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Estudo Crítico do "Pacote Anticrime"

2020, Estudo Crítico do "Pacote Anticrime"

O presente projeto é uma análise crítica das medidas originais propostas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública no autodenominado “Pacote Anticrime”. Foi realizado inteiramente por estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) durante o segundo semestre do ano de 2019, orientados por profissionais do direito, na qualidade de coordenadores de cada texto elaborado.

Estudo Crítico do “Pacote Anticrime” Um compilado de análises das medidas propostas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública Organização: André Antiquera Pereira Lima Flora Negrelli Thiago Villela Dutra São Paulo, 12 de fevereiro de 2020 Estudo Crítico do “Pacote Anticrime” Um compilado de análises das medidas propostas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública Organização: André Antiquera Pereira Lima Flora Negrelli Thiago Villela Dutra São Paulo, 12 de fevereiro de 2020 1 Estudo Crítico do “Pacote Anticrime” Coordenadores dos textos: Adriane da Fonseca Pires Gabriela Magalhães T. Oliveira Ana Carolina Albuquerque de Barros Gustavo Alves Parente Barbosa Anna Carolina Canestraro Hélio Peixoto Junior Arthur Sodré Prado Jéssica da Mata Augusto de Arruda Botelho Joel Falcão Fraporti Brenda Borges Dias José Carlos Abissamra Filho Camila Nicoletti Del Arco Lorraine Carvalho Silva Cecília Villar Lucas Barosi Liotti Daniel Kessler de Oliveira Marcelo Rocha dos Anjos Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo Marco Antonio Chies Martins Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior Maria Eugênia Ferreira da Silva Rudge Leite Edson Luis Baldan Natália Di Maio. Fábio Tofic Simantob Patrícia de Paula Queiroz Bonato Fabrício Reis Costa Plínio Gentil Fernando Augusto Bertolino Storto Renata Rodrigues de Abreu Ferreira Fernando Castelo Branco Roberta de Lima e Silva Gabriel Holtz Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa Gabriel Pires Viegas Túlio Felippe Xavier Januário 2 Sumário APRESENTAÇÃO DO PROJETO ......................................................................................... 5 INTRODUÇÃO: ASPECTOS GERAIS DO “PACOTE ANTICRIME” DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA .......................................................................... 9 MEDIDA I – EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA APÓS CONDENAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA .................................................................................................... 14 MEDIDA II – EFETIVIDADE DO TRIBUNAL DO JÚRI .................................................. 36 MEDIDA III – EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE ................................... 51 MEDIDA IV – LEGÍTIMA DEFESA ................................................................................... 61 MEDIDA V – ENDURECIMENTO DO CUMPRIMENTO DE PENAS ............................ 73 MEDIDA VI – ALTERAÇÃO DO CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA ...... 86 MEDIDA VII – ELEVAÇÃO DAS PENAS EM CRIMES RELATIVOS A ARMAS DE FOGO................................................................................................................................... 95 MEDIDA VIII – APRIMORAMENTO DO PERDIMENTO DE PRODUTO DO CRIME ........................................................................................................................................... 100 MEDIDA IX – PERMISSÃO DO USO DO BEM APREENDIDO PELOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA ................................................................................................. 112 MEDIDA X – PRESCRIÇÃO ............................................................................................. 119 MEDIDA XI – CRIME DE RESISTÊNCIA ....................................................................... 129 MEDIDA XII – SOLUÇÕES NEGOCIADAS .................................................................... 140 MEDIDA XIII – FACILITAR O JULGAMENTO DE CRIMES COM AUTORIDADES COM FORO ....................................................................................................................... 162 MEDIDA XIV – CRIMINALIZAÇÃO DO CAIXA DOIS ................................................ 174 MEDIDA XV – REGIME DE INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA ....... 187 MEDIDA XVI – CRIMINOSOS HABITUAIS .................................................................. 205 MEDIDA XVII – PRESÍDIOS FEDERAIS ........................................................................ 217 MEDIDA XVIII – APRIMORAMENTOS NA INVESTIGAÇÃO DE CRIMES .............. 228 MEDIDA XIX – INFORMANTE DO BEM ....................................................................... 253 MEDIDA XX – ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA FACILITAR O JULGAMENTO DE CRIMES COM AUTORIDADES COM FORO (PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR N. 38/2019) ...................................................................................... 278 CONCLUSÃO DO PROJETO E BREVE ANÁLISE DA LEI 13.964 ............................... 284 3 4 APRESENTAÇÃO DO PROJETO Elaborado por André Antiquera Pereira Lima, Flora Negrelli, Thiago Villela Dutra O presente projeto é uma análise crítica das medidas originais propostas pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública no autodenominado “Pacote Anticrime”. Foi realizado inteiramente por estudantes da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) durante o segundo semestre do ano de 2019, orientados por profissionais do direito, na qualidade de coordenadores de cada texto elaborado. Iniciado em meados de setembro, o projeto contou com 105 inscrições e terminou com redação de 90 alunos, que discutiram e escreveram sobre as propostas originais do Pacote entre os meses de setembro e novembro do mesmo ano. Por conta da aprovação pelo plenário da Câmara dos Deputados do substitutivo do Pacote Anticrime, em 4 de dezembro de 2019, o texto original proposto pelo ministro Sérgio Moro sofreu modificações significativas. O substitutivo aprovado1 pelo Congresso Nacional é um conglomerado (i) de emendas parlamentares, (ii) do Projeto de Lei n° 10.372/2018, formulado por comissão de juristas presidida pelo então Ministro da Justiça Alexandre de Moraes, (iii) do Projeto de Lei n° 10.373/20182 e (iv) do infame Projeto de Lei n° 882/2019, enviado pelo atual Ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro e objeto de análise deste estudo. O presente projeto se utilizou da divisão temática feita pelo Ministro Sérgio Moro – em vinte medidas –, tendo cada uma sido analisada por grupos que contaram com entre quatro e nove estudantes da Faculdade de Direito da PUC-SP (dos mais diversos anos) e de um a três coordenadores formados e com vasta experiência nas áreas do Direito Penal, Processual Penal e Criminologia. A presença de tais profissionais foi essencial à revisão e aperfeiçoamento da redação e conteúdo das análises feitas, além de possibilitar a orientação e indicação de caminhos possíveis aos alunos – que em muitos casos tiveram a sua primeira experiência de pesquisa com o presente trabalho acadêmico. Transformado na lei ordinária n° 13.964/2019 após sanção presidencial em 24 de dezembro de 2019. O referido projeto debate a regulamentação do procedimento da Ação Civil de Perdimento de Bens (bens, direitos e valores) procedentes, utilizados ou destinados de qualquer forma a atividades ilícitas. 1 2 5 Apesar das modificações substanciais realizadas pelo Grupo de Trabalho da Câmara dos Deputados3 no projeto original, a pertinência das análises aqui realizadas reside na continuidade das discussões teóricas acerca de temas como o excludente de ilicitude4, a execução da pena após condenação em 2º grau5 e o plea bargain6 – as quais, apesar de barradas do substitutivo aprovado, mantêm sua relevância por conta das eventuais consequências sociais dos institutos jurídicos e da atualidade dos debates gerados no ano de 2019. Além dessas três medidas, – e apesar da atuação da oposição no Grupo de Trabalho ter resultado na inserção de emendas7 consideradas garantistas frente ao teor estritamente punitivo do Projeto de Lei original –, o substitutivo aprovado está longe de ser projeto uníssono em relação ao endurecimento penal. Exemplo disso são algumas das medidas analisadas nos textos do presente projeto e que foram aprovadas como parte da Lei n° 13.964/2019. Dentre elas estão: (i) as alterações na Lei n° 11.671 (Lei dos Estabelecimentos Penais Federais), como o aumento do tempo de permanência em presídio federal, de 360 dias para 3 anos, prorrogáveis por igual período8, (ii) a vedação do benefício do livramento condicional a condenados por crime hediondo ou integrantes de organização criminosa (quando permanecendo em sua organização) 9, (iii) a suspensão da prescrição em caso de oposição de recurso nos Tribunais Superiores (na proposta de Moro, em caso de inadmissibilidade)10, (iv) a execução automática da pena igual ou superior a quinze anos após o veredito do Tribunal do Júri11 e (v) o alargamento do instituto do perdimento de bens, gerando verdadeira inversão no ônus da prova12. O parecer elaborado pelo Grupo de Trabalho que analisou as modificações legislativas detalha as análises feitas e as modificações em cada proposta. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=E225F2F1C45D8AC8B81E7EB9 DD3C6228.proposicoesWebExterno1?codteor=1772332&filename=Tramitacao-PL+10372/2018> 4 Medida IV 5 Medida I 6 Medida XII 7 Como, por exemplo, (i) a criação do Juiz das Garantias, por meio da inserção dos artigos 3º-A até 3º-F no Código de Processo Penal; (ii) a tipificação do instituto das audiências de custódia, constante do artigo 310 e parágrafos do Código de Processo Penal, (iii) as mudanças na decretação e manutenção das prisões preventivas, que, com a aprovação, passarão a ser revistas a cada noventa dias - conforme nova redação do artigo 316, parágrafo único; dentre outras. 8 Tema analisado pela medida XVII. 9 Tema analisado pela medida XVI. 10 Tema analisado pela medida X. No caso das alterações no instituto da prescrição, o texto aprovado foi além: “suspender-se-á a contagem do prazo prescricional em caso de oposição de recurso aos Tribunais Superiores, admissíveis ou não”. 11 Tema analisado pela medida II. 12 Tema analisado pela medida VIII. 3 6 Apesar disso, conforme mencionado anteriormente, também constam do projeto aprovado medidas de teor pouco mais garantista. Algumas das principais – a criação do Juiz das Garantias, a tipificação das audiências de custódia e as mudanças no instituto das prisões cautelares – já foram mencionadas, porém há alterações legislativas que podem vir a ter alcance positivo. Uma delas é a mudança no art. 282, §2º do Código de Processo Penal, que retirou a possibilidade de o Magistrado decretar o cumprimento de medidas cautelares 13 de ofício, devendo agir somente mediante requerimento da parte ou do Ministério Público. Outra, que inseriu o §4º no artigo 310 do Código de Processo Penal, estabelece que transcorridas 48h14 (quarenta e oito horas) do auto de prisão em flagrante e não realizada a audiência de custódia (sem motivação idônea), será considerada automaticamente ilegal a prisão, que obrigatoriamente deverá ser relaxada pela autoridade competente. Porém, apesar da importante tipificação das audiências de custódia no CPP trazer mais segurança jurídica ao instituto, há o problemático prolongamento do prazo máximo de 24 horas para a apresentação do custodiado, o qual já estava estabelecido na Resolução n° 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça. Em suma, o projeto aprovado é heterogêneo – cedeu ao punitivismo assim como também contou com a atuação da oposição a fim de atenuar as consequências irreversíveis da aprovação do Projeto de Lei original, tal como enviado pelo Executivo. Além disso, há institutos que ainda serão alvo de eventual controle de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, tornando imprevisível a conclusão a que os Ministros chegarão. O Estado de São Paulo, em editorial veiculado em 5 de outubro de 2019 (ou seja, antes das alterações feitas pelo substitutivo), afirmou que as mudanças propostas não favorecem o combate à criminalidade. O que se vê no pacote de medidas é apenas mais uma tentativa de endurecer as leis penais e processuais penais, numa repetição do engodo a que o País tantas vezes assistiu. Atribui-se a causa das altas taxas de criminalidade a uma legislação supostamente branda e, em vez de o poder público atuar como e onde deve, apresenta-se como panaceia geral a proposta de uma nova lei, mais rígida e mais desequilibrada. Esse caminho foi trilhado outras vezes e o resultado foi frustrante. Não há motivo para a teimosia no mesmo equívoco, esquivando-se de enfrentar as verdadeiras causas do crime. Além de ser disfuncional, prometendo algo que não conseguirá realizar, o Pacote Anticrime viola direitos e garantias fundamentais, o que faz recomendar sua completa rejeição pelo Congresso 15. Como a prisão preventiva, a busca e apreensão ou prisão domiciliar. 24h é o prazo do caput do artigo 310, e o parágrafo 4º estabelece a ilegalidade da prisão a partir de 24h após o decurso do prazo constante do caput. 15 O Estado de São Paulo, O Pacote Anticrime. Publicado em 5 de outubro de 2019. Acesso em 13 de janeiro de 2020. Disponível em <https://opiniao.estadao.com.br/noticias/notas-e-informacoes,o-pacoteanticrime,70003037767> 13 14 7 Portanto, conclui-se que o populismo penal que servia de fim mor ao Projeto de Lei original felizmente não foi acatado em sua integralidade; resultando, enfim, em um projeto que não soluciona os profundos problemas sociais advindos do sistema de justiça criminal brasileiro (e nem se propõe a isso), mas, mostra-se pouco menos insustentável do que o enviado originalmente pelo Executivo. Em suma, a pertinência da continuidade do presente estudo, mesmo após a referida aprovação, residirá, em última análise, na relevância acadêmica das análises feitas. O intuito deste projeto sempre foi estimular a pesquisa acadêmica, o estudo, o engajamento aos temas de relevância política e social aos estudantes da Faculdade de Direito da PUC-SP – ou seja, que os estudantes se envolvessem no debate político a nível nacional, estudassem e desenvolvessem uma análise crítica das medidas propostas pelo Ministro Sérgio Moro. De fato, os estudantes se envolveram em importante discussão teórica, fugindo à ótica do populismo penal e do mero endurecimento legislativo por força de um moralismo ocioso, sem resultado real. Ainda assim, levando em conta a aprovação do substitutivo, impôs-se fosse realizado uma última análise, dessa vez sob a ótica do Projeto de Lei sancionado, que consta do final deste estudo, em sua conclusão. Deste modo, é necessário também um apelo para que o projeto seja recebido como um todo, como uma convergência de opiniões diversas pensadas e redigidas por estudiosos do Direito acerca de temáticas que, tendo adquirido força de lei ou não, continuarão objeto de análise por juristas Brasil afora até a consolidação total de todas as alterações. Por fim, agradecemos imensamente a participação imprescindível de todos os envolvidos na confecção do presente projeto. Os longos meses de uma verdadeira jornada de conhecimento, que abriu portas à pesquisa acadêmica e certamente trouxe experiências positivas aos alunos, ampliaram a aproximação entre colegas comprometidos com valores democráticos e com as garantias individuais e os direitos fundamentais, além do estudo crítico do sistema criminal brasileiro. São Paulo, 12 de fevereiro de 2020 8 INTRODUÇÃO: ASPECTOS GERAIS DO “PACOTE ANTICRIME” DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA E SEGURANÇA PÚBLICA Sob coordenação de Túlio Felippe Xavier Januário e Joel Fraporti Elaborado por André Antiquera Pereira Lima, Andrea Passos de Oliveira Campos, Flora Negrelli, Maria Silva Menezes, Thiago Villela Dutra O “Pacote Anticrime”, conglomerado de alterações legislativas apresentado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública no ano de 2019, surge em momento extremamente oportuno ao emprego do punitivismo como saída supostamente eficaz à problemática criminal no Brasil. Os 57.341 homicídios só no ano de 2018 – 157 casos por dia1 – fazem da violência um dos temas mais caros ao cidadão brasileiro, tendo sido percebida como o segundo maior problema do Brasil em pesquisa realizada pelo Datafolha antes das eleições de 20182. A estratégia apresentada pelo governo é a de tentar solucionar os problemas de segurança pública através da simples edição de leis mais duras, sem, entretanto, um debate mais aprofundado a respeito dos reais problemas sociais brasileiros, ou sobre a estruturação dos sistemas de persecução penal e prisional, fatores que estão intrinsecamente relacionados ao fenômeno que o pacote anticrime se propõe a erradicar: o crime organizado. Nesse diapasão, o presente trabalho se propõe a analisar cada medida, a fim de entregar parecer puramente jurídico acerca dos objetivos, consequências e constitucionalidade de cada uma, prévio a qualquer juízo de valor. Em que pese a maior controvérsia a respeito das alterações que tratam de temas como: execução provisória da pena após condenação em segunda instância3, prescrição4, endurecimento do cumprimento das penas5, legítima defesa6 e sobre plea bargain, ou seja, as soluções negociadas no ordenamento penal brasileiro7, todas as 1 Nesse diapasão, vale destacar ainda que, apesar de trágica e preocupante, o referido índice de 157 homicídios por dia é o menor desde 2011. CARVALHO, Marco Antônio. Homicídios no País têm queda de 10% em 2018, com 57,3 mil casos; taxa é a menor desde 2011. O Estado de S. Paulo, 10 de setembro de 2019. Disponível em: <https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,homicidios-no-pais-tem-queda-de-10-em-2018-com-57-3-mil-casostaxa-e-a-menor-desde-2011,70003003892>. Acesso em 08 de novembro de 2019. 2 FOLHA DE S. PAULO. Para eleitores, saúde e violência são os principais problemas do país. Folha de S. Paulo, 11 de setembro de 2018. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/09/para-eleitores-saude-eviolencia-sao-os-principais-problemas-do-pais.shtml>. Acesso em 02 de novembro de 2019. 3 Medida I 4 Medida X 5 Medida V 6 Medida II 7 Medida XII 9 medidas propostas pelo governo alteram significativamente o sistema penal vigente, indicando a importância do debate de tais temas com o qual as análises compiladas no presente trabalho, realizado por alunos sob coordenação de advogados criminalistas, promotores e acadêmicos visa contribuir. Para tanto, as análises realizadas pelos foram centradas em cinco questões simples e bastante diretas: (I) O que diz a medida analisada; (II) Quais seus objetivos declarados e não declarados; (III) Quais são as consequências possíveis? Produzem efeitos positivos ou negativos? (IV) é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via Emenda Constitucional? (V) Existe uma alternativa viável? Quais as vantagens dessa alternativa? Dessa forma, o presente trabalho possui não apenas um cunho crítico, mas também um viés bastante propositivo, visando a real melhora do sistema criminal brasileiro, desvelando um certo simbolismo existente no discurso e em na maior parte das medidas propostas pelo governo. Introdução sobre o caráter simbólico do “pacote anticrime” Entretanto, antes do estudo pormenorizado de cada uma das medidas, cabe inserir tal projeto legislativo no contexto do simbolismo penal. O simbolismo no direito penal caracterizase por não produzir o efeito prático a que foi proposto; ao contrário: produz uma falsa sensação de segurança na sociedade, sem o correspondente incremento nos índices de segurança social ou mesmo redução da criminalidade, tal como ocorre com o “pacote anticrime”. Esse movimento de enrijecimento do sistema penal em nome de um suposto implemento nos níveis de segurança pública às custas das liberdades individuais não é novo, já tendo sido observado praticamente em todo o mundo, inclusive no Brasil. Um exemplo eloquente é a lei de crimes hediondos8, promulgada em 1990 com o intuito de reforçar o caráter indignante dos crimes considerados violentos9, que, dentre outras medidas, 8 BRASIL. Lei n° 8.072/1990: Dispõe sobre os crimes hediondos, nos termos do art. 5º, inciso XLIII, da Constituição Federal, e determina outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8072.htm>. Acesso em 08 de novembro de 2019. 9 Nos termos da atual redação do Artigo 1º da Lei em comento: “Art. 1o São considerados hediondos os seguintes crimes, todos tipificados no Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, consumados ou tentados: I – homicídio (art. 121), quando praticado em atividade típica de grupo de extermínio, ainda que cometido por um só agente, e homicídio qualificado (art. 121, § 2o, incisos I, II, III, IV, V, VI e VII); I-A – lesão corporal dolosa de natureza gravíssima (art. 129, § 2o) e lesão corporal seguida de morte (art. 129, § 3o), quando praticadas contra autoridade ou agente descrito nos arts. 142 e 144 da Constituição Federal, integrantes do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, no exercício da função ou em decorrência dela, ou contra seu cônjuge, 10 promoveu o aumento de penas, a inicial vedação da liberdade provisória e do cumprimento de pena em regime outro que não o fechado10. Não existe qualquer evidencia de que tenha existido um real implemento nos níveis de segurança dos cidadãos, por outro lado, é de conhecimento público que a superlotação carcerária e o abandono de qualquer perspectiva ressocializadora são fatores diretamente relacionados à consolidação e expansão de facções criminosas perigosíssimas. Apesar da impossibilidade de creditar à lei a responsabilidade exclusiva pela superlotação carcerária que lhe seguiu, é evidente sua contribuição para o agravamento desse quadro ante a opção legislativa pala elevação das penas e regime de cumprimento como única medida político-criminal, sem qualquer preocupação com a efetividade de políticas de segurança pública ou seguridade social. O aumento de pena é a solução mais fácil e mais barata, apesar de evidentemente não resolver o problema. Tal qual já ocorreu também em diversos outros países, atualmente, nos vemos imersos em medo e insegurança por conta da problemática da criminalidade, levando a sociedade a enxergar no sistema penal o instrumento a ser utilizado pelo Estado como fator principal de proteção. Esse sentimento é por vezes intensificado – ou até mesmo criado – pelos meios de comunicação que, no objetivo de atingir a maior audiência, explora a criminalidade, selecionando as notícias de forma a cultivar a sensação de pânico e medo. Assim, a população inicia a cobrança de uma atuação estatal pautada na criação de novas leis penais ou no endurecimento desproporcional das existentes. Desse modo, o legislador utiliza-se do sistema penal para mascarar o problema estrutural do Brasil, de desigualdade social e pobreza, concentrando o trabalho somente apenas na opinião pública, transformando a lei penal em uma peça de propaganda. Como escreve Alice Bianchini: companheiro ou parente consanguíneo até terceiro grau, em razão dessa condição; II - latrocínio (art. 157, § 3o, in fine); III - extorsão qualificada pela morte (art. 158, § 2o); IV - extorsão mediante sequestro e na forma qualificada (art. 159, caput, e §§ lo, 2o e 3o); V - estupro (art. 213, caput e §§ 1o e 2o); VI - estupro de vulnerável (art. 217A, caput e §§ 1o, 2o, 3o e 4o); VII - epidemia com resultado morte (art. 267, § 1o). VII-B - falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais (art. 273, caput e § 1o, § 1o-A e § 1o-B, com a redação dada pela Lei no 9.677, de 2 de julho de 1998). VIII - favorecimento da prostituição ou de outra forma de exploração sexual de criança ou adolescente ou de vulnerável (art. 218-B, caput, e §§ 1º e 2º). Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados. BRASIL. Op. Cit. 10 Atualmente, o Art. 2º, §2º, prevê que: “§ 2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal)”. BRASIL, Op. Cit. 11 O que importa, para a função simbólica, é manter um nível de tranquilidade na opinião pública, fundado na impressão de que o legislador se encontra em sintonia com as preocupações que emanam da sociedade. Criam-se, assim, novos tipos penais, incrementam-se as penas, restringem-se direitos sem que, substancialmente, tais opções representem perspectivas de mudança do quadro que determinou a alteração (ou criação) legislativa. Produz-se a ilusão de que soluções foram encaminhadas.11 Nesse mesmo contexto cabe assentar que, conforme observa Diez Ripollés12, o direito penal simbólico tem estreito vínculo com o discurso populista punitivista, que reivindica a produção de leis penais novas cada vez mais severas, com a ciência de que essas leis, sob a roupagem de uma atuação política instrumental e eficaz, na verdade, nada alteram a realidade da proteção de bens jurídicos, limitando-se, nesse campo, somente a emitir mensagens imediatistas de tranquilização coletiva ou de preocupação com o tema. Isso porque, o discurso populista é caracterizado pela busca do consenso ou do apoio popular para medidas repressivas cada vez mais duras13. Trata-se, para os garantistas e grande parte da criminologia crítica, de um método hiperpunitivista que se vale do senso comum, o saber popular, as emoções e as demandas geradas pelo delito e pelo medo do delito, para conquistar o consenso ou apoio da população em terno da imposição de mais rigor penal como solução para o problema da criminalidade. Assim, o populismo penal pode ser considerado um discurso político do inconsciente coletivo, que descansa sobre uma criminologia arcaica do homem criminoso, o “outro estranho” e que explora a insegurança pública como fundamento para a adoção de mais medidas punitivistas, facilitadas pelas representações sociais do infrator14. No plano político, o populismo se caracteriza pela manobra da vontade da massa, guiada por um líder carismático, que procura atender suas demandas e promover (tendencialmente) o exercício tirânico pela exploração do senso comum. Sob a ideia de “proteção” ofertada aos “cidadãos de bem”, oculta-se a impotência dos governantes em face da catarse de conflitos e tensões aos quais eles não podem (ou não estão dispostos a) responder senão através de medidas meramente retóricas, criando uma falsa ideia de unidade diante de um inimigo interno personificado na figura do outro: selecionado entre os 11 BIANCHINI, Alice. Política Criminal, Direito de punir do Estado e finalidades do Direito Penal. Página 24. DIEZ RIPOLlÉS, José Luis. De la sociedad del riesgo a la seguridad ciudadana: un debate desenfocado. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, Granada, n. 7, 2005. p. 71. 13 GARLAND, David. Castigo y sociedad moderna: um estúdio de teoria social, 2, ed, México: Siglo Veintiuno Editores, 2005. p. 48. 14 GOMES, Luiz Flavio. O populismo penal midiático. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 28. 12 12 membros dos setores socialmente vulneráveis a partir de uma série de filtros existentes no sistema criminal. Sabe-se que a solução dos problemas de segurança pública do país não se dará por meio de penas mais severas ou criação de novos tipos penais, ou qualquer outra medida imediatista, como o enrijecimento do regime prisional. É imprescindível que se reconheça o problema social de natureza estrutural em que vivemos para que sejam adotados esforços para solucioná-lo, com medidas de médio e longo prazo. Desta forma, em um contexto em que “o direito penal (poder punitivo), como sublinha Hassemer e Muñoz Conde (1989, p. 23 e ss.), está (cada vez) menos orientado à proteção de um bem jurídico do que para efeitos políticos mais amplos como a satisfação de uma ‘necessidade de ação’”15, o Projeto Anticrime visa mais a retórica do que o problema, repetindo os já conhecidos erros do passado, conforme passamos a abordar nas próximas páginas deste trabalho. 15 GOMES, Luiz Flávio. Populismo penal midiático: caso mensalão, mídia disruptiva e direito penal crítico / Luiz Flávio Gomes e Débora de Souza de Almeida; coordenadores Alice Bianchini, Ivan Luís Marques e Luiz Flávio Gomes. – São Paulo: Saraiva, 2013. 13 MEDIDA I – EXECUÇÃO ANTECIPADA DA PENA APÓS CONDENAÇÃO EM SEGUNDA INSTÂNCIA Sob coordenação de Renata Rodrigues de Abreu Ferreira e Fernando Augusto Bertolino Storto Elaborado por Ana Carolina de Araújo Melo, Bianca Capalbo Gonçalves de Lima, Genilson Nascimento e Thiago Villela Dutra 1. Um desadornado prólogo É impossível devolver a liberdade perdida ao cidadão1. É melhor que dez culpados escapem, que aquele um inocente sofra2. É isso que prevê o princípio Blackstone – ou Blackstone’s ratio – um dos axiomas mais reverenciados no direito penal anglossaxão3. A razão da exaltação dessa máxima não é difícil de se imaginar. Antes de se debruçar sobre o real motivo deste texto, é imprescindível se passar a uma petite histoire. Era uma vez um senhor que foi acusado – sem nenhuma prova – do estupro de uma menina de nove anos de idade. Ele ficou dois anos e sete meses preso. Durante o seu percurso no cárcere, foi violentado por quase 60 detentos, contraiu AIDS e depois teve sua inocência comprovada. Parece um conto de terror, mas essa é a história de Heberson Oliveira, uma das diversas vítimas de nossa justiça falível4, mais um dos padecedores de um sistema que erra e que quer prender seus acusados antes do tempo. Essa é uma das razões da existência da presunção de inocência: a defectibilidade da justiça. 2. De que trata a medida proposta? 1 Voto do Ministro Relator Marco Aurélio. STF, ADC 43, 44 e 45. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em 17/10/2019. Ainda não publicado. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/dl/leia-voto-ministro-marcoaurelio.pdf>. 2 No original: “Better that ten guilty persons escape, than that one inocent suffers”. 3 EPPS, Daniel. The consequences of error in criminal justice. Harvard Law Review. Vol. 128, Feb. 2015. Acesso em 2.11.2019. Disponível em: <http://cdn.harvardlawreview.org/wp-content/uploads/2015/02/vol128_epps.pdf>. 4 Conforme se observa em: <https://www.uol/noticias/especiais/as-3-mortes-de-heberson.htm> e <https://wagnerfrancesco.jusbrasil.com.br/artigos/305043666/blackstone-s-formulation-e-o-dever-de-proteger-oinocente-contra-injusticas>. Diante da falibilidade da justiça é que surgiu o Innocence Project, também atuante no Brasil. 14 O designado Pacote Anticrime incluiu em suas previsões uma medida que busca “assegurar a execução provisória da condenação criminal após julgamento em segunda instância”5, por meio da introdução, no Código de Processo Penal, do artigo 617-A: que permitiria aos Tribunais de Justiça ou Tribunais Regionais Federais – após a apreciação do recurso de apelação proferindo acórdão condenatório – que determinassem o cumprimento provisório de penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias. Para verificar a viabilidade da medida, é necessário – antes de mais nada – se percorrer por uma análise histórica e cronológica não só do entendimento do Supremo Tribunal Federal, como também do legislador (constituinte e infraconstitucional), acerca da matéria, para que então se possa compreender o impacto dessas alterações no ordenamento jurídico pátrio. 3. Um breve histórico das decisões que revelam a interpretação do art. 5º, LVII, CF Em um escorço de contextualização histórica sobre a evolução de perspectivas em torno da questão da execução antecipada da pena, verifica-se que, após a promulgação da Constituição Federal de 1988 – que consagrara o inciso LVII do art. 5º6 –, a matéria foi levada ao conhecimento do Supremo Tribunal Federal, pela primeira vez, em 29 de março de 1989, por meio do habeas corpus nº 67.245/MG7. Na ocasião, houve a denegação unânime da ordem, admitindo-se a execução provisória da pena após condenação por Tribunal de Justiça. Em um segundo momento, o Plenário da Suprema Corte, instado a se manifestar – em 28 de junho de 1991, no julgamento do habeas corpus nº 68.726/DF8 –, manteve o posicionamento externado por meio de seu órgão fracionário. A discussão em torno do tema parecia estável até o ano de 2009, quando, incutida pelo HC nº 84.078-MG9, aquela Corte fixou o entendimento, por maioria, de que a prisão só poderia ocorrer após o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, consoante a literalidade da Constituição. Assim, o réu só poderia começar a cumprir sua pena quando todas as instâncias recursais já tivessem se esgotado, em observância ao princípio da presunção de inocência. 5 MORO, Sérgio Fernando. Projeto de Lei Anticrime. Acesso em 17/10/2019. Disponível em: https://www.justica./gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf. 6 Segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 7 HC 67.245, Rel. Min. ALDIR PASSARINHO, Segunda Turma, julgado em 28/03/1989, DJE 26/05/1989. 8 HC 68.726, Rel. Min. NÉRI DA SILVEIRA, Tribunal Pleno, julgado em 28/06/1991, DJE 20/11/1992. 9 STF, HC 84.078 MG, Rel. Min. EROS GRAU, Data de Julgamento: 05/02/2009, Tribunal Pleno, Data de Publicação: 26/02/2010. 15 A alteração do entendimento foi aplaudida, como explica Bittencourt: Essa decisão reafirmou o conteúdo expresso de nossa Carta Magna, qual seja, a consagração do princípio da presunção de inocência. Ou seja, ao determinar que enquanto houver recurso pendente não poderá ocorrer execução de sentença condenatória, estava atribuindo, por consequência, efeito suspensivo aos recursos especiais e extraordinários. Tratava-se, por conseguinte, de decisão coerente com o Estado Democrático de Direito, comprometido com o respeito às garantias constitucionais, com a segurança jurídica e com a concepção de que somente a sentença judicial definitiva, isto é, transitada em julgado, poderá iniciar o cumprimento de pena imposta10. A mudança de posicionamento homenageou não só os princípios constitucionalmente previstos, mas também os axiomas fixados em tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU11 e o Pacto de San José da Costa Rica12. Acompanhando o avanço jurisprudencial, o legislador, no ano de 2011, concedeu, por meio da Lei nº 12.403/201113, nova redação ao art. 283 do CPP, o qual passou a dispor que: Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva (grifouse). Naquele momento o legislador adaptou o Código de Processo Penal, de 1941 – pretérito à nova constituinte –, respeitando os preceitos constitucionais e fincando as quatro modalidades de prisão compatíveis com o ordenamento constitucional (as cautelares e a prisão definitiva). Excluída, portanto, a possibilidade de execução provisória da pena antes do trânsito em julgado, porquanto incompatível com a redação da Magna Carta de 1988. Anos se passaram sem que nenhum questionamento a respeito da questão fosse efetuado. Só em 2016, no auge da designada “Operação Lava-Jato”, por ocasião do julgamento 10 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado De Direito Penal: Parte Geral. 24ª ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 77. 11 Assembleia Geral da ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. A Declaração prevê, em seu artigo XI, que: “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa”. 12 Organização dos Estados Americanos. Convenção Americana de Direitos Humanos (“Pacto de San José de Costa Rica”). 1969. O Artigo 8º, inciso I, do referido tratado preceitua que: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”. 13 BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências. Brasília, DF, 2011. 16 do habeas corpus nº 126.292/SP14, voltou-se ao entendimento de 1989, vencendo a tese de que réus em ação penal poderão ter a pena executada após confirmação em segundo grau, apesar da possibilidade de interposição de recursos especial e extraordinário. Com placar acirrado de 7 votos a favor e 4 contra, deixou-se clara a dissonância dentro do próprio Tribunal. A diferença dos votos dos ministros parecia refletir a divergência política que assolava o país, devido às especulações sobre o habeas corpus e a “prisão dos poderosos”. Consoante o novo posicionamento, não seria necessário o esgotamento das vias recursais para a execução da pena, podendo ela ocorrer antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória – posição esta que fora tomada devido à grande pressão popular que pugnava pela punição dos réus na mencionada Operação. Ficou visível, assim, o alinhamento maior da nova interpretação com o clamor popular e menor com relação aos direitos fundamentais previstos na Constituição. No mérito dos votos favoráveis à denegação, os ministros apontaram os habeas corpus como formas de corrigir possíveis erros judiciais sobre o entendimento atual da execução de pena. A votação demonstrou uma antinomia de concepções entre os Ministros, podendo ser os votos genericamente diferenciados por alguns motivos: a demora para o esgotamento de todos os recursos e os inúmeros instrumentos recursais utilizados no Judiciário. Por outro lado, o posicionamento dos ministros favoráveis à concessão da ordem se respalda no fato de que a concepção de cumprimento provisório da reprimenda seria um retrocesso ao que fora fixado em 2009 e ao estipulado na Constituição, em 1988, alavancando ainda a inconstitucionalidade da nova posição. Ante as dúvidas e discussões sobre o tema, foram propostas as Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADC) 43 e 4415, cujo intuito era a análise do reconhecimento da constitucionalidade do art. 283 do CPP16. Decididas, às pressas, duas liminares, novamente com votação apertada (dessa vez de seis votos a cinco), ficou acordado (em sede de liminar) que seria preso o réu após confirmada 14 STF. HC 126.292/SP, Rel. Min. Teori Zavascki, Tribunal Pleno, julgado em 17 de fevereiro de 2016. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=10964246>. 15 BRASIL. STF, Ação Direta de Constitucionalidade nº 43 e 44, Rel. Min. Marco. Aurélio, Pleno, julgadas em 05 de outubro de 2016. 16 O artigo 283 do Código de Processo Penal preceitua que: “Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.”. 17 a sentença em segunda instância, tendo este que recorrer encarcerado – mantido, até aquele momento, o entendimento do HC 126.292. Por ocasião do julgamento – revertido no dia 07.11.2019, por 6 votos a 5 pela procedência das ADCs, portanto reconhecendo a constitucionalidade do art. 283 do CPP – o que se tem de discutir é: Se a ideia de presunção de inocência, tal como estamos desenhando, justifica, em qualquer hipótese, que se espere a formalização do trânsito em julgado. É essa a pergunta. E, a mim, parece-me que, se nós considerarmos que, aqui, cuida-se de uma garantia constitucional, que há essa atenuação da presunção de inocência, na medida em que juízos vão-se formando, vereditos vão-se formando em sentido contrário, em sentido favorável da formação de culpa, se ainda se pode falar em caso de presunção de inocência, ela é muito esmaecida afinal, com o juízo de primeiro grau, com o juízo de segundo grau e isso permite. E mesmo o acórdão que lavramos no Habeas Corpus 84.078, já justificava, na época, a prisão, desde que de caráter provisório. [...] Então, Presidente, a mim, me parece que não há nenhuma dúvida de que a realidade mostra que precisamos, sim, de levar em conta não só o aspecto normativo que, a meu ver, legitima a compreensão da presunção de inocência nos limites aqui estabelecidos, a partir do voto do Relator e aqueles que o acompanharam, como, também, levar em conta a própria realidade que permite que exigir o trânsito em julgado formal transforme o Sistema num sistema de impunidade17. A verdade é que a Constituição é posterior ao Código de Processo Penal e, portanto, este deve ser analisado à luz daquela, na medida em que alguns dos seus vieses podem não ter sido recepcionados pela Lei Maior. Além disso, com o advento da reforma processual penal de 2008, pela Lei nº 11.689, extinguiu-se a prisão automática, anteriormente prevista no Codex18. A regra até aquele ato era o cárcere, salvo se o réu fosse primário e de bons antecedentes, aí o juiz poderia deixar de lhe decretar a prisão ou revogá-la, caso já se encontrasse preso19. Naquele momento também o legislador estipulou que o juiz teria que decidir, “motivadamente, no caso de manutenção, revogação ou substituição da prisão ou medida restritiva de liberdade anteriormente decretada e, tratando-se de acusado solto, sobre a necessidade da decretação da prisão ou imposição de quaisquer das medidas previstas no Título IX do Livro I”20 do Código. 17 BRASIL. STF, Ação Direta de Constitucionalidade nº 43, Rel. Min. Marco. Aurélio, Pleno, julgadas em 05 de outubro de 2016. Voto Min. Gilmar Mendes, p. 213 e 217. 18 A redação antiga, dada pela Lei nº 9.033, de 2.5.1995, para o § 1º do art. 408 […]. Afirmava que “Na sentença de pronúncia o juiz declarará o dispositivo legal em cuja sanção julgar incurso o réu, recomendá-lo-á na prisão em que se achar, ou expedirá as ordens necessárias para sua captura”. A literatura do preceito era bastante similar à redação conferida pela Lei de 1973 (Lei n. 5.941). 19 § 2º do antigo 408 do Código de Processo Penal. 20 Conforme a redação do atual § 3º do artigo 413 do CPP. 18 A prisão tornou-se exceção e, em 2011, o legislador avançou ainda mais, delineando que a prisão preventiva só poderia ser determinada quando não fosse cabível a sua substituição por outra medida cautelar, daquelas previstas no rol do artigo 31921, sempre se observando a “necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais” e verificando-se a “adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado”22. Esclarecida a conjuntura cronológica legislativa-jurisprudencial, deve-se analisar as mudanças que podem ocorrer a partir da introdução da medida, caso esta venha a ser aprovada. Dentre as modificações propostas ressalta-se a aprovação do art. 617-A do Código de Processo Penal, o qual preveria que: Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. Sem embargo, conforme discutido acima, o art. 637 do CPP dispõe que o recurso extraordinário não concederá efeito suspensivo à sentença, salvo se preenchidos os requisitos dispostos na alteração do referido artigo proposto por Moro, cuja redação, em seu §1º, estabeleceria que: Excepcionalmente23, poderão o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça atribuir efeito suspensivo ao recurso extraordinário e ao recurso especial, quando verificado cumulativamente que o recurso: I - não tem propósito meramente protelatório; e II - levanta uma questão de direito federal ou constitucional relevante, com repercussão geral e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto (grifou-se). Outrossim, busca-se alterar os requisitos para expedição da guia de recolhimento, que poderá ser feita na execução provisória, após a condenação em segunda instância: Transitando em julgado a sentença que aplicar pena privativa de liberdade ou determinada a execução provisória após condenação em segunda instância, se o réu estiver ou vier a ser preso, o Juiz ordenará a expedição de guia de recolhimento para a execução. 21 Consoante o § 6º do atual art. 282 do CPP. Artigo 282 do Código de Processo Penal. 23 Fica explícito que a nova redação tornaria em regra a execução da pena e em exceção o efeito suspensivo dos recursos especial e extraordinário. 22 19 Pode-se dizer que a proposta visaria suprir lacunas deixadas pelo antigo entendimento do Supremo – alterado recentemente por meio do julgamento das ADCs 43, 44 e 54 – no que tange à execução provisória da pena. 4. O que se pretende com a mudança? É imprescindível analisar quais são os objetivos e finalidades da alteração interpretativa dos dois dispositivos já transcritos anteriormente: o art. 5º, LVII, da Constituição Federal e o art. 283 do Código de Processo Penal, ou seja, é necessário se atentar primeiramente aos propósitos declarados da medida. O atual Ministro da Justiça, em evento no auditório do Superior Tribunal de Justiça, afirmou que o pacote planeja inverter “a lógica da exigência do trânsito em julgado”, e, além disso, que o projeto prevê que: Os recursos contra a decisão judicial não terão o efeito de suspender [o início do cumprimento da decisão em segunda instância], mas que o STF ou o STJ poderão, excepcionalmente, atribuir efeito suspensivo aos recursos desde que verificado (...), que o recurso não tem propósito meramente protelatório24. Tomando-se por base essas declarações, tem-se dois propósitos declarados da medida sugerida: (i) a inversão da lógica do trânsito em julgado, determinando a automática execução provisória da pena logo após a condenação em segundo grau; (ii) o embate contra os recursos “meramente protelatórios” – dando, portanto, margem à interpretação subjetiva [e arbitrária] do magistrado acerca do caráter procrastinador ou não de qualquer recurso interposto nos Tribunais Superiores. Sobre o primeiro aspecto, não há necessidade de se tecer um juízo de valor conclusivo antes de, ao menos, explicitar que não há nenhuma estrutura de projeto de lei ou emenda constitucional que dê permissão aos poderes Executivo ou Legislativo para intervirem em direitos fundamentais expressos na Constituição Federal. É que, para além do inciso que versa sobre a presunção da inocência25, o artigo 60, em seu §4º da Carta Magna traz quatro itens listados que estão impedidos de serem objeto de deliberação sequer por emenda constitucional – que dirá por lei ordinária ou complementar – pretendente a diminuí-los ou aniquilá-los. Neste preceito estão elencados os “direitos e 24 RODRIGUES, Alex. Sergio Moro destaca importância de prisão em segunda instância. Publicado em 20/08/2019. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/justica/noticia/2019-08/sergio-moro-defendeprisao-em-segunda-instancia>. Acesso em 28/09/2019 (grifou-se). 25 Art. 5° LVII da Constituição Federal. 20 garantias individuais”, nos quais se enquadra a impossibilidade de ser considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Apesar da flagrante inconstitucionalidade da proposta – mais adiante discutida –, em efeitos práticos, a mudança apenas se prestaria como meio para o aumento da população carcerária brasileira. Ora, considerando-se que houve um aumento em 100% da população carcerária de 2005 até 201626, e que o número de homicídios também cresceu nesse período (ainda que não tanto quanto o número de prisioneiros), percebe-se que não há necessariamente uma relação de causalidade entre aumento de prisões e a diminuição de homicídios/crimes violentos. Pelo contrário, estes apenas aumentaram. Sobre os recursos “meramente protelatórios”, o Ministro Barroso – notório defensor da antecipação provisória da pena –, expôs que “ao autorizar-se que a punição penal seja retardada por anos e mesmo décadas, cria-se um sentimento social de ineficácia da lei penal”27, o que, segundo a tese defendida também pelo Ministro da Justiça, justificaria o sacrifício do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal. Há, porém, um semblante de falso moralismo na afirmação do Ministro: ele transfere a culpa pela morosidade do Judiciário ao direito de se opor recursos até o trânsito em julgado da sentença, tornando o agente passivo da justiça – o réu – em protagonista da própria incapacidade do Estado de alcançar sua celeridade, enquanto que, simultaneamente, retira do próprio Judiciário esse ônus. Uma vez explicitados os motivos mais relevantes e aparentes para a proposição da medida, deve-se fazer um exame sobre o seu conteúdo e seus objetivos implícitos, aqueles que, embora presumíveis, não foram declaradamente incluídos pelo subscritor como finalidades precípuas do projeto. Três objetivos implícitos são bastante relevantes. O primeiro deles é o já mencionado aumento exponencial da população carcerária, falaciosamente visto por punitivistas como uma solução adequada à problemática da criminalidade, por servir de limite à chamada “impunidade penal” – como se o país com a terceira maior população carcerária do planeta pecasse pela falta 26 ERDELYI, Maria Fernanda. Brasil dobra número de presos em 11 anos, diz levantamento; de 726 mil presos, 40% não foram condenados. Publicado em 08/12/2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/politica/ noticia/brasil-dobra-numero-de-presos-em-11-anos-diz-levantamento-de-720-mil-detentos-40-nao-foram-julgad os.ghtml>. Acesso em 12/10/2019. 27 STF, ADC 44, Rel. Min. Marco Aurélio, Data de Julgamento 05/10/2016, DJe 07/03/2018, voto do Ministro Luis Roberto Barroso, p. 80. 21 de prisões, e não por motivos mais complexos como, justamente, superlotação carcerária28, educação, desemprego, falta de reinserção do egresso à sociedade em liberdade ou o indignante número de prisões provisórias29. O segundo, intrinsecamente conexo ao primeiro, é a lógica de que, ao atender ao clamor social por mais prisões, encarcerando-se pessoas “abastadas e poderosas”, haveria um certo “equilíbrio” na justiça criminal brasileira – tese seguida pelo próprio Ministro da Justiça, que, quando ainda juiz federal, após o julgamento do HC nº 126.929, afirmou que o Supremo “decidiu que não somos uma sociedade de castas e que mesmo crimes cometidos por poderosos encontrarão uma resposta na Justiça criminal”30. Já o terceiro desígnio implícito da medida seria a legitimação da prisão preventiva automática com vestes de cumprimento de pena definitiva e travestida de “execução provisória da pena”. Embora este escopo esteja conectado à “inversão da lógica do trânsito em julgado”, é sublime por transformar em regra a privação de liberdade automática – já revogada pelo legislador em 2008 –, negligenciando que essa prontidão serviria apenas para encobrir a ilegalidade das prisões preventivas decretadas a torto e à direita. Em um levantamento feito pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, em manifestação31 como amicus curiae nos autos da ADC nº 44 – cuja legitimidade de atuação no debate decorre do fato de o Estado de São Paulo carregar 1/3 (um terço) da população carcerária brasileira, a maioria em situação financeira precária32 –, ressaltou-se o aumento exponencial de 28 Há hoje, no Brasil, 704.395 presos para uma capacidade total de 415.960, um déficit de 288.435 vagas. Não é de todo ilusório admitir que esse déficit possa contribuir para a dificuldade em reinserir um preso em sociedade, contribuindo, também, à reincidência. Dados em: VELASCO, Clara e REIS, Thiago e CARVALHO, Bárbara e LEITE, Carolline e PRADO, Gabriel e RAMALHO, Guilherme. Superlotação aumenta e número de presos provisórios volta a crescer no Brasil. Publicado em 26/04/2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/monitorda-violencia/noticia/2019/04/26/superlotacao-aumenta-e-numero-de-presos-provisorios-volta-a-crescer-no-brasil .ghtml>. Acesso em 12/10/2019. 29 Há 252,2 mil presos provisórios no país, ou 35.9% do total de encarcerados no sistema penitenciário brasileiro. VELASCO, Clara; REIS, Thiago; CARVALHO, Bárbara; LEITE, Carolline; PRADO, Gabriel; RAMALHO, Guilherme. Op. Cit. 30 G1 Paraná. MPF diz que prisão em segunda instância é marco para réus de ‘colarinho branco’. Publicado em 06/10/2016. Disponível em: <http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/10/mpf-diz-que-prisao-em-2-instanciae-marco-para-reus-de-colarinho-branco.html>. Acesso em 12/10/2019. 31 STF, ADC 44, Rel. Min. Marco Aurélio, Data de Julgamento 05/10/2016, DJe 07/03/2018, manifestação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo como Amicus Curiae. Disponível em: <https://www.defensoria. sp.def.br/dpesp/repositorio/0/manifesta%C3%A7%C3%A3o%20DPSP.pdf>. 32 Para isso deve-se levar em conta que 90% dos presos no Brasil não possuem ensino médio completo, e, sabendo disso, deve-se levar em conta que quem assume a defesa de fato dessas pessoas é a Defensoria Pública. Ver: STF, ADC 44, Rel. Min. Marco Aurélio, Data de Julgamento 05/10/2016, DJe 07/03/2018, manifestação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo como Amicus Curiae retromencionada, p. 2. 22 prisões (determinadas automaticamente após a condenação em segundo grau) após a abertura do “precedente” pela Suprema Corte. A entidade afirmou que: 13.887 mandados de prisão foram expedidos pelo Tribunal de Justiça paulista após o acórdão de segundo grau no período compreendido entre 18.02.2016 e 04.04.2018, com fundamento em um único habeas corpus, qual seja, o HC nº 126.292. Adicione-se a isso o fato de que diversas prisões antecipadas são posteriormente revertidas pelo STJ – conforme se verá mais adiante –, sendo, portanto, ilegais desde o início de sua execução. A Defensoria também registrou que, em agosto de 2017, recebeu 4.025 intimações do Superior Tribunal de Justiça relativas a habeas corpus impetrados por ela, e, dessas, 1.214 foram concessivas da ordem33. Disso tudo apenas se pode extrair uma conclusão: 30% de todos os pacientes estavam submetidos a prisões ilegais, e, por isso, tiveram uma decisão favorável proferida pelo STJ. Quanto à terceira finalidade implícita, levanta-se uma preocupação: uma vez que o colegiado da Suprema Corte deu permissão à execução provisória da pena, em 2016, órgãos colegiados de segundo grau passaram a impor automaticamente o cumprimento antecipado do castigo após a prolação do acórdão, concedendo ao “precedente” (sem efeitos erga omnes) força de regra, e não de exceção. Sobre a atual aplicação automática da execução da pena, o Ministro Gilmar Mendes, em sede do julgamento do HC n° 152.75234, aventou que: analisadas diversas situações concretas resultantes daquele julgado, em que tribunais, automaticamente, passaram a determinar a antecipação da execução da pena, verifiquei, e acredito que todos os meus pares também, a ocorrência de encarceramentos precoces, indevidos, em razão de reforma posterior da condenação pelo STJ. Para complementar sua assertiva, o Ministro, no mesmo voto, descreve alguns encarceramentos precoces e indevidos, posteriormente reformados35. 33 STF, ADC 44, Rel. Min. Marco Aurélio, Data de Julgamento 05/10/2016, DJe 07/03/2018, manifestação da Defensoria Pública do Estado de São Paulo como Amicus Curiae, p. 6. Disponível em: <https://www.defensoria. sp.def.br/dpesp/repositorio/0/manifesta%C3%A7%C3%A3o%20DPSP.pdf>. Acesso em 12.10.2019. 34 HC impetrado em favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, julgado dias antes dele ser preso em 2018. HC n° 152.752, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2018, DJe 27/06/2018, pp. 111/112. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=15132272> (grifou-se). 35 No mesmo voto, o Ministro dá exemplos de condenações indevidas posteriormente reformadas pelo STJ. Transcreve-se, aqui, alguns deles: (i) a Ação Penal 0104654-76.1995.403.6181, da JFSP, que teve pena reduzida pelo HC 317.330/SP; (ii) réu condenado a 5 anos de prisão em regime inicial fechado, que posteriormente teve pena reduzida para 1 ano e 8 meses, sendo cumprido em regime aberto, em sede do AREsp 1.195.573-SP, e, por fim, (iii) no terceiro exemplo, a alforria do réu veio de embargos declaratórios em agravo tirado de recurso especial 23 Dessa maneira, ponderados os objetivos explícitos e implícitos que se busca alcançar com a medida, passar-se-á à análise das consequências das alterações. Em artigo publicado no ano de 2018, Lênio Luiz Streck36 apontou que apenas os Ministros Luiz Fux e Roberto Barroso defenderam a tese de prisão automática após condenação em segunda instância. Na ocasião em que publicado, o Supremo já havia julgado o HC nº 152.752/PR e o Ministro Barroso apresentou, nas anotações para manifestação oral 37, um apanhado de dados sobre os recursos, em matéria penal, providos pelo Superior Tribunal de Justiça, que não passaram de 1% os deferimentos, conforme transcrito abaixo: 3. A pesquisa solicitada por mim e coordenada pelo Ministro Rogerio Schietti trouxe as seguintes informações relevantes: a) a primeira decisão terminativa proferida pelo STJ em recursos especiais costuma se dar no prazo de 202 dias, isso é pouco menos de 7 meses; b) a primeira decisão terminativa proferida pelo STJ em agravos em recursos especiais costuma se dar no prazo de 153 dias, isso é pouco mais de 5 meses. 4. Portanto, embora haja uma demora no trânsito entre o Tribunal de origem e o STJ, se se aguardar a primeira decisão terminativa, o risco de procrastinação é controlado. 5. Com uma informação importante, em pesquisa complementar feita pelo Ministro Schietti: o percentual de provimento de agravo contra esta primeira decisão é irrisório. Em relação aos recursos especiais, em 30.082 decisões, a percentagem de reforma foi de 0,31%. E no tocante aos agravos em recurso especial, em 52.327 decisões, a 21 porcentagem de reforma foi de 0,21%. Vale dizer: é a primeira decisão terminativa que prevalece em mais de 99% dos casos. Mais adiante se verificará que tais dados não necessariamente correspondem à realidade. De toda sorte, estabelecidos esses pressupostos, resta apreciar um outro efeito possível da medida. O noticiário brasileiro tem, constantemente, passado para a população um clima de insegurança cuja solução única seria o encarceramento em massa, não observando as vastas alternativas penais existentes – como a justiça restaurativa, por exemplo – que apresentam um elevado retorno social. O fictício reestabelecimento da prisão após condenação em segunda instância, por meio do julgamento do HC nº 126.292/SP, trouxe uma onda de falsa segurança, acalentando o anseio social pela prisão dos ditos “criminosos”. analisado pelo STJ (977.341-MG). Aqui o réu foi condenado a uma pena de 2 anos e 6 meses de reclusão, regime inicial fechado. Deu-se a execução da pena após condenação em segunda instância. O STJ reduziu para 1 ano e 8 meses de reclusão e, diante do quantum aplicado, reconheceu a prescrição. 36 STRECK, Lênio Luiz. A presunção da inocência e meu telescópio: 10 pontos para (não) jejuar. Publicado em 02 de abril de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-02/streck-presuncao-inocencia-10pontos-nao-jejuar>. Acesso em: 14/10/2019. 37 Disponível em: <https://luisrobertobarroso.com.br/wp-content/uploads/2018/04/anotacoes_para_voto.pdf> Acesso em: 14/10/2019. 24 A cultura prevalente na população se volta para o cárcere como única forma de reparação da prática delituosa. Nessa toada, repara-se que essa sanha punitiva fez com que 25% do total de enjaulados em 2018 fosse fruto da prisão após condenação em segunda instância 38, apenas materializando o resultado almejado por parcela significativa da população brasileira. A proposição legislativa que referenda o cumprimento antecedente da pena visaria apenas transparecer certa “estabilidade” diante das alterações na jurisprudência do STF, que já se debruçou sobre o tema em três oportunidades distintas – no ano de 2016 e, posteriormente, mais uma vez, em 201839. Importante observar que o tema também passou a ser discutido por meio de Proposta de Emenda à Constituição e, dado o retorno do tema à pauta do STF, a Câmara também se mobilizou para a discussão de uma PEC registrada como “instrumento legislativo para acalmar a população brasileira”40, o que possibilitaria a (falsa) sensação de segurança da população. A dissonância de entendimentos no STF e no meio jurídico sobre o tema enseja uma solução definitiva da matéria, mas envolvendo um debate público, pautado não só em anseios da população – até porque o papel da Suprema Corte e do legislativo é contramajoritário –, mas mediante a apresentação de alternativas penais legítimas. Ninguém esconde que o retorno da prisão após condenação em segunda instância ao debate jurídico se deu em decorrência da denominada operação Lava Jato. Não por acaso o Ministro Alexandre de Moraes aponta em seu voto41 que: Durante todos esses anos, quase 30, as alterações de posicionamento do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL não produziram nenhum impacto significativo no sistema penitenciário nacional, mas, principalmente nos últimos dois anos, produziu uma grande evolução no efetivo combate à corrupção no Brasil. Aqui se nota uma forte ligação da restrição da liberdade antes da pena definitiva como uma das bandeiras levantadas no combate aos crimes cometidos contra os cofres públicos. 38 Presos após segunda instância já são 1/4 do total da população carcerária. Publicado em 08 de agosto de 2018. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-ago-08/brasil-presos-provisorios-condenacao-definitiva>. Acesso em: 14/10/2019. 39 MOURA, Rafael Moraes. Lewandowski decide enviar ao plenário 80 casos em que barrou execução antecipada de pena. Publicado em 26 de setembro de 2019. Disponível em: <https://politica.estadao.com.br/blogs/faustomacedo/lewandowski-decide-enviar-ao-plenario-80-casos-em-que-barrou-execucao-antecipada-de-pena/>. Acesso em: 10/10/2019. 40 BRANT, Danielle. BOLDRINI, Angela. Após STF marcar julgamento, Câmara antecipa discussão sobre prisão em 2ª instância. Publicado em 14 de outubro de 2019. Atualizado em 15 de outubro de 2019. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/apos-stf-marcar-julgamento-camara-antecipa-discussao-sobreprisao-em-2a-instancia.shtml>. Acesso em: 15/10/2019. 41 HC 152752, Rel. Min. Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 04/04/2018, DJe 27/06/2018, p. 138 (grifouse). 25 Passa-se, assim, a desleal sensação de que só o cárcere (e antecipado) é a solução para o desvio de verbas públicas, além de todos os outros crimes passíveis de restrição da liberdade. Todavia, a prisão do condenado, mesmo na pendência de recurso especial ou extraordinário, se revela como fator restritivo ao direito de ampla defesa, conforme registrado pelo Ministro Eros Grau, in verbis: A ampla defesa, não se a pode visualizar de modo restrito. Engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária. Por que não haveria de ser assim? Se é ampla, abrange todas e não apenas algumas dessas fases. Por isso a execução de sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa, caracterizando desequilíbrio entre a pretensão estatal de aplicar a pena e o direito, do acusado, de elidir essa pretensão 42. Dessarte, ainda que haja um baixo número de recursos providos pelo STJ – o que recente pesquisa realizada pela Folha do Estado de São Paulo demonstra que não é inteiramente correspondente à verdade, na medida em que “uma a cada três decisões proferidas em segunda instância que chegam ao STJ (...) é alterada pela corte, e 7% dos casos que vão ao STF (...) são total ou parcialmente modificados”43 em matéria criminal –, conforme citado acima, não se pode deixar de considerar o direito à ampla defesa como forma de preservação da liberdade do cidadão ante o Estado. Além do mais, o fato do sistema jurídico possibilitar ao réu mecanismos para revisão da pena imposta, enquanto aguarda em liberdade, não provoca impunidade daquele que sofre a persecução penal. Ora, sendo o próprio Estado-juiz moroso no julgamento, a antecipação da execução da pena não serve de contrapeso para a lentidão do próprio Estado44. Nesse cenário, como exposto, a principal consequência da medida seria um aumento da população carcerária que vive em situação degradante e inumana nos presídios brasileiros, fato de conhecimento público e internacional45, além de concomitantemente implicar em um 42 HC 84078, Rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, julgado em 05/02/2009, DJe 26/02/2010, p. 05. FARIA, Flávia. GARCIA, Guilherme. Uma em cada três decisões judiciais em segunda instância é alterada no STJ. Reportagem publicada em Folha de São Paulo. Data 17.10.2019. Disponível em: <https:// www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/uma-em-cada-tres-decisoes-judiciais-em-segunda-instancia-e-alterada-n o-stj.shtml>. Acesso em 30.10.2019. 44 AMARAL, Thiago Bottino do. SOBRINHO, Sérgio F. C. Graziano. Encarceramento não é espetáculo nem solução à corrupção. Publicado em 08 de fevereiro de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018fev-08/opiniao-encarceramento-nao-espetaculo-nem-solucao-corrupcao>. Acesso em 14/10/2019. 45 CANÁRIO, Pedro. Corte italiana nega extradição de advogado por má condição das prisões brasileiras. Publicado em 29 de setembro de 2019. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2019-set-23/corte-italiananega-extradicao-brasileiro-condicao-prisoes>. Acesso em 14/10/2019. 43 26 acréscimo de eventuais pedidos de indenização por erro judicial, comprometendo o já convalido orçamento público brasileiro46. 5. Da inconstitucionalidade da medida A jurisprudência deste Supremo Tribunal se consolidou no sentido de que ofende o princípio da presunção de inocência, insculpido no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, a execução da pena privativa de liberdade antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, ressalvada a hipótese de prisão cautelar, desde que presentes os requisitos autorizadores previstos no art. 312 do Código de Processo Penal. [O] texto constitucional é expresso em afirmar que apenas depois do trânsito em julgado da sentença penal condenatória alguém poderá ser considerado culpado. Trata-se do princípio, hoje universal, da presunção de inocência das pessoas. Essas foram as palavras do Ministro Ricardo Lewandowski que apontou, no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 176.034, de maneira precisa, a taxatividade do artigo 5º, LVII, da Constituição Federal. Disso só se pode concluir a afronta ao princípio da presunção da inocência, posto que o acusado – ainda com chances de se ver absolvido pelos Tribunais Superiores, ou mesmo de ver sua pena diminuída ou algum benefício aplicado – começaria a cumprir a reprimenda antes mesmo de que sua culpa estivesse formalmente consolidada. Dessa forma, tem-se não só uma antecipação do cumprimento da pena, mas também a precipitação da formação da culpa em si, o que abala a segurança jurídica do judiciário – pela inversão de seus princípios basilares, tornando regra a vedada e inescrupulosa presunção da culpabilidade –, como também pelo incremento da descredibilidade da poder judiciário ante a possibilidade de existência de alterações posteriores dos decretos condenatórios com penas já cumpridas: dá-se azo à injustiça legitimada. Neste sentido, não é só o Min. Lewandowski manifesta preocupação com os rumos que o processo penal tem tomado, mas também o Min. Celso de Mello, afirmando que: a majestade da Constituição não pode ser transgredida nem degradada pela potestade do Estado, pois, em um regime de perfil democrático, ninguém, a começar dos agentes e autoridades do aparelho estatal, pode pretender-se acima e além do alcance da normatividade subordinante dos grandes princípios que informam e dão essência à Lei Fundamental da República. [...] É preciso repelir a tentação autoritária de presumir-se provada qualquer acusação criminal e de tratar como se culpado fosse aquele em favor de quem milita a presunção constitucional de inocência. [...] Eventual inefetividade da jurisdição penal ou do sistema punitivo motivada pela prodigalização de meios 46 Segundo notícias de agosto deste ano, presos considerados inocentes têm recorrido à Justiça para reparar danos com pedidos de indenização por danos morais e materiais. Só na Defensoria Pública de São Paulo são 20 pedidos do tipo por mês. Disponível em: <http://g1.globo.com/Noticias/SaoPaulo/0,,MUL756831-5605,00PRESOS+CONSIDERADOS+INOCENTES+RECORREM+A+JUSTICA+PARA+REPARAR+DANOS.html>. 27 recursais, culminando por gerar no meio social a sensação de impunidade, não pode ser atribuída ao reconhecimento constitucional do direito fundamental de ser presumido inocente, pois não é essa prerrogativa básica que frustra o sentimento de justiça dos cidadãos ou que provoca qualquer crise de funcionalidade do judiciário. A solução dessa questão, que não guarda pertinência – insista-se – com a presunção constitucional de inocência, há de ser encontrada na reformulação do sistema processual e na busca de meios que, adotados pelo Poder Legislativo, confiram maior coeficiente de racionalidade ao modelo recursal, mas não, como se pretende, na inaceitável desconsideração de um dos direitos fundamentais a que fazem jus os cidadãos desta República fundada no conceito de liberdade e legitimada pelo princípio democrático47. Ora, “o investigado, o acusado e o condenado, enquanto pende recurso da sentença condenatória, estão na mesma situação jurídica que o inocente, isto é, quem nunca foi investigado ou processado”48. É isso que significa presunção da inocência: um “pressuposto implícito e peculiare del processo accusatorio penale”49. A questão polêmica é: até quando se deve perdurar a presunção de inocência? Até quando, no Brasil, o acusado deve ser presumido inocente? A resposta dessa questão é simples: a Constituição é clara ao estabelecer o marco temporal final dessa presunção com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, de sorte que esta garantia não se finda com a sentença penal ainda recorrível aos tribunais superiores ou com condenação em segunda instância, ao menos não nos termos da Carta Constitucional. Trânsito em julgado, por sua vez, é o fato que delimita o início da imutabilidade da sentença, isto é, marca o surgimento de uma nova situação jurídica, a existência da coisa julgada50. E, por outro lado, a coisa julgada “serve para que um processo alcance uma certeza básica para o cumprimento: a irrevogabilidade (dimensão interna ou efeito intraprocessual), de um lado, e, de outro, a eficácia frente a eventuais discussões posteriores em torno do que foi resolvido no processo (dimensão externa)”51. 47 Em seu voto no julgamento da liminar em sede da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 43. BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Opinião: É temerário admitir que o STF pode “criar” um novo conceito de trânsito em julgado. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-abr-03/badaro-stf-nao-criarconceito-transito-julgado#_ftn1>. Acesso em: 10/10/2019. 49 PISANI, Mario. Sulla presunzione di non colpevolezza. Il Foro Penale, 1965, p. 3. 50 MOREIRA, José Carlos Barbosa. Direito processual civil (ensaios e pareceres). Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 145. 51 ARMENTA DEU, Teresa. Lecciones de Derecho Procesal Penal, 3. ed. Madrid, Marcial Pons, 2007. p. 273. 48 28 Há, portanto, entre os dois termos uma relação lógica de antecedência-a-consequência, de sorte que o trânsito em julgado cria a coisa julgada, seja ela formal ou material a depender do caso concreto52. É evidente a agressão efetuada pela antecipação da pena ao marco processual da imutabilidade da decisão, lograda com o trânsito em julgado, e ao instituto da coisa julgada, uma vez que uma decisão que sequer foi considerada imudável passaria a ser executada desde logo. Os defensores do cumprimento antecipado da pena pretendem contornar o termo utilizado pela Carta Constitucional, focando no termo “considerado culpado”. Assim, ignoram propositalmente a previsão expressa do “trânsito em julgado”. Sustentam que em momento algum a legislação prevê que ninguém será preso antes da condenação transitar em julgado, mas apenas que o indivíduo não será considerado culpado, na tentativa de convencer os desavisados de que prender definitivamente alguém não implica necessariamente em considerálo culpado. O esforço é grande para interpretar a Constituição de acordo com o que nela não está escrito. Colocar-se-á a justiça em crise, uma vez que se tenciona realizar interpretações para que se adeque a Constituição às leis e não as leis à Constituição, como deveria ser. Além do mais, a execução das penas com base apenas na condenação proferida em segundo grau parte do pressuposto de que não há possibilidade de que tal decisão seja revertida em instância superior. Aqueles que defendem a execução antecipada parecem não se preocupar com a eventualidade de um erro judiciário, isto é, com a probabilidade de que posteriormente o acusado seja absolvido ou até mesmo que seu processo seja anulado por qualquer vício configurado. Uma pesquisa realizada pelo Instituto Sou da Paz em parceria com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, analisou 7.734 procedimentos envolvendo prisões em flagrante. Concluíram que 54% dos condenados foram submetidos a uma pena mais grave do que a recebida de fato após a conclusão final do julgamento. Veja-se que não são insignificantes os dados relacionados a erros judiciários, sendo perfeitamente possível que uma decisão seja modificada ao término do processo. No final, os anos que o acusado passou preso não serão recuperados nem mesmo com eventual indenização do Estado. 52 GUIMARÃES, Luiz Machado. Estudo de Direito Processual Civil. Rio de Janeiro-São Paulo: Jurídica e Universitária, 1969, p. 14. 29 Ademais, no tocante à relação entre trânsito em julgado e a consideração da culpa, é pertinente trazer à baila as palavras de Cretella Jr. sob o prisma constitucional: Somente a sentença penal condenatória, ou seja, a decisão de que não mais cabe recurso, é a razão jurídica suficiente para que alguém seja considerado culpado. [...] Não mais sujeita a recurso, a sentença penal condenatória tem força de lei e, assim, o acusado passa ao status de culpado, até que cumpra a pena, a não ser que revisão criminal nulifique o processo, fundamento da condenação53. Por fim, no que concerne à inconstitucionalidade ao cumprimento antecipado da pena, ante o princípio basilar da presunção de inocência, é oportuno transcrever o pensamento de Gilmar Mendes sobre o tema: Nessa linha, não se pode conceber como compatível com o princípio constitucional da presunção de não culpabilidade o cumprimento da pena que não esteja fundada em sentença penal condenatória transitada em julgado. [...] Parece evidente, outrossim, que uma execução antecipada em matéria penal configuraria grave atendado contra a própria ideia de dignidade humana. Se se entender, como enfaticamente destacam a doutrina e a jurisprudência, que o princípio da dignidade humana não permite que o ser humano se convole em objeto da ação estatal, não há como compatibilizar semelhante ideia com a execução penal antecipada54. Paralelamente, diante de sua inconstitucionalidade, se discute a possibilidade de implementar a medida por emenda constitucional, entretanto, ante todo o histórico já abordado, fica evidente que tal implementação configuraria violação ao princípio da vedação ao retrocesso, sem contar que se colocaria o Brasil na contramão da ordem mundial. De acordo com Canotilho, aludido princípio – denominado “efeito cliquet” – se sobrepõe aos direitos humanos, determinando que estes jamais poderão retroagir, devendo sempre avançar no sentido da maior proteção aos indivíduos. Neste diapasão, qualquer medida tendente a revogar os direitos e garantias individuais seria inconstitucional, pois uma vez adquiridos tais direitos, não se permite sua reversibilidade55. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 639.337, conceituou: O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. - A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de 53 CRETELLA JÚNIOR, José. Comentários à Constituição Brasileira de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária. 1990. v. I, p. 537. 54 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 10ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, pp. 543 e 544. 55 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336. 30 concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. […] Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar - mediante supressão total ou parcial - os direitos sociais já concretizados. Destarte, nota-se que o globo caminha no sentido de assegurar cada vez mais os direitos fundamentais – estrada, até então, também percorrida pelo Brasil, como se pode concluir pela longa lista de tratados e convenções internacionais ratificados pelo país –, de sorte que, ao retirar direitos já consolidados constitucionalmente, a pátria estaria seguindo na direção diametralmente oposta. De mais a mais, como já supramencionado, o inciso IV do §4º do artigo 60 da Constituição Federal veda a proposição de qualquer emenda constitucional tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Veja-se que a norma foi cautelosa ao prever que a mera tendência à referida extinção já bastaria para que a proposta sequer fosse deliberada, por ser ela considerada incompatível com a Constituição; daí resta nítida a importância que a Carta deu a estes valores humanos56. Em sentido contrário a todo o exposto foi decido no HC nº 126.292/SP. Naquela ocasião ignorou a Suprema Corte a probabilidade de um processo padecer de algum vício e, posteriormente, ser anulado, ou, por qualquer outra razão ser a decisão – por questões de natureza infraconstitucional ou constitucional – reformada em sentido favorável ao acusado. De acordo com um levantamento realizado em 2017, as decisões favoráveis aos réus em recursos penais foram de 10% do total: Além das absolvições, vale lembrar que 6,44% das decisões resultaram em redução da pena, 4,5%, em alteração do regime prisional e 1% em substituição da pena de prisão por restrição a direitos. O levantamento mostra que 81,7% dos recursos da defesa foram negados pelo STJ, ou negativa de provimento ou por não conhecimento. Os providos foram 14,1%57. Entre janeiro de 2009 e agosto de 2016, dos 82,5 mil recursos especiais e agravos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça, 10,3% foram favoráveis aos réus. Considerando-se 56 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 39ª ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 69 CONSULTOR JURÍDICO. STJ usa números de absolvição na corte para evitar rediscutir prisão antecipada. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-02/stj-usa-numeros-corte-evitar-rediscutir-prisaoantecipada>. Acesso em: 11/10/2019. 57 31 todas as decisões penais, o réu foi favorecido 15,85% das vezes, enquanto que, levando-se em conta as decisões terminativas, de 45,2 mil habeas corpus julgados, foram concedidos 32%58. Veja-se que, pela sondagem realizada, está longe de ser irrisória a porcentagem de decisões emendadas de forma favorável aos acusados em instâncias superiores, motivo pelo qual não seria razoável mudar ao bel prazer a interpretação do texto constitucional de forma a mitigar a garantia dos arguidos de aguardarem até que se esgotem todas as suas possibilidades de defesa. É claro que cabe ao Supremo Tribunal, como guardião da Magna Carta, dar a palavra final a respeito de sua exegese, entretanto isto não significa que lhe é dada carta branca para preencher as lacunas que a constituição eventualmente apresente como bem desejarem os ministros. Afinal, “é temerário admitir que o Supremo Tribunal Federal possa ‘criar’ um novo conceito de trânsito em julgado, numa postura solipsista e aspirando ser o novo marco zero de interpretação”59. Essa visão ‘gradualista’ da presunção de inocência não deixa de esconder um ranço técnico-positivista da ‘presunção de culpa’, pois sob seu argumento está uma ‘certeza’ de que, ao final, a decisão de mérito será condenatória. Desconsiderando a importância da cognição dos tribunais, ‘crê’ que a análise do juízo a quo pela condenação prevalecerá e, portanto, ‘enquanto se espera por um desfecho já esperado’, mantem-se uma pessoa presa ‘provisoriamente’60. Toda essa postura é resultado da cultura punitivista que permeia o Judiciário – por meio do discurso de ódio da população cansada do quadro de violência, corrupção e insegurança que assolam nosso país –, desde os juízes de primeiro grau até as instâncias superiores, que atuam de maneira contrária aos axiomas fundamentais em prol de uma “pseudojustiça” que, além de não ser célere (só apressada), é facciosa. Além de tudo, nossa legislação já prevê (taxativamente) as hipóteses de prisão cautelar61, ou seja, de segregação do acusado antes de sua condenação definitiva: Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a 58 CONSULTOR JURÍDICO. Em sete anos, 10% de todas as decisões criminais do STJ foram a favor do réu. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2018-fev-02/sete-anos-10-todas-decisoes-stj-foram-favor-reu>. Acesso em: 11/10/2019. 59 BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Presunção de inocência: Do conceito de trânsito em julgado da sentença condenatória. Consulente: Maria Cláudia de Seixas. Publicado em 20 de maio de 2016. 60 MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. 2008. Tese (livre-docente). Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, cap. IV, p. 483. 61 Embora a prisão em flagrante também constitua modalidade de prisão cautelar, ela não será abordada no presente texto, uma vez que há determinação legal de submissão do preso à audiência de custódia para que seja libertado ou tenha a sua prisão convertida em preventiva, enquadrando-se, a partir de então, na categoria de preventiva. 32 aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria. Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I - nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; II - se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei no 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal; III - se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência62. A Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989, estipula também que: Art. 1° Caberá prisão temporária: I - quando imprescindível para as investigações do inquérito policial; II - quando o indicado não tiver residência fixa ou não fornecer elementos necessários ao esclarecimento de sua identidade; III - quando houver fundadas razões, de acordo com qualquer prova admitida na legislação penal, de autoria ou participação do indiciado nos seguintes crimes: homicídio doloso, sequestro ou cárcere privado, roubo, extorsão, extorsão mediante sequestro, estupro, atentado violento ao pudor, rapto violento, epidemia com resultado de morte, envenenamento de água potável ou substância alimentícia ou medicinal qualificado pela morte, quadrilha ou bando, genocídio, tráfico de drogas, crimes contra o sistema financeiro e crimes previstos na Lei de Terrorismo. Como se pode perceber, o rol de hipóteses de prisão cautelar não é pequeno. Não à toa, nosso país conta com 41,5% da população carcerária aprisionada provisoriamente63, mesmo havendo previsão legal literal no sentido de que a prisão preventiva só poderá ser “determinada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar” 64. Essa prudência, concebida como um autêntico avanço processual penal, foi bastante aplaudida. A prisão cautelar se difere justamente daquela com caráter definitivo, fixada após o trânsito em julgado, pela especial periculosidade da manutenção do status de liberdade do acusado (periculum libertatis) – sempre se observando também o fumus commissi delicti65. Ainda que alguns sustentem que a constituição não vedaria o cumprimento antecipado da pena e que este poderia se dar com a condenação em segunda instância, se assim fosse, o procedimento de execução penal não se iniciaria após o trânsito em julgado e, para o início da execução pena, não haveria a previsão de um lapso temporal prescricional. 62 Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011, ou seja, normas cujo advento se deu há 8 anos. 63 Segundo o Banco de Monitoramento de Prisões, do Conselho Nacional de Justiça. 64 Art. 282, § 6º, do Código de Processo Penal. 65 É a fumaça da prática de um fato punível, ou seja, a comprovação da existência de um crime e indícios suficientes de autoria. 33 Ponderados todos os argumentos jurídicos contrários à medida em comento, para se concluir o raciocínio até aqui desenvolvido, ficam algumas reflexões do ponto de vista pragmático: qual a real necessidade de se prender alguém em segunda instância? Isso não seria transformar o direito penal em um instrumento de vingança ou calmante social, objetivos aos quais não se presta? Quais seriam os riscos e malefícios em aguardar o trânsito em julgado de uma condenação? A liberdade de absolutamente todos os condenados antes do trânsito em julgado – ressalvando aqueles detidos por meio de prisão preventiva ou temporária - apresenta, de fato, um perigo à sociedade? A lei já não prevê as hipóteses que autorizam a prisão antes da sedimentação da culpa? Fica a contemplação. 6. Existe alternativa possível? Como se viu, as alterações pretendidas quanto à permissão de execução provisória da pena não são constitucionalmente admissíveis, na medida em que estariam infringindo cláusulas pétreas. Nesse sentido, a Suprema Corte, felizmente, no julgamento das ADCs 43, 44 e 54 voltou a prestigiar aquela que incumbida de guardar: a Magna Carta. Abordando alternativas à execução automática e à espera do trânsito em julgado, o Ministro Dias Toffoli, em 2016, apresentou uma “contraproposta” considerando que os cumprimentos antecipados das penas devessem, no mínimo, aguardar a decisão do Superior Tribunal de Justiça. Entretanto, isso serviria apenas para mascarar a agressão à presunção de inocência, posto que ainda permitiria que as execuções ocorressem a destempo, apenas se modificado a competência do órgão em que autorizado decretar a prisão. Se a questão é a temida “impunidade” decorrente da configuração da prescrição, bastarse-ia uma alteração legislativa no sentido de se aumentar o prazo prescricional dos crimes (modificando-se os prazos do artigo 109 do Código Penal) – respeitando-se o limite máximo de aprisionamento de 30 anos66 – ou mesmo suspender-se a prescrição com a interposição dos recursos especial e extraordinário, já que se está a entender que a publicação do acórdão condenatório recorrível, que já é um marco interruptivo do prazo prescricional, não está sendo suficiente. Entende-se, contudo, que não há necessidade de alteração alguma, pois o marco interruptivo da prescrição nos moldes atuais é suficiente, na medida em que os Tribunais 66 Nos termos do art. 75 do Código Penal. 34 Superiores julgam os recursos, na área processual penal, em até um ano67, pelo que não há razão para se falar em demora na prestação jurisdicional por aquelas Cortes68. É preferível, portanto, que se mantenham as coisas como estão, tendo em vista a acertada decisão do Pleno da Corte Suprema, no dia 7 de novembro de 2019, declarando a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal e, consequentemente, proibindo definitivamente o entendimento pela possibilidade da execução antecipada automática da pena confirmada em segundo grau. Tendo sido o julgamento em sede de controle concentrado de constitucionalidade, deu-se ao resultado efeito erga omnes, permitindo aos encarcerados por execução antecipada da pena requererem sua soltura para aguardar o trânsito em julgado em liberdade. Apesar dessa decisão, o ministro Dias Toffoli deu aval69 ao Poder Legislativo para agir conforme convicção própria em matéria de execução antecipada da pena, ocasionando na organização para votação de dois Projetos de Emenda à Constituição: (i) a PEC 199/2019 70, que tramita na Câmara dos Deputados e altera os artigos 102 e 105 da CF, extinguindo os recursos especial e extraordinário e tornando a sentença em segundo grau em marco definitivo da coisa julgada, (ii) a PEC 166/201871, que altera o artigo 283 do CPP e acrescenta um parágrafo72 que permite a execução antecipada da pena. Apesar da indefinição acerca do assunto, conclui-se ressalvando que a manutenção do atual entendimento – consolidado no julgamento de 7 de novembro pelo Pleno da Suprema Corte – é a via que se mostra em conformidade com a Lei Maior e, portanto, é a única alternativa possível. Folha de São Paulo. DELTAFOLHA. “Maioria dos Recursos após a 2ª Instância é julgada em até 01 ano no STJ e no Supremo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/maioria-dos-recursos-apos-2ainstancia-e-julgada-em-ate-1-ano-no-stj-e-no-supremo.shtml> Acesso em: 30/10/2019. 68 Na verdade, fora exposto que os maiores empecilhos para as demandas judiciais chegarem aos tribunais são principalmente ligadas aos filtros rigorosos dos tribunais (necessária a repercussão geral), o acesso à justiça (prejudicado pelo alto custo dos processos) e o número restrito dos magistrados, ficando claro, assim, que a impunidade brasileira não tem relação alguma com a alegada mora do Judiciário. 69 ARBEX, Thais; CARVALHO, Daniel e TUROLLO JR, Reynaldo. Toffoli abre brecha para Congresso resgatar 2ª instância por via mais rápida. Publicado em 9 de novembro de 2019. Acesso em 1 de dezembro de 2019. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/11/toffoli-abre-brecha-para-congresso-resgatar-2ainstancia-por-via-mais-rapida.shtml> 70 Câmara dos Deputados. Proposta de Emenda à Constituição n° 199/2019, autoria do deputado federal Alex Manente (Cidadania/SP). Acesso em 1 de dezembro de 2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=EFE4124255CD4B2ED3ACC749 6E0CBCE7.proposicoesWebExterno2?codteor=1835285&filename=PEC+199/2019> 71 Senado Federal. Proposta de Emenda à Constituição n° 166/2018, autoria do senador federal Lasier Martins (PSD/RS). Acesso em 1 de dezembro. Disponível em <https://legis.senado.leg.br/sdleggetter/documento?dm=7715945&ts=1574372411862&disposition=inline> 72 §3º A prisão por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente decorrente de juízo de culpabilidade poderá ocorrer a partir da condenação em segundo grau, em instância única ou recursal. 