ISSN 1519‑843X
e‑ISSN 1982‑8136
DEBATES
DO NER
ano 19
número 36
ago./dez. 2019
PENSANDO COM
SABA MAHMOOD
PUBLICAÇÃO DO NÚCLEO DE ESTUDOS DA RELIGIÃO DO
PROGRAMA DE PÓS‑GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, ago./dez. 2019
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
Reitor: Rui Vicente Oppermann
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Diretora: Claudia Wasserman
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL
Coordenador: Emerson Giumbelli
CONSELHO EDITORIAL
EXPEDIENTE
André Corten – Université du Québec (Canadá)
Núcleo de Estudos da Religião (NER)
Programa de Pós‑Graduação em Antropologia Social Cecília Loreto Mariz – Universidade Estadual do Rio de
Janeiro (Brasil)
(IFCH/UFRGS)
Av. Bento Gonçalves, 9500 – Porto Alegre – RS – 91509‑900 Marcelo Camurça – Universidade Federal de Juiz de Fora
(Brasil)
Telefone: (51) 3308‑6866 / E‑mail: ner@ifch.ufrgs.br
Marjo de Theije – Vrije Universiteit Amsterdam (Holanda)
Site: www.ufrgs.br/ner
Maria das Dores Machado – Universidade Federal do Rio
INDEXADORES
de Janeiro (Brasil)
Latindex; Index Copernicus; EBSCO; RCAAP; DOAJ.
María Julia Carozzi – Universidad Católica de Buenos
EDITORES
Aires (Argentina)
Eduardo Dullo (UFRGS)
Otávio Velho – Universidade Federal do Rio de Janeiro
Rodrigo Toniol (UNICAMP)
(Brasil)
COMISSÃO EDITORIAL EXECUTIVA
Patrícia Birman – Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Ari Pedro Oro (UFRGS)
(Brasil)
Bernardo Lewgoy (UFRGS)
Renzo Pi Hugarte – Universidad de la República (Uruguai)
Carlos Alberto Steil (UFRGS)
(in memoriam)
Emerson Giumbelli (UFRGS)
Ricardo Mariano – Universidade de São Paulo (Brasil)
Raquel Weiss (UFRGS)
Rita Laura Segato – Universidade de Brasília (Brasil)
Roberto Cipriani – Università degli Studi Roma Tre (Itália)
ORGANIZADORES DA EDIÇÃO
Ronaldo Almeida – Universidade Estadual de Campinas
Eduardo Dullo (UFRGS)
(Brasil)
Bruno Reinhardt (UFSC)
Ruy Blanes – Universidade de Lisboa (Portugal)
ASSISTENTE EDITORIAL
Stefania Capone – Université de Paris X Nanterre (França)
Barbara Jungbeck (UFRGS)
Vincenzo Pace – Università di Padova (Itália)
GRÁFICA DA UFRGS
Acompanhamento editorial: Michele Bandeira
Editoração: Janaína Horn
Revisão de padrão: Ana Santos e Maximiliano Kunrath
Imagem da capa: Mayane Haushahn Bueno
MISSÃO
A religião se apresenta como uma das questões mais recorrentes e universais da sociedade, tendo se constituído num
tema clássico de estudo e pesquisa nas Ciências Sociais e Humanas. Sua longa duração histórica a torna um fato social
diversificado e de grande atualidade, que exige aprofundamento e pesquisa constante. O Núcleo de Estudos da Religião
(NER), integrado ao Programa de Pós‑Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do
Sul, é hoje uma referência nacional na área dos estudos da religião, tendo em seu periódico, Debates do NER, um im‑
portante veículo de divulgação dos resultados das pesquisas realizadas por seus membros e de intercâmbio com outros
núcleos no país e no exterior.
POLÍTICA EDITORIAL
Debates do NER é um periódico semestral publicado pelo Núcleo de Estudos da Religião (NER) do Programa de Pós‑
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Seus números divulgam
textos científicos inéditos decorrentes de pesquisas realizadas na área das Ciências Sociais, relacionadas à presença da
religião como fato social e às suas interfaces com outras esferas da sociedade. Possui abrangência nacional e internacional,
estendendo‑se para os países do Mercosul por meio de uma extensa e qualificada rede de cientistas sociais da religião que
têm publicado com regularidade no periódico.
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
Debates do NER / Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Programa
de Pós‑Graduação em Antropologia Social. – Ano 1, n. 1 (nov. 1997). Porto Alegre: UFRGS, IFCH, PPGAS, 1997 – Semestral
ISSN 1519‑843X – ISSN 1982‑8136 (eletrônico)
Ano 19, n. 36 (ago./dez. 2019).
1. Religião: Política, transmissões e mediações
Bibliotecária responsável: Raquel da Rocha Schimitt Domingos – CRB 10‑1138
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
11
Eduardo Dullo
DEBATE
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR:
UMA BARREIRA INCOMENSURÁVEL?
17
Saba Mahmood
COMENTÁRIOS
BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO
E A INJÚRIA MUÇULMANA
59
Leonardo Schiocchet
BARREIRAS INCOMENSURÁVEIS? UM COMENTÁRIO
79
Everton Rangel
María Elvira Díaz-Benítez
SIGNOS INJURIOSOS: SABA MAHMOOD,
OS CARTUNS DINAMARQUESES E O DEBATE
SOBRE IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS
91
Daniel do Nascimento e Silva
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR:
UM COMENTÁRIO FEMINISTA
Fabiana Maizza
111
O TEMPO DA CRÍTICA
119
Eduardo Dullo
DOSSIÊ TEMÁTICO
PENSANDO COM SABA MAHMOOD:
APRESENTAÇÃO
137
Michael Allan
Bruno Reinhardt
OBITUÁRIO: SABA MAHMOOD – UM TRABALHO PIONEIRO
NA BATALHA DAS IDEIAS
143
Judith Butler
RELIGIÃO E POLÍTICA
Noah Salomon
Milad Odabaei
147
151
MINORIAS
Kabir Tambar
Mayanthi Fernando
155
161
ENCORPORAÇÃO
Lucinda Ramberg
Nadia Fadil
169
177
ÉTICA
Jean-Michel Landry
Mareike Winchell
185
191
HERMENÊUTICA
Bruno Reinhardt
Michael Allan
201
211
ARTIGOS
IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR
DE SABA MAHMOOD
219
Judith Butler
MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES SOBRE
A CRIAÇÃO DE TEMPLOS RELIGIOSOS NA CIDADE
DO RIO DE JANEIRO ENTRE 2006 E 2016
237
Amanda Lacerda Jorge
André Augusto Pereira Brandão
Christina Vital da Cunha
“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ
EM UMA IGREJA PENTECOSTAL DA PERIFERIA
267
Réia Sílvia Gonçalves Pereira
“ESPÍRITOS INDÍGENAS, MENSAGEIROS DOS ORIXÁS”:
CRUZAMENTOS, PASSAGENS E CAMINHOS
NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA
307
João Daniel Dorneles Ramos
CRENÇAS E PROMESSAS NAS TRAVESSIAS DA VIDA
Maria Engrácia Leandro
José Pinto
335
ENSAIO FOTOGRÁFICO
KARMA PUJA
365
Mayane Haushahn Bueno
RESENHA
BRAUNSTEIN, RUTH. PROPHETS AND PATRIOTS:
FAITH IN DEMOCRACY ACROSS THE POLITICAL DIVIDE.
OAKLAND, CA: UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS, 2017.
Ewerton Reubens Coelho-Costa
381
TABLE OF CONTENTS
PRESENTATION
11
Eduardo Dullo
DEBATE
RELIGIOUS REASON AND SECULAR AFFECT:
AN INCOMMENSURABLE DIVIDE?
17
Saba Mahmood
COMMENTS
BLASPHEMY OR BIGOTRY? SECULARISM
AND THE MUSLIM INJURY
59
Leonardo Schiocchet
AN INCOMMENSURABLE DIVIDE? A COMMENTARY
79
Everton Rangel
María Elvira Díaz-Benítez
INJURIOUS SIGNS: SABA MAHMOOD,
THE DANISH CARTOONS, AND THE DEBATE
ON LANGUAGE IDEOLOGIES
91
Daniel do Nascimento e Silva
RELIGIOUS REASON AND SECULAR AFFECT:
A FEMINIST COMMENTARY
Fabiana Maizza
111
CRITIQUE’S TIME
119
Eduardo Dullo
THEMATIC DOSSIER
THINKING WITH SABA MAHMOOD:
A PRESENTATION
137
Michael Allan
Bruno Reinhardt
OBITUARY: SABA MAHMOOD — PIONEERING WORK
IN THE BATTLE OF IDEAS
143
Judith Butler
RELIGION AND POLITICS
Noah Salomon
Milad Odabaei
147
151
MINORITIES
Kabir Tambar
Mayanthi Fernando
155
161
EMBODIMENT
Lucinda Ramberg
Nadia Fadil
169
177
ETHICS
Jean-Michel Landry
Mareike Winchell
185
191
HERMENEUTICS
Bruno Reinhardt
Michael Allan
201
211
ARTICLES
ANTI-GENDER IDEOLOGY AND MAHMOOD’S
CRITIQUE OF THE SECULAR AGE
219
Judith Butler
MAPPING RELIGION IN THE CITY: REFLECTIONS
ON THE CREATION OF RELIGIOUS TEMPLES IN THE CITY
OF RIO DE JANEIRO BETWEEN 2006 AND 2016
237
Amanda Lacerda Jorge
André Augusto Pereira Brandão
Christina Vital da Cunha
“LET THE BOY SPIN”: THE “RETETÉ” CHARISMA
IN A PENTECOSTAL CHURCH OF THE SUBURBS
267
Réia Sílvia Gonçalves Pereira
“INDIGENOUS SPIRITS, MESSENGERS OF THE ORISHAS”:
CROSSINGS, PASSAGES AND PATHS
IN THE AFRO-BRAZILIAN RELIGION
307
João Daniel Dorneles Ramos
BELIEFS AND PROMISES IN THE CROSSINGS OF LIFE
Maria Engrácia Leandro
José Pinto
335
PHOTO ESSAY
KARMA PUJA
365
Mayane Haushahn Bueno
BOOK REVIEW
BRAUNSTEIN, RUTH. PROPHETS AND PATRIOTS:
FAITH IN DEMOCRACY ACROSS THE POLITICAL DIVIDE.
OAKLAND, CA: UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS, 2017.
Ewerton Reubens Coelho-Costa
381
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.100024
APRESENTAÇÃO
Com o falecimento de Saba Mahmood, a comunidade antropológica
perdeu uma de suas vozes mais estimulantes e rigorosas. Foi com tristeza que
nós, membros do Núcleo de Estudos da Religião, tomamos conhecimento
do ocorrido e dedicamos um de nossos encontros a (re)ler seu único texto
até então traduzido para o português. Este número 36 da revista Debates do
NER visa diminuir esta lacuna de tradução e ampliar para a comunidade de
língua portuguesa o acesso a outro dos excelentes textos da autora. É com
satisfação que publicamos a tradução (finamente realizada por Daniel Silva
com a revisão de Bruno Reinhardt) de “Religious reason and secular affect:
an incommensurable divide?”, texto inicialmente veiculado em 2009 pela
Critical Inquiry (a quem agradecemos pela cessão dos direitos).
A tradução é acompanhada de cinco artigos de comentários ao texto de
Mahmood: Leonardo Schiocchet (ISA‑ÖAW, Áustria), em “Blasfêmia ou into‑
lerância? O secularismo e a injúria muçulmana”, amplia o escopo de reflexões
sobre o tema ao promover um contraste do argumento de Saba Mahmood
com o de Mahmood Mandani sobre o caso, nos levando a questionar “até
que ponto o foco no sujeito religioso ajuda a entender comportamentos e
sensibilidades como estes evidentes na injúria em questão?”; na sequência,
temos Everton Rangel e María Elvira Días‑Benitez (Museu Nacional/UFRJ)
com “Barreiras incomensuráveis? Um comentário”, no qual questionam os
grandes divisores e as visões dualistas do mundo para se perguntar, com
Achille Mbembe, sobre o mundo em comum, mesmo quando este mundo é
marcado pelo tratamento racista que recebe o povo muçulmano na Europa;
já Daniel do Nascimento e Silva (UFSC), em “Signos injuriosos: Saba
Mahmood, os cartuns dinamarqueses e o debate sobre ideologias linguís‑
ticas”, aprofunda o debate sobre as ideologias linguísticas ao discutir tanto as
raízes calvinistas, sistematizadas por Saussure, desta posição secular, quanto
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 11-14, ago./dez. 2019
12
Eduardo Dullo
os efeitos que gerou para o apagamento da dimensão corpórea; o quarto
comentário, “Razão religiosa e afeto secular: um comentário feminista”, de
Fabiana Maizza (UFPE), propõe uma analogia entre o artigo traduzido e a
discussão sobre mulheres do Islã versus o feminismo liberal e social‑marxista,
tensionando a partir do debate feminista a contradição de mulheres europeias
defenderem o Estado (e seus direitos) quando o próprio Estado pode ser
lido como símbolo da “derrota do sexo feminino”; por fim, Eduardo Dullo
(UFRGS) discute em “O tempo da crítica” como o texto está estruturado
a partir de dois pares conceituais (tradição e sensibilidade e tradução e
incomensurabilidade/impasse) e argumenta que, ao focar na relação entre
duas tradições (liberal secular e islâmica) e compará‑las de maneira crítica,
não apenas a própria crítica é pluralizada como as relações de poder entre
distintos pressupostos ontológicos são mais bem compreendidas, dando
continuidade à tradição antropológica e – ao mesmo tempo – inovando‑a.
Nossa homenagem não se encerra aqui. Ela prossegue com o Dossiê
Temático organizado por Michael Allan (Departamento de Literatura
Comparada da Universidade do Oregon, EUA) e Bruno Reinhardt (UFSC),
“Pensando com Saba Mahmood”, publicação inédita de um conjunto de
oito textos apresentados no evento ocorrido em março de 2017, no Depar‑
tamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, quando já se sabia
do câncer terminal que acometeu Mahmood. Além da introdução “Sobre
amor e trabalho”, dos organizadores, e de um obituário escrito por Judith
Butler (UC Berkeley), temos contribuições de Noah Salomon (Centro de
Estudos do Oriente Médio do Carleton College, EUA), Milad Odabaei
(Universidade de McGill, Canadá), Kabir Tambar (Universidade de Stanford,
EUA), Mayanthi Fernando (Universidade da Califórnia em Santa Cruz,
EUA), Lucinda Ramberg (Universidade de Cornell, EUA), Nadia Fadil
(Universidade Católica de Leuven, Bélgica), Jean‑Michel Landry (Univer‑
sidade Carleton, Canadá), Mareike Winchell (Universidade de Chicago,
EUA), e dos dois organizadores, Michael Allan e Bruno Reinhardt (que
traduziu todos os textos do original em inglês). Este impressionante Dossiê
retira qualquer possível dúvida acerca do impacto e grandeza do trabalho de
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 11-14, ago./dez. 2019
APRESENTAÇÃO
13
Mahmood. Sendo este material inédito, ficamos extremamente contentes que
todos os autores tenham concordado com a sua publicação primeiramente
em português em nossa revista.
O nosso número prossegue com mais cinco artigos e um ensaio visual.
O primeiro é também um texto inédito de Judith Butler. Com o título de
“Ideologia antigênero e a crítica da era secular de Saba Mahmood”, Butler
aborda um aspecto crucial da disputa contemporânea acerca do gênero,
que é a sua percepção como uma “ideologia”. Ao invés de ver esta posição
antigênero como ressurgência de um fenômeno pré‑moderno, sua sugestão
é percebê‑la como uma reação à recente incursão de movimentos sociais
na última jurisdição da religião no contexto do Estado secular: a esfera
privada da família. O segundo artigo, “Mapeando religião na cidade: refle‑
xões sobre a criação de templos religiosos na cidade do Rio de Janeiro entre
2006 e 2016”, de Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão
e Christina Vital da Cunha (UFF), traz importantes dados sobre a criação
de templos religiosos, incentivando e ampliando o debate sobre violência,
territorialidade e religião, sobretudo o presente nas periferias. O terceiro
artigo, de Réia Sílvia Gonçalves Pereira (UFJF e UFES), intitulado “‘Deixa
o menino rodar’: o carisma reteté em uma igreja pentecostal da periferia”,
discute os rituais de culto ao espírito santo marcados pelo caráter extático,
sensorial e pela intensidade das performances corporais, que lembram uma
dança giratória, e argumenta que tanto estes rituais quanto a forma de
organização da igreja fornecem pistas sobre a associação entre o reteté e o
ethos periférico das favelas brasileiras. O quarto artigo, “Espíritos indígenas,
mensageiros dos Orixás: cruzamentos, passagens e caminhos na religião
afro‑brasileira”, de João Daniel Dorneles Ramos (UFRGS), discute os
cruzamentos e as passagens que se dão na religião afro‑brasileira partindo da
relação entre espíritos indígenas e Orixás, explorando a ligação afro‑indígena
da cosmopolítica com a sóciopolítica na sua conexão para além do humano.
O último artigo, “Crenças e promessas nas travessias da vida”, de Maria
Engrácia Leandro (do CIES – ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa,
Portugal) e José Pinto (CEPICR/UNEB), a partir de material da França e
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 11-14, ago./dez. 2019
14
Eduardo Dullo
Portugal, analisa as incidências da transmissão familiar e social na formação
de um ethos votivo e como isto ocorre em momentos difíceis da vida dos que
creem na força do seu pedido. O ensaio visual “Karma Puja”, de Mayane
Haushahn Bueno (UFRGS), conclui este número, trazendo fotografias de
seu trabalho de campo em Déli, na Índia, junto a um coletivo de mulheres
Advasis católicas, e explorando a relação entre as tradições e rituais de suas
tribos indígenas e a proposta de inculturação dos padres católicos em cuja
igreja elas se reúnem.
Por fim, deixo aqui registrado meu agradecimento a todas/os que auxi‑
liaram e tornaram possível a publicação deste número. Às pessoas que submeteram
seus textos para avaliação, às/aos nossas/os pareceristas anônimas/os que, como
de costume, nos auxiliam a manter o nível de excelência que entregamos agora
para vocês, e, em especial, ao Bruno Reinhardt e à Barbara Jungbeck (nossa
assistente editorial pelo quarto número seguido). A elas/es, muito obrigado!
Boa leitura.
Eduardo Dullo
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 11-14, ago./dez. 2019
DEBATE
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99587
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR:
UMA BARREIRA INCOMENSURÁVEL?1, 2
RELIGIOUS REASON AND SECULAR AFFECT:
AN INCOMMENSURABLE DIVIDE?
Saba Mahmood 3, 4
Qualquer discussão acadêmica sobre religião no presente momento deve
dar atenção às polêmicas gritantes que se seguiram aos eventos da década
de 2000 — incluindo o 11 de setembro, a subsequente guerra ao terror e a
subida da política religiosa globalmente. Aquilo que parecia antes uma cisão
latente entre visões de mundo religiosas e seculares se tornou uma barreira
incomensurável, e protagonistas de ambos os lados levantam um impasse
ameaçador entre crenças religiosas fortes e valores seculares. De fato, uma
série de eventos internacionais, particularmente em torno do islã, têm sido
vistos como evidência adicional dessa incomensurabilidade.
1
2
3
4
Publicado originalmente como MAHMOOD, Saba. Religious Reason and Secular
Affect: an Incommensurable Divide? Critical Inquiry, Chicago, v. 35, n. 4, p. 836‑862,
2009. Agradecemos à Chicago University Press pela gentil cessão do direito de publicar
o ensaio em português.
Tradução por Daniel N. Silva. E‑mail: dnsfortal@gmail.com.
Gostaria de agradecer a Charles Hirschkind, Hussein Agrama, Talal Asad e Michael
Allan por seus comentários sobre uma versão anterior deste ensaio. Sou particularmente
grata a Amy Russel por me guiar nas fontes gregas sobre schesis e relacionalidade. Sou
grata a Mark McGrath pela assistência à pesquisa. Apresentei este ensaio ao público da
Universidade de Chicago, da Universidade de Columbia, da Universidade de Nova York
e do fórum sobre secularismo do Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais. Agradeço
pelos seus comentários e provocações.
Saba Mahmood foi professora na Universidade da Califórnia, Berkeley, EUA. Faleceu
no dia 10 de março de 2018.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
18
Saba Mahmood
A despeito dessa polarização, vozes mais reflexivas no debate corrente
têm tentado mostrar como o religioso e o secular não são necessariamente
essências imutáveis ou ideologias opostas mas sim conceitos que ganham
saliência particular com a emergência do Estado moderno e da política que
o acompanha — conceitos que são, além disso, interdependentes e necessa‑
riamente vinculados em sua mútua transformação e emergência histórica.
Vista sob essa perspectiva, na medida em que a racionalidade secular passou
a definir a lei, o aparato de estado, a produção de conhecimento e as relações
econômicas no mundo moderno, ela também transformou simultaneamente
as concepções, ideais, práticas e instituições da vida religiosa. O secularismo
é aqui entendido não simplesmente como a separação doutrinal entre
igreja e Estado, mas como a rearticulação da religião de uma maneira que é
comensurável com sensibilidades e formas de governo modernas. Repensar
o religioso é também repensar o secular e seus argumentos de verdade, sua
promessa de bens internos e externos.
Ao passo que essas reflexões analíticas têm complicado o estado do debate
acadêmico sobre o religioso e o secular, elas são frequentemente desafiadas
por aqueles que temem que essa maneira de pensar termine por minar a
ação efetiva contra a ameaça do “extremismo religioso”. Ao historicizar a
verdade da razão secular e questionar seus argumentos normativos, abre‑se o
caminho para que o fanatismo religioso tome conta das nossas instituições e
sociedade. Entraríamos no território escorregadio e perigoso do relativismo.
Nosso quadro de ação temporal requer certeza e julgamento, em vez do
repensar crítico dos bens seculares. Isso se evidenciou no debate que se
formou em torno do véu na França, da mesma forma que se evidenciou nas
justificativas acerca da republicação dos cartuns de 2005 sobre Muhammad:
se nós não defendermos valores e estilos de vida seculares, argumenta‑se,
“eles” (geralmente extremistas islâmicos) irão dominar nossas liberdades
e instituições liberais. Nessa formulação, a escolha é clara: ou se é contra
os valores seculares ou a favor deles. Um impasse moral, assevera‑se, não
se resolve por meio de reflexão, mas por uma defesa vigorosa de normas e
padrões que são necessários aos modos de vida e conduta seculares.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
19
Neste ensaio, gostaria de questionar essa forma de pensar o conflito
entre necessidade secular e ameaça religiosa. De início, essa caracterização
dicotômica depende de uma certa definição de extremismo religioso, geral‑
mente reunindo uma série de práticas e imagens que são concebidas como
ameaças à visão de mundo secular liberal: de terroristas suicidas, a mulheres
com véus, a grupos raivosos queimando livros, a pregadores incentivando o
chamado “design inteligente” nas escolas. Obviamente, esse grupo diverso
de imagens e práticas nem emana de uma lógica religiosa singular nem
pertence sociologicamente a uma formação política unificada. Muito mais
importante, o ponto que quero enfatizar é que essas supostas descrições de
“extremismo religioso” envolvem uma série de julgamentos e avaliações, de
tal forma que tolerar uma certa descrição é também defender esses julga‑
mentos. Descrições de eventos tidos como extremistas ou politicamente
perigosos não apenas frequentemente reduzem as condições que supõem
descrever, mas, principalmente, são embasadas em concepções normativas
de sujeito, lei e linguagem que precisam ser urgentemente repensadas se
quisermos avançar para além do impasse corrente secular‑religioso. Qualquer
discussão intelectual e política séria hoje deve, portanto, repensar critica‑
mente as pressuposições epistemológicas e ontológicas que embasam essas
normas, cujo status é muito mais inquietante na academia do que se dá a
ver nessas descrições polêmicas. Tal tarefa obviamente tem relevância para
o modo como se pensa o projeto de crítica e suas várias formas de prática.
