginais. O que se quer é ressaltar a necessidade do exercício de novas complexidades e compreensões dos gêneros e sexualidades, opondo-se assim aos pensamentos hegemônicos que demarcam corpos com base em representações nocivas. É entrar em disputa com saberes instituídos em torno das sexualidades, Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 185 gêneros e outras diferenças sociais. São passos necessários à mediação social, ao Jornalismo, ou seja, para colocar em questão os déficits da relação com o Outro. A proposta queer é um dos modos possíveis de pensar caminhos que possibilitam a transgressão, a perturbação, a intuição criativa e a transformação. A busca pela narrativa que incita a escuta de todos os sujeitos e que aflora a interação social, um ganho que somente a evolução tecnológica e técnicas do jornalismo não podem dar por si só. As circunstâncias da escuta são um caminho eficaz para despoluir olhares sobre as questões de gênero e sexualidade. Daí advêm a necessidade de implementar novos afetos e novas solidariedades entre o Eu e o Tu, sensibilidades que estejam à margem das certezas. Referências BENTO, B. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. 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Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 187 APÊNDICE 188 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 189 190 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 191 Fonte: Autor 192 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Mulheres jornalistas e o “teto de vidro gênero/raça/classe” a tensionar a carreira das jornalistas negras brasileiras Dione Oliveira MOURA108 Hallana Moreira R. da COSTA109 Universidade de Brasília, Brasília, DF Resumo O capítulo apresenta os resultados da Etapa 1 de projeto de pesquisa110, na qual mapeamos as ações e relatos de experiências de mulheres negras jornalistas do Distrito Federal (DF), especialmente as que atuam na COJIRA-DF (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) do DF e no Coletivo de Mulheres do Sindicato dos Jornalistas do DF (SJPDF). Os resultados do estudo apontam que i) a manutenção das mulheres jornalistas negras em situação ainda de maior desigualdade perante às jornalistas brancas e/ou não negras demonstra que a segregação (ou concentração) horizontal e vertical – presente na carreira da jornalista branca ou negra brasileira é ainda mais acentuada no caso das jornalistas negras brasileiras e pode ser associado, inicialmente, com o conceito clássico de “teto de vidro”, contudo, com um diferencial da interseccionalidade raça/gênero/classe; ii ) as mulheres jornalistas brasileiras enfrentam, minimamente dois “tetos de vidro”: um teto de vidro de dimensão mais associada a gênero e/ou a classe (dimensão única ou dupla) (a qual detém as mulheres jornalistas brancas ou não-negras no processo de ascenção na carreira, visibilidade e status profissional e um outro teto de vidro. Este último teto de vidro o percebemos como possuindo três dimensões (associadas à interseccionalidade gênero/raça/classe) , o qual denominamos “teto de vidro gênero/raça/ classe” e que delimita e tensiona a carreira das jornalistas negras brasileiras. Palavras-chave: Jornalistas negras; Feminização; Teto de vidro três dimensões; Interseccionalidade; Cojira DF. 108. Doutora em Ciências da Informação, Faculdade de Comunicação, UnB. 109. Graduanda de Jornalismo, pesquisadora de Iniciação Científica, UnB. 110. Projeto de Pesquisa “As Comissões de Igualdade Racial (Cojira) dos Sindicatos dos Jornalistas: perfil e atuação das jornalistas negras por meio das comissões Cojira e a feminização do jornalismo” (MOURA, 2016). O Projeto teve início no segundo semestre de 2016 e tem o término previsto para o segundo semestre de 2020, sendo que, durante o ano de 2018, o desenvolvimento da pesquisa faz parte de processo de estágio de pós-doutoramento junto à Universidade de Brasília, Brasil, tendo a Professora Doutora Tânia Mara Campos de Almeida como supervisora. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 193 Apresentação O Projeto de Pesquisa As Comissões de Igualdade Racial (Cojira) dos Sindicatos dos Jornalistas: perfil e atuação das jornalistas negras por meio das comissões Cojira e a feminização do jornalismo (MOURA, 2016) teve início no segundo semestre de 2016 e tem término previsto para o segundo semestre de 2020, sendo que, durante o ano de 2018, o desenvolvimento da pesquisa faz parte de processo de estágio de pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de Brasília (UnB). Também no mesmo período, estaremos integrando os resultados desta pesquisa em um contexto comparativo internacional - Brasil, França e Bélgica Francófona111 –, quanto à carreira de mulheres no jornalismo nestes três contextos Como palavras iniciais deste relato, é importante situar que estamos observando o processo de feminização a partir do proposto por Yannoulas (2011), o que implica em observar que este fenômeno possui duas faces. Uma primeira seria a feminilização: um aumento no quantitativo de mulheres em uma profissão. Uma segunda face seria o processo de feminização propriamente dito, processo no qual são perceptíveis alterações na prática profissional, alterações estas advindas da maior presença de mulheres em determinado campo profissional (YANNOULAS, 2011). O aumento de mulheres no jornalismo, ou seja, a feminilização112 – compreendida como o aumento crescente de mulheres atuando como jornalistas é uma realidade em alguns países, como o Brasil (ROCHA, 2004), mas não é, absolutamente, um fenômeno global. É o que aponta o Global Report on the status of women in the news media”, editado pela International Women’s Media Foundation (BYERLY, 2011). O relatório demonstra que apenas um terço das 522 empresas pesquisadas (33,3%) empregavam mulheres jornalistas em regime de tempo integral. A edição posterior do relatório (BYERLY, 2013) atesta, com muita nitidez, que, embora existam avanços, os quais variam conforme o contexto, ainda há muito o que se conquistar em termos de igualdade no campo profissional do jornalismo para as mulheres jornalistas. 111. Este estudo comparativo internacional está sendo desenvolvido por um núcleo fundante composto pelas pesquisadoras doutoras Dione O. Moura (UnB); Paula Melani Rocha, da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG); Bèatrice Damian-Gaillard (Arènes, França) e Florence Le Cam, da Universidade Livre de Bruxelas (ULB, Bélgica). 112. Embora estejamos utilizando aqui uma distinção entre femilização (aumento quantitivo de mulheres em um campo profissional) e feminização (transformações geradas em um campo profissional a partir da ação da presença das mulheres nesse campo), como proposto por Yannoulas (2011), estamos cientes, como a própria autora admite, que tais termos muitas vezes, “na literatura especializada sobre gênero e trabalho, são utilizados, alternativamente (...) (YANNOULAS, 2011, p.271). 194 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) No contexto brasileiro, o aumento de mulheres em diversos campos profissionais não foi um fato isolado, relata Rocha (2004). No início do século XX, o país vivia uma realidade econômica que exigiu a introdução de uma nova mão de obra no mercado de trabalho, afirma a autora. Os crescimentos da indústria-urbana e de novos serviços, somados ao declínio da economia cafeeira, criaram a necessidade de novas forças de trabalho menos qualificadas e com baixa remuneração. Desta forma, as mulheres passaram a exercer ocupações menos qualificadas e os homens foram recolocados em ocupações mais complexas. O processo de aumento de mulheres nas profissões não foi inicialmente uma conquista das mulheres, mas consequência de uma transformação política, econômica e social do país, conclui a autora. O fenômeno do aumento quantitativo de mulheres do jornalismo, pelo menos no contexto brasileiro, não tem implicado, até o momento, segunda década do século XXI, em uma igual proporção de mulheres, nem de mulheres negras, na liderança dos empreendimentos jornalísticos, o que implicaria que as mulheres ocupassem cargos de chefia, editoria, diretoria etc, nem de mulheres nas faixas salariais mais altas. Embora seja possível identificarmos alguns indícios de feminização do jornalismo brasileiro, ou seja, alterações nas práticas profissionais advindas da presença de mulheres na profissão. Estes indícios de feminização – alteração do campo profissional – podem ser percebidos em estudos como o de Del Vecchio-Lima & Souza (2017), o qual identifica os espaços alternativos na internet como mecanismos para viabilizar as mulheres no jornalismo brasileiro e também, dentre outros, no estudo que realizamos sobre as campanhas de combate ao assédio contra mulheres jornalistas no Brasil (GUAZINA et al., 2018). Para a questão das mulheres negras jornalistas, são importantes os estudos acerca das campanhas contra o assédio e discriminação contra jornalistas negras; histórico e ação das Cojiras; articulação do Sindicato dos Jornalistas, Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) e movimento negro; formação continuada de jornalistas negras e negros; representação midiática e promoção de eventos, debates e premiações que valorizem a atuação e papel das e dos jornalistas negras e negros (SILVA, 2008; RICARDO et. al., 2011; SOUSA, 2014; SANTOS, 2016; MOURA, 2016, SARMENTO, 2017; PONTES, 2017). Voltando ao diagnóstico do aumento quantitativo de mulheres no jornalismo brasileiro, no que pese tal processo, é ainda visível a desproporção entre o percentual de mulheres no jornalismo e o percentual de mulheres ocupando funções de chefia na área. Quanto à ocupação de cargos de lideDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 195 rança/chefias por mulheres, a pesquisa de Mick e Lima (2013) aponta que é desproporcional ao percentual de mulheres jornalistas, considerando que 64% dos jornalistas brasileiros são mulheres, dados coletados em 2012, por meio de enquete nacional com 2.731 jornalistas respondentes. Mick e Lima, na mesma pesquisa, concluíram que os jornalistas brasileiros são majoritariamente mulheres brancas com idade até 30 anos (48% dos entrevistados possuem este perfil de mulher branca com idade até 30 anos). Ainda na mesma pesquisa, quanto ao quesito cor/raça, os entrevistados se declararam da seguinte forma: 72% branca, 18% parda, 5% preta, 2% amarela, 2% outros e 1% indígena, segundo relatam os autores. Apesar de serem maioria nas redações, as mulheres jornalistas brasileiras são minoria nos cargos de chefia. A respeito das condições de trabalho, a pesquisa apontava que as mulheres jornalistas, mais jovens, ganhavam menos que os homens; eram maioria em todas as faixas até 5 salários mínimos e minoria em todas as faixas superiores a 5 salários mínimos. O “teto de vidro gênero/raça/classe” De acordo com o dossiê realizado pelo Geledés – Instituto da Mulher Negra em conjunto com organização Criola (GELEDÉS e CRIOLA, 2017), as mulheres negras representam, dados da segunda década do século XXI, o principal grupo em situação de pobreza no Brasil. O Dossiê, preparado durante o processo de mobilização para a Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver, relata as situações de violência por que passam as mulheres negras brasileiras, desde perspectiva de violência de gênero, violência no contexto urbano, violência obstétrica, vulnerabilidade de jovens negras, negligência e imperícia no sistema de saúde, intolerância religiosa, racismo na internet e racismo institucional, dentre outras dimensões: “As mulheres negras representam o principal grupo em situação de pobreza. Somente 26,3% das mulheres negras viviam entre os não pobres, enquanto que 52.5% das mulheres brancas e 52.8% dos homens brancos estavam na mesma condição (IPEA, 2011)” (GELEDÉS e CRIOLA, 2017, p.11). A mulher negra no Brasil está entre os grupos que foram constituídos por exclusões dentro da exclusão – sobrepostos por múltiplas exclusões em camada, aí encontramos a ‘mulher negra’, a ‘mulher negra nordestina’, ‘a mulher negra favelada’ ou, por outro lado, a ‘mulher indígena’. São amplamente conhecidos estudos realizados por institutos como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que demonstram que “após extensa produção bi196 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) bliográfica, tanto baseada em dados qualitativos como quantitativos, é difícil negar os grandes diferenciais raciais observados em quase todos os campos da vida cotidiana” (SUAREZ, SOARES e PINHEIRO, 2007, p.401). Devemos considerar que este quadro acima – de extrema vulnerabilidade social da mulher negra no Brasil – tem uma sócio-história, ou seja, não é um dado recente, mas desenvolveu-se a partir do período escravagista, arrefecido pela ausência de políticas públicas de democratização de acesso aos direitos sociais, como saúde e educação, dentre outros, para a população negra brasileira. Quadro este que tem uma sócio-história que envolve, inclusive, a construção do feminismo negro (BAIRROS, 1991; CARNEIRO, 2003; LEMOS, 2016). Na esfera da Educação, a partir do princípio dos anos 2000, com o início do processo de implantação das políticas de Ação Afirmativa para negros e indígenas (MOURA, 2004) tem sido parcialmente alterado o acesso da jovem negra ao ensino superior universitário no Brasil. Contudo, o ensino superior é ainda, concretamente, um teto de vidro para a mulher negra portar o diploma que dá acesso – ou certifica – para o ingresso em determinadas carreiras, a exemplo do jornalismo. O relatório do IPEA sobre as políticas públicas no Brasil nos anos 2010/2011, aponta alguns segmentos especialmente marcados pela desigualdade na sociedade brasileira. Dentre os setores assinalados no relatório do IPEA (BRASIL, 2011), disponível para acesso de todos interessados, iremos destacar a questão da igualdade racial e de gênero, pois são dois grupos ou movimentos sociais que têm uma longa história de ação política no Brasil, no que pese a permanência dos indicadores de desigualdade. Quanto à questão das políticas promotoras da igualdade racial, assinala o Instituto que “no nível tático e operacional, torna-se fundamental que se desenvolvam meios mais consistentes para comprometer os órgãos setoriais com a promoção da igualdade racial” (BRASIL, 2011, p.314). Desta forma, a compreensão do “teto de vidro gênero/raça/classe”, o qual impacta negativamente as condições profissionais da jornalista negra brasileira, pressupõe examinar o cenário socio-econômico e político que sustenta e mantém barreiras relacionadas à interseccionalidade raça/gênero/classe. Os estudos de Sociologia das Profissões identificam a existência de concentrações horizontais e verticais nos campos profissionais, no que concerne a ter uma maior ou menor presença de homens e mulheres em determinadas áreas da profissão por meio da concentração horizontal e da concentração vertical. No que diz respeito ao jornalismo, Damian-Galliard et al. (2009) indicam Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 197 que “diversos trabalhos têm demonstrado que existe uma divisão de domínios de especialização jornalística, ou dito de outra forma, uma segregação horizontal entre mulheres e homens”113 (DAMIAN-GALLIAD, 2009, p. 187). Esta segregação, poderíamos nomear como concentração horizontal, é construída por certas “dinâmicas de especialização redacionais”, afirma o estudo. Por outro lado, a segregação (ou concentração) vertical das mulheres em um campo profissional, a qual funciona – como a bastante conhecida figura de linguagem do “telhado de vidro” – a interceder contra a ascensão das mulheres é um mecanismo também presente na dinâmica das mulheres jornalistas e não só no Brasil. Os estudos de jornalismo, como situam Damian-Galliard et al. (2009), identificaram a presença deste “telhado de vidro”114 (le “plafond de verre”) como um fator ainda limitante para o acesso das mulheres aos postos de decisão dentro das redações. Percurso metodológico O objetivo geral da pesquisa é identificar a presença da jornalista mulher negra atuante em prol da igualdade racial nas Comissões de Igualdade Racial (Cojira), vinculadas aos Sindicatos dos Jornalistas, em diversos estados brasileiros. Como objetivos específicos, pretendemos: identificar o perfil biográfico de jornalistas negras atuantes em diversas Comissões Cojira; identificar a dimensão de articulações entre a vivência universitária, a vivência sindical e a vivência no movimento negro na biografia de atuação de tais jornalistas Para conduzir o processo de investigação em torno dos objetivos acima elencados, os procedimentos metodológicos incluem entrevistas, biografias, questionários online e observação de campo. O presente projeto de pesquisa, em sua primeira etapa, 2016/2017, mapeou as ações e relatos de experiências de mulheres negras jornalistas do DF, especialmente das que participam da Cojira-DF (Comissão de Igualdade Racial) e do Coletivo de Mulheres do Sindicato dos Jornalistas do DF (SJPDF). O Mapeamento foi feito por meio da análise de portais jornalísticos, análise de enquetes (SINDICATO, 2016, 2017a), monitoramento de campanhas e atividades (SINDICATO, 2017b) e realização de entrevistas. O mapeamento das atividades do Sindicato dos Jornalistas Profis113. Do original: “Plusieurs travaux ont montré qu´il existait une répartition des domaines de spécialité journalistique ou, por le dire autrement, une ségrégation horizontale entre femmes et hommes” (DAMIAN-GALLIARD et. al., 2009,p. 187). 114. Guilaume e Pochic (2007) documentam que a metáfora do “telhado de vidro” tem sido utilizada, desde os anos 1980, particularmente nos países anglo-saxões para reunir as dificuldades enfrentadas pelas mulheres, em diversos campos profissionais, para acederem a níveis mais elevados nas empresas. 198 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sionais do DF, realizado no período 2016/2017, levou-nos a constatar que os eventos organizados pelo Coletivo de Mulheres Jornalistas do SJPDF tiveram como objetivo discutir questões raciais e de gênero no âmbito do jornalismo no Brasil, uma vez que as mulheres são maioria nas redações e assessorias. A seguir, apresentamos o resultado das entrevistas da Primeira Etapa115 da pesquisa e veremos que tais depoimentos manifestam sinais do “teto de vidro gênero/raça/classe”. As entrevistas estruturadas foram realizadas com três jornalistas negras da Cojira-DF (COSTA, 2017a; COSTA, 2017b; NUNES, 2017a, NUNES, 2017b; SOAREZ, 2017a, SOAREZ, 2017b), a partir de um roteiro previamente testado, o qual incluía os seguintes tópicos: • 1ª Rodada de Entrevistas: O desafio de ser mulher jornalista; a atuação do Coletivo de Mulheres Jornalistas perante a desigualdade de gênero; as pautas de atividades do Coletivo; o debate sobre racismo, feminismo e machismo no jornalismo; situações de assédio no exercício da função de jornalista; a prática de gaslighting perante o posicionamento político das jornalistas; o futuro do jornalismo e os retrocessos nos direitos de cidadania; o movimento de mulheres jornalistas e as jovens jornalistas do futuro; o papel dos meios de comunicação alternativos para o movimento das mulheres jornalistas. • 2ª Rodada de Entrevistas: Retornamos às mesmas entrevistadas e questionamos, com base nas respostas da 1ª Rodada, os seguintes tópicos: O papel de três instâncias – Universidade, Sindicato e Movimento Negro – na formação de cada uma delas e de que forma elas percebem (ou não) a articulação entre tais instâncias no processo de combate à discriminação e na promoção de uma posição de igualdade para as mulheres jornalistas; a inclusão das cláusulas de campanhas de conscientização do combate ao assédio de mulheres jornalistas nos acordos coletivos conduzidos pelo SJPDF; o posicionamento do Sindicato em relação à pauta racial. Na 2ª Rodada de entrevistas, a questão comum foi a relação universidade/sindicato/ movimento negro e algumas perguntas específicas foram acrescidas para cada entrevistada, conforme algum tópico que vimos necessidade de aprofundar. 115. Na Segunda Etapa do projeto, 2018/2019, iremos entrevistar mulheres jornalistas de Comissões de Igualdade Racial (Cojira) de outros estados brasileiros. Na Terceira Etapa, 2018/2019, será aplicado um questionário online dirigido às jornalistas que participam e que participaram das Comissões de Igualdade Racial, em diversos Estados e também serão realizadas entrevistas. Na Quarta Etapa, de conclusão da pesquisa, 2019/2020, ocorrerá a análise de resultados, realização de seminários de Extensão e produção do relatório final. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 199 Ao fazer o recorte de gênero em relação ao assédio moral no ambiente de trabalho, nota-se que em relação às mulheres a frequência é maior e sempre parte de seu superior hierárquico, como ressalta a entrevistada jornalista Verônica Soarez (SOAREZ 2017a): “Normalmente quem te assedia é o seu chefe, é quem tem o poder de decisão de demitir ou não”. Podemos ver manifesta a interseccionalidade – conceito formulado por Crenshaw (1994) – de raça, gênero e classe na jornalista negra brasileira: basta observar os indicadores sociodemográficos aqui citados, no que diz respeito à mulher negra no Brasil, ou, mais especificamente, os indicadores que dizem respeito à jornalista negra brasileira. Este mesmo fenômeno da interseccionalidade raça, gênero, classe é visto manifesto no depoimento da entrevistada Juliana César Nunes, co-fundadora da Cojira-DF, quando afirma: Assim a gente é um todo, não dá para separar, a gente é mulher, é negra, jornalista, não deixa uma coisa de lado, você acorda mulher negra jornalista... e várias outros papéis que você desempenha na sociedade, mãe, militante, negra, enfim. Então, a gente tem toda essa complexidade que nos acompanha desde que a gente nasce e toda nossa trajetória acadêmica, na escola, e profissional, isso está presente e nos desafia. (NUNES, 2017a). A interseccionalidade raça e gênero deste “telhado de vidro gênero/ raça/classe” surge também no depoimento da entrevistada Verônica Soarez (2017a): Então, o maior desafio, eu como mulher e negra, acho que o maior desafio é a questão da credibilidade da sua chefia dos seus superiores, entendeu? Porque normalmente pelos locais que eu já trabalhei sempre teve que ter um homem para respaldar um trabalho que eu já sei fazer. Eu trabalhei numa assessoria de imprensa em que eu era responsável por tudo e, de uma hora pra outra, veio um outro jornalista homem que virou chefe sabendo fazer a mesma coisa que eu, sendo que fiquei dois anos sozinha fazendo tudo e de uma hora para outra já não sabia fazer mais nada... E é isso, sabe, eu acho que o maior desafio é vencer o machismo mesmo, porque infelizmente todos os locais em que já trabalhei tem essa questão do machismo mesmo... os nossos próprios chefes não dão tal credibilidade e simplesmente eu acho que por ser negra e ser mulher. (SOAREZ, 2017a). 200 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Juliana César Nunes, assim como as demais entrevistadas, descreve bem os “telhados de vidro”116 ao afirmar, por exemplo, que os temas que as mulheres levam, assim como as pautas, são tratados sempre como menores, além de ocorrerem restrições de áreas de cobertura ou de viagens que são mais voltadas para os homens. A jornalista ainda ressalta que há um esforço enorme na sociedade de apagar os registros e silenciar as vozes da população negra em geral, portanto, “como jornalista, mulher e negra, é necessário se esforçar muito mais no sentido contrário e não admitir esses silenciamentos”, afirma a entrevistada. Leonor Costa (COSTA, 2017b), presidenta do Sindicato dos Jornalistas do DF à época da entrevista, e uma das entrevistadas da Primeira Etapa da pesquisa, considera o racismo um agravante para as jornalistas negras e destaca a necessidade de haver pessoas negras atuando em comissões e sindicatos pautando a temática racial, porque ela não é automática no imaginário social e facilmente passa sem ser notada: Acredito ser importante o olhar do conjunto da diretoria, para além dos e das/os diretoras/es que militam com a temática, para as questões de gênero e raça. Essa não é uma deficiência apenas do SJPDF, mas da maioria das organizações. Os temas voltados às mulheres e aos negros são sempre pautados por quem milita no tema específico e, às vezes, é preciso fazer uma disputa para conscientizar o restante dos colegas sobre a importância dessas pautas. A gente consegue avançar à medida que conseguimos atuar ao lado de outras organizações. Entendo que o sindicato pode, e deve, fazer mais debates e atividades com os jornalistas sobre os problemas que envolvem esse setor da categoria, no caso as mulheres e os negros. Essas agendas podem ser para além das datas comemorativas, como o 8 de março e o 20 de novembro. Também é fundamental estar nos espaços para fora do sindicato, dialogando com outras organizações. Mas vejo que estamos avançando. (COSTA, 2017b). Estudos sobre a militância sindical de mulheres e o papel desta militância enquanto fator apoio solidariedade pela emancipação feminina jogam luz sobre o fenômeno descrito por Leonor Costa no depoimento acima. Ao analisar a participação de mulheres sindicalizadas em diversas áreas profissio116. No roteiro das entrevistas, como pode ser verificado na lista de temas que citamos no corpo do artigo, não incluímos os termos “telhado de vidro” (metáfora usual para denominar as barreiras à ascensão das mulheres em diversos campos profissionais, expressão esta sacramentada nos estudos anglo-saxões desde os anos 1980, como situam Guilaume e Pochic (2007), como também não incluímos o termo que formulamos “telhado de vidro com três dimensões” (raça/gênero/classe), pois não queríamos ter o risco de induzir este raciocínio perante as entrevistadas. Foi na análise posterior às entrevistas que verificamos que os relatos trouxeram tais elementos que podem ser associados à ideia de barreiras criadas pelos “telhados de vidro”. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 201 nais na França, Le Quentrec (2013) destaca que o processo de feminização das equipes dirigentes dos sindicatos implica perceber que a militância está relacionada à uma consciência feminista e, por fim, a uma consciência de grupo (LE QUENTREC, 2013). Dialogando com o proposto por Le Quentrec (2013), vemos nas entrevistas que realizamos, aqui citadas, também manifestações do que podemos designar como uma consciência feminista e uma consciência de grupo de mulheres jornalistas negras, como relata-nos a entrevistada Leonor Costa acerca do Coletivo de Mulheres Negras do SJPDF: Ainda estamos nos organizando enquanto Coletivo de Mulheres. Precisamos torná-lo mais orgânico e colocá-lo na agenda dos movimentos importantes do DF que atuam na área, mas a nossa atuação no 8 de março teve um papel importante, pois mobilizamos muitas jornalistas para a grande marcha unificada e também levamos nossa contribuição, como categoria, para as discussões que culminaram no ato. A nossa atividade específica que marcou o mês de luta das mulheres teve o recorte racial e foi realizada em parceria com a Cojira. No momento, temos participado também de atividades da Frente de Mulheres de Esquerda e do Fórum de Mulheres do DF e Entorno, onde também há várias organizações de negras pautadas pelo enfrentamento ao racismo. Precisamos estreitar mais esses laços. (COSTA, 2017b). A entrevistada jornalista Verônica Soarez (SOAREZ, 2017), participante da COJIRA-DF, acredita que o Sindicato é bastante sensível à pauta racial, pois está, de certa forma, ligado à Comissão. A jornalista considera a Cojira-DF, enquanto representação do movimento racial no jornalismo no DF, como um agente influenciador por meio da promoção de debates e seminários e do feedback ao que é veiculado na mídia a respeito da pauta racial, dando seu posicionamento sobre o assunto abordado pela mídia quando necessário. Sobre a vivência acadêmica Verônica Soarez (2017b) afirma que é nesse espaço universitário onde o debate da pauta racial se torna efetivo na sociedade: Na minha época, quando fiz ensino médio, há 20 anos, a questão racial não era abordada nas escolas e nem na mídia. Com isso, o meu primeiro contato com a pauta racial foi na Universidade. Penso que é um espaço no qual as ideias são colocadas e expostas sem o perigo de sofrer algum tipo de sanção ou represália. É o momento da cons202 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) trução de pensamento e de ideias. É muito importante começar esse contato com a pauta racial desde os primeiros anos de vida dos alunos. Isso vale tanto para as crianças negras quanto para as crianças brancas. O debate racial tem que ser colocado e discutido por todos. Mas penso que é no espaço universitário que o debate se efetiva, pois, como futuros profissionais, poderemos pensar como vamos trabalhar e quais as possibilidades que poderemos abrir para acabar ou diminuir o racismo. (SOAREZ, 2017b). A jornalista Juliana César Nunes (NUNES, 2017b), entrevistada, afirma, quanto ao papel dos Sindicatos dos Jornalistas no debate da questão racial nacionalmente, que: “tivemos alguns avanços na relação com os sindicatos. A partir de propostas aprovadas em congressos da FENAJ, os sindicatos se comprometeram a incluir o quesito raça-cor na ficha de filiação e também realizaram campanhas de auto-declaracão”. Considerações finais Pelo menos no caso das jornalistas mullheres brasileiras, podemos concluir que, ao aplicarmos a clássica metáfora do “teto de vidro” como barreira à ascensão de mulheres nas empresas, temos indicativos de que há um “teto de vidro” com características próprias para as jornalistas negras, ou seja, elas são mais interditadas pelo “teto de vidro” (menor salário, menos posições de chefia e menos presença em situações de visibilidade no jornalismo – exemplo de repórteres de TV e âncoras de telejornais) do que as jornalistas brancas, e de que isso dá-se, dentre outros fatores, pela ação deste “telhado de vidro com três dimensões (raça/gênero/classe)”. Em nossa reflexão, com base no processo metodológico descrito acima, concluímos que as mulheres jornalistas brasileiras enfrentam, minimamente dois “tetos de vidro”: um “teto de vidro” de camada única ou dupla (gênero e/ou classe), o qual detém as mulheres jornalistas brancas no processo de ascenção na carreira, visibilidade e status profissional, e um outro “teto de vidro gênero/raça/classe” que delimita e tensiona a carreira das jornalistas negras brasileiras no processo de ascenção na carreira, visiblidade e status profissional. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 203 Referências BAIRROS, L. Nossos feminismos revisitados. Estudos Feministas, pp 458-453. n. 2/1995. BRASIL. Políticas Sociais - acompanhamento e análise, nº 19, Brasília: IPEA/ Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2011. BYERLY, C. M. (Ed). Global Report on the status of women in the news media. Washington, DC: International Women’s Media Foundation, 2011. BYERLY, C. M. (Ed.). 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Beatriz BECKER117 Rafael Pereira da SILVA118 Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo Pretos e pardos formam 54% da população brasileira, mas são afetados por um racismo estrutural, comprovado por índices socioeconômicos e educacionais. A televisão é o principal meio de informação da população brasileira, porém a invisibilidade do negro no telejornalismo também funciona como instrumento de exclusão, impedindo o reconhecimento da diferença e reforçando estereótipos. Contudo, as narrativas telejornalísticas podem ser estratégicas para a redução de desigualdades e para a superação do racismo e de preconceitos. Amparado nas contribuições teóricas de Nancy Fraser e na metodologia da Análise Televisual, proposta por Beatriz Becker, este capítulo reflete sobre relações étnico-raciais no telejornalismo, a partir de resultados de análise comparativa de modos de representação da população negra no Jornal Nacional e no Repórter Brasil. Palavras-chave: Mídia; Telejornalismo; Negro; Racismo estrutural; Reconhecimento cultural. Contextualizações Negros são reconhecidos como grandes artistas e atletas, personalidades da moda e protagonistas de comerciais, filmes, ficções-seriadas e telenovelas na atualidade. A aceitação e a presença da população negra na cultura popular é hoje bem mais expressiva do que nas décadas passadas (HALL 2016) e, no Brasil, resulta, em parte, de um conjunto de esforços de movimentos sociais 117. Professora Associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCOM-UFRJ). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa Mídia, Jornalismo Audiovisual e Educação. E-mail: beatrizbecker@uol.com.br 118. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGCOM-UFRJ, Bolsista CAPES, membro do Grupo de Pesquisa Mídia, Jornalismo Audiovisual e Educação. E-mail: domrafasil@gmail.com 208 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) contra o racismo nos meios de comunicação e de políticas públicas, como o Estatuto da Igualdade Racial119, sancionado em 2010, visando a garantir aos negros a igualdade de oportunidades, a defesa de direitos étnicos individuais e coletivos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância. Mas se a visibilidade dos negros cresce na mídia e eles podem se tornar celebridades, antigos padrões de representação cristalizados e formas antigas de discriminação permanecem, como a contínua demonização da juventude negra na cobertura sobre crimes e desordens em coberturas jornalísticas. Mesmo que os negros tenham conquistado legitimidade na cultura popular, eles estão bem menos presentes ou visíveis no mundo do poder corporativo, e ainda existem limites marcados de suas participações em centros de decisões políticas e econômicas (HALL, 2016). No século XXI, os negros ainda não superaram injustiças e desigualdades resultantes do regime escravagista, após 130 anos da Abolição da Escravatura no Brasil. Para Muniz Sodré (2015), a aspiração ao embranquecimento, materializada em discursos doutrinários que perpassavam áreas de conhecimento distintas, era uma tentativa de se preservar a discriminação contra efeitos colaterais da Abolição da Escravatura. Hoje, sob a argumentação de que a mistura e a convivência pacífica entre as raças se manifestam no país, a branquitude e a valorização do mestiço são poderes silenciosos que agem no convívio social na manutenção de preconceitos e de hierarquias raciais (SOVICK, 2009). Os resquícios da escravidão podem ser verificados pela existência de um racismo estrutural120 que abrange aspectos materiais e simbólicos, comprovado por índices de desigualdade socioeconômicos e educacionais e pela representação negativa ou estereotipada de negros na mídia, os quais, junto com os pardos, representam 54% da população brasileira, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)121. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD)122, divulgada em novembro de 2017, pelo IBGE, no terceiro trimestre deste mesmo ano, dos 13 milhões de brasileiros desocupados, 8,3 milhões, ou 63,7%, 119. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm>. Acesso em: 05 mai. 2018. 120. O racismo estrutural é aqui compreendido como um complexo sistema social de dominação, composto por um subsistema social, formado por práticas sociais e de discriminação no micro (nível local) e por relações de abuso de poder por organizações e instituições dominantes (nível macro); e um subsistema cognitivo, sustentado por representações mentais enraizadas em preconceitos e ideologias racistas (Dijk, 2010). 121.Disponívelem:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/18282-pnad-c-moradores.html; https://www.ibge.gov.br/estatisticas-novoportal/sociais/populacao.html; https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2015/12/04/negros-representam-54-da-populacao-do-pais-mas-sao-so-17-dos-mais-ricos.htm>. Acesso em: 07 mai. 2018. 122. Disponívelem:<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/ noticias/18013-pretos-ou-pardos-sao-63-7-dos-desocupados.html>. Acesso em: 07 mai. 2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 209 eram pretos ou pardos. Em relação aos rendimentos, o ganho mensal dos trabalhadores negros era de R$ 1.531, enquanto o dos brancos era de R$ 2.757. Em 2015, a participação de negros no grupo dos 10% mais pobres do país correspondia a 75% da população, enquanto no grupo do 1% mais rico da nação a porcentagem de negros e pardos era de apenas 17,8%. Além disso, 73,5% deles estavam mais expostos a viver em um domicílio com condições precárias do que os brancos.123 A população negra também é a mais sujeita à violência, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) de 2017124. Cerqueira e Coelho (2017) evidenciam que os problemas sociais que afligem a população negra não se restringem às causas socioeconômicas. Os autores apontam que no grupo dos 10% de cidadãos com probabilidade de sofrerem homicídios, 78,9% destes são negros, e que, aos 21 anos de idade, pretos e pardos têm mais 147% de chances de serem vítimas fatais do que indivíduos de outras etnias (CERQUEIRA E COELHO, 2015). Além disso, segundo o IBGE, entre a população brasileira com 25 anos ou mais em 2016, apenas 8,8% de pretos e pardos tinham nível superior, enquanto para os brancos esse percentual era de 22,2%125. O índice de analfabetismo em 2017 era de 7,0% (11,5 milhões de analfabetos), mas para as pessoas pretas ou pardas essa taxa era de 9,3%, mais do dobro do que a das pessoas brancas, correspondente a 4,0%126. Entre os jovens de 15 e 29 anos que não estudavam nem trabalhavam, 62,9% eram negros. 59,7% das meninas de 15 a 19 anos sem estudo e sem trabalho tinham pelo menos um filho e 69% destas meninas eram negras127. E quase metade da população negra vivia na informalidade econômica128. Esses dados são um retrato de um racismo amenizado pelo mito da democracia racial e revelam que a população negra continua com acesso limitado a direitos e serviços públicos. As transformações históricas modificaram a estrutura social do país, mas os negros têm menos oportunidades e qualidade de vida do que os brancos. O regime racializado da representação dos afrodescendentes, ou seja, uma estereotipagem que reduz, essencializa, naturaliza 123. Disponível em: <https://exame.abril.com.br/economia/o-tamanho-da-desigualdade-racial-no-brasil-em-um-grafico/>. Acesso em: 06 mai. 2018. 124. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/2/2017>. Acesso em: 8 mai. 2018. 125. Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2013-agencia-de-noticias/releases/18992-pnad-continua-2016-51-da-populacao-com-25-anos-ou-mais-do-brasil-possuiam-apenas-o-ensino-fundamental-completo.html>. Acesso em: 10 mai. 2018. 126. 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Esse deslizamento do significado assegura o fechamento discursivo e a exclusão, gera estereótipos129 e tende a ocorrer onde existe uma enorme desigualdade de poder. Contudo, as representações não são estáticas. Práticas socioculturais também são atravessadas por contraestratégias ou novos padrões emergentes que tentam intervir na representação, transcodificando novos significados para imagens negativas (HALL, 2016). Ações de combate à desigualdade e políticas afirmativas organizadas pelos movimentos sociais negros no Brasil, que emergiram com maior força a partir da década de 1970, têm corroborado com transformações neste cenário, buscando implantar políticas de redistribuição de recursos econômicos e o reconhecimento tanto dos problemas causados pelo racismo estrutural quanto da relevância da negritude para a constituição das identidades brasileiras. Entretanto, este projeto político e simbólico de lutas e ativismo do movimento negro só pode ser concretizado de forma plena na atualidade com a promoção da justiça social, por meio da distribuição de recursos produtivos e de renda; do reconhecimento das contribuições de diferentes grupos sociais para as sociedades; e da diversidade de representações simbólicas (FRASER, 2006a). Assim, uma relação igualitária entre claros e escuros (SODRÉ, 2015) no Brasil, demanda a adoção de estratégias capazes de gerar redistribuição econômica e financeira e o reconhecimento da importância da população negra para a cultura e o desenvolvimento do país. Os meios de comunicação tendem a reproduzir as relações sociais (RAMOS, 2002) e a invisibilidade do negro na mídia ainda funciona como instrumento de exclusão no país. No entanto, o combate à injustiça social e a superação do racismo também estão imbricados na atuação da mídia, uma vez que a valorização da negritude nos processos de comunicação midiáticos colabora para práticas socioculturais mais plurais e democráticas. Por essa razão, a presença e a representação do negro na mídia são estratégias fundamentais para o ativismo negro. Neste estudo refletimos sobre as representações da população negra no telejornalismo, uma vez que a televisão é o principal meio de informação para a maioria da população brasileira, como revela a “Pesquisa Brasileira de Mídia 129. Determinados preconceitos socializados, crenças fundamentadas em informações parciais e precárias que dão lugar à escrita e à leitura seletiva da realidade se tornam estereótipos, conjunto estável de ideias pré-concebidas que os membros de um determinado grupo compartilham sobre as características de outros, gerando julgamentos e reproduzindo uma certa ordem social (ALSINA, 2009). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 211 2016”, da Presidência da República130. Assumimos como hipótese que os telejornais podem representar a diversidade cultural existente em nosso país, mas seus procedimentos discursivos muitas vezes são tão engessados que impedem a adoção da diferença em suas narrativas e reforçam estereótipos e preconceitos sobre o negro. Acreditamos que as narrativas telejornalísticas tomadas pela perspectiva da inclusão social são relevantes para a promoção do reconhecimento cultural da população negra no país. Assim, esta investigação busca contribuir para o fomento da diversidade na mídia, por meio de uma análise comparativa das narrativas sobre a negritude do Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão, e do Repórter Brasil, da Empresa Brasileira de Comunicação (EBC). Os principais resultados são aqui sistematizados. A negritude no Jornal Nacional e no Repórter Brasil: uma análise comparativa Amparados na metodologia da Análise Televisual (AT) proposta por Becker (2016; 2012), buscamos entender como as relações étnico-raciais são noticiadas no Jornal Nacional (JN) e no Repórter Brasil (RB), considerando que a AT permite realizar uma leitura crítica de conteúdos e formatos audiovisuais veiculados nesses noticiários. Este percurso metodológico é constituído por três etapas: 1) Descrição e contextualização do objeto em análise; 2) Análise televisual, reunindo uma análise quantitativa e uma análise qualitativa; e 3) Interpretação dos resultados alcançados. São aplicadas seis categorias na análise quantitativa131 – Estrutura Narrativa; Temática; Enunciadores; Visualidade; Som; e Edição – e três princípios de enunciação na análise qualitativa132 – Fragmentação; Dramatização; e Definição de Identidades e Valores. 130. Disponível em: <http://www.secom.gov.br/arquivos-capacitacao/apresentacao-pesquisa-brasileira-de-midia-2016.pdf/view; https://g1.globo.com/economia/midia-e-marketing/noticia/tv-e-o-meio-preferido-por-63-dos-brasileiros-para-se-informar-e-internet-por-26-diz-pesquisa.ghtml>. Acesso em: 12 mai. 2018. 131. A categoria Estrutura narrativa é utilizada para identificar como o texto audiovisual é organizado e o tempo de duração dos blocos e das notícias; e a de Enunciadores oferece a possibilidade de identificar os atores sociais que participam da narrativa, seus modos de enunciação e as diferentes vozes presentes e ausentes nos relatos. A aplicação desta categoria nos permite verificar neste estudo tanto a participação de repórteres e apresentadores negros quanto o espaço dedicado a fontes e personagens negras na narrativa audiovisual dos telejornais analisados. A categoria Visualidade nos auxilia a entender como os recursos visuais são empregados e produzem sentidos. A Temática indica os temas privilegiados e, nesta pesquisa, as pautas sobre negritude e as maneiras como as relações raciais tornam-se notícias. A categoria Som evidencia como os elementos sonoros, as palavras, os ruídos e as trilhas sonoras estão articulados na construção de significações do texto. A categoria Edição nos abre a possibilidade de perceber como os códigos audiovisuais são combinados na atribuição de valores aos acontecimentos noticiados e a atores sociais (BECKER, 2012). 132. A Fragmentação nos indica que o modo de apresentação das notícias não oferece a oportunidade de compreender e realizar interligações indispensáveis para uma ampla apreensão dos problemas e conflitos sociais apresentados, especialmente em função da curta duração de cada unidade informativa do telejornal. Neste estudo, este princípio de enunciação nos permite perceber como se manifesta a representação da negritude e as relações étnico-raciais nos 212 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Tal percurso metodológico pode ser utilizado em uma análise comparativa de dois objetos do mesmo gênero discursivo, observando como os códigos audiovisuais são combinados na produção de sentidos em cada um dos produtos ou obras audiovisuais (BECKER, 2012, 2005). Na terceira fase da AT, a Interpretação dos Resultados, associamos nesta investigação três categorias para analisar como a negritude e as questões étnico-raciais são construídas nos telejornais estudados, inspirados nas reflexões de Nancy Fraser sobre justiça social: 1) Redistribuição; 2) Reconhecimento; e 3) Representação. Segundo a filósofa norte-americana, a realização da justiça social requer iniciativas que promovam a redistribuição material de recursos produtivos e de renda, bem como o reconhecimento cultural e simbólico das contribuições de diferentes grupos sociais e étnicos, e somente chegaremos a sociedades mais igualitárias e menos desiguais se o reconhecimento e a redistribuição estiverem integrados nas políticas e na agenda públicas (FRASER, 2006b). Neste estudo, a aplicação da categoria Redistribuição contempla conteúdos noticiosos associados às demandas por distribuição econômica. Um exemplo são as notícias sobre dados econômicos, emprego e renda sobre a população negra. A categoria Reconhecimento, por sua vez, está vinculada às matérias que estimulam a visibilidade positiva dos negros, reconhecem os problemas causados pelo racismo estrutural e expressam a importância da cultura negra e de suas contribuições para a constituição da identidade brasileira, como reportagens sobre celebrações e manifestações culturais. A categoria Representação é aqui adotada para verificar a presença de negros e os lugares de fala por eles ocupados como fontes institucionais e especializadas em matérias sobre temas importantes que repercutem na mídia. Assim, buscamos entender os modos como a negritude é tecida no JN e no RB e como o telejornalismo constrói a nação imaginada (ANDERSON, 2008). Analisamos um corpus constituído por 36 edições de cada um dos telejornais referidos, totalizando 72 edições, cerca de 50 horas de material audiovisual. A coleta do material foi realizada em novembro e dezembro de 2017 e em janeiro de 2018, reunindo duas semanas de edições consecutivas de ambos os noticiários a cada mês, de 13 a 25 de novembro, de 11 a 23 de dezembro e de 8 a 20 de janeiro. A escolha do período inicial da coleta foi proposital, uma vez que compreende a Semana da Consciência Negra e a dois noticiários televisivos estudados. O princípio da Dramatização corresponde à natureza ficcional da narrativa telejornalística, cujo desvendamento é realizado por etapas para que o clímax da narrativa aumente, conferido caráter dramático à determinados acontecimentos e personagens, envolvendo as audiências e despertando sentimentos de empatia ou comoção, por meio de técnicas e recursos audiovisuais. O princípio da Definição de Identidades e Valores nos ajuda a entender os modos como problemas sociais e conflitos são julgados e qualificados, os valores atribuídos a personagens e as maneiras como indivíduos e tipos e grupos sociais são escolhidos e representados. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 213 celebração do dia de Zumbi dos Palmares, em 20 de novembro. Supomos que nessas datas comemorativas haveria uma maior visibilidade das relações étnico-raciais e que em outros períodos esta temática seria menos recorrente nas edições dos telejornais estudados. Assim, observamos como e quando a população negra é noticiada. A gravação do JN foi feita por meio da plataforma Globoplay, das Organizações Globo, e a coleta das edições do RB mediante o uso do programa Apowersoft, no Facebook, na página da TV Brasil na internet e em canais no Youtube133. A Aplicação da categoria Estrutura da Narrativa permitiu identificar que o Jornal Nacional é exibido de segunda-feira a sábado a partir das 20h30 minutos, com tempo de duração entre 35 minutos a 46 minutos, divididos em três ou quatro blocos. A estrutura narrativa do JN não é fixa e sofre variabilidades, em função do grau de relevância dos acontecimentos atribuídos pelos editores. No entanto, o primeiro bloco do telejornal quase sempre é o que tem maior tempo de duração, reunindo matérias de Política e de Economia e sobre operações policiais, desastres naturais e grandes tragédias urbanas. No segundo bloco são privilegiados conteúdos sobre Saúde, Tecnologia, Consumo, Cotidiano, Previsão do Tempo e acontecimentos internacionais. As notícias sobre Esporte e Cultura, bem como matérias mais “leves” tendem a ocupar o último bloco. No período estudado foram veiculadas em média 17 notícias por dia, totalizando 657 conteúdos jornalísticos. Porém, apenas 54 matérias, correspondentes a 8,2% das notícias do telejornal, trataram de questões associadas aos negros. O JN produz em média cerca de 4h15 minutos de conteúdo jornalístico por semana. Durante as duas semanas de cada um dos três meses analisados foram exibidas 25h16 minutos de material noticioso, mas o tempo total de reportagens sobre a negritude neste período foi de apenas 1h55 minutos. A estrutura narrativa da edição noturna do Repórter Brasil possui características distintas daquelas do JN. No período estudado, o RB foi exibido de 19h45 às 20h30 minutos com um tempo regular de cerca de 41 minutos diários de duração. O tempo de duração médio da sua produção semanal é de cerca de 4h05 minutos, totalizando 24h31 minutos de conteúdo noticioso no período analisado. Este noticiário é dividido em três blocos com intervalos de 2 minutos e oferece matérias com maior diversidade e pluralidade temática do que o JN. Além de um resumo das principais notícias do dia, o RB apresenta notícias sobre consumo, cotidiano, educação e cidadania e veicula reportagens 133. Disponíveis, respectivamente, em: <https://globoplay.globo.com>; <https://www.apowersoft.com.br/gravador-de-tela-gratis>; https://www.facebook.com/reporterbrasilnarede>; <http://tvbrasil.ebc.com.br/reporterbrasil>; < https://www.youtube.com>. Acesso em: 11 mai. 2018. 214 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) especiais sobre relações raciais e diversidade de gêneros. O RB também oferece no final de cada bloco um espaço de interação com o telespectador, o quadro “Pergunta do Dia”, que possibilita a participação do cidadão por meio de povo-fala – breves depoimentos seguidos uns dos outros em resposta a uma questão –, e da página do noticiário no Facebook, a partir da apresentação uma notícia sobre um tema específico. Este quadro marca uma distinção importante entre esse telejornal e o JN ao abrir espaço para as audiências. Outra característica do RB é o giro de notícias internacional, destacando as principais informações do noticiário internacional. O RB produziu no período um total de 782 matérias, e apenas 82 notícias, ou 10,4% do conteúdo jornalístico, foram dedicadas a questões referentes aos negros. Essas matérias sobre negritude representam 3h23 minutos, quase o dobro do tempo do total de matérias sobre relações raciais exibidas pelo JN. O tempo total de matérias sobre a negritude e relações raciais exibidas nos dois noticiários foi de aproximadamente 5h19 minutos, 63,8% produzidas pelo RB e 36,2% pelo JN. O corpus total desta investigação, formado por 1.439 matérias, corresponde a 49h48 minutos de produção noticiosa do JN e do RB. Porém, apenas 136 destas notícias, ou 9,4% das matérias de ambos os noticiários, continham a presença de negros como personagens, ofereciam visibilidade à negritude, protagonismo à cultura negra ou abriam espaço para um debate sobre as relações étnico-raciais no país no período estudado. A aplicação da categoria Temática nos permitiu ainda observar que as notícias internacionais foram as que mais ofereceram visibilidade aos negros no JN, com destaque para a deposição do ditador do Zimbábue, Robert Mugabe. Os afrodescendentes foram ainda representados em reportagens sobre esporte, violência urbana e desigualdade neste noticiário. O RB também privilegiou a representação dos negros em matérias sobre desigualdade e em notícias internacionais; e destacou conteúdos sobre racismo, cotidiano e consumo. A utilização da categoria Enunciadores nos auxiliou a identificar a participação de repórteres, apresentadores, fontes e personagens negros na narrativa audiovisual dos telejornais analisados. O JN foi apresentado por sete duplas de âncoras e por dez diferentes jornalistas, mas entre eles apenas Heraldo Pereira é negro. Ele apresentou o JN em uma edição de novembro de 2017, dividindo a bancada com Carla Vilhena, e durante duas semanas de janeiro com Giuliana Morrone, período em que os âncoras titulares, Wiliam Bonner e Renata Vasconcelos, estavam de férias. Os principais apresentadores do Repórter Brasil edição noturna são os jornalistas Pedro Pontes e Katiuscia Neri. Ao longo do período analisado, três duplas de jornalistas compartilharam a banDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 215 cada, porém, entre esses profissionais somente Luciana Barreto é negra. Em relação à presença de repórteres, das 657 matérias veiculadas pelo JN no período estudado, houve a presença recorrente das jornalistas Zileide Silva, responsável por oito matérias, e Maria Júlia Coutinho, que apresenta a previsão do tempo. Elas foram as principais enunciadoras de 36 conteúdos jornalísticos, que representam 5,4% de todas as matérias veiculadas pelo JN nas edições observadas. No mesmo período, o RB exibiu 782 matérias com a participação de 14 repórteres negros e afrodescendentes em 53 delas, correspondentes a 6,7% do conteúdo jornalístico estudado. Seis deles têm presença regular no noticiário: Luanda Belo, Iara Bauduíno, Paulo Leite, João Marcelo, Tatiana Costa e Luciana Barreto. Os outros jornalistas participaram somente uma ou duas vezes no telejornal nas edições das semanas analisadas. A pesquisa evidenciou que nas matérias e assuntos de maior abrangência nacional, como as das editorias de política e economia, que ocupam a maior parte das produções jornalísticas do JN, a participação de afrodescendentes é praticamente inexistente. Identificamos apenas uma participação de cidadão negro representante de movimentos sociais em uma matéria sobre relações raciais no Brasil e como especialista. A população negra só ganha visibilidade em matérias sobre cultura popular, muitas vezes por meio de curtos depoimentos, em reportagens sobre esportes e celebrações, como o dia da Consciência Negra, e como personagem para ilustrar matérias pautadas em dados sobre desigualdades sociais no país. Nas 657 matérias exibidas pelo JN, ao longo das seis semanas estudadas, os negros foram utilizados como fontes de informação 50 vezes e apenas nas 54 matérias sobre negritude. No Repórter Brasil, foram ouvidos 139 afrodescendentes em 82 matérias sobre questões étnico-raciais e os negros atuaram como fontes outras 20 vezes em matérias sobre assuntos diversos no conjunto dos 782 conteúdos noticiosos observados. Um fato que contribuiu para o incremento da visibilidade dos negros em ambos os telejornais foi a deposição do ditador Robert Mugabe, no Zimbábue. Contudo, o RB utilizou pessoas negras como fontes quase três vezes mais do que o JN. As características visuais dos estúdios dos telejornais estudados são muito diferentes. O JN é transmitido de uma redação, inaugurada em junho de 2017, imersa em um cenário convergente. A bancada onde os âncoras apresentam as principais notícias do dia tem um design hightech nas cores azul e cinza. Em segundo plano, é possível ver a redação e os profissionais que produzem as notícias. Ao fundo, um painel digital com os símbolos do JN e um grande mapa mundial fortalecem a ubiquidade do telejornal. O cenário permite 216 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) a apresentação do jornal por vários ângulos e enquadramentos de câmera, a inserção de gráficos e infográficos em telas de plasmas durante a apresentação das notas e possibilita deslocamentos dos âncoras no estúdio. Eles saem de trás da bancada e fazem chamadas de matérias em pé, de frente para um telão que viabiliza a entrada de repórteres ao vivo e é também utilizado nas chamadas de previsão do tempo e de notícias internacionais. O RB é apresentado de um estúdio bem mais modesto e em formato tradicional: os âncoras ficam atrás de uma bancada branca e vermelha, posicionada à frente de um fundo vermelho e cinza, onde um monitor de televisão está instalado ao centro com o logo do telejornal. Neste aparelho são inseridos infográficos, imagens e artes que introduzem o tema das matérias que serão chamadas a seguir pelos apresentadores. O estúdio oferece menos mobilidade para os âncoras, que não podem se movimentar pelo cenário, pois são captados por dois únicos enquadramentos de câmera: um central e outro lateral. A estética da narrativa do JN e o tipo de imagens e enquadramentos utilizados tendem a se manter os mesmos ao longo de todas as edições do telejornal, enquanto no RB há maior variabilidade de vídeos veiculados de outras emissoras de TV pública afiliadas da EBC, retransmitidos por este noticiário. A sonorização das matérias contribui para a dramaticidade do texto jornalístico, mas esta também é acentuada pelo som ambiente e ruídos extraídos do próprio acontecimento nas gravações externas. As vinhetas são o principal elemento sonoro utilizado pelo JN e pelo RB, e oferecem identidade sonora à ambos os telejornais. São utilizadas para sensibilizar e atrair o telespectador na abertura e na transição de blocos dos noticiários e para caracterizar reportagens especiais e quadros específicos presentes do RB, como o quadro “Pergunta do Dia”. No período, estudado o RB apresentou duas edições deste quadro sobre a negritude. Na análise qualitativa, a aplicação do princípio de enunciação Fragmentação permitiu verificar que temáticas sobre a cultura negra e as relações étnico-raciais têm pouca visibilidade nos telejornais estudados. Os negros tendem a ganhar destaque no JN e no RB apenas em períodos de celebrações ou em datas comemorativas e quando institutos de pesquisa ou instituições, como o IBGE e a Unesco, divulgam dados sobre desigualdade social no Brasil. A presença dos negros em ambos os noticiários ainda é esporádica, com exceção das edições de novembro observadas, em função da celebração da Semana da Consciência Negra. Os negros aparecem em reportagens sobre outras temáticas na composição de cenas do cotidiano urbano, mas eles não têm voz em matérias sobre política e economia, pautas recorrentes no telejornalismo Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 217 brasileiro. Esse apagamento da população negra nos noticiários colabora para acentuar os problemas causados pelo racismo estrutural no Brasil. O princípio da Dramatização, que busca o envolvimento emocional do telespectador com a narrativa de diferentes gêneros televisivos se manifesta no telejornalismo, especialmente, no modo como certos personagens são apresentados nas narrativas. No período analisado, essa estratégia enunciativa foi utilizada de maneira expressiva na série de reportagens “Em Marcha” sobre o mês da Consciência Negra, veiculada pelo Repórter Brasil, mas valorizando a cultura e a população negra. Nesta série e em outras matérias sobre negritude foi possível identificar, por meio da aplicação do princípio Definição de Identidades e Valores, que o RB oferece mais visibilidade e protagonismo aos negros. Neste telejornal, eles foram privilegiados como fontes em matérias sobre relações raciais e racismo. Embora tenha sido possível identificar a presença da cultura e de pessoas negras em matérias do JN, a ausência de contextualização de problemas decorrentes de desigualdades sociais gera um apagamento do racismo estrutural brasileiro nas edições do telejornal estudadas. Possíveis soluções para a inclusão social enfrentadas por negros apresentadas em reportagens do JN são quase sempre apontadas por pessoas brancas, como especialista ou representante de uma instituição, amenizando os seus desafios e dificuldades, como a matéria sobre mercado de trabalho exibida no dia 20 de novembro de 2017134. As construções discursivas dessas reportagens tendem a não promover reflexões críticas sobre as desigualdades socioeconômicas e raciais no país, carregadas de metáforas eufemísticas. Exemplos são as duas matérias veiculadas no dia 15 de dezembro de 2017. A primeira ressaltou que, segundo o IBGE, um em cada quatro brasileiros vivia em situação de pobreza em 2016135. Mas, em seguida, foi exibida outra matéria informando que metade dos brasileiros superou a condição econômica de seus pais no ano seguinte136. Desse modo, não houve um aprofundamento desses problemas e os dados econômicos referidos da segunda matéria otimizaram as informações apresentadas na primeira reportagem, sem um reconhecimento da necessária atenção à grande parte da população negra. Os resultados da pesquisa realizada mostram que do total de 1.439 matérias produzidas e veiculadas por ambos os telejornais no período de análise, apenas 136 (9,4%) são sobre temas que conferem visibilidade aos negros, ao racismo e às relações raciais no Brasil. Mais da metade da população brasileira 134. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6302407/>. Acesso em: 9 mai. 2018. 135. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6360898/programa/>. Acesso em: 06 mai. 2018. 