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Lasciatemi morire, de Cláudio Monteverdi Um madrigal dramático. Prof. Dr. Abel Luís Bernardo da Rocha As construções musicais utilizadas por Claudio Monteverdi, mais do que uma maneira de organizar o discurso musical, refletem uma proposta dramatúrgica do compositor, no que concerne ao re-significado do texto. O texto poético, com seu significado próprio, ao ser reorganizado em suas repetições, em diversas tessituras vocais, sobreposições textuais e outros procedimentos composicionais próprios da seconda pratica, notadamente aqueles que são utilizados para a construção das melodias e encontros harmônicos, externa um significado novo, muitas vezes distante do original puramente literário. Monteverdi, ao elaborar processos melódicos com soluções distintas daquelas palestrinianas, com seu modo peculiar e individual de tratar as dissonâncias (melódicas e harmônicas), constrói uma nova dramaturgia e aponta suas próprias possibilidades interpretativas. O termo MADRIGAL, assim como vários outros da linguagem musical, tem sua origem na terminologia própria às formas literárias, e com o passar do tempo assumiu diversos significados. Hoje em dia pode indicar inclusive um pequeno conjunto vocal dedicado à prática da música sem acompanhamento instrumental. Originariamente, dizia respeito a uma forma poético-literária da Itália do século XIV. Estrofes de 3 versos (às vezes 2) e um ritornello final com mais 1 ou 2 linhas, a música utilizada era geralmente distinta para os primeiros versos e para o ritornello, repetindo-se nas estrofes seguintes. A maioria dos exemplos existentes são a 3 vozes, com alguns poucos a 2. Esse gênero literário-musical entrou em desuso na primeira metade do século XV. O madrigal (poético) italiano do Cinquecento deve seu estilo a Petrarca. O estilo musical em voga - a Frotolla, também um nome emprestado da forma literária que lhe servia de suporte— não possuía o requinte musical equivalente aos novos textos. Os compositores começam a buscar uma representação musical das principais idéias e sentimentos inerentes aos textos. Isso levará a uma forma musical independente da forma do poema, pois não mais será possível representar com a mesma música os sentimentos diversos das diferentes estrofes. Disseminado por toda a Europa, o madrigal foi mais e mais assumindo, principalmente na Itália, características dramáticas, dando espaço às mais diferentes experimentações musicais (madrigais cromáticos de Scheidt ou Gesualdo), infiltrando-se na música sacra, gerando conjuntos de obras que beiravam a teatralidade (comédias madrigalescas de Banchieri e Vecchi), tendo sobrevivido até o início do Barroco, e passado por profunda modificações na primeira metade do séc. XVII. Nossa grande dificuldade hoje em dia, enquanto intérpretes, é conseguir recuperar o efeito dramático de tais peças, pois o ouvido de nosso público, acostumados aos mais de 400 anos de prática musical que nos separam dessa prática, não mais está apto a se chocar com a linguagem musical daquele repertório. Muitos crêem que essas peças devam ser executadas por serem “fáceis” de entoar, por serem “bonitas” e “agradáveis ao ouvido”, por serem uma “boa escola para o canto coral”, pois as comparam com a linguagem harmônica do romantismo do século XIX e da música do século XX, desconhecendo as regras próprias que orientam a música do século XIV ao XVIII (que em nada se assemelham aos conceitos atuais de harmonia e contraponto como ministradas em nossas escolas). Quanto desse repertório não foi escrito para chocar os ouvintes, para ser agressivo, rude e até mesmo feio? Quanto não foi escrito para romper com a tradição musical de sua época, procurando ser mais “expressivo” na representação do texto literário do que a prática musical até então vigente? Quantas e quantas peças não procuraram ressaltar a sensualidade embutida no texto, o aspecto cômico ou trágico? Executá-las, desconhecendo suas próprias regras musicais, é perder a oportunidade de mostrar o quanto esse repertório é vivo, forte e emocionante. Não podemos esquecer que, diferentemente de hoje em dia, onde nosso público, com medo de ouvir a produção musical contemporânea (provavelmente temendo encontrar nela um reflexo de nossa contemporaneidade) volta-se para aquela do passado, a música ouvida até o início do século XX era exclusivamente “contemporânea”, escrita para um público consumidor ávido de novidades e surpresas. Uma peça que pode exemplificar bem essas características é “Lasciatemi morire”, de Claudio Monteverdi. Originalmente escrita como ária para a personagem título de sua ópera perdida “Ariana” (1608), ganhou do próprio compositor uma versão a cinco vozes em seu sexto livro de madrigais (1614). Esse madrigal é baseado na primeira parte da ária —o único trecho remanescente da ópera— um “Lamento” da personagem Ariana, após perder seu amado e com ele a esperança na felicidade. Monteverdi organiza a composição da ária em três partes: um ABA onde na Lasciatemi morire Deixai-me morrer. E chi volete voi E quem desejais che mi conforte que me conforte in cosi dura sorte em tão dura sorte in cosi gran martire? em tão grande martírio? Lasciatemi morire Deixai-me morrer. primeira e na última (A) utiliza o primeiro verso, repetido 2 vezes e na segunda (B) utiliza os versos 2 a 5. Na versão para coral, a estrutura se transforma em AB’aBA (o primeiro “B” do madrigal transposto uma 5ª abaixo da ária original e o “a” central correspondendo aos primeiros três compassos do “A”). Considerando-se as claves usadas por Monteverdi (exemplo 1), as vozes originais seriam: S, S, A, T e B. Exemplo 1 Porém, pela tessitura de cada uma delas e a utilização dadas às vozes —o primeiro “B” é claramente um trio de vozes graves, o “a” nitidamente uma oposição das vozes femininas (Arianna) contra a linha do baixo (contínuo)— acredito que a melhor distribuição vocal para a execução desta peça seja SATTB, conseguindo assim os efeitos dramatúrgicos sugeridos na partitura. Começando pela parte “A”.