Quero tomar a controvérsia dos cartuns dinamarqueses como um
espaço chave a partir do qual essas questões poderiam ser pensadas. Para a
maioria dos observadores, situados em diferentes pontos do espectro político,
a reação pública à publicação dos cartuns dinamarqueses de Muhammad
(inicialmente em 2005 e republicados em 2008) é exemplar do impasse entre
visões de mundo religiosas e seculares — particularmente em sociedades
democráticas liberais. Seguindo a publicação inicial dos cartuns, enquanto
a polêmica estridente e incendiária era comum a ambos os lados, mesmo
os comentadores mais calmos pareciam concordar que este era um impasse
entre o valor liberal da liberdade de expressão e um tabu religioso. Para
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
20
Saba Mahmood
alguns, acomodar o último seria comprometer o primeiro; para outros, uma
acomodação de ambos era necessária para a preservação de uma Europa
multicultural e multirreligiosa. Ambos os julgamentos assumem que o que
está em questão é um impasse moral entre o que a comunidade minoritária
de muçulmanos europeus considera um ato de blasfêmia e o que a maioria
não‑muçulmana considera ser um exercício de liberdade de expressão, em
especial expressão satírica, tão essencial à sociedade democrática liberal. É
esse consenso entre campos opostos que quero desestabilizar neste ensaio,
chamando nossa atenção a concepções normativas imbuídas nessa avaliação do
que constitui religião e subjetividade religiosa genuína no mundo moderno.
Espero mostrar que sustentar a descrição de que os cartuns dinamarqueses
exemplificam um choque entre os princípios de blasfêmia e liberdade de
expressão é aceitar uma série de julgamentos anteriores sobre que tipo de
injúria ou ofensa os cartuns causaram e como tal injúria pode ser abordada
em uma sociedade democrática liberal. Meu objetivo aqui é não apenas
nos instigar a desenvolver um entendimento mais denso e mais robusto
sobre o tipo de injúria moral em questão na controvérsia sobre os cartuns,
mas também questionar se a linguagem jurídica e os mecanismos da lei são
adequados para abordá‑la. Em conclusão, levantarei algumas questões sobre
a presumida secularidade da prática da crítica, questões que requerem pensar
para além das fronteiras tradicionais de disciplinas e debate acadêmicos.
BLASFÊMIA OU LIBERDADE DE EXPRESSÃO?
A reação muçulmana aos cartuns dinamarqueses representando o Profeta
Muhammad, particularmente depois da sua primeira publicação, balançou
o mundo.5 Isso aconteceu em parte devido às grandes demonstrações reali‑
5
Os cartuns foram inicialmente publicados pelo jornal Jyllands-Posten em setembro de
2005. Grandes protestos dentro do mundo islâmico aconteceram em 2006. As razões para
tais protestos foram diversas, e muitos críticos argumentaram que eles foram explorados
de forma oportunista por governos muçulmanos, com vistas a seus próprios fins. Em 13
de fevereiro de 2008, Jyllands-Posten e muitos outros jornais dinamarqueses, incluindo
Politiken e Berlingske Tidende, republicaram o infame cartum Bomba no Turbante como
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
21
zadas em vários países islâmicos, muitas das quais se tornaram violentas, e
em parte devido à reação acrimoniosa provocada pelas objeções muçulmanas
aos cartuns entre europeus, muitos dos quais recorreram a atos evidentes de
racismo e islamofobia direcionados a muçulmanos europeus. Considerando
a escala e a paixão envolvida em ambos os lados, fica claro que algo bastante
crucial estava em questão nessa controvérsia, algo que requer muito mais
discussão, diálogo e reflexão do que meros argumentos de diferença civili‑
zacional e chamados de ação decisória.
Apesar do grande número de comentários sobre o assunto, havia dois
polos estáveis em torno dos quais o debate sobre os cartuns ganhou forma.
De um lado, muitos argumentaram que os gritos islâmicos tinham de ser
disciplinados e submetidos aos protocolos da liberdade de expressão caracte‑
rísticos das sociedades liberais democráticas em que todas as figuras e ícones,
não importando o quão sagradas, podem ser caricaturadas, satirizadas ou
ridicularizadas sem que se considerem os sentimentos das pessoas. Críticos
a essa posição, por outro lado, argumentaram que a liberdade de expressão
nunca foi simplesmente uma questão de exercício de direitos. Ela também
implica a responsabilidade cívica de não provocar sensibilidades religiosas ou
culturais, especialmente em sociedades multiculturais híbridas.6 Esses críticos
apontaram que governos europeus aplicam um padrão duplo quando se trata
de muçulmanos; não apenas é o desrespeito a símbolos cristãos regulado
por leis de blasfêmia em países como Grã‑Bretanha, Áustria, Itália, Espanha
6
uma declaração de compromisso com a liberdade de expressão. Diversos jornais na Europa
e nos Estados Unidos seguiram esses jornais, embora alguns deles tivessem inicialmente
se recusado a publicar os cartuns. Os jornais alegaram que seu ato foi uma reação à prisão
noticiada de três homens de descendência norte‑africana que teriam planejado matar o
cartunista Kurt Westergaard. Um deles foi solto por falta de evidência, ao passo que os
outros dois, não residentes da Dinamarca, foram deportados para a Tunísia. A reação
à republicação dos cartuns entre muçulmanos foi silenciosa dessa vez, e a maioria das
manifestações se manteve pacífica.
Para dois exemplos diferentes dessa posição, ver Carens (2006) e Ramadan (2006b). Ver
também Ramadan (2006a).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
22
Saba Mahmood
e Alemanha7, mas a mídia frequentemente faz concessões para acomodar
sensibilidades judaico‑cristãs8. Dado que a maioria dos muçulmanos consi‑
deram descrições do Profeta como tabu ou blasfêmia, esses críticos atribuem
a chamativa exibição e circulação dos cartuns à islamofobia que varreu os
Estados Unidos e a Europa na sequência dos eventos do 11 de Setembro.9
Para alguns, isso era reminiscente da propaganda antissemita que mostrava
judeus como um dreno do solo e dos recursos da Europa.10
Para muitos liberais e progressistas críticos da islamofobia que varreu a
Europa contemporânea, o furor muçulmano em torno dos cartuns colocou
problemas particulares. Ao passo que muitos liberais podiam ver o evidente
racismo subjacente aos cartuns, a dimensão religiosa do protesto muçulmano
continuou problemática. Assim, mesmo quando se reconheceu que as sensi‑
bilidades religiosas muçulmanas não estavam propriamente acomodadas na
Europa, houve no entanto uma inabilidade em entender o sentido de injúria
expresso por muitos muçulmanos. Tariq Ali exemplificou essa posição em
uma coluna que escreveu sobre a controvérsia. Ali começa desconsiderando
o argumento de que a representação pictórica de Muhammad constitua blas‑
fêmia no Islã porque podem‑se encontrar inúmeras imagens de Muhammad
em manuscritos islâmicos e em moedas ao longo da história islâmica. Ele
então ridiculariza a angústia expressa por muitos muçulmanos ao verem ou
ouvirem falar sobre essas imagens:
7
Entre os países europeus em que leis de blasfêmia ainda existem para livros, estão Áustria,
Dinamarca, Alemanha, Grécia, Islândia, Finlândia, Holanda, Espanha, Itália, Suíça e o
Reino Unido.
8
Por exemplo, pouco depois de os protestos contra os cartuns dinamarqueses eclodirem, o
jornal The Guardian reportou que Jyllands-Posten (o mesmo jornal que tinha solicitado os
cartuns de Muhammad) se negou a publicar desenhos satirizando Jesus Cristo por temer
provocar “um grito de indignação” entre cristãos dinamarqueses. Ver Fouche (2006).
9
Ver, por exemplo, Modood (2006a, 2006b).
10
Como um crítico muçulmano colocou (Malik, 2007), há fortes paralelos entre como
os muçulmanos são caracterizados na Europa hoje e os judeus nos anos 1930: como
fanáticos religiosos, estrangeiros e uma praga na civilização europeia.
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No que concerne à ‘dor’ religiosa, ela é, felizmente, uma experiência negada
a incrédulos como eu e sentida apenas por clérigos de várias fés, que a trans‑
mitem a seus seguidores, ou por políticos em contato direto com o Espírito
Santo: Bush, Blair e Ahmedinejad e, claro, o papa e o grande aiatolá. Há
muitos crentes, provavelmente uma maioria, que permanecem não afetados
por insultos de um jornal dinamarquês de direita. (Ali, 2006).
Na visão de Ali, muçulmanos que expressam dor ao ver o Profeta repre‑
sentado como um terrorista (ou ao ouvir falar de tais representações) não
são nada mais que bonecos de ventríloquo nas mãos de líderes religiosos e
políticos.
Art Spiegelman expressou uma perplexidade semelhante:
[O] aspecto mais desconcertante em toda a questão é por que as demonstrações
violentas focaram nos estúpidos cartuns e não nas verdadeiramente horríveis
fotos de tortura vistas regularmente na Al Jazeera, na televisão europeia, em
todos os lugares menos na mídia hegemônica dos Estados Unidos. Talvez seja
porque essas fotos de violações reais não tenham a aura de coisas não vistas,
como os malditos cartuns. (Spiegelman, 2006, p. 47).
Tais visões cristalizaram o sentido de que era uma disputa entre valores
liberais seculares e uma religiosidade tradicional que estava em questão na
controvérsia dos cartuns dinamarqueses. Stanley Fish (2006) opinou que
a controvérsia seria melhor entendida em termos de um contraste entre as
crenças religiosas fortes “deles” e a “nossa” moralidade liberal anêmica, a
qual não requer lealdade alguma além da asserção de princípios abstratos
(tais como liberdade de expressão)11.
11
De acordo com Fish (2006), a moralidade liberal consiste no “distanciamento da morali‑
dade em qualquer forma insistente e forte”, de tal modo que liberais não se importam se
suas crenças prevalecem ou não. Muçulmanos, ao contrário, têm crenças fortes (embora
por vezes equivocadas), cuja implementação eles consideram crucial. A visão de Fish
é problemática em vários sentidos. Primeiro, o liberalismo envolve uma concepção de
religiosidade que não é simplesmente negativa em sua formulação, mas tem sentido e
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Quero argumentar, ao contrário, que entender a afronta causada pelos
cartuns em termos de racismo apenas ou da irreligiosidade ocidental signi‑
fica permanecer circunscrito ao vocabulário limitado da blasfêmia e da
liberdade de expressão — os dois polos que dominaram o debate. Ambas
as noções — assentadas em racionalizações jurídicas de direitos e sanção
estatal — pressupõem uma ideologia semiótica em que significantes são
arbitrariamente vinculados a conceitos, sendo seu significado aberto à leitura
das pessoas de acordo com um código particular por elas partilhado. O que
parece ser um símbolo de diversão e chacota para alguns pode muito bem
ser interpretado como blasfêmia para outros. No que se segue, sugiro que
essa compreensão demasiado empobrecida de imagens, ícones e signos não
apenas naturaliza certo conceito de um sujeito religioso como também falha
em perceber as práticas afetivas e corpóreas por meio das quais um sujeito
passa a se relacionar com um signo particular — uma relação fundada não
na representação mas naquilo que eu chamarei de vinculação ou coabitação.
É impressionante que a ampla rejeição silenciosa mas pacífica e enfática a
essas imagens entre milhões de muçulmanos ao redor do mundo tenha sido
tão facilmente assimilada à linguagem da política de identidade, fanatismo
religioso e diferença cultural/civilizacional. Pouca atenção foi dada ao modo
como se pode refletir sobre o tipo de ofensa que os cartuns causaram e que
práticas éticas, comunicativas e políticas são necessárias para tornar esse tipo
sentimento robustos, manifestos no espaço reservado a mitos, textos, ícones e símbolos
religiosos nos recursos culturais e literários das sociedades liberais. O livro recente de
Charles Taylor (2007) fornece uma abordagem rica dessa forma de religiosidade, a qual
Fish não enxerga. Segundo, Fish caracteriza tanto a liberdade de expressão e a religião
como sistemas de crença com uma diferença: a primeira é fraca enquanto a segunda
é abraçada de forma passional. É importante notar que nem a tradição liberal nem a
islâmica se restringem à crença; ambas são sobre práticas, sobre como os sujeitos passam
a se vincular a ideias, imagens, ícones e sensibilidades investidos de autoridade. É por
conta dessa visão demasiado empobrecida da ideologia liberal que Fish não faz uma
apreciação da reação forte e visceral que os protestos muçulmanos provocaram entre os
defensores dos cartuns.
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de injúria inteligível. A lacuna se torna ainda mais curiosa dadas as agora
complexas noções de injúria psíquica, corpórea e histórica que permeiam o
discurso legal e popular nas sociedades liberais do ocidente; considere, por
exemplo, as transformações que conceitos de propriedade, injúria pessoal e
reparações (para dirimir dano coletivo histórico) têm experimentado apenas
no último século.
De início, quero deixar claro que meu objetivo aqui não é fornecer
um modelo de maior autoridade para a compreensão da raiva islâmica aos
cartuns; de fato, as motivações para os protestos internacionais foram noto‑
riamente heterogêneas, e é impossível explicá‑las em uma narrativa causal
única12. Ao contrário, meu objetivo ao seguir essa linha de pensamento é
considerar por que tão pouco se pensou no debate acadêmico e público
sobre o que constitui a injúria moral no nosso mundo secular de hoje. Quais
são as condições de inteligibilidade que tornam certos argumentos morais
legíveis e outros inaudíveis? Como pode a linguagem da violência na rua ser
mapeada na matriz do racismo, blasfêmia e liberdade de expressão, ao passo
que a reivindicação àquilo que Ali pejorativamente chama de “dor religiosa”
permanece opaca, senão incompreensível? Quais são os custos implicados no
recurso à lei e ao Estado para dirimir esse tipo de injúria? Como podemos
nos basear na pesquisa recente sobre secularismo para complexificar o que
tem sido posicionado como debate polêmico e estridente sobre o lugar
apropriado dos símbolos religiosos na sociedade liberal democrática?
RELIGIÃO, IMAGEM, LÍNGUA
W. J. T. Mitchell (2005) argumenta que precisamos lidar com imagens
não apenas como objetos inertes mas como seres animados que exercem
uma certa força no mundo. Mitchell enfatiza que essa força não pode ser
reduzida a intepretação, mas vista como uma relação que vincula a imagem
12
Para uma revisão crítica das motivações contrastantes por trás dos protestos realizados
em vários países islâmicos, ver Mamdani (2006).
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ao expectador, o objeto ao sujeito — uma relação que é transformativa do
contexto social em que se dá. O “campo complexo da reciprocidade visual”,
ele escreve, “não é meramente um resultado secundário da realidade social,
mas algo ativamente constitutivo dela. Visão é tão importante quanto língua
na mediação de relações sociais, não sendo reduzível à língua, ao signo ou
ao discurso. As imagens querem direitos iguais aos da língua, e não serem
transformadas em língua.” (Mitchell, W., 2005, p. 47).
A insistência de Mitchell de que a análise de imagens não seja mode‑
lada em uma teoria da língua ou dos signos é instrutiva na medida em que
ela nos lembra de que nem todas as formas semióticas seguem a lógica do
significado, comunicação ou representação. No entanto, a ideia de que a
função primária de imagens, ícones e signos é comunicar sentido (indepen‑
dente da estrutura de relacionalidade em que o objeto e o sujeito residem) é
amplamente aceita e contou certamente com lugar proeminente em boa parte
do discurso sobre os cartuns dinamarqueses.13 Webb Keane (2007) traça a
genealogia imbricada desse entendimento de formas semióticas e do conceito
moderno de religião. Ele segue um número de outros autores ao apontar
que o conceito moderno de religião — como conjunto de proposições em
um grupo de crenças às quais o indivíduo concede — deve sua emergência
ao advento da Cristandade Protestante e sua subsequente globalização.
Enquanto os movimentos missionários coloniais foram os portadores de
muitos dos elementos práticos e doutrinários do Cristianismo Protestante
para várias partes do mundo, aspectos da ideologia semiótica protestante
foram encaixados em ideias mais seculares do que significa ser moderno.
Um aspecto crucial dessa ideologia semiótica é a distinção entre objeto e
sujeito, entre substância e significado, significantes e significados, forma e
essência.14 Liberados de suas amarras iniciais a preocupações doutrinárias e
13
Evidentemente, essa compreensão da língua tem sido desafiada e complicada por uma
série de linguistas e filósofos. Para uma discussão perspicaz, ver Lee (1997).
14
Estes conjuntos de distinções baseiam‑se num distanciamento entre o sujeito perceptivo
e o mundo dos objetos, um distanciamento que muitos estudiosos consideram ser uma
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teológicas, tais grupos de distinções tornaram‑se uma parte da compreensão
popular moderna de como as imagens e as palavras operam no mundo.
Uma versão dessa ideologia semiótica fica evidente no modelo de língua de
Ferdinand de Saussure, que propõe uma distinção imutável entre o domínio
da língua e o domínio das coisas (materiais ou conceituais), entre o signo
e o mundo, entre a fala e o sistema linguístico. Encontra‑se em Saussure,
argumenta Keane, uma preocupação não inteiramente diferente daquela que
agitou Calvino e outros reformadores protestantes: como melhor instituir
a distinção entre o mundo transcendente de conceitos e ideias abstratas e a
realidade material deste mundo.
Antropólogos da história têm chamado a atenção para a experiência
de choque dos missionários proselitistas quando encontraram pela primeira
vez nativos não cristãos que atribuíam a agência divina a signos materiais,
que muitas vezes consideravam objetos materiais (e sua troca) como uma
extensão ontológica de si mesmos (dissolvendo assim a distinção entre pessoas
e coisas), e para quem as práticas linguísticas não denotavam simplesmente
a realidade, mas também ajudavam a criá‑la (como no uso da fala ritual
para invocar espíritos ancestrais ou presença divina).15 O incômodo que os
missionários cristãos protestantes sentiram diante das consequências morais
das suposições epistemológicas nativas, quero sugerir, tem muitas ressonâncias
na perplexidade atual que muitos liberais e progressistas expressam sobre o
âmbito e profundidade da reação muçulmana aos cartuns. Uma fonte de
perplexidade emana da ideologia semiótica que sustenta a percepção de que
símbolos e ícones religiosos são uma coisa, e figuras sagradas, com todo o
respeito devocional que podem evocar, outra. Confundir os primeiros com
característica distintiva da modernidade. Ver Timothy Mitchell (1988), bem como
Latour (2007). Sobre essa questão, ver a discussão sobre Mitchell e Latour em Keane
(2007, p. 10‑12, 75‑77).
15
Ver a discussão detalhada desse ponto no capítulo 8, Materialism, Missionaries, and
Modern Subjects, de Keane (2007). Ver Jean Comaroff e John Comaroff (1991, 1997),
Mauss (2000), e Pels (1999).
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a segunda é cometer um erro categorial; é também falhar em perceber que
os signos e símbolos estão ligados apenas arbitrariamente às abstrações que
os humanos passaram a reverenciar e considerar sagradas. Como qualquer
ser humano sensato moderno deve compreender, os signos religiosos —
como a cruz — não são encorporações [embodiments] do divino, mas sim
representações do divino por meio de um ato de codificação humana e
interpretação. Nessa leitura, os muçulmanos agitados pelos cartuns exibem
uma prática de leitura imprópria, colapsando a distinção necessária entre o
sujeito (o status divino atribuído a Muhammad) e o objeto (representações
pictóricas de Muhammad). Sua agitação, em outras palavras, é produto de
uma confusão fundamental sobre a materialidade de uma forma semiótica
particular que está apenas arbitrariamente, não necessariamente, ligada ao
caráter abstrato de suas crenças religiosas.
Um fragmento crítico dessa ideologia semiótica implica a noção de que,
uma vez que a religião se refere primariamente à crença em um conjunto de
proposições às quais alguém consente, ela é fundamentalmente uma questão
de escolha. Uma vez que a verdade de tal concepção de religião, e subjeti‑
vidade concomitante, é admitida, então segue‑se que os incautos nativos e
muçulmanos podem talvez ser persuadidos a adotar uma prática de leitura
diferente, na qual imagens, ícones e signos não têm nenhuma consequência
espiritual em si e por si mesmos, mas apenas adquirem esse status por meio
de um conjunto de convenções humanas. O poder transformador dessa visão
foi precisamente o que motivou os missionários dos séculos XVIII e XIX
a realizar o projeto pedagógico de ensinar os sujeitos nativos a distinguir
adequadamente entre objetos inanimados, humanos e divindade. É esta
mesma visão que parece informar os apelos bem‑intencionados para que
os muçulmanos deixem de levar tão a sério imagens como as dos cartuns
dinamarqueses, para perceberem que a imagem (de Muhammad) não pode
produzir nenhuma injúria real, dado que sua verdadeira localização está no
interior do fiel individual e não no mundo inconstante dos símbolos e signos
materiais. A esperança de que uma prática de leitura correta possa produzir
sujeitos complacentes depende crucialmente, em outras palavras, de um
acordo prévio sobre o que deve ser a religião no mundo moderno. É este
entendimento normativo de religião interno ao liberalismo que é frequente‑
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mente esquecido e encoberto por comentadores como Fish quando afirmam
que o liberalismo é anêmico em seus compromissos morais e religiosos.
RELACIONALIDADE, SUJEITO E ÍCONE
Quero me dedicar agora a uma compreensão diferente sobre ícones, que
não apenas esteve em vigor entre os muçulmanos que se sentiram ofendidos
pelos cartuns, mas que desfruta de uma longa e rica história dentro de diferentes
tradições, incluindo o cristianismo e o pensamento grego antigo. Uma palavra
rápida sobre meu uso do termo ícone: ele se refere não apenas a uma imagem,
mas também a um conjunto de significados que podem sugerir uma persona,
uma presença de autoridade ou mesmo uma imaginação compartilhada.
Nessa perspectiva, a força de um ícone reside em sua capacidade de permitir
que um indivíduo (ou uma comunidade) pertença a uma estrutura que tem
influência no modo como alguém se conduz neste mundo. O termo ícone
em minha discussão se refere, portanto, não apenas a imagens, mas a uma
forma de relacionalidade que liga o sujeito a um objeto ou a um imaginário.
Na época de sua publicação inicial, fiquei impressionada com o sentido de
perda pessoal expresso por muitos muçulmanos devotos ao verem ou ouvirem
falar dos cartuns. Embora muitos dos que entrevistei tenham condenado
as manifestações violentas, eles no entanto expressaram um sentimento de
tristeza e pesar.16 Como disse um jovem muçulmano britânico:
16
Enquanto as manifestações violentas e o boicote aos produtos dinamarqueses chamavam
a atenção do mundo, uma forma muito mais generalizada de dissidência muçulmana
dificilmente foi mencionada. No Egito, por exemplo, essa dissidência consistiu em longas
noites de culto dedicadas à memória de Muhammad em mesquitas e no uso generalizado
do slogan Ihna fidak ya rasul allah! A tradução seria: “Nós morreríamos por ti, ó Profeta
de Deus!” A expressão fidak é muitas vezes usada para expressar sentimentos de ardor e
amor aos seus amados e, no discurso sufista, expressa também a adoração a Deus. Essa
expressão particular foi popularizada por um jogador de futebol egípcio, orgulho da
seleção nacional, quando durante um jogo de futebol ele inesperadamente mostrou à
mídia o slogan impresso na camiseta sob seu uniforme. Posteriormente, o slogan pegou
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Saba Mahmood
Eu não gostei do que aquelas multidões enfurecidas fizeram ao queimar
prédios e carros em lugares como Nigéria e Gaza. Mas o que realmente me
perturbou foi a absoluta falta de compreensão por parte dos meus amigos
seculares (que, aliás, não são todos brancos, muitos são do Paquistão e de
Bangladesh) com relação à tristeza que pessoas como eu sentiram ao ver o
Profeta insultado desse modo. Senti como se fosse um insulto pessoal! A ideia
de que nós devíamos apenas superar essa dor me deixou louco: se eles não se
sentem ofendidos pelo modo como Jesus é apresentado (e, claro, alguns se
sentem), por que esperam que todos nós deveríamos sentir o mesmo? Afinal,
o Profeta não é o Mel Gibson ou o Brad Pitt, ele é o Profeta!