67 35 MEDIDA II – EFETIVIDADE DO TRIBUNAL DO JÚRI Sob coordenação de Plínio Gentil e Fabrício Reis Costa Elaborado por Gabriela Gonzaga Vianna, Guilherme Villares, Isabela Macedo Fatel, Rafaella Kaufman e Ilberto da Silva Junior 1. O que diz a medida? O projeto apresentado pelo Ministro de Justiça e Segurança Pública, em seu segundo item, busca a alteração legislativa do Código de Processo Penal com relação ao procedimento do Tribunal do Júri, cujas propostas são anunciadas como “medidas para aumentar a efetividade do Tribunal do Júri”. Trata-se de mudanças que atingem os artigos 421 e 492 daquele diploma, sabidamente referentes aos recursos da primeira e da segunda fase daquele procedimento. O artigo 421 do CPP atualmente dispõe: Art. 421. Preclusa a decisão de pronúncia, os autos serão encaminhados ao juiz presidente do Tribunal do Júri. §1° Ainda que preclusa a decisão de pronúncia, havendo circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público. §2° Em seguida, os autos serão conclusos ao juiz para decisão. O projeto em comento propõe a mudança de tal dispositivo para a seguinte redação: Art. 421. Proferida a decisão de pronúncia ou de eventuais embargos de declaração, os autos serão encaminhados ao juiz-presidente do Tribunal do Júri, independentemente da interposição de outros recursos, que não obstarão o julgamento. §1° Se ocorrer circunstância superveniente que altere a classificação do crime, o juiz ordenará a remessa dos autos ao Ministério Público. O projeto busca o avanço do processo ao plenário logo após a expedição da decisão de pronúncia, sem que se espere, como hoje previsto, eventuais recursos defensivos que incidam sobre o pronunciamento. Ademais, propõe-se que, em caso de ocorrência de circunstância subsequente ao caso, que altere sua competência, como a desclassificação por crime de natureza diversa e não abrangido pela jurisdição do júri, os autos sejam remetidos para o Ministério Público para fins de aditamento da denúncia. O artigo 492, por seu turno, atualmente dispõe: Art. 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I – No caso de condenação: a) fixará a pena-base; 36 b) considerará as circunstâncias agravantes ou atenuantes alegadas nos debates; c) imporá os aumentos ou diminuições da pena, em atenção às causas admitidas pelo júri; d) observará as demais disposições do art. 387 deste Código; e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva; f) estabelecerá os efeitos genéricos e específicos da condenação. Com relação a este, o projeto apenas previu alteração com relação à alínea “e”, que assim disporá: I – No caso de condenação: e) determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direito e pecuniárias, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos. Trata-se, portanto, da possibilidade de execução antecipada da pena, ainda que sem o trânsito em julgado de sentença condenatória. Há previsão, no entanto, de causas excepcionais à decretação de execução antecipada, a saber: § 3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão substancial cuja resolução pelo Tribunal de Apelação possa plausivelmente levar à revisão da condenação. § 4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri não terá efeito suspensivo. § 5º Excepcionalmente, poderá o Tribunal de Apelação atribuir efeito suspensivo à apelação, quando verificado cumulativamente que o recurso: I - não tem propósito meramente protelatório; II - levanta uma questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento, substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos ou alteração do regime de cumprimento da pena para o aberto. § 6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente no recurso ou através de petição em separado dirigida diretamente ao Relator da apelação no Tribunal, e deverá conter cópias da sentença condenatória, do recurso e de suas razões, das contrarrazões da parte contrária, de prova de sua tempestividade, e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia. Por fim, o item relativo a mudanças no procedimento do Tribunal do Júri também trata da possibilidade de atribuição de efeito suspensivo aos recursos: Art. 584. Os recursos terão efeito suspensivo nos casos de perda da fiança, de concessão de livramento condicional e dos incisos XV, XVII e XXIV do art. 581. § 2º O recurso da pronúncia não tem efeito suspensivo, devendo ser processado através de cópias das peças principais dos autos ou, no caso de processo eletrônico, dos arquivos. 2. Objetivos declarados e não declarados Da análise das mudanças legislativas propostas, observa-se, prima facie, o objetivo maior, de trazer à população sedizente sensação de segurança. Ocorre, como se verá mais adiante, que tal sensação de segurança é, a curto prazo, falsa e, a longo prazo, contraditória. 37 Ademais, tem-se como necessária a demonstração do custo desta “sensação de segurança”, que seja a violação da presunção de inocência por meio da decretação da prisão do acusado logo após a sentença de primeira instância e a mitigação da ampla defesa e da amplitude de defesa, tão caros ao Tribunal do Júri. Ainda no âmbito dos objetivos declarados pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública que apresentou a proposta, tem-se o aumento da efetividade do Tribunal do Júri como tônica deste ponto do projeto. Este aumento da efetividade se dará com base, segundo os autores do projeto, no combate à morosidade do sistema judiciário, que é outro objetivo declarado da medida. Para que se alcancem os objetivos não declarados, no entanto, necessita-se debruçar sobre uma análise sociológica, para entender quais grupos sociais são majoritariamente julgados por este instituto. Se estes grupos sociais são ou não considerados vulneráveis e se diante de tal proposta essa vulnerabilidade será consideravelmente aumentada ou não. Primeiramente tal proposta traz redução de direitos constitucionais como a presunção de inocência, mormente no que tange o inciso LVII do artigo 5º da Carta Magna, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Deve-se entender, no entanto, que tal redução de direitos incidirá sobre a camada social mais atingida no Tribunal do Júri: trabalhadores, negros e pobres. Se o direito é um instrumento de domínio das classes dominantes, como propõe Marx, ou ainda um instrumento técnico de controle dos corpos e mentes, onde existem cada vez mais especialistas para estudar o comportamento e categorizar criminosos, como propõe Foucault, onde então se encaixaria o instituto do Tribunal do Júri? Seria um instrumento democrático justificado pelo argumento de que membros do povo devem decidir sobre uma injusta agressão grave que lesiona diretamente o contrato social e, portanto, deve ter participação direta do povo no julgamento? Ou seria ainda um instituto de controle social onde a mesma camada da sociedade que julga também é julgada? Afinal, quem comete e é julgado pela maioria dos crimes dolosos contra a vida no Brasil? A maioria dos casos de homicídio doloso ocorre em regiões periféricas, principalmente em grandes metrópoles brasileiras, sendo muitos relacionados principalmente ao tráfico de drogas - em regiões abandonadas pela supervisão do Estado, onde ocorrem homicídios pelos mais diversos motivos. 38 Exemplo disso é o aborto - outro crime doloso contra a vida - que quase exclusivamente só incide sobre mulheres pobres e negras que serão julgadas no Tribunal do Júri, tendo em vista que mulheres que possuem condições financeiras e sociais estáveis raramente serão condenadas por tal crime, por decorrência de possuírem meios de praticar tal conduta típica de forma segura e sem o risco de interferência de autoridades policiais. As medidas de celeridade da condenação e do encarceramento - que no projeto não tiveram nem o cuidado de serem disfarçadas como mera celeridade processual - só resultarão no que já vem ocorrendo nas últimas décadas: superpopulação carcerária, o que, além de ferir constantemente direitos constitucionais como a dignidade humana e o mínimo existencial, gera total impotência do Estado em relação ao controle e organização dos condenados1. Ferindo o princípio da presunção de inocência, aumenta-se também o risco de qualquer pessoa inocente que não teve sua condenação transitada em julgado ter seus direitos fundamentais violados sem receber nenhuma indenização do Estado, seja pela falta de iniciativa jurídica, decorrente da falta de conhecimento jurídico e da inacessibilidade de uma justiça de qualidade, seja pela política criminal que, por não acatar a presunção de inocência, acaba permitindo que tais violações aos direitos fundamentais pelo Estado fiquem impunes e não-indenizáveis. Além dos efeitos genéricos citados anteriormente, dispositivos de tal proposta de lei (como a nova redação que se pretende dar ao § 5º do artigo 492 do Código de Processo Penal, em seus incisos I e II) revelam uma parcialidade expressa do legislador em relação aos poderes das partes no processo. Enfraquecer legalmente os recursos da defesa e dar grande poder de discricionariedade quanto ao julgamento de tais recursos viola o princípio constitucional da ampla defesa2. Como se pode observar, apesar de não declarados, fazem-se claros os objetivos de tal projeto: dificultar a defesa de cidadãos que, em sua grande maioria, já possuem desconhecimento de seus direitos e possibilidades de recurso e muitos estão sendo representados por defensores públicos que terão seus meios processuais de defesa dificultados, já não bastasse a falta de verba e a carência de profissionais qualificados na Defensoria Pública. A política criminal mais severa por trás do projeto de Moro é também reflexo de uma ideologia conservadora em ascendência na sociedade brasileira que propõe lidar com os 1 STF. ADPF nº 347/DF e STF, RE 580.252/MS, julgado em 06/05/2015. CF. Art. 5º, inciso LV "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”. 2 39 problemas sociais, dentre eles os crimes, sem uma análise mais profunda buscando entender sociologicamente onde e porque esses crimes ocorrem com mais frequência, e à partir desta análise buscar uma solução por meio de políticas públicas positivas que diminuam a incidência de tais crimes. Na contramão lógica disto, torna-se política e eleitoralmente mais conveniente a adoção de medidas meramente simbólicas e populistas de punição e supressão de direitos de cidadãos que a partir da movimentação da máquina judiciária, tem-se o objetivo de retroalimentar o maniqueísmo político vigente. 3. Consequências práticas do projeto: efeitos positivos ou nocivos? O já discutido projeto mostra uma tentativa temerária do Poder Público em responder aos anseios de uma parcela da sociedade que acredita que os problemas de segurança pública do país se dão por força de um cenário de impunidade. Tendo em vista ser este o objetivo, uma análise crítica do projeto deve buscar pelas consequências práticas de sua aplicação na vida em sociedade. Nesta análise, é preciso levar em conta que o endurecimento do sistema penal não é por si só capaz de reduzir a criminalidade, uma vez que esta é resultado de um conjunto complexo de diversos fatores sociais que vão muito além da esfera criminal. Dito isso, é preciso que as autoridades tenham especial cautela ao examinar a possibilidades de mudanças processuais; a tese de que é necessário acelerar o andamento da justiça brasileira através da mitigação do excesso de formalismo é certamente compreensível e não foge à realidade. Justamente por este motivo, ou seja, para que a busca por ajustes ao excesso de formalismo seja amplamente defendida na esfera acadêmica, é que esta tese deve ser examinada sobre uma ótica tecnicamente responsável. Uma das propriedades desta responsabilidade técnica consiste em que não se deixe de observar o processo como algo que não tem um fim em si mesmo, de modo que deve prevalecer, a todo momento, a finalidade objetiva da lei penal, qual seja, proteger os indivíduos das consequências sociais desencadeadas pela criminalidade. É sob esta ótica, das consequências sociais e formais que permeiam a implementação das medidas propostas, que se analisará o Pacote ora analisado. Ele propõe, nas denominadas “medidas para aumentar a efetividade do Tribunal do Júri”, que os acusados sejam levados a julgamento antes que as instâncias recursais possam ter julgado os eventuais recursos contra a 40 decisão de pronúncia - uma vez que o Pacote afasta o efeito suspensivo do recurso em sentido estrito face à decisão de pronúncia, bem como a possibilidade de execução antecipada da pena, a despeito dos recursos cabíveis em face da sentença do plenário. Em outras palavras, aqueles condenados pelo Tribunal do Júri irão iniciar o cumprimento de sua pena logo após o julgamento, sem a análise dos possíveis recursos pelos Tribunais, configurando clara execução antecipada da pena. A título de esclarecimento e corroborando com o caráter didático e acadêmico do trabalho, cumpre mencionar que a decisão de pronúncia é aquela que encerra a primeira fase do procedimento do Tribunal do Júri e aceita, como numa chancela, a acusação feita contra o réu, de forma que nela devem ser expostos somente os fatos e os elementos suficientes de que o acusado é o autor ou o partícipe do crime, não influenciado a decisão dos jurados. Portanto, a decisão de pronúncia faz parte da consolidação de um processo penal garantista e democrático que reconhece a necessidade de punição daqueles que cometem crimes contra a vida, porém, ao mesmo tempo, busca garantir que esta punição ocorra nos exatos termos da legislação processual penal, uma vez que com ela se estabelece filtros anteriores ao julgamento popular do acusado, isto é, se faz uma análise prévia das acusações feitas ao indivíduo para que se alcance uma decisão justa. Assim, em razão da natureza da decisão de pronúncia, nos moldes atuais, e em respeito à Constituição Federal, cabe contra ela o recurso em sentido estrito com efeito suspensivo que tem como objetivo corrigir possíveis erros cometidos pelo juiz na pronúncia e promover o exato cumprimento da lei penal, suspendendo o julgamento pelo plenário até o seu trânsito em julgado. Importante ressaltar os altos índices de provimento deste recurso pelo STJ. Em pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas, foi apontado que nos recursos interpostos pela defesa, houve procedência do pedido recursal, no todo ou em parte, em 45,99% dos casos3. Dessa forma, o “Pacote”, ao pretender acabar com o efeito suspensivo dos recursos em sentido estrito, fará com que o acusado seja julgado pelo Tribunal do Júri antes do transito em julgado da decisão de pronúncia, de forma que “transformará a pronúncia em um mero e 3 Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Nota técnica sobre Pacote Anticrime. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/docs/2019/Nota_Tecnica_Pacote_Anticrime.pdf> Acesso em: 28/10/2019. 41 inconveniente rito de passagem procedimental, desnaturando-a de sua importância para a consolidação de um processo garantista”4. O que irá ocorrer aqui, ao invés de solucionar a questão da morosidade do Poder Judiciário, é o atropelo ao princípio do devido processo legal, garantia constitucional ampla que confere a todo o indivíduo o direito fundamental a um processo justo e a outros princípios intimamente ligados a esses, tais como o princípio do contraditório, da ampla defesa e do duplo grau de jurisdição. O contraditório se traduz pelo direito de resposta, a ampla defesa pelo direito concedido a todo individuo de se defender de todos os atos praticados no processo e o duplo grau de jurisdição é aquele que garante a todos a reanálise das decisões por uma instancia superior. Portanto, o acusado, a ser compelido ao julgamento pelo plenário do júri, sem antes ter sua defesa analisada pelo Tribunal, estará diante de uma violação à plenitude de defesa e, consequentemente, ao Estado Democrático de Direito. Ainda, outra consequência decorrente deste atentado aos princípios constitucionalmente garantidos, é o risco de o acusado ser submetido ao constrangimento de um julgamento popular que poderá a vir ser anulado pela decisão do recurso em sentido estrito, uma vez que, após a decisão de pronúncia, será possível designar a data de julgamento do júri antes mesmo da apreciação do recurso. Portanto, ao invés de ser alcançado o objetivo primordial da medida - que é a maior celeridade processual - ocorrerá o oposto, vez que o Judiciário terá, em muitos casos, que anular o julgamento anterior ou ainda realização novo julgamento. Ressalta-se que os Tribunais passariam a decidir os recursos em sentido estrito a partir do resultado dos julgamentos pelo plenário, tentando evitar ao máximo os prejuízos advindos de uma anulação, o que acarretaria em um controle do comportamento do Poder Judiciário pela decisão dos jurados, invertendo o sentido da decisão de pronúncia, que serve hoje para conter abusos e arbítrios. A Associação dos Juízes Federais, em sua Análise sobre o tema, confirmou os riscos expostos ao afirmarem que: não somos de todo favorável a que o recurso da decisão de pronúncia seja destituído de efeito suspensivo. Ainda que não deva suspender o andamento do processo, creio que o julgamento do tribunal do júri é, no mínimo, temerário, quando ainda pendente 4 RODRIGUES, Paulo Gustavo. A imprescindibilidade das instâncias de controle prévio da decisão do Tribunal do Júri: crítica à medida II do pacote anticrime. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 317, Abril, 2019, p. 26. 42 de apreciação o recurso da decisão de pronúncia, conforme proposto. A alteração sugerida para o caput do art. 421 do CPP pode ocasionar tumulto processual. 5 Se não bastasse, a medida ainda prevê a possibilidade de execução antecipada das penas privativas de liberdade após decisão condenatória pelo plenário do júri. Aqui se faz importante citar trecho do Boletim emitido pelo IBCCRIM sobre as medidas: Permitir que o acusado seja levado ao cárcere – em execução de pena – antes mesmo de o Poder Judiciário ter decidido se a acusação formulada goza de procedibilidade mínima ou se há alguma questão técnica que fuja à compreensão leiga dos jurados, é medida que viola a um só tempo a plena defesa e a presunção de inocência. 6 Dito isso, é preciso se atentar, em uma análise mais sociológica (e também necessária) da atual conjuntura, ao fato de que nas últimas eleições foram eleitos muitos representantes que vieram da área da segurança pública, o que demonstra que a sociedade tentou eleger pessoas teoricamente comprometidas com a segurança. Isso é indicativo de que este júri, sendo, em teoria, uma porção representativa do todo, e estando a julgar com base em seus próprios valores e não em conhecimento técnico, está muito mais inclinado a decidir pela condenação do réu, na busca por uma garantia idealizada de segurança, do que pela inocência. Soma-se a isso o fato de, lamentavelmente, a sociedade ainda ser consideravelmente permeada por rotulações acerca daquele que comete desvio7; preconceitos de cunho social e racial ainda ostentam extensas consequências práticas nas estruturas sociais, que podem ser rapidamente verificadas em uma análise da população carcerária brasileira. Estas estatísticas manifestamente desequilibradas são, ainda, uma característica intrínseca do cenário criminológico brasileiro, e somente potencializam a importância de se limitar o alcance prático da opinião pública na esfera das liberdades do indivíduo. Outro ponto que não pode ser minimizado, ainda no que tange às consequências práticas do Projeto em questão, é quanto às lamentáveis condições atuais do sistema carcerário brasileiro, que se encontra há tempos sabidamente falido. A superlotação que caracteriza este setor é alarmante, e é um problema que só cresce, conforme as políticas de segurança pública 5 Associação dos Juízes Federais do Brasil. “Nota Técnica nº 03/2019 AJUFE”. 6 RODRIGUES, Paulo Gustavo. A imprescindibilidade das instâncias de controle prévio da decisão do Tribunal do Júri: crítica à medida II do pacote anticrime. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 317, Abril, 2019, p. 26. 7 SHECAIRA, Sérgio Salomão. Criminologia. 7ª Ed. Rev., Atual., e Ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p 254. 43 insistem na adoção de medidas cujas finalidades são primordialmente penalistas, ao invés de primordialmente preventivas e educativas. Segundo dados de 2019 do Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça8, há mais de oitocentos mil presos no Brasil, sendo que mais de quarenta por cento deles não tem condenação. Observar estes dados é fundamental na análise do projeto, principalmente levando em conta que há uma considerável parcela da sociedade que entende erroneamente que é ínfima a quantidade de pessoas cumprindo pena sem condenação no país. O número, como se pode ver, é imenso, configura quase a metade da população carcerária brasileira, e aumentaria ainda mais no caso de aprovação do projeto tal qual está. Independente da condição do sistema como um todo, a mera análise de casos pontuais nos quais eventuais injustiças podem ser verificadas – vide caso da Escola Base e outros erros judiciais brasileiros – gera o total repúdio ao referido Pacote de alterações legislativas. Conforme o exposto, infere-se que a alteração proposta ao artigo 421 do Código de Processo Penal, ao consistir na perda do direito do réu de ter sua sentença analisada em seu teor técnico antes de ter sua pena provisória decretada, traz, como consequência prática, a potencialização da condição hipossuficiente do indivíduo frente ao Estado, e, especialmente, daquele indivíduo que integra os setores marginalizados da sociedade, o que é inaceitável ao Estado Democrático de Direito. Deste modo, a análise das consequências do Projeto permite a conclusão de que o argumento da morosidade do processo, apesar de ser plausível e de particular sensibilidade à opinião pública, não pode justificar que se retirem direitos de liberdade do indivíduo no caso concreto para criar celeridade. 4. Crítica a nível normativo: a proposta é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento jurídico via emenda constitucional? A busca pelo fim da morosidade tenta justificar uma pressa irresponsável na realização da justiça, cujas consequências práticas incluem afrontas a princípios constitucionais conforme já previamente mencionado no presente estudo, e será mais aprofundado a partir daqui. Este suposto investimento em celeridade se traduz em um endurecimento radical do sistema carcerário que, tal qual está sendo proposto pelo Projeto em questão, se dá em prejuízo 8 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Cadastro Nacional de Presos. BNMP 2.0. 2019. Disponível em: <https://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario/cadastro-nacional-de-presos-bnmp-2-0/> Acesso em: 03 nov. 2019. 44 direto da liberdade do indivíduo, sendo, portanto, fundamentalmente inaceitável em uma democracia. O Projeto permite que o juiz, através do efeito da condenação por Tribunal do Júri, prenda o réu, presumindo a culpa de alguém que ainda pode apelar, determinando a privação da liberdade de ir e vir. Isto é uma ofensa direta ao princípio do devido processo legal e aos princípios dele decorrentes, como o princípio da ampla defesa. No Direito Penal, estes princípios protegem o réu da possibilidade de ser preso injustamente antes do fim do processo, erro que se torna exponencialmente mais nocivo quando levadas em consideração as consequências que o encarceramento promove na vida social e na psique do indivíduo. Faz-se importante frisar que foram julgadas no Supremo Tribunal de Federal três Ações Diretas de Constitucionalidade, que tiveram por escopo declarar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, rechaçando a execução antecipada da pena antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Corroborando isso, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, em 30 de outubro do presente ano, que a sentença condenatória do Tribunal do Júri não é prontamente exequível, sendo a execução antecipada da pena possível somente após esgotada a jurisdição das instâncias ordinárias.9 Portanto, com a aprovação das medidas aqui estudadas, o princípio constitucional que rege todos os processos, denominado devido processo legal, estará sendo posto de lado, por uma justificativa que não tem amparo legal, muito menos constitucional. É por meio deste princípio que é assegurado a todos um processo com todas as etapas previstas em lei e com todas as garantias constitucionais. Desse modo, o Pacote, ao pretender acabar com o efeito suspensivo dos recursos em sentido estrito contra as decisões de pronúncia, como causa estará eliminando uma etapa essencial do processo, que reflete o direito dos acusados de serem julgados pelo Tribunal do Júri somente quando caracterizados os indícios de autoria e materialidade e, ainda, com a devida oportunidade de se defender da decisão que julgar presentes tais requisitos. Outro princípio constitucional cuja importância é muito frequentemente salientada pela academia é o da presunção de inocência, que, ao longo das últimas décadas da história do sistema penal brasileiro, mesmo em tempos de estado de exceção, não foi contrariado em 9 STJ. Habeas Corpus nº 540.578/MT. Rel. Min. Jorge Mussi. Julg. 30/10/2019 45 dispositivo legal, mas corre o risco de ser agora, através da execução prévia da pena condenatória. A presunção de inocência é uma garantia constitucional e, por essa razão, deve ser analisada por um viés constitucional. O artigo 5º, LVII da Constituição Federal Brasileira prevê que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Portanto, o réu, ao ser levado ao sistema carcerário antes mesmo de confirmada sua decisão condenatória pelo órgão recursal, tem violado o seu direito de se presumir inocente até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Fazendo uma analogia a este caso, importante colacionar aqui trecho de parecer emitido pelos ilustres professores Gustavo Badaró e Aury Lopes Jr., enviado ao Supremo Tribunal Federal para instruir o julgamento do Habeas Corpus 126.292: Durante o prazo recursal em que é possível a interposição de recurso especial ou extraordinário, ou mesmo após a interposição de tais recursos, mas antes do seu julgamento final, ainda não houve o trânsito em julgado de sentença penal condenatória, vigorando a regra de tratamento do acusado, decorrente da presunção de inocência, que veda equipará-lo ao condenado por sentença definitiva, sendo inconstitucional antecipar o seu cumprimento de pena.10 Segundo o parecer, para ser declarada possível a execução provisória da pena, antes deveriam ter reconhecido inconstitucional o artigo 283 do Código de Processo Penal, que prevê que Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva¸ o que nunca aconteceu, de forma que não se pode deixar de aplicar um texto normativo sem lhe declarar, formalmente, a inconstitucionalidade. Com relação à justificativa da execução provisória de se pautar na morosidade do sistema judiciário que, ao ver de muitos, acaba gerando impunidade e insatisfação, os professores afirmam que: Não é a execução antecipada da pena que irá resolver o problema da imensa demora jurisdicional no julgamento dos recursos especial e extraordinário. A discussão sobre o paradoxo temporal é válida e complexa, mas que infelizmente está sendo reduzida e pseudo-solucionada com a possibilidade de execução antecipada da pena. É um efeito sedante apenas. A persistir nessa linha, continuaremos com uma demora imensa e crescente, agravada pelo fato de que muitos acusados — ainda presumidamente inocentes — pois não houve o trânsito em julgado exigido pela Constituição para que LOPES JUNIOR, Aury e BADARÓ, Gustavo. “Presunção de inocência: Do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Parecer no Habeas Corpus nº 126.292Consulente: Maria Cláudia de Seixas. 2016. 10 46 sê-lhes retirem a proteção — vão ter de suportar a demora presos, em um sistema carcerário medieval como o nosso.11 Dessa forma, com a análise acerca da validade normativa do que se propõe, fica evidente que o Projeto afronta diretamente princípios constitucionais que regem o Direito Processual Penal. Quanto a isso, cabe uma rápida digressão de autores que refletem sobre os fundamentos do Direito, e trazem valiosos ensinamentos sobre o caráter estrutural dos princípios constitucionais. Dentre estes autores, Celso Antônio Bandeira de Mello elucida a seguinte passagem, bastante adequada à análise normativa que aqui se faz presente: Violar um princípio é muito mais grave que transgredir uma norma. A desatenção ao princípio implica ofensa não apenas a um específico mandamento obrigatório, mas a todo o sistema de comandos. É a mais grave forma de ilegalidade ou inconstitucionalidade, conforme o escalão do princípio violado, porque representa insurgência contra todo o sistema, subversão de seus valores fundamentais, contumélia irremissível a seu arcabouço lógico e corrosão de sua estrutura mestra. 12 A afronta a princípios constitucionais é inadmissível, uma vez que a negação da Constituição significa a negação do próprio ordenamento que dela se origina. Sendo a liberdade de ir e vir um dos maiores valores protegidos pela Constituição Federal, a aprovação das medidas do Projeto Anticrime, ao colidir com a defesa deste direito, geraria uma desestabilização nos alicerces fundamentais do Direito, descaracterizando-o como um todo. 5. Proposta de alternativa à medida Como já mencionado no presente estudo, os anseios da sociedade no sentido da busca por um sistema judiciário mais eficiente é plausível, e o que aqui se propõe não é desconsiderálo. É pressuposto em uma democracia que o Poder Público, em todas as suas instâncias, esteja sempre atento às necessidades que a sociedade expõe, sendo que a participação da vontade popular é o que legitima todas as ações daqueles que detém o poder. Deste modo, a preocupação da sociedade com relação à morosidade nos processos de cunho criminal deve ser levada em consideração, ao se analisar o Projeto Anticrime. Neste LOPES JUNIOR, Aury e BADARÓ, Gustavo. “Presunção de inocência: Do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. Parecer no Habeas Corpus nº 126.292Consulente: Maria Cláudia de Seixas. 2016. 12 MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Elementos de direito administrativo. São Paulo: Editora Malheiros, 1986, p. 230. 11 47 sentido, o presente estudo propõe a reflexão sobre possíveis alternativas, outras maneiras de confrontar o problema, sem contrariar a Constituição ou ferir direitos fundamentais. Tem-se a consciência de que a decisão de pronúncia deva ser respeitada e os recursos a ela cabíveis devam ser recebidos com efeito suspensivo. Sobre isso, não cabe outra proposta neste estudo, senão a derrubada de tal alteração legislativa proposta. Por outro lado, no que tange a execução antecipada da pena após a condenação do acusado pelo plenário do Tribunal do Júri, necessários se fazem alguns apontamentos. Rechaçase, de plano, a ideia de culpabilidade do réu e que este deva cumprir qualquer tipo de pena. No entanto, traz-se certa alternativa para demonstrar o entendimento da necessidade de resposta legislativa aos anseios populares. Um instituto que já existe e é bastante difundido no processo penal é o das medidas cautelares alternativas à prisão, que são determinadas em casos que carregam aspectos suficientemente graves para que seja razoável pensar em maneiras de mitigar as possibilidades de, por exemplo, o réu fugir, atrapalhar as investigações, ou reincidir no delito, enquanto o seu processo não termina. A aplicação das medidas cautelares, neste sentido, já consta nos incisos I e II do artigo 282 do Código de Processo Penal, que foi introduzido de maneira inovadora através da lei 12.403/2011.13 As medidas cautelares já se mostram eficazes no sentido de contribuir para a garantia da observância da lei penal. Portanto, uma possibilidade para que se obtenha mais garantia neste sentido é pensar em maneiras de se aprimorar a aplicação das medidas cautelares, que já estão previstas nos artigos 319 do Código Penal. Evidentemente, essa investida nas medidas cautelares teria que ser pensada sempre sob a ótica da Constituição, e, neste sentido, cabe a busca por autores que tenham se debruçado sobre esse tema específico do Direito Processual Penal. Um autor que certamente agrega profundidade a tal análise e cabe ser citado é Thiago M. Minagé, que analisa com profundidade cada uma das medidas cautelares, sempre se atentando aos limites constitucionais. O processualista Gustavo Henrique Badaró, em suas reflexões acerca das medidas cautelares, no que tange à introdução da referida lei 12.403/2011, afirma que se, com o início de vigência da Lei nº 12.403/11, uma nova medida cautelar alternativa à prisão for igualmente eficaz para atingir a finalidade para a qual foi decretada – 13 (...) I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais; (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). II - Adequação da medida à gravidade do crime, circunstâncias do fato e condições pessoais do indiciado ou acusado. (Incluído pela Lei nº 12.403, de 2011). 48 cautela final ou cautela instrumental – deverá ter incidência tal medida menos gravosa. Ou seja, a prisão preventiva não mais será cabível, devendo ser substituída pela medida alternativa à prisão14. Fica evidente sob a ótica do consagrado autor que as medidas cautelares podem sim ser uma maneira de se atingir a finalidade de proteção da sociedade das consequências práticas da criminalidade, sem se ter que recorrer à prisão, que, querendo ou não, também exercem suas próprias consequências negativas, principalmente quando aplicada em excesso. Ainda sobre o tema, o exímio professor continua: Não se pode ignorar a realidade e deixar de reconhecer que, em muitos casos, prisões preventivas são decretadas porque, não dispondo o juiz de opções legais menos gravosas, prefere manter o acusado preso ao invés de deixá-lo em total liberdade. Nestes casos, a novidade legislativa, criando um leque de opções, com graus diversos de restrição da liberdade, indo desde uma simples proibição de ausentar-se do País (art. 320) até o recolhimento domiciliar noturno (art. 319, caput, inc. V), pode ensejar a aplicação de medida que seja igualmente eficaz, mas menos gravosa para a liberdade do acusado por não lhe impor a prisão.15 O autor mostra sua visão de que a aplicação das medidas cautelares pode ser tão eficaz quanto a prisão, porém menos gravosa. Evidentemente que, para que haja constitucionalidade da alternativa proposta no presente estudo, será necessária sempre a motivação da decretação das medidas cautelares lastreada nos requisitos previstos nos incisos I e II do artigo 282 do Código de Processo Penal. Ainda, com relação às medidas alternativas às propostas pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro, mais precisamente no que tange a celeridade nos julgamentos do processo do Tribunal do Júri e da clara inconstitucionalidade no ensejo de retirar o efeito suspensivo dos recursos em sentido estrito, há a proposta de que se estabeleça, nos Tribunais, a prioridade no julgamento dos processos do júri. Já existe hoje no ordenamento jurídico brasileiro a prioridade de tramitação, conforme previsão do artigo 1.048 do Código de Processo Civil: Artigo 1.048: Terão prioridade de tramitação, em qualquer juízo ou tribunal, os procedimentos judiciais: 14 BADARÓ, Gustavo Henrique. Reforma das medidas cautelares pessoais no CPP e os problemas de direito intertemporal decorrentes da Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 223, jun. 2011, p. 11-12. 15 BADARÓ, Gustavo Henrique. Reforma das medidas cautelares pessoais no CPP e os problemas de direito intertemporal decorrentes da Lei n. 12.403, de 04 de maio de 2011. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº 223, jun. 2011, p. 11-12. 49 I - em que figure como parte ou interessado pessoa com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos ou portadora de doença grave, assim compreendida qualquer das enumeradas no art. 6o, inciso XIV, da lei 7.713, de 22 de dezembro de 1988; II - regulados pela lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente). E essa disposição é aplicada à justiça criminal, uma vez que o Código de Processo Penal estabelece que “a lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito". Basta, portanto, que o julgamento dos recursos em sentido estrito opostos em face de decisão de pronúncia tenha prioridade nas cortes e tribunais do país. Outra hipótese em que o mesmo instituto é aplicado é a criada pela Lei n° 13.285/16, que modificou o Código de Processo Penal e que determina a prioridade de tramitação de processos que apurem a prática de crimes hediondos, em todas as instâncias judiciais. Portanto, evidente que a aplicação da prioridade de tramitação é uma forma efetiva para a questão da morosidade dos processos em tramitação e, por essa razão, pode e deve ser aplicada nos processos do Tribunal do Júri como forma alternativa de aumentar a celeridade processual, tendo em vista que padece de completa inconstitucionalidade a medida proposta pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. 50 MEDIDA III – EMBARGOS INFRINGENTES E DE NULIDADE Sob coordenação de Renata Rodrigues de Abreu Ferreira e Fernando Augusto Bertolino Storto Elaborado por Daniela Halperin, Genilson Nascimento, Monica Watanabe Nascimento e Thiago Villela Dutra Introduzidos na legislação processual penal pátria em 1952, com o advento da Lei nº 1.720-B, os embargos infringentes e de nulidade são, nos termos do art. 609 do Código de Processo Penal vigente1, oponíveis “quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu”. Pressupondo uma divergência de entendimento (ainda que parcial) dos julgadores, os embargos infringentes e os de nulidade atuam como uma forma de homenagear o princípio favor rei – também conhecido como in dubio pro reo –, um autêntico corolário do princípio constitucional da presunção de inocência. Trata-se, portanto, de recurso privativo da defesa que permite, em razão da divergência de posicionamentos dos julgadores, a ampliação do quórum de julgamento. Desta forma, “o recurso obriga que a câmara seja chamada a decidir por completo e não apenas com os votos dos magistrados que compuseram a turma julgadora”2. Semelhante previsão rege o Código de Processo Civil, no qual se verifica a técnica de ampliação do colegiado, nos termos do art. 9423. Segundo este preceito, se determina a revisão automática da decisão não unânime em apelação4, para que, com um número maior de “Art. 609. Os recursos, apelações e embargos serão julgados pelos Tribunais de Justiça, câmaras ou turmas criminais, de acordo com a competência estabelecida nas leis de organização judiciária. Parágrafo único. Quando não for unânime a decisão de segunda instância, desfavorável ao réu, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de 10 (dez) dias, a contar da publicação de acórdão, na forma do art. 613. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência”. 2 NUCCI, Guilherme de Souza; Código de processo penal comentado. 18. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. 3 “Art. 942. Quando o resultado da apelação for não unânime, o julgamento terá prosseguimento em sessão a ser designada com a presença de outros julgadores, que serão convocados nos termos previamente definidos no regimento interno, em número suficiente para garantir a possibilidade de inversão do resultado inicial, assegurado às partes e a eventuais terceiros o direito de sustentar oralmente suas razões perante os novos julgadores”. 4 Não só em apelação, mas também perante julgamentos não unânimes de ação rescisória – quando o resultado for a rescisão da sentença, devendo, nesse caso, seu prosseguimento ocorrer em órgão de maior composição previsto no regimento interno – e agravo de instrumento, quando houver reforma da decisão que julgar parcialmente o mérito. 1 51 julgadores, se reanalise o julgamento anterior em que houve alguma divergência5. Ora, se no processo civil já se coloca essa possibilidade, mais razão ainda assiste em se manter a autorização para fazê-lo – ainda que não automaticamente, mas mediante recurso da defesa – no âmbito criminal, cujos bens protegidos são os valores mais relevantes da sociedade, consoante o princípio da última ratio. A distinção entre as modalidades de infringência e de nulidade decorrem da especificidade dos últimos, os quais se debruçam estritamente sobre matéria processual, objetivando o reconhecimento, como o próprio nomen iuris indica, de nulidade; enquanto os primeiros, abordam questões de mérito. Agora – mais de 60 anos depois de sua incorporação ao diploma processual penal –, emerge um projeto de reforma legislativa autointitulado Pacote Anticrime6 que, sem nenhum fundamento empírico ou epistemológico, busca restringir o espectro de aplicação de tais recursos. No presente texto será analisada a Medida III do referido Pacote, que trata da alteração das regras do julgamento dos embargos infringentes e de nulidade, modificando o disposto no parágrafo único do artigo 609 do Código de Processo Penal. 1. Afinal, o que pretende a medida? O projeto em questão planeja inovar o mencionado dispositivo remodelando seu parágrafo único e incluindo um novo7: Art. 609. [...] §1º Quando houver voto vencido pela absolvição em segunda instância, admitem-se embargos infringentes e de nulidade, que poderão ser opostos dentro de dez dias, a contar da publicação do acórdão, na forma do art. 613. §2º Os embargos serão restritos à matéria objeto de divergência e suspendem a execução da condenação criminal. Assim, em oposição à previsão atual, os embargos teriam sua aplicação bastante restrita, se não extinta. A mudança propõe que ambos os embargos apenas possam ser opostos caso o 5 Permite-se, inclusive, os julgadores que já votaram poderão rever seus votos por ocasião do prosseguimento do julgamento. 6 Conjunto de alterações na legislação brasileira que tem como objetivo aumentar a eficácia no combate ao crime organizado, ao crime violento e à corrupção. É composto por dois projetos de lei ordinária e um projeto de lei complementar. 7 Ministério da Justiça e Segurança Pública, Poder Executivo. Projeto de Lei 882/2019, apresentado em 31 de janeiro de 2019. Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=4A 3DE618D3268151A106FAFEFCD510EC.proposicoesWebExterno2?codteor=1712088&filename=PL+882/201 9>. 52 voto divergente seja pela absolvição do réu, ou seja, exclui as demais divergências cabíveis, como questões atinentes à dosimetria da pena, liberdade, regime de pena, eventuais benefícios processuais a serem concedidos, questões processuais impactantes, etc. Significa dizer que essa reestruturação do texto normativo limitaria radicalmente as hipóteses de cabimento dos embargos infringentes e de nulidade. A proposta possui objetivos declarados e implícitos, sendo o propósito mais explícito da alteração a busca pela celeridade processual. Sob um discurso de morosidade no julgamento das demandas e atolamento dos tribunais – que não deixa de ser verídico –, pretende-se reduzir o direito de acesso às Cortes e discussões jurídicas. Contudo, olvida-se o autor da proposição que os embargos não representam fator significativo nos julgamentos criminais dos tribunais pátrios. Em estudo recente, pautado no segundo tribunal com maior volume de processos do país (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro), é possível se verificar o baixo percentual de julgamento dos embargos infringentes, os quais não ultrapassam 3% da totalidade de recursos julgados no ano de 2009, e menos de 2,5% no ano de 20188-9. Cumpre ainda observar a disparidade entre a previsão que se busca adotar no Código de Processo Penal e a disciplina do art. 333 do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal10. A limitação imposta pelo RISTF e aplicada atualmente11 visa a organização dos julgamentos numa Suprema Corte responsável por realizar deliberações excepcionais como jurisdição ordinária, muito distante da realidade dos Tribunais encarregados de apreciar fatos e provas. Por outro lado, o instituto, no formato em que atualmente previsto, auxilia na estabilização e uniformização da jurisprudência, uma vez que a ampliação do julgamento 8 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen e DE PAULA, Leonardo Costa. Embargos infringentes e de nulidade no “Pacote Anticrime”. Publicado em abril de 2019. Acesso em 05/10/2019. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6313-Embargos-infringentes-e-de-nulidade-no-Pacote-Anticrime>. 9 Conselho Nacional de Justiça. Justiça em Números 2018. Acesso em 06/10/2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/justica-numeros-2018-2408218compressed.pdf>. 10 “Art. 333, RISTF. Cabem embargos infringentes à decisão não unânime do Plenário ou da Turma. i - que julgar procedente a ação penal; ii - que julgar improcedente a revisão criminal; (...) v - que, em recurso criminal ordinário, for desfavorável ao acusado. Parágrafo único. O cabimento dos embargos, em decisão do Plenário, depende da existência, no mínimo, de quatro votos divergentes, salvo nos casos de julgamento criminal em sessão secreta”. 11 STF, AgReg nos Embargos Infringentes na Ação Penal 863. Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 19/04/2018, disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/voto-celso-mello-embargos-infringentes.pdf>. 53 garantirá a apreciação da matéria por mais de uma Câmara ou Turma, gerando precedente a ser observado por ao menos dois órgãos fracionários de um mesmo Tribunal12. Outro objetivo bastante óbvio da medida é cercear o direito ao recurso e mitigar o princípio do in dubio pro reo, retirando a possibilidade de se vilipendiar discordâncias de natureza estritamente processual, posto que o pressuposto para podê-las questionar é a existência de um voto absolutório. Segundo o ministro Sérgio Moro, a legislação hodierna não está “atendendo às necessidades atuais. Assim, as reformas que ora se propõem visam dar maior agilidade às ações penais e efetividade no cumprimento das penas, quando impostas”11. Ocorre que, como já mencionado, o sistema judiciário brasileiro não é lento por decorrência exclusiva da previsão dos embargos na legislação. Conforme parecer redigido a pedido do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB) sobre o assunto, o exímio professor Cristiano Fragoso esclarece que: Recursos de embargos infringentes não retardam, de forma relevante, execuções penais, eis que trata-se de recursos a serem julgados no mesmo tribunal em que foi decidida a apelação; via de regra, esses embargos são julgados muito rapidamente, em, no máximo, um ou dois meses. A celeridade processual é um valor que possui assento constitucional, vinculando-se ao princípio da duração razoável do processo, mas precisamente em virtude do acusado, e não para ser usado contra ele 12. Portanto, a alteração não torna o processo penal mais célere, como também utiliza inversamente o princípio da duração razoável do processo – que deve sempre ser interpretado à luz do favor rei13 – para arguir a necessidade de diminuir as possibilidades recursais do defendente. A mera alegação de morosidade do Poder Judiciário como causa para a medida serve, em prática, para terceirizar a culpa pela incapacidade estatal para o réu, sujeito da ação 12 DE CARVALHO, Felipe Fernandes e CHAVES, Álvaro Guilherme de Oliveira. Embargos Infringentes e de Nulidade: outra sensível mudança do projeto “Anticrime”. Publicada em 19 de fevereiro de 2019. Acesso em 05/10/2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-fev-19/opiniao-embargos-infringentes-nulidadeprojeto-anticrime>. 11 MORO, Sergio Fernando. EM n° 00014/2019 MJSP, 2019. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ Projetos/ExpMotiv/MJ/2019/14.htm>. 12 FRAGOSO, Cristiano. Parecer na indicação 001/2019 - Medida III. Página 6. Disponível em: <https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceres-paravotacao/download/2408_1836fb2f2614743693b416223fb b10e0> (grifou-se). 13 Um dos mais importantes princípios do Processo Penal, em direta conexão com o princípio da presunção da inocência: quando o direito à liberdade de um réu esbarra no direito de punir do Estado, prevalece sempre interpretação mais favorável aos interesses do réu. 54 penal, retirando do Judiciário o ônus de destravar a justiça com mecanismos de diversão, iniciativas despenalizadoras e/ou agilizadoras, como os Juizados Especiais. Para além disso, a fim de que se possa observar empiricamente o instituto dos embargos infringentes (e seu peso na morosidade do Judiciário), em pesquisa realizada no Tribunal de Justiça de São Paulo, verifica-se que, no período de um ano14 – restringindo-se por classe15 e matéria criminal –, 791 acórdãos foram prolatados em sede de embargos infringentes. Limitando-se a busca pelo mesmo lapso temporal e abrangendo-se, desta vez, o assunto para “direito penal”16, nota-se que foram prolatados um total de 139.573 acórdãos. Com isso, pode-se chegar a duas conclusões: a primeira recai sobre reconhecer a falácia da afirmação de que se agilizará o trâmite processual com a alteração pretendida, tendo em vista que, no Estado em São Paulo, no período analisado, os embargos infringentes representaram míseros 0,56% do total de acórdãos prolatados. A segunda dedução entra em embate direto com a argumentação de serem irrelevantes os embargos que não versem sobre absolvição17. A esse respeito, conforme outra pesquisa realizada pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), sobre dados quantitativos acerca de votos divergentes que não opinaram pela absolvição, demonstra-se a relevância dessas matérias: Em pesquisa brevíssima no sítio do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, examinando-se por amostragem 100 acórdãos (do universo bruto de 2.190 acórdãos encontrados entre 20.12.2017 e 20.01.2019 (...), observou-se que 40 tratavam da dosimetria da pena, 40 tratavam de absolvição, 12 examinavam nulidades processuais, 5 cuidavam de substituição da pena privativa de liberdade por restritivas de direitos, 3 tratavam de desclassificação. Diante de tais dados, verifica-se facilmente que a proposta de reforma afetaria, nessa amostragem, 60% dos casos, mantendo-se os embargos para apenas 40% das apelações18. Pois bem. Fica evidente a importância de se analisar a questão dos embargos infringentes e de nulidade à luz de dados estatísticos, e não de meras suposições genéricas. 14 De 6/10/2018 a 5/10/2019. Pesquisa jurisprudencial filtrada, dentre outros campos, por (i) data do julgamento, (ii) classe, como agravo de instrumento, embargos de nulidades, suspeição etc., e (iii) assunto, como direito penal, tributário ou administrativo. Ver em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do>. 16 O número pode ter sido conservador, uma vez que impossibilitada a inclusão no assunto de, junto com direito penal, direito processual penal, por ultrapassar o limite imposto pelo site de 500 assuntos. 17 É de se ressaltar que, embora 0,56% não seja de fato porcentagem relevante frente ao número total de acórdãos, portanto não justificando diretamente a argumentação de que sua extinção traria maior celeridade processual, há o outro lado: não é irrelevante o número de 791 réus que tiveram possibilidade de opor seus embargos infringentes ou de nulidade em São Paulo, exercendo plenamente o seu direito de defesa. 18 GLOECKNER, Ricardo Jacobsen e DE PAULA, Leonardo Costa. Embargos infringentes e de nulidade no “Pacote Anticrime”. Publicado em abril de 2019. Acesso em 06/10/2019. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/ boletim_artigo/6313-Embargos-infringentes-e-de-nulidade-no-Pacote-Anticrime>. 15 55 A medida, além de não trazer quase avanço algum à velocidade processual, restringiria a presunção da inocência, ignorando o quase ilimitado rol de possibilidades de divergência em julgamento em segundo grau que não ensejam a absolvição sumária; além de ignorar que um placar de 2x1, embora configure maioria absoluta, é a “expressão matemática da dúvida”19, assim como também o é um placar de 4x3 no tribunal do júri. Se um desembargador concursado votou em divergência com seus pares, o benefício da dúvida e a presunção de inocência claramente impõem que, ao menos, seja levada em consideração a sua fundamentação jurídica. Ademais, não é impensável que essa restrição radical dos embargos infringentes venha a ocasionar, posteriormente, em um maior número de pedidos de revisões criminais 20, até porque o acesso aos tribunais superiores vem sendo cada vez mais restringido pela legislação e pela jurisprudência, reduzindo as possibilidades de reanálise das matérias. Afinal, caso não lhe tenha sido possível arguir divergências no julgamento, enquanto não esgotadas as suas possibilidades recursais, e caso tenha essa pessoa sido condenada por decisão transitada em julgado, não haveria outro meio de demonstrar indignação (devidamente fundamentada e com evidências cabíveis) que não a revisão criminal ou em sede habeas corpus21-21. Deste modo, é relevante observar que as consequências alegadamente positivas da medida em questão não necessariamente se concretizarão. Em contraste, seus efeitos negativos são claramente sensíveis, mormente frente às diversas situações em que o réu perderia a oportunidade de ter a eventual dúvida erigida de seu julgamento sanada, e, portanto, o direito a um julgamento individualizado e bem fundamentado, para não se dizer mais justo. 2. A medida é um retrocesso Tendo em vista a relevância da restrição proposta, imprescindível se faz a análise mais densa desta. 19 FRAGOSO, Cristiano. Parecer na indicação 001/2019 - Medida III. Página 4. Disponível em: <https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceresparavotacao/download/2408_1836fb2f2614743693b416223fbb 10e0>. 20 “Art. 621. A revisão dos processos findos será admitida: I - quando a sentença condenatória for contrária ao texto expresso da lei penal ou à evidência dos autos; II - quando a sentença condenatória se fundar em depoimentos, exames ou documentos comprovadamente falsos; III - quando, após a sentença, se descobrirem novas provas de inocência do condenado ou de circunstância que determine ou autorize diminuição especial da pena”. 21 STF, HC 139.741, Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 06/03/2018, DJE 16/03/2018. Disponível em: <http://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15339917559&ext=.pdf>. 56 Com a alteração proposta, o que se colocará em risco será o próprio Estado de Direito, pois dar-se-á espaço a uma máquina burocrática de espírito punitivista que atropelará a tudo e a todos, e que amesquinhará direitos fundamentais conquistados a duras penas para dar azo a um falso senso de celeridade. A deficiência da argumentação utilizada para defender o designado Pacote Anticrime é o maior indicativo de que seu verdadeiro propósito é o de atender a anseios corporativistas, bem com o de ser utilizado como verdadeira propaganda de cunho político – dado que as medidas sequer possuem caráter preventivo para serem intituladas de “anticrime”, mas natureza puramente repressiva e restritiva de direitos. Nesse sentido, é de suma importância rememorar que a Constituição Federal de 1988 fixa, em seu artigo 1º, a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República. Luís Roberto Barroso conceitua a dignidade da pessoa humana como um valor fundamental, do qual se originam os direitos humanos; e como princípio constitucional, que funciona como fonte de direitos e deveres, bem como instrumento de interpretação normativa. Barroso procura, em sua obra, definir um conteúdo mínimo do princípio, que consistiria em três elementos: o valor intrínseco do ser humano, a autonomia individual e o valor da comunidade22. Com efeito, o conceito jurídico de dignidade da pessoa humana se delineou com os contornos que o definem no Direito Constitucional germânico. Com o passar do tempo, a jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal alemão se consolidou no sentido de que “a dignidade da pessoa humana se situa no ápice do sistema constitucional, representando um valor supremo, um bem absoluto, à luz do qual cada um dos outros dispositivos deve ser interpretado”23. O princípio possui duas dimensões: subjetiva, segundo a qual o indivíduo é titular de direitos; e objetiva, segundo a qual o Estado é obrigado a realizar determinadas prestações positivas. Do princípio da dignidade da pessoa humana decorre a máxima da presunção de inocência, que é o axioma basilar do processo penal, também expresso no Texto Constitucional24. Isso significa não apenas que se deve aguardar até que não seja cabível mais nenhum recurso, mas, implicitamente, que o devido processo legal deve ser observado, incluindo-se aí a possibilidade de que o acusado em processo penal possa, mediante acesso ao 22 BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014. pp. 9. 23 Idem. 24 Art. 5º, LVII, CF: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 57 contraditório e à ampla defesa, minimizar os riscos de que erros ou arbitrariedades possam contaminar sua declaração de culpa e, especialmente, a aplicação correta do respectivo castigo. A leitura do preceito constitucional, realizada de maneira conjugada com a de dispositivos do Código de Processo Penal – como o artigo 386, que dispõe sobre as hipóteses de absolvição do réu, e do Código Penal, como os artigos 1325 e 2926 – traz luz à sua interpretação. Desse modo, na ótica do sistema jurisdicional vigente, somente considerar-se-á culpado de um crime aquele que, sob o devido processo, teve cabalmente provada sua contribuição causal para o resultado típico. Com efeito, cabe ao Judiciário não apenas decidir sobre a responsabilidade criminal do autor do fato, mas também atribuir a correta medida do ius puniendi estatal, observando a proporcionalidade e a individualização da pena, consoante o artigo 5º, XLVI, da Constituição Federal27. Em outras palavras, para ser justa, não basta que a sanção penal corresponda proporcionalmente à lesão causada pelo delito ao bem jurídico, mas também ao réu como sujeito de direitos em si. Isso implica que seja analisado pelo poder judiciário o fato típico com todas as suas circunstâncias e peculiaridades, a pena aplicada, o quantum de castigo apenado, regime da pena, questões processuais a serem observadas em respeito ao devido processo legal, direitos subjetivos dos réus à benesses previstas em lei, entre outros. Todas essas matérias podem ser objeto de divergência na Corte e, portanto, todas elas podem (ao menos por ora, na previsão atual do artigo 609 do CPP), ser submetidas à análise conjunta do tribunal. Por esse motivo, dada a análise mais ampla pelo tribunal, os embargos infringentes propiciariam a unificação da jurisprudência e, por conseguinte, atuariam em consonância com a segurança jurídica, assegurada pelo artigo 5º, inciso XXXVI, da Constituição Federal 28. Agiria, outrossim, como uma espécie de “remédio” contra a falibilidade humana, mormente frente a questões controversas, de molde a sanar eventuais erros, equívocos ou mesmo meras divergências decisórias presentes em um decisum não unânime. De igual modo, prestigiaria o princípio da igualdade em sua vertente processual, pois, diante da uniformização Art. 13, Código Penal: “o resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe deu causa. Considera-se causa a ação ou omissão sem a qual o resultado não teria ocorrido”. 26 Art. 29, Código Penal: “quem, de qualquer modo, concorre para o crime incide nas penas a este cominadas, na medida de sua culpabilidade”. 27 Art. 5°, XLVI CF: “a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos”. 28 Art. 5º, XXXVI, CF: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. 25 58 jurisprudencial, indivíduos em situações semelhantes passariam a ser agraciados com o mesmo resultado diante de precedente formulado na respectiva Corte. Pois bem. Na fundamentação dos projetos em trâmite na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, respectivamente, o PL n. 882/2019 e o PL n. 1864/2019, o argumento apresentado pelo Executivo é o de que o projeto tem como objetivo combater a criminalidade, com foco em três aspectos: corrupção, organizações criminosas e crimes praticados mediante violência. No entanto, infelizmente, não se pode deixar de aventar a dificuldade em se compreender como uma medida de restrição de matéria recursal pudesse de fato “combater” a criminalidade em geral – que dirá ser direcionada à luta contra a corrupção, organização criminosas e crimes incruentos –, em que pese sejam tais argumentos utilizados para sustentar a validade da diminuição do escopo recursal proposta. De outra senda, embora na própria justificativa assinada pelo Ministro Sérgio Moro, conste que os princípios constitucionais devem ser observados em todos os procedimentos de natureza penal, o único valor nominalmente mencionado pelo propositor é o do devido processo legal, justamente desviado na medida. Convenientemente, os axiomas da dignidade da pessoa humana, do contraditório e ampla defesa e da presunção de inocência – só para citar alguns –, são deixados de lado. Em busca da promoção da celeridade, todos esses princípios – que constituem também garantias fundamentais – são abandonados. 3. Epílogo Deste modo, a aplicação do modelo proposto no Pacote Anticrime, ainda que não seja inconstitucional, seria desproporcional e vazia, além de representar um verdadeiro retrocesso processual e constitucional, uma vez que a previsão atual dos embargos infringentes e de nulidade prestigiam diversos axiomas máximos, como o princípio do in dubio pro reo, a presunção de inocência e o direito ao recurso – sem olvidar os indiretamente homenageados, tais como a legalidade, liberdade, devido processo legal e outros analisados nos acórdãos e que findam por ser objeto de divergência. Ponderando-se os interesses em jogo, e diante do quadro apresentado de ínfimo grau de recursos dessas espécies apresentados aos tribunais – que comprova não serem estes “entraves” à execução da pena, tampouco os “atoladores” do poder judiciário –, soa inaceitável a justificativa de impressão de celeridade processual. 59 Assim, nada justificaria a alteração do dispositivo proposto. De modo que o Estado Democrático de Direito – e, consequentemente, todos os seus cidadãos – é quem ganha com a manutenção da redação atual do artigo 609 do Código de Processual. Trocando em miúdos, entende-se que o preceito não deve ser alterado a fim de restringir seu uso. 60 MEDIDA IV – LEGÍTIMA DEFESA Sob coordenação de Lorraine Carvalho, Gabriel Pires Viegas e Roberta de Lima e Silva Elaborado por Bruna Alcoléa Zavataro Kwasniewski, Carolina Eichhorn Gomes, Davi Benatti Conte Lopes Lima, Gabriela Faria Mendes da Costa Martins, Higor Michael Santos Dias, Laís Albino da Silva Barbosa e Maria Júlia Valerini Cassanta 1. O que diz a medida? Pela definição de que crime é um fato típico, antijurídico e culpável, a previsão de excludente de antijuridicidade (ou ilicitude) estabelece que, em determinadas situações, um fato pode deixar de ser ilícito. São, portanto, as hipóteses legais: o estado de necessidade, a legítima defesa, o estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular de direito. Nucci define ilicitude como “a contrariedade de uma conduta com o direito, causando efetiva lesão a um bem jurídico protegido”, ou seja, é a conduta que contraria o direito e gera danos ao bem juridicamente tutelado. Prevê o Código Penal, em seu artigo 23, que: Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular do direito. Parágrafo Único. O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo. Comprovando-se qualquer das causas previstas no artigo 23 do Código Penal, estará afastada a contrariedade da conduta com direito, não havendo que se falar em ilicitude do fato. Especificamente, sobre a legítima defesa, medida que o Pacote Anticrime visa alterar, o Código Penal, hoje, prevê a hipótese de sua utilização em casos de agressão atual (presente) ou iminente (futuro próximo). Entende-se por legítima defesa (artigo 25 do Código Penal) o instituto de utilização moderada dos meios necessários para repelir injusta agressão, atual ou iminente, contra direito próprio ou de terceiros. Os requisitos da legítima defesa devem ser atendidos de forma plena para que sejam aplicados. Assim, por exemplo, a agressão deverá ser injusta, não havendo que se falar em legítima defesa quando a agressão ao bem jurídico decorrer de provocação prévia; os meios de reação devem ser moderados e necessários para repelir; e a injusta agressão deve ser atual ou 61 iminente. Além disso, é prevista a possibilidade de responsabilização por eventual excesso na reação em legítima defesa. A avaliação da gravidade é subjetiva e deverá ser analisada no caso concreto. O cenário previamente exposto conceitua o que o ordenamento já prevê para o instituto da legítima defesa. Contudo, no que concerne à medida proposta no Pacote Anticrime, haverá uma ampliação de conceitos e a implementação específica para agentes de segurança. A medida é versada pela hipótese de possível diminuição da pena ou a concessão de perdão judicial ao agente que ultrapasse o uso moderado na prática da legítima defesa quando imbuído de “medo, surpresa ou violenta emoção”, no sentido em que abrir-se-ão portas para uma flexibilização da punição, que já é pautada única e exclusivamente no testemunho dos agentes de segurança pública. Por este ponto de vista em que o agente pode por “medo, surpresa ou violenta emoção” subverter a regra em benefício próprio, alargando, portanto, as possibilidades de entendimento da legítima defesa, o agente praticamente terá permissão para praticar atos ilícitos, sabendo que serão considerados legais e terão sua atuação violenta respaldada pelo ordenamento jurídico. Além da possibilidade de alargamento dos requisitos para fundamentação da legítima defesa pela inclusão de sentimentos e estados emocionais extremamente subjetivos, o “Pacote Anticrime” também propõe a criação de uma legítima defesa específica para agentes de segurança. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I – o agente policial ou de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; II – o agente policial ou de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. Os efeitos dessa medida concernem em torno de um agente que, treinado, poderá exceder sua atuação aumentando o uso da força letal em detrimento da proteção do bem jurídico vida - ou seja, será uma legitimação antecipada para o aumento no número de civis mortos por agentes de segurança pública no Brasil, sendo estes 75% jovens periféricos e negros: a cada 4 pessoas mortas pela polícia, 3 são negras1. A medida, portanto, corrobora a “promessa de impunidade”, o que já vemos acontecer em territórios periféricos, mas que serão intensificados 1 CALEGARI, Luiza. Número de negros mortos por policiais é o triplo do de brancos. Publicado em 10 de dezembro de 2017. Acesso em 29 de novembro de 2019. Disponível em <https://exame.abril.com.br/brasil/numero-de-negros-mortos-por-policiais-e-o-triplo-do-de-brancos/> 62 com a aprovação dessa medida pelo Pacote. A medida implicará no aumento da violência, contrariando a argumentação de “combate à organizações criminosas e à corrupção”, sobretudo porque se afasta da garantia de direitos fundamentais e da dignidade humana. 2. Quais são seus objetivos declarados e não declarados? O “Pacote Anticrime”, cujo escopo é propor medidas a serem alteradas ou incluídas em leis penais e processuais penais, possui objetivos manifestos, sustentados pelo discurso oficial, e objetivos não declarados, que só podem ser identificados pela análise crítica da criminologia, da política criminal e dos direitos humanos. Conforme exposto previamente, o Projeto de Lei propõe alterar o artigo 23 do Código Penal, incluindo, nas hipóteses de justificação das excludentes de ilicitude, situações de exculpação a partir do excesso. Ainda, ao alterar o artigo 25 do mesmo Código, visa a modificar o conceito de situação justificante da legítima defesa, criando uma figura exclusiva a agentes de segurança. Evidencia-se, pois, que a pretensão em expandir as hipóteses propositalmente restritas da legítima defesa tem como fim declarado a repressão ao crime organizado no país, mas acaba por autorizar e legitimar a necropolítica2 praticada pelos agentes do Estado. Cumpre observar que tais propostas levam à violação do princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, uma vez que tem como perigoso objetivo relativizar o direito à vida em nome da busca incessante pelo controle ao crime organizado. Tal preceito guarda como uma de suas funções a limitação do uso da força estatal em relação aos cidadãos, exatamente porque a função precípua do Estado é proteger a sociedade, usando a força como instrumento acessório e excepcional. Contudo, diante dos altos índices de criminalidade, o atual governo acaba por ratificar a lamentável política de segurança pública no Brasil que segue concebida e operada por um modelo militarista e encarcerador enquanto falsa promessa de controle do crime, pressupondo que a segurança pública só se efetiva se, e somente se, houver a aniquilação ou a punição desproporcional dos rotulados como “criminosos”3. Conceito cunhado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe no Livro “Necropolítica”, o qual em resumo superficial afirma que “que a expressão máxima da soberania reside em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer”. 3 MACHADO, Érica Babini Lapa do Amaral; GONÇALVES, Cristhovão Fonseca. Parecer Técnico-jurídico. Disponível em: <https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6333-Legitima-defesa-e-intervencao-policial-qual-odestino-do-uso-da-forca-estatal>. Acesso em: 03 out. 2019. 2 63 Não é novidade que a polícia brasileira é responsável, há décadas, por uma das maiores taxas de homicídios do mundo4, números muitas vezes camuflados ou catalogados como “autos de resistência” - em São Paulo, um dos casos emblemáticos que, até hoje, 13 anos depois não tiveram qualquer responsabilização, são os “crimes de maio”, ocasião em que mais de 500 pessoas foram mortas pelas mãos de agentes do estado, em sua maioria jovens negros 5. O que não falta, portanto, é uma força policial estatal abusiva, que não mede esforços para o combate físico ao crime organizado. Ocorre que, no Brasil, “a polícia que mais mata é também a que mais morre”6, provando que as formas de controle à criminalidade até então usadas não são efetivas e, portanto, não devem ser reforçadas e endurecidas em medidas como as propostas pelo Projeto Anticrime. Ao revés, a aplicação de tal medida acabaria com a infeliz validação de institutos tão estudados e demonstrados pela criminologia: uma política higienista baseada na seletividade penal, no superencarceramento e no extermínio dos “inimigos sociais” (jovens negros, pobres e periféricos), dos quais os dados não permitem afirmar que seja este um objetivo não declarado - entre janeiro e agosto de 2019, no estado do Rio de Janeiro, 1.249 (mil duzentas e quarenta e nove) pessoas foram mortas pelas mãos da polícia, segundo o Instituto de Segurança Pública7 Ainda, considerando que o Pacote Anticrime foi colocado em pauta durante um governo conservador e em um momento de recente crise sócio-econômica, também cabe a análise de que a proposta tem como objetivo latente a anulação de parte do contingente marginalizado do “exército de reserva”, que, por condições diversas, como a supressão de políticas públicas, não consegue ingressar no mercado de trabalho, e, por, consequência, na lógica da produção e circulação mercantil.8 Sendo assim, o mínimo que se espera de um Ministro da Justiça é a sensibilidade própria à dignidade do cargo, de forma a compreender que eventual relaxamento de um dispositivo 4 Exame. Polícia Brasileira é a que mais mata no mundo, diz relatório. Disponível em: https://exame.abril.com.br/brasil/policia-brasileira-e-a-que-mais-matano-mundo-diz-relatorio 5 Movimento Mães de Maio. Livro Mães de Maio. Disponível em: <https://fundobrasil.org.br/wpcontent/uploads/2016/07/livro-maes-de-maio.pdf> 6 Ver. <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/04/politica/1491332481 132999.html> 7 Jornal Nacional. No Rio, número de mortes por policiais em 2019 é recorde. Publicado em 20.09.2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/09/20/no-rio-numero-de-mortes-porpoliciais-em-2019-e-recorde.ghtml> 8 FERREIRA, Victor Silveira Garcia. Crítica do Valor e Crítica Estética na Análise da Seletividade Penal – Capitalismo, Rap e Forma Jurídica. Disponível em: <http://www.revistaliberdades.org.br/site/outrasEdicoes/outrasEdicoesExibir.php?rcon_id=326>. Acesso em: 03.10.2019 64 limitador da atuação estatal repercutirá em mais mortes, seja da sociedade civil, seja de policiais em atuação. Vale ressaltar que restará sempre a desproporção entre o número de cidadãos e o número de policiais mortos ao fim de cada expediente, desmantelando a ideia de “guerra” e reforçando a execução daquele objetivo não declarado: o extermínio sistemático e subterrâneo dos indivíduos pré-selecionados9. Enfim, a proposta do Pacote Anticrime, no que concerne à legítima defesa, tem caráter violador de direitos, legitimando a abusividade da força policial, já demonstradamente fracassada, e negligenciando o estudo de medidas práticas aptas a contribuir com a segurança pública em um Estado Democrático de Direito. Acaba então, por sustentar como objetivo explícito o controle da segurança pública, mas tão somente por intensificar o encarceramento e a morte da juventude negra. 3. Quais são suas consequências previsíveis? Produzem efeitos positivos ou nocivos? O “Pacote Anticrime” propõe um modo retrógrado de pensar a Segurança Pública – e, por consequência, o Direito Penal, que associa o endurecimento das leis e a ampliação do Poder Judiciário pelo órgão do Ministério Público ao aumento da força letal de agentes de segurança. Antes do debate sobre as consequências previsíveis de alteração no dispositivo do Código Penal que aborda a legítima defesa, se faz necessário o destaque de alguns dados alarmantes e atuais sobre a Segurança Pública no Brasil: (i) o país possui a 3ª maior população carcerária do planeta - sendo que, dentre esse número, 41,5% das pessoas estão presas provisoriamente, ou seja, sequer tiveram sentença condenatória; (ii) a polícia militar brasileira é a que mais executa mundialmente, segundo relatório da Anistia Internacional, tendo crescido em 9 estados brasileiros no primeiro semestre de 2019 o número de mortes decorrentes de intervenção policial - os denominados autos de resistência10; (iii) 38% dos brasileiros elegeram a segurança pública como sua maior preocupação e (iv) em relatório do Atlas de Violência de 2018, evidencia-se o registro de 62.517 homicídios no Brasil, uma taxa de cerca de 30 óbitos 9 DIETER, Maurício Stegemann. Parecer técnico-jurídico. Disponível em: <file:///C:/Users/gabri/Downloads/Parecer%20Tecnico-Juridico%20%20Mauricio%20Stegemann%20Dieter%20I.pdf>. Acesso em: 03 out. 2019. 10 De 15 unidades da federação analisadas pelo GLOBO, em nove houve crescimento dos casos na comparação entre janeiro e abril de 2018 e de 2019. Fonte: Secretarias de Segurança Pública e Mapa da Violência. 65 por cada 100 mil habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde, sendo a maior parte das vítimas jovens negros, resultando no chamado extermínio da população negra. Deste modo, é figurado no Brasil (país de maioria negra e parda) um estado semelhante ao de um país em guerra, com índices altos de mortalidade e políticas públicas que aprofundam ainda mais esse status, tal qual o Pacote Anticrime. Conforme anteriormente exposto, a redação proposta dos artigos 23 e 25, ao contrário dos objetivos declarados, terá capacidade plena para intensificar os dados acima apontados e historicamente denunciados por movimentos e coletivos da sociedade civil organizada. Ao analisar essa proposta de alteração e seus objetivos é de se observar o seu caráter vago, que condiciona os elementos de "medo, surpresa e violenta emoção" a atenuantes da pena, até mesmo perdão judicial. Porém, como seria justificável balizar uma lei penal em sentimentos, critérios subjetivos que justificam a atuação falha de um profissional treinado para exercer sua função? E, além do mais, num contexto de flexibilização de porte de armas, qual seria o resultado de tal medida para a sociedade, sobretudo a mulheres que sofrem, historicamente, com altos índices de feminicídio e violência em âmbito doméstico? Os agentes do estado são treinados para reproduzir um contexto de guerra, no qual ele é programado para ver como inimigo o jovem negro e periférico, ideia que é refletida em frases como a do Tenente-Coronel da Polícia Militar de São Paulo, Sr. Ricardo Augusto Nascimento de Mello Araújo: É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma dele abordar tem que ser diferente. Se ele [policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar uma pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo], ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado. 11 Não causa espanto os altos índices de mortes decorrentes de intervenção policial no Brasil, majoritariamente em zonas periféricas, pois a visão das agências policiais está intimamente ligada ao olhar pautado na discriminação de classe e raça para escolher quais pessoas devem ser etiquetadas como criminosas. Sendo assim, o resultado mais provável da flexibilização das penas para os agentes de segurança que cometerem homicídios, decorrentes dos elementos subjetivos contidos no parágrafo §1º da proposta de redação do artigo 23 do 11 Abordagem nos Jardins tem de ser diferente da periferia, diz novo comandante da Rota. Disponível em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/08/24/abordagem-no-jardins-e-na-periferia-tem-deser-diferente-diz-novo-comandante-da-rota.htm?cmpid=copiaecola, acesso 20/01/2020 às 20:48 66 Código Penal, é o aprofundamento das mortes decorrentes de intervenção policial, sendo primeiramente afetados os corpos negros periféricos. Outra consequência alarmante derivada da proposta de alteração em questão (aliada à tentativa de flexibilização do porte de armas) é o aumento dos crimes de feminicídio, com o ressurgimento do debate sobre legítima defesa da honra12, discussão que vai na contramão de todos os avanços feitos pela sociedade, organizações feministas e no âmbito legislativo de combate à violência de gênero. Assim, sob o argumento de “medo, surpresa ou violenta emoção”, poderiam ser sedimentadas teses de defesas de réus acusados de feminicídio, deslocando para as vítimas da violência a responsabilidade pelos crimes cometidos contra elas, reforçando argumentos patriarcais e machistas de culpabilização da vítima. Portanto, é imprescindível um olhar mais crítico para as consequências nocivas de tal alteração no Código Penal para a sociedade como um todo, de modo a promover uma conscientização sobre a utilização menos nociva possível do poder letal do Estado e a necessidade de assegurar os pequenos progressos feitos no período democráticos. 4. Crítica a nível normativo: é constitucional? Por todo o impacto exposto neste documento para que tais propostas sejam propriamente analisadas, se faz imprescindível o olhar de acordo com a Constituição Federal de 1988, tanto no âmbito material quanto no formal. Princípios e direitos positivados na Constituição Federal dão o alicerce ao ordenamento jurídico brasileiro. O instituto da excludente de ilicitude e, por conseguinte, a legítima defesa se encontram tutelados por uma interpretação sistemática de dois direitos fundamentais: (i) o direito à vida; (ii) a segurança pública, e, consequentemente, pelos seguintes princípios: (i) princípio da razoabilidade e proporcionalidade (implícito) e (ii) princípio da dignidade da pessoa humana. O direito à vida está positivado na Constituição Federal, expresso no caput do artigo 5º, sendo o bem jurídico de maior essencialidade à proteção pelo direito penal. Este direito está disposto em seu sentido lato sensu, ou seja, abrange tanto a prerrogativa que o indivíduo tem de proteger a sua vida, quanto o direito de se ter uma vida digna, de acordo com os seus próprios 12 Legítima defesa da honra, quando relacionada aos casos de infidelidade conjugal, era uma tese defensiva comumente utilizada, tendo como base o art. 27 par. 4° do Código Penal Republicano de 1890, que previa não ser criminosos os que acharem-se em estado de completa privação dos sentidos e de inteligência no momento do ato do crime. 67 termos. Assim, o direito à vida deve ser entendido em consonância com o princípio da dignidade da pessoa humana, protegendo não apenas a vida biológica, mas também a vida digna, de acordo com os valores e peculiaridades de cada ser humano e grupo social. Quando falamos em dignidade da pessoa humana, englobamos o conceito de direitos fundamentais (direitos humanos positivados no ordenamento interno) e direitos humanos (no plano de declarações e convenções internacionais), constituindo um critério de unificação de todos os direitos inerentes aos seres humanos. O princípio da dignidade da pessoa humana consiste num dos pilares do Estado Democrático de Direito (Art. 1º, III da CF/88) e é um dos princípios fundamentais que norteiam a Constituição Federal de 1988, tratando-se de objetivo pelo Estado de assegurar que os direitos fundamentais dos cidadãos, tal como seu bem-estar na, sociedade sejam cumpridos. A legítima defesa se encontra sustentada pelo princípio da dignidade da pessoa humana e, portanto, tem por finalidade exatamente a proteção da vida – ou seja, proteção da integridade física frente a agressões injustas. A segurança pública, porém, também é um direito fundamental, positivado na Constituição Federal, sendo dever e monopólio do Estado assegurar um convívio social que permita aos indivíduos viverem em plenitude e seguros. Os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade são constitucionais e estabelecem que devem ser utilizados os meios necessários e suficientes para se alcançar o fim pretendido pelo exercício do direito penal, tendo em vista sua característica dogmática de ultima ratio. Assim, esses princípios se encontram positivados no instituto da legítima defesa, visto que apesar de existir a possibilidade da legítima defesa, esta não pode ser utilizada de forma desmedida – devem ser utilizados os meios razoáveis e proporcionais para repelir agressão injusta ou sua iminência. Entretanto, as propostas do Pacote Anticrime não se conformam com tais direitos e princípios. Em relação à proposta para o artigo 23, esta atenta diretamente contra o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, haja vista que não define parâmetros objetivos para a mudança do instituto. A medida, ao contrário, fere esses direitos, pois possibilita ao autor da conduta que faça uso da prerrogativa da legítima defesa para justificar a utilização de meios desarrazoados, ou seja, meios além do necessário para repelir ameaça, ferindo outros bens jurídicos. 68 Assim como a medida exposta acima, o acréscimo ao artigo 25 do Código Penal também fere o princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, visto que excepciona um grupo de profissionais sem qualquer fundamento razoável. A legítima defesa já abrange os casos nos quais os agentes policiais ou de segurança pública se encontrem em situações de conflito – pois é uma excludente de ilicitude para todos – sendo injustificável criar um tipo penal específico para tais situações. Essa proposta, para além de criar uma situação específica para agentes, também alarga o instituto da legítima defesa - expansão desarrazoada ao estabelecer requisitos subjetivos e que permitiram, como já afirmado, arbitrariedades no uso da força letal. Quanto à mudança na seara processual penal, percebe-se que vai de encontro ao dispositivo constitucional do art. 5º, LXI, que estabelece que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Logo, a Constituição coloca como uma das únicas exceções para a privação de liberdade do indivíduo sem o devido processo legal, a hipótese do flagrante delito (que poderá ser convertido em prisão preventiva/temporária). Nesse sentido, não seria permitido ao Código Penal dispor sobre a exceção criada pela Carta Magna – devendo, como norma infraconstitucional, se compatibilizar com seu conteúdo. O direito penal, além do que já fora discorrido, tem dentre os seus princípios o da reserva legal, que estabelece a possibilidade de responsabilização na seara penal somente se a conduta já estiver prevista no ordenamento jurídico antes da ocorrência do fato ilícito, ou seja, é necessária lei anterior que defina esta conduta como crime. A restrição inerente ao próprio campo penal existe pela possibilidade de aplicação de pena privativa de liberdade, a qual limita direitos fundamentais dos indivíduos. Para além da reserva legal, tem-se o princípio da taxatividade das leis penais, que define que o tipo penal deve ser claro e específico, com o intuito de suprimir possíveis subjetividades que levariam a abusos. Em relação ao aspecto formal das medidas, percebe-se que toda a proposta relacionada à legítima defesa se utiliza de elementos extremamente amplos, os quais podem gerar interpretações subjetivas. Isto, como já tratado, não é permitido pela sistemática do direito penal, pelo princípio da taxatividade, não se conformando, também, tal medida em seu aspecto formal. Os dispositivos do “Pacote Anticrime” que tratam sobre a legítima defesa apresentam uma clara violação aos direitos e garantias individuais, na medida em que atentam contra o direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana, como já demonstrado. Sendo 69 assim, não seria possível sequer uma proposta de emenda constitucional que versasse sobre tais matérias, pois alterar a Constituição nesse sentido proposto seria atentar contra parâmetros do próprio Estado Democrático de Direito. O Texto Constitucional se apresenta como um intrincado conjunto normativo, o qual deve fazer sentido quando se observado o todo. Portanto, percebe-se que tal proposta do “Pacote Anticrime” não se compatibiliza com a Carta Magna, em nenhum aspecto. 5. Há alternativa à proposta? O grupo em conjunto decidiu refutar a proposta, pois a medida em questão se mostra incabível no sentido em que os agentes de segurança pública acabam sendo mais incentivados a cometer crimes sem que haja responsabilização pelo ato. Portanto, essa subjetividade implícita no Pacote Anticrime, relacionada à atuação dos agentes de segurança pública, nos leva a crer que acaso essa proposta seja implantada, policiais terão proteção institucional aprofundada em casos de abusos e violência. Já restou demonstrado por esse grupo que a alteração do instituto da legítima defesa não irá criar situações novas de violências, pois estas já acontecem cotidianamente no Brasil – porém tem, sim, a capacidade de aprofundar abusos e impunidades. Sendo assim, o grupo não propõe alternativa à proposta do Pacote, mas, em contrapartida, sugere a retirada da hipótese de legítima defesa quando houver situações configuradas como “risco iminente”, previsto no tipo atual vigente. Isto porque a subjetividade do conceito de “risco iminente” vai ao encontro de diversas situações que podem ser abusivas. Partindo de um exemplo, pensamos que, se um agente de segurança observar uma situação que considerar não usual e utilizar de força para atuar preventivamente, poder-se-ia criar uma situação de brutalidade sem que houvesse a necessidade para tal. A título exemplificativo, presumindo que uma pessoa em direção ao agente leve este a imaginar que configura periculosidade – por, por exemplo, portar guarda-chuva confundido com um fuzil, conforme ocorrido em caso real -, simboliza isto uma situação que nos deixa certos de que o risco iminente é de extrema subjetividade e inerente a presunções que podem estar fundamentadas em preconceitos, estereótipos e imagens discriminatórias. Isto porque é sabido que em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal é um instrumento de controle social limitado. Ao definir quais são as condutas condenáveis, já demonstra que é um instrumento baseado na seleção e têm como características, em seu caráter 70 fragmentário, ser a ultima ratio do direito para proteção dos bens jurídicos mais importantes para o indivíduo e para a sociedade. O princípio da taxatividade, corolário do princípio da legalidade penal, implica que todas as leis devem ser formuladas da maneira mais clara, inequívoca e exaustiva possível, com o objetivo de que os seus destinatários - o cidadão e o juiz - possam compreendê-la. Nas palavras de Paulo César Busato, fazendo referências aos doutrinadores Antônio García-Pablos de Molina e Jesús María Silva Sánchez, as leis indeterminadas em seu conjunto por sua ambiguidade deliberada não permitem conhecer precisamente que condutas concretas são punidas, o que implica, de modo implícito, a renúncia do legislador à sua missão de definição dos comportamentos delitivos e uma remissão ao juiz para que se cumpra com tal labor.13 Em nosso Código Penal, o instituto da legítima defesa já está previsto, e, portanto, o uso moderado da força para repelir injusta agressão, contra si ou contra outrem, já fora previsto pelo legislador, não sendo punido o agente que se vale desses núcleos normativos. Sendo assim a expansão das causas justificativas do uso da força não se mostram necessárias. Essa ampliação apenas criaria insegurança jurídica, bem como aumentaria a vulnerabilidade daqueles que já sofrem as agruras das desastrosas intervenções policiais que mais se assemelham às políticas de higienização social. Em síntese, o que se pretende é fornecer mais escusas absolutórias para o uso imoderado e injustificado da força por parte dos agentes à serviço do Estado. Sendo assim, a retirada do termo “risco iminente” se demonstra constitucional na medida em que retira, na teoria, certa subjetividade do instituto já previsto, buscando tornar mais raros os casos em que a arguição da legítima defesa pode ocasionar injustiças. Exemplo da mencionada injustiça é a execução do músico Evaldo dos Santos Rosa, alvejado por mais de 200 tiros que, curiosamente, saíram de militares, os quais, de antemão, justificaram a ação afirmando que pensavam ser a vítima um assaltante.14/15 Pelos motivos expostos, o grupo optou não só pela rejeição da medida proposta no Pacote Anticrime, mas também pela retirada do termo risco iminente, já previsto no artigo 25 do Código Penal, haja vista a notável inconstitucionalidade no que tange ao princípio da reserva BUSATO, Paulo César, Direito penal: parte geral – 2. ed. – São Paulo: Atlas, 2015, p. 49 TV Globo. Delegado diz que “tudo indica” que Exército fuzilou carro de família por engano no Rio. Publicado em 08.04.2019. Disponível em: <https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/04/08/delegado-diz-quetudo-indica-que-exercito-fuzilou-carro-de-familia-por-engano-no-rio.ghtml; 15 DE OLIVEIRA, Gabriel Alex Pinto. Ninguém se engana 200 vezes. Publicado em 14.05.2019. Disponível em: <http://www.justificando.com/2019/05/14/ninguem-se-engana-200-vezes/> 13 14 71 legal e da legalidade. Estes, no âmbito do Direito Penal, têm o escopo de evitar a ocorrência de violências e arbitrariedades. Do mencionado princípio, alguns doutrinadores como Francisco de Assis16 seguem a linha de Reinhart Maurach, subdividindo-o em quatro subprincípios. São eles: i) nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; ii) nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; iii) nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; iv) nullum crimen, nulla poena sine lege certa. O último diz respeito à não existência de crime se a lei for imprecisa, genérica. Portanto, pode-se dizer que tanto as expressões usadas na medida proposta (escusável medo, surpresa ou violenta emoção), quanto a expressão “risco iminente” vão de encontro ao exposto em tal subprincípio, uma vez que carecem de conceituação em lei, e culminam em uma já mencionada subjetividade. Ademais, a “prevenção” que o artigo e a proposta pretendem alcançar está em sentido contrário à ultima ratio do Direito Penal, ideia prevista no princípio da intervenção mínima, o qual determina que a lei penal será utilizada apenas em último caso. Do mencionado princípio conclui-se, portanto, que o Direito Penal só deve ser aplicado quando houver efetiva lesão ao bem jurídico tutelado, não podendo ser utilizado tão somente para preveni-la. Desta forma, a ideia do grupo é evitar que a violenta atuação policial resulte em mais mortes, propondo, assim, a mencionada medida. Esta, diferentemente da medida proposta pelo Ministro Sérgio Moro, mostra-se absolutamente constitucional, na medida em que observa os princípios da legalidade e da reserva legal, e, por fim, respeita a ultima ratio do Direito Penal. 