ARTIGO
Recebido em 12/10/2020
Aprovado em 18/11/2020
A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
Misogyny in Euripides’ biographical tradition
Camila de Moura1
e-mail: camilam02@gmail.com
orcid: http://orcid.org/0000-0002-9933-2608
DOI: https://doi.org/10.25187/codex.v8i2.38818
RESUMO: Eurípides, entre os três tragediógrafos
ABSTRACT: There are more ancient biographical
canônicos da Grécia clássica, é aquele de quem
texts on Euripides extant to this day than on any other
a Antiguidade nos legou maior quantidade de
tragic poet of Classical Greece. Throughout this
material biográfico. Percorrendo esse material,
material, it is remarkable how the poet is persistently
nota-se a persistente caracterização do poeta como
characterized as a misogynist (μισογύνης). The
misógino (μισογύνης). A palavra figura em dois dos
word appears in two of the most important
textos biográficos mais importantes em torno do
biographical texts on Euripides (the anonymous
poeta (a Vida anônima anexada aos manuscritos
Life attached to the medieval manuscripts of his
medievais de sua obra e o verbete do Suda), e
works and the entry in the Suda), and his “aversion
sua “aversão às mulheres” é aludida direta ou
towards women” is directly or indirectly alluded in
indiretamente em todas as Vidas que chegaram aos
all the Lives that survived to this day. This article
nossos dias. Este artigo apresentará essas ocorrências
presents these occurrences and analyses them in the
e buscará analisá-las à luz da comédia de Aristófanes,
light of Aristophanes’ comedy. Finally, it proposes
propondo uma articulação entre as paradoxais
an articulation between the paradoxical receptions
recepções da obra do poeta na Antiguidade e na
of the poet’s work in Antiquity and in modernity,
modernidade, quando será construída a imagem de
when the image of a “feminist” Euripides will be
um Eurípides “feminista”.
constructed.
PALAVRAS-CHAVE: biografia antiga; vidas
KEYWORDS: ancient biography; ancient lives;
antigas; Eurípides; misoginia; Aristófanes
Euripides; misogyny; Aristophanes
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Letras Clássicas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo, Brasil, sob a orientação da Profa. Dra. Adriane da Silva Duarte.
1
Codex - Revista de Estudos Clássicos, ISSN 2176-1779, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 2, pp. 39-62
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
N
Introdução
Chegaram aos nossos dias cinco biografias de Eurípides, considerando a definição lapidar
de Arnaldo Momigliano: “O relato da vida de um homem do nascimento até a morte é o que chamo
de biografia.”2 São elas: (1) uma Vida anônima intitulada Γένος Εὐριπίδου καὶ βίος (“Nascimento
e vida de Eurípides”), ou simplesmente Genos, que prefaciava os manuscritos medievais das obras do
tragediógrafo e que como outras Vidas desse tipo consiste num vultoso compilado de fontes elaborado
ao longo de séculos, apresentando inúmeras variantes e interpolações (por sua extensão e detalhamento,
esta é referida normalmente como a Vida de Eurípides); (2) o verbete biográfico do Suda, famigerado
léxico bizantino do século X d.C., apropriado posteriormente pelo gramático e escoliasta Manuel
Moschopoulos, que viveu entre os séculos XIII e XIV d.C.;3 (3) a Vida latina de Aulo Gélio (século
II d.C.), que integra suas Noctes atticae (“Noites áticas”) e parece ter sido elaborada a partir do mesmo
modelo helenístico que o verbete do Suda; (4) a sinopse biográfica de Thomas Magister, gramático e
escoliasta contemporâneo de Moschopoulos, cujas informações não apresentam novidade em relação
à Genos, exceto no que afirma que a mãe de Eurípides, Clito, foi sim uma verdureira;4 e, por fim, (5)
a Vida de Sátiro de Calate, biógrafo do século III a.C., escrita na forma de um diálogo e conservada
em estado fragmentário. O texto de Sátiro, descoberto entre os Papiros de Oxirrinco numa cópia
datada do século II d.C., foi estabelecido e publicado por primeira vez por Arthur Hunt, em 1912,
sendo não apenas o mais antigo entre os testemunhos aqui elencados como também a única Vida
“genuinamente” helenística a ter alcançado a modernidade numa cópia de extensão razoável, ainda
2
An account of the life of a man from birth to death is what I call biography.” (Momigliano, 1993, p. 11).
Cf. Westermann (1845) e Kannicht (2004), que os estabelecem como um único texto. Para fins de simplificação, este
artigo se referirá simplesmente ao verbete do Suda. Delcourt (1933) refere-se ao texto como “Suidas-Moschopoulos” (“SudaMoschopoulos”).
3
A Genos é geralmente dividida em cinco partes – IA, IB, II, III e IV (cf. Kannicht, 2004, e Scodel, 2017) – que apresentam
contradições internas, já que foram redigidas a partir de fontes diversas. A versão de Thomas Magister para o nascimento de
Eurípides está de acordo com a porção IA da Genos, mas entra em contradição com a porção IB, que apresenta a informação
sob um viés crítico: “Os poetas da Comédia Antiga burlam-se dele como sendo filho de uma verdureira.” (cf. De Moura,
2019). A importância da comédia na elaboração das antigas biografias será tratada mais adiante.
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que não integral. As Vidas de Eurípides, em relação às Vidas de seus predecessores Ésquilo e Sófocles,
são textos particularmente apelativos, com abundantes anedotas vexatórias e detalhes de sua vida
privada. Ao compará-las em especial à Vida de Ésquilo, que se limita a informações de cunho militararistocrático, à narrativa de uma nobre morte mítica e à transcrição de epitáfios em tom elevado, é
possível observar uma radical mudança de paradigma, condizente com o antagonismo que começa
a ser produzido entre esses dois autores desde ao menos As rãs de Aristófanes – peça que trouxe ao
palco um concurso poético entre os dois autores em 405 a.C., cerca de um ano depois da morte de
Eurípides –, e que foi perpetuado pela prática de eruditos e biógrafos helenísticos e bizantinos. O
contraste com o caráter de Sófocles, seu principal rival e contemporâneo (isto é, contra quem Eurípides
competiu mais vezes nos concursos trágicos), retratado na sua Vida como bastião da cordialidade e
cidadão exemplar, também não poderá ser deixado de lado.5
Ao cotejar as Vidas de Eurípides e compará-las às dos outros dois tragediógrafos canônicos,
um detalhe salta aos olhos: as frequentes alusões à misoginia do poeta (μισογυνία, odium in mulieres).6
A alusão é explícita em quatro dos cinco textos: na Genos, nas Vidas de Sátiro e Aulo Gélio, e no
verbete do Suda. A sinopse de Thomas Magister não a menciona explicitamente, mas reproduz todas
as informações essenciais a ela associadas: seus dois casamentos, os episódios de adultério, seu caráter
grave e circunspecto, sua aversão ao riso; assim, é possível imaginar que essa informação tenha sido
omitida deliberadamente. É preciso ter em vista o fato de que, nas Vidas e notícias biográficas, a
misoginia é apresentada ao mesmo tempo como um traço de caráter do poeta e um traço distintivo
de sua obra, entendida portanto como um meio expressivo do caráter ou êthos (ἦθος) do autor. Tal
pressuposto crítico remete tanto a Aristóteles quanto a Aristófanes,7 e é característico do método dos
primeiros biógrafos gregos. Ora, para muitos leitores modernos da obra de Eurípides, pode parecer
curioso o fato de que justamente este dentre os tragediógrafos clássicos seja descrito como misógino
nessas Vidas que começam a ser produzidas a seu respeito desde ao menos o período helenístico. No
entanto, para aqueles que estão familiarizados com a obra de Aristófanes, a acusação de misoginia
não constitui novidade: os episódios narrados pela Comédia Antiga perpassam esse que pode ter sido
um dos aspectos da recepção da obra desse autor no século de sua produção. Diz-se “pode ter sido”
pois ainda que a Comédia Antiga dialogasse ativamente com as ideias em voga no seu tempo (o que
Ruth Scodel (2016, p. 28) a esse respeito: “Euripides’ biography has been further distorted by a tendency to contrast it
as much as possible with that of Sophocles. Sophocles was widely loved and charming, so Euripides must have been hated
and unsociable.”
5
Este artigo evitará, sempre que possível, o uso indiscriminado dos termos “misógino” e “misoginia” como sinônimos de
misogýnes e misogynía, conforme as razões explicitadas adiante.
6
Ver, em especial, Poética 1448b 24-29 (“A poesia tomou diferentes formas, segundo a diversa índole particular [dos poetas]”,
tradução de Sousa, 2003, p. 107) e 1455a 27-33 (“Mais persuasivos, com efeito, são [os poetas] que naturalmente movidos de
ânimo [igual ao das suas personagens] vivem as mesmas paixões”, ibidem, p. 127); e As tesmoforiantes 146-167 (“Um poeta
deve estar de acordo com as peças / que compõe e comportar-se de acordo com elas”, tradução de Duarte, 2005, p. 114).
7
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ademais é estritamente necessário para a produção do efeito cômico) e estivesse fortemente ancorada
na invectiva pessoal, a reconstrução de um panorama da recepção euripidiana no século V a.C. não é
tarefa simples, já que sobrevivem poucas fontes contemporâneas a Aristófanes, e a nossa via de acesso
ao problema passa inevitavelmente pelo crivo parodístico desse autor. Além de As tesmoforiantes,
peça centrada no problema da reação das mulheres atenienses às personagens femininas de Eurípides,
também em Lisístrata e As Rãs alude-se a essa reação do público frente a suas tragédias. Um fragmento
de Dífilo8 indica que a tradição de um Eurípides misogýnes se estenderia até a Comédia Nova.