Quando os cartuns foram republicados em fevereiro de 2008 em
dezessete jornais dinamarqueses e em um punhado de jornais europeus e
americanos, eu estava realizando pesquisa de campo no Cairo, Egito. Ao
passo que as manifestações foram silenciosas desta vez, eu ouvi expressões
semelhantes de dor, perda e injúria expressas por uma variedade de pessoas.
Um homem mais velho, nos seus sessenta anos, disse‑me: “Eu teria me
sentido menos ferido se o objeto do ridículo fossem meus próprios pais. E
você sabe como é difícil ouvir coisas ruins sobre seus pais, especialmente
quando eles já faleceram. Mas ter o Profeta desprezado e maltratado dessa
maneira, foi demais para suportar!”
A relação de intimidade com o Profeta expressa aqui tem sido objeto
de muitos trabalhos de estudiosos do Islã e explicitamente tematizada na
literatura devocional islâmica sobre Muhammad e sua família imediata (ahl
al-bayt).17 Nessa literatura, Muhammad é considerado como um exemplo
como um incêndio; há relatos de ele ter sido exibido em escritórios e em veículos, telas
de computador e camisetas; foi inclusive adaptado como toque para telefones celulares.
Muitos dos que adotaram esta forma de “protesto silencioso”, quando entrevistados,
rejeitaram fortemente a violência das manifestações na Nigéria, Paquistão e Gaza, mas,
mesmo assim, expressaram dor, sofrimento e raiva em relação às imagens.
17
Para um exame da relevância histórica e contemporânea desta relação com a cultura
popular, ver Asani, Abdel‑Malek e Schimmel (1995).
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moral cujas palavras e atos são compreendidos não tanto como manda‑
mentos, mas como formas de habitar o mundo, corporal e eticamente.
Aqueles que professam amor pelo Profeta não se limitam a seguir os seus
conselhos e admoestações à umma (que existe na forma do hadith), mas
também tentam emular como ele se vestia, o que comia, como falava com
os seus amigos e adversários, como dormia, andava e assim por diante. Essas
formas miméticas de perceber o comportamento do Profeta são vividas
não como mandamentos, mas como virtudes; o sujeito devocional quer
ingerir, por assim dizer, a personalidade do Profeta.18 É preciso reconhecer
que, como Muhammad é uma figura humana na doutrina islâmica que não
compartilha de uma essência divina, ele é mais um objeto de veneração do
que de adoração.19
O ponto que desejo enfatizar é que, dentro das tradições da piedade
muçulmana, a relação de um muçulmano devoto com Muhammad não se
baseia tanto em um modelo comunicativo ou representacional, mas em um
modelo assimilativo. Muhammad não é simplesmente um nome próprio
que se refere a uma determinada figura histórica, mas marca uma relação de
similitude. Nessa economia da significação, ele é uma figura de imanência
em sua constante exemplaridade e, portanto, não é um signo referencial
que se distancia de uma essência que denota. A modalidade de vinculação
que descrevo aqui (entre um muçulmano devoto e a figura exemplar de
Muhammad) é talvez melhor capturada pela noção de schesis de Aristóteles.
Ele a usou nas Categorias para descrever diferentes tipos de relações; o conceito
foi posteriormente elaborado pelos neoplatonistas (como Porfírio, Amônio
18
A tradição de ética da virtude, que se baseia em concepções aristotélicas fundamentais,
forma parte do discurso da piedade no Islã contemporâneo. Essa tradição tem sido
ressuscitada pelo revivalismo islâmico em uma variedade de contextos — incluindo a
mídia, mas também as práticas do eu. A esse respeito, ver o meu livro: Politics of Piety:
the Islamic Revival and the Feminist Subject (Mahmood, 2005). Nota do tradutor: Em
português, ver Mahmood (2006).
19
No cristianismo, o modo como Maria é venerada marca a distinção entre a divindade
de Jesus e a humanidade de Maria.
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e Elias).20 O Oxford English Dictionary define schesis como “a maneira pela
qual uma coisa está relacionada com outra coisa”. Teóricos que comentam o
uso de schesis por Aristóteles distinguem‑na de seu uso do termo pros ti, na
medida em que schesis capta um sentido de habitação encorporada [embodied]
e proximidade íntima que imbui tal relação. Seu mais próximo cognato em
grego é hexis e, em latim, habitus, ambos sugerindo uma condição corporal
ou temperamento que sustenta uma modalidade particular de relação.
Particularmente relevante para o meu argumento aqui é o significado
que foi dado a schesis durante a segunda controvérsia iconoclasta (cerca de
787) quando, talvez não surpreendentemente, foram os iconófilos que a
usaram para responder contra acusações de idolatria e para defender sua
doutrina de consubstancialidade. Kenneth Parry (1996), em seu livro sobre o
pensamento iconófilo bizantino, mostra que o conceito de relacionalidade de
Aristóteles se tornou crucial para a defesa da imagem santa pelos dois grandes
iconófilos, Teodoro Estudita e o patriarca Nicéforo21. De acordo com Parry,
o que a imagem e o protótipo partilham em seu discurso não é uma essência
(humana ou divina) mas a relação entre eles. Esse relacionamento baseia‑se
na homonímia e na hipóstase; a imagem e a deidade são duas em natureza
e essência, mas idênticas em nome. É a estrutura imagética compartilhada
por elas que dá forma a essa relação. Nas palavras de Marie‑José Mondzain,
“ser ‘a imagem de’ é estar em uma relação viva” (Mondzain, 2005, p. 78).22
20
Em seu comentário às Categorias, Amônio distingue quatro tipos de schesis: a relação
entre mestre e discípulo; entre mestre e escravo; entre pai e filho; e entre amantes. O
termo também é relevante para o conceito e prática estoicos do “cultivo do caráter”. Ver
De Libera (1996).
21
Parry (1996) identifica as Categorias de Aristóteles e a Isagoge de Porfírio como cruciais
para os argumentos dos iconófilos tardios — nenhum dos textos haviam sido usados
anteriormente na defesa da imagem santa. Ver especialmente o capítulo 6, Aristotelianism
(Parry, 1996, p. 52‑63).
22
Mondzain elabora sobre a defesa do patriarca Nicéforo contra a acusação de consubs‑
tancialidade em seu recurso a argumentos sobre a arte: “A arte imita a natureza sem
que a primeira seja idêntica à segunda. Pelo contrário, tendo tomado a forma natural e
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O termo aristotélico schesis captura essa relação viva por causa de suas elevadas
conotações psicofisiológicas e emocionais e sua ênfase na familiaridade e
intimidade como aspectos necessários da relação.
A schesis capta adequadamente não só como a relação de um muçulmano
devoto com Muhammad é descrita na literatura devocional islâmica, mas
também como ela é vivida e praticada em várias partes do mundo muçul‑
mano. Até mesmo o espinhoso cânone padronizado da Sunna (um registro
de autoridade das ações e do discurso do Profeta) vacila entre o que se lê
como comandos diretos, por um lado, e as descrições do comportamento
do Profeta, por outro, sua personalidade e hábitos, entendidos como exem‑
plos para a constituição do próprio equipamento ético e afetivo de uma
pessoa. Para muitos muçulmanos pios, essas práticas e virtudes encorporadas
fornecem o substrato pelo qual se adquire uma disposição devota e piedosa.
Tal habitação do modelo (como o termo schesis sugere) é o resultado de um
trabalho de amor em que se está ligado à figura autoral por meio de um
sentido de intimidade e desejo. Não é devido à compulsão da lei que se
emula a conduta do Profeta, portanto, mas devido às capacidades éticas que
a pessoa desenvolveu e que a inclinam a se comportar de uma certa maneira.
O sentido de injúria moral que emana de tal relação entre o sujeito ético
e a figura da exemplaridade (como Muhammad) é bastante distinto daquele
que a noção de blasfêmia codifica. A noção de injúria moral que descrevo,
sem dúvida, implica um sentimento de violação, mas essa violação não emana
do julgamento de que a lei foi transgredida, mas de que o ser de alguém,
fundamentado como está numa relação de dependência com o Profeta, foi
abalado. Para muitos muçulmanos, a ofensa cometida pelos cartuns não
foi contra uma interdição moral (não farás imagens de Muhammad), mas
contra uma estrutura de afeto, um habitus, que se sente ferido. Esse ferimento
visível como modelo e como protótipo, a arte faz algo similar e semelhante […]. Seria
necessário então, segundo este argumento, que o homem e seu ícone compartilhassem
a mesma definição e se relacionassem um com o outro como coisas consubstanciais.”
(2005, p. 76).
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34
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requer ação moral, mas a linguagem de tal ferimento não é nem jurídica nem
aquela do protesto de rua porque não pertence a uma economia de culpa,
responsabilidade e reparação. A ação que ela requer é interna à estrutura do
afeto, das relações e das virtudes que predispõem alguém a experimentar
um ato como uma violação em primeiro lugar.
Pode‑se perguntar o que acontece com esse modo de injúria quando ele
é submetido à linguagem da lei, da política e dos protestos de rua. Quais são
as suas condições de inteligibilidade num mundo onde reina a política de
identidade e onde domina o discurso jurídico dos direitos? A injúria perma‑
nece silenciosa e ininteligível, ou sua lógica sofre uma transformação? Como
esse tipo de ofensa religiosa complica os princípios de liberdade de expressão
e de liberdade de religião defendidos pelas sociedades democráticas liberais?
Abordarei essas questões na seção seguinte, mas antes disso é melhor
esclarecer o meu recurso à tradição grega e iconófila para explicar as reações
muçulmanas às caricaturas dinamarquesas. Poder‑se‑ia perguntar como
eu conciliaria a centralidade da imagem para o pensamento iconófilo e
o tabu muçulmano contra as imagens de figuras religiosas importantes
(sendo Muhammad uma delas). Recorro a essas tradições devido à relação
que estabelecem entre o sujeito e o objeto de veneração (particularmente
durante a segunda controvérsia iconoclasta). A sua ênfase na imagem é
menos interessante para mim do que o conceito de relacionalidade que
informa esse modelo. Acredito que esta modalidade de relação opera numa
série de tradições de adoração e veneração, coexistindo frequentemente de
forma um tanto tensa com outras ideologias dominantes de percepção e
prática religiosa.23 As três fés abraâmicas adotaram um conjunto de conceitos
e práticas aristotélicas e platônicas fundamentais que foram muitas vezes
historicamente modificados para se adequarem aos requisitos teológicos e
23
O trabalho de Christopher Pinney (2004) sobre os efeitos políticos da presença onipre‑
sente das imagens de ícones, deuses e divindades hindus na Índia é um lugar instrutivo
para pensar sobre algumas dessas questões.
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RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
35
doutrinários de cada tradição.24 No islã contemporâneo, essas ideias e práticas,
longe de se tornarem obsoletas, foram reconfiguradas sob as condições de
novos regimes perceptuais e modos de governança — uma reconfiguração
que requer um compromisso sério com o caráter subterrâneo dessas práticas.25
Não é necessário reivindicar uma continuidade histórica ininterrupta para
sermos capazes de detectar fragmentos de recursos compartilhados entre
tradições que podem tornar inteligível as formas como os muçulmanos
se relacionam com a figura icônica de Muhammad. A citação de W. J. T.
Mitchell que fiz acima sobre o poder das imagens é um reconhecimento,
embora de uma perspectiva diferente, da relação recíproca que liga imagens,
ícones e o sujeito perceptual, uma reciprocidade que marca a realidade social
de formas distintas.26
24
Nesse sentido, é importante traçar a trajetória histórica dessas ideias. Notavelmente,
está provado que foi a escola de Alexandria a mais importante transmissora das obras de
Aristóteles para os bizantinos. Quando a escola de Atenas foi fechada no século VI sob
Justiniano, foi a escola de Alexandria que continuou a florescer primeiro sob influência
cristã e depois islâmica até o século VIII. Muitos dos herdeiros dessa escola de comen‑
taristas terminaram em Bagdá, que se tornou um centro de pensamento neoplatonista
no século IX. Ver Parry (1996, p. 53) e Sorabji (2002).
25
Sobre este ponto, ver Hirschkind (2006), particularmente a discussão sobre regimes
perceptuais subterrâneos e condições modernas da política e da mídia.
26
W. J. T. Mitchell analisa imagens religiosamente ofensivas que foram profanadas por
espectadores, como a pintura de Chris Ofili, A Santa Virgem Maria, que foi exibida
no Museu de Arte do Brooklyn. Mitchell argumenta que tais imagens são distintas na
medida em que são “ligadas de forma transparente e imediata ao que [elas] representam
[…]. Em segundo lugar […], a imagem possui uma espécie de caráter vital e vivo que a
torna capaz de sentir o que foi feito a ela. Não se trata apenas de um meio transparente
para comunicar uma mensagem, mas algo como uma coisa animada, viva, um objeto
com sentimento, intenções, desejos e agência. Na verdade, imagens são por vezes tratadas
como pseudopessoas — não apenas como criaturas sencientes que podem sentir dor e
prazer, mas como seres sociais responsáveis e sensíveis. Imagens deste tipo parecem olhar
para trás, falar conosco, podem até mesmo sofrer danos ou magicamente transmitir dano
quando violência lhes é causada.” (Mitchell, W., 2005, p. 127).
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36
Saba Mahmood
RELIGIÃO, RAÇA E DISCURSO DE ÓDIO
Uma consequência lamentável de se avaliar a controvérsia dos cartuns
em termos de blasfêmia e liberdade de expressão foi o recurso imediato à
linguagem jurídica por protagonistas de ambos os lados. A seguir, quero
examinar dois argumentos distintos mobilizados pelos muçulmanos para
buscar proteção contra o que eles consideraram ser ataques crescentes a sua
identidade religiosa e cultural: primeiro, o uso de leis europeias de discurso
do ódio e, segundo, os precedentes legais estabelecidos pelo Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos (TEDH) para limitar a liberdade de expressão no
interesse da manutenção da ordem social. Essas tentativas, como mostrarei,
enfrentam fortes desafios, não apenas devido ao preconceito da maioria
europeia contra os muçulmanos, mas também devido a restrições estrutu‑
rais internas à lei secular, sua definição do que é religião e sua inelutável
propensão a atender a sensibilidades culturais majoritárias.
Para muitos muçulmanos europeus, os cartuns são um exemplo parti‑
cularmente vicioso do racismo que passaram a experimentar vindo de seus
compatriotas na Europa. Como disse Tariq Modood: “[O]s cartuns não são
apenas sobre um indivíduo, mas sobre muçulmanos em si — assim como
um cartum sobre Moisés como um financista corrupto não seria sobre um
homem, mas um comentário sobre judeus. Da mesma forma como este último
seria racista, também o são os cartuns em questão.” (2006b, p. 4). Modood
mobiliza essa comparação provocadora, ainda que um pouco simplificada,
com os judeus europeus para desafiar a ideia reinante entre muitos europeus
— progressistas e conservadores — de que os muçulmanos não podem ser
submetidos ao racismo porque são um grupo religioso e não um grupo racial.
Traçando um paralelo com a racialização dos judeus (inicialmente marcados
por sua religião e posteriormente racializados), Modood argumenta que o
racismo não é simplesmente sobre biologia, mas também pode ser dirigido
a grupos marcados cultural e religiosamente. Uma vez que nos afastamos
de uma noção biológica de raça, é possível ver que
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37
os muçulmanos podem [também] ser vítimas de racismo por serem muçul‑
manos, bem como por serem asiáticos, árabes ou bósnios. De fato, esses
diferentes tipos de racismo podem interagir […] e assim também podem
se transformar, e novas formas de racismo podem surgir. Trata‑se de […]
reconhecer que surgiu uma forma de racismo que se relaciona com o islã
como religião, mas que vai além da crítica à religiosidade do Islã. (Modood,
2006a, p. 57).
Embora Modood não aborde adequadamente as distintas histórias
de racialização de judeus e muçulmanos europeus, seu ponto de vista, no
entanto, desfruta de amplo apoio.
Os argumentos sobre a racialização dos muçulmanos provocam o
medo entre europeus de que, se esta premissa for admitida ou reconhe‑
cida legalmente, os muçulmanos europeus recorreriam a leis europeias de
discurso de ódio para regulamentar indevidamente formas de expressão
que eles consideram prejudiciais à sua sensibilidade religiosa.27 Muitos
europeus que defendem a liberdade de expressão rejeitam a alegação de que
os cartuns dinamarqueses tenham algo a ver com racismo ou islamofobia,
argumentando, ao contrário, que os extremistas muçulmanos estão usando
essa linguagem para seus próprios fins nefastos. Uma série de críticos legais,
por exemplo, acusam o uso islâmico das leis europeias de discurso de ódio
como um estratagema dos “opositores dos valores liberais” que entendem
que “para serem admitidos no debate democrático, têm de usar uma retó‑
rica que esconde o conflito entre suas ideias e os princípios básicos das
sociedades abertas” (Haarscher, 2007, p. 313). Tais vozes alertam liberais de
bom coração e multiculturalistas para que não caiam na armadilha de um
abuso tão oportunista de direitos humanos e contra discriminação porque,
advertem ameaçadoramente, “o Islã [irá] impor seus valores à Europa” até
a destruição última da “Europa do Iluminismo” (Sajó, 2007, p. 299).
27
Por exemplo, as associações muçulmanas na França tentaram, sem sucesso, usar a legislação
do discurso de ódio contra o jornal francês France-Soir que republicou as caricaturas em
apoio ao Jyllands-Posten.
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Saba Mahmood
Essa rejeição das invocações islâmicas de leis de linguagem de ódio
centra‑se em dois argumentos: (a) a identidade religiosa é categoricamente
diferente da identidade racial; e (b) existe uma falta de evidência de discri‑
minação racial contra os muçulmanos nas sociedades europeias. Em relação
à primeira, esses críticos argumentam que raça é uma característica biológica
imutável, enquanto religião é uma questão de escolha. Uma pessoa pode
mudar sua religião, mas não a cor da sua pele. Os cartuns dinamarqueses,
no entanto, apenas ofenderam a “crença religiosa”.28 De acordo com Guy
Haarscher, já que o comportamento racista se recusa a conceder estatuto
igual aos judeus e negros “por causa do seu [percebido] caráter biologica‑
mente ‘inferior’”, ele viola o princípio liberal da igualdade. Já a “blasfêmia”,
afirma ele, “é ‘normal’ — tendo talvez um valor catártico — nas sociedades
abertas” (Haarscher, 2007, p. 319, 323).
O que quero problematizar aqui é a presunção de que a religião é, em
última análise, uma questão de escolha; tal julgamento é baseado em uma
noção a priori, que mencionei acima, de que a religião é, em última análise,
sobre a crença em um conjunto de proposições às quais alguém consente.
Uma vez satisfeita esta premissa, é fácil afirmar que uma pessoa pode mudar
suas crenças tão facilmente como poderia mudar suas preferências alimen‑
tares ou seu nome.29 Embora a concepção problemática de raça como um
atributo biológico deva ser aparente ao leitor, a concepção normativa de
religião aqui oferecida encontra poucos questionamentos. Anteriormente,
delineei a ideologia semiótica concomitante que essa concepção codifica;
aqui quero extrair as implicações desse conceito quando codificado dentro
28
Sajó argumenta: “Sem dúvida, o estereótipo negativo dos membros do grupo desempenha
um papel importante na linguagem racista. Os cartuns dinamarqueses, no entanto,
abordam uma crença religiosa. Em que base se pode equacionar raça (cor da pele)
imutável e religião, se religião é uma questão de escolha?” (2007, p. 286).
29
Para uma discussão interessante sobre como a “racialização dos judeus” na Europa veio a
ser historicamente ligada à construção dos árabes como sendo essencialmente religiosos/
muçulmanos, ver Anidjar (2008).
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RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
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da lei. Os críticos legais que cito aqui não apenas reconhecem erroneamente
o tipo de religiosidade em jogo nas reações muçulmanas aos cartuns dina‑
marqueses, mas também ecoam as presunções da tradição do direito civil nas
quais o estatuto epistemológico da crença religiosa passou a ser considerado
como especulativo e, portanto, menos real do que a materialidade da raça e
da biologia. Notavelmente, nos argumentos acima, a concepção normativa
de religião como crença facilita outras alegações sobre o que conta como
evidência, materialidade e dano real (versus psíquico ou imaginário).
Kirstie McClure (1990) mostrou como a ideia de que religião é essencial‑
mente uma crença privada está intimamente ligada à emergência histórica da
noção de dano mundano no século XVIII, quando o Estado moderno veio a
estender sua jurisdição sobre uma série de práticas corpóreas (religiosas e não
religiosas) consideradas pertinentes para o bom funcionamento do domínio
cívico então emergente. Como resultado, uma variedade de rituais e práticas
religiosas (tais como o sacrifício de animais) foram tornados inconsequentes
para a doutrina religiosa, de forma a caberem no escopo da lei. Isto, por sua
vez, dependeu da formulação de uma nova base epistemológica para a reli‑
gião e suas várias reivindicações doutrinárias sobre sujeitos, espaço e tempo.
McClure mostra, por exemplo, que o argumento para a tolerância religiosa
de John Locke em sua Carta sobre a tolerância (1689) está fundamentado
numa epistemologia empirista que empodera o estado
[…] como o único adjudicador legítimo da prática mundana. As fronteiras
da tolerância […] [passaram] a ser civilmente definidas […] pela determi‑
nação empírica sobre o fato de determinados atos e práticas serem ou não
comprovadamente prejudiciais para a segurança do Estado ou para os interesses
civis dos seus cidadãos, sendo esses últimos definidos em termos igualmente
empíricos. (McClure, 1990, p. 380‑381, grifo nosso).
Há poucas dúvidas de que desde o tempo de Locke a noção de dano foi
consideravelmente alargada para além dos estreitos limites desta concepção
empirista, mas a ideia de que a religião é sobre assuntos menos materiais (e,
portanto, menos imanentes e urgentes) continua a prevalecer nas sociedades
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40
Saba Mahmood
liberais. Essa afirmação provoca paradoxalmente os defensores contemporâ‑
neos da religião a tentarem fundamentar a verdade dela em provas empíricas,
reinscrevendo constantemente a epistemologia empirista que era pertinente
ao regime de ordem cívica de Locke.
O argumento de McClure chama a atenção para as formas em que a
emergência do conceito moderno de religião está intrinsecamente ligada ao
problema da governança e do aparato de Estado. No debate sobre os cartuns
dinamarqueses, os limites da tolerância foram rapidamente estabelecidos
por preocupações com “a segurança e a proteção do Estado”. A acusação
muçulmana de que os cartuns eram racistas foi muitas vezes rejeitada como
uma mera expressão do Islã fundamentalista, e não demorou muito até que
as críticas muçulmanas às caricaturas fossem consideradas não simplesmente
como uma ameaça à essência civilizacional da Europa, mas também à segu‑
rança do Estado e à ordem pública europeia. András Sajó tem insistido, por
exemplo, que aceitar a acusação de que os cartuns dinamarqueses são racistas
é ignorar o perigo real do terrorismo islâmico que as caricaturas destacam:
[O]s cartuns indicam uma ligação factual verdadeiramente desagradável
[…] entre terrorismo e uma versão muito bem sucedida do Islã […]. Se toda
expressão crítica for vista como suspeita por causa do perigo da generalização
[…], [então] isso levará à autocensura […]. Se a crítica à religião for recate‑
gorizada como racismo de forma bem‑sucedida, então isso significa […] que
você não pode criticar o terrorismo religioso, embora a religião realmente tenha
enfiado seu dedo na torta do terrorismo. (Sajó, 2007, p. 288).