16 TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios Básicos de Direito Penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1994. p. 21. 72 MEDIDA V – ENDURECIMENTO DO CUMPRIMENTO DE PENAS Sob coordenação de: José Carlos Abissamra Filho e Natália Di Maio Elaborado por: Alan Medeiros Pessoa, Gabriel Bassoto, Laura Ferrari Vieira, Leandro Araújo, Mariana Loffredo Hallgren e Marcos Vinícius da Silva As presentes considerações inserem-se dentro de um projeto produzido em um espaço aberto pelo Centro Acadêmico 22 de Agosto (PUC/SP), cuja proposta é elaborar textos autônomos contendo estudos e críticas sobre as medidas do chamado “Projeto de Lei Anticrime” lançado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. A elaboração do presente trabalho deu-se pelas alunas e alunos da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo vinculados ao presente projeto de estudo crítico, sob a supervisão dos profissionais José Carlos Abissamra Filho e Natália Di Maio. Coube ao presente grupo a análise do Tópico V (Medidas para endurecer o cumprimento das penas) do “Projeto de Lei Anticrime”. Passa-se a expor o resultado da análise. 1. A exposição de motivos das medidas previstas no “Projeto de Lei Anticrime” Em mensagem enviada ao Congresso Nacional1, o Ministro da Justiça justificou o motivo de propor referido Projeto de Lei. No seu entender, o Brasil enfrenta a pior fase de sua história no tocante à corrupção e criminalidade, o que seria corroborado pela decaída do país no ranking da Transparência Internacional. Disse, ainda, o Ministro, que a criminalidade não só poria em risco a própria existência do Estado, pois o crime mata os próprios agentes estatais, mas impediria investimentos em políticas públicas, em razão dos custos que seu combate exige. Ainda, alegou que, ao contrário do que a sociedade esperava, a prisão de conhecidas figuras políticas não estancou a corrupção. 1 .https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=B8B620F5D1C710CD78F60BA0 B659F0C0.proposicoesWebExterno1?codteor=1712111&filename=Tramitacao-PL+882/2019, acesso em 15.10.2019, às 11h59’. 73 Todo esse cenário colocaria o Brasil diante de uma nova realidade no que tange à corrupção, ao crime organizado e à segurança pública e, portanto, demandaria a renovação do ordenamento jurídico2. No tópico V do Projeto de Lei (Medidas para endurecer o cumprimento das penas), prevê-se inclusões em artigos do Código Penal, da Lei nº 8.072/1990 e da Lei nº 12.850/2013. Fala-se em inclusões, e não alterações propriamente ditas, pois nenhum dos dispositivos teria seu caput modificado, mas apenas parágrafos adicionais ao texto posto, voltados ao que o Ministro entende por endurecimento do cumprimento das penas3. De acordo com o Ministro da Justiça, o Código Penal, datado de 1940, seria obsoleto em relação à conjuntura da criminalidade atual. É com base nessas premissas que o Ministro propôs as medidas, as quais serão analisadas. 2. Impropriedades dos títulos eleitos pelo Ministro da Justiça: projeto de lei “Anticrime” e as medidas para “endurecer o cumprimento das penas” O autointitulado “Projeto de Lei Anticrime”, lançado pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, tem uma carga de marketing ao mesmo estilo da tão propagada Operação Lava Jato. Não à toa, o Ministro da Justiça é egresso dos bancos da também autointitulada Operação Java Jato. Sobre dar ao Projeto de Lei o título de “Anticrime”, nem Jakobs, em seus estudos através dos quais elaborou o Direito Penal do Inimigo, teve essa presunção, para não dizer desonestidade intelectual ou irresponsabilidade antidemocrática, pois, segundo o próprio autor: “não se trata de que não ocorram ulteriores delitos – um propósito que, levado a sério, é totalitário em vários sentidos – mas de manter a vigência da norma (tradução livre)”4. No mesmo sentido, quando, no Tópico V do “Projeto de Lei”, vale-se do título Medidas para endurecer o cumprimento das penas, vale-se da mesma lógica. . O Ministro ignora a complexidade do assunto, tratando como se fosse simplesmente um slogan (“Conceitos de grande utilidade nesse setor são “Máfia” e “crime organizado”. Sua extraordinária vagueza os torna úteis como slogans para representar todo tipo de força do mal. São palavras úteis em uma guerra travada por um Estado convenientemente enfraquecido” – CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução, apresentação e notas: André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011 – Pensamento criminológico; 17, 1ª reimpressão, março de 2013, p. 69/70. 3 Falar-se-á logo abaixo sobre a impropriedade do termo endurecimento quando se refere ao cumprimento das disposições legais. 4 JAKOBS, Günther. La Pena Estatal: Significado y Finalidad. Traducción y estudio preliminar: Manuel Cancio Meliá y Bernardo Feijoo Sánchez (Universidad Autónoma de Madrid). Thomson Civitas, 2006, p. 134. 2 74 É inapropriado falar em endurecimento do cumprimento das penas. Com efeito, cumprese penas previstas em lei na exata medida da legalidade, afinal, segundo o art. 5º, II, da Constituição Federal de 1988, “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Nesse sentido, o cumprimento é um só; cumpre-se o que está determinado na lei. Falar em endurecer o cumprimento das penas parece, nesse contexto, slogan de conteúdo eufêmico barato, algo que mais confunde do que esclarece, em sentido contrário ao determinado pelos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (arts. 5º, XXXIX, e, 37, caput, da Constituição Federal de 1988). Feitas essas considerações iniciais, adentramos às propostas, indicando em dois quadros o texto atual da lei e as propostas do chamado “Projeto de Lei Anticrime”, atendo-nos somente ao Tópico V (Medidas para endurecer o cumprimento das penas). Vejamos. 3. Considerações sobre as medidas previstas no “Projeto de Lei Anticrime” Tópico V (Medidas para endurecer o cumprimento das penas) Código Penal Vigente “Projeto de Lei Anticrime” Reclusão e detenção Art. 33 – A pena de reclusão deve ser cumprida em regime fechado, semi-aberto ou aberto. A de detenção, em regime semi-aberto, ou aberto, salvo necessidade de transferência a regime fechado. § 1º – Considera-se: a) regime fechado a execução da pena em estabelecimento de segurança máxima ou média; b) regime semi-aberto a execução da pena em colônia agrícola, industrial ou estabelecimento similar; c) regime aberto a execução da pena em casa de albergado ou estabelecimento adequado. § 2º – As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado; b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumprila em regime semi-aberto; 75 c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto. §3º – A determinação do regime inicial de cumprimento da pena far-se-á com observância dos critérios previstos no art. 59 deste Código. § 4º – O condenado por crime contra a administração pública terá a progressão de regime do cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do produto do ilícito praticado, com os acréscimos legais. “§ 5º – No caso de condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o regime inicial da pena será o fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas ou de reduzido potencial ofensivo. § 6º – No caso de condenados pelos crimes previstos nos arts. 312, caput e § 1º, art. 317, caput e §1º, e art. 333, caput e parágrafo único, o regime inicial da pena será o fechado, salvo se de pequeno valor a coisa apropriada ou a vantagem indevida ou se as circunstâncias previstas no art. 59 lhe forem todas favoráveis. § 7º – No caso de condenados pelo crime previsto no art. 157, na forma do § 2º-A e do §3º, inciso I, o regime inicial da pena será o fechado, salvo se as circunstâncias previstas o no art. 59 lhe forem todas favoráveis”. A breve introdução acima foi importante para fixar a tônica da “Projeto de Lei Anticrime”. Trata-se de um “Projeto de Lei” elaborado por quem nunca se deu bem com as amarras da lei. Ao se analisar o “Projeto de Lei Anticrime” o que se percebe é que não se trata de projeto de segurança pública ou de política criminal5, mas de simples projeto de alteração legislativa para conferir mais poderes aos juízes, em violação ao pacto republicano (art. 2º da Constituição Federal), eis que transfere deliberadamente a função de legislar ao Poder Judiciário, violando, além da própria estrutura democrática, o princípio da legalidade (arts. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988). É com esse objetivo que o §5º acima tenta inserir no sistema jurídico pátrio conceitos inexistentes, mas que alargam o princípio da legalidade para que o Direito Penal fique mais manipulável, de forma que o juiz do caso concreto não tenha que observar somente o que está . Para aprofundar a discussão, conferir: ROXIN, Claus. Política criminal e sistema jurídico-penal. 2ª tiragem – janeiro 2012. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; e, ROXIN, Claus. Tem futuro o direito penal? In: Estudos de Direito Penal. 2ª ed. Tradução de Luís Greco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 1/30. 5 76 previsto em lei. Então, uma das propostas é a seguinte: “§ 5º – No caso de condenado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o regime inicial da pena será o fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas ou de reduzido potencial ofensivo.” – grifos nossos Significa o seguinte: nas situações indicadas, o regime será o fechado, salvo se insignificantes as infrações pretéritas ou de reduzido potencial ofensivo. Bem, a jurisprudência vem discutindo as infrações insignificantes (o que indica algum parâmetro para a fixação da pena), mas o mesmo não vale para infrações penais de reduzido potencial ofensivo, pois não existe esse conceito no sistema jurídico penal pátrio; referido conteúdo jurídico terá que ser definido pelos valores6 pessoais de cada juiz ao aplicar a lei, vez que referido conceito (infrações penais de reduzido potencial ofensivo) não tem base em dogmática ou legislação pretérita. O que se percebe da proposta de §5º acima é que o Ministro da Justiça quer romper com a tradição do legislador pátrio, tentando inaugurar conceitos jurídicos penais novos, como se toda a dogmática (produção de conhecimento jurídico a partir da jurisprudência e de estudos acadêmicos) fosse irrelevante frente às suas propostas. Mais. O Ministro equiparou reincidência (conceito clássico de Direito Penal) a criminalidade habitual, reiterada ou profissional (conceitos utilizados pelos tribunais para definir manutenção de ordem pública, tema do Direito Processual Penal), confundindo essas áreas do Direito que, a despeito de serem complementares, são absolutamente distintas, com regimes jurídicos diversos. Confundindo ainda mais os conceitos jurídicos com outros que não dizem respeito a nenhum deles, incluiu no mesmo parágrafo crimes de bagatela com infrações de menor potencial ofensivo, criando ainda uma categoria inexistente de crimes, os de reduzido potencial ofensivo. Ora, não existe no sistema jurídico pátrio o crime de reduzido potencial ofensivo. Para muito além da má técnica jurídica, o que o Ministro está propondo é a criação de conceitos jurídicos novos, cujos conteúdos terão necessariamente que ser preenchidos pelos valores pessoais de cada juiz ao aplicar a lei, vez que referidos conceitos não têm base em Segundo Paulo de Barros Carvalho: “E, sendo o direito um objeto da cultura, invariavelmente penetrado por valores, teremos, de um lado, as estimativas, sempre cambiantes em função da ideologia de quem interpreta, de outro, os intrincados problemas que cercam a metalinguagem, também içada de dúvidas sintáticas e de problemas de ordem semântica e pragmática” – CARVALHO, Paulo de Barros. Direito tributário: linguagem e método. 6ª edição. São Paulo: Noeses, 2015. p. 195. 6 77 dogmática ou legislação pretérita, o que fatalmente retirará o pouco que resta da racionalidade ao Direito. Se o Ministro pretende criar sozinho categorias novas para o Direito, precisa refletir muito mais sobre os temas propostos. Por exemplo, se pretende propor a criação dos crimes de reduzido potencial ofensivo, precisa elaborar um estatuto legal desses crimes (se é que é possível, constitucionalmente falando), como foi feito com os crimes de menor potencial ofensivo, os quais, em verdade, não eram novidade nenhuma, pois tinham previsão constitucional (art. 98 da Constituição Federal de 1988), sendo que somente foram regulamentados pela Lei nº 9.099/95. No Direito, não existe a criação de conceitos do zero, absolutamente do nada. O Direito é um mover-se para frente, claro, mas sempre a partir de algo que já existe7. A inserção abrupta desses novos conceitos – com algum sentido político (lato sensu), mas sem nenhum sentido jurídico – no Código Penal mais retira a racionalidade do Direito, confundindo aquilo que tem algum sentido, do que aprimora, passando ao largo dos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (arts. 5º, XXXIX, e, 37, caput, da Constituição Federal de 1988). O que estamos discutindo, data máxima vênia, a partir do chamado “Projeto de Lei Anticrime”, não é um projeto de segurança pública ou de política criminal, como propagou o Ministro, mas uma preferência pessoal sua sobre determinados assuntos, o que, a nosso ver, é violar os princípios mais comezinhos da administração pública (art. 37, caput, da Carta Magna). Com relação aos §6º e §7º, o Ministro, mais uma vez, ignorando a dogmática e a construção jurisprudencial da sistemática jurídica brasileira, insiste na lógica, já rechaçada diversas vezes pela Suprema Corte, de violar a individualização da pena – como cediço por todos, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º, §1º da Lei nº 8.072/90 no Habeas Corpus 111.840/ES. Sobre esse tema, tanto doutrina quanto jurisprudência já se debruçaram diversas vezes, culminando no posicionamento indicado do Supremo. Por isso, limitamo-nos a direcionar o assunto, sem, no entanto, aprofundá-lo, em prol da objetividade. 7 . A esse respeito, vale conferir: DWORKIN, Ronald. Taking Rights Seriously. Bloomsbury, 2013; e, HART, H. L. A. The concept of law. Third Edition. With an Introduction by Leslie Green. Oxford: Oxford University Press, 2012; dentre vários outros autores, inclusive nacionais. 78 Vejamos a segunda alteração prevista no “Projeto de Lei Anticrime” para o Código Penal: inclusão do parágrafo único ao artigo 59, que passaria a ter a seguinte redação: Código Penal Vigente “Projeto de Lei Anticrime” Fixação da pena Art. 59 – O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: I – As penas aplicáveis dentre as cominadas; II – A quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III – O regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV – A substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. “Parágrafo único. O juiz poderá, com observância dos critérios previstos neste artigo, fixar período mínimo de cumprimento da pena no regime inicial fechado ou semiaberto antes da possibilidade de progressão". Aqui, mais uma vez, os vícios de quem não gosta dos limites, das amarras da lei. O parágrafo único acima tem exatamente esse objetivo: dar aos juízes a possibilidade de aplicarem penas não previstas em lei. A temática dos fins ou fundamentos da pena é uma das mais antigas do Direito Penal. Doutrinadores pátrios têm excelentes estudos sobre o tema8, assim como reconhecidos doutrinadores internacionais9, tratando sobre necessidade da pena e sua aplicação justamente em função da necessidade, limitada pela culpabilidade. Novamente, o Ministro ignora toda a produção de conhecimento jurídico penal para propor, simplesmente, que o juiz poderá fixar período mínimo de cumprimento da pena. O “Projeto de Lei” viola o pacto republicano (art. 2º da Constituição Federal) e o próprio princípio da legalidade (arts. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988). Com efeito, a ideia seria deixar o juiz livre para fixar as penas que bem entender, de acordo com critérios 8 . Por todos: JUNQUEIRA, Gustavo Octaviano Diniz; MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Os fins da pena no Código Penal Brasileiro. In: Boletim Ibccrim, ano 14, nº 167, outubro, 2006, p. 18. 9 . Segundo Roxin: “a punição de comportamentos culpáveis é restringida por exigências preventivas, e a punição fundada em exigências preventivas é limitada pelo princípio da culpabilidade” – ROXIN, Claus. Sobre a fundamentação politico-criminal do sistema jurídico – penal. In ROXIN, Claus. Estudos de direito penal – 2ª ed. / Claus Roxin; tradução de Luis Greco. - Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 98. 79 pragmáticos que não se conformam com a nossa estrutura democrática. O Direito Penal brasileiro, assim como praticamente todos os países ocidentais 10, exige previsibilidade11. Os poderes de punir não ficam somente nas mãos dos juízes. É esse o sentido do tão antigo princípio da legalidade: art. 5º, XXXIX, da Constituição Federal de 1988 – não há crime sem LEI anterior que o defina, nem PENA sem prévia cominação LEGAL. A questão é: Uma lei que determinasse que o juiz poderá fixar período mínimo de cumprimento da pena não deveria nem ser tratada como lei, pois seria uma lei sancionada para simplesmente retirar a força da lei. Ora, se uma lei determina que o juiz poderá fixar período mínimo de cumprimento da pena, então não seria mais necessária qualquer outra lei, pois quem decidiria a respeito da pena seria o juiz e ponto. Trata-se de lógica circular estabelecendo somente uma fonte de poder, o Poder Judiciário. Nenhuma república democrática em que impera o princípio da legalidade e a divisão dos poderes convive bem com esse tipo de determinação legal. Os limites da pena são fixados em lei, nos exatos termos do princípio da legalidade. O Juiz não cria a lei ou a pena, mas simplesmente aplica a pena estabelecida em lei. E a lei somente pode ser considerada como tal se for fruto de processo legislativo elaborada na casa legislativa, composta por representantes eleitos pelo povo por sufrágio universal. Mas não é só. Lei dos Crimes Hediondos (Lei n° 8.072/1990) “Projeto de Lei Anticrime” Art. 2º Os crimes hediondos, a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo são insuscetíveis de: I – Anistia, graça e indulto; II – Fiança. §1º A pena por crime previsto neste artigo será cumprida inicialmente em regime fechado. §2º A progressão de regime, no caso dos condenados pelos crimes previstos neste artigo, dar-se-á após o cumprimento de 2/5 (dois quintos) . Tomamos de empréstimo o termo “ocidental” utilizado por Silva Sánchez: “Sem prejuízo de estudos mais concretos a respeito, por ora me inclino a recorrer ao termo ambíguo ‘o ocidental’ para designar a comunidade de sujeitos na qual nos encontramos compreendidos” – SILVA SÁNCHEZ, Jesus-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. Op cit., p. 113/114. 11 . “As I watched Comey’s testimony, I was struck by how two groups of people could look at the same acts of a person and have such polarizing views as to whether or not a criminal act had occurred. Politics aside, we need to have more of a consensus on what constitutes a crime.” (PAVLO, Walt. Politics aside, americans seem confused on what is and what is not a crime. In: Compliance & Enforcement (a blog sponsored by NYU Law's Program on Corporate Compliance and Enforcement). Posted on July 11, 2016 by Serina M. Vash – Disponível em: <https://wp.nyu.edu/compliance_enforcement/2016/07/11/politics-aside-americans-seem-confused-on-what-isand-what-is-not-a-crime/>. Acesso em: 16 jul. 2016, às 13h42min. 10 80 da pena, se o apenado for primário, e de 3/5 (três quintos), se reincidente, observado o disposto nos §§ 3º e 4º do art. 112 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984 (Lei de Execução Penal). §3º Em caso de sentença condenatória, o juiz decidirá fundamentadamente se o réu poderá apelar em liberdade. §4º A prisão temporária, sobre a qual dispõe a Lei no 7.960, de 21 de dezembro de 1989, nos crimes previstos neste artigo, terá o prazo de 30 (trinta) dias, prorrogável por igual período em caso de extrema e comprovada necessidade. “§5º – A progressão de regime, no caso dos condenados aos crimes previstos neste artigo, dar-se-á somente após o cumprimento de 3/5 (três quintos) da pena quando o resultado envolver a morte da vítima. §6º – A progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir. §7º – Ficam vedadas aos condenados, definitiva ou provisoriamente, por crimes hediondos, de tortura ou de terrorismo: I – Durante o cumprimento do regime fechado, saídas temporárias por qualquer motivo do estabelecimento prisional, salvo, excepcionalmente, nos casos do art. 120 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, ou para comparecer em audiências, sempre mediante escolta; e II – Durante o cumprimento do regime semiaberto, saídas temporárias por qualquer motivo do estabelecimento prisional, salvo, excepcionalmente, nos casos do art. 120 da Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984, ou para comparecer em audiências, sempre mediante escolta, ou para trabalho ou para cursos de instrução ou profissionalizante”. Não obstante a proposta de aumento do tempo de cumprimento da pena no regime fechado – como se as penas para os referidos crimes não fossem já de longa duração – o que mais chama atenção nesse tópico é a vontade de prever o futuro, conforme se vê no §6º: “A progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir” – grifo nosso. Ora, o Direito Penal pode olhar para o futuro – quando se fala, por exemplo, em prevenção como fundamento da pena; ou quando parte da premissa de que o Direito pretende regular a sociedade para que se dirija a uma dada direção –, mas esse não é um tema fácil. 81 Não há como condicionar (ou, subordinar, para utilizar o verbo da “Projeto de Lei Anticrime”) a progressão de regime “à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir”, pois ninguém conseguirá avaliar se a pessoa voltará ou não a delinquir – um propósito que se levado a sério, como disse Jakobs, “é totalitário em vários sentidos (tradução livre)”12. O que a lei deve fazer é fixar critérios objetivos, os quais cumpridos, levarão necessariamente à progressão de regime. O contrário é manter – frente à impossibilidade de se constatar condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir – a pessoa presa o tempo inteiro no regime fechado, o que violaria toda a estrutura penal do nosso sistema jurídico pátrio. Com relação à vedação das chamadas “saidinhas” para determinados crimes (§7º), referida proposta seria muito mais aproveitável se viesse lastreada em dados e estudos sobre aonde se pretende chegar com essa medida. Tradicionalmente, o sistema jurídico brasileiro executa a pena de forma progressiva, e as chamadas “saidinhas” são fundamentais para o restabelecimento dos laços daquele que está cumprindo pena com a sociedade à qual, cedo ou tarde, retornará. A justificativa do Ministério da Justiça e Segurança Pública quanto a esse ponto é, mais uma vez, pouco articulada e sem embasamento. Por fim, a mudança na Lei de Organização Criminosa faria com que o artigo 2º tivesse novos parágrafos, 8º e 9º, assim dispostos: Lei de Organizações Criminosas (Lei n° 12.850/2013) “Projeto de Lei Anticrime” Art. 2º – Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa. § 2º As penas aumentam-se até a metade se na atuação da organização criminosa houver emprego de arma de fogo. 12 . JAKOBS, Günther. La Pena Estatal: Significado y Finalidad. Traducción y estudio preliminar: Manuel Cancio Meliá y Bernardo Feijoo Sánchez (Universidad Autónoma de Madrid). Thomson Civitas, 2006, p. 134. 82 § 3º A pena é agravada para quem exerce o comando, individual ou coletivo, da organização criminosa, ainda que não pratique pessoalmente atos de execução. § 4º A pena é aumentada de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços): I – Se há participação de criança ou adolescente; II – Se há concurso de funcionário público, valendo-se a organização criminosa dessa condição para a prática de infração penal; III – Se o produto ou proveito da infração penal destinar-se, no todo ou em parte, ao exterior; IV – Se a organização criminosa mantém conexão com outras organizações criminosas independentes; V – Se as circunstâncias do fato evidenciarem a transnacionalidade da organização. §5º – Se houver indícios suficientes de que o funcionário público integra organização criminosa, poderá o juiz determinar seu afastamento cautelar do cargo, emprego ou função, sem prejuízo da remuneração, quando a medida se fizer necessária à investigação ou instrução processual. §6º – A condenação com trânsito em julgado acarretará ao funcionário público a perda do cargo, função, emprego ou mandato eletivo e a interdição para o exercício de função ou cargo público pelo prazo de 8 (oito) anos subsequentes ao cumprimento da pena. §7º – Se houver indícios de participação de policial nos crimes de que trata esta Lei, a Corregedoria de Polícia instaurará inquérito policial e comunicará ao Ministério Público, que designará membro para §8º – As lideranças de organizações criminosas acompanhar o feito até a sua conclusão. armadas ou que tenham armas à disposição deverão iniciar o cumprimento da pena em estabelecimentos penais de segurança máxima. §9º – O condenado por integrar organização criminosa ou por crime praticado através de organização ou associação criminosa não poderá progredir de regime de cumprimento de pena ou obter livramento condicional ou outros benefícios prisionais se houver elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”. Aqui, não há como não citar Nils Christie ao tratar de máfia: “Conceitos de grande utilidade nesse setor são ‘Máfia’ e ‘crime organizado’. Sua extraordinária vagueza os torna úteis como slogans para representar todo tipo de força do mal. São palavras úteis em uma guerra travada por um Estado convenientemente enfraquecido”13. 13 . CHRISTIE, Nils. Uma razoável quantidade de crime. Tradução, apresentação e notas: André Nascimento. Rio de Janeiro: Revan, 2011. (Pensamento criminológico; 17), 1ª reimpressão, março de 2013, p. 69/70. 83 Como é que se vai aferir a existência ou não de “elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”? Vai-se instaurar um inquérito policial durante a fase de execução da pena para verificar se há ainda “elementos probatórios que indiquem a manutenção do vínculo associativo”? Porque, a rigor, a depender desse grau de manutenção do vínculo associativo, haverá outro crime de organização criminosa e, nesse caso, não se estará a tratar de execução da pena, mas de apurar um novo crime. Confundiu, novamente, o Ministro, conceitos jurídicos e fases processuais distintas, algo que não é apropriado. Ante a vagueza do “Projeto de Lei Anticrime”, a carência de sentido jurídico em suas propostas, o rompimento com instituto jurídicos clássicos – clássicos em quase todas as democracias ocidentais – além de problemas elementares de ordem técnica e várias violações à Constituição Federal de 1988, há necessidade de muito mais reflexão sobre as propostas do “Projeto de Lei Anticrime”. Mesmo George L. Kelling, Catherine M. Coles14 e James Q. Wilson15, nos EUA, basearam-se em muito mais dados para elaborar as propostas que elaboraram, muito diferente do que se está a fazer lançando simplesmente um “Projeto de Lei” de meras preferências pessoais. 4. Conclusões O chamado “Projeto de Lei Anticrime” tem inspiração totalitária: ao valorizar slogans sem respectivo conteúdo jurídico; ao tentar diminuir o poder do Poder Legislativo em relação aos Poderes Executivo e Judiciário (violação ao pacto republicano); ao tentar impor-se sem discussão, sem base em dados; ao tentar impor-se de forma abrupta, como se conceitos jurídicos pudessem legitimar-se a partir do zero de sentido, por simples preferências pessoais do Ministro; ao ignorar princípios e conceitos consagrados pelas democracias ocidentais, de uma forma geral. O presente estudo conclui, portanto, que as propostas contidas no “Projeto de Lei Anticrime” não são propriamente de segurança pública ou de política criminal, mas propostas de alguém que em algum momento da vida teve dificuldades com a lei enquanto conduzia 14 . KELLING, George L.; COLES, Catherine M. Fixing broken windows: restoring order and reducing crime in our communities. Foreword by James Q. Wilson. New York: A touchstone book published by Simon & Schuster, 1996. 15 . WILSON, James Q. Thinking about crime. With a new foreword by Charles Murray. Revised edition. New York: Basic Books, a member of the Perseus Books Group, 2013. 84 trabalho que se propunha jurídico. Ainda que superada a questão com as amarras da legalidade e do pacto republicano, o chamado “Projeto de Lei Anticrime” carece de um mínimo de técnica jurídica, de estudos, diálogo com a sociedade e base em dados oriundos de pesquisas especializadas. Como se não bastasse, confundir conceitos tradicionais do Direito Penal com conceitos em construção pela jurisprudência em matéria de Processo Penal e, esses dois, com categorias de crimes inexistentes, é inapropriado, por conta da distinção de regimes legais de tratamento, além da inexistência de base teórica para receber as novidades, o que aumentará, em muito, o arbítrio já amplamente reinante em nosso sistema jurídico, o qual padece justamente de insegurança jurídica - nenhum sistema jurídico sobrevive sem estabilidade e previsibilidade, ou seja, segurança jurídica. O Direito não se faz do dia para a noite, assim como as estruturas e os regimes jurídicos/políticos não nascem do zero. No nosso entendimento, o Ministro da Justiça faria bem se retirasse o projeto de lei encaminhado ao Congresso para melhor reflexão antes de movimentar toda a máquina burocrática. Afinal, obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput, CF/88) é dever de todos os agentes públicos. 85 MEDIDA VI – ALTERAÇÃO DO CONCEITO DE ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA Sob coordenação de Fábio Tofic Simantob e Gabriela Magalhães T. Oliveira Elaborado por Brunna Machado Torresan, Giulia Gianini Perrella, Gustavo Neno Altman, Jorge Tarcha Neto e Pedro Simões Pião Neto A eleição de Jair Messias Bolsonaro para presidente da República em 2018 foi orientada por uma campanha eleitoral intensamente fundamentada em propostas populistas, punitivistas e destoantes da doutrina jurídico-criminal para a segurança pública. Dessa forma, não tardou para Sérgio Moro, Ministro da Justiça, apresentar o Projeto de Lei Anticrime, o qual pretende alterar 14 legislações dispostas nos Códigos Penal e de Processo Penal. Entre as propostas do Projeto de Lei Anticrime, popularmente conhecido como Pacote Anticrime, está a alteração do tipo penal previsto no § 1º, do artigo 1º da Lei 12.580/90, que caracteriza o delito de organização criminosa. A redação vigente, afinada com os parâmetros estabelecidos pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, traz a seguinte redação: Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. No entanto, o projeto de Lei pretende substituí-la por: Art.1o.......................................................... §1º Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que: I - tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos; II - sejam de caráter transnacional; ou III - se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas. Diante da relevância do projeto, necessário analisar a alteração proposta sob a perspectiva não só de sua constitucionalidade, mas também dos efeitos que trará nas searas penal e processual penal. 86 1. Vício constitucional: a impropriedade da inclusão de nomes próprios na norma O Estado Democrático de Direito regido pela Carta Política de 1988 possui como fim primeiro garantir o livre exercício dos direitos individuais e sociais a partir da constitucionalização de princípios os quais regulam, concomitantemente, a ação do Estado e do administrado. É, dessa forma, crucial para a manutenção dos direitos e garantias fundamentais a efetividade e concretude dos princípios norteadores do ordenamento jurídico, como o princípio da separação dos poderes, o princípio da igualdade e o princípio da individualização da pena. O Projeto de Lei Anticrime, ao incluir nomes os nomes próprios de facções criminosas no texto legal, rompe com o pacto federativo democrático visto que viola o disposto por estes preceitos constitucionais. O primeiro ponto a ser apontado é que a alteração seria prejudicial à separação de poderes. Rege a doutrina constitucional que, para o funcionamento pleno do Estado Democrático de Direitos, é essencial que os poderes estejam fragmentados, funcionando de forma harmônica e independente, de modo a evitar a usurpação do poder por meio do controle recíproco dos demais. Neste sentido, como a aplicação das normas e o enquadramento jurídico dos fatos é atribuição típica do poder Judiciário, não poderia o Poder Legislativo editar norma que fizesse este trabalho. Em outras palavras, a subsunção dos fatos à norma é tarefa do Judiciário e a nomeação de facções no texto normativo violaria esta função. Há, portanto, um desalinhamento notório entre o padrão normativo empregado na estrutura formal de normas penais e a alteração proposta pelo Ministro. Não obstante, as leis, por definição constitucional, devem ser aplicadas a todos visto seu caráter geral, de forma impessoal, dado seu caráter abstrato. Isso, pois, a norma penal, alicerçada ao princípio constitucional da igualdade, não pode ser agente de favoritismos ou perseguições pessoais através da figura do Estado. Assim, a identificação nominal de grupos criminosos rompe com a impessoalidade da norma e com a própria principiologia dos tipos penais, que objetivam a descrição de conduta a qual se atribui uma pena. Não é outra a orientação de Beccaria, personagem cuja obra funda o Direito Penal Moderno. (...) o soberano, que representa a própria sociedade, só pode fazer leis gerais, às quais todos devem submeter-se; não lhe compete, porém, julgar se alguém violou essas leis 1 1 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e das Penas. 3ª ed. São Paulo: Edijur, 2012, p. 24. 87 Soma-se a estas sucessivas rupturas de princípios constitucionais a absoluta violação ao princípio da individualização da pena. Previsto no Art. 5º, inciso XLVI, da Constituição Federal, este princípio disciplina que a aplicação e quantificação pena considerará as peculiaridades do fato concreto subsumido ao tipo em questão. Deste modo, presume-se que o tipo penal descreva uma conduta que, ao ser identificada, comine uma pena equivalente e proporcional ao ato praticado pelo agente. Ao incluir os diversos nomes de facções criminosas no tipo penal, o Projeto de Lei Anticrime imprime uma lógica binária ao tipo: pertence ou não pertence à organização especificada, violando o princípio da individualização da pena. A alteração pretendida, portanto, nos remete à lógica do Direito Penal do Autor, caracterizado pela punição da pessoa por quem ela é não pelo fato que cometeu, cuja superação foi um marco importante para a consolidação do Estado Democrático de Direito. Deste modo, é evidente a transgressão normativa a nível constitucional da inclusão de nomes próprios na norma. 2. Consequências não declaradas: expansão da abrangência do tipo penal Ao se propor a alteração típica do conceito jurídico-penal de organização criminosa, o projeto de lei perpassa por um problema caro às balizas que regem o Direito Penal: a excessiva abrangência do tipo penal, com uma inerente falta de clareza conceitual. Não há qualquer precisão quanto ao conteúdo e alcance da norma, de modo ser possível que se enquadrem no tipo não apenas as facções criminosas, como as bizarramente enumeradas, mas também outros grupos. Ao reorganizar o texto original e separar as condições - que antes eram cumulativamente necessárias para o enquadramento no tipo penal - em incisos, a nova norma reduz os requisitos necessários para a caracterização de organização criminosa, bastando que seja aplicável apenas uma das hipóteses para a sua configuração. Para o Anteprojeto, portanto, bastaria que os grupos “se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas”, para se enquadrarem ao novo tipo penal. As condicionantes pouco precisas de “força de intimidação”, “adquirir controle de atividade econômica” e “outras associações como 88 localmente denominadas” quando associadas, permitem que uma gama grande grupos possam ser caracterizados como organizações criminosas. Disso tudo, infere-se um evidente desrespeito ao princípio da taxatividade, eis que se trata de uma norma imperfeita por não apresentar conteúdo legal certo. Explica Guilherme Nucci2 sobre o tema: Um crime deve estar descrito em lei, mas bem detalhado (taxativo), de modo a não provocar dúvidas e questionamentos intransponíveis, bem como sendo possível visualizar uma ofensa a bem jurídico tutelado, agindo o autor com dolo ou culpa. Não seria causa de estranhamento, ante à falta de taxatividade do texto legal, que, em tempos de ataques ao Estado Democrático de Direito, movimentos políticos, partidos e até mesmo empresas fossem abarcados pelo pretenso novo conceito de organização criminosa. Nesse exato sentido posicionaram-se Beatriz Corrêa Camargo e Renato de Mello Jorge Silveira3: Assim, na medida em que a proposta retira da definição de organização criminosa a exigência de que a estruturação do grupo seja voltada à prática de crimes, a norma deixa de ter por objeto uma lesão de direitos alheios minimamente reconhecível no contexto dado. Afinal de contas, qual perigo (abstrato) de lesão estaria exatamente envolvido no fato de se pertencer a um grupo que se vale da “força de intimidação” do vínculo associativo para adquirir o controle sobre uma atividade econômica? A descrição é tão difusa que dá a impressão de tratar de um crime contra a ordem econômica. Constitui, nesse sentido, mais uma janela para expandir a criminalização da atividade empresarial e político-partidária. Não custa lembrar que o enquadramento enquanto organização criminosa permite a aplicação de métodos específicos de produção de prova bastante invasivos e não usualmente permitidos, previstos no artigo 3º da Lei 12.850/13. É o caso da infiltração de agentes e da ação controlada que poderão ser usados, portanto, em uma gama não especificada de grupos sociais e políticos, representando um grave retrocesso. 3. Delitos de organização: a antecipação da tutela penal do Estado O processo penal, para além de sua função instrumental-repressiva, cumpre a função de regrar a atuação estatal no campo da pretensão punitiva oficial, constituindo-se em garantia ao indivíduo de que o Estado, na repressão do crime, manter-se-á dentro de determinado limite. 2 NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 14ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 19 CAMARGO, Beatriz Corrêa; SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Organização criminosa sem crime? Observações críticas sobre a proposta de reforma pelo Projeto de Lei Anticrime/Boletim IBCCRIM. São Paulo: IBCCRIM, 2019. 3 89 Dessa forma, é considerado como um instrumento de respeito aos direitos derivados da dignidade da pessoa humana e àqueles que decorrem da especial condição de acusado, isto é, de sujeito passivo da relação processual. Atualmente, no entanto, sob o pretexto de combate à criminalidade, dentro de uma lógica de populismo penal e medo imposta, sustenta-se que o combate ao crime organizado da era globalizada demandaria novos mecanismos de investigação e repressão, sendo supostamente impossível se socorrer da dogmática penal e processual clássicas no contexto da globalização da economia, da revolução dos meios de comunicação e da constante guinada de violência4. Tal tese estaria fundamentada na ideia de que as medidas para enfrentar o crime organizado deveriam ser enérgicas e fortes em prol da prevenção e repressão de condutas criminosas, conforme requerida pela própria sociedade na recuperação da ordem pública e na tutela de bens jurídicos supraindividuais5. Sobre a flexibilização dos duramente conquistados e basilarmente necessários à manutenção do status democrático - direitos fundamentais como única forma de enfrentamento da criminalidade moderna, discorre de maneira objetiva e pragmática Cezar Roberto Bitencourt, nos seguintes termos: Tradicionalmente as autoridades governamentais adotam uma política de exacerbação e ampliação dos meios de combate à criminalidade, como solução de todos os problemas sociais, políticos e econômicos que afligem a sociedade. Nossos governantes utilizam o Direito Penal como panaceia de todos os males (direito penal simbólico); defendem graves transgressões de direitos fundamentais e ameaçam bens jurídicos constitucionalmente protegidos, infundem medo, revoltam e ao mesmo tempo fascinam uma desavisada massa carente e desinformada. Enfim, usam arbitrária e simbolicamente o Direito Penal para dar satisfação à população e, aparentemente, apresentar soluções imediatas e eficazes ao problema da segurança e da criminalidade.6 Por esse motivo, diversos países do mundo, dentre eles cabe ressaltar a Itália, ao deparar-se com a criminalidade desmedida e organizada, editaram leis específicas para o combate das novas modalidades delitivas estabelecendo, ao lado dos institutos clássicos do processo penal, novos meios de prova, novas modalidades de prisão processual, novos ritos procedimentais, novas medidas cautelares, como forma de dotar o processo penal de maior 4 SILVA SÁNCHEZ, Jesús-Maria. A expansão do direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais - São Paulo : Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 32/79. 5 SILVEIRA, Renato de Mello Jorge. Direito penal supraindividual: interesses difusos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2003, p. 167/173. 6 BITENCOURT, Cezar Roberto. BUSATO. Paulo Cézar. Comentários à Lei de Organização Criminosa: Lei 12.850/2013 – São Paulo : Saraiva, 2014, p. 19. 90 eficácia, atendendo à necessidade premente do corpo social e suprindo a dificuldade de constituição provas na individualização dos delitos praticados. Neste tocante, os mecanismos que passam a ser utilizados, tendem à adoção de uma postura proativa por parte do Estado que, voltado à prevenção de crimes e à manutenção da paz social, atua ante ou extra delictum, por via administrativa, de direito penal e processual penal de polícia. Contudo, a questão que se coloca é saber se esta estratégia de combate à criminalidade organizada e de antecipação da tutela penal do Estado se coaduna com o modelo de constitucionalização de garantias processuais penais, tal como idealizado na teoria do garantido penal de Luigi Ferrajoli, e, mais, se os instrumentos de combate são condizentes com os princípios constitucionais postos pelo ordenamento pátrio. No caso da Itália, ao lado do processo comum, concebeu-se o processo especial voltado exclusivamente para os delitos praticados pelas associações de modelo mafioso, que, sendo um sistema supressor de direitos e garantias individuais, estaria em tese justificado racionalmente. A alteração da fonte de legitimação consistiu precisamente na assunção da exceção ou da emergência (antiterrorista, antimafiosa ou anticamorra) como justificação política da ruptura ou, se preferir, da modificação das regras do jogo que no estado de direito disciplinam a função penal. Esta concessão da emergência outra coisa não é que a ideia do primado da razão de Estado sobre a razão jurídica como critério informador do direito e do processo penal, seja simplesmente em situações excepcionais como aquela criada pelo terrorismo político, ou de outras formas de criminalidade organizada.7 Dessa forma, frente ao contexto instalado, crucial ainda ressaltarmos que lógica imposta por trás dos delitos de organização é de punir os atos que são conceitualmente anteriores à preparação ou à efetiva participação em uma infração concreta, sendo assim uma forma de antecipação da tutela penal do Estado, visto que age em momento delitivo prévio ao cometimento de um crime. Por essa razão, há grande divergência com relação à natureza efetivamente democrática dessa espécie de delito, visto que para o seu suposto enfrentamento seria necessário um distanciamento do princípio da legalidade penal, que exige a efetiva ofensa a um bem jurídico tutelado por meio de uma conduta punível. O núcleo da definição de organização criminosa está ligado ao verbo associar, que seria justamente o ato de se unir, se agrupar, com o objetivo de delinquir. Levando isso em consideração, de crucial importância analisarmos o conceito clássico da ação propriamente dita de integrar uma organização criminosa, que está, de forma objetiva, embasada na caracterização 7 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantido penal - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p.649/650. 91 de uma conduta ativa versada no interior de uma rede estruturada e detentora de um fim específico, sendo tal conceito fixado por Manuel Cancio Meliá8, ao discorrer sobre a tipificação do delito de pertencer a uma organização de caráter terrorista, de acordo com o ordenamento espanhol. Nesse sentido, a mera adesão de caráter político a um determinado grupo, sendo criada uma forma genérica de conexão, não pode em si caracterizar a vinculação efetiva à uma organização de caráter criminoso. Isso pois, tal conduta resultaria em clara hipótese de “incriminação automática”, visto a absoluta ausência de injusto reconhecível, viabilizando ainda perigoso precedente para a criminalização de condutas outras sob a ótica da responsabilidade penal objetiva, ao custo de pouco influir de maneira prática e concreta na atuação das organizações criminosas. 4. Consequências não declaradas: diminuição da pena do crime de “integrar milícias” Ao listar “milícias” como exemplos de organizações criminosas no inciso III do referido artigo, o Projeto Anticrime derroga o artigo 288-A do Código Penal. Isso significa que a pena mínima de quatro anos prevista para aqueles que constituíam, organizavam, integravam, mantinham ou custeavam organização paramilitar, milícia particular, grupo ou esquadrão com a finalidade de praticar quaisquer dos crimes previstos no Código Penal seria substituída pela pena mínima de três anos, prevista no artigo 2º da Lei das Organizações Criminosas, tendo como consequência o fato de que estas pessoas não mais iniciariam o cumprimento de suas penas obrigatoriamente no regime semi-aberto, mas sim no regime aberto. Assim, fica evidente a contradição da modificação proposta: se o objetivo das alterações legais é combater a criminalidade por meio do endurecimento das leis, por que relaxar as penas do crime de integrar milícia particular? Seria fruto de mera coincidência o fato de este Governo ter afinidade com estes grupos milicianos que influenciam a vida de mais de 2 milhões de pessoas apenas no Rio de Janeiro9 ou da evidente falta de técnica legislativa? Fica o questionamento. 8 CANCIO MELIÁ, Manuel. El delito de pertenencia a una organización terrorista en el código penal español. Revista de Estudios de la Justicia, n. 12, p. 158 e ss., 2010. 9 Disponível em:http://especiais.g1.globo.com/rio-de-janeiro/2018/mapa-das-milicias-do-rio-de-janeiro/, acesso em 10 de outubro de 2019. 92 Caso a preocupação com o combate deste tipo específico de organização criminosa seja genuína, melhor seria incluir dispositivo no Código Penal esclarecendo que as organizações tipificadas no art. 288-A do CP se enquadram como organização criminosa para fins processuais de investigação e execução da pena. 5. Tipificação de organização criminosa no ordenamento jurídico internacional O conceito de organização criminosa foi estabelecido pela Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, também conhecida como Convenção de Palermo, realizada em Nova York, em 15 de novembro de 2000. A cidade foi escolhida para homenagear Paolo Borsellino e Giovanni Falcone, dois grandes combatentes ao crime organizado italiano, assassinados no atentado a bomba em Palermo, no ano de 1992, pela máfia. Junto com a Convenção foram assinados três protocolos: o primeiro, visando combater o tráfico de pessoas, em especial de crianças e mulheres; o segundo, o combate ao tráfico de migrantes e o terceiro, o tráfico ilícito de armamentos. Assim, definiu-se organização criminosa como “grupo estruturado de três ou mais pessoas, existente há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer uma ou mais infrações graves ou enunciadas na presente Convenção, com a intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro benefício material” e infrações graves como “ato que constitua infração punível com uma pena de privação de liberdade, cujo máximo não seja inferior a quatro anos ou com pena superior”. A convenção foi ratificada por 147 países10, incluindo Portugal Japão, Itália, Espanha, demais países da União Europeia, Estados Unidos e o Brasil. Nesse sentido, importa relembrar que a redação original do crime de organização criminosa, disposta no art. 1º da Lei 12.850/13, está absolutamente de acordo com os parâmetros exigidos pela comunidade internacional. Deste modo, a mudança proposta descaracterizaria a tipificação dada pela ONU, ratificada pelo Brasil por meio do decreto nº 5.015/04, sem que traga benefícios efetivos no combate à criminalidade. Para além das questões já apontadas, importante a reflexão de Marcelo Semer, juiz de Direito, mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo: Eternizando nomes de facções, valorizando-as, aumentando o seu prestígio junto ao crime. É de um amadorismo brutal. Mas, se formos pensar bem, o projeto é um presente para as facções. Tudo o que elas mais querem, e mais precisam, é mais 10 Disponível em:https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII12&chapter=18&clang=_en, acesso em 10 de outubro de 2019. 93 encarceramento, mais levas de jovens que poderão aliciar para seus exércitos. O PCC, penhorado, agradece11 Assim, o que se espera do Ministro de Justiça é que busque soluções efetivas para o combate às organizações criminosas, respeitando os direitos humanos e os direitos fundamentais constitucionalmente tutelados. A mera alteração legislativa, como propõe de maneira ampla o Pacote Anticrime, não tem a capacidade de alterar (pelo menos de forma benéfica) o crítico cenário em que se encontra a Segurança Pública brasileira, que demanda políticas públicas inteligentes, integrativas e efetivas. 6. Conclusão A opinião expressada neste artigo é no sentido de que a alteração do tipo de organização criminosa prevista no Pacote Anticrime não é recomendável, seja pela (i) violação de preceitos constitucionais ao incluir os nome de facções criminais na redação legal; (ii) expansão da abrangência do tipo, que deixa de ter contornos claros; (iii) temeridade da tutela de um delito de organização por meio da antecipação da tutela penal; (iv) diminuição da pena mínima para o crime de integrar milícias particulares ou (v) seja pela descaracterização da tipificação proposta pela ONU e ratificada pelo Brasil, desacompanhada de benefícios efetivos para a segurança pública. 11 Disponível em: http://www.justificando.com/2019/05/24/o-pacote-anticrime-de-moro-e-um-presente-para-asfaccoes-criminosas/, acesso em 10 de outubro de 2019. 94 MEDIDA VII – ELEVAÇÃO DAS PENAS EM CRIMES RELATIVOS A ARMAS DE FOGO Sob coordenação de Gustavo Alves Parente Barbosa e Jéssica da Mata Elaborado por Ana Carolina Macedo Puglia, Maria Clara Santa Rosa, Natália Kie Miamoto, Roberto Mifano e Walther Strupeni O “Pacote Anticrime” proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública reúne uma série de alterações legislativas que visam, de modo geral, endurecer penas, dirimir garantias processuais-penais de investigados e réus, com o objetivo de combater a criminalidade. Nosso trabalho se debruça exclusivamente sobre o item VII dessa proposta que reforça essa sensação, na medida em que prevê tão somente o endurecimento da pena, pela metade, em relação a crimes alguns crimes previstos na Lei 10.826/2003, mais conhecida como Estatuto do Desarmamento. Na prática, a medida quer alterar o artigo 20 da referida lei para a seguinte redação: Art. 20. Nos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se: I - forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts 6', 7 e 8'desta Lei; ou II - o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado. (NR) Apenas é alterado o inciso II, pois o aumento previsto no inciso I já está contemplado na atual redação da norma. 1. Breves comentários sobre a proposta: Sem qualquer “exposição de motivos” é difícil entender quais foram as intenções ao propor as alterações legislativas no projeto. A elevação das penas nos crimes relacionados às armas de fogo, ao que parece, está calcada na presunção de que o aumento da punição é capaz de dissuadir o cometimento de determinados crimes. No entanto, esse é um entendimento cientificamente frágil. A relação causal “mais penas = menos crimes” não nos parece ter alicerce. Há razoável consenso criminológico em torno da impossibilidade de se estabelecer uma causalidade direta entre aumento de pena e cometimento de um crime. 95 Alterando-se a pena não necessariamente se está contribuindo para combater a criminalidade. A alteração legislativa proposta parece estar apelando aos clamores populares por mais segurança pública e aumentando a pena como solução do problema, mas peca por não apresentar políticas para a redução da criminalidade. A medida é, ainda, controversa, por sua irresponsabilidade no plano político-criminal, vez que podemos ter como resultado um potencial impacto negativo, com o incremento das taxas de encarceramento. Como se sabe no Brasil esses números já são alarmantes. Em 2018, contávamos com 602.217 presos, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça.1 Quando se leva em conta a urgência da questão penitenciária brasileira, com baixos orçamentos e superlotação2, as questões legislativas ganham em importância. Não há, no Brasil, perspectiva de sequer se fazer cumprir o que já está previsto na Lei de Execução Penal e o que se apresenta como proposta é apenas um aumento de penas, que certamente só agravará o problema. 2. Até quando os “registros criminais pretéritos” produzirão seus efeitos? Como dito, a mudança no Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03) traz uma nova redação ao seu Artigo 20 cuja única alteração é o aumento de pena nos casos de “o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado”. Ao estabelecer esse aumento, o dispositivo peca, em primeiro lugar, por não ressalvar o disposto no Artigo 64, inciso I, do Código Penal, que estabelece um limite temporal de cinco anos para a majoração da pena mediante reincidência criminal. De acordo com a redação desse artigo, não poderá surtir efeito aquela “condenação anterior, se entre a data do cumprimento ou extinção da pena e a infração posterior tiver decorrido período de tempo superior a 5 (cinco) anos”. 3 1 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Banco Nacional de Monitoramento de Prisões (Cadastro Nacional de Presos), 2019, p. 32. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2019/08/bnmp.pdf. Acesso em 11.12.2019, às 16h42m. 2 CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO. Sistema Prisional em Números, 2019. Disponível em: https://www.cnmp.mp.br/portal/relatoriosbi/sistema-prisional-em-numeros. Acesso em 11.12.2019, às 17h57m. 3 BRASIL. Decreto-Lei 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 31 dez. 1940. 96 Em outras palavras, após cinco anos do cumprimento da pena estabelecida devido à condenação por crime anterior, o sujeito não é mais considerado reincidente, em conformidade com a proibição constitucional das penas perpétuas (Artigo 5, inciso XLVII, b da Constituição Federal). Posto isso, o não estabelecimento de um prazo para adotar os “registros criminais pretéritos” como uma circunstância agravante é incompatível com a Constituição, pois caso tenha transcorrido o período de tempo superior a cinco após o cumprimento da pena referente ao crime anterior, não se pode utilizar o registro criminal pretérito como circunstância para aumentar a pena do delito posteriormente cometido. Decorrido o prazo de cinco anos a partir do fim do cumprimento de determinada pena, o indivíduo retorna ao seu status de primariedade, embora carregará o gravame dos maus antecedentes. Portanto, sem esse esclarecimento, estamos diante de uma grave falha legislativa na medida em que não se explica até quando os tais “registros criminais pretéritos” surtirão seus efeitos. 3. Ne bis in idem e o princípio da presunção de inocência. O Brasil é signatário, desde 1992, do Pacto de San José da Costa Rica, que proíbe a “duplicidade de sanções pelo mesmo fato”. 4 Por isto, vige no país o princípio do ne bis in idem ou non bis in idem. Consoante o referido princípio, o acusado não pode ser duplamente punido por fato típico que já culminou em condenação penal transitada em julgado. A proposta legislativa fere de morte tal princípio ao prever aumento de pena quando “o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado.”. A nova redação permite que ocorra mais de uma consequência em razão de um mesmo fato: a primeira sendo a própria condenação pelo primeiro crime e a segunda, a circunstância agravante quando se usa o “registro criminal pretérito” para aumentar a pena do segundo crime. De acordo com o advogado Sergio Graziano, em parecer elaborado pelo Instituto dos Advogados Brasileiros, a nova redação “cria uma causa objetiva de aumento de pena relacionada a um fato já julgado, transitado em julgado ou não, a pena estará viciada, pois 4 . Juan Carlos Ferré Olivé. Miguel Ángel Núñez Paz, William Terra de Oliveira e Alexis Couto de Brito, Direito Penal Brasileiro, Parte Geral, RT, São Paulo, 2011, p. 89. 97 impregnada com elementos que o próprio condenado já havia sido responsabilizado, isto é, nesta hipótese o fato anterior será valorado duas vezes: no julgamento do primeiro crime e no fato posterior, ao considera-lo como causa de aumento de pena do novo crime”5. Além disso, a mudança supracitada pode, inclusive, causar desordem jurídica. Imagina-se o caso em que determinada pessoa é condenada por órgão colegiado, contudo conta com recurso pendente em instância superior. Após essa primeira condenação o sujeito é também sentenciado por um dos crimes previstos nos artigos 14 a 18 da Lei 10.826/2003, momento em que é aplicada a causa de aumento prevista no artigo 20 e ocorre o trânsito em julgado desse segundo caso. Posteriormente é anulada a decisão do primeiro pelo Tribunal Superior. Como ficaria a pena relativa ao segundo caso? Como ficará a punição do sujeito no segundo caso que teve sua pena aumentada por feito em que, posteriormente, foi absolvido? Pior: Como fica o princípio constitucional da presunção de inocência diante do fato de que até sentença condenatória transitada em julgado, o indivíduo tem a seu favor a garantia constitucional da presunção de inocência? Essas perguntas parecem não ter resposta, deflagrando uma falha na elaboração da proposta legislativa. 4. Alternativa Para diminuir a violência letal associada ao uso de armas, as medidas de maior sucesso têm sido as campanhas de prevenção através da restrição ao acesso a armas de fogo e de campanhas de desarmamento. Assim, mesmo que seja necessária a repressão aos crimes associados às armas de uso proibido ou ao porte ilegal, o investimento em estratégias preventivas parece ser o mais interessante e menos oneroso ao Estado e à sociedade. Nesse sentido, uma alternativa é o investimento visando a reestruturação das nossas forças de segurança através do trabalho de inteligência, aliado a políticas interdisciplinares que ressaltem a importância da educação, lazer, à saúde, à cultura, reconhecendo os múltiplos fatores que levam ao crime e não somente o endurecimento da legislação penal. 5 GRAZIANO, Sérgio. Parecer na indicação nº 001/2019. Medida XII. INSTITUTO DOS ADVOGADOS BRASILEIROS, 18 fev. 2019. Disponível em: https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceres-paravotacao/parecer-na-indicacao-001-2019-direito-penal-processo-penal-corrupcao-crime-organizado-crimesviolentos-contra-a-pessoa Acesso em 11.12.2019, às 18h30m. 98 Como já se discute desde a edição de “Dos delitos e das penas” de Cesare Beccaria, os crimes são melhor prevenidos pela certeza da punição (diretamente ligada ao aumento da capacidade de investigação) do que à severidade das penas (dependente de escolhas mais ou menos calculadas pelos agentes). O Pacote Anticrime parece mais um sintoma dos ventos anti-humanistas que sopram em todo mundo, marcados pela crescente desvalorização do ser humano, de seus direitos, completamente assujeitado pelas razões do Estado. Que o Poder Legislativo não permita que tal tendência finque raízes ainda mais profundas em nosso país. 5. Conclusão O Pacote apresentado pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública não só deixa de lado o grave problema do sistema penal brasileiro, como poderá contribuir para o agravamento dele, na medida em que prevê aumento de diversas penas. A realidade carcerária brasileira já não respeita o disposto na Lei 7.210/84, que trata, em alguns de seus artigos, sobre os direitos garantidos aos presos em obter assistência médica, jurídica, educacional e diversas outras, bem como fecha os olhos para o fato de que existe um número de vagas no sistema carcerário muito inferior ao número total de presos. Além disso, o projeto legislativo parece ter a intenção de dar uma resposta imediatista para a sociedade, como uma ação que visa passar a mensagem de que se está agindo para diminuir a criminalidade. No entanto, parece ter feito isso às pressas, pois peca por seus termos técnicos legislativos vagos que criam mais dúvidas que soluções. 99 MEDIDA VIII – APRIMORAMENTO DO PERDIMENTO DE PRODUTO DO CRIME Sob coordenação de Augusto de Arruda Botelho e Joel Falcão Fraporti Elaborado por Amanda Tescari Medeiros, André Antiquera Pereira Lima, Emilyn Natirrê Barbosa dos Santos, Hellen Patricia Soares de Abreu e Luiza Vero Fontes 1. O que diz a medida? As medidas de número VIII do “Pacote Anticrime” do Ministério da Justiça e Segurança Pública versam sobre o “aprimoramento do perdimento de produto do crime”. Na proposta do “pacote” pretende-se uma alteração no Código Penal: a criação do Art. 91-A, caput, que estabelece que para as condenações que cominem em penas maiores do que seis anos de reclusão, será decretado o perdimento dos bens equivalentes à diferença entre o patrimônio do condenado e aquele compatível com seus rendimentos lícitos. O parágrafo 1º do mesmo artigo condiciona esta perda à comprovação a existência de elementos que indiquem uma conduta criminal “habitual, reiterada ou profissional do condenado ou a sua vinculação a organização criminosa”. Em seu parágrafo 2º, o artigo proposto esmiúça o conceito de patrimônio do condenado, sendo considerados bens do condenado aqueles que: “estiverem em sua titularidade ou em relação aos quais exerça domínio e benefício direto ou indireto, na data do ilícito penal ou posteriormente” e os bens “transferidos a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal”. No parágrafo 3º, é assegurada ao imputado a “oportunidade” de demonstração da licitude do patrimônio. Por fim, a medida propõe uma mudança no Código de Processo Penal, com a criação do artigo 124-A, para que, nos casos de perdimento de bens artísticos e culturais, se os crimes não possuírem vítima determinada ou se a vítima for a Administração Pública, estes bens serão destinados aos museus públicos. 2. Objetivos declarados e não declarados Para o conceituado jurista Juarez Cirino dos Santos, o Direito Penal possui objetivos declarados (ou manifestos), que podem ser percebidos através do discurso jurídico oficial, mas 100 também possui objetivos reais (ou latentes) que podem ser identificados através do discurso jurídico crítico, ou criminológico1. Assim, para analisar a medida proposta pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública no âmbito do autodenominado “Anteprojeto Anticrime”, emprestaremos essa distinção, para trazer à luz quais são os objetivos manifestos da proposição, bem como eventuais objetivos reais, escondidos por detrás do discurso jurídico oficial. Da própria nomeação da medida se extrai o seu primeiro objetivo declarado: medidas para aprimorar o perdimento de produto de crime2 O Ministério da Justiça e Segurança Pública parte do pressuposto que o efeito da condenação de perdimento do produto de crime elencado no art. 91 do Código Penal não é suficientemente eficaz para os seus fins, estando claro, portanto, que o objetivo declarado é o de aprimorar o perdimento de produto de crimes, aumentando a eficácia do instituto para que se impeça que o crime gere um benefício econômico ao agente do delito. Esse interesse, foi manifestado pelo próprio Ministro da Justiça e Segurança Pública por diversas vezes, em especial, na justificativa, assinada pelo Ministro Sérgio Moro, ao Projeto de Lei 882 de 2019, que efetivamente propõe o acréscimo do art. 91-A ao Código Penal: Há unanimidade na crença de que a sanção econômica é vital no combate ao crime, em especial quando praticado por organizações criminosas. No entanto, a atual redação do Código Penal, ainda que reformada pela Lei nº 12.694, de 2012, é insuficiente para que se alcance tal objetivo. O que agora se pretende é tornar este combate mais próximo da realidade, convertê-lo em concreta possibilidade.3 Pretende-se, com a apresentação dessas alterações legislativas, um engrandecimento indiscriminado do Estado, um fortalecimento dos poderes do Ministério Público e do Judiciário, tendo como consequência mais evidente a flexibilização das garantias constitucionais inerentes ao direito e processo penal. Explica-se. Em concreto, esse objetivo de engrandecimento do Estado, fica em evidência quando se percebe que, no aspecto “intraprocessual”, se converte em um objetivo de redução do trabalho dos órgãos de investigação (Ministério Público e Polícia Judiciária), em detrimento de princípios e garantias constitucionais como a legítima defesa. Há uma exigência muito menor 1 Santos, Juarez Cirino dos. Direito Penal: Parte Geral. 8ª Ed. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018, p. 4-10 Anteprojeto Anticrime do Ministério da Justiça e Segurança Pública, p. 13 3 Inteiro Teor PL 882/2019, Câmara dos Deputados. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=1712088&filename=PL+882/2019 2 101 de que o Estado prove o que alega, assim o fortalecendo, enquanto, para isso, relativiza os referidos princípios e garantias. Assim, não somente está no âmbito da alteração proposta o objetivo real de que se evite o benefício do agente com o produto de crimes, mas também um interesse no fortalecimento de partes determinadas do processo penal, mediante uma evidente relativização de garantias individuais. Por outro lado, a mudança proposta para o Código de Processo Penal, objetiva, de fato, a melhor utilização dos bens cujo perdimento fora decretado: se os museus públicos admitem melhoras nos seus acervos, muito mais lógico que no caso de apreensão de obras de arte, estas sejam revertidas a seu favor. Nesse caso, não há uma distinção entre os objetivos declarados e não declarados da alteração, a alteração é transparente em seus objetivos, assim como o próprio Ministro fora ao comentar essa alteração na primeira coletiva de imprensa para divulgação do Anteprojeto, e consignar como objetivo “melhorar o acervo artístico dos museus brasileiros”4. 3. Quais são seus efeitos previsíveis? Produzem efeitos nocivos ou positivos? A medida em questão possui ao menos três efeitos previsíveis facilmente identificáveis, a saber: (I) A insegurança jurídica derivada do uso de termos vagos na delimitação das hipóteses de incidência do confisco; (II) O tumulto e inseguranças processuais relativos ao rito a ser utilizado para o perdimento dos bens elencados pela medida; (III) A fragilização da situação processual do imputado mediante a inconstitucional inversão do ônus probatório. Primeiramente, nota-se de sua simples leitura, que o nível de abstração presente no texto do projeto de lei dá abertura para interpretações demasiadamente subjetivas, possibilitando que órgãos jurídicos se convertam em órgãos políticos, nos quais se decide pela conveniência, sem qualquer balizamento no texto legal. Assim ocorre com o uso de termos como “domínio direto ou indireto” (inciso I) ou “contraprestação irrisória” (inciso II), aplicadas para designar o que se entende por patrimônio do condenado, o fazendo de maneira prejudicialmente ampla; o mesmo se podendo dizer da escolha de critérios como a delinquência “reiterada ou profissional”, os quais já são alvos de profundas críticas doutrinárias5. 4 Ministro Sergio Moro apresenta o Projeto de Lei Anticrime. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xNjdk9dZyRU. Acesso em: 12/01/2020 às 16:45. 5 Por todos, ver: Zaffaroni, Eugenio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição 102 Já no tocante às incertezas e tumultos relativos ao processo de julgamento desses casos nota-se primeiramente que o Parágrafo 3º do art. 91-A incorre em atecnicidade no uso do vocábulo “condenado”, já que segundo o artigo proposto: § 3º O condenado terá a oportunidade de demonstrar a inexistência da incompatibilidade ou a procedência lícita do patrimônio.6 A utilização da referida palavra, bem como a própria construção da oração acarretam em uma patente falta de especificação de qual o rito processual que seguirá para que seja oportunizado ao réu a comprovação da licitude dos bens. Isso porque restaria a dúvida a respeito do momento em que seria dada a oportunidade ao condenado para comprovar a licitude de seu patrimônio: Seria durante a instrução em que ele ainda não é propriamente um condenado? Ou após uma sentença condenatória em que o mérito do caso já deveria ter sido resolvido? Na hipótese da segunda opção, não há rito existente que possa ser adequado ao que o referido parágrafo parece indicar, posto que não há instrução após a sentença penal condenatória, inexistindo também previsão de incidente processual relativo a tal questão, também não cabendo tal discussão em eventual fase de liquidação de sentença. Por outro lado, caso adote-se a dinâmica já observada atualmente, na qual a temática do perdimento já é discutida na própria instrução criminal, resta evidente o risco de deturpação do processo penal como um todo e a total ineficiência do sistema criminal. Explica-se: A oportunidade dada ao condenado para demonstrar a inexistência de incompatibilidade ou a procedência lícita de seu patrimônio, necessariamente, se desdobrará na análise da procedência de todos os seus bens, tema que então será objeto de prova, demandando instrução. Isso sem mencionar o próprio arrolamento dos bens do acusado. A consequência é óbvia: além da demora injustificável para a tutela jurisdicional, resultando no inevitável aumento dos casos de prescrição. Sobre esse, que talvez seja o principal efeito negativo da proposta, faz-se uso de uma breve digressão: A ação penal7 que condenou o Ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pelos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro, o chamado “caso triplex”, é tido como um caso de grande celeridade no sistema de justiça criminal brasileira. Do recebimento da denúncia à 6 Anteprojeto Anticrime do Ministério da Justiça e Segurança Pública, p. 13 7 Ação Penal nº 5046512-94.2016.4.04.7000. Justiça Federal Seção Judiciária do Paraná, 13ª Vara Federal Criminal de Curitiba. 103 sentença condenatória passaram se meros 295 dias (por volta de dez meses)8. Por outro lado, com os recursos interpostos, já se passaram mais de 3 (três) anos do recebimento da denúncia no referido sem que houvesse trânsito em julgado. Em paralelo, quando considerados processos que envolvem investigação patrimonial, como nos casos de inventário por exemplo, tem-se um lapso temporal que varia de 1 (um) a 4 (quatro) anos para a sentença de primeiro grau, conforme levantamento realizado pelo jornal O Estado de São Paulo9, demora que deverá se somar ao tempo de tramitação observado hoje nos processos criminais. Assim, o projeto faz com que o elevado tempo de duração de um processo de crime econômico seja somado demorada tramitação de processos nos quais se faz prova sobre a integralidade do patrimônio do indivíduo (como o inventário judicial). Situação que será ainda exponencializada pelo aumento da temática passível de recursos. Desse modo, aumenta-se ainda mais a possibilidade de que ocorra a prescrição dos referidos delitos, vez que a sistemática proposta pela medida causará o aumento da demora para o trânsito em julgado das ações penais. Ou seja, o projeto possui como como consequência o exato oposto de seu objetivo, desacelerando o ritmo de resolução dos casos e aumentado a prescrição dos delitos, consequentemente, resultando no não perdimento desses bens e consequente aumento da impunidade. A proposta, ao visar de modo mal estruturado a efetividade de uma consequência secundária da condenação, resulta na ineficiência do sistema de justiça com um todo. Se existem os efeitos negativos decorrentes da inclusão do art. 91-A do Código Penal, existe também, por outro lado, o efeito positivo da inclusão do art. 124-A do Código de Processo Penal. A destinação de “obras de arte ou outros bens de relevante valor cultural ou artístico a museus públicos”, nas hipóteses de crime sem vítima determinada ou contra a Administração Pública direta ou indireta pode ser vista como uma medida que produz efeitos benéficos, como a adequação da função social do bem perdido, além de incentivar e G1.com – Lava Jato completa quatro anos com 40 sentenças de Sérgio Moro; tempo médio de trâmite das ações foi de nove meses. Disponível em: https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/lava-jato-completa-quatro-anos-com40-sentencas-de-sergio-moro-tempo-medio-de-tramite-das-acoes-foi-de-nove-meses.ghtml Acesso em: 17/10/2019 9 Bragaglia, Letícia. O Estado de São Paulo – Transmissão da herança pode levar até 4 anos. Disponível em: https://www.estadao.com.br/blogs/jt-seu-bolso/2012/04/13/transmissao-da-heranca-pode-levar-ate-4-anos/ Acesso em: 17/10/2019 8 104 engrandecer os acervos dos museus públicos brasileiros, e possibilitar ao Estado a expansão do fornecimento de atividades culturais aos cidadãos. 4. Crítica a nível normativo: é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via emenda constitucional? Conforme se observa da simples leitura do dispositivo, o texto proposto para o art. 91A do Código Penal é inconstitucional por estabelecer verdadeira presunção de culpa ao tomar como ilícitos todos os bens do imputado não compatíveis com seus rendimentos lícitos comprovados. Situação que estabelece uma inversão do ônus probatório em desfavor do imputado, a partir da comprovação da conduta “criminosa habitual, reiterada ou profissional do condenado ou a sua vinculação a organização criminosa”. Em outras palavras a partir da prova relativa à conduta “criminosa habitual, reiterada ou profissional do condenado ou a sua vinculação a organização criminosa” presume-se a ilicitude, e consequentemente, a culpa do imputado relativa à origem de todo o seu patrimônio, atribuindo-se a esse a prova do contrário. Ora, como é sabido, o artigo 5º da Constituição Federal Brasileira apresenta o rol dos direitos e deveres individuais e coletivos, dentre eles encontra-se o princípio da presunção de inocência, constante no inciso LVII, com a seguinte redação: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”10. O princípio também foi adotado pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, no Pacto São José da Costa Rica, no artigo 8º, n º 2, ao afirmar que "toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa."11 Dentro do âmbito de proteção do princípio de presunção de inocência consagrado em nossa constituição encontra-se, como é evidente, a atribuição do ônus probatório ao acusador. A inocência se presume, já culpa tem que ser provada. Este é o cerne do mandamento constitucional. Neste sentido, desponta a dimensão do princípio da presunção de inocência como norma probatória, definhada por Maurício Zanoide De Moraes da seguinte maneira: Como “norma probatória”, a presunção de inocência impõe que, para se ter uma decisão condenatória legítima ou se requerer qualquer tipo de restrição aos direitos do 10 Artigo 5º, inciso LVII da Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 17/10/2019 11 Promulgação da Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto São José da Costa Rica). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/d0678.htm 105 imputado no curso da persecução, é necessário que o acusador apresente provas incriminadoras e lícitas. 12 No ponto de maior interesse à presente análise o autor complementa do seguinte modo: O primeiro aspecto apontado da presunção de inocência como “norma probatória” (quem deve provar) refere-se ao ônus probatório no processo penal. A matéria é por demais extensa e já conta com significativo consenso doutrinário em todos os países nos quais o princípio está inserido em nível constitucional. Para todos eles, o ônus de provar no processo penal é da acusação, uma vez que, partindo o órgão acusador do pressuposto juspolítico do “estado de inocência” do cidadão, é a ele que caberá demonstrar a sua tese pela culpa do indivíduo e, portanto, caberá a ele o ônus de demonstrar essa tese não pressuposta pela Constituição.13 Contudo, a medida XIII do Projeto Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro dispensa a acusação da produção de prova sobre a ilicitude dos bens, prevendo seu o perdimento o perdimento automático do bem. A presunção se torna ainda mais evidente quando observado o §3º no qual cabe a defesa a produção de provas sobre a licitude dos bens. Dessa forma estabelece-se evidente presunção de culpa mediante a inversão do ônus probatório, já que é necessário, por parte da defesa, a produção de provas para a constatação da licitude do bem, que possui a ilicitude de sua origem presumida sem que tenha havido qualquer demonstração probatória nesse sentido por parte da acusação. Situação que não é admitida pelo mandamento constitucional em comento. Desta forma, com fulcro nos argumentos apresentados, entende-se que alteração legislativa referente ao artigo 91-A do Código Penal é inconstitucional, posto que completamente incompatível com os princípios da presunção de inocência e do devido processo legal consagrados pela Constituição Federal como suas cláusulas pétreas, não havendo, portanto, possibilidade de inserção do referido dispositivo por meio de Emenda Constitucional, conforme preceitua o artigo 60, §4º da Lei Maior. No mais, especificamente em relação à alteração proposta ao artigo 124-A do Código de Processo Penal, entende-se pela sua constitucionalidade, uma vez que, no texto da medida, não há a afronta a qualquer mandamento constitucional. Apenas há a consequência em relação ao perdimento do bem, qual seja a remessa deste bem que tenha valor artístico para museus. 12 MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed, 2010. p.509 13 MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris Ed, 2010. p.578 106 5. Alternativa à proposta do Ministério da Justiça e Segurança Pública Em que pese tratar-se de medida absolutamente inconstitucional, é possível a elaboração de alternativa que possibilite alcançar a maior efetividade do instituto, sem que seja necessária a relativização de direitos e garantias do réu. O cerne da questão é a inconstitucional inversão do ônus da prova no juízo criminal aliada a genérica redação que estabelece a conduta habitual como condição, bastando a quantidade de pena superior a 6 anos. Assim, basta que o objetivo da medida proposta no “Pacote Anticrime” seja alcançado sem o atropelo do princípio constitucional da presunção de inocência, mas levando em consideração outros fatores que dificultam o perdimento de bens do condenado. Logo, para a apresentação da presente alternativa, é importante destacar que o próprio standard probatório (quantidade de prova necessária para que o Juízo decida de uma outra forma) elevado do processo penal para a discussão da licitude de todo patrimônio do réu, é um desses fatores que dificultam a efetividade do instituto. Isso porque, o processo penal adota, com fulcro no princípio do “in dubio pro reo”, standard de prova “para além da dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt), o mais exigente de todos os padrões probatórios. Por outro lado, nas esferas civil e administrativa, os outros padrões são utilizados, quais sejam: prova clara e convincente (clear and convincing evidence); prova mais provável que sua negação (more probable than not); preponderância da prova (preponderance of the evidence)14 Dessa forma, os objetivos da proposta do governo poderão ser alcançados de forma muito mais efetiva com a criação de ação autônoma, mantendo o ônus da prova do Ministério Público, mas reduzindo o standard probatório – aumentando a eficácia da persecução de bens frutos de prática delitiva, e evitando os problemas de tumulto processual e inconstitucionalidade. Trata-se da hipótese de criação de uma Ação Reipersecutória, de titularidade do Ministério Público, e que siga o rito da Ação Civil Pública. Assim, caberá ao Ministério Público, após a condenação transitada em julgado, se entender conveniente, comprovar a ilicitude dos bens do condenado, no entanto, por tratar-se de ação regida pelo processo civil, 14 Jr., Aury Lopes; e Rosa, Alexandre Moraes da. Sobre o uso do standard probatório no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-26/limite-penal-uso-standard-probatorio-processopenal#sdfootnote3anc Acesso em: 17/10/2019 107 haverá um standard de prova significativamente reduzido, o que iria aumentar a efetividade do perdimento do produto de ilícito. Ainda, por tratar-se de ação própria, a ser ajuizada após o trânsito em julgado, extingue-se a problemática existente na proposta de confisco alargado em trâmite na Câmara dos Deputados (PL 882/2019), de aumentar a duração do processo de forma indiscriminada, com consequente aumento da probabilidade de que os delitos estejam prescritos ao final da discussão. Nesse modelo se mantém o ônus da prova da parte autora, reduzindo o padrão probatório. No entanto, como caberia ao Ministério Público a comprovação da ilicitude, parece razoável que este possa se valer do instrumento investigativo chamado Inquérito Civil, que por sua vez, é mais flexível do que o Inquérito Policial e o Procedimento Investigatório Criminal. Para que se evite abusos, é necessário, evidentemente, que o limite da investigação seja balizado nos termos da sentença (ou acórdão) condenatório, e o que aos fatos já transitados em julgado na ação penal de origem. Não bastante, no mesmo sentido, parece razoável e necessária a estipulação de um prazo decadencial para o ajuizamento da ação. Nesse particular, sugere-se o prazo prescricional equivalente ao maior prazo prescricional estabelecido no Código Civil, qual seja, o de 5 (cinco) anos, contados a partir do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Prazo razoável para a condução de investigação nos limites de sentença já ocorrida. Nestes moldes, a alteração não vulnera o princípio da presunção de inocência, ao mesmo tempo que torna a possibilidade da recuperação dos bens ilícitos mais plausível, posto que o standard probatório processual civil é significativamente mais baixo, aumentando a efetividade do instituto, sem incidir em inconstitucionalidade, ou tumulto processual capaz de aumentar a possibilidade de prescrição. A proposta apresentada no presente trabalho além de não violar os princípios da presunção de inocência, do contraditório e da ampla defesa, também não incorre em inconstitucionalidade ao estatuir persecução patrimonial por meio de ação regida pelo direito civil: afinal, caberá ao Ministério Público a comprovação de que os bens são resultados diretos ou foram usados como meio para o cometimento de um crime (cuja condenação já transitou em julgado) para que, aí sim, o Estado possa resolver o mérito e incidir sobre o direito à propriedade do condenado. 108 Ainda, a proposta do Ministério da Justiça e Segurança Pública estabelece duas condições essenciais: que o crime tenha pena máxima superior a 6 anos e que a conduta seja habitual reiterada ou profissional ou vinculação a organização criminosa. Sugere-se, apenas nesse âmbito, que resgatemos a proposta de confisco alargado ventiladas na ocasião das 10 medidas contra a corrupção do MPF, para que se substituam as condições ventiladas no “Pacote Anticrime” por um rol taxativo de delitos que permitiriam o ajuizamento da Ação Reipersecutória. Substituição adequada uma vez que equilibra a segurança jurídica de uma proposição menos aberta, com a especificidade dos crimes em que, eventualmente, caberia essa posição estatal mais agressiva de buscar os bens do indivíduo condenado. Para esses fins, o rol taxativo que sugerimos seria: I – tráfico de drogas, nos termos dos arts. 33 a 36 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006; II – comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo; III – corrupção passiva e ativa, se do ato de ofício (praticado, omitido ou retardado pelo funcionário público) resultar vantagem econômica do agente, em que a vítima seja indeterminada; IV – previstos nos incisos I do art. 1º do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967; V – peculato, em suas modalidades dolosas; VI – inserção de dados falsos em sistema de informações; VIII – concussão; VII – lavagem de dinheiro; XIII– organização criminosa; XIV – previstos nos arts. 90 e 96 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993; XVI – delitos previstos nos artigos 2, 7, 8, 11, 13, 16, 17, 20, 22 da Lei nº 7.492, de 16 junho 1986, bem como dos arts. 18 e 23 da mesma lei, quando a ação do agente for condicionada, ou resultar, a vantagem econômica indevida; XIX – fraudes em seguro. Ainda, sobre a definição de patrimônio do agente, entende-se necessária a limitação aos bens de titularidade do condenado, excluindo a hipótese dos quais ele tenha o domínio e o benefício direto ou indireto, salvo se na ação penal de origem restar comprovada a utilização da identidade de terceiros para a ocultação de patrimônio ilícito. Admitindo, no máximo, a investigação de bens de terceiros transferidos à título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da instauração do procedimento investigatório (Procedimento Investigatório Criminal ou Inquérito Policial) que deu origem à ação penal da qual foi condenado. 