Buscando compreender a inserção desse elemento na tradição biográfica euripidiana, este
artigo comentará brevemente os elementos que nortearam o desenvolvimento das antigas biografias
de poetas para, em seguida, apresentar as instâncias em que Eurípides é caracterizado como misogýnes
nos textos biográficos a seu respeito e, por fim, estabelecer um contraponto com a paradoxal recepção
de suas tragédias na modernidade, quando será construída a imagem de um Eurípides “feminista”. Um
dos objetivos secundários deste trabalho será o de esboçar alguns limites para uma conceituação da
misogynía antiga, motivo pelo qual a partir deste ponto serão preferidos os termos antigos “misogýnes”
e “misogynía” no lugar dos modernos “misógino” e “misoginia”. É preciso recordar que as ocorrências
mais antigas e consistentes do termo estão vinculadas ao universo da comédia, ao qual, como se verá,
as biografias aqui analisadas estão inteiramente atreladas. Não se pretende, porém, dar conta de toda a
discussão moderna em torno da misoginia, termo tão amplamente utilizado, tampouco tratá-la como
uma categoria estanque, e sim traçar caminhos que contribuam com a reconstituição paulatina do
percurso semântico da palavra ao longo dos milênios.
As Vidas de poetas gregos
As vidas de poetas do passado constituíam, na Antiguidade, material de sumo interesse
tanto para aquela erudição letrada que começava a se organizar ao redor das grandes bibliotecas
do Mediterrâneo quanto para o que se poderia chamar grosso modo de “grande público”, isto é, a
ampla audiência da poesia grega antiga. A partir de meados dos séculos IV e III a.C., com a franca
expansão da cultura letrada, época das primeiras edições das obras de autores arcaicos e clássicos pelos
bibliotecários de Alexandria, começam a circular pelo mundo helênico textos de cunho estritamente
biográfico conhecidos como Vidas (Vitae, Βίοι), narrativas sobre as vidas de figuras históricas que
abarcavam seus feitos desde o nascimento até a morte, sob uma chave muitas vezes alegórica. Apesar
de terem florescido no período helenístico, sob autores como Hermipo, Sátiro, Camaleão e Antígono
de Caristo, as antigas Vidas de poetas estão assentadas sobre tradições já então seculares, transmitidas
majoritariamente por via oral. Essas tradições que desaguarão nas Vidas começam a surgir aos nossos
8
T 111 Kn. = fr. 74 K.-A.
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olhos em trabalhos de autores do período clássico. Maarit Kivilo em seu Early Greek Poets’ Lives (2010,
p. 5) comenta esse fato: “(...) biographical statements and anecdotes about early poets in the Classical
authors’ works are remnants of large and well-developed ancient biographical tradition which began
to form simultaneously with the performance of the poetry soon after the poet’s death or even in
their lifetime.” Um dos exemplos comumente mencionados para tratar do desenvolvimento do gênero
biográfico9 na Grécia é o fragmento 56 de Heráclito (DK), em que o filósofo recorre ao famigerado
“enigma dos piolhos” para ilustrar um aforismo filosófico. A anedota, supostamente bem conhecida
na época de Heráclito, conta como Homero, o “mais sábio entre os helenos”, foi ludibriado por um
enigma contado a ele por crianças (παῖδες). Outros exemplos podem ser encontrados em Tucídides
e Heródoto.10 Além desse anedotário que desponta nas obras de autores clássicos, a que Momigliano
(1993) chamou de “o estágio preliminar da biografia antiga”, é preciso considerar seus antecessores
formais. Obras como os diálogos platônicos, que dramatizam cenas da vida de Sócrates, as Visitas
(Ἐπιδημίαι) do dramaturgo Íon de Quios, que narravam encontros seus com figuras eminentes como
Péricles e Sófocles, os relatos de Xenofonte (muitas vezes incluídos nos estudos sobre biografia antiga,
ainda que não levem o nome Βίοι), o Museion de Alcidamas, com sua versão do texto conhecido
como a Competição entre Homero e Hesíodo (Περὶ Ὁμήρου καὶ Ἡσιόδου καὶ τοῦ γένους καὶ ἀγῶνος
αὐτῶν), e os trabalhos dos primeiros mitógrafos, apenas para citar os exemplos mais expressivos, são
peças essenciais para compreender a formação e a disseminação das Vidas de poetas.11
Muita tinta já correu a respeito da validez do método de composição das Vidas antigas.
Lidas durante séculos como depositários de informações verídicas sobre as vidas de figuras do passado,
começam a surgir, a fins do século XIX e princípios do século XX, trabalhos que questionavam a
validez das informações veiculadas por esses textos, e que recomendavam cautela ao interpretá-los
em busca de fatos históricos.12 Esses trabalhos foram complementados, em meados do século XX,
por estudos que questionavam a veracidade dos registros antes considerados autobiográficos na poesia
grega com base no caráter eminentemente cívico e performativo dessa poesia.13 Na esteira dessas
A expressão “gênero biográfico” será utilizada não sem ressalvas, já que o conjunto de textos intitulados Βίοι abarca uma
enorme variedade formal. Hägg, por exemplo, comenta: “(...) [biography] allows of a multitude of forms, and they are
arguably in most cases influenced more by current literary or historical or psychological trends than by earlier biographies.
(…) Biography is more subject matter than form, and the ‘genre’ easily slips out of the scholarly grip.” (2012, p. 2-3).
9
Tucídides menciona, por exemplo, as circunstâncias da morte de Hesíodo (3.96), e Heródoto comenta a anedota envolvendo
Caraxo, irmão de Safo, e a cortesã Ródope (2.135).
10
Para uma genealogia detalhada da biografia grega, com uma análise extensiva de seus antecessores formais desde Cílax
de Carianda e Estesimbroto de Taso, da influência da literatura biográfica do Oriente próximo e de seu desenvolvimento
até o período romano, ver Momigliano (1993).
11
O estudo de Lehrs (Lehrs, K. Über Wahrheit und Dichtung in der griechischen Literaturgeschichte. – Populäre Aufsätze aus
dem Alterthum. Leipzig, 1875) e, em especial, a obra seminal de Friedrich Leo (Die griechisch-römische Biographie nach ihrer
litterarischen Form. Leipzig, 1901).
12
13
Cf. Dover, K. J. “The poetry of Archilochos”. In: Pouilloux, J. et al. (Org.). Archiloque: sept exposés et discussions. Genebra,
1964.
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viradas, que representam verdadeiros marcos para os estudos da biografia e da poesia antiga, situam-se
as contribuições de Mary Lefkowitz, que, por meio de análises extensas e minuciosas, conectou diversas
informações presentes nas Vidas de poetas às obras dos próprios autores e a passagens da Comédia
Antiga – fontes a que recorriam os antigos biógrafos em seu intento de reconstituir as vidas de sujeitos
já muito distantes no tempo. As obras dos poetas eram assim perscrutadas em busca de informações
que pudessem ser interpretadas sob uma chave biografizante, e, no caso de figuras como Eurípides
e Safo, alvos corriqueiros dos comediógrafos,14 as comédias dos séculos V e IV a.C. eram também
uma fonte profícua, com suas caricaturas ácidas, seu testemunho picante e vivaz, contemporâneo
ou cronologicamente próximo dos autores que tomava por personagens. Ao que tudo indica, os
biógrafos antigos estavam mais preocupados com a verossimilhança que com a veracidade desses retratos
dinâmicos que trouxeram a lume e que desafiam as distinções corriqueiras entre verdade e ficção.
Porém, muitos estudiosos do campo, como Mary Lefkowitz, Arnaldo Momigliano e Janet Fairweather
não se furtam a, por vezes, emitir juízos de valor sobre o método “tortuoso” dos primeiros biógrafos
gregos, a que se referem muitas vezes como “maus historiadores”.15 Ora, se por um lado é verdade que
a transposição de passagens da comédia, da tragédia, da poesia mélica para essas biografias de aspecto
historiográfico geram verdades um bocado perigosas (reproduzidas de maneira mais ou menos acrítica
em enciclopédias físicas e virtuais e em manuais de literatura até o presente dia), também é verdade que
as Vidas de poetas são um campo fértil de pesquisa e um importante testemunho literário da recepção
das obras desses autores e autoras nos séculos subsequentes ao seu floruit. Estudos mais recentes têm
se desligado radicalmente da busca por historicidade e passado a encarar as Vidas principalmente
como “reelaborações criativas de tradições precedentes”,16 privilegiando abordagens focadas nos
procedimentos narrativos empregados pelos antigos biógrafos. Como atestam De Temmerman e
Demoen: “(...) ancient biographies were not meant to be read as hermetically sealed depositories
of a ‘historical’ truth and no simple dichotomy between fact and fictiveness can adequately grasp
the complexities of narrative literature.” (2016, p. 6). Tal ponto de vista foi largamente explorado
por autores como Hägg (2012), Kivilo (2010) e De Temmerman e Demoen (2016), e servirá como
ponto de partida para as reflexões aqui ensejadas.
Há menções a seis comédias intituladas Safo, obras de comediógrafos atenienses do século IV a.C.: Amípsias (fr. 15 K.A.), Ânfis (fr. 32 K.-A.), Antífanes (fr. 194 e 195 K.-A.), Dífilo (fr. 71 K.-A.), Épifo (fr. 20 K.-A.) e Tímocles (fr. 32 K.-A.);
outras comédias também mencionavam a poeta, como a Leucádia de Menandro (fr. 1 K.-A.), cf. Kivilo (2010, p. 181-190).
14
Isto não quer dizer que tais estudiosos não estivessem atentos ao problema. Lefkowitz: “These biographical data, while
completely fictional and valueless as history, are none the less worthy of interest as a form of popular and pervasive new
mythology.” (1978, p. 460). Porém, em seu trabalho mais abrangente, The Lives of the Greek Poets, de 1981, o afinco com
que Lefkowitz procura descreditar cada uma das informações contidas nas Vidas de poetas como provenientes de fontes de
segunda mão (mesmo quando não é possível comprová-lo) demonstra ainda certa preocupação com a historicidade.
15
16
De Temmerman e Demoen (2016, p. xi).
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Ocorrências da misogynía nas biografias de Eurípides
1. Nascimento e vida de Eurípides , dita Genos 17
A Genos de Eurípides é geralmente dividida em cinco partes – IA, IB, II, III e IV (cf.