É surpreendente que, ao enquadrar a questão como uma escolha entre
terrorismo islâmico e debate aberto, Sajó, como muitos outros, retrate os cartuns
como declarações de fatos que são necessários para a segurança e o bem‑estar
das democracias liberais.30 O aspecto performativo dos cartuns dinamarqueses
30
Robert Post expressa uma opinião semelhante quando argumenta: “Alguns dos cartuns
invocam críticas estereotipadas ao Islã. Eles versam sobre a repressão islâmica às mulheres,
sobre o uso de doutrinas fundamentalistas islâmicas para promover a violência e sobre
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é sacrificado em favor de seu conteúdo informativo, pintando‑os como pouco
mais do que um discurso referencial. Esta visão não só naturaliza uma ideologia
linguística em que a principal tarefa dos signos é a comunicação de um signifi‑
cado referencial, como também interpreta todos aqueles que questionam essa
compreensão como extremistas religiosos ou, no mínimo, como multiculturais
suaves que não compreendem totalmente a ameaça que o Islã representa para a
democracia liberal. Além disso, na medida em que a lei procura tornar distinções
claras (tais como entre religião e raça), deixa pouco espaço para a compreensão
das formas de ser e agir que transcendem tais distinções. Quando a preocupação
com a segurança do Estado está associada a essa propensão do direito público,
não é surpreendente que o recurso da minoria muçulmana às leis europeias de
discurso de ódio seja considerado espúrio.
RELIGIÃO, DIREITO E ORDEM PÚBLICA
Para os muçulmanos europeus, uma segunda opção legal plausível a seguir
é o precedente estabelecido pelo TEDH quando este manteve duas proibi‑
ções estatais de filmes considerados ofensivos para as sensibilidades cristãs. A
Convenção Europeia para a Promoção dos Direitos Humanos (CEDH) é mode‑
lada segundo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, mas, ao contrário
desta última, tem o poder de implementar decisões para os Estados membros
do Conselho da Europa. Duas decisões recentes do TEDH são relevantes: a
decisão sobre Otto-Preminger Institut vs. Áustria em 1994 e o julgamento de
o medo de represálias violentas por publicar críticas ao Islã. Estas são ideias que foram e
serão utilizadas por aqueles que discriminariam os muçulmanos. Mas são também ideias sobre
questões reais e prementes. A relação entre Islã e gênero é uma questão viva e controversa.
A violência islâmica fundamentalista é uma preocupação pública em toda a Europa. O
medo de represálias ao se ultrapassar tabus islâmicos é onipresente […]. Desconectar
toda a discussão pública de questões públicas reais e prementes seria impensável. E se
essas questões forem discutidas, a expressão de todas as opiniões relevantes deve ser
protegida.” (Post, 2007, p. 350, grifo nosso). Para minha resposta a este texto, ver https://
townsendcenter.berkeley.edu/sites/default/files/wysiwyg/post_mahmood.pdf.
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Saba Mahmood
Wingrove vs. Reino Unido em 1997. Ambos proibiram a exibição e a circulação
de filmes por ofenderem cristãos devotos. Essas decisões, notadamente, não
fundamentaram o seu julgamento em leis europeias de blasfêmia, mas sim no
artigo 10º da Convenção que garante o direito à liberdade de expressão. Em
particular, enquanto o artigo 10(1) da CEDH considera que a “liberdade de
expressão” é um direito absoluto, o artigo 10(2) permite que este direito seja
limitado se as restrições forem prescritas por lei e forem insuficientes para o
funcionamento de uma sociedade democrática.31 É importante notar que esta
concepção regulada da liberdade de expressão na Europa contrasta fortemente
com a concepção mais libertária da liberdade de expressão nos Estados Unidos.
A maioria dos países europeus, a partir da experiência do Holocausto e da
Segunda Guerra Mundial, impõe fortes restrições às formas de expressão que
podem fomentar o ódio racial e levar à violência.
Em questão no caso Otto-Preminger Institut vs. Áustria estava um filme
produzido por uma organização sem fins lucrativos, o Otto‑Preminger Insti‑
tute, que retratou Deus, Jesus e Maria de formas ofensivas para os cristãos.32
Com base na seção 188 do Código Penal austríaco, o filme foi apreendido
31
32
O artigo 10(1) estabelece: “Toda pessoa tem direito à liberdade de expressão. Esse direito
inclui a liberdade de opinião e a liberdade de receber e transmitir informações e ideias,
sem interferência da autoridade pública e sem consideração de fronteiras. Este artigo
não impede os Estados de exigirem o licenciamento de empresas de radiodifusão, tele‑
visão ou cinema.” O artigo 10(2) limita esta liberdade da seguinte forma: “O exercício
destas liberdades, uma vez que implica deveres e responsabilidades, pode estar sujeito
às formalidades, condições, restrições ou sanções previstas na lei e necessárias numa
sociedade democrática, no interesse da segurança nacional, integridade territorial ou
segurança pública, para a prevenção da desordem ou do crime, para a proteção da saúde
ou da moral, para a proteção da reputação ou dos direitos de terceiros, para impedir a
divulgação de informações recebidas a título confidencial ou para manter a autoridade e
a imparcialidade do poder judicial.” (Disponível em: wwww.echr.coe.int/NR/rdonlyres/
D5CC24A7‑DC13‑ 4318‑B457‑5C9014916D7A/0/EnglishAnglais.pdf ).
Como os editores dos cartuns dinamarqueses, o cineasta argumentou que era duvidoso que
“uma obra de arte que lida de forma satírica com pessoas ou objetos de veneração religiosa
pudesse jamais ser considerada como ‘depreciativa ou insultuosa’” (ECHR, 1994, §44).
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e confiscado antes de ser exibido.33 O cineasta recorreu ao TEDH, que
decidiu a favor do governo austríaco e entendeu que o governo austríaco
não violou o artigo 10 da CEDH. O governo austríaco havia defendido a
apreensão do filme
[…] em vista de seu caráter de ataque à religião cristã, especialmente o cato‑
licismo romano […]. Além disso, eles [o governo austríaco] enfatizaram
o papel da religião na vida cotidiana do povo do Tirol [onde o filme seria
exibido]. A proporção de fiéis católicos romanos entre a população austríaca
como um todo já era considerável — 78% — e, entre os tiroleses, chegava
a 87%. Consequentemente […] havia uma necessidade social premente de
preservação da paz religiosa; era necessário proteger a ordem pública contra
o filme. (ECHR, 1994, §52).
O TEDH concordou com esse julgamento e argumentou:
A Corte não pode desconsiderar o fato de que a religião católica romana é a
religião da esmagadora maioria dos tiroleses. Ao apreender o filme, as auto‑
ridades austríacas agiram para garantir a paz religiosa naquela região e evitar
que algumas pessoas se sentissem objeto de ataques às suas crenças religiosas
de forma injustificada e ofensiva. (ECHR, 1994, §56).
Uma consideração semelhante pelas sensibilidades religiosas cristãs
inspirou a decisão do TEDH no processo Wingrove vs. Reino Unido. O
tribunal confirmou a recusa do governo britânico de permitir a circulação de
um filme considerado ofensivo para cristãos devotos. O TEDH deixou claro
que, embora considere as leis britânicas contra a blasfêmia questionáveis,
apoiou a decisão do governo neste caso com base na margem de apreciação
do Estado quanto às restrições permitidas em vigor no artigo 10. O tribunal
33
O governo austríaco sustentou que a apreensão e o confisco do filme visavam à “proteção
dos direitos dos outros”, particularmente o direito ao respeito dos sentimentos religiosos,
e à “prevenção da desordem” (ECHR, 1994, §46). Ver também Edge (1998) e Martínez‑
‑Torrón e Navarro‑Valls (1998).
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44
Saba Mahmood
confirmou a decisão do governo de suspender a circulação do filme porque
tinha um objetivo legítimo de “proteger o direito dos outros” e de oferecer
proteção “contra ataques seriamente ofensivos em assuntos considerados
sagrados pelos cristãos” (ECHR, 1996, §57).
Embora essas decisões do TEDH tenham sido criticadas por acomo‑
darem sentimentos religiosos à custa da liberdade de expressão, eu gostaria
de dirigir nossa atenção para uma questão diferente, a saber, a margem de
apreciação concedida ao Estado para determinar quando e como a liberdade
de expressão pode ser limitada. A segunda cláusula do artigo 9 da CEDH
sobre liberdade de expressão (que reflete o artigo 19 da Declaração Universal
dos Direitos Humanos) dá ao Estado uma ampla margem de apreciação para
limitar a liberdade de expressão se o Estado considerar que ela representa
uma ameaça à segurança nacional, integridade territorial, segurança pública,
saúde e moral de uma sociedade ou à reputação e direitos de outros.34 Ao
comentar a centralidade do conceito jurídico de ordem pública que sustenta
essa tradição jurídica, Hussein Agrama argumenta que ele faz parte de um
campo semântico e conceitual mais amplo no qual as noções de saúde
pública, moral e segurança nacional estão interligadas, e o referente quase
sempre parece ser a cultura religiosa majoritária (ver Agrama, 2005). Uma
contradição fundamental assombra as tradições jurídicas democráticas liberais:
ele argumenta que, por um lado, todos são iguais perante a lei e, por outro,
que o objetivo da lei é criar e manter a ordem pública — um objetivo que
necessariamente se volta para as preocupações e atitudes de sua população
majoritária (ver Agrama, 2010).
Embora alguns muçulmanos europeus considerem os acórdãos do
TEDH como manifestamente hipócritas (acomodam sensibilidades cristãs,
mas ignoram as muçulmanas), gostaria de salientar que, independentemente
do contexto social em que este raciocínio jurídico é utilizado, ele tende a
privilegiar as crenças culturais e religiosas da população majoritária. Vários
observadores do TEDH têm observado, por exemplo, que
34
Ver nota 31.
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parece haver um viés na jurisprudência da Corte […] para proteger as religiões
tradicionais e estabelecidas e uma insensibilidade correspondente aos direitos
de grupos religiosos minoritários, não tradicionais ou não populares […].
As religiões estabelecidas dentro de um Estado, seja porque são uma religião
oficial ou porque têm um grande número de adeptos, são mais propensas a
ter suas doutrinas fundamentais reconhecidas como manifestações de crença
religiosa. (Danchin, 2008, p. 275).35
Não é de surpreender, portanto, que quando a religião maioritária era o
Islã, como no caso I. A. vs. Turquia (ECHR, 2005), a decisão do TEDH foi
coerente com o raciocínio utilizado nas decisões Otto-Preminger e Wingrove.
O tribunal confirmou a proibição do governo turco de um livro considerado
ofensivo para a maioria da população muçulmana com base no fato de este
ter violado os direitos daqueles que foram ofendidos pela sua profanação;
como tal, a decisão do governo turco tinha satisfeito uma “necessidade social
premente” e não constituía uma violação do artigo 10 do TEDH.
O TEDH não é a única instituição jurídica em que a preocupação do
Estado com a segurança e a ordem pública e moral conduz à acomodação
das tradições religiosas majoritárias. Considere‑se, por exemplo, o bastante
publicizado julgamento de apostasia de Nasr Hamid Abu Zayd no Egito.36
Abu Zayd foi julgado pelo crime de apostasia com base nos seus escritos
35
Danchin cita uma série de críticos das decisões do TEDH que defendem este ponto de
vista, incluindo Gunn (1996).
36
É importante notar que, embora a apostasia tenha existido como uma categoria dentro
da literatura jurídica tradicional até o século XII, os julgamentos de apostasia tinham
praticamente desaparecido no Oriente Médio entre 1883 e 1950. É apenas na década de
1980 que a apostasia surge como um delito litigável pela primeira vez na história moderna
do código penal do Oriente Médio. Baber Johansen (2003) mostra que apenas na década
de 1980, sob crescente exigência de codificação da lei islâmica (taqnin al-sharia), é que
as noções clássicas de apostasia passaram a ser integradas no código penal numa série de
países como o Sudão (1991), o Iêmen (1994) e o Egito (1982). Uma vez que a Sharia
só se aplica a questões da Lei do Estatuto Pessoal, é através deste canal que a apostasia
voltou a entrar no sistema legal no Egito.
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46
Saba Mahmood
acadêmicos publicados. O caso foi introduzido e julgado com base num
princípio religioso chamado hisba, que não existia nos códigos legais egípcios
modernos, mas que foi adotado no processo de litígio para declarar Abu
Zayd apóstata. Agrama (2010) mostra que, embora o princípio de hisba
existisse historicamente na Sharia clássica, a forma que assumiu no caso de
Abu Zayd diferia dramaticamente na medida em que passou a ser articu‑
lado com o conceito de ordem pública e do dever do Estado de defender a
moral da sociedade em congruência com a tradição islâmica da maioria. A
linguagem do caso Abu Zayd, analisada por Agrama, apresenta semelhanças
notáveis com as invocações de ordem pública nas decisões do TEDH acima
citadas. Embora se trate de diferentes contextos sociopolíticos, os argumentos
jurídicos egípcios e os do TEDH compartilham da preocupação da tradição
jurídica francesa com a ordem pública e, por extensão, com o privilégio da
lei em relação às sensibilidades religiosas majoritárias.
Pode‑se argumentar em resposta que os casos Otto-Preminger e Abu
Zayd revogam o princípio secular da neutralidade do Estado ao acomodar
as sensibilidades de uma tradição religiosa.37 Mas tal objeção, eu sugiro,
se baseia no entendimento errôneo de que o secularismo liberal se abstém
do domínio da vida religiosa. Como sugere considerável parte da pesquisa
acadêmica recente, ao contrário da autocompreensão ideológica do secula‑
rismo (como a separação doutrinária entre religião e Estado), o secularismo
tem historicamente implicado a regulação e a reformulação de crenças,
doutrinas e práticas religiosas de forma a produzir uma concepção norma‑
tiva particular da religião (que é em grande parte cristã protestante em seus
contornos). Historicamente falando, o Estado secular não tem simplesmente
isolado a religião de suas ambições reguladoras, mas procurado refazê‑la
por meio da agência da lei. Esse remodelamento é atravessado por tensões
e paradoxos que não podem ser simplesmente atribuídos à intransigência
dos religiosos (muçulmanos ou cristãos). Uma tensão particular manifesta‑se
37
Com efeito, esta é a base em que alguns teóricos do direito se opuseram à decisão do
TEDH. Ver, por exemplo, Sajó (2007) e Martínez‑Torrón e Navarro‑Valls (1998).
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na forma como a liberdade de religião muitas vezes entra em conflito com
o princípio da liberdade de expressão, ambos defendidos pelas sociedades
liberais‑democráticas seculares.38 Como deve ter se tornado claro para o
leitor, as contradições que aqui discuti não são simplesmente o resultado
das maquinações de extremistas religiosos oportunistas ou de um Estado
secular ineficaz, mas estão no centro da organização jurídica e cultural das
sociedades seculares. Atender a estas contradições é admitir a natureza mutável
do próprio secularismo e os problemas que ele historicamente manifesta.
INJÚRIA MORAL E REQUISITOS DA LEI
À luz do meu argumento na primeira parte deste ensaio, é importante
perceber até que ponto essa linguagem jurídica do discurso do ódio e da
liberdade religiosa tem vindo do tipo de injúria moral que discuti sob o
conceito de schesis. Os muçulmanos que querem transformar essa forma de
injúria em uma ofensa litigável devem reconhecer o caráter performativo
da lei. Sujeitar uma injúria baseada em concepções distintas de sujeito,
religiosidade, dano e semiose à lógica do direito civil é promulgar sua
38
Embora meu argumento aqui se concentre mais nas tradições jurídicas europeias, uma
tensão semelhante assombra também a tradição americana. Winnifred Sullivan (2005)
explora as implicações paradoxais da Primeira Emenda à Constituição (particularmente
a cláusula de liberdade de religião) na história jurídica dos Estados Unidos. Ela analisa
um caso jurídico representativo na Flórida, no qual uma autoridade municipal foi
processada com base na Primeira Emenda por proibir a exibição de símbolos religiosos
em um cemitério público. Ao julgar este caso, o tribunal teve de, em última análise,
distinguir e decidir quais das crenças religiosas reivindicadas pelos litigantes eram reais
do ponto de vista da lei. Ao fazer isso, o tribunal federal teve de se envolver em racio‑
cínios e julgamentos teológicos, um exercício que contradiz nitidamente o princípio
da neutralidade do Estado em relação à religião consagrado na Primeira Emenda. Há
outros exemplos na história jurídica dos EUA, como na decisão da Suprema Corte que
proibiu o uso do peiote em rituais cerimoniais da Igreja Nativo‑Americana. Sobre este
último, ver Deloria Júnior e Wilkins (1999).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
48
Saba Mahmood
queda (ao invés de protegê‑la). Os mecanismos da lei não são neutros, mas
sim codificados com todo um conjunto de pressupostos culturais e episte‑
mológicos que não são indiferentes à forma como a religião é praticada e
experimentada nas diferentes tradições. Os muçulmanos empenhados em
preservar um imaginário em que a sua relação com o Profeta se baseia na
similitude e na coabitação devem lutar com o poder transformador da lei e
das disciplinas da subjetividade sobre as quais se assenta a lei.
O que eu quero enfatizar aqui é que os muçulmanos europeus que
querem reivindicar a linguagem da ordem pública (consagrada em decisões
recentes do TEDH) permanecem insensíveis a essa disposição normativa da
lei para a cultura majoritária. Na lógica da lei, as sensibilidades e tradições de
uma minoria religiosa são consideradas necessariamente menos importantes
do que as da maioria, mesmo em matéria de liberdade religiosa. Não se trata
simplesmente de uma falha de percepção ou de um preconceito; trata‑se
de um pressuposto constitutivo das leis de livre expressão da Europa. Além
disso, na medida em que os muçulmanos passaram a ser vistos como uma
ameaça à segurança do Estado, as suas tradições e práticas religiosas estão
necessariamente sujeitas à vigilância e às ambições reguladoras do Estado
em que a linguagem da ordem pública reina suprema.
Para qualquer pessoa interessada em promover uma melhor compreensão
no espectro de diferença religiosa, seria importante recorrer não à lei, mas à
textura espessa e às tradições de normas éticas e intersubjetivas que proveem
o substrato para os argumentos legais (consagrados na linguagem da ordem
pública). Neste ensaio, sugeri várias razões pelas quais a ideia de injúria moral
que analisei permaneceu invisível e inaudível no debate público sobre os
cartuns dinamarqueses, centrais entre elas a incapacidade de tradução através
de diferentes normas semióticas e éticas. O futuro da minoria muçulmana
nas sociedades euro‑americanas é muitas vezes colocado como uma escolha
entre assimilação ou marginalização, mas a questão da traduzibilidade de
práticas e normas através de diferenças semióticas e éticas não é sequer
levantada. Eu leio essa elisão como simplesmente mais um meio de afirmar
que a assimilação dos mulçumanos é a única solução para que eles possam
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
49
encontrar um lugar nas sociedades euro‑americanas. É bem possível que
a inclinação política dos nossos tempos seja tal que nenhuma outra opção
seja possível. Mas, para aqueles de nós interessados em outras formas de
compreender o problema, talvez seja necessário repensar as estruturas avalia‑
tivas envolvidas em tais impasses. Em última análise, eu diria que o futuro
da minoria muçulmana na Europa depende não tanto de como a lei pode
ser expandida para acomodar suas preocupações, mas de uma transformação
mais ampla nas sensibilidades culturais e éticas da maioria da população
judaico‑cristã, que sustentam a lei.39 Por uma variedade de razões históricas
e sociológicas, acredito que a comunidade imigrante muçulmana não está
preparada para tal empreendimento.
CONCLUSÃO
Gostaria de oferecer alguns pensamentos finais sobre como minha
análise aqui tem a ver com o exercício da crítica — uma rubrica sob a qual
este ensaio pode ser localizado e que certamente caracteriza o que a maioria
dos trabalhos acadêmicos busca alcançar. É costume hoje em dia proclamar
a crítica como uma conquista da cultura e do pensamento seculares. Central
a esse acoplamento é o sentido de que, ao contrário da crença religiosa, a
crítica é baseada em um distanciamento necessário entre o sujeito eo objeto,
e alguma forma de deliberação fundamentada. Essa compreensão da crítica
é muitas vezes contraposta a práticas de leitura religiosa em que o sujeito é
entendido como estando tão enredado no objeto que não consegue atingir
a distância necessária para a prática da crítica. Num ensaio provocativo,
Michael Warner (2004) argumenta que tal concepção de crítica não só
caricatura o Outro religioso mas, mais importante ainda, não enxerga suas
39
Recordo aqui do fato de a relativa redução das atitudes racistas contra judeus e negros
na Europa e na América não ser apenas uma conquista da lei isoladamente (embora a
lei tenha ajudado), mas ter dependido crucialmente da transformação do tecido denso
de sensibilidades éticas e culturais através das linhas de diferença racial e religiosa.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
50
Saba Mahmood
próprias disciplinas de subjetividade, suas ligações afetivas e relacionalidade
sujeito‑objeto. Ele rastreia algumas das transformações históricas (em práticas
de leitura, exegese, “entextualização” e formação de códices) que constituem
o cenário para a emergência desta concepção reinante da crítica. Warner
exorta os leitores a reconhecerem e apreciarem o trabalho disciplinar que
entra na produção de um tipo de subjetividade historicamente peculiar
implicada nesta concepção de crítica.
Neste ensaio, tentei desfazer algumas das suposições que asseguram
a polarização entre extremismo religioso e liberdade secular, em que o
primeiro é considerado acrítico, violento e tirânico e o segundo tolerante,
satírico e democrático. Minha tentativa é mostrar que se subscrever a tal
descrição de eventos também significa simultaneamente aceitar um conjunto
problemático de noções sobre religião, percepção, linguagem e, talvez mais
importante, em um mundo cada vez mais litigioso, sobre qual deveria ser o
papel adequado da lei para garantir a liberdade religiosa. Espero que tenha
ficado claro nos meus argumentos acima que os princípios liberais seculares
de liberdade de religião e de expressão não são mecanismos neutros para
a negociação da diferença religiosa e permanecem bastante parciais em
relação a certas concepções normativas de religião, sujeito, língua e injúria.
Isto não se deve a uma má‑fé secular, mas é um necessário efeito advindo
das camadas de compromissos epistemológicos, religiosos e linguísticos
construídos na matriz da tradição do direito civil. A nossa capacidade de
pensar fora deste conjunto de limitações requer necessariamente o trabalho
de crítica, um trabalho que não se assenta nas suas pretensões putativas de
superioridade moral ou epistemológica, mas na sua capacidade de reconhecer
e paroquializar seus próprios compromissos afetivos que contribuem para
o problema de várias formas.
Na medida em que a tradição da teoria crítica está impregnada de uma
suspeita, se não de rejeição, dos compromissos metafísicos e epistemológicos
da religião, cabe‑nos pensar “criticamente” sobre esta rejeição: como é que a
epistemologia e a crítica estão relacionadas dentro desta tradição? Será que
tradições distintas de crítica requerem uma epistemologia particular e um
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR...
51
pressuposto ontológico do sujeito? Como poderíamos repensar a concepção
dominante do tempo — como vazio, homogêneo e ilimitado, tão inerente
à nossa concepção de história — à luz de outras formas de se relacionar e
experimentar o tempo que também permeiam a vida moderna? Quais são
as práticas de autocultivo — incluindo práticas de leitura, contemplação,
engajamento e sociabilidade — internas a concepções seculares de crítica?
Qual é a morfologia destas práticas e como é que estas se articulam com
(ou diferem de) outras práticas de autocultivo ético?
O tipo de trabalho envolvido na resposta a estas questões requer um
diálogo não só entre disciplinas, mas também entre as supostamente divididas
tradições ocidentais e não‑ocidentais de crítica e prática. Este diálogo, eu
diria, por sua vez depende da distinção entre o trabalho envolvido na análise
de um fenômeno e a defesa de nossas próprias crenças em certas concepções
seculares de liberdade e vinculação. A tensão entre os dois é produtiva para
o exercício da crítica, na medida em que essa tensão suspende o fechamento
necessário à ação política, de modo a permitir que o pensamento prossiga de
formas não habituais. A academia, creio eu, continua sendo um dos poucos
lugares onde tais tensões ainda podem ser exploradas.
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Recebido em: 23/10/2019
Aprovado em: 23/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 17-56, ago./dez. 2019
COMENTÁRIOS
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99588
BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO
E A INJÚRIA MUÇULMANA
Leonardo Schiocchet1
Resumo: Este artigo visa discutir a relevância atual do argumento de Saba Mahmood
em “Religious Reason and Secular Affect: an Incommensurable Divide?” (2009)
quanto à origem da injúria muçulmana em relação a representações de Muhammad
em uma série de caricaturas polêmicas publicadas na Dinamarca, África do Sul e
França. Primeiro, compararei este artigo sobretudo a um outro bastante popular entre
cientistas sociais, de autoria de Mahmood Mamdani; segundo, contextualizarei o
artigo de Saba Mahmood em relação ao trabalho da própria autora. Meu argumento
se desenvolve em torno de uma forte polêmica atual na antropologia da religião:
até que ponto o foco no sujeito religioso ajuda a entender comportamentos e
sensibilidades como estes evidentes na injúria em questão?