109 Assim, possibilita-se o direito à propriedade de terceiros não envolvidos na prática delitiva, evitando a inconstitucionalidade da proposta que aqui se faz, já que a condenação criminal não pode exercer efeitos sobre terceiros não envolvidos. Por fim, cabe ressaltar que a alteração proposta no presente trabalho sana o problema da insegurança jurídica, conjuntamente com efeito nocivo de demora excessiva do processo. Na medida em que se cria uma ação própria que terá início após o trânsito em julgado, não só se delimita o rito que será seguido, como também se garante que eventual demora na Ação Reipersecutória – esperada em procedimentos que arrolam e fazem prova sobre determinado patrimônio – não irá obstar a responsabilização criminal. A alteração proposta no presente artigo, possibilitará a efetiva recuperação do patrimônio obtido por meios ilícitos a partir da utilização da sistemática do processo civil, exigindo-se um standard probatório menor, mas sem incidir nos graves problemas de duração excessiva do processo criminal e de inconstitucionalidade da proposta original. Destarte, em consonância com tudo que fora ora apresentado, sugere-se o seguinte texto substitutivo: Art. 91-A. Em caso de condenação pelos crimes abaixo indicados, poderá ser ajuizada, ação reipersecutória de bens, de titularidade do Ministério Público, com a finalidade reverter, em favor da União, os valores oriundos da atividade criminosa que ensejou a condenação: I – tráfico de drogas, nos termos dos arts. 33 a 36 da Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006; II – comércio ilegal de arma de fogo e tráfico internacional de arma de fogo; III – corrupção passiva e ativa, se do ato de ofício (praticado, omitido ou retardado pelo funcionário público) resultar vantagem econômica do agente, em que a vítima seja indeterminada; IV – previstos nos incisos I do art. 1º do Decreto-Lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967; V – peculato, em suas modalidades dolosas; VI – inserção de dados falsos em sistema de informações; VIII – concussão; VII – lavagem de dinheiro; 110 XIII– organização criminosa; XIV – previstos nos arts. 90 e 96 da Lei 8.666, de 21 de junho de 1993; XVI – delitos previstos nos artigos 2, 7, 8, 11, 13, 16, 17, 20, 22 da Lei nº 7.492, de 16 junho 1986, bem como dos arts. 18 e 23 da mesma lei, quando a ação do agente for condicionada, ou resultar, a vantagem econômica indevida; XIX – fraudes em seguro. § No julgamento das ações de que trata o caput aplicar-se-á, no que lhes for cabível, o procedimento disposto na Lei 7.347/85. §2º Poderão se habilitar como litisconsortes ativos as partes indicadas no art. 5º da lei 7.347/85, quando forem vítimas do delito pelo qual o agente fora condenado. §3º O direito de propor ação reipersecutória de bens decai em 5 (cinco) anos. §4º Deverá ser provada a relação entre os bens que serão perdidos e a conduta pela qual o indivíduo foi condenado. §5º Para os efeitos deste artigo, entende-se por patrimônio do condenado o conjunto de bens, direitos e valores: I – que, na data da instauração de procedimento de investigação criminal ou civil referente aos fatos que ensejaram a condenação, estejam sob o domínio do condenado; II – transferidos pelo condenado a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir da data da instauração do procedimento de investigação criminal; III – transferidos pelo condenado a terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, a partir do início da atividade criminal estabelecida na sentença condenatória, quando nesta houver condenação por lavagem de dinheiro mediante terceiros. 111 MEDIDA IX – PERMISSÃO DO USO DO BEM APREENDIDO PELOS ÓRGÃOS DE SEGURANÇA PÚBLICA Sob coordenação de Augusto de Arruda Botelho e Joel Falcão Fraporti Elaborado por Amanda Tescari Medeiros, André Antiquera Pereira Lima, Emilyn Natirrê Barbosa dos Santos, Hellen Patricia Soares de Abreu e Luiza Vero Fontes 1. O que diz a medida? A medida IX do “Pacote Anticrime”, intitulada como “Medida para permitir o uso do bem apreendido pelos órgãos de segurança pública: Mudança no Código de Processo Penal”, autoriza que o juiz determine, dado o interesse público, a utilização do bem sequestrado, arrestado ou sujeito a qualquer outra medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública, auxiliando a prevenção e a repressão de crimes. O texto também prevê a possibilidade de outros órgãos se beneficiarem da utilização dos bens apreendidos, com tanto que seja demonstrada apresentação de interesse público no caso concreto. Para o uso de veículos, embarcações ou aeronaves, é necessária a expedição de certificado provisório de registro e licenciamento em favor do órgão público beneficiário, que será isento do pagamento de multas, encargos e tributos anteriores. Em qualquer das hipóteses, após o transito em julgado da sentença condenatória, a autorização para o uso poderá ser convertida na transferência definitiva da propriedade aos órgãos públicos beneficiários, resguardando o direito do lesado ou do terceiro de boa-fé. 2. Quais são seus objetivos declarados ou não declarados? A medida apresentada pelo Ministério da Justiça objetiva o fortalecimento dos órgãos de segurança pública no combate à corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa, justamente mediante a utilização dos bens apreendidos pelos órgão de segurança pública, em tese, diminuindo os gastos públicos com a guarda e administração desses bens, viabilizando uma maior efetividade das medidas de constrição patrimonial e do perdimento dos bens apreendidos, refletindo-se na diminuição da capacidade econômica de organizações criminosas. Não obstante tal objetivo bastante evidente, é possível também inferir a ideia da criação de estímulos à persecução patrimonial a ser levada a cabo pelos órgãos de segurança pública, os quais seriam “recompensados” com a possibilidade de utilização desses bens.” 112 3. Quais são suas consequências previsíveis? Produzem efeitos positivos ou nocivos? Consideradas as principais implicações da medida existem ao menos três pontos que merecem uma análise mais detida: o impacto da autorização dos bens no direito de ressarcimento da vítima; o estímulo criado para o agente público a partir de seu interesse particular para a apreensão de bens; e a baixa eficiência da medida no que diz respeito a sua real função, o acautelamento dos bens para a execução de futura sentença penal. No tocante ao direito da vítima, é necessário perceber que a utilização do bem apreendido pode eliminar a possibilidade de a vítima receber a indenização devida, já que da destinação diversa ao bem apreendido, privilegiando os órgãos de segurança pública. Situação que pode aumentar ainda mais a deficiência do aspecto restaurativo do sistema penal. Por sua vez, o fato de a medida criar incentivos para que o agente público para que esse atue visando a constrição patrimonial, objetivando a utilização dos bens constritos nas atividades inerentes a seu cargo, estabelece uma lógica de atuação do policial que se distancia do cumprimento da Lei. Em outras palavras, ao invés de policiais preocupados com correta apuração de ilícitos penais, a aprovação do texto proposto pelo Ministério da Justiça pode vincular a atuação dos agentes de segurança à obtenção de bens para a utilização pelo seu respectivo órgão. Finalmente, resta ainda analisarmos a eficiência da proposta em relação ao real objetivo das mediadas cautelares: assegurar a possibilidade de execução dos efeitos secundários da sentença penal, comtemplando tanto o ressarcimento da vítima como o perdimento dos bens de origem ilícita. Nesse diapasão é de se considerar a depreciação e a perda do valor econômico do bem apreendido com a sua utilização pelos órgãos de segurança. Em boa parte dos casos de apreensão de bens, o valor destes se torna irrisório devido a depreciação causada pela falta de manutenção e cuidados, bem como pelo próprio decurso do tempo. Ressalte-se que o local e o modo como os bens apreendidos são armazenados agrava esse processo, especialmente em razão de seu abandono em galpões, ou mesmo em espaços abertos, impactando diretamente em seu estado de conservação. Como exemplo mais emblemático desse fenômeno, temos os automóveis que, durante o curso do processo, ficam por um grande período de tempo em pátios, locais abertos em que o 113 veículo fica exposto aos diversos processos naturais de deterioração, como a radiação solar e as chuvas. Este processo de deterioração acelera a depreciação do automóvel. De acordo com o Estudo Útil de Vida Econômica realizado pela Escola Federal de Engenharia de Itajubá1, a taxa de depreciação dos automóveis quando bem conservados é de aproximadamente 20% ao ano, dado que evidencia a elevada perda patrimonial que as medidas assecuratórias acabam representando atualmente. Situação que a medida proposta não altera. Peguemos um Corolla, por exemplo. Este veículo custa aproximadamente R$ 100.000,00, de modo que, ao aplicar-se a taxa de depreciação de 20%, percebe-se que em cinco anos, o valor do carro diminui mais de 50%, sem levar em conta a deterioração causada pelo abandono automóvel em um pátio público ou sua utilização nas desgastantes atividades dos órgãos de segurança, o que gera maior perda de valor patrimonial. A tudo isso, some-se ainda o fato de que no Código Tributário Nacional não há artigo que excepcione os possuidores dos automóveis recolhidos no pátio de pagar os tributos respectivos aos bens. Desta forma, o possuidor do carro apreendido continuará a pagar o Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores (IPVA) e todos os tributos que incidem sobre os automóveis, mesmo não tendo a posse efetiva do bem. Por outro lado, além de o investigado ter custos com o bem apreendido, cabe ao Estado arcar com a proteção do bem, sendo responsável por sua guarda. Como há um excessivo número de bens confiscados, o dinheiro gasto pelo Estado para a tentativa de preservação destes bens é alto, e poderia estar sendo investido de outras formas mais benéficas. Assim, conclui-se que as medidas cautelares, como administradas atualmente, de uma maneira geral, ao invés de garantirem a restauração do dano advindo do delito, servem apenas para deteriorar o bem, causando, na verdade, grande perda econômica ao final do processo, o que não beneficia nem o imputado, nem a vítima e nem mesmo o Estado. A medida proposta pelo Ministério da Justiça auxilia o Estado, mas prejudicam ainda mais a vítima e o imputado. 4. Crítica a nível normativo: é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via Emenda Constitucional? 1 Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/audiencia/arquivo/2006/012/documento/relatorio_vida_util_volume_2.pdf, p. 63. Acesso em 12/01/2020 às 17:15. 114 A utilização dos bens apreendidos pelo poder público, apesar de já ser aplicada pelo judiciário e visar a desoneração do Estado quanto a gestão e cuidado desses bens, não encontra respaldo na Constituição Federal. Apesar da Constitucionalidade do perdimento do bem, sua utilização não é explicitamente abordada pela Carta Magna, sendo certo que o direito à propriedade é contemplado pela lei maior, ainda que esse condicionado à determinados limites. Nesse sentido, cabe observar que ao onerar o patrimônio do investigado mediante o uso de seus bens pelas forças de segurança, o Estado está equiparando o tratamento dado ao inocente e ao culpado, vulnerando a presunção de inocência que vigora até o transito em julgado da sentença penal, ante a utilização dos bens do imputado e sua consequente oneração, como se esses já tivessem sido objeto do perdimento em favor do Estado. Note-se: as medidas restritivas de direitos individuais adotadas pelo Estado só se legitimam quando adotadas para a tutela de bens jurídicos igualmente importantes, como no caso das penas privativas de liberdade, que se legitimam a partir da ideia da tutela da segurança pública. Assim, quando observada detidamente a hipótese do uso dos bens do investigado pelos agentes estatais, observa-se que tal situação, além de desnecessária, tem por finalidade unicamente o fortalecimento da máquina pública, sem uma real correlação a tutela de direito e garantias individuais. Situação que afasta a legitimidade constitucional da medida. Por fim, é importe salientar também que a redação da medida, tal como formulada, não se preocupa em distinguir os tipos de medidas assecuratórias previstas no Código de Processo Penal2, pois dispensa a todas as medidas assecuratórias o mesmo tratamento, não se preocupando com as distinções existentes em cada caso. Assim sendo, a medida do pacote anticrime prevê um tratamento que, equipara situações substancialmente distintas relativas aos bens constritos, independentemente de sua 2 De acordo com Bottini, o sequestro pode recair sobre o patrimônio do investigado e de terceiros e havendo a suspeita de que os valores possuem origem criminosa, poderá ocorrer sua constrição 2, ainda que em posse ou titularidade de pessoas que não foram acusadas, isto é, que não fazem parte daquele processo. No que tange à hipoteca legal, a aplicação de tal medida sobre os bens imóveis do indiciado decorre de lei, portanto, não cabendo determinação judicial. Cabe apenas à parte interessada – usualmente o ofendido – requerer a sua especialização, quer dizer, apontar sobre quais imóveis ela deverá incidir, tornando-os indisponíveis. Segundo Nucci, Trata-se de algo natural, uma vez que não se pode bloquear, ao longo da instrução, todo o patrimônio do acusado, visto que, diante da infração penal em tese cometida, o valor da indenização futura pode não ser elevado o suficiente para uma constrição tão extensa. 115 origem, vínculo com a atividade criminosa ou destinação, desconsiderando o princípio da proporcionalidade, que permeia todo o sistema jurídico, especialmente o sistema penal. Ainda que o direito de propriedade não seja absoluto, nota-se que a utilização dos bens do imputado antes de sua condenação resulta em certo nível violação desse direito constitucionalmente assegurado, o que é ainda viabilizado mediante o desrespeito à garantia constitucional da presunção de inocência. Assim, considerado o status de cláusulas pétreas das referidas normas, concluise ser inviável a inclusão da medida, mesmo que mediante proposta de emenda constitucional. 5. O grupo propõe alternativa à proposta? Considerado o objetivo principal das medidas cautelares bem como a maior eficiência de todo o sistema criminal, cabe destacar que existem meios mais adequados para a gestão dos bens apreendidos, e que produzem resultado benéficos para todas as partes do processo: tratase da hipótese da alienação antecipada dos bens apreendidos. Resgatando o exemplo anteriormente dado a respeito da depreciação dos veículos, observa-se que a alienação antecipada do bem, seguida do deposito judicial da quantia arrecadada, evita a perca patrimonial, bem como os custos resultantes do acautelamento do bem, conforme passamos a observar abaixo: 116 DEPRECIAÇÃO X DEPÓSITO JUDICIAL valor do carro x incidência da tava de depreciação (20%) valor x incidência da taxa selic (6% a.a) 180.000 168.948 160.000 141.852 140.000 120.000 100.000 119.102 106.000 112.360 126.248 150.363 159.385 133.823 100.000 80.000 100.000 80.000 60.000 64.000 51.200 40.000 40.960 20.000 32.768 0 ANO 1 ANO 2 ANO 3 ANO 4 ANO 5 ANO 6 26.214 20.972 ANO 7 ANO 8 16.777 13.422 ANO 9 ANO 10 O gráfico acima representa a comparação entre a deterioração usual de um veículo apreendido, estimada na ordem dos 20% ao ano, em relação ao rendimento do depósito judicial do valor arrecadado, corrigido pela taxa Selic. Nota-se que a diferença é muito significativa, podendo chegar a mais de 10 vezes em 10 anos. Nesse diapasão, considerando que os valores acautelados, ressalvada a hipótese de indenização da vítima, serão destinados ao próprio Estado, o qual poderá investi-los nos órgãos de segurança pública de modo muito mais eficiente do que a mera utilização dos bens constritos, a alienação antecipada do bem torna-se uma solução muito mais adequada e justa. A alienação antecipada favorece ambas as partes, vez que, com menor quantidade de bens apreendidos e menor necessidade armazenamento, o Estado não precisará mais gastar com compra ou aluguel de armazenamento, proteção destes locais e a manutenção para sua conservação; e com a condenação do imputado o Estado receberá uma quantia maior, pois o montante investido teve a correção anual. É igualmente benéfico para o imputado, vez que se for constatado a licitude da atividade e a liberação do dinheiro equivalente ao bem apreendido, ele não suportará o ônus da depreciação e do valor referente às taxas e impostos. 117 Dessa forma, tendo em vista que o Código de Processo Penal, no artigo 144-A, já prevê a alienação antecipada3, objetivando sua efetividade e aplicação, propõe a inclusão do artigo 144-B no Código de Processo Penal, com a seguinte redação: Art. 144-B: Nos casos de quaisquer das medidas cautelares deste capítulo, será realizada a alienação do bem quando assim requerida por seu proprietário, sendo a quantia arrecadada depositada em conta judicial. §1º: A alienação de que trata o caput será realizada no prazo máximo de 180 dias após a realização do pedido, sob pena de extinção da medida cautelar, ressalvadas as hipóteses em que se verificar justo motivo para a demora. A alteração sugerida dá ao imputado, principal interessado na conservação do patrimônio, a opção a respeito da alienação antecipada, já que a ele incumbem os principais ônus da deterioração, ou mesmo do desfazimento de determinados bens. Ao mesmo tempo, considerando a baixa efetividade da previsão já existente a respeito da alienação antecipada de bens constritos, a proposta agrega a possibilidade do levantamento da medida em caso da demora excessiva da alienação, com vistas a viabilizar seu real emprego. 3 Art. 144-A. O juiz determinará a alienação antecipada para preservação do valor dos bens sempre que estiverem sujeitos a qualquer grau de deterioração ou depreciação, ou quando houver dificuldade para sua manutenção. §1º O leilão far-se-á preferencialmente por meio eletrônico. §2º Os bens deverão ser vendidos pelo valor fixado na avaliação judicial ou por valor maior. Não alcançado o valor estipulado pela administração judicial, será realizado novo leilão, em até 10 (dez) dias contados da realização do primeiro, podendo os bens ser alienados por valor não inferior a 80% (oitenta por cento) do estipulado na avaliação judicial. §3º O produto da alienação ficará depositado em conta vinculada ao juízo até a decisão final do processo, procedendo-se à sua conversão em renda para a União, Estado ou Distrito Federal, no caso de condenação, ou, no caso de absolvição, à sua devolução ao acusado. §4º Quando a indisponibilidade recair sobre dinheiro, inclusive moeda estrangeira, títulos, valores mobiliários ou cheques emitidos como ordem de pagamento, o juízo determinará a conversão do numerário apreendido em moeda nacional corrente e o depósito das correspondentes quantias em conta judicial. §5º No caso da alienação de veículos, embarcações ou aeronaves, o juiz ordenará à autoridade de trânsito ou ao equivalente órgão de registro e controle a expedição de certificado de registro e licenciamento em favor do arrematante, ficando este livre do pagamento de multas, encargos e tributos anteriores, sem prejuízo de execução fiscal em relação ao antigo proprietário. §6º O valor dos títulos da dívida pública, das ações das sociedades e dos títulos de crédito negociáveis em bolsa será o da cotação oficial do dia, provada por certidão ou publicação no órgão oficial. 118 MEDIDA X – PRESCRIÇÃO Sob coordenação de Maria Eugênia Ferreira da Silva Rudge Leite e Marco Antonio Chies Martins Elaborado por José Antonio Barbosa da Silva Lima, Lucas Pi Campanelli, Natália Kovacs Pendl, Pedro Fernando Borges e Taís Santos de Araújo 1. O que diz a medida? O Projeto de Lei 822/2019, proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública como uma questionável solução à problemática da criminalidade, apresenta duas substanciais alterações no instituto jurídico da prescrição. A primeira delas tem como finalidade adicionar um terceiro inciso ao artigo 116 do Código Penal e, com isso, instituir uma nova causa de suspensão dos prazos prescricionais, qual seja, a pendência de julgamento de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, estes no caso em que inadmitidos. A segunda mudança, por seu turno, diz respeito as causas de interrupção da prescrição dispostas nos incisos quarto e quinto do artigo 117 do mesmo diploma legal. Nos termos do projeto de lei nº. 882/2019, os artigos 116 e 117, do Código Penal, passariam a ter a seguinte redação: Art. 116 - Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) I - enquanto não resolvida, em outro processo, questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) II - enquanto o agente cumpre pena no exterior; e III - na pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores, estes quando inadmissíveis. Parágrafo único - Depois de passada em julgado a sentença condenatória, a prescrição não corre durante o tempo em que o condenado está preso por outro motivo. Art. 117 - O curso da prescrição interrompe-se: I - pelo recebimento da denúncia ou da queixa; II - pela pronúncia; III - pela decisão confirmatória da pronúncia; IV - pela publicação da sentença e do acordão recorríveis; V - pelo início ou continuação da execução provisória ou definitiva da pena; VI - pela reincidência. § 1º - Excetuados os casos dos incisos V e VI deste artigo, a interrupção da prescrição produz efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo, estende-se aos demais a interrupção relativa a qualquer deles. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984) § 2º - Interrompida a prescrição, salvo a hipótese do inciso V deste artigo, todo o prazo começa a correr, novamente, do dia da interrupção. 119 Os trechos negritados correspondem àqueles que tiveram qualquer tipo de alteração a partir do projeto em questão. Percebe-se que, em um primeiro olhar, as modificações sugeridas parecem singelas e insuscetíveis de causar qualquer alteração significativa no sistema penal atual. A partir de uma análise pormenorizada, porém, depreende-se que as propostas representariam grande impacto no sistema penal e processual penal, representando, inclusive, contrariedade à própria ratio legis do instituto da prescrição no Direito Penal Brasileiro. Para que se possa entender o contrassenso das alterações sugeridas, é preciso primordialmente compreender do que trata a prescrição e o motivo pelo qual exerce papel fundamental no Direito Penal nacional. Com efeito, a prescrição penal constitui verdadeiro incentivo para que o Estado efetive o jus puniendi, dentro de um prazo razoável e suficiente para atender tanto o anseio da sociedade em ver punidos aqueles que infringem suas regras, quanto o próprio réu que tem direito a uma resolução célere do processo a que responde. Neste sentido, merece especial destaque a consonância do instituto com a garantia constitucional da duração razoável do processo, positivado no artigo 5°, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “A todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”. Levando em conta a intenção do legislador constitucional em garantir que todo indivíduo seja julgado em um prazo razoável, estabeleceu-se uma espécie de sanção ao Estado caso não exerça seu poder punitivo dentro dos limites temporais estabelecidos legalmente. A prescrição constitui, portanto, verdadeiro limite temporal à atuação estatal, incentivando o Estado a cumprir seu papel sancionador sem adiamentos injustificados. Nas palavras de Sérgio Chastinet Duarte Guimarães e Ivan Firmino Santiago da Silvo em parecer ao Instituto dos Advogados Brasileiros: Sem a prescrição penal haveria um incentivo à inércia estatal quanto à realização de tais atividades, pois essas poderiam ser adiadas pelos mais variados motivos, sem que nenhum tipo de sanção processual ou de direito material fossem aplicáveis aos responsáveis pela demora. [1] Evidente, portanto, a relevante função da prescrição em nosso ordenamento jurídico. O atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro, no entanto, propõe, em seu “Pacote 120 Anticrime”, medidas para evitar a prescrição, sob a justificativa de que o instituto consistiria em verdadeira “válvula de escape da maior parte de criminosos para furtar-se à aplicação da lei”[2]. Neste ponto, importante analisarmos quais os objetivos implícitos e explícitos de referida proposta, conforme veremos a seguir. 2. Quais são seus objetivos declarados e não declarados? Conforme explicitado no tópico anterior, a medida em questão é proposta com fundamento na falsa alegação de que a prescrição é um instrumento por meio do qual o réu pode se valer- para “escapar” da aplicação da lei penal. Ao contrário do afirmado, a prescrição é um instituto importante para o direito penal, sobretudo para garantir a efetividade das penas aplicadas pelo Estado-juiz. Com a extinção da punibilidade em razão do decurso do tempo, evita-se a aplicação de penas desproporcionais, bem como limita-se a atuação estatal, exigindo a efetividade e prontidão da prestação jurisdicional estatal em um tempo adequado. De forma explícita, as mudanças propostas pelo Ministro Sérgio Moro têm por objetivo impedir o reconhecimento da prescrição punitiva e executória, visando dar mais efetividade à ação penal estatal – o que, na visão do Ministro, seria eficaz no combate à criminalidade, sendo esta uma concepção punitivista do nosso sistema penal. Sem prejuízo do quanto destacado, a medida posiciona-se em um background mitigador de direitos e garantias fundamentais. É próprio do nosso ordenamento jurídico a prescritibilidade dos crimes, eis que o instituto da prescrição é essencial para garantir que, além de célere, a prestação jurisdicional criminal seja, também, plausível e proporcional. Desta forma, é evidente que transformar o direito de recorrer de uma sentença em ônus para o réu, representaria permitir o julgamento a qualquer tempo dos processos criminais, além de reduzir os recursos interpostos em favor daquele contra quem o Estado pretende exercer seu jus puniendi. Analisando as propostas de alteração, pode-se ilustrar o raciocínio anterior com a inclusão do inciso III ao artigo 116 do Código Penal. Fosse a pendência de embargos de declaração ou recursos aos Tribunais Superiores uma causa para suspensão da prescrição, o reconhecimento desta restaria sujeito à discricionariedade dos Tribunais, que poderiam protelar o julgamento a fim de que a pretensão estatal de punir permanecesse. 121 No mesmo sentido, a exclusão da palavra “condenatório” que atualmente compõe a redação do artigo 117, CP, permite a renovação do prazo prescricional em desfavor do réu, como será demonstrado mais adiante. Em suma, quanto aos objetivos implícitos da medida, pode-se apontar uma movimentação legislativa com a intenção mitigar uma série de direitos constitucionalmente garantidos ao réu, de forma a satisfazer um modelo de direito penal punitivista e pouco técnico para os dias atuais. 3. Quais são seus eventuais efeitos nocivos? Analisando as medidas propostas para evitar a prescrição, com toda cautela e responsabilidade próprias da Academia, entendemos que estas, prestigiando uma política criminal de bases punitivistas, atentam contra garantias constitucionais dos acusados no devido processo penal, além de afrontarem a logicidade do ordenamento jurídico. As causas suspensivas da prescrição, entre as quais estão aquelas disciplinadas no artigo 116 do Código Penal, são hipóteses em que o Estado é impedido, pela ocorrência de eventos externos ao processo, de exercer regularmente o seu poder-dever de punir. Assim, a título de exemplo, é razoável que o prazo prescricional para prolação de uma sentença seja suspenso no caso de o réu estar cumprindo pena no estrangeiro, na medida em que, por elementos alheios à persecução penal (acusado preso em outro país), a instrução e o julgamento da ação em trâmite no Brasil restarão prejudicados. O “Projeto Anticrime”, em sentido oposto, parece não observar tal lógica jurídica pertinente às causas de suspensão da prescrição. Isso porque, a pendência de apreciação de embargos de declaração ou de recursos interpostos aos Tribunais Superiores são atos próprios das relações processuais e intimamente internos a estas, razão pela qual não têm o condão de obstar a efetividade da justiça penal, já que a compõem. Dessa maneira, não é crível que o Estado se valha de elementos fundamentais do devido processo legal, como são a possibilidade de reparação de decisões omissas, contraditórias ou obscuras e o direito de acesso aos Tribunais Superiores, como subterfúgio à sua ineficácia de investigar, processar e julgar as demandas penais em período razoável. Ressalta-se, aqui, a significante ofensa do “Pacote Anticrime” aos princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, bases do Estado Democrático de Direito dispostas no artigo 5º, LV, da Constituição Federal. Ao condicionar o acesso dos acusados à oposição de embargos de declaração e à interposição de Recurso Especial e Extraordinário a 122 um prejuízo processual, isto é, a suspensão dos prazos prescricionais, a pretensa nova redação do artigo 116 impedirá que muitos réus utilizem das vias recursais com fins de alcançar um melhor resultado em seus julgamentos, o que, em alguns casos, pode significar a prisão de um indivíduo inocente. Nota-se, ainda, o potencial prejuízo a ser causado à coesão do ordenamento jurídico, na medida em que decisões viciadas, não embargadas ou rediscutidas, passarão a compor a jurisprudência dos Tribunais. Para além disso, em tempos de acalorados debates sobre ativismo judicial e limites da função jurisdicional do Estado, a alteração legislativa proposta pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública outorga aos magistrados o domínio discricionário sobre os prazos prescricionais. O artigo 116 do Código Penal, como já dito, disciplina situações exoprocessuais em relação às quais o juízo a quo não exerce seu poder de tutela, como ocorre na pendência de resolução, em outra demanda judicial, de questão de que dependa o reconhecimento da existência do crime. Nesse sentido, a oposição de embargos de declaração como causa de suspensão da prescrição significa a possibilidade de os juízes controlarem a duração do processo a partir de elementos que, além de serem internos à ação penal, são de sua exclusiva competência. Portanto, caso perceba a proximidade do termo final de um prazo prescricional, poderia o magistrado protelar o julgamento dos embargos opostos contra qualquer de suas decisões interlocutórias, de modo a impedir o reconhecimento da causa extintiva da punibilidade. Observa-se, então, a mitigação do princípio da legalidade, disposto no artigo 5º, II, da Constituição Federal, já que a conveniência do juízo, e não a Lei, seria o parâmetro para ocorrência ou não da prescrição. Ademais, a legislação pátria é omissa na instituição de prazos fatais para a atuação dos magistrados, sendo que a demora na prestação jurisdicional não lhes causa qualquer sanção processual, a não ser a ocorrência da prescrição. Esta, então, estimula a atividade dos Tribunais, pois o seu reconhecimento, além de promover o julgamento do feito indiretamente, enfraquece o Estado, que não quer ser enfraquecido. Por óbvio, adotada essa nova proposta, é certo que a morosidade já característica das demandas será catalisada, em estrita violação à duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII, da CF). Os efeitos desta constatação, observando-se as lições do Professor Gustavo Junqueira[3], são vários: no que diz respeito a política criminal, a demora na prolação da sentença provoca a descrença no ordenamento jurídico, legitimando linchamentos e vinganças; 123 pelo enfoque da humanidade da pena, a condenação atrasada pode ter efeito deletério sobre a personalidade do indivíduo que se encontra no caminho da ressocialização; e sob o prisma processual, quanto maior o lapso entre o cometimento do delito e o julgamento da ação penal, maior a chance de o aparato probatório esvair-se. Tendo em vista os pontos até aqui discutidos, não é difícil vislumbrar os efeitos nocivos que a mera inserção de um novo inciso ao artigo 116 do Código Penal pode causar à logicidade do instituto da prescrição e aos princípios constitucionais da ampla defesa, do contraditório, da legalidade e da razoável duração dos processos. De mais a mais, o “Pacote Anticrime” ainda propõe duas alterações ao artigo 117 do Código Penal. A primeira, referente ao inciso IV, pretende suprimir a palavra “condenatórios” de sua atual redação, prestigiando, assim, o entendimento de que sentenças e acórdãos recorríveis de qualquer natureza poderiam interromper o prazo prescricional, o que, mais uma vez, fere a lógica do ordenamento jurídico. Pense na hipótese de um réu que, sendo condenado em primeira instância, apela e tem seu pleito não provido. Nesse cenário, não é razoável que o acórdão que mantém a sentença interrompa o prazo prescricional, na medida em que o Estado já detinha um título executivo judicial condenatório contra o réu, tendo este sido apenas confirmado em segundo grau. Caso contrário, admitindo-se a interrupção, frustrado seria o fundamento da prescrição que busca impedir feitos longos e intermináveis, já que o Poder Público poderia valer-se de recursos infundados com fins de ver o prazo prescricional renovado, afastando-se, dessa maneira, do seu dever de alcançar o trânsito em julgado de maneira célere. Soma-se a isso outra contradição apresentada pela Projeto, segundo a qual acórdãos absolutórios interromperiam o lapso prescricional. Nesse sentido, absolvido o acusado, isto é, reconhecido que contra ele não prosperavam os termos da denúncia, o Estado teria, a seu favor, novo prazo, contado do início, para buscar uma eventual condenação pelas vias recursais. Tratase, então, de absurdo lógico: ao mesmo momento em que o poder de punir é afastado pelo acórdão absolutório, este o é reaproximado pela interrupção da prescrição. Por sua vez, a segunda pretensa modificação do artigo 117, do Código Penal, busca incluir em seu inciso V a renovação do lapso prescricional pelo início ou continuação do cumprimento de pena provisória. O Ministro da Justiça Sergio Moro almeja aqui introduzir na legislação penal brasileira o entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado no julgamento do HC nº 126.929/SP, que considerou possível a execução provisória da pena após 124 o trânsito em julgado em segunda instância. Vale destacar que referido entendimento foi, definitivamente, afastado pelo julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43, 44 e 54, as quais confirmaram a constitucionalidade do artigo 283, do Código de Processo Penal, e a impossibilidade de execução provisória da sentença penal condenatória. Neste ponto, acreditamos que a medida é inconstitucional, pois infringe materialmente o princípio da presunção de inocência, disposto no artigo 5º, LVII, da Carta Magna. Isso porque, faz incidir sobre a prescrição situação processual, qual seja, a confirmação da condenação em segundo grau, que ainda pode sofrer reparação, tendo em vista que a sentença ainda não transitou em julgado, razão que possibilita ao acusado o acesso às Cortes Superiores. Por fim, reproduzindo a análise do Professor Maurício Stegemann Dieter, é de rigor a observação de que qualquer alteração no instituto da prescrição “tem um potencial devastador sobre o sistema penitenciário, especialmente porque em regra ela atinge os crimes com penas baixas, que certamente não precisam ajudar a abastecer o enorme contingente de encarcerados do país nem terão efeitos sociais negativos pela ausência de penalização” [4]. 4. Crítica à nível normativo: é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via Emenda Constitucional? Não há como se falar em constitucionalidade da medida acima transcrita do Pacote Anticrime, haja vista que estão escancaradas violações a diversos princípios constitucionais. Uma breve análise da Carta Magna brasileira é suficiente para perceber a clara preocupação do legislador constituinte em assegurar princípios que balizem a criação e aplicação das normas atinentes ao Direito Penal. Tal fato se deu ante um contexto histórico de redemocratização e preocupação em afastar o totalitarismo estatal, proporcionando o respeito à dignidade da pessoa humana e ao devido processo legal. Dentre estes princípios, a prescritibilidade dos crimes, o contraditório e ampla defesa, a presunção de inocência, a dignidade da pessoa humana, a legalidade, e, por fim, a duração razoável dos processos foram previstos expressamente no artigo 5º, da Constituição Federal dada a sua importância. A prescritibilidade dos crimes existe como maneira de limitar o jus puniendi Estatal, de modo que garanta que o detentor da ação penal, o Estado, atue de maneira célere, sob pena de perder tal poder, garantindo, assim, outro princípio constitucional, qual seja, a duração razoável dos processos. 125 Neste contexto, a inclusão da sentença absolutória no inciso IV do artigo 117 do Código Penal, prevista de forma implícita na redação do “Pacote Anticrime”, deve ser rejeitada, pois o próprio Estado reconheceu a inocência do acusado (e não teve a sua pretensão concretizada) e, consequentemente, não deve ser protegido da degradação resultante do tempo. Ademais, a integração da execução provisória como forma de interrupção prescritível fere o princípio da inocência e o inciso LVII do artigo 5° da Constituição Federal, que afirma “que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. A medida X do “Pacote Anticrime” diz respeito à reforma do artigo 116 e 117 do Código Penal. O primeiro versa sobre as causas impeditivas da prescrição. As mudanças propostas seriam a suspensão do prazo prescricional enquanto os embargos de declaração opostos não forem julgados e a suspensão do prazo prescricional na hipótese de pendência de admissibilidade de recurso interposto aos tribunais superiores. O segundo, por sua vez, trata das causas interruptivas da prescrição, e teria por mudanças a interrupção do prazo prescricional pela publicação de sentença ou de acórdão recorrível, isto é, foi tirada da letra da lei a expressão “condenatório” e a interrupção do prazo prescricional pelo início ou cumprimento de pena, sem a preocupação quanto ao caráter de provisoriedade dela. Resta claro, portanto, que o objetivo da mudança é inconstitucional, por ser diametralmente oposto aos princípios supramencionados. E, nesse mesmo sentido, não há que se falar em inclusão no ordenamento por meio de Emenda Constitucional, haja vista que a matéria da medida vai de encontro com a Carta Magna, e, portanto, não será por ela recepcionada. 5. É possível alguma alternativa para a proposta? Conforme bem apontado no desenvolvimento deste trabalho, as medidas apresentadas pelo “Pacote Anticrime” para evitar a prescrição não só não trazem quaisquer vantagens ao ordenamento jurídico pátrio, como violam princípios norteadores do Estado Democrático de Direito. Aprovadas, as mudanças nos artigos 116 e 117 do Código Penal evitarão o reconhecimento da prescrição em casos específicos, especialmente naqueles em que o réu é condenado a pequenas penas privativas de liberdade. Isso se dará, contudo, ao grave custo da mitigação de importantes princípios constitucionais norteadores do devido processo legal, o que 126 representa considerável lesão aos direitos e garantias dos acusados, que ao invés de lesados, devem ser respeitados, como baliza, na relação processual penal, tendo em vista o caráter nocivo que o Direito Penal e Processual Penal pode ter. O instituto da prescrição, conforme já exaustivamente debatido, serve como estímulo para que a persecução penal ocorra dentro do devido processo e de maneira mais célere possível, sob pena da extinção da pretensão punitiva. A mudança sugerida pelo Pacote Anticrime, por meio da mitigação e lesão aos Princípios, culminaria na violação do instituto em si. Defendemos, nesse sentido, a manutenção da atual redação do Código Penal, haja vista que não se vislumbra alternativa razoável, quiçá constitucional. Isso porque, para além das medidas propostas configurarem demasiado retrocesso processual, tendo em vista seu caráter meramente punitivista que pretende transferir do Estado ao réu o ônus da prescrição, acreditamos que o poder-dever de punir apenas será efetivado com mudanças na estrutura das instituições envolvidas na persecução penal. Processos investigativos mais céleres e a dinamização do funcionamento do Poder Judiciário são exemplos de elementos diretamente relacionados ao tempo das ações penais que são de competência exclusiva do Poder Público. 127 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS [1] Parecer ao IAB. Disponível em: <https://www.iabnacional.org.br/pareceres/pareceresvotados/parecer-na-indicacao-001-2019-direito-penal-processo-penal-corrupcao-crimeorganizado-crimes-violentos-contra-a-pessoa>. Acesso em: 03 out. 2019 às 14:00. [2] PL 882/2019. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2192353>. Acesso em: 03 out. 2019 às 15:00 [3] JUNQUEIRA, Gustavo, VAZOLIN, Patricia. Manual de direito penal - parte geral. 5ª Edição. São Paulo: 2019, p. 751. [4] Maurício Stegemann Dieter. Parecer Técnico-Jurídico: considerações sobre os Projetos de Lei apresentados pelo Ministro da Justiça Sérgio Moro reunidos sob o título de “Projeto Anticrime”. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/atividade- legislativa/comissoes/grupos-de-trabalho/56a-legislatura/legislacao-penal-e-processualpenal/documentos/outros-documentos/parecer-tecnico-juridico-mauricio-stegemanndieter/view. Acesso em 15/01/2020 às 23:55. 128 MEDIDA XI – CRIME DE RESISTÊNCIA Coordenação de Lorraine Carvalho Silva, Gabriel Pires Viegas e Roberta de Lima e Silva Elaborado por Bruna Alcoléa Zavataro Kwasniewski, Carolina Eichhorn Gomes, Davi Benatti Conte Lopes Lima, Gabriela Faria Mendes da Costa Martins, Higor Michael Santos Dias, Laís Albino da Silva Barbosa e Maria Júlia Valerini Cassanta 1. O que diz a medida? Primeiramente, antes de entrar de fato no que diz a medida proposta pelo “Pacote Anticrime”, cabe discorrer sobre o conceito de crime de resistência, este que está previsto no artigo 329, do Código Penal, a saber: Opor-se à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio: Pena - detenção, de dois meses a dois anos. § 1º - Se o ato, em razão da resistência, não se executa: Pena - reclusão, de um a três anos. § 2º - As penas deste artigo são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. Desobediência. O crime de resistência classifica como conduta criminalizada o ato de resistir, ou seja, colocar-se contra a prática de um ato de natureza legal, ameaçando ou exercendo violência em face do funcionário competente. Um exemplo deste tipo de situação é uma autoridade, em cumprimento de suas funções, que é ameaçada ou vítima de violência enquanto pratica ato legal. Atualmente, para a consumação deste tipo de crime, é imprescindível que haja conduta ativa, ou seja, presente uso de violência, o simples fato de resistir não configura o fato típico previsto pelo tipo penal.1 Na medida apresentada pelo Pacote Anticrime, o objetivo é alterar o artigo 329 do Código Penal, incluindo a seguinte redação: Pena - detenção, de dois meses a dois anos, e multa. § 1º Se o ato, em razão da resistência, não se executa: Pena - reclusão, de um a três anos, e multa. § 2º Se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro: Pena - reclusão, de seis a trinta anos, e multa. § 3º As penas previstas no caput e no §1º são aplicáveis sem prejuízo das correspondentes à violência. (NR). BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – volume 5. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 201-202. 1 129 Percebe-se, claramente, um exacerbado aumento da pena máxima prevista, visto que no dispositivo vigente a penalidade máxima é de 3 anos. Ainda, de forma totalmente desproporcional, inclusive na justificação do próprio projeto de lei apresentado na Câmara dos Deputados2 e no Senado Federal3, a inclusão do parágrafo 2º, o qual estabelece em um único dispositivo possibilidade do crime de resistência com resultado morte, sendo esta uma consequência da ação de resistir e, em seguida, o crime de resistência com resultado de risco de morte, ou seja, um resultado abstrato, de eventual perigo, sendo ambas as hipotéticas situações submetidas ao mesmo preceito secundário, uma pena de 6 a 30 anos, equivalente ao crime de homicídio qualificado, em que há comprovado dolo do agente, tipo penal com premissas conceituais de concretização totalmente diferentes do sugerido pela medida. Portanto, sendo aprovada a proposta do Pacote Anticrime, o crime de resistência receberia uma nova modalidade de resultados culposos cuja pena se equipararia a um crime de dano, na modalidade dolosa e qualificada. 2. Quais são seus objetivos declarados e não declarados? Ainda que, como mencionado anteriormente, o Ministro Sergio Moro não inclua na justificação argumentos quanto a essa medida, especificamente, apontamos que o objetivo declarado da alteração do tipo penal de resistência pode ser a busca por aprimorar a prevenção geral. No entendimento de que o direito penal tem por função persuadir pessoas que não cometerem crimes ao impor penas altas como exemplo à sociedade, a tentativa de aumentar a pena criando uma nova tipificação ao crime de resistência sirva como desestímulo ao indivíduo que resistir à execução de ato legal resulta em morte ou risco de morte, principalmente em prejuízo de policiais. Porém, a análise mais detida e associada à realidade da medida torna explícito que a aprovação da proposta eliminaria da apreciação do Tribunal do Júri os fatos enquadrados no novo tipo, visto que a conduta se relacionaria ao verbo nuclear de resistir, sendo que sua criminalização não abrange a proteção do bem jurídico vida, diferentemente do tipo de homicídio doloso, desta forma a competência passaria a ser de um juiz singular. Pode-se assim dizer que o objetivo não declarado seria a tentativa de diminuir a avaliação da sociedade civil em casos que envolvam agentes de segurança, tendo afastado a 2 3 Apresentado como Projeto de Lei nº 882/2019 e posteriormente apensado ao Projeto de Lei 10.372/2019. Projeto de Lei nº 6.341/2019. 130 competência e a soberania do veredicto de casos classificados pela proposta de qualificação do crime de resistência pelo resultado morte ou risco de morte. Vale ressaltar que a presente proposta reconhece a divergência existente na doutrina com relação à qualificadora e sua interferência no bem jurídico tutelado por esses tipos penais qualificados, contudo, ressalta-se que se seguiu a compreensão de parte da doutrina de que a qualificadora é uma circunstância atrelada ao tipo penal principal, ou seja, são situações fáticas e previsíveis que agravam a conduta do agente, seja porque revelam modos de execução, interesses, meios mais prejudiciais, seja porque causam resultados graves ou gravíssimos à conduta, seja porque afetam a vítima de formas mais intensas devido a um aumento de poder do agente. Assim, não há concordância com a doutrina que afirma que a qualificadora altera o bem jurídico tutelado, mesmo porque, a análise probatória dos fatos considerados criminosos, se e quando levarem ao entendimento de que havia intenção dolosa de se atingir bem jurídico diverso da tipificação inicial, ao magistrado há autonomia para, na sentença, ajustar a classificação legal (emendatio libelli). 3. Quais são suas consequências previsíveis? Produzem efeitos positivos ou nocivos? Não se faz necessária uma análise minuciosa do “Pacote Anticrime” para concluir que suas medidas trarão um imenso retrocesso para a legislação penal e processual penal, ao passo que visam o combate à criminalidade e à corrupção de forma ineficaz, dando aval à truculência policial a partir de um viés extremamente punitivista e encarcerador. Especificamente no que tange ao crime de resistência, previsto no artigo 329 do Código Penal, tal regresso é facilmente identificado, na medida em que dá demasiada valoração a um delito cuja proteção está voltada a um bem jurídico “ato legal” ou “ordem pública” que para além de amplamente questionáveis por serem conceitos vagos, poderiam não se enquadrar às restrições principiológicas do próprio direito penal enquanto instrumento de proteção de bens jurídicos relevantes. Além disso, a proposta tem a capacidade de enaltecer, ainda mais, a palavra de policiais. Tal assertiva se concretiza na medida em que analisamos o tipo atual em comparação com a medida do “Pacote Anticrime”, a qual propõe a reforma do referido artigo no que concerne a inclusão do §2º, em uma primeira análise, causando maior espanto a pena aplicável: 131 “se da resistência resulta morte ou risco de morte ao funcionário ou a terceiro”, podendo, como já afirmado, chegar ao limite de 30 anos de reclusão. Isto porque, caso aprovado o Projeto de Lei, ainda que a prática do autor incorresse no resultado morte e, portanto, com culpa, ou que houvesse apenas o risco de morte para o agente policial, a pena aplicável poderia chegar ao mesmo quantum do delito previsto no artigo 121, §2º, qual seja, o de homicídio – consumado – qualificado. Dessa forma, não só a modalidade culposa, mas também o risco de morte, seriam enquadrados na forma qualificada do delito de resistência. Assim, não há outro caminho senão considerar a proposta uma afronta ao princípio da proporcionalidade, tendo em vista que não se pode, em hipótese alguma, equiparar-se um resultado culposo ou um suposto risco de morte, ao dolo de matar alguém. Na mesma linha de raciocínio incorreu o jurista Alberto Toron, quando se opôs à medida aqui atacada, ao salientar que: Uma coisa é a ação de resistência da qual resulta morte. Outra, bem diferente, é a que acarreta apenas o “risco de morte para o agente público ou para terceiro. No último caso, que revela crime de perigo, o desvalor do resultado é abissalmente diferente da consumação da morte e não pode ensejar a mesma pena que, no mínimo, é a do homicídio simples.4 Importante, ainda, extrair da fala do referido jurista a intenção da medida de equiparar a consumação da morte ao crime de perigo abstrato, este, classificado por Luis Greco como inconstitucional, porquanto ofende o princípio da lesividade por considerar o tipo consumado sem sequer o bem jurídico ser exposto a um perigo concreto5. Ademais, algumas lacunas podem ser identificadas no projeto. Primeiramente, notável a ausência de previsão de como será analisado o suposto “risco” de morte. O termo colocado é demasiadamente impreciso, devendo haver produção de provas para que haja a certeza de que este efetivamente ocorreu. No entanto, a fragilidade probatória é imensa, tendo em vista que se trata de aspecto subjetivo. O termo chega ao limite da generalidade ao possibilitar que, em uma mesma situação, uma pessoa pode considerar-se em situação de risco, enquanto a outra não. Tal questão, 4 MARTINES, Fernando. Toron critica ambição encarceradora e restrição de direitos em projeto de Moro. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-fev-27/alberto-toron-critica-restricao-direitos-projeto-anticrime. Acesso em: 02.10.2019. 5 GRECO, Luis. Princípio da ofensividade e crimes de perigo abstrato – Uma introdução ao debate sobre o bem jurídico e as estruturas de delito. 132 portanto, ensejaria na valoração quase absoluta da palavra do agente policial, que já é largamente observada quando da apuração de outros crimes. Exemplo disso é visto no voto prolatado pelo Desembargador Sylvio Baptista Neto que, ao julgar recurso de apelação em 2011, manteve a condenação por suposto furto de bicicleta corroborada apenas pela palavra das testemunhas, policiais, que detiveram o réu em flagrante. Este, em sua versão, aduziu ter pago oitenta reais pelo objeto. Em seu voto, o Magistrado gaúcho declarou que: Em termos de prova convincente, os depoimentos dos policiais envolvidos nas diligências preponderam sobre a do réu. Esta preponderância resulta da lógica e da razão, pois não se imagina que, sendo a primeira uma pessoa séria e idônea, e sem qualquer animosidade específica contra o agente, vá a juízo e mentir, acusando um inocente.6 Não bastasse a enorme quantidade de mortes ocasionadas por agentes do Estado, seria necessário enaltecer ainda mais a palavra destes? O testemunho de policiais não deve ser averiguado pela perspectiva da dualidade entre acusar inocentes ou culpados, mas serve como confirmação do trabalho realizado. Nenhum policial irá desmentir sua própria ação testemunhando ter prendido a pessoa errada. A parcela da população que mais será atingida por esta alteração, será a negra e periférica. Isto porque verifica-se uma espécie de “prática homicida”, sobretudo nas favelas, na capital do Rio de Janeiro, por exemplo, em que o índice de mortes provocadas por policiais chega ao índice de 25% de todos os homicídios cometidos por agentes do estado do país. Destas vítimas, segundo pesquisa realizada no ano de 2017, 77% eram negras.7 Outra discrepância a ser observada pela violação do princípio constitucional da proporcionalidade é a competência a ser atribuída aos casos de resistência seguida de morte. Para a corrente que se priorizou nessa análise, o bem jurídico tutelado definido pelo legislador no caso da resistência seguida de morte permanece sendo a ordem pública, o ato legal, e, portanto, rito de juiz singular, contudo tendo o mesmo limite de sanção penal atrelada a casos de soberania do veredito. 6 Apelação Crime nº 70040693186. 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Rel. Des. Sylvio Baptista Neto, j. em 10.02.2011 7 COSTA, Joel Luiz. Pacote ‘anticrime’ de Moro atinge diretamente a população periférica. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/blogs/perifaconnection/pacote-anticrime-de-moro-atinge-diretamente-apopulacao-periferica-3>. Acesso em: 02.10.2019. 133 Pelo exposto, forçoso concluir, primeiramente, que a alteração proposta para o crime de resistência traria demasiada insegurança sobretudo para as classes periféricas e a população negra, na medida em que concede ao policial uma enorme valoração em sua palavra. Ademais, também importante ressaltar a insegurança jurídica, na medida em que o exacerbado alcance da pena proposta somado às lacunas em sua aplicação, não só configura afronta ao princípio da proporcionalidade, mas também ao princípio da isonomia, na medida em que ficará a livre critério de cada Magistrado a fixação da pena, sendo o intervalo entre a mínima e máxima excessivamente amplo. Conclui-se, assim, que a Medida XI do “Pacote Anticrime” produzirá apenas efeitos nocivos caso implementada no ordenamento jurídico. 4. Crítica a nível normativo é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via Emenda Constitucional? A Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, apresenta diversas garantias fundamentais que tem como finalidade preservar o Estado Democrático de Direito. Dentre essas garantias, encontra-se o princípio do contraditório e da ampla defesa, este definido também na Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, de 1948,em seu art. 11: “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não se prova sua culpabilidade, de acordo com a lei e em processo público no qual se assegurem todas as garantias necessárias para sua defesa”. Nesse sentido, diversas medidas do Pacote Anticrime, sob o ponto de vista constitucional, violam a interpretação que respeita a dignidade humana. Ao se tratar do crime de resistência, observa-se o aumento exacerbado do preceito secundário do tipo em casos de resultado morte ou risco de morte, uma vez que no Direito Penal tem-se o princípio da proporcionalidade, este define uma relação entre o crime praticado e o intervalo abstrato para aplicação da pena, ou seja, tal princípio funciona como limite para aplicação da sanção penal, tendo como parâmetro o ato ilícito cometido e a gravidade do bem jurídico violado. Para que este princípio seja de fato observado, deve-se ter em vista a adequação, a necessidade e a proporcionalidade da pena em relação à natureza da lesão abstrata do bem jurídico, o que não acontece ao observar-se o aumento excessivo e injustificado da pena do crime de resistência para 30 anos. Uma mudança incontestavelmente inconstitucional seja pelo aumento injustificado do preceito secundário, seja pela possibilidade de aplicação de pena tão longa para casos 134 extremamente distintos do crime parâmetro de violação ao bem jurídico vida, ou seja, o homicídio doloso qualificado. Na medida proposta no pacote Anticrime, está sendo proposto um crime de resistência com resultado morte, ou seja, um resultado culposo e, de maneira mais leviana, a equiparação da pena a um crime com resultado de “risco de morte”, em outras palavras, um crime de perigo. Equiparar uma pena ao agente que pratica crime cujo resultado não era intencionado com a punição que será recebida por réu que age intencionalmente para que o resultado mais grave ocorra viola profundamente o princípio da proporcionalidade. Ademais, seja pela perspectiva acusatória lastreada em atos flagranciais ou, ainda, pela produção probatória realizada oportunamente à instrução processual, certo é que a palavra do próprio policial ou funcionário público revelar-se-ia, majoritariamente, como único – e insuficiente – elemento de prova. Tal cenário mostra-se incompatível com os princípios constitucionais da ampla defesa e do contraditório, visto que ao prender em flagrante um indivíduo por esta acusação, permitir-se-ia, pelo cômputo da pena, a possibilidade de decretação de sua prisão preventiva. Da mesma forma, ao decorrer do devido processo judicial, admitir como elemento de convencimento do magistrado o mero depoimento de funcionário competente como se suficiente fosse, apenas reforça a discrepância valorativa na produção de provas, como já ocorre na prática forense e é vastamente observado em outras acusações, como no crime de tráfico de drogas, em que mais de 70% das condenações ocorrem baseadas pela única prova de testemunho policial8, cerceando a possibilidade de defesa do réu e diminuindo a possibilidade de que este possa contestar de forma eficaz as acusações que lhe foram atribuídas. Portanto, ante o exposto, tem-se que as propostas referentes ao crime de resistência violam os princípios norteadores da constituição e do Estado Democrático de Direito tornando insanável inclusive uma proposta via emenda constitucional, afinal estamos falando da própria proteção e finalidade da dignidade da pessoa humana ser norteada pelos princípios que serão violados se a medida for aprovada. Uma vez que os requisitos formais para propor uma PEC são: “a não supressão das chamadas cláusulas pétreas da Constituição (forma federativa de Estado; voto direto, secreto, universal e periódico; separação dos poderes e direitos e 8 RODAS, Sérgio. 74% das prisões por tráfico têm apenas policiais como testemunhas do caso. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-fev-17/74-prisoes-trafico-apenas-policiais-testemunhas>. Acesso em: 16.12.2019. 135 garantias individuais).” e, como exposto, há violação de cláusula pétrea e direitos fundamentais, não sendo uma alternativa plausível apresentar tal alteração como PEC. 5. O grupo propõe uma alternativa à proposta? De um modo geral, quais são as vantagens da alternativa proposta no presente trabalho? Quais as vantagens, de um modo específico, em relação ao próprio texto original? A alternativa proposta é constitucional? Por quê? Como alternativa a proposta do Pacote Anticrime, o grupo entendeu pela descriminalização do crime de resistência vigente. A escolha da alternativa se deu em virtude do crime de resistência não ser um meio efetivo para fomentar sua finalidade, que seria proteger o bem jurídico da ordem social, existindo dentro do ordenamento jurídico penal outros institutos que podem tutelar bens jurídicos, eventualmente, afetados pela resistência. Assim, o crime de resistência, além de não cumprir com a sua finalidade, acaba por desrespeitar outros princípios consagrados no ordenamento jurídico, tais como: princípio da razoabilidade e proporcionalidade (meio além do necessário para proteger o bem jurídico) e uma combinação entre o princípio da dignidade da pessoa humana e o princípio da isonomia, visto que o instituto, na prática, faz uma clara discriminação entre os indivíduos, sendo aqueles mais vulneráveis, os que mais sofrem com as narrativas justificadas pelo crime de resistência. Entre as vantagens desta descriminalização, constata-se duas benesses, uma imediata e outra futura. A vantagem imediata seria a ocorrência do “abolitio criminis”, na medida em que retira uma condenação e eventualmente diminuição da pena de indivíduos em cumprimento de pena em virtude de uma criminalização desarrazoada. Já a vantagem futura estaria intrinsecamente ligada ao não aumento de pena a grupos vulneráveis e dos indivíduos a estes identificados, pela inexistência do tipo penal. Insta-se, portanto, que a primeira consequência tem um efeito imediato, beneficiando aqueles apenados, enquanto o segundo tem efeitos futuros, impedindo penas maiores a pessoas acusadas em situações que prevaleceriam eventual narrativa policial. No tocante a uma análise mais restrita, a proposta de descriminalizar a conduta tipificada, atualmente, como crime de resistência, consubstancia evidente observância ao princípio da intervenção penal mínima ou ultima ratio. O ilustre professor Gustavo Junqueira9 elucida que: 9 JUNQUEIRA, Gustavo; VANZOLINI, Patrícia. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2018. 136 O Direito Penal, pela violência que lhe é imanente, deve ser reservado como última medida de controle social, ou seja, o Direito Penal deve ser o último recurso ao qual o Estado recorre para proteger determinados bens jurídicos e somente quando outras formas de controle não forem suficientes para alcançar tal resultado. Em relação à legislação penal posta, a tipificação do crime de resistência visa proteger o bem jurídico tido como obediência à Administração Pública. É incontestável que os agentes policiais são investidos de atribuições autorizadoras do uso da força, a fim de atingir o deverpoder estatal de coerção e controle nos casos de extrema necessidade. Nesse diapasão, o legislador fez a opção político-criminal por criminalizar as condutas que resultarem em oposição à execução de ato legal. Ensina Cezar Roberto Bittencourt: O tipo penal protege a autoridade e o prestígio da função pública. Tutela-se, na verdade, a normalidade do funcionamento da Administração Pública, sua respeitabilidade, bem como a integridade de seus funcionários; a essência mesmo da tutela penal não é em relação ao funcionário, e sim ao próprio ato funcional que se quer prestigiar, partindo-se da presunção, logicamente, da legalidade do ato.10 Sustenta-se, no entanto, que tal conduta não deve ser sancionada pela via penal. A intenção do legislador estaria perfeitamente acertada se os agentes responsáveis pela segurança pública atuassem, na realidade fática, com ponderação e razoabilidade ao autuar cidadãos. Lamentavelmente, não é o que ocorre. O contingente policial, despreparado e enfrentando um viés ideológico muito bem definido, acaba por usar o tipo penal ora vislumbrado para incorrer em excesso e arbitrariedade na autuação. Assim, cooperar para a manutenção do dispositivo ou, pior, para o aumento do rigor punitivo em desfavor daqueles tidos como inimigos penais – previamente selecionados pela categoria nuclear da criminalização secundária – é vedar os olhos para a conduta abusiva da polícia brasileira, engendrando o processo no qual a Lei Penal deixa de ser a aplicação da intervenção mínima para ser mais um instituto garantidor do reprovável despotismo policial. A medida em exame, propondo incluir dispositivo que equipara a tentativa ou a consumação da morte do policial a homicídio qualificado, independentemente de averiguar a culpa ou o dolo do agente, consubstancia mais um instituto que consolida a extrema desigualdade entre a força estatal e a proteção dos Direitos Humanos. Resta, portanto, inequívoco o entendimento de que a proposta mais acertada em relação ao caso concreto é a descriminalização do crime de resistência, passando tal conduta a ser BITTENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de Direito Penal: Parte Especial – volume 5. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 201. 10 137 eventualmente sancionada pela via extrapenal, a fim de assegurar os princípios da ultima ratio e da dignidade da pessoa humana, sem que sejam intimamente ofendidos os princípios da moralidade e da probidade administrativa. Insta salientar a constitucionalidade da proposta de descriminalização do crime de resistência, posto que é sedimentado na Carta Magna de 1988 a proteção ao direito à dignidade humana, direito fundamental de todos; no entanto, ao analisar a realidade da população marginalizada (periférica e negra), é possível enxergar o constante desrespeito a uma das bases do nosso ordenamento constitucional e infraconstitucional, em nome da defesa de uma Segurança Pública que seleciona quem deve viver e quem deve morrer. Nesse sentido, um estudo dirigido pelo IPEA em 201611 escancara o cenário brasileiro cruel em relação aos grupos sociais marginalizados, de modo que possibilita a associação da letalidade policial ao racismo e aos estereótipos impostos ao imaginário social sobre pessoas negras, principalmente jovens. Uma exemplificação disso são os chamados autos de resistência, hoje denominados de mortes decorrentes de intervenção policial, os quais consistem em massiva produção de vítimas após suposta oposição de resistência ao cumprimento do dever de agentes estatais. Em verdade, o quadro que se vislumbra na prática é o de que agentes do estado se utilizam dessa construção da resistência, primeiro para justificar execuções e, segundo quando buscam aumentar a acusação contra jovens negros, e, consequentemente, suas penas. Porém, a situação poderia ser ainda mais agravada com a alteração do referido tipo penal, ao criar uma pena desproporcional (06 a 30 anos de pena se existir o resultado de morte ou risco de morte) a um, igualmente problemático, “crime de perigo abstrato’’ e “crime com resultado morte”. Sendo assim, se mostra inviável a modificação desse artigo proposta pelo Ministro Sérgio Moro. A descriminalização do crime de resistência não seria feita de maneira impensada, pois o ordenamento jurídico já abarca as hipóteses de lesão corporal (art. 129 do Código Penal) e homicídio culposo (art. 121, § 3º do referido Código), presentes na proposta de alteração do tipo penal em questão. Desse modo, para que adicionar um novo tipo penal que já possui fatos típicos fixados no ordenamento jurídico? Pior, como justificar que em tal alteração é fixada uma pena desproporcional ao resultado morte -que seria culposa? O que seria um crime de 11 Segundo pesquisa do IPEA 2016, homens negros têm 23,5% mais chances de serem assassinados do que os brancos no Rio de Janeiro. 138 perigo para o legislador responsável pela redação desse novo artigo? Traria segurança jurídica ao ordenamento tamanha subjetividade no termo "risco"? As respostas para tais questionamentos são preocupantes, uma vez que quando discutidas, evidenciam as consequências nocivas de tal alteração. Nos resta, como operadores do direito, buscarmos alternativas legais que possam trazer maior efetividade aos valores instituídos pelo Estado Democrático de Direito, sendo assim, se faz necessário a descriminalização de um dispositivo usado de maneira abusiva por policiais para construir uma realidade violadora de direitos, cabendo a aplicação de outros dispositivos legais penais adequados para as situações advindas de conflito existente entre civil e policial, já previstos no Código. 139 MEDIDA XII – SOLUÇÕES NEGOCIADAS Sob coordenação de Adriane da Fonseca Pires e Daniel Kessler de Oliveira Elaborado por Bruna Lemos, Flora Bellenzani de Moraes, Julia Kanaiama Pereira, Juliana Reis de Lisboa, e Rebeca Faustino Vieira RESUMO O presente artigo tem como objetivo analisar a denominada “décima segunda medida” (Medida XII) do mais recente conjunto de propostas de alteração legislativa chamado “Pacote Anticrime”, do Ministério da Justiça e Segurança Pública. O Pacote Anticrime, encabeçado pelo Ministro Sérgio Moro, traz em sua Medida XII o tema da Justiça Negocial, através da proposta de implantação do plea bargain. Nesse sentido, o presente artigo visa analisar criticamente a inserção do instituto do plea bargain no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de subsidiar presentes e futuras discussões legislativas sobre o tema. Com este fim, parte-se da origem de tal instituto, que surgiu nos Estados Unidos no século XX. De tal modo, mister se faz o exame dos objetivos, declarados e não declarados, da Medida XII, para que se adote, afinal, o racional por detrás da proposta. Assim, torna-se possível também desenvolver um raciocínio crítico acerca das possíveis, e por vezes previsíveis, consequências da implantação de instituto tal qual o plea bargain no sistema processual brasileiro. Analisa-se a proposta em especial sob o prisma dos sistemas processuais, visto que se trata justamente de uma radical mudança no funcionamento do sistema adotado no Brasil. A partir de tais premissas, discute-se então a constitucionalidade da Medida XII, ante à então entendida incompatibilidade com o contexto e sistema brasileiros. PALAVRAS-CHAVE: Plea bargain, Justiça Negocial, “Pacote Anticrime”, Sistemas processuais penais. 140 Introdução Os sistemas judiciais estatais, em suas mais diversas acepções e semelhanças, possuem em comum a busca por instrumentos que possam tornar o sistema o mais estável e coerente possível. Dentro de seu contexto histórico e de sua própria dinâmica, especialmente quanto aos mecanismos de obtenção de provas e critérios de julgamento, percebe-se que há uma busca incessante de seus operadores por um aperfeiçoamento contínuo. Quando se considera que a finalidade de um sistema processual penal é torná-lo um meio de atendimento aos anseios sociais, relacionados à segurança pública, por exemplo, as falhas em seus mecanismos instrumentais que possam influir na ausência de sensação de segurança ou no aumento da criminalidade levam-no à uma crise de legitimidade. Em meio a uma crise contínua e generalizada de legitimidade, o anseio por reformas legislativas que possam sanar tal incompletude ganha espaço considerável. Essa postura, por si só, já implica a deturpação do processo penal como instrumento para a fixação de uma pena a alguém. Quando se trata o processo penal com esse objetivo de satisfação de necessidades sociais, a celeridade passa a ter um valor destacado, como se houvesse uma relação direta entre a rapidez e a justiça da decisão. Em um cenário em que o sistema judiciário se mostra moroso na resolução dos processos que lhe são confiados, tanto pela complexidade dos casos, como devido à intrincada teia de ritos processuais acompanhada, a sensação de falta de eficiência na prestação da atividade sistema judicial começa a ser percebida por todos. Mas o que se precisa alertar desde agora é que, como um verdadeiro ouroboros moderno, a mesma complexidade processual que assegura direitos pode também os destruir. E é nessa perspectiva que nasceu, nos Estados Unidos, no século XX, o sistema do plea bargain, instituto que a proposta legislativa que se examina agora quer implantar no ordenamento jurídico brasileiro. 1. Conceitos Iniciais Cabe ainda pacificar alguns conceitos, tal qual o plea bargain (plea = pedido e bargain = acordo) propriamente dito. Este, originado no contexto da common law, pode ser definido como uma espécie de acordo entre o acusado e os órgãos responsáveis pela persecução penal. Para tal, o acusado se declara culpado pela infração penal que supostamente cometeu, em troca 141 de um apenamento menor do que aquele que seria aplicado a ele no caso de um julgamento regular, que tivesse como resultado a condenação. Trata-se de um instituto que permite a aplicação de pena sem o trâmite do processo penal, ou seja, sem a necessidade de se observar algumas garantias processuais fundamentais do acusado. Desse modo, consideram-se a voluntariedade e a coercitividade como elementos essenciais de seu ensejo. Todavia, como demonstrado mais além, entende-se que tais elementos, no presente contexto social e jurídico, podem facilmente apresentar vícios. Esse instituto é responsável, hoje, nos Estados Unidos, pela maioria das condenações do sistema de justiça penal daquele país e é utilizado para crimes graves onde haja o que se chama de probable cause (causa provável) ou presunção de culpabilidade do acusado em relação à infração pela qual foi denunciado (LANGBEIN, 2017, p.137). A instituição do plea bargain surgiu como alternativa para a morosidade do sistema judiciário norte americano, provocada especialmente pelo processo de “advogadização” do sistema processual daquele país (LANGBEIN, 2017, p.139). Entendeu-se que o estabelecimento de diversas garantias processuais dentro de um sistema de common law e o vertiginoso aumento dos tipos penais na primeira metade do século XX fariam, por um lado, com que houvesse mais processos e, por outro, com que esses se tornassem complicados e demorados. Criou-se uma etapa pré-processual possível, na qual o acusado pudesse ser condenado sem que houvesse prévio processo, abrindo mão, em razão desse acordo aceito, das garantias processuais que possui. Os norte-americanos encontraram uma maneira pragmática de obter condenações sem decisões judiciais e sem observar as garantias dos acusados. Há elementos importantes a serem considerados no plea bargain: a suposta voluntariedade da confissão do acusado e o elemento coercitivo do instituto. Quanto à voluntariedade, pode-se observar que existe uma preocupação de se reconhecer que a confissão do acusado seja fruto de sua vontade livre. Todavia, inúmeros são os casos, mesmo em outros sistemas jurídicos, em que o réu é pressionado a confessar. Assim, quando a confissão é fruto de um poder coercitivo, que muito mais se aproxima da manipulação da vontade do acusado por parte daquele que tem o poder de negociar a sua punição, a verdade1 dos fatos fica prejudicada, pois um réu pode confessar fatos criminosos que não cometeu. 1 A busca da verdade real é um objetivo de discutível alcance no processo penal. 142 No Brasil, há o exemplo emblemático do “caso Evandro”2. Nesse processo, mais de seis acusados que haviam confessado o homicídio de um menino de seis anos em 1992 após interrogatório da polícia militar curitibana, posteriormente, após estarem presos e aguardando julgamento, declararam ter confessado porque foram coagidos e torturados3. Essa prática coercitiva tem espaço para ocorrer quando se parte da perspectiva de que, temendo o acusado receber sanção mais severa do que aquela posta em acordo, abre mão de garantias que o sistema judiciário reservou a ele. Trata-se de uma negociação pela liberdade ou pela prisão em menor tempo. É neste sentido que John H. Langbein (1978, p.70) correlacionou o plea bargain norte-americano à tortura judicial da Europa Medieval como instrumento de obtenção de confissões: apesar de diferentes em intensidade, não os são em espécie, pois representam ferramenta de coerção para que se obtenha uma confissão que, por sua vez, tirará do juízo a decisão de valor a respeito de quaisquer outras provas. O Brasil possui uma população carcerária numerosa, da qual parcela considerável é de presos provisórios, ou seja, pessoas que estão cumprindo pena sem que tenham sido julgados definitivamente (processos pendentes de julgamento). Esse fator demonstra, de modo concreto, a conhecida morosidade do sistema judicial. Contudo, contrariamente ao sistema processual penal americano, o sistema processual penal brasileiro possui uma base legalista. Há normas e princípios constitucionais, como, por exemplo, o princípio do devido processo legal4 e da presunção de inocência5, além de princípios na lei ordinária Código de Processo Penal6. Desde já se deve ter em conta a advertência de Aury Lopes Jr. (2015, p.171): A lógica negocial transforma o processo penal em um mercado persa, no seu sentido mais depreciativo. […] A justiça negociada está atrelada à ideia de eficiência (viés economicista), de modo que as ações desenvolvidas devem ser eficientes, para com isso chegarmos ao “melhor” resultado. O resultado deve ser visto no contexto de exclusão (social e penal). O indivíduo já excluído socialmente (por isso desviante) deve ser objeto de uma ação efetiva para obter-se o (máximo e certo) apenamento, O “caso Evandro” refere-se ao homicídio do menino Evandro Gomes Caetano, aos 6 anos, em 1992. O crime levou à prisão de 6 pessoas que, tendo em um primeiro momento confessado o homicídio, alegaram posteriormente terem sido torturadas e forçadas a confessar. “O caso que marcou a história do Judiciário Brasileiro, a morte do menino Evandro’’ - http://g1.globo.com/pr/parana/videos/v/o-caso-que-marcou-a-historia-do-judiciariobrasileiro-a-morte-do-menino-evandro/5114796/. 3 Tortura é crime inafiançável no Brasil (art. 5, XLII, da CF). 4 Diz o art.5º da Constituição Federal “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. 5 Diz o Art. 5º da Constituição Federal: “[...] LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. 6 Diz o art. 386 do Código de Processo Penal: “O juiz absolverá o réu, mencionando a causa na parte dispositiva, desde que reconheça: VII – não existir prova suficiente para a condenação.” 2 143 que corresponde à declaração de exclusão jurídica. Se acrescentarmos a esse quadro o fator tempo – tão importante no controle da produção, até porque o deus-mercado não pode esperar -, a eficiência passa a ser mais uma manifestação (senão sinônimo) de exclusão. Deve-se discutir se a introdução de um plea bargain à brasileira pode ser considerada como uma das diversas possíveis soluções à morosidade e a outros problemas do sistema processual penal brasileiro. 2. Modalidades de Justiça Negocial Implantadas no Ordenamento Jurídico Brasileiro – os Juizados Especiais Criminais O Brasil, apesar de não possuir aplicação tão larga de sistemas negociais dentro de seus sistemas penais, como se verifica na experiência norte-americana, possui mecanismos de justiça negociais que são representados, por exemplo, pelo advento dos juizados especiais (cíveis e criminais). A fundação dos juizados parte da ideia de que infrações com menor potencial lesivo podem ter soluções mais satisfatórias que não levem, necessariamente, ao processo penal ou à aplicação de penas. Importante observar que a justiça negocial, para além da atuação do judiciário, também conta com a atuação dos poderes Executivo e Legislativo. Sobre esse tema, lecionou Ada P. Grinover (2005, p. 48): O poder político (Legislativo e Executivo), dando uma reviravolta na sua clássica política criminal fundada na "crença" dissuasória da pena severa (deterrance), corajosa e auspiciosamente, está disposto a testar uma nova via reativa ao delito de pequena e média gravidade, pondo em prática um dos mais avançados programas de "despenalização" do mundo (que não se confunde com "descriminalização"). É nesse contexto que surgem os juizados especiais, alavancados pela sua previsão constitucional7 e regulados pela Lei 9.099 de 19958, a qual trouxe um projeto de disposição de métodos de negociação e democratização através da criação de três institutos: a composição de Diz o artigo 98, inciso I da CF/88: “A União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão: juizados especiais, providos por juízes togados, ou togados e leigos, competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo, mediante os procedimentos oral e sumaríssimo, permitidos, nas hipóteses previstas em lei, a transação e o julgamento de recursos por turmas de juízes de primeiro grau”. 8 Diz Art. 3º da lei 9.099/95: “O Juizado Especial Cível tem competência para conciliação, processo e julgamento das causas cíveis de menor complexidade, assim consideradas: I - as causas cujo valor não exceda a quarenta vezes o salário mínimo; II - as enumeradas no art. 275, inciso II, do Código de Processo Civil; III - a ação de despejo para uso próprio; IV - as ações possessórias sobre bens imóveis de valor não excedente ao fixado no inciso I deste artigo”. 7 144 danos civis, a transação penal e a suspensão condicional do processo. Segundo Luiz Flávio Gomes (1999, p. 75): Muitas vítimas, que jamais conseguiram qualquer reparação no processo de conhecimento clássico, saem agora dos Juizados Criminais com indenização. Permitiu-se a aproximação entre o infrator e a vítima. O sistema de Administração de Justiça está gastando menos para a resolução desses conflitos menores. E atua com certa rapidez. Reduziu-se a frequente prescrição nas infrações menores. As primeiras vantagens do novo sistema são facilmente constatáveis. Há críticas aos sistemas negociais brasileiros de que as medidas adotadas, em sede da lei 9.099/95 buscam a celeridade do processo penal para uma benesse do Estado - seu desafogamento processual - e não para a satisfação do interesse público. A crítica de Giacomolli (2015, p.3) no sentido de que há um rompimento democrático através da concessão de acordos, fazendo-se negar aos indivíduos submetidos à justiça negocial o devido processo legal em sua integralidade. Assim, leciona Aury Lopes Jr. (2015, p. 175): Tampouco entendemos que o sistema de justiça negocial colabore para aumentar a credibilidade da justiça, pois ninguém gosta de negociar sua inocência. Não existe nada mais repugnante que, ante frustrados protestos de inocência, ter de decidir entre reconhecer uma culpa inexistente, em troca de uma pena menor, ou correr o risco de submeter-se a um processo que será desde logo desigual. Entretanto, mesmo com a oposição de críticas, há um esforço claro do Poder Executivo para ampliar os sistemas negociais brasileiros. Nesse sentido, é vital que se compreenda as medidas propostas pelo poder Executivo com o objetivo de alargar a seara negocial da justiça penal. 3. Medidas para introduzir soluções negociadas no Código de Processo Penal e na Lei de Improbidade A proposta que engloba a Medida XII do denominado “Pacote Anticrime” constitui uma mudança substancial no Código de Processo Penal. Isto é, a Medida XII propõe que quando não se puder arquivar um processo, haja a possibilidade de que o Ministério Público ofereça um acordo ao acusado, para que dessa forma, não haja persecução penal, ou seja, possibilitar, a partir de um acordo, seja imposta ao acusado que confessar ter praticado infração, uma pena. A proposta pretende conceder a possibilidade de acordos apenas para acusados de crimes não violentos com pena prevista no Código Penal de até 4 anos. Cita-se algumas das proposições: Art. 28-A. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e 145 com pena máxima não superior a quatro anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, salvo impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos, indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito, diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo Ministério Público; IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Código Penal, a entidade pública ou de interesse social a ser indicada pelo Ministério Público, devendo a prestação ser destinada preferencialmente àquelas entidades que tenham como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; e V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. [...] Também não será́ admitida a proposta9 quando for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, para investigado reincidente com conduta criminal habitual, reiterada ou profissional (salvo se tiverem sido consideradas insignificantes), quando houver sido o agente beneficiado anteriormente em acordo de não persecução penal10 e, por fim, quando não lhe forem favoráveis os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias11. É interessante observar que não são denominadas penas as medidas punitivas imputadas ao acusado que aceite a negociação. Elas são chamadas de “alternativas” e estão elencadas entre os incisos I e V do artigo 28-A. Dentre eles estão serviços comunitários ou para entidades públicas pelo tempo da pena que obteria caso julgado culpado, pagamento de prestação pecuniária ou, ainda, cumprimento de outra medida que o Ministério Público julgue cabível. Este último item, descrito no inciso V do artigo supracitado, abre a possibilidade de o órgão persecutório decidir quais seriam as espécies de penas alternativas cabíveis a um acordo, para homologação do acordo. Já o §4º do mesmo artigo traz a necessidade de que este seja homologado em juízo, oportunidade essa em que o magistrado verificará a voluntariedade deste acordo, ouvindo o acusado na presença de seu defensor. O referido Art. 28-A em seu § 2º diz que: “Não será admitida a proposta nos casos em que: I - for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei”. 10 O referido Art. 28-A em seu §2º diz que: “Não será admitida a proposta nos casos em que: III - ter sido o agente beneficiado anteriormente, no prazo de cinco anos, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo”. 11 O referido Art. 28-A em seu § 2º diz que: “Não será admitida a proposta nos casos em que: IV - não indicarem os antecedentes, a conduta social e a personalidade do agente, bem como os motivos e as circunstâncias, ser necessária e suficiente a adoção da medida”. 9 146 3.1. Objetivos declarados e não declarados Um dos objetivos declarados dessa medida será a redução de presos provisórios. Isto porque, após o oferecimento da denúncia ou da queixa, haveria a possibilidade de aguardar pelo julgamento, ou de confessar e aceitar o acordo apresentado pelo Ministério Público. Para tal, o preso provisório deverá preencher todos os requisitos impostos para a realização do acordo. O segundo objetivo declarado da Medida XII seria a redução de processos em tramitação, dando então maior “eficiência” à prática processual penal, ocorre como consequência imediata de abrir espaço para uma negociação antes de realizar a produção de provas, minorando o número de processos, pois seriam resolvidos logo na fase de negociação. Essa é uma falsa ideia que, afirma o professor Lenio Streck, remete a um “Processo vapt-vupt. Macdonaldização processual” (STRECK, 2019). O terceiro objetivo declarado é justamente a “diminuição da criminalidade” por meio do equivocado objetivo de se atingir a eficiência, como se com uma maior rapidez a impunidade se reduzisse. Assim, para o Fórum Nacional dos Juízes Criminais (FONAJUC)12: As técnicas de negociação no Direito Penal e Processual Penal são instrumentos relevantes e fundamentais para concretização de um Sistema de Justiça mais efetivo no país. Isso porque a ausência de efetividade/celeridade da Justiça Criminal contribui para insegurança jurídica e principalmente para a impunidade, que deve ser combatida. O que se tem, aparentemente, é na verdade uma tentativa de rotulação, isto é, da propagação pelo senso comum de “defensores da impunidade”. Contudo, tal rótulo mais serve como estratégia de fuga ao debate, visto que não cabe, no ambiente jurídico e acadêmico, tal percepção. Portanto, chega-se ao quarto objetivo: a efetivação dos resultados com o emprego do menor tempo e custos possíveis, sob a ideia de resultados como “a diminuição da criminalidade” e a “redução da impunidade”. Por fim, há, ainda, o objetivo de se “alargar” da possibilidade de negociação, a fim de que essa dinâmica não se transfira para a polícia, dificultando-se, assim, um mercado clandestino de negociações ilegais, especialmente na fase do inquérito policial. Salah Hassan Khaled Jr. (2010, p. 9) afirma que: Tanto Kant de Lima quanto Misse consideram que a inexistência de uma possibilidade de “negociação” no processo penal acaba fazendo com que essa dinâmica seja O FÓRUM NACIONAL DE JUÍZES CRIMINAIS – FONAJUC, instituição composta de Magistrados Estaduais, Federais, Militares e Trabalhistas de todas as regiões do país, vem a público para manifestar sobre o anúncio da proposta do Ministro da Justiça Sérgio Moro acerca do “plea bargain”. Brasília, 05 de janeiro de 2019. 