136. Disponível em: <https://globoplay.globo.com/v/6360899/programa/>. Acesso em: 08 mai. 2018. 218 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) é constituída por afrodescendentes, porém, menos de 10% das notícias exibidas pelos telejornais estudados representam e dão visibilidade a esta população. O estudo revela ainda que a maioria dos âncoras e repórteres é formada por brancos. Os negros também não são privilegiados como fontes à frente de empresas e instituições públicas e privadas, e não são consultados como especialistas em matérias sobre política e economia. Vozes de negros têm presença em matérias sobre esporte, com a presença de atletas e jogadores negros, em reportagens sobre manifestações artísticas e culturais populares, como na música e no carnaval, ou quando respondem como ativistas ou militantes de movimentos sociais. A população negra tende a ser representada de maneira recorrente por meio de personagens que sofrem pela falta de acesso à educação, saúde e moradia, o que não contribui para a superação de preconceitos. Nessas reportagens, o depoimento popular é utilizado para personalizar um determinado problema social, esvaziando a sua relevância. A representação da população negra, muitas vezes retratada como marginal, está comumente associada à violência urbana. A exceção à regra no corpus analisado foram as matérias internacionais veiculadas sobre a deposição do presidente do Zimbábue, Robert Mugabe, e sobre as celebrações da Semana da Consciência Negra. Verificamos que entre as matérias exibidas pelo Jornal Nacional e pelo Repórter Brasil sobre negritude focalizadas nesta pesquisa, 1,3% é vinculada à categoria Redistribuição, 2,2% à categoria Reconhecimento e 5,8% à Representação. Esses dados revelam que, embora os telejornais das emissoras pública e privada estudados sejam uma forma de conhecimento relevante do Brasil e do mundo, suas narrativas não contribuem de maneira significativa para a superação de preconceitos imbricados nas relações étnico-racionais no país. Tanto o JN quanto o RB oferecem ao público em suas edições diárias uma história do presente sustentada na defesa da solidariedade e na denúncia de injustiças, exaltando com autoridade a reafirmação de valores morais e o respeito ao outro. Contudo, há um padrão de enquadramentos de atores sociais que reforça determinados posicionamentos de sujeitos na cena pública. Desvelamos lacunas nas representações da negritude dos telejornais estudados e observamos que, com o intuito de compartilhar, o texto jornalístico também segrega e promove exclusões. O número de notícias sobre a população negra é limitado em relação a outras pautas, e raramente há reportagens sobre a discriminação e o racismo na sociedade, com exceção da celebração de datas comemorativas. O JN e o RB permitem a visibilidade de certas atuações dos negros na sociedade brasileira, porém, não chegamos a identificar um rompimento com a construDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 219 ção de uma alteridade isenta de conotações negativas, que induz a estereótipos e reduz a complexidade da realidade (ALSINA, 2009). A função da prática jornalística seria reorganizar o caos cotidiano, explicando ao homem os acontecimentos do mundo. Contudo, o modelo interpretativo do discurso da informação sustentado em determinadas tematizações e hierarquizações, selecionando fontes que se manifestam e não se manifestam e difundindo informações mais favoráveis a um grupo do que a outro, se oferece à leitura crítica como um território simbólico problemático. A objetividade construída como matriz do pensamento moderno pressupunha a possibilidade de interpretações verdadeiras e universais, mas é ilusória. A separação de fatos e opiniões, não garante a veracidade dos relatos (ALSINA, 2009). O discurso jornalístico supõe narrar a realidade sem mediação, mas não é neutro nem imparcial, carece de um enfoque plural dos acontecimentos, esconde o sujeito que fala e traduz, superficialmente, conflitos socioeconômicos e culturais. Considerações finais O reconhecimento da diferença seria uma forma de ampliar os modos de construção de subjetividades e reorganizar as regras e os jogos de poder implícitos nas narrativas jornalísticas, tornando-as mais arejadas (RESENDE, 2011). Esse alargamento da mediação do jornalismo não implica a inferioridade de grupos diferenciados, e demandaria maior visibilidade aos afrodescendentes como fontes especializadas de informações em um maior número de reportagens e a veiculação de matérias que promovessem o reconhecimento dos negros e de suas contribuições para o país nos telejornais estudados. De fato, a (re) produção de preconceitos étnicos ocorre em grande parte, por meio da escrita, da fala e da Comunicação. Entretanto, as construções das narrativas dos telejornais também estão implicadas nas interações com as audiências. Estas não se manifestam apenas por enunciações de âncoras e repórteres dirigidas ao telespectador, mas por um conjunto de valores da própria sociedade que endossa as leituras da realidade cotidiana propostas pelos noticiários televisivos. Os telejornais se autolegitimam como os principais mediadores dos problemas da realidade social e buscam organizar discursivamente os conflitos e as desigualdades sociais, por meio de notícias que esperamos serem verdadeiras e capazes de nos oferecer conhecimento dos fatos sociais. A linguagem do telejornal tende a ser apontada como simplificadora, mas é complexa e ambígua, conformada por diferentes vozes e discursos que convidam à adesão das audi220 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ências (MACHADO, 2000). No Brasil, as narrativas dos noticiários têm sido orientadas pelas ideologias hegemônicas e a diversidade cultural tem sido reduzida às homogeneizações. Os noticiários intervêm na vida social por meio de suas representações da experiência cotidiana, entretanto, também refletem reivindicações sociais. Os telejornais não só incorporaram, mas dão visibilidade às diferentes aspirações da cultura popular nacional; mesmo selecionando e autorizando expressões de determinados personagens em detrimento de outros, legitimam vozes diferenciadas (BECKER, 2005). No entanto, as narrativas dos telejornais não causam rupturas de sentidos ou provocam desconfortos e sentimentos que possam desestabilizar uma normatização de crenças e preconceitos de grande parte da própria sociedade brasileira. Esta aparente contradição se reflete nas maneiras que os telejornais estudados atribuem valores aos negros e apresentam a negritude em suas narrativas. Assim, inferimos que o tratamento das informações e a abordagem das relações étnico-sociais não resultam apenas dos modos que a gramática ou a economia discursiva do telejornalismo constroem a realidade, mas também da cumplicidade que as audiências estabelecem com as maneiras que os tipos sociais invocados em matérias e reportagens são representados. A televisão orienta, mas não determina a maneira como vai ser utilizada, pois seus usos são construídos nas práticas socioculturais e em contextos e realidades específicos (FRANÇA, 2006). A mobilidade e a flexibilização da representação das relações étnico-raciais no telejornalismo estão incrustadas no reconhecimento da população negra pela própria sociedade brasileira e por outras instituições e agentes sociais, detentores de poderes de produção e circulação de conhecimentos e valores, inclusive as universidades. A produção científico-acadêmica desempenha papel essencial na reprodução ou na superação do racismo em determinados contextos, a partir de seu acesso e de sua influência sobre diferentes formas do discurso público. Como a discriminação e o racismo são proibidos, partilha-se a crença de que estas atitudes não existem mais como características estruturais da sociedade ou do Estado. Porém, se entendemos o racismo como um sistema de dominação racial ou étnica, a sua negação, baseada na tolerância étnica e racial em si, também pode colaborar para a sua reprodução, considerando-se que quando há consenso, há maior dificuldade de protesto (DIJK, 2010). Entretanto, a noção de racismo não é de antemão associada à noção de discurso, aqui compreendido tanto como uma forma de discriminação quanto como instrumento de mudança Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 221 social (FAIRCLOUGH, 2001). O ambiente universitário converge relações de hierarquia, mas também é um espaço fértil para a emergência de ideologias antirracistas e de discursos alternativos que podem contribuir para potencializar a afirmação da diversidade étnica e cultural da sociedade brasileira e para a transformação de nossas crenças e percepções. Assim, reconhecemos a relevante iniciativa do Grupo de Pesquisa em Teorias do Jornalismo da INTERCOM de produção deste e-book para a promoção de reflexões sobre as lógicas discursivas da mídia e do jornalismo e para a promoção da diversidade. Afinal, verificamos no Banco de Teses da CAPES que entre 2012 a 2016 foram produzidas 4.241 teses e dissertações na Área de Conhecimento Comunicação, inserida na Grande Área das Ciências Sociais Aplicadas e, por meio da busca pela palavra-chave “telejornalismo”, constatamos que, entre esses trabalhos acadêmicos, 121 pesquisas foram sobre esta temática específica, mas nenhuma delas propôs discussões sobre a presença e a representação do negro ou das relações étnico-raciais nos telejornais. Este trabalho, ao sistematizar reflexões trabalhadas em uma Tese em desenvolvimento no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é uma contribuição para a transformação dessas dinâmicas e resistências, abrindo possibilidades para outras leituras sobre a marginalização dos negros na sociedade brasileira e para a reescrita de sua história na mídia e no país. Referências ALSINA, M. R. A construção da notícia. Tradução de Jacob A. Pierce. 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Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 223 PARTE III REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA MÍDIA: O UNIVERSO DA POLÍTICA O enquadramento biopolítico de mulheres empobrecidas em fotografias jornalísticas sobre o programa Bolsa-Família137 Ângela Cristina Salgueiro MARQUES138 Angie BIONDI139 Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG Universidade Tuiuti do Paraná, Curitiba, PR Resumo Este artigo observa os enquadramentos biopolíticos em imagens fotojornalísticas que operam como esquemas de inteligibilidade e controle capazes de constranger a autonomia de mulheres empobrecidas beneficiárias do Bolsa Família. O corpus da pesquisa tem um total de 120 imagens, reunidas entre 2003 e 2015, dos jornais Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo. Investigamos as dimensões estéticas, políticas e éticas das imagens de modo a evidenciar como o governo de corpos femininos, tomados como coletivo sob o signo da vulnerabilidade, envolve a produção de técnicas e narrativas que projetam as mulheres empobrecidas como desviantes a serem punidas ou recompensadas por seus modos de vida constantemente julgados como dignos ou indignos. Entre a biopolítica e a biopotência presentes nas imagens, podem as vulnerabilidades nutrir práticas de resistência? Palavras-chave: Enquadramento; Biopolítica; Mulheres empobrecidas; Fotojornalismo; Vulnerabilidades. Introdução Mulheres empobrecidas são marcadas por preconceitos associados ao 137. Este artigo é fruto de pesquisa financiada pelo CNPq e Fapemig. As autoras são gratas aos bolsistas de apoio técnico da Fapemig, Hannah Serrat e Alexei Padilla Herrero, pelo auxílio na elaboração de várias das questões teórico-metodológicas que fundamentam as discussões deste capítulo. Alguns trechos que integram este texto foram já abordados em outras produções das autoras (ver MARQUES, 2017, 2018). 138. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Pós-doutorado em Ciências da Comunicação pela Université Stendhal, Grenoble III. E-mail: angelasalgueiro@gmail.com 139. Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens da Universidade Tuiuti do Paraná. Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Pós-doutorado pela Université du Quebec à Montréal, Canadá. E-mail: angiebiondina@gmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 225 gênero, à classe social e mesmo à etnia. Ao serem percebidas pela sociedade como “as beneficiárias” de programas assistenciais que contemplam a família tradicional como unidade de avaliação, encontram, em geral, grandes dificuldades para alcançar a autonomia política necessária para formular suas questões e debatê-las na esfera pública (BIROLI, 2018). Como evidenciado por Fineman (1991), os distintos discursos sobre pobreza e empobrecimento caracterizam as mulheres como mães, esposas, cuidadoras, esteios essenciais na manutenção da vida em família. Vínculos familiares tidos como “desviantes” (mães solteiras, casais homoafetivos, divórcio, ausência de contrato matrimonial, etc.) são apontados como casos sem legitimidade para obtenção de apoio junto a políticas públicas, uma vez que estas privilegiam, reiteram e valorizam as normatividades. Assim, uma forma técnica de racionalidade governamental na gestão coletiva das mulheres e mães empobrecidas consiste em afirmar sua função de reconstitutir e manter o equilíbrio do lar e sua estrutura predominantemente patriarcal. Martha Fineman descreve com detalhes o mecanismo de regulação biopolítica que age sobre o comportamento das mães: Quando uma mulher se torna mãe, ela desempenha uma valiosa função social. Ela está se reproduzindo em benefício do estado, da força de trabalho e da família. O significado de sua tarefa tem sido historicamente a justificativa para submetê-la como “mãe” ao poder do estado. Ela é supervisionada e julgada de acordo com padrões que não se aplicam a outros cidadãos. O comportamento das mães é regulado através dos sistemas normativos que abrangem as ideologias do direito e da família. Se as mães são encontradas em necessidade, elas podem ser punidas. Isto é particularmente verdadeiro para as mães pobres e solteiras, mas todas as mulheres como mães correm o risco de intervenção e subjugação com base em seu status. A supervisão e controle impostos às mães pelo estado, e o correspondente sacrifício da privacidade, deveriam formar a base para um direito à justiça para as mães - uma reivindicação pelos recursos para executar as tarefas que a sociedade exige delas. (FINEMAN, 1995, p.2211). Se, por um lado, as condições básicas para que tais mulheres construam dimensões importantes de sua cidadania e de sua autonomia são promovidas pelas redes de assistência social, por outro lado, há barreiras concretas que dificultam sua inclusão política e social derivadas, sobretudo, de um entendimento comum e naturalizado que aponta os indivíduos em situação de pobreza 226 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) como “massa inútil de despossuídos e dependentes”, incapazes de contribuir para movimentar as engrenagens da produção e do consumo neoliberais. Neste sentido, a imprensa compreende um dos contextos que fomenta processos de demarcação de lugares e falas a estes sujeitos, assim como promovem seus enquadramentos e molduras. Argumentamos neste trabalho que no contexto brasileiro a pobreza discursivizada midiaticamente assumiu nos últimos anos uma face feminina e que esta face é moldada por enquadramentos que podem ser definidos como biopolíticos, uma vez que influenciam na orientação de julgamentos e condutas coletivas, intervindo na ação e na autonomia dos sujeitos e, por isso, inventando racionalidades e técnicas de gestão específicas (FOUCAULT, 1980). Sabemos que a noção de biopolítica é cunhada por Foucault em 1976, no primeiro volume da História da Sexualidade (A vontade de saber), como dimensão que integra o biopoder. Este não é propriamente um poder sobre a vida ou um poder da vida, mas um poder sobre a conduta humana: uma junção entre a normalização dos indivíduos através de tecnologias políticas (disciplina) e a racionalização da arte de governar orientar a conduta de grupos de indivíduos e populações (biopolítica)140. Assim, biopoder e biopolítica referem-se a uma governamentalidade que produz e regula coletividades e subjetividades através de discursos, práticas e políticas sociais e culturais. A nosso ver, o modo como o jornalismo e seus discursos estabelecem como legítimos certos tipos de enquadramentos funcionam como técnica biopolítica de gestão das vulnerabilidades na medida em que eles são configurados a partir de uma norma (frequentemente implícita) segundo a qual códigos e valores definem não só um sujeito coletivo, mas sobretudo suas condições de ação e comportamento. Desse modo, enquadramentos biopolíticos definem categorias de sujeito que, segundo Butler (2004), orientam não só o modo como grupos conduzem e orientam suas vidas, mas também a forma como os avaliamos, a ponto de não precisarmos mais entendê-los, apenas julgá-los de acordo com normas preestabelecidas e frequentemente naturalizadas. Mouillaud e Porto (1997) já haviam destacado o processo de visibilidade jornalística como uma espécie de arena política e social. Na medida em que há enquadramentos há formação de consensos tácitos sobre o que está dentro e fora das suas demarcações. Este processo não é iniciado e nem encerrado na 140. “A biopolítica não é uma política da vida (que tem aquilo que vive como objeto e os viventes como sujeitos), mas uma política da população (das populações), entendida como uma comunidade de seres viventes. Tal política da população mede e regula, constrói e produz coletividades através de taxas de mortalidade e programas de planejamento familiar, regras de higiene e controle de fluxos migratórios” (FASSIN, 2009, p.46). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 227 produção midiática da informação, mas apenas “representa o fim de um trabalho social, uma formação que começa à montante dos aparelhos propriamente da mídia. A manifestação é apenas um dos múltiplos operadores por meio dos quais uma sociedade se torna visível a si própria” (MOUILLAUD; PORTO 1997, p.42). A visibilidade construída para tais personagens aqui parece se caracterizar por dois aspectos principais; um prático, quando expõe e dá acesso aos temas, no caso, os pobres e a pobreza, e outro cognitivo, quando concebe sua configuração para o compartilhamento do que deve ser considerado comum, ou seja, “marcado para ser percebido” (1997, p.38). Este texto apresenta uma parte da análise de imagens fotojornalísticas relacionadas às mulheres beneficiadas pelo Programa Bolsa-Família, resultante da pesquisa realizada entre os anos de 2003 e 2015. Ao todo, foram reunidas cerca de 120 fotografias de periódicos de circulação nacional que mantinham bancos de dados digitalizados e acessíveis ao público, como Folha de S. Paulo, Estado de S. Paulo e O Globo. Tais imagens nos auxiliaram a elencar os enquadramentos midiáticos utilizados para construir os argumentos que alimentaram o debate público acerca desse programa social. O objetivo da análise de algumas das imagens trazidas aqui se concentra nos modos de apresentação de mulheres pobres, tomadas como exemplares nas matérias veiculadas, de modo a compreender as implicações estético-políticas que constituem o “aparecer” destes sujeitos nas imagens. Indicamos que, a despeito da constante utilização de um léxico que geralmente pretende conferir-lhes visibilidade, as imagens os invisibiliza ainda mais a partir de uma lógica de registro que considera discursos já enraizados sobre pobreza, assistencialismo, dependência, vulnerabilidade e estigmas de gênero. Não se trata de depreciar os vários méritos da atuação social do programa, mas evidenciar as ambiguidades presentes na sua configuração. Sabemos o quão essenciais são as políticas sociais para sustentar as redes de infraestrutura que tornam possível manter a vida em meio à precariedade, mas nem sempre os discursos que as acompanham questionam o paternalismo que naturaliza as desigualdades. Nas fotografias recolhidas percebemos que, aos sujeitos retratados, só restam utilizar o próprio corpo para evidenciar e narrar suas vidas, seja em concordância com os enquadramentos apreciáveis pela biopolítica de gerenciamento da pobreza e das populações precárias, seja para revelar os desencaixes e os modos de captura e controle pelos aparatos governamentais e midiáticos. Destaca-se que o fotojornalismo, para além de um gênero, atua, neste caso, como um programa comunicacional que busca reabilitar, através 228 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) das imagens, as funções críticas e sociais investidas nas situações precárias nas quais as mulheres são apresentadas. Na análise, sublinhamos que alguns dos elementos plásticos e visuais aos quais recorrem, tais como o uso frequente do preto e branco protocolar, o enquadramento geral ou médio que correlaciona personagem e ambiente, a composição equilibrada que demarca o controle sobre o conteúdo fotografado, a correlação referencial texto/imagem, entre outros, reiteram as reconhecidas pretensões realistas e pedagógicas da fotografia de imprensa (LAVOIE, 2010). Assim, olhar para o corpo feminino produzido discursivamente como precário e exposto na fotografia jornalística implica tanto em explorar as formas discursivas de enquadramento que acentuam sua desaparição, quanto em buscar indícios de resistência, de revelações que possam evidenciar como encontram modos de dificultar o legendamento de seus rostos e corpos, criando hiatos, dissonâncias e dissensos entre seu “aparecer” e o registro narrativo (visual e verbal) de sua exposição. O fotojornalismo em dois programas de enfrentamento da pobreza É importante destacar que o fotojornalismo brasileiro, com o intento de representar as beneficiárias do Bolsa Família, se aproxima do modelo já bem referenciado e proposto pelo Farm Security Administration (FSA), nos Estados Unidos dos anos 1930. Ambos valorizam a prática fotodocumental de modo a partilhar do mesmo investimento no uso de imagens fotográficas para ilustrar a realidade rural cotidiana e embasar os argumentos das análises socioeconômicas indicadas pelos seus Programas. No caso do FSA, as fotografias exerciam a clara função de propaganda política, usadas como instrumento que favorecia o pacote de incremento econômico de modernização da agricultura instituída na política do Resettlement Administration, aspirada pelo presidente Roosevelt. Objetivo diferente do que ocorre no Bolsa Família: programa criado para transferência de recursos federais às famílias empobrecidas que, sob certas condições, recebem repasses mínimos que lhes garantem auxílio no sustento mensal. Contudo, para além desta diferença fundamental, o Bolsa Família se mostrou em diálogo muito próximo ao projeto FSA, sobretudo no que se refere ao plano comunicacional em seu trabalho com a imprensa, e com a fotografia, especificamente. Em sua pesquisa sobre os modelos de desenvolvimento do fotojornalismo ocidental, SOUSA (2004) sinaliza que o trabalho fotográfico do FSA, Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 229 mesmo sob o controle institucional ao qual estava submetido pela direção de Roy Striker (chefe do Departamento e idealizador do projeto), apresentou duas perspectivas distintas na forma de documentar a realidade de miséria da população rural, que eram provenientes dos diferentes estilos profissionais da época. De um lado, indica o autor, comparecem fotografias claramente baseadas na expressão e na ênfase do elemento humano trazidos pelo olhar de Dorothea Lange e Walker Evans, principalmente. De outro lado, estariam fotografias baseadas na descrição das situações concretas e mais ligadas ao ambiente, como em Russel Lee. Lee organizou uma documentação escrupulosa e detalhada de um amplo leque de aspectos da vida social na empobrecida América profunda. A sua atenção não se concentra exclusivamente nos sujeitos e menos ainda na dramaticidade de uma expressão particular, mas na decoração, nas habitações (exterior e interior), na arquitetura, nos móveis e nos acessórios (como o rádio), aspectos mais acidentais nas obras de Evans e, principalmente, Lange. (SOUSA, 2004, p.113) Ao sublinhar estas duas grandes formas de elaborações fotográficas, o autor indica que o projeto visual do FSA como um todo acaba estabelecendo os parâmetros do que viria a ser o documentarismo fotográfico apropriado pela imprensa alguns anos depois. O que, de fato, se concretiza e influencia, inclusive, grandes revistas de notícias como Life, Look, entre outras, ao longo dos anos. Ainda que décadas separem esses dois programas, as fotografias produzidas e relacionadas ao Bolsa Família apresentam uma considerável similaridade estrutural àquelas da FSA. Em primeiro lugar em nível temático, pois as fotos sugerem a realização de um trabalho de elaboração prévia de um projeto de documentação serial da população, que pode ser constatado na extensão promovida por uma divulgação periódica em anos subsequentes nos jornais analisados (entre 2003 e 2015), de modo a acentuar a ideia de um acompanhamento de fases e implementação das atividades do Bolsa Família. Em segundo lugar em nível material, pois os registros fotográficos demonstram que o tratamento dado aos aspectos visuais e plásticos estão conciliados com os propósitos predefinidos pelo Programa. No caso brasileiro atual, além de observar o investimento no trabalho fotojornalístico enquanto um projeto integrante do Programa, ao nos defrontarmos com as fotografias, estas duas grandes formas de elaboração visual 230 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) comparecem novamente. Porém, não são tributárias de um estilo profissional, como visto no FSA, mas a propósito de demonstrar as etapas de implementação do programa Bolsa Família e a sua vinculação ao que conhecemos como “feminilização da pobreza”141. Assim, dois grandes momentos podem ser observados nas fotografias de imprensa que foram veiculadas. Como o “antes e depois” que atende às diretrizes da exemplaridade de um projeto que se cumpre, as mulheres fotografadas e que caracterizam as personagens centrais do Bolsa Família na imprensa, passam de uma situação de “pobreza extrema” à outra considerada melhor, a do enfrentamento de “dificuldades” e vulnerabilidades (que precisam ser superadas como fraquezas, e não como dimensões que informam as práticas de resistência), de modo a não apenas demonstrar a eficácia do programa, mas justificar sua permanência como uma ação de emergência exitosa, mas que ainda precisa se manter para melhorar o que persiste das dificuldades enfrentadas em suas vidas. Mulheres, mães, vulneráveis Como primeiro exemplo indicado, a fotografia abaixo (Fig.1) ilustra uma matéria feita no início de 2003, ano em que o Programa Fome Zero é apresentado pelo Ministério do Desenvolvimento Social e pouco a pouco vai se transformando no Bolsa-Família. No primeiro plano da imagem, vê-se um jumento, animal típico de áreas rurais, muito usado no transporte de cargas e pessoas. Logo atrás dele, uma mulher carrega uma grande lata na cabeça. Ao fundo, é possível notar a presença de elementos que rotineiramente integram uma paisagem da miséria no Brasil: o solo e a vegetação ressequidos, uma casa construída pela técnica de taipa à mão (ou pau a pique), como das antigas construções de moradias humildes dos trabalhadores rurais, além da intensa luminosidade que reitera a sensação do calor cotidiano, próprio do clima daquela região. A legenda que acompanha a fotografia serve para complementar as informações não evidenciadas de imediato, de modo a ativar o potencial retórico e discursivo da imagem dada (PICADO, 2004, p. 198). A água como o 141. As mulheres são titulares do Programa Bolsa Família (o cartão para recebimento do auxílio é feito em nome delas), assim como as agentes institucionais da assistência social encarregadas localmente do cadastro e acompanhamento das beneficiárias. As teias de relações que unem essas atrizes sociais são movidas por lógicas que se movem dentro de economias morais, racionalidades biopolíticas e resistências específicas. Não podemos deixar de mencionar a centralidade das noções de vulnerabilidades sociais, cuidado, responsabilidade e família, todas atravessadas por um processo ideológico de moralização que abrange a culpabilização, a meritocracia e a cidadania como dádiva. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 231 conteúdo da lata que é transportado, por exemplo, demarca tanto a ambientação seca própria à região árida do Nordeste, quanto enfatiza a condição de escassez e precariedade de sua gente, que precisa perambular (muitas vezes, quilômetros) em busca de algum pouco d´água. Vale destacar que a localização indicada na legenda também funciona como operador retórico: a cidade de Guaribas é apontada como o “marco zero” do Programa, primeira cidade a receber o repasse de verbas e, portanto, a primeira a ser exibida como espécie de “cidade-piloto” exemplar. Figura 1 – Foto de José Alves Filho Fonte: RIBEIRO, Efrém. “Fome Zero expõe a face cruel da miséria”, O Globo, O País, 29/01/03, p.8. Legenda: Em Guaribas, uma moradora leva na cabeça um galão de água. Na combinação dos aspectos plásticos que compõem a visualidade desta imagem, nota-se um enquadramento em primeiro plano no animal, que não permite maior proximidade à face que conferiria uma identidade singular à mulher, também protegida pelo pano que cobre sua cabeça. A composição na vertical, própria ao retrato, organiza os principais elementos (humanos e não humanos) neste cenário apresentados sob uma iluminação que marca os contrates da sombra natural projetada e reiterada pelos tons de cinza que marcam, plasticamente, uma sensação de aridez e secura. Aparentemente silenciada, a mulher nordestina figura em meio aos elementos da paisagem que devem 232 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) orientar uma leitura predominante sobre quem são os pobres que devem ser ajudados pelo governo e onde se localizam. Conforme indica Ledo (1998, p. 68), o uso dos recursos fotográficos, no jornalismo, faz com que nos aproximemos do “sonho da verdade empírica, a confiança na câmera passa a fazer parte das mentalidades e a ser um artefato aplicável às instituições garantidoras da ordem administrativa ou policial”. Outra possível interpretação deriva da foto: a posição intercalada entre o animal, a mulher, a casa e a paisagem levaria a considerar certo sentido metafórico de uma vida “animalizada”, oprimida, determinada pela ausência de autonomia, de posse da palavra, de alternativas e escolhas que não sejam aquelas proporcionadas pelo auxílio “divino” ou pela “benesse” do governo. Deste modo, nota-se que a imagem retrata a pobreza sem desconstruir os quadros de sentido que levam a apreender tal situação por uma dimensão moralizante, que avalia e julga os modos de vida e as existências. O efeito de opressão depreendido da primeira foto parece se estender à Figura 2. Neste caso, a mesma distância do plano não permite conferir à mulher, uma proximidade do rosto próprio, embora lhe seja dado um nome e idade, junto às filhas, pela legenda. Figura 2 – Foto: Acervo da FSP Fonte: MAISONNAVE, Fabiano. “O excluídos do marco zero”, Folha de S. Paulo, Brasil, 12/10/2014, Eleições 2014, p. 8. Legenda: À espera: Edineide Dias, 25, e as filhas Graziele,4, e Natieli, 5, ainda sem Bolsa Família; leite, só 3 vezes por semana, diz a mãe. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 233 Ao contrário da anterior, a fotografia colorida propositalmente ajuda a destacar os diferentes objetos que são apresentados; papelão, roupa, saco plástico, céu azul intensamente iluminado, casa e chão da mesma cor como se fossem feitos do mesmo material. A mulher, identificada apenas como uma mãe, está em pé ao lado das filhas, todas em pose fixada para a câmera. A mãe destituída de rosto é elemento central de uma retórica e um enquadramento discursivo que reforçam técnicas governamentais e institucionais de cerceamento e controle dos comportamentos e ações das mulheres empobrecidas. Qualquer processo no qual a “Mãe” seja explicitamente o foco de atenção gera imagens que são significativas para moldar atitudes sociais em direção à regulação da maternidade através da criação de regras que governam a reprodução, a guarda dos filhos e outras áreas da lei nas quais a instituição “Mãe” está implicada. [...] Assim, a ideologia do patriarcado é a força mais instrumental na criação e aceitação dos discursos sobre a feminilização da pobreza, pois sobre uma mulher sem marido parecem recair os castigos e as desventuras reservadas à modos de vida “desregrados”. (FINEMAN, 1991, p.276). Ao observar estas imagens, ambas podem ser consideradas emblemáticas acerca do registro da situação de mulheres qualificadas como beneficiárias pelo Programa, sobretudo entre 2003 e 2009 (primeira grande etapa de sua implementação), pois nesse período os enquadramentos retratam para afirmar quais são os sujeitos/personagens que, considerados em seus lugares/paisagens “de pertencimento” econômico e social, seriam merecedores do auxílio. Ao observar estes materiais e buscar, a partir de suas composições verbo-visuais (legenda/foto), os aspectos que lhes caracterizam e os inserem no contexto discursivo sobre o Programa apresentado na imprensa, podemos ressaltar que as condições e possibilidades de subjetivação permitidas a estas mulheres aparecem previamente determinadas por sua inserção geográfica, sua condição de vida, sua raça e por ideologias que as inserem e as restringem ao contexto doméstico, à maternidade, à subserviência do trabalho precário. Segundo Fineman (1991, 1995), tais ideologias reforçam o entendimento de que os problemas e vulnerabilidades enfrentados pelas mulheres seriam derivados de seu próprio comportamento, reduzindo sua existência à avaliação simplista e negativa que julga as mulheres que são mães, em sua responsabilidade ou irresponsabilidade, de acordo com seus relacionamentos com os homens.142 142. “O que essas mulheres fizeram para merecer palavras tão duras e medidas punitivas? Em grande parte, é o estigma 234 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Figura 3 – Foto: Rosane Marinho Fonte: RIBEIRO, Efrém. Um ano depois, nos emblemas da miséria, O Globo, O País, 11/01/04, p.14. Legenda: Maria do Socorro na casa onde mora desde que saiu da palafita. Exemplar do segundo momento de implementação do Programa, a Figura 3 apresenta uma mulher, ainda em ambiente doméstico, mas agora exibindo os signos de consumo como representantes de uma vida sutilmente melhorada economicamente. A televisão ocupa um papel central na nova moradia de Maria do Socorro, que aparece em sua nova sala – com aparelho de TV – após sair da palafita. Além disso, pouco a pouco as imagens nos jornais passam a conferir destaque ao rosto das mulheres e, ainda que esse gesto nem sempre lhes permita falar, indica uma aproximação ao seu modo de existência e sua corporeidade como dimensões distintas de uma paisagem naturalizada de pobreza. Através de um pequeno conjunto de exemplos, pode-se compreender tais imagens como uma espécie de síntese de uma narrativa que associa, simultaneamente, pobreza, seca, nordeste e dependência originada por um sistema representativo e de relações estabelecidas a priori que define o seu modo de apresentação fotográfica e sua figuração em uma moldura enunciativa específide ser pobre que define o castigo. Mas algo mais do que a pobreza está em questão. O alvo geral dessas medidas punitivas são mulheres solteiras com filhos, e os ataques a estas mães são a brecha de abertura de um plano reacionário para disciplinar mulheres que não estão em conformidade com os papéis que lhes são atribuídos no esquema tradicional da família. É por isso que todas as mulheres, sejam mães ou não, devem se preocupar com o debate atual sobre a pobreza. Embora o debate sobre o bem-estar pareça estigmatizar apenas uma forma de maternidade como patológica, a retórica política reforça, recria e reitera várias premissas fundamentais sobre as famílias que serão usadas contra todas as mulheres. Há naturalmente a forte preferência pelo casamento heterossexual formalmente celebrado que funciona como uma unidade reprodutiva e é, portanto, o “núcleo” sobre o qual tudo o mais é fundado. [...] A maternidade fora desta unidade familiar será punida e estigmatizado. Aquelas que não são mães também serão disciplinadas, pressionadas e penalizadas.” (FINEMAN, 1995, p.2197) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 235 ca sobre o pobre e a pobreza. Não à toa, suas personagens centrais são mulheres, sujeitos tradicionalmente considerados frágeis por natureza, vulneráveis, enfraquecidas e oprimidas politicamente, culturalmente, economicamente; fixadas, inclusive, por clichês e estereótipos visuais que ilustram fartamente a história do jornalismo143. Por uma política das vulnerabilidades O discurso da governamentalidade biopolítica alimenta um entendimento de que a vulnerabilidade deve ser entendida como raridade ou fraqueza, um acidente infortuito, uma ficção necessária que torna viável certa ordem social e política, confirma exclusões, perpetua desigualdades. Faz parte desse imaginário, ou ficção de invulnerabilidade, o fato de que as leis, os enquadramentos midiáticos e sociais, os esquemas valorativos e avaliativos aos quais nos submetemos designam categorias de pessoas vulneráveis, definidas pela suposta fragilidade física, também por sua autonomia questionável ou habilidade precária para decidir e fazer escolhas (FERRARESE, 2016; MACKENZIE et al., 2014). Os enquadramentos biopolíticos também contribuem para essa ficção ao produzir noções como risco e mérito, redefinindo a vulnerabilidade como uma zona de suceptibilidades a múltiplas causas, e ao aproximá-la a uma lógica de acumulação de deficiências sociais que poderiam ser vencidas a partir do esforço e mérito pessoais. Assim, negar a vulnerabilidade e exaltar a invulnerabilidade tem-se tornado objetivo maior das representações e enquadramentos sociais e midiáticos a serviço do capital e de um equilíbrio na correlação de forças que favoreça determinados sujeitos, grupos e instituições, enquanto relega outros ao ostracismo, à humilhação e à morte. A vulnerabilidade seria, assim, um conceito associado à passividade, pobreza, violência, desastres, mortes brutais, segurança; a denotar um espectro de condições negativas, qualidades desabilitadoras e capacidades limitadas, incluindo subdesenvolvimento, pobreza abjeta, violação, injúria, fragilidade, deficiência, dependência, uma falha que impede a auto-realização e a realização coletiva (COLE, 2016). A frequente oposição entre vulnerável/invulnerável 143. Uma imagem recorrente nos jornais impressos pesquisados entre 2003 e 2013 traz as mulheres beneficiárias em fotos posadas, sorrindo e segurando o cartão do Programa. Algo muito semelhante pode ser evidenciado nas imagens do programa FSA: “Apesar de tudo, o que se revela nas fotografias do FSA é, julgamos, um retrato, algo estereotipado e simplificador da América profunda e dos seus habitantes. Nas fotos, estes aparentam quase sempre tranquilidade, esperança, calma, resolução, nobreza e heroicidade. Mas sabe-se que houve muitos momentos de cólera e desespero na América dos anos 30” (SOUSA, 2004, p. 115). 236 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) produz hierarquias sociais e de gênero bem rígidas que acompanham identidades sociais fixas e ancoradas em formas jurídicas ou normativas de distinção entre sujeitos capazes e incapazes, aptos ou inaptos, funcionais ou desfuncionais. Tentativas de disciplinar aqueles apontados como vulneráveis são colocadas em prática por vários segmentos políticos neoliberais, culminando na culpabilização individual e isolada e na produção de vítimas. É importante destacar que vulnerabilidades ontológicas e sociais não são isoláveis e todas elas se manifestam e se constituem em situações: injustiças estruturais resultam do contexto e de práticas ordinárias, mas também de instituições, em seus arranjos e circunstâncias, que sempre protegem certos indivíduos enquanto expõem outros a diferentes formas de eventos e danos (FERRARESE, 2016). Butler (2004, 2011, 2015), ao comentar acerca da distribuição desigual da vulnerabilidade entre indivíduos e grupos, destaca a importância de pensarmos acerca de uma ressemantização desse conceito, permitindo entrever nas situações de vulnerabilidade a emergência de experimentações singulares que, por não serem captadas e mapeadas pela regra, suscitam novos modos de vida fora da regulação disciplinar, atualizam o devir de um comum que, tentativamente, a comunicação e a interdependência buscam construir. Assim, quando Butler (2011, 2015b) define vulnerabilidade, ela o faz tendo em vista a localização de um sujeito em um conjunto de relações marcadas por um campo de objetos, forças, processos vitais, instituições e seres que incidem sobre ele e o afeta de alguma maneira. A vulnerabilidade assim entendida deve ser tomada no plural vulnerabilidades, e nos revela um modo de estar no mundo e de viver uma vida que se constitui entre nossa passibilidade (ser afetado pelos acontecimentos) e nossa capacidade de agência (LAUGIER, 2016). Se na ideologia neoliberal os adjetivos vulnerável144 e precário servem para estigmatizar e regular (muito pela sintaxe do risco e do auto-governo/ auto-controle), como categoria heurística, a vulnerabilidade parece atender a esforços mais amplos de politizar a injúria e o sofrimento. Sob esse aspecto, o sujeito político vulnerável não pode ser definido como vítima, dependente, inativo. Vulnerabilidade não é um conceito essencialmente associado a sofrimento, nem define unicamente uma propensão de estar susceptível ao dano. 144. Quando Butler fala dos riscos de se utilizar o conceito de vulnerabilidade para tratar das resistências de grupos marginalizados, ela aponta que “a noção de vulnerabilidade opera de dois modos: tornando uma população o alvo de políticas ou protegendo-a: os dois dizem do uso do termo como capaz de estabelecer uma lógica política restritiva de acordo com a qual ser alvo e ser protegido são as únicas alternativas possíveis. Assim, nesse sentido, o uso do termo apaga formas de soberania popular e lutas ativas por resistência e transformação social e política” (BUTLER, 2015b, p.144). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 237 Há potencialidades e ambiguidades nessa noção que devem ser consideradas. Na espessura dos corpos em aliança, a vulnerabilidade biopotente Uma primeira potencialidade a ser associada à vulnerabilidade é seu não descolamento de ações de resistência. Butler (2015b) desenvolve o argumento de que o corpo de grupos vulneráveis pode ser usado como recurso e como capital para a produção de rupturas quando é exposto de forma deliberada diante de forças opressoras, incluindo aí o registro e a captura fotográfica. Corpos em articulação, em aliança, tomam espaços públicos ou rebelam-se isoladamente, mas em consonância e podem lutar contra sua fixação em categorias, contra a reificação de enquadramentos que os fixa em posições desprovidas de agência e soberania. Para ela, corpos reunidos em assembléia performam um ato de soberania e de resistência através de sua vulnerabilidade e, com isso, a performatividade dos corpos vulneráveis traz junto consigo uma forma de agir, falar, expor e demandar que requer outra configuração das relações que tornam as vidas possíveis e potentes. Por isso, para Butler, corpos expostos publicamente, juntos, em aliança formam “um povo”: não porque configuram uma unidade, mas porque performam um ato de expressão e exposição que pode desestabilizar enquadramentos biopolíticos de gestão, uma vez que “quando agimos e falamos, não só nos revelamos, mas também agimos sobre os esquemas de inteligibilidade que determinam quem será o ser que fala, sujeitando-os à ruptura ou à revisão, consolidando suas normas ou contestando sua hegemonia” (BUTLER, 2015c, p.167). O “povo”, ou “um povo”, de acordo com Rancière (1995, 2004) e Butler (2016) não é uma identidade predefinida, mas envolve o processo político por meio do qual os sujeitos se tornam corpos coletivos que se fortalecem no prolongamento dos atos, da inventividade, do barulho e das vozes que se tornam falas, passíveis de serem compreendidas, escutadas e consideradas em debates coletivos. Na Figura 4, ainda representativa das melhorias dadas pela implementação do Programa, vê-se uma assembleia de mulheres que revela olhares atentos e vivazes (sem o registro da súplica que é tão comum nas imagens), bocas abertas articulando palavras e protestos, rostos e gestos que se configuram em uma expectativa ativa, em uma produção de presença no espaço público da discussão sobre a fome. Corpos que se juntam para confirmar sua existência plural e configuram uma situação enunciativa que requer a saída do ambiente 238 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) doméstico e a performance no âmbito da expressão política. Corpos se reúnem em assmebléia precisamente para mostrar que são corpos, e para deixar que saibam o que significa politicamente persistir como corpo nesse mundo, e quais requesitos precisam ser satisfeitos para que esses corpos sobrevivam, e que condições tornam possível a vida de um corpo, que é a única vida que temos, e que pode finalmente ser vivível. (BUTLER, 2016, p.63). A imagem nos lembra a importância de se alterar o imaginário e os enquadramentos midiáticos que circundam o sujeito empobrecido isolado, sem vínculos, sem participação na política, sem voz, e configura, por meio da redefinição dos enquadramentos imagéticos, conferindo-lhe outra sintaxe para narrarem suas existências e demandas. Os corpos e rostos femininos que aparecem nessa imagem fazer emergir um sujeito político coletivo, mobilizado não por uma identidade social que declara sua precariedade, mas pelo desafio que lançam “às formas de poder policial e econômico que sequestram incessantemente as chances que uma vida possui de se tornar vivível” (BUTLER, 2016, p.60), sem contentar-se apenas com a sobrevivência. Figura 4 – Foto: Ed Ferreira Fonte: DANTAS, Fernando. “Miséria zero, a próxima etapa”, Estado de S. Paulo, Aliás, 16/01/05, p.I3. Legenda: Bom rumo: principal programa federal pode ser embrião de políticas públicas que não se limitem à mera transferência derenda e fiscalizem melhor os resultados. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 239 Por isso, a assembleia permite o aparecimento do rosto como ato de palavra, um ato de soberania e autonomia que trabalha contra a óbvia e natural disposição dos corpos e das formas de enunciação. A assembléia, segundo Butler (2016), abrange uma pluralidade de corpos mobilizados em uma forma de demonstração de resistência e de igualdade diante de uma crescente desigualdade. Ela fala através de uma pluralidade de faces e corpos que configuram ações e produzem um povo através de uma “auto-designação compartilhada com os outros” (BUTLER, 2016, p.59). Um povo e sua formação não necessitam, segundo Butler, de uma unidade, mas tem sua emergência em um conjunto de debates nos quais definem o que querem e quais agenciamentos irão utilizar. A potência da vida daí se depreende e nos revela uma política da estética e do comum que se relacionam à forma como os dispositivos utilizados para a produção das imagens e do texto jornalístico alcançam a possibilidade de recortar singularmente a experiência comum, instaurando outras partilhas de espaço e de tempo e promovendo novos modos de aparição sensível dos sujeitos. Esse trabalho de mudança dos modos de aparição, das coordenadas do representável e das formas de sua enunciação altera quadros, ritmos e escalas proporcionando outras formas de apreender o visível e sua significação. Considerações finais O enquadramento biopolítico é uma técnica de governo ou de governamentalidade que formata as cenas de aparência preparando-as para definir sujeitos e grupos exemplares, considerados como parâmetro, cujo projeto e modo de vida é tido como antítese do desvio e de existências moralmente julgadas como indignas de consideração e apreciação. As mulheres beneficiárias capturadas por enquadramentos de controle no fotojornalismo nos revelam como a expansão da governabilidade neoliberal passa a produzir “um sujeito neoliberal feminino” constrangido entre os lugares de “alvo”, de “protegido” e de “resistente” (RAGO, 2017). Muitas das propagandas estatais que dão visibilidade ao Bolsa-Família e seus índices de sucesso traduzem a emancipação feminina como sucesso econômico individual e meritório, pouco revelando as contingências que atravessam o leque de experiências e escolhas disponíveis à mulher empobrecida. O reconhecimento ideológico dessa mulher como responsável, criativa e empreendedora influencia no modo como configura seu projeto de vida, adaptando-o, não 240 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) raro, muito mais às necessidades da governamentalidade neoliberal do que às suas próprias. Assim, se de um lado se conhecem os aspectos positivos promovidos pelo programa e seus impactos na emancipação de mulheres empobrecidas, por outro, percebe-se também, junto com Butler (2004, 2011) e Rago (2017), que a precariedade se tornou um modo hegemônico de governo que tem forte incidência como governamos a nós mesmos. A precariedade pode ser tanto a condição de vulnerabilidade que nos aproxima e nos abre às demandas de reconhecimento da alteridade, quanto a forma neoliberal de regulação, controle e poder que orienta e determina nosso campo de ações, ameaçando-nos com a insegurança e o caos. A governamentalidade neoliberal requer a precariedade como modo de vida, como princípio organizador e controlador por meio do qual se enraízam práticas biopolíticas. Fassin (2006, 2009, 2010, 2015) chama de biolegitimidade o modo como se dá atualmente o acesso às políticas sociais dos governos. Para o autor, a produção de direitos, de reconhecimento e de acesso a serviços e atendimento por parte do Estado estão atreladas ao modo como o Estado disponibiliza atendimento aos sujeitos precários, ou seja, exigindo deles enunciados e formulários que atestem um status, uma condição, uma internalização da dependência e uma total rendição aos aparelhos de correção e controle. Exibir-se, exibir a precariedade, relatá-la em narrativas de vulnerabilidade como destituidora de agência e possibilidade de subsistência, formulários padronizados e entrevistas com assistentes sociais são exemplos de processos biolegitimadores em que também o corpo é usado como “fonte de direitos”, numa espécie de exigência a priori da pré-condição para o acesso a políticas sociais. Quanto mais deteriorados forem os corpos e os locais de moradia, mais aptos parecem estar os sujeitos a receberem benefícios. Os agentes institucionais, não raro, exigem provas narrativas ou físicas das dificuldades, dos fracassos e da inaptidão para justificar a necessidade, misturando mérito e compaixão. A fotografia de imprensa, então, continua a participar como modelo operatório probo, através da qual se baseia a pobreza exemplar, constituindo o repertório das qualidades morais do pobre e de suas representações corretas. Assim, afetos e leis, piedade e justiça, passam a ser delineados em cada um dos casos de vida analisados. Instaura-se uma modalidade de governo biopolítico na qual exibir os corpos precários se torna fundamental. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 241 Referências BIROLI, F. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018. BUTLER, J. Vida precária. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, 2011, n. 1, p. 13-33. BUTLER, J. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015a. BUTLER, J. Notes toward a performative theory of assembly. Cambridge: Harvard University Press, 2015b. BUTLER, J. Relatar a si mesmo. Belo Horizonte: Autêntica, 2015c. BUTLER, J. Precarious Life. London: Verso, 2004. BUTLER, J. We, the people: thoughts on Freedom of Assembly. In: BADIOU, A. et al. What is a people? Columbia University Press, 2016. 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Parte-se de uma fundamentação teórica sobre gênero e desigualdades sociais (DAVIS, 2016; BIROLI, 2018) para pensar o papel político do jornalismo (HABERMAS, 2003; 2009; MAIA, 2008; CARVALHO, 2012; LAGO, 2010). Como referencial metodológico, utiliza-se a análise de conteúdo aplicada ao jornalismo ( JORGE, 2015). As conclusões apontam que, apesar do contexto de ampliação dos direitos dos trabalhadores domésticos em ambos os países, as coberturas dos jornais analisados basearam-se na reprodução das desigualdades. Palavras-chave: Trabalho Doméstico; Gênero; Hierarquias Sociais; Folha de São Paulo; La Nación. 145. O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - Brasil. 146. Professora adjunta da Faculdade de Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Cultura e Amazônia da Universidade Federal do Pará (UFPA). Doutora em Comunicação Social pela UFMG. Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Política e Amazônia (COMPOA) e do Projeto de Pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico”, financiado pelo CNPq Edital Universal 2016. E-mail: danilagentilcal23@gmail.com. 147. Professora da Faculdade de Comunicação da UFPA. Mestra em Comunicação, Cultura e Amazônia pela UFPA. Pesquisadora do COMPOA e do Projeto de Pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico”. E-mail: estevesjornalismo@gmail.com. 148. Graduando em Comunicação Social - Jornalismo pela UFPA. Membro do COMPOA e do Projeto de Pesquisa “Mídia, debate público e negociação de sentidos sobre o trabalho doméstico”. E-mail: nerytheus.study@gmail.com. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 245 Introdução Como o jornalismo lida com as desigualdades que envolvem mulheres subalternizadas? E como isso ocorre num contexto de ampliação de direitos? Considerando o potencial dos media para generalização de processos de debate público e de pré-estruturação da esfera pública (HABERMAS, 2003; 2009; MAIA, 2008), buscamos nesse capítulo lançar luz sobre essas questões ao investigar as notícias jornalísticas a respeito das recentes mudanças nas leis voltadas aos trabalhadores domésticos no Brasil (PEC 66/2012149) e na Argentina (Ley de Contrato de Trabajo para el Personal de Casas Particulares/2013)150. O objetivo geral da pesquisa é analisar como o jornalismo configura-se para desafiar, manter ou reproduzir desigualdades relacionadas a gênero e hierarquias sociais a partir da investigação de matérias jornalísticas referentes às mudanças nas legislações sobre o trabalho doméstico no Brasil e na Argentina. A partir de uma abordagem empírica, que relaciona perspectivas do jornalismo e de gênero, essa pesquisa contribui com uma área dos estudos de jornalismo ainda pouco explorada no país (MARTINEZ; LAGO; LAGO, 2016). O Brasil é o país com o maior número de trabalhadores(as) domésticos(as) do mundo (WENTZEL, 2018). Das domésticas, 92% são mulheres, o que corresponde a 14% do total de mulheres empregadas no país (PORTAL BRASIL, 2017). Na Argentina, 97% das domésticas são mulheres, o que equivale a 7% do total de empregados(as) no país (SOBECK, 2017). A América Latina é considerada uma região com uma situação desafiadora do ponto de vista da ação pública, da organização de atores sociais, da estruturação do mercado de trabalho, da (re)organização social e das desigualdades de gênero e raça (BIROLI, 2018; ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011). Apesar de vivenciarmos, a partir de 2010, a ampliação de direitos em ambos os países, com legislações que buscam equiparar os direitos dos trabalhadores domésticos aos de outros trabalhadores, é preciso levar em consideração o fato de que, historicamente, esse segmento ocupa um lugar marcado pela subalternidade e atravessado por questões de gênero, raça e classe (DAVIS, 2016; CAL, 2016; CARNEIRO; ROCHA, 2009). Podemos falar em uma divisão sexual do trabalho que sustenta o modo como identificamos social149. Emenda Constitucional nº 72, de 03 de abril de 2013, mais conhecida como PEC 66 ou PEC das Domésticas. Altera a redação do parágrafo único do art. 7º da Constituição Federal para estabelecer a igualdade de direitos trabalhistas entre os trabalhadores domésticos e demais trabalhadores urbanos e rurais. 150. Sancionada em 2013, a iniciativa revoga a Lei 326/56 e “(...) busca otorgar a las trabajadoras domésticas los mismos derechos de los que gozan los trabajadores del sector privado; es decir, los trabajadores incluidos en el ámbito de aplicación de la Ley de Contrato de Trabajo” (PEREYRA, POBLETE, 2015, p. 75). 246 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) mente o que seriam o trabalho e o lugar da mulher: “as hierarquias de gênero, classe e raça não são explicáveis sem que se leve em conta essa divisão, que produz, ao mesmo tempo, identidades, vantagens e desvantagens” (BIROLI, 2018, p. 21). Em relação às tarefas domésticas, há um contexto social no Brasil e na Argentina que desqualifica esse tipo de trabalho, de tal modo que quem o realiza – ou deveria realizar – seriam as mulheres, em razão de tradicionalmente as atividades domésticas serem consideradas como “femininas”, e, principalmente, as mulheres de classe mais baixa. No Brasil, principalmente, mulheres negras ou pardas. Segundo Carneiro, a trabalhadora doméstica “é um elemento heurístico que organiza simultaneamente as variáveis de gênero, raça e classe e sobre a qual se exercem formas de subjetivação produzidas em nossos processos históricos; paternalismo e compadrio como mecanismo/instrumento/tecnologia de normalização e delimitação dos limites em que é possível e aceitável a aproximação de raça e classe” (CARNEIRO, 2015). De modo complementar a essa perspectiva, podemos citar ainda a desvalorização das tarefas domésticas no contexto capitalista. Para Davis, “como as tarefas domésticas não geram lucro, o trabalho doméstico foi naturalmente definido como uma forma inferior de trabalho, em comparação com a atividade assalariada capitalista” (DAVIS, 2016, p. 230). A partir, então, desse cenário nossa investigação volta-se ao jornalismo, entendido como um “operador simbólico”, cujas narrativas portam “visões de mundo” porque “empreendidas a partir da articulação em torno de linguagens marcadas pelo social” (CARVALHO, 2012, p. 53). Portanto, o jornalismo, como atividade social, alimenta-se daquelas concepções sociais e históricas ao mesmo tempo em que possui um papel político fundamental na constituição de uma “esfera de visibilidade midiática” e na pré-estruturação da esfera pública (MAIA, 2008). O jornalismo age, assim, na constituição de “uma espécie de quadro do mundo” (GOMES, 2008, p. 143) e no estabelecimento de um “quadro dinâmico de interpretações” (MAIA, 2008, p. 189) que alimenta processos políticos, enquadramentos sociais e discussões na esfera pública. Desse modo, o jornalismo pode atuar tanto no sentido do questionamento de desigualdades e hierarquias quanto para cristalizá-las. Como referencial metodológico, recorremos à análise de conteúdo aplicada ao jornalismo ( JORGE, 2015) e analisamos 143 notícias produzidas pelo jornal brasileiro Folha de S. Paulo (2013-2016) e pelo argentino La Nación (2013-2016), ambos na versão online, sobre, respectivamente, a PEC das DoDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 247 mésticas e a Ley de Contrato de Trabajo para el Personal de Casas Particulares. Estruturamos este capítulo da seguinte forma: inicialmente, discutimos as relações entre mídia, especificamente o jornalismo, e a (re)produção de hierarquias sociais e de gênero, com enfoque para as consequências nas dinâmicas políticas voltadas ao debate público e aos segmentos representados ou invisibilizados; na sequência, descrevemos os procedimentos metodológicos, apresentamos os resultados e as análises e apontamos as conclusões. Jornalismo, desigualdades e debate público Na contemporaneidade, em uma sociedade imersa em um processo de midiatização, no qual há uma articulação estrutural das tradicionais instituições sociais com a mídia (SODRÉ, 2007), as experiências compartilhadas socialmente são, em grande parte, mediadas por aparatos técnicos. A tessitura dos discursos, as trocas de informação e conhecimento, as relações são construídas por meio de dispositivos sócio-tecno-simbólicos, entre eles, os media. Nesse sentido, a representação de mundo que compõe o imaginário coletivo é formada por diferentes imagens “difundidas em escala industrial, fazendo com que nossas referências sejam uma fusão entre o mundo com o qual temos contato diretamente e o mundo que conhecemos pelas telas da TV, pela internet e pelas páginas de revistas e jornais” (BIROLI, 2011, p. 85). Nesse contexto, podemos entender os media como esferas de representação social e política, como um âmbito diferenciado de (re)produção de discursos e sentidos, local privilegiado por ser espaço de visibilidade, de “produção das formas de reconhecimento que constituem o capital simbólico e de confirmação ou refutação das hierarquias presentes na sociedade e, mais especificamente, no campo político” (MIGUEL; BIROLI, 2009, p. 57). Portanto, os enquadramentos, enfoques e destaques nos discursos midiáticos refletem no debate público e nas dinâmicas políticas voltadas aos segmentos sociais. No entanto, essa representação midiática de vozes, discursos e segmentos sociais não é convergente ou unânime. Vários discursos atravessam a arena do debate público cotidianamente, alguns de forma mais massiva que outros, o que contribui para (re)produção de estereótipos ou sua superação, na direção de novas gramáticas morais (HONNETH, 2003). É importante ressaltar que as condições de produção e circulação de discursos são desiguais, atravessadas por relações de poder, que fazem parte de um sistema maior de produção e recepção (ativa) de conteúdos. Os media he248 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) gemônicos ainda possuem um grande capital acumulado, o que faz com que, geralmente, tenham maior poder simbólico (BOURDIEU, 1989) na arena do debate público, consequentemente, com grande potencial para a “propagação de representações unilaterais e homogêneas da realidade, apresentadas como sendo a própria realidade ou o que importa dela” (BIROLI, 2011, p. 73). Contudo, para analisar o jornalismo deve-se partir de uma perspectiva complexa que compreenda não apenas as relações econômicas e políticas com outros setores da sociedade, mas também as rotinas de produção e as relações entre os media e seus públicos. O fazer jornalístico é, portanto, permeado cotidianamente por contradições pessoais, empresariais e institucionais (TUCHMAN, 1993; SHOEMAKER; VOS, 2011). Para Lago (2010, p.175), as rotinas de produção e os constrangimentos a que são submetidas as redações, possuem um valor menor se comparadas à importância de “apreender e acolher o Outro em sua alteridade”. Para a autora, impera no jornalismo um acordo velado que envolve empresas e jornalistas que exclui tudo que não pode ser compreendido pela lente do mesmo, do discurso naturalizado, portanto, “falta ao jornalismo [e aos jornalistas], de modo geral, um olhar inclusivo”. Ao estereotipar e invisibilizar sujeitos, vozes e discursos, o jornalismo tende a reforçar e reproduzir visões de mundo que são naturalizadas pelo imaginário coletivo. Uma delas, e que particularmente interessa a essa pesquisa, refere-se às hierarquias de gênero, é a “confirmação do ‘pertencimento’ de mulheres e homens a temas e funções vinculados à esfera pública ou à esfera privada, de acordo com as definições e relações historicamente definidas para essas esferas” (MIGUEL; BIROLI, 2009, p. 64), que se refletem em diversas dinâmicas políticas voltadas, por exemplo, para a garantia e o reconhecimento de direitos das mulheres. Apesar do avanço que as mulheres têm conquistado relativos, por exemplo, ao tensionamento das delimitações do doméstico/privado e o público/ coletivo e às legislações específicas – no Brasil, podemos citar a Lei Maria da Penha; Lei do Feminicídio, PEC das domésticas –, a mídia brasileira ainda é fortemente marcada pelas reproduções de estereótipos de gênero e raça principalmente (BASTHI, 2011, p. 14), incorrendo em uma frequente violência simbólica-midiática. Uma das consequências desse habitus na comunicação (DE BARROS FILHO; MARTINO, 2003) é a contribuição para a manutenção de crenças, valores e atitudes “sexistas, racistas e etnocêntricas, promotoras de sofrimento Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 249 e de profundas desigualdades na sociedade” (BASTHI, 2011, p. 14), com um agravante para as mulheres pobres e negras que ocupam um lugar socialmente considerado inferior na escala de privilégios, abaixo de homens brancos, mulheres brancas e homens negros, sendo, portanto, um dos grupos que mais sofre violação de direitos humanos. Inseridas nesse grupo estão as trabalhadoras domésticas. Segundo Basthi, “a atividade persiste como um setor de baixos salários, elevada jornada de trabalho e alto índice de contratação à margem da legalidade” (BASTHI, 2011, p. 22). De forma semelhante, Carneiro e Rocha (2009) afirmam que há um silenciamento acadêmico e social em relação aos dramas e aflições aos quais essas mulheres trabalhadoras domésticas são submetidas. Assim, a posição atribuída socialmente aos indivíduos que exercem o trabalho doméstico é marcada pela subordinação e subalternidade. Nessa perspectiva, a tematização jornalística pode ou não estimular o questionamento de lugares e valores socialmente atribuídos ou o reforço a essas posições, considerando o potencial dos media para generalização de processos de debate público e de pré-estruturação da esfera pública (HABERMAS, 2003; 2009; MAIA, 2008; CAL, 2016). Procedimentos metodológicos Para compreender, a partir do caso da ampliação de direitos para os trabalhadores domésticos, como o jornalismo configura-se para lidar com as desigualdades sociais e de gênero, investigamos a cobertura desse assunto no Brasil e na Argentina a partir de jornais de referência em cada país. Em relação ao escopo da pesquisa, foram selecionadas matérias produzidas pelas versões online do jornal brasileiro Folha de S. Paulo151 (2013-2016) e do argentino La Nación152 (2013-2016), no período de três anos após a publicação das leis em cada país. 151. A Folha de S. Paulo surgiu em 1921 e, segundo Moreira (2006), é o jornal de maior circulação nacional. A Folha defende que sua linha editorial é baseada num jornalismo interpretativo, complexo, desestatizado e humano, com abordagem aprofundada, crítica e pluralista (MOREIRA, 2006). A Folha Digital – versão online – é o site de maior audiência dos periódicos impressos nacionais. Em abril de 2018, a página obteve 32 milhões de usuários únicos e 224 milhões de visualizações. 