Palavras-chave: Saba Mahmood; Secularismo; Islã; Liberdade de Expressão;
Intolerância versus Blasfêmia.
BLASPHEMY OR BIGOTRY? SECULARISM AND THE MUSLIM INJURY
Abstract: This article discusses the contemporary relevance of Saba Mahmood’s
argument in “Religious Reason and Secular Affect: an Incommensurable Divide?”
(2009) to explain the roots of the Muslim injury in relation to representations of
Muhammad in a series of polemic cartoons published in Denmark, South Africa
and France. First, it compares Mahmood’s article especially to another article by
Mahmood Mamdani, among others; second, it contextualizes Mahmood’s article
in relation to her own work. My argument is developed around a strong point of
contention in contemporary anthropology of religion: to what extent the focus
on the religious subject helps to understand behaviors and sensibilities as the ones
made evident by the injury in question?
1
Pesquisador do Instituto para Antropologia Social (ISA) da Academia Austríaca de Ciên‑
cias (ÖAW) e Líder do projeto de pesquisa “The Austro‑Arab Encounter”, financiado
pelo Austrian Science Fund (FWF), Viena, Áustria. E‑mail: schiocchet@gmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
60
Leonardo Schiocchet
Keywords: Saba Mahmood; Secularism; Islam; Freedom of Expression; Bigotry
versus Blasphemy.
A POLÊMICA
Entre 2005 e 2010, uma série de caricaturas e charges do profeta do
Islã, Muhammad, foi publicada na imprensa europeia, repercutindo de
forma bastante negativa entre muçulmanos em todo o mundo. Em 30 de
Setembro de 2005, 12 caricaturas de Muhammad foram publicadas pelo
editorial do jornal dinamarquês Jyllands-Posten. Dentre as mais polêmicas
destas caricaturas estava a hoje conhecida caricatura de Muhammad com
uma bomba na cabeça. Depois, em 20 de maio de 2010, o jornal sul‑africano
Mail & Guardian publicou uma charge do famoso cartunista Johnathan
Shapiro, mais conhecido como Zapiro, no qual o autor muito provavelmente
ironizava as consequências das caricaturas dinamarquesas, criticando o que
sua charge sugere como um caso de “censura religiosa” especificamente —
senão exclusivamente — sobre o islã. Depois da publicação de Zapiro, ainda
em 2010, as caricaturas dinamarquesas foram republicadas.
Em paralelo, na França, o jornal satírico Charlie Hebdo (CH) se envolve
em uma série de publicações controversas. Tudo começou com uma capa
de CH, em fevereiro de 2006, que trazia Muhammad chorando e dizendo:
“é difícil ser amado por idiotas”. A subsequente edição de 3 de novembro
de 2010 foi intitulada Charia Hebdo, em alusão à jurisprudência islâmica,
intitulada Shari’a (ou Charia, em francês). Nesta edição, Muhammad foi
ironizado como editor‑convidado. Como nos casos dinamarquês e sul‑afri‑
cano, todo o processo foi marcado tanto por protestos violentos quanto
por protestos pacíficos, liderados por grupos distintos de muçulmanos. Em
novembro de 2011, depois de uma bomba e um atentado hacker à sede de
CH, o editorial da revista respondeu com a publicação de um beijo entre
um muçulmano e um de seus próprios jornalistas. Em setembro de 2012,
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
61
CH prossegue com a publicação de uma caricatura de Muhammad nu. E,
em janeiro de 2013, CH publica uma caricatura biográfica mostrando
Muhammad como um tolo montando um camelo no deserto. Foi então que,
em 7 de janeiro de 2015, dois muçulmanos armados, cidadãos franceses,
atiraram em funcionários de CH, matando 12 pessoas, entre elas, Charb —
pseudônimo de Stéphane Charbonnier — jornalista que havia publicado
muitas das charges de Muhammad de CH. Imediatamente após o atentado,
as ruas das principais cidades do mundo e as redes sociais estampavam
vigorosamente o slogan “Je suis Charlie” (Sou Charlie).
Todos os três casos (o dinamarquês, o sul‑africano e o francês) repercu‑
tiram na Europa e em grande parte do Norte Global, reiterando a percepção
do islã em si como uma religião fundamentalista e de muçulmanos em geral
como extremistas e terroristas. Tal percepção foi comumente fundamen‑
tada em argumentos sobre o valor da defesa incondicional da liberdade de
expressão intrínseca ao secularismo.
“Religious reason and secular affect: an incommensurable divide?” foi
publicado no verão de 2009, portanto antes da publicação da caricatura de
Muhammad em CH, da charge de Zapiro e da republicação das caricaturas
dinamarqueses em 2010. Ainda assim, este artigo continua sendo um dos
mais relevantes comentários para se entender o contexto no qual o conflito
se desenvolveu. Como tal, este artigo de Saba Mahmood, traduzido aqui por
Daniel Silva foi extraordinariamente revisitado no rescaldo do atentado a
CH, gerando tanto elogios quanto críticas. No que segue, discutirei o argu‑
mento do artigo em si de acordo com dois ângulos fundamentais: primeiro,
compararei este artigo sobretudo a um outro bastante popular entre cientistas
sociais, de autoria de Mahmood Mamdani; segundo, contextualizarei o
artigo de Saba Mahmood em relação ao trabalho da própria autora, em um
esforço de justificar a relevância de seu argumento não apenas para o debate
em relação à injúria muçulmana perante à representações de Muhammad,
mas também pela postura epistemológica de Mahmood.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
62
Leonardo Schiocchet
A INJÚRIA
Injúria moral
Saba Mahmood é hoje mais conhecida por suas importantes contribui‑
ções à literatura sobre o secularismo e sobre a construção de sujeitos religiosos
e piedosos. Para ela, secularismo não é oposto a religião e a intolerância
religiosa, mas uma forma moderna de sensibilidade e de governamentalidade
(2009) que disciplina o âmbito religioso (entre outros) e tem exacerbado
tensões religiosas e inequidades ao invés de aplacá‑las (2016). Entretanto,
o pensamento de Mahmood sobre secularismo advém de seu esforço em
pensar mais amplamente a relação entre religião e modernidade, e mais
especificamente o processo pelo qual sujeitos religiosos vivem religião (e
em especial o islã) através de técnicas disciplinares do self inscritas em sensi‑
bilidades religiosas, liberal e secular (2005). Todo este conjunto de temas
acima, por sua vez, está permeado por quatro tropos fundamentais: agência;
subjetividade; governamentalidade; e moral e ética2 — tropos que, no caso
de Mahmood, podem ser traçados sobretudo à discussões provenientes da
tradição antropológica foucaultiana de Talal Asad (Asad, 1993, 2003; Asad et
al., 2009). Em diálogo com esta literatura, Mahmood sugere que a dinâmica
pela qual piedade e devoção são incorporados nos sujeitos religiosos através
de práticas e discursos religiosos sobre o mundo são pontos centrais para
se entender o espaço religioso na contemporaneidade. Mahmood, assim
como Asad e outros antropólogos alinhados a esta perspectiva teórica, vão
um passo além de Foucault ao lidar mais diretamente com etnografias que
enfocam as nuances de relações entre indivíduos e grupos com instituições
(por exemplo: religiosas, o estado, mídia e o mercado).
De acordo com esse enquadramento, o artigo de Mahmood aqui tradu‑
zido busca compreender “a injúria muçulmana” e a inabilidade de secularistas
2
“Moral” e “Ética” no sentido de entender como se formam, transmitem e se mantém
regimes de verdade (Foucault, 1995). Veja também Robbins, 2013.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
63
de entender essa injúria desde um ponto de vista epistemológico que coloca
o secularismo em si, e não apenas o islã, em perspectiva analítica. De acordo
com ela, a ascensão de políticas religiosas pós‑11 de Setembro aprofundou
o cisma entre religião e secularismo, particularmente no que tange ao islã
no Norte Global. Uma racionalidade secular passou então a definir com
mais força a lei, políticas de estado, produção do conhecimento e relações
econômicas (Mahmood, 2009, p. 64). Esta racionalidade, por sua vez, implica
uma tensão entre “necessidade secular versus ameaça religiosa” (p. 65). No
que ela define talvez simplificadamente como “o Ocidente” (voltarei a este
ponto mais tarde), o debate entre a perspectiva “secular” e a dos “muçul‑
manos injuriados” está inscrito em um contexto de política de identidade
“Ocidental versus islâmica” que privilegia “o estado e as leis como abjudica‑
doras finais da diferença religiosa” (p. 67). Assim, enquanto uns “puderam
ver o racismo velado por detrás das caricaturas, foi a dimensão religiosa do
protesto muçulmano que seguiu perturbadora” (p. 68) — dimensão essa que,
por sua vez, acarretou na “inabilidade em aceitar o sentimento de injúria
expresso por tantos muçulmanos” (p. 68).
Para Mahmood, para se entender o conflito entre as duas posições é essen‑
cial nos desapegarmos das ideias de “blasfêmia” e “liberdade de expressão”,
pois ambas são noções jurídicas de direitos e sanções que fundamentam o
debate e pressupõem uma certa “ideologia semiótica”3 na qual significantes
são arbitrariamente ligados a conceitos, de forma que seus significados
são interpretados segundo códigos particulares compartilhados entre os
intérpretes, sejam eles secularistas ou muçulmanos. Mahmood entende
que esta leitura pobre de símbolos naturaliza uma ideia de “sujeito religioso”
vivendo em um mundo de significados codificados fundados apenas em
representações, que assim exclui práticas incorporadas e afetivas, apego e
cohabitação, através das quais tal sujeito em verdade se relaciona com um
símbolo particular (2009, p. 70). Embasada no trabalho de Keane (2007),
a ideologia semiótica que Mahmood (2009) descreve distingue objeto e
3
Para mais sobre este conceito, veja Keane, 2007.
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Leonardo Schiocchet
sujeito; substância e sentido; significante e significado; e forma e essência
(p. 72). Por isso o protestantismo (e suas missões) teria ficado horrorizado
com a atribuição, por outras religiões, de agência divina a símbolos materiais
e objetos como extensão ontológica de si mesmos. Para Mahmood, esse
horror ressoa com “a perplexidade” liberal e progressista com o alcance e
profundidade da reação muçulmana às caricaturas (p. 72‑73). Para secula‑
ristas, cuja ideologia semiótica tem raízes liberais e protestantes, a injúria
sentida por muitos muçulmanos seria advinda de uma leitura “imprópria”
das caricaturas, ao colapsarem a necessária distinção entre o sujeito (o atri‑
buto divino atribuído a Muhammad) e o objeto (distinções pictóricas de
Muhammad) (p. 72‑73).
Entendo que a crítica de Mahmood a esta ideologia semiótica — que
reverbera discussões teóricas de Talal Asad, Webb Keane e W. J. T. Mitchell
— não é somente a secularistas, mas também ao modelo interpretativo da
antropologia simbólica e hermenêutica Geertziana que, ao ignorar a relação
entre símbolos e afeto, seria incapaz de explicar tanto a injúria e a reação
muçulmana por um lado e sua incomensurabilidade para secularistas por
outro. Daqui advém a importância da análise antropológica da moral e
ética para Mahmood: não como uma questão simbólica de relação entre
significante e significado, mas como sentidos e sentimentos se encontram
imbricados em sensibilidades próprias a certas tradições de conhecimento,
constituídas e transmitidas segundo práticas disciplinares presentes no
quotidiano de grupos e incorporadas nas ações dos sujeitos. Assim, por um
lado, para compreender a incomensurabilidade da injúria muçulmana por
parte de secularistas, devemos entender o que pode ser considerado como
alegação moral válida no Ocidente secular e o que faz outras ininteligíveis.
Por outro lado, é necessário compreender também que a injúria muçulmana
advém de outra sensibilidade, e não pode ser simplesmente sobrepujada por
um discurso (racional) secularista.
Segundo Mahmood (2009), um ponto‑chave da sensibilidade muçul‑
mana da qual advém o sentimento de injúria às representações de Muhammad
é que Muhammad é tido como um “exemplo moral” e muçulmanos se
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
65
relacionam com ele através do termo aristotélico shesis, que evidencia acen‑
tuada relação psicofisiológica, neste caso entre o profeta e o sujeito religioso:
diferente da forma como, segundo a autora, Jesus Cristo tenderia a ser um
exemplo para cristãos, muçulmanos não apenas seguiriam o exemplo de
Muhammad, mas frequentemente emulariam o que comia, como se vestia,
como andava etc. — mimetismo esse vivido como virtude, não como
mandamento (2009, p. 75), fazendo de Muhammad mais uma figura de
imanência do que objeto de culto (p. 76‑77). Essa shesis também pressupõe
assim um sentimento de habitação incorporada e proximidade íntima que
imbui a relação de muçulmanos com Muhammad. Segundo Mahmood, essa
relação com o profeta é o próprio substrato através do qual um muçulmano
adquire uma disposição devota e piedosa (p. 78). Por conseguinte, o senti‑
mento de injúria muçulmana às representações de Muhammad não podem
ser atribuídas a uma compulsão a obedecer a lei divina tal como muitos
secularistas a compreendem. Muito pelo contrário, a injúria é moral e assim
substancialmente diferente daquela codificada em uma blasfêmia, que por
sua vez está sim relacionada à obediência divina (p. 78). Diferentemente
de uma blasfêmia, uma injúria moral deriva de uma estrutura afetiva que
requer ação moral para ser retificada4.
Blasfêmia ou intolerância?
Ainda que influente entre antropólogos, a interpretação de Mahmood
sobre o caso não foi a única. Sobretudo depois do atentado a CH, muitos
foram aqueles que se aventuraram a comentar a incomensurabilidade das
posições muçulmana e secularista. No que segue, apresentarei brevemente a
perspectiva de Mahmood Mamdani e a crítica popular de Samuli Schielke,
4
Tal como entendo Mahmood, isto não quer dizer necessariamente que obediência a
leis religiosas não estejam relacionadas a sentimentos. Como a autora sugere, o rela‑
cionamento entre seres humanos e o mundo está sempre mediada por relações afetivas.
Assim, a “estrutura afetiva” à qual alude Mahmood aqui deve ser compreendida como
marcadamente afetiva, ou primariamente afetiva.
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66
Leonardo Schiocchet
para concluir com um balanço sobre porque o artigo de Mahmood ainda
é relevante a este debate.
No discurso de recebimento de seu doutorado honorário na Universidade
de Johanesburgo, Mamdani (2010) afirma que admirava Zapiro — conhecido
por sua postura anti‑apartheid — e que a mensagem que quer transmitir é
algo que afeta a esquerda e a direita igualmente, já que se trata de como o
Ocidente entende “pensamento crítico”, que por sua vez no Ocidente tende a
ser ligado à tradição do secularismo, assim como Mahmood aponta no artigo
traduzido neste volume. Também como Mahmood, Mamdani reconhece que
não‑muçulmanos tendem a condenar com ultraje a reação muçulmana a tais
caricaturas como uma atitude de intolerância em relação à blasfêmia. Ainda
como Mahmood, para Mamdani secularistas tendem a criticar o sentimento
de injúria muçulmana em nome da liberdade de expressão, enfatizando‑a
como uma conquista Ocidental que deve ser preservada a qualquer custo.
Entretanto, o argumento de Mamdani, simples mas incisivo, é ligeiramente
diferente do de Mahmood: para ele, o Ocidente tem confundido “blasfêmia”
com intolerância com relação ao outro (bigotry) e ambos são radicalmente
diferentes sobretudo no que tange o lugar de fala do injuriado. Enquanto
blasfêmia é a prática de questionar algo desde dentro (to speak truth to power),
intolerância é um ataque externo a uma dada tradição (neste caso, ao islã)
que inscreve uma tentativa pelo poder de instrumentalizar a verdade. Para
Mamdani, tanto blasfêmia quanto intolerância pertencem à tradição mais
ampla de liberdade de expressão, na qual a política contemporânea “depois
de um século de limpeza étnica e genocídio” (Mamdani, 2010) se refere a
este tipo de intolerância como “discurso de ódio”.
Para Mamdani, o lado obscuro da liberdade de expressão é como o
poder pode instrumentalizar a liberdade de expressão para enquadrar uma
minoria e apresentá‑la como alvo, especialmente dado que em qualquer
parte a existência de uma sociedade política requer forjar um pacto, ou
compromisso, político. No caso europeu, a história de guerras civis religiosas,
opondo sociedade política a religião, levou a concessões quanto à liberdade
de expressão, circunscrevendo‑as a leis que criminalizam a blasfêmia. Quando
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
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internalizadas como civilismo, tais leis tem sido centrais à manutenção da
paz social em sociedades europeias (Mamdani, 2010).
Portanto, assim como para Mahmood, para Mamdani a injúria
muçulmana é “moral”. Entretanto, enquanto Mahmood enfatiza a incomensu‑
rabilidade das duas posições, circunscritas a um contexto no qual a posição
muçulmana é incomensurável dada sua origem epistemológica distinta,
Mamdani denuncia mais diretamente o lugar de fala do injuriante. A prin‑
cípio as duas posições podem parecer quase indistinguíveis, mas a diferença
na ênfase é importante sobretudo no que tange a críticas ou diferenças
interpretativas que se seguiram ao argumento de Mahmood. Por exemplo:
de forma semelhante a Mahmood — fora do registro do dogma — e de
Mamdani — fora do registro da religiosidade —, o estudioso dinamarquês
da religião Mikael Rothstein sugere que as caricaturas dinamarquesas foram
interpretadas antes de mais nada como um escárnio da dignidade humana
e que a resposta muçulmana foi em defesa desta dignidade, ao invés de
dogmatismo islâmico (Rothstein, 2007). Enquanto a posição de Mamdani
potencialmente inclui a perspectiva de Rothstein ao centro de sua expli‑
cação, a perspectiva de Mahmood a desloca na melhor das hipóteses para
a periferia de seu argumento.
RELIGIÃO E SECULARISMO
O sujeito religioso
Um jovem agnóstico sírio de origem ismaelita (um de meus interlo‑
cutores próximos na Áustria) me explicou que participou das passeatas
em Damasco contra as caricaturas dinamarquesas quando tinha 14 anos e
boicotou por anos produtos escandinavos porque se sentiu “ofendido” por
como “europeus” representam o islã. A ofensa não foi para ele uma questão
religiosa — “até porque Deus não é importante na minha vida”, ele me disse
— mas sim uma questão de falta de respeito que demonstrou a ele como a
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Leonardo Schiocchet
Europa tem tratado muçulmanos de forma preconceituosa. Assim, minha
própria experiência de campo no Oriente Médio e entre muçulmanos neste
continente, na América Latina e na Europa me levam a concordar até certo
ponto com a crítica de Samuli Schielke (2010) ao fato de que Mahmood,
ao menos aqui, tende a falar sobre muçulmanos como se houvesse apenas
uma forma de se viver o islã e como se esta forma tivesse efeito inescapável
na forma pela qual muçulmanos habitam o mundo. Como coloca Schielke,
naquilo que é hoje talvez a principal crítica à Mahmood desde a antropo‑
logia do Oriente Médio e islã, “as tradições de devoção muçulmanas são
importantes, mas não suficientes para considerar as vidas complexas que
meus amigos e interlocutores muçulmanos vivem” e para considerar a recente
“mudança na direção de conhecimento moral e comprometimento ativista”
entre muçulmanos no Oriente Médio (Schielke, 2010, p. 8). Schielke
direciona sua crítica para os alunos mais conhecidos de Talal Asad, como
Saba Mahmood e Charles Hirchkind, sugerindo que para estes autores não
prestar atenção suficiente em “conhecimento moral” é negligenciar aquilo
que é em verdade um dos principais pilares teórico‑metodológicos do grupo,
já que o cultivo e incorporação de virtudes morais tem estado ao centro do
trabalho do grupo, como em The Ethical Soundscape (2006) de Hirschkind e
em Politics of Piety (2005) de Mahmood. Além disso, Schielke mantém que
o “programa de pesquisa [Asadiano] em piedade, ética e tradição” (Schielke,
2010, p. 5) também limita a antropologia do islã ao super‑enfatizar moral,
subjetividade piedosa e tradição, desta forma estando “por demais preo‑
cupada com o islã para dar sentido ao que pode significar ser muçulmano”
(Schielke, 2010, p. 14). Para ele, em contraposição:
Para entender a significância de uma religião ou de qualquer outra fé nas vidas
das pessoas, é talvez mais proveitoso olhar para ela menos especificamente
como uma religião ou uma tradição e ao invés disso tomar uma postura mais
vaga e aberta dela como um grande esquema ativamente imaginado e debatido
por pessoas e que pode oferecer várias direções, sentidos e orientações nas
vidas das pessoas. (Schielke, 2010, p. 14).
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
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Ao invés de olhar internamente a uma tradição, portanto, Schielke sugere
começar com “a prática imediata de viver uma vida, as questões existenciais
e as considerações pragmáticas que informam esta prática, incorporadas mas
não reduzidas à tradições, poderes e discursos [...]” (Schielke, 2010, p. 12).
Em outras palavras, o estudo da piedade deveria se voltar ao quotidiano,
ou àquilo que ele, inspirado em Lila Abu‑Lughod, chama de “confusos
mas mais ricos campos das experiências do quotidiano, biografias pessoais
e complexas genealogias” (Schielke, 2010, p. 5).
Assim, o argumento de Mahmood ressoa com minha própria expe‑
riência de campo também até certo ponto. Mais precisamente, até onde
o argumento da autora se encontra com o de Mamdani. Entretanto, seu
argumento destoa em certa medida do meu próprio entendimento quando
associa o sentimento de injúria muçulmana a uma questão epistemológica
inextrincavelmente advinda não apenas do cânone da tradição islâmica, mas
especialmente a uma sensibilidade específica ligada à piedade religiosa. Mais
precisamente, a sugestão da autora que todo muçulmano se relaciona com
Muhammad segundo a relação de mimetismo que ela chama de schesis não
ressoa com o que ouvi de muitos muçulmanos, inclusive durante minha
pesquisa de campo na Dinamarca entre Palestinos, Sírios, Iraquianos, e
curdos advindos de diversos estado‑nação, entre julho e dezembro de 2013,
quando a polêmica sobre as representações de Muhammad em questão foi
bastante expressa por meus interlocutores. Mahmood de fato reconhece a
existência de diferentes expressões de injúria muçulmana em relação aos
casos discutidos aqui e de críticas ocidentais à perspectiva secular mais
radical, mas sua perspectiva localiza a relação de schesis entre Muhammad e os
muçulmanos para além de tais diferenças. Esta limitação pode ser entendida
como advinda de pelo menos duas possibilidades lógicas: ou Mahmood trata
aqui todos os muçulmanos injuriados como piedosos, ou entende o cânone
islâmico como sendo um registro sociológico (ou ontológico, como diriam
alguns) com certas implicações determinantes nas vidas de muçulmanos
no mundo todo. Na prática, entendo que as duas possibilidades lógicas são
interdependentes e presentes em certa medida na perspectiva de Mahmood,
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Leonardo Schiocchet
que acaba por exagerar e naturalizar o cisma entre “Ocidente” — liberal e
secular — e o “islã” — não propriamente muçulmanos como Mahmood
nomeia — quando em verdade diferentes sujeitos mobilizam registros de
diferentes tradições — liberal, islâmica, nacional, ou outra — de acordo
com contexto e de forma muito mais complexa e fluida do que Mahmood
descreve no artigo em pauta. Enquanto alguns dos meus interlocutores
muçulmanos na Dinamarca (e fora dela) de fato emulavam o profeta de
forma quase que exemplar à narrativa de Mahmood, outros na prática o
veneravam de forma um tanto quanto semelhante a como muitos católicos
veneram santos, ainda que não através de ícones de barro; enquanto uns
tinham Muhammad como uma figura de imanência, outros o tinham como
um exemplo moral de forma mais semelhante a como alguns cristãos se
relacionam a Jesus Cristo — quer dizer, como representativo de valores e
virtuosidade.
