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Um breve resumo da obra “Cartas a Spinoza” de Nise da Silveira.
Camila Kulkamp1
Tive tão grande e prazerosa surpresa ao ler o livro Cartas a Spinoza (1995) da
filósofa Nise da Silveira (1905-1999), que resolvi escrever um resumo do texto para
fomentar a leitura da obra. Trata-se de um livro muito diferente considerando os
exemplares que existem no campo da filosofia.
Mas antes de falar do livro, é necessário dizer que parece que Nise da Silveira
ainda não é considerada uma filósofa no Brasil. Ela é estudada na área da psicologia,
medicina, terapia ocupacional, artes, arquitetura, museologia, políticas públicas, ciências
sociais, etc., mas não é objeto de estudo e debate nos congressos e ainda não existem
trabalhos sobre ela no campo da filosofia brasileira. Talvez, com alguma lentidão –
também derivada do apagamento das filósofas da história da filosofia e da constante
repetição da crença de que as mulheres não fazem filosofia – as mulheres brasileiras
(comigo inclusa) percebem que Nise da Silveira é uma grande filósofa. E Cartas a
Spinoza é uma prova disso.
Trata-se de um livro composto por sete cartas escritas por Silveira destinadas a
Spinoza. Nessas cartas, Silveira consegue a proeza de abordar e entrelaçar a sua biografia
com a biografia de Spinoza; a teoria filosófica de Spinoza com as ideias de outros
filósofos e com críticas e comentários próprios. É uma conversa filosófica entre uma
filósofa e um filósofo, composta por uma escrita simples, íntima, afetuosa, graciosa e
horizontal.
Silveira atravessa o livro com lembranças de algo que ela gostaria que tivesse
acontecido: seu encontro com Spinoza. Porém, o livro é tão bom que parece que esse
encontro de fato aconteceu! Silveira e Spinoza estão perigosamente próximos na
imaginação de Nise, o que fez com que o encontro ganhasse vida pelo impulso da sua
paixão pelas ideias de Spinoza.
Silveira humildemente admite os limites da sua reflexão filosófica, diz que
estudou Spinoza como uma diletante, por prazer. Talvez esse seja mesmo o melhor
caminho para o estudo da filosofia, e não aquele apressado, cheio de provas, títulos e
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Santa Catarina.
Bolsista CAPES. Integrante do projeto Uma Filósofa por Mês. E-mail: camila_kulkamp@hotmail.com
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avaliações que esgotam o espírito, cujo propósito é limitado a uma obrigação ou pressão
do mercado de trabalho.
Ao longo do livro, ela nos conta lembranças da sua vida, de como foi entrando
em contato com as ideias do filósofo e, ao mesmo tempo, ela reafirma a sua compreensão
e amor pelas ideias como faria uma filósofa compromissada que ama a sabedoria.
Ao escrever no formato de carta, Silveira não está preocupada com as regras
acadêmicas canonizadas na filosofia e com o reconhecimento dos filósofos do
mainstream, mas nem por isso abdica do rigor na exposição das ideias.
O que é mais surpreendente é que ela inventou essas cartas, pois elas não foram
enviadas na realidade, já que Spinoza viveu no século XVII. A partir de tal criatividade,
me pergunto: quais as regras que regulam a nossa escrita filosófica? Conseguimos ousar
escrever como queremos, sem buscar imitar ou agradar os impulsos produtivistas das
estruturas de poder do campo filosófico?
Ao inventar cartas para escrever sobre filosofia, Silveira inovou ao criar um lugar
de enunciação para si. Um lugar onde ela mistura o público e o privado, a realidade e a
lembrança, a memória e o esquecimento, a filosofia e a conversa, o conhecimento e a
imaginação, etc., para pensar em uma filosofia que não despreza o imaginário, o corpo e
as emoções. Uma filosofia crítica à herança da filosofia de Descartes, à separação mente
e corpo e ao isolamento hierarquizado da razão masculinizada. Silveira reflete sobre uma
filosofia que consegue prover fundamentos éticos e políticos para práticas humanizadas,
não-violentas, criativas, inclusivas e afetuosas no âmbito da saúde física e psicológica,
sem perder de vista as benesses da racionalidade.