12 147 transferida para a polícia, onde ocorre de forma muito diferenciada de acordo com a condição social do investigado em questão. Afora os objetivos declarados como justificativa para a proposta, há ainda que se mencionar os objetivos não declarados. Tais objetivos não declarados partem de uma análise crítica e contextualizada do discurso jurídico penal, isto é, não são explícitos e assumidamente encampados. Todavia, permeiam a discussão como um todo e demonstram uma interpretação das pretensões implícitas e, portanto, estão denominados no presente artigo como objetivos “não declarados”. O primeiro objetivo não declarado seria a busca incessante da confissão, e não necessariamente da verdade, o que se mostra como afronta à dinâmica de um sistema acusatório. A busca da verdade é um critério que a doutrina adota para distinguir um sistema acusatório de um sistema inquisitório. Uma grande diferença entre os dois sistemas é justamente a investigação sigilosa e a quebra de imparcialidade do juiz (KHALED JR., 2010, p.2). No sistema inquisitório, o juiz atua como parte, dirigindo, acusando, investigando e julgando. Dessa forma, não existe a certificação da inocência, apenas a insuficiência de provas para a condenação, o que torna o processo infalível, visto que já há um resultado previamente determinado (CARVALHO, 2003, p. 21-22). Assim: No sistema inquisitório, o embate entre acusação e defesa tende a não se dar perante um juiz equidistante, distante e imparcial, mas ante um magistrado alinhado com a acusação no que tange à sanha investigatória e, consequentemente, ao próprio resultado do processo criminal. Tudo a influenciar a sua percepção das coisas e, ao fim e ao cabo, a valoração da prova (Theodoro Balducci de Oliveira e Fabio Roberto D’Avila, 2019). Já o sistema acusatório é inclinadamente democrático, assim é público, o juiz é um árbitro imparcial e a gestão da prova é atribuída às partes. O sistema brasileiro, então, pode ser considerado misto, dessa forma, na teoria, a investigação preliminar, ora inquérito, seria a fase inquisitória do sistema processual penal brasileiro e a fase processual seria a acusatória. Todavia, na prática, a parte inquisitória se alastra para além da fase preliminar por conta de o caráter imparcial do juiz não ser garantido, em regra. Vale ressaltar que a predominância das espécies de sistemas processuais é uma escolha política, que, nesse caso, optou por assumir a conformação da manutenção da ordem a partir da criminalização de condutas que colocam em risco a própria estrutura social. Destarte, a confissão é ponto central da negociação, que só poderá proceder se o acusado se declarar culpado. No entanto, a busca não é pela verdade dos fatos, mas pela confissão do 148 réu, o que causa a equivocada impressão de um sistema perfeito, no qual o acusado confessa, sob a ilusão de que compreende a gravidade de sua ação para a sociedade e para a vítima. Nessa ótica, recebe uma “regalia”, que é justamente o abrandamento em sua pena. Contudo, como já mencionado na introdução, bem como mais além, tal premissa é ilusória e seus efeitos pretendidos, de certo deturpados. Cabe ressaltar, por fim, a exclusão do controle jurisdicional das provas da acusação e consequente afastamento do Estado-Juiz (LANGBEIN, 2017, p.147). À medida que fica a cargo do Ministério Público propor o acordo, esse que escolherá suas condições, seguindo alguns requisitos legais e, assim, o juiz estaria limitado a homologar ou não o acordo entre acusado e acusação. Ao flexibilizar as estruturas e subverter os papéis para a negociação, dá-se ao Ministério Público um papel de protagonismo para além de seus poderes, ensejando, ainda, na perda de poder por parte do magistrado. Isto é, com a marginalização do processo penal, coloca-se a confissão e a acusação como únicos elementos para a condenação. Nesse sentido, o Ministério Público, na qualidade acusatória, passa a ter poderes desproporcionais, tornando-se o agente mais poderoso do sistema penal. Desta feita, a desproporção na relação entre Ministério Público e acusado tende a enrijecer-se e consolidar-se cada vez mais. O que se tem é a polarização entre Ministério Público e acusado, como se iguais o fossem no âmbito da negociação. Todavia, é notória a hipossuficiência do último em relação ao primeiro, fato que já retiraria a legitimidade da negociação. Vejamos: A hipossuficiência do réu é estrutural e estruturante do seu lugar (é jurídica, portanto, não econômica, política etc.), pois é somente ele quem sofre a incidência do poder punitivo, que nada mais é do que o poder de todos contra o um, indivíduo (Aury Lopes Júnior, Daniel Kessler de Oliveira, 2019). Nesse sentido, e tendo em vista a ausência de regulação robusta de procedimentos, tampouco exame mínimo de culpa, percebe-se nítido efeito de aumento da disparidade em relação ao acusado. Isto é, há de se levar em consideração o contexto de extrema desigualdade social e consequente falta de acesso pleno à justiça no Brasil. Implementar o plea bargain nesses moldes intensificaria tal contexto de desigualdade, visto que desde já – na aplicação da pena – haveria desigualdade entre as partes. Cita-se, a esse respeito, a fala da Associação dos Juízes para a Democracia: A previsão de incorporar acriticamente institutos estadunidenses como sinal provinciano de ode à modernidade ignora a circunstância de que a justiça penal negocial tem sido uma das principais contribuições ao incomparável volume prisional 149 daquele país. O projeto prevê a supervalorização do Ministério Público como epicentro do sistema de justiça criminal, sem se proteger do excesso de discricionariedade e da falta de controle judicial, característicos destes institutos (AJD, Nota Técnica, 2019). Dessa forma, o controle jurisdicional das provas da acusação, mesmo que pouco e nem perto de chegar ao ideal, ainda era evidente em casos isolados. Sem tal controle, a acusação discricionariamente escolhe as provas que corroboram com a sua narrativa, coagindo o réu a entrar em um acordo “bom para as duas partes” – o que é totalmente ilusório, ante ao controle quase que ilimitado do acusador sobre as provas. Isto é, surge o risco de uma coação sobre o acusado de forma arbitrária sem qualquer constatação de veracidade das provas que se tem em mãos. É o que se busca, enfim: a total liberdade para que o órgão acusador repouse a acusação sob a confissão, afastando cada vez mais a necessidade de material probatório cabal. Desse modo, a hipossuficiência do réu frente ao Estado é o último objetivo não declarado que foi extraído da Medida XII do Pacote Anticrime. Isto é, a demonstração da força do Estado sempre foi necessária para perpetuar a estruturação do sistema, que impõe ao réu a noção de “devido lugar”, evidenciando que, frente ao Estado, há lugar pré-determinado para cada indivíduo. 3.2 Consequências Previsíveis – efeitos positivos e nocivos O Pacote Anticrime proposto pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública deve ensejar, como um todo, uma série de efeitos no sistema processual penal e nas estruturas sociais. Por isso, cabível a análise dos possíveis e prováveis efeitos de cada medida, o que, diga-se de passagem, é essencial para tornar a análise, de fato, crítica. A Medida XII do Pacote, objeto do presente estudo, foi rejeitada pelo grupo de trabalho da Câmara dos Deputados responsável pela análise do Pacote, no dia 07 de agosto de 2019 13. Todavia, a pertinência da análise crítica do tema permanece necessária, visto que se percebe uma forte tendência de implementações nesse sentido, à luz do sistema já consagrado nos Estados Unidos. Desta feita, necessária se faz a análise, em especial, dos possíveis e prováveis efeitos da Medida, sejam eles aparentemente positivos ou negativos. 13 GRUPO SOBRE PACOTE ANTICRIME APROVA REGRA PARA ACORDOS JUDICIAIS. Câmara dos Deputados, 2019. 150 Como bem elucidou Jacinto Nelson de Miranda Coutinho (2019), a principal questão visada pelo plea bargain é a aceleração do processo, característica própria do sistema inquisitório. Contudo, essa motivação é deturpada, pois não é essa a função do Direito Penal, que é moroso por natureza. O principal argumento favorável à Medida XII, isto é, a aceleração do processo e o consequente desafogamento do Judiciário, já é por si só contrário ao sistema processual próprio do ordenamento jurídico brasileiro. Há uma enganosa “troca de direitos constitucionais” por uma promessa de difícil cumprimento – a promessa da eficiência, nos moldes norte-americanos (Conselho Pleno, 2019). Em decorrência da instauração de acordos penais, rompe-se a lógica norteadora do processo penal brasileiro: a persecução penal. Em outras palavras, se esvai o elemento do processo da persecução, restando apenas a investigação. O inquérito passaria a ser hipervalorizado, à medida em que seria o mecanismo principal para valoração da pena, já que esta última seria determinada em sede de um acordo, munido apenas com os elementos da investigação. A sistemática sugerida pela Medida implica na negociação da pena antes do processo e, portanto, limita o conjunto probatório à parte investigativa. Justamente nesse ponto percebe-se a problemática de tal supervalorização, potencializando o caráter inquisitório do processo. O art.28-A, §1214 da Medida XII traz um aparente – e ilusório - efeito positivo. Isto é, via de regra, circunstâncias do acordo não resultariam em certidão de antecedentes criminais. Nesse sentido, o acordo favoreceria o acusado e serviria como argumento de convencimento por parte do Ministério Público, a fim de que o acusado aceitasse fazer acordo sob termos não necessariamente benéficos, simplesmente pela ideia de que não ficaria registrado. Ter-se-ia, portanto, uma ilusão da voluntariedade negocial. Ademais, impossível se falar de uma medida criminal e não abordar seus efeitos no aspecto carcerário. Tendo em vista que se trata de um projeto inicial, há sempre uma preocupação no tocante aos efeitos de encarceramento que possa vir a ensejar. Isto é, o limite de pena não é questão pacificada, justamente por tratar-se, até então, de um projeto. A rigor, o artigo 28-A, caput15 estabelece um limite de 4 (quatro) anos para a pena negociada, o que – via Art. 28-A, §12: “A celebração e o cumprimento do acordo tratado neste artigo não constará de certidão de antecedentes criminais, salvo para os fins previstos no inciso III do §2º.” 15 Art. 28-A. Não sendo o caso de arquivamento e tendo o investigado confessado circunstanciadamente a prática de infração penal, sem violência ou grave ameaça, e com pena máxima não superior a quatro anos, o Ministério 14 151 de regra – impediria tal efeito negativo, pois o acordo englobaria apenas regime inicial aberto. Por outro lado, o acordo previsto no artigo 395-A, §1016, prevê o início do cumprimento da pena já em regime fechado, em casos de reincidência. Nesse sentido, a aplicação de acordo penal não está isenta do risco do aumento do encarceramento no Brasil. Até porque, há um alto risco de desproporcionalidade nas negociações, em especial considerando a população de acusados que não têm condições de acessar uma defesa plena (ANITÚA, 2017. p. 357-375). De tal modo, a aplicação do plea bargain pode ensejar no nocivo efeito de aumento da desigualdade social e racial, intensificando ainda mais o encarceramento da população periférica do país. O acordo penal, por si só, pressupõe para seu funcionamento pleno, a voluntariedade negocial. Todavia, há muito provavelmente disparidade no âmbito da negociação - fato que já impossibilita a voluntariedade de forma plena. Em suma, o plea bargain tem como norteadora a ideia de que, se há confissão (pressuposto da negociação), é porque há culpa. Sob esse raciocínio, o acordo penal faria sentido, pois pouparia as partes e o Judiciário de um processo, permitindo ainda uma negociação da pena que melhor servisse ao caso. Contudo, sob esse cenário de disparidade entre as partes, não se pode presumir a culpa quando da confissão. O efeito, na realidade, seria reverso, diante de um cenário de medo por parte do acusado. Um medo não só oriundo da disparidade por si só, mas de sentenças graves e penas severas. Medo este que, muito provavelmente, serviria como fator manipulador da confissão e, consequentemente, da negociação. 4. IV - A Constitucionalidade da Aplicação do Plea Bargain no Brasil O sistema jurídico norte-americano é pautado nos costumes, denominado de sistema commom law, no qual os casos julgados judicialmente (precedentes judiciais) são considerados uma das principais fontes do direito norte-americano, não havendo necessidade de influência direta das leis, dos Códigos ou da Constituição na observância da aplicação de seu direito. Assim, Gregório Assagra de Almeida (2016, p. 03) compreende que o sistema norte-americano confere força jurídica vinculante aos precedentes judiciais, bem como as leis advindas do poder Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições, ajustadas cumulativa ou alternativamente. 16 § 10. No caso de acusado reincidente ou havendo elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, o acordo deverá incluir o cumprimento de parcela da pena em regime fechado, salvo se insignificantes as infrações penais pretéritas. 152 legislativo e a Constituição Americana. Essa estrutura jurisdicional atribui uma amplitude de poder aos juízes nos Estados Unidos que permite uma discricionariedade para motivar as suas decisões com base em precedentes firmados pelos Tribunais, todavia se houver lei, o juiz deverá em regra observá-la obrigatoriamente (ALMEIDA, 2016, p.5). Nesse sistema jurídico há a aplicação do plea bargain que, segundo John H. Langbein (2017, p. 137) é “um procedimento sem julgamento para condenar e declarar culpadas pessoas acusadas de crime grave”. Sua aplicação advém da independência dada a atuação do Ministério Público americano e por serem os promotores de justiça eleitos democraticamente, para o exercício de sua função. Tais prerrogativas conferem a possibilidade de negociar a culpabilidade e tipicidade dos crimes, na maioria dos casos, e conseguir esclarecer 95% das causas penais, sem que haja a aplicação de um processo penal demorado e custoso (GORDILHO, 2009, p.12). Assim, é inerente à cultura norte-americana, a possibilidade de negociação no processo penal, sem que haja uma violação grave a preceitos fundamentais do Estado de Direito, uma vez que o seu sistema jurídico é predominantemente costumeiro e a atuação dos promotores é política, na qual busca-se a efetividade e a economia nos gastos públicos de um processo judicial. Entretanto, há duras críticas quanto ao favorecimento desequilibrado do poder de barganha nos diversos seguimentos sociais dos Estados Unidos (GORDILHO, 2009, p.12) que confirma uma desigualdade na aplicação da medida. 4.1. Seria possível uma proposta de Emenda Constitucional? Quanto ao sistema jurídico brasileiro, a Constituição Federal é considerada a fonte de direito precípua, na qual todas as legislações aprovadas e as decisões judiciais proferidas deverão submeter-se ao crivo da constitucionalidade. Entende-se que a fundamentação do sistema jurídico nacional é pautada no princípio da legalidade que, para Aury Lopes Júnior (2018, p.89), no que se refere ao direito processual penal, “é fundante do Estado de Direito, que exige limites precisos, absolutos e categóricos – incluindo-se o limite temporal – ao exercício do poder penal estatal”. O princípio da legalidade penal é o que permite, dentro do nosso sistema jurídico, a aplicação dos institutos “despenalizadores” previstos pela lei 9.099/95 como a transação penal, a composição civil e o sursis processual, aplicados aos crimes de menor potencial ofensivo. Diante disso, a lei introduziu um processo de julgamento desses crimes em rito sumaríssimo, 153 ou seja, esse tipo de processo é pautado pela celeridade, oralidade e informalidade, mitigando, em alguns casos, garantias constitucionais e fundamentais no processo penal, como a ampla defesa e o contraditório, sendo considerado uma exceção ao princípio da obrigatoriedade e da indisponibilidade da ação penal. Assim esses institutos, inspirados no modelo de negociação criminal dos Estados Unidos, ocorrem antes de iniciada uma ação penal pelo Ministério Público. A introdução do plea bargain proposto no Projeto Anticrime, tal como está redigido, não se coaduna aos preceitos constitucionais vigentes, muito menos com a natureza da atividade do Ministério Público atuante no âmbito interno que é defender a ordem jurídica, uma vez que amplia as hipóteses de excepcionalidade ao princípio da obrigatoriedade da ação penal. Desse modo, a mudança proposta com a Medida XII – soluções negociadas de conflitos – estaria a ampliar o poder de negociação consensual do Ministério Público. É questionável se a aplicação do plea bargain condicionaria os mesmos erros presentes no procedimento aplicado nos Estados Unidos, diante de sua desproporcionalidade, em razão da classe social ou do poder econômico do réu. Essa consequência de desproporção social, implica em um encarceramento seletivo de grupos mais marginalizados e de determinadas práticas criminosas, ainda que de menor potencial ofensivo, o qual viola o preceito de Estado Democrático de Direito, bem como o processo penal democrático presentes na Carta Magna. A adoção do plea bargain por meio de emenda constitucional é inviável diante da redação do art. 60, §4º, IV, da Constituição Federal17. Desse modo, o acordo de não persecução penal proposto na redação do Projeto infringiria a presunção de inocência do acusado (art. 5º, LVII), pois, como já dito anteriormente, não há embasamento suficiente em curso para que a declaração de culpa do agente seja isenta de qualquer vício. Nesse sentido, John H. Langbein (2017, p. 141) afirma que a aplicação do plea bargain é propriamente coercitiva: Nós coagimos o acusado contra quem encontramos uma causa provável a confessar a sua culpa. Para ter certeza, nossos meios são muito mais elegantes; não usamos rodas, parafuso de polegar, botas espanholas para esmagar as suas pernas. Mas como os europeus de século atrás, que empregava estas máquinas, nós fazemos o acusado pagar caro pelo seu direito à garantia constitucional do direito a um julgamento. Deste modo haveria violação ao devido processo legal, que consiste em uma garantia individual constitucional e um direito do acusado (art. 5º, LIV) em ter um processo judicial Art. 60, da Constituição Federal, §4°, inciso IV: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: os direitos e garantias individuais”. 17 154 formalizado, na qual se assegura todos os meios probatórios admitidos em direito para que haja a prova da sua inocência ou demonstração de sua culpabilidade. Afinal, a Constituição Federal “não permite que os sujeitos invertam ou subvertam seus papéis constitucionalmente demarcados” (COUTINHO, 2019), sendo, também, delimitada a função processual do Ministério Público. Nessa linha de entendimento, uma proposta de emenda constitucional com o objetivo de implementar o plea bargain no sistema jurídico brasileiro contrariaria diversas garantias individuais asseguradas constitucionalmente ao acusado no processo penal e, legitimaria a prática coercitiva do plea bargain, uma vez que não seria possível exigir do tribunal uma decisão baseada em fatos provados, que se sustenta uma inferência de culpa para além de meras conjecturas (LANGBEIN, 2017, p. 143). 4.2 Alternativa à proposta Após extensa discussão e crítica acerca da solução negociada no processo penal brasileiro, é necessário, também, pontuar alternativas a essa proposta. Nesse sentido, entende-se a participação maior do juiz como uma possível solução, no sentido de uma defesa mais efetiva de garantias. Participação esta que já está prevista no processo, focando neste caso na ampliação de sua atuação para além da homologação do acordo. Assim, garantir-se-ia maior justiça ao acusado no âmbito da negociação, pois, dessa forma, o juiz analisaria os possíveis abusos de autoridade e a voluntariedade da negociação. As previsões de interferências por parte do tribunal, como está colocado, são limitadas e abrem margem para a arbitrariedade do promotor. Theodoro Balducci de Oliveira e Fabio Roberto D’Avila (2019) destacam que: A posição e a função dos atores judiciais precisará ser revista, em especial no tocante à postura ativa dos magistrados e à investigação defensiva – ainda tímida em solo nacional. Só assim acusação e defesa poderão apresentar seus interesses e convicções em condições mínimas de igualdade, a evitar que, com o plea bargain, perca-se de forma definitiva e incontornável a necessária racionalidade do sistema penal. Sob a ótica do ordenamento brasileiro, o contraditório é necessário para as negociações. Caso contrário, o suposto princípio de consenso seria ocultado por uma sujeição do acusado à medida de pena indevida (SCHÜNEMANN, 2013, p. 257). Assim, para que haja real consenso entre partes de pesos diferentes, o Ministério Público deve trazer aos autos todos os elementos 155 favoráveis a defesa, como aliás exige o Estatuto de Roma18, incorporado desde 2002 ao direito brasileiro. É preciso o estabelecimento de medidas que verifiquem a liberdade plena e real igualdade de negociação. Todavia, o modelo proposto prevê uma abertura e liberdade, só que à promotoria, apenas. Nesse cenário, sem limites legais, há um risco de sujeição dos indivíduos envolvidos no sistema prisional a excessos, possíveis de existir mesmo com a, teoricamente, baixa pena máxima de até 4 anos. Uma previsão legal de tal magnitude exige um projeto de lei robusto, com densa participação popular e acadêmica, bem como um processo jurídico formal proporcional a seus efeitos. O projeto de lei 8.045 em seu artigo 28319 prevê a estipulação das negociações judiciais, portanto é entendido como mais adequado para a discussão do referido assunto. Tal projeto de lei tem por objeto a reforma do Código de Processo Penal, visando compatibilizar o Código aos princípios e fundamentos da Constituição Federal e buscando maior compatibilidade com o sistema acusatório. A partir desses aspectos e considerando toda a estrutura formal que uma reforma processual dessa magnitude exige, uma proposta unilateral originária do poder Executivo não deve intervir em tal assunto - o qual já está sendo regulado no Congresso. Ultrapassando os limites legais, ao analisar os efeitos da medida no plano prático são constatados uma série de vícios e equívocos. As negociações seriam consideradas resolução para a alta demanda dos juízes no país. A quantidade de presos aumentou 270% nos últimos 14 anos20, maior que a taxa de crescimento populacional geral. No presente momento há a contenção de uma população de 812 mil pessoas. Nenhuma unidade prisional, atualmente, escapa à superlotação21. Art. 54. Item 1.a): “O Procurador deverá: a) A fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com o presente Estatuto e, para esse efeito, investigar, de igual modo, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa”. 19 REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. Projeto-Lei nº 8.045, de 30 de janeiro de 2010. "Código de Processo Penal" (Revoga o Decreto-Lei nº 3.689, Dd 1941). Projeto de Lei Novo Código de Processo Penal, [S. l.], 2010. 20 PUTTI, Alexandre. População carcerária brasileira cresceu 270% nos últimos catorze anos. Publicado em 26 de abril de 2016. Disponível em <http://www.justificando.com/2016/04/26/populacao-carceraria-brasileiracresceu-270-nos-ultimos-catorze-anos/> 21 MARTINES, Fernando. Brasil tem superlotação carcerária de 166% e 1,5 mil mortes em presídios. Publicado em 22 de agosto de 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-ago-22/brasil-lotacao-carceraria-16615-mil-mortes-presidios> 18 156 O Supremo Tribunal Federal já decidiu em favor da ADPF 347. Julgamento de cautelar, no qual o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) pediu para que fosse reconhecida a violação de direitos fundamentais da população carcerária e para que fosse determinada a adoção providências acerca da questão prisional do país, porém foi expressamente sinalizado durante o julgamento a necessidade da iniciativa por parte do Executivo para a adoção de políticas a pretexto da divisão de poderes. É compreensível a pretensão de adoção de medidas tão drásticas por parte do Pacote Anticrime para tentar solucionar os sintomas da política baseada em punitivismo. Tal conjuntura atual, no entanto, não serve como justificativa para a instalação de um sistema de negociação de pena, o qual priva ainda mais direitos previstos constitucionalmente. Por fim, para que o plea bargain seja eficaz no sistema brasileiro, os réus devem ser assistidos por advogados ou defensores públicos, a barganha deve ser acessível a todos e deve impor somente penas alternativas, e não penas privativas de liberdade com redução de tempo de encarceramento, só assim seria efetivamente possível a redução da morosidade do sistema processual penal sem o aumento do encarceramento em massa. 157 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANITÚA, Gabriel Ignacio. A Importação de Mecanismos Consensuais do Processo Estadunidense nas Reformas Processuais Latino Americanas. In Sistemas Processuais Penais. Org. Ricardo Jacobsen Gloeckner - 1 ed. - Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 357-375. ASSAGRA, DE ALMEIDA. Gregório. 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Ricardo Jacobsen Gloeckner - 1 ed. - Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 60-66. 161 MEDIDA XIII – FACILITAR O JULGAMENTO DE CRIMES COM AUTORIDADES COM FORO Sob coordenação de Fernando Castelo Branco, Hélio Peixoto Junior e Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa Elaborado por Alice Maria Lima Reis, Beatriz Tadim Carvalho, Carolina Arantes Araujo Costa, Clara Giovannetti Silva, Laura Ferrari Vieira, Leonardo Massari, Maria Carolina Giusti Rebouças, Renata de Oliveira Costa, Stella Soutto Mayor Totoli 1. Descrição da medida A presente medida consiste na inclusão do artigo 84-A no Código de Processo Penal (Decreto-Lei nº 3.689/41), alterando a forma de realização do desmembramento para processamento de casos envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função. O foro por prerrogativa de função, hipótese de definição de competência objetiva em razão da qualidade da parte, se configura como um modo de determinação de competência jurisdicional que trata, justamente, da prerrogativa que possuem determinados indivíduos para serem julgados de forma originária em razão da função que exercem (Demercian e Maluly, 2014, p. 257). Em um passado próximo vigia o princípio da atualidade do exercício de função, de modo que havia um “caráter itinerante” da ação penal envolvendo autoridades com tais prerrogativas. Ocorre que com o recente julgamento, pelo Supremo Tribunal Federal, da Questão de Ordem na Ação Penal nº 937/RJ decidiu-se que o foro por prerrogativa de função se aplica a fatos praticados durante o exercício do mandato e desde que relacionado ao próprio exercício do mandato. Atualmente, caso constatados, na fase de investigação elementos probatórios de crimes cometidos por autoridade no exercício da função e com prerrogativa, os autos devem ser remetidos ao competente órgão jurisdicional de categoria superior para processamento e julgamento da referida autoridade. O Tribunal competente, então, decidirá se o processo será 162 integralmente julgado por ele1 ou se será desmembrado, remetendo os autos concernentes aos demais agentes e fatos de volta à primeira instância. Desta forma, depreende-se que o juiz de primeira instância só será competente para julgar o processo no que concerne aos demais agentes e fatos após a eventual decisão do Tribunal competente, cabendo única e exclusivamente ao órgão colegiado o desmembramento do processo. Nesse sentido, é a tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal no âmbito da Questão de Ordem na Ação Penal nº 871/PR, fixando o entendimento de que “é de ser tido por afrontoso à competência do STF o ato da autoridade reclamada que desmembrou o inquérito, deslocando o julgamento do parlamentar e prosseguindo quanto aos demais2”. A Medida XIII do Pacote Anticrime, por sua vez, busca justamente alterar a forma de realização do desmembramento se constatados elementos probatórios de crimes cometidos em razão da função por autoridade com prerrogativa. Ao contrário do modelo vigente, em que a integralidade dos autos é remetida diretamente ao Tribunal competente para processamento e julgamento, a proposta de acrescentar o artigo 84-A ao Código de Processo Penal estabelece que o juiz de primeira instância extrairá as cópias que considerar pertinentes ao processamento e julgamento da autoridade com prerrogativa de foro e as remeterá ao Tribunal competente. A Medida ainda atribui expressamente ao juiz de primeira instância a competência para julgar os demais agentes e fatos em questão, prosseguindo normalmente o trâmite do procedimento e julgamento destes. Cumpre ressaltar, entretanto, que a palavra final ainda seria do órgão jurisdicional de categoria superior. O §1º do art. 84-A, também objeto da Medida, estabelece que o Tribunal competente poderá, após análise, determinar a reunião dos feitos, caso considere imprescindível a unidade do processo e do julgamento. Assim, depreende-se que a Medida XIII busca promover uma espécie de “inversão” no que tange à forma de realização do desmembramento dos procedimentos quando surgem elementos probatórios de crimes funcionais cometidos por indivíduos detentores do foro por prerrogativa de função: a análise e eventual desmembramento passaria a ser realizada imediatamente pelo juiz de primeira instância e não mais pelo órgão colegiado competente para processar e julgar a autoridade, tornando-se o julgamento unificado de todos os acusados Nesse sentido, diz a Súmula n. 704 do próprio STF: “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. 2 Supremo Tribunal Federal, AP n. 871 QO, 2ª Turma, Rel. Min. Teori Zavascki, j. 10.06.14. 1 163 exceção, assim procedido apenas quando posteriormente determinar o colegiado que receber parte dos autos enviados. 2. Objetivos da medida O próprio título da Medida XIII expõe o seu principal objetivo declarado: “facilitar o julgamento de crimes com autoridades com foro”. Entretanto, os objetivos da Medida não se limitariam ao explicitamente declarado em seu título, abarcando outros aspectos técnicojurídicos e mesmo políticos. Registre-se, inicialmente, que o uso do termo “facilitar” não é tecnicamente adequado. No processo penal constitucional, em que devem ser asseguradas ao réu as garantias legalmente previstas, o termo “facilitar” deveria se referir justamente a expandir e aplicar com mais clareza tais direitos fundamentais. Nesse sentido, depreende-se que a Medida parece utilizar o termo a partir de um prisma eficientista e utilitarista, não tendo qualquer pretensão no que se refere a assegurar garantias constitucionais: a Medida buscaria, na verdade, acelerar o trâmite do processo, principalmente no que tange aos demais agentes. Partindo desta perspectiva eficientista, depreende-se que, em tese, haveria de fato maior celeridade: ao desmembrar o processo e enviar apenas os autos concernentes à autoridade para o Tribunal competente, o julgamento dos demais réus prosseguiria, não sendo necessário aguardar a decisão que irá desmembrar o processo ou mesmo o julgamento integral pelo Tribunal competente, o que levaria um prazo consideravelmente mais longo3. Mostra-se inadequado, no entanto, o uso do termo “facilitar”, considerando que a Medida parece não buscar expandir e reafirmar garantias, inclusive indo de encontro com o entendimento do Supremo Tribunal Federal no que tange ao sistema de competência em matéria processual penal constitucional. Assim sendo, depreende-se que o objetivo da Medida não seria meramente “facilitar”, mas buscar “acelerar” o trâmite do processo. Ainda, imperioso ressaltar que a proposta se enquadra no contexto jurídico-político do processo penal brasileiro pós-deflagração da Operação Lava Jato, que de alguma forma busca positivar o posicionamento dos atores penais dos órgãos de persecução penal, tendo inclusive 3 A título exemplificativo, dados da Folha de São Paulo indicam que as ações penais relativas à Operação Lava- Jato que tramitaram na 13ª Vara Criminal Federal de Curitiba até 2016 levaram um tempo médio de um ano e sete meses desde seu início até a sentença; no STF, por sua vez, o tempo médio de tramitação de ações penais de autoridades com prerrogativa de função é de sete anos. Folha de São Paulo. STF calcula média de tempo menor para Acesso em 15.09.19 julgamentos de foro privilegiado. . Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/11/1829726-stf-calcula-media-de-tempo-menor-parajulgamentos-de-foro-privilegiado.shtml> 164 já se verificado essa prática naquela Operação, posteriormente rechaçada pelo Supremo Tribunal Federal. O eminente Ministro Teori Zavascki, em 2014, determinou, em sede liminar, a soltura de doze presos no âmbito da Operação Lava Jato e a remessa ao Supremo Tribunal Federal da integralidade dos autos referentes àquela investigação, tendo em vista que o juiz do processo, o atual Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, ao enviar para a Suprema Corte apenas os fatos concernentes à autoridade com prerrogativa de função, teria realizado o desmembramento do processo por conta própria, o que só poderia ter sido realizado pelo próprio Supremo Tribunal Federal4. Por fim, não há como se desconsiderar a notoriedade da Operação Lava Jato frente à população em geral, bem como o sentimento de desconfiança em relação ao Supremo Tribunal Federal – que parte do senso comum de que a Operação Lava Jato não mereceria reparos, vide a inexistência de qualquer abuso, na medida em que o Supremo Tribunal Federal seria uma corte altamente política e que favoreceria a impunidade5. Desta forma, a referida alteração nas regras de competência dispostas no Código de Processo Penal acompanha um momento de fortalecimento dos juízes de primeira instância, principalmente em razão dos protagonistas que integram a Operação Lava Jato por todo o país, em detrimento dos Tribunais Colegiados, principalmente a Suprema Corte brasileira, verdadeira guardiã da Constituição da República e alvo usual das indignações populares calcadas no senso comum. 3. Constitucionalidade A necessidade de se ter um guardião da Constituição Federal se deve à supremacia da Carta Magna, enquanto norma fundamental sobre a qual se assenta todo o arcabouço jurídico, principalmente em matéria de direito penal e processual penal. Por consequência, nenhum ato ou norma jurídica pode subsistir validamente se for com ela incompatível. Para assegurar essa supremacia, o ordenamento jurídico estabelece um conjunto de mecanismos no âmbito da 4 STF, Rcl n. 17.623/PR, 2ª T., Rel. Min. Teori Zavascki, julgado em 18.05.14. Segundo pesquisa do Datafolha, 84% dos brasileiros apoia a continuidade da Lava-Jato; por outro lado, pesquisa distinta realizada pelo mesmo instituto aponta que o Supremo Tribunal Federal merece “muita confiança” para apenas 18% dos brasileiros. Folha de São Paulo. Para 84% dos brasileiros Lava-Jato deve continuar; 12% defendem término. Acesso em 15.09.19. Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/04/para-84-dos-brasileiros-lava-jato-devecontinuar-12-defendem-termino.shtml> 5 165 jurisdição constitucional, destinados a fazer prevalecer os comandos constitucionais, sendo de competência do Supremo Tribunal Federal assegurar o funcionamento desses mecanismos para dar higidez ao ordenamento jurídico. A competência do Supremo Tribunal Federal é prevista no art. 1026 da Constituição da República de forma taxativa. O principal objetivo do constituinte foi atribuir ao Supremo Tribunal Federal o munus de guardião da Constituição Federal. Para isso, lhe outorgou as competências necessárias para investidura da prerrogativa de dar a última palavra em matéria constitucional. Tamanha a importância da competência do Supremo Tribunal Federal, que o ordenamento jurídico prevê meio de impugnação específico para observância das suas regras de competência, estando a Reclamação prevista de maneira expressa na Constituição no art. 102, I “l”. Importante observar, ademais, que o constituinte optou por trazer quase a integralidade das hipóteses de foro por prerrogativa no seio da Constituição da República de 1988. Exemplificativamente a Constituição Federal aponta o Supremo Tribunal Federal como competente para julgamento do Presidente da República e membros do Congresso Nacional (art. 102, I, b) e dos comandantes das Forças Armadas (art. 102, I, c); o Superior Tribunal de Justiça para julgamento dos Governadores dos Estados e do Distrito Federal (art. 105, I, a); os Tribunais Regionais Federais para julgamento dos juízes federais de sua jurisdição (art. 108, I, a); e os Tribunais de Justiça para julgamento dos Prefeitos municipais (art. 29, X). Com apoio na doutrina e jurisprudência, parte dos operadores do direito aponta a inconstitucionalidade da Medida XIII do Pacote Anticrime principalmente em razão da contrariedade à garantia fundamental do juiz natural, disposta na Constituição da República no artigo 5º, caput, e incisos XXXVII (“não haverá juízo ou tribunal de exceção”) e LIII (“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente”). 6 A PEC que hoje tramita na Câmara dos Deputados sob o número 199/2019 tem por objetivo alterar os artigos 102 e 105 da Constituição Federal – no que diz respeito aos recursos especial e extraordinário -, portanto alterando substancialmente a competência dos Tribunais Superiores. BRASÍLIA, Câmara dos Deputados, Projeto de Emenda à Constituição (PEC) 199/2019. Autoria do Deputado Alex Manente (CIDADANIA/SP). Disponível em <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=2B64F395ABB57E84CADDBBC 220ABDE57.proposicoesWebExterno2?codteor=1835285&filename=PEC+199/2019> 166 Tal princípio afirma a inarredável necessidade de predeterminação do juízo competente, quer para o processamento, quer para o julgamento, proibindo-se qualquer forma de designação de tribunais ou juízos para casos determinados7. Há de se recordar, ademais, que a autoridade competente é definida em diversos níveis legais. Assim, somente haverá respeito integral à garantia do juiz natural se forem respeitadas todas as normas de competência, constitucionais e infraconstitucionais, verificando-se, somente dessa forma, qual será o juiz competente8. Nesse aspecto, um dos fundamentos para asseverar a inconstitucionalidade da Medida nos moldes como proposta ocorreria em razão da usurpação de competência dos órgãos colegiados. Atualmente, com a verificação de elemento probatório relativo ao suposto envolvimento de autoridade com prerrogativa de foro há a remessa dos autos ao Tribunal competente, sendo este órgão colegiado o responsável por analisar todas as questões relativas à competência, dentre elas a incidência ou não das normas referentes à conexão ou continência, dispostas nos artigos 76 a 82 do Código de Processo Penal. Rememorada, portanto, a incidência das normas constitucionais, infraconstitucionais e de organização judiciária, somente o órgão jurisdicional qualificado legalmente como juiz natural da causa possuirá competência para, conforme sua avaliação e enfrentamento das questões, manter ou desmembrar o procedimento para que a persecução criminal ocorra de forma cindida. Tomando por premissa que a Medida XIII busca autorizar o juiz de primeiro grau a decidir quanto à cisão do procedimento e envio somente do fragmento relativo à autoridade com foro por prerrogativa de função, identifica-se que o objetivo da Medida é justamente inverter a concepção de hierarquia do judiciário e classificação de categorias de competência. A Medida, assim, aviltará a regra de que cabe ao órgão colegiado, seja ele qual for, enquanto foro de atração para processamento inicial de todo o litígio criminal, decidir se os autos devem tramitar de forma conjunta, se verificadas hipóteses de conexão ou continência, ou de forma separada. Assim, além da contrariedade de cunho principiológico, há também violação em abstrato a todas as normas constitucionais referentes às hipóteses de processamento e 7 Luiz Alberto David Araújo e Vidal Serrano Nunes Junior, Curso de Direito Constitucional, 22ª ed., São Paulo, Verbatim, 2017, p. 234. 8 Gustavo Henrique Badaró, Juiz natural no processo penal, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2014, p. 149. 167 julgamento de autoridades com foro por prerrogativa de função perante os Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), bem como perante os Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos estados, anteriormente listadas. Por fim, imperioso afastar a identificação das hipóteses de foro por prerrogativa de função como existência de foros privilegiados. Tais situações não se confundem. É vedado estabelecer foros subjetivos, tais quais foros pessoais ou profissionais. Inexistem no direito brasileiro foros especiais para determinadas pessoas. Estes sim violariam a isonomia, objetivo fundamental da República Federativa do Brasil, conforme disposto no artigo 3º da Constituição. As hipóteses existentes no ordenamento jurídico brasileiro dizem respeito à dignidade e altitude das funções e cargos escolhidos pelo constituinte como de alta relevância para o regular funcionamento das instituições democráticas. Por conseguinte, a garantia do juiz natural tem por escopo reafirmar o compromisso do Estado brasileiro para a construção das bases jurídicas imprescindíveis à configuração efetiva de um processo penal democrático, conferindo a todo cidadão o direito de ser processado perante o órgão jurisdicional imparcial e independente, pré-determinado em abstrato pelo ordenamento jurídico em todos seus aspectos. Diante disso, afirma-se a inconstitucionalidade material da Medida XIII, visto que não se coaduna com as normas constitucionais de competência por foro de prerrogativa de função, bem como fere de morte a garantia constitucional do juiz natural. 4. Consequências da medida Como mencionado anteriormente, as normas que tratam do foro por prerrogativa de função, determinando a competência para processar e julgar as autoridades escolhidas pelo constituinte são de direito estrito, devendo ter sua observância absoluta por parte dos órgãos jurisdicionais e membros do sistema de persecução penal. Tendo em vista o disposto na Súmula n° 704 do Supremo Tribunal Federal9, a aplicação das normas processuais penais de conexão e continência para reunião em um só procedimento perante os órgãos colegiados, mesmo quando apenas um dos imputados possui a denominada prerrogativa por função, não viola a garantia do juiz natural. “Não viola as garantias do juiz natural, da ampla defesa e do devido processo legal a atração por continência ou conexão do processo do corréu ao foro por prerrogativa de função de um dos denunciados”. 9 168 Não obstante, conforme já afirmado, houve importante alteração quanto às hipóteses de foro por prerrogativa de função com o recente julgamento, pela Suprema Corte, da Questão de Ordem na Ação Penal n. 937/RJ, tendo por enfoque justamente minorar os efeitos colaterais da aplicação das normas de competência por foro por prerrogativa. O julgamento do Agravo Regimental interposto no Inquérito n. 3.515, por sua vez, também pelo Supremo Tribunal Federal, proporcionou uma discussão assídua acerca do presente tema10, facilitando a compreensão das possíveis consequências da Medida XIII do denominado Pacote Anticrime. Conforme depreende-se daquele acórdão, a falta de uma norma reguladora, que determine especificamente a procedência nos julgamentos envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função, ocasiona uma insegurança jurídica, já que alguns autos são desentranhados, enquanto outros são atraídos de forma integral à instância superior. Deve-se ressaltar, inclusive, que o Ministro Luís Roberto Barroso, ao proferir seu voto naquele julgamento, afirmou ser de extrema relevância a análise da possibilidade de foro por prerrogativa de função na primeira oportunidade cabível, ou seja, pelo juiz de primeira instância, conforme propõe a Medida em discussão: [...] acrescento que o desmembramento, como regra, deve ser determinado na primeira oportunidade possível, tão logo se possa constatar a inexistência de potencial prejuízo relevante. Contudo, há de se atentar às consequências potenciais e previsíveis advindas da aprovação da Medida nos moldes como proposta. Primeiramente, em razão do parágrafo único do art. 84-A projetado, verifica-se que, no caso de o Tribunal determinar a união dos feitos quando da sua análise, fatalmente haverá a prática de atos pretéritos inúteis, pois partindo-se do pressuposto que os procedimentos em primeira instância prosseguirão em paralelo, surgirão questões relativas à anulação ou repetição de atos. Além disso, é sabido que em razão dos julgamentos colegiados imporem uma logística e gestão muito mais delicada, não se pode descartar que pode haver a determinação de união “COMPETÊNCIA – PRERROGATIVA DE FORO – NATUREZA DA DISCIPLINA. A competência por prerrogativa de foro é de Direito estrito, não se podendo, considerada conexão ou continência, estendê-la a ponto de alcançar inquérito ou ação penal relativos a cidadão comum” (STF, AgReg. no Inq n. 3.515/SP, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 13.02.14). 10 169 dos feitos em momento já avançado do trâmite processual do procedimento paralelo em primeira instância, acarretando, assim, importantes discussões relativas a nulidade, produção probatória, etc. Assim, poderão surgir também inconvenientes quanto ao envio fragmentário dos autos à instância superior prejudicando a instrução e promoção da acusação e defesa dos acusados, ressaltando a importância do trâmite conjunto e unificado dos autos. Todavia, o mais sensível efeito advirá da problemática instrução probatória cindida em procedimentos perante autoridades jurisdicionais diversas. A doutrina ressalta três finalidades para o estabelecimento das normas de conexão e continência: i) evitar decisões conflitantes; ii) privilégio à economia processual; e iii) o completo acertamento dos fatos. Nesse sentido, a referida Medida vai de encontro à defesa proposta pela doutrina e jurisprudência acerca da importância de uma reconstrução unitária dos fatos, viabilizando aos atores processuais uma visão ampla, geral e completa do fato criminoso em discussão no procedimento criminal. Não raro os casos penais em que presentes autoridades com foro por prerrogativa de função e outros acusados dizem respeito a delitos de alta complexidade jurídica e, principalmente, probatória. Nos dizeres de Gustavo Badaró11, “o regramento da conexão e continência tem por escopo um aspecto epistemológico, de melhor completude no acertamento dos fatos”. Com isso, a Medida possibilitará a prolação de sentenças conflitantes dentre os sujeitos relacionados ao mesmo contexto fático e jurídico. Portanto, haverá uma ampliação do estado de insegurança jurídica referente aos critérios de competência no processo penal constitucional. Ademais, reconhecida a competência como pressuposto de validade dos atos decisórios, verificada a ilegalidade na cisão dos procedimentos ou mesmo reconhecida a necessidade da união do procedimento anteriormente desmembrado pelo juiz de primeiro grau, haverá nulidade de todas as decisões proferidas pelo juízo incompetente, caindo por terra toda a “facilitação” buscada pela aprovação da Medida. Assim, deve-se ressaltar que as circunstâncias mencionadas acima poderão ocasionar no ajuizamento de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, uma vez que a Medida XIII, nos moldes como proposta, padece de inconstitucionalidade. Ainda, ao declarar a Medida analisada inconstitucional, o Supremo Tribunal Federal poderá determinar, preliminarmente, a suspensão 11 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal, 7ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2019, p. 259. 170 dos processos penais envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função e, posteriormente, a anulação em caráter definitivo, trazendo assim graves consequências ao sistema de justiça criminal em sua totalidade. Entende-se, então, que as alterações propostas pela Medida XIII do Pacote Anticrime, ao contrário do esperado, podem resultar na produção de graves efeitos negativos ao ordenamento jurídico, ampliando a situação de insegurança jurídica e violação aos direitos fundamentais dos cidadãos. 5. Conclusão Ante todos os pontos já levantados, notadamente: a) a necessária análise global das normas jurídicas (constitucionais, infraconstitucionais e de organização judiciária) para determinação da autoridade jurisdicional competente como resultado direto da principiologia constitucional do juiz natural; b) a existência de hierarquia dos órgãos jurisdicionais, estabelecida em ordem de categorias, sobrepondo-se os órgãos colegiados aos juízos monocráticos; c) a finalidade fulcral das regras de continência e conexão para melhor acertamento dos fatos; d) a exacerbada liberalidade e discricionariedade do magistrado de piso na análise dos elementos probatórios para desmembramento do procedimento e remessa dos autos ao órgão colegiado; e) a maior probabilidade de, com a norma reformada nos termos da Medida, serem prolatadas decisões discrepantes entre si; A proposta do grupo é pela não aprovação da Medida nos moldes propostos, tendo em vista sua inconstitucionalidade material e o agravamento da insegurança jurídica em matéria de competência no processo penal constitucional Propõe-se a manutenção do regramento processual penal tal qual como se encontra, de modo que caso constatados, em qualquer fase da persecução penal, elementos probatórios de crimes funcionais cometidos por autoridade com foro por prerrogativa de função, os autos sejam remetidos ao órgão de jurisdição competente para o julgamento da referida autoridade. O Tribunal competente, então, decidirá se o processo será integralmente julgado ou se será desmembrado, no caso de inexistirem hipóteses de continência ou conexão. A conservação do atual regramento obedece ao império da garantia fundamental do juiz natural frente às regras constitucionais e infraconstitucionais relativas às hipóteses de foro por prerrogativa de função. 171 Nessa mesma linha, ainda que aprovada a Medida, é de se pensar na necessidade de inclusão de um parágrafo no dispositivo 84-A ou a própria alteração do texto, a fim de expressamente estabelecer o sobrestamento do procedimento penal em primeira instância até a análise do órgão colegiado acerca da necessidade ou dispensabilidade da reunião do processo para investigação, processamento e julgamento de todos os sujeitos envolvidos no fato penal sob apuração. A título de medidas alternativas referentes à temática em discussão acredita-se de melhor proveito a discussão acerca do próprio rol existente no ordenamento jurídico brasileiro de autoridades com foro por prerrogativa de função, buscando-se assim sua eventual redução. Reafirma-se, porém, que o caráter civilizatório da garantia do juiz natural para todos os cidadãos, utilizado também como pedra de toque na estruturação de um Estado Democrático de Direito sólido, reclama que determinadas funções e autoridades políticas e jurídicas devem gozar de julgamento por autoridades experimentadas no seio de órgãos colegiados, justamente para proteção das instituições democráticas. Por outro lado, de melhor proveito também seria propor a discussão quanto à eventual extinção da competência penal do Supremo Tribunal Federal, vide o seu caráter precípuo de Corte constitucional, em harmonia com o que se encontra em outros ordenamentos jurídicos estrangeiros. Por fim, propõe-se a reflexão sobre a necessidade de maior constitucionalização do processo criminal brasileiro e não uma interpretação da Constituição à luz da práxis forense ou até mesmo das normas infraconstitucionais. 172 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 7ª ed., São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2019. BADARÓ, Gustavo Henrique. Juiz Natural no Processo Penal. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2014. DEMERCIAN, Pedro Henrique e MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 9ª Edição. Rio de Janeiro, Editora Forense, 2014. BARROSO, Luis Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo, Editora Saraiva, 2018. ARAÚJO, Luiz Alberto David e JÚNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de Direito Constitucional. 22ª ed., São Paulo, Editora Verbatim, 2017. FERNANDES, Fernando Augusto. Apontamentos sobre o projeto “anticrime” – mudanças que não combatem o crime. 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O Pacote Anticrime em questão foi apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, em fevereiro de 2019. O plano chegou à Câmara dos Deputados dividido em três projetos, i) Projeto de Lei (PL) 882/2019, que estabelece medidas contra a corrupção, o crime organizado e os crimes praticados com grave violência a pessoa; ii) Projeto de Lei Complementar (PLP) 38/2019, o qual determina regras de competência da Justiça Comum e da Justiça Eleitoral e iii) o Projeto de Lei (PL) 881/2019, que visa criminalizar o uso de caixa dois em eleições, no qual está inserida a medida XIV do Projeto Anticrime. A medida visa alterar o texto da Lei nº 4.737, de 15 de julho de 1965, conhecido como Código Eleitoral, mais especificamente em seu art. 350. Segundo consta na exposição de motivos do referido Projeto de Lei, além de outros objetivos, “o foco é, especificamente, o combate à corrupção e a efetividade do sistema de combate aos financiamentos paralelos à contabilidade exigida pela lei eleitoral”3. . ROGÉRIO PIRES DA SILVA “Financiamento De Campanhas Eleitorais E A Recente Proibição De Doações De Pessoas Jurídicas” in Revista dos Tribunais, vol. 970/2016, Ago/2016, p. 59/76. Oportuno lembrar que o tema ganhou grande relevância em 2016, quando foi proposto pelo Ministério Público Federal, o Projeto de Lei nº 4.850/2016, conhecido como “As dez medidas de combate à corrupção. Igualmente, no mesmo ano, o Supremo Tribunal Federal decidiu na Ação Direta de Inconstitucionalidade 4650 – a qual foi proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – que são inconstitucionais os dispositivos da Lei 9.096/1995 que permitem a doação de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais. 2 . Diz-se caixa dois, pois o caixa um seria, justamente, a contabilidade oficial. 3 .Exposição de motivos Projeto de Lei 881/2019, disponível em https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=EF33273D9AAEE2E08D59A4E37 5342C68.proposicoesWebExterno2?codteor=1712087&filename=PL+881/2019 acesso em 13.10.2019, às 20h10m. 1 174 Mas afinal, o que é caixa dois? De acordo com o Ministro Luiz Fux, durante o julgamento do mensalão, “o jargão político consagrou a expressão “caixa dois” para referir-se à prática de manutenção ou movimentação de recursos financeiros não escriturados ou falsamente escriturados na contabilidade de pessoas jurídicas as mais diversas, como associações, fundações, sociedades comerciais e partidos políticos”4. Contudo, a tipificação do caixa dois eleitoral não está prevista no nosso ordenamento jurídico, o que tem levado os tribunais superiores5 aplicarem o art. 350 do Código Eleitoral6, o qual prevê a conduta de falsidade ideológica eleitoral, em casos onde há contabilidade paralela, como se caixa dois fosse. Igualmente, a má compreensão entre o tipo de corrupção7 e caixa dois eleitoral, tem levado, ultimamente, a premissa errada de que a corrupção exige a criminalização daquela prática. Evidente, que há uma tendência de que com a criminalização do caixa dois eleitoral, este tipo represente uma forma de punir, ainda que indiretamente, a corrupção, mesmo que não haja provas suficientes para tanto. De toda forma, o que pretende é justamente criminalizar a conduta daqueles que mantem contabilidade paralela à exigida pela legislação eleitoral a qual se materializa com a inclusão do art. 350-A no Código Eleitoral, cuja redação sugerida pelo projeto do Ministro Sergio Moro é a seguinte: Art. 350-A. Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se o fato não constitui crime mais grave. § 1º Incorre nas mesmas penas quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput. § 2º Incorrem nas mesmas penas os candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa. 4 STF, AP 470, trecho do voto Ministro Luiz Fux, DJe 22.4.2013. Nesse sentido também, FÁBIO BITTENCOURT DA ROSA, O caixa dois, in Revista do Tribunal Regional Federal 4ª Região, nº 52, disponível em https://www2.trf4.jus.br/trf4/revistatrf4/arquivos/Rev51.pdf acesso em 13.10.2019, às 20h30m. 5 . STF, Inq 4428/DF, Rel. Min. GILMAR MENDES, DJe 28.8.2018. 6 . In verbis: Omitir, em documento público ou particular, declaração que dele devia constar, ou nele inserir ou fazer inserir declaração falsa ou diversa da que devia ser escrita, para fins eleitorais: Pena - reclusão até cinco anos e pagamento de 5 a 15 dias-multa, se o documento é público, e reclusão até três anos e pagamento de 3 a 10 dias-multa se o documento é particular. Parágrafo único. Se o agente da falsidade documental é funcionário público e comete o crime prevalecendo-se do cargo ou se a falsificação ou alteração é de assentamentos de registro civil, a pena é agravada. 7 . A confusão se dá porque “doações ilegais podem servir de indício, mas não constituem por si só crime de corrupção e doações legais não excluem de antemão a realização dos tipos penais de corrupção, embora instaurem uma presunção forte de que a ação típica de corrupção não está realizada” ALAOR LEITE E ADRIANO TEIXEIRA, Crime e política, FGV, Rio de Janeiro, 2017, p. 146. 175 § 3º A pena será aumentada em 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa.8 Por fim, dada a redação do tipo proposto e “a insatisfação com essa relativa independência entre corrupção e caixa dois eleitoral e, por consequência, com a possível não punibilidade dessa prática no caso concreto à mingua do preenchimento dos requisitos dos tipos penais de corrupção” bem como também a confusão quanto tipo de financiamento irregular de campanha eleitoral, que “decorra a necessidade de discutir a criminalização autônoma do caixa dois eleitoral”9. 2. Direito comparado A turbulência vivida no cenário político brasileiro nas últimas décadas tem levado a debates cada vez mais intensos, não só no tocante ao financiamento ilícito de partidos políticos como também da corrupção eleitoral, intensificando-se dado aos constantes escândalos midiáticos envolvendo o tema de caixa dois eleitoral. Nesse sentido, é necessário realizar uma análise comparada sobre a maneira como o Direito Penal tem oferecido respostas aos problemas nos principais países do mundo, que nos servirá como uma ferramenta para interpretar e produzir uma análise crítica sobre a implementação do tipo previsto na medida XIV do Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo Ministério da Justiça. i. França Foi apenas por meio da recente discussão da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4650 que o Supremo Tribunal Federal em 2016, estabeleceu a proibição de que pessoas jurídicas figurassem como doadoras de valores a campanhas políticas no Brasil, ao passo que a França, já proibia10 tal conduta desde 199511. 8 . Redação dada pelo Projeto de Lei Anticrime. . EUGÊNIO PACELLI, NEFI CORDEIRO e SEBASTIÃO DOS REIS JUNIOR, Direito penal e processual penal contemporâneos, Atlas, São Paulo, 2019, p. 79. 10 . Ressalta-se que “pessoas jurídicas são proibidas de contribuir direta (oferecendo dinheiro) ou indiretamente (favorecendo de qualquer forma) para o financiamento de campanhas de candidatos ou partidos políticos. Cumpre ressalvar que nem toda pessoa jurídica é proibida de colaborar, pois partidos e grupos políticos podem, sim, contribuir para o financiamento eleitoral” Barbosa, Larissa Fontenelle de Mendonça. Financiamento eleitoral e democracia representativa: Estudo comparado dos modelos de financiamento brasileiro e francês. Disponível em https://www.publicacoes.uniceub.br/pic/article/view/5556 acesso em 17.10.2019 às 17h56. 11 . As contas eleitorais passaram a ser submetidas para verificação a uma autoridade administrativa, denominada “Commission nationale descomptes de campagne et des financements politiques (CN CCFP)”. 9 176 O modelo francês é rígido e adota o financiamento público como forma de minimizar as ilegalidades de doações em eleições e garantir a equidade entre os candidatos 12. Tal financiamento pode se dar de forma direta, por meio de reembolso oferecido pelo Estado francês após as eleições – mediante aprovação das contas de campanha e desde que tenham recebido mais de 5% dos votos de sua circunscrição – ou pelo montante oferecido pelo próprio Estado. Já a forma indireta se dá através do estabelecido no item c da ficha de síntese nº 1513, que trata das outras formas de ajuda pública aos partidos políticos, tais como o “direito de antena”, o qual permite que os candidatos políticos possam se expressar pelos canais públicos de rádio e televisão. Por fim, a Lei nº 88-227 de março de 1988 também trouxe consequências quanto à transparência financeira da vida política (Haute Autorité pour la Transparence de la Vie Publique14), impondo a transparência patrimonial dos servidores públicos, a fim de evitar enriquecimento ilícito. A falsidade na declaração patrimonial ou omissão de patrimônio acarreta uma sanção de três anos de prisão e quarenta e cinco mil euros de multa15, somados a penalidades civis e administrativas como a perda de direitos civis e do exercício de função pública. A penalidade é estendida para o polo ativo, ou seja, para aqueles que contribuíram para as campanhas eleitorais em desacordo com o regramento eleitoral. Portanto, “nota-se que a legislação francesa sobre financiamento eleitoral é bemintencionada, no sentido de expressar o sufrágio, tentando igualizar, na medida do possível, as condições de participação no pleito eleitoral”16. Tal fato se da porque “o financiamento público costuma ter efeito ‘equalizador’, de modo a dar chance a partidos pequenos e menos próximos do empresariado”17. ii. Portugal O sistema de financiamento eleitoral em Portugal, assim como na França, é essencialmente público, conforme estabelecido na legislação que vigora no país desde 2003. A 12 Falaremos mais adiante sobre essa equidade do processo eleitoral como bem jurídico penal a potencialmente ser tutelado pelo novo tipo penal proposto pelo Ministério da Justiça. 13 . Ficha de síntese nº15: o financiamento da vida política: partidos e campanhas eleitorais disponível em http://www2.assemblee-nationale.fr/decouvrir-l-assemblee/role-et-pouvoirs-de-l-assemblee-nationale/ledepute/le-financement-de-la-vie-politique-partis-et-campagnes-electorales acesso em 17.10.2019, às 17h38m. 14 . Idem. 15 . Idem, BARBOSA. 16 . Idem, BARBOSA. 17 . Idem, BARBOSA. 177 Lei nº 19/2003 – que apenas entrou em vigor em 2005 – estabeleceu um sistema de financiamento de campanha eleitoral português, como um sistema misto, que aborda tanto o financiamento privado quanto público, conforme estabelecido em seu art. 1618. A legislação também estabelece que as contas anuais dos partidos políticos e das campanhas eleitorais devem ser fiscalizadas pelo Tribunal Constitucional e Entidade das Contas e Financiamento Político (ECFP)19, órgão independente e inspirado na legislação francesa. Com a finalidade de proteger o financiamento público eleitoral, o art. 28 da mencionada lei20 prevê, além das sanções de caráter pecuniário, sanção penal para aqueles que participem na obtenção de financiamentos proibidos ou de forma não estabelecida em lei, sob pena de prisão de um a três anos. iii. Alemanha A Alemanha lida com o problema do financiamento ilegal de partidos políticos sob a perspectiva do delito de infidelidade patrimonial (§266, CP alemão)21. O sistema de financiamento eleitoral alemão é conhecido por “matching funds” semelhante ao financiamento público, neste modelo, a cada euro que tenha sido doado ao partido, este recebe do Estado, €0,38. Foi a partir do escândalo de doação ilegal22 protagonizado pela CDU (União Democrata Cristã), que a legislação alemã introduziu em seu ordenamento jurídico a sanção . “Artigo 16: Receitas de campanha: 1 - As atividades da campanha eleitoral só podem ser financiadas por: a) Subvenção estatal; b) Contribuição de partidos políticos que apresentem ou apoiem candidaturas às eleições para a Assembleia da República, para o Parlamento Europeu, para as Assembleias Legislativas Regionais e para as autarquias locais, bem como para Presidente da República; c) Donativos de pessoas singulares apoiantes das candidaturas à eleição para Presidente da República e apoiantes dos grupos de cidadãos eleitores dos órgãos das autarquias locais; d) Produto de atividades de angariação de fundos para a campanha eleitoral” disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=747&tabela=leis acesso em 17.10.2019 às 18h37m. 19 Estabelecido pelo art. 24, item nº 1, da Lei 19/2003. 20 . In verbis: Art. 28 “§2º Os dirigentes dos partidos políticos, as pessoas singulares e os administradores de pessoas coletivas que pessoalmente participem na atribuição e obtenção de financiamento proibidos são punidos com pena de prisão de um a três anos; §3º Os mandatários financeiros, os candidatos às eleições presidenciais ou os primeiros proponentes de grupos de cidadãos eleitores que não observem na campanha eleitoral os limites estabelecidos no artigo 20.º ou que obtenham para a campanha eleitoral receitas proibidas ou por formas não previstas na presente lei são punidos com pena de prisão de um a três anos. §4º Em iguais penas incorrem os dirigentes de partidos políticos, as pessoas singulares e os administradores de pessoas coletivas que pessoalmente participem nas infrações previstas no número anterior” disponível em http://www.pgdlisboa.pt/leis/lei_mostra_articulado.php?nid=747&tabela=leis acesso em 17.10.2019, às 18h45m. 21 . O Segundo Senado criminal já decidiu que “a criação e a administração de caixas dois por empregados na economia privada devem subsumir-se, sem mais, ao tipo de infidelidade patrimonial” LEITE, Alaor e TEIXEIRA, Adriano, Crime e Política, FGV Editora, Rio de Janeiro/RJ, 2017, p. 244. 22 . Para mais informações sobre o escândalo de doação ilegal da CDU, disponível em https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mundo/ft2501200012.htm acesso em 21.10.2019, às 16h15m. 18 178 penal relativa ao financiamento ilegal no §31d da Lei dos Partidos de 2002 (PartG). O que se pretende no referido artigo é justamente proteger a confiança da opinião pública23 e garantir a manutenção do sistema democrático. O dispositivo prevê pena de até três anos de prisão ou multas para aqueles que, com a intenção de ocultar a origem dos recursos partidários e de seu próprio patrimônio, prover dados incorretos sobre a entrada de patrimônio nos partidos em prestações de contas apresentado às autoridades competentes e omitir entrega de doações. iv. Itália A Itália definiu o crime de financiamento ilegal de partidos políticos na Lei nº 195, de 2 de maio de 1974. O art. 7º da referida lei prevê sanções penais ao financiamento público ilegal e financiamento empresarial oculto a partidos políticos. O dispositivo pune tanto o polo passivo quanto o polo ativo da transação ilegal. Inicialmente, esse dispositivo legal tinha um caráter “simbólico”, como afirma Antonio Martín24, porém, em face dos escândalos decorrentes das investigações “Mãos Limpas” e “Tangentopoli”, a Lei nº 195 passou a centralizar o debate público, em uma tentativa por parte da classe política italiana de retirar do âmbito penal a contabilidade paralela. Assim, o dispositivo legal que criminaliza o financiamento ilegal pretende garantir o livre curso das eleições, tal qual previsto na Constituição italiana. Porém, o tipo penal tem sido objeto de debates da esfera pública italiana: O delito de financiamento ilegal tem sido objeto de críticas por parte da doutrina italiana. Mostra, em primeiro lugar, sua defeituosa e ambígua redação especialmente a modalidade de financiamento corporativo oculto. Destaca FIORELLA que tal como está configurada encontraríamos um ilícito meramente formal, desprovido de qualquer tipo de lesividade e catalogável como “crime suspeito”, o que o faria questionável do ponto de vista da inconstitucionalidade. A abordagem do autor citado é a seguinte. No delito de financiamento corporativo oculto, não se pune o financiamento empresarial diretamente mas apenas aquele que não foi divulgado por não ter se submetido ao órgão social competente ou por não estar registrado em seu balanço. É precisamente essa ausência de publicidade que permite suspeitar uma conexão do ato com certos interesses empresariais. Essa concepção que consta no preceito é insuficiente para recorrer ao Direito Penal. Não é 23 . MARTÍN, Antonio Mª Javato. El delito de financiación ilegal de los partidos políticos (arts. 304 bis e 304 ter CP): Aspectos dogmáticos, políticos criminales y de derecho comparado, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2017, núm. 19-26, pp. 1-41. Disponível em: <http://criminet.ugr.es/recpc/19/recpc1926.pdf> [ISSN 1695-0194 [RECPC 19-26 (2017), 17 dic] 24 . MARTÍN, Antonio Mª Javato. El delito de financiación ilegal de los partidos políticos (arts. 304 bis e 304 ter CP): Aspectos dogmáticos, políticos criminales y de derecho comparado, Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminología (en línea). 2017, núm. 19-26, pp. 1-41. Disponível em: <http://criminet.ugr.es/recpc/19/recpc1926.pdf> [ISSN 1695-0194 [RECPC 19-26 (2017), 17 dic] acesso em 21.10.2019, às 17h03m, p. 8. 179 adequado invocar, afirma FIORELLA, para justificar seu caráter delitivo apelar ao bem jurídico “transparência”, pois a transparência ou a falta de transparência e si é um bem jurídico meramente instrumental que somente pode ser atendido enquanto serve a preservação do pluralismo político e a democracia (coisa que neste caso não se sucede). Ele conduziria irremediavelmente a afirma a inconstitucionalidade do delito em questão25. v. Espanha O sistema de financiamento eleitoral espanhol é misto, existindo tanto fundos públicos quanto privados, estabelecido pela Lei Orgânica 5/1985 denominada Régimén Electoral General (LOREG). As leis que disciplinam sobre o financiamento partidário foram alteradas em 2015 pela Lei Orgânica 3/2015 (LOCAEFPP) que controla, vige e supervisiona a atividade econômica e financeira dos partidos políticos espanhóis, propondo uma reforma no Código Penal espanhol com a inserção do tipo penal de financiamento ilegal de partidos políticos no art. 304 do CP. Tal artigo pune com pena de prisão de um a cinco anos aquele que participa em estruturas ou organizações, qualquer que seja sua natureza, cuja finalidade seja o financiamento de partidos políticos, federações, coligações ou grupos de eleitores. Ainda, o artigo 5 da Lei Orgânica 8/2007 determina que os partidos políticos não podem aceitar receber direta ou indiretamente doações anônimas, doações da mesma pessoa superiores a 50.000 euros anuais e doações procedentes de pessoas jurídicas e de entes sem personalidade jurídica. A partir do novo tipo penal inaugurado pelo artigo 304, surge um debate na doutrina espanhola a respeito do bem jurídico autônomo que o delito de financiamento ilegal pretende proteger. Para Inés Olaizola Nogales, a função do partido político é ser intermediário entra a sociedade e o Estado. Nesse sentido, a vontade popular deve se manifestar livre de influências estranhas que busquem favorecer interesses e vontades particulares frente à vontade programática26. Já Martín afirma que o injusto de financiamento ilegal abarca a alteração do financiamento do sistema de partidos, tanto no que se refere a igualdade de oportunidades entre partidos como na quebra de democracia interna e a oligarquização das organizações políticas que implica27. O entendimento mais aceito na Espanha é de que o correto funcionamento do financiamento partidário é um bem jurídico que deve ser protegido pelo Direito Penal, já que a 25 . Idem, MARTÍN, p. 8, tradução livre. . LEITE, Alaor e TEIXEIRA, Adriano, Crime e Política, FGV Editora, Rio de Janeiro/RJ, 2017, p.183. 27 . Idem, MARTÍN, p. 22. 26 180 respeito a esse bem jurídico representa uma violação aos princípios constitucionais espanhóis atribuídos aos partidos políticos. Os doutrinadores defendem que a tipificação penal do financiamento ilegal representa uma maneira de salvaguardar os valores democráticos da formação político e garantir o pluralismo ideológico. Portanto, é possível notar que nas legislações estrangeiras já há dispositivos que criminalizam condutas como a prevista na medida XIV do Projeto de Lei Anticrime apresentado pelo Ministério da Justiça. O que se percebe é que superada a criminalização de tais condutas que visam combater a não contabilização de recursos financeiros de partidos políticos, resta a discussão – tão profunda quanto a criminalização, se não até maior – em torno do bem jurídico protegido pelo tipo penal em questão. 3. Sobreposição ao tipo penal corrupção e bem jurídico protegido A manutenção de contabilidade paralela em partidos políticos não é atualmente punida de forma autônoma e direta em nosso ordenamento jurídico, assim, essa prática é alcançada via reflexa através de outros delitos penais, tal como a corrupção ativa e passiva ou pela falsidade de documento público com finalidade eleitoral. No presente estudo refletiremos, sem a pretensão de esgotar o tema, se a punição lege data da doação de campanha não declarada – que se convencionou chamar de caixa dois – seria suficiente para reprimir tal conduta ou se seria necessário o estabelecimento de um novo tipo penal, como proposto o pelo Ministério Público Federal nas denominadas “10 medidas anticorrupção” e no projeto de Lei nº 881/2019 apresentado pelo Ministério da Justiça, que atualmente em tramitação no Congresso Nacional. Em um primeiro momento importante compreender o delito de corrupção, previsto nos artigos 317 (corrupção ativa) e 333 (corrupção passiva), ambos do Código Penal, visto serem esses os tipos penais do direito vigente aos quais mais comumente são enquadradas as condutas de caixa dois. Através da análise do tipo de corrupção passiva, podemos traçar limites e relações entre conceitos, os quais são aplicáveis também ao tipo da corrupção ativa, dispensando-se deste modo uma segunda análise, que redundaria nas mesmas conclusões. Vide os dispositivos abaixo: Art. 317 - Solicitar ou receber, para si ou para outrem, direta ou indiretamente, ainda que fora da função ou antes de assumi-la, mas em razão dela, vantagem indevida, ou aceitar promessa de tal vantagem: 181 Art. 333 - Oferecer ou prometer vantagem indevida a funcionário público, para determiná-lo a praticar, omitir ou retardar ato de ofício: Em decorrência da leitura dos artigos supra é possível asseverar que a prática da corrupção constitui delito próprio, já que o sujeito ativo do primeiro dispositivo e o sujeito passivo do segundo, devem necessariamente ser funcionário público, ainda que não tenham assumido o cargo. Nota-se que para configuração da corrupção é imprescindível o pacto do injusto, ou seja, a relação do funcionário público a uma vantagem indevida, vantagem essa entendida como “prestação material ou imaterial que melhore de maneira objetiva e mensurável a situação econômica, jurídica ou apenas pessoal de um sujeito”. Logo, pode-se encaixar sem maiores dificuldades no conceito de vantagem indevida, as doações eleitorais (legais ou ilegais), mantidas em contabilidade paralela, situação na qual ocorreria a subsunção do fato a norma penal incriminadora. Neste ponto, primordial ressaltar que não é a ilegalidade de uma doação, por exemplo, aquela realizada mediante caixa dois que caracteriza o delito de corrupção, como tampouco é sua legalidade que garante a licitude. Nesse sentido já bem elucidaram Alaor Leite a Adriano Teixeira ser perfeitamente possível que tais conceitos caminhem em separadamente: o candidato X participando de sua primeira eleição, vendo-se atrás nas pesquisas, sente a necessidade de incrementar sua campanha e precisa de dinheiro. Seu amigo Y, sujeito riquíssimo, cujo patrimônio provém essencialmente de herança familiar, está disposto a ajudá-lo mais uma vez. Porém, por já ter realizado uma vultosa doação anteriormente no começo da campanha, não pode fazê-lo novamente sem extrapolar o limite do art. 23, §1º, da Lei 9.504/97. Mesmo assim, Y faz a doação, de maneira não declarada, em uma conta separada, e X não a contabiliza em conta específica e declarada, conforme manda a legislação eleitoral (art. 22, L. 9.504/97). Ao final, mesmo com esse incremento na campanha, X não se elege. Neste exemplo, não há que se falar em corrupção, pois X não ocupa e sequer vem a ocupar um cargo público no futuro. Além disso, mesmo se eleito, Y não exigiu qualquer “contraprestação” por parte de X, que não intentava obter qualquer vantagem com a eleição de seu amigo. (...) Um senador A tenta a reeleição e possui grande influência junto a uma empresa estatal, um empreiteiro B: “doe 5 milhões de reais ao meu partido, de forma declarada, que garanto que sua empresa participará das obras mais importantes da empresa estatal P”. A contabiliza regularmente o dinheiro recebido na conta da campanha. (...) seria contra intuitivo dizer que não se trata de um caso de corrupção28 28 Leite/Teixeira, Direito penal e processual penal contemporâneos. São Paulo: Editora, 2019, pp. 78/79. 182 Assim, é devido concluir que a conduta de caixa dois constituirá o delito de corrupção se, e somente se, houver o liame da vantagem indevida, seja no oferecimento ou no recebimento desta. Contudo, importante esclarecer que a não declaração perante a Justiça Eleitoral de valores doados, sem a exigência de contraprestação, mantidos em contabilidade em paralelo, em que pese não se adequem ao tipo penal de corrupção, não estão inumes a sanção, podendo constituir crime tributário ou mesmo falsificação de documento público com finalidade eleitoral. O que se apreende das motivações apresentadas no projeto de lei é que o grande óbice e principal propulsor dos defensores de uma criminalização autônoma do caixa dois eleitoral é a dificuldade em se demostrar a ocorrência da vantagem indevida nos casos concretos. Posto isso, imperioso analisar os efeitos legais da criação de um tipo penal autônomo para sancionar a manutenção de contabilidade paralela durante o processo eleitoral. Em primeiro turno, salutar que afastar a ideia de que eventual novo tipo penal resultaria em uma anistia ampla e irrestrita a todas as condutas anteriormente praticadas, pois somente neste instante se estaria reconhecendo a existência do crime de caixa dois. Tal conclusão se revela precipitada e falaciosa, pois condutas do passado continuariam sendo passiveis de sanção de acordo com ordenamento penal então vigente. Logo, poder-se-ia sancionar a contabilidade em paralelo durante o processo eleitoral como incurso em outros tipos penais, desde que preenchidas as elementares de tais tipos penais, como a corrupção, aqui mencionada, ou como lavagem de dinheiro, falsidade ideológica eleitoral, dentre outros. Ultrapassada essa questão preliminar, passa-se a análise do binômio possibilidadenecessidade do propenso novo tipo penal: Art. 350-A. Arrecadar, receber, manter, movimentar ou utilizar qualquer recurso, valor, bens ou serviços estimáveis em dinheiro, paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral. Pena - reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, se o fato não constituir crime mais grave. § 1º Incorre na mesma pena quem doar, contribuir ou fornecer recursos, valores, bens ou serviços nas circunstâncias estabelecidas no caput. § 2º Incorrem nas mesmas penas os candidatos e os integrantes dos órgãos dos partidos políticos e das coligações quando concorrerem, de qualquer modo, para a prática criminosa. § 3º A pena será aumentada de 1/3 (um terço) a 2/3 (dois terços), no caso de algum agente público concorrer, de qualquer modo, para a prática criminosa. A criação de tal delito autônomo pode derivar de eventual lacuna de punibilidade “haveria condutas merecedoras de sanção penal que por falta de lei e por força do princípio da 183 legalidade, não podem ser punidas” e da existência de um bem jurídico penal autônomo a ser protegido que exigisse a atuação do direito penal. Quanto à lacuna de punibilidade, cumpre lembrar que a proposta de tipificação de um crime de caixa dois vem em boa hora, visto que o Código Eleitoral, em que pese preveja punição penal para um grande número de condutas, tutelando quase todos os aspectos do certame eleitoral, não prevê a responsabilização daquele que emprega em campanha política valores não contabilizado perante a justiça eleitoral. Sendo que o noticiário policial tem informado recentemente o descortinar de grandes esquemas de emprego de verbas eleitorais a margem da contabilidade exigida pela legislação eleitoral. Ainda, quanto ao bem jurídico carente de proteção, poder-se-ia cogitar da necessidade de constituir o próprio partido político como um bem jurídico autônomo, uma vez que seu correto funcionamento é fundamental para consecução dos anseios democráticos. Sob essa ótica o novo tipo penal estaria se afastando do direito penal clássico, que protege bens individuais, como o patrimônio e a honra, e se aproximando do direito penal moderno, que vivencia o fenômeno da espiritualização do bem jurídico, ou seja, preceitua que bens coletivos merecem tutela estatal na medida em que são “concebidos como interesses mediatos ou instrumentais a serviço do indivíduo”. Ou ainda, o que nos parece mais acertado, poderíamos vislumbrar que o novo tipo penal procura melhor tutelar o caráter competitivo do processo eleitoral. Isto é, garantir que não seja a supremacia econômica a nortear os resultados do processo eleitoral, instituição máxima da democracia e, consequentemente, um dos bens jurídicos mais importantes para a manutenção do estado social democrático de direitos, o que legitima sua tutela pelo direito penal como ultima ratio. Neste âmbito, ao se punir o caixa dois autonomamente estar-se-ia preservando um bem de interesse geral, fundamental no sistema social. Deve-se, contudo, atentar para dificuldade em se determinar quando o bem jurídico em voga estaria em risco, de modo a não ultrapassar os princípios da intervenção penal mínima e da culpabilidade. Questão está que, deixando de lado exercícios de futurologia, devemos deixar para análise futura dos casos concretos vindouros. Por derradeiro, outra questão que deverá ser analisada com maior profundidade no futuro é como se diferenciará o pagamento de vantagem indevida a funcionário público a fim de vinculá-lo a prática de ato de ofício da doação eleitoral realizada paralelamente à 184 contabilidade exigida pela legislação eleitoral quando o primeiro estiver contido no iter criminis do segundo. Isto porque, em que pese a ressalva expressa trazida no tipo penal proposto no projeto de lei quanto a possibilidade de se punir ato por outro crime a conduta tipificada pelo vindouro artigo 350-A da Lei nº 4.737/1965, se o fato constituir crime mais grave, a nossa sistemática penal veda a punição de atos preparatórios – salvo exemplos recentes como os tipos penais trazidos pela Lei Antiterrorismo. 4. Conclusões e propostas Conforme exposto é premente no sistema normativo penal e eleitoral brasileiro a necessidade de criação de normas que tutelem a probidade do processo eleitoral, protegendo o caráter competitivo do certame eletivo contra abusos do poder econômico em favor de um determinado candidato ou partido político. Assim, ao menos quanto à necessidade de resolução de um problema real do processo eleitoral brasileiro, acerta o projeto de lei apresentado pelo Ministério da Justiça e, lembre-se, até a redação final desse estudo, ainda não aprovado pelo Congresso Nacional. Contudo, como visto, a medida proposta não é imune a críticas, principalmente em relação aos potencias efeitos que a alteração legislativa em comento pode produzir no processo eleitoral brasileiro e, mais especificamente, no sistema jurídico penal. O que se capta é que mais do que definir o partido político como bem jurídico carente de tutela penal, ou melhor, tutelar a probidade do processo eleitoral ou a administração pública como bens jurídicos já bem delimitados, o projeto de criminalização autônomo do caixa dois eleitoral tem essência comercial, o que o desvirtua. Prega-se o combate à corrupção, e em razão dele a criação de um novo tipo penal não pela justificativa da carência de efetiva proteção a determinado bem jurídico, mas sim pela dificuldade em provar os casos em que a prática de caixa dois constitui crime de corrupção e, assim, utilizar-se-ia do direito penal como um instrumento de prevenção, antecipando-se a tutelar jurídico penal. Assim, ao que parece, o novel legislativo proposto não resolve as questões mais comezinhas do combate à corrupção no processo eleitoral (diferenciação do crime eleitoral e do crime comum), nem auxilia na tutela dos bens jurídicos penais objeto de proteção da Lei nº 4.137/1995 (probidade do certame eleitoral). 185 Em que pese evidente a necessidade de criação de novas medidas para melhor proteger o caráter competitivo do processo eleitoral brasileiro, ainda mais considerando os recentes escândalos relacionados a fraudes no financiamento de campanha, antes de criarmos um novo tipo penal que sequer procura tutelar os bens jurídicos protegidos pelo Código Eleitoral, faz-se necessária uma maior e mais aprofundada discussão sobre o sistema dos crimes eleitorais no Brasil, sua relação e sobreposição com os delitos previsto no Código Penal e uma cuidadosa análise de direito comparado para entendermos como outros países resolveram as mesmas questões que aqui enfrentamos. Ademais, se o novo tipo penal tem o fim de combater a corrupção atrelada ao processo eleitoral, talvez mais salutar seria a inclusão de uma causa de aumento de pena incluída no próprio tipo penal de corrupção. Assim, punindo com mais gravame aqueles que realizassem o repasse de valores irregulares a título de doação paralelamente à contabilidade exigida pela legislação eleitoral vinculando tal pagamento a realização de ato de ofício pelo agente público e, dessa forma, atingindo dois bens jurídicos, a administração pública e o caráter competitivo do processo eleitoral. 186 MEDIDA XV – REGIME DE INTERROGATÓRIO POR VÍDEOCONFERÊNCIA Sob coordenação de Daniella Meggiolaro Paes de Azevedo e Brenda Borges Dias Elaborado por Beatriz Alves Ensinas, Carolina Calanca, Marina Handfas Magalnic, José Fernandes da Costa Neto e Victor Henrique Ortencio Cabral 1. Descrição da medida A medida proposta visa a expandir a abrangência da utilização da videoconferência para realização de atos processuais, tais como interrogatório, acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, audiência de custódia, tomada de declarações e inquirição de testemunhas. A partir do proposto, a redação do artigo 185 do Código de Processo penal, que atualmente se apresenta da seguinte forma: Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) ....................................................................................................................................... §2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: (Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009) ....................................................................................................................................... IV - Responder à gravíssima questão de ordem pública. (Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009) ....................................................................................................................................... §8º Aplica-se o disposto nos §§ 2o, 3o, 4o e 5o deste artigo, no que couber, à realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido. (Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009) ....................................................................................................................................... §10º. Do interrogatório deverá constar a informação sobre a existência de filhos, respectivas idades e se possuem alguma deficiência e o nome e o contato de eventual responsável pelos cuidados dos filhos, indicado pela pessoa presa (Incluído pela Lei nº 13.257, de 20161) Passaria a se apresentar da seguinte forma: Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado. (Redação dada pela Lei nº 10.792, de 1º.12.2003) ....................................................................................................................................... §2º O juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso 1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm 187 tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades: (Redação dada pela Lei nº 11.900, de 2009) ....................................................................................................................................... IV - Responder à questão de ordem pública ou prevenir custos com deslocamento ou escolta de preso. ....................................................................................................................................... §8º Aplica-se o disposto nos §§ 2o, 3o, 4o e 5o deste artigo, no que couber, à realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, audiência de custódia e inquirição de ou tomada de declarações do ofendido. (Incluído pela Lei nº 11.900, de 2009) ....................................................................................................................................... §10º Se o réu preso estiver recolhido em estabelecimento prisional localizado fora da Comarca ou Subseção Judiciária, o interrogatório e a sua participação nas audiências deverão ocorrer na forma do §2o, desde que exista o equipamento necessário.” (NR2) O presente estudo demonstrará de maneira objetiva as problemáticas que referidas alterações provocariam ao direito de defesa do investigado e ao devido processo legal. Uma delas se encontra no termo “prevenir custos com deslocamento ou escolta de preso”, disposto no inciso IV do §2º do artigo 185, uma vez que referida recomendação excluiria o caráter excepcional das situações em que atualmente são permitidos os atos por videoconferência. Percebe-se que com a genérica e conveniente escusa de prevenir custos do Estado qualquer ato envolvendo investigado ou réu preso poderá ser realizado por videoconferência. No mesmo sentido, merece especial atenção a possibilidade de realização de audiências de custódia3 por videoconferência. A inclusão da realização desse ato por meio eletrônico e não pessoalmente fere de morte um de seus principais objetivos, que é justamente a prevenção e o monitoramento de torturas no sistema de justiça criminal. Por último, o parágrafo décimo (§10º), seria alterado para tornar regra a realização das audiências via videoconferência com aprisionados que estejam recolhidos fora da Comarca ou Subseção Judiciária em que corre o processo. Neste tocante, a ressalva de existência do equipamento é exemplificativa, uma vez que, se aprovada a mudança proposta pelo projeto, assume-se que o equipamento necessário seria disponibilizado a todos os presídios. 