Não se trata aqui de invalidar o ponto de Mahmood, apenas de relativizar
sua centralidade. Enquanto a perspectiva de Mahmood em si não é suficiente
para conceber toda a abrangência e profundidade da injúria muçulmana,
certamente ajuda a explicar parte dela. A perspectiva de Mamdani, por
outro lado, permite entender o sentimento de injúria muçulmana como
estando atrelado também (e não somente) a políticas de identidade em
um sentido mais abrangente do que aquele que Mahmood apresenta em
seu artigo, ligados por exemplo à processos pós‑coloniais e em especial ao
ostracismo, preconceito, marginalidade e exclusão social de muçulmanos
especialmente na Europa, e às constantes ingerências, inclusive bélicas, do
Norte Global no mundo muçulmano. Ou seja, Mamdani não trata o sujeito
muçulmano somente ou primariamente enquanto um sujeito religioso e
piedoso, dando espaço para se pensar como elementos políticos e sociais
podem ter alimentado o sentimento de injúria muçulmana em alguns casos
ao menos tanto quanto Mahmood sugere que essa injúria foi alimentada por
uma sensibilidade islâmica que determina como muçulmanos se constroem
enquanto sujeitos morais e piedosos.
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
71
O secularismo
Além da crítica de Schielke ao foco no sujeito religioso, outros autores
tem criticado Mahmood por uma visão generalizante ou depreciativa do
secularismo. A acadêmica do direito Lama Abu‑Odeh (2017), por exemplo,
afirma que a crítica de Mahmood ao secularismo é exagerada e desprovida
de alternativa. Segundo esta autora, “o discurso crítico de Mahmood por
vezes beira o anarquismo, o libertarianismo e outras vezes conservadorismo
tradicionalista (nostálgico do pré‑moderno)” (Abu‑Odeh, 2017, p. 149).
Citando passagens em que Mahmood é supostamente nostálgica do Império
Otomano, a autora alega que a crítica de Mahmood ao secularismo carece
de uma contraproposta. Entre antropólogos, no entanto, esta crítica perde
fundamento na medida em que a crítica social é entendida como parte
de um diagnóstico social e este, por sua vez, é em si valido e não necessita
estar acoplado a uma razão prática ou a um modelo substituto como um
fim necessário.
Em uma possível crítica mais contundente, entretanto, é possível levar
em consideração o trabalho de outros autores, como Riva Kastoryano (2004),
que têm apontado para a importância de trazer nuance a diferentes tradições
de secularismo na Europa, com importante implicações para considerações
sobre liberdade de expressão. Tais diferenças são aceitas como bastante
relevantes no debate acadêmico na Europa Central, como na Alemanha e
na Áustria5, por exemplo, onde pelo menos até pouco tempo a noção de
multiculturalismo prevalecia em relação à ideia francesa de laicidade, e onde
por conta da sensibilidade em relação ao holocausto a liberdade de expressão
tem sido muito mais marcada por limites com relação a discurso de ódio.
Esta posição identifica correntes distintas do secularismo europeu com
5
É verdade, entretanto, que por conta de políticas sobre migração e refúgio, a relação
entre secularismo, multiculturalismo e liberdade de expressão tem mudado rapidamente
na última década na Europa Central, e em especial na Áustria. Na Escandinávia, e em
especial na Dinamarca, a polêmica das caricaturas de Muhammad ajudou a acelerar o
passo dessas transformações.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
72
Leonardo Schiocchet
origens culturais distintas, o que é largamente ignorado por Mahmood em
“Razão religiosa e afeto secular”6. Reforçando este ponto talvez, em entre‑
vista para a Jadaliiya — importante plataforma acadêmica de debate sobre
o Oriente Médio frequentemente populada por antropólogos — Olivier
Roy afirma que mesmo na França, é importante ressaltar a forma que o
secularismo tomou hoje e diferenciá‑la de suas origens na lei de 1905, que
não excluía religião da esfera pública como faz hoje. Naquele tempo, a lei
era “simplesmente um princípio jurídico, e não era entendido com uma
série de normas e valores”, e “havia um mesmo conjunto de éticas, cultura”
— tendo mudado apenas muito recentemente, “sobretudo após a questão do
véu em Creil [um subúrbio parisiense] em 1989” (Francois‑Cerrah, 2015)7.
Tomados em conjunto, estes dois últimos questionamentos poderiam levar a
uma reconsideração do alcance do argumento de Mahmood no que tange à
homogeneidade com que trata uma sensibilidade secular de origem europeia
com origens na Reforma e ressignificada sobretudo no pós‑11 de Setembro.
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR
Tendo em vista as potenciais limitações do argumento de Mahmood
aqui mencionadas, até que ponto tal argumento permanece relevante?
Supor que os reinos da vida quotidiana e do conhecimento moral está
ausente do programa Asadiano, como faz Schielke, é equivocado especial‑
mente dado o peso que Asad põe no universo da prática, no que Mahmood
6
7
Vale apontar que a crítica de Kastoryano aqui não é direcionada a Mahmood em si — até
porque o artigo citado é anterior às mais seminais publicações de Mahmood — mas a
nuance que encerra tem sido mobilizada sobretudo na Alemanha em discussões sobre
secularismo e liberdade de expressão de forma geral e segue relevante para a discussão
do tema do artigo de Mahmood aqui traduzido.
Para uma discussão contemporânea sobre a ética de “desvelar” ou “não‑velar” hoje na
Bélgica, onde o contexto de laicité é mais semelhante ao da França do que o do secula‑
rismo na Alemanha, ver Fadil, 2011.
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
73
o segue de perto. Schielke está correto que o foco de Mahmood é no sujeito
religioso, relegando outros aspectos à posição de pano de fundo. Entretanto,
um programa de pesquisa enfocando o islã e o secularismo enquanto tradições
de conhecimento é tão importante quanto outro enfocando o quotidiano
de sujeitos que, entre outras coisas, são muçulmanos. Um deve reforçar o
outro. Neste sentido, Mahmood está correta ao afirmar que o secularismo
é um regime de verdade que estipula o que religião deve ser, ao passo que
o islã possui origens epistemológicas distintas. Ao apontar para este fato,
Mahmood questiona o programa liberal e secular da separação entre os
domínios da ética, religião e política; não enquanto modelo ético ideal (como
talvez suponha Abu‑Odeh), mas enquanto realidade empírica válida tanto
para muçulmanos quanto para secularistas. Esse esforço de Mahmood, por
sua vez, ressoa absolutamente com minha própria experiência de pesquisa em
campos de refugiados palestinos no Líbano. Inspirado em parte no próprio
trabalho de Mahmood, minha etnografia mostra como religião, ética, política,
etnicidade e pertencimento nacional aparecem imbricados nas expressões
de palestinos sobre si mesmos e suas percepções sobre o mundo, incluindo
o Norte Global e o secularismo (Schiocchet, 2014a, 2014b).
Além disso, ainda que de fato tanto os princípios do secularismo, senti‑
mento de pertencimento nacional (muitas vezes múltiplos), e sensibilidades
religiosas islâmicas estejam imbricadas nas disposições e ações de muitos
muçulmanos na Europa, é necessário considerar também que existem forças
significativas agindo no sentido de separar estes termos, incluindo algumas
de raiz europeia. Por exemplo, Mayanthi Fernando mostra como na França o
próprio estado francês faz do amalgama entre sentir‑se muçulmano e francês
contraditório (Fernando, 2014, 2015). De forma semelhante, minha própria
pesquisa na Dinamarca aponta para como o contexto dinamarquês influen‑
ciou fortemente na identificação de imigrantes palestinos, iraquianos, sírios,
somalis e outros primariamente como muçulmanos e a homogeneizar e a
naturalizar em alguma medida uma sensibilidade islâmica (Schiocchet, 2018).
Outrossim, como justificado neste comentário, concordo em parte
com o argumento de Scheilke, mas devo aqui fazer uma ressalva: tal crítica
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Leonardo Schiocchet
é válida sobretudo para “Razão religiosa e afeto secular” mais do que para
o resto da produção intelectual de Mahmood. Isto porque este artigo busca
explicar a causa da injúria muçulmana dando centralidade à construção
do sujeito religioso em detrimento de outros fatores, ao passo que a maior
parte da produção de Mahmood busca explicar a construção do sujeito
religioso inscrito no mundo contemporâneo. A diferença de ênfase entre
os dois objetivos, entretanto, não justifica a crítica de Schielke ao trabalho
de Mahmood, apenas a faz relativamente contundente no que tange a
presente discussão. O foco no sujeito religioso não apenas é válido, como
tem sido largamente reconhecido como contribuição fundamental para a
antropologia contemporânea da religião.
O argumento de Mahmood ajuda a pensar a injúria muçulmana, ainda
que sua ênfase seja por demais estreita para servir como explicação funda‑
mental. A explicação de Mamdani, por outro lado, é ampla o suficiente
para cumprir este papel. Mas, como espero ter demonstrado, o argumento
de Mamdani está quase todo circunscrito no argumento de Mahmood —
tendo sido mesmo possível que Mamdani tenha se inspirado em alguma
medida no próprio argumento de Mahmood. Assim sendo, seria equivocado
descartar a totalidade do argumento de Mahmood tendo em vista aquele
que apresentei aqui como mais contundente.
Por fim, por um lado, como espero também ter demonstrado, a expli‑
cação de Mahmood sobre a sensibilidade islâmica encapsulada no conceito
de schesis também não deve ser descartada, mas apenas deslocada do centro
da explicação e tomada como mais um fator dentre outros influenciando o
sentimento de injúria muçulmana para alguns muçulmanos (e não todos).
Por outro lado, o perigo de descentralizar a importância de “Razão religiosa
e afeto secular” hoje é muito maior: equivale a descartar a importância de
dimensões epistemológicas essenciais para o entendimento do encontro entre
o islã e Norte Global e das dinâmicas pelas quais sensibilidades e disposições
incorporadas em sujeitos religiosos e/ou seculares se tornam processos sociais
essenciais para se entender o mundo contemporâneo.
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BLASFÊMIA OU INTOLERÂNCIA? O SECULARISMO...
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Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 59-77, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99733
BARREIRAS INCOMENSURÁVEIS? UM COMENTÁRIO
AN INCOMMENSURABLE DIVIDE? A COMMENTARY
Everton Rangel
María Elvira Díaz-Benítez1
O convite para que comentássemos este ensaio de Saba Mahmood
nos colocou num impasse. Um bom impasse, certamente. O objetivo da
autora é pensar o conflito entre a necessidade secular e a ameaça religiosa,
ou melhor, questionar os modos com que corriqueiramente pensamos essa
divisão a partir de ideários normativos tanto sobre o secular, quanto sobre
o religioso e, mais fundamentalmente, sobre o modo secular de conceber o
extremismo religioso. O que se vê é uma análise rica, que mostra como, de
fato, esses mundos não existem sobre bases tão binárias assim. Mahmood
mostra como as saídas jurídicas para a “resolução” de conflitos estão permeadas
de modos seculares e hierárquicos de ativar a lei e de interpretar as culturas
e a diferença. Ela mostra como a vivência muçulmana da injúria não suscita
perguntas relevantes no contexto da publicação dos cartuns dinamarqueses
que satirizavam o profeta Muhammad, tendo sido obscurecida pelo discurso
da “liberdade de expressão”. Ser muçulmano na Europa é possível apenas por
meio da assimilação? Pergunta Mahmood. Ou seria viável por meio de “uma
transformação mais ampla nas sensibilidades culturais e éticas da maioria da
população judaico‑cristã, que sustentam a lei”? (Mahmood, neste volume).
Se nos sentimos em um impasse ao tentar comentar o texto é porque
haveriam várias saídas para este fim. Poderíamos discutir, através dos argu‑
mentos da autora e de outros (Asad, 2003, 2011; Asad et al., 2009; Reinhardt,
2017; Connolly, 1999), as relações entre secularismo e religião. Poderíamos
1
Everton Rangel é doutorando no Programa de Pós‑Graduação em Antropologia Social
do Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro, Brasil. E‑mail: era.rangel@gmail.com.
María Elvira Díaz‑Benítez é docente no mesmo Programa. E‑mail: blueananse@yahoo.com.
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Everton Rangel, María Elvira Díaz-Benítez
interpretar este ensaio à luz de sua obra, de sua antropologia engajada na
interpretação dos valores éticos e culturais dos mundos árabes, como os do
Egito, em sua relação crítica com valores liberais, incluindo o feminismo.
Ou poderíamos tentar refletir sobre a sensação de angústia que nos produziu
a leitura de um texto que fala sobre o mundo construído a partir de grandes
divisores. Que mundo comum é possível compartilhar? Como podemos
fazê‑lo? Ou, como disse Achille Mbembe: “Como pensar a diferença e a
vida, o semelhante e o dessemelhante, o excedente e o em comum?” (2018,
p. 23). Optamos por seguir este último caminho.
O QUE HÁ PARA ALÉM DAS VIRTUDES?
A virada que Mahmood propõe em direção à ética deriva de movimentos
político‑intelectuais que, ao menos na antropologia, produziram um afasta‑
mento da ênfase estrutural. A centralidade assumida pelas abordagens que
reconhecem a natureza histórica das sensibilidades e dos repertórios de ação
disponíveis culminaram muitas vezes em apostas de cunho fenomenológico,
isto é, preocupadas com a descrição do que Lambek (2015) chamou de
“tonalidades da vida”. A obra de Foucault (1980, 1982, 1988), dentre outros
filósofos, é particularmente cara à Mahmood, já que evidencia a possibilidade
e a relevância de nos perguntarmos sobre as experiências de sujeição, mais
precisamente sobre o paradoxo de tornarmo‑nos sujeitos através das normas
que nos habitam e habilitam as nossas ações sem determinar as cores precisas
das mesmas. É esse o postulado que parece sustentar a ideia de pensar a
agência como correlacionada às capacidades encorporadas [embodied]; aos
meios de formação do sujeito; à ética enquanto conjunto de práticas que
redundam em estilos de vida. Quando a ética está correlacionada às virtudes,
diz a autora, devemos nos perguntar menos sobre o que ela significa e mais
sobre o que ela faz, causa ou provoca. Nesse sentido, as práticas virtuosas são
positividades porque permitem às pessoas operarem um conjunto de ações
sobre si mesmas, visando alcançarem um estilo de ser, uma dada forma de
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sentir e pensar compartilhada localmente. Parece‑nos que o trabalho de si
sobre si mesmo não é bem compreendido se percebido como algo puramente
individual, um autocentramento ou uma renúncia ao outro. Trata‑se, antes,
da presença do outro em si, de um trabalho que não se faz completamente
sozinho e que, no limite, está destinado ao outro, ou melhor, depende da
existência do outro para que seja efetuado.
Em outra publicação (Díaz‑Benítez; Rangel; Fernandes, 2018), fizemos
alusão à crítica de Schielke (2009) à etnografia de Mahmood enquanto
produto intelectual revelador de “histórias de sucesso”, isto é, focado na
descrição de práticas virtuosas relativamente bem efetuadas. Nosso objetivo
era o de demarcar que o foco na ética das virtudes pode encobrir a análise
dos custos subjetivos associados à conquista dos modos de conduzir a si
considerados bons e belos em determinados contextos sociais. Pensávamos
naqueles sujeitos desgastados pelas promessas das normas no mundo capi‑
talista e naquelas apostas políticas na negatividade como modalidade de
evasão (Halberstam, 2011): um deixar de ser, por um lado, fomentado
pelo caráter desigual e excludente das possibilidades de reconhecimento e,
por outro lado, aplaudido como estratégia de enfrentamento às políticas
liberais. Contrastávamos as histórias de sucesso às histórias de falência,
considerando quais imaginações políticas os autores acionam e normatizam.
Buscávamos assim chamar atenção às ambivalências que constituem a vida
daqueles sujeitos que, mesmo desgastados, seguem esperando e lutando
por dias melhores, por futuros incertos. Usávamos a palavra ambivalência
para demonstrar que o fazer dos sujeitos não está em necessária relação de
oposição ao desfazer dos mesmos, nem o questionamento das fórmulas de
sucesso e felicidade independe da compreensão das formas de participação e
relativa adequação às normas que muitas vezes são associadas ao liberalismo.
O fato é que a palavra ambivalência pode tanto ser uma qualidade intrínseca
dos fenômenos, como pode ser apenas uma linguagem vaga e imprecisa,
uma falha da própria capacidade de um antropólogo ou outro de descrever
os fenômenos (Strathern, 1999).
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Se não há como saber o que de fato significa o uso da palavra ambiva‑
lência, a não ser de etnografia em etnografia, é fundamental explicitar uma
abordagem que nos inspira e que pode inspirar descrições que nos parecem
de suma importância. A ideia de que os eventos críticos não surgem do
nada, nem esvanecem sem baixar ao cotidiano (Das, 2007), é digna de nota
porque nos faz ver que episódios como o da publicação das imagens satíricas
do profeta Muhammad podem ser analisados a partir das controvérsias que
evocam, mas também a partir do modo como lançam seus tentáculos em
direção à vida ordinária. Pensando nesse segundo sentido, encontramos no
esforço descritivo de Mahmood uma linguagem política para tratar daquilo
que sentiram os muçulmanos que viveram os ataques à imagem do profeta
como injúrias voltadas diretamente a eles mesmos, uma vez que a relação
entre essas pessoas e a imagem caracteriza‑se pela mútua constituição. A
relação dos devotos com Muhammad é uma forma de “habitar o mundo,
corporal e eticamente” (Mahmood, neste volume) vivida não como manda‑
mento, mas como virtude, como similitude. Assim, blasfemar a imagem do
profeta é blasfemar uma figura de imanência, uma relação de copresença.
Mahmood explica esse vínculo ao ícone a partir da noção de schesis de Aris‑
tóteles, que qualifica uma relação com a figura autoral do Profeta por meio
de um sentido de intimidade e desejo, um trabalho de amor, e não como
resposta a uma compulsão da lei. No texto que nos foi sugerido comentar
é possível perceber a relevância política e ética atribuída ao trabalho do
amor, mas não é possível através dele perceber possibilidades concretas de
reconhecimento dessa virtude em seus próprios termos cosmológicos, o
que culmina na crítica elaborada pela autora às sensibilidades seculares e
seu controle das formas de expressão da religiosidade.
Reafirmar o apelo à transformação das sensibilidades feito por Mahmood
requer, para além da identificação de práticas virtuosas, insistir que ainda há
muito por dizer sobre o que é viver com aqueles de quem não conseguimos
ou não podemos nos afastar completamente, mesmo que nos causem dor. O
chamado que estamos fazendo é o de voltarmos nossas descrições aos sabores,
cores e custos do que é viver com quem estamos em profundo “desacordo”
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ou mesmo nos ameaça. O Brasil de 2019 é um exemplo poderoso para
pensar a este respeito. Quantos de nós nos indignamos com a atuação e as
ideologias da família que está no poder, bem como com os múltiplos sujeitos
que, unidos a eles rizomaticamente, atuam em estados e municípios, em
ministérios, secretarias e afins. Quantos são os que enunciam frases taxa‑
tivas, estilo: “tenho nojo desses evangélicos” e “odeio o pentecostalismo”?
Por sua vez, quantos deles acusam qualquer posição ou opinião nossa como
gesto de “comunista”, de pessoas “do mal”, de “petralha” que quer acabar
com o “pouco que resta do Brasil”? O que vivemos agora é a experiência
palpável do Grande Divisor, a redução provocada pelo teatro realista do
nós contra eles, a sensação de que existe uma diferença inegociável, de
que estamos vivendo numa luta do bem contra o mal. Nesse horizonte, se
existem diferenças entre ser evangélico ou pentecostal, tanto faz, botamos
tudo no mesmo saco com a maior tranquilidade. Se somos de centro, de
esquerda ou simplesmente contrários às políticas do governo atual, tanto
faz, porque segundo o ângulo de observação dos nossos opositores podemos
representar uma ameaça de grande potencial. Facilmente nos convertemos,
diante dos seus olhos, em uma manifestação do “extremismo secular”, e nós,
certamente, ao assistirmos os efeitos dos seus programas de extermínio de
tudo aquilo em que acreditamos em termos de educação, saúde, emprego,
gênero, corrupção, sexualidade, segurança e qualidade de vida, entre outros,
nos sentimos interpelados por “extremistas religiosos”.
E, assim, a guerra começa — se não no plano do corpo a corpo como
de fato é vivido enfaticamente pelas minorias de classe, raça/etnia, gênero/
sexualidade nas cidades e nas zonas rurais do país — no terreno da linguagem.
Injuriamos, ofendemos, humilhamos. Ou, então, utilizamos as gramáticas
da paródia como resposta sempre possível àquilo que representa um risco
social (McClintock, 2010).
Esse é um lado da moeda, a experiência sensorial de um cotidiano que
nos empurra a tomar atitudes e a acionar pensamentos que obscurecem a
possibilidade de respondermos de modo otimista a pergunta: que mundo é
possível compartilhar? Sugerimos pensar que esse é o cotidiano dos eventos
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críticos. Com essa expressão fazemos referência à rotinização dos aconte‑
cimentos políticos que nos apavoram e nos governam através das frases de
efeito, das notícias alarmantes, das incitações constantes ao medo, da perda
real e imaginada de um futuro outrora enunciado. Paralelamente, vivemos
em um outro cotidiano, aquele relativo às relações de vizinhança e intimi‑
dade, e é este cotidiano que, por vezes, desafia o grande divisor e nos faz
questionar nossas sensibilidades frente ao outro. O que ameaça o cotidiano
das relações de vizinhança, intimidade ou proximidade é a hipermetropia
mútua, a incapacidade de enxergar ao outro de perto, ou a nossa incompe‑
tência para visualizar que o vizinho evangélico, aquele que ajudou a eleger
o presidente, talvez não te queira morto, mesmo que você seja uma bicha
preta. Poderíamos dar inúmeros exemplos e emaranhar mais ainda a questão
indagando como, entre os progressistas, há também racismo. Como entre os
gays, há bolsonarismo. Ou como, entre os pentecostais, há micropolíticas de
solidariedade racial e as igrejas podem ser também espaços relevantes para o
empoderamento feminino. Enfim, o que queremos dizer com isto é apenas
que é a esse cotidiano das relações de contiguidade que as nossas sensibi‑
lidades afetivas e éticas se voltam para fazer um mundo possível, mesmo
em meio aos grandes divisores que nos constituem — nesse cotidiano dos
eventos críticos — e que, aparentemente, não estamos dispostos a abdicar.
Quando Veena Das (2018) propôs observarmos as “texturas da vida”
— expressão que lembra aquela usada por Lambek (2015), “tonalidades da
vida” —, ela pensava que nenhum cotidiano se oferece ao conhecimento
de modo direto, já que as coisas de todos os dias comportam opacidade e
anunciam a sua presença, mais ou menos como o tempo que, não sendo
palpável, exibe a si mesmo a partir do trabalho que efetua nos corpos e nas
paisagens. Porque o cotidiano precisa ser imaginado, isto é, não existe como
fato empírico dado, as modalidades de imaginação do mesmo apontam para
os diferentes modos como a intimidade pode ser descrita, e não só ela. Isso é
particularmente interessante porque acentua que as texturas assumidas pelo
ordinário são múltiplas e que a imaginação antropológica constrói e limita
o que chama de hábito, espécie de sensibilidade encorporada e repetitiva.
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Acreditamos que o esforço de desnaturalização do hábito é parte necessária
da tarefa de entender como, onde, quando, por quê e em quais circuns‑
tâncias estamos dispostos ou não a atender aos mais variados chamados do
outro, dos nossos vizinhos que hoje já não são quem uma vez foram para a
gente. Se há criatividade vinculada às pequenas transformações do hábito,
aos deslocamentos infinitesimais do comportamento, o próprio cotidiano
guarda algo misterioso e certa volatilidade em sua superfície. O que as pessoas
fazem para não deixar que os seus desapontamentos se tornem a totalidade
da vida? Pergunta‑se Das (2018). Como o mundo comum é ameaçado,
desfeito e reparado, sem que sejam apagadas as memórias doloridas do que
foi vivido junto?