75% dos leitores pertencem à classe AB, 56% são do sexo masculino e 49% têm entre 25 a 44 anos (FOLHA UOL, 2018). 152. O La Nación surgiu em 1870 e, em termos de circulação de exemplares, ocupa o segundo lugar na Argentina, com uma tiragem média de 163.652 edições semanais (ARUGUETE; KOZINER, 2014). De acordo com Aruguete e Koziner, “constitui-se como referência de informação sólida e opinião fundamentada. Seus editoriais manifestam uma preocupação significativa em manter ‘os princípios do liberalismo bem entendido’” (ARUGUETE; KOZINER, 2014, p. 145-146, tradução nossa). O La Nación Digital obteve 31 milhões de usuários únicos e 231 milhões de visualizações, em abril de 2018. 58% dos usuários são homens. No perfil de visitantes do site, a idade média é 39 anos e 83% deles pertencem às classes ABC (LA NACIÓN, 2018). Trata-se, assim, de dois jornais com perfis editoriais e de público semelhantes. 250 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Para seleção das matérias, utilizamos a busca pelas seguintes palavras-chave “empregado(a) doméstico(a)”, “trabalho doméstico” e pelos nomes conhecidos das leis nos dois países (PEC das Domésticas e Ley de Contrato de Trabajo) nas plataformas online da FSP e do La Nación. Foram encontradas 143 matérias jornalísticas, sendo 111 na Folha Digital e 32 no La Nación Digital. Os dois jornais foram escolhidos pela relevância e alcance que possuem em seus respectivos países. A definição pelas versões digitais está baseada nas potencialidades que o ciberjornalismo possui, como, segundo Schwingel (2012), alcance global e ilimitado; flexibilização de tempo e espaço (portanto, com maior possibilidade de produção de conteúdos mais densos, multimidiais e contextuais, por meio de hiperlinks); interatividade (inserção do público no processo de produção); memória (disponibiliza um acervo de todo o conteúdo produzido, com sistemas de indexação por meios de tags, o que facilita a pesquisa); e atualização contínua (potencial de atualização instantânea das informações disponibilizadas). Como método de análise, trabalhamos com a Análise de Conteúdo (AC). Segundo Bardin, o objetivo da AC é “a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção (ou, eventualmente, de recepção), inferência esta que recorre a indicadores (quantitativos ou não)” (BARDIN, 2016, p. 45, grifos no original). Esse tipo de análise se desenvolve a partir de três polos: a pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação (BARDIN, 2016). Trata-se de uma metodologia que sistematiza unidades e contabiliza os resultados para revelar padrões e realizar inferências que podem não ter sido percebidas pelo leitor habitual ( JORGE, 2015). Para Jorge, a AC “tem grande valia no exame de produtos noticiosos, seja em que suporte for, pela possibilidade de separar para juntar: picar, cortar o conteúdo em pequenas unidades, demarcá-las ou etiquetá-las, para depois reuni-las num todo (...) que faça sentido” ( JORGE, 2015, p. 20). A partir desse referencial e do material coletado construímos um banco de dados para análise de conteúdo com as seguintes variáveis: identificação da matéria; data de publicação; jornal; título da matéria; editoria; formato/ gênero jornalístico; assunto principal; fontes consultadas; detalhamento do assunto e do sexo no caso de trabalhadores (ou ex-trabalhadores) domésticos serem fontes; abordagens em relação ao trabalho doméstico; enquadramentos153 sobre a mudança da lei. 153. Entendemos enquadramento, a partir de Entman (1993), como seleção e saliência de um aspecto da realidade de modo a gerar uma definição/interpretação particular do problema. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 251 Resultados Na Folha de S. Paulo (FSP), a grande maioria das matérias era de notícias (47,8%) com pouco aprofundamento no assunto. Reportagens representaram apenas 10,8% da cobertura da Folha Digital (FD) e, notas e entrevistas, 11,7% e 2,7% respectivamente. No La Nación (LN), tiveram mais destaque as notícias (59,4%), seguidas pelas reportagens (37,5%). Notas representaram 3,1% do total e não houve entrevista (Gráfico 01). Gráfico 01 - Proporção de matérias por gênero jornalístico nos dois jornais Fonte: Dados da pesquisa. Em ambos os jornais, as leis de ampliação dos direitos de trabalhadores domésticos foram abordadas predominantemente a partir da editoria de economia/mercado, representando 93,7% na Folha e 81,3% no La Nación (Gráfico 02). Nesse último, essa questão foi abordada também na editoria de sociedade/cidades (18,7%), que apresenta temáticas relativas ao cotidiano. Na Folha, houve incidência de poucas matérias dispersas nas editorias de cidades (2,7%), poder (0,9%), empregos e carreiras (0,9%) e suplemento infantil (1,8%). Essa concentração de matérias na editoria de economia/mercado, já demonstra a natureza da preocupação lançada pelos dois jornais na cobertura do tema, focada nas repercussões das leis na economia do país, mas, sobretudo, do ponto de vista dos patrões. Como afirma a própria Folha, a editoria de mercado “fala sobre negócios empresariais e a repercussão das decisões do governo no mundo empresarial e no combate aos gargalos da infraestrutura do país” (FOLHA, 2018, s/p). 252 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Gráfico 02. Proporção de distribuição das matérias de cada jornal por editoria Fonte: Dados da pesquisa. De modo mais específico, podemos detalhar a distribuição das matérias por assunto (Gráfico 03). Na Folha, as temáticas principais foram: “Orientações ao empregador”, com 22,9% do total de matérias, seguida por “Entenda a Lei” (17,6%), “Sistema e-social” (15,7%), “Prazos para pagamento de tributos” (14,8%) e “Impactos na economia/mercado” (11,4%). Se agruparmos em macrocategorias, teremos o seguinte quadro: Gráfico 03. Principais assuntos abordados por jornal (%) Fonte: Dados da pesquisa. No La Nación, prevaleceram temáticas relacionadas a questões legais e especificamente “orientações ao empregador”, categoria que correspondeu a 33,8% do total de matérias veiculadas pelo argentino. Em relação à apresentação das vantagens da nova lei, o La Nación, proporcionalmente, publicou mais Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 253 matérias do que a Folha: 14,1% e 4,3%, respectivamente. O jornal argentino também abordou de modo mais recorrente do que a Folha as desvantagens da nova lei, porém com uma diferença proporcional menor do que no item anterior: 11,3% LN contra 7,6% da Folha. Na Folha, as principais fontes consultadas foram: representantes do executivo (30,4% do total de fontes), como ministros e representantes da Receita Federal; especialistas (16,9%), como advogados e economistas; representantes do legislativo (14,9%) como deputados; e organizações empresariais (14,2%%), como agência Global Talent, Mary Help e House Maid, que oferecem serviço de terceirização de trabalho doméstico. Trabalhadores domésticos foram consultados pouquíssimas vezes, sempre mulheres: trabalhadoras em atividade corresponderam a apenas 4,1% do total de fontes e ex-trabalhadoras a 2%. Empregadores representaram 6,1% das fontes. No La Nación, trabalhadores domésticos não foram fontes em nenhuma matéria. As principais fontes consultadas foram: representantes do executivo (22,9% do total de fontes), como representantes do Ministério do Trabalho e da AFIP (órgão equivalente ao Ministério da Fazenda); especialistas (28,6%), como advogados e economistas; empregadores de trabalhadores domésticos (14,3%); e organizações empresariais (14,3%), como corretoras de seguro e escritórios de contabilidade. Em relação à abordagem a respeito do trabalho doméstico, nos dois jornais, ele foi abordado como atividade feminina (75,5% na Folha e 71,9% em La Nación). Em menor proporção, apareceu ainda o trabalho doméstico como uma relação de confiança entre patrão e empregada (10% na Folha e 12,5% em La Nación). Uma distinção relevante que observamos entre a cobertura da Folha e do La Nación diz respeito ao modo como foi enquadrada a mudança da lei (Gráfico 04). Desconsiderando as matérias que não apresentam perspectivas em relação à mudança da lei (30,6% na Folha e 21,9% em La Nación), das que apresentam, na Folha, 65,5% o fazem a partir de aspectos negativos, como: problema logístico para os patrões; prejuízo para relação patrão-empregada; problema financeiro para os patrões; interferência exagerada do Estado. Já no La Nación, a mudança da lei é apresentada majoritariamente (59,6%) a partir de aspectos positivos, como: possibilidade de melhorar as condições do trabalho doméstico; correção de uma injustiça/reconhecimento do trabalho doméstico; conquista de vantagens sociais. 254 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Gráfico 04. Ocorrências de enquadramentos sobre a mudança de legislação (%) Fonte: Dados da pesquisa. O enquadramento específico mais recorrente nas matérias do jornal argentino foi “Possibilidade de melhorar as condições do trabalho doméstico” com 42,6% das ocorrências. Ele destacava principalmente as novas possibilidades para a trabalhadora doméstica como jornada de trabalho de 48 semanais, licença maternidade, férias remuneradas e as mudanças nas condições de trabalho. A Folha recorreu a esse enquadramento 12,4% das vezes, principalmente, quando ouviu representantes de organizações sociais e organismos internacionais como a OIT. Ambos os jornais abordaram poucas vezes a ideia de que as novas leis seriam uma forma de corrigir uma injustiça: 10,6%. O enquadramento mais acionado pela Folha foi o de que a nova lei seria um “problema logístico para os patrões”, com 38,1% das ocorrências, como exemplifica o trecho a seguir: “De acordo com especialistas na área trabalhista, fazer o cadastro e pagar a primeira guia do novo sistema foram apenas o início dos desafios que as pessoas terão para cumprir a nova legislação” (FSP, MERCADO, 16/11/2015, grifo nosso). No La Nación, esse enquadramento ocorreu em 17% das vezes, mas não a partir da perspectivas dos “desafios”, mas sim das “obrigações”, como exemplifica o excerto: “Contar con una persona que trabaje en las tareas de la casa implica nuevas obligaciones a partir de la vigencia, por ahora parcial, de la ley 26.844, a la vez que se sumarán otras más en los próximos meses.” (LN, 11/05/2014, grifo nosso). O segundo enquadramento mais recorrente na Folha e no La Nación foi o da nova lei como prejuízo para a relação patrão-empregada com 20,4% das ocorrências no brasileiro e 19,1% no argentino. Um trecho bem representativo desse enquadramento na Folha é apresentado na matéria “Lei confronta Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 255 relação ‘familiar’ entre patrões e empregados no Nordeste”, quando o texto jornalístico diz que: A relação mistura profissionalismo com afeto e amizade, em um regime trabalhista próprio, baseado na confiança e acordos informais. As folgas são quinzenais, e a jornada, adaptada às necessidades da patroa. A empregada ganha as refeições, material de higiene e passagens para visitar a família. A PEC das domésticas ameaça agora desestabilizar essa relação. (...)” (FSP, MERCADO, 23/04/2013) A ideia de um “regime trabalhista próprio” é complementada pelas informações sobre a situação de trabalho da empregada doméstica e os ganhos que ela recebe citados na matéria. A conotação positiva apresentada pelo jornal a respeito dessa relação estabelecida entre patrões e empregada fica clara a partir afirmação de que a nova lei seria uma ameaça. Discussão e conclusões Nos dois países, antes das novas legislações de 2013, os trabalhadores domésticos não detinham os mesmos direitos dos outros trabalhadores. Eram considerados uma categoria inferior que, por trabalhar em casas privadas, poderia ter uma legislação mais flexível com direitos trabalhistas mais frouxos. Como afirma Davis (2016), apesar de as tarefas domésticas relacionadas ao papel da mulher, do âmbito privado e da não geração de lucro caminharem ao ponto da “obsolescência histórica”, ainda é comum o imaginário coletivo associar essa modalidade de trabalho a essas condições, reforçando o racismo, o sexismo e as desigualdades sociais. Considerando, então, o jornalismo como “operador simbólico” que mobiliza visões de mundo e que alimenta processos sociais e políticos, como podemos, a partir da pesquisa realizada, lançar luz sobre as questões levantadas no início deste capítulo? Para pensar sobre como o jornalismo lida com as desigualdades que envolvem mulheres subalternizadas, vamos analisar os resultados segundo as seguintes categorias: 1) o jornalismo atuando para questionar/problematizar as desigualdades; e 2) jornalismo atuando para reproduzir/manter essas desigualdades. (1) Em poucos aspectos das coberturas da Folha e do La Nación podemos destacar o questionamento de desigualdades relacionadas ao trabalho 256 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) doméstico. Na verdade, na cobertura da Folha, a partir da análise que empreendemos, podemos mencionar como uma possibilidade bastante frágil de fissura num cenário marcado por desigualdades é a presença de trabalhadoras e ex-trabalhadoras domésticas como fontes em notícias e reportagens. Ainda que incipiente e pouco substantiva em relação a ocorrência total de fontes, as trabalhadoras domésticas apareceram em matérias e foram citadas. Contudo, quando isso ocorreu foi principalmente a partir de falas sobre a rotina de trabalho, ou ainda, que não pretendem exigir todos os novos direitos dos patrões (como, por exemplo, horas extras). Outro ponto que merece ser ressaltado é que as matérias que mais ouviram trabalhadoras domésticas foram publicadas no suplemento infantil “Folhinha” e, ainda assim, o enfoque era a opinião das crianças a respeito das trabalhadoras. No La Nación, temos a presença de elementos que reforçam uma abordagem mais questionadora de desigualdades quando enquadra a nova legislação principalmente a partir de elementos positivos do ponto de vista social, como: possibilidade de melhorar as condições do trabalho doméstico; correção de uma injustiça/reconhecimento do trabalho doméstico; conquista de vantagens sociais. Também consideramos interessante mencionar que o argentino buscou abordar o assunto não apenas de uma perspectiva econômica, mas também social, o que é observado a partir presença de notícias na editoria de sociedade. Ainda assim, não podemos afirmar que as matérias do jornal atuaram para questionar as desigualdades. Apesar de terem mencionado desigualdades econômicas e de direitos das trabalhadoras domésticas, elas não foram ouvidas nas matérias. (2) A análise da cobertura nos dois jornais mostra que eles atuaram, principalmente, na reprodução de desigualdades relacionadas ao trabalho doméstico e a quem o realiza. Ambos os jornais trataram do assunto como atividade feminina, sem problematizar os tipos de trabalho domésticos ou a divisão sexual do trabalho (BIROLI, 2018). Em boa parte das matérias da Folha, os direitos são colocados como uma concessão, como algo que as trabalhadoras domésticas ganharam, ao invés de serem considerados uma conquista. Outro ponto é que tanto o jornal argentino quanto o brasileiro abordaram a mudança de legislação majoritariamente a partir de aspectos econômicos e de mercado. Fica evidente um enfoque a partir do que seria o interesse dos empregadores: orientações sobre a nova lei, sobre o sistema para cadastro dos trabalhadores domésticos, questões tributárias etc. Nesse sentido, o enquadramento mais recorrente na Folha sobre a PEC das Domésticas foi o da lei Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 257 como “problema logístico para os patrões”. Percebemos nesses resultados um reforço às hierarquias sociais existentes tanto no modo de abordagem quanto no próprio escopo a partir do qual a ampliação de direitos no trabalho doméstico é pautada. A análise comparativa entre a cobertura no Brasil e na Argentina permitiu observar que, no geral, os jornais estudados, que possuem características editoriais semelhantes, abordaram a temática de modo bastante próximo, o que nos diz de certo padrão de cobertura a respeito de temáticas que envolvem sujeitos, especialmente mulheres, em situação de subalternidade. Os resultados apresentados são, de certa forma, contra-intuitivos quando ressaltamos que se trata de um contexto de ampliação de direitos dos trabalhadores domésticos, portanto, um cenário legal favorável a discussões mais consistentes sobre as desigualdades e seus questionamentos. O que observamos a partir de análise é que os jornais estudados têm o potencial de alimentar o processo de debate público sobre o trabalho doméstico, mas atuam para manter desigualdades sociais, na medida em que não abrem espaço, de fato, para posicionamento das trabalhadoras a partir dos seus anseios e perspectivas. Como afirma Lago (2010), o jornalismo tem dificuldade de lidar com o “Outro” – acrescentamos: não-hegemônico – e de lançar um olhar realmente inclusivo para esses contextos e sujeitos. Referências ARUGUETE, N.; KOZINER, N. S. La cobertura mediática del “7D” en la prensa argentina. Aplicación de encuadres noticiosos genéricos a los principales diarios nacionales. 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Paulo e da Veja na campanha de Dilma Rousseff em 2010 Ana Maria da Conceição VELOSO154 Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE Patricia Paixão de Oliveira LEITE155 Núcleo de Documentação sobre Movimentos Sociais, Recife, PE Resumo Este artigo se propõe a investigar o discurso de dois veículos da mídia impressa brasileira durante a cobertura da campanha de Dilma Rousseff à Presidência do Brasil, em 2010: o jornal Folha de S. Paulo e a revista Veja. Meios de grande circulação no país e ampla tiragem, as publicações lançaram mão de dispositivos discursivos que ressignificaram as marcas culturais e simbólicas do patriarcalismo, do machismo e da misoginia. Para averiguar os sentidos imersos no corpus da pesquisa, foi realizado um estudo de caso e utilizado o arcabouço teórico-metodológico da Análise do Discurso. Também apoiaram a elaboração do texto, pesquisas dos campos da economia política da comunicação e dos estudos das relações de gênero na mídia, na tentativa de desvelar os sentidos impregnados nas coberturas dos veículos acerca da campanha de uma mulher à Presidência do Brasil. Palavras-chave: Discurso; Sexismo; Gênero; Jornalismo; Economia política da comunicação. Introdução As eleições presidenciais no Brasil, em 2010, guardaram peculiaridades que transformaram aquele momento político em um caso eleitoral interessante do ponto de vista histórico. Afinal, pela primeira vez uma mulher que estava na disputa apresentava chances concretas de vencer as eleições e tornar-se presidenta da nação. Com forte acirramento de discursos e embates midiáticos, 154. Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora do Departamento de Comunicação da UFPE e coordenadora do Observatório de Mídia da UFPE. 155.Doutora em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Pernambuco. Pesquisadora do Núcleo de Documentação sobre Movimentos Sociais (NuDoc) da UFPE. 262 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) o pleito foi decidido no segundo turno, no dia 31 de outubro, tendo Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT), e José Serra, do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), como os dois concorrentes finais. Dilma venceu as eleições com 56,05% dos votos, contra 43,95% de Serra. O economista José Serra representou a coligação PSDB, DEM, PTB, PPS, PMN e PT do B, com um currículo que colecionava vários cargos: foi deputado federal, senador e ministro do Planejamento e da Saúde, além de governador e prefeito de São Paulo. Já Dilma, era estreante em campanhas eleitorais como candidata, mas assumiu cargos no governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Foi ministra das Minas e Energia e ministra-chefe da Casa Civil. Economista, filiada ao Partido dos Trabalhadores, ela ficou à frente de uma ampla coligação eleitoral, que abarcou as siglas PT, PMDB, PC do B, PDT, PRB, PR, PSB, PSC, PTC e PTN. Além das trocas de acusações, intrigas entre partidos, polêmicas, costuras políticas em busca de apoios para o segundo turno, muitos assuntos delicados foram discutidos sem profundidade ao longo da campanha, como a questão do aborto, por exemplo, que inundou as páginas dos jornais e revistas, não sem lançar mão de um aparato discursivo religioso. O discurso sexista sobre Dilma dominou as coberturas eleitorais, utilizado como mais um “argumento” para fortalecer a oposição à candidata do PT. Para apreender o corpus de análise, este estudo considerou 111 matérias e reportagens que referenciaram a campanha de Dilma Rousseff na Folha de S. Paulo, sete dias antes e sete dias depois do pleito, e 45 arquivos da revista Veja, incluindo capa, notas, matérias e reportagens, publicados um mês antes e um mês depois do segundo turno. Aqui serão analisados alguns textos selecionados, entre os 156 do total, considerados mais representativos sobre os discursos que circularam de forma recorrente na eleição (LEITE, 2016). Fundada em 1921 – na época foi denominado Folha da Noite –, a Folha de S. Paulo tem como público majoritário 41% da classe A, sendo que três quartos fizeram faculdade e 24% também pós-graduação156. Desde 1931, está sob o comando da família Frias. Atualmente tem como presidente Luiz Frias e o diretor editorial é Otavio Frias Filho. Já a Veja, que teve a sua primeira edição lançada em 1968, pertence ao Grupo Abril, da família Civita, com um leque diversificado de operações empresariais, entre elas, gráfica, editora com conteúdo digital multiplataforma, marketing e eventos, além de logística de distribuição de publicações. 156. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/paineldoleitor/2011/10/991055-leitor-da-folha-e-ltraqualificado-mostra-pesquisa.shtml.> Acesso em: 27 jul. 2015, às 19h. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 263 Um olhar sobre os discursos de Veja e Folha de S. Paulo Em uma pesquisa exploratória inicial, com a observação primária do corpus, nota-se a emergência do discurso sexista das duas publicações ao referenciarem Dilma Rousseff. Com a abordagem derrisória157 sobre a estética da candidata e seu comportamento, sem contar a espetacularização sobre o tema do aborto, os veículos deixaram aflorar de forma potente legados culturais e simbólicos do patriarcalismo, do machismo e da misoginia, impregnados nas relações de poder da sociedade brasileira. Houve, por assim dizer, a ativação da memória discursiva sobre temas como religião e gênero, que foram trazidos para o “palco” também pelas reportagens. A questão veio à tona quando o candidato José Serra divulgou que Dilma Rousseff havia declarado, em 2007, que apoiava a descriminalização do aborto. Houve uma forte manifestação de religiosos contra Dilma e o PT, com apoio da mídia, impelindo a candidata a publicar que era contra a descriminalização dessa prática. Quanto mais o segundo turno se aproximava, mais a mídia gestava o tema em suas páginas e canais de rádio e TV. Emerge, então, um importante objeto para a análise, uma vez que os meios de comunicação, pela sua centralidade no mundo moderno e penetração em diversas esferas sociais, são também responsáveis pela disseminação dos valores dos seus grupos controladores para seus públicos. E os discursos midiáticos, certamente, são fortes reprodutores de sentidos e ideologias circulantes em uma sociedade. Nesse sentido, para tentar deslindar o objeto, optamos pela realização de um estudo de caso descritivo e interpretativo, que nos levou a apreciar tal questão quando analisamos criticamente os dados coletados. “Como esforço de pesquisa, o estudo de caso contribui, de forma inigualável, para a compreensão que temos dos fenômenos individuais, organizacionais, sociais e políticos” (YIN, 2001, p. 21). De acordo com Robert Stake (2000), a investigação deve considerar: a natureza do caso; o histórico do caso; o contexto (físico, econômico, político, estético etc.); outros casos pelos quais é reconhecido; os informantes pelos quais pode ser conhecido. Todas essas características têm forte relação com a natureza da observação empreendida neste capítulo, diante da alta quantidade 157. Para Simone Bonnafous (2003, p. 35), derrisão é a “[...]associação do humor e da agressividade que a caracteriza e a distingue da pura injúria”. Ela diz que esse tipo de discurso é tradicional na política, há muito tempo, mas que chegou também à imprensa. Entre as características desses jogos discursivos de derrisão estão o “argumento de distinção” e de “desqualificar o outro” (BONNAFOUS, 2003, p. 35). 264 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de material analisado (corpus composto por títulos, subtítulos e textos de matérias e reportagens dos dois veículos em tela). Também foi preciso desvelar os discursos submersos nos textos selecionados, com o recurso ao aporte teórico-metodológico da Análise do Discurso, considerado o mais apropriado no sentido de que “uma das grandes contribuições da Análise do Discurso para o estudo de texto é articular o linguístico ao sócio-histórico, este entendido como exterior constitutivo daquele. Isso significa que a exterioridade se inscreve no próprio texto e não como algo que está fora e se reflete nele[...].” (GREGOLIN e BARONAS, 2001, p. 109). Até porque [...]para constituir-se, a AD inscreve-se em um campo epistemológico interdisciplinar, o que faz com que sua relação com estes campos de conhecimento seja sempre crítica: do Marxismo, interessa-lhe saber como se dá o encontro do ideológico com o linguístico; da Linguística, procura descrever os funcionamentos responsáveis pela produção de efeitos de sentido, considerando as línguas como processo; na enunciação, vai procurar o sujeito, mas interessa-se por um sujeito dotado de simbólico e de imaginário, cujo discurso mostra as condições de sua produção. (INDURSKY, 1997, p. 30). Não se trata aqui de fazer uma revisão bibliográfica sobre a Análise do Discurso –isso não seria possível nos limites do capítulo –, mas utilizar esse campo para considerar os discursos embutidos nos textos. Tal método permite conduzir a observação dos sentidos das palavras e como elas foram rearranjadas no enunciado, levando em consideração as formas possíveis de olhares sobre o discurso. Pois, “na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história” (ORLANDI, 2003, p. 15). Nessa perspectiva, ao conduzir o estudo do corpus, interessou-nos entender os contextos principais em voga: a campanha eleitoral em si, o lugar de fala da mídia e as condições que determinam como a mulher deve ser referenciada numa sociedade patriarcal como a brasileira. Assim, desvenda-se o trabalho simbólico da língua fazendo sentido no discurso e os efeitos de sentido possíveis, oriundos desse entrecruzamento de vozes. Pode-se dizer que a Análise do Discurso permite reconhecer o funcionamento do discurso midiático sobre Dilma Rousseff, no cenário eleitoral de 2010, e conhecer o que ele ocultou e o que revelou. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 265 A mídia, o poder e a política Uma das bases teóricas que fundamentam o estudo das articulações entre poder, política e mídia é a economia política da comunicação, a qual deriva da economia política. Para Vincent Mosco, essa vertente teórica pode ser definida como “o estudo das relações sociais, particularmente das relações de poder, que constituem mutuamente a produção, a distribuição e o consumo de recursos” (MOSCO, 1996, p. 25). Janet Wasko (2006) resume a preocupação dos economistas políticos ao afirmar que esses estudiosos documentam e analisam as relações de poder, as classes sociais e outras desigualdades estruturais. No artigo “Comunicação, economia e poder: uma visão integrada”, Helena Sousa (2006) afirma que nas pesquisas da economia política da comunicação: As questões relacionadas com a produção e com o consumo da informação e do entretenimento nunca são questões meramente econômicas, políticas, artísticas ou mesmo de natureza editorial. São sim questões que se prendem com a distribuição do poder na sociedade e com as consequências dessa distribuição para a constituição do espaço público e, consequentemente, para a qualidade do sistema democrático e do ambiente simbólico que nos envolve. (SOUSA, 2006, p. 6). Segundo César Bolaño (2000), os/as pesquisadores/as da linha mais crítica da economia política da comunicação põem em relevo as funções desempenhadas pelos grupos de mídia no processo de acumulação de capital no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo. “A comunicação que se realiza no processo produtivo de tipo capitalista é uma comunicação hierarquizada, burocratizada, compatível com a estrutura de poder na fábrica” (BOLAÑO, 2000, p. 41). Quando observamos a composição dos grupos de comunicação brasileiros percebemos que os enlaces entre o poder político e esses atores fazem parte de um sistema mercadológico que, desde a sua gênese, configurou-se para lucrar por meio da “venda” da informação. São hoje potentes indústrias concentradas, que traduzem uma versão da realidade pela ótica da elite empresarial e política hegemônica para uma suposta massa de “consumidores”. Essa conjuntura ficou ainda mais problematizada na era das tecnologias digitais ou da “globalização”. No bojo desse tipo de desenvolvimento, emerge o fenômeno da oligo266 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) polização do setor. Dênis de Moraes (1998, p. 59) considera que essa oligopolização pressupõe: “a) amplos mercados consumidores; b) concorrência intensa entre um número cada vez menor de megagrupos; [...] c) reformulação estratégica das corporações transnacionais, que passam a centralizar as funções de decisão e os planos de inovação”. O objetivo é a “maior acumulação de capital ao menor custo possível” (MORAES, 1998, p. 59). Há uma peculiaridade na organização da mídia brasileira: é marcada pelo histórico domínio de grupos familiares e das elites políticas. Assim, um novo ator emergiu recentemente, instaurando mais um elemento no perfil das empresas jornalísticas no país: a assunção das igrejas, em especial, as evangélicas, que se tornaram detentoras de concessões para operar emissoras de rádio e televisão (LIMA, 2004, p. 94). Desse modo, “o resultado é um sistema que privilegia o capital financeiro, presente nos principais negócios, e um mercado global oligopolizado, o que exacerba a dificuldade de tomada de decisões autônomas” (BRITTOS, p. 55, 2010). Assim, as relações entre a política e a radiodifusão no Brasil emergem como um dos maiores obstáculos para que se incorpore, no país, a democratização dos meios de comunicação, uma vez que, com a ausência de uma ação mais robusta do Estado, perpetua-se um modelo de mídia cada vez mais concentrado, como enuncia a pesquisadora Eula Dantas Cabral: “Dada a concentração do setor, sua ampla expansão em dimensões territoriais, incluindo ramificações regionais e locais, os grupos midiáticos exercem uma influência determinante na elaboração de políticas em suas áreas de atuação” (CABRAL, 2015, p. 20). A situação também colabora para que uma das faces da concentração ainda permaneça em voga, como demonstra o pesquisador Venício Lima no artigo “As Brechas ‘Legais’ do Coronelismo Eletrônico” (2007): “O ‘coronelismo eletrônico’ é uma prática antidemocrática com profundas raízes históricas na política brasileira e perpassa diferentes governos e partidos políticos” (LIMA, 2007, p. 125). O autor reforça que essa prática constitui-se em um dos mais fortes gargalos para a efetiva democratização das comunicações no país. Para ele, com o “coronelismo eletrônico” são reforçados “os vínculos históricos que sempre existiram entre as emissoras de rádio e televisão e as oligarquias políticas locais e regionais na maior parte do país” (LIMA, 2007, p. 125). Os fenômenos apontados por Eula Cabral (2015) e Venício Lima (2007) são percebidos, em escala mundial, pelo jornalista e pesquisador espanhol Pascual Serrano (2009). Na obra “Desinformación: cómo los médios ocultan el Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 267 mundo”, ele apresenta uma análise profunda sobre o comportamento da mídia, inclusive, na América Latina, revelando como os jornais, rádios, televisões e internet “desinformam” a opinião pública, com o propósito de promover a sua adesão à classe dominante. E quando se fala de classe dominante reporta-se a um modelo hegemônico patriarcal, elitista e mantenedor de uma classe subalternizada por grupos detentores de poder e dinheiro – e, porque não dizer, controle midiático. Para o autor espanhol, o resultado desse modelo de informação massivo e empresarial é a divisão da sociedade em duas instâncias: “uma grande maioria que consome grandes meios de comunicação de forma acrítica e se converte em carne de manipulação informativa e uma elite política e intelectual que consegue compreender as chaves do mundo” (SERRANO, 2009, p. 16, tradução nossa). Nessas condições, uma parcela da sociedade se vê obrigada a conviver com a impotência de não fazer com que as suas mensagens cheguem aos cidadãos (SERRANO, 2009, p. 16, tadução nossa). Além disso, como enfatiza Serrano, “a seleção das notícias é o argumento mais contundente para recordar que não existe a neutralidade e a imparcialidade informativa” (SERRANO, 2009, p. 25-26, tradução nossa). O que não for voz das elites, do discurso hegemônico, é minimizado. Nessa mesma linha de pensamento, Moraes (2010, p. 95) diz que é papel da mídia anular o fluxo de ideias contestadoras, esvaziando análises críticas contraditórias e excluindo outras vozes no debate. Dessa forma, segundo Moraes, a mídia não aceita freios, “alegando que exerce uma (hipotética) função social específica, a de informar a coletividade. Deseja estar sempre fora do alcance de regulações e controles democráticos, para [...] fazer prevalecer [...] a lógica mercantil e suas conveniências corporativas” (MORAES, 2010, p. 95-96). As várias faces do patriarcado nos meios de comunicação Entre os poderes midiáticos de disseminar fissuras sociais e abismos entre grupos, influenciando a produção mental de acordo com os interesses das elites, está a massificação das ideias de uma época. Para Mercedes Lima (2009), os meios de comunicação, especialmente a televisão, reforçam a naturalização da discriminação da mulher, retratando-a como um ser predestinado a exercer papéis sociais seculares, como a maternidade, a sexualidade vigiada e reprimida – quando se trata de satisfazer a si mesma –, o compromisso com o casamento e a não visibilidade profissional. 268 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Com isso, os veículos de comunicação fixam estereótipos geradores de preconceitos e discriminações, produzindo e reproduzindo valores e hábitos consonantes a formações ideológicas sexistas. A mídia reforça um modelo de superwoman, isto é, da mulher que está inserida no mercado de trabalho, que cuida dos filhos, do marido e da casa e ainda está sempre arrumada, reforçando modelos de beleza calcados na feminilidade e na juventude. Para Rachel Moreno (2009, p.13), “a mídia comanda, sem mandar”. Ou seja, para a autora, manda a mulher ser magra, bela, boba, mãe, enfim. E mais: “ser invejosa, competir com as outras, manda correr em busca da felicidade perfeita que virá a partir da compra de produtos e valores, da exibição de marcas e etiquetas que nos identifiquem e qualifiquem” (MORENO, 2009, p. 13). Em outras palavras, “sem tom de mando, a mídia evita a resistência e a rebelião” (MORENO, 2009, p. 13). Trata-se de um dos sintomas de um mesmo fato, no qual temos ao menos dois fenômenos que devem ser estudados de modo integrado: a) a superexposição da imagem e do sexo das mulheres e b) a invisibilidade feminina no protagonismo das notícias (VELOSO, 2013). Sintomas que, desde os anos de 1980, estão sendo denunciados quando analisamos a relação das mulheres com os meios de comunicação e temos, como referência, as constatações do documento da UNESCO, intitulado “Un solo mundo, voces múltiples: comunicación e información en nuestro tempo”: Evidentemente, os meios de comunicação social não são a causa fundamental da condição de subordinação da mulher. E não dispõem por si só de meios para reparar isso. As causas têm profundas raízes nas estruturas sociais, políticas e econômicas, assim como nas atitudes culturalmente determinadas, e só se poderá encontrar a solução mediante a introdução de transformações a longo prazo. No entanto, os meios de comunicação social têm, em certa medida, o poder de estimular ou retardar essas mudanças. (UNESCO, 1988, p.330-331, tradução nossa). Dessa maneira, as engrenagens que movimentam as indústrias da comunicação e a reflexão sobre a relevância da atuação feminina nesse campo ressaltam a importância da realização de estudos que problematizem a relação das mulheres com esses veículos em meio aos contextos econômico, simbólico e cultural. Devemos analisar o papel delas no âmbito da totalidade social, na qual os grupos de mídia estão produzindo discursos sociais. (MATTELART, 1982). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 269 Não dá para perder de vista que o machismo segue predominando em um país onde apenas cerca de 13% das cadeiras do Congresso Nacional são ocupadas pela representação feminina, apesar de o Brasil contar com legislação própria para garantir maior presença de mulheres na Câmara Federal e no Senado. E é justamente para compreender como tais fenômenos são reproduzidos que Betânia Ávila (2001) chama atenção para a importância de analisar o sistema patriarcal em meio ao momento histórico em que ele se apresenta: “Não levar em conta a questão do patriarcado coloca, por outro lado, um limite na concepção e nas estratégias de luta por igualdade” (ÁVILA, 2001, p.32-33). Apesar de ter dado largos passos rumo à “politização da esfera privada”, a conquista da esfera pública ainda é um desafio para as mulheres. Talvez porque “a esfera pública, tanto na dimensão do Estado como em outros planos, onde também se processam os conflitos políticos, ainda se constitui como um espaço social onde as desigualdades de gênero, de classe, de orientação sexual e de raça estão presentes” (ÁVILA, 2001, p. 17). Não tem sido fácil, para elas, o convívio social em meio à dicotomia entre o público e o privado, principalmente porque sua manutenção no ambiente doméstico fundamenta o poder patriarcal e nem todas as suas aspirações sociais aparecem na arena pública. Vincent Mosco (1996) revela que, quando teorizamos acerca da posição das mulheres nas indústrias culturais, devemos pesquisar, dentre outros aspectos, as microestruturas: se os conteúdos as apresentam como sujeitos promotores dos seus direitos humanos. Seguindo essa linha, Ellen Riordan (2004) orienta que é preciso examinar o lugar ocupado pelas mulheres, não só como produtoras de conteúdo, mas como personagens de processos sociais alimentados por relações – inclusive subjetivas – entre o capitalismo e o patriarcado. Dilma Rousseff e o sexismo na Folha de S. Paulo e na Veja Para analisar os textos das capas, notas, matérias e reportagens no período pré e pós-eleitoral do segundo turno (sete dias antes e sete dias depois, no caso da Folha, e um mês antes e um mês depois, no caso da Veja), realizado em 31 de outubro de 2010, títulos e subtítulos foram considerados, uma vez que os sentidos muitas vezes são apreendidos pela opinião pública nessas “chamadas” de textos. A pesquisa utilizou o sistema de “busca” nos acervos dos sites das duas publicações, como método de captura dos arquivos, com as palavras-chave “Dilma”, “Dilma Rousseff ”, “Serra” e “José Serra” (LEITE, 2016). Seguindo na priorização dos temas relativos a gênero, a análise selecio270 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) nou algumas Sequências Discursivas (SD) com sentidos recorrentes no corpus. a) Sequências Discursivas (SD) analisadas na Folha de S. Paulo Aqui, serão estudados dois títulos e seus subtítulos com enfoque nos dois pilares que pretendiam fragilizar a campanha de Dilma Rousseff: a questão de gênero e o aborto, que são reflexões imbricadas uma na outra. SD1 – “Voto das mulheres ainda é calcanhar de aquiles de Dilma” (Título - 24/10/2010). SD2 – “Demógrafo do IBGE calcula que petista teria vencido no 1º turno se não fosse o gap de gênero em seu eleitorado” (Subtítulo 24/10/2010). SD3 – “Para arcebispo, o aborto é assunto de eleição” (Título – 27/10/2010). SD4 – “Dom Raymundo, de Aparecida, afirma que tema é relevante para o ‘voto consciente’” (Subtítulo – 27/10/2010). As SD1 e SD2 discursivizam a candidata como não agregadora do voto feminino, apresentando um “gap” de gênero na campanha, ou seja, uma lacuna. Ao mesmo tempo em que dá esse foco, o jornal não exalta, nas suas matérias e reportagens, o fato de Dilma ser mulher. Enquanto tenta apagar a “novidade” de uma mulher ter chances de chegar ao poder central no país, o veículo, subliminarmente, reforça que seria natural que as mulheres elegessem por opção de gênero. Mas tal discursão é apagada. Já as SD3 e SD4 trazem a “autoridade” da Igreja Católica para tratar o tema do aborto. Dessa vez, foi Dom Raymundo Damasceno quem assumiu o assunto na Folha, mas vários representantes da Igreja Católica se revezaram nas páginas dos jornais e revistas, ocasionando, logicamente, interferências nas eleições, sobretudo com o peso da palavra “aborto” sobre Dilma Rousseff. O religioso deixa claro que o tema é relevante para o “voto consciente”. Outra sequência discursiva parece tentar desconstruir essa visão sobre a questão do aborto na campanha: é a que traz título e subtítulo que sustentam uma entrevista de Frei Betto ao jornal. No entanto, o subtítulo deslegitima o discurso do frade, ao dizer que ele é “eleitor de Dilma”. Assim, abre uma concessão em oferecer uma outra abordagem ao tema, ao passo que deslegitima por representar a opinião de um apoiador da candidatura do PT: SD5 – “Igreja introduziu vírus oportunista na campanha” (Título/Entrevista - 24/10/2010). SD6 – “Eleitor de Dilma, frade afirma que maneira como aborto é tratado na eleição planta sementes de fundamentalismo” (Subtítulo – 24/10/2010). Na opacidade do sentido, essa vinculação de Dilma – logo uma mulher! – à descriminalização do aborto presentifica a religiosidade incutida na memória Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 271 discursiva brasileira. Assim, a Folha, integrante de uma elite econômica, ganha o reforço de outro aparelho hegemônico: a Igreja – ou a religião. Entra em cena, com muita força na campanha, o discurso religioso. A instituição Igreja, sobretudo a Católica, assume na mídia o seu papel de garantir a hegemonia de classe, opondo-se ao discurso contra-hegemônico (naquele contexto eleitoral) de Dilma Rousseff. Desse modo, a religião – assim como a mídia – está circunscrita no discurso elitista, patriarcal e machista. Sem contar que os representantes religiosos são sempre homens que determinam o que a mulher deve ou não dizer ou fazer. Sequências Discursivas (SD) analisadas na Veja As sequências selecionadas da Veja apontam para duas variações do discurso sexista: a descriminalização do aborto como tema da esfera religiosa e não de saúde pública, assim como ocorreu na Folha, e o discurso derrisório sobre estética e o comportamento da candidata do PT. A primeira sequência analisada refere-se à capa da Veja, que trouxe o tema do aborto, no dia 13/10/2010. Nela, há a imagem da candidata Dilma em dois lados opostos (ver figura mais abaixo), como se fosse em frente e verso, em contradição: uma que defende a descriminalização do aborto; outra que é contra. A capa fala por si. SD1 – “‘Acho que tem de haver a descriminalização do aborto. Acho um absurdo que não haja’. Dilma Rousseff, em 4 de outubro de 2007”. (Capa/parte vermelha – 13/10/2010). SD2 – “‘Eu, pessoalmente, sou contra. Não acredito que haja uma mulher que não considere o aborto uma violência.’ Dilma Rousseff, em 29 de setembro de 2010”. (Capa/parte branca – 13/10/2010). Figura 1 – Capa da revista Veja Fonte: Veja, 13/10/2010. 272 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A reportagem interna consta de nove páginas, que discorrem sobre os “Ditos e não ditos de Dilma” (título), induzindo o sentido de que ela é uma pessoa sem convicções. Mas há uma página que traz religiosos de credos diferentes, com opiniões sobre o aborto, e, dois deles, declaradamente, desencorajando o voto na candidata. SD3 – “‘O estado tem obrigação de garantir a segurança das crianças ainda no ventre materno. É inadmissível tratar assassinato como medida de saúde pública’. Wilton Acosta, presidente do Fórum Evangélico Nacional de Ação Social e Política” (Depoimento - 13/10/2010). SD4 – “‘O aborto é o mais horrendo dos homicídios. A dona Dilma tem documentos, programas dizendo que é um absurdo o Brasil não aprovar o aborto. O recuo é mero oportunismo’. Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos (SP)” (Depoimento - 13/10/2010). SD5 – “‘A prática do aborto é um crime aos olhos de Deus. Um espírita tem esse princípio, que é levado em conta na hora de escolher um candidato. Quem defende o aborto será prejudicado’. Geraldo Campetti, diretor executivo da Federação Espírita Brasileira” (Depoimento - 13/10/2010). O discurso da Veja sobre o tema de Dilma e o aborto ganha contornos mais agressivos do que o da Folha. Para não atribuir apenas à Igreja Católica a interferência da religião na campanha política, a revista destaca depoimentos de representantes evangélicos, espíritas e católicos. Nas duas últimas páginas da reportagem, há uma matéria grande com o título “Voltamos à pergunta: quando começa a vida?”, e subtítulo “A definição sobre a gênese do ser humano varia conforme convicções morais, religiosas e científicas”. Com isso, a revista desliza o tema da política para a ciência, embutindo o cunho religioso, com o intuito de reforçar, também pelas bases científicas, a criminalização da candidata Dilma Rousseff. O discurso sexista de Veja é reforçado por uma matéria na seção “Moda”, em 6/10/2010. Sob o tema “Vestida para mandar”, a matéria traz como subtítulo: SD6 – “Em busca de um estilo para chamar de seu, Dilma Rousseff não tem mandado bem. Contratou um estilista famoso, mas vacila entre o brega e o careta. Eleita ou não neste domingo, o que não dá é para deixar esse PAC pela metade”. (Subtítulo - 6/10/2010). Há um trecho da matéria que, em cima de fotos de Dilma, sempre em eventos solenes, “consultoras de moda” e “jornalistas de moda” elaboram uma “crítica” sobre o seu estilo, vestimentas e adereços, em tom de chacota e depreciação: Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 273 SD7 – “‘Baião de dois. Pronta para tomar um chope! Blusa de uma cor e calça de outra encurtam a silhueta. Os brincos brilhantes jamais devem sair para passear com o colar de pastilhas’. Regina Guerreiro”. (Depoimento - 6/10/2010). Outra sequência traz a imagem de Dilma em uma tribuna: SD8 – “‘Leve e (quase) solta. O casaco sonha ser Chanel, mas faltam a imponência do corte, o DNA da textura, e os debruns são frágeis demais’. Regina Guerreiro”. (Depoimento - 6/10/2010). Sobre um relógio da candidata, na mesma imagem: SD9 – “‘Elegante e bem executado. Trouxe leveza à imagem da candidata. Foi boa a opção de relógio sem cara de brechó’. Erika Palomino”. (Depoimento - 6/10/2010). No texto, entre comparações com Michelle Obama e Carla Bruni, ex-primeiras-damas dos Estados Unidos e da França, respectivamente, que “até os acessórios refletem o estilo de governo dos maridos”, a Veja diz, no último parágrafo: SD10 – “Todo o esforço de Dilma Rousseff em direção a uma fórmula que favoreça tanto suas ambições de símbolo de autoridade quanto sua figura matronal – até agora aprisionada em tailleurs nem sempre bem cortados – é elogiável. Mas ela tem de se entregar mais aos braços do povo – não aquele de macacão das fábricas, fique claro, mas o do mundinho fashion. Entre erros e acertos, concessões e teimosias, Dilma pode vir a encontrar, finalmente, um estilo agradável à visão do mundo, ainda que não condizente com a visão de mundo dos radicais nem tão chiques do Planalto. O que não dá, meu amor, é para deixar esse PAC pela metade”. (Matéria - 6/10/2010). Esse discurso da seção “Moda” traz estratégias de derrisão que podem encobrir o sexismo e a misoginia. Dilma, que oscila entre o “brega” e o “careta”, é referenciada como mulher de meia-idade corpulenta (“matrona”), sendo ridicularizada com um “O casaco que sonha ser Chanel”, e um relógio, afinal, “sem cara de brechó”. Lembra, ainda, que Michele Obama e Carla Bruni têm “marido”, e Dilma, não. É um tipo de enfoque de matéria que nunca recairia sobre um político homem. O preconceito de classe, além de gênero, também sobressai. Por ser do PT, partido nascido do sindicalismo, a candidata foi associada a alguém que não tem gosto refinado, ou seja, não é “fashion”. Também é camuflado um discurso que simboliza uma certa falta de identidade na candidata. Emerge, sob o discurso da Veja, a mulher que precisa procurar “uma fórmula que favoreça tanto suas ambições de símbolo de autoridade quanto sua figura matronal”. Para a revista, Dilma ainda carece de autoridade. Afinal, ela 274 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) é, como disse sempre a mídia, “criação” de Lula, de um homem. Ela é uma mulher, ou seja, não tem “autoridade”. Ao final, a matéria ironiza “O que não dá, meu amor, é para deixar esse PAC pela metade”. Dilma é considerada a “mãe” do PAC – Programa de Aceleração do Crescimento, criado pelo governo Lula. Considerações finais As representações criadas pelos meios de comunicação, na tentativa de traduzir as expressões de gênero, muitas vezes, reforçam imagens que evocam a submissão feminina, ao ampliar suas lentes e apresentar elementos particulares da identidade de um determinado grupo de mulheres como características universais, que podem ser atribuídas a todas as representantes do segmento. No caso em questão, o “lugar de mulher” da candidata Dilma Rousseff norteou o discurso midiático. Simbolicamente, Dilma Rousseff, a mulher com chances de chegar ao poder maior de uma nação, é exposta a um lugar de fragilidade, criminalização e clichês femininos. Ademais, adotando o discurso religioso agressivo, Folha de S. Paulo e Veja reverberaram e ampliaram, inclusive, a tese da penalização da mulher que aborta, na tentativa explícita de demonizar o suposto apoio da candidata à descriminalização da prática. Nessa trilha, Dilma foi criminalizada e hostilizada. Não por acaso, o tema do aborto ganhou destaque nas coberturas, sobretudo quando os veículos lançaram mão do discurso religioso para interpelar a candidata, sem abrir o mesmo espaço para o debate acerca da saúde das mulheres que decidem interromper uma gestação, nem discutir as várias nuances do problema. O contexto social que envolve a questão da interrupção da gravidez sofreu um apagamento. E, dentre as fontes, homens de diversas religiões foram convocados para falar sobre Dilma e o tema do aborto. Outro ponto fundamental, quando olhamos para o objeto, é a tentativa de desqualificação da postulante, referenciada como se estivesse na contramão do “modelo” de mulher que os próprios veículos pretendem alçar como ideal para a disputa de um cargo político. A forma como ela foi retratada por diversos meios de comunicação – não só nas reportagens da Veja e da Folha de S. Paulo – foi fruto de um jornalismo alicerçado em meio à expansão do modo de produção capitalista em uma sociedade historicamente patriarcal. Essa desqualificação de seu lugar de candidata levou a própria Dilma Rousseff (PT) a reconhecer que estava sofrendo discriminação, tanto no campo político, quanto no midiático, também pelo fato de ser mulher. E provocou Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 275 reações no eleitorado. Se, por um lado, os ataques levaram a candidata a ter que explicar, para segmentos religiosos, sua posição, por outro, conquistaram a adesão de mulheres que não se enquadravam no que os veículos apresentavam como modelo. Uma parte dos(as) leitores(as) talvez tenha percebido que a ofensiva à imagem de Dilma também acabava por atingir outras mulheres que não aceitavam que as relações assimétricas de poder e a misoginia estivessem sendo reproduzidas pelos grupos de mídia. Referências ÁVILA, M. B et al. Feminismo, cidadania e transformação social. 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Como recorte empírico, foram selecionadas as edições dos meses de janeiro e dezembro de 2015. Conclui-se que o tratamento realizado pelas revistas semanais estudadas, sobretudo em seus processos de seleção de fontes, hierarquização de informações e utilização de figuras retóricas, aproxima-se de um modelo de enquadramento noticioso hegemônico nos termos trabalhados por Gitlin (2003), Porto (2002), Sigal (1974) e Soley (1992). Palavras-chave: Jornalismo; Enquadramento Noticioso; Estratégias retóricas; Dilma Rousseff. Introdução Em outubro de 2014, no pleito presidencial mais disputado desde a redemocratização do Brasil segundo o TSE (Tribunal Superior Eleitoral), 158. Versões preliminares deste capítulo foram previamente publicadas no GP Teorias do Jornalismo do XVI Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, e na Revista Compolítica, v. 7, n. 1, 2017. 159. Professor do Curso de Jornalismo e do Mestrado em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). Doutor em Comunicação Social pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), com estágio de doutorado-sanduíche pela Syracuse University (New York, Estados Unidos). 160. Mestranda em Comunicação pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS); Jornalista graduada em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pela mesma instituição. 278 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) a presidente Dilma Rousseff (PT) foi considerada reeleita no segundo turno com uma vantagem de apenas três pontos percentuais em relação a seu então oponente, o senador Aécio Neves (PSDB), diferença materializada em cerca de 3,4 milhões de votos. O fato político gerado, dentre outros aspectos, pela pequena diferença de votos e pela reação imediata da coligação derrotada (que manifestou o desejo de formalizar um pedido de recontagem de votos) culminou num cenário político inédito (considerando o período pós-redemocratização) de acirradas disputas programáticas e simbólicas pela agenda do país. Nessa conjectura, os veículos de comunicação tradicionais, ao lado da força mobilizadora crescente resultante das redes sociais na Internet, protagonizaram movimentos de “interpretação, apresentação, seleção, ênfase e exclusão de informações” (GITLIN, 2003, p.7) que resultaram em enquadramentos noticiosos peculiares para a história política recente do país. Os doze meses de 2015, primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff, compreendem, assim, um período de turbulência que sucede as apertadas eleições presidenciais de 2014 e antecede a abertura do processo de impeachment levado a cabo pelo legislativo brasileiro no primeiro semestre de 2016. Este capítulo volta-se a um quadro de referências teórico-metodológicas próprio da framing analisys (KUYPERS, 2009; GITLIN, 2003) para estudar o modo como duas das principais revistas semanais brasileiras – Veja, do Grupo Abril, e IstoÉ, da Editora Três – valeram-se de estratégias retóricas como a simplificação, a dramatização, o silenciamento de atores políticos e a utilização de fontes não identificadas para estabelecerem seus enquadramentos noticiosos na cobertura política do período. Redigido a quatro mãos, o artigo apresenta uma problematização de natureza teórico-metodológica acerca das estratégias retóricas que culminaram em um modelo de enquadramento noticioso bastante similar nas duas publicações analisadas. Por opção metodológica, adotou-se como recorte empírico os exemplares do primeiro e do último mês de 2015 de cada revista, de maneira a analisar os enquadramentos realizados pelos periódicos no início e no final do primeiro ano do segundo mandato de Dilma Rousseff. Do ponto de vista do alcance, Veja e IstoÉ remetem a uma tiragem média somada de 1 milhão e 400 mil exemplares segundo dados da ANER (Associação Nacional de Editores de Revistas). Levou-se em consideração para a escolha das revistas em questão, além da tiragem, o fato de serem as mais antigas dentre os três periódicos com maior circulação média no país (Veja, Época Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 279 e IstoÉ) e o fato da segunda colocada nesta lista, a revista Época, com diferença de aproximadamente 70 mil exemplares para a IstoÉ, não contar com banco de dados digital, o que restringe as possibilidades de pesquisa exploratória. Foi considerada também a ampla relevância que o assunto teve em ambos os veículos, que dedicaram mais de 50% de suas capas ao longo do ano para tratar de assuntos relacionados diretamente ou indiretamente à presidente. Ao todo, somadas as edições dos dois periódicos escolhidos, foram analisadas 16 exemplares das revistas. Ainda no terreno do recorte empírico, optou-se por analisar uma matéria de cada edição, adotando-se como critérios de seleção os parâmetros de proeminência – da temática “Dilma Rousseff ” no conjunto de matérias sobre o tema – e de relevância – do assunto no contexto geral de matérias da edição. São marcadores significativos o fato de a matéria figurar ou não na capa da revista, a quantidade de páginas que ela ocupa na edição e a quantidade de vezes que Dilma Rousseff é mencionada ou retratada na matéria. Finalmente, como forma de viabilizar o estudo de enquadramento noticioso, foram considerados alguns pressupostos e concepções já sedimentados no campo das Ciências Humanas e Sociais, particularmente nas pesquisas em Comunicação, tal como a superação dos paradigmas jornalísticos da objetividade e da imparcialidade (KUYPERS, 2009; GITLIN, 2003; PORTO, 2002; GANS, 2004; TRAQUINA, 2008; SCHUDSON, 2010), conceitos que são ainda disseminados pelo discurso de autolegitimação da prática jornalística (GOMES, 2009), conforme verificado na manifestação das políticas editoriais dos dois periódicos estudados. De outro lado, a pesquisa buscou compreender os mecanismos – técnicos e simbólicos – que podem ocultar a difusão de tais concepções. Fontes e canais de informação como recursos retóricos Adotando-se como base teórico-metodológica a perspectiva da framing analysis para verificar o modo como as revistas Veja e IstoÉ estabelecem suas estratégias retóricas na construção e na formatação do conteúdo noticioso, volta-se o olhar para os mecanismos de seleção, silenciamento e ênfase de fontes e canais de informação. A análise das fontes utilizadas nas matérias examinadas baseia-se no estudo desenvolvido por Leon Sigal (1974) – que culminou no livro Reporters and Officials – e no conceito de canais de informação – “caminhos pelos quais informações atingem o repórter” (SIGAL, 1974, p. 120, tradução nossa) – traçado pelo autor, que classifica esses canais em três categorias: de rotina, informais e corporativos. 