Kannicht, 2004, e Scodel, 2017). As seções IA e IB possuem estruturas parelhas e apresentam duas
versões para os fatos essenciais da vida do poeta conforme o programa dos antigos biógrafos: seu
nascimento, sincronicidades em relação a acontecimentos históricos e as vidas de outras figuras
eminentes,18 notas críticas sobre a composição de sua poesia, observações sobre sua carreira dramática
e sua atuação pública, a migração ou exílio na Macedônia, quantidade de obras, filiação etc.; a seção
II consiste numa narrativa detalhada de sua morte fantástica, na qual o poeta é destroçado pelos cães
de Arquelau, rei da Macedônia; e as seções III e IV conservam uma avaliação geral sobre seu caráter
e um anedotário. Estas últimas são as seções que interessarão a este trabalho, pois estão quase que
inteiramente calcadas na questão da misogynía. Abaixo serão destacados e comentados os trechos mais
relevantes para a presente discussão.
III. [§1] Σκυθρωπὸς δὲ καὶ σύννους καὶ
αὐστηρὸς ἐφαίνετο καὶ μισόγελως καὶ
μισογύνης (...).
III. [§1] Mostrava-se sombrio, cônscio e
austero, além de avesso ao riso [misógelos] e
misógino [misogýnes] (...).
A passagem elenca qualificativos para descrever o caráter de Eurípides: σκυθρωπός
(“sombrio”; a palavra figura em várias de suas tragédias, por exemplo, para descrever Hipólito [Hipólito
1152] e Medeia [Medeia 271]), σύννους (“cônscio”), αὐστηρός (“austero”) e, finalmente, μισόγελως
(misógelos, traduzido como “avesso ao riso”) e μισογύνης (“misógino”, “avesso às mulheres”). Percebese o paralelismo morfológico: ambas são formadas a partir do radical miso- (μισο-), associado ao
verbo miséo (μισέω, “odiar”, “rejeitar”). Segundo Pierre Chantraine, em seu Dictionnaire étymologique
de la langue grecque (p. 705), μισέω “exprime une attitude plus qu’un sentiment”. Seu oposto é o
radical philo- (φιλο-), associado ao verbo philéo (φιλέω, “amar”, “estimar”). Em consulta ao Thesaurus
Linguae Graecae, verificou-se que as únicas ocorrências de misógelos na literatura indexada provêm das
biografias de Eurípides. Além da passagem em questão, a palavra figura na Vida de Aulo Gélio, em
versos sobre Eurípides atribuídos a Alexandre da Etólia, poeta e gramático alexandrino (séc. III a.C.),
T 1 Kn. O texto grego segue a edição de Kannicht (2004). Tradução nossa, adaptada da dissertação de Mestrado
apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ, cf. De Moura (2019).
17
O termo synchronicity é utilizado por Maarit Kivilo (2010) para descrever esta operação própria das antigas tradições
biográficas: o estabelecimento de paralelos temporais entre a vida do biografado e certos acontecimentos históricos ou
vidas de outras figuras eminentes, com o objetivo de realçar a importância do biografado e de alinhar seu retrato a certo
imaginário sobre seu tempo.
18
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que apresentam uma descrição semelhante: além de misógelos (“avesso ao riso”), diz-se que é “amargo
conversar [com o poeta]” e que ele “nunca aprendeu a galhofar bebendo vinho”.19
O oposto de misógelos, filógelos (φιλόγελως, “amante do riso”), por sua vez, é palavra
muitíssimo produtiva: figura nas obras de Platão, Aristóteles, Teofrasto, nos fragmentos de Menandro
e numa miríade de outros autores. Além disso, Philógelos (Φιλόγελως, “O gracejador”) é o título da
única coleção antiga de chistes a ter alcançado a modernidade, datada do século IV d.C. e atribuída
a Hierócles e a Filágrio. Interessante observar que uma das sessões de chistes incluídas na coleção se
intitula “Περὶ μισογυναίκων ἀνδρῶν” (“Sobre homens misóginos”). Isso também é verdadeiro no
caso de filogýnes (φιλογύνης, “amante das mulheres”), palavra muito mais produtiva que misogýnes
(cujo uso mais antigo de que se tem registro vem do título de uma comédia de Menandro). Começam-
se a vislumbrar assim os elementos caracterológicos associados ao misogýnes, bem como sua inserção
no universo cômico.
III. [§2] Λέγουσι δὲ αὐτὸν γήμαντα τὴν
Μνησιλόχου θυγατέρα Χοιρίλην καὶ
νοήσαντα τὴν ἀκολασίαν αὐτῆς γράψαι
πρῶτον τὸ δρᾶμα τὸν Ἱππόλυτον, ἐν ᾧ τὴν
ἀναισχυντίαν θριαμβεύει τῶν γυναικῶν,
ἔπειτα δὲ αὐτὴν ἀποπέμψασθαι. λέγοντος
δὲ τοῦ γήμαντος αὐτὴν ‘σωφρονεῖ παρ›
ἐμοί’, ‘δύστηνος εἶ’ ἔφη ‘εἰ γυναῖκα δοκεῖς
παρ› ᾧ μὲν αὐτὴν σωφρονεῖν, παρ’ ᾧ
δὲ μή’. ἐπιγῆμαι δὲ αὐτὸν δευτέραν, ἣν
εὑρὼν ἀκολαστοτέραν προχειροτέρως
εἰς τὴν κατὰ τῶν γυναικῶν βλασφημίαν
ἐθρασύνετο. αἱ δὲ γυναῖκες ἐβουλήθησαν
αὐτὸν κτεῖναι εἰσελθοῦσαι εἰς τὸ σπήλαιον,
ἐν ᾧ γράφων διετέλει.
III. [§2] Dizem também que depois de se
casar com a filha de Mnesíloco, Quérila, e
aperceber-se de sua infidelidade, primeiro
escreveu o drama Hipólito, no qual triunfa
a desvergonha das mulheres, e depois a
abandonou.20 E como aquele que em seguida
a desposou dissesse: “comigo, ela é virtuosa”,
afirmou: “és miserável se pensas que uma
mulher será virtuosa com um sem ter sido
com outro”21. Ele então se casou novamente,
e descobrindo que a sua segunda esposa era
ainda mais licenciosa, mais prontamente
investiu-se de confiança para difamar as
mulheres. E as mulheres quiseram matá-lo,
invadindo a caverna onde ele continuava a
escrever.
O primeiro ponto a ser destacado neste trecho é o esforço do biógrafo para justificar a
misogynía de Eurípides, que agora ultrapassa o âmbito da caracterologia e se encontra plasmada em
“ὁ δ’Ἀναξαγόρου †τρόφιμος ἀρχαίου† στρυφνὸς μὲν ἔμοιγε προσειπεῖν / καὶ μισόγελως καὶ τωθάζειν οὐδὲ
παρ’οἶνον μεμαθηκώς, / ἀλλ’ὅτι γράψαι, τοῦτ’ἂν μέλιτος καὶ Σειρήνων ἐτετεύχει.” (T 2 Kn. 23-25). Uma parte do
primeiro verso (“στρυφνὸς μὲν ἔμοιγε προσειπεῖν”, “amargo a mim é dirigir-me [a Eurípides]”) também figura na Genos
(III, 1, 73), que atribui a sentença a Aristófanes.
19
Esta porção do texto apresenta uma importante variante textual. Alguns editores, como Méridier e Kirchhoff, preferem,
em lugar de “πρῶτον τὸ δρᾶμα”, a leitura “δρᾶμα τὸν πρότερον”, que resultaria na seguinte tradução: “escreveu a primeira
versão do drama Hipólito, na qual triunfa a desvergonha das mulheres”. Cf. Barrett (2001, p. 26).
20
21
Electra 923-924.
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sua obra poética. “Do modo como faz falar [suas personagens], assim é [Eurípides]”,22 diz o fragmento
694 de Aristófanes, preservado na Vida de Sátiro. A mesma ideia aparece em As tesmoforiantes, posta
na boca do tragediógrafo Agatão (167): “É uma necessidade (...) compor conforme a própria natureza
[τῇ φύσει].”23 Assim, Eurípides, sendo misógino, deve necessariamente compor peças misóginas.
Os exemplos escolhidos pelo biógrafo para sustentar a sua tese são significativos. Segundo o
trecho, Eurípides escreve o drama Hipólito logo após o adultério da esposa, com a intenção última de
“difamar as mulheres”. A peça, que gira em torno da paixão de Fedra pelo enteado Hipólito, traz uma
longa bravata contra as mulheres, proferida pelo protagonista depois que a ama revela a ele a paixão
de Fedra (616-668). Nesse discurso, Hipólito afirma que a mulher é “um mal fraudulento [κίβδηλον
κακόν]” (616-17), um “grande mal [κακὸν μέγα]” (627), “infausto ser [ἀτηρὸν φυτόν]” (630), “ídolo
vilíssimo [ἄγαλμα κάκιστον]” que os homens adornam e nutrem (631), e termina dizendo: “Jamais
me fartarei de odiar / mulheres [μισῶν γυναῖκας]! Digam que o repito sempre, / pois também
elas sempre são abjetas. / Ou alguém as ensine a ser sensatas / ou me permita sempre espezinhá-las.”
(665-668).24 Na Vida, Hipólito e seu criador se confundem. Segundo Scodel (2016, p. 34), o recluso
e casto filho de Teseu é uma das personagens que a tradição biográfica toma como modelo para traçar
a personalidade de Eurípides, como se sua invectiva representasse o ponto de vista autoral. Ora, a
apaixonada Fedra é uma das personagens que suscitam a fúria das mulheres casadas em As tesmoforiantes:
“(...) [Eurípides] nos atacou muitas vezes, / encontrando palavras adequadas onde estivesse / uma
mulher sem caráter, compondo Melanipes e Fedras. Mas Penélope jamais compôs nenhuma.” (545548). Porém, as ideias expressas por Hipólito não são exclusivas das peças de Eurípides. Antes, elas
parecem refletir uma longa tradição de invectivas contra o sexo das mulheres,25 exemplificada na
literatura supérstite pela poesia de Hesíodo e pelo fragmento 7 de Semônides de Amorgos. Na versão
do mito de Pandora contada na Teogonia (570-612), a primeira mulher é descrita como “um mal
para os homens” [κακὸν ἀνθρώποισιν] (570), “um belo mal ao invés de um bem” [καλὸν κακόν
ἀντ’ἀγαθοῖο] (585), “um ardil” [δόλον] (589) criado por Zeus. Porém, no caso da peça de Eurípides,
o discurso de Hipólito está inserido na dinâmica do drama. Hipólito não representa um modelo de
retidão a ser seguido; antes, seu personagem é apresentado na peça como um devoto de Ártemis,
negando-se a prestar cultos a Afrodite e recebendo ao final a punição devida. Seu discurso contra as
mulheres reflete o tema tradicional, mas é essencialmente uma peça de hýbris, à qual se segue o lamento
de Fedra pela condição da mulher e por seu próprio destino. Retornemos, porém, à Vida de Eurípides.