Tenho a impressão que, até hoje, o primado da razão ainda é a imagem que temos
da filosofia e a saúde vista sob um ângulo integral e holístico é algo pouco abordado no
campo filosófico. E aqui precisamos pensar além das referências androcêntricas
comumente citadas quando falam sobre Nise da Silveira, como Hipócrates, Galileu, Jung,
etc. Existiram filósofas ao longo da história, como as pitagóricas, Trotula de Ruggiero,
Hildegarda de Bingen, Christine de Pizan, Oliva Sabuco, entre tantas parteiras, erveiras,
curandeiras, que pensaram sobre a relação entre a mente, o corpo, as emoções e o
imaginário. Cito também Nísia Floresta, filósofa brasileira, que criticou as práticas de
tortura nas escolas brasileiras do século XIX e buscou pensar em uma educação que
incluísse as mulheres, excluídas por serem consideradas seres inferiores, e muitas vezes,
irracionais e loucas.
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A mim, parece que o que precisamos não é apenas uma virada de pensamento
focada em Spinoza-Jung, mas também estudar sobre o apagamento desse conhecimento
que as filósofas ajudaram a construir, que foi importante para o primado da razão na
filosofia criticado por Silveira, e pensar como a história das filósofas é necessária para
entendermos a profundidade da contribuição de Nise da Silveira para o Brasil. E este é
um trabalho que ainda está por ser feito.
Precisamos de mais invenções como a de Nise da Silveira para atiçar o desejo
pela filosofia que todos os seres humanos possuem e para tornar a filosofia popular, mais
democrática, menos elitizada e academicizada. Uma filosofia engajada a resolver os
problemas e as angústias do nosso país e do nosso tempo. Obrigada Nise, por nos mostrar
que isso é possível.
CARTA I
Na Carta I, Silveira arrisca uma análise psicológica sobre Spinoza e defende a
ideia de que o filósofo teve uma experiência própria de encontro com a totalidade, o
que o permitiu escrever suas obras. Silveira começa a carta dizendo que ela não tem
formação em filosofia, mas que Spinoza e suas ideias atraem todos os tipos de pessoas.
Ela apresenta alguns poemas que existem dedicados ao filósofo, como de Sully
Prudhomme e outro de Machado de Assis. Ela também comenta sobre alguns admiradores
ilustres de Spinoza como Goethe e Romain Roland.
Ela continua a carta contando que o livro de Spinoza, Ética, foi parar na mão
dela em Maceió, num período de muito sofrimento e contradições. E que quando começou
a ler, “as dez mil coisas” que inquietavam ela se dissipara, e outros valores começaram a
se impor. Silveira conta que continuou sofrendo, mas de maneira diferente, e, desde então,
ela quer se aproximar de Spinoza, como discípula e amiga, por isso escreveu as cartas.
Silveira entende que Spinoza viveu a experiência da totalidade, o que para o
psiquiatra suíço Carl Jung é a mais importante e única de todas as experiências. Foi assim
que Spinoza conseguiu escrever sobre a Substância única, do qual fazem parte os seres
humanos, enquanto modos ou modificações dessa Substância. Silveira explica que, para
Spinoza, a Substância é a causa imanente do ser humano, mas a sua existência é precária,
e finita. Ademais, ela expõe que o ser humano possui uma “latente capacidade de
diferenciação” e que Spinoza aponta esse caminho no livro, ajudando-nos a tornar menos
confusas e mais claras as nossas ideias, o que nos diferencia enquanto Substância de
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maneira especial. Ela propõe um subtítulo para a Ética de Spinoza: “Arte de diferenciação
do modo humano”.
Silveira questiona quem acusa Spinoza de panteísta ou ateu. Ela diz que ele era
um “ébrio de deus” e cita passagens da Ética em que Spinoza fala sobre Ele. Ela também
critica quem nega originalidade à obra de Spinoza, como se ele fosse o resultado da
influência de outros intelectuais como “Uriel da Costa, Daniel Prado, Giordano Bruno”.
Silveira fala das pessoas que compreenderam Spinoza e pergunta para o filósofo
se ele conhece “um filósofo do Terceiro Mundo, chamado Farias Brito”? Assim ela diz:
“Ele aprendeu sua idéia fundamental de maneira mais sintética: “Deus está no universo
como o universo está em Deus”” (SILVEIRA, 1995, p. 26).