2. As reais intenções do Projeto 2 https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1549284631.06/projeto-de-lei-anticrime.pdf . Como se verá adiante, instituída em nosso ordenamento jurídico pelo “Pacto de San José da Costa Rica”, do qual o Brasil é signatário. 3 188 Os objetivos declarados dessa proposta estão dispostos na própria alteração: celeridade processual e economia de verbas públicas. O redator presume a suposta celeridade processual, pois não haveria a obrigatoriedade de transporte dos presos à audiência e esse trajeto, em tese, diminuiria o tempo de andamento do procedimento penal. Ocorre que a celeridade processual é basilar somente da Lei dos Juizados Especiais, que aqui não deve ser levada em consideração, uma vez que na maioria esmagadora dos casos não é necessária a realização de audiência por videoconferência com presídios tendo em vista que o agente do termo circunstanciado, em regra, não é acautelado. Além disso, como princípio secundário da garantia da razoabilidade da duração do processo, a celeridade processual pode apenas ser invocada em benefício do acusado e nunca para suprimir direitos e garantias, como a ampla defesa, o contraditório e o devido processo legal. No mesmo sentido, a economia monetária invocada no projeto de lei visa a contenção de gastos no deslocamento ou escolta do preso para audiências. Entretanto, isso não pode servir de fundamento para impedir o contato pessoal do investigado/réu com o juiz, sob pena de violação do princípio da ampla defesa. O presente estudo tem como motivação o Pacto Internacional de San José de Costa Rica4 – ratificado pelo Brasil em 25 de setembro de 1992 – que prevê em seu artigo 8º a audiência de custódia como o primeiro momento em que o juiz tem contato com o preso, possibilitando, de pronto, a averiguação de sua situação física e psíquica. É primordial apontar que referido mecanismo é reconhecido como forte instrumento preventor de torturas e sua realização via videoconferência, por óbvio, perderia um de seus principais propósitos. A alteração proposta permite que os atos do processo ocorram, em sua maioria, sem a presença do preso, o que acarretaria a perda de espontaneidade e credibilidade dos depoimentos, uma vez que não se teria controle sobre o que está de fato ocorre por trás das câmeras. É quase impossível que um julgador consiga, por meio de videoconferência, perceber a qualidade de segurança do preso ou se a este está sendo conferida plena liberdade de denunciar um possível caso de maus-tratos ou de coação de um agente penitenciário ou policial. 4 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, acesso em 5 de outubro de 2019 às 10:35 189 Assim, conclui-se que ao priorizar um sistema mais barato e funcional, o projeto de lei negligencia os meios mais eficazes de alcance a um veredito justo, com a preservação dos direitos e garantias do cidadão. Os objetivos não declarados no projeto de lei dizem respeito tanto à conduta dos autores da lei, quanto dos que serão atingidos por ela. Nesse viés, ao considerar a pesquisa do PBED e do INFOPEN sobre o perfil dos presidiários brasileiros, inferem-se três características principais: (a) a maioria dos presos pertence à faixa etária dos 18 aos 24 anos, mesmo essa sendo apenas 11,6% da população brasileira; (b) 61,67% da população carcerária é negra, preta ou parda e (c) 75% dos presos possuem escolaridade até o Ensino Fundamental completo.5 Esses dados revelam que é justamente a camada mais vulnerável da população brasileira que será afetada pelas alterações propostas. Por fim, devemos considerar que os autores do projeto de lei, representados pelo Ministro da Justiça Sergio Moro, o justificam de forma abstrata e ampla, o que demonstra um teor populista, já que tem como objetivo dialogar com as grandes massas de forma superficial sobre assuntos tão profundos como criminalidade e segurança pública. 3. A insegurança como subterfúgio da supressão de garantias O modelo de sociedade moderna é derivado da sociedade pós-industrial, conhecida como “‘sociedade de risco’ tecnológico, uma sociedade com outras características individualizadoras que contribuem à sua caracterização como uma sociedade de ‘objetiva’ insegurança.”6 Em referida sociedade, carrega-se uma sensação substancialmente distinta da realidade. A sensação de risco é produzida pelos meios de comunicações que nos bombardeiam com tragédias e notícias sobre crimes, sempre colocando o agente do delito como a personificação do mal na Terra. Como consequência desse sentimento de risco e insegurança, manifesta-se a crescente flexibilização do sistema normativo para amparar o clamor social baseado na retribuição da violência causado pelo agente delituoso. 5 . https://www.politize.com.br/populacao-carceraria-brasileira-perfil/, acesso em 5 de outubro de 2019 ao 12:50 . SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do Direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pósindustriais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. 30 p. 6 190 Em resumo, usa-se a desculpa de referida insegurança social para suprimir direitos e garantias fundamentais assegurados pela ordenação jurídica. No que se refere às medidas para alterar o regime de interrogatório por videoconferência, e diante da nova realidade global, é mister perceber que o avanço tecnológico não conseguirá ocupar todos os espaços da sociedade, e inclusive, não deve. No presente caso, o livre acesso à tecnologia poderá ensejar a supressão de direitos, garantias e proteções individuais essenciais ao processo penal, como o devido processo legal, o direito de defesa ampla, bem como o direito de presença do acusado frente ao juiz. Diante disso, os direitos e garantias estabelecidos pela comunidade internacional – comentados mais à frente – deverão ser utilizados como parâmetro para as modificações legais em busca de maior eficiência e proteção aos direitos dos investigados. 4. Da exceção à regra, em detrimento a direitos individuais O Código de Processo Penal é bastante claro quanto aos atos que poderão ser realizados por videoconferência. Está expresso que sua realização é excepcional7 8 e deverá ser fundamentada pelo juiz sob o prisma de algumas finalidades. São elas: i) “prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir durante o deslocamento;” ii) “viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância pessoal;” iii) “impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos termos do art. 217 deste Código;” e iv) “responder à gravíssima questão de ordem pública.” O problema que se enfrenta, no presente estudo, é de ordem lógica. O projeto de lei anticrime quer transformar aquilo que deveria ser a exceção da regra, na própria regra. A realização de interrogatório por videoconferência não pode ser deixada ao arbítrio do juiz para “prevenir custos” sob pena de violação à ampla defesa do acusado. É exatamente para . Artigo 185, § 2o, do CPP: “Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para atender a uma das seguintes finalidades”. 8 . Antes mesmo da previsão legal da realização do interrogatório por videoconferência, o STF já se posicionava contra a banalização da videoconferência: “a decisão de fazê-lo [interrogatório por videoconferência] não poderia deixar de ser suficientemente motivada, com demonstração plena de sua excepcional necessidade no caso concreto” (STF, HC 88.914, Rel. Min. Cezar Peluso, Dje. 5.10.2007) 7 191 isso que servem as supramencionadas finalidades: limitar a atuação do juiz e, excepcionalmente, direcionar quando poderá ser realizado o interrogatório por meio tecnológico à distância. Diferente não poderia ser. Constata-se no direito comparado a experiência da utilização de videoconferência no âmbito internacional, aplicada com o mesmo caráter: de excepcionalidade. Ressalta-se que o sistema jurídico processual penal anglo-saxão, por exemplo, é mais flexível, em contrapartida ao sistema dos países da Europa continental, que se caracteriza como mais rígido. Na década de 1980, os Estados Unidos adotaram o denominado sistema de vídeo-links, com previsão na legislação processual federal e de alguns Estados federados. Essa modalidade passou a ser utilizada nas ações criminais para o interrogatório de acusados em casos envolvendo grande repercussão social, a fim de garantir-lhes a integridade. Da mesma forma, e com o intuito de evitar o confronto constrangedor entre o ofendido e o acusado na sala de audiência, esse procedimento ocorria em casos de coleta de depoimentos de crianças e adolescente vítimas de abuso sexual. Especificamente, em ações criminais federais, a permissão da videoconferência é prevista legalmente no US Code, as Federal Rules of Criminal Procedure e na Federal Rules of Evidence. Ambos aduzem que o depoimento do acusado pode ser tomado por videoconferência, em caráter excepcional, e desde que consentido pela defesa. Por seu turno, os Estados federados que permitem o uso dos mecanismos virtuais para substituir a presença física do acusado auferem os mesmos requisitos. Na Europa, a Itália foi a precursora na regulação da videoconferência para a realização de atos processuais envolvendo o acusado. Lá, a criação desse método se deu em meio a uma guerra entre o Estado e organizações mafiosas, responsáveis pelo cometimento de grande parte dos atos criminosos naquele país. Embora sua regulamentação exista desde 1992, em 7 de janeiro de 1998, a Lei nº 11 regulou com mais detalhes sua utilização. Acertadamente, fora prevista a utilização da videoconferência também em casos de excepcionalidade. Referida lei alterou a redação do artigo 146 - bis do Código de Processo Penal Italiano, para incluir: Art. 146-bis. – (Partecipazione al dibattimento a distanza). — 1. Quando si procede per taluno dei delitti indicati nell'articolo 51, comma 3-bis, del codice, nei confronti di persona che si trova, a qualsiasi titolo, in stato di detenzione in carcere, la partecipazione al dibattimento avviene a distanza nei seguenti casi: 192 a) qualora sussistano gravi ragioni di sicurezza o di ordine pubblico; b) qualora il dibattimento sia di particolare complessità e la partecipazione a distanza risulti necessaria ad evitare ritardi nel suo svolgimento. L'esigenza di evitare ritardi nello svolgimento del dibattimento è valutata anche in relazione al fatto che nei confronti dello stesso imputato siano contemporaneamente in corso distinti processi presso diverse sedi giudiziarie; c) qualora si tratti di detenuto nei cui confronti è stata disposta l'applicazione delle misure di cui all'articolo 41-bis della legge 26 luglio 1975, n. 354, e successive modificazioni ed integrazioni.9 A excepcionalidade no referido regime é ainda mais acentuada do que no Código Processual pátrio. Veja-se que além das finalidades/requisitos da videoconferência como proteção da ordem pública, evitar a fuga do acusado etc., a lei italiana também restringe a realização de atos por videoconferência quanto às naturezas dos crimes pelos quais o acusado está sendo imputado10. A Espanha, que adota o procedimento oral de forma predominante em seus respectivos processos judiciais – principalmente em matéria penal – possui previsão para o uso da videoconferência na fase judicial e na fase de investigação. De acordo com o Código de Processo Penal Espanhol (Ley de Ejuiciamiento Criminal LECrim), o comparecimento da pessoa que intervir em qualquer tipo de procedimento penal pode ser substituído através do uso de sistemas tecnológicos que permitam a comunicação simultânea de imagem e som. Abrange, assim, os procedimentos criminais pertinentes aos investigados, aos acusados, às testemunhas e aos peritos. Porém, a utilização de tal medida deverá ser definida em razão das particularidades do caso, com devida motivação, tais como, segurança ou ordem pública11. . Tradução livre: “Art. 146-bis. – (Participação em vídeo conferência). 1. Quando uma das infrações referidas no nº 3 do artigo 51 do Código Penal, for cometida contra uma pessoa que se encontre detida, a participação na audiência será à distância nos seguintes casos: a) se existirem razões graves de segurança ou ordem pública; b) quando a audição foi particularmente complexa e a participação à distância for necessária para evitar atrasos na sua realização. A necessidade de evitar atrasos na realização da audiência deve também ser apreciada em relação ao fato de estarem a ser realizados julgamentos separados em diferentes instâncias judiciais relativamente ao mesmo requerido ao mesmo tempo; c) no caso de um prisioneiro contra o qual foram ordenadas as medidas previstas no artigo 41-A da Lei n. 354 de 26 de Julho de 1975 e subsequentes alterações e suplementos.” 10 . “indicati nell'articolo 51, comma 3-bis, del codice”; importante explicar que a razão da criação da videoconferência ainda subsiste em sua lei. Os crimes que o art. 51, parágrafo 3º (3-bis) indica crimes relacionados à organizações criminosas como aqueles enfrentadas na década de 90 pela Itália. 11 . Ley de Ejuiciamiento Criminal - LECrim. Artículo 325. El juez, de oficio o a instancia de parte, por razones de utilidad, seguridad o de orden público, así como en aquellos supuestos en que la comparecencia de quien haya de intervenir en cualquier tipo de procedimiento penal como investigado o encausado, testigo, perito, o en otra condición resulte particularmente gravosa o perjudicial, podrá acordar que la comparecencia se realice a través de videoconferencia u otro sistema similar que permita la comunicación bidireccional y simultánea de la imagen y el sonido, de acuerdo con lo dispuesto en el apartado 3 del artículo 229 de la Ley Orgánica del Poder Judicial.; Artículo 731 bis. El Tribunal, de oficio o a instancia de parte, por razones de utilidad, seguridad o de orden público, así como en aquellos supuestos en que la comparecencia de quien haya de intervenir en cualquier tipo 9 193 A mesma excepcionalidade é encontrada na legislação da França, outro país que permite a realização do interrogatório por videoconferência. A sua utilização geral deu início após a “aprovação da Lei de 15 de novembro de 2001, de reforma do Código de Procedimento Penal francês, concretamente do seu artigo 706.71, reformado pela Lei de 9 de março de 2004, que autorizou expressamente seu emprego no interrogatório do acusado, testemunhas ou intérpretes, o confronto, ou a acareação quando justifique as necessidades das investigações, assim como para a proteção de testemunhas. O mesmo diploma legal prevê a utilização dessa tecnologia como instrumento de cooperação internacional.”12 No entanto, verifica-se que o imputado poderá se opor a realização da videoconferência em audiências – de instrução ou custódia – quando assim quiser, cabível ainda recurso da decisão que não homologar a sua vontade. Porém, e aqui é o principal ponto de congruência que reforça a tese de que a videoconferência quando ligada ao polo passivo da ação penal é absolutamente excepcional: o acusado ou investigado não poderá recusar a videoconferência quando “sauf si son transport paraît devoir être évité en raison des risques graves de trouble à l'ordre public ou d'évasion.”13. Conclui-se que em nenhum dos países mencionados existem motivos ou leis que mitiguem as garantias do cidadão com o intuito de se evitar custos estatais ou de acelerar o andamento do processo. de procedimiento penal como imputado, testigo, perito, o en otra condición resulte gravosa o perjudicial, y, especialmente, cuando se trate de un menor, podrá acordar que su actuación se realice a través de videoconferencia u otro sistema similar que permita la comunicación bidireccional y simultánea de la imagen y el sonido, de acuerdo con lo dispuesto en el apartado 3 del artículo 229 de la Ley Orgánica del Poder Judicial.; Artículo 229, Ley Orgánica del Poder Judicial. 1. Las actuaciones judiciales serán predominantemente orales, sobre todo en materia criminal, sin perjuicio de su documentación. 2. Las declaraciones, interrogatorios, testimonios, careos, exploraciones, informes, ratificación de los periciales y vistas, se llevarán a efecto ante juez o tribunal con presencia o intervención, en su caso, de las partes y en audiencia pública, salvo lo dispuesto en la ley. 3. Estas actuaciones podrán realizarse a través de videoconferencia u otro sistema similar que permita la comunicación bidireccional y simultánea de la imagen y el sonido y la interacción visual, auditiva y verbal entre dos personas o grupos de personas geográficamente distantes, asegurando en todo caso la posibilidad de contradicción de las partes y la salvaguarda del derecho de defensa, cuando así lo acuerde el juez o tribunal. En estos casos, el letrado de la Administración de Justicia del juzgado o tribunal que haya acordado la medida acreditará desde la propia sede judicial la identidad de las personas que intervengan a través de la videoconferencia mediante la previa remisión o la exhibición directa de documentación, por conocimiento personal o por cualquier otro medio procesal idóneo. 12 . MONTEIRO, Ronaldo Sounders. Interrogatório por Videoconferência. Revista da EMERJ, 2009. v. 12, p. 107. 13 . “A menos que seu transporte deva ser evitado devido aos sérios riscos de perturbar a ordem pública ou escapar.” (artigo 706.71 do Código de Processo Penal Francês, tradução nossa) 194 Isso porque só haverá razão para privar o direito fundamental do réu de estar frente a frente com o juiz que o julgará em casos taxativos apresentados no início do presente capítulo. 5. Da legislação e órgãos públicos – Nota Técnica da DPU Ao pensar na constitucionalidade da medida XV que propõe tornar regra a utilização de videoconferência em interrogatórios esbarramos em problemas substancialmente práticos, tendo em vista que a redação atual do artigo 185 do Código de Processo Penal já permite que tal medida seja aplicada, mas em casos excepcionais. A redação proposta elimina condições de caráter de exceção de modo que a videoconferência poderia ser utilizada com o propósito de evitar custos. Como foi brilhantemente exposto pela Defensoria Pública da União (“DPU”) em nota técnica apresentada em 4 de fevereiro de 201914, o Estado tem o dever de construir a democracia real também por meio do sistema penal e carcerário. A democracia real tem como pilar os Direitos Humanos, o que está previsto tanto na Constituição Federal quanto no Código de Processo Penal – exemplo disso são os direitos de ampla defesa e devido processo legal. A ampla defesa é um dos meios de se garantir o devido processo legal. No tocante aos Direitos Humanos, temos que a ampla defesa e o devido processo legal resguardam a premissa de que o investigado/acusado, enquanto ser humano, é possuidor de direitos e detentor de dignidade. O direito de defesa no processo penal poderá ser estudado em duas vertentes: a autodefesa e a defesa técnica. Mencionando o il. Alberto Binder, a nota técnica da DPU traz como um dos meios de se autodefender: a presença na frente do magistrado e o direito de ser ouvido pessoalmente. Como se não bastassem esses argumentos teóricos, a nota técnica da DPU traz argumentos práticos ao dizer que quem trabalha no dia a dia do processo penal sente “a diferença abissal existente entre a realização do ato na presença do acusado e testemunhas e a realização do ato por videoconferência”. 14 . Nota técnica da Defensoria Pública da União em face do pacote de sugestões legislativas apresentadas em 04 de fevereiro de 2019 pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública. 195 Podemos afirmar também que a distância física dificulta a compreensão do ato, palavras e gestos realizados durante a audiência. Tal afirmação é verídica e é reconhecida em casos de educação à distância, por exemplo, que também recebem críticas sobre a qualidade e absorção do conteúdo em razão da falta de presença e pessoalidade entre aluno e professor. Ainda sob uma análise dos direitos indisponíveis – e aqui entenda-se por direitos humanos – se faz necessária a utilização de todos os meios possíveis e previstos em lei para que o investigado/acusado possa se defender apropriadamente. Levando em conta que nada substitui o contato humano, fica claro que a audiência ou interrogatório são mais eficientes quando feitos pessoalmente. Com isso concluímos que respeitar os direitos humanos na sua completude é estabelecer a videoconferência apenas como uma exceção da regra geral, assim como está disposto no Código de Processo Penal Brasileiro atualmente. 6. Pela busca da verdade real cabe a interdisciplinariedade Um dos princípios basilares no processo penal atual é a busca da verdade real. Referido princípio está implícito na Constituição Federal em seu artigo 5º, inciso LIV15: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;”. Ainda, a busca da verdade real também está explicitamente prevista no inciso I do artigo 156 do Código de Processo Penal16: Art. 156. A prova da alegação incumbirá a quem a fizer, sendo, porém, facultado ao juiz de ofício. I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da medida; Referido dispositivo processual penal possibilita ao juiz uma posição ativa no processo no sentido de ordenar nova produção de provas para sanar todas as suas dúvidas antes de julgar o caso. Com isso temos que todos os meios e ciências humanas devem ser usados para se buscar a verdade real. E um desses meios é a psicologia forense. A psicologia forense tem como objetivo o estudo do comportamento humano para auxiliar os operadores do direito em tomadas de decisões. 15 16 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm 196 Isso se dá pois as “funções mentais superiores”, ou seja, percepção, emoção, atenção e memória – conforme explorado pelo juiz Antonio Carlos Klein17 – constroem a visão de mundo de cada um, de modo que cada pessoa tem a possibilidade de criar a sua própria realidade dos fatos, como ocorre, por exemplo, em casos de erro no reconhecimento de possíveis autores de crimes, onde memórias falsas são tidas como reais. A psicologia forense explica a necessidade da pessoalidade para colheita de depoimentos e análise psíquica do depoente, uma vez que as expressões corporais e comportamentos podem ser sutis, de modo que a videoconferência dificulta e até mesmo impossibilita tal análise. Como se isso não bastasse, a presença humana também afeta as emoções de cada um. Um exemplo disso aplicado ao dia-a-dia forense é a realização do método da acareação. Ela se presta para verificar se, “no calor do momento”, a testemunha está ou não falando a verdade mesmo sendo colocada frente a frente com a pessoa que divergiu. Olhando pelo viés do réu e do seu direito à ampla defesa, podemos utilizar da psicologia forense para atestar que o investigado certamente não se sentirá à vontade para denunciar torturas e maus tratos em audiência de custódia por videoconferência com o seu torturador ao lado. Tudo isso prova como a presença humana interfere nas palavras, pensamentos e comportamentos, de tal modo que a caraterística da presença pessoal não pode ser desconsiderada em atos judiciais. Diante do exposto, resta claro que o Projeto de Lei Anticrime, ao permitir a utilização corriqueira de métodos que atualmente são excepcionais, fere frontalmente os direitos humanos, consagrados nos mais importantes pactos dos quais o Brasil é signatário. Oportuno ressaltar que a Constituição da República foi promulgada após longo período ditatorial, em que os mais diversos direitos foram desrespeitados, tendo prevalecido a violência, a tortura e a imposição de ideais corrompidos. A Carta Magna normatizou a implementação de direitos intangíveis e essenciais, que caracterizam premissas básicas do Estado Democrático de Direito, sem os quais esse não seria concretizado. 17 . Apresentação do Juiz Antonio Carlos Klein - esmec.tjce.jus.br › wp-content › uploads › 2015/03 › klein 197 Dessa forma, é inadmissível a violação desses direitos já consagrados em qualquer situação e sob qualquer pretexto. Dentre os diversos artigos da Constituição que resguardam os direitos humanos, cabe, no presente trabalho, citar, primordialmente, os que proíbem os tratamentos desumanos e resguardam o respeito à integridade física e moral18: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; (...) XLIX - é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral; Nesse ponto, é importante mencionar que a realização, por meio de videoconferência, de atos processuais como a audiência de custódia e o interrogatório, sem a presença física de um juiz, permite que o contato do réu se dê exclusiva e diretamente com as autoridades policiais, de modo que as diretrizes sejam por elas repassadas ao acusado. Nessa situação, pode ocorrer o fenômeno do abuso de autoridade, com excesso de violência, que constrange o acusado e direciona os atos processuais da maneira que as autoridades policiais ou qualquer outro instrutor desejem. A presença física do juiz natural e imparcial garante ou, ao menos, aumenta as chances da busca da verdade real na fase de instrução do processo penal, dificultando abusos “por trás das câmeras”, como poderia ocorrer no caso de videoconferência. Logo, em momentos tão sensíveis quanto os mencionados, em que se está decidindo sobre o cerceamento ou não de um dos direitos mais essenciais da pessoa – a liberdade e o direito de ir e vir – não se pode cogitar a facilitação da ocorrência de tais abusos, especialmente em uma situação de extrema vulnerabilidade do acusado. Por fim, tem-se que o inciso LV do artigo 5º da Carta Maior, assegura as garantias essenciais ao direito de defesa do acusado19: “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes;”. 18 19 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm 198 A observância das garantias do processo judicial penal não comporta mitigação, de modo que qualquer transgressão, deve resultar na nulidade de todo o processo, por ferir a ampla defesa e o contraditório, corolários do devido processo legal. A videoconferência, por dificultar a ampla defesa do acusado, representa, por si só, uma afronta ao direito de defesa. No tocante aos Tratados Internacionais, destaca-se o Pacto de San Jose da Costa Rica, que igualmente protege as liberdades fundamentais e proíbe os tratamentos desumanos. Os artigos abaixo possuem íntima relação com o respeito aos direitos indisponíveis do investigado20: Artigo 1º - Obrigação de respeitar os direitos 1. Os Estados-partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma, por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social. (...) Artigo 4º - Direito à vida 1. Toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente. Artigo 5º - Direito à integridade pessoal 1. Toda pessoa tem direito a que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada de liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. Artigo 11 - Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito da sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, em sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. Além disso, quanto às garantias judiciais, importante colacionar o artigo 8º do referido Pacto: Artigo 8º - Garantias judiciais 1. Toda pessoa terá o direito de ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou Tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ela, ou na determinação de seus direitos e obrigações de caráter civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza. 2. Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (...) 20 http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm 199 b) comunicação prévia e pormenorizada ao acusado da acusação formulada; c) concessão ao acusado do tempo e dos meios necessários à preparação de sua defesa; d) direito do acusado de defender-se pessoalmente ou de ser assistido por um defensor de sua escolha e de comunicar-se, livremente e em particular, com seu defensor; e) direito irrenunciável de ser assistido por um defensor proporcionado pelo Estado, remunerado ou não, segundo a legislação interna, se o acusado não se defender ele próprio, nem nomear defensor dentro do prazo estabelecido pela lei; 3. A confissão do acusado só é válida se feita sem coação de nenhuma natureza. Como se vê, nossa Constituição está alinhada com os tratados internacionais, no sentido de assegurar o pleno respeito às garantias necessárias à defesa do réu, viabilizado, inclusive, pela defesa pessoal do acusado, nos termos da alínea “d” do item 2 do art. 8º. A Declaração Universal dos Direitos Humanos igualmente prevê as garantias individuais de defesa do acusado21: Artigo III: Todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Artigo V: Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel, desumano ou degradante. Artigo X: Todo ser humano tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir sobre seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele. Artigo XI: 1. Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa. Ora, da leitura dos dispositivos extrai-se a clara interpretação de que as garantias de defesa do réu – e isso inclui a pessoalidade durante os atos do processo criminal a que responde – não podem ser infringidas. Além disso, o reconhecimento pessoal também será enormemente afetado, se realizado por vias transversas. Esta técnica – que atualmente não é feita nos estritos termos da lei e cuja formalidade rigorosa se presta a afastar erros judiciários e prisões ilegais – será ainda mais prejudicada. Se o método empregado passar a ser realizado por videoconferência, certamente serão ainda mais recorrentes os erros no reconhecimento, considerando a dificuldade na análise dos detalhes e características do acusado e sua consequente identificação. Por último, mas não menos importante, pontua-se, o prejuízo que mencionada alteração causará às Defensorias Públicas, considerando que não há defensores suficientes para o 21 https://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf 200 deslocamento até as penitenciárias a fim de conversarem com o cliente antes da audiência e acompanharem de perto o referido ato. Desse modo, a não realização de atos processuais em local em que se possibilita o fácil encontro pessoal entre defensor e réu, certamente dificultará ainda mais o contato e, consequentemente, a instrução, orientação e defesa de seu processo criminal. Diante do exposto, resta claro que o que está em voga na discussão do Projeto de Lei Anticrime é nada menos do que as garantias fundamentais à defesa do acusado, que ocasionarão na restrição do direito de liberdade deste. Um dos direitos mais essenciais do ser humano e da consagração do Estado Democrático de Direito. 7. Das falsas vantagens O interrogatório por videoconferência já está previsto no sistema processual penal e, mesmo que excepcionalmente, não é indene de críticas. Os termos utilizados no artigo 185, §2º, do referido diploma legal, para excepcionar o interrogatório usa expressões enigmáticas “como ‘riscos à segurança pública’, ‘fundada suspeita’, ‘relevante dificuldade’ e ‘gravíssima questão de ordem pública’”22, que acaba por “criar indevidos espaços para o decisionismo e a abusiva discricionariedade judicial, por serem expressões despidas de referencial semântico claro.”23 Na legislação em vigor, a utilização de sistema audiovisual para realização de interrogatório é alicerçada pelo risco de transporte de determinado preso à audiência. Portanto, a prevenção de risco não foi originada no Projeto Anticrime, mas está na mais plena verdade sendo banalizada por ele. Aqui não se pretende prevenir riscos, mas somente dar o caminho para realização de audiências com a presença do réu à distância sem ter que se aprofundar na fundamentação para tal. Transformando o que é a mais pura exceção, no corriqueiro, cotidiano, na regra. À luz do presente estudo podemos compreender que não tem por que estender a realização de um ato inconstitucional, do mais puro retrocesso. É importante notar, contudo, que há mais uma alteração que deve saltar aos olhos. Na medida que o interrogatório vira regra, o reconhecimento pessoal, acareação e a audiência de custódia também virarão24. 22 . LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. p. 450 . Idem. 24 . Parágrafo 8º, que seria incluído pelo Projeto: Aplica-se o disposto nos §§ 2o, 3o, 4o e 5o deste artigo, no que couber, à realização de outros atos processuais que dependam da participação de pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e coisas, audiência de custódia e inquirição de ou tomada de declarações do ofendido. 23 201 Sobre a audiência de custódia: imaginemos um indivíduo que se encontra preso em uma delegacia e que durante sua prisão em flagrante foi covardemente agredido e torturado. No prazo de 24 horas deverá ser levado à audiência, a qual foi criada para prevenir exatamente esse tipo de situação. Porém, com o advento desse projeto, o réu, ao invés de comparecer diretamente à presença do juiz, irá realizar a audiência de custódia na própria delegacia por meio de uma videoconferência. Será que o torturado e agredido irá relatar ao juiz de direito o que lhe ocorreu na prisão com seu algoz ao seu lado? Para que esse tipo de coisa não aconteça, há algumas soluções melhores para o texto legal. Em um primeiro momento, podemos imaginar a realização das audiências no próprio presídio, ao menos para o interrogatório do acusado, custodiado etc. Nestes casos, de caráter excepcional, o acusado seria ouvido na presença de seu defensor e de todos as partes inerentes ao devido processo legal e não haveria o risco de ferir o seu direito de defesa e a ordem pública. Neste ponto ainda, importante ressaltar que deveria ser considerada a excepcionalidade de referido ato por vídeo. Desta feita, quando impossível a realização do ato de forma presencial tanto o defensor, quanto o Juiz e o representante do Ministério Público se deslocariam ao local de recolhimento do investigado para realização do ato processual. Conclui-se, então, que a legislação sobre a videoconferência não comporta uma extensão, diante da constatação de que não receberemos nada que seja valorado à altura do sacrifício que deveríamos fazer. Não acreditamos que a expensas de custos e celeridade processual possam sobrepor as garantias individuais e direitos como ampla defesa e devido processo legal. 202 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSEMBLEIA GERAL DA ONU. (1948). Declaração Universal dos Direitos Humanos. Paris. Disponível em http://www.un.org/en/universal-declaration-humanrights/ Acesso em 19 de janeiro de 2020 às 9:15 ASSOCIAÇÃO DOS ADVOGADOS DE SÃO PAULO. Lei Anticrime: parecer da comissão. São Paulo, 2019. BANDEIRA, Ana Luiza Villela de Viana. Audiências de custódia: percepções morais sobre violência policial e quem é vítima. 2019. 176 f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Antropologia Social, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. BOLETIM IBCCRIM. São Paulo: Ibccrim, abr. 2019. Edição Especial. BOLETIM IBCCRIM. São Paulo: Ibccrim, mai. 2019. Edição Especial. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. Página. DEFESENROIA PUBLICA DA UNIÃO. Nota técnica da Defensoria Pública da União em face do pacote de sugestões legislativas apresentadas em 04 de fevereiro de 2019 pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública. Brasil, Brasília: 13 de maio de 2019 FIORELLI, José Osmir. Psicologia jurídica. 2011. http://www.cartaforense.com.br/conteudo/artigos/psicologia-juridica/7132 : acessado em 19 de janeiro de 2020 às 9:20 INSTITUTO BRASILEIRO DE CIÊNCIAS CRIMINAIS. Nota técnica sobre pacote anticrime. São Paulo, 2019. 44 p. INSTITUTO DE DEFESA DO DIREITO DE DEFESA. O fim da liberdade: A urgência de recuperar o sentido e a efetividade das audiências de custódia. São Paulo, 2019. KLEIN, Antonio Carlos. A Técnica do Interrogatório – Psicologia Judiciária Aplicada – apresentação no modo Power Point em uma palestra/aula na Escola Superior de Magistratura do Estado do Ceará - esmec.tjce.jus.br › wp-content › uploads › 2015/03 › klein LACERDA, Fernando Hideo I.. Comentários sobre o "projeto de lei anticrime". São Paulo, 2019. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2019. 203 MERELES, Carla: Brasil e sua População Carcerária, 1º de março de 2017, disponível em: https://www.politize.com.br/populacao-carceraria-brasileira-perfil/, acesso em 5 de outubro de 2019 ao 12:50 MONTEIRO, Ronaldo Sounders. Interrogatório por Videoconferência. Revista da EMERJ, 2009. v. 12, p. 107. NUCCI, Guilherme de Souza. Interrogatório por vídeo conferencia e ampla defesa. 2007 – http://www.cartaforense.com.br/conteudo/colunas/interrogatorio-por- videoconferencia-e-ampla-defesa/873. Acesso em 10/11/2019 às 22:00 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Análise do projeto de lei anticrime. Brasília: Conselho Federal, 2019. Organização dos Estados Americanos, Convenção Americana de Direitos Humanos (1969) – Pacto de San José da Costa Rica, disponível em: http://www.pge.sp.gov.br/centrodeestudos/bibliotecavirtual/instrumentos/sanjose.htm, acesso em 5 de outubro de 2019 às 10:35 RUBINSTEIN T., Kátia: Parecer projeto de lei 882/2019 SANCHEZ, Jesús-Maria Silva. A expansão do Direito penal: aspectos da política criminal nas sociedades pós-industriais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002. TAVARES, Kátia Rubinstein. Parecer projeto de lei 882/2019. São Paulo: Instituto dos Advogados Brasileiros, 2019. 204 MEDIDA XVI – CRIMINOSOS HABITUAIS Sob coordenação de Dyrceu Aguiar Dias Cintra Junior e Ana Carolina Albuquerque de Barros Elaborado por Gildeane Kelly Sousa Dos Santos, Giovanna Ventura Nunes, Henrique Tiosso, Matheus Zanini Alves e Yves Finzetto O Projeto Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça e da Segurança Pública Sérgio Moro para combater a corrupção, a violência e o crime organizado prevê modificações no Código Penal, no Código de Processo Penal e na Lei de Crimes Hediondos. Neste texto, analisase a medida que pretende dificultar a soltura de criminosos habituais, propondo a inserção de um novo parágrafo no artigo 310 do Código de Processo Penal: §2º Se o juiz verificar que o agente é reincidente ou que está envolvido na prática habitual, reiterada ou profissional de infrações penais ou que integra organização criminosa, ou que porta arma de fogo de uso restrito em circunstâncias que indique ser membro de grupo criminoso, deverá denegar liberdade provisória, com ou sem medidas cautelares, salvo se insignificantes ou de reduzido potencial ofensivo às condutas. Atualmente, o artigo base da medida (art. 310 do CPP) traz as hipóteses dadas ao magistrado no caso da prisão em flagrante. O magistrado deverá, fundamentadamente, relaxar a prisão ilegal (inciso I); converter a prisão em flagrante em preventiva – quando presentes os requisitos do art. 312 e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão (inciso II); ou conceder liberdade provisória, com ou sem fiança (inciso III). Ademais, o atual parágrafo único traz a possibilidade de concessão de liberdade provisória no caso do acusado ter praticado conduta excludente de ilicitude, nos termos do art. 23 do Código Penal. Assim, embora inserida em um artigo que trata sobre a prisão em flagrante e os possíveis cenários dela decorrentes, a proposta ora analisada cuida de matéria afeita às medidas cautelares pessoais, uma vez que apresenta mais uma hipótese de aplicação de medida cautelar pessoal. A atual legislação permite a prisão preventiva nos casos em que a conduta a ser apurada seja punida com pena máxima superior a 4 anos; trate-se de violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, como forma de garantir a execução de medidas protetivas; ou na hipótese de reincidência, conforme artigo 313 do CPP. 205 Salta aos olhos que a alteração proposta pelo Projeto Anticrime tenta tornar mais abrangente as hipóteses em que medidas cautelares pessoais possam ser aplicadas, indo na contramão das alterações implementadas pela reforma de 2011, em que se tornou explícito em nossa legislação que a liberdade – consequência lógica da presunção de inocência – é a regra e não a exceção. Afinal, as alterações de 2011 trouxeram ao ordenamento não apenas medidas que sejam alternativas à prisão preventiva, mas, sobretudo, o dever do magistrado de analisar o cabimento destas antes mesmo da análise quanto à prisão preventiva. A aplicação de qualquer medida cautelar pessoal, por pressupor a restrição de liberdade do indivíduo ainda sequer condenado, requer a presença das hipóteses dos artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal. Presentes tais hipóteses, passa-se, então, à análise de adequação e proporcionalidade das medidas existentes em nosso ordenamento, partindo-se das menos restritivas para as mais restritivas, sempre fundamentadamente.1 Mesmo com as alterações ao CPP introduzidas pela Lei 12.403/2011, ainda são alarmantes os números de presos provisórios no Brasil. De acordo com o relatório do INFOPEN de 20162, 40% de nossa população carcerária sequer teve uma sentença de primeira instância. Além de atuar na contramão da evolução legislativa, diversos são os pontos controvertidos da medida ora analisada, que vão de sua questionável constitucionalidade aos seus efeitos perversos. Dessa forma, nesta análise, pretende-se responder a quatro questionamentos iniciais que, muito embora não esgotem a temática, trazem luz ao tema em questão. A partir dos princípios constitucionais e das ciências criminais serão estudados os objetivos explícitos e implícitos da medida; os possíveis efeitos de sua aplicação no meio social, tendo em vista a ausência de tecnicidade e clareza na formulação integral do pacote; e sua concreta possibilidade de efetivação. 1. Objetivos explícitos e implícitos: modelo autoritário, breve histórico da prisão preventiva no brasil e objetivos da medida proposta 1 STJ, HC Nº 282.509/SP, rel. Min. Rogerio Schietti Cruz. SILVA, Marcos Vinicius Moura. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias: Atualização. Ministério da Justiça e Segurança Pública- Departamento Penitenciário Nacional, dezembro, 2016. http://depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen/relatorios-sinteticos/infopen-dez-2016-rev-120720190802.pdf 2 206 Legalidade, taxatividade, devido processo legal, ampla defesa e contraditório são facetas daquilo que, costumeiramente, denomina-se garantismo penal. Tais princípios colocam o indivíduo no centro dos direitos fundamentais, fazendo do processo penal um sistema de garantias em face do poder punitivo do Estado. Em oposição a tal modelo, há os modelos autoritários que, segundo Ferrajoli3, são aqueles em que se observa a presença de tipos penais genéricos, elásticos, indeterminados e com termos vagos, normalmente atrelados a toda sorte de ferramental jurídico obscuro. Aqui, prevalece a subjetividade do julgador, com poucas garantias ao réu. Acerca desta última característica, há a “vinculação do réu a ‘tipos normativos de autor’ ou sua congênita natureza criminal ou periculosidade social; por outro lado, manifesta-se também no caráter subjetivo do juízo, que, na ausência de referências fáticas determinadas com exatidão, resulta mais de valorações, diagnósticos ou suspeitas subjetivas do que de provas de fato”.4 O Projeto Anticrime encontra-se na órbita do Direito Penal do autor em contraposição ao Direito Penal do fato. Os termos da proposta amoldam-se ao modelo autoritário: utilização de termos vagos e a relação traçada entre o suposto autor do fato e sua periculosidade social. O anteprojeto é expresso ao apontar seus alvos: os criminosos habituais/profissionais e aqueles que integram organizações criminosas. Porém, deve-se questionar: como o juiz, em sede de cognição sumária, consegue determinar quem são os criminosos habituais? Resposta: não consegue. O que a medida busca, na prática, é sepultar o princípio da presunção de inocência, uma vez que meras ilações sobre a suposta personalidade criminosa do agente bastam para enquadrálo como criminoso habitual, negando-lhe a liberdade (com ou sem medidas cautelares), após o flagrante delito. Mesmo com a existência de medidas cautelares alternativas à prisão (art. 319 CPP), o Brasil possui cerca de 40% de presos que sequer foram julgados em primeira instância, ou seja, são presos provisórios. É de se presumir que uma medida que visa restringir a concessão da liberdade tem o potencial de inflar, ainda mais, nosso frágil e deficiente sistema carcerário. 3 FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4 a ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pág 45 4 FERRAJOLI, Luigi, Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. 4a ed, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, pág 46 207 Infelizmente, medidas como esta não são novidades no Brasil. A criminalização genérica sempre foi a tônica da sociedade brasileira, de modo que não surpreende, portanto, que o Direito Penal tenha sido utilizado como ferramenta de controle social – sepultando-se qualquer viés garantista – com o objetivo, em um primeiro momento, de controle sobre os corpos negros e, em um segundo momento, do controle sobre as camadas subalternas de um proletariado recém-formado pelo processo tardio de industrialização do começo do século XX. Exemplo disso constou na exposição de motivos do Código de Processo Penal apresentado pelo Ministério da Justiça de 1941, na época chefiado por Francisco Campos, durante a ditadura do Estado Novo, sobre as razões das alterações legislativas daquela época: As nossas vigentes leis de processo penal asseguram aos réus, ainda que colhidos em flagrante ou confundidos pela evidencia das provas, um tão extenso catálogo de garantias e favores, que a repressão se torna, necessariamente, defeituosa e retardatária, decorrendo daí um indireto estímulo à expansão da criminalidade. Urge que seja abolida a injustificável primazia do interesse do indivíduo sobre o da tutela social. Não se pode continuar a contemporizar com pseudodireitos individuais em prejuízo do bem comum.5 Os termos grifados acima são facilmente transpostos para os discursos da atualidade. Em sintonia a este pensamento, a dicção original do art. 312 do Código de Processo Penal estabelecia que “A prisão preventiva será decretada nos crimes a que for cominada pena de reclusão por tempo, no máximo, igual ou superior a dez anos”. A estes tipos penais, como por exemplo o roubo, era obrigatório que o indivíduo permanecesse preso ao longo das fases de investigação e durante o processo, em clara afronta à presunção de inocência. Tal arbitrariedade foi revogada apenas em 1967, pela lei no 5.349/67. Recentemente, a lei no 12.403/2011 buscou harmonizar o sistema processual penal com as liberdades e garantias do indivíduo, em consonância com a Constituição de 1988. Sob esta nova sistemática, como dito anteriormente, a prisão preventiva é a exceção do sistema processual penal, ante a existência de uma série de medidas cautelares que, havendo necessidade do acautelamento processual, devem ser aplicadas prioritariamente, resguardandose a prisão preventiva para hipóteses excepcionais. Assim, causa estranheza a proposta que ora se analisa, pois é absolutamente contrária à lógica da evolução legislativa. Todavia, quando analisada à luz dos seus objetivos, percebe-se a sua inspiração autoritária. 5 MOSSIN, Heráclito Antônio. Comentários ao Código de Processo Penal: à luz da doutrina e da jurisprudência. Barueri: Manole, 2005, p. XII. 208 A medida parte da equivocada premissa de que o endurecimento nas leis penais e a perseguição implacável a “grupos criminosos” resultam em diminuição da criminalidade. Nas palavras do atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro, “Não é a dureza da pena que resolve o problema, mas a certeza da aplicação. Nós estamos trabalhando com a certeza. Mas também temos a compreensão de que é necessário, sim, endurecer em relação à criminalidade mais grave”6. O entendimento do Ministro da Justiça amolda-se ao do Presidente da República, Jair Bolsonaro, que, no lançamento da campanha publicitária para a divulgação do Pacote Anticrime, em outubro de 2019, afirmou: “Nós queremos mudar a legislação para que a lei seja temida pelos marginais e não pelo cidadão de bem. É isso que o Brasil precisa”7. A partir desta lógica, o medo de ser preso, imediatamente, faria com que o indivíduo não cometesse o crime. Contudo, trata-se de uma falácia insustentável. Segundo dados do INFOPEN de 20168, estão presas, no Brasil, 726.712 pessoas em um sistema carcerário que possui 368.049 vagas. Portanto, o sistema atual tem uma ocupação de 197,4%, o que demanda a duplicação das vagas para que seja zerado o déficit. Mas não é só. 40,2% dos presos são provisórios9, ou seja, não possuem condenação transitada em julgado. Com relação à evolução da população carcerária brasileira, saltamos de 361 mil para mais de 725 mil presos10 entre 2005 e 2016. Trata-se de um incremento de mais de 100%. No que tange à dita criminalidade violenta, tem-se que suas taxas aumentaram no referido período. Ao se tomar os índices de homicídio, verifica-se que, no espaço de uma década, houve um aumento de 8,3% no índice deste delito11. Outro dado interessante a se analisar é a apreensão de cocaína por parte da polícia federal. Em 2005, foram apreendidas 17,5 toneladas da droga, e, em 2018, foram apreendidas 6 Disponível em: https://www.camara.leg.br/noticias/552158-pacote-anticrime-propoe-alteracoes-em-14-leis/. Acesso em 12/01/2020 às 17:30 7 Disponível em: https://www.justica.gov.br/news/collective-nitf-content-1570111509.73. Acesso em 12/01/2020 às 17:30 8 INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário. Brasília, 2016, pág 8 9 INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário. Brasília, 2016, pág 8 10 INFOPEN. Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias. Departamento Penitenciário. Brasília, 2016, pág 9 11 SERQUEIRA, D. et al. Atlas da Violência. IPEA. Rio de Janeiro. 2017, pág 14 209 79,2 toneladas12. O que, num primeiro momento, parece ser uma evolução no combate às drogas, apenas revela o crescimento exponencial do consumo e do poder das facções criminosas que conseguem, cada vez mais, movimentar quantidades enormes de entorpecentes. A conjugação do aumento exponencial do encarceramento e do uso indiscriminado das prisões provisórias com o aumento dos homicídios e do tráfico de drogas revela que o objetivo explícito de redução da criminalidade via endurecimento penal não encontra lastro nos dados da realidade. Deve-se ponderar que a redução da criminalidade é o mote explícito do governo; entretanto, implicitamente, é possível depreender o ranço autoritário da proposta, que visa a redução das garantias dos indivíduos, em especial a presunção de inocência. Tenta-se voltar ao autoritarismo que inspirou originalmente os Códigos Penal e de Processo Penal, em que o poder punitivo era uma ferramenta de manutenção e controle da ordem social. A medida é, portanto, um ataque às garantias que vigem no âmbito do Direito Penal e Processual Penal, deixando desprotegidos os indivíduos frente a força arbitrária e autoritária do Estado e seus agentes. 2. Crítica a nível normativo A medida XVI do “Pacote Anticrime” é inconstitucional, eis que contraria frontalmente garantias asseguradas em nosso ordenamento jurídico. O processo penal brasileiro, inserido em um Estado Democrático de Direito, encontra na Constituição Federal de 1988 seu modelo, baseado em um conjunto de garantias fundamentais mínimas, sendo possível afirmar a existência de um devido processo constitucional.13 Vale dizer, nosso processo penal, de cariz democrático e essência predominantemente acusatória, ampara-se em princípios que protegem o indivíduo frente a possíveis arbítrios estatais. Isso porque todo poder enseja limites a si, sobretudo o poder de punir. Nesse sentido, o processo penal é o instrumento voltado à “máxima eficácia de um sistema de garantias 12 13 Disponível em: http://www.pf.gov.br/imprensa/estatistica/drogas. Acesso em 12/01/2020 às 17:30 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 41. 210 mínimas.”14, que tem por missão exatamente a limitação do poder punitivo do Estado. Dessa forma, propostas que tenham por escopo a mitigação ou supressão de garantias são flagrantemente inconstitucionais. Especificamente sobre a medida, de início, observa-se que pretende adotar mecanismo que já foi considerado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal no que tange à Lei de Crimes Hediondos e à antiga Lei de Tóxicos, eis que “Não cabe ao legislador imiscuir-se no poder geral de cautela do magistrado. O caso concreto é decidido pelo juiz da causa.”15 Ao pretender vincular o magistrado à aplicação de uma medida cautelar pessoal (seja ela a prisão preventiva ou cautelares alternativas), a medida suprime a análise concreta do binômio necessidade-adequação da cautelar em concreto que, ante a presença dos requisitos previstos na proposta ora analisada, cede lugar à generalizada imposição de restrição de liberdade a indivíduos sequer processados. Nesse sentido, a proposta tem o condão de subtrair do Poder Judiciário a análise de lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV, CF), uma vez que condiciona a atuação do magistrado. Além disso, há que se ressaltar que a liberdade é a regra em nosso ordenamento, constituindo um direito do cidadão, suprimido apenas em condições específicas e delimitadas. A prisão constitui situação excepcional, de maneira que sequer seria adequado falar-se em liberdade provisória, mas sim em liberdade, simplesmente. Além de questões terminológicas, que são importantes para se ter noção do conteúdo implícito da proposta, e da tentativa de condicionar a análise do magistrado, percebe-se que a medida atenta contra garantias individuais que conformam o Direito Penal e Processual Penal. A afronta à presunção de inocência é a mais gritante de todas. Ao se impor, obrigatoriamente, a privação de liberdade, no curso do processo, a determinados grupos de pessoas (reincidentes, criminosos habituais, pertencentes a organização criminosa), a medida imposta perde seu caráter de cautela e passa a ser um mecanismo de antecipação de penas. Note-se que todas as características que ensejarão a imposição de prisão preventiva denotam o cometimento de um delito – pertencimento a organização criminosa – ou a valoração negativa da personalidade do indivíduo - reincidência, criminalidade habitual. Todas essas 14 LOPES JR. Aury. Direito processual penal. 15. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018, p. 57. TORON, Alberto Zacharias. Pacote Anticrime. In: https://www.migalhas.com.br/Quentes/17,MI297237,41046Toron+aponta+erros+no+pacote+anticrime+de+Moro. Acesso em 20/10/2019. 15 211 características não podem ser de plano conhecidas pelo magistrado. Demandam análise que vai além da mera cognição sumária ocorrida no momento da conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva. Como bem se sabe, têm valor relativo para o conhecimento cautelar as referências sobre a gravidade do crime imputado ao réu, a ousadia que se atribui a ele ou o sentimento de insegurança da população diante da repetição de crimes praticados com violência, frequentemente invocados a fim de garantir a ordem pública. Afinal, só depois da instrução criminal, com ampla defesa e contraditório, é que se poderá afirmar ter o indivíduo infringido a lei penal. E, então, o juiz aplicará a pena dentro dos limites em que o direito do homem à liberdade não pode ser colocado em segundo plano. Nesta perspectiva, a atuação do juiz criminal deve ser baseada no princípio da presunção de inocência, previsto no art. 5º, LVII, da CF, segundo o qual "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". Seja ele primário ou reincidente, tenha bons ou maus antecedentes, ainda que pronunciado ou condenado em primeiro grau, continuará sendo inocente, com todas as implicações constitucionais de tal estado. E, não se vislumbrando necessidade de prisão relacionada ao desenvolvimento do processo (custódia processual instrumental), não pode ele ser preso. Fazê-lo, significaria impor uma pena antecipada, não um ato de cautela. Reforça tal argumento o fato de que, prevendo o Código Penal sistemas de cumprimento de pena com rigores diversos - regimes fechados, semiaberto e aberto -, não é plausível que se mande recolher alguém cautelarmente se tal rigor poderá se mostrar incompatível com o cumprimento da própria pena. Tais fatos, somados ao de que estas conclusões terão lugar antes mesmo do oferecimento de denúncia, deixam claro que a presunção de inocência é completamente ignorada pela medida, eis que se parte da presunção de que a prisão em flagrante tem o condão de comprovar a prática delitiva. O legislador ordinário não pode dispor de um direito fundamental ou interpretá-lo como bem queira. Poderia, como sinaliza Odone Sanguiné, "admitir ou não a liberdade provisória, conforme circunstâncias concretas; não, porém, sempre vedá-la em caráter genérico e absoluto [...]"16. 16 SANGUINÉ, Odone. Inconstitucionalidade da Proibição de Liberdade Provisória", em Fascículos de Ciências Penais, n. 4, Fabris, 1990, p. 19. 212 Conclui-se, assim, que os princípios do Direito Penal integram os sustentáculos do Estado Democrático de Direito, e as alterações elencadas do Pacote Anticrime, neste limiar, estão imbuídas de inconstitucionalidades, não sendo o seu teor possibilitado de ser incluído no ordenamento via Emenda Constitucional. 3. As possíveis consequências da medida Não bastasse a evidente inconstitucionalidade da medida proposta pelo Ministro da Justiça, sua aplicação efetiva pode trazer consequências danosas. Como demonstrado anteriormente, os termos que a compõem são extremamente vagos, elásticos e não técnicos, o que contribuirá para a consolidação do subjetivismo no âmbito da justiça criminal. Frize-se que nosso ordenamento jurídico, também em matéria de cautelares pessoais, já convive com as consequências danosas de conceitos amplos que permitem uma livre interpretação pelo magistrado. É o caso da expressão “garantia da ordem pública”. Gustavo Badaró comenta que a referida expressão, requisito positivo para a decretação da prisão preventiva (ou qualquer outra medida cautelar), constante do artigo 312 do CPP, tem conteúdo completamente indeterminado, faltando-lhe qualquer referencial semântico. Segundo o referido autor, “A jurisprudência tem se valido das mais diversas situações reconduzíveis à garantia da ordem pública: ‘comoção social’, ‘periculosidade do réu’, ‘perversão do crime’, ‘insensibilidade moral do acusado’, ‘credibilidade da justiça’”17. Assim, percebe-se que tal requisito positivo para a prisão processual é, em verdade, uma forma de antecipação da pena, afinal “não se está buscando a conservação de uma situação de fato necessária para assegurar a utilidade e a eficácia de um futuro provimento condenatório.”18 O mesmo pode ser dito em relação à medida XVI do Pacote Anticrime. Afinal, quando se decreta a prisão preventiva em razão de suposta prática habitual de delitos, por exemplo, não se está pretendendo evitar qualquer situação danosa ao curso do processo. Deseja-se, unicamente, a imediata aplicação de uma “resposta” estatal. Assim, ao menos duas consequências da aplicação efetiva desta medida chamam atenção. A primeira é o alargamento das hipóteses de aplicação de medidas cautelares pessoais. A segunda é o reforço à incoerência com o sistema. 17 18 BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 733. BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 733. 213 Atualmente, a aplicação de medidas cautelares pessoais segue o disposto nos artigos 311 a 319 do CPP. Passando a valer a medida ora analisada, além das hipóteses do artigo 313 do CPP, a prisão preventiva deveria ser aplicada quando “o juiz verificar que o agente é reincidente ou que está envolvido na prática habitual, reiterada ou profissional de infrações penais ou que integra organização criminosa, ou que porta arma de fogo de uso restrito em circunstâncias que indique ser membro de grupo criminoso”. Logo, haverá um alargamento das hipóteses de prisão em detrimento do princípio da presunção de inocência, acompanhado de um tratamento mais duro no que tange à reincidência. Isso porque, no texto do artigo 313 do CPP, apesar da reincidência compor o rol de hipóteses de cabimento da prisão preventiva, ela vem acompanhada da ressalva quanto à chamada “prescrição da reincidência” (art. 64, I, CP). Dessa forma, passados 5 anos do cumprimento da pena aplicada, o indivíduo deixa de ser reincidente. Na medida proposta, não bastando tal ressalva não vir expressa, chama atenção que se associaram à reincidência outras três hipóteses semelhantes, porém mais abertas à interpretação: prática habitual, reiterada ou profissional de delitos. Nestas três expressões reside o mais grave problema da medida. Trata-se, evidentemente, de expressões de conteúdo semântico indeterminado. Mais que isso, são situações que, nos termos da medida proposta, poderiam ser demonstradas por meio de standard probatório baixo, além de revelarem atribuição de culpa sobre fatos estranhos ao processo concreto. Interpretar o conteúdo destas expressões será tarefa atribuída aos magistrados sem que lhes seja dado qualquer elemento norteador. Com isso, abre-se espaço ao decisionismo e subjetivismo em análises que deveriam se pautar em elementos concretos. Logo, é possível que a implementação da medida que ora se analisa afete, diretamente, as já altas taxas de encarceramento provisório do país. Por fim, deve-se considerar que, ao criar hipótese obrigatória de prisão preventiva, a medida desvirtua toda a sistemática de medidas cautelares pessoais prevista em nosso ordenamento jurídico. Conforme mencionado anteriormente, o legislador trouxe, recentemente, alterações significativas para esta área do Direito Processual Penal, conformando-a aos ditames constitucionais, notadamente à inafastável presunção de inocência e à plena liberdade que dela 214 decorre. Atualmente, a liberdade é a regra em nosso ordenamento jurídico, devendo a prisão cautelar ser a última medida a ser cogitada pelo magistrado considerando as circunstâncias do caso concreto. Completamente contrária ao espírito que norteia a matéria em relação às medidas cautelares pessoais, a medida XVI do Pacote Anticrime parte da segregação como a principal medida cautelar existente em nosso ordenamento, em choque frontal com o artigo 282, § 6º do CPP. 4. Síntese conclusiva: inviabilidade de alternativas Considerando tudo quanto foi exposto, não há outra conclusão que não a completa inviabilidade da medida proposta. Além de inconstitucional, por ferir diversos pilares do Estado Democrático de Direito, em especial a presunção de inocência, a medida carece de qualquer respaldo técnico. Sua linguagem, abrangente e subjetiva, tem por consequência o alargamento do decisionismo e das arbitrariedades, tão comuns no cotidiano da justiça criminal, mesmo que não respaldados em lei. Além disso, a medida parte de premissas equivocadas e procura sanar um pseudoproblema por vias absolutamente inócuas, não se preocupando em buscar respaldo científico. Pode-se dizer, sem qualquer receio, tratar-se de medida que prestigia unicamente o simplista senso comum, que vê na prisão a resposta a múltiplos problemas. A pretensa relação entre endurecimento das leis e diminuição da criminalidade carece, como dito anteriormente, de qualquer amparo científico. É possível, inclusive, questionar se a falácia contida nos discursos afeitos ao lema “lei e ordem” não tem contribuído, se não para a intensificação dos conflitos, ao menos para a manutenção deles. Ademais, chama atenção o fato de que esta medida, inserida em um contexto prévio a qualquer delimitação de culpa, jamais poderia ser utilizada como mecanismo apto a combater a criminalidade, simplesmente pelo fato de que o sujeito alvo da medida está resguardado pelo manto da presunção de inocência, sendo de todo impossível que uma prisão processual, voltada exclusivamente para acautelar o processo, seja utilizada como mecanismo de contenção do avanço da “criminalidade”. Admitir-se isso é admitir que nosso ordenamento permite a antecipação da pena, o que, bem se sabe, não é verdade. 215 Assim, para o que se propõe diretamente a medida – dificultar a liberdade de determinados indivíduos tidos por “criminosos habituais” –, não há possibilidade de redação alternativa para a proposta do Ministro da Justiça, pois o objetivo declarado está dissociado do Direito Penal de culpabilidade, consentâneo ao Estado Democrático de Direito. O desenvolvimento de políticas públicas de cunho não punitivista, como a redução da desigualdade social e o incremento do trabalho e da renda, além do enfrentamento sério da questão penitenciária – porque as penitenciárias são, hoje, ambientes criminógenos, que realimentam a criminalidade – seria medida mais adequada ao propósito de melhorar a segurança pública. 216 MEDIDA XVII – PRESÍDIOS FEDERAIS Sob coordenação de Anna Carolina Canestraro e Patrícia de Paula Queiroz Bonato Elaborado por Bruna Martins de Souza, Larissa Romani Milanezi, Miguel Katz Zagury Fragelli, Renata Lasçalete Ricarto e Stefanie de Carvalho Avelino dos Santos 1. O que diz a Medida XVII do Pacote Anticrime? A décima sétima medida do Projeto Anticrime apresentado pelo atual Ministro da Justiça, Sérgio Moro, versa sobre a alteração do regime jurídico dos presídios federais de segurança máxima e, para tanto, propõe alterar a Lei 11.671/08, que dispõe sobre a transferência, inclusão e permanência dos presos nos presídios federais a partir da reformulação dos art. 2º, 3º, 10 e 11. Atualmente, segundo a supracitada Lei, os artigos mencionados possuem a seguinte redação: Art. 2o A atividade jurisdicional de execução penal nos estabelecimentos penais federais será desenvolvida pelo juízo federal da seção ou subseção judiciária em que estiver localizado o estabelecimento penal federal de segurança máxima ao qual for recolhido o preso. Art. 3º. Serão recolhidos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima aqueles cuja medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio preso, condenado ou provisório. Art. 10. A inclusão de preso em estabelecimento penal federal de segurança máxima será excepcional e por prazo determinado. § 1º. O período de permanência não poderá ser superior a 360 (trezentos e sessenta) dias, renovável, excepcionalmente, quando solicitado motivadamente pelo juízo de origem, observados os requisitos da transferência. Art. 11. A lotação máxima do estabelecimento penal federal de segurança máxima não será ultrapassada. § 1º. O número de presos, sempre que possível, será mantido aquém do limite de vagas, para que delas o juízo federal competente possa dispor em casos emergenciais. § 2º. No julgamento dos conflitos de competência, o tribunal competente observará a vedação estabelecida no caput deste artigo1. Com as modificações propostas pelo Projeto de Lei em comento, o artigo 2º passaria a conter o seguinte parágrafo único: Art.2º.(...) Parágrafo único. O juiz federal de execução penal será competente para toda ação de natureza cível ou penal que tenha por objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal. 1 BRASIL. Lei nº 11.671, de 8 de maio de 2008: Dispõe sobre a transferência e inclusão de presos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima e dá outras providências. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11671.htm>. Acesso em: 11 de outubro de 2019. 217 Ao artigo 3º, por sua vez, pretende-se incluir oito parágrafos para estabelecer como se daria o regime fechado de segurança máxima, com maior controle do relacionamento do preso com familiares e seus advogados, determinando inclusive que todos os meios de comunicação durante as visitas sejam monitorados por áudio e vídeo, tanto nos parlatórios quanto nas áreas comuns. Art. 3º. Serão incluídos em estabelecimentos penais federais de segurança máxima aqueles cuja medida se justifique no interesse da segurança pública ou do próprio preso, condenado ou provisório. § 1º A inclusão em estabelecimento penal federal, no atendimento de interesse da segurança pública, será em regime fechado de segurança máxima, com as seguintes características: I - Recolhimento em cela individual; II - Visita do cônjuge, da companheira, de parentes e amigos somente em dias determinados, que será assegurada por meio virtual ou no parlatório, com o máximo de duas pessoas por vez, além de eventuais crianças, separados por vidro e comunicação por meio de interfone, com filmagem e gravações; III - Banho de sol de até duas horas diárias; e IV- Monitoramento de todos os meios de comunicação, inclusive correspondência escrita. § 2º Os atendimentos de advogados deverão ser previamente agendados, mediante requerimento, escrito ou oral, à direção do estabelecimento penal federal. § 3º As penitenciárias federais de segurança máxima deverão dispor de monitoramento de áudio e vídeo no parlatório e nas áreas comuns, para fins de preservação da ordem interna e da segurança pública, sendo vedado seu uso nas celas. § 4º As gravações das visitas não poderão ser utilizadas como meio de prova de infrações penais pretéritas ao ingresso do preso no estabelecimento. § 5º As gravações de atendimentos de advogados só poderão ser autorizadas por decisão judicial fundamentada. § 6º Os Diretores dos estabelecimentos penais de segurança máxima ou o Diretor do Sistema Penitenciário Federal poderá suspender e restringir o direito de visitas previsto no inciso II do §1º mediante ato motivado. § 7º Configura o crime do art. 325 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 Código Penal, a violação do disposto no § 4º. § 8º O regime prisional previsto neste artigo poderá ser excepcionado por decisão do diretor do estabelecimento no caso de criminoso colaborador, extraditado, extraditando ou se presentes outras circunstâncias excepcionais. Outro ponto abordado pela medida diz respeito ao período de permanência do preso nos presídios de segurança máxima. Atualmente, a lei determina, em seu artigo 10, um intervalo de tempo máximo de 360 dias, suscetíveis à renovação excepcional caso o juiz fundamentadamente julgue necessário. A medida, por sua vez, altera substancialmente o artigo ao prolongar o período de permanência de 360 dias para até 03 anos, renováveis quando solicitado motivadamente pelo juízo de origem: Art.10. A inclusão de preso em estabelecimento penal federal de segurança máxima será excepcional e por prazo determinado. § 1. O período de permanência será de até três anos, renováveis por iguais períodos, quando solicitado motivadamente pelo juízo de origem, observados os requisitos da transferência e se persistirem os motivos que a determinaram. 218 Por fim, a medida altera o art.11 da Lei 11.671/08, dispondo que as decisões a respeito da transferência, prorrogação da permanência, concessão ou denegação de benefícios, bem como imposição de sanções ao preso poderão ser tomadas por órgão colegiado de juízes, segundo as normas de organização interna dos tribunais: Art. 11-A. As decisões relativas à transferência ou à prorrogação da permanência do preso em estabelecimento penal federal de segurança máxima, à concessão ou à denegação de benefícios prisionais ou à imposição de sanções ao preso federal poderão ser tomadas por colegiado de juízes, na forma das normas de organização interna dos Tribunais. Art. 11-B. Os Estados e o Distrito Federal poderão construir estabelecimentos penais de segurança máxima, a eles aplicando-se, no que couber, as mesmas regras previstas nesta lei. 2. Os objetivos declarados e não declarados da Medida Declaradamente, segundo o atual ministro da Justiça e Segurança Pública, o Pacote Anticrime tem o propósito de combater o crime organizado, crimes violentos e a corrupção. No entanto, sob o argumento de endurecer as regras dos presídios federais para combater a criminalidade, ao propor a limitação às visitas, o aumento do período de tempo de encarceramento, a fiscalização ostensiva na intimidade dos detentos e até mesmo das conversas entre eles e seus advogados, a medida XVII passa a ter por objetivo não declarado impor um controle exaustivo, reduzindo os – já quase inexistentes – direitos dos indivíduos na prisão. Nesse sentido, as mudanças a serem realizadas na legislação podem provocar resultados inesperados e diametralmente contrários às ditas propostas de “combate ao crime” ou “ressocialização”, isto é, em decorrência da intensificação do encarceramento nos moldes propostos, cria-se, inclusive, um ambiente mais propício ao fortalecimento de facções criminosas dentro dos próprios presídios. De fato, as sequelas dessas instituições isoladas e segregacionistas, ou, como depois vieram a ser conhecidas, “instituições totais”, já vem sendo, há um longo tempo, objeto de estudo de sociólogos e criminólogos. Erving Goffman, por exemplo, ao analisar as influências provocadas pelas “instituições totais” sobre os indivíduos que as habitam, concluiu que se trata de um processo paulatino de aniquilamento de individualidades e de degenerações físicomentais, podendo ser resumida em três aspectos: rigor, vigilância e falta de privacidade2. Em complemento, Salomão Shecaira afirma que dessa forma, as instituições, que 2 GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2015. p.22. 219 deveriam desencorajar o comportamento desviante, acabam por, de algum modo, perpetuá-lo, uma vez que não só não permitem a ressocialização do desviante como ainda permitem o contato com presos mais “experientes”3. Ademais, o recrudescimento pretendido pelo Pacote Anticrime no âmbito dos presídios federais coloca o aspecto retributivo da pena em evidência, em muito lembrando a retaliação imposta aos integrantes da liderança do Primeiro Comando da Capital – PCC, cujas consequências negativas comprovam a completa ineficiência de tal medida, sob inúmeros aspectos4. Em termos de economia comportamental do crime, o aumento do encarceramento também não se verifica como um mecanismo eficiente para a prevenção geral do crime. De fato, segundo estudo realizado por Travis Pratt e Francis Cullen, estima-se que uma atuação sob a percepção que o indivíduo tem, com fundamento nos efeitos práticos, ou seja, das consequências sofridas por sujeitos de sua proximidade, seria um mecanismo muito mais eficaz para a prevenção do que o maior uso do sistema de justiça criminal5. Assim, a despeito de se declaradamente defender que a medida busca combater o crime organizado, crimes violentos e a corrupção, não há de se enganar que, de modo disfarçado, a medida também acaba por institucionalizar o preso, diminuindo sua possibilidade de reinserção social, eternizando-o dentro de um sistema de instituição total. 3. Quais as consequências previsíveis? Produzem efeitos positivos ou nocivos? As modificações trazidas a partir do Projeto Anticrime aproximam muito o regime de presídios federais ao Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), previsto no artigo 526 da Lei de Execução Penal (Lei 7.210/84), cuja natureza pode ser a de medida cautelar nos casos em que os presos, provisórios ou condenados, apresentem alto risco à ordem e segurança prisionais, ou 3 SHECAIRA,Sérgio SALOMÃO. Criminologia. São Paulo:Editora Revista dos Tribunais,2011. p. 322. Sobre o tema, vide: PAES MANSO, Bruno; NUNES DIAS, Camila. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018. 5 PRATT, Travis C.; CULLEN, Francis T. Assessing Macro-Level Predictors and Theories of Crime: A MetaAnalysis.Crime and Justice 32, v. 32, 2005. 6 Art. 52. A prática de fato previsto como crime doloso constitui falta grave e, quando ocasione subversão da ordem ou disciplina internas, sujeita o preso provisório, ou condenado, sem prejuízo da sanção penal, ao regime disciplinar diferenciado, com as seguintes características: I - duração máxima de trezentos e sessenta dias, sem prejuízo de repetição da sanção por nova falta grave de mesma espécie, até o limite de um sexto da pena aplicada; II - recolhimento em cela individual; III - visitas semanais de duas pessoas, sem contar as crianças, com duração de duas horas; IV - o preso terá direito à saída da cela por 2 horas diárias para banho de sol. 4 220 a de sanção disciplinar, mais comum. Havendo de se falar assim em uma forma de expansão desse regime – que, vale dizer, é um procedimento de exceção na execução penal. Cumpre ressaltar que esse novo regime, destinado às penitenciárias federais, é ainda mais restritivo que o RDD, pois autoriza a gravação de todas as formas de comunicação dos presos, além de reduzir sobremaneira o direito de visitas. Essa exceção fica ainda mais clara quando observamos que as hipóteses de ingresso no Sistema Penitenciário Federal (SPF) são ainda mais delimitadas, tendo definições mais precisas do que as do RDD. Constata-se, assim, uma medida típica de um direito penal orientado pela ideia de inimigo. Sistema este que distingue cidadãos e inimigos de forma que os últimos têm a sua condição de pessoa e de dignidade suprimidas, sendo considerados sujeitos perigosos, nocivos à sociedade e não mais pessoas, sendo privados de seus direitos individuais7. Logo, o Estado estaria priorizando a segurança pública em detrimento de melhores condições de ressocialização – com ostensividade, falta de autonomia pelo controle excessivo, limitação do contato com familiares e visitas e tentativa de restringir, inclusive, a liberdade profissional dos advogados. Desta forma, o Estado opta por concentrar seus esforços nesse permanente combate, que reprime o inimigo e o perigo que ele representa, sem muito se preocupar com os limites impostos pelos direitos fundamentais8. De fato, conforme evidencia Paulo César Busato, o RDD está estreitamente ligado ao Direito Penal do Inimigo, visto que constitui um sistema de penalidades e limitações que: Não estão dirigidas aos fatos e sim à determinada classe de autores. Busca-se claramente dificultar a vida destes condenados no interior do cárcere, mas não porque cometeram um delito, e sim porque, segundo o julgamento dos responsáveis pelas instâncias de controle penitenciário, representam um risco social e/ou administrativo ou são ‘suspeitas’ de participação em bandos ou organizações criminosas 9 O Regime Disciplinar Diferenciado, portanto, pode ser considerado um desdobramento do Direito Penal do Inimigo, pois visa a punir o agente pelo perigo que representa e não tanto pelo fato praticado em si. E é justamente dessa corrente teórica do direito penal que o Pacote Anticrime se aproxima com a nova regulamentação do Sistema Penitenciário Federal. 7 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 18. CARVALHO, Salo de; FREIRE, Christiane Russomano. O Regime Disciplinar Diferenciado: notas críticas à reforma do sistema punitivo brasileiro. Revista Transdisciplinar de Ciências Penitenciárias, v. 4, n. 1, p. 23, 2005. 9 BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal do Inimigo. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Notadez/PUCRS/!TEC, 2004. p. 139. 8 221 Como já dito anteriormente, a proposta de regime de cumprimento de pena no SPF é uma modalidade ainda mais gravosa do RDD, pois não só estabelece uma disciplina mais rigorosa, como também amplia a caracterização do inimigo. Percebe-se, assim, que esse projeto pretende uma expansão do Direito Penal do Inimigo. Com essa medida, institucionaliza-se a diferença entre o cidadão e o inimigo. Logo, trata-se de uma política criminal que viola patentemente os direitos fundamentais e consolida a violência estatal como mecanismo de controle social, uma vez que é pautada no autor e não propriamente no fato10. Cumpre ressaltar que a proposta não é harmônica com o ordenamento jurídico brasileiro, visto que, em um Estado Democrático de Direito, não é permitido que o Poder Público, ao considerar alguém como inimigo, retire a sua condição de pessoa e aplique a ele penas desproporcionais11. O cenário fica ainda mais grave quando rememoramos que esse tipo de política criminal, baseada na edição de novas e mais severas leis penais, não tem a capacidade de diminuir a criminalidade; devendo, no lugar, ser tomadas medidas socioeconômicas, entre outras, a fim de reduzir a desigualdade no país12. De fato, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, cerca de 24,4% dos condenados reincidem no crime13, não sendo, dessa maneira, o asseveramento da pena a melhor solução para o sistema prisional. Aqui, faz-se necessário dar especial atenção à possibilidade de monitoramento de todas as conversas nos estabelecimentos penitenciários. Mais especificamente, às consequências previsíveis das gravações das conversas do preso com o seu advogado, que passariam a ser possíveis caso seja aprovada a modificação no art. 3º da Lei 11.671/2011. No âmbito do Estado Democrático de Direito, e no bojo do modelo acusatório de processo, a persecução penal, especificamente na etapa judicial, deve respeito aos direitos e garantias fundamentais do denunciado. Dentre esses direitos, tem-se o direito à ampla defesa (CF, art. 5º, LV), tanto técnica 10 BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal do Inimigo. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Notadez/PUCRS/TEC, 2004.p. 140. 11 ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. p. 19-20. 12 BUSATO, Paulo César. Regime Disciplinar Diferenciado como Produto de um Direito Penal do Inimigo. Revista de Estudos Criminais. Porto Alegre: Notadez/PUCRS/TEC, 2004, p. 140 13 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa Rio de Janeiro. 2015 Disponível em <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal. pdf> Acesso em: 14 de outubro de 2019. 222 quanto pessoal. A defesa técnica tem como fundamento a proteção dos direitos do acusado que, por ser hipossuficiente em relação aos recursos acusatórios e não conhecer a técnica que deve empregar para resistir à pretensão estatal, está em situação de vulnerabilidade no processo penal14. Portanto, é necessário que esse contato aconteça permeado por confiança e, especialmente, confidencialidade. Sem isso, o defensor não ficará ciente de informações que podem ser de grande utilidade ao longo do processo e que podem influenciar diretamente na construção da defesa técnica. Ao pretender o monitoramento da conversa do preso com o seu advogado, o Pacote Anticrime possibilita a quebra da liberdade necessária a esses contatos, uma vez que o acusado sabe que não haverá mais sigilo nesses encontros. Dessa maneira, enfraquece o direito à ampla defesa, tão caro ao processo penal democrático. Sobre as consequências da admissão dessas gravações, nos alarma Alberto Toron que tal medida: Nos conduziria a uma situação de absoluta insegurança e desconfiança, que tornaria impraticável, como já dito, o pleno exercício da defesa e, portanto, a Administração da Justiça ou, noutros termos, o devido processo legal. Só mesmo a mais desprezível das sociedades poderia agasalhar tal possibilidade, isto é, que o depositário da confiança do cidadão possa ser bisbilhotado por interceptações telefônicas e ambientais15 Por todo o exposto, caso aprovada, a Medida XVII enfraquecerá o conjunto de direitos e garantias fundamentais que devem limitar o poder estatal no processo penal. Ainda, é necessário rememorar que esse conjunto constitui um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito e, portanto, relativizá-lo representará um ataque à própria democracia brasileira16. Na medida em que ofende o direito à ampla defesa, essa proposta flerta com o sistema processual inquisitório, inadmissível sob a vigência da Constituição Federal de 1988. Se for aprovada, daremos outro passo em direção a um processo penal autoritário. Por fim, é necessário apontar para a ineficácia contida na proposta de aumento do tempo mínimo de permanência no Sistema Penitenciário Federal de um para três anos. Ainda que, em uma primeira na análise, tal medida aparente constituir um forte ataque ao funcionamento do crime organizado, pois aumenta o período de isolamento de seus líderes ou participantes 14 LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2018. p. 99. TORON, Alberto Zacharias. Projeto de Lei Anticrime. Consultor jurídico. Disponível em <https://www.conjur.com.br/dl/toron-critica-ambicao-encarceradora.pdf > Acesso em: 05 de outubro de 2019. 16 Idem. 15 223 importantes, na prática, ironicamente ocorrerá justamente o contrário. É o que explica Augusto Rossini, ex-diretor geral do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça: Ao chegar em uma das quatro unidades, o preso amplia seu leque de conhecidos. De um momento para o outro, seu campo de atuação passa de estadual para nacional. (...) Isso lamentavelmente nacionaliza o crime organizado. Em verdade, nunca na história do país presos dos mais distintos quadrantes foram unidos pelo próprio Estado. (...) Quando uma liderança do Maranhão se encontraria com uma do Rio Grande do Sul? Quando uma liderança de São Paulo se encontraria com outra de Mato Grosso? Há presos de todos os cantos do país, todos eles ostentando excessiva periculosidade e nefasta liderança em suas bases. O SPF permite que se encontrem e interajam, a despeito das 22 horas passadas em celas individuais e apenas 2 horas de banho de sol17. O sistema penitenciário federal, como visto, ao invés de combater o crime organizado, fortalece-o, podendo inclusive vir a ser o ambiente propício à criação de novas facções18. 4. Crítica a nível normativo: é constitucional? Caso não seja, é possível sua inclusão no ordenamento via Eemenda Constitucional? Por todo o exposto, a Medida XVII do Projeto Anticrime está eivada de inconstitucionalidade. Como visto, o projeto de lei em análise pretende introduzir o parágrafo único ao artigo 2º da Lei nº 11.671/08, cuja redação pretende ampliar consideravelmente a competência do juízo federal de execução penal, o qual cumulará ações de natureza cível ou penal que tenham por objeto fatos ou incidentes relacionados à execução da pena ou infrações penais ocorridas no estabelecimento penal federal. A competência do juízo federal é regida unicamente pela Constituição Federal de 1988 (no artigo 109), não sendo permitido à legislação ordinária elaborar normas desta matéria, o que inclusive já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento da ADI 2.473 Competência da Justiça Federal definida na Constituição, não cabendo a lei ordinária e, menos ainda, a medida provisória sobre ela dispor (ADI 2.473‑MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 13-9-2001, Plenário, DJ de 7-11-2003)19 17 ROSSINI, Augusto apud PAES MANSO, Bruno; NUNES DIAS, Camila. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. 1. ed. São Paulo: Todavia, 2018. p. 228 18 Foi inclusive esse o caso da Família do Norte, diretamente ligada ao aumento dos índices de violência na Região Norte do país. Cf: PAES MANSO, Bruno; NUNES DIAS, Camila. A guerra: a ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil. São Paulo: Todavia, 2018. p. 227 19 DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Nota Técnica da Defensoria Pública da União em face do Pacote de Sugestões Legislativas apresentadas em 04 de fevereiro de 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Brasília, 13 de maio de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nota-tecnica-defensoria-publicauniao.pdf. Acesso em: 14 de outubro de 2019. 224 Dessa forma, é incabível a presunção de que está presente o interesse da União, simplesmente pela infração ter sido praticada em presídio federal. Nesse sentido, esta circunstância não é admitida pelo previsto no artigo 109 da Constituição Federal. Outra proposta de alteração da Medida XVII que também chama atenção é a do artigo 11-A, pelo qual as decisões relativas à transferência ou à prorrogação da permanência do preso em estabelecimento penal federal de segurança máxima, ou à concessão e denegação de benefícios prisionais ou à imposição de sanções ao preso federal poderão ser tomadas por colegiado de juízes, na forma das normas de organização interna dos Tribunais. Ao definir que decisões de relevante interesse dos presos estejam sob a competência de órgão colegiado, atinge-se frontalmente o princípio do juiz natural, verdadeira cláusula pétrea de nosso ordenamento (art. 5º XXXVII e LIII). Desta forma é incabível deliberação de proposta de emenda conforme o disposto no artigo 60, §4º, logo não será possível a inclusão desta lei no ordenamento jurídico via emenda constitucional. Ademais, o viés seguido pelo projeto de lei em tela é extremamente punitivista por apresentar um regime ainda mais gravoso ao réu que o modelo vigente, como ocorre com o aumento do tempo máximo de permanência do preso de 360 dias para até 3 anos, além da possibilidade de renovação desse prazo por número indeterminado de vezes. Além disso, a presente medida busca inovar no campo da execução penal ao criar, no ordenamento jurídico brasileiro, o chamado “regime fechado de segurança máxima” (artigo 3º, §1º), o que destaca ainda mais o recrudescimento do sistema penal. O projeto de lei ainda prevê a possibilidade de os Estados e o DF construírem presídios e estabelecimentos de segurança máxima, indicando novamente que a solução para a criminalidade é a punição extrema e o encarceramento massivo. Diante de tudo quanto exposto e tendo em vista a falência do sistema prisional brasileiro, constata-se que, além da inconstitucionalidade flagrante, a medida em análise não traz melhorias ao sistema penitenciário, tampouco será efetiva ao combate ao crime, pois não está pautada em estudos. 