22
PCG III fr. 694.
Todas as passagens das comédias As tesmoforiantes e Lisístrata citadas neste artigo, mesmo quando inseridas em trechos
biográficos, seguem a tradução de Duarte (2005).
23
24
Tradução de Flávio Ribeiro de Oliveira (2010).
Laura McClure: “By the end of the fifth century, the invective against women was apparently recognized as a self-contained
genre.” (1999, p. 142).
25
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
Depois de atribuir o tratamento dado por Eurípides ao mito de Hipólito a desavenças
pessoais, o biógrafo apresenta uma anedota em que o próprio Eurípides dá voz a uma passagem da peça
Electra (“és miserável se pensas...”), a qual, retirada de contexto, assume um sentido cômico. Na peça,
após o assassinato de Egisto, Electra se dirige ao cadáver do homem com essas palavras, condenando
sua união adúltera com Clitemnestra.
A infidelidade das duas esposas de Eurípides é apresentada portanto como causa eficiente para
a sua misogynía, expressa, segundo a lógica da biografia, em seu caráter sombrio e suas personagens
adúlteras. Para pensar a forma da anedota contida na Genos, é interessante também recordar a seguinte
observação acerca da misantropia feita por Sócrates no Fédon:
A misantropia nasce do excesso de confiança sem razão de ser, quando consideramos
alguém fiel, sincero e verdadeiro, e logo depois descobrimos que se trata de pessoa
corrupta e desleal, e depois outra mais nas mesmas condições. Vindo isso a repetir-se
várias vezes com o mesmo paciente, principalmente se se tratar de amigos íntimos e
companheiros de alto crédito, depois de decepções seguidas, acaba essa pessoa por
odiar os homens e acreditar que ninguém é sincero. (Fédon 89d, tradução adaptada
de Nunes, 1980b.)
Ora, as biografias de Eurípides dão forte ênfase à sua associação com a filosofia. A Genos, a
Vida de Aulo Gélio e o verbete do Suda dizem que o poeta foi ouvinte de Sócrates; a Vida de Sátiro
conta que alguns de seus enredos foram influenciados pelas ideias socráticas. Scodel chega a dizer a esse
respeito que, no que concerne às suas biografias, “Euripides is more like a philosopher than a poet.”
(2016, p. 31). Não seria de se estranhar, portanto, que a sua biografia reflita de maneira tão exemplar
o raciocínio socrático, mesmo que incidentalmente. No entanto, a misantropia (e, por analogia, a
misología [μισολογία], o “ódio à argumentação”, também tratada no trecho) é qualificada logo adiante
por Sócrates como “vergonhosa” (αἰσχρόν, 89e), e ele adverte seu interlocutor, Fédon, de que eles
devem “precatar-se contra esse perigo” (“εὐλαβηθῶμέν τι πάθος μὴ πάθωμεν”), ou melhor, contra
esse páthos (πάθος). Além disso, como se verá adiante, as personagens da Vida de Sátiro se valerão
das ideias de Sócrates para criticar a misogynía euripidiana. Resta saber se a misogynía teria lugar entre
essas afecções, derivadas do ódio ou do rechaço, que Sócrates considerava dignas de reproche.
Por fim, o trecho da Genos em questão menciona o ataque das mulheres a Eurípides,
tematizado em As tesmoforiantes. Na peça, o ataque nunca é levado a cabo; na Genos, ele ocorre na
lendária caverna onde Eurípides se retirava para escrever, cuja existência é questionada pela maioria dos
comentadores, como Scodel (2016) e Lefkowitz (2012). Percebe-se como o tema tradicional comporta
variantes, muitas vezes elaboradas a partir do intercruzamento com outros temas tradicionais.
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
IV. [§1] Ἔσκωπτε δὲ τὰς γυναῖκας
διὰ τῶν ποιημάτων δι’ αἰτίαν τοιάνδε·
εἶχεν οἰκογενὲς μειράκιον ὀνόματι
Κηφισοφῶντα. πρὸς τοῦτον ἐφώρασε
τὴν οἰκείαν γυναῖκα ἀτακτοῦσαν. τὸ
μὲν οὖν πρῶτον ἀπέτρεπεν ἁμαρτάνειν·
ἐπεὶ δ’ οὐκ ἔπειθε, κατέλιπεν αὐτῷ τὴν
γυναῖκα, βουλομένου αὐτὴν ἔχειν τοῦ
Κηφισοφῶντος.
IV. [§1] Eurípides ridicularizava as
mulheres em seus poemas pela seguinte
razão: tinha em casa um criado, um rapazote
chamado Cefisofonte, junto do qual flagrou
sua esposa rebelde. A princípio, tentava
dissuadi-la de incorrer no erro, mas depois,
não podendo convencê-la, deixou sua mulher
para Cefisofonte.
Esta versão apresenta uma justificativa semelhante para a misogynía do poeta. A novidade em
relação ao trecho anterior (III §2) é o nome de Cefisofonte, mencionado diversas vezes em Rãs (944,
1408 e 1442 em diante). Na comédia, Cefisofonte é apresentado como parte da família ou do lote
de Eurípides: “Ele que (...) trate de se sentar na balança, ele, os filhos, a mulher, o Cefisofonte e
mais a livralhada toda”.26 O tratamento é condizente com a Genos, que o apresenta como seu escravo
doméstico (οἰκογενής). A comédia explora a anedota segundo a qual Cefisofonte teria ajudado
Eurípides a compor suas tragédias. A anedota também está presente na Genos, que conserva
um fragmento de Aristófanes sobre uma suposta colaboração entre os dois (fr. 596 K.-A.). Na
comédia, porém, não há menção à infidelidade aqui narrada. De acordo com um escólio (Rãs
944), a anedota não era estranha aos poetas cômicos, mas não sobrevivem fragmentos que o
comprovem.
IV. [§2] Λέγουσι δὲ καὶ ὅτι <αἱ> γυναῖκες
διὰ τοὺς ψόγους, οὓς ἐποίει εἰς αὐτὰς
διὰ τῶν ποιημάτων, τοῖς Θεσμοφορίοις
ἐπέστησαν αὐτῷ βουλόμεναι ἀνελεῖν.
ἐφείσαντο δὲ αὐτοῦ πρῶτον μὲν διὰ τὰς
Μούσας, ἔπειτα δὲ βεβαιωσαμένου μηκέτι
αὐτὰς κακῶς ἐρεῖν. ἐν γοῦν τῇ Μελανίππῃ
περὶ αὐτῶν τάδε φησί·
IV. [§2] Dizem também que as mulheres,
devido às censuras que ele lhes dirigia por
meio de seus poemas, emboscaram Eurípides
nas Tesmofórias com a intenção de matá-lo.
Mas pouparam sua vida, primeiro graças às
Musas, e depois porque prometeu nunca mais
falar mal delas. Em Melanipe, ao menos, fala
delas deste modo:
μάτην ἄρ’ ἐς γυναῖκας ἐξ ἀνδρῶν ψόγος
ψάλλει κενὸν τόξευμα καὶ κακῶς λέγει·
αἱ δ› εἴσ› ἀμείνους ἀρσένων, ἐγὼ λέγω
Talvez em vão a censura de homens a mulheres
Disfere flecha fútil e delas tantos males diz?
Pois são melhores elas que os varões, é o que eu
digo.27
καὶ τὰ ἑξῆς.
e tudo o que se segue a isto.
26
Rãs 1407-1410, tradução de Silva (2014). A passagem é parte de um ataque de Ésquilo a Eurípides.
27
Fr. 494 Kn.
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
O trecho alude ao enredo de As tesmoforiantes. A diferença em relação à peça é que nesta, a
conspiração das mulheres é frustrada pela presença do Parente de Eurípides, e o trato que Eurípides
propõe visa a resgatar o Parente da punição por ter se infiltrado na reunião de mulheres. Nos versos
1160 em diante, Eurípides diz ao coro: “Mulheres, se vocês querem daqui por diante / firmar a paz
comigo, a hora é essa, / sob a condição de jamais ouvirem de minha parte / nada de ofensivo no futuro.
Isso eu proclamo.” Na Genos, essa mudança de atitude tem por fim preservar sua própria vida. O
biógrafo ilustra a virada com um fragmento de Melanipe prisioneira, utilizada aqui como uma espécie
de palinódia. Outro trecho da mesma tragédia (fr. 494) é citado por Sátiro (a Genos certamente deriva
de Sátiro neste ponto), mas não é possível reconstituir o contexto da citação. A personagem Melanipe,
protagonista de duas tragédias perdidas (Melanipe, a sábia e Melanipe prisioneira), teria escandalizado o
público da época por “ousar proclamar-se em pé de igualdade intelectual com os homens”, servindo
de modelo para a Lisístrata de Aristófanes (cf. Duarte, 2005, p. XXIV).
2. Suda 28
3. Σκυθρωπὸς δὲ ἦν τὸ ἦθος καὶ ἀμειδὴς
καὶ φεύγων τὰς συνουσίας ὅθεν· ὅθεν
καὶ μισογύνης ἐδοξάσθη. ἔγημε δὲ
ὅμως πρώτην μὲν Χοιρίνην, θυγατέρα
Μνησιλόχου· ἐξ ἧς ἔσχε Μνησίλοχον καὶ
Μνησαρχίδην καὶ Εὐριπίδην. ἀπωσάμενος
δὲ ταύτην ἔσχε καὶ δευτέραν, καὶ ταύτης
ὁμοίως ἀκολάστου πειραθείς.