A filósofa continua contando alguns momentos difíceis da vida de Spinoza,
como quando ele foi expulso da comunidade judaica; quando fracassou no comércio de
exportação, legado do seu pai; e a decepção pelo amor que nutriu pela filha do seu
professor de latim. Silveira ainda comenta que Spinoza tinha um sinete, um instrumento
antigo para assinar e fechar cartas, que continha o símbolo de uma rosa e a seguinte
inscrição lateral “cuidado, tenho espinho”. A partir desses detalhes, Silveira arrisca uma
análise psicológica sobre Spinoza dizendo que o concurso dessas condições adversas:
(...) aceitas por você [Spinoza] sem qualquer crispação do Ego, criaram
um vazio que permitiu o surgimento da profundidade da psique, do
arquétipo do Self – “um termo de uma parte bastante preciso para
exprimir a essência da totalidade humana e bastante impreciso, de outra
parte, para exprimir também o caráter indescritível e indeterminável da
totalidade” (C.G. Jung, 12, 10). Ao arquétipo do Self, no seu caráter
indeterminado, você teria denominado substância infinita, ou seja,
Deus. Deus na acepção de Natura Naturans, energia criadora e
englobante do mundo na sua totalidade. (SILVEIRA, 1995, p. 27-28).
Silveira conta que tem um pensamento de Spinoza que a perturba: “é a sua
afirmação de que Deus consiste de uma infinidade de atributos, dos quais o entendimento
humano apenas alcança dois — pensamento e extensão.” (SILVEIRA, p. 28-29). Ela
termina a primeira carta destacando que o itinerário deixado por Spinoza para nós é o de
conhecer e reconhecer as nossas limitações, pois nunca poderemos conhecer a totalidade.
CARTA II
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Nesta carta, Silveira aborda a influência da doutrina de Cristo em Spinoza e
o método de conhecimento do filósofo. Ela começa falando sobre a vida de Spinoza em
Amsterdã, quando foi expulso da comunidade judaica e acolhido por um grupo de
cristãos, os Colegiantes, que reunia estudiosos de diversas filosofias e interessados na
interpretação da bíblia. Silveira continua dizendo que, em 1660, Spinoza mudou para a
aldeia de Rijinsburg, centro dos Colegiantes. Mais adiante, ela imagina como seria se ela
estivesse lá, com Spinoza:
Às vezes chego a imaginar-me em Rijinsburg, invisível ouvinte do
círculo dos Colegiantes, que você ali freqüentava. Era um prazer vê-lo,
aos 28 anos, moreno, de cabelos e olhos escuros, os olhos que deveriam
ser semelhantes aos de sua mãe, a portuguesa Ana Débora. Tenho quase
certeza de que as primeiras palavras que você balbuciou foram em
português. E isso me comove (SILVEIRA, 1995, p. 34).
Silveira cita uma poesia de Baudelaire sobre as ruas de Rijinsburg e comenta
que, felizmente, os Colegiantes não impuseram que Spinoza aderisse ao cristianismo. Ela
continua citando uma carta de Spinoza em que ele diz:
Pode ser que Deus tenha impresso em vós uma idéia clara d ’Ele
mesmo, de modo que, por amor, vós esqueceis o mundo e amais os
outros homens como a vós mesmos. Em todo caso, é evidente que a um
homem dotado de tal disposição repugne tudo quanto é chamado de mal
e, por esta razão, o mal não pode existir n’Ele (Carta XXIII a
Blyenbergh — Voorburg 1665 — O.C., p. 1220) (SILVEIRA, 1995, p.
35).
Silveira cogita que, nesta carta, o homem do qual fala Spinoza pode ser Cristo e
pondera se Spinoza foi influenciado pela doutrina de Cristo, principalmente na primeira
etapa de suas cogitações filosóficas, como nas obras Breve Tratado e Tratado teológico
político. Silveira conclui a partir dos excertos que traz na carta que Spinoza concorda que
“à exceção do Cristo, ninguém recebeu jamais a revelação de Deus sem o auxílio da
imaginação, isto é, de palavras ou imagens visuais” (T.T.P., O.C., 681)” (SILVEIRA,
1995, p. 35). A filósofa confessa que essas ponderações são importantes para ela, pois ela
era “amarrada a Cristo”.