VIVER JUNTOS NA QUEBRA: POR UMA ÉTICA
ABAIXO-COMUM
No ensaio que originou este comentário, Mahmood levanta outra
questão que queremos destacar: a do tratamento racista que recebe o povo
muçulmano na Europa e a da negação secular deste mesmo tratamento, sob
o argumento de que a religião não é biologia e que, não sendo biologia, não
teria nada a ver com raça. A religião, sob esse ângulo, seria um assunto de
escolha pessoal. Se Mahmood reteve esta última colocação sobre a escolha
para a elaboração de sua crítica, nós queremos reter a ideia da racialização
da diferença, e ao redor disto discorrer para finalizar este breve texto.
A pergunta que nos move diz respeito às derivas daqueles para os quais
a reparação do cotidiano não é uma possibilidade real. O que é o comum
para as pessoas que tiveram o seu cotidiano tornado crítico em sua intei‑
reza? Quais são as formas de compartilhar um mesmo mundo quando as
possibilidades de futuro de uns estão radicalmente mais ameaçadas que as
de outros?
Em Sobre el terrorismo suicida (On suicide bombing), Talal Asad (2008) se
pergunta: Por que o Ocidente responde aos atentados suicidas com um horror
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Everton Rangel, María Elvira Díaz-Benítez
excepcional, mas não manifesta a mesma emoção diante das crueldades das
ditaduras, das democracias, dos sistemas penais e carcerários, das políticas
de imigração, das limpezas étnicas, das torturas e das guerras imperiais? Os
motivos para o ato suicida são, segundo suposições liberais, atribuídos às
subjetividades religiosas islâmicas através de ideias como as de “martírio” e
“sacrifício”; que se assemelham a ideários cristãos sobre o “tornar‑se sagrado”
e, como explica o autor, são elementos do imaginário político do naciona‑
lismo moderno (Asad, 2008, p. 68). Encontrar uma explicação pela via da
religião, aludindo a elementos psicológicos, a tradições familiares e signos
culturais, é fundamental para os discursos sobre a proteção da civilização
contra a barbárie. Isso parece uma saída mais simples do que aceitar que, se
o capitalismo industrial é a condição volátil sob a qual as liberdades Ocidentais
têm sido construídas, defendidas e outorgadas ao mundo, [...] porque o Estado
soberano moderno possui um direito absoluto a defender‑se e essa defesa pode
comportar, legitimamente, a utilização de armas nucleares, a guerra suicida,
com incalculáveis consequências planetárias, existe, no mundo liberal, como
uma possibilidade legítima. (Asad, 2008, p. 77).
O que está em jogo, concordam Asad e Mahmood, são sensibilidades
que separam o que é digno de dor ou de ser visto com horror, daquilo que
não é, e a criação de justificativas para a perpetuação dessas visões. Assim, o
mundo que conhecemos está habitado por uma enormidade de contingentes
humanos relegados à linha da sobrevivência e obrigados a viver com outros
contingentes que os desejam mortos. Falamos de sujeitos e nações unidas à
vida por uma dívida impagável. Essa noção, dívida, tem sido desenvolvida
pela antropóloga Denise Ferreira da Silva (2017), e por Stefano Harney e
Fred Moten (2013) em relação ao sujeito negro e à experiência da colonização
que se reatualiza em diversos atos necropolíticos. Está presente também na
obra de Octavia Butler, Kindred (2019), que nos lembra, evocando Fanon,
o quanto o corpo dos sobreviventes é sempre um corpo amputado. O
problema da descolonização, nos lembra Achille Mbembe (2019), é que ela
acontece mantendo os dispositivos mentais que legitimaram a sua domi‑
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nação, perpetuação esta que impede os povos africanos e afrodescendentes
de “sair da grande noite”. Essas estruturas racistas de pensamento, percepção
e comportamento “[...] recomeçam a aparecer hoje em dia no contexto das
controvérsias sobre o Islã, o uso do véu ou da burca, a questão dos banlieues,
da imigração e da identidade” (Mbembe, 2019, p. 251). Sabemos que não é
possível descolonizar sem desracializar. Mbembe chama esse movimento de
percepção legitimante da dominação e da divisão hierárquica da diferença
humana de o princípio de raça:
[S]ob vários aspectos, nosso mundo continua a ser, mesmo que não o queira
admitir, um ‘mundo de raças’. O significante racial ainda é, em larga medida,
a linguagem incontornável, mesmo que por vezes negada, da narrativa de si
mesmos e do mundo, da relação com o outro, com a memória e com o poder.
(Mbembe, 2018, p. 106).
Quais estratégias são possíveis para os corpos unidos simbolicamente
pelo princípio de raça? Mahmood (2005) entende que habitar a norma é
uma forma de agência para além da prerrogativa — liberal — da resistência.
Outras éticas entendem que a norma é aquilo que historicamente tem
criado seres quebrantados e que mais do que resistir à norma ou habitá‑la,
é necessário não reconhecê‑la. Estaríamos entrando no âmbito de uma ética
abaixo-comum, que, como Harvey e Moten (2013) descrevem, seria aquela
que se constrói a partir de uma quebra (que é fratura, e simultaneamente,
dívida) para a qual não existe reparação. Produto da governança — isto é,
a instituição dos modos de governo da branquitude ou dos modos com
que a racialização foi instituída como política e transformada em poder
—, a quebra se perpetua porque a violência da pretitude é inseparável da
própria governança.
A essas violências, os abaixo-comuns respondem com a técnica fugitiva.
O fugitivo abaixo‑comum é aquele que nada tem, apenas a materialidade de
sua própria vida, aquele que foi expropriado inclusive de uma humanidade
que não consegue alcançar. Sua fuga não restaura a ordem, mas anuncia
uma violência cíclica que persiste. E enquanto o racismo existir e o corpo
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racializado continuar a significar uma propriedade para o capitalismo,
haverá o movimento de fuga. Nessa fuga, o abaixo-comum entende que o
mundo implica um trauma, e reconhece sua vida expropriada em outra
vida expropriada que é negra, mas também indígena (e que, se unidos pelo
princípio de raça, pode ser palestina, pobre, LGBT...).
A vida na quebra supõe desde aí se construir algo novo que não parta
da procura pelo reconhecimento da branquitude, mas do derrubamento
dessa estrutura de reconhecimento que afirma a supremacia. Que não parta
de uma oposição à norma, mas de “habitar esse afora indômito para além
das estruturas que habitamos e que nos habitam” (Halberstam, 2013, p. 7),
significa rechaçar aquilo que tem sido negado e aquilo que tem sido oferecido.
Barreiras incomensuráveis? A essa pergunta a ética abaixo-comum respon‑
deria que habitar a quebra em conjunto deverá possibilitar novas formas
de imaginação, e que são necessárias coalizões em que aquele que ostenta
o poder abra mão não apenas de seu poder, mas do ponto de vista no qual
esse poder faz sentido.
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a flecha do tempo. São Paulo: Oficina de Imaginação Política, 2017.
STRATHERN, Marilyn. No limite de uma certa linguagem. Mana, Rio
de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 157‑175, out. 1999.
Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 79-90, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99734
SIGNOS INJURIOSOS: SABA MAHMOOD,
OS CARTUNS DINAMARQUESES E O DEBATE
SOBRE IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS
Daniel do Nascimento e Silva1
Resumo: Este artigo retoma o argumento de Saba Mahmood em seu emblemático
texto, “Razão religiosa e afeto secular: uma barreira incomensurável?”, publicado em
português em Debates do NER. O objetivo de meu texto é aprofundar a discussão
sobre ideologias linguísticas proposta por Mahmood no contexto da onda de violência
que aconteceu depois da publicação, em 2005, de uma série de charges injuriosas
sobre Muhammad e muçulmanos devotos. Crenças sobre a linguagem arraigadas
na tradição do cristianismo protestante — que dão suporte ao que chamo de
ideologia semiótica secular — desempenharam um papel central na desconsideração
dos efeitos performativos das imagens e no apagamento da dor moral sentida por
muitos muçulmanos. Aprofundo no artigo as raízes calvinistas dessa ideologia
semiótica secular, sistematizada por Ferdinand Saussure e o contexto calvinista
em que ele viveu. Contrastando a visão de Saussure com a de seu contemporâneo
Peirce, aponto para o apagamento da dimensão corpórea e reflexiva do uso da
linguagem, e para a necessidade de crítica desse aspecto, que faz parte da dimensão
pouco problematizada do universo secular em que críticas à religião tendem a
ganhar corpo.
Palavras-chave: Cartuns Dinamarqueses; Ideologias Linguísticas; Ideologias
Semióticas; Saussure; Saba Mahmood.
INJURIOUS SIGNS: SABA MAHMOOD, THE DANISH CARTOONS,
AND THE DEBATE ON LANGUAGE IDEOLOGIES
Abstract: This article revisits Saba Mahmood’s argument in “Secular reason and
secular affect: an incommensurable divide?”, published in Portuguese in Debates
do NER. My aim is to parse the Mahmood’s discussion on linguistic ideologies
1
Docente na Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Brasil. E-mail:
dnsfortal@gmail.com.
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Daniel do Nascimento e Silva
in the aftermath of the violent uprisings following the injurious Danish cartoons
about Mohammed and devout Muslims, first published in 2005. Some beliefs
about language embedded in the Protestant tradition — which give support to
what I call secular semiotic ideology — played a pivotal role in the dismissal of the
performative effects of the images and in the erasure of the moral pain felt by many
Muslims. I spell out the Calvinist roots of this ideology, which was systematized by
Ferdinand Saussure in his Calvinist intellectual milieu. While contrasting Saussure’s
vision and that of his contemporary, Peirce, I call attention to the erasure of the
embodied and reflexive dimension of language use, as well as to the necessity of
critique of this operation — a layer that is relatively unproblematized in the secular
sphere where critiques of religion tend to be shaped.
Keywords: Danish Cartoons; Language Ideologies; Semiotic Ideologies; Saussure;
Saba Mahmood.
Em 2009, Saba Mahmood publicou, na revista Critical Inquiry, o
emblemático artigo “Religious reason and secular affect: an incomensurable
divide?”. O texto é republicado nesta edição da revista Debates do NER,
como “Razão religiosa e afeto secular: uma barreira incomensurável?”,
traduzido por mim e revisado por Bruno Reinhardt. Nesse artigo, Mahmood
aborda a polêmica em torno de uma série de cartuns abordando o profeta
Muhammad que foram publicados no jornal dinamarquês Jyllands-Posten
em 2005. Reunidas em uma página inteira do jornal e intituladas Muhammeds ansigt, ou A face de Muhammad, as caricaturas representam o Profeta
de várias formas, algumas delas nitidamente feitas para ofender sensibilidades islâmicas; uma das figuras mostra o Profeta com uma bomba em seu
turbante. A série foi republicada por outros jornais europeus e causou furor
no mundo. Os protestos que se seguiram só não aconteceram na América
Latina (Klausen, 2009). Aproximadamente 200 pessoas morreram, metade
delas na Nigéria.
Em 2008, depois de a polícia dinamarquesa revelar um plano delineado
por três homens para matar o cartunista Kurt Westergaard — um dos doze
artistas que caricaturaram Muhammad —, o Jyllands-Posten, outros jornais
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dinamarqueses e outros periódicos ao redor do mundo republicaram o
cartum de Muhammad com uma bomba no turbante. Novos protestos
emergiram. Um carro-bomba explodiu na frente da Embaixada da Dinamarca no Paquistão, matando oito pessoas.
A violência presente em alguns dos protestos — muitos deles foram
pacíficos, como aponta Mahmood — serviu de justificativa para outros
tipos de caricaturas, por assim dizer, de ordem discursiva: por exemplo, o
argumento de que crentes muçulmanos, mesmo aqueles que reagiram de
forma silenciosa, se sentiram feridos com as imagens do Profeta devido à
sua incapacidade de entender o valor e o funcionamento da liberdade de
expressão; de que esses crentes confundiram a chacota a Muhammad com
um ataque ao islã como religião ou aos muçulmanos como grupo; de que
os ofendidos teriam se rendido muito facilmente à injunção islâmica de que
não se deve desenhar a face do Profeta, uma vez que há diversas imagens
de Muhammad no registro histórico; e de que os fiéis estariam, de forma
problemática, confundindo espaço privado e público ao deixar assuntos
religiosos dominar esse último espaço. Stanley Fish, escrevendo sobre a
violência que eclodiu no Oriente Médio em 2012, após a publicação de um
“filme” caricatural sobre o islã chamado A inocência dos muçulmanos, resume
muito bem a suposta incapacidade (ou má vontade) de fiéis muçulmanos
entenderem o valor e as consequências da liberdade de expressão2. Fish (2012)
aponta que o princípio secular-liberal de organização do Estado, formulado por pioneiros como John Locke, pressupõe “indivíduos bifurcados”,
isto é, pessoas que vivem sua fé em âmbito privado e abrem mão de suas
preferências religiosas na esfera pública em nome de um bem comum. A 1.ª
2
Stanley Fish já havia escrito artigo no The New York Times em 2006, comentando sobre
os cartuns dinamarqueses. Em “Razão religiosa e afeto secular”, Saba Mahmood aponta
os problemas de sua visão, sobretudo de que o liberalismo é “anêmico” em suas reivindicações morais, em oposição às crenças morais fortes dos muçulmanos devotos (ver
Mahmood, 2009, p. 841, 845; Mahmood, neste volume). Trago em meu comentário
os argumentos de Fish em resposta ao “filme” A inocência dos muçulmanos, de 2012,
porque há uma certa continuidade nas visões desse e de outros comentadores liberais.
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Daniel do Nascimento e Silva
Emenda à Constituição Americana, segundo ele, protege essa distinção entre
público e privado, podendo ser resumida com o dizer: “Eu odeio e rejeito
o que você diz, mas irei defender até a morte seu direito de dizê-lo”. Ou
seja, no universo privado, eu odeio o que você diz, mas admito, em nome
da civilidade no espaço público, que você diga tudo o que quer dizer. Essa
bifurcação estaria impedida na racionalidade islâmica. Continua Fish (2012):
Não preciso dizer que aqueles que protestaram na Líbia e no Egito não
diriam isso [a frase-síntese da 1ª Emenda] – talvez não porque não entendam
a Primeira Emenda ou a barreira que deve separar religião da vida civil ou a
distinção entre a identidade de uma pessoa como cidadão e como crente ou a
diferença entre palavras e pancadas, mas porque eles rejeitam todos esses quatro
pontos e, de fato, os consideram maus. Para eles, uma religião que confine a
si mesma ao coração e à capela, e seja assim exercitada intermitentemente no
decorrer do cotidiano, não é religião.
Em “Razão religiosa e afeto secular” (2009), Mahmood problematiza
a suposta incomensurabilidade entre os dois princípios de circulação de
discursos na sociedade — o islâmico, que seria fundado em sensibilidades
religiosas, e o secular-liberal, supostamente fundado apenas em sensibilidades laicas. A autora inicia por dar nuance a esses dois blocos, que estão
longe de ser dicotômicos ou homogêneos. No contexto de estudos sobre as
relações entre secularismo e religião, Mahmood aponta, de partida, que o
secularismo não é uma instância que se separa da religião, mas um modo de
“rearticulação da religião de uma maneira que é comensurável com sensibilidades e formas de governo modernas” (neste volume). Historicamente, na
medida em que o secularismo passou a regular “lei, o aparato de estado, a
produção de conhecimento e as relações econômicas no mundo moderno”,
ele também passou a afetar “concepções, ideais, práticas e instituições da
vida religiosa” (neste volume). As formas de racionalidade que se formaram
nesses dois campos, assim, se informam mutuamente e têm variadas formas
de intersecção histórica — de forma que a incomensurabilidade apontada por
Fish se torna insustentável. O próprio secularismo é formado no interior de
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uma sensibilidade religiosa, a do Cristianismo Protestante, que influenciou
a racionalidade política conhecida como liberalismo e o próprio capitalismo
(Weber, 2004; Asad, 2003).
Neste texto, escrevo de um lugar específico e pretendo demonstrar como
o trabalho de crítica produzido por Mahmood, ao longo de sua carreira,
pode contribuir para estender o horizonte analítico desse lugar. O lugar de
que falo é o da linguística que se interessa pelo conhecimento comparativo e
situado produzido pela antropologia. Por meio da etnografia, a antropologia
tem permitido um descentramento importante de suposições caras ao lugar
de fala do/a analista. A etnografia realizada por Mahmood (2005) entre
mulheres do revivalismo islâmico no Egito é um exemplo desse trabalho
de autocrítica. O movimento de mulheres que a autora observou resiste à
secularização do Egito e à erosão da sensibilidade religiosa que elas veem
como “o espírito do Islã” (Mahmood, 2005, p. 43). Elas fazem parte de um
movimento conservador que não busca subverter normas ou questionar
dominação, aos moldes de formas de resistência como as descritas por Butler
(1993, 1997) em seu modelo de ressignificação. Mahmood reconhece o
mal-estar que as posições do revivalismo islâmico produzem na crítica liberal
ocidental, especialmente nela mesma, que foi durante sua vida participante
do feminismo progressista. No entanto, Mahmood preferiu encarar a repugnância que o revivalismo causava nela e produziu uma crítica etnográfica que
“examinasse os elementos e sensibilidades constitutivos que compõem esse
desconforto” (2005, p. 38). Ao procurar entender as formas de agência que
emergiam no aprendizado de normas de piedade pelas fiéis do movimento,
Mahmood comparativamente endereçou as próprias normatividades do
feminismo que ela vivenciou no ocidente. A crítica, aponta a autora,
é mais poderosa quando deixa aberta a possibilidade de que possamos também
ser refeitos no processo de nos engajarmos com a visão de mundo do outro,
de podermos passar a aprender coisas que não sabíamos antes de iniciar a
empreitada. Isso requer que ocasionalmente viremos o olhar crítico para nós
mesmos, para deixar aberta a possibilidade de nos refazer no encontro com
o outro. (Mahmood, 2005, p. 36-37).
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Assim, a seguir, lanço o olhar para a potência do pensamento de
Mahmood não apenas para entender questões de injúria verbal, afeto e
desigualdade política no local que não presenciou os protestos que afetaram
o campo etnográfico da autora, mas também na disciplina que não foi proeminente em seu trabalho — a linguística — mas que faz parte do projeto
epistêmico liberal-secular que ela procurou problematizar em “Razão religiosa e afeto secular” e em sua profícua produção intelectual. No que segue,
situo a reflexão da autora no debate mais amplo das ideologias linguísticas,
de forma a apontar a importância etnográfica do conceito e o lugar das
racionalizações sobre práticas de leitura seculares e religiosas na tradição
linguística do ocidente; em seguida, revisito alguns trabalhos contemporâneos
no campo das ideologias linguísticas (Gal; Irvine, 2019; Keane, 2018), para
chamar atenção à atualidade do pensamento de Saba Mahmood e a alguns
caminhos futuros que podem ser nela inspirados.
IDEOLOGIAS LINGUÍSTICAS, IDEOLOGIAS SEMIÓTICAS
Gostaria de comentar um artigo de opinião recente, redigido pela
jornalista Mariliz Pereira Jorge e publicado em sua coluna na Folha de S.
Paulo, em 18/04/2019. O breve texto é prototípico das concepções de
linguagem e corpo inspiradas pela tradição norte-americana de liberdade
de expressão e que têm ampla circulação no Brasil. De forma ampla, essas
concepções — tratadas por Saba Mahmood como uma ideologia semiótica,
como detalharei adiante — tiveram um papel preponderante no modo como
sensibilidades da minoria islâmica na Europa foram enquadradas no debate
em torno dos cartuns dinamarqueses.
Intitulado Pelo direito de ofender, o texto de Mariliz Jorge (2019) se
inicia com o resumo de um caso de ofensa nos EUA. Uma motorista, Debra
L. Cruise-Gulyas, processou um policial por este ter aumentado sua multa
por infração no trânsito. O motivo do acréscimo ao valor da multa foi a
irritação do policial com o gesto que a motorista fez ao sair do local: ela
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lhe mostrou o dedo do meio. A decisão judicial, pautada na 1.ª Emenda
à Constituição norte-americana, garantiu a Cruise-Gulyas o direito de se
expressar ofensivamente.
A jornalista então aplica sua racionalização sobre o caso a contextos
jurídicos diferentes, como o do Brasil e da França. Além disso, Mariliz Jorge
coloca em paralelo o policial norte-americano e a deputada Maria do Rosário,
que foi ofendida por Jair Bolsonaro, em 2003 e 2014, ocasiões em que o
então deputado disse que só não a estupraria por ela não ter mérito para isso:
Um policial pode ser ofendido? Não deveria, mas pode. Uma deputada pode
ser xingada? Não deveria, mas pode. Não porque mereçam, mas porque as
pessoas devem ser livres, inclusive para bancar o idiota. E também porque
ser ofendido é ônus inerente a cargos públicos em qualquer lugar civilizado
— talvez não seja nosso caso. (Jorge, 2019).
Como falei, embora a lei criminal em relação à fala seja diferente nos
EUA e no Brasil, a jornalista equipara os dois contextos legais. Ao contrário
dos Estados Unidos, o Brasil criminaliza o discurso de ódio: segundo o artigo
5 da Constituição Federal de 1988, o Brasil tipifica o crime de discriminação,
que é onde o crime de racismo direcionado a um grupo pode ser enquadrado;
o artigo 50 do Código Penal Brasileiro tipifica o crime de injúria verbal,
que é quando um ato de fala racista (ou outro ato injurioso) é direcionado
a um indivíduo em vez de uma coletividade (ver Santos Allen, 2017). Meu
ponto aqui não é propriamente enfatizar as inconsistências nessa equiparação de tradições legais e discursivas distintas, mas sim chamar atenção
para a força da tradição secular da liberdade de expressão, uma ideologia
semiótica que atribui a palavras e imagens uma função representacional
em vez de corpórea e afetiva. Antes de investir na crítica de Mahmood a
essa tradição, cumpre relatar que, em seguida, Mariliz Pereira Jorge, como
que ecoando Stanley Fish e a doutrina lockeana por ele citada, atribui o
sentimento de ofensa à interioridade e subjetividade dos indivíduos, e não
ao plano público da política:
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Daniel do Nascimento e Silva
Ofensa é subjetivo. Podemos fazer uma lista do que cada um considera
insulto. Se organizar direitinho, censuramos todo mundo. Um leitor, por
exemplo, incomodou-se que escrevi merda e zona em textos recentes. Mandou
cartinha para o jornal. Os assassinos dos cartunistas do Charlie Hebdo não
gostavam das piadas com religião. A linha que separa uma reclamação de um
processo ou de uma chacina fica cada vez mais tênue, pois há ofendidos de
sobra. (Jorge, 2019).
Mais uma vez, reforço que a jornalista, talvez pelo pequeno espaço de
sua coluna, aproxima tradições legais e casos de ofensa e violência bastante
distintos. Todos os casos citados têm muitas camadas; a violência de alguns
deles, como o atentado terrorista em 2015 ao Charlie Hebdo, que deixou
doze pessoas mortas em sua redação, exigem uma análise que seja capaz de
especificar e distinguir histórias de injúria, racismo e milícias armadas. A
jornalista, no entanto, prefere agrupar esses casos díspares, bem como seus
efeitos. A culpa, no final das contas, é dos ofendidos, e não de processos de
discriminação e desigualdade mais amplos: “A linha que separa uma reclamação de um processo ou de uma chacina fica cada vez mais tênue, pois há
ofendidos de sobra.” (Jorge, 2019).
Em “Razão religiosa e afeto secular”, Saba Mahmood busca as origens
da ideologia semiótica que dá fundamento aos comentários da jornalista
brasileira e a uma porção das críticas à dor moral sentida por fieis muçulmanos
com as caricaturas ao Profeta. Acredito que uma nota sobre o conceito de
ideologia semiótica/linguística será importante para situar melhor o gesto de
Mahmood no contexto de sua crítica etnográfica ao secularismo e a teorias
dominantes sobre a linguagem no ocidente. Webb Keane, o autor em que
Mahmood (2009, neste volume) se baseia na discussão sobre ideologias
semióticas, propõe em artigo recente que uma ideologia semiótica diz respeito
“às concepções subjacentes das pessoas sobre o que são signos, a quais funções
os signos servem e a que consequências eles podem produzir” (Keane, 2018,
p. 64). O conceito mais amplo de ideologias semióticas é inspirado no
conceito mais particular de ideologias linguísticas, proposto por Michael
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Silverstein, que as definiu como “quaisquer conjuntos de crenças sobre a
língua (ou linguagem) articuladas pelos usuários como uma racionalização
ou justificação de estruturas e uso da língua percebidas” (1979, p. 193).