(exemplo 2) Se tomarmos por base todas as regras de escritura a vozes de nossas infindáveis aulas de contrapondo e harmonia, poderemos ver quantos “erros” cometeu Monteverdi num trecho tão curto: Logo de início, o intervalo de sexta maior (!) entre contralto e baixo (uma consonância imperfeita). Nesta época, o # só apareceria como sensível de tonalidades —utilizado primordialmente em cadências— ou como picardias em acordes finais. O Intervalo caminha para uma dissonância (7ª) e, pelas características harmônicas do período, deveria retornar à sexta (sensível), resolvendo a tensão, com as duas vozes terminando então em sol. Porém, sol não é a tônica. O paralelismo de contralto e soprano poderia ocorrer como dupla bordadura superior SE o baixo fosse um ré, porém, feitas sobre a nota lá do baixo, transformam esse lá em dissonância, forçando sua resolução descendente. Exemplo 2 Pela colocação rítmica da nota sol do baixo (sincope), ele deveria continuar seu passo melódico por grau conjunto descendente, até sua resolução, no compasso 2 (exemplo 3). Exemplo 3 Porém é, novamente transformado em consonância, numa situação onde nenhuma das três vozes muda de nota no tempo forte do segundo compasso (!). Logo em seguida, a voz da soprano salta por 4ª descendente para outra dissonância (!), indo entoar uma nota mais grave que a voz da contralto sustentava (!). Seguem as entradas sucessivas dos tenores em notas dissonantes do acorde sustentado por SAB (a nota ré contra o acorde de lá maior, comp. 3 e 4); o duplo cromatismo nas vozes de soprano e tenor (comp. 5), salto para a dissonância (7ª, no tenor II, comp. 5), intervalos de sextas descendentes seguidos de grau conjunto também descendente (!) na contralto (sexta maior) e soprano (sexta menor) no comp. 6, com a soprano saltando para uma dissonância formando uma sétima com o baixo. A parte 'A' revela a construção de uma enorme tensão. Após uma curta, porém contida e dolorida pronúncia do verso inicial, com as três vozes que entoam o morire distantes apenas uma terça entre si, Monteverdi inicia a repetição insistente desse texto, tal qual um grito de dor que se eleva nas 5 entradas consecutivas de lasciatemi (comp. 3 a 6), para, numa movimentação descendente, onde (comp. 7), mais que entoar em intervalos melódicos proibidos (sétimas), as três vozes superiores (soprano, alto e tenor) mudam subitamente de registro, na palavra morire, encerrar sua expressão de dor, como se não tivessem mais força para sustentar suas vozes. A parte B’ apresenta o questionamento da personagem. Repare nos saltos para dissonâncias entre as vozes de Tenor I e Baixo nas palavras volete e “dura”; a falsa relação (fá# - fa natural) no che mi conforte, cria uma enorme instabilidade harmônica. (exemplo 4) Exemplo 4 Essa nova tensão é novamente interrompida pelo grito de dor lasciatemi morire. Na segunda aparição do B, todo o trecho é repetido, agora uma quinta acima e com as 5 vozes, ampliando a densidade dramática da música em seus diversos parâmetros. É fácil perceber que o importante para Monteverdi —como ele próprio já afirmara no prefácio de seu V. livro de madrigais, ao contrapor a Prima e a Seconda Pratica— é a representação da emoção do texto. Todo o sofrimento, a instabilidade emocional, a perda de forças, os momentos de sentimentos opostos, estão musicalmente representados. Imagine o efeito causado para os ouvidos do século XVII, acostumado às consonâncias e ao tratamento melódico da dissonância palestriniano. Se observarmos esse repertório baseado no seio da prática musical em que foi concebido, perceberemos o quanto ele é ousado. Devemos sempre lembrar que os compositores da música que hoje chamamos de antiga eram compositores de vanguarda em suas épocas. A questão de como executar esse repertório hoje em dia, visando provocar emoções semelhantes no nosso público, acostumado às harmonias e melodias dos séculos XIX e XX abre campo para diversas novas discussões. O que significa execução histórica (também já chamada de música de época ou antiga)? O que deve fazer o intérprete (cantor, regente, etc.)? O que significa ser “fiel à partitura”? Executar as alturas e ritmos escritos, fazendo soar “bonito” uma peça concebida para chocar o ouvinte, ou recuperar a emoção escondida atrás da grafia musical? Prof Dr. Abel ROCHA Prof de Regência e Ópera do IA -Unesp Título da tese: Estudo da Dramaturgia Musical em L'Orfeo, de Claudio Monteverdi, realizado a partir da linguagem tonal do compositor: Uma proposta de orquestração moderna como recurso dramatúrgico. Foi diretor artístico do Theatro Municipal de São Paulo (2011-2012), da Banda Sinfônica do Estado de São Paulo (2004-2009) e do Collegium Musicum de São Paulo (1983 – 2011). Email: abelrocha@terra.com.br