A filósofa também fala sobre os amigos de Spinoza e como ele manteve
amizades sólidas, mesmo gostando da solidão dos livros. Até chegar ao ponto em que
Silveira reflete sobre o hábito de polir lentes do filósofo. Silveira considera que esse
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hábito de Spinoza não era um mero meio de subsistência, mas uma prática que exercia
por prazer:
Você admitiria a possibilidade de existir uma relação estreita entre o
polir de lentes, com as próprias mãos, dentro de regras geométricas, e
as transformações que fizeram do Breve Tratado, iniciado em Amsterdã
— a Ética — construída sob forma geométrica, sem cessar, polida e
repolida, até 1775? Nosso Machado de Assis percebeu algo dessa
relação quando disse num soneto, que já citei na carta anterior: “nas
mãos a ferramenta do operário/no cérebro a coruscante idéia”. Dando
um passo a mais, ver-se-á ficar transparente, em você próprio, relação
estreita entre pensamento e corpo (suas mãos) trabalhando, cada um em
sua clave, numa personalidade bem integrada. (SILVEIRA, 1995, p. 38)
A filósofa relata uma lembrança que a marcou e ocorreu quando era jovem, do
seu pai dizendo que a geometria ensinava a “arte de pensar”. Dessa lembrança, Silveira
expõe o método de conhecimento de Spinoza, que difere o primeiro, o segundo e o
terceiro gênero de conhecimento. O primeiro, as experiências vagas; o segundo, a razão
dedutiva; e o terceiro, a apreensão imediata da essência das coisas. Silveira denota a
complexidade desse método e cita pessoas que conseguiram fazer essa apreensão
imediata, como Antonin Artaud e Carlos Pertuis. Porém, ela entende que somente
Spinoza suportou o fulgor dessa experiência súbita e isso foi devido à estrutura forte da
sua personalidade.
Silveira termina a carta comentando que ela não considera Spinoza um
racionalista, tendo em vista que certos fundamentos decisivos da sua filosofia são
apreendidos intuitivamente como uma verdade absoluta.
CARTA III
Na Carta III, Silveira discorre sobre alguns pontos da teoria de Spinoza, como a
relação entre a mente e o corpo, e a suposta hierarquia entre seres humanos e
animais. Ela inicia esta carta dizendo que Spinoza definiu que o pensamento e a extensão
são apenas dois atributos, entre os infinitos atributos da Substância única. São também
atributos divinos, segundo Spinoza, pois Deus é causa imanente de todas as coisas.
A filósofa explica como o pensamento de Spinoza é bastante distindo de
Descartes, pois este entende que a razão reina absoluta e muito distante da matéria ou da
extensão. Para dar credibilidade à defesa de Spinoza, ela comenta sobre trabalhos recentes
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na área de física que abordam um tipo de substância única, de forma semelhante como
Spinoza compreendeu. Também acrescenta que o psicanalista Carl Jung defendeu que o
pensamento e extensão são aspectos diferentes de uma mesma coisa.
Silveira se diz interessada desde muito cedo nas conexões entre corpo-psique e
expõe que ficou abismada ao conhecer “a figura sinistra de Descartes”. Ela continua a
carta fazendo uma crítica ao filósofo, principalmente, quanto ao aspecto de que ele
abandonou todas as contribuições trazidas pelos sentidos e desprezou o corpo como um
manto inútil para privilegiar o pleno poder de pensar. Descartes comparou o corpo
humano com o corpo dos animais, chamou-os de “máquinas”, e afirmou a inferioridade
dos animais por não possuírem razão. Assim ela comenta sobre sua experiência lendo o
Discurso sobre o método (1683) de Descartes:
Li este famoso discurso, ainda muito jovem, num volume da biblioteca
de meu pai. Fiquei revoltada. Jamais admitiria que meus queridos cães
Top e Jiqui fossem incapazes de pensar e de sentir. Entre nós três,
compreensão e afeto se encontravam estreitamente, num
relacionamento profundo (SILVEIRA, 1995, p. 51).
Ela prossegue dizendo que quando estava na faculdade de medicina novamente
se deparou com o pensamento de Descartes e afirma que ela recebeu uma formação
cartesiana. A filósofa explica como o cartesianismo estava presente em suas aulas:
Cabia-me, e a meus colegas, o estudo das peças componentes das
engrenagens da máquina que seria o corpo humano. E, para tornar mais
fácil essa tarefa, muitas vezes recorria-se à vivissecção, ou seja, ao
estudo dessa outra máquina mais simples, o corpo do animal, no
flagrante vivo de seu funcionamento (SILVEIRA, 1995, p. 51).
Silveira ainda relembra de uma aula em que teve que participar da vivissecção
de uma rã anteriormente crucificada. Ela afirma que as ideias de Descartes pareciam
insatisfatórias, que ela achava um absurdo negar a alma dos animais e das plantas e que,
neste sentido, Spinoza estava “mil anos-luz adiante”. Em relação à obra Breve Tratado,
Silveira destaca como Spinoza defendeu que todas as coisas particulares possuem uma
alma, “seja um punhado de areia, planta, animal, mulheres, homens” (SILVEIRA, 1995,
p. 52).