3. Seu caráter era sombrio, circunspecto e
avesso ao convívio: por isso ficou conhecido
como misógino. Mesmo assim, casou-se
primeiro com Quérina, filha de Mnesíloco:
com ela, teve Mnesíloco, Mnesárquides e
Eurípides. Divorciando-se dela, teve uma
segunda esposa, e também esta se provou
infiel.
O trecho dispõe uma lista de qualificativos para descrever o caráter (ἦθος) de Eurípides,
semelhante àquela encontrada na Genos. Reaparece o adjetivo σκυθρωπός (“sombrio”), recorrente
em suas tragédias. Somam-se a ele ἀμειδής (“circunspecto”) e a expressão φεύγων τὰς συνουσίας
(“avesso ao convívio”). A palavra misogýnes, no entanto, não figura mais ao lado desses qualificativos
primários, como na Genos. Antes, o poeta adquire a fama de misogýnes devido (ὅθεν) a seu caráter
macambúzio. Outro elemento a ser destacado é o uso de ὅμως (“mesmo assim”, “de todo modo”),
dando a entender que a condição de misogýnes era contraditória com o casamento.
28
T 3 Kn. O texto grego segue a edição de Kannicht (2004). Tradução nossa, cf. De Moura (2019).
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
4. Noites áticas de Aulo Gélio 29
Notata quaedam de Euripidis poetae
genere, vita, moribus deque eiusdem fine
vitae.
Algumas observações sobre o nascimento,
a vida e o caráter do poeta, e sobre o fim
de sua vida.
6. Mulieres fere omnes in maiorem modum
exosus fuisse dicitur, siue quod natura
abhorruit a mulierum coetu siue quod
duas simul uxores habuerat, cum id decreto
ab Atheniesibus facto ius esset, quarum
matrimonii pertaedebat.
7. Eius odii in mulieres Aristophanes
quoque meminit ἐν ταῖς προτέραις
Θεσμοφοριαζούσαις in his uersibus (4536):
6. Diz-se que ele detestava a maioria
das mulheres, seja porque por natureza
abominasse o convívio com mulheres ou
porque tivesse mantido duas esposas ao
mesmo tempo (já que isso era permitido por
um decreto dos atenienses) e estivesse farto do
casamento com elas.
7. Aristófanes menciona seu ódio às
mulheres nestes versos da primeira versão
de As tesmoforiantes (453-6):
νῦν οὖν ἁπάσαισιν παραῖνω καὶ λέγω,
τοῦτον κολάσαι τὸν ἄνδρα πολλῶν οὕνεκα·
ἄγρια γὰρ ἡμᾶς, ὦ γυναῖκες, δρᾶι κακά
ἅτ’ ἐν ἀγρίοισι τοῖς λαχάνοις αὐτὸς
τραφείς.
Dou agora um conselho a todas e digo
que castiguem esse homem por muitas razões:
ele, mulheres, nos agride de forma selvagem,
assim como foi criado em meio a hortaliças
selvagens.
Novamente, seu “ódio às mulheres” é justificado com base em sua vida matrimonial. A
expressão coetu mulierum, aqui traduzida como “convívio com mulheres”, oferece dificuldades. Kovacs
(1994) traduz o trecho da seguinte forma: “by nature he recoiled from intercourse with women”
(“por natureza ele se esquivava de [manter] relações sexuais com mulheres”), interpretação seguida
por outros tradutores. As implicações nesse caso seriam muito distintas, e o texto destoaria das demais
fontes biográficas. A ocorrência na literatura de expressões como “matronarum coetus”30 e a advertência
do dicionário Lewis quanto ao uso específico da forma coitus (nunca coetus) em contexto sexual foi
o que nos levou a adotar a presente solução, que concorda com a tradução de John Rolfe (“he had
a natural disinclination to their society”, “ele tinha uma aversão natural à sua companhia”). Além
disso, a opção “convívio com mulheres” soa mais coerente com a citação de As tesmoforiantes feita
em seguida e com a menção a seus dois casamentos. Os versos citados pelo biógrafo aludem à troça,
recorrente em Aristófanes e reproduzida das Vidas, de que Eurípides seria filho de uma verdureira.
Noctes Atticae 15, 20 = T 2 Kn. O texto grego segue a edição de Kannicht (2004). Tradução nossa, exceto a citação de
Aristófanes, que segue o texto de Duarte (2005).
29
30
Cícero, De finibus 2.
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
5. Vida de Sátiro 31
A Vida de Sátiro é sob todos os aspectos o mais complexo entre os exemplares aqui listados,
escrita na forma de um diálogo com dois ou três personagens (uma das quais possivelmente uma
mulher) que apresentam diferentes pontos de vista sobre cada um dos tópicos em pauta. Com isso, é
possível vislumbrar certas tendências intelectuais e interpretativas em voga no período helenístico. A
porção do fragmento 39 que vai da coluna X à coluna XV parece tratar exclusivamente da “questão
das mulheres”. Na coluna XV, uma das personagens sugere encerrar a discussão em torno do assunto.
Tomando como base os fragmentos disponíveis, percebe-se que as personagens não questionam
a misogynía do autor, apresentada de maneira expositiva, em muitos pontos semelhante à Genos.
As mesmas personagens, no entanto, expressam opiniões contundentes sobre o comportamento de
Eurípides, muito mais complexas do que se poderia supor. É possível vislumbrar, ao que parece, uma
verdadeira “defesa das mulheres” sendo levada a cabo, e uma das personagens chega a qualificar a
atitude de Eurípides como “risível” (coluna XIII). Além disso, será possível observar em que medida
as demais biografias, de data muito mais recente, são devedoras do texto de Sátiro.32 Abaixo, foram
destacados os trechos mais relevantes para a presente discussão.
F6, fr. 39, col. X
F6, fr. 39, col. X
(A?) (…) ἀπήχθοντ’ | αὐτῶι πάν|τες
οἱ μὲν | ἄνδρες̣ διὰ | τὴν δυ[σ]ομι|λίαν,
α[ἱ δ]ὲ γυ|ναῖκε[ς δ]ιὰ | τοὺς ψόγους |
τοὺς ἐν τοῖς | ποιήμασιν. | ἦλθεν δ’ εἰς
| κίνδυνον | ἀ̣φ’ ἑκατέρου | τῶν γενῶν
| μέγαν· ὑπὸ | μὲν γὰρ Κλέ|ωνος τοῦ
δη|μαγωγοῦ τὴν | τῆς ἀσεβείας | δίκην
ἔφυ|γεν, ἣν προ|ειρήκαμεν· | αἱ δὲ
γυναῖκες | ἐπισυνέστη|σαν αὐτῶι | τοῖς
Θεσμο|φορίοις καὶ ἀ|θ̣ρόαι παρῆ|[σ]αν
ἐπὶ τὸν | [τ]ό̣πον ἐν ὧι | [σ]χολάζων |
[ἐ]τύγχανεν· | [ ̣ ̣ ]ωρισμέναι | [ ̣ ̣ ̣ ] ἐφε[ί|σαν]
το τἀν|[δρὸ]ς̣ ἅμα μὲν | [αἰδ]ε̣σθεῖσα̣ι | [τὰς]
Μούσας | [ ̣ ̣ ̣ ̣ ] ̣ ν ̣[ ̣ ̣ ]ο̣ς̣ | ---
(A?) (...) todos o odiavam: os homens devido
à sua insociabilidade, as mulheres, devido
às censuras contidas em seus poemas. E
correu grande perigo por parte de ambos
os sexos: por um lado, como já dissemos, foi
acusado de impiedade numa ação movida por
Cleon, o demagogo; além disso, as mulheres
conspiraram contra ele nas Tesmofórias e se
dirigiram em bando ao local onde ele calhava
de estar passando o tempo; ... pouparam o
homem, por um lado, por reverenciar as
Musas ...
O texto grego segue a edição de Schorn (2004). Tradução nossa, exceto as citações de Aristófanes, que seguem o texto
de Duarte (2005).
31
A observância das continuidades e diferenças entre o texto de Sátiro e as demais biografias de Eurípides pode ser encarada
como um caso exemplar para o estudo das biografias antigas, na medida em que permite vislumbrar o percurso desses textos
desde as produções do período helenístico até as compilações bizantinas e as cópias medievais de que dispomos.
32
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
Alude-se mais uma vez a seu caráter recluso, sua “insociabilidade” (δυσομιλίαν). A narrativa
segue o enredo de As tesmoforiantes mais de perto que as demais biografias, e já se verificam muitos
dos elementos que serão apropriados pela Genos. A este trecho também se segue, como na Genos,
uma citação da Melanipe prisioneira (fr. 494 Kn 5-16). O trecho destaca a importância da mulher no
lar – “Na ausência de mulher, a casa não é limpa nem próspera.”33 – e seu papel de destaque nos ritos
religiosos – “E no que concerne aos deuses, que considero o principal, toca-nos a maior parte. Pois,
nos oráculos de Febo, são mulheres as que profetizam a mente de Lóxias.”34 Não se sabe, porém se a
citação teria o mesmo sentido que assume na Genos, ou seja, o de justificar uma mudança na atitude
de Eurípides em relação às mulheres. O elogio à atuação da mulher no lar e na vida cívico-religiosa
parece ser considerado, porém, antitético com a misogynía, e propício a aplacar o ódio das mulheres
ou estabelecer um contraponto a ele.