280 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Na primeira categoria estão inclusos procedimentos oficiais, comunicados e coletivas de imprensa, palestras, cerimônias e outros tipos e eventos não-espontâneos. Os “canais informais” incluem, por exemplo, vazamentos, processos não-governamentais, reuniões de associações ou convenções sindicais e também matérias publicadas em outros veículos de imprensa. Finalmente, os “canais corporativos” são as entrevistas e pesquisas realizadas por iniciativa dos próprios repórteres, eventos nos quais os jornalistas testemunham em primeira mão e as conclusões ou análises tomadas nesse processo (SIGAL, 1974). A última categoria, denominada aqui como canal “não identificado” é uma tradução livre da expressão “not as certainable” utilizada por Sigal (1974) e se refere a situações em que não é possível determinar o canal utilizado para a obtenção da informação analisada. Os canais de informação localizados na análise empírica das revistas rementem à seguinte disposição: Tabela 1 – Canais de informação das matérias analisadas da revista Veja. Canais de informação Rotina Informal Corporativo Não identificado Total Ocorrências 28 3 19 22 72 Percentual 38,8% 4,1% 26,3% 30,5% 100% Fonte: Elaboração própria, baseada no modelo elaborado por Sigal (1974). Tabela 2 – Canais de informação das matérias analisadas da revista IstoÉ. Canais de informação Rotina Informal Corporativo Não identificado Total Ocorrências 14 10 19 19 62 Percentual 22,5% 16,1% 30,6% 30,6% 100% Fonte: Elaboração própria, baseada no modelo elaborado por Sigal (1974). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 281 Outra categoria de análise das fontes noticiosas utilizadas por Veja e IstoÉ baseia-se nos conceitos traçados por Lawrence Soley (1992), que divide as fontes em duas classificações: os “news makers”, que participam ativamente dos eventos noticiosos; e os “news shapers”, que são procurados pela mídia na busca por “informações privilegiadas, panos de fundo ou previsões sobre o resultado das histórias que ainda estão em desdobramento” (SOLEY, 1992, p. 2, tradução nossa). Classificam-se como “news makers” as chamadas “fontes primárias” e como “news shapers” as “fontes secundárias”, uma vez que se entende que o conceito elaborado por Lage (2005) para as fontes primárias e secundárias se alinha ao utilizado por Soley (1992). Apesar de considerados concorrentes no segmento das revistas semanais, os dois veículos utilizaram critérios muitos semelhantes na escolha das fontes e dos canais de informação. Nas edições analisadas, os canais mais utilizados foram o de rotina e o corporativo, mas destacam-se as ocorrências nas quais o canal de informação não pôde ser identificado, representando 30% do total das fontes em ambas as publicações. As fontes oficiais (atores políticos pertencentes à esfera nacional ou regional, autoridades e órgãos ligados ao governo, dentre outros) foram as mais acessadas por meio do “canal de rotina”. No caso da Veja, a distribuição entre fontes primárias e secundárias prioriza o primeiro grupo, com 63%, contra 37% dos chamados “news shapers” (SOLEY, 1992). Já nas edições da revista IstoÉ a distribuição foi bem equilibrada, com aproximadamente 54% de fontes primárias e 46% de secundárias. O “canal corporativo” – entrevistas e pesquisas realizadas por iniciativa dos próprios repórteres – foi utilizado por ambos os veículos em mais de 85% das vezes para dar voz a fontes secundárias, “especialistas” consultados para analisar, embasar e comentar informações da matéria. O “canal informal” foi utilizado para apresentar citações diretas e indiretas extraídas de redes sociais, vazamentos de informações ou dados oriundos de outros veículos midiáticos, sendo a última uma prática recorrente na revista IstoÉ. Outra prática que evidencia o enquadramento adotado nas matérias analisadas é a utilização de fontes cujo canal de procedência não é explicitado na matéria, bem como de fontes não identificadas, tais como “assessores próximos a Dilma”, “um dos conselheiros da presidente” (matéria “Eles disseram não para Dilma”, edição nº 2355, revista IstoÉ), “facções petistas”; “colaborador próximo ao parlamentar”; e “antigo auxiliar 282 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de Dilma” (matérias “Mandato novo, problemas velhos”, “A testemunha” e “Impeachment não é guerra”, edições nº 2407, 2454 e 2455, revista Veja). Analisando a divisão entre fontes primárias e secundárias, encontra-se uma diferença importante entre as duas categorias. No caso das fontes primárias que figuram nas matérias analisadas, em mais de 60% dos casos as citações são indiretas. Já no caso das fontes secundárias a situação se inverte, com mais de 60% de ocorrências com citações diretas. A desigualdade apresentada entre citações diretas e indiretas desequilibra consideravelmente o quadro na medida em que – numa perspectiva retórica – a representação direta da fala possui um peso simbólico de veracidade maior do que sua menção indireta, pois esta última redunda num risco maior de edições e distorções – voluntárias ou não – do(s) jornalista(s) que redige(m)/edita(m) a matéria. Quanto às fontes secundárias, no caso da revista IstoÉ, numa generalização que leva em conta diversas particularidades, pode-se dizer que todos os atores políticos mencionados se posicionavam de alguma forma no espectro de oposição ao governo de Dilma Rousseff. Nenhum ator político do partido da presidente, o PT, foi ouvido pela revista, e a menção indireta ao presidente do partido, Rui Falcão, na matéria “A pior travessia”, da edição nº 2401, refere-se apenas a uma nota oficial. Dentre as fontes secundárias sem cargos eletivos, vale destacar a presença do jurista Miguel Reale Jr., um dos signatários do pedido de impeachment de Dilma Rousseff, e de Kim Kataguiri, coordenador do MBL (Movimento Brasil Livre), uma das entidades responsáveis por organizar protestos em todo o país por meio das redes sociais na Internet, com reivindicações de impeachment e acusações diretas ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e ao Partido dos Trabalhadores. Já entre as fontes ouvidas pela revista Veja, apenas duas delas são relacionadas diretamente ao campo das disputas políticas eleitorais: notadamente o senador e presidente do PSDB, Aécio Neves, candidato derrotado por Dilma Rousseff no segundo turno das eleições para a Presidência da República de 2014; e Marina Silva, fundadora do partido Rede Sustentabilidade, que também foi candidata nas eleições de 2014. No entanto, mesmo fontes sem cargos políticos e apresentadas muitas vezes sob a alcunha de “analistas” – especialistas ou experts, na tradição norte-americana – não devem ser vistas como isentas e objetivas, como afirma Soley (1992). O economista Sergio Vale, por exemplo, mencionado pela revista Veja Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 283 apenas como “economista-chefe da consultoria MB Associados”, utilizado como fonte secundária em duas matérias – “As promessas e a realidade”, edição nº 2409, de 21 de janeiro de 2015; e “De volta ao passado”, edição nº 2456, de 16 de dezembro de 2015 – afirmou em entrevista concedida ao site InfoMoney, no dia 01 de março de 2015, que via de modo otimista 70% de chances de saída de Dilma. Já o cientista político Rubens Figueiredo publicou um artigo em parceria com Fernando Henrique Cardoso, presidente do Brasil por dois mandatos e filiado ao PSDB, partido que faz oposição a Dilma Rousseff. Esses dados respaldam a conclusão de Lawrence Soley (1992) de que, apesar de os “news shapers” serem muitas vezes apresentados como analistas isentos, “não há nenhuma razão para acreditar que eles são imparciais e objetivos” (SOLEY, 1992, p. 19, tradução nossa). Em seu estudo sobre as fontes jornalísticas no contexto do jornalismo dos Estados Unidos, Soley (1992) conclui que o grupo de especialistas consultados pelos jornalistas é muito pequeno, sendo constituído de aproximadamente 90 indivíduos em todo o território norte-americano. Esse pressuposto respalda em certa medida os resultados obtidos pela presente análise. Por meio de buscas em mecanismos de pesquisa na Internet, identificou-se que dos doze “especialistas” elencados tanto nas matérias da Veja como da IstoÉ, onze deles puderam ser encontrados com facilidade no mesmo período como fontes em matérias de pelo menos cinco outros veículos de mídia. Simplificação, amplificação e personificação como estratégias argumentativas Outra manifestação do cenário de representação resultante das escolhas editoriais adotadas por Veja e IstoÉ na cobertura do primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff relaciona-se com a utilização de estratégias argumentativas típicas da retórica, a exemplo do emprego de figuras de linguagem e de técnicas de argumentação que “cumprem a função de redefinir um determinado campo de informação, criando efeitos novos e que sejam capazes de atrair a atenção do receptor” (CITELLI, 2003, p.19 -20). No campo das Teorias do Jornalismo, autores como Traquina (2008) e Wolf (2003) optam por tratar tais estratégias argumentativas no interior do escopo conceitual dos chamados valores-notícia, denominando-os 284 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de “valores-notícia de construção” – abordagem que é desconstruída por outros autores, a exemplo de Silva (2005), que vincula os valores-notícia ao plano pragmático dos fenômenos ao passo em que as demais etapas da cadeia de construção e de hierarquização noticiosa se estabelecem no circuito mais amplo da noticiabilidade. Shoemaker & Cohen (2006), por seu turno, interpretam a concepção de noticiabilidade como um constructo de natureza eminentemente cognitiva, o que coloca o conceito de “valor” em uma perspectiva mais próxima do entendimento de Gans (2004) dos valores noticiosos como valores ideológicos compartilhados nas salas de redação. De um vértice metodológico, todavia, o fato é que as categorias denominadas por Traquina (2008) e Wolf (2003) como “valores-notícia de construção”, embora conceitualmente se estabeleçam menos como valores noticiosos ligados aos acontecimentos no plano dos fenômenos (SILVA, 2005) ou como valores ideológicos compartilhados pelo campo jornalístico (GANS, 2004) e mais como estratégias retóricas, são factíveis para a análise dos recursos de enquadramento adotados por Veja e Istoé. Nesse sentido, a “simplificação”, ou o fato de o acontecimento ser desprovido de ambiguidade e complexidade, por exemplo, que Traquina (2008, p. 91) exemplifica com o “uso de clichês, estereótipos e ideias feitas”, pode ser aqui relacionada com o estudo das fontes, que comprovou que ambas as revistas não lançam mão da prática de ouvir “o outro lado”, o que resulta justamente na simplificação – ou no esvaziamento – das perspectivas apresentadas pelo material noticioso. Outros “valores-notícia de construção” mencionados pelo autor português, como a “amplificação” – que versa que “quanto mais amplificado é o acontecimento”, mais possibilidades tem a notícia de ser notada, quer seja pela amplitude do ato ou por suas consequências – ou a “relevância” – que refere-se à habilidade do jornalista de construir sua narrativa de modo a conceder um valor simbólico ao acontecimento como se este apresentasse uma relevância única para todas as pessoas – estabelecem-se como estratégias retóricas identificadas em matérias como “Que país teremos?” (IstoÉ, edição nº 2402; figura 1), que deixa implícita que a saída de Dilma Rousseff seria a solução salvadora para todos os problemas políticos e econômicos instaurados no Brasil no momento apresentado; e “De volta ao passado”, que por meio de recursos gráficos e textuais vincula num sentido direto a política econômica da presidente da República ao retorno de problemas estruturais que já estavam superados ou sob controle no país. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 285 Figura 1 – Reprodução de matéria revista IstoÉ, 16 de dezembro de 2015 Fonte: Edição nº 2402, 16/12/2015, páginas 60 e 61, revista IstoÉ. A figura retórica da “personalização”, ou a valorização das pessoas envolvidas no acontecimento, manifesta-se na relação que ambas as revistas fazem de todos os problemas políticos e econômicos do país no período em que as matérias foram produzidas – de acordo com os veículos, resultado não só das decisões personalizadas da presidente, mas de todo o aparato político e econômico, como ministros, deputados, senadores, mercado financeiro, dentre outros – com a figura de Dilma Rousseff, cuja imagem aparece em 14 das 16 matérias analisadas, mesmo que o assunto não estivesse diretamente relacionado a ela. Essa prática vincula-se também ao recurso da “dramatização”, ou seja, do reforço do lado emocional para destacar determinados aspectos das notícias, prática sublinhada pelo uso de títulos como “O blecaute de Dilma” (IstoÉ, edição nº 2356 de 28/01/2015), em matéria cujo tema era a possibilidade de um racionamento energético no país. O recurso também aparece em “A origem do mal” (Veja, edição nº 2457; figura 2), sobre uma operação da Polícia Federal que cumpriu mandatos de busca e apreensão em propriedades de vários políticos, sem, no entanto, efetuar prisões ou apresentar conclusões concretas. Por fim, a “consonância” refere-se mais uma vez à prática de inserir acontecimentos em uma “narrativa” mais ampla e já disseminada, relacionada aqui com a crise política e econômica instaurada no Brasil em 2015, pano de fundo para a maior parte das matérias analisadas. 286 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Figura 2 – Reprodução da matéria “A origem do mal” Fonte: Edição nº 2457, 23/12/2015, páginas 60 e 61, revista Veja. Das estratégias retóricas ao enquadramento noticioso As estratégias retóricas identificadas na cobertura do primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff pelas revistas Veja e IstoÉ podem ser interpretadas, no contexto desta pesquisa, como manifestações de um modelo peculiar de enquadramento noticioso. Numa perspectiva conceitual, um dos primeiros autores a valer-se da concepção de enquadramento como recurso teórico-metodológico no campo das Ciências Sociais é o sociólogo Erving Goffman, no livro Frame Analysis (1986), traduzido no Brasil como Os quadros da experiência social: uma perspectiva de análise. De acordo com Goffman (2012, p. 31): Qualquer acontecimento pode ser descrito em termos de um enfoque que inclui um espectro amplo ou um espectro estreito e (...) em termos de um enfoque em primeiro plano ou distante. E ninguém tem uma teoria sobre qual abertura e qual o nível que serão efetivamente empregados. No plano específico da prática jornalística, o sociólogo norte-americano Todd Gitlin, anos mais tarde, cunhou algumas das definições até hoje mais referenciadas sobre enquadramento noticioso no livro The Whole World Is Watching, originalmente publicado em 1980. Segundo Gitlin (2003, p. 7, tradução nossa, itálicos no original): Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 287 Enquadramentos de mídia, largamente silenciados e desconhecidos, organizam o mundo para os jornalistas que o relatam e, em algum grau importante, para nós que dependemos de seus relatos. Enquadramentos de mídia são padrões persistentes de cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, pelos quais manipuladores de símbolos rotineiramente organizam discursos, sejam verbais ou visuais. Longe de serem vistos como práticas inocentes, os enquadramentos são também considerados instrumentos de poder responsáveis pela construção e manutenção da hegemonia dos modelos econômicos e políticos dominantes (GITLIN, 2003; PORTO, 2002). Problematiza Mauro Porto (2002, p. 2): Tomando como base os argumentos de Hackett, Tankard (2001, p. 9697), (...) o conceito de enquadramento oferece um instrumento para examinar empiricamente o papel da mídia na construção da hegemonia, no sentido gramsciano de uma direção intelectual e moral na sociedade civil. Dessa forma, a partir de uma abordagem política para explicar o que é ou não notícia, Todd Gitlin explicita a noção gramsciana de hegemonia para cunhar o termo “enquadramento hegemônico”, definido por ele como “um processo histórico no qual uma imagem de mundo é sistematicamente preterida sobre outras, usualmente através de rotinas práticas” (GITLIN, 2003, p. 257, tradução nossa). Para o sociólogo, os enquadramentos hegemônicos seriam utilizados pelos mantenedores dos meios de comunicação – deliberadamente ou não – para assegurar a manutenção do sistema político e econômico dominante do qual eles mesmos são parte. O trabalho da hegemonia, apesar de tudo, consiste em impor suposições padronizadas sobre eventos e condições que devem ser “cobertas” pelos preceitos dos padrões de notícias predominantes. (GITLIN, 2003, p. 264, tradução nossa). Para Soares (2009), “os enquadramentos podem dominar de tal forma o discurso, a ponto de serem tidos como senso comum ou descrições transparentes dos fatos, em vez de interpretações”. Valendo-se da discussão apresentada por Carragee & Roefs (2004 apud SOARES, 2009), o autor afirma que: 288 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Os enquadramentos das elites são geralmente favorecidos, devido a seus recursos econômicos, à centralização da coleta de notícias em instituições e à tendência dos repórteres a atribuir maior credibilidade a fontes oficiais do que aos seus desafiadores. (SOARES, 2009, p. 61) Nessa perspectiva, a preferência pelas fontes e relatos oficiais identificada por Sigal (1974) e por Gans (2004) fundamenta-se na manutenção de um enquadramento hegemônico que daria preferência ao status quo, marginalizando manifestações contrárias a ele. Este pensamento vai ao encontro do estudo desenvolvido por Soley (1992), que aponta que fontes mais enraizadas no status quo atraem mais a atenção da mídia,ao passo que: As mulheres representam mais de metade da população dos EUA, negros compõem mais de 12%, enquanto os sindicatos representam cerca de 20% da força de trabalho, no entanto, membros desses grupos raramente estão entre as fontes escolhidas pelos jornalistas. (SOLEY, 1992, p. 17, tradução nossa) Herbert Gans (2004), também no cenário norte-americano, resume a questão ao afirmar que “as notícias dão suporte à ordem social dos setores da sociedade públicos, empresariais e profissionais, de classe média-alta, meia-idade, masculinos e brancos” (GANS, 2004, p. 61, tradução nossa). Negros e mulheres obtém sucesso na medida em que “se movem para a ordem social existente”, e não se apresentam como “separatistas que querem alterá-la”. Em sua defesa da democracia altruísta e oficial, as notícias defendem uma mistura de valores liberais e conservadores. (...) Por outro lado, no seu respeito pela tradição e sua nostalgia de provincianismo e individualismo, as notícias são descaradamente conservadoras, como também é sua defesa da ordem social e sua fé na liderança. Se as notícias tivessem que ser rotuladas ideologicamente, elas seriam liberais de direita ou conservadoras de esquerda. (GANS, 2004, p. 68, tradução nossa) Gans (2004), entretanto, evita a visão simplificadora de que as notícias seriam simplesmente usadas como “apoiadoras complacentes de elites ou estabelecimentos de classe dominante”, mas afirma que elas “encaram nação e sociedade através de seu próprio conjunto de valores e com suas próprias concepções de boa ordem social” (GANS, 2004, p.62, tradução Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 289 nossa), que não são cristalizadas, mas podem mudar com o passar do tempo e com as transformações da sociedade. Recai sobre o pesquisador norte-americano Jim Kuypers (2009), na obra Rhetorical Criticism: Perspectives in Action, porém, a ênfase na pertinência de se aliar a análise de enquadramento (framing analysis) à perspectiva da análise retórica. Na ótica do autor norte-americano, o enquadramento midiático constitui um processo no qual os comunicadores, de forma consciente ou não, atuam de modo a construir pontos de vista que instigam que os fatos do mundo social sejam interpretados de maneiras particulares. O enquadramento midiático, nesse sentido, operacionaliza-se em quatro maneiras com base em estratégias retóricas: define problemas, diagnostica causas, promove julgamentos morais e sugere soluções. Além disso, os enquadramentos são geralmente localizados no interior de narrativas mais amplas sobre um assunto ou acontecimento, fazendo delas sua ideia central (KUYPERS, 2009). O enquadramento hegemônico nas estratégias retóricas de Veja e IstoÉ O cruzamento dos dados empíricos extraídos das edições de janeiro e de dezembro de 2015 das revistas Veja e IstoÉ com as reflexões de natureza teórico-conceitual oriundas, sobretudo, da perspectiva teórico-metodológica da framing analysis em interface com análise retórica (KUYPERS, 2009), permite abstrair considerações e constatações a respeito das estratégias de construção de um enquadramento peculiar a respeito do primeiro ano do segundo mandato da presidente Dilma Rousseff. Nos termos de Citelli (2003, p.8), cabe à retórica “mostrar o modo de constituir as palavras visando convencer o receptor acerca de dada verdade” – horizonte que dialoga com o vértice de Gitlin (2003, p. 49-51, tradução nossa), segundo o qual “os meios de comunicação são holofotes móveis e não espelhos passivos da sociedade” (GITLIN, 2003, p. 49-51, tradução nossa), direcionando seus “feixes de luz” para dar destaque a alguns acontecimentos em detrimento de outros. Ao retomar o conceito de enquadramento noticioso como “padrões persistentes de cognição, interpretação e apresentação, de seleção, ênfase e exclusão, pelos quais manipuladores de símbolos rotineiramente organizam discursos” (GITLIN, 2003, p. 7, tradução nossa), reconhece-se que os enquadramentos são inerentes ao processo de produção das notícias. 290 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Desse modo, sem risco de recair-se numa espécie de “realismo ingênuo” (GOMES, 2009), é ponto pacífico a compreensão de que uma revista semanal – a exemplo de Veja e IstoÉ – possui um número determinado de páginas impressas, desenvolvendo inevitavelmente processos de seleção para definir o que será ou não publicado e de que maneira o conteúdo será apresentado. Esse processo inclui diversas variáveis e começa com a definição adotada pelos próprios meios de comunicação sobre o que é ou não notícia – ou seja, os critérios de noticiosos escolhidos. Outro fator determinante é a escolha das fontes ouvidas pelos jornalistas, visto que “para o repórter, em suma, a maioria das notícias constitui não o que aconteceu, mas o que alguém diz que aconteceu, tornando a escolha de fontes crucial” (SIGAL, 1974, p. 69, tradução nossa). Embora auxiliem no processo de padronização do conteúdo dos veículos (SIGAL, 2074), tais elementos, entretanto, dependem também de outras variáveis, como os recursos disponíveis para as coberturas, o formato do produto final e as posições ideológicas adotadas pelas corporações de mídia. A padronização, os estereótipos e a rotina de julgamentos praticada nas redações – isto é, a sistematização – fazem parte, segundo Lippmann (2010), de um modelo de jornalismo industrial que tem como objetivos principais a economia de tempo e esforço (LIPPMANN, 2010, p. 300), sendo já tão cristalizados que muitas vezes nem mesmo os próprios jornalistas os identificam de maneira consciente. Quanto à escolha das fontes, na perspectiva específica da análise aqui desenvolvida, transparecem-se algumas das principais estratégias retóricas adotadas pelas revistas semanais: os resultados encontrados no estudo, além de todos os dados pormenorizados nos itens anteriores, respaldam as conclusões oriundas dos estudos de Lawrence Soley (1992) sobre a constituição de um padrão hegemônico das fontes no jornalismo norte-americano. De todas as fontes presentes nas dezesseis matérias selecionadas, apenas 10% eram mulheres, 6% eram negros e menos de 2% representavam grupos sindicais ou associações de trabalhadores. Merece destaque, todavia, conforme demonstra a análise dos canais de informação, o fato peculiar de a própria presidente Dilma Rousseff, principal personagem da análise desenvolvida, não ter sido ouvida diretamente pelos jornalistas em nenhuma ocorrência, sendo suas falas resumidas a trechos de comunicados oficiais ou até mesmo sem ter a procedência identificada. O uso de fontes não identificadas ou cujos canais de comunicação não ficam explícitos na matéria, também foram práticas recorrentes em ambas as revistas no período estudado. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 291 Para além da utilização de recursos como o silenciamento de atores políticos – o mais explícito, o da própria personagem principal da cobertura, a presidente Dilma Rousseff – e da utilização de fontes não identificadas – “assessores próximos a Dilma”, “colaborador próximo ao parlamentar”, entre outras manifestações –, porém, a análise evidencia também o uso recorrente de figuras retóricas de construção textual como a simplificação, a personificação, a amplificação e a dramatização. Levando-se em conta todas as características apresentadas, conclui-se que os dois veículos, apesar de considerados concorrentes no segmento das revistas semanais, constroem um enquadramento bem semelhante na elaboração de seus produtos. Como os enquadramentos são também interpretados como instrumentos de poder (GITLIN, 2003; PORTO, 2002; KUYPERS, 2009) e adotando-se como dado representativo o público numericamente relevante que ambas as revistas atingem, identifica-se uma categoria de “enquadramento hegemônico” (GITLIN, 2003) sendoutilizada pelos dois veículos comunicacionais. Isso se confirma na medida em que as publicações expõem seus pontos de vista sem dar margem a opiniões contrárias – o que, da ótica retórica, constitui uma “modalidade discursiva autoritária”, aquela que se fecha à polifonia, à polissemia e se manifesta como circunlóquio, “sem qualquer possibilidade de interferir e modificar aquilo que está sendo dito” (CITELLI, 2003, p.39) –, bem como pela utilização dos argumentos da “objetividade” e da “isenção” para, como afirma Schudson (2010), “camuflar” o enquadramento temático e ideológico que os meios exercem sobre seus públicos. Finalmente, a constatação vai ainda ao encontro da concepção de Gitlin (2003) de que o trabalho da hegemonia, num vértice gramsciano, “consiste em impor suposições padronizadas sobre eventos e condições” que são encobertas nas entrelinhas das notícias predominantes. Referências ANER. Circulação Revistas Semanais - 2013 x 2014 (Jan a Set). Disponível em: <http://aner.org.br/dados-de-mercado/circulacao/>. Acesso em: 01. mar. 2016. CITELLI, A. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2003. GANS, H. J. Deciding What’s News: A Study of CBS Evening News, NBC Nightly News, Newsweek, and Time. Illinois: Northwestern University Press, 2004. 292 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) GITLIN, T. The Whole World Is Watching: Mass Media in the Making and Unmaking of the New Left. California: University of California Press, 2003. GOFFMAN, E. Os quadros da experiência social: Uma perspectiva de análise. Petrópolis: Editora Vozes, 2012. GOMES, W. 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Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 293 Jornalismo sindical, local, relações de gênero e cidadania: um estudo sobre a cobertura das eleições gerais de 2010, no Brasil, e seus reflexos no impeachment em 2016 Cláudia Regina LAHNI161 Daniela AUAD162 Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, MG Resumo Ao considerar gênero como categoria de análise, este capítulo apresenta um estudo que relaciona jornalismo sindical e jornalismo local com a presença da mulher na mídia e as eleições. Reflete-se sobre o exercício do direito à comunicação e o direito à informação, a partir de uma pesquisa sobre a presença feminina em jornais durante as eleições de 2010. O objeto da pesquisa foi um conjunto de matérias sobre eleições, em um jornal local e em um sindical, em Juiz de Fora (MG), no período de agosto a novembro de 2010, quando da primeira eleição de Dilma Rousseff à Presidência do País. A pesquisa apontou que, no período eleitoral, jornais ainda apresentam a mulher na política de forma inferior ao homem. Tal situação, percebida em 2016 especialmente, contribuiu com o golpe que resultou no impeachment da presidenta Dilma. Esta assertiva é refletida na obra Mídia, misoginia e golpe, organizada por Elen Cristina Geraldes e outras (2016). Palavras-chave: Relações de Gênero; Jornalismo; Direito à Comunicação; Igualdade; Cidadania Introdução No presente capítulo, lembramos de pesquisa sobre mulheres e política 161. Jornalista, é Pós-Doutora em Comunicação (UERJ) e doutora em Ciências da Comunicação (USP). É fundadora e vice-líder do Flores Raras – Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Comunicação e Feminismos (FACED-UFJF-CNPq). É Professora Associada da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (Facom-UFJF), onde leciona Comunicação Comunitária e Comunicação, Relações de Gênero e Movimentos Sociais. Email: lahni.cr@gmail.com. 162. Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Juiz de Fora (PPGE/FACED/UFJF); é Doutora em Educação (USP) e Pós-Doutora em Sociologia (UNICAMP). Fundadora e líder do Flores Raras - Grupo de Estudos e Pesquisas Educação, Comunicação e Feminismos (FACED-UFJF-CNPq). Site do Flores Raras: http://www.ufjf.br/educacomunicafeminismos/ Email: auad.daniela@gmail.com 294 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) e refletimos sobre comunicação, jornalismo e relações de gênero, percebendo que a sociedade contemporânea ainda é fortemente machista, misógina, racista e lesbofóbica. A mídia, se regulada, poderia/deveria fazer a diferença e dar o contraponto a esses traços que desumanizam todas as mulheres e todas as pessoas que são percebidas como não sendo homens, não sendo heterossexuais, não sendo cisgêneras e não sendo brancas. Ocorre, de outra feita, que o que assistimos corresponde ao reforço, na mídia, dos piores fenômenos de acirramento das desigualdades, com bissextos respiros que podemos denominar de “alternativo no massivo”, como casais de gays e lésbicas em novelas, ou séries televisivas que rompem com as relações de gênero binárias e ainda atreladas à heteronormatividade. Nesse sentido, no que se refere aos 13 anos em que o Partido dos Trabalhadores esteve à frente do governo federal (2003-2016), pouco foi o investimento, em nível nacional, para a Democratização da Comunicação. Vale lembrar que ações advindas do movimento social popular não deixaram de pontuar fortemente a necessidade de medidas de Democratização da Comunicação e conseqüente regulação da mídia, ao se notar a oportunidade de realizar tal processo, por ocasião de termos um dito governo popular de esquerda no Executivo. Dentre as ações mencionadas163, em agosto de 2012, data que marcou os 50 anos do Código Brasileiro de Telecomunicações, o Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e entidades do movimento social popular lançaram a Campanha Para Expressar a Liberdade. No conjunto das entidades do movimento social popular citadas, como participantes, estavam a Associação Brasileira de Radiodifusão Comunitária, a Associação Brasileira de Imprensa, a Central Única dos Trabalhadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e a União Brasileira de Mulheres. Todas estas unidas ao FNDC tinham, então, a seguinte proposta: Para construir um país mais democrático e desenvolvido precisamos avançar na garantia ao direito à comunicação para todos e todas. O que isso significa? Significa ampliar a liberdade de expressão, para termos mais diversidade e pluralidade na televisão e no rádio. Ainda que a Constituição Federal proíba os oligopólios e os monopólios dos meios de comunicação, menos de dez famílias concentram empresas de jornais, revistas, rádios, TVs e sites de comunicação no país. Isso é um en163. O presente texto apresenta resultados de pesquisa e reflexões do artigo O direito à comunicação refletido a partir de pesquisa sobre a presença feminina em jornais, durante as eleições de 2010, de Lahni e Auad (2013). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 295 trave para garantir a diversidade. Pare e pense! Como o índio, o negro, as mulheres, os homossexuais, o povo do campo, as crianças, aparecem na televisão brasileira? Como os cidadãos das diversas regiões, com suas diferentes culturas, etnias e características são representados?164 A partir dessas premissas, a Campanha Para Expressar a Liberdade estimula o debate em torno do tema e busca assinaturas para um projeto de Lei de Iniciativa Popular da Comunicação Social Eletrônica. Trata-se de projeto de Lei que defende a “promoção e garantia dos direitos de liberdade de expressão e opinião, de acesso à informação e do direito à comunicação”, assim como pretende assegurar a pluralidade de ideias e a diversidade. Cumpre destacar que a Campanha vai ao encontro do estabelecimento de um Marco Regulatório da Comunicação para o Brasil. Situação semelhante foi vivida pela Argentina, onde o governo presidido por Cristina Kirchner enfrentou entraves judiciais com empresas do setor, em especial o Grupo Clarín, em função da entrada em vigor da Ley de Medio. Esta lei foi aprovada em 2009, depois de longo debate nacional envolvendo movimentos sociais, representantes da academia e empresários. A Lei em questão foi “considerada um modelo para todo o continente e para outras regiões do mundo por Frank La Rue, relator especial da ONU para a Liberdade de Opinião e de Expressão” (SOARES, 2013). Apesar dessa positiva avaliação advinda de tão relevante Organização, de forma lamentável, Mauricio Macri, o presidente seguinte e eleito em 2015, já iniciou o desmonte da regulação democrática da comunicação naquele país. Outro exemplo é o histórico do Canadá quanto à regulação da mídia. Desde os anos 1910, o país tem mecanismos de participação popular para o debate sobre políticas públicas de comunicação. No Canadá foram realizadas inúmeras audiências públicas sobre o setor das indústrias culturais e midiáticas, de modo a influenciar jornais, livros, revistas, rádio, televisão e cinema. Há pesquisas que apontam os jogos de interesse público e privado pela democratização da mídia naquele país, em especial no período de 1928 a 1988, vésperas da publicação da Lei de Radiodifusão de 1991, em vigor até hoje (REBOUÇAS, 2013). Como na Argentina, no Canadá, na França e em outros países do mundo, o que se busca – como por exemplo a partir da Campanha Para Expressar a Liberdade – é o debate e a definição de um Marco Regulatório da Comunica164. Disponível em: <www.paraexpressaraliberdade.org.br>. Acesso em: 08 jun. 2013. 296 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) ção no Brasil, contando sempre com a participação popular. Não é de hoje que pesquisadoras165 e feministas apontam a necessidade e reivindicam leis que garantam a visibilidade de mulheres na mídia, de forma a contribuir para a expressão do que vem ocorrendo no mundo – com mulheres protagonizando diferentes papéis sociais em diferentes áreas – e, assim, contribuam para as múltiplas identidades e cidadania femininas. Nesse sentido, as Resoluções Aprovadas na 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (realizada em 2011, em Brasília) e referendadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, em fevereiro de 2012, incluem um item específico sobre comunicação, com seis resoluções (além da comunicação estar presente em resoluções de outras conferências)166. Também a 1ª Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, foi um importante momento de debate sobre a situação das mulheres na mídia no Brasil, assim como da comunicação em geral. A referida Conferência Nacional foi precedida por conferências municipais e estaduais, as quais apontaram, desde as escutas regionais, locais e específicas, a necessidade da visibilidade feminina nos meios de comunicação de modo emancipatório e igualitário. Grande parte das propostas de leis e políticas deliberadas, entretanto, não foi encaminhada. Ao lado dessa inércia, com a 1ª Conferência, cresceu no Brasil a reivindicação por um marco regulatório contemporâneo para a comunicação, que poderá favorecer a emancipação feminina a partir da democratização da comunicação. E, como mencionado, em agosto de 2012, tivemos no País o lançamento da Campanha Para Expressar a Liberdade, que debate e reivindica um Marco Regulatório da Comunicação no Brasil. Assim, as tensões estão expostas e as disputas colocadas, o que é, de todo modo, mais interessante do que o silêncio ou a simples invisibilidade, no tocante à participação e à representação. Somam-se a isso reflexões e ações por parte de pesquisadoras e de movimentos feministas, após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (em 31 de agosto de 2016) e ações de organismos internacionais, como a ONU. Para exemplificar, a Organização das Nações Unidas buscou saber o que os países fizeram pela emancipação feminina, em função do aniversário de 40 anos de 1975, Ano Internacional da Mulher, e 20 anos de 1995, quando foi realizada a IV Conferência Mundial das Mulheres, em Pequim, na China. 165. Sobre isso “lembramos que, já em 1977, em seu depoimento à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Situação da Mulher, Fúlvia Rosemberg relatou pesquisa sobre a representação feminina (...): ‘todos os estudos concluem, de forma repetitiva e indignada, que a imagem dos papéis sexuais apresentada pelos diferentes meios de comunicação é estereotipada, discriminando acintosamente a mulher’.” (Lahni, 1999, 113). 166. As Resoluções Aprovadas na 3ª Conferência Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres podem ser lidas no site da Secretaria de Políticas para as Mulheres – www.spm.gov.br Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 297 Jornalismo e comunicação para a cidadania Podemos afirmar que a comunicação é a praça pública na atualidade, daí sua importância para visibilidade e discussões de ideias, grupos e suas questões. Nos meios de comunicação – no que incluímos tanto os massivos como os alternativos – as pessoas têm especial acesso à informação, direito previsto na Constituição Brasileira. No Artigo 5º do Capítulo I da Carta Magna, está estabelecido: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...] I- homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações [...]; XIV- é assegurado a todos o acesso à informação” (CONSTITUIÇÃO, 1988). Assim, dada a importância da informação na vida em sociedade esta é considerada um direito porta a outros direitos e, portanto, fundamental para o exercício da cidadania. Afinal, se alguém não tem informações sobre seus direitos como vai buscá-los? Lembramos que cidadania é aqui considerada como o exercício de direitos – civis, políticos e sociais –, luta pela manutenção e ampliação desses direitos (MANZINI-COVRE, 1995). Conforme Murilo Cesar Ramos (2005, p.245, 246), os direitos civis, chamados de primeira geração, são aqueles de respeito à personalidade do indivíduo (liberdade pessoal, de pensamento, de religião), que obrigam o Estado a uma atitude de abstenção diante dos cidadãos. Já os direitos políticos, chamados de segunda geração, implicam na participação dos cidadãos e cidadãs na determinação dos objetivos políticos do Estado. Os direitos sociais, direitos de terceira geração, implicam em um comportamento ativo por parte do Estado para as garantias do/a cidadã/o (direito à saúde, ao trabalho, à assistência). A informação faz parte da primeira geração dos direitos humanos, o direito que se tem de ser informado, o qual nas democracias representativas de massa tende a ser extremamente amplo, mas “será sempre insuficiente”. Considerando isso, entre os anos 1960 e 70, a partir da Unesco (órgão das Nações Unidas que trata de educação, ciência e cultura), “emergiu rica discussão sobre a comunicação e seu papel para o fortalecimento da democracia”. O principal momento deste debate foi a apresentação, em 1980, do relatório da comissão presidida pelo jurista e jornalista irlandês Sean MacBride, com o título “Um mundo e muitas vozes – comunicação e informação na nossa época”. Muito se discutiu, mas quase nada se avançou, porque a comunicação sempre é considerada estratégica para os governos. Esse debate volta com força, no final do século passado, muito impul298 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sionado pelas novas tecnologias da comunicação, especialmente a internet. Assim, como Ramos (2005, p. 247, 248), entendemos que se torna imperativo retomar o debate sobre o direito à comunicação enquanto um novo direito humano fundamental. Trata-se de um direito de quarta geração, que se “constitui um prolongamento lógico do progresso constante em direção à liberdade e à democracia”. É nessa linha que trabalha Cicilia Peruzzo (2002, p. 85), para quem, além dos seus direitos políticos respeitados, “em pleno século XXI, ser cidadão significa [...] também comunicar-se através dos meios tecnológicos que a humanidade desenvolveu e colocou a serviço de todos”. O direito à comunicação é aqui entendido, portanto, tendo em vista a centralidade desta na sociedade contemporânea, como um direito fundamental, que vai garantir mais do que a informação (que chega), garantirá o poder de fala de pessoas e grupos, que precisam ver e ouvir seus temas e ideias em debate. O objetivo é a pluralidade de vozes e, assim, a visibilidade para a identidade e cidadania democrática de grupos diversos, em especial os minoritários, como as mulheres. Afinal, como mencionam Maria Nazareth Farani Azevêdo e Franklin Rodrigues Hoyer (2011, p. 106, 107), mais de 60 anos após a adoção da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que estabelece que todas as pessoas são iguais, a igualdade de direitos a todas e todos continua entre os maiores desafios da humanidade. “No campo dos direitos humanos, os direitos das mulheres e a promoção da igualdade de gênero são questões centrais”, comentam ao apresentar medidas da ONU para a eliminação das desigualdades de gênero. Avaliamos que tais ações necessitam do acompanhamento e inclusive da implantação primeira da comunicação, a partir de marco regulatório e políticas públicas, que, por exemplo, mostrem a mulher na mídia como protagonista e emancipada. É nesse contexto que se encontram nossas preocupações, pesquisas, ensino e militância. Conforme Manzini-Covre (2001, 30), os meios de comunicação atuam como ferramentas “fundamentais para a formação da opinião pública no mundo atual”, com a capacidade de reforçar ou de abalar a cidadania mediante as mensagens que veiculam. Norberto Bobbio (1992) também destaca a importância da informação para o exercício de direitos e para a democracia. Nesse sentido, o direito à informação jornalística deve ser pensado como um direito de todos e todas, sendo os conteúdos veiculados em quantidade e qualidade de modo a favorecer o melhor julgamento possível de cada um. Afinal, nos meios de comunicação – no que incluímos tanto os massivos como os Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 299 alternativos –, as pessoas têm especial acesso à informação, direito previsto na Constituição Brasileira (1988). Assinada por países do mundo inteiro, incluindo o Brasil, aprovada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948 e, portanto, chegando aos 70 anos de vigência, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece o direito à informação e caminha no sentido de estabelecer o direito à comunicação. Além de em seu preâmbulo reafirmar o valor da pessoa humana e a igualdade de direitos de homens e mulheres, em seu Artigo XIX, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que toda pessoa “tem direito à liberdade de opinião e expressão. Este direito inclui a liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras” (apud DALLARI, 1998, 60). Assim, dada a importância da informação na vida em sociedade, esta é considerada um direito porta a outros direitos e, portanto, fundamental para o exercício da cidadania. Afinal, se alguém não tem informações sobre seus direitos como vai buscá-los? Para a importância do direito à informação corresponde a importância do dever de informar, de forma ética e com responsabilidade social. Este dever cabe aos jornalistas e às empresas de jornalismo. No sentido da responsabilidade mencionada, quanto aos profissionais, a atividade é regida pelo Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros. Ao apresentar e refletir sobre o Código, Luciene TÓFOLI (2008, p. 9) considera que “o jornalismo só será verdadeiramente ético a partir do momento em que exercer sua prerrogativa de contribuir efetivamente para uma sociedade mais justa, transparente, humana, solidária, fraterna e livre”. “A ética deve estar em cada frame e em cada palavra sobre os quais se debruçam os contadores da história cotidiana da humanidade” salienta a autora. Embasando a responsabilidade social da profissão, o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros normatiza a conduta dos profissionais a fim de contribuir para o exercício do direito à informação, estabelecido na Constituição Brasileira e na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Do mesmo, salientamos o seguinte: Capítulo I. Do direito à informação Art. 1º O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros tem como base o direito fundamental do cidadão à informação, que abrange o seu direito de informar, de ser informado e de ter acesso à informação. 300 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Art. 2º Como o acesso à informação de relevante interesse público é um direito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse [...]. Capítulo II. Da conduta profissional do jornalista Art. 3º O exercício da profissão de jornalista é uma atividade de natureza social, estando sempre subordinado ao presente Código de Ética. [...] Art. 6º É dever do jornalista: opor-se ao arbítrio, ao autoritarismo e à opressão, bem como defender os princípios expressos na Declaração Universal dos Direitos Humanos; [...] XI. defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias; [...] XIV. combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza. (Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, 2007 apud TÓFOLI, 2008, p. 11, 12 e 13) Os conceitos de cidadania, direito à informação e direito à comunicação, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, a Constituição e o Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, somados à teoria do jornalismo, destacam a responsabilidade social dessa atividade para o exercício da cidadania de todos e todas. Sabemos que as condições de trabalho, muitas vezes, não têm colaborado para que a profissão seja exercida com a reflexão cotidiana nas redações; entidades representativas, por vezes, não dão conta de garantir este debate por um jornalismo com ética e responsabilidade social. Para isso, a educação (ensino e pesquisa) certamente tem o lugar de destaque para debater jornalismo e cidadania. Nessa direção, após perguntarmos sobre o espaço da mulher na mídia, na editoria de política (nesta reflexão), perguntamos também como está a pesquisa sobre mídia, jornalismo e relações de gênero? Como estas pesquisas e sua divulgação se refletem no ensino, em especial a partir da implantação das novas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) para os cursos de graduação em Jornalismo? Gênero como categoria de análise Como se comportariam um jornal local identificado como grande imDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 301 prensa e um boletim sindical, veículo potencialmente contra-hegemônico, em uma eleição presidencial em que uma candidata mulher aparecia, inicialmente, em segundo lugar nas pesquisas, sendo que ela representava a continuidade de um governo que tinha grande aceitação popular? Como se comportariam tais veículos em uma eleição para deputado federal em que estaria uma candidata mulher de Juiz de Fora (município base da pesquisa) que foi a primeira candidata à prefeitura, na eleição de 2008, tendo ficado em segundo lugar com uma expressiva votação167? Essas foram questões motivadoras da pesquisa “Comunicação, política e relações de gênero: análise da presença da mulher, em um veículo local da grande imprensa e em um alternativo, no período eleitoral”. A investigação parte da premissa da Comunicação como Direito e da reflexão sobre o direito à informação. Como subsídio para a análise e com foco voltado para a mulher na política, realizou-se levantamento bibliográfico no qual as fontes foram os anais e as revistas da Intercom (Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação) e da Compós (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), entre 2003 e 2010. O objeto da pesquisa foi um conjunto de matérias sobre eleições, no jornal Tribuna de Minas, de Juiz de Fora - MG (principal periódico da cidade), e no Informativo do Sindicato dos Metalúrgicos de Juiz de Fora (principal publicação da entidade representativa), no período de agosto a novembro de 2010. A categoria gênero fundamenta o estudo, à medida que são consideradas as representações socialmente construídas sobre o masculino e o feminino para analisar o objeto de pesquisa. Vale mencionar que as mulheres, apesar de serem maioria numérica na sociedade, são pensadas, na pesquisa, como minoria. Chega-se a tal conclusão quando são tomadas como parte da análise as desigualdades de gênero e discriminação com relação ao feminino, ainda hoje vividas por essa parcela da população. Para Joan Scott (2005), os eventos que determinam que as minorias sejam tomadas enquanto tais ocorrem pelo processo de atribuição de menos status e desvalorização de algumas qualidades inerentes ao grupo minoritário, como se essas qualidades fossem a razão e também a racionalização do tratamento desigual, tais como características percebidas no corpo das mulheres ou pela raça. O olhar que o referencial de Joan Scott possibilita sobre as minorias é ainda mais potente se se considerar o emblemático texto Gênero: uma categoria útil de análise histórica (SCOTT, 1990). Trata-se de produção que 167. Neste texto, apresentamos a análise de conteúdo do jornal local identificado como grande imprensa e do jornal sindical, objetos de estudo, no que se refere à candidatura de Dilma Rousseff à Presidência da República, em 2010. 302 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) contribuiu para que variados setores das Ciências Humanas reconhecessem a importância das relações sociais que se estabelecem com base nas diferenças percebidas entre o masculino e o feminino. A apropriação dos escritos de Scott permite notar tanto que as mulheres ainda são minorias quanto que as relações de gênero, do modo como estão organizadas em nossa sociedade, produzem as desigualdades que tornam esses grupos minorias. Os escritos da autora permitem elucidar como as visões naturalistas sobre mulheres, meninas, homens e meninos representam obstáculos para o acesso democrático das minorias aos meios de comunicação, no que se refere ao direito de se verem representadas e reconhecidas em produções realizadas por elas, para elas e sobre elas. Gênero é, portanto, assumido como categoria de análise, no presente texto e na pesquisa, com a intencionalidade de não perpetuar posturas neutras nos processos de construção do conhecimento e de produção midiática. Tais posturas tornariam invisíveis grupos de mulheres para quem e por quem políticas igualitárias de comunicação devem ser formuladas e implantadas. Nesse sentido, diretrizes da Primeira Conferência Nacional de Comunicação, realizada em dezembro de 2009, devem ser implantadas e a definição de política de Joan Scott, em seu texto O Enigma da Igualdade, pode começar a ser praticada ao se trabalhar com a informação e ao se praticar jornalismo. Trata-se de cuidar da política e de considerar a igualdade nos meios de comunicação tendo como norte “a negociação de identidades e dos termos das diferenças entre elas” (p.29, 2005). Assim, gênero seria adotado como um potente marcador de diferenças, diante do qual não é possível silenciar. As posições ocupadas idealmente pelas mulheres são construídas a partir das relações de gênero que ditam o que é aceito e o que é rechaçado, segundo padrões masculinos e de femininos estimulados, ou não. O apelo à maternidade e aos valores considerados tradicionais de feminilidade é algo percebido como positivo ao lado de uma candidata mulher, bem como é rechaçada qualquer possibilidade de comportamento que afaste tal candidata do ideal feminino segundo os padrões tradicionais vigentes, como, por exemplo, uma presidenta guerrilheira ou uma deputada federal lésbica. Por mais que explorar positiva ou negativamente essas identidades não possa ser determinante exclusivo do comportamento eleitoral, pode influenciar o empoderamento de um grupo minoritário que se veja representado na informação difundida, via jornalismo, como fundamental exercício de cidadania. A informação sobre direitos e a comunicação percebida como seara de exercício da cidadania podem fazer com que mulheres e outras minorias se Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 303 organizem para reverter sua condição. É importante que mulheres lésbicas sejam noticiadas em reportagens que valorizam sua maternidade, por exemplo, em pautas típicas do Dia das Mães. Por outro lado, é desnecessário a uma candidata à Presidência da República que ela apareça fritando ovos em programas femininos, a fim de provar ao eleitorado que tem atributos típicos ao seu sexo. Procedimentos metodológicos A partir da fundamentação teórica adotada e expressa acima, foi realizado o estado da arte sobre Comunicação, Política e Relações de Gênero, cujo objeto de pesquisa é o corpus composto por artigos publicados na Intercom e na Compós, em congressos nacionais e em suas revistas, no período de 2003 a 2010. Conforme os critérios selecionados, dos artigos pesquisados em congressos nacionais da Intercom, foram encontrados um total de nove publicações. Destas, sete não estavam relacionadas ao tema de pesquisa e foram descartadas. Restaram dois artigos: A Mulher nas Eleições 2002 (LIMA, FERREIRA e VIEITO, 2003) e Estratégias midiáticas de construção de uma candidata à Presidência – Uma proposta metodológica (Bastian e Gomes, 2010). Nas revistas da Intercom dos anos 2003 a 2010, apenas três artigos foram encontrados e estes não se enquadraram no tema central da pesquisa. Dos artigos pesquisados nos congressos da Compós, foram encontrados nove no total e, pela mesma não correspondência em relação ao tema mulher e política, restou apenas o artigo Gênero e política no jornalismo brasileiro (MIGUEL e BIROLI, 2008). Já nas revistas da Compós, oito artigos resultaram da busca, sendo que um deles é uma resenha do livro Política, Palavra Feminina, de Raquel Paiva, de 2008. Desses oito artigos somente essa resenha, de autoria de Alexandre Barbalho, aborda especificamente o tema principal “mulheres e política”. Contudo, por ser uma resenha, também não se coadunou com os critérios de seleção da presente busca. Verificou-se, portanto, uma ausência do tema em publicações acadêmicas das principais associações da área. Na sequência, realizou-se a análise de conteúdo dos veículos selecionados como objeto de estudo. A Tribuna de Minas (www.tribunademinas.com.br) é o principal periódico de Juiz de Fora – município de cerca de 600 mil habitantes na Zona da Mata de Minas Gerais. Na ocasião, o jornal era publicado no formato standard, tendo em média 10 páginas no 1º Caderno (o principal); e seis páginas 304 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) no caderno Dois, voltado para cultura, além de suplementos semanais. O periódico é publicado de terça a domingo e vendia durante a semana em torno de 15 mil exemplares e no domingo, 20 mil exemplares. Ao todo foram avaliadas 76 edições da Tribuna de Minas – 136 páginas de política, que reuniram 399 matérias. Na análise quantitativa, buscou-se identificar fontes e pessoas mencionadas nas notícias, notas e reportagens. Foi verificado um total de 416 mulheres entrevistadas ou citadas e 1386 homens entrevistados ou citados nas matérias. Verificou-se também o número de homens e o de mulheres (proeminentes ou sozinhos) em fotografias. Encontramos 70 fotos com mulheres e 202 fotos com homens. Buscou-se ainda o número de homens e o de mulheres em títulos nas matérias incluídas dentro da delimitação da pesquisa. Constatou-se um total de 81 títulos citando mulheres e 154 títulos com homens. Isso, numa eleição em que duas mulheres estavam entre os/as principais candidatos/as à Presidência da República – Dilma Roussef e Marina da Silva – e a cidade tinha, pela primeira vez, uma candidata à deputada federal com chances de vencer a eleição. Na análise, foi examinado o número de chamadas de capa sobre política. Do total de chamadas de política encontramos 36 citando mulheres e 62 com homens. Os dados apresentados indicam uma superioridade numérica masculina em detrimento da feminina. A seguir, são comentados títulos. Em 25 de agosto de 2010, quando uma pesquisa avaliou a propaganda da candidata Dilma como melhor que a de seu principal opositor, José Serra, a Tribuna de Minas apresentou o título “Dilma festeja; para Serra ela ‘está se achando’”. Cumpre destacar que aqui há uma avaliação dele sobre ela, colocando-o em vantagem, posto que não se deu espaço para a candidata avaliar seu opositor igualmente. Em 31 de agosto, na página 4, temos os títulos “Serra visita MG e adota mudanças na campanha”; e “Dilma reduzirá visitas ao Norte e Nordeste”. “Visita Minas Gerais e adota mudanças” parece mais positivo do que “reduz” visitas. Além dessa situação de verbos por vezes com ações mais fracas dedicados à candidata com mais chances de vitória, também encontramos, no dia 17 de setembro de 2010, na capa da Tribuna de Minas, o título de chamada “Marina e Dilma debatem infância”, junto a “Lula faz comício hoje na cidade” e “Anastasia no Aeroporto Regional”. Aqui temos os homens na política e no aeroporto, temas ligados ao espaço público, com mais status e assegurado aos homens. Colocar as candidatas mulheres discutindo infância, tema ligado à maternidade e o que, culturalmente, se espera da mulher, remete ambas a situações de menos status em relação aos objetivos eleitorais que almeDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 305 jam e com destaque para temas reconhecidos como do espaço privado. A partir de estudos diversos168, consideramos o potencial contra-hegemônico da comunicação sindical. Assim, na pesquisa aqui relatada, analisamos a comunicação do Sindicato dos Metalúrgicos de Juiz de Fora e Região (http://stimjf.org.br), que tem sede na área central da cidade e subsede no município de Santos Dumont. O STIM representa cerca de 10 mil metalúrgicos de oito municípios do estado de Minas Gerais. Em novembro de 2012, o Sindicato completou 80 anos de sua fundação. Desde 1992 a entidade é filiada à CUT (Central Única dos Trabalhadores). A comunicação entre o Sindicato e os/as trabalhadores/as, na ocasião da pesquisa, se dava, principalmente, por meio de uma publicação de periodicidade mensal, com tiragem de 5.000 exemplares, o Informativo do Metalúrgico, também nosso objeto de pesquisa. No período pesquisado, foram produzidos quatro informativos que possuíam em média quatro páginas. Observou-se que o Informativo do Sindicato dedicava sempre uma página aos assuntos políticos. Ficou evidenciado o apoio à candidatura de Dilma Rousseff, para a Presidência da República. Apesar disso, não encontramos fotografia da candidata no Informativo, que é citada pela publicação uma vez, no período. Nos exemplares analisados foram citados também por uma única vez o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o candidato à Presidência José Serra (PSDB), o governador eleito do estado de Minas Gerais, Antônio Anastasia (PSDB), e o senador eleito Aécio Neves (PSDB). Apesar de ser apresentada em menor número, a candidata Dilma Rousseff recebeu um enfoque mais positivo do que os homens no Informativo, o que se explica devido ao fato de ter o apoio da categoria na eleição. Dentre os homens, o único que recebeu uma avaliação positiva foi o ex-presidente Lula, que teve associada a sua imagem à “redução da desigualdade social e a geração de empregos”, enquanto os demais citados apareceram com enfoque negativo. A análise dos informativos do Sindicato revela que, apesar de as mulheres serem retratadas de forma positiva e de receberem o apoio das trabalhadoras e trabalhadores da categoria, ainda assim é dado pouco espaço a elas. Apenas uma candidata tem uma foto publicada no Informativo e mesmo assim em meio a vários homens. Se, por um lado, a principal publicação dos metalúrgicos de Juiz de Fora apresenta a característica de sempre ter página que coloca a política como tema, por outro, parece-nos que o fato de o Sindicato declarar 168. Como as pesquisas coordenadas e orientadas pela Professora Maria Nazareth Ferreira. Para exemplificar, citamos a obra O Impasse da Comunicação Sindical: de processo interativo a transmissora de mensagens, organizada por FERREIRA (1995). 