Mas a filósofa não concorda com um aspecto da teoria de Spinoza,
particularmente, quando ele expõe que conforme a razão e sob o princípio da utilidade,
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existe uma associação harmoniosa entre os seres da mesma natureza, e que os homens
buscam conviver entre seus semelhantes e não com os animais. Segundo Silveira, Spinoza
também pensa que os homens possuem um direito natural sobre os animais, fundado na
virtude ou poder (que o filósofo define como a essência do homem ou sua natureza), que
dá legitimidade sobre a vontade e a utilidade de se servir dos animais como convier aos
homens.
Silveira explica que esse pensamento de Spinoza causou uma amarga decepção.
Que ela leu na biografia do filósofo que ele gostava de provocar batalhas entre aranhas e
moscas e que isso deveria fazer parte da “sombra” de Spinoza. A filósofa corrige o
Spinoza dizendo que o certo seria ele pensar que não houvesse uma hierarquia de poder
entre seres humanos e animais na medida em que ambos são modos da mesma Substância
infinita de Deus.
Ela ainda denota que Spinoza possui um desinteresse explícito pelos “modos”
que diferem do “modo” humano, como os animais, e que o filósofo só estava interessado
em conhecer os homens, pois entende que são seres semelhantes e que agem segundo sua
própria razão. Nesse ponto, Silveira questiona Spinoza: “Onde jamais você encontrou tais
homens?” (SILVEIRA, 1995, p. 60).
A filósofa conclui a carta expondo esperar que Spinoza, seguindo sua própria
filosofia sobre a unidade do mundo, se abrisse para o amor e o reconhecimento de todos
os seres como uma “modalidade de religião metafísica” (SILVEIRA, 1995, p. 60).
Ademais, ela adiciona um “P.S.” na carta para expor que leu em uma revista que Spinoza
morava em um sótão com dois gatos. E que, certo dia, ele abriu dois buracos na porta para
que os gatos saíssem e entrassem livremente no aposento e para o filósofo não ter trabalho
de se levantar toda hora. Silveira, então, questiona se Spinoza era tão distante dos animais
quanto transparece na sua filosofia. Ela termina a carta fazendo uma interessante
comparação entre os gatos e os filósofos:
Seriam mesmo radicais as diferenças de essência entre o filósofo e os
gatos? Será possível que sem nenhuma afinidade estreitem-se relações
afetivas entre os seres? O gato, tal como o filósofo, é silencioso, capaz
de prolongadas concentrações, discreto, sutil nas suas manifestações
afetivas. Talvez seus gatos lhe fossem bastante próximos, caro Spinoza.
CARTA IV
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Nesta carta, Silveira aborda o tema dos sentimentos e a concepção de bem e
mal na teoria de Spinoza. Ela começa dizendo que a obra Ética não é parecida com outras
que comportam uma imensidão de regras de conduta, mas, diferentemente, Spinoza busca
explicar as ações e os apetites humanos segundo o método geométrico, e nesta
investigação, está contemplada a investigação sobre os sentimentos humanos.
Silveira conta a curiosa história de como conseguiu comprar a obra Tratado da
Reforma do Entendimento, de Spinoza. Ela relata como era difícil importar livros durante
a Segunda Guerra Mundial, e que, certo dia, foi à livraria que costumava adquirir livros
e viu um exemplar de Spinoza, mas ele estava reservado para um rapaz. Ela o esperou
horas na livraria e o convenceu a deixa-la comprar o único exemplar.
A partir dessa lembrança, ela explica como Spinoza define os sentimentos de
alegria, tristeza, amor e ódio. Silveira comenta sobre como Spinoza destrincha o processo
psicológico que pode levar uma pessoa a amar quem um dia ela odiou. A filósofa entende
diferentemente de Spinoza, que essa é uma transposição muito difícil de ocorrer, e prefere
outra possibilidade levantada pelo filósofo, de que podemos esvaziar os sentimentos de
amor e ódio ao tornar claros os laços que criamos entre nós e os objetos externos, fazendo
com que percam a consistência até o esquecimento.
Silveira ainda menciona que Spinoza escreveu, na Ética, que faz parte da
sabedoria se refazer e se reanimar recorrendo à alimentação, bebidas, perfumes, teatro,
adornos, música, e que a alegria que esses atos proporcionam nos afeta e nos levam à
perfeição divina. A filósofa adiciona que o ato de refletir também promove prazer e acha
muito importante que Spinoza, diferente de outros filósofos, não defendeu práticas de
mortificação e sacrifícios do corpo.
Por último, ela discorre sobre a concepção de bem e mal em Spinoza. Silveira
diz que recorreu às cartas de Spinoza trocou com G. Blyenburg, para entender melhor o
que o filósofo pensou, pois, eram nas cartas que ela achava um conhecimento mais
acessível do que nos textos filosóficos expostos nos livros.