F6, fr. 39, col. XII
F6, fr. 39, col. XII
(B) (…) ⌊ἔδοξε τῆι βουλῆι τάδε⌋ | ⌊τῆ⌋ι̣
⌊τῶ⌋ν γυ|⌊ναι⌋κῶν· Ἀρ|[χίκ]λ̣ ε ι’
ἐπε|⌊στ⌋ά̣τει, Λύσιλ|⌊λ’ ἐ⌋γραμμά|τευεν,
εἶπε | Σωστράτη· |
εἴ τις ἐπιβου|λεύει τι τῶι | δήμωι κακὸν |
τῶι τῶν γυναι|κῶν ἢ ’πικη|ρυκεύετ⌊αι⌋
Εὐρι|πιδίωι̣ [ ̣ ̣ ] τ’ | ἐπὶ βλάβηι̣ τι|νί –
(B) (…) [Decidiu / este Conselho] das mulheres
– Arquicleia presidiu / Lisila registrou em ata,
Sóstrata discursou; 35
Se alguém conspirar contra o povo / das mulheres,
ou estabelecer negociações / com Eurípides ... em
prejuízo –36
(A) σαφῶς ὑπο|νενόηκας ὃ | λέ[γ]ω καὶ
πα|ραλέλυκάς με | [τ]ῆς ἐξηγήσε|[ω]ς. προσώ|χ[θ]ι̣ σ εν δὲ τῶι |
[γ]ένει το[ύ]των | χάριν· ἦν, ὡ̣ς̣ | ἔοικεν,
π[α]ρ’ αὐ|τῶι μειρακί|σκος οἰκογε|νὴς
ὄνομα Κη|φισοφῶν. [πρ]ὸ̣ς | τοῦτον οὖ̣ν̣
[ἐ]|φώρασε τ[ὴ]ν | γυναῖκ[α τὴ]ν̣ | ἰδίαν
[αὑτ]οῦ | [ ̣ ]τ̣α̣κ̣[ ̣ ̣ ̣ ]υ̣ | [+ 9] [+ 8]ω̣ι̣ | [+9]
ο̣ | ---
(A) Interpretaste claramente o que digo, e me
liberaste da tarefa de explicar. Enfureceu-se
com o sexo feminino graças a estas razões:
havia, ao que parece, em sua casa, um
rapazote, um criado de nome Cefisofonte,
junto do qual flagrou sua esposa ...
O fragmento começa com duas citações de As tesmoforiantes que possivelmente ilustravam
um argumento, a contar pela resposta da personagem (A). Novamente, o adultério como justificativa
33
“οὐδ’ ἐρη|μίαι γυναικὸς | οἶκος εὐπινὴς | οὐδ’ ὄλβι[ο]⌊ς⌋.” (fr. 39 col. XI 16-19).
“τὰ δ’ ἐν θε[ο]ῖ̣[ς] | αὖ – πρῶτα {πρῶ|τα} γὰρ κρίνω | τά⌊δ⌋ε – μέρος | μέ̣⌊γ⌋ι̣⌊σ⌋τον ἔ|χομεν· ἐν ⟨Φ⟩οί | ⟨β⟩ου̣ τε
γὰρ χρη|σμο[ῖ]ς προφη|τεύ̣⌊ο⌋υσι Λοξί|ου φ̣⌊ρ⌋έ̣να γυ|ναῖκ⌊ες⌋.” (fr. 39 col. XI 20-30).
34
As tesmoforiantes, 374-5. A tradução de Duarte (2005) foi adaptada para atender às variações e lacunas do fragmento. No
texto da peça, o nome da mulher que preside o Conselho é Timocleia, e não Arquicleia.
35
36
Ibidem, 335-7.
Codex - Revista de Estudos Clássicos, ISSN 2176-1779, Rio de Janeiro, vol. 8, n. 2, pp. 39-62
53
Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
para misogynía, compreendida como certa atitude – enfurecer-se, pelejar, odiar – que, a partir de uma
experiência particular, estende-se a todo o sexo (γένος) ou raça (φῦλον) das mulheres. Compare-se
a estrutura da última oração com o trecho da Genos, que apresenta uma construção quase idêntica:
“πρὸς τοῦτον ἐφώρασε τὴν οἰκείαν γυναῖκα (...)” (Genos IV §1) e “[πρ]ὸ̣ς | τοῦτον οὖ̣ν̣ [ἐ]|φώρασε
τ[ὴ]ν | γυναῖκ[α τὴ]ν̣ | ἰδίαν”.
F6, fr. 39, col. XIII
F6, fr. 39, col. XIII
(A) (...) τ̣ ὸ̣ ἀδίκημ’ ἐν[ε]γ|κών,
ὡς μ[νη]|μονεύου[σι,] | τ[ὴ]ν μὲν
ἄ[ν]|θ[ρ]ωπον ἐκ̣ [ έ]|λ[ευ]σεν τῶ[ι] |
νεανίσκ[ωι] | συνοικεῖ[ν, ἐ]|πειδήπερ
α̣ [ ὐ]|τὴ προ̣ [ είλε]|το, “ἵνα μ̣ [ ὴ τὴν] |
ἐμὴν ο̣[ὗτ]ο̣ς̣ | ἔχηι”, φησίν, | “ἀλλ’ ἐγὼ
τὴν | τούτου· δίκαι|ον γάρ, ἄνπερ |
βούλωμαι.” | πρὸς ὅλον δὲ | τὸ φῦλον
δ̣[ι]ε|τέλει μαχόμε|νος ἐν τοῖς | ποιήμασιν. |
(B) νὴ γελοίως γε· | τί γὰρ ἄν τις
εὐ|λογώτερο[ν] | διὰ τὴν φθα̣|ρεῖσαν ψέγοι
| τὰς γυναῖκας | ἢ διὰ τὸν φθεί|ραντα τοὺς
ἄν|δρας; ἐπεὶ τ[άς] | γε κακίας καὶ | τὰς
ἀρετάς, καθ|άπερ ἔλεγ⟨ε⟩ν | ὁ Σω⟨κρ⟩άτης̣,
| τὰς αὐτὰς̣ [ἐν] | ἀμφοῖν ἔ̣σ̣[τιν] | εὑρεῖν·
σ[κ]ο|πεῖν δ’ ἄξι̣[ον ̣ ] | τ̣ ̣ ̣ ̣ υ̣θει̣[ ̣ ̣ ̣ | ̣ ̣ ̣ ̣ ̣ ]ε̣[ - - -
(A) (...) suportando a injustiça, segundo
recordam, ordenou que a mulher fosse viver
junto do jovem, já que ela o tinha escolhido.
“Para que esse homem não possua a minha
mulher”, disse, “mas eu a dele; pois é justo, se
eu assim o desejar.” E continuou pelejando
contra toda a raça das mulheres em seus
poemas.
(B) De fato, é risível. Por que seria mais
razoável que alguém censurasse as mulheres
devido à que foi seduzida, do que os homens
devido ao que a seduziu? E depois, como
dizia Sócrates, é possível encontrar os mesmos
vícios e virtudes em ambos os sexos. Porém,
vale considerar ...
Como comentado anteriormente, a personagem (B) vale-se neste trecho de ideias socráticas
para desqualificar a atitude de Eurípides, que considera “risível” (em grego, a forma é adverbial:
“γελοίως”). O verbo pségo (ψέγω, “censurar”) retoma seu cognato, psógos (ψόγος, “censura”), presente
na Genos (IV § 2) e na coluna X do texto de Sátiro. Vê-se que a discussão sobre a misogynía tinha já
um longo caminho percorrido, e o argumento da personagem (B) soa peculiarmente extemporâneo.
Quanto às “ideias socráticas” em questão, toca recordar a extensa passagem do livro V da República
(451c-457b) na qual Sócrates defende que homens e mulheres deveriam ser submetidos à mesma
educação e desempenhar os mesmos papéis, inclusive como guardiões da cidade, visto que “as aptidões
naturais (αἱ φύσεις) se distribuem igualmente entre os dois sexos” (455d). Em 456a, ele parece aludir
à questão dos “vícios e virtudes”:
– Mas há, diremos nós, mulheres que são naturalmente aptas para a medicina ou
para a música e outras que não são.
– Por certo.
– E não há algumas que são aptas para os exercícios gímnicos e militares e outras
que não gostam nem da guerra nem do ginásio?
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
– Creio que sim.
– Mas como! Não há mulheres que apreciam (φιλόσοφος) e outras que odeiam
a sabedoria (μισόσοφος)? Não há corajosas (θυμοειδής) e outras pusilânimes
(ἄθυμος)?
– Sim.37
Cabe ainda destacar uma passagem do diálogo Mênon na qual, exortado por Sócrates a
definir a virtude (ἀρετή), Mênon atribui uma virtude distinta a cada sexo, reproduzindo um lugarcomum de seu tempo (71e): “(...) a virtude do homem consiste em ser ele capaz de administrar os
negócios da cidade (...).a virtude da mulher, (...) é (...) governar bem a casa, cuidar do que nela se
contém e obedecer ao marido.”38 Instado, porém, por Sócrates, a admitir que a saúde, a altura e a
força são idênticas em homens e mulheres, Mênon acaba por admitir que a virtude também deve ser
a mesma para ambos os sexos. Assim, Sócrates desenvolve e conclui seu raciocínio (73a-b): “E será
possível a alguém dirigir bem a cidade ou a casa ou o que quer que seja, sem fazê-lo sábia e justamente?
(...) Logo, necessitam da mesma coisa o homem e a mulher, se tiverem de ser bons, a saber: justiça
(δικαιοσύνη) e temperança (σωφροσύνη).”39 Se bem os papéis atribuídos a cada sexo não sejam postos
em pauta no Mênon, Sócrates conclui haver uma equanimidade ético-moral entre homens e mulheres.
F6, fr. 39, col. XV
F6, fr. 39, col. XV
(Diodor[-]) (...) μαχε[ῖ]ν τέως | ἐκράτησαν
| τῶν ἐναν|τίων· κατ’ ἐ|μὲ μὲν̣ [γ]ὰρ | τοῦτο
θε[τ]έον | τὸ νίκημα | τῶν γυναι|κῶν. οἱ μὲν
| γὰρ ἄνδρες | ὅσον ἐφ’ ἑαυ|τοῖς ἡττῶντο. |
(A) ἴ[σ]ως, ὦ Διοδω|ρ ̣ , πλὴν
ταῦ|τα μὲν συνη|γορήσθω ταῖς |
γ[υ]ναιξίν. ἐπ|ανάγωμεν | δὲ πάλιν ἐπὶ |
τὸν Εὐριπίδην.