306 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sua posição política, apoiando a candidatura de Dilma Rousseff, poderia conferir a ela mais espaço dentro do Informativo. Reflexos na exclusão das mulheres A partir do crescimento do movimento feminista e de investimentos de governos, no Brasil, percebemos (Lahni e Auad, 2016) um maior número de estudos sobre relações de gênero e comunicação. Este aumento é bastante positivo e certamente reflete, também, a eleição e ação de uma mulher como Presidenta da República e o trabalho de mais de 10 anos da Secretaria de Políticas para as Mulheres do Governo Federal, a qual apresentava programas de incentivo, como o Prêmio de Igualdade de Gênero junto ao CNPq e o evento anual Mulher e Mídia (todos iniciados no governo do PT). Este aumento e um crescimento quantitativo da mulher nos jornais e mídia, em geral, não implicam, infelizmente, em mais qualidade e menos machismo, em função disso. Logo após o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, foi publicado o livro Mídia, Misoginia e Golpe, com a participação de pesquisadoras de todo o País, organizado por Elen Cristina GERALDES, Tânia Regina Oliveira RAMOS, Juliano Domingues da SILVA, Liliane Maria Macedo MACHADO e Vanessa NEGRINI (2016). A obra contou com 53 entrevistadas e entrevistados da academia, política e militância, as quais apresentam consenso em afirmar que o processo que retirou Dilma da Presidência foi golpe, que a mídia – em especial a grande imprensa – teve papel fundamental nisso e que era perceptível a predominância do machismo e misoginia na cobertura e sua repercussão na imprensa. Uma das entrevistadas, Amélia Teresa Santa Rosa Maraux, pró-reitora de Ações Afirmativas da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e vice-presidenta do Conselho Estadual LGBT da Bahia, salienta que A mídia teve um papel fundamental. Ela alicerçou a base para a revolta, para a construção de um imaginário nacional sobre a presidenta Dilma Rousseff e sobre o Partido dos Trabalhadores. E a Rede Globo foi uma das expoentes da arquitetura do golpe, junto com as outras mídias, como a Folha de São Paulo, o Estadão, o jornal A Tarde, aqui na Bahia, a revista Veja, Isto É, Época, enfim, todas estas empresas midiáticas comandadas pelas grandes famílias no Brasil e nos estados. Elas tiveram um papel importante de criar a dimensão de uma crise nacional sem resolução. [A mídia] construiu a imagem de fraqueza diante da artiDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 307 culação política que poderia dar sustentação ao governo. Fortaleceu – com certeza – uma imagem, um discurso e uma prática misógina com relação à Dilma Rousseff. (MARAUX, 2016, p.12) Conselheira Estadual da Mulher de Minas Gerais, autora de Feminismo, que história é essa?, Daniela AUAD, também entrevistada no livro, comenta sobre gênero e a cobertura do impeachment de Dilma: A questão de gênero, como nessa pergunta está nomeada, é relevante e estruturante. O golpe é misógino porque as instituições, práticas e contextos de construção de nossas subjetividades e identidades, assim como produção e reprodução do viver, são misóginos. Logicamente que há o acirramento da expressão dessa misoginia em razão do atual fortalecimento da direita no contexto do golpe. Mas é importante jamais esquecer que o machismo, a lesbofobia, a transfobia e, portanto, a misoginia se apresentam fortemente de variadas formas tanto naquilo que reconhecemos como direita quanto no campo da esquerda, onde, nós, mulheres, sofremos seguidamente tentativas de silenciamento por parte dos companheiros que historicamente vomitam que debater gênero enfraquece o debate da luta de classes, que debocham do feminismo e que desmerecem a categoria gênero nos Programas de Pós, na organização das disciplinas nos diferentes cursos e outras searas. (AUAD, 2016, p. 80) Considerações finais “O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O golpe é racista.” A afirmação é da presidenta Dilma Rousseff, em seu primeiro pronunciamento, após a aprovação do seu impeachment, pelo Senado Federal, em 31 de agosto de 2016. Entre outros documentos, esse registro é mostrado no documentário “O Processo”, de Maria Augusta Ramos (lançado e premiado em 2018), que acompanha o julgamento do impeachment de Dilma. A presidenta foi acusada de manobras fiscais que eram percebidas como usuais para seus antecessores governantes, mas estigmatizadas como crime, quando eventualmente por ela praticadas. As acusações se deram com base em uma interpretação da Lei de Responsabilidade Fiscal e, imediatamente após o impedimento de Dilma, foi aprovada uma lei que assegura que aquelas mesmas ações são consideradas funcionamento normal da máquina pública. O momento de aprovação dessa lei e outros episódios da política do País vão ao encontro da avaliação de Dilma Rousseff, sobre o teor misógino, homofóbico e racista de sua deposição. 308 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Não se tratou de um processo legítimo, mas de um golpe para tirar do poder a primeira mulher eleita por duas vezes presidenta do Brasil. Com isso, foi fortemente prejudicada a presença das mulheres em todas as esferas da sociedade e em especial na política institucional, foco do presente capítulo. O violento ataque à democracia – que desconsiderou a maioria dos votos da eleição presidencial de 2010 – causou a ampliação do machismo e o aprofundamento do ódio às mulheres lésbicas, bissexuais e transexuais, em razão do processo de impedimento ao qual foi submetida a Presidenta eleita e, por conseguinte, todas e todos os brasileiros que nela votaram, assim como causou um efeito cascata de destruição. A retirada da Presidenta Dilma simbolizou e efetivou o início do esfacelamento de positivas construções de 13 anos que deram ganho às candidaturas do Partido dos Trabalhadores, à frente do governo federal. Não era apenas Dilma Rousseff que estava sendo retirada do cargo para o qual foi eleita. Estavam sendo depostas a valorização, os direitos e as políticas públicas para pobres, mulheres, negros, negras, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros. Ao considerar essa conjuntura como pano de fundo, no presente capítulo, como mencionado anteriormente, lembramos de pesquisa sobre mulheres e política e refletimos sobre comunicação, jornalismo e relações de gênero, percebendo que a sociedade contemporânea ainda é fortemente machista, misógina, racista e lesbofóbica. A centralidade da comunicação é fator decisivo na construção das múltiplas identidades e no exercício da cidadania de todas e todos. No que diz respeito às mulheres, debates e pesquisas apontam o quanto a mídia ainda as sub-representa e as degrada mais comumente do que as valoriza em suas expressões e grupos diferenciados. Neste trabalho analisamos a presença da mulher, enquanto candidata, em um veículo da grande imprensa e em um da imprensa sindical, no período das eleições de 2010. A partir de sua metodologia, conceitos e procedimentos adotados, a pesquisa que o presente texto noticia apontou que tanto a chamada grande imprensa como a imprensa sindical ainda apresentam a mulher na política, no período eleitoral, de forma quantitativa inferior ao homem. Quanto aos temas, mesmo a já possível futura presidenta é noticiada tratando de áreas historicamente consideradas femininas. Além disso, as pesquisas encontradas na Intercom e na Compós sobre o tema se mostravam em número reduzido e também com reduzido ou ausente referencial de relações de gênero. Este quadro mostra uma lacuna de pesquisa, ensino e prática jornalística, que em nada contribui para a emancipação feminina. Ao contrário, a partir Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 309 de reflexões presentes no livro Mídia, misoginia e golpe, percebemos a situação agravada no processo de impeachment da presidenta Dilma e após o mesmo, atingindo no cotidiano todas nós, mulheres. O machismo – que violenta física e simbolicamente mulheres, todos os dias – continua inclusive na esquerda, mesmo após o golpe, que depôs Dilma Rousseff: no dia 7 de junho de 2018, o PT lançou o jingle de campanha de Luis Inácio Lula da Silva à Presidência, com o mote “Chama o homem que dá jeito”. Assim, considerando a centralidade da comunicação e sua importância para o exercício da cidadania, entendemos que se fazem urgentes o amplo debate e a definição de um marco regulatório da mídia, que estabeleça o direito à comunicação das mulheres, fundamental para uma sociedade igualitária, com respeito a todas as pessoas. É ainda necessário que a esquerda se reveja e não corrobore com práticas machistas, especialmente na comunicação. Referências AUAD, D. Igualdade e diferença nas políticas públicas: gênero e raça no município de Guarulhos. Seminário Internacional Fazendo Gênero 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos. Florianópolis, UFSC, 2010. AUAD, D. Feminismo: que história é essa?. Rio de Janeiro, DP&A, 2003. AUAD, D. Entrevista à Denise Teresinha da Silve. In: GERALDES, E. C.; RAMOS, T. R. O.; SILVA, J. D.; MACHADO, L. M. M.; NEGRINI, V. Mídia, misoginia e golpe. Brasília, FAC-UnB, 2016, p. 79-82. AZEVÊDO, M. N. F.; HOYER, F. R. 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Liziane GUAZINA170 Francisco VERRI171 Ébida SANTOS172 Universidade de Brasília, Brasília, DF Resumo Marcado pelo estereótipo de beleza e de subordinação à figura masculina, o primeiro-damismo volta à tona no Brasil depois de sete anos ausente. Marcela Temer, que atende aos padrões estéticos convencionados, assume a função com a responsabilidade de ser embaixadora do programa “Criança Feliz”. À luz da análise dos valores-notícia e dos preceitos metodológicos da Análise de Conteúdo, busca-se compreender as razões pelas quais Marcela Temer é pauta e como ela é representada no site do jornal Folha de São Paulo. O período de análise se estende entre 31 de agosto de 2016 e 31 de dezembro de 2017, abrangendo um corpus de 119 notícias. As particularidades da cobertura recai sobre uma preferência pela vida privada, relatando os acontecimentos que envolvem seu âmbito pessoal, especialmente as atribuições de esposa, mãe e filha. Palavras-chave: Noticiabilidade; Valores-notícia; Desigualdade de gênero; Primeira-dama; Marcela Temer. Introdução As primeiras-damas são agentes não eleitos cujas ações, públicas ou privadas, repercutem midiaticamente. Segundo Abril (1997, p. 192, tradução nossa173) em geral por “ser a esposa de uma personalidade importante, desta169. A expressão refere-se a notícia veiculada pela revista Veja, em 2016. O “Criança Feliz” é um programa do governo de Michel Temer que tem a primeira-dama como embaixadora. 170. Doutora em Comunicação, Vice-diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. 171. Doutorando em Comunicação pela Universidade de Brasília. 172. Doutoranda em Comunicação pela Universidade de Brasília. 173. No original: ser la esposa de una personalidad importante, de destacarse por su belleza, [...] o ocupar el puesto de primera dama 314 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) car-se por sua beleza [..] ou ocupar o posto de primeira-dama”, traduzindo, na própria definição, os estereótipos que vinculam as mulheres ao espaço doméstico e os homens à liderança. Após a deposição de Dilma Rousseff, Marcela Temer assumiu o posto de primeira-dama, até então vago, passando a circular entre as duas esferas. Eleita Miss Paulínia em 2002, na cidade homônima do Estado de São Paulo, Marcela Temer atende a um estereótipo de beleza: loira, cabelos lisos, jovem e com 1,72m de altura. Além disso, segue os padrões de moda. Usa saia, vestido tubinho e de gala, grifes brasileiras e internacionais. Seu guarda-roupa retorna às páginas de coluna social e de portais de moda, invertendo os preconceitos relativos ao vestuário da ex-presidenta, Dilma Rousseff. Transitando em funções socialmente estabelecidas de mãe de família, primeira-dama e gestora, Marcela ganhou notoriedade, também, nas pautas jornalísticas. O jornalismo, contudo, não se afasta por completo dos padrões sociais conservadores nem de seus estereótipos. Como define Gans (2014), o acontecimento interage com valores que são mais duradouros, definidos a partir de uma visão de como o mundo deve ser (COOK, 2011), estabelecendo, dessa forma, limites e regras necessários para figurar na lista de eventos noticiáveis. O jornalismo é impactado pelos valores culturais da sociedade brasileira, ainda marcado pela desigualdade de gênero. A partir desse contexto, investigamos quais os valores-notícia legitimadores da cobertura sobre a primeira-dama realizada pela Folha de S. Paulo entre 31 de agosto de 2016, data da posse de Michel Temer, até 31 de dezembro de 2017. Trata-se de compreender as razões pelas quais Marcela Temer é pauta e como ela é representada. Para entender como se desenvolveu a cobertura, pareceu-nos adequado observar os valores-notícia salientes, por serem elementos primários na decisão sobre a relevância da pauta. Os valores-notícia também servem como lentes, que nos indicam o que ver e o que ignorar na seleção das notícias uma vez que o acontecimento depende de uma seleção noticiosa afeita ao modelo de sociabilidade da vida social (SILVA e FRANÇA, 2017), recaindo sobre critérios de importância. Os valores-notícia Tobias Peucer (2004), já em 1690, atentava-se para a necessidade de se selecionar os fatos mais importantes. Porém, somente na década de 1960 é que surge a primeira tipificação174, com Galtung e Ruge. Em seu estudo, os pesquisadores dinamarqueses concluíram que o noticiário se estrutura em uma 174. Galtung e Ruge foram pioneiros ao tentar compreender a estrutura do noticiário analisando a cobertura em três países em crise – Cuba, Congo e Chipre Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 315 cadeia iniciada “a partir dos acontecimentos caóticos do mundo e encerrada na imagem pessoal produzida pelo receptor” (SILVA, 2010, p. 174), tendo em comum doze características175. O trabalho deu início a um campo importante à Teoria do Jornalismo. David White (1999) importou a noção do Gatekeeper da área da saúde para da comunicação. Nessa abordagem a seleção da notícia depende de “porteiros”, formados por indivíduos ou grupos hierárquicos com poder para definir o que é noticiável e o que não é. Assim, o processo de transformação de um acontecimento em notícia ocorre dentro de diversos gates que percorrem a redação – repórter, editor da editoria, editor-chefe –, a partir de convenções e valores que organizam a rotina profissional: “A comunicação de notícias é extremamente subjetiva e dependente de juízos de valor baseados na experiência, atitudes e expectativas do gatekeeper” (WOLF, 1999, p. 145). Para além de um guia que organiza o trabalho de seleção noticiosa, enfatizando as características de um evento noticiável (VIZUET e MARCET, 2003), os valores-notícia operam dentro de um ritual jornalístico que - teoricamente - protege os jornalistas contra erros e imparcialidades: “Cada notícia é uma compilação de fatos avaliados e estruturados pelos jornalistas” (TUCHMAN, 1999, p. 77) a partir de uma série de fatores – ethos profissional, objetividade, linha editorial, valores-notícia – que definem o fazer jornalismo. A prática profissional decorre da partilha de compreensões e normas que definem o campo (COOK, 2011), homogeneizando padrões de cobertura. Desse modo, “os media não relatam simplesmente e de uma forma transparente acontecimentos que são só por si naturalmente noticiáveis”, pois as notícias passam antes por processos de “escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas (HALL et al, 1999, p. 224). De tal modo, funcionando em um mapa cultural de significado, os valores-notícia operam “como estrutura de retaguarda social profunda e escondida, e requerem um conhecimento consensual sobre o mundo (SILVA e FRANÇA, 2017, p.10), aderindo a convenções profissionais, interesses econômicos e ideológicos. O fazer jornalismo, nesse contexto, como destacam Seixas e Marques (2016, p. 10), “não lida apenas com fatos, mas também com pessoas, lugares e fenômenos em processo”, reproduzindo valores culturais da sociedade. Isto é, integra um processo social sustentado pelas interações e negociações entre atores e campos sociais (SILVA e FRANÇA, 2017). 175. Freqüência, amplitude, clareza ou falta de ambiguidade, relevância, conformidade, imprevisão, continuidade, referência a pessoas e nações de elite, composição, personificação e negativismo. 316 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Em um plano cultural, o noticiário se organiza a partir de significados compartilhados entre a sociedade, ainda que prevaleçam opiniões e noções hegemônicas (BIROLI, 2013). Toma-se como base sentidos pré-estabelecidos incorporados ao processo produtivo. Em contrapartida, promovem-se narrativas jornalísticas capazes de reforçar ou romper com discursos vigentes, ressignificando o modo de se enxergar e partilhar o mundo. Nesse processo, o jornalismo se comporta como uma entidade que permite tornar o “mundo a que eles [jornalistas] fazem referência inteligível a leitores e espectadores”. Ou seja, de dar sentido a fatos que ocorrem no dia-a-dia. “Um acontecimento só faz sentido se puder colocar num âmbito de conhecidas identificações sociais e culturais”, sendo tarefa do jornalismo traduzi-lo para os mapas de significados intrínsecos a base do “conhecimento cultural no qual o mundo social já está traçado” (HALL et al, 1999, p. 226). Cabe a esses profissionais transformar um acontecimento bruto em uma matéria jornalística que atribua uma dimensão pública a algo que seria de interesse de uma coletividade. Esse processo de significação “tanto assume como ajuda a construir a sociedade como um consenso”, explicam Hall et. al. (1999, p. 226). Portadores de tais mapas culturais do mundo social, os jornalistas se reconhecem por práticas profissionais que interagem com consensos sobre como a sociedade funciona. Compartilhando um ideal jornalístico, dividem experiências, vivências, métodos e uma rotina profissional que caracterizam a profissão, definindo o perfil que caracteriza esse profissional da comunicação e estruturando padrões do que é notícia. Como forma de organizar os acontecimentos desordenados e caóticos do mundo (HALL et al, 1999), os jornalistas recorrem a critérios legitimados para distinguir os eventos que merecem ser reportados e traduzidos. Ainda que não sejam formalmente transmitidos, codificados ou descritos em qualquer documento profissional, os valores são partilhados entre os profissionais de diferentes meios de comunicação, estruturando as coberturas jornalísticas. Inconscientemente, funcionam como um marcador de representação que “classificam eventos com os quais os leitores podem mais se identificar e nos quais se sintam representados” ( JORGE, 2016, p. 08). Esses critérios protegem repórteres, editores e agentes noticiosos, fornecendo as características de uma potencial notícia. Limita-se assim eventuais críticas e questionamentos a parcialidade. Os valores-notícia revelam, portanto, “não simplesmente o entendimento que os jornalistas têm de como o mundo funciona, mas também sugerem uma concepção de como o mundo deve funcionar” (COOK, 2011, p. 207) a partir de um mapa cultural do Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 317 mundo social. Em sua constituição integram valores dominantes, reiterando preconceitos e velhas práticas sociais que acompanham o cotidiano das mulheres no Brasil. É nesse sentido que se investiga a cobertura sobre a Marcela Temer, buscando compreender quais os aspectos contribuem para a seleção e organização de notícias sobre ela. As mulheres no espaço político e no jornalismo A política e o jornalismo são dois campos que se entrecruzam diariamente. O jornalismo expondo os atos políticos e a política agindo também para e a partir do noticiário. Nos espaços políticos e jornalísticos, partes centrais da democracia, são apresentadas, repercutidas e até mesmo estimuladas opiniões e juízos de valor sobre os atores e atrizes e espectadores(as) da vida política. Entre esses atores e atrizes estão as mulheres, as políticas e as não-políticas – no sentido profissional do termo – nem sempre representadas equitativamente em termos de gênero. É a temática da representação que trazemos para essa discussão. O gênero, para Joan Scott, “[...] é um elemento constitutivo de relações sociais baseado nas diferenças percebidas entre os sexos, e o gênero é uma forma primeira de significar as relações de poder” (SCOTT, 1989, p. 21). A autora traz alguns elementos relacionados entre si e que são implicados pelo gênero nas relações sociais. Entre eles figuram os símbolos culturalmente disponíveis e que evocam diferentes representações sobre as mulheres, os conceitos normativos que direcionam interpretações simbólicas, tais como os presentes nas doutrinas religiosas ou políticas; a representação binária que tenta fixar um papel inconteste associado à mulher; e a identidade subjetiva, em que o gênero encontra-se implicado na construção do poder. Esses elementos que compõem a definição de gênero de Scott ajudam a perpetuar os estereótipos de gênero, presentes também na mídia. Biroli considera “os estereótipos como categorias simplificadoras ou atalhos cognitivos que participam dos exercícios de poder” (2011, p. 75, grifo da autora). São simplificações que correspondem a expectativas normativas sobre comportamentos e que são previsíveis, remetendo aos papéis socialmente estabelecidos. Tais elementos pertencem a uma dinâmica social complexa, que envolve a atribuição de valores diferentes para as funções tidas como masculinas ou femininas na sociedade (BIROLI, 2010). À internalização de determinados padrões associa-se a perpetuação do 318 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) contrato sexual de Pateman (1993). O contrato sexual integra o contrato original, que “é um pacto sexual-social” (p.15), embora seu aspecto sexual (que trata do poder que os homens exercem sobre as mulheres) sofra um profundo silenciamento. Para Pateman, o contrato social “é uma história de liberdade” enquanto o contrato sexual “é uma história de sujeição” (1993, p.16), ambos criados pelo contrato original e representando liberdade e dominação. Nesse caso, a liberdade pertence ao homem e a sujeição à mulher, sob a qual o homem exerce direitos patriarcais criados pelo contrato. Dessa forma, a liberdade civil não é universal “[...] é um atributo masculino e depende do direito patriarcal” (PATEMAN, 1993, p. 17). O patriarcado, segundo Matos e Paradis (2014), pode ser compreendido nos dias de hoje como “[...] uma forma de organização social na qual as relações são regidas por dois princípios básicos: (1) as mulheres estão hierarquicamente subordinadas aos homens, e (2) os jovens estão hierarquicamente subordinados aos homens mais velhos” (p. 64). Essas relações sustentam-se pela dicotomia público-privado. Na esfera pública, encontra-se o que é masculino e civil, como a razão e a impessoalidade; já na esfera privada foram aglutinados o feminino e o natural, marcados pela intimidade familiar e doméstica, opondo-se ao que é público. Alguns desses elementos que envolvem o público e o privado estabilizam-se por longos períodos da dinâmica social. São os valores socialmente estáveis que permitem a determinados conceitos e preconceitos circularem e manterem-se em voga na esfera pública. A filósofa Agnes Heller define valor como uma categoria primária de prática social, sendo “um modo de preferência consciente” (apud VIANA, 2007, p. 16). Trata-se de preferência relacionada essencialmente a escolha, que passa a corresponder a um valor “quando é regulada socialmente (objetivada em costumes e normas), incluindo sua negação” e quando “contém um momento de generalização que supere sua particularidade (ou seja, o indivíduo quer generalizar suas preferências)” (idem p. 17). Esse valor é uma atribuição que fornecemos e não uma característica natural dos seres. A partir dessas concepções, emitimos juízos de valor, divididos em pelo menos dois: moral e estético. Estes se ligam ao plano de convenções sociais: inclui hábitos, moral e costumes - presentes no jornalismo, muitas vezes provocando e perpetuando naturalizações. Frequentemente, as primeiras damas são alvos de juízos morais e estéticos. Esses comportamentos julgadores são “orientados pelo mito a beleza, que colaboram para reproduzir cotidianamente valores e ideias que correspondem Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 319 a uma feminilidade domesticada” (BIROLI, 2013, p. 91). Assim, a participação das mulheres na política, e isso inclui as primeiras damas, embora não sejam agentes políticos eleitos, fica comprometida devido a uma socialização que atua para inibir a ambição política, atribuindo às mulheres responsabilidades maiores ou até mesmo exclusivas pela vida doméstica. Ratifica-se, dessa forma, a histórica marginalização no mundo do trabalho “a contraface de sua domesticidade e dificulta a construção de redes que apoiam, promovem e financiam a atuação política” (BIROLI, 2013 p. 133-134) das mulheres. Nesse cenário, os meios de comunicação não são imunes e os estereótipos “são reproduzidos de acordo com as rotinas produtivas dos meios de comunicação de massa e as perspectivas sociais dos jornalistas, definindo quais os temas e vozes que constituem as notícias” (BIROLI, 2010, p. 47). Mulheres políticas podem ser representadas midiaticamente de diversas formas. Abril (1997) afirma que aquelas que atuam politicamente se enquadram, na sua visão, como neutras, pois recebem destaque inferior ao dos homens e também ocupam menos espaços de opinião especializada ou sobre assuntos importantes: “O estereótipo a vincula com o espaço doméstico, com os assuntos privados, deixando o homem a cargo das principais decisões do espaço público: o governo, os assuntos macroeconômico e a liderança social” (ABRIL, 1997, p. 192 - tradução nossa176). As mulheres possuem menos poder político e estão menos presentes nos espaços de tomada de decisão e essa posição vincula-se ao já citado contrato sexual, mas também a “representação do mundo social (e, em particular, da política) feita pela mídia (e, em particular, pelo jornalismo) [que] contribui para perpetuar tal desigualdade” (MIGUEL e BIROLI, 2011, p. 11). A mídia contribui para naturalizar comportamentos e pertencimentos por meio de palavras e imagens e também pela seleção de atores e falas, que se tornam visíveis ou invisíveis. Um dos aspectos centrais da atuação da mídia em relação a difusão de discursos é a legitimação de determinadas falas em detrimentos de outras. Para Miguel e Biroli há uma correlação entre a visibilidade midiática e as hierarquias da política, tendo demonstrado, em pesquisa empírica, que a mídia noticiosa expõe uma visão comum da política, traduzindo-se em “[...] um noticiário homogêneo e concentrado em personagens com perfil específico: homens, brancos, com instrução superior, ocupantes de cargos públicos ou de confiança” (2011, p. 13). Desse modo, o jornalismo visibiliza somente 176. No original: “El estereotipo la vincula con el espacio doméstico, con los asuntos privados dejando al hombre a cargo de las principales decisiones del espacio público: el gobierno, los asuntos macroeconómicos, el liderazgo social” 320 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) atores já inseridos no campo político, com recursos para se fazerem ver e ouvir. Os aspectos relativos ao gênero manifestam-se no reforço dado às hierarquias, configuradas como o curso natural das relações entre homens e mulheres: “a presença mais acentuada dos homens na vida pública, sobretudo nos papéis e áreas de maior relevância, organiza o noticiário sem que seja objeto de discussão ou apareça como um problema” (MIGUEL E BIROLI, 2011, p. 14). Veiga (2010) mergulhou na rotina de jornalistas para compreender os valores e as concepções de gênero dos jornalistas, tendo revelado em seu estudo uma relação direta entre o perfil profissional e o tipo de notícia produzida, sendo o gênero determinante nessa relação. A autora explica que esta percepção não se deve somente ao fato de os profissionais serem sujeitos constituídos de gênero, “[...] mas também por serem as notícias igualmente hierarquizadas numa escala de valores, a partir de suas características, que igualmente estavam relacionadas aos atributos convencionais de gênero (fortes/leves; sérias/lúdicas; risco/ cuidado, etc.)” (2010, p. 198). Assim, expõe a existência de uma hierarquia de valores correspondentes, entre pautas e repórteres, estando as concepções de gênero presentes na idealização das matérias e na escolha de que jornalistas iriam realizá-las. Com a pesquisa de Veiga, demonstra-se o enraizamento de estereótipos de gênero e as formas como eles atuam nas representações midiáticas das mulheres, inclusive as que ocupam os espaços políticos. Por que a primeira-dama é pauta? O presente trabalho investiga a cobertura sobre a primeira-dama, Marcela Temer, no site da Folha de S. Paulo. A partir do sistema de busca do portal177, consultamos as palavras-chave178 primeira-dama e Marcela Temer, totalizando 179 notícias. Excluímos os links repetidos1798, as notícias de outros veículos, reproduzidas no site da Folha, e as assinadas pelo Sensacionalista180, definindo o corpus de análise desta publicação em 119 publicações. À luz dos estudos sobre valores-notícia e dos princípios metodológicos da Análise de Conteúdo (BARDIN, 2011, p. 47) analisou-se a cobertura sobre a primeira-dama a partir das características encontradas nas 119 notícias selecionadas. A AC, segundo a pesquisadora francesa, consiste em um con177. Foi observado o período entre 31 de agosto de 2016 até 31 de dezembro de 2017. 178. A consulta foi realizada em maio de 2018. 179. Em seções como o Painel e Colunista, o sistema de busca duplica os links quando há mais de uma referência às palavras-chave, ainda que esteja no título e no corpo de texto 180. O sensacionalista se autointitula um site “isento de verdade”, sendo marcado pelo suas postagens de humor. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 321 junto de técnicas de análise que usa mão de “procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens” que viabilizam “a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) destas mensagens”. Isto é, constitui-se como uma metodologia de sistematização de unidades de registros que permitem identificar os “núcleos de sentidos”, as estruturas e características escondidas em um texto jornalístico, por exemplo. Orientado pelos procedimentos de categorização e interpretação de dados da Análise de Conteúdo, categorizou-se as notícias selecionadas conforme os valores-notícias predominantes à cobertura e a visibilidade, notoriedade e representações sobre Marcela Temer. Inicialmente, examinou-se a presença e ausência destas categorias. Posteriormente, observou-se a frequência, revelando quais os elementos mais regulares que legitimam a cobertura sobre a primeira-dama. Em uma primeira análise, o corpus foi dividido em dois grandes grupos, de acordo com a visibilidade dada à Marcela Temer, seja como personagem central, o que ocorreu em 55,5% dos casos, ou como personagem secundária – quando sujeita ou vinculada à outros personagens, como o marido, Michel Temer – que ocorreu em 45,5%. Em seguida, identificou-se os valores-notícia (SILVA, 2014) predominantes à cobertura: Proeminência (100%), Polêmica (64,7%), Governo (38,7%), Justiça (21,8%), Entretenimento (19,3%), Raridade (16%), Tragédia (13,4%) e Impacto (11,8%). Observados esses atributos, foram estruturadas quatro novas categorias que incorporam as características dos acontecimentos em que Marcela Temer é pauta às particularidades dos estudos sobre gênero. Devido à notoriedade de Marcela Temer por ser primeira-dama, os textos marcados predominantemente pelo valor-notícia de Proeminência foram classificadas nas seguintes categorias nativas que sobressaíram da amostra: 1) primeira-dama, quando Marcela Temer acompanha o presidente ou em agendas próprias de sua função; 2) gestora pública, quando trata-se de sua importância à políticas públicas, no caso, o Criança Feliz; e 3) mulher, quando são abordadas suas atribuições privadas e familiares – mulher, mãe, esposa, filha. As pautas que abordaram Marcela Temer como mulher foram maioria. Para compreender as nuances dessas notícias aplicamos para nossa análise as categorias de Biroli (2010) usadas para discutir a representação que as revistas brasileiras fizeram de Dilma Rousseff, Heloísa Helena, Marina Silva e Marta Suplicy entre 2006 e 2007. A primeira delas é Personalidade e Feminilidade, destacando a personalidade das personagens, que se entende, em sentido am322 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) plo, como “[...] um modo de ser próprio a um determinado indivíduo, que o caracterizaria, incluindo o que se costuma chamar de temperamento, assim como comportamentos, hábitos e gostos” (2010, p. 287). A segunda é a Corporalidade, que envolve as “referências aos corpos das personagens, com destaque para a aparência física” (2010, p. 290), sendo tais referências uma forma de representar a existência pública das personagens. A terceira é a vida privada, que consiste “em menções a aspectos da vida entendidos comumente como do âmbito pessoal, íntimo, doméstico, afetivo, não-público” (BIROLI, 2010, p. 294). Os papéis oficiais de Marcela Temer: primeira-dama versus gestora Vago desde que Marisa Letícia deixou a função em 2010, o posto de primeira-dama voltou a ser ocupado em 31 de agosto de 2016 por Marcela Temer, com o desafio de ser embaixadora do programa governamental Criança Feliz181. O programa foi pauta em 17 das 119 notícias que a mencionaram. Nesse ínterim, as quatro pautas mais abordadas tiveram relação, por ordem de ocorrência, com temas relacionados à censura182 (25,2%); eventos presidenciais (16,8%), vida pessoal (15,1%) e Criança Feliz (14,4%). Aparecem ainda o estilo de vida (10,9%) e a clonagem do celular (6,7%) da primeira-dama. Tabela 1. Tipo e Frequência da Proeminência Fonte: Elaboração própria. Em meio às notícias que abordam atividades do âmbito pessoal e as agendas oficiais, Marcela é pauta predominantemente pela sua importância ao nú181. O Programa Criança Feliz foi lançado em outubro de 2016. 182. As pautas sobre censura respondem a um curto período de tempo: 10 a 18 de fevereiro de 2017, quando o veículo publicou uma série de notícias sobre a suposta censura que estaria sofrendo. A pedido do Palácio do Planalto, a 21ª Vara Cível de Brasília concedeu liminar obrigando a retirada de reportagem que detalhava a tentativa de extorsão contra a família Temer por um hacker que assumiu ter clonado o celular de Marcela. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 323 cleo familiar. Em 55,4% do noticiado, ela é representada no perfil de mulher, englobando seu papel de mãe, irmã e filha. Em 32,8%, prevalece-se o status de “primeira-dama”, enquanto em outros 11,8% retratam a função de gestora pública. Nota-se que os fatos sobre a intimidade de Marcela são superiores à soma de notícias que relatam as experiências como administradora pública e primeira-dama. Considerando somente as notícias em que Marcela é a personagem central, destacamos os dados referentes às notícias com valor de Proeminência. A ordem dos perfis permanece a mesma, tendo apenas um leve aumento. Assim, o seu papel de mulher continua o mais destacado, com 60,6%; seguido de “Primeira-dama”, com 21,2%; e, por último, a “Gestora”, com 18,2%. Sendo gestora, assume uma postura de protagonista perante o “Criança Feliz”, para o qual foi escolhida como embaixadora. O jornal, ainda que aborde as polêmicas em torno do programa social, mostra Marcela Temer como coordenadora dessa política social, responsabilizando-a pela agenda e efetivação, num movimento de certa forma contraditório entre as “Marcelas” expostas e os comportamentos cobrados mais frequentemente na cobertura. A Marcela mulher Como dissemos anteriormente, mesmo as referências à Marcela primeira-dama revestem-se do caráter privado, de seus gostos e personalidade, ainda que ela seja tomada como personagem secundária dessas notícias. Apresentamos agora as categorias utilizadas por Biroli (2010) para expôr formas de representação de mulheres que ocupam espaços políticos. Veja a comparação na Tabela 3. Tabela 2. As representações de Marcela como mulher Fonte: Elaboração própria. A partir dos valores expostos, detalhamos as categorias a seguir. 324 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Corporalidade Demarcada pela referência ao corpo, a “corporalidade” se encontra em 17,6% do total de notícias. Em 21 dessas ocasiões, a beleza de Marcela aliada ao seu vestuário é estampada no jornal. Em destaque, o estereótipo de uma primeira-dama na casa dos 35 anos, apresentada como uma mulher com requinte e que atende aos padrões da moda. Protagonista em 12 notícias das quais foi personagem central, a natureza física de Marcela é mostrada em ocasiões diferentes. Evidenciada pela capa da revista Veja, a frase “bela, recatada e do lar”, ganha vida em coluna183 com tom crítico ao Governo Temer. Aqui, mesmo em em primeiro plano, é subordinada a figura do marido. A sua aparência também ganha destaque em reportagem que conta a tentativa de suborno, onde ameaçavam divulgar suas fotos familiares – segundo especulação da reportagem, seriam imagens íntimas de Marcela Temer. Em outras ocasiões, e com maior frequência, ela é comparada a outras primeiras-damas e ganha centralidade na comercialização de roupas femininas. Para além de uma comparação entre o comportamento esperado de uma primeira-dama, Marcela Temer é associada à beleza de outras mulheres na mesma função. Em matéria184 no caderno Mundo sobre Melania Trump, ex-modelo e primeira-dama estadunidense, Marcela Temer é intitulada como “exemplo de ‘primeiro-damismo’ sexy e ocidental”. No mesmo patamar, também citam a francesa Carla Bruni e a mexicana Angélica Riveira, reforçando visões de beleza e estilo de vida estereotipadas (ABRIL, 1997). Seus atributos físicos ainda se submetem a um mercado segmentado com forte impacto ao mundo feminino: a moda. Sua beleza é associada a um vestido utilizado em cerimônia do Dia da Independência. A jornalista Mônica Bergamo185, em sua coluna, afirma que a peça no valor de R$ 618 tinha se “tornado febre entre clientes de grife”. Personalidade de feminilidade Com foco nos hábitos e gostos que compõem a personalidade ou modo de ser de um indivíduo, a Personalidade e feminilidade de Marcela Temer aparece em 32,8% das notícias (39), trazendo-a como personagem central em 12 delas. De recatada à uma figura disciplinada, com capacidade de oxigenar o 183. “Primeira-dama! Tudo loira!”. Veiculada no dia 11 de outubro de 2016. 184. “Estilo da família de Donald Trump levará mais ‘flashes’ à Casa Branca”. Veiculada no dia 16 de novembro de 2016. 185. “Vestido de R$ 618 usado por Marcela Temer vira febre entre clientes de grife”. Veiculada no dia 09 de novembro de 2016. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 325 governo, a personalidade de Marcela é representada entre a posição social de esposa e mãe e de uma primeira-dama com protagonismo político. A “bela, recatada e do lar” é abordada pelo seu recato que acompanha a personalidade de ser de pouca conversa – pelo menos, em público. Em mais de uma ocasião, a entrevista186 de Michel Temer no Dia das Mulheres sobre o quanto as mulheres fazem “pela casa, pelo lar [...] pelos filhos” é rememorada. Acentua-se uma imagem feminina subordinada à presença masculina, cuja a responsabilidade sobre a família e as tarefas domésticas pesam sobre a figura feminina. Ainda no âmbito familiar, incorporam-se os sentimentos de Marcela Temer ao momento vivenciado por Temer. Em meio às acusações contra o Chefe do Poder Executivo no caso da JBS, Mônica Bergamo187 informa que o “clima de baixo astral” dela estaria “piorando as coisas para o presidente”. Uma associação que confunde os limites entre a esfera pública e privada, entre a função de primeira-dama, de esposa e de ser humano. Quando em posição com maior destaque governamental, a personalidade suave de Marcela é enfatizada como um divisor de águas em relação à imagem sisuda do presidente. Os elogios à personalidade e beleza se configuram como uma estratégia de popularidade ao governo Federal. Reitera-se o papel de subordinada, visto o desinteresse do Planalto em não “dar à mulher de Temer a aura de formuladora nem de gestora de programa social”, conforme descrito pela jornalista Natuza Nery, no caderno Poder188. Vida privada As menções a aspectos da vida entendidos como de âmbito pessoal, íntimo, doméstico, afetivo, não-público, esteve presente em 55,5% (66) do total de notícias sobre Marcela Temer. Destas, 40 notícias trouxeram-na como personagem central. Ainda que exerça outros papéis descritos anteriormente, o caráter pessoal é sublinhado em toda a cobertura, destacando comemorações e datas oficiais e a vida íntima da primeira-dama e de seus familiares. Notícias sobre a viagem de réveillon, a mudança de residência e até a vida de parentes de Marcela Temer equivalem a acontecimentos governamentais. Uma atividade familiar como a passagem do ano novo na base militar em Restinga de Marambaia é pauta da editoria Poder189, tendo como informação importante o fato 186. “Tenho convicção do que a mulher faz pela casa’, diz Temer no Dia da Mulher”. Veiculada no dia 08 de março de 2017. 187. “Temer demonstra abatimento e preocupa amigos mais próximos”. Veiculada no dia 03 de março de 2017. 188. “Governo adere ao primeiro-damismo para suavizar imagem sisuda e masculina”. Veiculada no dia 06 de outubro de 2016. 189. “Temer tira folga e viaja para Réveillon em base militar no Rio”. Veiculada no dia 29 de dezembro de 2016. 326 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de a primeira-dama ter pedido para que a “folga” do presidente se estendesse até o dia quatro de janeiro. Em outra ocasião, a decisão da família em se mudar para o Palácio Alvorada ganha tons particulares. Ao informar, no caderno de política190, sobre a reforma e as vontades de Marcela Temer ao mobiliar o quarto do filho “Michelzinho”, tenta-se conceder dimensão pública a um momento privado; fato repetido quando Mônica Bergamo191 notícia que a irmã de Marcela publicou mensagem com “pedidos” para a eleição. Marcela Temer, em seu âmbito pessoal é exposta também por meio de reportagem sobre sua mãe. Intitulada “Bela, animada e da balada: como a sogra de Michel Temer se diverte”21, a matéria é um exemplo. Acompanhando uma festa de pré-carnaval que Norma Tedeschi participou, a repórter especializada em coluna social apela para particularidades de uma vida social. Relatando o horário que foi embora, o estilo de roupa que ela e seus acompanhantes vestiam, as selfies que tirou e o ritmo que a levou para a pista de dança. Tenta a todo custo criar uma familiaridade que gere interesse pela notícia. Chamando-a de “primeira-sogra” e com aspas em que Norma Tedeschi brinca dizendo ter a permissão da “filha e genro”, reproduz-se um comportamento aceitável de uma mulher e mãe de uma primeira-dama, subordinada à filha e seu marido. A vida social de um parente de Marcela Temer acarreta uma curiosidade, novamente, trazendo a cobertura jornalística para o cunho pessoal. Em nenhum momento dentro do escopo analisado noticiou-se, por exemplo, sobre a mãe do próprio presidente ou qualquer familiar dele em atividades particulares. Considerações finais O padrão de cobertura do veículo revela uma preferência por representar o lado pessoal de Marcela Temer. Notória pelo papel de primeira-dama, as atribuições privadas e familiares dela recobrem as pautas que venham a conceder um papel de maior protagonismo governamental. Do total de notícias envolvendo seu nome, a primeira-dama aparece como personagem central em 55,5% delas. Contudo, quando olhamos de forma mais minuciosa as pautas abordadas, percebe-se que 40,3% delas são compostas majoritariamente de aspectos de sua vida pessoal. Faz-se relevante destacar que é Marcela Temer quem protagoniza todas as notícias que envolvem a vida privada da família Temer, reiterando a associação entre as mulheres e ambiente doméstico, fami190. “Temer se mudará para o Alvorada após adaptar quarto para Michelzinho”. Veiculada no dia 14 de outubro de 2016 191. “Irmã de Marcela Temer posta mensagem com pedidos para a eleição”. Veiculada no dia 29 de setembro de 2016. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 327 liar, enquanto os homens se aventuram no mundo político e não dispõem de tempo para a vida doméstica. O mesmo não ocorre, contudo, nas pautas que tratam da participação de Marcela Temer em eventos presidenciais, nas quais aparece de forma subordinada ao presidente, nesses casos como personagem secundária. Na função de primeira-dama, Temer é representada como esposa do presidente, com um estereótipo de beleza e fiel ao comportamento esperado para o cargo. Em pauta, sua forma de se vestir e de se portar, a presença junto de Michel Temer em agendas oficiais, ações beneficentes e cerimônias típicas da função. Aqui, exerce um papel institucional de subordinação à figura presidencial que remete às discussões do contrato sexual de Pateman (1993) e demarca uma cobertura que corresponde às expectativas normativas de comportamento, como destaca Biroli (2010). Entre o papel público (gestora e primeira-dama) e o papel privado (mulher), vislumbramos pistas do que seriam o contrato social, de liberdade masculina, e o contrato sexual, de sujeição feminina, atendendo ao “direito”do patriarcado, no qual Matos e Paradis (2014), identificam que as mulheres são hierarquicamente subordinadas aos homens, justamente pela dicotomia público-privado. Nos casos em que é abordado o programa social Criança Feliz, a abordagem não varia. Em nenhum momento há a discussão sobre o impacto de tal política social ou uma análise aprofundada sobre a sua proposta. Inclusive, o próprio programa pode ser interpretado de uma perspectiva maternal e feminina, socialmente estabelecida, de cuidado com o outro (nesse caso as crianças), sempre normativamente associado às mulheres. Percebe-se ainda que há uma priorização dos conflitos e polêmicas que envolvem o fato de ser Marcela Temer a embaixadora do programa ao falar sobre ele. Assim, entram em conflito a figura da gestora, pouco apresentada ou discutida, com a figura da mãe, esposa, filha, primeira-dama, cobrando-a pela execução da política pública ainda que não seja apresentada, pelo jornal, como uma gestora com capacidade de decisão, e sim como uma cumpridora de funções, obedecendo a agenda pública do marido. Com isso, confirmamos a visão de Abril (1997), de que as mulheres políticas, ainda que não eleitas, como é o caso de Marcela Temer, recebem destaque inferior aos homens quando estão em pauta assuntos importantes. 328 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A autoridade masculina evidenciada pelas relações entre o casal presidencial demonstra a prevalência de uma hierarquia de gênero na cobertura noticiosa que reitera o padrão vigente, estando a esposa à frente das questões domésticas, ainda que também esteja inserida no ambiente de trabalho formal – como primeira-dama, nesse caso – que aparece em segundo plano. Assim, o que poderia caracterizar-se como uma oportunidade de romper a “inércia estrutural que as mantém afastadas dos espaços decisórios” (MIGUEL, 2014, p. 94) permanece sendo um espaço demarcado pela figura de sustentação, a que é “ajudante” do marido e dá a ele as condições necessárias para que continue exercendo seu poder. Percebe-se, ainda , que há uma relação entre a visibilidade midiática e as hierarquias políticas, mantendo o padrão de cobertura com destaque para homens, portadores do poder, atores comumente inseridos no ambiente político-midiático. Referências ABRIL, G. Teoria general de la información. Cátedra, 1997. BIROLI, F. Autonomia e desigualdades de gênero-contribuições do feminismo para a crítica democrática. Horizonte, 2016. BIROLI, F. Limites da Política e Esvaziamento dos Conflitos: o Jornalismo como Gestor de Consensos. Revista Estudos Políticos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 6, p.126-143, jan. 2013. BIROLI, F. Mídia, tipificação e exercícios de poder: a reprodução dos estereótipos no discurso jornalístico. Revista Brasileira de Ciência Política, n. 6, p. 71-98, 2011. BIROLI, F. O público e o privado. In: MIGUEL, L. F.; BIROLI, F. Feminismo e política. São Paulo: Boitempo, p. 31-46, 2014. COOK, T. E. O Jornalismo Político. 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Por meio do método de análise de conteúdo, da socióloga francesa Laurence Bardin, duas categorias foram delimitadas: a) referencial teórico sobre relações de gênero; b) perfil do pesquisador. Os resultados preliminares sugerem que há pouca produção relacionada à temática no âmbito do jornalismo, no decorrer dos últimos 40 anos. Palavras-chave: Intercom; Análise de conteúdo; Jornalismo; Relações de gênero. Introdução Esta pesquisa investiga a produção de estudos sobre as relações de gênero, no âmbito do jornalismo, apresentados nos eventos promovidos pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom) desde sua fundação, em 1977, portanto contempla 40 anos (1977-2017). Por meio do Portal de Livre Acesso à Produção em Ciências da Comunicação da Intercom – Portcom (http://www.portcom.intercom.org. 192. Doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP, pós-doutorado pela UMESP e estágio de pesquisa junto ao departamento de Rádio, Televisão e Cinema da Universidade do Texas. É docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade de Sorocaba (Uniso). E-mail: martinez.monica@uol.com.br 193. Graduada em Filosofia e mestranda em Comunicação e Cultura pela Universidade de Sorocaba (Uniso). E-mail: vanessa_heidemann@hotmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 333 br/) – chegamos ao corpus de 26 artigos, apresentados entre 2001 e 2014. Dado o longo período de quatro décadas, o corpus rastreado, de apenas dois dígitos, sugere resultados semelhantes a outro estudo recente (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p.1-23), que também aponta um déficit no contexto dos estudos de jornalismo sobre a questão das relações de gênero nos trabalhos apresentados no encontro anual da Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Assim, por um lado, “o campo de estudos de gênero, multi e interdisciplinar, gestado na relação anterior entre academia e feminismo, ocupa um lugar fundamental em pesquisas vinculadas às humanidades” (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p. 2). Por outro – e ainda que se compreenda “a complexidade do conceito gênero exige um conjunto interdisciplinar e pós-disciplinar de discursos” (BUTLER, 2017, p.13) –, esses estudos estão sendo, até o presente momento, majoritariamente conduzidos por pesquisadores de outros campos do saber que não o jornalismo. Buscar mapear de que maneira pesquisas relacionadas às questões de relações de gênero estão sendo desenvolvidas, no âmbito do Jornalismo, na Intercom é, portanto, o objetivo deste capítulo. Para desenvolver a proposta optamos pelo uso do método de análise de conteúdo proposto pela socióloga francesa Laurence Bardin (2011). Nossa escolha baseia-se a partir dos resultados da pesquisa realizada em 2015, pelos pesquisadores brasileiros Monica Martinez e Arquimedes Pessoni, sobre o uso do método de análise de conteúdo empregado em trabalhos de Jornalismo no contexto da Intercom, no período de 1996 a 2012. A pesquisa aponta, por meio de estudo bibliométrico, que a obra desta socióloga francesa se destaca como a principal referência para discorrer sobre o conceito, a história e a prática do método (MARTINEZ, PESSONI, 2015). A questão das relações de gênero Esse estudo, naturalmente, não tem a intenção de mergulhar na gênese e no desenvolvimento dos estudos de relações de gênero, mas antes traçar um breve panorama para ilustrar como os estudos em jornalismo se integram ao campo. Dessa forma, as discussões acerca das relações de gênero permeiam a contemporaneidade, visto que as mulheres permanecem tendo de lutar pela igualdade de direitos em relação aos homens, seja nas esferas privadas, como a do próprio corpo, às interacionais, como nas relações amorosas e criação dos 334 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) filhos, às profissionais, caso da atuação no mercado de trabalho e ocupações dos espaços públicos, como representatividade política. Podemos afirmar que “durante anos, séculos, as mulheres estiveram excluídas da possibilidade de fazer ciência e de contribuir para a produção de conhecimento científico e/ou filosófico. As religiões, e depois as próprias organizações científicas, se incumbiram dessa opressão” (MATOS, 2008, p. 333). No final do XIX, e início do século XX, as mulheres das sociedades ocidentais lutaram pelo direito ao voto e a educação, elas ficaram conhecidas como feministas sufragistas. No Brasil, a cientista natural Bertha Lutz (18941976) foi uma importante representante do movimento (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016). Em 1949, a filósofa existencialista e francesa Simone de Beauvoir (19081986), por meio da obra O Segundo Sexo, discute a construção da imagem da mulher segundo a perspectiva do homem – o que seria uma crítica que abarcaria obras amplamente referenciadas como a de Bordieu (BOURDIEU, 2012). O desenvolvimento desses estudos gerou uma série de questionamentos sobre o direito das mulheres em relação ao próprio corpo e em relação à naturalização do papel desempenhado pelo homem e pela mulher na sociedade (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016) ou, como coloca o sociólogo francês, na des-historização e na eternização das estruturas da divisão sexual e nos princípios de divisão correspondentes (BOURDIEU, 2012, p. 5). A reboque dos movimentos feministas desenvolveram-se expressivamente nos países ocidentais, a partir dos anos 60 do século passado, os estudos sobre mulheres. Num primeiro momento, estudos sobre a condição feminina, brigando pela igualdade entre os sexos, pela não discriminação das mulheres, pelo seu direito à participação no mundo público, por oportunidades iguais de educação, de trabalho, de participação política, em cargos de chefia nas empresas, nos serviços públicos. Uma luta que, como revela a prática, ainda está em curso (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p. 5). A partir de 1980, há uma nova guinada no movimento feminista, o âmbito acadêmico passa a compreender a questão de gênero como um estudo que “enfatiza a construção relacional de masculinidades e feminilidades” (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p. 7). Desde então, há uma busca por compreender as relações de gênero no que concerne o sexo versus o gênero. As pesquisadoras Marlene Neves Strey, Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 335 Cíntia da Silva Brzezinskia, Izabel Bücker e Rogéria C. Escobar afirmam que os debates dos últimos dois séculos evidenciaram a importância de abandonar a ênfase em categorias universais e explicações unicausais sobre a situação da mulher. Elas defendem a necessidade de serem realizados estudos comparativos relacionados à temática, tanto por áreas geográficas e culturais quanto por fatores históricos. Apontam também para a importância de compreender “o estudo do gênero como elaborações geradas por processos sócio-culturais específicos responsáveis pelas relações de desigualdade entre homens e mulheres” (STREY et al., 1997, p. 84). Nesse sentido, vinte anos depois, os resultados das pesquisas levam a crer que nesse contexto o termo paridade seria mais contemporâneo. Alguns estudos sugerem que a diferença entre estudar sexo e gênero pode ser compreendida se “pendendo para o lado de considerar que mulheres e homens são construídos basicamente a partir de diferenças biológicas, está o construto de sexo, enquanto a consideração de que essas diferenças são culturais é uma ideia defendida com base na construção teórica do construto de gênero” (PEREIRA, 2012, p.80), ou então, que “os estudos de gênero têm a ênfase metodológica na relação entre as construções simbólicas do gênero e a estrutura social, assim como na importância de detectar a variabilidade e a mudança nas suas construções” (STREY et al., 1997, p. 84). Em relação aos estudos sobre as questões de gênero no Brasil, essa paridade parece ocupar posição central nas reflexões: “se fôssemos fazer uma história cronológica desses estudos no País, constataríamos que o seu início foi marcado pelas preocupações com as questões de gênero no trabalho, na saúde, na política e na família” (SCAVONE, 2008, p. 178). Os estudos acerca do tema gênero “apontam que as relações de gênero não se dão apenas entre homens e mulheres, mas entre homens e homens, entre mulheres e mulheres, entre adultos e crianças e idosos” (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p.8), e que essa nova categoria “abriu possibilidades conceituais para os estudos de masculinidades, bem com ampliou os espaços acadêmicos dos estudos de sexualidades, objeto comum das militâncias acadêmicas e de movimentos feministas, gays e lésbicos” (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p.8). O surpreendente, nesta questão, é que essas pesquisas, em alguma medida, parecem não englobar os estudos pioneiros sobre a condição feminina, apresentando, por extensão, lacunas históricas do próprio desenvolvimento do campo. 336 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Procedimentos metodológicos O corpus que constitui esta pesquisa foi rastreado por meio do Portal de Livre Acesso à Produção em Ciências da Comunicação da Intercom – PORTCOM (http://www.portcom.intercom.org.br/), no dia 21 de maio de 2018. Foi utilizada a palavra gênero no campo de busca e selecionada a categoria trabalhos em eventos com o propósito de rastrear as produções sobre as relações de gênero no âmbito do jornalismo. A pesquisa retornou um total de 412 trabalhos, dos quais, os relacionados a gêneros jornalísticos194 e apresentados em outras áreas não foram considerados o que, ao final, resultou em um corpus de 26 artigos. Os trabalhos podem ser consultados nas referências. Após o download dos trabalhos, foi feita uma leitura flutuante (BARDIN, 2011, p.26). A partir dela foi possível delimitar duas categorias de análise: a) referencial teórico sobre relações de gênero; b) perfil do pesquisador. Uma segunda leitura foi realizada e, a partir dela, tabelas foram organizadas. A primeira, com os referenciais teóricos utilizados nos artigos. A segunda, contendo ano da apresentação dos artigos, título dos trabalhos, nome dos pesquisadores (as), a titulação, a instituição a qual estavam vinculados no momento da apresentação da pesquisa e o Estado da instituição. Análise de dados Os trabalhos encontrados no Portcom foram apresentados entre os anos de 2001 a 2014 conforme apontado na Tabela 1. Tabela 1 Distribuição de Trabalhos sobre relações de gênero apresentados em eventos da Intercom (2001-2014) Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 É perceptível a crescente produção relacionada ao tema. No entanto, destaca-se a lacuna nos últimos três anos (2015, 2016, 2017), que tiveram 194. Há que se lembrar que o termo gêneros faz tradicionalmente parte da agenda acadêmica da área de comunicação, referindo-se a formatos narrativos específicos do jornalismo, alguns até do jornalismo brasileiro, como a questão das crônicas (Melo, Laurindo e Assis, 2012). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 337 eventos altamente reportados pela mídia, a exemplo da encenação de crucificação interpretada pela atriz transexual Viviany Beleboni, na 19° Parada do Orgulho Gay em São Paulo (NOVAES; ANDRADE; BARJA, 2015), bem como os debates relacionados à violência contra a mulher e ao projeto de Lei 13.104/2015, que “prevê o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio” (MELLO, 2015). Constata-se, portanto, a necessidade de estudos mais aprofundados sobre como se processa a relação entre os temas de investigação acadêmica e os acontecimentos midiáticos, o que geraria uma abordagem interessante sobre o que seria, num certo sentido, os valores-notícia (SILVA, SILVA, & FERNANDES, 2014) para a comunidade acadêmica, isto é, quais os acontecimentos são percebidos como suficientemente relevantes para serem transformados em pesquisa. A análise também apontou que 38% dos trabalhos (10 dos 26) foram apresentados no Intercom Júnior – Jornalismo (SILVA; MARCONDES, 2014, FREITAS; GARLAÇA, 2014, BORGES; LEAL, 2014, LOURES, CARVALHO, 2014, CUNHA; LEAL, 2014, GRIJÓ, 2014, SILVA; SOUZA, 2012, SCHULTZ; GARCIA, 2011, LEMOS, 2011, SANTOS; VELOSO, 2009). Trata-se de um espaço acadêmico que acolhe graduandos e recém-graduados no Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação (Intercom) e nos congressos regionais da entidade.195 Esse dado mostra o crescente interesse dos jovens pesquisadores com a temática das relações de gênero. Referenciais teóricos Em relação aos referenciais, percebemos uma diversidade de autores utilizados para fundamentar o quadro teórico sobre relações de gênero, fenômeno que possivelmente está relacionado aos diferentes temas englobados. Com a falta de referenciais comuns, trabalhos que abordam a violência contra a mulher não citam necessariamente os mesmos pensadores de outros estudos, que se dedicam a investigar questões relacionadas à homossexualidade, por exemplo. Como foi notado referenciais que se repetem, mesmo em trabalhos distintos, optou-se por evidenciar os autores (as) que são citados mais de uma vez. O resultado são 15 autores (as) mais citados, sendo 87% autoras e 13% autores. Uma possível explicação seria o fato de haver um número maior de pesqui195. Informações obtidas no site da Intercom - Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação <http://www.portalintercom.org.br/eventos1/intercom-junior/apresentacao4>. 