Silveira pontua que Spinoza considera que o bem e o mal “não têm existência.
São meras imaginações que dependem daquilo que nos traz alegria ou tristeza,
recompensas ou castigos” (SILVEIRA, 1995, p. 73). O bem para cada ser, segundo o
filósofo, corresponde a agir de acordo e nos aproximando da Natureza, segundo o que é
útil, e o mal é o contrário disso, aquilo que nos afasta e nos impede de alcançar o bem.
Entretanto, com base na sua própria experiência, Silveira termina a carta explicando que
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apesar de os humanos terem dificuldades para visualizar o bem, o mal pode ser entendido
como uma dura matéria:
Já o vi [o mal] como dura matéria que houvesse passado por muitas
destilações até ficar depurado de quaisquer outros elementos que o
atenuassem. Foi no fundo dos olhos de alguns humanos que vi o mal
faiscar (SILVEIRA, 1995, p. 73).
CARTA V
Na carta V, Silveira trata dos limites do conhecimento, da ideia de
inconsciente e sobre o que é desconhecido pelos seres humanos. A filósofa expõe as
aproximações que foram feitas entre as ideias de Spinoza com estudos da psicologia do
século XX. A primeira aproximação que apresenta é com o médico e analista alemão
Georg Groddeck, depois com o psicanalista austríaco Sigmund Freud, e por fim, Silveira
discorre sobre a compreensão de Spinoza acerca de fenômenos parapsicológicos, ao
abordar duas cartas do filósofo.
Primeiro, Silveira cita a proximidade entre o conceito de Es (Isso) de Groddeck
com a ideia de Substância de Spinoza. Para a filósofa, o Es é puro spinozismo, pois
significa “o princípio de vida que determina a criação e a destruição de todas as coisas.
Tudo quanto existe é a manifestação sua, mas não lhe é idêntica” (SILVEIRA, 1995, p.
78). Groddeck trocou cartas com Freud, e este lhe fez uma crítica em relação ao seu
monismo filosófico e busca pela unidade, bem como, desprezo pelas diferenças da
natureza.
Silveira explica que Groddeck é considerado o fundador da medicina
psicossomática, mas isso é um erro, pois a psicossomática é uma ideia moderna
prolongada do dualismo cartesiano. E para Groddeck, não existe uma diferença essencial
entre a psique e o corpo, na medida em que constituem um todo único.
Ademais, a filósofa discorre sobre os estudos sistemáticos que aproximam
Spinoza de Freud. Ela cita o trabalho de Walter Bernard, de 1947, e aborda as
considerações desse autor ao longo da carta. Primeiro, Bernard entende que Spinoza e
Freud, similarmente, afirmam um determinismo das ações humanas quando Spinoza
considera o apetite (cupiditas) como a essência do ser humano e Freud apresenta o
conceito de libido como uma pulsão sexual inconsciente.
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Segundo, Spinoza e Freud consideram a ideia de uma psique inconsciente. Freud
de forma mais explícita, mas Spinoza também o faz quando afirma que o espírito possui
um grande número de partes; que os seres humanos ignoram as causas dos seus apetites;
e que as emoções são ideias confusas.
Terceiro, Freud defende a existência de um “princípio de prazer” e de um
“princípio de realidade”, enquanto Spinoza fala sobre a função da razão (ratio) que deve
se interpor entre desejo e ação.
Quarto, Spinoza e Freud entendem que a tendência primordial do ser humano é
para a autopreservação, porém, diferente de Freud, Spinoza não trabalha com a ideia de
uma tendência regressiva humana causada pelo instinto de morte.
Quinto, Silveira cita como na teoria de Freud, o superego aparece como herdeiro
da instância parental, e que em Spinoza, o sentimento da alegria, importante para a
execução de atos virtuosos, depende da educação e do posicionamento dos pais em
referência a tais atos. Silveira assinala a similaridade entre as funções do superego e dos
pais.
Existem muitas outras semelhanças que Silveira apenas menciona, mas não
aprofunda. Ela também destaca na carta como Spinoza pensava de forma muito próxima
ao tratamento psicanalítico moderno em relação às perturbações dos estados afetivos.
Neste sentido, a filósofa explica que Spinoza entende que o sentimento deixa de ser uma
paixão quando temos uma ideia mais clara e distinta do mesmo.