(Diodor[-]) (...) lutar por certo tempo
venceram os adversários. Pois, ao que me
parece, essa vitória tem de ser atribuída
às mulheres. Pois os homens, no que lhes
concerne, foram derrotados.
(A) Provavelmente, Diodor[-]. Sejam ditas
também essas coisas em defesa das mulheres.
Porém, voltemos a Eurípides.
Encerra-se aqui no papiro a discussão sobre a “questão das mulheres”. Interessante notar o uso
do verbo synagoreúo (συναγορεύω, “advogar por”, “defender a causa”), que evoca o contexto jurídico,
para se referir ao discurso da personagem Diodor[-] (o estado do papiro não permite determinar se se
tratava de um homem – Diodoro – ou de uma mulher – Diodora –, já que nas duas únicas instâncias
em que o nome aparece, a última letra da palavra foi perdida):40 uma verdadeira “defesa das mulheres”.
37
Tradução de Guinsburg (2014, p. 190).
38
Tradução de Nunes (1980a, p. 244).
39
Ibidem (p. 246).
40
Cf. Hägg, 2012, p. 77, n. 30.
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
Eurípides, o misógino, e um outro Eurípides
Além das passagens analisadas, vários textos antigos não biográficos dão conta desse
juízo de misoginia que pesa sobre o poeta, alguns mais explicitamente que outros. Um fragmento
atribuído a Hierônimo de Rodes (séc. III a.C.)41 e registrado por Ateneu em O banquete dos eruditos
e por Estobeu em sua Antologia, conta que Sófocles teria dito a respeito de Eurípides que “ele era
misógino (μισογύνης) em suas tragédias, mas filógino (φιλογύνης) na cama.”42 Novamente um apelo
à literalidade, que demonstra a veia cômica característica dessas anedotas, ou khreíai (χρείαι), que
são uma das matérias-primas das biografias e que, quando deslocadas do contexto cômico, como no
caso das Vidas, produzem “verdades” um tanto perigosas. Alguns gramáticos também registram esse
que parece ter se tornado um lugar comum de forma bastante curiosa. Herodiano de Alexandria, ao
propor um exercício de declinação, coloca lado a lado as palavras “Eurípides” e “misógino” (o mesmo
exercício aparece num compêndio de Jorge Querobosco sete séculos depois); Teodósio de Alexandria,
para exemplificar o uso do vocativo: ὦ Εὐριπίδη, ὦ μισογύνη, ὦ Μηριόνη (“Ó, Eurípides”, “ó,
misógino”, “ó Meríones”); entre muitas outras. A partir desses exemplos corriqueiros, pode-se ter
uma noção da ressonância dessas ideias a partir do momento em que tomam a “cara séria” de uma
biografia e deixam os limites da comédia ou do registro anedótico.
Para o leitor moderno, essa fama tão bem sedimentada na Antiguidade pode parecer
inusitada. O contraste é especialmente gritante se a compararmos a alguns momentos da recepção da
obra euripidiana na modernidade. Edith Hall, num artigo intitulado “Medea and British Legislation
Before the First World War”,43 narra uma cena poderosa ocorrida a princípios do século XX, a que
também se referem Bernard Knox (1979) e Moses Hadas (1966). Segundo Hall, a primeira (e tardia)
representação da Medeia em palcos ingleses numa versão não adaptada ocorreu no Savoy Theatre,
em 1907, sob a supervisão do tradutor e pesquisador Gilbert Murray. A encenação da peça ocorreu
num momento de intensificação da luta pelo sufrágio das mulheres, isto é, pelo direito das mulheres
ao voto (que só seria conquistado na Inglaterra mais de vinte anos depois, em 1928), e não por acaso:
o produtor da peça, Harley Barker, queria apresentar ao público enredos controversos, com forte teor
crítico, e que dialogassem com as lutas políticas e sociais de seu tempo. Segundo conta Hall, depois
da impactante encenação da peça, as militantes feministas conhecidas como sufragettes, ou sufragistas,
incorporaram passagens do texto às soirées que organizavam e de que participavam atrizes da liga
Hierônimo de Rodes, dito peripatético, autor de uma obra sobre os poetas da qual são citados dois livros na literatura
supérstite: o Περὶ κιθαρῳδῶν (Sobre os citaristas) e o Περὶ τῶν τραγῳδοποιῶν (Sobre os tragediógrafos).
41
“Εἰπόντος Σοφοκλεῖ τινος ὅτι μισογύνης ἐστὶν Εὐριπίδης· ἔν γε ταῖς τραγῳδίαις, ἔφη ὁ Σοφοκλῆς, ἐπεὶ ἐν [γε] τῇ
κλίνῃ φιλογύνης.”
42
43
Hall (1999).
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
sufragista. Assim, é possível imaginar que o primeiro discurso de Medeia (em que a protagonista
profere críticas contundentes à condição da mulher e aos moldes do contrato de casamento) tenha
sido declamado nessas reuniões como um verdadeiro canto de exortação à luta. Hall cita diversos
comentários que dão a ver em que medida a peça era lida como um libelo feminista. O tradutor da
obra, Gilbert Murray, declara que a obra celebrava “o triunfo vindouro da Mulher em sua rebelião
contra o Homem.”44 Muitos teóricos falam numa “retórica feminista” subjacente a suas peças. Moses
Hadas (1966) chega ao ponto de acusar Eurípides de panfletário, num tom claramente derrogatório,
ao comentar o primeiro monólogo de Medeia: “This is a feminist harangue. (...) Its irrelevance shows
how intent Euripides was on his lesson. Here and elsewhere he is willing to mar a play for the sake
of a pamphlet.” Os exemplos são muito numerosos para serem listados exaustivamente. A questão é
análoga, por exemplo, à da recepção da comédia Lisístrata, de Aristófanes, que no século XX passa
a ser lida como uma peça pacifista ou protofeminista, apesar de sua caracterização estereotipada das
mulheres.45
Existe, evidentemente, um caminho conceitual que percorrer entre esses dois extremos, que
desde já sugerem ideias muito distintas da misoginia ou misogynía, e dos elementos que caracterizariam
uma atitude misógina. Partindo da assumpção bem estabelecida de que os nossos autores recorriam
às obras dos próprios biografados como fonte de informações biográficas, bem como à comédia de
Aristófanes, é possível tomar a acusação feita pelas mulheres em As tesmoforiantes como evidência.
Nessa peça, é apresentada uma ideia da misogynía (para aplicar o termo que este artigo se propõe a
explorar) que se refere à desestabilização do papel social das mulheres das classes privilegiadas. Na
peça de Aristófanes, os argumentos das mulheres casadas contra as personagens euripidianas passam
sobretudo pela tensão entre os âmbitos doméstico e público, como fica claro no discurso de Mica (383432): “Qual dentre os males este homem não nos atribuiu? (...) / põe-se a chamar-nos conquistadoras,
taradas, / entorna-vinho, traidoras, tagarelas, / sem-juízo, desgraça maior dos maridos. / Assim, tão
logo [nossos maridos] voltam do teatro, / olham-nos com suspeita.” E mais adiante: “Hoje, não nos
deixam fazer nada / do que fazíamos antes, tais mutretas ele ensinou / aos nossos maridos.” Como
afirma Duarte (2005, p. XXI), “o problema é que a reputação das mulheres está comprometida pela
divulgação pública de seus hábitos privados, o que compromete o relacionamento entre pais e filhas,
entre maridos e esposas”. É possível imaginar que, ao fazer representar personagens femininas que
desafiam um determinado status quo e que transpassam os limites do οἶκος, Eurípides provoca uma
reação na audiência que, exagerada pela lente cômica, eventualmente lhe renderá o título de misogýnes
em suas biografias. Como diz Scodel (2016, p. 31), “the hatred for women is an interpretation of the
work as filtered through comedy.” Percebe-se, com isso, que o contrário de uma “postura misógina”
44
45
“The coming triumph of Woman in her rebellion against Man.” (Murray apud Hall [1999, p. 45]).
Ver, a esse respeito, o artigo introdutório de Adriane da Silva Duarte à sua tradução da peça (Duarte, 2005).
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
para as personagens da comédia não seria uma “postura progressista” no sentido moderno, mas antes
uma “postura conservadora”, Penélope contra Fedra.
A teórica feminista Kate Millett já chamava a atenção para o fato de que a literatura misógina,
como “o veículo primário da hostilidade masculina”, encontra-se integrada tipicamente ao gênero
cômico, que tem por fim reforçar os papéis de gênero sob a forma de estereótipos, e que apenas
no Romantismo essa prática literária teria começado a cair em desuso.46 Isso é muito evidente em
Aristófanes, para além do caso específico do seu tratamento da obra de Eurípides. Seria o caso de
se perguntar, portanto, em que medida essa misogynía imputada a Eurípides não seria um reflexo da
própria posição aristofânica, considerando junto com Millett essa faceta propagandística do gênero
cômico num contexto eminentemente patriarcal como o da Atenas clássica. Assim, por vezes, as
invectivas contra o sexo feminino são postas nas bocas das próprias mulheres, via de regra interpretadas
por homens: “Que sexo mais devasso, esse nosso! / Não é em vão que as tragédias falam de nós, / pois
nada somos exceto sedução e bebês enjeitados.” (Lisístrata 137-139).47 As personagens masculinas,
por sua vez, colocam-se de acordo com esse Eurípides misogýnes, como o líder do coro de velhos
na Lisístrata: “(...) estas aí, detestadas por Eurípides e pelos deuses todos.” E, mais adiante: “Não há
poeta mais sábio do que Eurípides, / pois nenhuma criatura é desavergonhada como as mulheres.”