338 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sas realizadas por mulheres que se dedicam ao tema do feminismo/feminino. A pesquisadora brasileira Dulcília Buitoni se destaca perante outros (as) autores (as), como Bruno Leal, Diva do Couto Gontijo Muniz, Eva Alterman Blay, Guacira Lopes Louro, I.B.Heleieth Saffioti, Joan Wallach Scott, June E. Hahner, Lia Zanotta Machado, Miriam Pillar Grossi, Pierre Bourdieu, Sandra Raquew dos Santos Azevedo, Simone de Beauvoir, Susan Besse e Wânia Pasinato, conforme explicitado no Gráfico 1. Até hoje, sua obra Mulher de papel é considerada um clássico, onde “a autora fez uma importante e rica retrospectiva da trajetória das publicações para público feminino, mostrando que já na primeira metade do século XIX, após a tardia introdução da imprensa no Brasil, surgiram periódicos voltados para as mulheres” (LIMA, 2007, p. 222). Além da contribuição relacionada à própria história da mulher na imprensa, a autora ganha destaque, pois “ao abordar a imprensa feminina no país a obra toca em questões mais abrangentes, como o papel social da mulher e sua participação política crescente nas últimas décadas” (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016, p. 9). Gráfico 1 Referenciais teóricos mais utilizados no corpus analisado Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 A seguir, Joan W. Scott aparece nas referências cinco vezes. A historiadora estadunidense é responsável por introduzir o termo gênero na História, por meio de seu artigo Gender a Useful Category of Historical Analysis, publicado em 1986. Sua influência é marcante, pois Scott: Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 339 Ao propor o uso da categoria Gênero para a análise histórica – e, por decorrência, para as Ciências Sociais –, pretende compreender e explicar significativamente o caráter relacional, transversal e variável dessa categoria analítica. Gênero é uma categoria de análise histórica, cultural e política, e expressa relações de poder, o que possibilita utilizá-la em termos de diferentes sistemas de gênero e na relação desses com outras categorias, como raça, classe ou etnia, e, também, levar em conta a possibilidade da mudança (SCAVONE, 2008, p.180). Observamos que 67% dos autores referenciados nos trabalhos são brasileiros (Azevedo, Blay, Buitoni, Grossi, Leal, Louro, Machado, Muniz, Pasinato e Saffioti), enquanto 33% são estrangeiros (Beauvoir, Besse, Bourdieu, Hahner e Scott). Essa constatação sugere que há uma busca por diálogo entre os pesquisadores brasileiros, enquanto o mesmo não acontece em relação à comunidade científica internacional. O diálogo restrito com pesquisas internacionais pode estar relacionado a um déficit na adesão da língua inglesa no âmbito da comunidade científica brasileira e ao alto custo de aquisição das publicações internacionais, em particular livros acadêmicos. Pesquisas realizadas sobre a produção de artigos para a Revista de Estudos Feministas de 2003-2014 (LAGO; UZIEL, 2014) e, posteriormente, de 2003-2015 (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016), apontam que disciplinas como Sociologia, História e Antropologia produzem mais pesquisas relacionadas ao gênero do que a área da Comunicação. Essa lacuna sugere um potencial de crescimento no campo dos estudos do jornalismo, desde que evidentemente se proceda a uma abordagem transdisciplinar, que contemple os avanços dos demais campos. Buscamos por meio da Plataforma Lattes (http://buscatextual.cnpq. br/buscatextual), a formação acadêmica/titulação dos referenciais teóricos brasileiros mais citados nos trabalhos analisados. Foram contabilizadas todas as formações indicadas pelos pesquisadores, desde a graduação até o doutorado (Gráfico 2). 340 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Gráfico 2 Formação acadêmica/titulação dos teóricos brasileiros Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 Podemos observar que disciplinas como Ciências Sociais, Educação, História e Sociologia se destacam na formação dos autores brasileiros, fenômeno muito próximo ao apontado pelas pesquisas realizadas em 2014 (LAGO; UZIEL) e em 2016 (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S.). Perfil do pesquisador Os pesquisadores que produziram trabalhos relacionados às relações de gênero no âmbito do Jornalismo na Intercom de 2001 a 2014 estão vinculados a instituições de 11 estados brasileiros: Bahia, Ceará, Goiás, Pernambuco, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e São Paulo. Por meio da observação do Gráfico 2, percebemos que os estados de Minas Gerais e Rio Grande do Norte juntos possuem 46% dos pesquisadores, enquanto o estado do Rio de Janeiro é o menos contemplado, com 2% dos pesquisadores. A quantidade de pesquisas realizadas nos estados de Minas Gerais e Rio Grande do Norte possuem contribuições das Universidades Federais de cada estado. Uma possibilidade para essa porcentagem são os grupos de pesquisa dessas instituições, que pesquisam sobre as relações de gênero. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 341 Gráfico 3 Divisão dos pesquisadores (as) por Estado Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 Explicitamos anteriormente que entre os autores (as) referenciados nas pesquisas analisadas, a maior parte é constituída por autoras. O mesmo fenômeno é observado em relação aos autores (as) dos trabalhos apresentados nos encontros realizados pela Intercom, no âmbito do Jornalismo, de 2001 a 2014 (Gráfico 3). Gráfico 4 Relação pesquisadoras e pesquisadores Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 Acerca da titulação dos pesquisadores, destacamos que o número de pesquisadoras e pesquisadores que possuíam doutorado, na época em que participaram dos encontros, é próximo, entretanto o mesmo não é observado na relação entre graduandas e graduandos (Tabela 2). Esse dado sugere o interesse de jovens pesquisadores às questões de gênero em âmbito interseccional, possibilitando uma maior diversidade de objetos de estudos. 342 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Tabela 2 Titulação dos pesquisadores (as) Fonte: MARTINEZ, HEIDEMANN, 2018 Dos 52 pesquisadores, 21 eram graduandos na época em que apresentaram seus trabalhos, sendo 16 graduandas e 5 graduandos. Esses dados correspondem, ao fato de que 38% dos trabalhos encontrados, terem sido apresentados dentro do contexto da Intercom Júnior – Jornalismo. Considerações A proposta desta pesquisa foi a de investigar as produções relacionadas às questões das relações de gênero, no âmbito do jornalismo, nos últimos 40 anos, nos eventos promovidos pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Por meio de pesquisa no Portal de Livre Acesso à Produção em Ciências da Comunicação da Intercom (Portcom) foram inicialmente rastreados 412 trabalhos. Após triagem chegou-se a um corpus de 26 trabalhos, que foram apresentados nos encontros no período de 2001 a 2014. Para analisar os artigos foi empregado o método de análise de conteúdo proposto pela socióloga francesa Laurence Bardin, tanto por ser considerado adequado ao estudo quanto pelo campo – é um dos mais empregados na área do jornalismo (MARTINEZ, PESSONI, 2015). As duas categorias delimitadas para a análise do corpus foram: a) referencial teórico sobre relações de gênero; b) perfil do pesquisador. Em relação à quantidade de trabalhos encontrados, destaca-se que 26 trabalhos é um número modesto perante os últimos 40 anos pesquisados. Por Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 343 outro lado, observa-se aqui um dos limites de estudos que empregam esse método, uma vez que a opção por outras palavras-chave poderia levar a números diferentes – o que certamente pode ser interessante objeto para novas pesquisas. A ausência de trabalhos nos anos de 2015, 2016 e 2017, contudo, é intrigante. Isso porque somente o ano de 2015 foi marcado por dois fenômenos que poderiam ser considerados relevantes para a comunidade científica do campo na época: a interpretação de crucificação da atriz transexual Viviany Beleboni, na 19° Parada do Orgulho Gay, e o projeto de Lei 13.104/2015 relacionada ao feminicídio. O que sugere a necessidade de estudos mais aprofundados sobre como se processa a relação entre os temas de investigação acadêmica e os acontecimentos midiáticos. O que poderia gerar uma abordagem interessante sobre o que seria, num certo sentido, os valores-notícia para a comunidade acadêmica, isto é, quais acontecimentos são percebidos como suficientemente relevantes para serem transformados em pesquisa. Destaca-se que 87% das referências utilizadas são de autoras, sendo a brasileira Dulcília Buitoni a mais referenciada. Outro ponto a ser destacado é que os referenciais utilizados são em sua maioria brasileiros (67%), o que se alinha com alguns estudos (MARTINEZ, 2013, MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016,) que sugerem a falta de acesso do acadêmico do campo aos estudos recentes da comunidade científica internacional, realizados majoritariamente em inglês. Ao pesquisarmos a formação acadêmica, dos referenciais teóricos brasileiros mais utilizados percebemos que as disciplinas de História, Antropologia e Sociologia são privilegiadas comparadas ao Jornalismo. Esse dado se assemelha aos resultados de pesquisas realizadas anteriormente (LAGO; UZIEL, 2014, MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016), sugerindo um potencial de crescimento no campo dos estudos do jornalismo, desde que evidentemente se proceda a uma abordagem transdisciplinar, que contemple os avanços dos demais campos. Dos 26 trabalhos apresentados nos encontros da Intercom, 38% estão inseridos dentro do Intercom Júnior - Jornalismo, que dá a oportunidade para jovens pesquisadores apresentarem suas pesquisas. Esse dado ajuda a explicar a titulação dos autores dos artigos apresentados, dos 52 pesquisadores, 21 eram graduandos na época em que participaram do evento, sendo 16 graduandas. Por extensão pode sugerir o interesse de jovens pesquisadores a estudos relacionados às questões de gênero em âmbito interseccional, possibilitando uma maior diversidade de objetos de estudos. 344 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Por meio da análise da vinculação institucional dos pesquisadores, na época em que participaram dos encontros, 11 estados são contemplados. Os estados de Minas Gerais e Rio Grande do Norte, juntos somam 46% dos pesquisadores, 23% para cada estado. Essa porcentagem pode estar relacionada aos grupos de pesquisa das instituições, sobretudo as das Universidades Federais. Tanto nos referenciais teóricos, quanto na autoria dos artigos apresentados, o número de pesquisadoras é superior em relação ao número de pesquisadores. O mesmo resultado está presente em estudo recente (MARTINEZ, M.; LAGO, C; LAGO, M.C. de S., 2016), sobre pesquisas relacionadas às questões de relações de gênero apresentadas na Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Para finalizar, destacamos a importância de que os estudos relacionados às relações de gênero em jornalismo sejam desenhados a partir de um referencial teórico transdisciplinar, que englobe a sólida tradição de outros campos, como História, Sociologia e Antropologia, mas que não descuidem também de uma revisão de literatura rigorosa no próprio campo. O que pode contribuir com pesquisas relevantes que realmente avancem no conhecimento deste que se revela um fértil campo de pesquisa em jornalismo. Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BOURDIEU, P. A dominação masculina: a condição feminina e a violência simbólica. 11ª edição. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012. BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. LAGO, M.; UZIEL, A. P. Intersecções: Psicologia e Estudos de Gênero na Revista Estudos Feministas (2003-2014). Labrys, v. 26, p. 1-10, 2014. Disponível em: <https:// www.labrys.net.br/labrys26/psy/mara.htm>. Acesso em: 20 mai. 2018. LIMA, S. L. L. Imprensa feminina, revista feminina. A imprensa no Brasil. Projeto História, São Paulo, n.35, dez. 2007. p. 221-240. Disponível em: <https://revistas. pucsp.br/index.php/revph/article/view/2219/1320>. Acesso em: 15 mai. 2018. 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Machado da SILVEIRA197 Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS Resumo O texto analisa criticamente a cobertura jornalística de ocorrências enquadradas como manifestações de Desigualdade, Violência e Drogas e que tipificam a Negatividade de exposição dos problemas sociais. O fenômeno é enquadrado como pertinente à heteronormatividade a partir da perspectiva crítica da epistemologia feminista, tomada como base para a compreensão da produção de sentidos na narrativa jornalística sobre uma determinada classe social e condicionamentos sociossemióticos que alimentam a noticiabilidade. Percebe-se no período 1994-2015 uma mudança em critérios praticados por revistas nacionais de circulação semanal que, porém, não as afasta dos cânones previstos pelo Jornalismo na assunção de um certo padrão de entendimento de sua função social e que está consagrado como uma das manifestações do masculino e aspectos correlatos. Palavras-chave: Narrativa; Jornalismo; Gênero; Noticiabilidade; Revistas semanais. Introdução O texto explicita o entendimento de que a cobertura jornalística quando alude a ocorrências enquadradas como manifestações de Desigualdade, Violência e Drogas exemplifica a hegemonia da Negatividade de exposição 196. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), bolsista CAPES. Bacharel em Comunicação Social - Jornalismo pela mesma Universidade. Integrante do Grupo de Pesquisa Comunicação, Identidades e Fronteiras. E-mail: camilahartmann@hotmail.com.br. 197. Professora titular da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde integra o quadro permanente do PPG Comunicação. É colaboradora do Mestrado profissional em Comunicação e indústria criativa da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA) e pesquisadora do CNPq. Líder do Grupo de Pesquisa Comunicação, Identidades e Fronteiras. Doutora em Jornalismo pela Universitat Autónma de Barcelona, possui estágio pós-doutoral na Sorbonne III – La Nouvelle (França) e Universidad Nacional de Quilmes (Argentina). E-mail: ada.silveira@ufsm.br. 352 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) dos problemas sociais. Essa perspectiva é aqui analisada a partir da crítica epistemológica feminista (BUTLER, 2003). A construção de narrativas jornalísticas sobre a periferia traz a percepção do aumento de visibilidade midiática dos moradores de tal espaço a partir de seu crescimento econômico e perpassa pela caracterização de uma certa reconfiguração do Jornalismo. Compreender como a narrativa jornalística produz sentidos sobre uma determinada classe social pertinente aos espaços periféricos e quais os condicionamentos sociossemióticos que alimentam a noticiabilidade tal como ela chega aos leitores enquanto produto de consumo cultural é o propósito que anima a investigação ora relatada. Martinez, Lago e Lago (2016) levantaram a ausência de tradição de abordagens de gênero nas pesquisas em Jornalismo apresentadas na Sociedade Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). Seriam Veiga e Fonseca (2011) que observariam, numa das raras abordagens apontadas, que o gênero como categoria analítica demarca aspectos relacionais e teórico-espistemológicos e faz-se fundante e constitutivo do social, “um padrão normativo que orientou seus valores pessoais e profissionais nas tomadas de decisão, o que resultou em discursos noticiosos marcados por valores sociais hegemônicos que reforçam hierarquias e desigualdades a partir de alguns marcadores sociais” (VEIGA; FONSECA, 2011, p. 183). Imersa no ambiente de uma redação, em outro relato, Veiga (2014) captou como ali intervêm as escolhas profissionais e seu compartilhamento a partir de aspectos de gênero. A autora não constata apenas que o Jornalismo está marcado pelo gênero masculino. Ela entende que tal vem a ser seu poder hierarquizante que, ademais de estabelecer características de acontecimentos noticiosos, o padrão heteronormativo orienta outras condições que adjudicam privilégios, como aqueles provenientes de certa classe social, raça, geração e sexualidade (BUTLER, 2003), proporcionando assim sua tipificação. Trabalhando em outra perspectiva, Deuze e Witschge (2015) questionariam a centralidade que as redações ocupam nos estudos de Jornalismo; os autores duvidam de sua solidez e coerência na atualidade. Ao apontar a elitização da profissão, contrapõem a precariedade das condições de trabalho, sua mutação estrutural no capitalismo pós-industrial e os parcos salários, entendendo que se trata de uma classe especial de pessoas (DEUZE; WITSCHGE, 2015, p. 12). Em que pese as posições distintas, recolhe-se dos autores referidos que o padrão presente na atividade jornalística (VEIGA, 2014), a par das profundas transformações vigentes na atividade profissional de uma categoria especial - a dos jornalistas e seu tumultuado quotidiano de trabalho (DEUZE; WITSCHGE, 2015) -, colabora a sua maneira para a reprodução e consagração das desigualdades sociais. Tomando em consideração tais aspectos, produziu-se uma análise sobre a Negatividade da exposição da periferia na noticiabilidade construída pelas quatro principais revistas semanais de circulação nacional. Com o desenvolvimento da análise, emergiram enquadramentos agrupados em aspectos como: Drogas, Violência e Desigualdade. Tais aspectos, em articulação com as categorias de ausência de compaixão, desprezo pelos vínculos sociais manifestos e reprodução dos padrões de desigualdade, resultaram nas considerações formuladas adiante, elencadas a partir dos destaques de capas das revistas Carta Capital, Época, IstoÉ e Veja. Duas dessas capas podem aqui ser reproduzidas (Fig. 1 e 2):198 Procedimentos de análise A análise das capas das revistas semanais de circulação nacional referidas tem escopo em uma abordagem metodológica que se define por procedimentos que reconhecem a negociação de sentidos integrante do contrato de comunicação midiática (CHARAUDEAU, 2015) em seus elementos verbais e visuais. Assim amparada, a análise se desenvolve considerando a articulação das manifestações discursivas com as estruturas sociais envolvidas no contexto de sua produção e recepção (VERÓN, 2004). Em consonância ao que prevê o 198. A revista Carta Capital, de propriedade da Editora Confiança, foi a única a conceder graciosamente autorização de reprodução da imagem das capas para as finalidades científicas da presente publicação. 354 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) projeto sociossemiótico, e ainda como substancia Landowski (2014), analisa-se a sociabilidade presente nas narrativas, avaliando criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos a elas vinculados. A negatividade da exposição da periferia Atividades do grupo de pesquisa Comunicação, identidades e fronteiras da UFSM permitiram a seleção de um corpus de capas detida no período entre 1994 e 2015. O processo encaminhou ao estudo da noticiabilidade a partir de elementos que materializam a Negatividade da exposição da periferia. Apresenta-se aqui a análise das capas que integram o que resultou articulado como os subgrupos Drogas, Violência e Desigualdade, elencados a posteriori (visto que a delimitação se deu depois da coleta do corpus). A classificação ocorreu a partir de dois grandes eixos temáticos: da Negatividade, cujas capas são em parte aqui estudadas e que datam majoritariamente da primeira década do século XXI; e da emergência do Reconhecimento da nova visibilidade, constante em Hartmann e Silveira (2018). O quadro no. 1 apresenta uma síntese com as edições estudadas na presente análise e dispostas em ordem cronológica. Quadro 1. Agrupamento da Negatividade por ordem cronológica Fonte: Elaboração das autoras. Drogas e ausência de compaixão na cobertura O primeiro subgrupo reúne quatro das onze capas levantadas, cada uma veiculada pelas quatro principais revistas semanais de circulação nacional e que versam sobre um tema contumaz na cobertura jornalística sobre a periferia. Em sua materialidade discursiva todas reportam ao uso de cocaína ou de crack. Sua recorrente referência midiática pode ocorrer em virtude da expansão do número de usuários e, consequentemente, do tráfico. Segundo levantamento realizado pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), em 2013 existiam 370 mil usuários de crack e similares (pasta base, merla e óxi) de todas as idades nas capitais brasileiras (D’ALAMA; CÉO; FORMIGA, 2013). As publicações analisadas apontam para a periferia como local privilegiado para a disseminação do tráfico e da criminalidade, ainda que a referência não se dê de maneira expressiva em todas as capas. Todas as edições, exceto a de Veja, adotam explicitamente uma postura de questionamento do papel das entidades governamentais – e, no caso da IstoÉ, da sociedade de um modo geral - no que se refere ao combate e/ou a adoção de medidas protetivas com relação ao tráfico e consumo de entorpecentes e a criminalidade. Ao estudar as capas referidas, assim como a maioria das publicações neste texto analisadas, observa-se a mobilização de elementos pré-construídos pelos enunciadores. As duas primeiras capas são construídas de maneira quase idêntica, na medida em que são compostas por três elementos principais: uma folha de dinheiro enrolada (formando um canudo para inalar a droga), o pó branco da cocaína e os elementos verbais (as manchetes e chamadas). Dentre eles, a fonte tipográfica utilizada é similar: quadrada e densa, o que confere seriedade à temática. Apesar de guardarem mais de um ano de diferença entre si, abordam o assunto com um foco parecido, relacionando três temas centrais: o tráfico e o consumo de drogas e a criminalidade. A capa de Veja (Ed. 2136, 28/10/2009) traça um panorama sobre a situação do tráfico de drogas e da violência nas favelas cariocas, caracterizando-as como o ambiente ideal para disseminação do tráfico. A manchete da capa (“quem cheira mata...”) apresenta as palavras “quem” e “mata” grifadas em vermelho, cor que remete ao sangue. O sujeito que pratica as ações (cheirar e matar) é desconhecido; assim, a participação do leitor é convocada quando o enunciador propõe a associação das palavras em vermelho, fazendo surgir uma indagação: quem mata? São os usuários de droga? Os traficantes? Os criminosos? As autoridades que agem de maneira injusta? As reticências que compõem a manchete dão ideia de uma continuidade do enunciado, permitindo inferir que o silêncio também significa. Elas podem representar a quietude que segue o barulho do tiro (conforme se depreende da arma presente na capa) ou então a presença intermitente da violência. 356 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A chamada, em continuidade, inicia com reticências. É nesse trecho que o enunciador aponta para o referencial, ainda que vago, a partir do qual constrói as 15 “verdades incômodas sobre o crime no Rio de Janeiro”, ao mencionar o assunto e o local que servem como base para a narrativa. A revista busca postular sua legitimidade ao apontar vereditos sobre o crime na “cidade maravilhosa” (SILVEIRA et al., 2016). Os juízos de valor emitidos se materializam em duas expressões, principalmente: ao mostrar que existem 14 (numeral também grifado em vermelho, ressaltado em meio aos demais termos) outras assertivas, o enunciador elege como mais importante uma delas (“quem cheira mata”); e, ademais de elencar “verdades”, afirma que são “incômodas” (aos seus leitores, que se veem obrigados a conviver com o tráfico e a criminalidade). Os recursos não verbais engendrados na capa são um canudo de uma nota de papel marrom de cinquenta reais e um aglomerado polvoroso no formato de uma metralhadora – elementos cujo simbolismo alude à articulação entre drogas (materializadas no pó que compõe a arma), violência (que tem sua manifestação na espingarda) e dinheiro (na nota de cinquenta reais). Por outro lado, a apresentação de uma arma com poder bélico expressivo evoca uma ideia que recupera uma representação frequente da dinâmica do tráfico; nos espaços periféricos, os grupos de traficantes contam com armamento pesado que permite sustentar o sistema. De acordo com o tratamento discursivo empregado pelo enunciador, infere-se que a nota de dinheiro remete à origem do tráfico. O dinheiro pode ser compreendido, desta perspectiva, como o motivo pelo qual os consumidores não só cheirem, mas também matem: para poder comprar mais droga, para livrar-se de uma ameaça do tráfico ou, ainda, contradizendo a visão corrente no senso comum de que quem cheira morre, expõe-se a realidade de matar simplesmente por desejo ou poder. A capa de IstoÉ (Ed. 2143, 08/12/2010), apesar de construída sob os mesmos referenciais da capa anterior, guarda algumas particularidades pertinentes. Nela, há um homem que representa os usuários de crack. Ele está inalando a droga com uma nota de cem reais e aparece com a cabeça baixa, impossibilitando a identificação de sua face. A figuração, corroborada pelas mãos sujas do rapaz, evidencia uma postura resignada, de quem seria dominado e refém da droga. A luminosidade construída na capa destaca um personagem que, tradicionalmente, se encontra à margem dos processos sociais, como qualquer usuário de drogas; o fundo escuro predominante dá um contraponto à luz que envolve o rapaz. A partir do recurso do jogo de luz a revista pode estar tentando legitimar seu papel social, ao destacar e/ou iluminar aspectos que, maioritariamente blindados da cena pública, merecem destaque pela dimensão que vêm adquirindo na sociedade. Esse posicionamento é reforçado através do tom incisivo com que são redigidas a manchete e a chamada da capa. Na manchete, o enunciador expressa a representatividade do consumo para a manutenção do tráfico de drogas, na medida em que o postula como a “parte mais difícil” dentre os outros percalços que envolvem o combate ao uso de substâncias químicas. O consumo também é apresentado como não tão “inofensivo”, já que o usufruto da droga ultrapassaria a simples demanda, sustentando o sistema de tráfico e representando sua “força econômica”. Além disso, sua periculosidade é reificada na chamada, que cita a (larga) disseminação das drogas “nas praias e nos mais diversos lugares”. Os demais enunciados verbais que compõem a capa também são formulados sob a mesma perspectiva da capa anterior, articulando tráfico, violência e dinheiro. Ainda no plano verbal, o enunciador propõe-se a afirmar sua legitimidade quando demarca a necessidade da “sociedade assumir sua responsabilidade e enfrentar com firmeza a questão”. A postura crítica igualmente é adotada por Carta Capital e Época, direcionada especificamente à atuação das autoridades policiais no combate ao tráfico e ao consumo de drogas. Os veículos assumem uma posição de fiscalizadores ao questionarem as medidas adotadas pela polícia carioca e paulista no tratamento dos viciados em crack a partir da internação forçada ou compulsória. O questionamento aparece de maneira explícita na capa de Época (Ed. 690, 08/08/2011), materializado discursivamente na manchete: “internar à força resolve?”. O enunciador convenciona afirmar sua legitimidade mostrando que “foi ver de perto” se essa é a medida mais eficaz para controlar o uso da droga. Contudo, não há referência ao local em que se deu tal conferência; ao leitor só é informado que os viciados pretendem ser “tirados das ruas”. Somente no interior da matéria é exposto o panorama das favelas carioca e paulista, “os morros da cidade”. O uso do termo “marra” (em referência ao modo como as autoridades pretendem tratar os viciados) condiciona uma abordagem pejorativa, na medida em que o termo é utilizado para nominar ações brutais, normalmente associadas à violência.199 Acerca da cenografia da capa, a palavra “crack” recebe destaque: ocupa 199. No que tange à difusão espacial do problema, estudos realizados no Grupo de Pesquisa Comunicação, Identidades e Fronteiras corroboram com o que se depreende nesta análise, tendo em vista que permitem apontar a falta de precisão na determinação de sua ocorrência nas metrópoles urbanas. Esse cenário remete ao tema da ambivalência na atividade jornalística em sua cobertura acerca da periferia - temática que deu origem a um conjunto de trabalhos (SILVEIRA; GUIMARÃES, 2016; SILVEIRA; GUIMARÃES; SCHWARTZ, 2017). 358 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) todo o centro da capa e é grifada em vermelho, remetendo à “dor das famílias”. Trata-se da mesma cor da camiseta do rapaz, que é figurativizado em uma postura de desespero, ajoelhado no chão, como se estivesse gritando, pedindo socorro com a boca aberta e as mãos na cabeça. O fundo escuro da capa alude a um muro ou parede, com grifos que se assemelham a um grafite e que caracterizam uma abordagem maioritariamente pejorativa sobre a periferia, um local rabiscado pelas mazelas sociais. A revista Carta Capital (Fig. 1), ao falar do crack como um “tormento nacional”, adota uma postura de generalização da “epidemia do crack”, que teria atingido um patamar elevado na medida em que seu consumo disseminou-se em várias regiões do país e não somente na periferia. O uso do termo metrópoles, na chamada, evocaria um problema de dimensões alarmantes e generalizado. E a perspectiva enunciativa através da qual a narrativa é construída evidencia os problemas que a expansão do consumo e do tráfico de drogas e a ação mal sucedida da polícia causam para a população mais favorecida economicamente, desconsiderando os efeitos desse problema entre a população periférica. Ao referir-se à Cracolândia paulistana, o enunciador mobiliza elementos pré-construídos, pressupondo que o leitor detenha a referência do local em que acontece a venda e o consumo de drogas. Ademais, deixa flagrante seu posicionamento frente à ação policial (cujo referencial não está explícito na capa, mas que se refere à internação compulsiva de usuários): “um desastre”. O enunciado materializa a atribuição de um juízo de valor essencialmente negativo e alarmante a esse ato da polícia em particular; como se a ação individualizada fosse responsável pelo alarde de uma situação antes mascarada. A última capa do subgrupo também destaca a expressão “crack” e, através da cor amarela, que faz os contornos do que denomina “tormento nacional”, Carta Capital busca ativar um alerta, chamando a atenção para um grande problema que atingiria todo o país. No que se refere ao personagem central, ele tem duas correntes enroladas ao pescoço e uma delas faz referência a um símbolo religioso – o rosário, que contrasta com o ambiente sombrio, escuro e sujo (como se vê pelas suas mãos) em que ele se encontra. A capa mostra, ainda, o objeto com o qual os usuários podem consumir o crack. E, diferentemente de outras capas do subgrupo, o enunciador não representa a droga na forma de pó. Através da pipa improvisada numa lata de alumínio, o usuário de olhos desfigurados acende uma chama. Percebe-se, neste caso, a preocupação do enunciador em preservar a identidade do consumidor, reconhecível pelos dedos da mão como talvez de sexo masculino. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 359 Violência e desprezo por vínculos sociais manifestos O subgrupo da Violência foi identificado como o viés mais expressivo da abordagem negativa sobre a periferia e reúne cinco capas de três revistas semanais. A violência urbana é usualmente relacionada a temas sociais e econômicos, como a pobreza e a segurança pública; esses fatores se congregam na cobertura jornalística acerca da periferia. Cobertura que provoca o aumento da tensão social, condicionando principalmente a um viés passional da criminalidade e da violência. Lisboa (2007, p. 2), neste sentido, argumenta que mesmo com o crescimento da criminalidade a partir de meados da década de 70 e durante as duas décadas posteriores, a violência “não evoluiu para os patamares estratosféricos alardeados pela mídia semanal”. Observam-se duas abordagens no subgrupo, que podem estar relacionadas à evolução histórica da violência - cujos índices eram alarmantes na virada do século, indo de encontro às medidas de segurança que foram sendo desenvolvidas posteriormente (muitas delas implantadas nas comunidades periféricas, como as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs)). Ainda que de efetividade contestada, dado que os números continuaram altos, as medidas abateram um pouco o modo pragmático com que eram construídas as narrativas jornalísticas. A partir da virada do século, a cobertura jornalística vai apresentar não somente os problemas que alardeiam a violência, mas também possíveis soluções para minimizá-los. Apesar da alteração específica constatada na noticiabilidade materializada nas capas, as cinco publicações enquadram-se na temática da negatividade da exposição da periferia, visto apontarem-na como lugar privilegiado para o desenvolvimento da criminalidade, especialmente protagonizada por personagens masculinos. A associação entre masculinidade, pobreza e criminalidade fica evidente na edição mais antiga deste corpus. A capa de Veja (Ed. 1367, 23/11/1994) é construída em tons de cinza, contrastando com o manto vermelho que cobre o dorso do menino de rua que pede esmola. Ele representaria as “[...] ‘crianças-bandidas’ que, saídas da periferia, amedrontam os moradores dos bairros mais abastados com seu ‘olhar ameaçador’ ou com sua simples presença” (LISBOA, 2007, p. 167, grifos da autora). A classe média, corporificada na figura do executivo de colarinho branco que dirige um carro, “tem medo” (grifado em letras garrafais brancas na manchete) da criança de cabeça preta e camisa vermelha. O motorista estende a mão como uma forma de se privar ou, conforme Veja, de se trancar contra a invasão do “país pobre”: o “outro ameaçador da segu360 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) rança [...] o pobre, filho da miséria e do crime, o morador da periferia [...]” (LISBOA, 2007, p. 38). Enquanto que na capa de 1994 o enunciador de Veja constrói o automóvel como dispositivo de segurança para os indivíduos, noutra capa veiculada em 2000 são eles mesmos que se blindam das ameaças do dito país pobre. Essa segunda capa (Ed. 1652, 07/06/2000), assim como a anterior, tem sua dimensão visual centrada em pessoas: uma família tradicional de classe média preocupada com a falta de segurança. O fato de os indivíduos estarem vestindo armaduras de guerra, usando seu corpo como ferramenta de combate à violência, remete a uma individualização da responsabilidade pela segurança. Nas chamadas, o enunciador apresenta diversos dados que dimensionam uma realidade na qual predomina a violência e da qual os moradores das “capitais brasileiras” devem se blindar. Ao citar que “há mais seguranças do que policiais”, reafirma a ideia da segurança como uma responsabilidade individual, além de apresentar uma crítica à atuação das autoridades. Veja franqueia estabelecer sua proximidade com o leitor ao marcar uma dicotomia entre a classe média (com a qual demonstra identificar-se) e os criminosos, caracterizados como aquelas pessoas que provém da periferia. Desta forma, é como se o enunciador estivesse gritando por “socorro” junto daquele grupo, como se percebe pela utilização da exclamação ao final da manchete, grifado em amarelo. As próximas duas capas a serem analisadas, apesar de construídas a partir de referenciais diferentes, utilizam a mesma estética para narrar os acontecimentos: ambas são apresentadas em rememoração à cenografia do medo e pânico, manifesto pelas cores do fogo. Outra semelhança, agora no plano verbal, é a afirmação da legitimidade das revistas a partir da criação de enunciados que ditam o que “fazer” diante da criminalidade. É importante ressaltar que nessas capas não há referência direta à periferia. Contudo, ademais da ciência de que ações sobre o tráfico e a criminalidade são midiaticamente narradas tendo como cenário privilegiado a periferia - conforme também já demonstrado até a presente análise -, a leitura das matérias internas permite identificá-la como local em que se prolifera a criminalidade. A capa de Veja (Ed. 1965, 19/07/2006) é quase totalmente preta, exceto pela figura de um caminhão em chamas, na parte inferior da capa, cujas alamedas sobem para a palavra “terror”, grifada em laranja, de forma a destacá-la do restante da manchete, em branco. A sigla da organização criminosa que promoveu os atos de vandalismo referidos na capa, Primeiro Comando da Capital (PCC), também aparece em tons alaranjados, como se fosse escrita com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 361 o fogo que emana do objeto queimado. O barrado no final da capa traz informações adicionais sobre o conteúdo interno da reportagem especial, acompanhadas da palavra “exclusivo”; por meio desse recurso, a revista convoca para si uma importância única, pelo fato de afirmar que só ela tem aquele material para informar o leitor. O destaque é reforçado pelo uso da cor amarela, como se emitisse um alerta. A revista Época (Ed. 597, 26/10/2009) busca representar, através de uma fotografia, a criminalidade intermitente que invadiria a cidade maravilhosa, dando um panorama sobre as “histórias dos conflitos em favelas” cariocas. A fumaça que sai dos ônibus incendiados se confunde com o fundo preto da capa. O carro-forte da polícia que está em movimento e que aparece no primeiro plano da imagem, em contraposição aos dois ônibus queimados que estão ao fundo, evidencia a ideia de superioridade dos militares. Ao postar o veículo militar em frente ao cenário de guerra, o enunciador parece apontar para um futuro de esperança, indicando que o combate à criminalidade andaria na mesma direção que os militares: para frente. A manchete (“Chega de guerra!”), cujo tom acinzentado remete a chamas, é construída sob um viés autoritário, reforçado pela exclamação ao final, como se o enunciador gritasse pelo fim da guerra. A fim de tomar para si o papel de dizer o que o país deve fazer para combater o crime, o enunciador constrói uma chamada interrogativa, em tom desafiador (“Quem disse que não é possível deter a violência?)” e mostra que ele tem legitimidade, sabe e quer esclarecer ao leitor “o que o Brasil precisa fazer para vencer esta batalha”. Os elementos verbais presentes na última capa deste subgrupo (IstoÉ, Ed. 2142, 01/12/2010) descrevem a atuação do governo carioca no combate à criminalidade, mostrando um posicionamento favorável do enunciador quanto à atuação policial. O estado vem a ser apresentado como responsável pelo possível e gradual combate aos crimes e à segurança da população, “que não se curva mais diante das ameaças do tráfico”. A fonte tipográfica é branca e grossa, conferindo seriedade ao tema. A cenografia é construída em tons cinzentos, em referência ao momento turbulento que vivia a cidade maravilhosa. O elemento principal da capa é a estátua do Cristo Redentor, símbolo carioca hiperbolicamente tratado como nacional. Ao observar que a estátua veste um colete do BOPE (Batalhão de Operações Policiais Especiais) com um cinto de balas, duas possibilidades de leitura podem ser esboçadas. Ela pode ser interpretada como transmitindo uma mensagem de fé nos agentes de segurança pública: da polícia e do governo cariocas através do Cristo, com sua estrutura 362 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) forte e grande, que se arma para combater a criminalidade nos morros do Rio de Janeiro; a segunda possibilidade é a de que o Cristo, com o traje que veste, está protegido pela polícia e, assim, de braços abertos, está pronto para acolher sua população e também os turistas. E, por meio da manchete (“O Rio é maior que o crime”), o enunciador afirma para o leitor que a cidade maravilhosa pode ter fé de estar segura e vencer o crime. Desigualdade e sua reprodução A característica mais evidente das duas próximas capas e que são comuns, embora de maneira não muito explícita, à narrativa que articula o viés negativo da exposição da periferia, é a oposição entre o centro e a periferia, a criminalidade e a classe média, o Eu e o Outro. Lançando mão desse tratamento discursivo, os enunciadores criam um efeito de sentido de proximidade com seu leitor. A cenografia e estética das capas do subgrupo são bastante semelhantes; as duas são coloridas e trazem o amarelo como cor predominante no plano verbal. Ambas podem ser concebidas como uma representação da desigualdade social que se inscreve no espaço urbano e que se materializa na oposição entre o asfalto e o morro. É necessário recordar que a ascensão econômica da periferia conduziu a transformações na noticiabilidade sobre essa parcela da população, que passou a ser reconhecida como um mercado consumidor emergente também de conteúdos jornalísticos, a chamada “nova classe média” (NERI, 2008, 2010; SOUZA, 2010; RICCI, 2016). A capa de Veja (Ed. 1684, 24/01/2001) apresenta como elemento central um conjunto de prédios, condomínios e arranha-céus localizado em uma área verde e bem conservada. Parte da imagem está colorida, em contraposição à desordem urbana representada por um aglomerado de casebres cinza agrupados ao redor da metrópole. À medida que se afasta dos edifícios luxuosos, o cromatismo cinzento escurece, chegando quase ao preto nas bordas da capa. Uma clara demonstração da oposição centro x periferia, em que a última (conforme evidenciado na manchete) faria um cerco às classes mais altas. Os elementos verbais corroboram a ideia que norteia a composição visual da capa, versando acerca dos problemas que a expansão dos espaços periféricos causa para as metrópoles brasileiras. A problematização operada pelo enunciador na capa (e cujo foco permanece durante a reportagem) não gira em torno das dificuldades do contingente populacional que cresce de maneira abrupta e deDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 363 sordenada, mas sobre como seus problemas afetam a elite. O Outro, neste caso e consoante compendia Prado (2005, p. 47), é construído a partir de uma perspectiva ameaçadora, que intimidaria a classe média. A noção é reificada através da posição central da imagem, na medida em que há uma leve inclinação inferior do olhar, de cima para baixo, na parte colorida, favorecendo uma ideia de inferioridade das classes altas, contrariamente aos casebres que estão na mesma linha de visão do leitor. Na capa, portanto, destoando da abordagem jornalística predominante, é a classe média que está no morro, tentando refugiar-se da periferia. A associação entre marginalidade e status social está presente na narrativa jornalística sobre a periferia há muito tempo, conforme apontou-se já na primeira capa analisada, também de Veja (1994). Em oposição ao centro, a periferia seria o “[....] Outro criminoso e ameaçador, cuja presença inspira medo e pânico, por conta de sua vinculação naturalizada com a violência e a criminalidade” (LISBOA, 2007, p. 45). A autora ainda afirma que a caracterização do pobre como pessoa violenta ou criminosa “se constituiu historicamente não somente pelos aspectos econômicos naturalizados, mas também espaciais” (LISBOA, 2007, p. 57). A segregação, portanto, ocorreria por meio da disposição territorial dos elementos no espaço urbano - perspectiva a partir da qual se analisa a próxima capa. A capa de Carta Capital (Fig. 2) explora, através de uma fotografia, o contraste entre um edifício de luxo e a urbanização desordenada de casebres de uma favela, dispostos visualmente próximos um do outro. A favela de Paraisópolis, ali retratada, situa-se na zona sul de São Paulo, perto do bairro do Morumbi, conhecido pelos bens de consumo luxuosos de seus moradores de classe média alta. A chamada reforça os conflitos sociais em São Paulo, afirmando que a metrópole “completa 456 anos e confirma ser capital da desigualdade”. O enunciador não enaltece positivamente o aniversário da cidade, visto que utiliza o verbo “completar” (em referência à idade) e não “comemorar”, por exemplo, e marca a data apenas com a pejorativa característica da desigualdade. Para que compreenda o tom irônico da manchete (“Mas que belo panorama”), o leitor deve observá-la conciliada à fotografia. A ironia posta-se, assim, enquanto um recurso discursivo que exige a colaboração do leitor para se completar. As reticências ajudam a formar o sentido que o enunciador pretende transmitir: uma grande capital brasileira, mesmo tendo completado mais de 400 anos, segue apresentando um panorama extremamente desigual. A oposição entre o centro e a favela materializa-se por meio da dispo364 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) sição dos elementos não verbais: o edifício está na vertical, na linha de visão do leitor; a periferia está na horizontal, representada por um amontoado de casas sem fim. Dessa perspectiva, o enunciador propõe uma identificação com o leitor, na medida em que os dois “olham” para a imagem sob o mesmo ângulo: a partir do prédio, eles olham para baixo, em diagonal, da direita para a esquerda, evidenciando assim a superioridade de sua posição no discurso verbal. É interessante notar que, exceto pela igual disposição espacial dos edifícios centrais na vertical e da periferia na horizontal, na edição de Veja essa mesma identificação é produzida de maneira oposta. Conforme descrito acima, na primeira capa são os casebres que estão na linha de visão do leitor, porém, da mesma maneira que na capa de Carta Capital, o enunciador se identifica com o morador dos prédios que, nesse caso, estão sendo espremidos e representados em posição de inferioridade. Ou seja, apesar do jogo do olhar ser diverso, assemelham-se em ideia as duas capas. As cores também revelam a disparidade; na capa de Carta Capital, o edifício está em branco e apresenta muitas tonalidades de verde e azul, enquanto que a periferia remete a tons terrosos. Já uma perspectiva inferior é construída pela cor cinza na capa de Veja. Outra semelhança são os espaços arborizados: apesar das poucas árvores que circundam a periferia na capa de Carta Capital, a maioria está localizada junto ao prédio, perto de onde estão todos os elementos verdes na primeira. Observa-se, além disso, que a manchete das duas capas é escrita em grandes letras amarelas, evocando o sinal de alerta para essa realidade tão díspar que se vem formando nas capitais brasileiras. A periferia tipificada pela heteronormatividade Consoante o já delineado, percebe-se que houve no período 1994-2015 uma mudança nos critérios de noticiabilidade das narrativas jornalísticas que, em decorrência da mudança do contexto social, político e econômico, passaram a elaborar a reconfiguração da periferia, a qual passa a ter voz pelo consumo e que, a seu turno, reverbera no Jornalismo de revista. Tal reconfiguração, no entanto, não se afasta dos cânones previstos pelo Jornalismo na assunção de um determinado padrão de entendimento de sua função social e que está legitimado como uma das manifestações do masculino na circulação dos discursos sociais. As edições de Veja de 1994 e de 2000 mostram de maneira enfática a exploração sensacionalista de atributos de um masculino belicoso em sua cobertura. As capas legitimam a construção de um imaginário de medo e abordam a Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 365 temática da violência como algo dado. Outrossim, no plano visual, centram-se em personagens masculinos e, no caso da edição mais antiga, um menino socialmente subalterno. As outras três edições do subgrupo da violência (de IstoÉ, Época e Veja), apesar de manterem o viés passional do pânico, mostram o crime e a violência como temas que podem ser amenizados ou controlados, como problemas que ainda possuem solução e que pretendem ser divulgados pelas revistas. A análise ponderou, assim, a articulação do subgrupo das Drogas com a ausência de compaixão na cobertura, associando aspectos como tráfico, violência e dinheiro. Articulou também o subgrupo da Violência na cobertura com o desprezo pelos vínculos sociais manifestos, através da estigmatização dos moradores de periferia, especialmente os rapazes jovens, contribuindo ademais para a reprodução dos assentados padrões de desigualdade social. Uma ressalva a ser feita e que se constitui em elemento de diferenciação entre as publicações é a de que, enquanto a cobertura de Carta Capital expõe a desigualdade e elabora uma concepção crítica sobre tal realidade, a capa de Veja parece culpar a periferia por sua própria explosão populacional. As revistas, ademais, constroem linhas editoriais opostas e determinam sua linha editorial e produção jornalística a partir de preceitos distintos. Em ambos os casos, contudo, a periferia é mostrada sob o mesmo viés: como um agrupamento desordenado de moradias, com poucos recursos e privada de benefícios sociais. E os nove anos (2001-2010) que separam as capas das duas publicações não foram suficientes para promover uma mudança significativa na abordagem narrativa da periferia por parte das revistas. Por fim, reitera-se que o poder hierarquizante do padrão heteronormativo constrói uma tipificação da noticiabilidade em torno a temas afetos às populações periféricas. Entende-se que é desta maneira que a produção de sentidos em aspectos como classe social, raça, geração e sexualidade está amparada em correlações que se fazem recorrentes na cobertura de ocorrências aludas à periferia brasileira e condicionamentos sociossemióticos que alimentam a noticiabilidade. Referências BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. CARTA CAPITAL. Capa. 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Edição 2136, 28/10/2009. VERÓN, E. Fragmentos de um tecido. São Leopoldo: Unisinos, 2004. 368 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) O jornalismo e os silenciamentos na relação de gênero: um estudo a partir do caso Marielle Franco Lídia Schwantes HOSS200 Patrícia Regina SCHUSTER201 Vanessa Costa de OLIVEIRA202 Universidade de Santa Cruz do Sul, Santa Cruz do Sul, RS Resumo O objetivo deste capítulo é observar como o jornalismo discursivizou a personagem Marielle Franco, provocando um cotejamento com a questão de gênero. À luz dos pressupostos teóricos e metodológicos da Análise de Discurso – da matriz francesa – analisamos quais foram os sentidos e, sobretudo, os silêncios que quatro jornais, entre eles O Globo, Folha de São Paulo, Meia Hora e Zero Hora, produziram acerca do acontecimento que vitimou a vereadora e o seu motorista, Anderson Gomes. Como corolário desta pesquisa, constatamos a roborização (ainda que ela se dê pelas fissuras do discurso) de uma postura preconceituosa por parte da imprensa brasileira, anteparada por discursos que vão do machismo à homofobia. Palavras-chave: Jornalismo; Gênero; Silenciamentos; Marielle Franco. Introdução Este trabalho parte dos estudos empreendidos pelo grupo de pesquisa Desenvolvimento Regional e Processos Socioculturais, do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da Universidade de Santa Cruz do Sul (RS) que, entre suas temáticas, busca compreender os discursos sociais e identitários. O seu objetivo é observar como o jornalismo construiu discursivamente a personagem Marielle Franco, promovendo um tensionamento com a questão de gênero. 200. Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul, e jornalista pela mesma instituição. E-mail: lidiaschwanteshoss@gmail.com. 201. Professora do Departamento de Comunicação Social da Universidade de Santa Cruz do Sul. Doutora em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria. Mestre em Desenvolvimento Regional e jornalista, ambos pela Universidade de Santa Cruz do Sul. E-mail: pati.jornalista@gmail.com. 202. Doutoranda e Mestre em Desenvolvimento Regional pela Universidade de Santa Cruz do Sul, e jornalista pela mesma instituição. E-mail: nessa.costa.oliveira@gmail.com. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 369 Marielle era vereadora pelo PSOL no Rio de Janeiro, foi assassinada a tiros na noite de 14 de março de 2018, no centro da cidade. Na oportunidade também foi morto Anderson Pedro Gomes, o motorista do carro. A notícia teve grande repercussão na mídia brasileira, internacional e na opinião pública, enquanto um ato político contra a democracia. Dois meses após o fato, ainda não há um desfecho para a investigação. A parlamentar era negra, da periferia carioca, mãe, ativista feminista e homossexual. Entre suas principais bandeiras estavam os direitos humanos. O crime que a vitimou reúne vários aspectos que são comumente encontrados em assassinatos no Brasil conforme Weichert (2017). Ela era mulher, negra, moradora da periferia e pertencente à comunidade de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros (LGBT). Acreditando, destarte, que estes aspectos, somado ao acontecimento que culminou na morte da vereadora, possam indicar um profícuo itinerário para a compreensão de determinantes socioculturais que vigoram na sociedade – e na imprensa, sobremaneira -, é que reunimos esforços para desvelar os sentidos, mas, especialmente, os silêncios – tidos como condição sine qua non de toda e qualquer prática discursiva - acerca dos posicionamentos de gênero perpetrados pelo jornalismo. A reflexão sobre o objeto de análise proposto para este capítulo está ancorada na Análise de Discurso, de matriz francesa. Para tanto, utiliza-se de notícias veiculadas no dia subsequente ao ocorrido (15 de março) por quatro jornais brasileiros: O Globo, Folha de São Paulo, Meia Hora e Zero Hora203. Estas publicações figuram entre as mais importantes do país204, contemplam as distinções editoriais e, mais do que isso, representam ainda uma cartografia do discurso jornalístico numa conexão ao tema problematizado. Gênero e Estudos Culturais: a crítica feminista Hall (1992, 1996a) aponta o feminismo como uma das rupturas teóricas decisivas para a alteração da prática em Estudos Culturais, reorganizando sua agenda em termos concretos. Desta forma, destaca sua influência para que as questões de gênero e sexualidade se tornassem objetos de estudo dos Estu203. A título de manutenção de um rigor metodológico, vale acrescentar que também fez-se o aproveitamento de algumas matérias disponibilizadas pelos mesmos veículos, mas aí nos seus sites. As circunstâncias e justificativas deste uso seguem abaixo. 204. Segundo dados do Instituto Verificador de Circulação (IVC) de 2017, a média de circulação de O Globo é de 130.417, da Folha de São Paulo – que vem na sequência – de 121.007, do Meia Hora de 107.220 e da Zero Hora é de 100.979. 370 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) dos Culturais entre as décadas de 1970 e 1980. O estudioso utiliza a seguinte metáfora sobre a chegada do feminismo nos Estudos Culturais e, em especial, na vida intelectual do Centre for Contemporary Cultural Studies (CCCS): De uma maneira geral, não se sabe onde e como o feminismo arrombou a casa. [...] Como um ladrão no meio da noite, ele entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente, tomou a vez, estourou na mesa dos estudos culturais (tradução nossa).205 (Hall, 1996a, p. 269, tradução nossa). A publicação de Women Take Issue (1978) é considerada o primeiro resultado prático dos trabalhos do Women’s Studies Group do CCCS. Conforme Escosteguy (1998), embora este livro tenha dado visibilidade a uma produção intelectual em torno de um projeto feminista, mostrou também as diferenças e fragilidades existentes no grupo. Mesmo assim, demarcou uma área de atuação com especificidade dentro do campo acadêmico, servindo para delinear novos objetos de estudos. Esse texto, para a autora, revelou-se como a primeira tentativa de realizar um trabalho intelectual feminista. A abordagem dos estudos feministas, a partir dos estudos culturais, na década de 1970, de acordo com Escosteguy (2016), era de equivalência entre feminismo e mulheres, a partir de uma leitura homogênea, de que todas as mulheres sofriam, da mesma maneira, com o patriarcado. Esses estudos, destaca a pesquisadora, tinham como foco a forma como o discurso midiático dominante reforçava os papeis tradicionais de gênero e uma visão machista de sociedade. Já na década de 1980, a atenção da crítica feminista se volta às diferenças entre as mulheres, as disparidades acerca de suas condições na sociedade, com destaque para a natureza construída da identidade de gênero e do seu caráter histórico (ECOSTEGUY, 2016). Nos anos 1990, por sua vez, se constitui a condição feminista e a categoria de gênero como uma construção social que, junto à ideia de identidade, se definiam de forma relacional. Escosteguy (2016), sublinha ainda que, nos anos 2000, com o pós-feminismo, identifica-se um apagamento do movimento feminista pela mídia. A crítica feminista nos estudos culturais, para Tomazetti (2017), passou a compreender o gênero como uma categoria social e subjetiva, rompendo com o entendimento de que gênero é estritamente biológico, cessando com o 205. [...] it’s not known generally how and where feminism first broke in [...]. As a thief in the night, it broke in; interrupted, made an unseemly noise, seized the time, crapped on the table of cultural studies (Hall, 1996a, p. 269). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 371 essencialismo e as afirmações de que a mulher seria inferior ao homem. Essa perspectiva, continua a autora, permitiu que a dimensão cultural se incorporasse às discussões referentes às diferenças sexuais. Isso não significou uma negação ao fator biológico, mas sim uma nova abordagem das ciências sociais em relação a configuração das identidades humanas no que concerne às estruturas culturais. Essa guinada evidenciou a necessidade de se repensar a crítica que vinha sendo feita aos meios de comunicação de massa e sua produção discursiva sobre as identidades de gênero. No Brasil, o movimento feminista se fortificou no período da ditadura militar, principalmente nos anos 1970 (TELES, 1999). A luta contra o regime foi a maneira que as mulheres usaram para aderir às resistências daquele período. Nesta época, a propagação dos ideais feministas acontece a partir de dois jornais paulistas voltadas para as mulheres: Brasil Mulher e o Nós Mulheres. No período-pós 1975, o primeiro jornal dirigido às mulheres e feito por mulheres foi o Brasil Mulher, publicado pela Sociedade Brasil Mulher (foram 16 edições regulares e mais quatro denominadas «extras»), de 1975 a 1980. O segundo, Nós Mulheres, publicado pela Associação de Mulheres, teve oito edições, que circularam de 1976 a 1978. O fato de estarem vinculados a uma associação já mostra que esses jornais eram instrumentos de divulgação de coletivos de mulheres organizadas e, como tal, davam cobertura a assuntos não veiculados pela imprensa oficial, na época sob forte censura política, refletindo o pensamento político da militância feminista. O livro Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, criticando a situação da mulher na sociedade, assim como o Ano Internacional da Mulher em 1975, foram decisivos no fortalecimento das lutas das mulheres no Brasil. Os Estudos Feministas expandiram-se após as revoltas de 1968, tempo em que a mulher política se torna uma questão. Graças a pressão do feminismo organizado, mudanças importantes aconteceram no Brasil, como as garantidas pela Constituição de 1988 e a Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, que busca coibir a violência contra a mulher. Outra luta importante que ganhou espaço foi o movimento gay, por meio de eventos como Dia do Orgulho Gay que acontece desde 1970 em vários lugares do mundo, a Parada Gay que é realizada desde 1997 em São Paulo e também de avanços na legislação, tal qual o casamento entre pessoas do mesmo sexo, nome social, entre outros. Pela legitimidade alcançada por esses movimentos, cabe estudar como isso ressoa nas produções jornalísticas que, muitas vezes, não refletem a importância desses acontecimentos. 372 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A qestão de gênero e o jornalismo Mesmo com todos os questionamentos feitos pelo movimento feminista sempre pareceu muito natural para a sociedade o binário homem/mulher e o papel desempenhado por cada um socialmente. A reflexão da feminista Shulamith Firestone resume o que atualmente é aceito por grande parte das feministas contemporâneas no que diz respeito ao gênero. A meta definitiva da revolução feminista deve ser igualmente – diversamente do primeiro movimento feminista – não simplesmente acabar com o privilégio masculino, mas com a própria distinção de sexos: as diferenças genitais entre os seres humanos já não importariam culturalmente (FIRESTONE, 1970, p. 12). No entanto, existem condições de subjetividade em nosso meio que revelam a complexidade do pertencimento a estas categorias. A filósofa Judith Butler (2003) fala em alinhamento de sexo, gênero e desejo, em que se naturaliza toda demarcação “natural” de ser mulher e ter que, respectivamente, gostar do sexo oposto e ser feminina, como se toda a representação que temos de nós dependesse de nossos aparelhos sexuais. Em razão disso, acontece a resistência quando se vai contra a linearidade de que já somos pré-determinados, pois não é levada em conta a subjetividade do sujeito nem mesmo as experiências singulares do gênero. As pessoas não identificadas com as performances de gênero e sexuais heteronormativas são alvo das mais diversas formas de preconceitos e violências. A mídia é responsável por parcela significativa do que se difunde socialmente sobre as pautas LGBT. Da mesma forma, quando silencia sobre algum aspecto, impacta na comunicação sobre o tema. O jornalismo, conforme Adelmo Genro Filho (1987), é uma das maneiras mais importantes que as sociedades modernas dispõem para conhecer o que acontece nas mais diversas áreas das atividades humanas. Nessa perspectiva, a cobertura jornalística é reveladora das contradições sociais, dos jogos de poder, da diversidade comportamental e dos múltiplos interesses em disputa. “Por participar dos processos de construção social da realidade, é que o jornalismo é considerado um importante ator social” (CARVALHO, 2012, p. 133). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 373 A cobertura jornalística pode apresentar falhas na sua apuração e redação como pode-se observar em algumas notícias que envolvem situações e cidadãos LGBT. [...] isso é fruto de uma construção social. O jornalismo não está separado da sociedade, ele está dentro de uma sociedade que é excludente e que marginaliza a população LGBT e faz muito disso através do silenciamento. Quando a gente silencia, a gente também perpetua esse poder e essa hierarquia que é de uma norma heterossexual e cisgênera. [...]