5. Há alternativa à proposta? Primeiramente, cumpre relembrar que os objetivos pretendidos com o encarceramento como consequência da prática delitiva são “efetivar as disposições de sentença ou decisão 225 criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”20. Assim, não se busca apenas o cumprimento da decisão criminal, mas especialmente a reinserção social do condenado. No entanto, o endurecimento da pena privativa de liberdade em regime fechado de reclusão não tem apresentado resultados positivos em termos de ressocialização, o que pode ser visto pela análise dos índices de reincidência verificados a partir desse modelo21. Nesse sentido, é o posicionamento do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) em nota de repúdio às propostas encaminhadas por secretários de Segurança Pública do Sudeste ao Congresso Nacional com o objetivo de endurecer o tratamento a determinados crimes cuja incidência aumentou nas grandes cidades A maior prova de que a quantidade da pena é irrelevante para as questões de segurança pública é que nesses anos, porquanto mais prendamos, mais a violência cresceu. E pior: pelo descaso que sempre tivemos com a questão penitenciária, o Direito Penal, quando posto em prática nos presídios, tornou-se o responsável pela organização do crime e seu aumento de poderio22 Compreendemos, desse modo, não se tratar a medida de meio eficaz para o combate a que se propõe e que sequer se encontra em consonância com os direitos e garantias fundamentais. Na tentativa de inibir condutas criminosas, chama-se atenção a União Europeia, que, ao criminalizar determinados assuntos, decidiu por prever, como é o caso da 2018/167323, que trata sobre o Combate à Prática Delituosa de Lavagem de Dinheiro, uma série de penalidades diversas. Dentre elas, as penas a exclusão a benefícios, financiamentos e concessões públicas, desqualificação para a prática comercial, supervisão judicial, fechamento dos estabelecimentos utilizados para a prática delituosa e congelamento e confisco da propriedade em questão. Nesse sentido, diante de todo o exposto, conclui-se que, uma vez que endurecer penas e restringir direitos não se verifica a maneira eficaz ou mesmo constitucional de se combater 20 Art.1º da Lei de Execução Penal. BRASIL. Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984: institui a Lei de Execução Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7210compilado.htm>. Acesso em: 20 de outubro de 2019. 21 Vide nota 12. 22 Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). Reincidência Criminal no Brasil. Relatório de Pesquisa Rio de Janeiro. 2015 Disponível em <https://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150611_relatorio_reincidencia_criminal. pdf> Acesso em: 14 de outubro de 2019. 23 PARLAMENTO EUROPEU E CONSELHO DA UNIÃO EUROPEIA. Diretriz (EU) 2018/1673 sobre combate à lavagem de dinheiro pelo direito penal. Disponível em https://eur-lex.europa.eu/legalcontent/EN/TXT/?uri=legissum:4372181. Acesso em: 23 de outubro de 2019. 226 estra criminalidade, uma alternativa à questão seria a adoção de medidas com reflexos não só na área criminal como também na área cível, como maneira de inibir a prática delituosa, principalmente dos crimes de colarinho branco e organizações criminosas, os quais motivaram, e esta é a realidade, a criação do Projeto Anticrime. 227 MEDIDA XVIII – APRIMORAMENTOS NA INVESTIGAÇÃO DE CRIMES Sob coordenação de Edson Luis Baldan, Cecília Villar e Marcelo Rocha dos Anjos Elaborado por Amanda Ribeiro Soares, Ana Beatriz Souto, André Felipe Simões Cooper, Camila Morishita, Carolina Veiga de Faria Rosa, Juliana de Oliveira Rocha, Lívia Bernardi e Maria Fernanda Alencar Paes de Campos APRESENTAÇÃO Por Edson Luis Baldan Trata-se de um projeto que aglutina um pensamento atrasado, em descompasso não apenas com os postulados das modernas ciências jurídicas e criminológicas mas — e aqui o mais grave — em dissonância aos avanços civilizatórios dos dois últimos séculos que legaram às nações evoluídas um complexo de paradigmas éticos homogêneos e sólidos. Ignorância jurídica, desapreço à justiça e hipossuficiência ética mesclam-se à saciedade nessa obtusa proposta. O projeto abandona, clara e definitivamente, as anunciadas finalidades de prevenção especial positiva (identificadas com a ressocialização do condenado) para trabalhar exclusivamente com a gestão de um risco presumido em relação a certos círculos de pessoas sobre as quais alargam-se as possibilidades jurídicas para o encarceramento puramente neutralizador ou, pior, para sua simples eliminação biológica, evocando a triste lembrança do terrível Direito Penal Nazista: construção arbitrária da figura do inimigo para sua peremptória exclusão da sociedade ou pura extinção vital, sob aparência de uma legalidade frágil que somente pode seduzir mal informados ou mal intencionados (o que pode apresentar-se cumulado porque a estupidez humana desconhece limites). A eventual implantação desses instrumentos penais e processuais não propiciará segurança pública, senão insegurança jurídica. Não aplacará a violência de nossos tempos, em vez a incrementará pela adição daquela protagonizada pelos próprios agentes estatais, agora superlativa. Não se prestará ao contraste ao crime organizado; ao revés, revelar-se-á poderoso contributo às facções criminosas que, com o massivo encarceramento esperado, restarão mais capitalizadas e verão multiplicar potenciais miseráveis combatentes recrutáveis às suas fileiras. Não restaurará a suposta supremacia de mando do Estado porque, todo o contrário, nos ensina 228 Hanna Arendt, que o recurso à violência arbitrária não é afirmação da autoridade senão a assunção de sua derrocada. Proposta desse jaez somente pode ser gerada no seio de uma cultura geral rasa, de uma formação jurídica incompleta e rudimentar porque limitada à interpretação literal de algumas normas e dissociada de uma hermenêutica sistemática e de um conhecimento jurídico histórico e comparado que evitariam o constrangimento de proposituras que afrontam regras e princípios constitucionais, ignoram a boa e remansosa jurisprudência, desconsideram a caudalosa doutrina e se aferram a pré-conceitos jamais consagrados pelos experimentos criminológicos do último século. Preocupa-nos sobremaneira antever que sobejarão autoridades públicas que, portadoras dos mesmos déficits éticos e técnicos, não hesitarão em garantir, avidamente, eficácia plena a tais dispositivos, caso positivados. Etiquetar pessoas, neutralizar pelo encarceramento prolongado inteiros grupos humanos historicamente lançados às margens da sociedade e autorizar seu assassinato sob aparência de legalidade são estratégias totalitárias de pseudogestão da criminalidade. Foram úteis na Alemanha das décadas de 1930 e 1940. Elas têm, pois, nome, tempo, lugar e uma ideologia que as anima e, periodicamente, renasce sob novas vestes para desgraça daquelas nações de democracia de baixa densidade e instituições públicas frágeis ainda dominadas pelo pensamento aristocrata-escravagista, estigmatizante e desumano. Se tivesse que emprestar um nome que bem definisse esse projeto seria “Pacote Anticonstituição” ou “Pacote Anticivilização" ou, ainda, de maneira mais direta : ”licença para matar”. Sim, trata-se de um projeto criminoso que espelha, sem rebuços, as reais intenções de um Estado que já não faz questão de ocultar sua face genocida. É o Estado-Polícia a fagocitar o Estado de Direito. Busca-se a autorização para o extermínio, sob aparência de legalidade, das populações periféricas mais carentes e às quais o único serviço público que lhes assiste é a polícia, esta que agora querem ainda mais letal, com credenciais para a prática sistemática de assassinatos premeditados e friamente planejados. Para os consumidores ativos do sistema reservam acordos de leniência, de delação, de não persecução; para os consumidores falhos o extermínio quando imaginado, sob critérios arbitrários dos agentes policiais, estar em marcha uma ação criminosa, ainda em momento anterior à configuração de uma agressão atual ou iminente (estas, sim, hipóteses legitimadoras da defesa legítima nos ordenamentos jurídicos de qualquer povo civilizado desde tempos imemoriais). 229 Triste o país que enxerga seus cidadãos como consumidores e não como seres humanos detentores, cada um deles, do valor supremo da dignidade humana, princípio fundador de nossa república. O autor deste sedizente anteprojeto de lei que depõe contra a seriedade da ciência jurídica pátria e, por que não dizer, da decência pública afirma não querer ouvir as vozes da Academia, certamente por saber que esta não sói ser conivente com autoridades públicas que mercadejam sua nobre função judicante nos balcões da política imoral e antidemocrática, que transgridem as normas penais para tortuosamente adequar a conduta de seus desafetos a tipos penais inexistentes, que criam institutos jurídicos alheios à dogmática e estranhos à legislação, que violam as regras do devido processo legal para que o desenlace seja aquele encomendado ao magistrado inquisidor (tornado verdugo das liberdades individuais), que violentam a dosimetria da pena para buscar a morte moral e quiçá a própria extinção biológica de seu condenado. Silenciar ou transigir com esse simulacro de legalidade fará com que a história nos enderece os mesmos encômios que Hitler dirigiu aos homens das leis dos tenebrosos tempos do Nazismo: “agradeço aos juristas que me possibilitaram fazer tudo que fiz dentro da legalidade”…. A boca dos destemidos somente se cala quando o tiro nela acerta e, por isso, mesmo diante da má vontade em ouvir nossa voz, continuaremos a alçá-la a fim de que a opinião pública seja melhor informada, seguiremos escrevendo para que os compêndios da boa dogmática registrem a memória deste tempo em que se atenta contra o Estado Democrático de Direito, quando se vilipendia o devido processo legal, onde se faz tábula rasa das construções doutrinárias do Direito Penal e das elaborações criminológicas lapidadas ao longo de um século. Vivemos um tempo sombrio onde, em suma, negam-se as conquistas civilizatórias que tiveram o Iluminismo e a afirmação dos direitos do indivíduo assentados na dor e sofrimento experimentados ao ensejo da Revolução Francesa que sepultou o Estado leviatânico e desenhou as faces de um Direito que não aquele das trevas, onde vigorou o apropriadamente denominado “Código de Sangue”. Persistiremos denunciando esse poder ilegitimamente implantando que quer negar a civilização para nesse vácuo de humanismo edificar uma necropolítica de segurança pública identificada com os mais vis e cruéis paradigmas teóricos da ultradireita onde o genocídio de determinados segmentos sociais é prática que deve ser tolerada e aplaudida pelos néscios. 230 Que ouçam não a nossa; mas a voz das ciências todas e, sobre a destas, o clamor de um povo sofrido que não suporta mais a subjugação pela força bruta e cega de um Estado que é cada vez mais deveres e menos direitos. O nosso pleito é singelo e unívoco: mais justiça social, menos justiça criminal. INQUÉRITO POLICIAL E OUTRAS FORMAS DE INVESTIGAÇÃO O inquérito policial é o mais importante e usual procedimento investigativo utilizado em nosso sistema jurídico. Segundo o Nucci, trata-se “um procedimento preparatório da ação penal, de caráter administrativo, conduzido pela polícia judiciária e voltado à colheita preliminar de provas para apurar a prática de uma infração penal e sua autoria”. Na definição de Paulo Rangel, tem-se que o inquérito policial “é um conjunto de atos praticados pela função executiva do Estado com o escopo de apurar a autoria autoria e materialidade de uma infração penal, dando ao Ministério Público elementos necessários que viabilizem o exercício da ação penal” (Direito Processual Penal, p.73). Quanto à sua função, tem-se que a principal é a investigação do crime, bem como a descoberta de seu autor, a partir do fornecimento de elementos para que o titular da ação penal possa vir a promovê-la em juízo. Dessa maneira, a fim de evitar o processamento injusto de ações penais, sua instauração vem a proteger inocentes de acusações injustas. Existem outras investigações criminais, que podem ser presididas por outras autoridades, quando houver previsão legal. Como exemplos de processos investigativos dentro do sistema jurídico brasileiro pode-se falar nas comissões parlamentares de inquérito (CPI), nas sindicâncias administrativas, nos inquéritos civis e também nos procedimentos de investigação criminal (PIC). Este último procedimento desperta opiniões contrárias em razão da atuação do Ministério Público, o fato de não haver previsão legal sobre o tema e, também, a questão do sigilo absoluto. Quanto aos procedimentos investigativos, tem-se que constitucionalmente cabe ao Ministério Público a titularidade da ação penal, conforme previsto no artigo 5º, inciso LIX da Carta Magna. Em contrapartida, observa-se que no artigo 144 do mesmo diploma, foi incumbido à polícia judiciária o dever de apurar a ocorrência e autoria de crimes e contravenções penais. Dessa maneira, pensar em um procedimento investigativo em que o Ministério Público produza sozinho a investigação, como também a elaboração da denúncia, é 231 um claro descumprimento constitucional. Mais ainda, é um rompimento com toda a harmonia do sistema processual penal, uma vez que este foi desenvolvido de maneira que cada uma das partes dentro do processo venha a ser fiscalizadas pelas outras participantes. Um Ministério Público produzindo toda uma investigação criminal “significaria quebrar a harmônica e garantiste investigação de uma infração penal”. PACOTE ANTICRIME I. CRÍTICAS INICIAIS 1. AS INEFICIENTES REFORMAS TÓPICAS AO CPP BRASILEIRO O Brasil, ao contrário dos países da América Latina que passaram por regimes ditatoriais, não obteve ainda uma reforma no sistema penal que se adeque ao regime democrático da atualidade. Isso se comprova pelo fato de o país ainda utilizar o Código Penal de 1940, criado durante o governo de Getúlio Vargas, no período do Estado Novo. Dessa forma, o Brasil se torna um país assumidamente democrático que se vale de um CPP utilizado em duas ditaduras (ditadura Vargas e ditadura militar), as quais tinham características autoritárias, fascistas, violentas e repressoras e que teve como modelo o CPP do fascismo, elaborado durante o governo de Mussolini. O Código de Processo Penal brasileiro sobreviveu a três Constituições com pouquíssimas alterações em seus artigos. São inúmeras as consequências dessa situação, sendo a principal delas o fato do Brasil ser o único país da América Latina que possui um Código de Processo Penal inquisitório (GONZÁLEZ POSTIGO, 2017, p. 16), o que torna o país cúmplice de práticas judiciais típicas de regimes autoritários. Infelizmente, o que se observa, principalmente através de propostas como a do Ministro da Justiça, é o fato da promulgação da Constituição democrática de 1988 não ter aproximado o país de um sistema de processo penal acusatório e democrático, pelo contrário, o Código continua fiel às suas raízes inquisitórias, as quais aparentam estar se intensificando cada vez mais. 2. AS TENTATIVAS FALHAS DE REFORMAS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL 232 É inevitável a comparação do Brasil com os países da América Latina que também passaram por ditaduras e tiveram mudanças tanto Constitucionais quanto no Código de Processo Penal, principalmente pelas condições sócio-políticas de ambos os países se assemelharem. São elas: juristas empenhados na realização de reformas, a falta de embargos, a reabertura democrática e o investimento de capital internacional. O Brasil acumula um conjunto de insucessos (GLOECKNER, 2018, P. 441), pois possui um total de seis tentativas de reforma, na qual a última, elaborada por um grupo de juristas presididos pelo Ministro Hamilton Carvalhido, deu origem ao anteprojeto que, após encaminhado ao Congresso, foi denominado de PLS 156/2009 no Senado e PL 8045/2010 na Câmara dos Deputados, onde segue em tramitação. Deve-se ressaltar que nenhum dos projetos apresentados buscavam, especificamente, estabelecer um processo penal acusatório no Brasil. O Anteprojeto de reforma que foi elaborado pelos juristas e enviado para o Senado, apresentava em seu texto original mudanças importantes e que seriam positivas para o processo penal brasileiro, como a figura de um juiz de garantias, o impedimento que o juiz seja mais acusador que a acusação e a preferência pela oralidade, aproximando, assim, o nosso modelo de processo a um sistema acusatório. No entanto, vale ressaltar que várias medidas essenciais do Anteprojeto foram vistas com resistência por alguns setores da sociedade, como no caso da introdução de um juiz de garantias. Além disso, foram adicionadas mais de duzentas emendas (em cada casa legislativa) ao texto original. Logo, fica o receio entre os estudiosos do CPP de que o Projeto apresentado não seja aprovado de forma a adequar o Código à Constituição e à normativa supranacional correlata. Isto é, se esse for de fato aprovado. É importante ressaltar também que as discussões a respeito do Anteprojeto têm diminuído significativamente desde 2016. Isso ocorre, em primeiro momento, devido ao impeachment da então presidenta Dilma Roussef, que tumultuou o cenário político no país, e em segundo momento devido a Operação Lava-Jato e o que ficou conhecido como “Dez Medidas Contra a Corrupção” (apesar do nome, o anteprojeto apresentava muitas outras medidas), sendo tombado como Projeto de Lei 4850/2016 e está ainda em tramitação na Câmara dos Deputados. Após esses acontecimentos, Jair Bolsonaro assumiu a presidência, nomeando o ex magistrado Sérgio Moro (principal juiz da Operação Lava Jato) para Ministro da Justiça. Este apresentou à sociedade e encaminhou ao Congresso (sem o devido debate democrático entre 233 acadêmicos e especialistas em Processo Penal) o Projeto Anticrime, o qual visa a mudança no Código Penal, no CPP de 41 e na Lei de Crimes Hediondos. Infelizmente, esse novo projeto não apresenta proposta que alterariam efetivamente o CPP, apenas propostas que buscam transmitir à população uma sensação de mudança que irá diminuir a criminalidade no Brasil. 3. A NECESSIDADE DE UMA REFORMA GERAL É nítido que o Brasil está diante de mais um retrocesso no sistema penal, promovendo reformas incapazes de alcançar as mudanças necessárias para o progresso democrático, isto é, na adequação do sistema de justiça à Constituição. Faz-se necessário, então, parar com todas as mudanças pontuais e parciais, principalmente aquelas baseadas no populismo penal, e criar-se a consciência da necessidade de aprovação de um novo CPP acusatório. 4. A ILUSÃO DA EFICIÊNCIA As mudanças no sistema penal propostas pelo pacote anticrime, apesar de gerarem grandes impactos em procedimentos de reintegração dos presos na sociedade (veda a saída temporária aos condenados por crimes hediondos, terrorismo e tortura), na conversa entre advogado e cliente (autoriza que essas sejam gravadas) e determinar que a prisão após condenação por órgão colegiado seja a regra, não foram debatidas com especialistas e estudiosos sobre o tema. Além de desconsiderar as contribuições dos Conselhos Nacionais ligados ao Ministério e as críticas feitas por órgãos vinculados ao sistema de justiça criminal e de segurança pública. Além do evidente caráter autoritário no qual as medidas foram apresentadas ao Congresso, elas também desconsideram o impacto político, estrutural e orçamentário advindo do recrudescimento penal. Elas apenas visam promover respostas às aspirações punitivas da sociedade. II. DESTINATÁRIOS DO PACOTE ANTICRIME Não é surpresa (ou não deveria ser) o surgimento de um conjunto de medidas, voltadas ao setor penal, com pouca ou nenhuma conexão com a realidade dos problemas no setor de segurança pública e sem muita capacidade de resolver os problemas referentes ao sistema carcerário e a justiça no Brasil. A eleição do presidente Jair Bolsonaro à presidência (o qual, durante as eleições, apresentou um discurso abusivo, marcado pelo incentivo à violência e pelo 234 preconceito) legitimou a criação de um projeto que fragiliza o sistema jurídico de defesas e garantias do cidadão e aumenta as justificativas para o uso da violência por parte dos policiais e o abuso por parte do Poder Judiciário. Estas são as principais características do intitulado Pacote AntiCrime do Ministro da Justiça Sérgio Moro. Isto é, um projeto baseado no autoritarismo que vai contra o modelo de democrático previsto na Constituição do Estado brasileiro. No entanto, é de suma importância salientar que os desfalques e injustiças enfrentados no sistema penal brasileiro são de longa data. Em um país que sofre as consequências até os dias atuais dos 300 anos de escravidão, apresenta em seu cerne uma família tradicional que considera apenas os seus como iguais e fecha os olhos aos ataques à ampla defesa e às liberdades e garantias individuais, é de se esperar a conservação e o apoio a sistemas penais autoritários que promovem o encarceramento em massa através de condenações baseadas em provas de baixa qualidade (BADARÓ, 2018), prisões provisórias embasadas no argumento de preservar a ordem pública (ZACKESI, GOMES, 2016) ou em flagrantes controversos (DULTRA, 2015). O Brasil se tornou uma das cinco maiores populações carcerárias no mundo devido a cultura judicial punitivista, ao desapego de um sistema processual com um mínimo de garantias. A população negra é a que mais sofre com esse fato, pois mais da metade da população carcerária no país é composta por negros e pardos. Além disso, aumentou no Brasil o número de mortes violentas por raça, comprovando que a população negra é a que está mais exposta a violência no cenário nacional. Uma das principais razões para esses índices é o aumento de violência policial dentro das favelas (compostas principalmente por negros), a qual é baseada no confronto direto com a população, na militarização e na ênfase na promoção da guerra às drogas. III - ANÁLISE TEMÁTICA 1. ALTERAÇÕES RELATIVAS À INTERCEPTAÇÃO, GRAVAÇÃO E ESCUTA (LEI 9.296/1996) Inicialmente, cumpre ressaltar que a interceptação, gravação e escuta telefônica são institutos distintos, não podendo ser confundidos. De acordo com Renato Brasileiro (2019, p. 429), a interceptação ocorre quando nenhum dos interlocutores tem o conhecimento de que estão sendo monitorados por um terceiro. Em outras palavras, é quando apenas o terceiro tem ciência do monitoramento. Por outro lado, a escuta telefônica se caracteriza quando um dos 235 interlocutores tem o conhecimento de que está sendo monitorado por um terceiro. Por fim, a gravação telefônica não possui a figura deste terceiro na ingerência da comunicação; são dois interlocutores na conversa, sendo que a captação de comunicação é feita diretamente por um deles. Verifica-se, portanto, que a maior diferença dos institutos está no número de participantes e naquele que tem ciência da captação e ingerência da conversa. Registre-se que a interceptação, gravação e escuta não ferem o direito de sigilo e privacidade garantindo pela Constituição Federal. Isto porque estes fenômenos jurídicos são utilizados para monitorar criminalidade e necessitam de prévia autorização judicial para que ocorram. Sublinha-se, portanto, que eles são utilizados para auxiliar na persecução penal, podendo ser considerados meios de obtenção de prova, de natureza coativa real, “consubstanciada em uma apreensão imprópria, no sentido de por ela se apreenderem os elementos fonéticos que formam a conversação telefônica” (LIMA, 2019, p. 432). Como um “importante instrumento de investigação e busca da verdade” (LIMA, 2019, p. 433), a interceptação telefônica pode ser decretada mesmo que a justificativa esteja embasada em uma denúncia anônima. É entendimento do STF que “Notícias anônimas de crime, desde que verificada a sua credibilidade por apurações preliminares, podem servir de base válida à investigação e à persecução criminal”(HC 106152, Relator(a): Min. ROSA WEBER, Primeira Turma, julgado em 29/03/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-106 DIVULG 23-05-2016 PUBLIC 24-05-2016). Contudo, é uma “última medida”, sendo exigida comprovação de que houve o esgotamento da obtenção de provas por outros meios. Pelo Pacote Anticrime, propõe-se a inserção do artigo 9-A à supracitada lei, sob a seguinte redação: Art. 9.-A – A interceptação de comunicações em sistemas de informática e telemática poderá ocorrer por qualquer meio tecnológico disponível, desde que assegurada a integridade da diligência, e poderá incluir a apreensão do conteúdo de mensagens e arquivos eletrônicos já armazenado caixas postais eletrônicas. Assim, apesar de a interceptação telefônica não violar num primeiro momento nenhum preceito constitucional é necessário que seja feito um balanço em relação à sua aplicação concreta, visto que linha entre a segurança garantida por esse mecanismo e a violação de direitos e liberdades individuais é muito tênue. Deste modo, mostra-se necessária a implementação e elaboração de limites para sua atuação, de maneira a evitar abusividades e arbitrariedades por parte do poder estatal. 236 Cabe ainda ressaltar que o Direito penal existe em prol da defesa da sociedade, e não como um mecanismo de controle e submissão Estatal. Destarte, é necessária uma análise criteriosa a respeito das evidências coletadas pelos meios de comunicação a fim de atestar sua credibilidade e evitar uma aplicação infundada e irrestrita de uma lei voltada a interesses puramente punitivos. Por outras palavras, faz-se necessária uma análise aprofundada de como se daria a aplicação material dessa nova medida, dada a fragilidade das evidências digitais, antes de colocá-la em prática (RIOS, 2019). Por fim, deve-se atentar ao termo “qualquer meio tecnológico disponível”. Por mais que seja uma ideia inovadora, poderá trazer determinada insegurança jurídica, já que qualquer meio poderá ser utilizado para realizar a interceptação tecnológica, por exemplo. Grifa-se que hoje em dia há um método regulamentado em prática, sendo necessária a autorização judicial para se iniciar a interceptação. Quando há a inserção de “qualquer meio tecnológico disponível”, poderá haver a tentativa de burlar a autorização judicial e poderá ocorrer, posteriormente, a análise dúbia da licitude daquela prova coletada. Não se pode esquecer que é necessário trabalhar o ordenamento jurídico para garantir a segurança jurídica, não o oposto. 2. ALTERAÇÕES RELACIONADAS À INTERCEPTAÇÃO TELEMÁTICA A proposta de Interceptação Telemática presente no rol de medidas apresentadas pelo ‘Pacote Anticrime’ reflete não só a urgência da renovação e aprimoramento dos mecanismos jurídicos em vigor, principalmente no que diz respeito ao Processo Penal, mas também a falta de disposição dos legisladores em, de fato, reformular um código processual já ultrapassado e ineficaz. Deste modo, tem-se um sistema cada vez mais voltado para o autoritarismo e conservadorismo, ao invés da inovação e correspondência com a realidade, como bem se percebe pela proposta de adição do artigo 9-A na Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, que estabelece a interceptação das comunicações telemáticas por qualquer meio tecnológico disponível, ameaçando assim pressupostos Constitucionais há muito sedimentados. Tal alteração justifica-se pelas frequentes inovações tecnológicas que demandam uma inovação no sistema de investigação criminal, colocando, assim, em xeque o paradigma da segurança versus a privacidade. Entretanto, já se provou que o excesso de informação nas mãos do Estado pode ser prejudicial à coletividade, sendo necessária a implementação de limites sobre esse pretendido controle informacional que a adição do artigo supracitado pretende 237 implementar. Cabe, ainda, ressaltar que na atualidade informação é poder, sendo sua importância, em escala de segurança global, equiparada à bélica. Destarte, é equivocado e irresponsável dar ao Estado o poder de utilizar e intervir sem limites sobre o sistema informático, mesmo que visando assegurar o bem comum, já que os meios de prova e documentos digitais carregam em si uma enorme fragilidade, podendo ser corrompidos ou destruídos ao serem manuseados com imperícia ou irresponsabilidade. Assim sendo, é necessário que o legislador imponha limites a utilização dos meios eletrônicos por parte do Estado ao averiguar e fazer matéria probatória, evitando assim, corrupções e abusos de autoridade sob o pretexto da busca pela “verdade real”. Deve-se sempre ter em mente que os direitos e garantias individuais estão acima de prerrogativas de investigação por parte do Estado que por vezes se dão de forma abusiva. 3. OS BANCOS INFORMATIVOS NACIONAIS NO PROJETO “ANTICRIME”: DO CADASTRO BALÍSTICO E DO ALARGAMENTO DA IDENTIFICAÇÃO GENÉTICA Dentre as alterações propostas pelo “pacote anticrime”, nota-se o interesse de aprimorar o banco de dados informativos de modo a, em tese, dar maior efetividade à investigação criminal. Tais alterações referem-se à criação de um cadastro balístico e ao alargamento das identificações genéticas. O projeto objetiva, pela alteração do Estatuto do Desarmamento, criar o chamado “Banco Nacional de Perfis Balísticos” (Lei 10.823/2003, art.34-A). Tal medida pretende, nos termos do parágrafo primeiro da supracitada lei, “cadastrar armas de fogo e armazenar características de classe e individualizadoras de projéteis e de estojos de munição deflagrados por arma de fogo” a fim de auxiliar as apurações criminais nacionais, sendo seus dados sigilosos e vedada a comercialização destes dados. Com a mudança, o artigo ficará com a seguinte redação: Art. 34-A. Os dados relacionados à coleta de registros balísticos deverão ser armazenados em Banco Nacional de Perfis Balísticos gerenciados por unidade oficial de perícia criminal. § 1º O Banco Nacional de Perfis Balísticos tem como objetivo cadastrar armas de fogo, armazenando características de classe e individualizadoras de projéteis e de estojos de munição deflagrados por arma de fogo. § 2º O Banco Nacional de Perfis Balísticos será constituído pelos registros de elementos de munição deflagrados por armas de fogo relacionados a crimes, para subsidiar ações destinadas à apuração criminal federal, estaduais ou distrital. § 3º O Banco Nacional de Perfis Balísticos será gerido nas unidades de perícia oficial da União, estaduais e distrital. 238 § 4º Os dados constantes do Banco Nacional de Perfis Balísticos terão caráter sigiloso, respondendo civil, penal e administrativamente aquele que permitir ou promover sua utilização para fins diversos dos previstos nesta Lei ou em decisão judicial. § 5º É vedada a comercialização, total ou parcial, da base de dados do Banco Nacional de Perfis Balísticos. § 6º A formação, a gestão e o acesso ao Banco Nacional de Perfis Balísticos serão objeto de regulamento do Poder Executivo Federal. (NR) É seguro dizer que, a princípio, o texto apresentado acima não apresenta impedimentos constitucionais ou convencionais, podendo inclusive, facilitar a investigação criminal. No entanto, é importante ressaltar a importância de uma fiscalização e acompanhamento do banco de dados, tendo em vista sua natureza penal. Se a alteração for aplicada de forma a dar espaço para o surgimento de qualquer vício informativo ou com desvio de finalidade, tal medida só servirá para confundir e reforçar um sistema já deficiente que já não dá conta do que lhe é demandado. Portanto, o dilema e receio a respeito criação do cadastro balístico não se apóia em questões jurídicas apenas, mas em questões operativas, ou seja, de aplicação material dessa medida. Assim, é necessária máxima cautela para não corromper o banco de dados criado, sendo necessário agir tanto com perícia quanto com prudência. Portanto, a fim de evitar que esta alteração torne-se mais uma legislação simbólica, sem possibilidade de aplicabilidade prática, ou cuja aplicação seja abusiva e desregulada, é necessário que, além de inovar no campo normativo, o “pacote anticrime” exponha e regule como se dará seu funcionamento materialmente, de forma a descrever seu plano de execução. A partir da demonstração das medidas executivas programadas, bem como custeio e fonte de recursos, a criação de um banco de dados balísticos seria de fato um enorme avanço no âmbito da investigação criminal. De outro lado, o Banco Nacional de Perfil Genético é um instituto que já existe, mas que o “projeto anticrime” pretende alargar a partir da alteração do Art. 9-A da Lei de Execução Penal. Inicialmente, convém registrar que referido artigo foi introduzido pela Lei nº 12.654/12, que versa sobre a identificação do perfil genético, mediante extração de DNA obrigatória, em duas situações: na identificação criminal (art. 5º, LVIII, CF) e na execução penal por crimes violentos ou crimes hediondos. Ocorre que supracitada norma está sendo questionada no Supremo Tribunal Federal (RE nº 973837), ante a possível inconstitucionalidade do artigo 9º-A. 239 O projeto Anticrime altera o caput do artigo 9-A para que “os condenados por crimes praticados com dolo, mesmo antes do trânsito em julgado da decisão condenatória” sejam obrigatoriamente submetidos à extração de DNA para identificação do perfil genético. Ou seja, pretende identificar pessoas que ainda são presumidamente inocentes, o que viola o artigo 5º, LVII, da CF, segundo o qual “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. Sendo assim, a sentença condenatória de primeiro grau, passível de recurso, seria exigida para permitir a extração de dados para compor o banco de perfil genético. Cabe ainda destacar que a redação original o artigo 9-A da LEP refere-se à extração genética de pessoas condenadas por crimes praticados dolosamente com violência grave contra a pessoa. Nos conformes pretendidos pela alteração a este artigo, qualquer pessoa que tenha cometido dolosamente um crime estaria sujeita à extração compulsória de DNA. Além das mudanças acima, também se propõe a adição dos parágrafos 3º e 4º ao artigo em discussão, nos seguintes termos: a. §3º - O condenado por crime doloso que não foi submetido à identificação do perfil genético ao ingressar no estabelecimento prisional pode ser submetido ao procedimento durante o cumprimento da pena. Desta forma cria-se, por um lado, a possibilidade de identificação genética tanto em face das penas privativas de liberdade quanto das restritivas de direito e de multa e, por outro, valida a retroatividade da extração compulsória de DNA. b. §4º - Constitui falta grave se o condenado se recusar a se submeter a identificação. Com isso, o procedimento passa a ser a regra ao invés da exceção, constituindo uma espécie de abuso de autoridade perante a figura do preso, que fica vinculado, independentemente de seu crime, a um sistema que usará dessa informação vinculativa de sua imagem da forma como desejar. A extração material genético pode ocorrer para informar ou provar algo durante investigação em determinado caso concreto, ou para compor o banco nacional de perfil genético para a utilização futura em casos penais, de forma que vincula o sujeito investigado de forma definitiva, sendo bastante questionável à luz da garantia de não autoincriminação prevista no artigo 5º, LXIII, CF. Portanto, os condenados são obrigados a terem seus corpos “invadidos” mesmo não tendo sido de fato tidos como culpados, sendo seus dados guardados em definitivo para uma hipótese penal futura, que talvez nem se concretize. Sendo assim, não se respeita o devido processo legal ou os direitos constitucionais do réu. 240 É seguro afirmar que tais alterações assentam-se numa máxima do direito penal estritamente punitivista, que vê na figura do condenado um inimigo do Estado que deve ser punido, de modo a compor um banco de dados, irrestrito e sem limites, de pessoas que são tidas como “perigosas” a ordem social. De fato são necessárias novas técnicas e melhorias nas técnicas de investigação criminal desde que tais inovações atendam e não excedam aos limites constitucionais fundamentais. O que se pretende aqui é um alargamento sem limites do banco criminal genético. O que está em discussão é a ampliação irrestrita de um mecanismo de investigação que ainda nem tem consenso no STF, visto que a constitucionalidade do Banco Nacional de Perfil Genético para condenados criminais é questionável. Sendo assim, é de bom senso afastar a discussão sobre sua ampliação até que a questão originária sobre a constitucionalidade da própria existência do órgão seja apaziguada. 4. CAUSA DE AUMENTO DE PENA NA LEI Nº 10.826/2003 A Lei 10.826/2003 dispõe sobre o manuseio de armas de fogo e define crimes nos artigos 14 (porte ilegal de arma de fogo de uso permitido), 15 (disparo de arma de fogo), 16 (porte de arma de fogo), 17 (comércio ilegal de arma de fogo) e 18 (tráfico internacional de arma de fogo). O anteprojeto anticrime elaborado pelo ministro Sérgio Moro visa alterar o artigo 20 desta norma, que versa sobre o aumento para os crimes dos citados nos artigos 14, 15, 16, 17 e 18. Atualmente o artigo 20 encontra-se com a seguinte redação: “Nos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6o, 7o e 8o desta Lei.” Com a mudança, a redação ficará da seguinte forma: Art. 9. - Nos crimes previstos nos arts. 14, 15, 16, 17 e 18, a pena é aumentada da metade se: I – forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6º, 7º e 8º desta Lei; ou II – o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado. Antes do ano de 1977 os delitos que envolviam porte de armas de fogo eram apenas contravenções penais, e somente a partir deste ano, as penas para esses crimes foram aumentadas. Uma breve análise do cenário brasileiro atual revela que o aumento das penas para os delitos envolvendo porte de armas de fogo não fez com que esses diminuíssem. Portanto, é 241 perceptível que o incremento de sanções penais não é o melhor meio de solucionar tal problema criminal. 5. MUDANÇA NO ESTATUTO DO DESARMAMENTO (Lei nº 10.826/2003) PARA INSERÇÃO DE AGENTE ENCOBERTO De acordo com a Constituição Federal Brasileira, o Estado possui poder privativo de punição, repressão e utilização da força para resguardo do ordenamento jurídico e da defesa social. De forma excepcional, a Lei Nº 10.826/2003 outorgou uma parcela deste uso da força, para fins defensivos, a civis, manifestada na permissão de porte de arma de fogo em alguns casos. A lei supracitada restringe o ato civil de compra, venda e manuseio de uma arma de fogo. Assim, considerando que a Carta de 1988 possui a máxima de proteção à vida, colocandoa como bem jurídico de maior grau de relevância, a regulação de armamentos se faz imperativa. Para tanto, o comércio irregular de armas é tipificado como conduta criminosa, prevendo pena de 4 (quatro) a 8 (oitos) anos de reclusão e multa. A proposta do Projeto Anticrime propõe alteração no artigo referente à tipificação da referida conduta criminosa, incluindo a figura do agente encoberto, com a seguinte redação: “Incorre na mesma pena quem vende ou entrega arma de fogo, acessório ou munição, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente”. A partir desta alteração, o indivíduo que comercializar de forma ilegal armas para agente policial encoberto, estará sujeito à pena de 4 (quatro) a 8 (oitos) anos de reclusão e multa, caso haja elementos suficientes para a suspeita de conduta criminal prévia do agente. O Ministro Sérgio Moro, em vista dessa alteração, confronta certos entendimentos majoritários na doutrina e na jurisprudência que consideram o flagrante preparado como crime impossível não suscetível de punibilidade. Inicialmente, convém destacar o enunciado da Súmula 145 do STF, segundo o qual não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação. Flagrante preparado ou crime de ensaio é aquele em que o agente da conduta criminosa é provocado/instigado a praticar a infração penal por agente policial encoberto que, concomitantemente, se assegura de todas as providências para prendê-lo em flagrante delito. 242 Em outras palavras, nunca existiu a possibilidade de se consumar o delito, a partir das circunstâncias envolvidas. O crime impossível é caracterizado quando os atos executórios são iniciados pelo agente, entretanto, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, o crime não pode ser consumado e, assim, não poderá ser punido por ausência de tipicidade. Feitos tais esclarecimentos, tem-se que o fato de um agente encoberto surpreender o agente com arma de fogo caracteriza flagrante preparado e, portanto, crime impossível. Outro problema na alteração proposta está na amplitude semântica presente no trecho “quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente”, que afronta o princípio da inocência, uma vez que não apresenta critérios para possibilitar o estabelecimento dos elementos razoáveis que confirmem conduta criminal preexistente. Tratase de uma frase que apresenta perigo no que tange à ação parcial da polícia e em desacordo com a lei, visto o grau de dificuldade que o Estado possui de controlar a atividade policial. A polícia é uma instituição estabelecida e outorgada de poderes e, devido ao Estado Democrático, todas as suas atividades devem ser relatadas de acordo com a noção de accountability, visto que dispõe do uso da força contra os particulares. Existem diversas formas de controle desta atividade. O Brasil conta com controle interno, como a Corregedoria de Polícia; e externo, exercida pelo Ministério Público, além de alternativas sociais de controle como observatórios, ações da sociedade civil, vias tecnológicas para denúncia da violência policial. Nesse sentido, as formas de controle da atividade policial individualizada ocorrem apenas posteriormente ao ato, dada a impossibilidade de prever, antecipadamente, todas as possibilidades de agir policial. A única forma de controle prévio desta atividade está na lei e nos atos administrativos que elencam quais atos podem ser considerados admissíveis e, principalmente, quais atos estão vedados, ou seja, durante e após atividade policial o único representante do Estado presente é o próprio policial. Nesse sentido, a atuação policial no Brasil não é controlada de forma eficaz, resultando na possibilidade de agentes policiais agirem de forma arbitrária e ilegal durante a sua atividade, visto que são as únicas testemunhas contra o agente ou suposto agente criminoso, sendo sua atividade passível de descrição arbitrária e falaciosa, uma vez que o relatório sobre esta é realizado também por quem a pratica. 243 Por conseguinte, a alteração proposta está em desacordo com princípios constitucionais como o da presunção de inocência e com a doutrina e a jurisprudência que afirma flagrante preparado como crime impossível. 6. MUDANÇA NA LEI Nº 9.613/98 (CRIMES DE LAVAGEM) PARA INSERÇÃO DE AGENTE ENCOBERTO A Lei 9.613/98 dispõe sobre os crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; a prevenção da utilização do sistema financeiro para os ilícitos previstos nesta Lei; cria o Conselho de Controle de Atividades Financeiras - COAF, e dá outras providências. Com o anteprojeto anticrime do atual ministro da justiça Sérgio Moro, é acrescentado, no artigo 1º da mencionada norma, um sexto parágrafo, tratando da criação do agente encoberto. Vejamos: (...) § 6º Não exclui o crime a participação, em qualquer fase da atividade criminal de lavagem, de agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal pré-existente. A figura do agente encoberto não se confunde com a do agente infiltrado, esta prevista na Lei 12.850/13. O primeiro tem atuação pontual, apenas para um evento e fora da atuação de organizações criminosas. Já o agente infiltrado se faz passar por membro de uma organização criminosa para observar as atividades desta e coletar provas. A alteração pretendida visa afastar a categorização dos atos de eventual acusado como crime impossível por obra do agente provocador e, consequentemente, impedir que os atos do agente sejam enquadrados como flagrante preparado. Ocorre que a figura do agente encoberto não aparenta solucionar os problemas do Direito Penal. Pelo contrário, cria problemas aparentemente insolúveis. Não há a necessidade de criação de nova regulamentação legal que, ao invés de dar segurança jurídica, cria mais problemas à sua execução. 7. MUDANÇA NA LEI DE DROGAS PARA INSERÇÃO DE AGENTE ENCOBERTO A alteração na lei de drogas, nos termos propostos pelo Ministro Sérgio Moro, insere a figura do agente encoberto no §1º do art. 33 da Lei º 11.343/06. Vejamos: Art. 33. (...) § 1º (...) IV - vende ou entrega drogas ou matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas, sem autorização ou em desacordo com a determinação legal ou regulamentar, a agente policial disfarçado, quando presentes elementos probatórios razoáveis de conduta criminal preexistente. (...) 244 De pronto, observa-se que o teor do inciso IV do referido dispositivo legal infringe a legalidade penal em dois sentidos: aceita elemento probatório preexistente, admitindo situação fática anterior aos fatos que, propriamente, constituiriam o típico, sem a menor especificação de a qual nível seriam admitidos tais elementos; e legitima situação expressamente proibida pelo Código Penal e processual penal vigentes, tal seja, o flagrante provocado, que configura situação de crime impossível. É nítida a proposta de legalizar o flagrante preparado pela polícia “descaracterizada”. Conforme dispõe o artigo 17 do Código Penal, “não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime”. Ademais, prevê a Súmula nº 145, do STF: “não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. Ora, não há como saber se o delito de tráfico realmente se consumaria sem a incidência do flagrante provocado, pois antes de se tornar perfeita a venda, surge a voz de prisão. Nesse sentido, convém citar a precisa doutrina de Aury Lopes Jr: O flagrante provocado também é ilegal e ocorre quando existe uma indução, um estímulo para que o agente cometa um delito exatamente para ser preso. Trata-se daquilo que o Direito Penal chama de delito putativo por obra do agente provocador. BITENCOURT explica que isso não passa de uma cilada, uma encenação teatral, em que o agente é impelido à prática de um delito por um agente provocador, normalmente um policial ou alguém a seu serviço. É o clássico exemplo do policial que, se fazendo passar por usuário, induz alguém a vender-lhe a substância entorpecente para, a partir do resultado desse estímulo, realizar uma prisão em flagrante (que será ilegal). É uma provocação meticulosamente engendrada para fazer nascer em alguém a intenção, viciada, de praticar um delito, com o fim de prendê-lo. (LOPES JR., AURY, Direito Processual Penal 11ª Edição 2014, p. 872) Da mesma forma já entendeu o Supremo Tribunal Federal: Quanto à segunda alegação, em que requer seja reconhecido o flagrante preparado, tenho para mim ser de todo irreparável a decisão proferida pelo STJ que assentou: "o fato de os policiais condutores do flagrante terem se passado por consumidores de droga, como forma de possibilitar a negociação da substância entorpecente com o ora paciente e demais corréus, não provocou ou induziu os acusados ao cometimento do delito previsto no art. 33 da Lei 11.343/2006, sobretudo porque o tipo do crime de tráfico é de ação múltipla, admitindo a fungibilidade entre os seus núcleos, consumando-se, apenas, com a guarda da substância entorpecente com o propósito de venda, conforme restou evidenciado na espécie". [HC 105.929, rel. min. Gilmar Mendes, 2ª T, j. 24-5-2011, DJE 107 de 6-6-2011.] A proposta de se inserir o “policial disfarçado” coincide, portanto, com a figura da provocação do flagrante e com a produção de prova ilícita, máxime quando se fala na venda de 245 drogas ao próprio agente (que não espera o delito, mas participa da cena, adquirindo a substância entorpecente). Em suma, com o indivíduo que se vê preso devido a prova ilícita decorrente da provocação, somado ao elemento “probatório” anterior “razoável” – expressamente subjetivo e não esclarecido –, tem-se uma sucessão de atos arbitrários e incertos que levarão à privação da liberdade dos indivíduos, em total discordância com os princípios fundantes do Direito Criminal e com o disposto pela lei processual penal. Mais do que ilegal, ainda, de rigor reconhecer a inconstitucionalidade da proposta e sua clara desconformidade com o que é defendido pelo Estado Democrático de Direito e ordem jurídica vigente, violando diversos pilares fundamentais para a estruturação de uma segurança jurídica consolidada, que não abre margem a exceções por demais leis complementares, uma vez postas como cláusulas pétreas pelo poder constituinte originário. A privação da liberdade, da forma como disciplinada, além de manifestamente contrária à ordem jurídica nacional e aos direitos fundamentais assegurados pela Constituição Federal, é ineficiente, pois por meio dela não se busca, de forma rigorosamente pensada e fundamentada, dirimir as situações de tráfico e trabalhar para que todo o contexto socioeconômico estrutural que norteia tais práticas seja modificado. Ao contrário, a alteração proposta, de maneira claramente populista e oportunista, objetiva mostrar à população a falsa eficiência das polícias em guerrear contra o crime tipificado no artigo 33 da Lei nº 11.343/06 pelo trabalho assíduo dos agentes públicos em enfrentar, arbitrariamente, diversas situações forjadas. Por fim, cabe consignar que, caso houvesse alguma brecha para diferente interpretação, por exemplo a de que se trataria de flagrante esperado, a mudança seria, incontestavelmente, dispensável, uma vez que tal espécie de flagrante é sempre lícita no Direito processual penal brasileiro, não sendo necessária, mais uma vez, sua regulação. Além disso, no Direito Brasileiro a lei não é prolixa, sempre explicando matéria nova, ainda que não seja o entendimento primário a ser notado (ainda que não seja este o caso). Assim, verifica-se que os argumentos mais robustos apontam para a clara ilegalidade e inconstitucionalidade do artigo, que possui o intuito de legitimar o flagrante provocado. 8. ALTERAÇÔES NA LEI 12.850/13 (ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS) O pacote anticrime apresenta-se como um mecanismo de diminuição da violência e, dentre suas propostas, está a alteração na redação do parágrafo primeiro da Lei de Crime 246 Organizado (Lei.12.850/13), de modo a incluir uma extensão na definição original de organização criminosa. Devido ao fato de o Direito Penal ser projetado para ter sua aplicação em última instância na sociedade, seus limites devem ser muito bem estabelecidos e obedecidos. Tais limites aparecem em forma de princípios, sendo um dos mais importantes o Princípio da Legalidade, que converge para a regulação de diversos pontos do direito penal, como a proibição de analogias com outras áreas do direito quando for prejudicial ao réu, proibição do direito baseado em costumes, proibição de retroatividade, ou seja, proibição da punição de uma conduta que não era a seu tempo criminalizada, e, por fim, a mais importante dentro da matéria estudada, a exigência de taxatividade. O Princípio da Legalidade pressupõe taxatividade, ou seja, a lei deve ser precisa, pois do contrário ela não terá a capacidade necessária para proteger os cidadãos de atitudes arbitrárias por parte do Estado, fim máximo do supracitado princípio. Do princípio da taxatividade, inerente ao princípio da legalidade, decorre a proibição da aplicação de leis indeterminadas. A função do juiz é a de interpretar fielmente a lei, de modo que esta não pode carregar vícios, lacunas ou ambiguidades em sua redação, devendo ser assim precisa e, em seu texto, apresentar conduta determinada. A função punitiva do Estado demanda que as condutas tipificadas na lei penal sejam o mais precisas possível de modo a evitar más interpretações ou confusões no momento de sua aplicação, passando de um aparato de defesa social a um mecanismo de opressão indiscriminada das massas. É fato que por mais preciso que seja o tipo penal, sempre vai dar espaço para interpretações, de modo que o princípio da taxatividade jamais terá realização total (MARCHI JUNIOR, 2016, p.46) e é justamente contra essa possibilidade que este mesmo princípio atua, visto que visa limitar o poder do Estado e, consequentemente, evitar o arbítrio. Nos Estados que adotam o princípio da Legalidade de forma constitucional, as imprecisões legislativas devem ser vistas como inconstitucionais. Deste modo, o conceito descritivo da lei pode comportar interpretação, mas é vedado que a norma contenha conceitos valorativos que permitam ao juiz estabelecer condutas criminalizadoras em sentido não abarcado pelo legislador. A norma incriminadora será precisa quando, a partir de sua leitura, for possível identificar o bem jurídico que se pretende tutelar. Assim, os delitos devem ser predeterminados de maneira taxativa no ordenamento jurídico para 247 serem passíveis de aplicabilidade nos conformes constitucionais, sem risco de abusividade ou arbítrio do poder Estatal. Feitos tais esclarecimentos, em relação ao conceito de Organização Criminosa em vigor no ordenamento jurídico brasileiro, tem-se disposto no §1º do artigo 1º da Lei nº 12.850/2013 que esta seria “a associação de quatro ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com o objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos, ou que sejam de caráter transnacional”. Importante salientar que a redação do dispositivo supracitado teve como base a definição encontrada na Convenção de Palermo, distinguindo-se, contudo, quanto ao número de agentes, quanto ao rigor ao caráter estrutural por meio da exigibilidade de divisão de tarefas, quanto à possibilidade de qualquer tipo de vantagem como fim. A novidade trazida pelo pacote Anticrime quanto a essa definição é a adição daquelas que deveriam ser consideradas Organizações Criminosas, exemplificando grupos conhecidos no inciso III da nova redação: III - se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, tais como: a) o Primeiro Comando da Capital; b) o Comando Vermelho; c) a Família do Norte; d) o Terceiro Comando Puro; e) o Amigo dos Amigos; e f) as milícias ou outras associações como localmente denominadas. Dessa redação, insta evidenciar algumas questões de cunho formal e relacionadas ao seu efeito prático. Em primeiro lugar, segundo Fernando Capez, a lei penal é regra escrita feita pelo legislador com a finalidade de tornar expresso o comportamento considerado indesejável e perigoso pela coletividade. Uma de suas características é a generalidade, devendo elas serem impessoais e se dirigirem indistintamente a todos. Por conseguinte, não é possível conceber a elaboração de uma norma para punir especificamente uma pessoa. Interpretando-se de maneira extensiva, não cumpre às normas penais a tarefa de punir especificamente um grupo restrito de indivíduos. Sendo assim, ao enumerar grupos, ainda que exemplificativamente, estaríamos diante de uma extrapolação do poder legiferante associado às normas penais. 248 Já em relação aos efeitos práticos da nova redação do artigo 1º da lei, tem-se que a mudança não traria, de fato, inovações quanto ao conceito de Organização Criminosa, uma vez que os grupos pertencentes à “nova conceituação” já seriam outrora contemplados naquela atualmente em vigor. A alteração proposta apenas evidencia que, atualmente, não há um consenso a respeito da definição de organização criminosa, visto que há diversas interpretações associadas a tal conceito. A necessidade de a nova redação citar exemplos concretos no tipo penal, a fim de dar maior clareza quanto à definição do que seria uma organização criminosa, revela que sua tipificação não é consistente e taxativa, tratando-se de um conceito ambíguo e duvidoso. A conceituação, pois, fica aberta à interpretação e ao critério do Magistrado, o que é inconstitucional, violando os princípios de um Estado Democrático de Direito. Outra mudança proposta diz respeito ao caput do artigo 3º e trata da ampliação dos meios de prova. Observa-se, porém, que não se tratam de modificações significativas. O mero acréscimo das expressões “qualquer fase da investigação” e “infrações penais praticadas por organizações criminosas, de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de infrações penais conexas” não traz resultado diverso daquele já existente na atual versão da norma jurídica. A terceira modificação proposta refere-se à inclusão do artigo 3-A no diploma legal. Vejamos: Art. 3-A: O Ministério Público Federal e a Polícia Federal poderão firmar acordos ou convênios com congêneres estrangeiros para constituir equipes conjuntas de investigação Para a apuração de crimes de terrorismo. crimes transnacionais ou crimes cometidos por organizações criminosas internacionais. §1º Respeitadas as suas atribuições e competências, outros órgãos federais e entes públicos estaduais poderão compor as equipes conjuntas de investigação. §2º O compartilhamento ou a transferência de provas no âmbito das equipes conjuntas de investigação devidamente constituídas dispensam formalização ou autenticação especiais sendo exigida apenas a demonstração da cadeia de custódia. §3º Para a constituição de equipes conjuntas de investigação, não se exige a previsão em tratados. §4º A constituição e o funcionamento das equipes conjuntas de investigação serão regulamentadas por meio de decreto. Da análise do texto, é possível observar questões problemáticas em relação à celebração de “acordos ou convênios com congêneres estrangeiros”, além da fragilidade de recepção das provas de uma investigação feita no exterior. A escolha do termo “congêneres estrangeiros” revela-se obscura, uma vez que não especificou quais seriam os órgãos aptos a firmar acordos junto às instituições brasileiras. 249 Mais preocupante é a dispensa de formalização ou autenticação de provas compartilhadas nesses convênios. Uma vez que a Carta Republicana não admite no processo judicial provas obtidas por meios ilícitos - vide artigo 5º, LVI, CF - a redação do novo dispositivo aclara as possíveis contradições entre os ordenamentos jurídicos local e estrangeiro referentes à produção de provas. Desse modo, na hipótese de uma prova obtida por repartição estrangeira de maneira lícita ser contrária à previsão legal nacional, pode ela permanecer a gerar efeitos dentro do processo? Assim, tem-se que a redação do novo artigo, da maneira como se encontra, resultaria em grande insegurança jurídica ao ordenamento, assim como em possível cerceamento de defesa do réu e descumprimento de garantia constitucional. A última alteração da Lei das Organizações Criminosas versa acerca da busca em regulamentar as escutas ambientais. O artigo 21-A elenca as hipóteses de admissibilidade da escuta ambiental e seus requisitos, enquanto o artigo 21-B tipifica a realização ilegal de captação ambiental sem autorização judicial. A principal problemática aqui apontada relaciona-se ao primeiro dispositivo, especificamente quanto ao questionamento do que viriam a ser os elementos razoáveis de prova de autoria, conforme disposto no inciso II do artigo 21-A. Mais uma vez, a escolha de um termo vem trazer insegurança jurídica. Isso se dá, nesse caso, em razão deste termo possuir múltiplos significados. 250 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Artigos 7.5 e 8.1 da Convenção Americana dos Direitos Humanos (Pacto de São José da [1] Costa Rica, 22 de novembro de 1969) através do Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Projeto de Lei nº 10.968/2018 (PT-ES); Projeto de Lei nº 4.850/2016; e Projeto de Lei nº [2] 396/2019 (PPS-PR). RIOS, Lucas; NEVES, Luiz Gabriel; ASSUMPÇÃO Vinícius. Estudos temáticos sobre o “Pacote Anticrime”: 1. ed. São Paulo: Editora Tirant lo Blanch, 2019 GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel. Bases da reforma processual penal no Brasil: lições a partir da experiência na América Latina. In GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel (ed.), Desafiando a inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil (P. 15-35). Santiago: Centro de Estudios de Justicia de las Américas/CEJA, 2017. GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. 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Depois, o estudo apresenta quais seriam os objetivos declarados e não declarados com a introdução da medida, seguidos pelas consequências possíveis e previsíveis de sua aprovação, nos termos em que proposta. Na sequência, o estudo cuida de aferir da conformidade constitucional da medida XIX, mais detidamente de um de seus dispositivos, que tem levantado polêmicas entre os críticos. E a última parte se reserva à palavra final do estudo sobre a introdução do instituto no Brasil. Metodologia A metodologia adotada correspondeu a divisões de pesquisa bibliográfica entre um grupo de 7 (sete) integrantes, que encontraram-se em duas reuniões gerais para análise e reunião do material previamente produzido. A pesquisa bibliográfica consistiu na delimitação de temas subdivididos em tópicos a serem preliminarmente produzidos por cada e respectivo integrante. De forma introdutória, fez-se necessário o estudo formal da legislação objeto da pesquisa, bem como de suas possíveis futuras alterações ou complementações. Desse modo, buscou-se o aprofundamento teórico de questões cerne da problemática selecionada; isto é, uma contraproposta – que, a princípio, poderia resultar da pesquisa a negativa - ao Projeto de Lei nº 882/2019. Através de reiteradas orientações, o escopo do trabalho foi concluído e submetido a análise para posterior compilação e revisão, bem como complementações acadêmicas necessárias. 253 A análise proposta pelo artigo partiu de uma perspectiva crítica das bases do Direito e da conjuntura jurídica na qual o presente trabalho se insere. Desse modo, a perspectiva histórica de inserção da respectiva lei no ordenamento jurídico brasileiro fez-se imperativa para que se fizesse possível a proposição de possíveis alternativas ao cenário em questão. Assim, a revisão e redação realizadas nos tópicos pré formulados consistiu em adequação bibliográfica e mudanças organizacionais, com o objetivo de facilitar a coesão textual. 1. O que diz a medida XIX? A medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019 proposto pelo Governo Federal visa à introdução no ordenamento jurídico brasileiro do whistleblower ou - também assim designado pelo projeto - “informante do bem”, por meio de alterações na Lei 13.608/2018. Por whistleblowing, compreende-se o reporte voluntário e de boa-fé acerca de condutas ilícitas ou antiéticas ocorridas em organizações, públicas ou privadas, por terceiro que não tenha nelas se envolvido1. Whistleblower, portanto, corresponde a este terceiro, o informante que leva ao conhecimento da autoridade o relato de indícios da ocorrência de infração contra interesse público, sob garantia de sua não retaliação, de anonimato e, se da apuração do fato resultar recuperação de ativos aos cofres públicos, de recompensa consistente no recebimento de uma porcentagem do valor recuperado2-3. O debate sobre a adoção codificada de programas de whistleblower no Brasil não é de hoje. Em razão de sua difundida efetividade prática nos ordenamentos jurídicos que o preveem e do exitoso reconhecimento de que o tema goza na comunidade jurídica internacional, no início 1 Cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem" (whistleblower) no projeto "anticrime" do governo. Revista Consultor Jurídico (Revista Eletrônica), de 12 de fevereiro 2019, que destaca ser justamente o não envolvimento daquele que reporta as práticas ilícitas às autoridades o principal ponto de distinção entre os institutos do whistleblowing e da colaboração premiada. 2 Cf. BELTRAME, Priscila Akemi; SAHIONE, Yuri. “Informante do bem” ou whistleblower: críticas e necessários ajustes ao projeto. São Paulo: Boletim 317, IBCCRIM, abril/2019, p. 01. 3 Janet Near e Marcia Miceli definem o whistleblower com base em quatro características. Ele deve: a) deter posição privilegiada de acesso a dados e informações; b) não possuir obrigação legal de relatar e fazê-lo voluntariamente, porque o dever retiraria a autonomia da vontade do informante e o caráter voluntário da informação, relato ou denúncia; c) relatar a informação a uma autoridade pública competente, não podendo essa divulgação ser feita por exemplo a um veículo de imprensa ou a quaisquer outros canais que não o oficialmente estabelecido para tanto; e d) relatar um ato de interesse público que pode configurar ato de corrupção, fraude ou violação de um sistema normativo ou regulatório. Cf. NEAR, Janet P.; MICELI, Marcia P. Organizational Dissidence: The Case of Whistle-Blowing. Journal of Business Ethics, n. 4, fev. 1985. 254 de 2016, um grupo de estudos multissetorial4 coordenado pela Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) realizou uma série de investigações e discussões sobre ele para oferecer subsídios ao ENCCLA, Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro. A partir das lições deixadas pela experiência internacional e das produções teóricas a respeito do whistleblowing, destacando-o como uma das mais importantes ferramentas de combate a irregularidades em geral, e à corrupção em particular, bem como como um significativo instrumento de fomento à cidadania, à liberdade de expressão e ao direito de auxiliar do Estado, a conclusão inclinou-se por sua implementação. Isso, não sem antes salientar “as longas experiências internacionais sobre o tema e os profundos estudo existentes devem merecer a devida atenção, para que o Brasil possa adotar as melhores práticas já identificadas, em um diploma amplo, moderno e eficiente”5. Também não se olvidando que “o tema apresenta complexidades importantes, devendo ser tratado com amplitude, sob pena de os programas a serem implantados não surtirem seus desejados efeitos, trazendo sérios riscos àqueles que acorrerem em auxiliar o Estado, e postergando a eficiência do combate à corrupção e à fraude para um futuro distante”6. Além dos debates, no plano normativo, em que pese o tom inaugural do termo “introdução” no projeto de lei, os contornos do whistleblowing, mesmo que pouco definidos e com alcance restrito, já se encontravam presentes no direito brasileiro vigente. Afinal, numa perspectiva ampla, a Lei 13.608/2018, objeto de alteração da medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019, já falava em “incentivo à colaboração da população e de garantia do anonimato” (artigo 1º, inciso II); em autorização aos Estados para estabelecerem serviços de recepção de denúncias por telefone (artigo 2º); em asseguramento de sigilo de dados ao informante que se identificar (artigo 3º); e em faculdade de estabelecerem-se formas de pagamento de recompensas em contrapartida a informações úteis à prevenção, apuração e repressão de crimes 4 O estudo contou com a participação de diversas entidades, como A ação contou com a colaboração das seguintes entidades: Associação Brasileira de Inteligência, Associação Nacional dos Delegados da Policia Federal, Advocacia Geral da União, Associação dos Magistrados do Rio de Janeiro, Associação Nacional dos Procuradores da República, Conselho de Defesa Econômica, Controladoria Geral da União, Conselho da Justiça Federal, Conselho Nacional do Ministério Público, Comissão de Valores Mobiliários, Departamento de Polícia Federal, Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas, Ministério Público Federal, Ministério Publico do Estado de São Paulo, Ministério das Relações Exteriores, Receita Federal do Brasil, e Tribunal de Contas da União. Cf, ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios ao debate para a implantação de programas de whistleblower no Brasil, AJUFE, 2016, p. 02. 5 Idem, p. 58 6 Ibidem. 255 e ilícitos administrativos (artigo 4º)7. Ainda, a Lei 13.608/2018 foi responsável pelo fomento financeiro de aspectos inerentes ao whistleblowing, porquanto previu a inclusão, dentre os projetos a serem apoiados pelo Fundo Nacional de Segurança Pública, os de serviço telefônico para recebimento de denúncias, com garantia de sigilo ao usuário e premiação, em dinheiro, para informações que levem a resolução de crimes8. Todavia, embora presente o gérmen do whistleblowing, a Lei 13.608/2018 tem tímido alcance, seja porque endereçada apenas a empresas de transporte terrestre que operam sob o regime de concessão com a Administração Pública Direta ou Indireta9, seja porque o incentivo à colaboração e a garantia do anonimato deveriam realizar-se apenas por meras expressões de obrigatória visibilidade em seus veículos (ao lado do “disque denúncia”), seja porque a criação de serviços de recepção de denúncias estariam apenas autorizada (sequer seriam obrigatória). E, ainda, sem maiores delineamentos relativamente à proteção do informante ou aos parâmetros de fixação da recompensa. Nesse contexto, a medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019 busca incluir os artigos 4º-A, 4º-B e 4º-C na Lei 13.608/2018, alterações que cuidariam da ampliação de seu alcance, bem como da densificação dos contornos ainda primitivos que tem a figura do whistleblowing no direito brasileiro, dando-lhe aspecto de obrigatoriedade no setor público, robustecendo o espectro protetivo ao informante10, regulando os parâmetros de fixação da recompensa e, o que chama mais atenção, disciplinando o valor probatório do relato fornecido. Por isso é considerada a Lei 13.608/2013 como um “marco legal do whistleblowing – ainda que distantes dos padrões internacionais”, cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019. 8 É o que estabelece o artigo 5º, incisos IX e X, da Lei 13.756/2018. Existem diversos fundamentos para o ganho da recompensa em troca da informação. “O primeiro seria fomentar a mudança da cultura de silencio, incentivando-se os cidadãos a auxiliarem as autoridades no conhecimento de fatos relevantes. Certamente a premiação aceleraria esse processo, auxiliando a superação de dúvidas iniciais quanto à prática dos programas, ainda incipientes em países sem essa tradição legislativa, notadamente no que refere à proteção. Segundo seria uma finalidade meramente retributiva, pelo esforço, pelo trabalho de coleta e prestação da informação, informações estas que muito provavelmente o poder público não teria acesso, ou não a teria com a mesma prontidão. Terceiro serve como um auxilio compensatório a mais em relação a possíveis falhas das autoridades na implantação dos programas, sabendo-se de antemão que dificilmente o conjunto de superiores hierárquicos, empregadores, colegas de trabalhos, e bem assim autoridades que trabalharão junto ao whistleblower, serão capazes de garantir plenamente a incolumidade emocional, social e material do whistleblower”. Cf, ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios ao debate para a implantação de programas de whistleblower no Brasil, AJUFE, 2016, p. 54. 9 Ou seja, a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e suas autarquias e fundações, empresas públicas e sociedades de economia mista. 10 E “pode-se mesmo dizer que proteger o cidadão reportante é a razão de existir dos programas de whistleblower (...) Embora o ato de reportar fatos de interesse público represente o exercício desses direitos, a prática revela que essa nobre ação na maioria das vezes é feita com subsequentes dissabores e ônus para o cidadão”, afinal, além de sofrer os “danos mais prováveis e perceptíveis, tais como a ameaça a integridade física e moral, perda de emprego, etc., ainda assim o cidadão frequentemente incorre em danos imateriais de difícil acautelamento, tais como abalos 7 256 Se antes havia já autorização para estabelecer serviço telefônico de recepção de denúncias, o Projeto de Lei nº 882/2019 determina que os entes da Administração Pública Direta e Indireta (portanto não mais só as empresas concessionárias de transportes terrestres) manterão unidade de ouvidoria ou correição, para assegurar a qualquer pessoa o direito de relatar informações11 sobre crimes contra a administração pública, ilícitos administrativos ou quaisquer atos lesivos ao interesse público (artigo 4º-A, caput). A opção da proposta legislativa pela locução “manterão” implica a criação de unidade de ouvidoria ou correição aos que não as têm e a manutenção, com inviabilidade de extinção, aos que as têm. A anterior previsão de assegurar-se o sigilo de dados do informante que se identificasse (artigo 3º da Lei 13.608/2018) ganha corpo com as alterações do Projeto de Lei Projeto de Lei nº 882/2019 e, que traz um novo espectro de proteção ao informante12. O parágrafo único do artigo 4º-A estabelece que, se considerar-se razoável o relato prestado, ao whistleblower serão asseguradas proteção integral contra retaliações e isenção em eventual responsabilização civil ou penal por seu relato, desde que não tenha fornecido conscientemente informações ou provas falsas. Em complemento, o artigo 4º-C elenca algumas de quais seriam as possíveis ações ou omissões praticadas em retaliação ao informante e ao exercício de seu direito de relatar, como “demissão arbitrária, alteração injustificada de funções ou atribuições, imposição de sanções, de prejuízos remuneratórios ou materiais de qualquer espécie, retirada de benefícios, diretos ou indiretos, ou negativa de fornecimento de referências profissionais positivas”. E lhe garante, psicológicos, à carreira, dificuldades nos relacionamentos interpessoais, familiares e profissionais, tudo em decorrência do ato de reportar”. Cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 17. 11 Se puder falar-se num “direito de relatar”, este extrai-se da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção (Convenção de Mérida), cujos reflexos normativos aportaram no Brasil pelo Decreto nº 5.687/2006, notadamente em seu artigo 13, nº 2, que busca que o público conheça os órgãos estatais responsáveis pelo enfrentamento da corrupção e que o acesso a eles seja facilitado, e o faz nos seguintes termos: “Cada Estado Participante adotará medidas apropriadas para garantir que o público tenha conhecimento dos órgão pertinentes de luta contra a corrupção mencionados na presente Convenção, e facilitará o acesso a tais órgãos, quando proceder, para a denúncia, incluso anônima, de quaisquer incidentes que possam ser considerados constitutivos de um delito qualificado de acordo com a presente Convenção”. Nesse sentido, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência de uma legislação whistleblowing no Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio/2015 (Texto para Discussão nº 175), p. 12. 12 O direito português também prevê garantias a denunciantes de infrações, no artigo 4º da Lei 19 de 2008, alterada pela Lei 30 de 2015: “1 - Os trabalhadores da Administração Pública e de empresas do sector empresarial do Estado, assim como os trabalhadores do sector privado, que denunciem o cometimento de infrações de que tiverem conhecimento no exercício das suas funções ou por causa delas não podem, sob qualquer forma, incluindo a transferência não voluntária ou o despedimento, ser prejudicados (...) 3 - Os trabalhadores referidos nos números anteriores têm direito a: a) Anonimato, excepto para os investigadores, até à dedução de acusação; b) Transferência a seu pedido, sem faculdade de recusa, após dedução de acusação. c) Beneficiar, com as devidas adaptações, das medidas previstas na Lei n.º 93/99, de 14 de julho, que regula a aplicação de medidas para a proteção de testemunhas em processo penal, alterada pelas Leis 29/2008, de 4 de julho, e 42/2010, de 3 de setembro”. 257 ainda, as medidas previstas nos programas especiais de proteção a vítimas e a testemunhas ameaçadas, reguladas pela Lei nº 9.807/1999. Ainda densificando o espectro de proteção ao informante, os parágrafos 1º e 2º do artigo 4º-C estabelecem respectivamente hipótese punitiva e hipótese ressarcitória diante de eventuais atos de retaliação ao whistleblower. Eles configurariam, de um lado, falta grave e sujeitariam o autor da retaliação à demissão a bem do serviço público; e ensejariam, de outro lado, ressarcimento em dobro ao informante por eventuais danos materiais sofridos, sem prejuízo de compensação por danos morais. Para além da proteção, o Projeto de Lei nº 882/2019 também cuida da recompensa13, dando-lhe aspectos mais bem definidos. Se pelo direito vigente ela correspondia a uma mera possibilidade aos entes da Administração Pública Direita em contrapartida a informações úteis à prevenção, repressão ou apuração/elucidação de crimes ou ilícitos administrativos (artigos 4º, da Lei 13.608/2018, e 5º, inciso X, da Lei 13.756/2018), de acordo com o parágrafo 3º, do artigo 4º-C, a recompensa poderá ser fixada em favor do informante agora verificada a seguinte condição: das informações disponibilizadas tenha se recuperado o produto de crime contra a administração pública. Além desse critério mais objetivo, a medida XIX vem com limite da fixação em até cinco por cento do valor da recuperação. Finalmente, o artigo 4º-B, talvez a mais polêmica das alterações intentadas pela medida XIX do PL nº 882/2019, vem com o que já se designou “meias garantias14”, tanto ao informante quanto ao eventual réu num processo desencadeado pelo whistleblowing. De um lado reforça a proteção e a preservação do sigilo sobre a identidade daquele quem reporta (caput, primeira parte), e de outro garante que ninguém será condenado com base no depoimento por ele prestado (parágrafo 2º, primeira parte). Todavia, junto das garantias vêm suas hipóteses de flexibilização. Isso porque, após garantir ao informante “o direito de preservação de sua identidade”, diz que ela poderá ser revelada “em caso de relevante interesse público ou interesse concreto para a apuração dos fatos”. E após garantir que não pode haver condenação do autor dos ilícitos reportados com base exclusiva no relato do informante, diz-se que à garantia só se deve observância quando mantido o sigilo da identidade do informante. Ou seja, ninguém será condenado com base no depoimento prestado pelo informante, mas se no curso do processo Pertinente pontuar que “a premiação ao Whistleblower não é a regra em todos os países. Estudos inclusive apontam que o principal motivo que leva as pessoas a relatar fatos em auxilio de autoridades públicas pode não ser exatamente a busca de premiações, mas simplesmente evitar que persistam atos de corrupção e práticas contrárias ao interesse público”, cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 53. 14 Cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019. 13 258 (cível, de improbidade administrativa ou penal – informa o parágrafo 1º do artigo em comento) a revelação da identidade do whistleblower for imprescindível, a autoridade processante poderá fazê-lo. Prossegue a lei, conferindo-lhe a opção por revelar sua identidade ou por perder-se o valor probatório de seu relato, nesta última hipótese permanecendo hígida a validade das demais provas produzidas no processo. Além disso, o parágrafo 3º complementa, por fim, no sentido de que a revelação da identidade do informante somente será efetivada mediante sua concordância e comunicação prévia de trinta dias. 2. Objetivos declarados e não declarados? Uma proposta de alteração legislativa evidentemente pressupõe, de um lado, alguma insatisfação com uma realidade ou quadro normativo anteriores e o anseio por sua modificação ou superação; bem como, por outro lado, que a medida proposta é adequada à consecução desses fins. O Projeto de Lei nº 882/2019 não veio acompanhado de exposição de motivos, o que dificulta a tarefa de sua crítica pela sociedade civil, já que deste vazio decorre a necessidade tanto de se supor a realidade normativa que se quer ver superada, quanto de se investigar da adequação ou não da proposta de lei para fazê-lo. Isto é, sem que a norma venha junto da exposição dos motivos que a inspiram, estes devem se supor ou buscar-se por outros meios. Por isso, a fim de se ajustar a crítica do presente estudo aos anseios legislativos por detrás do Projeto de Lei Projeto de Lei nº 882/2019, o método empregue por este trabalho consistiu em análises do quanto disposto em sítios eletrônicos institucionais e de discursos e anúncios oficiais daquele que fora publicamente seu principal idealizador, o Ministro de Justiça e Segurança Pública, o ex-juiz federal Sérgio Fernando Moro. Numa primeira e mais ampla perspectiva, o objetivo do Projeto de Lei nº 882/2019 seria combater a corrupção, o crime organizado e a violência. Conforme se extrai de informação da página online do Ministério da Justiça e da Segurança Pública, estes três segmentos estariam profundamente interligados, de modo que qualquer melhora nos quadros gerais da segurança pública passaria pelo duro enfrentamento da corrupção, do crime organizado e da criminalidade violenta, devendo diminuir-se a impunidade que nestes âmbitos se observa15. Tal preocupação derivou da constatação externada pelo Ministro de Justiça e Segurança Pública em audiência pública interativa realizada na Comissão de Constituição e Justiça, no sentido de que as forças 15 Disponível em: https://justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/projetos/anticrime-1, acesso em 17 de setembro de 2019. 259 tarefas da polícia federal estariam enfraquecidas no âmbito sobretudo das investigações de crimes contra a administração pública, mas também da criminalidade organizada e violenta16. Diante desse cenário e agora numa perspectiva mais específica, a proposta da medida XIX do PL nº 882/2019, a introdução do informante do bem ou whistleblower, inscreve-se nesse contexto de anseios pelo fortalecimento das investigações contra a corrupção, criminalidade organizada e crimes violentos. Segundo declarou-se na referida audiência, atualmente afigurase necessária a presença de um “cidadão de bem” para relatar originalmente, em caráter denunciatório, possíveis ilícitos desconhecidos pelas autoridades. Seria uma forma alternativa de se instaurarem processos investigativos contra seus autores. A medida impacta, portanto, como um novo meio de dar início às investigações, um novo meio de levar-se às autoridades públicas o conhecimento sobre práticas delitivas. Com isso, pretende diminuir-se a impunidade dos crimes de corrupção, já que as informações trazidas pelo whistleblower seriam a princípio inacessíveis ou inalcançáveis aos aparelhos persecutórios estatais, porquanto o “informante do bem” encontra-se numa posição privilegiada de expectador do ato ilícito praticado no seio da organização, pública ou privada, cujos ambientes jamais poderiam observar-se pela força tarefa das polícias investigativas17. O informante do bem, então, seria um insider que, por incentivos monetários e em troca de proteção, cooperaria com as investigações ao trazer informações relevantes18. Além disso, outro objetivo da introdução da figura normativa do whistleblower declarado na página online do Ministério da Justiça e da Segurança Pública radica na criação de uma “cultura de cidadania”, isto é, esclarecer que a fiscalização deveria também partir dos membros da sociedade. A aplicação da lei não se restringiria apenas às autoridades da burocracia estatal mas, antes, deveria contar-se com auxílio de todos. Neste ponto, há invocação da realidade norteamericana, já que nos Estados Unidos a figura normativa do whistleblower seria tida como um dos mais efetivos modos de evitar-se a corrupção, a perda de dinheiro público e a violação de regramentos setoriais. Teria a introdução do “informante do bem” o 16 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=viRikO487oQ, acesso em 13 de setembro de 2019. Nesse sentido, no plano das aspirações, a medida de fato alinha-se às recomendações internacionais, cf. Transparency International. Whistleblower protection and the UN Convention Against Corruption, 2013, p. 02: “Investigators consistently report that whistleblowers are among the main triggers for successful corruption investigations”; e p. 06: “The term ‘whistleblower’ is traditionally reserved for insiders – organization members who disclosure wrongdoing under the control of the legislation, (…) as insiders are best placed to assist corruption”. Igualmente, com referência à obra de Roberta Ann Johnson (Struggle against Corruption: A Comparative Study, 2004, p. 42), cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 11. 18 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=viRikO487oQ, acesso em 13 de setembro de 2019. 17 260 objetivo, pois, de engajar a população brasileira a denunciar crimes que envolvam a corrupção, perda de dinheiro público e violação de regramentos setoriais19. O que se nota das declarações relativamente aos anseios que a medida XIX se presta a cumprir é uma ligação demasiadamente vaga e remota, quase artificial, entre as possíveis vantagens do whistleblower e as aspirações à melhora da segurança pública. Isso porque, novamente segundo a página online do Ministério de Justiça e Segurança Pública, o emprego do “informante do bem” atacaria e enfraqueceria a corrupção pelo carácter denunciatório das informações por ele trazidas; sem a corrupção, mitigar-se-iam os efeitos negativos das organizações criminosas, que não encontrariam maneiras de corromper os agentes fiscalizadores e de evitar possíveis processos e investigações de práticas ilícitas cometidas; e, consequentemente, como a maioria da violência atualmente adviria de organizações criminosas, sem estas, a segurança pública melhoraria. A medida parece apostar na espera por resultados muito distantes e já desvinculados dos efeitos imediatos passíveis de desencadearem-se pela figura normativa whistleblower, que tem seu alcance restrito e sua efetividade mais verificável quando adstrito ao âmbito das investigações, notadamente ao gatilho das investigações20. Na verdade, em que pesem as intenções declaradas pelo Ministro idealizador do Projeto de Lei nº 882/2019, o projeto considerado como um todo se inscreve num movimento mais amplo de endurecimento penal e maximização do poder punitivo estatal, seja pelo recrudescimento nas formas de cumprimento de penas, seja pelo alargamento das hipóteses de prisão21. Razão pela qual já se denunciam os possíveis impactos a sentirem-se no sistema carcerário, pelo aumento do número de presos em que neste estado permanecerão por maior período de tempo, aos que se somam consequências de caráter financeiro, tendo em vista os valores que os altos índices de encarceramento exigem22. Com efeito, embora pareça em princípio não se relacionar com essa descrita racionalidade, por tratar-se de tema afeito a âmbito mais procedimental e investigatório, a medida XIX do PL nº 882/2019compartilha em alguma medida da referida matriz punitiva. E o faz à medida que, para além de cuidar do tradicional trinômio estruturante do whistleblowing, 19 Disponível em: https://justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/projetos/anticrime-1#p18, acesso em 17 de setembro de 2019. 20 Idem. 21 Nesse sentido, cf. IBCCRIM. Nota técnica sobre o Pacote Anticrime, 2019, p. 05. Igualmente, cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019. 22 Cf. IBCCRIM. Nota técnica sobre o Pacote Anticrime, 2019, p. 04. 261 colaboração, proteção e recompensa23, a sugestão de lei incluiu na disciplina normativa do “informante do bem” o artigo 4º-B, que extrapola aqueles âmbitos investigatório e procedimental e encaminha o debate para o domínio da suficiência ou não do relato para a demonstração de culpa em processo penal. Quer dizer, paradoxalmente aos declarados objetivos de aprimoramento das investigações, ampliando os mecanismos denunciatórios para que se lhes iniciem, simultaneamente o projeto cria hipótese em que bastaria para a condenação a simples informação reportada pelo whistleblower, uma vez levantado o sigilo sobre sua identidade. Pelo que, a mesma medida que se propõe aos melhores deslindes persecutórios prevê possibilidade em que se autoriza deles abrir mão, exatamente daquilo que se queria aprimorar, contentandose com a declaração inicial do informante para amparar sentença condenatória. 3. Consequências previsíveis O que é preciso para incentivar o whistleblower? Uma segurança de que não sofrerá retaliações e um incentivo financeiro mostram-se necessários. No entanto, a lei, na vagueza que foi escrita, cria essa segurança? Além disso, alguém delataria sem saber qual a base de cálculo e quem aplica? No plano da prognose das consequências que a aprovação da medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019 poderia desencadear, prognose que deve projetar-se no horizonte tanto do legislador quanto do crítico, embora árduo o exercício, afigura-se pertinente, em princípio, a investigação relativamente à viabilidade ou não de seu possível êxito. Isto é, seria possível antever e afirmar que a introdução do whistleblower, nos termos em que proposta, alcançará seus objetivos declarados? Num primeiro cenário hipotético então, realizar-se-iam os fins pretendidos pelo legislador. A propagação e o fomento à construção de uma cultura de cidadania vingariam, de modo que a população em geral sentir-se-ia motivada a participar ativa e diretamente do combate à criminalidade e incentivada a denunciar as práticas fraudulentas e malversação de recursos públicos de que tiver conhecimento. Incentivada por duas ordens de fatores: a garantia de não ser alvo de achaques por parte daqueles que denuncia e de, ao final, receber alguma 23 Cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019. 