(368-369).48
Outra passagem crucial é a “virada” na atitude de Eurípides em As tesmoforiantes (1160 em
diante) que se encontra reproduzida na Genos e que talvez figurasse no texto de Sátiro. Feito o acordo
entre as partes, Eurípides se compromete a não mais retratar as mulheres de forma reprochável. A
Vida dá provas dessa virada citando uma passagem de Melanipe prisioneira, para atestar que Eurípides
teria cumprido com sua palavra. Esse procedimento circular é corriqueiro nas biografias antigas,
como atesta Lefkowitz (2012, p. 95): “(...) an anecdote is told first, and then the verses which it
was invented to explain are cited as ‘evidence’ for its veracity.” Em As tesmoforiantes, Melanipe é
citada pelas mulheres casadas como exemplo de “mulher sem caráter” (“γυνὴ πονηρά”, 546), mas a
referência é muito provavelmente à primeira peça centrada nessa personagem, Melanipe, a sábia. Na
Genos, um excerto da segunda peça centrada na personagem, Melanipe prisioneira, é apresentada como
uma verdadeira palinódia, ilustrando a “redenção” de Eurípides frente ao sexo feminino. É tentador,
como também é tentador no caso de Hipólito, imaginar que a peça tenha sido reescrita para agradar
ao público, mas esse não parece ser o caso, como adverte Devereux: “Euripides apparently did not
rewrite any of his failed dramas to please the public. In fact, criticism only seems to have made him
46
Cf. Millett (2010, p. 45-46).
47
Tradução de Duarte (2005, p. 16).
48
Ibidem, p. 26.
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more persistente in his ways.”49 É preciso recorrer a outras hipóteses. Na Genos e na Vida de Sátiro
a inserção de um trecho de Melanipe prisioneira pode ser facilmente justificada como uma simples
inferência hermenêutica. No caso da comédia, a “virada” na atitude do poeta pode ser interpretada
como uma manobra dramática de Aristófanes para dar conta não apenas dos discursos dissonantes que
a própria tragédia euripidiana comporta, como também de possíveis ideias discordantes no âmbito
da pólis, que comprometeriam seu retrato de um “Eurípides misogýnes”. Dentro do que permitem
vislumbrar as tragédias supérstites, a virada não se sustenta cronologicamente (isto é, não haveria uma
“primeira fase misógina” e uma “segunda fase redentora” na obra euripidiana), ainda que Melanipe
prisioneira seja considerada uma peça tardia dentro de sua produção (c. 413-412 a.C.),50 sendo possível
que sua primeira encenação tenha ocorrido pouco antes da primeira encenação de As tesmoforiantes
(411 a.C.). Da longa rhêsis (ῥῆσις) da protagonista conservada num papiro do século II a.C. (P. Berol.
9722),51 cabe destacar uma passagem que dialoga ativamente com as anedotas aqui revisitadas, e
que termina com uma sentença moral bastante controversa para pensar o sentido da misogynía de
Eurípides: “Não cessará a tola censura (ψόγος) dos homens, †que acham por bem† censurar (ψέγειν)
igualmente todas as mulheres se descobrem que uma é má? Farei uma distinção em meu discurso:
nada pode haver de pior que uma mulher má, mas não há nada superior a uma mulher valorosa em
mais alto grau: as naturezas são distintas.”52 Ora, é possível imaginar que o texto da peça tenha tido
uma influência ainda maior na elaboração das anedotas biográficas do que é possível vislumbrar a
partir dos fragmentos de que dispomos.
E que “ideias dissonantes” seriam essas em circulação no século V a.C. que se oporiam não
apenas à visada “conservadora” transmitida pela comédia de Aristófanes como ao próprio estatuto da
mulher na Atenas clássica? Duarte oferece uma pista: “Ao tragediógrafo interessava testar as teses dos
sofistas de que a mulher e o homem eram essencialmente iguais, sendo as convenções sociais, e não a
natureza, responsáveis pelas diferenças entre os sexos.” (2005, p. XXIV-XXV). Reckford aponta uma
possível ressonância do discurso do sofista Antifonte contra o casamento nos enredos de Eurípides, em
especial o primeiro monólogo de Medeia (230-251): “Such a prose argument is found, whether or not
Euripides could or did draw upon it, in a long fragment of Antiphon the Sophist (...). Man is born free,
Antiphon implies (…). Until the present system is changed, it is obviously better for a man neither
to marry nor, if he does, to beget children.” (1968, p. 336-337). Conforme apontado no comentário
49
Devereux (1985) apud Roisman (1999, p. 398).
50
Cf. Bermejo (2017).
51
Fr. 494 Kn.
“οὐχὶ παύσεται ψόγος / μάταιος ἀνδρῶν †οἵ τ’ ἄγαν ἡγούμενοι† / ψέγειν γυναῖκας, εἰ μί’ ηὑρέ[θ]η κακή, / πάσας
ὁμοίως; διοριῶ [δ’ ἐ]γὼ λόγωι· / τῆς μὲν κακῆς κάκι⌊ο⌋ν οὐδέν γίγνεται / γυναικός, ἐσθλῆς δ’ οὐδὲν εἰς ὑπερβολήν
/ π⌊έ⌋φυκ’ ἄμεινον· διαφέρουσι δ’ αἱ φύσεις” (Fr. 494 Kn. 23-29, tradução nossa). As linhas 27-29 também foram
transmitidas por Estobeu (4.22.78).
52
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
aos trechos da Vida de Sátiro, Sócrates, personagem onipresente nas biografias de Eurípides, também
defendia uma equanimidade entre os sexos nos escritos de Platão.53
Em relação ao conteúdo das peças propriamente dito, muito já foi dito para defender ou
contestar o conteúdo possivelmente “feminista” do primeiro monólogo de Medeia, para nos atermos
ao caso mais expressivo e profícuo. A seguir, serão elencados alguns pontos de vista discordantes,
sustentados por diferentes autores que se debruçaram sobre o tema, de modo a oferecer um panorama
da questão. Andrew Messing: “Euripides’ Medea indeed questioned prevailing norms and beliefs,
primarily those of the heroic masculine ethic, but it did so at the expense of women, not in their
support.” (2009, p. 2). Em outra passagem, na qual parece validar o ponto de vista das personagens
de Aristófanes: “(…) the effect of his plays would have also encouraged greater suspicion and scorn
by males of females.” (idibem, p. 2). Terry Collits: “(...) the polemics of Euripides’ drama indicates at
the very least a theoretical development of a feminism in Athens itself, the beginnings of a political
backlash against oppression.” (2000, p. 7). Jennifer March: “Euripides felt (…) a supreme compassion
for the painful precariousness of the human condition; and he taught it most of all through his
women characters. In no way can he be called a misogynist.” (1990, p. 75). Douglas Cairns: “Far
from questioning the lot of women in Athenian society, [Euripides’ Medea] suggests that chaos
and destruction would result should women ever act like men, demand equality and throw off the
constraints that society places on them.” (2014, p. 137). E o grande Bernard Knox: “(...) the lot of
women was, in late fifth-century Athens, very much a question of the day, and also a subject that
fascinated the tragic poets.” (1979, p. 221). Mais adiante, esta declaração radical: “(...) the startling
universality of Euripides’ play is clear from the fact that it says some things that do not seem to have
occurred to anyone again until Simone de Beauvoir wrote Le Deuxième Sexe.” (ibidem, p. 221).
Como se vê, a controvérsia interpretativa é enorme, e trechos isolados não podem ser usados para
sustentar uma suposta intencionalidade autoral, que (felizmente) permanece inescrutável. Como o
texto de Sátiro deixa entrever, a matéria estava longe de ser, já no período helenístico, ponto pacífico.
Vislumbram-se, assim, dois pares de discursos antagônicos. Entre os comentadores
contemporâneos, há, de um lado, aqueles que sustentam que as protagonistas euripidianas
encarnavam a dissolução dos valores vigentes e serviam como modelos negativos para uma audiência
predominantemente ou integralmente masculina; e, de outro, aqueles que enxergam na tragédia
euripidiana um grau de experimentalismo que permitia trazer ao palco, em intenso diálogo com a
filosofia e a sofística, ideias que desafiavam os moldes do contrato social. No mundo antigo, por sua
vez, ao discurso das mulheres reunidas em assembleia para organizar o linchamento de Eurípides,
em As tesmoforiantes, sob o argumento de que o poeta torna públicos seus vícios privados, opõe-
Platão pode ter derivado suas ideias dos sofistas, como afirma Knox: “Plato may well be adapting to his own purpose,
as he so often does, ideas that were first put into circulation by the sophistic radicals of the fifth century.” (1979, p. 219).
53
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Camila de Moura — A misoginia na tradição biográfica de Eurípides
se a crítica ao papel social da mulher verbalizada por Medeia, que parece refletir certas ideias em
circulação na década de 430 a.C. A reação das personagens de Aristófanes ao drama euripidiano estão
atreladas à esfera de atuação da mulher casada na Atenas clássica, e respondem à ideia de misogynía que
ressurge nas biografias aqui abordadas. Já o discurso de Medeia, quando deslocado do seu contexto de
performance, fala diretamente aos anseios de um século comprometido com as primeiras conquistas
políticas do movimento feminista.
Considerações finais
As ocorrências do termo misogýnes nas antigas biografias de Eurípides para caracterizar o
poeta e sua obra estão inseridas numa longa tradição que remonta a Aristófanes, e que teve grande
ressonância na Antiguidade. A contar pelo testemunho de Ateneu, que imputa uma anedota sobre
o poeta a Hierônimo de Rodes (séc. III a.C.), uma das ocorrências mais antigas do termo pode estar
associada a essa tradição. Muitos comentadores contemporâneos tentaram compreender o problema
submetendo o caso ao dualismo “misógino” vs. “feminista” sem definir essas categorias ou situá-las
numa perspectiva temporal. A partir da análise dos trechos em que o poeta é caracterizado como
misogýnes (“misógino”) em suas biografias, este artigo procurou fornecer elementos que possam
contribuir para uma definição da misogynía antiga, por vezes contrária à concepção moderna do
termo. Resta a pergunta colocada por Jennifer March: “can we in fact say, on the evidence of his extant
plays, that Euripides really was a misogynist?”54 Ora, para responder a essa pergunta, será necessário
historicizar os termos usados para elaborá-la, a fim de evitar falsos problemas e ultrapassar o véu de
imprecisões que a perspectiva aristofânica impõe.
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