. Assim, a mídia reproduz diversas formas de estigmas e discriminações (NASCIMENTO, 2015). A vereadora Marielle Franco reunia em sua biografia vários aspectos, como ser defensora dos direitos humanos, LGBT, moradora de favela e política em primeiro mandato. A grande mídia brasileira, ao ser surpreendida pelo seu assassinato e pela repercussão que a notícia tomou, deu visibilidade a este “sujeito” respaldada por um fazer que, provavelmente206, segue as prescrições comentadas por Nascimento (2015), todavia, o que afeta-nos aqui são como estes dizeres se corporificam através dos silêncios. O silenciamento da mídia O entendimento de que os sentidos que constroem o discurso midiático estão para além das palavras postas nos textos traz consigo a reflexão acerca do sentido que essas palavras ganham por meio do posicionamento em que são empregadas. É nas entrelinhas do discurso, no interdiscurso, no que há entre o dito e o não dito, que se encontram as formações discursivas207. Considera-se que no dizer sempre há um não dizer necessário. O não dizer, na análise de discurso, também pode ser trabalhado pelo silêncio. Para Orlandi (1995) o silêncio diz e significa, constituindo uma estratégia discursiva. Ou seja, mesmo que não presente em uma notícia, a informação silenciada produz sentidos, ratifica ideologias e, consequentemente, promove discursos. “Sempre se diz algo a partir do silêncio” (ORLANDI, 1995, p. 23). O silêncio pode ser classificado em três tipos, como propõe Orlandi (1995), o que, de alguma forma, facilita o entendimento dessa discursividade 206. Colocamos na condicional, porque este é um dos intentos da pesquisa em questão. 207. Trata-se de uma das noções fundamentais da Análise de Discurso de base pecheutiana. É concebida por Orlandi (2012, p. 43) “[...] como aquilo que numa formação ideológica dada - ou seja, a partir de uma posição dada em uma conjuntura sócio-histórica dada – determina o que deve ser dito”. 374 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) e indica possibilidades para compreender os silenciamentos midiáticos, bem como a razão pela qual eles ocorrem. São eles: o silêncio fundador e a política do silêncio, que se divide em silêncio constitutivo e silêncio local. O primeiro, o silêncio fundador, é o princípio da significação. Trata-se de um tipo ainda mais abstrato que os demais, que diz do silêncio que antecede o discurso. Já a política do silencio, dividida em dois subtipos, está relacionada a uma contextualização sócio-histórica. Orlandi (1995) ressalta o fato de que, ao escolher dizer algo em detrimento de outro, necessariamente algo é silenciado e produz sentido. O silêncio constitutivo, assim, se dá no descarte de determinado sentido, quando se opta por dizer “x” e não “y”, o que implica no apagamento de outros sentidos possíveis. Para se compreender o silêncio local, pode-se utilizar a censura como ilustração. “Trata-se da produção do silêncio sob a forma fraca, isto é, uma estratégia política circunstanciada em relação à política dos sentidos: é a produção do interdito, do proibido” (ORLANDI, 1995, p. 77). Esses dois subtipos da política do silêncio podem ser facilmente identificados nos textos elaborados pela mídia, cotidianamente, reforçando determinados discursos. O que se observa, principalmente nos veículos de comunicação tradicionais, concentrados em conglomerados midiáticos, é que a produto jornalístico distribuído, processado nos diferentes tipos de textos jornalísticos, carregados de sentidos, “operam consensualmente, para reproduzir a ordem do consumo e conservar hegemonias constituídas” (MORAES, 2013, p. 21) e, assim, acabam por silenciar determinadas palavras/informações. Dessa maneira, o que se tem é uma prática jornalística tradicional que atua em oposição a medidas que alterem o status quo, sejam elas estruturais ou mesmo culturais. O jornalismo e seus ruídos: Marielle Franco e a retórica do não-dizer Encerrado o processo de estudo dos elementos essencialmente teóricos, passa-se para a análise em si, na procura de estabelecer liames com o objeto eleito para a pesquisa. A escolha por diferentes veículos – cumpre justificar – serve-nos como um mapa social de leituras e, acima de tudo, de condutas discursivas possíveis para o acontecimento que cinge a morte da vereadora Marielle Franco na imprensa brasileira. Assim, o movimento analítico inicial centrou-se nas reportagens veiculadas no dia subsequente ao fato (15 de março de 2018) de quatro jornais Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 375 impressos, entre eles o O Globo, Folha de São Paulo, Meia Hora e Zero Hora. Ao jogarmos um facho de luz sobre esta materialidade detectamos o primeiro silêncio. Antes, porém, é oportuno reforçar porque esta “categoria” discursiva – se é que assim podemos denominar – torna-se o fio condutor deste exercício científico. Assimilamos, arrimados na tese defendida por Orlandi (1995, p. 31), que “o silêncio é a matéria significante por excelência. O real da significação é o silêncio”. Tendo em vista que nosso instrumento é um discurso – o jornalístico – não há como fugir desta perspectiva, haja vista que não há como a fala jornalística escapar à taciturnidade. Isto posto, gritam os gestos de interdição feitos pelos jornais em questão, sobretudo num aspecto, qual seja, da condição homossexual de Marielle. Em todas as notícias, o lead (dispositivo jornalístico responsável pela apresentação das informações básicas sobre o assunto do qual trata) predica a personagem apenas como vereadora, indica ainda o partido a qual pertence (PSOL) e a sua idade (38 anos). Considerando que não caberia a esta unidade jornalística a função de ir além (no que tange a maiores dados sobre a qualificação da parlamentar), este não-dizer adquire um status circunstancial. Basta irmos um pouco adiante nas matérias que o que é para ser periférico, operar como ruído, passa a ficar evidente por entre a trama das falas edificadas pelos jornais. O Globo, por exemplo, apresenta um perfil detalhado de Marielle. Informa que ela era negra, moradora da Maré e a quinta vereadora mais votada do Rio. Diz também que ela representava bandeiras do feminismo, dos direitos humanos e dos moradores das favelas. Afora isso, caracteriza-a profissionalmente: estudou sociologia na PUC, com o apoio de bolsa integral, e fez mestrado em Administração Pública na UFF. A Folha segue o mesmo script. Sob a tutela do subtítulo Trajetória, ela complementa que o título da “tese”208 de mestrado de Marielle é UPP: a Redução da Favela a Três Letras; que atuou em organizações como a Brasil Foundation e o Ceasm (Centro de Ações Solidárias da Maré); que foi mãe aos 19 anos. Já no Meia Hora, o modelo de exposição é quase igual aos demais. Um boxe intitulado Militância nos direitos reverbera algumas informações anteriores e adiciona que ela era relatora da comissão que acompanhava a Intervenção Federal na Segurança do Rio e que começou a militar em direitos humanos após perder uma amiga vítima de bala perdida. Na ZH, às custas de um texto mais enxuto, nenhuma particularidade a mais é trazida. Presume-se que o critério de noticiabilidade “proximidade” seja 208. O nome correto ao trabalho de conclusão de mestrado é dissertação. 376 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) o agente determinante para tal tratamento. Até aí – mesmo diante de farto material sobre a personalidade da vereadora – não há um único registro que toque em duas questões. Uma delas: o feminismo e a defesa dos direitos humanos são amplamente verbalizados, ao passo que têm sua cadeia de sentidos esvaziada. A tática é falar para calar. Ao demorar-se pela disponibilidade do dizer, simula-se o encobrimento da rede de sentidos que permeia um dado saber sobre o que “é ser feminista”, sobre quem são os “humanos protegidos” por aqueles que aderem a esta causa. A outra contorna a sexualidade de Marielle. Aprioristicamente, isso não parece relevante, contudo, para além dela ter na causa LGBT uma de suas principais motivações políticas, era casada com uma mulher. E é este o aspecto que melhor ratifica uma das hipóteses que insistimos em aqui sustentar: “não cabe” na produção jornalística de uma parte da imprensa do país algumas sexualidades. Aliás, elas até “cabem”, só que acomodadas sob determinados enquadramentos. Os vestígios são os seguintes: no O Globo, as fontes aduzidas para compor a narrativa são o deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) – um dos primeiros a chegar ao local do crime – e uma testemunha. Por outro lado, a maior foto da página denuncia -- logo, propiciando que o discurso se exprima pelas frestas ---, que a companheira de Marielle poderia ser uma das possibilidades, já que ela também se dirigiu à cena do episódio. A legenda da foto confirma: Amigos e eleitores de Marielle Franco se reúnem próximo ao local do crime. A Folha não foge à regra: Freixo e correligionários compareceram ao local do crime. Em outro parágrafo, alerta que nem o partido, nem a família de Marielle sabiam de ameaças contra ela. Os membros da família não são distinguidos – situação identificada também no Meia Hora. Aparecem como uma marca discursiva genérica. No Meia Hora e na Zero Hora o protocolo de invisibilização e emudecimento se repete. Enquanto a publicação carioca traz o vereador Tarcísio Mota (PSOL) como fonte para contribuir sobre o assunto, apontando-o como àquele que esteve no local do crime com outros parlamentares, a gaúcha se resume a reprodução de um comunicado expedido por Freixo. Nesse sentido, é incontestável que no regime de visibilidade destes dispositivos de comunicação a identidade gênero, bem como a opção sexual, está subordinada a algumas determinações, jamais proferidas aos leitores. Elas sobressaem-se pelas ranhuras deixadas pelo discurso. Concretamente: Marielle teve sua existência garantida apenas sob a guarda de um discurso que primou Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 377 pela “lei do esforço”. E essa “teoria” foi robustecida – igualmente pela via de não-ditos – pela sua identificação étnica (negra), espacial – todas as notícias realçam que tratava-se de uma “’cria da favela da Maré”’ –, e, substancialmente, pela sua formação acadêmica. Ou seja, a existência do acontecimento Marielle na mídia prova, mais uma vez, que o “silêncio não é a ausência de palavras” (ORLANDI, 1995, p. 105). Ao contrário, são inúmeros os predicados consorciados a ela. Só que basta seguirmos na linha de raciocínio da autora para depreendermos que esse falar é uma forma de não dizer “(ou não permitir que se digam) coisas que podem causar rupturas significativas na relação de sentidos. As palavras vêm carregadas de silêncio”. Ora, que “coisas” são essas? Considerando que a imprensa edifica seu discurso sobre diversidade sexual a partir de concepções normativas, discriminatórias – que privilegiam significados que vão da doença ao pecado (DARDE; MORIGI, 2002), não cabe neste discurso – daí nosso olhar para àquilo que se pronuncia pelas fissuras – narrar uma mulher que era uma liderança política, com formação superior, como homossexual (lésbica ou bissexual). Associar estes adjetivos a um sujeito homossexual – tal qual Marielle – representaria uma ameaça às representações identitárias aplicadas ao movimento LGBT ao longo dos últimos tempos pelo jornalismo. Mesmo assim, esta ausência não é vazia. A mídia – e os veículos submetidos a nossa verificação – modelam formas de fazê-la significar. Como elas ganham materialidade? Para além dos expedientes listados acima, há outro “estratagema” que chama ainda mais atenção, em que pese não fazer parte do nosso corpus de pesquisa. Tomamos como recurso uma reportagem divulgada na página do G1 – portal que integra o Grupo Globo – datada, equitativamente, do dia 15 de março, às 7h42, cujo título é ‘Ele estava fazendo bico para sustentar a família, diz mulher de motorista da vereadora Marielle Franco, seguido do seguinte entretítulo Ágatha diz que é difícil aceitar a morte do marido e que a família está passando por um momento terrível. Anderson e Marielle foram assassinados na noite desta quarta-feira (14) no Estácio. No curso do texto, ainda há dois trechos da entrevista concedida ao site pela mulher do motorista destacados. O que a voz discursiva do veículo está a proferir, neste caso, não nos importa pelo dizível, e sim, pela sua dimensão fugidia, aparentemente ausente de ancoragem. Ora, uma vez mais, a discursividade é atravessada de silêncios. Por quê Ágatha teve reservado seu lugar de fala de imediato nas produções 378 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) jornalísticas, enquanto Mônica Benício, com quem a vereadora mantinha um relacionamento que já se estendia por aproximadamente 13 anos, foi mantida no ostracismo209 após o acontecimento que vitimou Marielle? Vislumbra-se, na afirmação de Medeiros (2012, p. 106), uma possibilidade de resposta: “As identidades são, pois, construções discursivas: o que é ‘ser normal’, ‘ser louco’, ‘ser terrorista’, ser ‘refugiado’, ser ‘excluído’, ser ‘vítima’, senão relatividades estabelecidas pelos jogos dessas micropoderes” Reconhecida como uma das “regentes” destes jogos, à mídia é outorgado o papel de erigir o “ser mulher”, “o ser político”, bem como, o “ser homossexual”. Em todos, acomodam-se sentidos que não são compatíveis com Marielle. A identidade do sujeito político conforma um imaginário masculino, branco e heterossexual. Quando são as mulheres que ocupam este lugar social, o discurso jornalístico costuma priorizar noções da vida privada, doméstica e afetiva (BIROLI, 2010)210. Marielle – ao contrário do noticiário sobre o seu motorista – tem estes referenciais ocultados. Ou melhor, eles são só são focalizados quando renovam a Formação Discursiva de que todo esforço será recompensado. Quanto a sua homossexualidade, ela só seria loquaz se subordinada a um cenário de patologização, possivelmente. Em outras palavras, a mulher feminista, lésbica/bissexual pode até existir, mas na novela e não na favela – lugar em que discursivamente há seres (quase nunca humanos) homogêneos e, principalmente, traficantes – e muito menos na política. Considerações finais Os gestos de silêncio protagonizados pela mídia brasileira – neste trabalho patenteados pelos jornais O Globo, Folha de S. Paulo, Meia Hora e Zero Hora – mostram que há um modo específico de aparição feminina, precipuamente, quando este feminino é político, feminista e homossexual. O sentido imposto – para seguirmos manuseando a mesma nomenclatura de Orlandi (1995) – é que não há nada que distancie o acontecimento Marielle da realidade. Em contrapartida, o sentido recusado pela arena midiática é que esta mesma situação ganharia outros contornos discursivos na hipótese do protagonista ser do sexo masculino. 209. Empiricamente, fizemos uma consulta no Google sobre as notícias que saíram na sequência da morte de Marielle e elas dão conta desta “personagem” – a companheira, a esposa, a viúva – somente vários dias depois do episódio (dia 19 de março é uma das primeiras notificações registradas). 210. “Há, assim, uma oscilação entre a expectativa de que a mulher se apresente, na política, enquanto mulher, e um conjunto de julgamentos referenciados pela presença masculina na política e por representações da masculinidade, conectando a competência na esfera pública a atitudes entendidas como masculinas ou masculinizadas” (BIROLI, 2010). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 379 Assim sendo, nosso objeto confessa algo já aferido por Prado (2013, p. 108): “Trata-se, portanto, não de abordar o jornalismo como atividade exclusivamente representadora da realidade, mas como conformadora, criadora, que põe e repõe as identidades do leitor”. À vista disso, não serve às páginas dos jornais brasileiros romper – nem com ditos, tampouco com não-ditos – com os discursos machista, racista, sexista e homofóbico, radicados no discurso social. A profusão de significados a respeito do caso Marielle Franco revela, justamente, que é nas fissuras do silêncio que estes discursos – os quais podemos sumarizar como preconceituosos – são postos em funcionamento. Referências BARBOSA, T. O desrespeito a identidade de gênero no jornalismo brasileiro. Disponível em: <http://blogueirasfeministas.com/?s=genero+e+jornalismo>. 2015. Acesso em: 21 abr. 2018. BEAUVOIR, S. O segundo sexo: A experiência vivida. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. BIROLI, F. Gênero e política no noticiário das revistas semanais brasileiras: ausências e estereótipos. Cadernos Pagu, Campinas, n. 34, p. 269-299, janeiro-junho, 2010. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cpa/n34/a11n34.pdf>. Acesso em: 21 abr. 2018. BUTLER, J. 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Para analisar como estes crimes são noticiados, utilizamos a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH, 2003) e a análise do discurso das mídias (CHARAUDEAU, 2015). Constatamos que o jornal não os categoriza como “feminicídio íntimo” e continua os denominando como “crime passional”. Concluímos que esse discurso produzido pela mídia e as fontes por ela acessadas minimiza um problema de gênero, tratando-o apenas como um caso isolado da falta de segurança pública. Palavras-chave: Violência contra a mulher; Feminicídio; Feminicídio íntimo; Meios de comunicação de massa. Introdução De acordo com o Mapa da Violência 2015 (WAISELFISZ, 2015), o Brasil é o quinto colocado no ranking mundial do feminicídio, sendo entre 1980 e 2013, 106 mil mulheres mortas vítimas desse crime. Desse modo, o 211. Este capítulo é resultado da dissertação de mestrado de Saad (2018), que analisa a cobertura de feminicídio íntimo em um jornal popular goiano, abrangendo o discurso que envolve vítimas, autores, fontes e o Sistema Único de Saúde. 212. Doutoranda pelo programa de Pós-Graduação em Saúde da Criança e da Mulher do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: mariaameliasaad@gmail.com 213. Pesquisadora do Instituto Fernandes Figueira, da Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: iviamaksud@gmail.com. 214. Pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública, na Fundação Oswaldo Cruz. E-mail: edinilsaramos@gmail.com. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 383 estado de Goiás é o terceiro colocado no índice nacional, ficando atrás de Roraima e Espírito Santo. Antes do desfecho fatal do feminicídio, as mulheres vivenciam um ciclo de violências. O Disque 180, da então Secretaria de Políticas para Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), divulgou dados dos atendimentos registrados em 2014, dos quais 43% das mulheres em situação de violência sofrem agressões diariamente; para 35%, a agressão é semanal; 80% das vítimas tinham filhos, sendo que 64,35% presenciavam a violência e 18,74% eram vítimas diretas juntamente com as mães (SPM-PR, 2015). Tais mortes estão intimamente ligadas a questões sociais e raciais, uma vez que as vítimas de feminicídio e violência doméstica são principalmente negras, com idade entre 20 e 39 anos, a maioria com até oito anos de escolaridade (WAISELFISZ, 2015). Em 2015, a presidenta Dilma Roussef sancionou a Lei 13.104, também conhecida como Lei do Feminicídio, alterando o Código Penal brasileiro para incluir mais uma modalidade de homicídio qualificado. O feminicídio se configura penalmente como crime praticado “contra a mulher por razões da condição de sexo feminino”. As razões encontradas pelo legislador da condição do “sexo feminino” são “violência doméstica e familiar; e menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (BRASIL, 2015). Embora seja um problema histórico, o feminicídio ainda tem pouca visibilidade social e a mídia pode contribuir neste debate junto à sociedade e à academia, ao mostrar como se configura essa problemática (SAAD, 2018). Este crime tem sido noticiado por jornais populares como o Daqui, tabloide goiano com tiragem diária de 189 mil exemplares, sendo a maioria dos leitores (51%) mulheres, entre 20 a 39 anos, provenientes, sobretudo, da classe C, coincidindo com o perfil do público que sofre feminicídio no país. Procedimentos metodológicos O objetivo desse texto é analisar sentidos do feminicídio íntimo no discurso jornalístico. Especial ênfase será dada às veiculações de casos que fizeram referência à conceituação sociojurídica desse tipo de homicídio. Para constituir o corpus de análise, selecionamos matérias entre março de 2015 (mês que a Lei do Feminicídio -13.104 - entrou em vigor) a junho de 2016. A coleta dos dados aconteceu durante o período de 16 a 19 de agosto e 22 de setembro de 2016 no arquivo do próprio jornal, uma vez que o mesmo não disponibiliza ao público ou online edições anteriores. Durante o período estipulado, foram 384 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) encontradas 121 veiculações do jornal sendo que as mesmas diziam respeito a 57 casos distintos de feminicídio215. Destes casos, 75 matérias relatavam casos de feminicídio íntimo, 39 tentativas e ainda sete que abordam o tema da violência contra a mulher de forma a explicar mecanismos de proteção às vítimas, e ainda a apresentação de casos exemplares de sanções legais a autores de violência não letal. Os referenciais teórico-metodológico que embasaram o texto foram a análise do discurso crítica (FAIRCLOUGH, 2003) e a análise do discurso das mídias (CHARAUDEAU, 2015). Analisamos as composições de vocabulário, gramática, coesão e estrutura textual; a prática discursiva mediada pela força, coerência e intertextualidade; e a prática social, que se observa através da análise de efeitos ideológicos e hegemônicos. Também foram observadas vozes verbais ativa ou passiva, a posição do sujeito, coesão e a arquitetura do texto, assim como metáforas. Jornalismo popular e feminicídio No campo da luta por direitos, nenhuma palavra é proferida de forma solta e ao acaso. A palavra homicídio advém do latim hom, que quer dizer humanidade, porém, na prática existe a naturalização de uma utilização genérica do pronome masculino para abarcar a universalidade dos acontecimentos sociais a todos os gêneros (RUSSEL; HARMES, 2001). Em 1976, o Tribunal Internacional de Crimes Contra as Mulheres cunhou o termo “femicídio” como categoria para classificar crimes misóginos resultantes de um modelo patriarcal de opressão às mulheres (RADFORD; RUSSEL, 1992; RUSSEL; HARMES, 2001). A transição de “femicídio” para feminicídio aconteceu porque, na realidade latina, o termo servia para definir assassinatos de mulheres de forma muito genérica (LAGARDE, 2005), sendo essa palavra um verbete de denúncia política. Ele foi utilizado com base nas violações sofridas pelas mulheres, especialmente na cidade de Juárez, no México, em meados da década de 1990. O intuito era conectar esse tipo de crime à atemporalidade da ineficiência do Estado na intervenção, tornando-o não somente um assassinato, e sim castigo sem qualquer forma de punição ou coação. Ele busca responsabilizar diretamente o Estado por não atuar evitando a violência, pela ausência de políticas 215. Embora sejam 57 casos, alguns deles ganham maior notoriedade e aparecem em mais de uma edição do jornal, por isso o número de veiculações é superior ao de casos. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 385 públicas adequadas, por ser conivente com as mortes de mulheres, não investigando ou punindo os culpados, gerando impunidade e perpetuação desses crimes e comportamentos. No Brasil, a Lei do Feminicídio foi pauta do amplo debate do movimento de mulheres, através da Comissão Parlamentar Mista (CPMI) da Violência contra a Mulher, que durou de 2012 a 2013. A Comissão percorreu diversos estados, ouviu autoridades, líderes do combate a esse tipo de violência, promoveu audiências públicas e outros eventos para dialogar sobre essa problemática. Porém, equívocos consideráveis e discordantes das demandas examinadas pelo debate da CPMI foram aprovados no texto da Lei. Entre eles estão a substituição de “gênero feminino” por “sexo feminino” e um exagero na leitura sobre o agravamento punitivo (CASTILHO, 2015; MACHADO, MATSUDA, 2015; BELLOQUE, 2015). A aprovação da lei gerou não somente mudanças legais, mas também acadêmicas. Após a aprovação da Lei, as autoras como Meneghel (2017), Pasinato (2011), Machado et al (2015) têm denominado os crimes cometidos por parceiros ou ex-parceiros, que tiveram como motivação questões de gênero, como feminicídio íntimo, uma expressão criada por feministas latino-americanas para denominar os assassinatos cometidos contra mulheres por parceiros ou ex-parceiros íntimos (CARCEDO E SAGOT, 2002). Temáticas associadas à violência, como a do feminicídio, são noticiadas e intensamente exploradas pelos jornais populares. Os jornais populares, segundo Seligman (2008), prezam por linguagem simples, didatismo, prestação de serviços e credibilidade. Charaudeau afirma que essa forma de comunicação nasce da necessidade de se atingir o maior número possível de receptores da informação. Para ele, se for usado um discurso muito politizado, somente um pequeno número de pessoas terá acesso e consecutivamente, consumirá essa informação. Portanto, um recurso eficaz de se atingir todas as camadas sociais é através do “despertar da afetividade”, ou como o autor denomina, o pathos216. Como fonte desse envolvimento afetivo, Russel (2001) aponta que a mídia, mediada pelas fontes, sobretudo policiais, é responsável diretamente pela reação pública a crimes que envolvem mulheres que fogem aos padrões 216. O pathos está associado ao estudo dos possíveis efeitos emocionais produzidos pela mídia através de seu discurso. Charaudeau acredita que a emoção está baseada em três pontos: de ordem intencional (busca racionalmente uma motivação específica para beneficiar de alguma forma, o agente produtor do discurso); de forma a ligar aos saberes de crença (as informações obtidas através do habitus possibilitam a avaliação do conteúdo emitido); e através de uma problemática psicossocial (as emoções são estados mentais que se apoiam nas crenças socialmente construídas por meio da simbolização e auto apresentação) (CHARAUDEAU, 2015) 386 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) de feminilidade instituídos, ou aquelas que vivem em vulnerabilidade social, como as mulheres negras, pobres, lésbicas, prostitutas e usuárias de drogas. Elas são configuradas por estereótipos pejorativos e culpabilizadas pelas violências que sofrem, por não se enquadrarem ao sistema ideal de mulher, formulado e imposto pela dominação patriarcal. O discurso responsável pela normatização dos corpos e pela criação do padrão “normal” e desejável de comportamento das mulheres até hoje gera dominação e muitas vezes a legitimação social do feminicídio, principalmente o íntimo, através do discurso midiático (SAAD, 2018). O sociólogo alemão Norbert Elias, em sua obra A solidão dos Moribundos (2001), revela que a morte prematura de um indivíduo (quando ela não se dá no “ciclo natural” da velhice), cuja existência possuía uma função social, traz à tona um sentimento de empatia coletiva. Porém, quando essa pessoa que morre prematuramente não exerce um papel de utilidade social, sua morte é vista como “sem sentido”, indigna de luto, pois não gera qualquer sentimento de relação e identificação social nas pessoas. Butler (2016), em uma análise sobre quadros de guerra, pressupõe que a ontologia do individualismo, implicada por definições morais impostas por setores sociais, determina quais vidas são merecedoras de luto e proteção, gerando uma regulação da comoção, realizando um trabalho de convencimento através do enquadramento estratégico advindo do reconhecimento moldado por questões sócio-históricas. Para Segato (2016), a regulação da comoção acontece através da “pedagogia da crueldade”, em que a mídia “ensina” o público a não ter empatia para com as mulheres vítimas de feminicídio, muito menos identificar-se com a problemática que envolveu sua morte. Com isso, promove-se a revitimização das mesmas, através do sensacionalismo das publicações, nas quais elas são as principais “personagens”. Ela aponta ainda que essa “pedagogia da crueldade” ocorre devido aos interesses capitalistas, que restringem as relações sociais, visando a acumulação de capital e ao enriquecimento. Dessa maneira, é necessário que se promova a abolição da empatia e os indivíduos sejam treinados para terem distância nos relacionamentos interpessoais, fazendo com que a crueldade não permita empatia pelas vítimas, enquadrando-as como “merecedoras ou não” daquele tipo de morte, de acordo com a sua adequação moral aos padrões de mulher fixados pelo patriarcado. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 387 As vozes do feminicídio no jornal Daqui Para compreender as mídias, Charaudeau (2015) explica que é preciso observar quem fala, quando fala e como fala. Portanto, detectamos quais as vozes responsáveis por categorizar o feminicídio, quando elas falam e como falam desses crimes. As instâncias de poder presentes no discurso do Daqui são pautadas sobretudo pela fala das fontes oficiais. Elas, majoritariamente, provêm da Polícia Civil (do gênero masculino), e são delegados (52%) em delegacias comuns, especializadas em homicídio ou de atendimento à mulher vítima de violência. Também foram ouvidos pelo jornal agentes da Polícia Civil, Militar e Corpo de Bombeiros, uma subcomandante e comandantes da Polícia Militar, delegadas, e diretores de unidades prisionais. Nas matérias analisadas, 45% das fontes oficiais não tiveram o nome ou cargo apresentados, revelando apenas o órgão de trabalho (Polícia Civil, Polícia Militar, etc.), ou não indicando nenhum dado de onde proveio a informação veiculada. No contexto dessas falas encontramos alguns elementos para explicar as mortes de mulheres por consequência da violência de gênero. Um deles é a passionalidade, de Enrico Ferri, jurista italiano defensor da tese que um cidadão de boa conduta pode ser tomado por uma loucura momentânea ou cegamento temporal, cometendo assim um crime de “paixão”. Para construir essa figura de delinquente concorre a sua personalidade, de precedentes ilibados, com os sintomas físicos- entre outros – da idade jovem, do motivo desproporcionado, da execução em estado de comoção, ao ar livre, sem cúmplices, com espontânea apresentação à autoridade e com remorso sincero do mal feito, que, frequentemente. Exprime-se com o imediato suicídio ou tentativa séria de suicídio. Esta classificação dos criminosos advinha de uma nova postura perante a questão da gênese da ação criminosa que, segundo Ferri, estava na paixão. A paixão era o móvel da ação criminosa. Contudo, por ser uma força incontrolável, não atingia somente os indivíduos “perversos”, os bons cidadãos podiam ser atingidos pelas explosões da paixão. (FERRI, 2009, P.31) Para entender como o jornal classifica o feminicídio íntimo, analisamos as falas das fontes apresentadas pelo jornal. A maioria delas era oficial e reproduzia o discurso jurídico e da segurança pública e passionalidade. 388 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A suspeita é de que o crime seja passional devido ao fim do relacionamento dos dois. (Daqui. Jovem teria sido morta por ex-namorado. Quarta-feira, 15 de junho de 2016) A Polícia investiga se uma crise de ciúme teria provocado um crime bárbaro (...). Em um ataque de fúria, o empresário Alexandro Schimitz, de 36 anos, matou a mulher, a empresária Samanta Salete Ourique, de 30 anos, e o único filho deles (...). (Daqui. Polícia acredita em crise de ciúme. Quinta-feira, 5 de maio de 2016, p.7) Segundo a Polícia Civil, Paulo confessou ter jogado álcool e ateado fogo na companheira Terci Rodrigues de Oliveira, no último dia 10, após uma briga do casal, que segundo ele seria por ciúmes. (Daqui. Morre em cela homem que ateou fogo em mulher. Terça-feira, 19 de janeiro de 2016, p.6) Embora o jornal só utilize em cinco matérias o termo “crime passional”, o sentido de passionalidade pode ser percebido na maioria das veiculações, como demonstrado nas citações acima destacadas. Na primeira citação, essa referência é mais visível, uma vez que se cita a passionalidade, sendo esse o motivo que faz a Polícia Civil “suspeitar” da motivação. Na segunda e terceira citações, são utilizados elementos que aludem à passionalidade. Na segunda, embora no lead, o jornal utilize os termos “investiga” e “teria”, indicando dúvida da ação, no título torna-se claro o posicionamento da autoridade policial de que a causa do crime bárbaro foi “crise de ciúmes”. O argumento se complementa com o termo “ataque de fúria”, demonstrando o caráter passional da ação do autor, que tomado pela violenta emoção mata a esposa, o filho e comete suicídio. A terceira citação aborda o debate já levantado do termo “briga de casal” cometida por “ciúmes”, que remete à crença de que a violência psicológica é algo “normal”, não sendo considerada como uma forma de agressão. Portanto, evocando a passionalidade do autor que, em um evento “comum”, casualmente “foi cegado” e cometeu o crime. Quando utilizado, o termo “feminicídio” foi inserido em um contexto de falas técnicas, sobretudo ligadas ao meio jurídico e descaracterizando as questões de gênero. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 389 Ele foi preso por feminicídio (crime por razões de sexo feminino). (Daqui. Marido mata mulher com 11 facadas. Segunda-feira, 16 de novembro de 2015) O suspeito, William Evaristo Arruda, de 55 foi preso em flagrante no dia seguinte. O inquérito já foi concluído. Nele, o lavrador foi indiciado por tentativa de homicídio qualificado, com emprego de meio cruel e qualificatório de feminicídio. Entretanto, o delegado Vagner Sanches explicou que, com a morte da vítima, haverá uma alteração para que ele responda por homicídio. (Daqui. IML aguarda família de mulher. Terça-feira, 14 de junho de 2016, p.8) Gilvan está preso por feminicídio agravado pela falta de socorro. A pena pode ir de 12 a 30 anos de prisão (Daqui. Mulher morre após agressão. Segunda-feira, 20 de abril de 2015 (...) Já a morte de Sarah será enquadrada na nova lei, aprovada este ano, de feminicídio. (Daqui. Jesus preso por matar namoradas. Sexta-feira, 28 de agosto de 2015, p.8) Na primeira citação, vemos que o feminicídio íntimo não é caracterizado como um crime de gênero. O Jornal o classifica através do determinante biológico “sexo feminino”. Ao optar por essa classificação, o Daqui oculta o feminicídio como um fator advindo do comportamento social, que engloba questões estruturais do patriarcado, que deram origem à ação que culminou com o crime noticiado. A segunda, a terceira e a quarta citações remetem ao termo usado de forma jurídica pelo artigo 121 do Código Penal, que trata do crime de homicídio. Destacamos que os termos das citações podem ser inacessíveis ao leitor, por remeterem a um vocabulário técnico que não foi explicado pelo jornal ao público. A proposição da Lei do Feminicídio foi pautada por grupos feministas e entidades do terceiro setor para dar visibilidade a um problema histórico, advindo do patriarcado e dominação masculina, que é a violência de gênero. Porém, nas (curtas) passagens pelas páginas do jornal, a “justiça” que a Lei promove é o aumento de pena e um maior contingente de população carcerária, formada, sobretudo, por pretos e pobres, se tornando o que Wacquant (1999) denomina como uma forma de “política pública” para tirá-los de circulação. O caráter punitivista é criticado por diversas autoras, que destacam o risco da 390 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Lei se tornar mais um elemento de desigualdade (CASTILHO, 2015; MACHADO, MATSUDA, 2015; BELLOQUE, 2015; MELLO, 2013). Se defendemos que o Estado é o principal responsável pela negligência e ausência de políticas públicas que geram o feminicídio íntimo, estamos retornando a um círculo vicioso da ausência e ineficácia do mesmo, na medida em que este gera mais um problema social, que é o fomento do aprisionamento massivo. Como exemplo de que o discurso do jornal não noticia o feminicídio como uma questão de gênero, mas sim como um crime passível de prevenção através de medidas que englobam primordialmente a segurança pública, destacamos uma matéria sobre o “combate à violência doméstica”217. Dados da Polícia Civil mostram que só no ano passado foram registrados 6,9 mil crimes contra mulheres nas delegacias de Goiânia. A polícia reforça a importância das denúncias, pois só assim é possível chegar aos criminosos. (Daqui. Preso por ameaçar a ex. Quinta-feira, 21 de maio de 2015, p.6) Uma operação da 2ª Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher (Deam) prendeu, ontem, quatro suspeitos de descumprir medidas protetivas impostas pela Justiça e ameaçarem, novamente, vítimas de violência doméstica. Também foram cumpridos nove mandados de busca e apreensão em Goiânia. (...) Durante a operação, um dos suspeitos, de 47 anos, já estava na penitenciária por outro crime. (Daqui. Presos por não manter distância. Sexta-feira, 9 de outubro de 2015) Na primeira oração da citação, o vocábulo “só” possui valor restritivo de tempo, demonstrando o alto número de casos registrados em um curto período na cidade de Goiânia. Na segunda oração, o mesmo vocábulo restritivo também é utilizado demonstrando a importância que é dada à punição do autor, que é retratado como “criminoso”. Muitos autores de violência doméstica e feminicídio não são socialmente considerados como “criminosos”: eles trabalham, suprem financeiramente as necessidades da família, têm amigos e colegas nos diversos ambientes que transitam que os admiram (SAAD, 2018). Portanto, uma denúncia feita pela vítima desse tipo de autor socialmente aceito não seria levada em consideração. Seria necessário que a mulher provasse a legitimidade das agressões físicas e psíquicas, dentre outras sofridas dentro da esfera privada. Na segunda citação, o jornal apresenta a ação de repressão aos autores, 217. Nesses casos as autoridades não tratam a violência doméstica como passível de “prevenção” e sim de combate, sobretudo com ações coercitivas aos autores. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 391 uma vez que foi montada uma operação para prendê-los. O jornal mantém o mesmo percurso ideológico da primeira citação, em relação a questões relativas à violência de gênero são solucionadas por meio da prisão dos autores, considerados como criminosos. Uma notícia apresentava a Ronda Maria da Penha, projeto-piloto da Polícia Militar de Goiás, em implantação na região Noroeste de Goiânia. Voltado para atender medidas protetivas de urgência, os militares também visitam mulheres em vulnerabilidade, promovem palestras educativas para formação de policiais militares e panfletam a área de atuação do projeto. “Disponibilizamos duas equipes que visitam as casas das mulheres que sofreram maus-tratos para cumprir medidas protetivas”, esclarece a subcomandante da Patrulha, Dayse Pereira Vaz. (Daqui. Patrulha evita mais violência. Quinta-feira, 27 de agosto de 2015, p.3) Vítima de agressões durante quatro anos e sete meses, a comerciante Bárbara de Queiroz (nome fictício) tomou coragem recentemente para denunciar os abusos cometidos pelo marido e espera, que com a iniciativa, ele pare com as ameaças (Daqui. Patrulha evita mais violência. Quinta-feira, 27 de agosto de 2015, p.3) Fonte: Daqui. Patrulha evita mais violência. Quinta-feira, 27 de agosto de 2015, p.3 Na primeira citação é importante observar a questão de gênero do lugar de fala. Quem representa oficialmente a Polícia Militar, e consecutivamente o 392 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Estado, é uma mulher, que “esclarece” a forma de funcionamento do Projeto. Na segunda citação, o jornal traz o depoimento da comerciante “Bárbara de Queiroz”, que utiliza o nome fictício para dificultar sua identificação. O jornal também traz a foto tirada de cima para baixo, demonstrando a fragilidade da pessoa fotografada: uma mulher, sentada em uma cadeira de plástico, com as mãos entrelaçadas sobre o colo. A primeira oração é formulada na voz passiva, mesmo relatando que a mulher tomou coragem para denunciar. Esse tempo verbal e a utilização do advérbio “recentemente” conferem a Bárbara o papel de vítima, que ainda mantém uma relação com o autor e tem, na denúncia, uma forma de salvar a relação com o fim das ameaças. Outro aspecto importante dessa veiculação é que a matéria sobre a Patrulha Maria da Penha ladeia a notícia sobre a comerciante Halyne Netto, mesma profissão de Bárbara, a mulher apresentada pela primeira matéria. Nossa interpretação é que a intenção do jornal foi fazer um comparativo entre as duas mulheres. Além da prestação de serviços à comunidade informando esse dispositivo da Polícia Militar, a tragédia vivenciada por Halyne é usada como exemplo negativo do que pode acontecer caso a vítima mantenha um relacionamento com o autor, conforme demonstra esse trecho da notícia: (...) além das agressões e ameaças sofridas no relacionamento que durou sete anos, também foi estuprada no ano passado. Ao longo de toda a cobertura do caso218, a vítima é culpabilizada. Se em outras notícias sua denúncia era colocada em descrédito, após tantas evidências confirmadas por autoridades médicas e jurídicas, à mídia restou culpá-la por não procurar ajuda e manter o relacionamento por sete anos com o autor, mesmo já sofrendo outros episódios de violência. Considerações finais O feminicídio íntimo é uma categoria criada para visibilizar os crimes de gênero cometidos contra as mulheres por parceiros ou ex-parceiros. Foi possível observar que no âmbito do jornal Daqui, as matérias que veiculam crimes que possuem características de um feminicídio íntimo ou tentativa de feminicído não apresentam esse fenômeno como fruto de um problema sociocultural, produto da reprodução de um comportamento machista e patriarcal que torna o Estado de Goiás o terceiro no ranking desse tipo de assassinato no Brasil, e sim um fato isolado da segurança pública ou da passionalidade de um indivíduo. 218. Halyne Netto foi jogada do segundo andar de seu prédio pelo companheiro, além de denunciar casos de estupro e outras agressões sofridos ao longo do relacionamento. Em toda a cobertura da tentativa de feminicídio, o Jornal Daqui colocou em dúvida a versão da vítima, mesmo com diversas lesões graves no corpo. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 393 Porém, mesmo com erros relativos à cobertura dos casos, o jornalismo possui uma função social imprescindível. Como exemplo da função social do jornalismo, estão dados importantes que demonstram através das publicações, o contexto de vulnerabilidade social que o feminicídio íntimo está inserido. O veículo apresenta como vítima ou sobrevivente da tentativa de feminicídio, mulheres, cuja média de idade era de 29 anos, majoritariamente moradoras de bairros ou localidades pobres e periféricas, que possuem subempregos, ou exercem atividades sem remuneração. Os recortes de raça/cor puderam ser conhecidos através das fotografias que ilustram as matérias, sendo a maioria dessas mulheres negras. Por fim, ressaltamos que através das notícias é possível conhecer dados e relatos de casos muitas vezes ocultados pelos números oficiais, além de observar como o discurso molda e é moldado pelas práticas sociais relativas à percepção desses crimes. Referências BELLOQUE, J. G. Feminicídio: o equívoco do pretenso Direito Penal emancipador. 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Esta pesquisa analisa o espaço destinado às mulheres em portais esportivos no período de realização dos jogos olímpicos bem como posteriormente a esse evento. Foram analisadas as publicações dos portais Lance! e espnW em dois intervalos: a realização das olimpíadas e seis meses depois, de modo a verificar se houve diferença na cobertura. Constata-se que não houve diferença no destaque dado aos esportes femininos e que mesmo durante a cobertura de um evento com grande participação de atletas mulheres, como a Olimpíada, há ênfase majoritária para esportes e fontes masculinas, praticamente unânimes como especialistas/experts. Palavras-chave: Gênero; Mulheres; Jornalismo esportivo; Portais esportivos. Introdução O jornalismo esportivo áreas , principalmente porque é o espaço onde se narra uma das principais marcas da chamada identidade nacional brasileira – o futebol. 219. Um recorte da pesquisa que compõe este capítulo (que destacava exclusivamente a cobertura dos portais durante a olimpíada) foi anteriormente apresentado no IJ-DT1: Intercom Júnior - Jornalismo, evento componente do XXXIX Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação realizado em Curitiba em 2017 e outra versão foi apresentada no IX Seminário Nacional de Sociologia Política realizado na UFPR em maio de 2018. 220. Doutora em Comunicação e Informação pelo PPGCOM/UFRGS. Professora do PPGCOM e dos cursos de graduação do Decom/UFPR. Pesquisadora do grupo Nefics (PPGCOM/UFPR). Email: vmichela@gmail.com 221. Mestrando no PPGCOM/UFPR. Bacharel em Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Email: elyson.gums@gmail.com. 222. Bacharel em Jornalismo pela Universidade do Vale do Itajaí – Univali. Email: dheyzekarol@gmail.com Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 397 Apesar de ser considerado paixão nacional, há ainda a permanência de um “senso comum” de que as mulheres não entendem de futebol, portanto não estão qualificadas para narrá-lo, comentá-lo ou praticá-lo, aspecto que pode ser facilmente constatado nos noticiários esportivos televisivos onde a presença das mulheres como fontes é praticamente ausente223. Em outros esportes, a presença feminina é um pouco mais efetiva, ainda assim, predomina uma cobertura majoritariamente masculina no mundo dos esportes. O maior evento esportivo do mundo, os jogos olímpicos, constitui um momento importante para verificar se a invisibilidades das mulheres na cobertura esportiva efetivamente apresenta-se como uma problemática da falta de equidade de gênero. Esta pesquisa tem como proposta, portanto, realizar uma análise comparativa de dois portais especializados na cobertura esportiva, em dois períodos, de modo a verificar, justamente, o possível impacto dos jogos olímpicos nessa visibilidade. A pesquisa se propôs a verificar como os portais Lance!224 e espnW225 realizam a cobertura do evento, quais fontes, temas, pautas são evidenciados e, deste modo, como se evidencia a visibilidade feminina nos dois veículos. Busca também verificar se essa visibilidade diminui quando não está em foco a olimpíada. Ambos são portais especializados, definidos como portais verticais (FERRARI, 2003), ou seja, dedicam-se especificamente à cobertura esportiva, motivo pelo qual foram escolhidos para análise, sendo que o espnW surgiu justamente com a proposta de preencher a lacuna de visibilidade feminina na cobertura esportiva. Foram selecionados dois portais também pelo potencial de alcance da internet, da sua possibilidade de repercussão para além da questão geográfica e também pela perspectiva da possibilidade de participação mais efetiva do público, o que também foi levado em consideração durante a análise. A problemática concentra-se em verificar se e quando as mulheres protagonizam a cobertura esportiva dos portais tendo como objetivo analisar o espaço e o destaque dados às mulheres no conteúdo do jornalismo esportivo na cobertura dos portais Lance! e espnW durante e após as olimpíadas. Mulheres e jornalismo esportivo A mulher frequentemente esteve ligada ao futebol como adorno. Eram coadjuvantes, tinham função de “embelezar” o espetáculo. A criação do termo 223. Embora seja possível perceber um número já significativo de apresentadoras em programas esportivos o que pode ser visto como positivo por um lado mas por outro pode reforçar a ideia de “mulheres como adorno”, ou seja, pela lógica da “beleza” em tela. 224. http://www.lance.com.br/ 225. http://espnw.espn.uol.com.br/ 398 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) “torcedor”, no início do século XX, pelo escritor Coelho Neto, descrevia as mulheres cariocas da época. Iam ao estádio usando vestidos, luvas e chapéus. Pereira (2000, p. 70) destaca que “[...] as jovens moças − descritas pelo cronista como ‘o elemento frágil da série humana’ − eram, portanto parte ativa da consolidação do jogo por entre esses círculos elegantes, contribuindo decisivamente para sua transformação em evento social da moda”226 [...] Um século depois, a representação continua semelhante. Postagens de alguns clubes de futebol no Facebook e ações de marketing no Dia Internacional da Mulher, por exemplo, reforçam a imagem do público feminino como “belo e frágil”. Entre elas, uma ação de marketing da Sociedade Esportiva Palmeiras, em 2017, que deu descontos às torcedoras em uma floricultura. No mesmo ano, o Olé, importante portal esportivo da Argentina, compartilhou um gif animado falando sobre “qualidades femininas”, como o sentimentalismo e a maternidade. Exceções vieram de clubes como o Sport Club Corinthians Paulista, com o mote “o lugar das mulheres é onde elas quiserem, inclusive no estádio”, e da Associação Atlética Ponte Preta, que alertou para a violência contra a mulher.De acordo com ( 2007), certos grupos ainda têm dificuldade em aceitar a crescente presença feminina no futebol. [...] Jogar uma pelada no fim de semana ou sair com os amigos para assistir a um jogo em algum estádio de futebol são importantes instrumentos de socialização masculina. Sendo assim, é grande o grau de familiaridade que muitos homens possuem com o futebol e isso faz com que tanto seu interesse quanto seu conhecimento acerca desse esporte sejam tomados como uma espécie de segunda natureza masculina. (DA COSTA, 2007, p. 3). Isso acaba gerando desentendimento também por parte do marketing esportivo, que se apoia na ideia de que a mulher não é público consumidor de esporte. Isso pode ser verificado no lançamento dos uniformes da temporada 2016 do Clube Atlético Mineiro, feita pela empresa DryWorld. As modelos desfilaram usando apenas biquini e a camisa do time. A etiqueta de lavagem também gerou polêmica e a repercussão negativa foi nacional. 226. Vale destacar que esse cenário não era exclusividade dos espaços esportivos ou especificamente do futebol mas se relaciona aos atributos dos papeis de gênero da sociedade brasileira da época, especialmente a dos altos círculos sociais como era o caso do acesso ao esporte na época. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 399 Figura 1 – Frase “give it to your wife”227 na etiqueta da camisa228 Martins e Moraes (2007) reiteram que, geralmente, o comportamento extra-campo e a estética das atletas são tão importantes quanto seu rendimento dentro de campo. Goellner (2014) alerta ainda para a pouca representatividade da mulher na imprensa esportiva, onde elas “têm pouca visibilidade e suas conquistas são simbolicamente anuladas porque são pouco comemoradas ou mesmo mencionadas na mídia, inclusive esportiva” (s/p.). Martins e Moraes (2007) defendem a ideia de que há um “silêncio da mídia” quando o assunto é futebol feminino, por exemplo. Historicamente, o jornalismo esportivo tem deixado a mulher à margem de suas narrativas. Coelho (2004) destaca que até a década de 1970 era quase impossível encontrar mulheres no jornalismo esportivo. Embora muito já se tenha conquistado, o autor aponta que apenas 10% dos jornalistas esportivos são mulheres. Não há dados a respeito do panorama atual da mulher que produz conteúdo sobre esporte, mas dados da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj)229 apontava que 64% dos jornalistas brasileiros são mulheres. O estudo mais recente sobre a atuação de jornalistas no Brasil, realizado por Moreira (2017), demonstra uma mudança no cenário: 50,8% são homens e 49,2 % são 227. Dê para sua esposa, em tradução livre. 228.Fonte: http://www.otempo.com.br/superfc/dryworld-se-desculpa-por-etiqueta-em-camisas-mas-n%C3%A3o-comenta-desfile-1.1236625 http://www.otempo.com.br/superfc/dryworld-se-desculpa-por-etiqueta-em-camisas-mas-n%C3%A3o-comenta-desfile-1.1236625 229. Pesquisa realizada em 2013 pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, em convênio com a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), com apoio do Fórum Nacional de Professores de Jornalismo (FNPJ) e Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJor). 400 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) mulheres, “um resultado que surpreende, no entanto, nas duas últimas décadas, a imagem das redações como espaços de crescente crescimento e presença feminina era comum”. Ainda assim, com números praticamente idênticos na presença de homens e mulheres nas redações brasileiras, podemos visualizar, mesmo sem dados empíricos, que no segmento do jornalismo esportivo essa realidade é bastante distinta. Martins e Moraes (2007) reiteram que, geralmente, o comportamento extra-campo e a estética das atletas são tão importantes quanto seu rendimento dentro de campo. Goellner (2014) alerta ainda para a pouca representatividade da mulher na imprensa esportiva, onde elas “têm pouca visibilidade e suas conquistas são simbolicamente anuladas porque são pouco comemoradas ou mesmo mencionadas na mídia, inclusive esportiva”. A ausência não é apenas da mulher que narra, mas também, e, sobretudo, da mulher que é notícia. Poucas têm sido as situações em que a mulher atua como protagonista nas narrativas esportivas. Este cenário se fez presente na cobertura da mídia impressa na Olimpíada de Londres-2012 ( JOHN, 2012)230, em que 74% das fontes ouvidas foram homens e apenas 7% dos textos foram assinados por mulheres. Essa característica não é uma exclusividade do jornalismo esportivo. Pesquisa realizada em 2015 pelo Monitoramento Global de Mídia231 aponta que as mulheres são escolhidas como fontes em no máximo 24% das notícias, sendo em geral fontes secundárias, dificilmente escolhidas como fontes oficias ou especialistas. Segundo Leda Maria da Costa (2006), o cenário de sub-representatividade torna a internet um espaço propício para o debate sobre gênero e esporte. “O ciberespaço é amplamente aproveitado pelo público feminino de futebol, fornecendo deste modo um interessante material através do qual é possível darmos alguns passos no universo das torcedoras” (p.11). Deste modo, o portal espnW foi escolhido como objeto para esta pesquisa a fim de verificar, no comparativo com o principal portal especializado no tema esporte, principalmente na cobertura do futebol e que não tem uma preocupação específica quanto a esse aspecto - o portal Lance! - como ocorre a 230. A pesquisa analisou as publicações dos impressos Lance! e Folha de S. Paulo durante o período de realização dos Jogos Olímpicos em 2012. 231. O Projeto de Monitoramento Global de Mídia (GMMP em inglês) é uma iniciativa da WACC – Associação Mundial para a Comunicação Cristã. É realizado desde 1995 e analisa a visibilidade das mulheres na cobertura jornalística mundial. Os dados são do relatório de 2015 (a pesquisa é realizada de 5 em 5 anos) e pesquisa evidencia a exclusão das mulheres nos meios noticiosos. O relatóri aponta que a presença das mulheres nas noticias chegou a 24%, contra 17% da primeira pesquisa em 1995, o que demonstra que apesar do aumento, este foi lento e ainda persiste um mundo majoritariamente masculino nos noticiários, o que reforça as diferenciações a partir do gênero. (WACC, 2015) Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 401 visibilidade feminina, quais temas, pautas, tipos de fontes, especialmente quais esportes são associados às mulheres e como se dá a relação mulheres x cobertura do futebol a partir do comparativo entre os dois veículos, sendo o primeiro o que se propõe, justamente, a preencher essa lacuna histórica. Procedimentos metodológicos A pesquisa tem como objetos de análise os portais esportivos espnW e Lance! O site Lancenet e o diário Lance! existem desde outubro de 1997. Após reestruturações, o jornal tornou-se o principal diário esportivo do Brasil, título que mantém até hoje. Tem grande relevância online, com 3,4 milhões de seguidores no Facebook, 618 mil no Twitter e 123 mil seguidores no Instagram. O Lance! é um portal especializado em esportes, sem qualquer definição específica para a questão de gênero e por ser considerado o especializado de maior importância nessa área foi escolhido como objeto para comparação com um portal que nasceu com a preocupação de focar na questão feminina – o espnW. O espnW vincula-se à ESPN (Entertainment and Sports Programming Network), rede de TV por assinatura com base nos Estados Unidos. Desde 2009, possuem o portal online espnW, dedicado a ser uma voz feminina no esporte. A versão brasileira do site foi lançada em 08 de março 2016, por meio da campanha publicitária Invisible Players. O espnW é o primeiro portal exclusivamente feminino232 vinculado a um grande veículo de comunicação no Brasil. De modo a verificar comparativamente como Lance! e espnW abordam a questão do feminino em suas coberturas, foram estabelecidos dois intervalos de análise. O primeiro evidencia a cobertura durante os jogos olímpicos do Rio de Janeiro, realizados no período de 05 a 19 de agosto de 2016, sendo estabelecido como período de coleta o intervalo de 02 a 22 de agosto – um dia antes do início e um dia após o fim dos Jogos. O segundo intervalo de análise compreendeu o período de 20 de março a 08 de abril de 2017, totalizando a mesma quantidade de dias. Esse período representa seis meses após a da realização dos jogos e quando se intensifica o “calendário” do futebol no Brasil, com as competições estaduais e Copa Libertadores da América. Utilizando o comando de impressão do Google Chrome, todos os tex232. O portal é “uma plataforma digital esportiva, com foco nas mulheres”, sem se limitar apenas à cobertura de esportes de alto rendimento. Em seu post de apresentação, o espnW explica que o objetivo do site, quando de sua criação, era “ser o primeiro, o melhor e mais autêntico destino para as mulheres que amam esportes”. O conteúdo é produzido por mulheres e com foco nas mulheres. 402 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) tos foram salvos em PDF e organizados dentro de pastas para cada um dos dias de coleta. Paralelamente a esse processo, essa informação foi organizada em planilhas do Microsoft Excel, em abas separadas pelas editorias (como futebol, vôlei, automobilismo). Foram adicionadas informações de identificação dos textos, como títulos, links para acesso e datas de publicação; se eram textos da cobertura principal ou de blogs de colunistas; se havia protagonismo masculino ou feminino etc. Para a análise das fontes, foram criadas novas planilhas para cada editoria analisada, para facilitar o acesso à informação na análise quali-quantitativa. O método utilizado para a coleta e análise dos dados foi a análise de conteúdo (AC), conforme proposta por Bardin (2011). A primeira etapa foi a de quantificação das fontes femininas em relação às fontes masculinas na cobertura da olimpíada e do período posterior feita pelos portais, adotando o pressuposto de frequência/ausência de Bardin. Em seguida, foi feita a categorização das fontes ou seja, a atribuição do status dado às fontes femininas e masculinas a partir da classificação de fontes de Lage (2002), que as separa em: oficiais, oficiosas, independentes, primárias, secundárias, testemunhas e experts. Para este processo foi adotada também a classificação da visibilidade feminina conforme critérios do Monitoramente Global de Mídia (WACC, 2015)233. No primeiro período de coleta, foram analisadas as fontes dos textos de futebol feminino e atletismo, e no segundo período de coleta, os textos sobre futebol feminino e vôlei234. Panorama geral do Lance! durante a olimpíada A cobertura do portal foi feita por meio de um grande volume de textos curtos e narrativas factuais. No período de 02 a 22 de agosto de 2016 foram coletados 1561 posts, incluindo 106 textos de blogs e 24 sobre as Paralimpíadas. O blog da TV Lance! publicou 54 vídeos sobre os Jogos, reproduzidos nas outras páginas. 44 foram sobre medalhistas – 34 homens e 10 mulheres. O esporte mais destacado pelo portal foi o futebol, que também domina o restante do noticiário do Lance!, com 334 posts. Textos que não tratam de nenhuma modalidade específica – como os resumos de cada dia de Olimpíada – somam 188 posts. Outros 160 textos abordam questões envolvendo a estrutura do 233. Quando as mulheres são fontes (editorias, assuntos, temas)? Que tipo de fontes elas são (especialistas, falam em nome próprio etc)? 234. O futebol feminino foi selecionado por ser a principal modalidade do país e principal pauta dos noticiários. O atletismo, por ser uma modalidade em que há um número semelhante de mulheres e homens competindo. O vôlei foi selecionado por ser um esporte em que a Seleção Brasileira alcança bons desempenhos, com os times masculinos e femininos. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 403 evento. Os outros dois esportes com mais publicações foram atletismo, com 96 entradas, e vôlei de quadra, com 95. Situações curiosas e inusitadas também tiveram espaço na cobertura do site, com 72 textos, como “Astro da ginástica toma susto na conta de celular com Pokémon Go”, do dia 02/08. Quadro 1 – Esportes mais abordados pelo Lance!235 Fonte: Elaborado pelos autores Nota-se a predominância das provas disputadas por homens. Com exceção do judô e do vôlei de praia, competições em que as mulheres tiveram desempenho semelhante ou melhor que os homens, a lista dos esportes com mais posts compreende maior espaço ao masculino. Este predomínio é visto principalmente no futebol, principal esporte do país. Entre os eventos mais assistidos nas TVs brasileiras, apenas o jogo de futebol Brasil x Dinamarca contempla uma modalidade feminina236. Outra característica do portal é a presença das musas. Em todos os dias de análise, havia pelo menos um texto ou galeria de imagens exaltando a beleza de atletas mulheres ou esposas de atletas homens na homepage do site. Ao erotizar o corpo feminino, o site reproduz o estereótipo de uma “feminilidade natural”, composta por elementos como graciosidade e sensualidade, reduzindo as mulheres a essas características (GOELLNER, 2005). Esta espetacularização dos corpos faz com que a beleza física das atletas se torne notícia, e não suas habilidades enquanto profissionais. 235. Consideram-se aqui modalidades com mais de 50 posts. 