Por último, Silveira aborda algumas cartas que Spinoza se correspondeu com
amigos e onde abordou o assunto dos fenômenos parapsicológicos. Em carta ao amigo
Pierre Balling, Spinoza admite que o espírito humano consegue imaginar eventos futuros
e ter presságios. E numa carta ao amigo Hugo Boxel, Spinoza diz que “se os filósofos
denominarem espectros às coisas que nós ignoramos, então eu não negarei sua existência,
pois há uma infinidade de coisas que eu ignoro” (SPINOZA apud SILVEIRA, 1995, p.
85).
A filósofa termina a carta com uma confissão interessante, de que sonhou com
Spinoza e que a figura de Spinoza não lhe apareceu muito nítida, mas ele comunicou-lhe
algo muito claro: “A loucura é a pior forma de escravidão humana” (SILVEIRA, 1995, p
85). Silveira conclui a partir daí que a loucura vem do acorrentamento a uma paixão ou
ideia e acrescenta que “é [a] fixação na visão de imagens horrendas ou belas, um
emaranhamento num espaço e tempo imutáveis” (SILVEIRA, 1995, p. 86).
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CARTA VI
Na carta VI, a filósofa aborda a ideia de imaginário em Spinoza e explica
porque essa temática é importante para a sua própria atuação no hospital psiquiátrico, o
que a fez se afastar da teoria freudiana e se aproximar das ideias do psiquiatra suíço Carl
Jung.
Silveira reconhece que a ideia de imaginário atrai pouco os filósofos e cita os
estudos de Michèle Bertrand sobre Spinoza. Bertrand aponta haver uma distinção, no
âmbito da teoria de Spinoza, de diferentes tipos de configuração de imagens, que assim
classifica: a) imagens rudimentares que provém de perturbações do corpo; b) imagens de
coisas exteriores que afetam o próprio corpo de quem observa, e; c) imagens criadas com
toda a liberdade a partir da imaginação do espírito. Silveira conclui que Spinoza compara
o imaginário ao pensamento racional, mas não considera que ambos são idênticos, dando
a ambos uma ordem e produção peculiares.
A filósofa, então, coloca a seguinte pergunta: “a linguagem do imaginário seria
traduzível em termos racionais? Ou seria radicalmente heterogênea ao discurso racional?”
(SILVEIRA, 1995, p. 92). Silveira continua a reflexão citando o movimento surrealista,
que tentou forçar as portas do inconsciente, mas falhou ao abandonar as clarezas do
pensamento racional. Diferente do movimento surrealista, ela entende que Spinoza nunca
tentou substituir o real pelo imaginário. A filósofa explica que, em sua opinião, o
imaginário e o pensamento racional diferem, e que o imaginário não é redutível aos
termos racionais.
É nesse momento que Silveira fala sobre as contribuições paradoxais de Freud,
que, ao mesmo tempo que tratou da importância do inconsciente, também rebaixou os
produtos da imaginação ao defender a técnica de tradução desses produtos à linguagem
verbal. A filósofa explica que, para os seguidores de Freud, as imagens pintadas
livremente nos hospitais psiquiátricos “serviriam apenas de médium para associações
verbais” e “não constituíram em si mesmas e em sua ordenação peculiar uma linguagem
independente” (SILVEIRA, 1995, p. 94). Silveira entende que o imaginário está sim mais
perto do inconsciente, mas não lhe nega o valor próprio que possui.
A filósofa expõe que no seu trabalho no hospital psiquiátrico sempre possibilitou
aos doentes a livre expressão de seus processos imaginativos em ateliês de pintura e
modelagem. Segundo Silveira, tais doentes “habitam um mundo de imagens tão vivas que
se lhes afiguram absolutamente reais” (SILVEIRA, 1995, p. 95). E que nunca buscou
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recorrer ao método de tradução, pelos doentes, dessas imagens em palavras. Mas que
tentou estudar a linguagem do imaginário “seus arcaísmos, seus símbolos condensadores
de intensos afetos, não raro contraditórios” (SILVEIRA, 1995, p. 95).
A filósofa critica a ciência limitada a uma ordem racional que não consegue lidar
com os fenômenos da ordem do imaginário. Ela relata que os médicos e psicólogos
passavam distante dessas imagens produzidas no ateliê. E que na contracorrente do
pensamento da sua época, ela entendia que as imagens promoviam um tipo de
comunicação, pois eram “retratos autênticos da atividade psíquica” e “poderiam permitir
vislumbrar-nos ocultas vivências sofridas por aqueles seres que se haviam afastado da
nossa realidade” (SILVEIRA, 1995, p. 95-96).