262 fração de eventuais valores recuperados. A proporcionar, ao fim e ao cabo, recuperação de dinheiro público ilicitamente mal utilizado24. Não se trata de hipótese na qual se crê. Em que pese verificar-se na redação da proposta legislativa densificação do espectro protetivo, com garantias de preservação sobre a identidade do denunciante e contra retaliações, e parâmetros mais bem definidos sobre a fixação de recompensa, a real efetividade e possibilidade de operacionalização da medida ainda carecem de maior detalhamento e a este estariam condicionadas25. A despeito da determinação pela mantença de unidades de ouvidoria ou correição nos entes e órgãos da Administração Pública, não se permite saber ao certo exatamente os pormenores da dinâmica do reporte da informação, como qual linha telefônica acionar26, de que maneira apresentar o assunto da ligação e a própria informação, sobretudo ao considerar-se que a experiência internacional identificou como característica dos relatos whistleblowings sua brevidade27. Afinal, por exemplo, a proteção de identidade pode ocorrer por meio da regra de confidencialidade, pela qual o Estado se compromete a não revelar o nome de quem com ele colabora, ainda que possua conhecimento da identidade do informante; ou pelo regime do anonimato, que significa que ninguém sabe quem é o whistleblower28. Não há clareza a respeito do regime acolhido pela PL nº 882/2019 24 A título ilustrativo, de acordo com dados oficiais disponibilizados pelo governo estadunidense, em 2018 aproximadamente U$2,1 bi foram recuperados devido a denúncias de whistleblowers. E relativamente às recompensas, pagou-se aproximadamente U$ 301 mi aos informantes, cf. disponível em https://www.justice.gov/opa/pr/justice-department-recovers-over-28-billion-false-claims-act-cases-fiscal-year2018, acesso em 18 de setembro de 2019. 25 No mesmo sentido, cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019: “Muito embora o texto proponha a proteção, a preservação da identidade e até mesmo a recompensa financeira ao informante (artigo 4ºC, parágrafo 3º), estamos diante de um texto que carece de profundidade em termos de efetiva regulamentação. O projeto não alcança o ideal de equilíbrio entra o interesse público, enquanto sociedade, o interesse das autoridades, enquanto Estado, e o respeito ao devido processo legal e às demais garantias constitucionais – aliás, não há nenhuma referência à operacionalização prática da sugestão legislativa”. 26 A título comparativo, nos Estados Unidos “em todas as agências federais foram instaladas ‘linhas-diretas’ para as comunicações whistleblowing, fator que igualmente incrementou a consolidação do instituto daquele país”, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 12. 27 Sobre a importância de se prover uma estrutura certa para os reportes, cf. Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013, p. 02; e sobre a brevidade dos relatos, idem, p. 03. 28 Ressalte-se que de acordo com o artigo Whistleblower Protection And The UN Convention Against Corruption, “o anonimato (que significa que ninguém sabe quem é o whistleblower) é uma incompleta e insatisfatória proteção. A identidade do whistleblower pode sempre ser deduzida das circunstâncias, e o fato de a revelação ser anônima pode focar a atenção na identidade da pessoa que fez o relato (e não no relato). Mais ainda, alegações anônimas são difíceis para as autoridades publicas prosseguirem, e a cultura do anonimato não é sadia”, Disponível em http://www.europarl.europa.eu/meetdocs/2009_2014/documents/libe/dv/ti_report_/ti_report_en.pdf, p. 14, acesso em 23 de setembro de 2019. Mais sobre a diferença em Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013, p. 12 e em ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 32-33. 263 Ao que se acresce, as dúvidas permaneceriam também do outro lado da ligação, já que ao agente estatal receptor29 das informações reportadas não há determinação de um proceder específico30. Não deve olvidar-se que a proteção integral de que deve ser destinatário o whistleblower, de acordo com a medida XIX, estaria condicionada à razoabilidade de seu relato31, sem que a novel legislação contenha qualquer previsão procedimental à apuração nem desta razoabilidade, nem de eventuais requisitos que deve o informante preencher32. De modo que, postas assim as coisas, da perspectiva do delatado, temer-se-ia pela consequente ausência de filtro suficiente para aferir da qualidade ou confiabilidade das informações; e da perspectiva do informante, sequer poderia afirmar estar-se impedindo ou prevenindo de maneira efetiva as retaliações33, já que permite que, se não se entender razoável o relato, não haja direito à 29 Já aí seria possível apontar uma lacuna de lege ferenda, porquanto não há previsões no que diz respeito a quem reportar as informações. A despeito da referência a unidades de ouvidoria e corregedoria, não há menção a qual quadro pessoal constituíra estes órgãos, sendo certo que uma das relevantes recomendações a que a Transparência Internacional sobre o whistleblowing chama a atenção corresponde ao “Whom to report to”, na qual se enfatiza a figura de uma comissão anticorrupção com atribuições específicas para lidar com tema de maneira apropriada e discreta, ou a um delegado (ombudsman) própria para o cargo (como na Holanda), ou quem sabe à própria polícia, cf. Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013, p. 07 e 12. 30 Nesse sentido, após apresentar os critérios de razoabilidade da análise boa-fé (vd. nota 30 infra), o referido estudo coordenado pela AJUFE para fonecer subsídios aos ENCCLA a respeita da implementação dos programas de whistleblowing no Brasil pontua, ademais, a importância da figura do observador externo - um observador desinteressado, com o conhecimento dos fatos essenciais (conhecidos), rapidamente determináveis - na perquirição da razoabilidade do relato; pontua, ainda, sobre o estabelecimento de condicionantes e filtros sobre a qualidade da informação prestada; a necessidade do que se designa indicativos de relevância pra o processamento do relato; e a originalidade da informação. Cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 22-25. 31 Sobre isso, o “principio 22, das Recomendações do Conselho Europeu impõe: ‘A proteção não deverá ser perdida apenas com base no fato de que a pessoa que fez o relato ou a revelação estava errado sobre importância, ou quanto sua percepção de ameaça ao interesse publico não se materializaram, provado que ele ou ela tinham bases razoáveis para acreditar em sua ocorrência’”, cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 37. 32 Nessa linha, “a previsão do whistleblower não deve deixar de tratar de aspectos essenciais, como o procedimento especial para apuração da razoabilidade do relato, requisitos do relato (...). Da mesma forma, o relato não deve ser apenas ‘razoável’, mas original, voluntário (ou seja, não decorrente de um dever regulatório), verossímil diante da qualidade e pertinência dos dados apresentados”. Cf. BELTRAME, Priscila Akemi; SAHIONE, Yuri. “Informante do bem”... op. cit., abril/2019, p. 02. No mesmo sentido, destacando a inexistência de quaisquer critérios objetivos para apurar-se da razoabilidade do relato, cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019. Também, por fim, salientando a necessidade de um relato com motivos razoáveis e de boa-fé, inclusive com referência ao Decreto nº 5.687/2006, em seu artigo 33, que elenca expressamente tais requisitos, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 13. Sobre as abordagens legais para a averiguação da boafé do whistleblower, cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 19. 33 Por exemplo, o caput do artigo 4º-C elenca como práticas retaliatórias a demissão arbitrária e as alterações injustificadas nas atribuições daquele que relata ilicitudes a autoridades. Tal previsão de fato segue as recomendações internacionais. Todavia, não o faz em sua completude, porque uma tal previsão deve acompanharse da inversão do ônus da prova em detrimento do empregador. Isto é, os documentos internacionais recomendam que sobre a demissão do whistleblower sem justa causa incida presunção legal e expressa de retaliação, transferindo àquele que demite o ônus de provar que não o fez para retaliar. Nesse sentido, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 09 e Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013, p. 03. A referida Lei portuguesa, 19 de 2008, prevê a inversão: “(...) 2 - Presume-se abusiva, até prova em contrário, a aplicação de sanção disciplinar aos trabalhadores referidos no número anterior, quando tenha lugar até um ano 264 proteção, e a experiência internacional mostra que a fragilidade do sistema protetivo tende a evitar o reporte de informações34. Não há, ainda, relativamente ao recebimento de recompensa, mecanismos para incentivar ou estimular suficientemente o reporte de informações às autoridades, o que acaba também por enfraquecer a almejada postura denunciatória dos cidadãos. A despeito de, no direito vigente, o artigo 5º, inciso X, da Lei 13.756/2018, determinar a destinação de recursos do Fundo Nacional de Segurança Pública à “premiação em dinheiro por informações que auxiliem na elucidação de crimes, a ser regulamentada em ato do Poder Executivo federal”, não houve a regulamentação, e nem se pode dizer que desta se trata o disposto no parágrafo 3º do artigo 4º-C. Primeiro, porque eventual vigência do Projeto de Lei nº 882/2019 corresponderia evidentemente a ato emanado pelo Poder Legislativo. Depois porque, embora a imposição de limite da recompensa em 5% do valor recuperado seja um louvável critério objetivo, tantos outros restaram esquecidos, como possíveis causas de aumento e diminuição da recompensa35. Ademais, a leitura estrita da norma pode conduzir à interpretação que admita recompensa ao final de condenação apenas por prática de crime previsto no Título X do Código Penal, já que a redação expressamente se refere ao pagamento “quando as informações disponibilizadas resultarem em recuperação de produto de crime contra a administração pública”, deixando então de fora tantos outros, como os licitatórios, em que a recuperação do produto do crime não pode afirmar-se incomum, bem como as ações de natureza civil ou administrativa. Por fim, não pode desconsiderar-se que o Projeto não aponta direta e especificamente qual a autoridade competente à determinação e fixação da recompensa, já que não raro do mesmo fato advêm reações estatais em esferas judiciais autônomas e independentes, sendo a princípio qualquer dos juízes competente. Em atenção a estes fatores, a medida não oferece vantagens suficientes à compensação dos prejuízos morais e financeiros sofridos por aquele que reporta36. após a respectiva denúncia”. E também ressaltando a importância da inversão do ônus da prova, cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 43-46. 34 Cf. Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013, p. 12, onde se destaca que mesmo os relatos infundados devem ser dignos de proteção, para que não se deixem de reportar eventuais ilícitos temendose pela imprecisão da informação levada às autoridades. 35 Os inflexíveis 5% apresentados pela Projeto Anticrime mostram-se aquém das porcentagens fixadas pelo ordenamento jurídico norteamericano. Lá, “o montante varia conforme o Estado tenha intervindo ou não no processo: de 25% a 30% se o denunciante tiver atuado sozinho e de 15% a 25%, se obteve auxílio da intervenção estatal”, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 09. 36 Nesse sentido, “a ideia de estímulo em dinheiro é realista, pois percebe que os denunciantes em geral são mais prejudicados do que beneficiados por suas denúncias. Ainda que existissem normas antirretaliação na legislação, não seriam elas suficientes para incentivar os whistleblowers a abrir mão de sua paz em prol do interesse público”, cf. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência ... op. cit., p. 15. 265 Por outro lado, a consequência se vislumbra possível, previsível e lamentavelmente mais provável é a proliferação de condenações, ainda que lastreadas em frágil arcabouço probatório, facilitadas e legitimadas pela previsão contida no parágrafo 2º do artigo 4º-B (Ninguém poderá ser condenado apenas com base no depoimento prestado pelo informante, quando mantida em sigilo a sua identidade), sobretudo quando lido a contrario sensu. Desde logo, deve salientarse que uma tal previsão representa um corpo estranho numa legislação que intende disciplinar o whistleblowing, não encontrando correspondência nos diplomas e nas recomendações internacionais. A primeira parte deste dispositivo estabelece louvável garantia, mas que seria até mesmo de previsão desnecessária, porquanto decorreria já da interpretação lógica e teleológica da sistemática vigente. Como se pontuou acima, no bojo dos objetivos que se declararam inspirála, a medida e o instituto guardam pertinência com o momento investigativo (e não processual), notadamente de instauração das investigações, que de outro modo dificilmente se iniciariam, tendo em vista as dificuldades probatórias inerentes a este segmento da criminalidade37. Ela circunscreve-se ao âmbito dos gatinhos e dos inputs adequados e destinados ao início das averiguações, visando ao esclarecimento dos fatos reportados e sua autoria. Uma vez apurados os fatos no seio de uma investigação formal levada a cabo pelos agentes estatais competentes, pode-se ou não reunir elementos informativos suficientes à formação da justa causa e, só então, o oferecimento de denúncia. O reporte informativo conferido pelo whistleblower equivaleria, portanto, à notitia criminis38 que chega à autoridade policial e a anima, tal qual sucederia com a denúncia anônima, e nem um nem outro servem à formação de convencimento judicial, nem autorizam por óbvio a condenação de qualquer cidadão39. Afinal, somente após o recebimento 37 Afinal, de fato ela tende a ocorrer em lugares fechados, privados, sem testemunhas, sem vítimas, ela não se filma ou fotografa, não se documenta ou gera recibo, costuma ter aparência de legalidade, comumente camuflada no bojo de um ato lícito, seus envolvidos não querem dela falar, nem a denunciar, negam-na, escondem-na, e são indivíduos (ao menos os agentes públicos) de quem menos se esperaria tal ato. A categoria criminológica a que pertence a corrupção corresponde ao que se cunhou designar “crimes sem vítima” (victimless crime), cf. Edwin Schur, Crimes without victims, New Jersey: Aspectrum Books, 1965. Nesse sentido, “sob o ponto de vista criminológico, a corrupção pode ser classificada como crime sem vítima (na modalidade de crime de vítima abstrata), na medida da existência frequente de um pacto entre o corrupto e o corruptor, desconhecido por outros, sendo que ninguém se identifica como vítima. Acontece, ademais, em espaços de privacidade e reserva”, cf. SANTOS, Cláudia Cruz. “A corrupção de agentes públicos e o direito processual penal”. In: A corrupção de agentes públicos e a corrupção no desporto. Coimbra: Almedina, 2018, p. 70 e ss. 38 Pelo mesmo sentido caminha a crítica institucionalmente tecida pelo IBCCRIM: “O projeto, nesse ponto, comporta grave confusão entre o que seja uma notitia criminis e sua evidente diferença em relação à prova oral”, cf. IBCCRIM. Nota técnica... op. cit., 2019, p. 41. 39 Cf. NUCCI, Guilherme de Souza. A denúncia anônima pode ser justificativa legal para a abertura de inquérito policial? E de indiciamento? In: Tratado Jurisprudencial e Doutrinário. Direito Processual Penal. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012, p. 250 e ss. 266 da denúncia formalmente oferecida, respeitados todos os limites e regras de envergadura constitucional inerentes e essenciais ao processo penal, dentre eles os relativos à produção probatória, julga-se pela procedência ou não da acusação, levando em conta as provas dos autos. Todavia, por uma primeira perspectiva, mesmo mantido o sigilo sobre a identidade do whistleblower, o dispositivo maximiza o valor probatório da informação reportada (se é que deste valor poderia em primeiro lugar falar-se), já que abre margem à interpretação que autoriza o cotejamento do relato como significativo fator de convicção judicial, uma vez acompanhado de um outro qualquer elemento de prova. Por exemplo, seguindo a literalidade da proposta legislativa, a informação reportada, se junta de um único documento, poderia resultar validamente em condenação, sem que o condenado sequer soubesse quem o acusou em primeiro lugar. Diminui-se deste modo o ônus probatório e argumentativo da acusação e do juiz, que se deparariam com um menor standart probatório mínimo a ser superado para afirmar-se legítima a sentença condenatória40. Por outra perspectiva, a parte final do dispositivo abre margem à interpretação que autoriza condenação exclusivamente com base no depoimento do informante (que nessa altura sequer poderia chamar-se de testemunha41), uma vez revelada sua identidade. O que teria lugar simplesmente se o juiz assim determinasse caso entenda imprescindível ao processo e se o informante anuísse42. 40 De novo, pelo mesmo sentido caminha a crítica do IBCCRIM. “O projeto parece querer criar um novo (e inconstitucional) meio de prova, dando status probatório ao que vulgarmente convencionou-se chamar de ‘denúncia anônima’. A única restrição trazida pelo projeto vai no sentido de impedir que alguém seja condenado exclusivamente com base em uma ‘denúncia anônima’, permitindo ao juiz, contudo, que valore a informação apócrifa como prova, ainda que não exclusiva. Subverte-se, assim, o próprio sentido do processo penal, substituindo-se a prova testemunhal pela mora ‘denúncia anônima’, impedindo-se que a prova seja contraditada e que o cidadão sequer saiba quem o está acusando”, cf. idem. 41 Além de que, “idealmente, o whistleblower não deve ser chamado a depor. O foco são as informações que trás ao processo”. Cf., ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 07. 42 Pontuando a mesma questão, e com interessantes questionamentos, cf. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem"... op. cit., 2019: “Há flexibilização da preservação da identidade dos informantes, que pode ser revelada em caso de relevante interesse público ou de interesse concreto para a apuração dos fatos, desde que o informante concorde (artigo 4º-B e parágrafo 3º) — haverá espaço para a sua recusa, e essa recusa deverá ser motivada? Sob a ótica do devido processo legal, é questionável a previsão de que ninguém será condenado apenas com base no depoimento prestado pelo informante quando mantida em sigilo a sua identidade (artigo 4º-B, parágrafo 2º) — anuindo o informante com a sua revelação, servirá o relato como prova exclusiva à condenação?”. E mesmo com o consentimento, a revelação da identidade não pode se dar sem algumas condições. “A primeira, é que o whistleblower possa, antes de fazer o relato, ter um razoável conhecimento em que hipóteses a lei permitirá o levantamento da identidade. Poderá assim, debater seus pressupostos quando necessário. (...) O Segundo, é que ele deve poder recorrer a uma autoridade administrativa ou judicial quanto ao levantamento e ter um tempo razoável para preparar-se, inclusive, se for o caso, buscando tutela judicial. O Terceiro, é que se conceda ao whistleblower um prazo razoável para as medidas que entender cabíveis, antes de qualquer ato de publicidade de seu nome”. Cf., ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 34. 267 Não se negam as dificuldades probatórias e investigativas inerentes a este segmento da criminalidade, em geral, e à corrupção, em particular. Tampouco se nega possa verificar-se neste âmbito delitivo o tão indesejado e invocado fenômeno da impunidade. Ocorre que, conjugando-se essas dificuldades e o temor pela impunidade com a literalidade do §2º do artigo 4º-B lido em conjunto com o parágrafo 1º do mesmo dispositivo, verte como uma das consequências possíveis da eventual vigência da norma sua manipulação endereçada a colmatar essas dificuldades probatórias, em detrimento da hígida observância dos direitos e garantias individuais que se materializam e se exercem no processo penal43, e portanto autorizando-se a prognose no sentido da proliferação de condenações amparadas em frágil conjunto de provas44. 4. Inconstitucionalidade da medida Dito isto e diante desse cenário, convém aferir da constitucionalidade da medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019. Em relação às previsões a respeito, por um lado, da proteção integral contra retaliação conferida ao informante que reporta relato considerado razoável (parágrafo único do artigo 4º-A e caput, parágrafos 1º e 2º do artigo 4º-C) e, por outro lado, da fixação de recompensa em até 5% da recuperação de produto de crime contra a administração pública (parágrafo 3º do artigo 4º-C), não se vislumbram em princípio óbices de conformidade constitucional. À maneira como enxergam-se as coisas, não parece, pois, no domínio da arguição de inconstitucionalidade que esta discussão deva ser colocada, mas antes do plano das vantagens e desvantagens político-criminais que ela apresenta, ao que se reserva o item subsequente deste estudo. Por outro lado, todavia, relativamente ao artigo 4º-B o cenário se altera. As informações reportadas pelo whistleblower às unidades de ouvidoria ou correição, como exposto, possuirão valor probatório em nível processual penal, mesmo que sua natureza se assemelhe à da notitia Afinal, o direito processual penal corresponde ao “direito constitucional aplicado”, cf. ANTUNES, Maria João. Direito Processual Penal. Coimbra: Almeida, 2018, p. 16-17. 44 Não podendo desconsiderar-se o contexto cotidiano em que “os meios de comunicação social tivessem passado a outorgar grande espaço a este tema. Simultaneamente, em tempos que têm sido de crises (também econômicofinanceiras), os cidadãos tornam-se sensíveis ao argumento de que a corrupção é a catástrofe social responsável pelas maiores dificuldades do seu dia-a-dia. A justiça penal, confrontada com o desapontamento das pessoas potenciado por tais dificuldades e ‘espicaçada’ por aquela comunicação social que exige que se ‘cortem cabeças’ para que se faça justiça, pode começar a correr riscos. Um dos principais é o risco de querer responder àquelas demandas dos cidadãos e da comunicação social (que se vão potenciando numa espiral sempre crescente) garantindo uma eficácia da resposta punitiva mesmo que à custa de um esbatimento da proteção dos direitos fundamentais dos arguidos (e não só)”, cf. SANTOS, Cláudia Cruz. “A corrupção”... In: A corrupção... op. cit., p. 69. 43 268 criminis ou da denúncia anônima, ambas destituídas deste valor. A autorização para se valorar o relato apócrifo como prova decorre de sua menção expressa no parágrafo 1º, o que se corrobora pelo parágrafo 2º. Este se restringe a vedar apenas as condenações exclusivamente embasadas no relato anônimo do informante (se permanecer em sigilo a identidade do informante), mas as permite (inconteste então o valor probatório) se não exclusivamente. Postas assim as coisas, o acusado se veria impossibilitado, ou encontraria dificuldades quase insuperáveis, de se contrapor à prova produzida contra si, inviabilizando o contraditório. Este, afinal, “deve ser visto com o direito de participar, de manter uma contraposição em relação à acusação e de estar informado de todos os atos desenvolvidos no inter procedimental”45. Sem a informação de quem depôs contra si, não haveria como se defender de maneira ampla, eis que assim se ceifa toda uma possível linha de defesa. O réu não teria como inquirir o informante e apontar eventuais inconsistências, falhas ou o mal entendimento de seu relato. Não teria como, em definitivo, empreender o exercício amplo e efetivo de sua defesa, que consiste na possibilidade de ele “tomar posição, a todo momento, sobre o material produzido, sendo-lhe garantida a imediação com o defensor, o juiz e as provas”46. Sem efetivo contraditório e ampla defesa, enfraquece-se sobremaneira o postulado constitucional do devido processo legal, sem o qual torna-se ilegítima a eventual privação de liberdade ao final do processo penal. E não se olvide, a Constituição Federal consagra em seu artigo 5º, incisos LV e LIV, que “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes” e que “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”47. Ser sujeito, e não objeto do processo, implica ter participação constitutiva na declaração do direito do caso48. Quer dizer, se se subtrai do acusado o conhecimento da identidade de quem o denunciou em primeira mão e, logo, impede-se o de formular perguntas ao whistleblower, 45 Cf. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 11ª edição, Editora Saraiva, São Paulo/SP, p. 223. Cf. TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de Direito Processual Penal, 12ª edição, Editora Podivm, Salvador/BH, p. 77. 47 No mesmo sentido, “em nenhuma hipótese, sob pena de violação absoluta do art. 5º, LIV, da Constituição Federal de 1988, alguém pode ser condenado apenas com base na notícia de um crime. A informação contida em um “disque denúncia”, seja de origem identificada ou sigilosa, apenas se presta a desencadear uma investigação, a fim de que seja reunida a justa causa suficiente para o oferecimento de uma denúncia ou queixa, instaurando-se em processo judicial. Ao permitir que a mera notitia criminis possa ser utilizada como prova, o projeto faz tabula rasa do devido processo legal, onde as provas apresentadas são submetidas ao contraditório e as partes e o juízo podem formular perguntas às testemunhas”, cf. IBCCRIM. Nota técnica... op. cit., 2019, p. 41. 48 Cf. ANTUNES, Maria João. Direito... op. cit., p. 29 e DIAS, Jorge de Figueiredo, “Sobre os sujeitos processuais penais no novo Código de Processo Penal”. In: Jornadas de Direito processual penal. O novo Código de Processo Penal, Centro de Estudos Judiciários, Coimbra: Livraria Almedina, 1997, pp. 07 e 28. 46 269 isso significa que nem ele nem sua defesa têm a possibilidade de contribuir efetivamente à formação do convencimento do julgador, ou pelo menos não nas mesmas condições que a acusação, desequilibrando então a paridade de armas que é marca genética do contraditório e da ampla defesa. Assim, porque dar-se valor probatório às informações apócrifas pode ensejar a desproteção excessiva das garantias processuais constitucionais do acusado no processo penal, e a essa possibilidade conduz e autoriza a literalidade dos parágrafos 1º e 2º do artigo 4º-B pela redação que lhes conferiu o projeto, não deve essa redação ser referendada pelo Poder Legislativo. Os dispositivos devem ser reformulados, afastando-se de sua interpretação o sentido que dá aos direitos fundamentais da ampla defesa e do contraditório alcance excessivamente reprimido, que lhes diminui sua potencialidade inata de fazer frente ao poder punitivo estatal; e assegurando-se que os eventuais reportes prestados, ainda que possam ser adequados a instaurar investigações, não terão valor probatório no processo, a não ser que confirmados e contraditados em juízo – claro, ressalvados os mecanismos já vigentes na legislação para garantir-lhes proteção em caso de fundado temor de represália49. 5. Contraproposta A medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019, que introduz a figura do whistleblower, whistleblowing ou ainda “informante do bem”50 no ordenamento jurídico brasileiro carece de elementos formais para a efetiva integração e funcionamento deste instituto frente à sua complexidade. As razões de um tal entendimento têm que ver não tanto com a justeza teórica Assim em IBCCRIM. Nota técnica... op. cit., 2019, p. 41: “Em nenhuma hipótese esse artigo do projeto poderia ser referendado sob o prisma de sua constitucionalidade, devendo-se reformulá-lo, suprimindo-se os e inserindose um parágrafo justamente para que conste que “as informações prestadas às unidades de ouvidoria ou correição não terão valor probatório, caso não confirmadas pelo depoimento do informante em juízo”, o qual, em caso de fundado temor de represália, poderá solicitar proteção e/ou decretação de segredo de justiça, nos termos da lei vigente. Conclusão: Possibilidade de reapresentação da medida em outros termos, atentando-se para a inconstitucionalidade de que se dê valor probatório às informações prestadas às unidades de ouvidoria e correição, devendo essas serem comprovadas no curso do processo judicial por meios lícitos de prova”. 50 O termo “informante do bem” de que se utiliza o projeto é suscetível de fundadas críticas, à medida que positiva na legislação locução de cunha maniqueísta, transmissora de ideia avessa aos ideais democráticos de não julgamento pelo Estado sobre o caráter das pessoas. Assim também em BELTRAME, Priscila Akemi; SAHIONE, Yuri. “Informante do bem”... op. cit., abril/2019: “A expressão ‘informante do bem’ não deve prevalecer. É comezinho que a lei não deva ter palavras inúteis e muito menos tendenciosas. O uso de um termo que adjetiva a qualidade do informante revela recurso retórico binário para reforçar a imagem do que se é, no intuito de acusar para proteger o interesse público – que é ‘do bem’. A qualidade da informação deverá ser apurada em processo específico; por esse motivo, qualificar o emissor da informação como ‘do bem’ é nomear antes de se saber se ela é verdadeira, útil ou não para o processo”. 49 270 da proposta51, quanto com inevitáveis inconvenientes em nível de sua exequibilidade prática. A introdução desse instituto no direito brasileiro, à maneira como se intenta, através da alteração da Lei 13.608/2018, entendemos, revela-se inadequada pela ausência de especificidades inerentes ao bom funcionamento e aplicação da lei52. Em linhas gerais, a inserção de um instituto de tamanha complexidade e possível impacto no Direito e na sociedade brasileira - conforme observado nos países que o adotaram demandaria regulação robusta e atenta aos pormenores inerentes ao seu funcionamento efetivo, sob pena de por em risco, de um lado, os diretos fundamentais de proteção do informante e as garantias processuais do informado e, por outro lado, a própria eficácia da medida53. Esse risco não passou despercebido pelos países que adotaram o whistleblowing em seus ordenamentos. Nos Estados Unidos54, por exemplo, a necessidade de regulamentação do whistleblowing frente à proteção dos trabalhadores fez nascer em 1989 o Whistleblower Protection Act, em complemento ao já existente False Claims Act (1864). Atendendo a mesma necessidade de efetiva regulação, foi aprovado ainda, em 2002, o Sarbanes-Oxley Act55. Não obstante tais diplomas, há ainda diplomas estaduais de regulamentação do whistleblowing. No Reino Unido, por sua vez, o Whistleblowing surge regulamentado pela primeira vez em 1998 através do Public Interest Disclosure Act (PIDA), que gerou alterações no Employment Rights Act, de 1966, com o objetivo de oferecer maior proteção ao whistleblower - ou informante - sob a perspectiva dos direitos trabalhistas; importante consideração acerca do PIDA é o seu caráter pioneiro de ampliação do conceito de trabalhador, que não se restringe somente ao setor público, como grande parte dos diplomas ora analisados, mas também aos 51 Afinal, por exemplo, em 2018, o governo dos Estados Unidos recuperou aproximadamente $ 2.1 Bilhões de dólares, graças a denúncias de whistleblowers, tendo eles recebido valor aproximado de $ 301 Milhões de dólares, cf. disponível em https://www.justice.gov/opa/pr/justice-department-recovers-over-28-billion-false-claims-actcases-fiscal-year-2018, acesso em 30 de setembro de 2019. 52 Cf. BELTRAME, Priscila Akemi; SAHIONE, Yuri. “Informante do bem”... op. cit., abril/2019, p. 02. Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/6320-Informante-do-bem-ou-whistleblower-criticase-necessarios-ajustes-ao-projeto, acesso em 29 de setembro de 2019. 53 Afinal, “países com legislações não compreensivas, não abrangentes da totalidade dos aspectos, não especificamente voltadas a estabelecer programas com todos seus contornos, não conseguirão impor programas com a eficácia necessária ao enfrentamento da corrupção e fraudes públicas ou privadas. No compendio de boas práticas levantada por especialistas do G20, a primeira catalogada é justamente a necessidade de que a legislação, além de ser clara e efetiva “ Seja específica para o fim de assegurar certeza e clareza legais, e para evitar um enfoque fragmentário ao estabelecer a proteção do whistleblower”. Cf. ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 25. 54 Nesse sentido, cf. mais pormenorizadamente in ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios... op. cit., p. 20. 55 Cf. SILVA, Diogo. A Proteção do Whistleblower na Relação Jurídico-Laboral. 2017, 127 f. Dissertação de Mestrado Universidade de Lisboa, Portugal, 2017. p. 23-42, disponível em: https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/31884/1/ulfd133622_tese.pdf, acesso em 18 de setembro de 2019. 271 trabalhadores do setor privado, aos trabalhadores independentes, estagiários e trabalhadores ingleses em solo estrangeiro56. Ainda sob a necessidade de efetiva proteção ao trabalhador e em atenção à complexidade do whistleblowing, em 2003 foi aprovado o Enterprise and Regulatory Reform Act, através do qual o PIDA foi alterado em três principais aspectos, quais sejam: a retirada do requisito essencial da boa-fé nas denúncias, a introdução do interesse público na denúncia e o alargamento do escopo de proteção ao trabalhador. É importante salientar, inclusive, que tem sido o PIDA, e não os diplomas norte-americanas, o objeto de replicação ao redor do mundo. Neste sentido, o Conselho Europeu publicou, em 2010, Resolução que solicita aos Estados Membros a revisão de suas legislações sobre whistleblowing, referindo-se à legislação do Reino Unido como modelo para o futuro57. A partir de tais assertivas, não surpreende a verificação da necessidade de constante complementação e regulamentação do whistleblowing nos ordenamentos jurídicos nos quais ele está consolidado. A edição dos diplomas supramencionados deu-se justamente pela complexidade desse instituto e suas particularidades, além de suas consequências, em especial no que tange aos direitos trabalhistas. De fato, a grande discussão que se coloca nos países nos quais o whistleblowing encontra-se consolidado e em pleno funcionamento diz respeito à ausência da efetiva proteção ao trabalhador, que, caso utilize do whistleblowing, corre o risco de sofrer retaliações de diversos tipos, veladas ou diretas, por parte do empregador58. Nesse sentido, para além da discussão sobre legislação específica sobre whistleblowing, discute-se ainda a necessidade de legislação complementar de proteção ao trabalhador59. 56 Cf. SILVA, Diogo. A Proteção... op. cit., 2017, p. 25. Cf. ASHTON, Jeanette. 15 Years of Whistleblowing Protection under the Public Interest Disclosure Act 1988: “Are We Still Shooting the Messenger?”. Industrial Law Journal, Oxford: 2015. Disponível em: https://academic.oup.com/ilj/article/44/1/29/691134. 58 Cf. SILVA, 2017, op. cit.; e MARTÍN, Victor Gómez. Compliance y Derechos de los Trabajadores. 59 Nesse sentido, cf. SILVA, Diogo. A Proteção... op. cit., 2017, p. 100-101. O autor observa que “ [...] não é só do interesse do trabalhador que se fala quando se aborda a necessidade de legislação, pois circunscrever o tema unicamente à tutela do trabalhador seria reduzir o tema a um mero fragmento daquilo que realmente ele comporta. Sendo indiscutível que o objetivo primordial é a proteção do trabalhador, indiretamente permite às entidades empregadoras conhecerem os moldes em que os trabalhadores podem realizar denúncias relativas aos seus atos/omissões e permite uma maior envolvência dos trabalhadores na sua correta governação da entidade empregadora e manutenção do interesse público, porquanto subjacente à tutela do trabalhador está não só a defesa do empregador e da sociedade em geral, tendo esta interesse na manutenção da legalidade e na persecução responsabilização daqueles que infringem as regras." 57 272 Não pode esperar-se, desse modo, que uma lei de apenas seis artigos seja suficiente e capaz para regulamentar um instituto de tal importância e complexidade60. De fato, a alteração proposta pela Medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019 traz conceitos vagos e incompletos61, que, para serem de fato aplicados à realidade, necessitam ainda de um árduo trabalho revisional e complementar. Logo em primeira análise, é possível notar a ausência de elementos básicos ao funcionamento do whistleblowing, notadamente: (i) sobre o funcionamento das unidades de ouvidoria e correição; (ii) dos procedimentos de apuração das denúncias; (iii) dos critérios de avaliação das denúncias; (iv) da forma de preservação da identidade do informante; (v) dos mecanismos de proteção ao informante; e (vi) do valor e competência para o pagamento ao informante. Reitera-se que tais elementos são considerados básicos e inerentes ao funcionamento do whistleblowing. Nessa mesma linha, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, na qual o pedido de adesão do Brasil está sob consideração pelo Conselho interno, desenvolveu o G20 Anti-Corruption Action Plan - Protection of Whistleblowers62, no qual estabeleceu os princípios norteadores do whistleblowing, quais sejam: 1. Uma legislação clara e uma ferramenta institucional efetiva devem estar implantadas para proteger contra ações discriminatórias ou disciplinares aos empregados que revelarem em boa-fé e bases razoáveis, para autoridades competentes, determinadas suspeitas de ações ilegais ou corrupção. 2. A legislação deve prover uma clara definição da abrangência das revelações protegidas e das pessoas sujeitas à proteção legal. 3. A legislação deve assegurar que a proteção concedida ao whistleblower seja robusta e compreensiva. 4. A legislação deve claramente definir os procedimentos e estabelecer canais para facilitar os relatos de suspeita de corrupção, e encorajar o uso da proteção e fácil acesso aos canais de reportar. 60 Quanto à maneira com que o instituto do informante do bem foi importado para o Brasil. De acordo com o idealizador da medida, o Ministro da Justiça e Segurança Pública, em anúncio dirigido aos governadores e secretários estaduais, os três artigos que regulam o uso de informantes do bem foram elaborados propositalmente de forma simples e objetiva, seguindo a mesma lógica pregada pelo pacote anticrime de medidas simples e supostamente eficazes contra o crime. Acresceu que o objetivo foi justamente evitar a complexidade e tentar ao máximo diminuir a quantidade de artigos que regulam essa matéria, porque se intenta, num primeiro momento, apenas importar essa figura para o Brasil, cf. disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/2019/02/sergio-morofala-ao-vivo-sobre-projeto-de-lei-anticrime, acesso em: 14 de setembro de 2019. 61 Nesse sentido, “a construção de um programa de atuação efetivo de whistleblowing exige a previsão de um conjunto de medidas especiais voltadas à proteção do direito de relatar informações sobre crimes contra a Administração Pública. Nesse sentido, a experiência norte-americana (Whistleblowers Protection Action30), o projeto modelo da OEA, mas também o Projeto de Lei 3.165/2015 preveem um sistema de proteção mais abrangente e favorável à prática segura do whistleblowing que o Pacote Anticrime”, cf. CAMBI, Eduardo. Whistleblowing no pacote anticrime. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 1006, 2019,| p. 201 e ss. 62 Cf. G20 Anti-Corruption Action Plan PROTECTION OF WHISTLEBLOWERS, p. 30-34, disponível em http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf, acesso em 01 de outubro de 2019. 273 5. A legislação deve assegurar um mecanismo efetivo de proteção, incluindo a atribuição a um órgão específico que é transparente e ao qual é dado poderes para a responsabilidade de receber e investigar reclamos de retaliações e/ou investigações inadequadas, assegurando-se uma vasta gama de correções. 6. A implementação da proteção dos whistleblowers deve dar suporte à elevação da atenção ao assunto, comunicação, treinamento e avaliações periódicas da efetividade das ferramentas de proteção. Com efeito, reputa-se inadequada a alteração da Lei 13.608/2018 enquanto forma de inserção do instituto do whistleblower no ordenamento jurídico brasileiro. Desta verificação, ao lado da referida questionável constitucionalidade no artigo 4º-B, decorre a necessidade da retirada da medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019 e, caso opte-se pela inserção do whistleblowing no direito brasileiro, que de proceda mediante lei específica para isso, com os devidos pormenores e que respeite sua complexidade, atentando-se, inclusive, aos movimentos legislativos que se colocam atualmente em urgência nos países em que o whistleblowing está consolidado. Conclusão O aprimoramento nos mecanismos de combate e de controle da criminalidade organizada e econômica é tarefa que a todos se impõe. E se impõe especialmente àqueles que têm por incumbência pensá-los em primeira mão, tais como legisladores, alguns membros da burocracia estatal e juristas. Pelo que, reconhece-se a importância de um debate que caminha nesse sentido, de coletar e lapidar ideias visando a uma realidade em que as precipitações desse segmento da criminalidade sejam menos frequentes e, quando ocorrerem, devidamente apuradas e punidas. É neste contexto que se inserem as discussões a respeito da introdução da figura normativa do whistleblower no direito brasileiro, como um meio de se aprimorar os trabalhos investigativos e fiscalizatórios do Estado, notadamente com a possibilidade de receber-se mais informações sobre condutas ilícitas, que dificilmente chegariam ao conhecimento das autoridades competentes e às quais normalmente não se têm acesso. Todavia, a consecução da tarefa de aprimoramento dos mecanismos de controle da criminalidade não deve desgarrar-se da correlata necessidade de se lhes conferir a devida efetividade para que logrem alcançar aquilo que se propõe. Quer dizer, de pouco adiantaria a introdução de uma medida que, pela forma e nos termos em que proposta, não se revela adequadamente capaz de bem contribuir à solução dos problemas que fazem dela mesma uma necessidade. Antes, a falta de efetividade pode perpetuar os aspectos negativos da realidade 274 fática e normativa que se quer ver superada, seja agravando-os, seja pela frustração coletiva que adviria do insucesso de sua implementação. E se, por um lado, esse déficit de efetividade, como entendemos, pode ser constatado na redação da medida XIX do Projeto de Lei nº 882/2019, a ele se acresce uma preocupação adicional, a da presença na disciplina do whistleblowing de hipótese que enfraquece os direitos e garantias fundamentais do acusado no processo penal. A ânsia de se aprimorar os mecanismos investigativos do Estado não deve dar-se a qualquer custo, e menos ainda se em jogo estiverem os altos preços da proteção constitucional dos cidadãos. De qualquer modo, como se lidará futuramente com essas sensíveis questões, é algo que o amanhã dirá. Mas que não precisaríamos com elas lidar, é algo que o hoje já diz, e a que faz coro, por fim, o presente estudo. 275 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASHTON, Jeanette. 15 Years of Whistleblowing Protection under the Public Interest Disclosure Act 1988: “Are We Still Shooting the Messenger?”. Industrial Law Journal, Oxford: 2015. BELTRAME, Priscila Akemi; SAHIONE, Yuri. “Informante do bem” ou whistleblower: críticas e necessários ajustes ao projeto. São Paulo: Boletim 317, IBCCRIM, abril/2019 CAMBI, Eduardo. Whistleblowing no pacote anticrime. São Paulo: Revista dos Tribunais, vol. 1006, 2019. CCJ – Sérgio Moro fala sobre pacote anticrime – 27/03/2019, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=viRikO487oQ, acesso em 13 de setembro de 2019. Disponível em: https://justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao- legislativa/projetos/anticrime-1#p18, acesso em 17 de setembro de 2019. G20 Anti-Corruption Action Plan PROTECTION OF WHISTLEBLOWERS, p. 3034, disponível em http://www.oecd.org/g20/topics/anti-corruption/48972967.pdf, acesso em 01 de outubro de 2019. https://justica.gov.br/seus-direitos/elaboracao-legislativa/projetos/anticrime-1, acesso em 17 de setembro de 2019. IBCCRIM. Nota técnica sobre o Pacote Anticrime, 2019. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal, 11ª edição, Editora Saraiva, São Paulo/SP. MARTINS, Luiza Farias. O "informante do bem" (whistleblower) no projeto "anticrime" do governo. Revista Consultor Jurídico (Revista Eletrônica), 2019 NEAR, Janet P.; MICELI, Marcia P. Organizational Dissidence: The Case of WhistleBlowing. Journal of Business Ethics, n. 4, fev. 1985. NUCCI, Guilherme de Souza. A denúncia anônima pode ser justificativa legal para a abertura de inquérito policial? E de indiciamento? In: Tratado Jurisprudencial e Doutrinário. Direito Processual Penal. Vol. I. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. OLIVEIRA, Juliana Magalhães Fernandes. A urgência de uma legislação whistleblowing no Brasil. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, Maio/2015 (Texto para Discussão nº 175). 276 ROCHA, Marcio Antônio, Subsídios ao debate para a implantação de programas de whistleblower no Brasil, AJUFE, 2016. Sérgio Moro detalha medidas do Projeto de Lei Anticrime, disponível em: http://www.ebc.com.br/noticias/2019/02/sergio-moro-fala-ao-vivo-sobre-projeto-de-leianticrime, acesso em: 14 de setembro de 2019. SILVA, Diogo. A Proteção do Whistleblower na Relação Jurídico-Laboral. 2017. Transparency International. Whistleblower protection… op. cit., 2013. 277 MEDIDA XX – ALTERAÇÃO DA COMPETÊNCIA PARA FACILITAR O JULGAMENTO DE CRIMES COM AUTORIDADES COM FORO (PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR N. 38/2019) Sob coordenação de Fernando Castelo Branco, Hélio Peixoto Junior e Sérgio Lopes Guimarães de Carvalho Bessa Elaborado por Alice Maria Lima Reis, Beatriz Tadim Carvalho, Carolina Arantes Araujo Costa, Clara Giovannetti Silva, Laura Ferrari Vieira, Leonardo Massari, Maria Carolina Giusti Rebouças, Renata de Oliveira Costa, Stella Soutto Mayor Totoli 1. Descrição da medida A Medida XX do Pacote Anticrime proposto pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, tem por objetivo modificar o regime de conexão para o processamento e julgamento dos crimes eleitorais e dos crimes comuns a eles conexos. Convertida no Projeto de Lei Complementar n° 38/2019, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, propõe a alteração de dispositivos do Código de Processo Penal e do Código Eleitoral. Em relação ao Código de Processo Penal, a Medida sugere o acréscimo do inciso III ao artigo 79, excepcionando a hipótese do caput, de conexão e continência entre processos, quando houver concurso entre a jurisdição comum e a eleitoral: Art. 79. A conexão e a continência importarão unidade de processo e julgamento, salvo: I - No concurso entre a jurisdição comum e a militar; II - No concurso entre a jurisdição comum e a do juízo de menores; e III - No concurso entre a jurisdição comum e a eleitoral A mudança do Código Eleitoral, por sua vez, visa suprimir os trechos da redação atual dos artigos 35 e 364 que autorizam a atração da competência à Justiça Eleitoral para o processamento e julgamento dos crimes comuns conexos aos crimes eleitorais: Art. 35. Compete aos juízes: (...) II - processar e julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe forem conexos, ressalvada a competência originária do Tribunal Superior e dos Tribunais Regionais; Art. 364. No processo e julgamento dos crimes eleitorais e dos comuns que lhes forem conexos, assim como nos recursos e na execução, que lhes digam respeito, aplicar-seá, como lei subsidiária ou supletiva, o Código de Processo Penal 278 Verifica-se, portanto, que a Medida consiste basicamente em restringir o espectro de competência da Justiça Eleitoral, de modo que caiba a ela processar e julgar somente crimes eleitorais, reservando-se à Justiça Comum o processamento e julgamento dos crimes comuns conexos àqueles. 2. Objetivos da medida Na Exposição de Motivos apensada ao Projeto de Lei, o Ministro Sergio Moro apresenta as seguintes justificativas para a alteração legislativa proposta: A experiência com processos oriundos de grandes operações deixou claro que, não raramente, os crimes conexos são de elevada complexidade, incluindo, por exemplo, lavagem transnacional de valores elevados. A Justiça Eleitoral, reconhecidamente célere nos seus julgamentos, não está bem estruturada para processar e julgar esses casos, cuja discussão jurídica lhe é totalmente estranha. Ela é eficiente e respeitada, exatamente por ser especializada. A exclusão dos crimes comuns conexos restituirlhe-á sua função original e permitirá que o Juízo Criminal comum, federal ou estadual, processe e julgue ações para as quais está preparado. Por fim, reafirma o escopo do projeto de lei, de dar maior efetividade e celeridade ao sistema de Justiça, e esclarece que a normativa ora proposta não gerará despesas, diretas ou indiretas. Não se desconhece, ademais, o contexto em que a proposta se dá. Tendo ganhado notoriedade por sua atuação como juiz federal à frente da Operação Lava Jato, o Ministro Sergio Moro busca, com a implementação da Medida, privilegiar a atuação da Justiça Comum (Justiça Estadual e Justiça Federal) em detrimento da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes comuns conexos a crimes eleitorais, que, em razão de muitas vezes envolverem atores políticos conhecidos, possuem grande repercussão social. A alteração legislativa, além disso, daria respaldo ao clamor público de combate à corrupção, uma das principais bandeiras a eleger o atual Governo. Isso porque incutiu-se no debate público, e na sociedade em geral, a ideia de que a Justiça Eleitoral não detém estrutura para exercer, adequadamente, o poder jurisdicional em relação aos crimes comuns conexos aos delitos eleitorais, levando, segundo esse raciocínio, a julgamentos morosos e à alegada impunidade de políticos corruptos. Também na linha de combate à corrupção, e pelo descontentamento da sociedade em relação à atuação do Supremo Tribunal Federal1, a Medida contraria o atual entendimento Segundo pesquisa Datafolha de abril de 2019, feita em escala nacional, o Supremo Tribunal Federal “merece muita confiança de 18%, um pouco de confiança 46% e nenhuma confiança de 32%” dos entrevistados”. 1 279 jurisprudencial, reforçado pelo Plenário da Suprema Corte nos autos do Inquérito n. 4.435/DF, no sentido de que a Justiça Eleitoral é competente para julgar crimes comuns que apresentam conexão com crimes eleitorais, cabendo também à Justiça especializada analisar, caso a caso, a existência de conexão de delitos comuns aos delitos eleitorais e, em não havendo, remeter os casos à Justiça competente (julgado em 14.03.19). 3. Constitucionalidade O exame de constitucionalidade de qualquer proposta legislativa envolve os aspectos formal e material. Do ponto de vista formal, deve-se verificar se o autor da proposta legislativa possui legitimidade para manejá-la; se o Poder destinatário da iniciativa de lei possui competência legislativa para tratá-la; e, por fim, se a espécie normativa escolhida é adequada. No tocante ao primeiro requisito, a matéria objeto do Projeto não se encontra no rol de iniciativas de lei privativas da Presidência da República (art. 61, § 2o, da Constituição Federal), não havendo, portanto, qualquer óbice à proposta partir de Ministro de Estado, como no presente caso. Em relação à competência legislativa, o artigo 22, caput, inciso I2 da Constituição Federal determina que é privativo à União legislar sobre direito penal e processual, bem como direito eleitoral. Portanto, para que sejam feitas alterações ao Código de Processo Penal e ao Código Eleitoral, é necessária a promulgação de lei federal, requisito também cumprido pelo Projeto. Por fim, a espécie normativa escolhida também está de acordo com o texto constitucional. A Medida foi proposta por meio de Projeto de Lei Complementar, tendo em vista que pretende alterar dispositivos do Código Eleitoral relativos à competência da Justiça Eleitoral. É exatamente a modalidade normativa adequada à opção feita pelo constituinte de que “lei complementar disporá sobre a organização e competência dos tribunais, dos juízes de direito e das juntas eleitorais” (art. 121, caput). Folha de São Paulo. Brasileiros vêem Forças Armadas como instituição mais confiável. Acesso em 11.10.2019. Disponível em <http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2019/04/1987746-brasileiros-veem-forcasarmadas-como-instituicao-mais-confiavel.shtml> 2 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I - direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. 280 Registre-se que não há inconstitucionalidade no fato de que a alteração ao Código de Processo Penal, também promovida no Projeto, se dê por meio de Lei Complementar, quando bastaria simples lei ordinária. Caso promulgada a Lei, os dispositivos relativos à alteração do Código de Processo Penal, serão recebidos no ordenamento jurídico como lei ordinária, conforme pacífico entendimento jurisprudencial3. O exame de constitucionalidade material, por sua vez, envolve a análise do conteúdo do projeto de lei, para se verificar se não há contrariedade a dispositivo constitucional e, sobretudo, violação aos direitos e garantias assegurados na Constituição Federal. O constituinte de 1988 optou por não estabelecer a competência da Justiça Eleitoral em matéria criminal, delegando-a ao legislador ordinário (art. 121, caput), não havendo, assim, qualquer incongruência do conteúdo do Projeto com o texto constitucional, nem violação aos direitos e garantias erigidos pela Carta Maior. O Projeto de Lei Complementar n. 38/2019 é, portanto, formal e materialmente constitucional. 4. Consequências da medida Como consequência positiva decorrente de eventual aprovação do Projeto, não haverá, a nosso sentir, prejuízo de o processamento e julgamento dos crimes comuns conexos aos eleitorais serem deslocados à Justiça Comum, que possui estrutura e magistrados especializados aptos a proporcionar a devida e justa prestação jurisdicional. Há, no entanto, consequências negativas de ordem prática que podem ser vislumbradas. Ao estabelecer a cisão da persecução penal de crimes que, pelo ordenamento jurídico em vigor, são instruídos e julgados em conjunto, o objetivo “de dar maior efetividade e celeridade ao sistema de Justiça”, conforme afirmado na Exposição de Motivos do Projeto, terá efeito contrário. Isso porque situações que permitiriam a unidade de processo e julgamento – como no caso de mesmos fatos, que, no entanto, constituem crimes de naturezas distintas ou acontecimentos diversos, mas que possuem liame material e/ou temporal –, seriam, de acordo com o Projeto, tratados por justiças diversas, afetando, em muitos casos, a produção probatória, núcleo duro do processo penal para fins de responsabilização dos acusados. 3 STF, Pleno, ADC n. 1-1/DF, Rel. Min. Moreira Alves, RTJ 156/745. 281 Veja-se, por exemplo, a situação – altamente possível de ocorrer – de uma mesma testemunha prestar depoimento em ambas as Justiças, sobre os mesmos fatos. A um só tempo, o Poder Judiciário seria onerado com a repetição, desnecessária, de atos instrutórios (custos dobrados com Oficial de Justiça, expedição de cartas precatórias, etc.), e o prolongamento da duração dos processos, em razão das instruções probatórias tramitarem em paralelo, afrontando, em última análise, o princípio constitucional da duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII). A separação dos processos, além disso, afetaria a segurança jurídica dos cidadãos, que consiste no “conjunto de condições que tornam possível às pessoas o conhecimento antecipado e reflexivo das consequências diretas de seus atos e de seus fatos à luz da liberdade reconhecida4”. Essa garantia seria fragilizada na medida em que ensejaria maior imprevisibilidade nas decisões judiciais, em razão da possibilidade de serem proferidas decisões conflitantes sobre fatos imbricados entre si. Registre-se, por fim, que o argumento central para a implementação da Medida, de que a Justiça Eleitoral “não está bem estruturada para processar e julgar esses casos, cuja discussão jurídica lhe é totalmente estranha”, constante da Exposição de Motivos do Projeto, não nos parece correto. Do ponto de vista da aptidão técnica, a Justiça Eleitoral é formada, em primeiro grau por juízes de direito (art. 32 do Código Eleitoral), em muitos casos oficiantes em varas criminais, plenamente aptos, portanto, a julgar crimes de qualquer natureza. Destaque-se, ainda, que os Tribunais Regionais Federais estão distribuídos nas capitais de todos os Estados e no Distrito Federal e que o Tribunal Superior Eleitoral é composto por ministros do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça (art. 119 da Constituição Federal). Além disso, tendo em vista a competência da Justiça Eleitoral para processar e julgar crimes comuns conexos aos eleitorais estar prevista no Código Eleitoral desde a sua promulgação, em 1965, possibilitou a construção de sólida jurisprudência a respeito de delitos dessa natureza. Não há que se falar, portanto, que a discussão jurídica dos crimes comuns conexos aos eleitorais é estranha à Justiça especializada. 4 DA SILVA, José Afonso. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo, Malheiros, 2006, p. 133. 282 Com relação à estrutura, o Poder Judiciário conta, atualmente, com 2.622 juízes eleitorais, segundo levantamento do Tribunal Superior Tribunal de julho de 20195. Não se pode afirmar, deste modo, que existe carência nesse aspecto. 5. Conclusão Não há, como exposto, vedação constitucional ao teor da Medida XX do Pacote Anticrime, consubstanciada no Projeto de Lei Complementar n. 38/2019, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados. Contudo, em razão das prováveis consequências práticas avistadas, somos pela não aprovação do Projeto, mantendo-se a previsão legal atual, reforçada pelo entendimento jurisprudencial, de que a Justiça Eleitoral é competente para processar e julgar crimes eleitorais e crimes comuns conexos. A mudança, para maior eficiência do sistema de justiça, se tiver que ocorrer, não deve se dar no campo legislativo, mas sim do ponto de vista estrutural, destinando-se maiores recursos para que a prestação jurisdicional da Justiça Eleitoral se dê a contento. 5 TSE. Saiba quantas e quais são as atribuições dos juízes eleitorais. Publicado em 26.07.2019. Acesso em 11.10.2019. Disponível em <http://www.tse.jus.br/imprensa/noticias-tse/2019/Julho/saiba-quantos-sao-e-quaisas-atribuicoes-dos-juizes-eleitorais> 283 CONCLUSÃO DO PROJETO E BREVE ANÁLISE DA LEI 13.964 Elaborado por André Antiquera Pereira Lima, Flora Negrelli, Thiago Villela Dutra O “Pacote Anticrime” em seu texto original, analisado exaustivamente no presente projeto, foi marcado pela inconstitucionalidade. A ótica moralista de suas proposições reflete assombroso populismo penal e completa desconexão com a realidade da justiça criminal brasileira. A constatação de violações constitucionais no projeto do Ministério da Justiça e Segurança Pública, proposto em fevereiro de 2019, reinou nas análises dos alunos e profissionais. Após meses de estudos, pôde-se concluir que 90% (noventa por cento) das medidas analisadas continham alguma inconstitucionalidade. Isso significa, portanto, que 18 (dezoito) das 20 (vinte) medidas estudadas eram completa ou parcialmente inconstitucionais. Apenas uma foi considerada inteiramente constitucional1, enquanto a outra não se ateve à constitucionalidade, sendo, porém, apontadas mazelas que decorreriam da eventual aprovação de cada medida proposta. Isso porque, segundo os nossos estudos, absolutamente todas as medidas do projeto original produziriam, caso aprovadas, efeitos graves, que ampliariam ainda mais a roda de injustiça que alimenta o sistema de justiça criminal brasileiro. Portanto, tem-se que o projeto original do Governo reflete em muito o seu precário comprometimento com os valores constitucionais, com os direitos e garantias fundamentais, e, por fim, com a ciência, o estudo e o diálogo. Como poderia ser aceitável que um projeto saído do Ministério da Justiça contenha 90% de assertivas com alguma inconstitucionalidade? E qual o compromisso do Governo com o pacto constituinte de 1988? Nos é muito claro que é mínimo. É inaceitável que o Planalto seja incapaz de dialogar com profissionais do direito, entidades representativas de categorias jurídicas e com a Academia, que estuda incansavelmente temas correlatos às propostas. Evidente que a consequência da falta de diálogo é a produção de uma totalidade de medidas que, de alguma forma, produzem efeitos avessos à plena realização do Estado Democrático de Direito. 1 Medida XX: alteração da competência para facilitar o julgamento de crimes com autoridades com foro. 284 Portanto, em razão das eventuais consequências do projeto original e da falta de diálogo do Governo, o Congresso Nacional acabou por desidratar o Pacote idealizado pelo ministro Sérgio Moro. O resultado foi a edição de Lei Ordinária que, apesar de são ser ideal, se revela, porém, heterogênea frente à disputa entre o garantismo e o punitivismo penal. Por fim, tendo em vista a aprovação e sanção da Lei n° 13.964/2019 em dezembro, impõe-se breve análise de seu conteúdo, para fins de conclusão do presente projeto, de forma contextualizada e vinculada à atualidade. Alterações no Código Penal No Código Penal, as alterações previstas na proposta inicial de Sérgio Moro foram, em sua maioria, barradas ou modificadas pelo texto substitutivo votado pelo Congresso. De nove modificações, apenas uma manteve o texto original. O projeto aprovado recebeu apenas dois vetos presidenciais. Em relação aos temas de excludente de ilicitude e legítima defesa, a proposta original visava permitir a não aplicação da pena ou sua redução em até metade nas hipóteses em que o agente agisse com excesso doloso ou culposo em razão de "escusável medo, surpresa ou violenta emoção". Também pretendia aumentar as possibilidades de legítima defesa para policiais ou agentes de segurança, nas hipóteses “de conflito armado ou em risco iminente de conflito armado” e para prevenir agressão ou risco de agressão a reféns2. O substitutivo aprovado pelo Congresso manteve apenas o trecho do original que trata como caso de legítima defesa "o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes” 3. A mudança ampliou, portanto, as situações em que o excludente de ilicitude se aplica. Como já mencionado nas análises neste estudo ventiladas, os efeitos desta alteração se aplicam em relação a um agente que, treinado, poderá exceder sua atuação, utilizando de força letal em detrimento do bem jurídico “vida”. A conclusão do grupo que analisou tal medida é a No texto do projeto original: Art. 25. ...................................................................................................... Parágrafo único. Observados os requisitos do caput, considera-se em legítima defesa: I - o agente de segurança pública que, em conflito armado ou em risco iminente de conflito armado, previne injusta e iminente agressão a direito seu ou de outrem; e II - o agente de segurança pública que previne agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes. 3 Artigo 25, parágrafo único, do Código Penal, conforme redação da Lei Ordinária 13.964/2019. 2 285 possibilidade de legitimação do aumento no número de civis mortos por agentes de segurança pública no Brasil4. O segundo tema do Código Penal objeto de alterações faz referência à execução de multas. O projeto inicial visava permitir a execução de multas sem o trânsito em julgado da sentença5. No entanto, no substitutivo, os parlamentares retiraram tal dispositivo, mantendo apenas o trecho proposto por Moro que determina que a multa será aplicada pelo juiz da Execução Penal, e não mais pela Vara das Execuções Fiscais (como ocorre atualmente)6. A terceira alteração no Código Penal se refere ao artigo 75. Ela não era prevista no texto inicial, tendo o substitutivo seguido os moldes de outra proposta, elaborada em 2018 por uma comissão de juristas coordenada pelo então Ministro da Justiça Alexandre de Moraes. O projeto encaminhado por Alexandre de Moraes ampliava o limite de tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade de 30 para 40 anos. Segundo o atual Ministro do STF, as justificativas seriam (i) o aumento na expectativa de vida do brasileiro, o que tornaria esse aumento proporcional ao cumprimento da pena e (ii) a maior coerção na prevenção de crimes, por meio do tempo maior de cumprimento de pena. Essa alteração é flagrantemente inconstitucional, tendo em vista que viola os princípios da dignidade da pessoa humana, além de reproduzir a falácia de que o endurecimento das penas leva à diminuição/prevenção de crimes. Segundo o ex-presidente da OAB/SP Luiz Flávio Borges D’urso todas as vezes que, historicamente, a humanidade tentou reduzir criminalidade aumentado penas, colheu frustração. O que reduz a criminalidade é a certeza da punição (independente do tempo dessa punição), e antes dela, condições sociais de dignidade, educação e oportunidade para todos. O Brasil tem insistido no aumento de pena e no endurecimento do sistema penal, desde a Lei dos Crimes Hediondos (lei 8.072/90), para tentar reduzir a criminalidade que só aumentou nestas três décadas. Mais uma vez o legislador brasileiro insiste no equívoco7. Já os requisitos do livramento condicional foram o quarto tema alterado no Código Penal. Ao inciso III do artigo 83 do CP foi acrescida, pela sanção do presidente, a necessidade 4 Tema analisado na medida IV, que trata das alterações no instituto de legítima defesa. Tema correlato à execução provisória da pena, analisada na medida I. 6 Artigo 51 do Código Penal, conforme redação da Lei Ordinária 13.964/2019. 7 MARTINES, Fernando. Advogados criticam aumento de pena máxima para 40 anos de prisão. Publicado em 25 de dezembro de 2019. Acesso em 1 de fevereiro de 2019. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-dez25/advogados-criticam-aumento-pena-maxima-40-anos-prisao> 5 286 de comprovação do não cometimento de falta grave nos últimos 12 meses. A alteração não estava na proposta inicial de Moro. Já o quinto tema modificado é relativo ao alargamento do perdimento de bens. O texto inicial permitia a perda “dos bens correspondentes à diferença entre o valor do patrimônio do condenado e aquele que seja compatível com seu rendimento lícito”, e não apenas os que comprovadamente foram meio, produto ou proveito do crime.8 No substitutivo, foi acrescido ao original a proposta de Alexandre de Moraes, segundo a qual só o Ministério Público poderia pedir a perda ao oferecer a denúncia. Além disso, retirouse a condicionante prevista no parágrafo primeiro do texto inicial, relativa à existência de elementos que indicassem conduta habitual, reiterada ou profissional ou sua vinculação a organização criminosa. O texto aprovado determina a perda de bens obtidos com dinheiro ilícito ou procedente do crime para condenados a penas maiores de 6 anos9. De acordo com o criminalista Pierpaolo Bottini, a nova regra inverte o ônus da prova, impondo ao condenado o dever de demonstrar a origem lícita de seus bens, quando o princípio da presunção da inocência impõe ao Estado a obrigação de provar fatos que justifiquem a intervenção estatal na liberdade e no patrimônio do réu. A inexistência de provas sobre a origem lícita ou ilícita dos bens do acusado deveria presumir sua legitimidade e não o contrário10. A sexta alteração foi referente à prescrição. O texto original previa que a prescrição da pena ficaria suspensa se houvesse pendência de embargos de declaração ou de recursos enviados aos Tribunais Superiores considerados inadmissíveis. O projeto substitutivo incluiu esta nova hipótese de suspensão da contagem prescricional das penas nos mesmos termos do texto inicial. Assim, no texto sancionado, no artigo 116 do CP, foi alterada a redação do inciso II (do termo “estrangeiro” para ‘exterior”)11 e criados os incisos III e IV, tornando a pendência de embargos de declaração ou de recursos aos Tribunais Superiores e o não cumprimento ou não rescisão do acordo de não persecução penal em novas causas suspensivas de prescrição. 8 Conforme analisado no âmbito medida VIII 9 Artigo 91-A do Código Penal, conforme redação da Lei Ordinária 13.964/2019. 10 BOTTINI, Pierpaolo. Direito penal, processo penal e colaboração premiada na lei "anticrime". Publicado em 6 de janeiro de 2020. Acesso em 4 de fevereiro de 2019. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2020-jan06/direito-defesa-direito-penal-processo-penal-delacao-lei-anticrime> 11 Artigo 116. Antes de passar em julgado a sentença final, a prescrição não corre: II - enquanto o agente cumpre pena no exterior. 287 Os princípios da prescritibilidade dos crimes, do contraditório e ampla defesa, da presunção de inocência, da dignidade da pessoa humana, da legalidade da duração razoável dos processos são feridos de morte com tal alteração12. As últimas três alterações foram referentes aos tipos penais do roubo, estelionato e concussão. O crime de roubo foi alterado de forma que, agora, aumenta-se em 1/3 também na hipótese do inciso VII do artigo 155 do CP, no caso de “a violência ou grave ameaça [ser] exercida com emprego de arma branca”. Além disso, foi acrescentado o §2º-b, que dispõe que: “se a violência ou grave ameaça é exercida com emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido, aplica-se em dobro a pena prevista no caput deste artigo”13. O texto segue a proposta do substitutivo e contraria a o original de Moro, que previa que os condenados por roubo com uso de arma de fogo ou com lesão corporal grave também começassem a cumprir pena obrigatoriamente em regime fechado. Já o crime de estelionato tornou-se ação penal condicionada à representação. Tal alteração não estava prevista no projeto inicial. Por fim, no crime de concussão, a pena máxima foi aumentada de 8 para 12 anos de reclusão. Tal alteração também não foi prevista pelo texto de Sérgio Moro14. Além disso, o projeto aprovado pelo Congresso visava alterar o artigo referente ao crime de homicídio: pretendia acrescentar a qualificadora do emprego de arma de fogo de uso restrito ou proibido como inciso VIII do §2º do artigo 121 do Código Penal. No entanto, a alteração foi vetada e o artigo continua com a mesma redação. Outra mudança não sancionada foi a pretensão de aplicar a pena em triplo em casos de crimes contra honra, quando cometidos ou divulgados em quaisquer modalidades das redes sociais. Com o veto, não ocorre a alteração pretendida pelo Projeto de Lei de acrescentar um §2º ao artigo 141 do CP. Alterações no Código de Processo Penal No Código de Processo Penal foram feitas algumas das alterações que tiveram a maior visibilidade dentro de todo o substitutivo aprovado. A primeira delas é a criação do Juiz das 12 Tema analisado pela medida X. Tema analisado pela medida VII. 14 A crítica ao aumento de penas lato sensu foi abrangida pela análise feita da medida VII. 13 288 Garantias, por meio da inserção dos artigos 3º-A a 3º-F no CPP – previsão esta que não constava do projeto original enviado pelo Ministro Sérgio Moro. Apesar disso, é instituto vigente em sistemas jurídicos mundo afora, haja vista que, conforme dito por Alberto Toron (fazendo referência ao Professor Gustavo Badaró), a “Corte Europeia de Direitos Humanos de longa data tem rechaçado o modelo do juiz que atua tanto na fase de investigação como na do julgamento da causa”15. Nesse sentido, tem-se que a divisão de competência entre o juiz que atua na fase investigatória e o que atua na ação penal contribui imensamente à imparcialidade no julgamento do feito, conforme se verá mais adiante – tendo em vista que o magistrado que atua em ambas as fases pode formar preconcepções a partir dos elementos probatórios com os quais tem contato durante o inquérito policial. Sendo assim, impõe-se análise pouco mais detalhada dos artigos recém-criados. Em suma, o Juiz das Garantias irá atuar na fase do inquérito policial até o recebimento (ou não) da denúncia ou queixa16. Será responsável pelo “controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário”17, com poder para conceder medidas cautelares, determinar prisões preventivas, julgar habeas corpus oferecidos antes do advento da denúncia (quando não for ele mesmo a autoridade coatora), zelar pela legalidade das prisões em flagrante e, por fim, receber ou rejeitar a denúncia. O juiz que atuará na ação penal, - ou seja, após o recebimento da denúncia pelo Juiz das Garantias – passa a ser chamado Juiz da Instrução e Julgamento, que terá competência para atuar em toda a fase instrutória da ação penal até proferir a sentença. Assim, clarividente que a intenção do legislador foi garantir a imparcialidade do julgador, que não será “contaminado” pelas provas produzidas na fase investigatória. Uma das mudanças mais importantes é que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhados ao Juiz de Instrução, ou seja, o resto ficará acautelado com o Juiz das Garantias18 - o que, na prática, acaba com o uso manipulado de declarações da fase investigatória, valendo somente o produzido oralmente perante o Juiz da BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 3.ª edição, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 2015, pág. 42. Artigo 3º-C. A competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código. 17 Artigo 3º-B. 18 Artigo 3º-C §3º Os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias ficarão acautelados na secretaria desse juízo, à disposição do Ministério Público e da defesa, e não serão apensados aos autos do processo enviados ao juiz da instrução e julgamento, ressalvados os documentos relativos às provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas, que deverão ser remetidos para apensamento em apartado. 15 16 289 Instrução e Julgamento19. Além disso, ressalta que somente serão levadas à ação penal as provas irrepetíveis e imprescindíveis à instrução, não mais juntando o inquérito na íntegra. Por fim, também é o Juiz das Garantias encarregado de pôr fim ao sadismo justicialista que permite autoridades usarem de um preso para promover uma lex talionis midiática, devendo o magistrado assegurar “o cumprimento das regras para o tratamento dos presos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão”20. Para além do instituto do Juiz das Garantias, as alterações no Código de Processo Penal também surgem por caminhos com pouco menos de visibilidade. Uma delas é a importante inserção do parágrafo 5º no artigo 157, impondo-se a sua transcrição por completo: “o juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão” – fortalecendo, portanto, a barreira legal à utilização de prova ilícita ou inadmissível na formação do convencimento do julgador. Há, também, a nova redação do artigo 2821, que trata do arquivamento de inquérito e da competência para contestá-lo. A alteração, além de retirar o juiz da linha acusatória, possibilita à vítima submeter decisão de arquivamento, no prazo de 30 dias, à “revisão da instância competente do órgão ministerial”22. Acerca de ambas as inovações, Aury Lopes Jr., em artigo que trata especificamente das mudanças no arquivamento de inquérito pelo Ministério Público, afirma que: A determinação serve de mecanismo de controle ideológico dos membros do Ministério Público que não poderão mais agir diretamente com o Juiz de primeiro grau. O lado positivo é que exigirá maior esforço de análise do caso, enquanto o lado negativo é o de que diante da LOPES, Aury e DA ROSA, Alexandre Morais. Entenda o impacto do Juiz das Garantias no Processo Penal. Publicado em 27 de dezembro de 2019. Acesso em 23 de janeiro de 2020. Disponível em <https://www.conjur.com.br/2019-dez-27/limite-penal-entenda-impacto-juiz-garantias-processo-penal> 20 Artigo 3º-F. 21 Art. 28. Ordenado o arquivamento do inquérito policial ou de quaisquer elementos informativos da mesma natureza, o órgão do Ministério Público comunicará à vítima, ao investigado e à autoridade policial e encaminhará os autos para a instância de revisão ministerial para fins de homologação, na forma da lei. §1º Se a vítima, ou seu representante legal, não concordar com o arquivamento do inquérito policial, poderá, no prazo de 30 (trinta) dias do recebimento da comunicação, submeter a matéria à revisão da instância competente do órgão ministerial, conforme dispuser a respectiva lei orgânica. §2º Nas ações penais relativas a crimes praticados em detrimento da União, Estados e Municípios, a revisão do arquivamento do inquérito policial poderá ser provocada pela chefia do órgão a quem couber a sua representação judicial 22 Parágrafo 1º da nova redação do artigo 28, CPP. 19 290 revisão obrigatória, tende-se a denunciar mais. Diretamente: no novo contexto é mais fácil denunciar do que arquivar. Logo em seguida, na redação do artigo 28-A, foi criado o acordo de não persecução penal – um dos pontos mais relevantes da Lei 13.964/2019, especialmente por ser instituto novo ao Código de Processo Penal23. Os requisitos à realização do acordo, na redação do novo artigo, são (i) não ser caso de arquivamento e (ii) ter “o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos”24. O dispositivo, em suma, serve ao imputado que “se conforma com a imposição de sanção (não privativa de liberdade) em troca de eventual benefício, como redução da pena e a não configuração de maus antecedentes”25 – e possui algumas diferenças com a redação inicial proposta pelo Ministro Sérgio Moro26, no qual o cabimento do acordo seria limitado a crimes com pena máxima inferior a 4 anos, e não pena mínima, conforme o texto aprovado e vigente. Acerca do perdimento de bens, a nova Lei transformou o Ministério Público em legitimado ativo, além de inserir um parágrafo 2º no qual consta o recolhimento de valor apurado ao Fundo Penitenciário Nacional: Art. 133. Transitada em julgado a sentença condenatória, o juiz, de ofício ou a requerimento do interessado ou do Ministério Público, determinará a avaliação e a venda dos bens em leilão público cujo perdimento tenha sido decretado. § 1º Do dinheiro apurado, será recolhido aos cofres públicos o que não couber ao lesado ou a terceiro de boa-fé. § 2º O valor apurado deverá ser recolhido ao Fundo Penitenciário Nacional, exceto se houver previsão diversa em lei especial (grifos nossos). Mais adiante, nos artigos 158-A até 158-F, foi positivada a cadeia de custódia, instituto que assegura a integridade dos elementos probatórios e cria um roteiro a ser seguido para “documentar a história cronológica do vestígio coletado em locais ou em vítimas de crimes”27. Há, também, a importante criação do parágrafo 2º no artigo 282, que delimita que medidas cautelares serão decretadas pelo juiz somente a requerimento das partes ou por Anteriormente, havia apenas uma Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (Res. n° 181/2017, modificada pela Res. 183/2018) em termos semelhantes. 24 Redação do caput do artigo 28-A. 25 DE VASCONCELLOS, Vinícius Gomes. Comentários sobre as alterações processuais penais aprovadas pelo Congresso Nacional no Pacote Anticrime modificado (PL 6.341/2019). Publicado em 12 de dezembro de 2019. Acesso em 3 de fevereiro de 2020. Disponível em < https://www.conjur.com.br/2019-dez-12/opiniao-alteracoesprocessuais-penais-pacote-anticrime> 26 Analisado no presente trabalho no capítulo que trata da medida XIII. 27 Artigo 158-A. 23 291 representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público – retirando a possibilidade de decretação de medidas cautelares de ofício28. Mesmo princípio levou à alteração no artigo 311, retirando a possibilidade de decretação de prisão preventiva de ofício29. Duas alterações, porém, merecem destaque: a primeira é a positivação do instituto das audiências de custódia, e, a segunda, as alterações referentes às prisões preventivas. No primeiro caso, apesar de já presente na Convenção Americana de Direitos Humanos30 (da qual o Brasil se tornou signatário em 1992), a audiência de custódia somente estava regulamentada devido à Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e, apenas agora, com a aprovação da Lei n° 13.964/2019, incorpora-se à legislação processual penal brasileira, em seu artigo 310 – e estabelece como prazo de realização 24 horas após o recebimento do auto de prisão em flagrante pelo juiz31. Além disso, estabelece que, transcorridas 24 horas do decurso desse prazo, sem a realização da audiência de custódia e ausente motivação idônea, será obrigatório o relaxamento da prisão em flagrante, ou seja, será declarada a ilegalidade da prisão32. Apesar da inovação legislativa em finalmente positivar o instituto no processo penal brasileiro, o prazo para relaxamento obrigatório da prisão em flagrante, estabelecido no artigo 310 §4º, pode ser considerado prazo suplementar ao estabelecido no caput do artigo, ou seja, dobra-se na prática o prazo de 24 horas – fazendo com que o lapso temporal entre o auto de prisão em flagrante e a obrigatória determinação de relaxamento seja de 48 horas no total. Apesar disso, nem tudo é avanço: o parágrafo 2º do artigo 310 cria verdadeira prisão obrigatória, nos casos em que o magistrado verificar que “o agente é reincidente ou que integra organização criminosa armada ou milícia, ou que porta arma de fogo de uso restrito”, impedindo o deferimento de pedido de liberdade provisória. A problemática reside na proibição do juiz em Que, apesar de formalmente impedir o juiz de decretar medidas cautelares de ofício, pode acabar sendo inócua - uma vez que na grande maioria dos casos já é o Ministério Público a requerer a realização dessas medidas. 29 A nova redação dispõe que “em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial” – ou seja, retira a expressão “de ofício” após determinar que caberá prisão preventiva decretada pelo juiz. 30 Artigo 7.5: “Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer judiciais (...)” 31 Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público (...). 32 No artigo 310 §4º. 28 292 analisar os requisitos específicos da cautelaridade – essa presunção é avessa à ordem constitucional, uma vez que só se admite a prisão provisória analisando, no caso concreto, se há necessidade de sua manutenção. No segundo caso, que diz respeito ao instituto das prisões preventivas, a nova Lei estabelece que a decisão que a decreta deverá ser fundamentada na existência concreta de fatos novos e contemporâneos33 e que não será admitida com a finalidade de antecipação de cumprimento da pena34. Há, porém, o divisor de águas: o artigo 316, que em seu parágrafo único, estabelece que o órgão que decretou a prisão preventiva deverá periodicamente revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, sob pena de torná-la manifestamente ilegal. Alterações na Legislação Especial Uma das primeiras medidas modificadas dentre a legislação especial brasileira é o endurecimento do Regime Disciplinar Diferenciado – que não constava do projeto original enviado pelo ministro Sérgio Moro. A alteração aumenta o prazo máximo de permanência em RDD, de trezentos e sessenta dias para dois anos35, além de retirar a previsão de que a repetição da sanção por nova falta grave somente poderia se estender até um sexto do total da pena – retirando, portanto, esse limite. Logo após essa mudança, outra medida que serve somente ao endurecimento do sistema prisional brasileiro é a alteração no artigo 112 da Lei de Execução Penal, que modificou os requisitos à progressão de regime, criando rol de porcentagem que varia entre 16% e 70% de cumprimento do total da pena para possibilitar a progressão a regime menos gravoso 36. Além disso, outra medida punitivista da nova Lei é a ampliação do rol dos crimes hediondos37, incluindo o furto qualificado com emprego de explosivo, roubo circunstanciado pela restrição de liberdade da vítima, dentre outros. Outra relevante modificação possui relação com o regime jurídico dos presídios federais de segurança máxima, alterando a Lei 11.671/08. Dispõe sobre a transferência, inclusão e permanência dos presos nos presídios federais a partir da reformulação dos art. 2º, 3º, 10 e 11. Artigo 312 §2º. Artigo 313 §2º. 35 Artigo 52 da Lei de Execução Penal. 36 O tema do endurecimento do cumprimento de pena foi explorado, lato sensu, na medida V. 37 Na Lei 8.072/1990. 33 34 293 Pelo texto original do ministro Sérgio Moro, o prazo de permanência de detentos em regimes federais seria de no máximo 3 anos, prorrogáveis por igual período por solicitação do juiz – e, também, previa a gravação dos atendimentos entre preso e advogado. No substitutivo, foi excluída a permissão para a gravação das conversas entre detentos e advogados e mantidas as outras inconstitucionalidades. Isso porque a competência do juízo federal é regida unicamente pela Constituição Federal de 1988 (no artigo 109), não sendo permitido à legislação ordinária elaborar normas desta matéria, o que, inclusive, já foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal, na ocasião do julgamento da ADI 2.473: Competência da Justiça Federal definida na Constituição, não cabendo a lei ordinária e, menos ainda, a medida provisória sobre ela dispor (ADI 2.473‑MC, Rel. Min. Néri da Silveira, julgamento em 13-9-2001, Plenário, DJ de 7-11-2003)38. Mais adiante, há a criação do Banco Nacional de Perfis Balísticos. O texto original previa, pela alteração do Estatuto do Desarmamento, a criação desse mesmo banco de dados (Lei 10.823/2003, art. 34-A). Tal medida pretende, nos termos do parágrafo primeiro da supracitada lei, “cadastrar armas de fogo e armazenar características de classe e individualizadoras de projéteis e de estojos de munição deflagrados por arma de fogo” a fim de auxiliar as apurações criminais nacionais, sendo seus dados sigilosos e vedada a comercialização destes dados. O substitutivo foi completamente fiel ao projeto de Moro. Essa alteração, como já previamente constatado39, não apresenta impedimentos constitucionais ou convencionais, podendo, inclusive, facilitar a investigação criminal. No entanto, é necessário ressaltar a importância de fiscalização e acompanhamento do banco de dados, tendo em vista sua natureza penal. A última alteração é relativa ao tema do “informante do bem”. O texto inicial visava a introdução no ordenamento jurídico brasileiro do whistleblower, por meio de alterações na Lei 13.608/2018. Propunha que o informante reportasse voluntariamente e de boa-fé condutas ilícitas ou antiéticas ocorridas em organizações, públicas ou privadas, por terceiro que não tenha nelas se envolvido, sob garantia de sua não retaliação, de anonimato e, se da apuração do fato 38 DEFENSORIA PÚBLICA DA UNIÃO. Nota Técnica da Defensoria Pública da União em face do Pacote de Sugestões Legislativas apresentadas em 04 de fevereiro de 2019 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Brasília, 13 de maio de 2019. Disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/nota-tecnica-defensoria-publicauniao.pdf. Acesso em: 14 de outubro de 2019. 39 Tema analisado na medida XVIII. 294 resultar recuperação de ativos aos cofres públicos, de recompensa consistente no recebimento de uma porcentagem do valor recuperado. O projeto substitutivo, em relação ao “informante do bem”, manteve a maior parte das propostas de Moro. No entanto, retirou dois trechos do texto original: (i) o artigo que determinava que, caso a divulgação da identidade do informante fosse imprescindível, o autor da denúncia poderia optar entre a revelação da identidade ou a perda do valor probatório do depoimento prestado, e (ii) o artigo que estabelecia que, quando mantida a identidade do informante, ninguém poderia ser condenado apenas com base no depoimento prestado. No entanto, resta a crítica acerca do anonimato. Sem a informação de quem depôs contra si, a defesa é prejudicada, especialmente por conta de ceifar toda uma possível estratégia defensiva. Sem efetivo contraditório e ampla defesa, enfraquece-se o postulado constitucional do devido processo legal, sem o qual torna-se ilegítima a eventual privação de liberdade ao final do processo40. Por fim, em relação à colaboração premiada41, o projeto inicial incluía a possibilidade de soluções negociadas pela prática de crimes e por improbidade. O acordo teria que ser proposto pelo Ministério Público e dependeria da reparação do dano causado à vítima. Já o substitutivo mudou as regras sobre delação, prevendo que nenhuma medida cautelar e recebimento de denúncia ou queixa-crime poderá ser decretada ou apresentada apenas com as declarações do delator. Determina também que o acordo e os depoimentos do delator serão mantidos em sigilo até o recebimento da denúncia e que, não sendo o acordo de colaboração confirmado, o celebrante não poderá utilizar as informações ou provas apresentadas para quaisquer outras finalidades. Conclusão Em suma, o texto aprovado pelo Congresso alterou significativamente o Pacote Anticrime original enviado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública. Apesar disso, diversos artigos propostos pelo Ministro Sérgio Moro foram mantidos na Lei 13.964/2019, e diversos outros, apesar de barrados, seguem sendo alvo de intenso debate nacional e continuarão em pauta no âmbito do Poder Legislativo e Judiciário, além de na Academia. Assim, com muito prazer, encerramos o presente projeto, tendo tido a oportunidade de 40 41 Tema analisado na medida XIX. Artigo 3°-A, 3°-B, 4° e 4°-A. 295 contextualizar os estudos feitos à luz das mais recentes alterações feitas no ordenamento jurídico brasileiro. São Paulo, 12 de fevereiro de 2020 296