236. Fonte: http://torcedores.com/noticias/2016/09/veja-como-foi-a-audiencia-dos-jogos-olimpicos-rio-2016-na-tv 404 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Panorama da cobertura da espnW durante a olimpíada Com as notícias em tempo real sendo publicadas pelo site principal da ESPN, o espnW trouxe reportagens aprofundadas sobre os esportes, com foco principal na história das atletas. Embora não tenha havido preocupação específica em noticiar os resultados, a participação brasileira influenciou as publicações no período. Possivelmente isso explique o judô, em que o Brasil foi medalhista, ter sido valorizado na cobertura, e a ausência de esportes como natação e atletismo, em que atletas brasileiras não tiveram bons desempenhos. Durante o período analisado, foram publicados 70 textos, incluindo reproduções de matérias postadas no site principal da ESPN Brasil. Mesmo durante o andamento da Olimpíada, a produção do site não foi exclusivamente voltada à competição. Quadro 2 – Esportes mais abordados pelo espnW237 Fonte: Elaborado pelos autores O futebol também foi a modalidade mais mencionada, com 15 publicações no período analisado. O judô aparece logo em seguida, com 11 posts. A natação foi assunto de seis entradas, e o vôlei de praia, de cinco. Apenas seis textos sobre a Olimpíada não focaram em modalidades e femininas: dois sobre futebol, três sobre judô e um sobre natação. No futebol, um deles era sobre uma dirigente do Barcelona e outro sobre uma ação do Corinthians recriminando a violência contra a mulher; no judô e natação, foram entrevistas feitas por uma das repórteres do site com atletas da delegação brasileira. As fontes enfatizadas durante a Olimpíada Foram analisados 51 textos de futebol feminino do Lance!, em que 77 fontes foram ouvidas. A maioria dos textos (31) traz apenas uma fonte. Lage (2002) indica ouvir ao menos três fontes, a fim de comparar as versões e estabelecer o que é a verdade. As fontes foram 40 mulheres, 33 homens e 4 institui237. Consideram-se aqui modalidades com mais de cinco posts. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 405 ções. Apenas homens representaram essas instituições. As mulheres entrevistadas eram sempre identificadas como jogadoras ou treinadoras das equipes. Entre as mulheres, 29 foram testemunhas e 11 experts. Os especialistas mais procurados para falar sobre futebol foram técnicos. Foram ouvidos para darem detalhes sobre preparações e táticas e, mesmo enquanto especialistas, estavam diretamente envolvidos com os fatos noticiados, uma vez que falavam sobre suas próprias equipes. Os homens entrevistados para as pautas de futebol feminino eram, em sua maioria, os treinadores de suas Seleções. Quando não era esse o caso, eram fontes oficiais representando instituições. No atletismo, a cobertura do Lance! priorizou fontes e narrativas masculinas. Em 56 textos analisados aparecem 79 fontes; 55 delas testemunhas, 18 oficiais, 5 experts e uma independente. Foram 55 homens, 17 mulheres e sete instituições. Dois eventos específicos das provas masculinas receberam mais destaque do que toda a cobertura feminina: Usain Bolt; Thiago Braz e Renauld Lavillenie, o francês vaiado no pódio. Eles foram assunto de 25 textos, enquanto todas as provas femininas noticiadas somam 16 posts. Isto explica a predominância de protagonismo masculino nos textos de atletismo: foram ouvidos atletas e membros de comissões técnicas, compostas majoritariamente por homens. As únicas mulheres fontes nas provas masculinas foram a saltadora russa Yelena Isinbayeva, como expert, em “Isinbayeva comenta ouro de Thiago Braz e diz: ‘Não foi surpresa’”, de 17/08, e uma representante da Ong Colour Blind-Awareness, em reportagem que usa Usain Bolt como gancho para falar de pistas de atletismo inclusivas para daltônicos. O espnW ouviu 17 fontes em cinco textos sobre futebol. “Futebol Feminino do Brasil busca muito mais do que o ouro nos Jogos Rio-2016”, do dia 16/08, é o único com menos de três entrevistados. Isto ocorre, possivelmente, devido à escolha editorial de não se pautar pelo factual. Com exceção das reproduções do site oficial da ESPN, foram publicadas apenas reportagens no período analisado. Nestes textos, a redação do site priorizou as opiniões femininas, trazendo 14 fontes mulheres. Foram ouvidos três homens e um deles foi o único especialista consultado. Todas as mulheres que aparecerem nas reportagens são testemunhas. Os personagens mais corriqueiros foram as jogadoras Formiga e Marta – três textos foram dedicados diretamente às jogadoras e elas aparecem ao longo dos outros dois. As outras jogadoras da Seleção Brasileira são citadas apenas 406 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) em textos relacionados às duas. As modalidades do atletismo foram ignoradas pelo espnW – não houve menção às provas disputadas e nem às atletas brasileiras, que não eram consideradas favoritas. As estrangeiras medalhistas também não foram assunto de posts. As notícias que abordam temas relacionados ao atletismo podem ser agrupadas dentro da categoria “cuidados com o corpo”, já que ofereciam suporte para os leitores que desejam começar a correr, como “Cuidados para a primeira prova de 5 km”, de 14/08. O pouco espaço – em alguns momentos completa ausência – de mulheres como fontes especialistas e oficiais, ou seja, vozes consideradas mais qualificadas, vai ao encontro dos resultados obtidos pelo Projeto de Monitoramento Global de Mídia (WACC, 2015), em que apenas 21% das fontes especialistas são mulheres em notícias publicadas na internet. A cobertura Lancenet priorizou o futebol, principal modalidade do site. Foram publicadas um total de 842 matérias sobre o assunto. Em seguida aparece o automobilismo, com 113 textos. Os outros temas abordados pelo portal foram pautas envolvendo MMA, em 50 textos; tênis, em 40 textos; vôlei, em 37 textos; estrutura de eventos, em 32 textos; esportes aquáticos, em 27 textos; basquete, em 13 textos; e motociclismo e jogos eletrônicos com 8 textos cada. Outras modalidades somam mais 56 textos. Foram coletados 1246 posts durante o período analisado. Quadro 3 - Modalidades abordadas pelo Lance! Fonte: Elaborado pelos autores Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 407 Assim como durante Olimpíada, é perceptível a predominância dos esportes praticados por homens, já que apenas o vôlei dá maior espaço para disputas femininas, com 19 posts, cinco a mais do que as provas masculinas. Somados, o site publicou apenas 36 textos focados em mulheres, contra 1096 posts sobre homens. O maior desequilíbrio aparece justamente no carro- chefe do site, o futebol: foram 815 textos dedicados para os campeonatos masculinos e apenas dois para os femininos. Do total, 25 textos não tratavam de nenhum gênero específico. Panorama da cobertura da espnW Devido à proposta editorial do espnW, praticamente todos os textos foram sobre provas femininas. A exceção foram textos que não falam sobre nenhum gênero específico e um post sobre futebol masculino. Posts que falam sobre provas masculinas e femininas de atletismo somam 9 textos. Em seguida vêm tênis, com oito; lutas, com cinco; hóquei com quatro; e motociclismo e basquete com três. Textos sobre temas diversos totalizam 24 posts. Foram publicados 84 textos durante o período analisado. Quadro 4 - Modalidades abordadas pelo espnW Fonte: Elaborado pelos autores Assim como no Lance!, a principal modalidade abordada foi o futebol, com 19 textos, sendo 17 sobre futebol feminino e um sem gênero. A preferência pelo esporte mais popular do país foi vista no próprio espnW também 408 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) durante a Olimpíada, quando atletas da Seleção Brasileira foram as principais personagens. Outra semelhança na cobertura foram os textos em menor quantidade, mas mais aprofundados. Análise das fontes após a Olimpíada Foram analisados os dois textos sobre futebol feminino postados no Lance!, referentes ao Campeonato Paulista, iniciado em abril de 2017. Um terceiro texto é uma galeria de imagens da atriz Fiorella Matheis, namorada do atleta Alexandre Pato. Esta entrada faz parte de uma série de galerias de imagens sobre “beldades” do esporte, de modo semelhante ao que acontecia durante a Olimpíada. A única fonte ouvida nestes textos é Marta, como testemunha, em uma de suas visitas ao Brasil para acompanhar um jogo na Vila Belmiro. O site também entrevistou Fiorella, que falou sobre o processo de caracterização para a novela. Novamente, há uma média de fontes por texto inferior ao recomendado por Lage (2002). Em 21 textos sobre vôlei analisados, foram entrevistadas 38 fontes. As 25 mulheres foram, novamente, qualificadas como testemunhas. Isso acontece mesmo em situações em que têm domínio técnico sobre o esporte, mas são perguntadas sobre suas percepções acerca do evento. No espnW, foram analisados 17 textos sobre futebol feminino. Foram ouvidas 16 fontes, sendo 10 testemunhas; quatro fontes oficiais; um especialista e uma fonte independente. Vale destacar que durante a Olimpíada, a média de fontes do site para futebol feminino era de 4,5 por texto, no segundo período de coleta foi de pouco menos de um. Apesar da diferença no número de textos publicados evidenciar maior destaque para o esporte feminino no espnW, a configuração das fontes é semelhante ao Lance!, no sentido de não consultar muitos especialistas -- e de nenhum deles ser mulher -- e de o enfoque das matérias ser na opinião de testemunhas das notícias. Essas testemunhas foram apresentadas, em geral, como treinadoras ou atletas. Como o site não escreveu sobre vôlei, foram analisados oito textos sobre tênis. Foram ouvidas cinco fontes, quatro testemunhas eu a fonte oficiosa. As três mulheres são testemunhas, e de forma semelhante ao restante dos dados analisados, o papel das mulheres ficou restrito ao de testemunhas dos aconDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 409 tecimentos. Os dados, mais uma vez, coincidem com o Projeto de Monitoramento Global de Mídia (WACC, 2015), que destaca o caráter global dessa falta de visibilidade para mulheres em cargos oficiais ou de experts na internet. Considerações finais Os resultados apontam que houve pouca diferença na vibilidade de pautas e fontes femininas em ambos os períodos de coleta. Durante a Olimpíada, foram coletados 1.561 posts no Lance! e 70 no espnW. O foco foi futebol, embora no Lance! as modalidades femininas tenham menos destaque que a masculina. Em ambos existe a preferência por fontes testemunhais e ausência de mulheres especialistas ou fontes oficiais, o que, de certo modo, colabora para a “voz de autoridade” atribuída ao masculino. Sobre as particularidades, no período da Olimpíada, no Lance! destaca-se a erotização dos corpos por meio da presença das “musas” e o pouco espaço para modalidades femininas. No espnW, as mulheres foram protagonistas, mas os poucos textos postados enfatizam poucas atletas. Além disso, também são poucas as mulheres em posições oficiais ou de experts. Na segunda fase, foram coletados 1.246 posts do Lance! e 84 textos do espnW. Apesar de o espaço destinado ao vôlei no Lance! ter sido relativamente proporcional entre os gêneros – modalidade com maior número de publicação do gênero feminino, sendo 19 dos 36 posts com o foco nas atletas –, a configuração das fontes permanece. Tanto o Lance! quanto o espnW, continuaram apresentando, majoritariamente, mulheres como fontes testemunhais. Como a Olimpíada congrega muito mais atletas e modalidades femininas no calendário esportivo do que em qualquer outro momento, consideramos importante enfatizar aqui esse período da coleta, uma vez no que período posterior a hipótese, confirmada, era da quase total invisibilidade. A Rio-2016 foi a Olimpíada com maior número de atletas mulheres participantes. Até então, era a Olimpíada de Londres-2012. Na ocasião, o diário impresso do Lance! também preferiu fontes masculinas em sua cobertura (JOHN, 2012). Mesmo representadas em diversas modalidades, nas duas edições, as mulheres não foram frequentes como fontes para as pautas. Embora em 2016 isso não seja perceptível quantitativamente no futebol feminino, é justificado, por exemplo, pela principal fonte usada nas matérias referentes a essa modalidade ser um homem. No atletismo, o destaque mínimo para atletas e fontes femininas é evidente. 410 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Ao diminuir o espaço das mulheres – tanto em número de fontes, quanto na qualificação de seus discursos – o Lance! reproduz o estereótipo do esporte como um espaço dedicado aos homens. O site promove objetificação e erotização dos corpos em alguns textos, tema problemático para a relação das atletas mulheres com o esporte (GOELLNER, 2005), por simplificar as personagens, tratando-as como representações de beleza e sensualidade, sem enfatizar suas qualidades esportivas. Curiosamente, essas pautas coexistem com questionamentos como: Boxeadora reclama de preconceito e diz: ‘Quero ser citada pelo talento’, postada em 04/08. Para Basthi (2013), posturas parecidas são comuns na imprensa brasileira, de forma geral. Portanto, é impossível afirmar que o Lance! intencionalmente reproduza pensamentos sexistas. O mais provável é que esteja repetindo conceitos já consolidados na imprensa esportiva sem questioná-los, contribuindo assim para a não problematização das representações já existentes e perdendo a oportunidade de propiciar a circulação de outras representações, inclusive deixando de ampliar as “vozes” ouvidas pelo jornalismo esportivo, atributo essencial à prática jornalística. No espnW, as mulheres são praticamente unânimes como protagonistas. Suas histórias são os principais temas das reportagens, e as fontes de praticamente todas as matérias são mulheres. Apesar disso, devido ao pouco volume de texto, algumas atletas (como Marta e Formiga) receberam destaque, enquanto outras importantes jogadoras (Bárbara, Tamires) não foram sequer mencionadas; e outras modalidades, como o atletismo, não são destacadas. De todo modo, ainda que de forma esperada pela proposta editorial do veículo haja a valorização das personagens femininas, vale destacar a quase total ausência de vozes femininas experts. Embora seja positiva a valorização de outras vozes, de certo modo também a espnW atribui ao masculino a “voz da autoridade”. O mais provável é que.. O que se nota, portanto, como aspecto comum aos portais é a ausência de mulheres como fontes especialistas. A maioria dos textos evidencia fontes envolvidas diretamente com o fato, que têm conhecimento comprovado sobre esporte, mas falaram como testemunhas dos textos noticiados – seja em entrevistas à beira do campo, seja relembrando fatos vividos no passado. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 411 Referências BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BASTHI, A. Guia para Jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia. Brasília: ONU. Disponível em: <http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uploads/2013/01/ guia_jornalistas.pdf>. Acesso em: 18 out. 2016. COELHO, P. V. Jornalismo esportivo. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2004. DA COSTA, L. M. O que é uma torcedora? Notas sobre a representação e autorepresentação do público feminino de futebol. 2007. DUNNING, E.; MAGUIRRE, J. As relações entre os sexos no esporte. Revista de estudos feministas. IFCS/UFRJ, Rio de Janeiro, p. 321- 48, v. 5, n. 2, 1997. FERRARI, P. Jornalismo digital. São Paulo: Contexto, 2003. GOELLNER, S. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de 35 Educação Física e Esportes, São Paulo, v. 19, n. 2, p. 143-151, abr./ jun. 2005. ___________. Mulheres e futebol: Entre bolas e bonecas, a dificuldade de inserção. Disponível em: <http://pre.univesp.br/mulheres-e-futebol#.W1IQ7tJKjIU>. Acesso em: 20 jul. 2018. JOHN, V. M. Jornalismo esportivo e equidade de gênero: a ausência das mulheres como fonte de notícias na cobertura dos jogos olímpicos de Londres 2012. Estudos em Jornalismo e Mídia, v. 11, n. 2, jul a dez de 2014. LAGE, N. A reportagem: teoria e técnica de entrevista e pesquisa jornalística. 2.ed. Rio de Janeiro: Record, 2002. MARTINS, L. T.; MORAES, L. Futebol feminino e sua inserção na mídia: a diferença que faz uma medalha de prata. Pensar a Prática, Goiânia, v. 1, n. 10, p. 69-81, jan./jun. 2007. PEREIRA, L. A. M. Footballmania. Uma história social do futebol no Rio de Janeiro, 1902-1938. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000. WACC - The World Association for Christian Communication. The Global Media Monitoring Project Report 2015. Disponível em: <http://cdn.agilitycms.com/whomakes-the-news/Imported/reports_2015/highlights/highlights_in.pdf>. Acesso em: 21 mar. 2016. 412 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Jornalismo on-line ao âmbito social: a construção do discurso humanizado à luz do gênero Paolla dos Santos SOUZA238 Milena Ferreira Hygino NUNES239 Talita da Silva ERNESTO240 Carlos Henrique Medeiros de SOUZA241 Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Rio de Janeiro, RJ Resumo O presente trabalho apresenta a análise de duas notícias veiculadas na internet, uma em 2017 e outra em 2018, que exemplificam o quanto a mídia, de forma geral, tem reforçado a naturalização da violência e a desigualdade de gênero. A partir de teóricos que se debruçaram sobre a Análise do Discurso da linha francesa, o dialogismo, a heterogeneidade discursiva, o ciberfeminismo, as relações de poder dentro do discurso, além de conceitos-chave que envolvem a internet e o jornalismo on-line, foram analisadas duas matérias jornalísticas on-line, divulgadas nos anos de 2017 e 2018, a fim de comprovar a importância de existir um minimanual do jornalismo humanizado, como o da ONG Think Olga, focado na violência contra a mulher, como alternativa para ajudar na desconstrução e reflexão desse discurso por parte da mídia. Palavras-chave: Jornalismo humanizado; Jornalismo on-line; Discurso jornalístico; Ciberfeminismo; Violência contra a mulher. Considerações iniciais Os jornais on-line têm sido uma importante fonte de obtenção de in238. Doutoranda e mestra em Cognição e Linguagem pela UENF. Cientista Social também pela UENF, tendo cursado a graduação de Ciências Sociais (grandes áreas: Antropologia, Sociologia e Ciência Política). Graduanda em Licenciatura em Letras (Português/Literaturas) pelo IFF. E-mail: paollasantoss@gmail.com. 239. Doutoranda e mestra em Cognição e Linguagem pela UENF e especialista em Literatura, Memória Cultural e Sociedade pelo IFF. Possui licenciatura em Letras (Português/Literatura) pela Universo, graduação em Jornalismo pela PUC-RJ e complementação de estudos em Antropologia da Arte e Cultura pela PUC-RJ. E-mail: milena.hygino@gmail.com. 240. Doutoranda e mestra em Cognição e Linguagem pela UENF. Também mestra em Ciência da Educação pela Universidade Autônoma de Assunção e especialista em Psicopedagogia e Pedagogia Empresarial pelo ISECENSA. Possui graduação em Pedagogia pelo ISECENSA. E-mail: talitaernesto@gmail.com. 241. Professor associado da UENF. Coordenador da Pós-Graduação (Mestrado & Doutorado) Interdisciplinar em Cognição e Linguagem (PGCL/UENF). Doutor em Comunicação e Cultura pela UFRJ. Mestre em Educação, pós-graduado em Gerência de Informática e em Produção de Software pela UFJF. E-mail: chmsouza@uenf.br. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 413 formações de brasileiros usuários de internet, muito provavelmente por certas peculiaridades do meio, como a ubiquidade, a acessibilidade (até certo ponto) e a instantaneidade. A pesquisa TIC Domicílios, publicada pelo Comitê Gestor de Internet no Brasil (CGI, 2017) revelou que, do total de usuários de internet no Brasil, 50% afirmaram que leem jornais, revistas ou notícias on-line. Ou seja, segundo o estudo, metade dos entrevistados, precisamente 53,95 milhões, informa-se pela internet242. A maioria dos veículos de comunicação está vinculado às redes sociais, o que facilita o acesso e ainda possibilita a propagação das ideias de forma mais rápida. Assim, os jornalistas precisam ter ainda mais criticidade no que publicizam. Por isso é pertinente a análise crítica dos conteúdos midiáticos publicados na internet, inclusive por jornalistas, que, teoricamente, como acredita o senso comum, têm legitimidade em informar de maneira imparcial, apesar de o conceito de imparcialidade ser uma falácia, uma vez que “todo fato é percebido e construído constantemente na recategorização dos objetos de discurso. [...] O mundo real depende dos nossos valores e vice-versa” (SILVA, 2006, p. 15). Nesse sentido, compreender o discurso como local de poder, enfrentamento e violência simbólica contra a mulher é absolutamente necessário para se pensar a condição da mulher na atualidade e a cultura a qual ela está inserida. Em 2015, a cada 11 minutos, uma mulher foi estuprada no Brasil, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública. E, de acordo com o Mapa da Violência de 2015, cerca de 30% das mulheres foram mortas por parceiros ou ex-companheiros. No mesmo ano foi sancionada a lei 13.104/15, que passou a tipificar como hediondo o feminicídio – termo que qualifica o homicídio contra mulheres pelo fato de elas serem mulheres, considerando-se as questões de gênero como fatores essenciais para punição mais rigorosa para esses assassinatos, cujos autores passam a responder por crime de gênero e tem aumento da pena em relação ao homicídio comum. Contudo, a realidade sobre a violência contra as mulheres não transita somente pela violência sexual (estupro) e pelo feminicídio. Há muitas formas de violência contra a mulher que escapam às agressões físicas e imperam na sociedade de modo efetivamente sutil e violento, como é a violência simbólica, que opera na subjetividade dos sujeitos. As manifestações de poder na esfera simbólica ocorrem, segundo Bourdieu (2005), devido aos sistemas simbólicos. O autor ressalta que a língua é 242. Dados retirados do gráfico “Usuários de internet, por atividades realizadas na internet” (CGI, 2017, p. 149), gerado a partir de uma pergunta que aceitou mais de uma resposta de cada respondente. 414 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) um dos sistemas mais importantes. Para ele, tal violência é “suave, insensível, invisível às suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento” (BOURDIEU, 2002 p. 8). Nesse sentido, todo o poder simbólico é alcançado por meio da violência simbólica, algo que Bourdieu (2002) identifica haver nas relações de dominação masculina. Por isso, é preciso pensar a linguagem a fim de reconhecer onde a violência está mais escondida, de forma a compreender as estratégias do discurso machista que legitima a violência simbólica, em conformidade com os estereótipos de gênero. Pensar a linguagem, nesse caso, é refletir sobre o discurso do patriarcado, o qual pode ser estabelecido como: Forma de organização política, econômica, religiosa, social, baseada na ideia de autoridade e liderança do homem, no qual se dá o predomínio dos homens sobre as mulheres; do marido sobre as esposas, do pai sobre a mãe, dos velhos sobre os jovens e da linhagem paterna sobre a materna. O patriarcado surgiu da tomada de poder histórico por parte dos homens que se apropriaram da sexualidade e reprodução das mulheres e seus produtos: os filhos, criando ao mesmo tempo uma ordem simbólica por meio dos mitos e da religião que o perpetuam como única estrutura possível (REGUANT, 1966, p. 20). Desvelar a violência praticada por meio da linguagem é uma alternativa contemporânea para perceber o exercício do poder simbólico, o qual acaba por naturalizar comportamentos e discursos machistas que autorizam a cultura do estupro243. Um bom exemplo para elucidar essa questão foi a Marcha das Vadias, realizada no Brasil em junho de 2011, cujo objetivo era manifestar o quanto a violência sexual contra a mulher é justificada pelo seu comportamento, fundamentalmente pelo seu modo de se vestir, evidenciando, assim, como os corpos do gênero feminino são concebidos, controlados, sexualizados e violentados pelo poder patriarcal. Vale ressaltar que o movimento foi transplantado do Canadá, devido ao acontecimento ocorrido em Toronto, também em 2011, como resposta à declaração de um policial, em um fórum universitário sobre segurança no campus, ao pronunciar que as mulheres poderiam prevenir o es243. O conceito foi elaborado por feministas estadunidenses na década de 1960 e tem sido frequentemente utilizado no Brasil pela militância ciberfeminista, que critica a culpabilização de mulheres estupradas pela violência sexual a partir de seu comportamento com acusações do tipo “ela é vulgar mesmo”, “ela não se dá ao respeito” ou, ainda, “ela estava pedindo” (SEMÍRAMIS, 2013, apud ROST, VIEIRA, 20015, p. 267). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 415 tupro se não se vestissem como sluts (vagabundas, putas, vadias). Desde então, a Marcha das Vadias é um protesto feminista que acontece em várias cidades do mundo, mas com outras reivindicações e modos próprios de organização, exatamente por aderir especificidades da realidade de cada território. O fato de ter sido uma organização coletiva que teve origem fora do espaço brasileiro e conseguiu atingir outros países da América revela como a violência sexual de gênero é um acontecimento histórico que atinge a maioria das mulheres em diferentes contextos culturais e sociais. É pertinente salientar que uma das primeiras campanhas originais no Brasil (ou seja, que se sucederam a partir do contexto e por experiências, circunstanciadamente, de mulheres brasileiras) aconteceu em março de 2014, logo após ser divulgada a pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) expondo que cerca de 58% dos seus entrevistados entendiam que, se as mulheres soubessem se comportar devidamente, haveria menos estupros. Logo em seguida, o Ipea tentou corrigir o número para 26%. Contudo, com a força de internet, o protesto com a hashtag “Eu não mereço ser estuprada” já estava sendo articulado e divulgado por mulheres feministas, espalhado por várias plataformas de rede social online. Vê-se que a comoção na internet contra o assédio sexual tem se apresentado como uma das reivindicações mais frequentes do ativismo ciberfeminista na contemporaneidade, o qual se apropria do ciberespaço para mobilizar certas pautas do movimento feminista, tendo como estratégia a utilização de hashtags que estão em constante criação e difusão no Facebook e Instagram. Como exemplo, pode-se citar a campanha “Chega de fiu-fiu”, da ONG Think Olga, lançada em 2014, colocando no cerne da discussão a problemática do assédio verbal nos espaços públicos, e, no ano seguinte, a campanha “Meu primeiro assédio”, que convidava as mulheres a relatar, em primeira pessoa, casos de violência sexual vivenciados por elas. Assim expressa uma das principais autoras sobre os novos feminismos na contemporaneidade: “Esperei a vida inteira pelo que 2014 trouxe. Foi um ano de insurreição feminista contra a violência masculina: um ano de recusa crescente em guardar silêncio, recusa em deixar que as nossas vidas e tormentos fossem apagados ou desconsiderados” (SOLNIT, 2017, p. 86). E conclui: Não foi um tempo de harmonia, mas muitas vezes a harmonia se dá às custas da supressão daqueles que têm algo a dizer. Foi um tempo ruidoso, discordante, e talvez transformador, porque foram ditas coisas 416 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) importantes - não necessariamente novas, mas faladas com mais ênfase, por um maior número de mulheres, e ouvidas como nunca antes. Foi um ano divisor de águas para as mulheres e para o feminismo, por não aceitarmos a epidemia de violência contra as mulheres - os estupros, os assassinatos, os espancamentos, os assédios nas ruas e as ameaças online (SOLNIT, 2017, p. 86). A partir de todo o exposto, elegeu-se como tema de análise de notícias a violência contra a mulher em consequência da necessidade de se desconstruir e refletir o discurso por parte da mídia, que é formadora de opinião e, consequentemente, influencia e/ou reforça o discurso dominante (que, muitas vezes, não é o da maioria), uma vez que o Marco Civil da Internet (Lei 12.965/2014), sozinho, não é suficiente para tratar das especificidades e complexidades que abarcam as relações de gênero. É justamente o que se pretendeu com este trabalho. Procedimentos metodológicos De caráter qualitativo, bibliográfico e exploratório, este trabalho apresenta uma revisão de literatura a partir de teóricos da Análise do Discurso da linha francesa, do dialogismo, da heterogeneidade discursiva, do ciberfeminismo, das relações de poder dentro do discurso, além de conceitos-chave que envolvem a internet e o jornalismo on-line, que fundamentou a análise de duas matérias jornalísticas on-line, noticiadas em 2017 e 2018. A seleção das matérias jornalísticas deu-se a partir da busca de palavras-chave que permeiam as questões de gênero, como “violência doméstica”, “assédio sexual”, “estupro”, “feminicídio”, “violência contra a mulher”, no site Google244, na aba Notícias, de forma aleatória e não-probabilística. Foram encontrados, inicialmente, 61.300 mil resultados, que se referiam a diversas notícias de diversos veículos de comunicação, de âmbitos local, regional e nacional. A partir desse resultado macro, foram identificados os dois fatos que mais se repetiram em veículos de âmbito nacional nos anos de 2017 e 2018, que foram: a suposta agressão física e sexual de Roberto Caldas, então juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos, contra a esposa e funcionárias; e o suposto assédio sexual de José Mayer, ator da Rede Globo, contra Susllem Tonani, figurinista da Rede Globo. 244. Site Google: <www.google.com.br> Data do acesso: 10 abr. 2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 417 Depois de definidos os temas das notícias a serem analisadas, foram feitas duas novas buscas no site Google, na aba Notícias, com palavras-chave específicas sobre os temas. Foram encontrados 2.750 resultados sobre o caso envolvendo José Mayer e 2.650 resultados sobre o caso envolvendo Roberto Caldas. Pela impossibilidade de analisar todo esse quantitativo e com o objetivo também de verificar a primeira repercussão midiática sobre cada caso, foi decidido ater-se à primeira notícia publicada (levando-se em consideração o dia e a hora de publicação), em grandes sites jornalísticos, sobre cada um dos casos. Assim, notícias analisadas245 foram: “Juiz Roberto Caldas é acusado de violência física e assédio sexual” (Site da Revista Veja, 11 de maio de 2018, às 16h08); “Figurinista acusa José Mayer de assédio sexual; ator nega” (Site da Folha de S. Paulo, 31 de março de 2017, às 17h30). O potencial comunicativo e democrático da internet Com o novo cenário da cibercultura, não se pode deixar de salientar o conceito de ciberfeminismo, cujo olhar direciona-se em enxergar a tecnologia como aliada das mulheres. Dessa forma, Natansohn (2013), aponta caminhos para o ciberativismo organizado pelas mulheres a fim de desestruturar as questões de gênero que foram consolidadas historicamente pela sociedade patriarcal, em que a mulher é constantemente educada para ser submissa, contribuindo, desse modo, para a naturalização do machismo, que é também uma forma de violência simbólica, a qual pode ser expressada sutilmente pelo/ no discurso, pregando, assim, a continuidade e manutenção de uma sociedade machista que reproduz violências. No princípio era a mãe. O Verbo veio muito depois e iniciou uma nova era: o patriarcado. O Verbo, a Palavra, um símbolo abstrato, uma entidade arbitrária, pode dar vida a qualquer realidade, por mais imaginária e inexistente que seja. E a palavra pode até distorcer o sentido das realidades físicas mais óbvias, tais como o fato de a mãe dar à luz a criança e amamentá-la, e inaugurar a dominação do macho, através da fabricação de papéis (MURARO, 1992, p.61). 245. O link de cada notícia está nas referências. Também foi criada uma pasta no Google Drive com o print de cada notícia, para que os objetos de análise não se percam, caso os links originais das notícias sejam desativados, por algum motivo. Link da pasta: <https://drive.google.com/drive/folders/1cZs4UqYMYwUf WvTytejaS7srIzhw3Pel> Os prints das notícias não foram colocados aqui como anexo porque, ao reduzi-los ao tamanho da página, ficaram ilegíveis. 418 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Segundo Muraro (1992), não se pode dizer com exatidão em que momento da história surgiu a dominação patriarcal, contudo alguns fatos levam a crer que o período de fortalecimento do patriarcado corresponde ao mesmo período em que a divisão social do trabalho foi estabelecida: Marx e Engels foram, contudo, os mais importantes pensadores de século XIX a analisar este tema. Em primeiro lugar, afirmam que a divisão sexual do trabalho dava origem a uma divisão social do trabalho, que por sua vez, levou a especialização... Nesta época o sexo feminino é também dominado, e a mulher fica reduzida ao âmbito do privado, a fim de fornecer maior número possível de filhos para arar a terra e defender a terra e o Estado. A competição, pois, pelas mulheres, pelos excedentes e pela propriedade foi pouco a pouco dando origem à supremacia masculina e a uma cultura competitiva (MURARO, 1992, p. 62). Dentro da perspectiva de que os meios de comunicação agem como ferramentas de representação social, podendo expressar ideologia e o costume de determinada época, construindo assim uma nova realidade, pode-se perceber que as mulheres sempre ficaram em segundo plano na trama da história ocidental. Muitas foram as manifestações para se colocarem como pessoas com reconhecimento social e político no mundo, como sujeitos independentes e livres da sombra masculina. Como aponta Perrot (2007) e Costa (2005), a história das mulheres tem mudado: A história das mulheres mudou. Em seus objetos, em seus pontos de vista. Partiu de uma história do corpo e dos papéis desempenhados na vida privada para chegar a uma história das mulheres no espaço público da cidade, do trabalho, da política, da guerra, da criação. Partiu de uma história das mulheres vítimas para chegar a uma história das mulheres ativas, nas múltiplas interações que provocam a mudança (PERROT, 2007, p. 15). O feminismo brasileiro, e também o mundial, de fato mudou, e não mudou somente em relação àquele movimento sufragista, emancipacionista do século XIX, mudou também em relação aos anos 1960, 1970, até mesmo aos 1980 e 1990. Na verdade, vem mudando cotidianamente, a cada enfrentamento, a cada conquista, a cada nova demanda, em uma dinâmica impossível de ser acompanhada por quem não vivencia suas entranhas. No movimento feminista a dialética viaja na velocidade da luz (COSTA, 2005, p. 11). Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 419 E o contexto de rede vem possibilitando um novo olhar, uma nova prática de se pensar o feminismo e uma nova história para as mulheres de todo o mundo que viram o computador como aliado e como principal instrumento de mudança cultural capaz de elevar o pensamento social para uma esfera mais democrática e de igualdade entre os gêneros. A internet, a grande potencializadora de veicular a informação em sites, redes sociais e tantas outras vias comunicativas, proporciona o contato entre pessoas que se situam em locais distantes, em tempo real, favorecendo a interação e o acesso às mais distintas notícias, podendo manter coeso os movimentos sociais. Ademais, verifica-se que a internet contribuiu com o ressurgimento de tribos sociais, que se cita, a título de exemplo, os skatistas, os punks. O principal nome na retratação deste tema é Michel Maffesoli, autor da obra A barbárie com rosto humano: as tribos pós-modernas. Michel Maffesoli assim leciona acerca do agrupamento social decorrente da internet: Graças à Internet, de fato, uma nova ordem comunicativa começa a reger. Ela favorece os encontros; o fenômeno dos flashmob é prova disso; sobre coisas fúteis, sérias ou políticas, mobilizações se fazem e desfazem no espaço urbano e virtual. Acontece o mesmo com o streetbooming, que possibilita que, nas grandes cidades contemporâneas, nessas selvas de pedra que favorecem o isolamento, ao se conectarem à Internet, as pessoas se encontrem, se falem, se conheçam, propondo uma nova maneira de estar junto, baseada numa forma criativa de compartilhar o mundo. (MAFFESOLI, 2009, p. 250). A “parada internacional das mulheres” é uma representação deste agrupamento citado por Maffesoli, e da força que a conexão de ideais divulgadas pela internet pode colaborar na aquisição de conhecimentos referentes a temáticas fundamentais para transformação e conscientização de opiniões. Em 2017, milhares de mulheres demonstraram repúdio a toda forma de violência, como a opressão, o machismo, a violência doméstica, o feminicídio. Aderido por mulheres de 57 países, este protesto demonstrou a força potencializada das redes sociais por meio de tribos. Diante de uma sociedade global e amorfa, parece retrocesso o ressurgimento de tribos, no entanto, sabe-se que a voz de cada indivíduo da sociedade pós-moderna só ecoa uma vez que replicada por agrupamento com o mesmo ideal. Nessa senda, Maffesoli entende que o que ele chama de “tempo das tribos” recuperou o “ideal comunitário”, como se observa abaixo: 420 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Nas sociedades pré-modernas, prevaleciam as histórias particulares ou “crônicas locais”. Hoje vivemos o retorno dessas histórias locais, que agora contam com a ajuda do desenvolvimento tecnológico. Estamos no coração do que chamo de “tempo das tribos”. Assim como o desencantamento do mundo conduziu à solidão, o Facebook, o Second Life etc., para o melhor e para o pior, recuperaram o “ideal comunitário”. (MAFFESOLI, in CASTELLO, 2012, n.p.). Assim, ordinariamente surgem no meio social as denominadas tribos ligadas por distintos ideais, sejam políticos, religiosos, concernentes a gostos musicais, estilo de vida, etc. Maffesoli, por sua vez, não pensa no ressurgimento de tribos como avanço ou retrocesso, devendo ser compreendido por uma nova perspectiva de mundo: Há nesse desenvolvimento tecnológico outra maneira de viver o laço social ou, como acho mais adequado dizer, o “laço societa. Isto é, chegamos a uma sociedade que enfatiza a relação com o outro. E isso nos obriga a mudar nossa maneira de analisar a sociedade. Não é mais o caso de ser otimista ou de ser pessimista, mas de observar o mundo tal qual ele é (MAFFESOLI, in CASTELLO, 2012, p.15). Este ciberespaço, uma vez politizado e por outro retrógrado, revela um grande formador de opiniões. Daí a necessidade de se pensar um jornalismo online com informações propagadas com responsabilidade, veracidade e distante de qualquer ideologia. Pierre Lévy, em sua obra conjunta com André Lemos, afirma que a internet possui, também, essência política, contribuindo com a democracia – ou ciberdemocracia –, visto que as “novas modalidades de emissão livre, de formas de compartilhamento de informação, de cooperação”, intencionam proporcionar “mudanças globais da esfera política em direção a uma ciberdemocracia” (LEMOS; LÉVY, 2010, p. 28). Esta ciberdemocracia experimentada por muitos internautas, e acreditada, uma vez que por meio das redes sociais somos livres para discursar lutas, quereres, posicionamentos das tribos a qual pertencemos, deve ser espaço de desvelamento. André Lemos e Pierre Lévy referem-se à ideia de transparência e informação proporcionadas pelas novas tecnologias, principalmente, a internet. Do mesmo modo, falam em cibercultura, uma vez uma pessoa em determinaDesigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 421 do local do mundo poderá, com facilidade, ter acesso a uma obra produzida em lugar diverso. Assim, ao ser inserido nesse universo tecnológico, o indivíduo passa a exercer a ciberdemocracia, a qual tem como óbice a exclusão digital, que André Lemos e Pierre Lévy (2010, p. 153) conceituam como “a falta de capacidade técnica, social, cultural, intelectual e econômica de acesso às novas tecnologias e aos desafios da sociedade da informação”. No entanto, Pierre Lévy e André Lemos (2010, p. 158-159) apresentam uma ressalva acerca da inclusão digital e da ciberdemocracia, qual seja, a possibilidade das novas tecnologias resultarem em mácula à vida privada e à liberdade individual, uma vez que as novas tecnologias podem permitir o controle da opinião pública, através de vigilância e monitoramento. Este fato pode ser comprovado nos inúmeros discursos jornalísticos que mascaram, romantizam e recontam uma tradição machista com fatos desconfigurados. O discurso jornalístico como construção social Ao discorrer sobre discurso, principalmente quando se trata do jornalístico, e todos os seus aspectos de subjetividade, produção social e construção da realidade, é necessário, primeiramente, abordar o fenômeno da linguagem enquanto ato de discurso, considerando que “[...] sem linguagem, não há acesso à realidade; sem linguagem, não há pensamento” (ARAÚJO, 2004, p. 9) e que a informação é um fenômeno humano que depende precipuamente da linguagem (CHARAUDEAU, 2009). Qualquer que seja a pergunta que se faça a respeito da informação, volta-se sempre para a questão da linguagem. A linguagem não se refere somente aos sistemas de signos internos a uma língua, mas a sistemas de valores que comandam o uso desses signos em circunstâncias de comunicação particulares. Trata-se da linguagem enquanto ato de discurso, que aponta para a maneira pela qual se organiza a circulação da fala numa comunidade social ao produzir sentido. Assim, pode-se dizer que a informação implica processo de produção de discurso em situação de comunicação (CHARAUDEAU, 2009, p. 33). Das várias possibilidades de estudo da linguagem, foca-se, aqui, na Análise do Discurso, que leva em consideração a dimensão discursiva: 422 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) A dimensão discursiva muda a perspectiva pela qual se vê habitualmente a linguagem, como sendo produção de significação que permite a comunicação. Para a dimensão discursiva contam aquele que fala, a quem fala, discute-se o papel do sujeito dos enunciados, ocupa-se com o modo como o falar é objeto de certo tipo de interesse, regulado por circunstâncias, quais sejam, os fatores culturais, sociais, éticos, políticos. De modo que o resultado não são apenas os signos, a significação, a referência, os atos de fala, mas um certo agir decorrente da linguagem, um ‘saber’ discursivo, indutor e fruto de relações sociais, culturais e interpessoais, que dotam aqueles que os usam de um certo tipo de poder (ARAÚJO, 2004, p. 199). A Análise do Discurso de origem francesa privilegia os textos de arquivo, que emanam de instâncias institucionais, ocupando-se mais das determinações históricas que incidem sobre a linguagem. Tem como um dos pilares a ideia de que uma determinada ideologia condiciona os sujeitos e predetermina o que poderão dizer ou não em determinadas conjunturas histórico-sociais. A Análise do Discurso, como seu próprio nome indica, [...] trata do discurso. E a palavra discurso, etimologicamente, tem em si a ideia de curso, de percurso, de correr por, de movimento. O discurso é assim palavra em movimento, prática de linguagem. [...] Na análise do discurso, procura-se compreender a língua fazendo sentido, enquanto trabalho simbólico, parte do trabalho social geral, constitutivo do homem e da sua história (ORLANDI, 1990, p. 15). Brandão (2004) corrobora a afirmação de Orlandi (1990), ao definir discurso como um “[...] fenômeno da linguagem não mais centrado apenas na língua, sistema ideologicamente neutro”, mas, sim, “[...] o ponto de articulação dos processos ideológicos e dos fenômenos linguísticos” (BRANDÃO, 2004, p. 11). A linguagem enquanto discurso não constitui um universo de signos que serve apenas como instrumento de comunicação ou suporte de pensamento; a linguagem enquanto discurso é interação, e um modo de produção social; ela não é neutra, inocente e nem natural, por isso o lugar privilegiado de manifestação da ideologia. [...] Como elemento de mediação necessária entre o homem e sua realidade e como forma de engajá-lo na própria realidade, a linguagem é lugar de conflito, de confronto ideológico, não podendo ser estudada fora da sociedade, uma Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 423 vez que os processos que a constituem são histórico-sociais (BRANDÃO, 2004, p. 11). Maingueneau (2008, p. 52-56) explicita as principais características do discurso, como visto na AD: é uma organização situada para além da frase; é orientado, não só por ser concebido por uma perspectiva de um locutor, mas também por se desenvolver de maneira linear; é uma forma de ação – sobre o outro e sobre o mundo, e não só representação do mundo; é interativo, supondo sempre a presença do outro na enunciação – ou seja, é dialógico; é contextualizado, porque não há sentido fora de contexto; é assumido por um sujeito, que se coloca como fonte de referências e, ao mesmo tempo, indica que atitude está tomando em relação àquilo que diz; é regido por normas – as “leis dos discurso”; é considerado no bojo de um interdiscurso, porque o discurso só adquire sentido no interior de um universo de outros discursos. A partir dessas características do discurso, tem-se a compreensão de que, em todo discurso, há “[...] um complexo processo de [...] produção de sentidos e não meramente transmissão de informação. São processos de [...] de argumentação, de subjetivação, de construção da realidade” (ORLANDI, 1990, p. 21). Vê-se, então, que, para a AD, todo discurso é fruto de uma prática social, levando-se em consideração como o texto significa, e não o que significa; os sentidos produzidos a partir de uma soma entre o que é linguístico e o que é não-linguístico, indo além dos conhecimentos contextuais, enciclopédicos e interativos. Por isso, “[...] a análise do discurso não busca ‘o’ sentido verdadeiro do texto, nem ‘o’ seu sentido oculto, nem ‘a’ interpretação nova e inédita destinada a derrubar todas as outras interpretações e todos os outros sentidos” (FIORIN, 1990, p. 173), porque o discurso é heterogêneo. Assim como o discurso, o sujeito também é constitutivamente heterogêneo, pois ou sofre as coerções de uma formação ideológica e discursiva, ou se submete à sua própria natureza inconsciente. “O ‘eu’ perde a sua centralidade, [...] já que o ‘outro’ [...] passa a fazer parte de sua identidade. O sujeito é, então, um sujeito descentrado, que se define agora como sendo a relação entre o ‘eu’ e o ‘outro’” (MUSSALIM, 2011, p. 134), porque na sua fala outras vozes também falam e o sujeito só constrói sua identidade na interação com o outro, sendo o texto o espaço de interação (BRANDÃO, 2004), em um nível interdiscursivo. Nesse complexo processo de constituição de discursos, destaca-se uma 424 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) das principais características da AD, citada anteriormente: a ideia de interdiscurso, que, “[...] sob diversos nomes – polifonia, dialogismo, heterogeneidade, intertextualidade – implica algum viés específico” (POSSENTI, 2009, p. 381). Assim como assinala Orlandi (1990), todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outros discursos que o sustentam, assim como para dizeres futuros. Pois todo discurso é visto como um estado de um processo discursivo mais amplo, contínuo. O interdiscurso significa justamente a relação do discurso com uma multiplicidade de discursos, ou seja, ele é um elemento não discernível, não representável de discursos que sustentam a possibilidade mesma do dizer. [...] Representa assim a alteridade por excelência (o Outro) (ORLANDI, 1990, p. 80). Authier-Revuz (1982, p. 102, apud BRANDÃO, 2004, p. 63) atenta que, nos estudos do círculo de Bakhtin, um paradigma percorre coerentemente os diversos domínios abordados, como: o dialógico versus o monológico; o múltiplo, o plural versus o único; o outro no um versus o um e o outro; o heterogêneo versus o homogêneo; o conflitual versus o imóvel; o relativo versus o absoluto, o centro; o inacabado versus o acabado, o dogmático. É sobre esses elementos que se constrói uma teoria da produção do discurso e do sentido, numa perspectiva dialógica, em que Bakhtin apresenta, em oposição a uma concepção da linguagem diretamente intencional, categórica, única e singular, uma consciência relativizada da linguagem (BRANDÃO, 2004), ou seja, interdiscursiva, polifônica, heterogênea. De forma sucinta, Pinto (1999) explica a relação entre dialogismo, polifonia, interdiscurso e heterogeneidades enunciativas, que marca a interdiscursividade da AD: A heterogeneidade enunciativa manifesta-se num texto em dois planos distintos, ambos designados por Mikhail Bakhtin de polifonia, e que alguns autores preferem denominar intertextualidade: o da heterogeneidade mostrada, caracterizado pela manifestação, localizável pelos receptores/intérpretes (e pelo analista de discursos, entre eles) a partir do contexto situacional imediato, de uma multiplicidade de outros textos citados de maneira unívoca ou aludidos pelo texto presente; e o do plural do texto, heterogeneidade constitutiva ou interdiscurso, constituído pelo entrelaçamento no texto presente de vestígios de outros textos preexistentes, muitas vezes independentemente de traços recuperáveis de Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 425 citação ou alusão e segundo restrições sócio-histórico-culturais sobre as quais o(s) autor(es) empírico(s) do texto não tem controle. Nos dois casos, este entrelaçamento de citações é constitutivo dos textos vistos como discursos, já que todo texto se constrói por um debate com outros – o que foi denominado de dialogismo por Mikhail Bakhtin (PINTO, 1999, p. 27). Esses conceitos da AD, brevemente apresentados aqui, foram basilares para a análise (apresentada a seguir) das matérias jornalísticas selecionadas para este trabalho. Análise das matérias jornalísticas Na matéria “Juiz Roberto Caldas é acusado de violência física e assédio sexual” (Site da Revista Veja), a repórter da Veja usa praticamente todo o primeiro parágrafo para enaltecer o suposto autor da violência física e do assédio sexual, como se pode ver a seguir: Aos 55 anos, o juiz Roberto de Figueiredo Caldas está no auge da carreira. O premiado advogado trabalhista e pró-cidadania, como ele se descreve em seu currículo na internet, foi um dos fundadores da Comissão Nacional de Direitos Sociais da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e membro de órgãos importantes como a Comissão para Erradicação do Trabalho Escravo e a Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Sempre foi respeitadíssimo, principalmente pelo viés de seu trabalho, voltado à preservação de direitos sociais e trabalhistas. Tanto que, em 2012, a então presidente Dilma Rousseff o indicou para ocupar uma vaga na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorteIDH), entidade reconhecida por vinte países que compõem a Organização dos Estados Americanos (OEA) quando o assunto é violação de garantias básicas. Em 2016, Caldas assumiu a presidência da Corte. Foi o segundo brasileiro a ocupar o posto — o que lhe conferiu mais visibilidade, poder e algum prestígio internacional. Tudo isso, agora, ameaça ruir (MATTOS, 2018). Numa análise discursiva, sabe-se que tantas adjetivações têm o intuito de reforçar uma imagem, um ethos, até então muito respeitado, que está prestes a ser desmantelado. Desproporcionalmente, as supostas vítimas não têm descrição minuciosa: uma das mulheres que o denunciaram é identificada apenas 426 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) como “sua [do acusado] companheira”, parecendo não ter “vida própria”, por ser esposa do acusado e por este ser juiz, enaltecido na matéria; as outras duas denunciantes são identificadas apenas como babás. O título diz que “juiz é acusado”, com o verbo no presente do indicativo, mas o subtítulo apresenta o verbo no futuro do pretérito “teria espancado e ameaçado”. As gramáticas apresentam o futuro do pretérito como um tempo que é empregado, entre outras coisas, “[...] para exprimir a incerteza (probabilidade, dúvida, suposição) sobre fatos passados” (CUNHA, 1972, p. 316, apud TRAVAGLIA, 1999, p. 674). Então, a repórter (e o site), para marcar o seu não comprometimento com o que foi relatado, faz uso desse tempo verbal (TRAVAGLIA, 1999). A matéria é bem superficial e não traz nenhuma declaração das partes – nem do suposto agressor, nem da(s) agredida(s). A única heterogeneidade enunciativa claramente marcada é a do advogado de defesa, presente na legenda da foto apenas: “são apenas tumultos e agressões verbais”, que pode facilmente passar despercebida por um leitor menos atento. Essa “seleção” de declaração (e quem vai ter voz e quem não) marca o posicionamento da repórter e, de modo amplificado, do veículo de comunicação sobre o fato e, ao nosso ver (dos autores deste trabalho), reforça uma visão machista, protetiva, de respeito ao suposto autor das agressões, simplesmente por ser ele juiz. O fato de ele ser juiz não deve fazê-lo ter tratamento diferenciado na notícia. Na matéria “Figurinista acusa José Mayer de assédio sexual; ator nega” (Site da Folha de S. Paulo), diferentemente da matéria da Veja, os verbos são majoritariamente usados no pretérito perfeito, que “[...] indicam uma ação definida no tempo e exprime uma certeza de quem fala em relação ao conteúdo de sua comunicação” (CUNHA, 2013, p. 25), porém, sempre em discurso indireto (tanto de quem denuncia, quanto de quem é denunciado), o que sugere que “[...] o orador não se compromete, não assume a responsabilidade pelo que enuncia; quem faz a afirmação é ‘alguém’, alguma fonte autorizada” (CUNHA, 2013, p. 24). Mesmo que indiretamente, o veículo de comunicação posiciona-se sobre o fato. Por exemplo: é estranho que duas declarações de José Mayer – justamente as que tentam levar o leitor a acreditar que quem denunciou fantasiou as coisas – sejam integralmente repetidas ao longo da matéria da Folha de S. Paulo. Nelas, José Mayer diz: “não misturem ficção com realidade” e “as palavras e atitudes que me atribuíram são próprias do machismo e da misoginia do personagem Tião Bezerra, não são minhas”. Ou seja, ele, por ter uma Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 427 imagem conhecida de muitas pessoas, usa-a no seu discurso, quando diz que “nesses 49 anos de trabalhando como ator sempre busquei e encontrei respeito e confiança em todos que trabalham comigo”, e tenta construir um ethos para a denunciante de uma pessoa que “misturou” as coisas, no mínimo; inventou, fantasiou, enlouqueceu. Esse discurso é comumente usado por outros homens, em suas injustificadas ações machistas, quando querem se passar por vítimas. Logo depois, José Mayer reconheceu seu erro e foi criada a hashtag #mexeucomumamexeucomtodas. Tal acontecimento só foi possível devido às mulheres que compartilham ideias em grupos do Facebook, criam páginas para fomentar e propagar o Feminismo e utilizam hashtags para chamar a atenção para diversas questões, ou seja, há uma vontade de interação de fato, e isso ocorre pelo processo de identificação e pertencimento que elas realizam na rede. Se para Bauman os laços sociais contemporâneos estão se liquidificando, o movimento ciberfeminista contemporâneo, ao apresentar o significado da palavra sororidade, provoca as estruturas da realidade do nosso tempo – híbrido, efêmero, e profundamente transformado pelas tecnologias. Desta forma, é conveniente acentuar que o movimento feminista não é somente um movimento identitário. Pode ocorrer essa confusão por considerarmos as premissas pós-modernistas. Em outras palavras, é importante entender o movimento feminista como movimento social, um dos mais expressivos, inclusive, da segunda metade do século passado, cujas variações e distinções dependeram das condições históricas de cada país, tendo dois modelos marcantes até os dias atuais: o feminismo liberal e o feminismo socialista. Por outro lado, este trabalho consegue mostrar que a ação coletiva fundamentada em uma identidade social comum é possível, o que prova a militância virtual, como foi o caso dessa experiência da hashtag, que mobilizou milhares de mulheres brasileiras nas redes sociais, ao revelar violências e abusos sofridos por esse gênero. Diante dessas manifestações e expressões no ciberespaço, entende-se a relevância do ciberfeminismo para a construção do discurso de empoderamento feminino, e o quanto a internet colabora e pode tencionar a expansão e a compreensão do movimento feminista na contemporaneidade, uma vez que, por meio dos relatos pessoais, pelas escritas de si, pelas narrativas do eu, milhares de mulheres estão querendo falar de suas experiências (muitas vezes traumáticas), e isso se deve não restritamente ao movimento feminista, mas à mudança mediada pelo contexto sociocultural da pós-modernidade, que abarca novos modos de subjetividades e engendram novas formas de como 428 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) os sujeitos se colocam no mundo e se relacionam com ele, ocasionado, assim, novas regras e valores sociais e modelos de interação social. Dessa forma, ao se olhar com mais atenção para o fato de as mulheres estarem verbalizando hoje, no espaço virtual, as violências sentidas por elas, percebe-se que essa atitude é uma característica deste tempo híbrido, que misturou a linha tênue existente entre o público e o privado promovido pelo boom da tecnologia de informação e comunicação. Se a história das mulheres era uma história permeada pelo silêncio, na atualidade é uma história que se constrói pela vontade de expor a voz e suas realidades e, nesse sentido, a rede pode ser uma aliada para quem almeja alguma transformação, ainda que mísera, nas estruturas da consciência coletiva, pois a internet democratiza, de certo modo, o poder de fala dos subalternos. É sabido que isso tudo faz parte de um longo processo de desconstrução e construção do próprio pensamento, mas não há como negar a ruptura do silêncio na era da cibercultura. Não à toa, o ano de 2015 foi reconhecido como o ano da Primavera Feminista e o ano do Feminismo na Internet, no Brasil. A cada nova hashtag, o número de denúncias aumentava fora do espaço virtual246, o que leva a crer que as mobilizações na internet são muito potentes e, por estarem relacionadas com manifestações também realizadas nas ruas, só fazem sentido quando uma nova realidade é alcançada. É evidente, que os números contra a violência de gênero não serão diminuídos de um ano para o outro; é um processo longo de mudança cultural, que atravessa juntamente a questão psicológica da educação de mulheres para submissão (BELOTTI, 1985) e homens para cultura do estupro. Percebeu-se, também, que, na maioria das vezes, na matéria jornalística, quem denuncia é identificada apenas como “a figurinista”, e o denunciado como “o ator”. Mesmo sendo, de fato, a profissão de cada um deles, a repetição exagerada desses papéis (também por serem recursos anafóricos) reforça, principalmente para quem tem tendência a tal pensamento, a superioridade de um em relação ao outro, ainda mais sendo o ator uma pessoa conhecida do grande público. Essas duas primeiras matérias analisadas mostram, no título (o maior destaque), as supostas vítimas no papel de acusadoras – “Figurinista acusa José Mayer de assédio sexual; ator nega” e “Juiz Roberto Caldas é acusado de violência física e assédio sexual”. Já os supostos agressores ficam no papel de acusados, de vítimas. Deve-se ter sensibilidade para perceber que os papéis 246. Dados disponíveis em: <https://www.revistaforum.com.br/campanhas-feministas-na-internet-aumentam-numero-de-denuncias-no-180/> Acesso em: 20 jul. 2018. Desigualdades, Relações de Gênero e Estudos de Jornalismo 429 se invertem nessa construção discursiva. Na verdade, a vítima denuncia; então deveria ser identificada, no máximo, como denunciadora. Quem supostamente está errado é quem é denunciado. Após a análise das matérias jornalísticas, vê-se que o discurso jornalístico tende a reforçar (mesmo que indiretamente) um discurso machista, predominante na sociedade brasileira. Para tentar relativizar o discurso, ou pelo menos refletir sobre ele, colaborando para um discurso menos desigual em relação ao gênero, menos estereotipado e menos hegemônico na internet, uma ótima iniciativa foi a criação do minimanual de jornalismo humanizado, definido pela própria ONG criadora (Think Olga) como um manual que “reúne dicas para jornalistas e veículos que desejam limpar sua comunicação de preconceitos”. Por meio de dicas simples e diretas, mostra “como tornar a leitura de notícias uma experiência agradável e respeitosa para pessoas tão diversas quanto a humanidade pode ser”, abordando violência contra a mulher, pessoas com deficiência, racismo, LGBT, aborto, entre outros temas. Outra excelente iniciativa foi a do jornal espanhol El País, que passou, recentemente, a ter uma editora de gênero, Pilar Álvarez, também espanhola, com o objetivo de planejar e melhorar a abrangência atual sobre os temas relacionados com a igualdade e a mulher. Como o próprio jornal explica, “o trabalho da editora de gênero será transversal a todas as editorias. [...] A cobertura que a editora de gênero estimulará será também internacional, apoiada na rede de redações e jornalistas que o El País possui em diversos países” (EL PAÍS, 2018). Especificamente em relação ao Brasil, o jornal não faz nenhuma menção. Considerações finais A partir de uma abordagem teórica sobre Análise do Discurso da linha francesa, dialogismo, heterogeneidade discursiva, ciberfeminismo, relações de poder dentro do discurso, além de conceitos-chave que envolvem a internet e o jornalismo on-line, foram analisadas duas matérias jornalísticas on-line “Figurinista acusa José Mayer de assédio sexual; ator nega” (Folha de S. Paulo) e “Juiz Roberto Caldas é acusado de violência física e assédio sexual” (Veja) noticiadas nos anos de 2017 e 2018, respectivamente. 430 Leonel Aguiar, Marcos Paulo da Silva e Monica Martinez (orgs) Ao final, foi confirmada que a promoção do discurso da desigualdade de gênero e da violência contra a mulher é uma realidade difundida também no jornalismo. Por isso, há a necessidade de iniciativas como o minimanual do jornalismo humanizado (da ONG Think Olga) e de uma editora de gênero numa redação de jornal (como fez o El País), a fim de ajudar na desconstrução e reflexão desse discurso por parte da mídia, que é formadora de opinião e, consequentemente, influencia o discurso da sociedade, contribuindo, assim, para uma internet mais justa, igualitária e efetivamente mais significativa para todos, para além do Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), uma vez que ele, sozinho, não é suficiente para tratar das especificidades e das complexidades que abarcam as relações de gênero. Referências ARAÚJO, I. L. Do signo ao discurso: introdução à filosofia da linguagem. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. BRASIL. Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Brasília, DF: 23 abr. 2014. BELOTTI, E. G. Educar para a submissão: o descondicionamento da mulher. Trad. Ephraim Ferreira Alves. 5ª ed. Petrópolis: Vozes, 1985. 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