As ideias de Carl Jung serviram para dar apoio às considerações de Silveira,
mesmo que ele não concordasse com certos posicionamentos de Spinoza. Silveira explica
que se pautou no psicanalista para atribuir importância à imaginação nos seus estudos,
pois ele entendeu que a atividade psíquica é caracterizada pelo poder de configurar
imagens. Silveira ainda expõe que para Jung, “a atividade imaginativa não tem em si
caráter patológico, segundo lhe é de ordinário atribuído na área médica, pois se origina
de dados objetivos inerentes aos básicos fundamentos da psique de todos os homens”
(SILVEIRA, 1995, p. 97).
Ela finaliza a carta com algumas considerações sobre quadros de pintores
famosos e a relação da pintura com a realidade objetiva. E, por fim, a filósofa se pega
imaginando Spinoza mergulhado na contemplação.
CARTA VII
Na carta VII, Silveira aborda o tema da eternidade e da morte. Ela relata que
se assustou ao se deparar com uma citação de Spinoza que aborda a duração do espírito
sem relação com o corpo. A filósofa considera esse pensamento complexo demais e
retoma suas considerações iniciais de Spinoza para tentar entendê-lo. Ela explica
novamente que na teoria de Spinoza existe uma Substância única e de que mente e corpo
não estão separados. Ela também expõe que o ser humano é um modo da Substância
infinita e eterna, mas é um modo que tem uma existência limitada e finita.
Silveira explica que para compreender esta parte da teoria de Spinoza sobre a
duração do espírito sem relação com o corpo é necessário lembrar do terceiro gênero do
conhecimento (que difere da experiência vaga e do conhecimento racional), pois, apesar
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do método de Spinoza se pautar no conhecimento geométrico, ele também utiliza a
ciência intuitiva e as experiências internas. A filósofa explica que Spinoza pensou na
“ideia-intuição” de que “o espírito humano não pode absolutamente ser destruído com o
corpo, mas desse espírito subsiste alguma coisa (o grifo é meu), que é eterna”
(SILVEIRA, 1995, p. 104).
Ou seja, existe uma parte do espírito humano que pertence à Substância única
sendo percebido pela intuição, que permite a progressão das ideias à essência das coisas.
Para Silveira, este conhecimento conduz à alegria, amor e liberdade do espírito:
Este terceiro gênero conduz ao conhecimento da essência das coisas,
proporcionando ao espírito ampliação da sua parte eterna, grande
alegria e capacidade para um amor liberto de quaisquer sentimentos
espúrios ou egoístas, amor que não poderá ser destruído por nenhuma
força da natureza (amor intelectual) (SILVEIRA, 1995, p. 105-106).
No que tange à morte, Silveira retoma a afirmação de Spinoza de que os seres
humanos não devem temer a morte, pois seus espíritos estão ligados com a Substância
única, com Deus eterno; que o corpo não tem importância comparado com a eternidade;
e que não devemos usar nossa sabedoria para pensar sobre a morte, mas, sim, sobre a
vida.
A partir daí, a filósofa busca demarcar a diferença entre a ideia de eternidade de
Spinoza e a ideia de imortalidade do cristianismo. Citando as reflexões de Leonardo Boff,
Silveira explica que existem duas correntes cristãs sobre a relação entre corpo, espírito e
ressurreição. A primeira entende que o corpo é a prisão da alma que ganha liberdade com
a morte; e a segunda afirma que existe uma unidade no homem que abarca corpo, carne,
alma e espírito, o que o permite viver de duas formas: como homem-carne, que se fecha
em seus horizontes, e como homem-espírito, que se abre para a imortalidade. Nesta
corrente, corpo e alma ressuscitam.
Silveira conclui dessas considerações que Spinoza entende que, diferente do
cristianismo, só uma parte do espírito é eterna. Ela explica ainda que:
E a amplitude dessa parte eterna variaria, segundo a capacidade que ela
possuísse para penetração na essência das coisas. Uma vida conduzida
segundo os princípios da Razão, baseada na firmeza, generosidade e
concepção de idéias adequadas, já seria uma grande conquista. Você,
porém, caminha para mais alto ainda (SILVEIRA, 1995, p. 107).
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A filósofa se mostra impressionada como Spinoza não propôs fronteiras rígidas
entre a vida e a morte. E também se preocupou com a amplitude da eternidade conquistada
e com o gozo da beatitude. Ela termina o livro com um poema do poeta persa medieval
Kabir que fala sobre a busca da libertação durante a vida e como essa busca proporciona
uma união com Deus; e com uma frase que imagina que Spinoza poderia ter dito:
“Mergulha desde já na Substância Infinita” (SILVEIRA, 1995, p. 108).
Referências
SILVEIRA, Nise da. Cartas a Spinoza. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.