Keane (2018, p. 64) aponta que Silverstein deu uma grande contribuição
à teoria social — e não apenas à antropologia linguística — com seu gesto
pioneiro de “revitalizar o conceito de ideologia”. O conceito de ideologias
linguísticas ou semióticas, de fato, é de fundamental interesse etnográfico
na medida em que toma as crenças sobre o que são os signos não como
falsa consciência ou como desvio de uma compreensão mais científica,
mas como formulações sobre linguagem e seus usuários que são situadas,
vinculantes, interessadas e contestáveis — como qualquer ideologia. Gal e
Irvine (2019, p. 13) propõem que falar de ideologia pressupõe um sentido
de “diferença, posicionamento e perspectiva”. Ideologia também se conecta
facilmente com relações de poder e regimes de valor. Ideologias, além de
tudo, são sempre contestáveis.
A tradição das ideologias linguísticas ou semióticas, na antropologia
linguística norte-americana, tem uma clara filiação ao trabalho do semioticista
Charles Sanders Peirce. As razões para o recurso ao trabalho de Peirce são
várias — desde o próprio interesse de Jakobson, orientador de Silverstein,
pelo pensamento de Peirce, passando pela tradição semiótica da Universidade
de Chicago até o trabalho etnográfico de Richard Parmentier (1994). Mas eu
gostaria de reter aqui um aspecto fundamental, que se vincula diretamente
à crítica a Saussure feita por Mahmood em “Razão religiosa e afeto secular”.
Trata-se da importância que Peirce atribuiu à figura do “interpretante”, um
dos elementos da primeira tríade semiótica que o lógico norte-americano
propôs. Segundo essa primeira tríade, todo signo pressupõe a conexão entre
um representamen (algo que significa alguma coisa diferente de si próprio,
um signo), um objeto (algo a que o signo se refere) e um interpretante (uma
operação mental ou processo de tradução). Em outras palavras, para Peirce,
“um signo não funciona como signo a menos que seja interpretado como
um signo” (Peirce, MS 59, p. 32 apud Keane, 2018, p. 64). Um processo
reflexivo está sempre em questão quando interpretamos signos. Comparando
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 91-110, ago./dez. 2019
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Daniel do Nascimento e Silva
esse modelo tricotômico ao modelo dicotômico de Saussure, que ecoa a
velha distinção teológica entre corpo e alma (Lahud, 1977), a proposta de
Peirce, por assim dizer, possui um componente fundamental com o qual o
paradigma das ideologias linguísticas operam — a noção de que os usuários
estão a todo momento ativando um “interpretante” para interpretar signos
como coisas que significam e não como meros panos de fundo. John Joseph
(2012), que escreveu uma importante biografia de Saussure, apontou que,
no contexto intelectual da Universidade de Genebra, Saussure, no fim do
século XIX, se tornou amigo de Théodore Flournoy, que lhe apresentou a
teoria dos signos de Peirce. Embora Joseph aponte que seja difícil estipular
o quanto Saussure ficou sabendo sobre essa teoria, o Curso de Linguística
Geral tem uma referência ao termo “símbolo” (1998, p. 82), que Peirce
utilizou para se referir aos signos convencionais. No Curso, Saussure fala
que prefere utilizar a palavra signo para falar dos signos convencionais
(símbolos) de Peirce.
Saba Mahmood chama atenção para o fato de a ideologia semiótica
que Saussure tão bem sistematizou — segundo a qual linguagem e mundo
material são esferas distintas — ter conexões profundas com a globalização
do Cristianismo Protestante nos séculos XVIII e XIX. A suposta confusão
categorial dos fieis muçulmanos atuais — que confundiriam a representação
pictórica do Profeta (as caricaturas) com o Profeta como figura de imanência
(o objeto representado) — seria a mesma que acometia os nativos dos territórios a serem evangelizados, os quais
atribuíam a agência divina a signos materiais, [...] muitas vezes consideravam
objetos materiais (e sua troca) como uma extensão ontológica de si mesmos
(dissolvendo assim a distinção entre pessoas e coisas), e [entendiam que]
práticas linguísticas não denotavam simplesmente a realidade, mas também
ajudavam a criá-la (como no uso da fala ritual para invocar espíritos ancestrais
ou presença divina). (Mahmood, neste volume).
Como bem sabemos, em seus cursos em Genebra no início do século
XX, Saussure ensinou que o signo é uma unidade dual que está arbitraDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 91-110, ago./dez. 2019
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riamente — mas não necessária nem naturalmente — ligada àquilo que
representa. Embora Saussure diga em vários momentos de seus cursos que
a “língua é uma forma e não uma substância”, a “desmaterialização” do
signo linguístico é evidente no Curso de Linguística Geral, a obra póstuma
compilada por seus alunos3. A certa altura do capítulo A natureza do signo
linguístico, Saussure insiste na natureza psíquica (mas não necessariamente
material) dos dois componentes do signo:
O signo linguístico não une uma coisa e uma palavra, mas um conceito e uma
imagem acústica. Esta não é o som material, coisa puramente física, mas a
impressão psíquica desse som, a representação que dele nos dá o testemunho
de nossos sentidos; tal imagem é sensorial e, se chegarmos a chamá-la “material”,
é somente neste sentido, e por oposição ao outro termo da associação, o conceito,
geralmente mais abstrato. (Saussure, 1998, p. 80, grifo nosso).
Abraham Kuyper, um importante calvinista do século XIX, escreveu
que a verdadeira salvação não estava nas palavras ou em outras formas
sensíveis, mas no Logos de Deus, no espaço imaterial que é instanciado
pelas palavras, mas não se confunde com elas (Keane, 2007, p. 64). Para
Kuyper, o Logos de Deus, “tal como expresso nas escrituras, é diferente das
suas palavras faladas” (Keane, p. 2007, 64). As palavras divinas, escreveu
Kuyper, “indicam meramente a psique do pensamento, independente de
sua vestimenta somática na língua e no som” (1898, p. 477 apud Keane,
2007, p. 64).
As formulações sobre linguagem neste capítulo de Saussure e nos comentários de Kuyper são bastante próximas. Keane aponta que é importante
3
Judith Irvine (1989, p. 248) escreveu: “[T]alvez um dos legados mais duráveis do Curso
de Linguística Geral de Saussure foi sua radical separação do signo denotacional (como
signo) do mundo material. Essa concepção do signo tem perdurado não apenas devido
à eficácia da própria formulação de Saussure, mas provavelmente também porque ela era
coerente com ideias de longa data na tradição intelectual do ocidente – especialmente
a separação entre mente e corpo.”
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levar em conta que Saussure viveu em Genebra, uma cidade onde Calvino
teve grande influência. “Pode-se especular”, diz Keane, “que a despeito dos
séculos que os separavam, os ensinamentos básicos e os pressupostos não
falados do calvinismo eram parte do mundo estabelecido em que Saussure
foi criado” (2007, p. 65). Desde o século XVI, quando Calvino viveu, o
calvinismo foi bastante influente em Genebra, até bem depois de 1907,
quando o Estado e a igreja oficialmente se separaram na República de Genebra
(Joseph, 2012). Um antepassado de Saussure, Antoine, foi amigo de Calvino;
durante todos esses séculos, sua família foi protestante. Seguindo a mesma
direção de Keane, John Joseph aponta que foi nesse ambiente intelectual
que Saussure desenvolveu seu pensamento. Ele ressalva que, obviamente,
o legado e ambiente intelectual [calvinista genebrino] não determinaram seu
pensamento ou as escolhas que ele fez em vida, mas oferecem muitas pistas
para entender suas prioridades e inclinações, o que ele assumiu como senso
comum e quais obstáculos internos o impediram de completar tantos projetos
por ele iniciados. (Joseph, 2012, p. 7).
Na ideologia linguística que é sistematizada no Curso de Linguística
Geral, a língua é “exterior ao indivíduo [...]; ela não existe senão em virtude
duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade”
(Saussure, 1998, p. 22). A essa esfera “intangível” e “exterior” se opõe o
lado executor da língua — a fala —, que “é sempre individual” e da qual “o
indivíduo é sempre senhor” (p. 21). Perceba-se que as palavras de Saussure de
certa forma explicam os termos do problema na ofensa no artigo de Mariliz
Jorge (2019): haveria, segundo ela, um acordo sobre a livre expressão das
ideias na sociedade, o qual os indivíduos, sozinhos, não podem modificar
(trata-se, em países como os EUA, de uma emenda à constituição), restando-lhes disciplinar seu mundo interior. “Ofensa é subjetivo”, diz a articulista.
Reagir com violência indica uma incapacidade de ler os termos exteriores
e públicos do contrato a que se deve aceder.
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Saba Mahmood chama atenção para o peso que a visão contratual dessa
ideologia linguística secular teve na crítica à dor moral dos fiéis muçulmanos:
É esta mesma visão que parece informar os apelos bem intencionados para
que os muçulmanos deixem de levar tão a sério imagens como as dos cartuns
dinamarqueses, para perceberem que a imagem (de Muhammad) não pode
produzir nenhuma injúria real, dado que sua verdadeira localização está no
interior do fiel individual e não no mundo inconstante dos símbolos e signos
materiais. (Mahmood, neste volume).
Segundo a sistematização de Saussure, os fiéis seriam senhores da fala, da
capacidade interior de interpretar e reagir aos signos. Segundo Mahmood, seria
a correta interpretação desse contrato e o disciplinamento dessa capacidade
interior que, na crítica secular-liberal, estavam em questão: “A esperança
de que uma prática de leitura correta possa produzir sujeitos complacentes
depende crucialmente, em outras palavras, de um acordo prévio sobre o
que deve ser a religião no mundo moderno.” (Mahmood, neste volume).
Embora distantes um século, a sistematização de Saussure da doutrina
linguística do signo e a crítica secular à ofensa sentida por muçulmanos no
episódio dos cartuns insistiram na divisão entre esferas pública e privada
(ou, para Saussure, entre língua e fala, e, para os críticos liberais, entre
práticas de leituras seculares como foro público e práticas religiosas como
foro íntimo). Ambas deixaram de lado, nos termos de Mahmood, aspectos
relevantes invocados por aqueles que se sentiram feridos com as imagens.
Perguntou a autora: quais são “as condições de inteligibilidade que tornam
certos argumentos morais legíveis e outros inaudíveis?” (Mahmood, neste
volume). Mais especificamente, em vista do compromisso da ideologia
linguística liberal com práticas de leitura desencarnadas ou imateriais,
Mahmood perguntou por que a chamada “dor religiosa” dos fiéis islâmicos
“permaneceu opaca, senão incompreensível” nos debates que se seguiram
aos incidentes na década passada (Mahmood, neste volume)? A seguir,
ofereço algumas hipóteses adicionais para essa insensibilidade à dor moral
e religiosa naquele debate.
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Daniel do Nascimento e Silva
VISÕES TOTALIZANTES
Susan Gal e Judith Irvine (2019, p. 21) explicam que ideologias linguísticas são “visões totalizantes” e, por isso, tendem a ignorar ou transformar
“elementos que não podem ser vistos como encaixados no esquema ideológico”.
Elas acrescentam que o apagamento “na representação ideológica não significa,
no entanto, uma erradicação do elemento estranho, cuja existência mesma
pode ter sido não observada ou não percebida” (p. 21). Em “Razão religiosa
e afeto secular”, Saba Mahmood aponta para diversos fatores que foram
apagados no debate sobre os cartuns. Um deles diz respeito ao fato de que as
invocações de ideologias semióticas seculares terem desconsiderado, em larga
medida, que vários países da Europa ainda possuem artigos sobre blasfêmia
em seus sistemas legais, mas, na prática, apenas religiões majoritárias têm sido
protegidas nos debates jurídicos sobre imagens e palavras ofensivas. Dentre
os países que ainda possuem leis de blasfêmia, estão: Áustria, Dinamarca,
Alemanha, Grécia, Islândia, Finlândia, Holanda, Espanha, Itália, Suíça e o
Reino Unido (Mahmood, neste volume). Além disso, como na constituição
brasileira, o Tribunal Europeu de Direitos Humanos limita a liberdade de
expressão, com base em possíveis ameaças ao funcionamento das sociedades
democráticas. A Comissão Europeia de Direitos Humanos (CEDH), por
exemplo, pode oferecer sanções à liberdade de expressão em função do
interesse da segurança nacional, integridade territorial ou segurança pública,
para a prevenção da desordem ou do crime, para a proteção da saúde ou da
moral, para a proteção da reputação ou dos direitos de terceiros, para impedir
a divulgação de informações recebidas a título confidencial ou para manter
a autoridade e a imparcialidade do poder judicial. (Artigo 10(2) da CEDH
apud Mahmood, neste volume).
Embora na Europa o discurso do ódio tenda a ser criminalizado com
base nesse artigo, as limitações legais à liberdade de expressão têm a propensão
de acomodar as sensibilidades religiosas majoritárias. As tentativas legais da
minoria islâmica de impedir a circulação dos cartuns dinamarqueses simplesDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 91-110, ago./dez. 2019
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mente não foram atendidas pelas cortes de direitos humanos. Mahmood
aponta que essa forma de silenciamento da escuta à dor moral de minorias
religiosas como a dos muçulmanos na Europa é um “pressuposto constitutivo” das leis que regulam a livre expressão no continente. As invocações
de racismo nos cartuns e a dor moral que deles resultou seriam, nos termos
de Gal e Irvine (2019, p. 21), parte da operação de apagamento que toda
ideologia linguística opera.
Para além do lado jurídico, outro elemento que tendeu a ser apagado
nas construções ideológicas do debate sobre os cartuns foi a força performativa das imagens. Nos termos de Mahmood, aquilo que estou chamando,
de forma um tanto genérica, de ideologia semiótica secular deu ênfase ao
caráter contratualista, referencialista e descorporificado das leituras corretas
das imagens. Os efeitos somáticos das imagens nos muçulmanos — uma
forma de resposta a uma acumulação de histórias de racismo que não se
reduzem àquele evento — foram em grande medida desconsiderados no
debate. Mahmood, por exemplo, critica o teórico do direito András Sajó,
que defendeu que os cartuns dinamarqueses, em vez de caricaturas racistas,
eram críticas à ameaça terrorista do Islã fundamentalista. Na visão dele
e de outros comentadores liberais, Mahmood (neste volume) aponta, o
“aspecto performativo dos cartuns dinamarqueses é sacrificado em favor
de seu conteúdo informativo, pintando-os como pouco mais do que um
discurso referencial.”
Acho importante enfatizar esse caráter seletivo da ideologia semiótica
secular — pelo menos do tipo de seletividade que operou no debate sobre
os cartuns muçulmanos e em outros eventos em que caricaturas injuriosas
a Muhammad foram novamente realizadas. Em “Razão religiosa e afeto
secular”, Mahmood contrapõe as propensões contratualistas, referencialistas e descorporificadas das práticas de leitura seculares com o modelo
aristotélico de schesis, que pressupõe formas de coabitação e relacionalidade
corpórea na interpretação dos signos. A autora defende que uma boa forma
de abordar o tipo de relacionamento entre muçulmanos devotos e a figura
exemplar de Muhammad é pelo caminho da noção schesis e de algumas de
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 91-110, ago./dez. 2019
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Daniel do Nascimento e Silva
suas reinterpretações ao longo da história (ver Mahmood, neste volume).
Nas palavras de Mahmood, schesis na doutrina artistotélica “capta um sentido
de habitação encorporada [embodied] e proximidade íntima que imbui tal
relação. Seu mais próximo cognato em grego é hexis e, em latim, habitus,
ambos sugerindo uma condição corporal ou temperamento que sustenta uma
modalidade particular de relação.” (Mahmood, neste volume). Mahmood
aponta que essa forma de coabitação e relação corpórea tem sido cultivada
em várias partes do Islã. Ela própria, em pesquisa de campo no Egito, entrevistou vários sujeitos que invocaram uma relação de conexão corpórea com
o Profeta que foi violada pelos cartuns dinamarqueses.
Talvez seja importante aqui o ponto de Leonardo Schiocchet, neste
volume, de que não necessariamente todos os muçulmanos devotos se
relacionam com o Profeta por meio do modelo de schesis. A partir de sua
etnografia com muçulmanos no Oriente Médio, na América Latina e na
Dinamarca, Schiocchet identificou uma gradação de formas de relacionamento com a figura divina de Muhammad:
Enquanto alguns dos meus interlocutores muçulmanos na Dinamarca (e fora
dela) de fato emulavam o profeta de forma quase que exemplar à narrativa
de Mahmood, outros na prática o veneravam de forma um tanto quanto
semelhante a como muitos católicos veneram santos, ainda que não através
de ícones de barro; enquanto uns tinham Muhammad como uma figura de
imanência, outros o tinham como um exemplo moral de forma mais semelhante a como alguns cristãos se relacionam a Jesus Cristo — quer dizer, como
representativo de valores e virtuosidade. (Schiocchet, este volume).
A própria Mahmood, vale ressaltar, não chega a propor uma universalidade desse modelo semiótico nas tradições islâmicas contemporâneas.
Diz a autora: “Acredito que esta modalidade de relação opera numa série
de tradições de adoração e veneração, coexistindo frequentemente de forma
um tanto tensa com outras ideologias dominantes de percepção e prática
religiosa.” (Mahmood, neste volume). Outras etnografias, como a de Steve
Caton (1990) no Iêmen tribal, de Patrick Eisenlohr (2006) nas Ilhas Maurício
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e de Charles Hirschkind (2006) no Egito, apontam que a performance de
vários gêneros do discurso devocionais atesta essa relação de coabitação.
Caton (1990), por exemplo, argumenta que os poetas do Iêmen, ao saudarem
Muhammad, tornam real aquilo mesmo a que se referem:
Um poeta na balah exclama, “Eu menciono Maomé (tantas vezes quanto)
as estrelas no céu se movam”, e assim constitui a si mesmo como um tipo de
muçulmano fiel. Em outro momento ele pode declarar, “É prazeroso para
mim cantar a balah entre leões e homens”, e assim constitui a audiência que
ele endereçou como pessoas honoráveis. (Caton, 1990, p. 263).
Tornar real aquilo a que se refere — eis a máxima de uma outra ideologia linguística liberal, a que John L. Austin (1962) sistematizou em suas
conferências em Harvard. De forte inclinação aristotélica, a doutrina dos
enunciados performativos — reinterpretados como radicalmente citacionais
e corpóreos por intérpretes como Judith Butler e Jacques Derrida — foi
curiosamente bastante silenciada (Gal e Irvine diriam “apagada”) no debate
sobre os cartuns dinamarqueses.
Nesse sentido, isso que tenho chamado, de forma um tanto genérica, de
ideologia semiótica ou linguística secular — o modelo imaterial, contratual e
descorporificado em que se basearam as críticas liberais à dor moral muçulmana
— tem convivido, historicamente, de forma tensa com modelos corpóreos
e performativos como o de Austin. A história da filosofia da linguagem e da
linguística no ocidente são uma forma de iconização dessa tensão: ao lado de
modelos influentes como o de Saussure na linguística e de teóricos como Paul
Grice na filosofia — ambos investidos em formas contratuais e imateriais de
entender usuários da linguagem —, as duas disciplinas têm convivido com
proponentes de modelos ideológicos corporificados sobre a linguagem como
Judith Butler, Ludwig Wittgenstein e John Austin, que questionam ao longo
de seus trabalhos a suposta exterioridade da língua em relação ao sujeito falante.
O trabalho etnográfico de Saba Mahmood — não só em “Razão religiosa
e afeto secular”, mas em boa parte da ativa produção intelectual durante sua
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vida — é um importante lócus de confrontação desse modelo de significação
desencarnado. Ideologias, apontam Gal e Irvine (2019), são parciais — na
dupla acepção do termo. Por um lado, elas são descrições ou racionalizações
incompletas do campo sociolinguístico; “outra pessoa, vendo o mundo de
outro patamar, perceberia uma figura diferente” (p. 12). Por outro lado,
ideologias são formas de tomar partido; são formas interessadas de observar,
por exemplo, práticas de leitura e formas de relacionalidade com certos
ícones. Nesse sentido, a constante preocupação de Mahmood em historicizar
tradições éticas e interpretativas como o secularismo significou um modo
de engajamento crítico com um conjunto de pressuposições que tendemos
a tomar como dadas no universo secular em que a crítica ocidental tende
a tomar corpo. Um exercício de crítica interessante para uma linguística
antropológica seria historicizar, nos termos de Mahmood, o apagamento de
críticas pioneiras (como a leitura mística do jovem Walter Benjamin (2011)
à visão linguística “burguesa” de Saussure e a crítica marxista de Volóchinov
(2017) ao mesmo linguista) do cânone que viria ser tão influente na produção
da modernidade linguística e de seus intérpretes modernos.
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Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 91-110, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99735
RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR:
UM COMENTÁRIO FEMINISTA
RELIGIOUS REASON AND SECULAR AFFECT:
A FEMINIST COMMENTARY
Fabiana Maizza1
O artigo de Saba Mahmood “Razão religiosa e afeto secular” possui
um ponto central que sustenta, de forma direta ou indireta, todos os outros
argumentos da autora. A ideia de que para os sujeitos não-seculares — aqueles
a que a autora se refere como sujeitos da razão religiosa — o que chamamos
de religião se inscreve em suas falas, seus trejeitos, seu andar, seus corpos,
seus seres, seus cotidianos, suas vidas... Ou seja, está longe de ser algo do
domínio da representação, da escolha ou do exterior do ser. Esta segunda
visão da religião em que algo exterior e fora do sujeito é reflexo, como argumenta a autora (baseando-se em autores como Webb Keane, entre outros/
as), da criação do estado moderno, pautado em termos jurídicos, em leis e
direitos, é algo que foi proporcionado pelo expansivo papel do cristianismo
protestante em sua invenção. O conceito moderno de religião teria nascido
da globalização do cristianismo protestante a partir do movimento missionário colonial, que fornece uma ideologia semiótica em que “ser moderno”
subentende ser capaz de separar objeto e sujeito, significante e significado,
forma e essência. Em outras palavras, o “Estado de direito” contemporâneo,
pelo qual se reivindicam “o direito de expressão”, “a liberdade de expressão”,
entre outras exigências em nome da “liberdade”, é um Estado compatível
com — pois, formado por — uma única leitura possível do que possa ser
religião: algo que transcende o sujeito. Porém, no mundo da razão religiosa
o Profeta Maomé não é apenas um símbolo religioso, mas sim uma maneira
de estar no mundo: uma imanência, uma virtude, um afeto. É nesta aparente
1
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Brasil. E-mail: fabimaizza@hotmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 111-117, ago./dez. 2019
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Fabiana Maizza
incompatibilidade que a autora decide reler os eventos da publicação (e
republicação) de charges satíricas do Profeta em um jornal dinamarquês
em 2005 (e 2008) que ofenderam religiosos muçulmanos no mundo todo
enquanto a grande maioria dos europeus/europeias se confortava na ideia
de que o jornal “tinha o direito” de publicar o que bem entende, pois “a
liberdade de expressão” não pode se “dobrar ao fanatismo religioso” que,
além de “antidemocrático”, seria também perigoso, pois agiria em nome
do “terrorismo”2.
Minha leitura procurará fazer uma analogia entre as questões colocadas pela suposta incomensurabilidade “religioso” versus “secular” com a
discussão sobre mulheres do Islão versus o feminismo liberal e social-marxista — tema que a própria autora aborda em outros trabalhos (Mahmood,
2012). Pretendo, assim, levar a discussão para um tema bastante caro a
Mahmood: o Islão dentro do debate acadêmico feminista. Em seguida,
procurarei evidenciar, pensando com Mahmood e outras autoras feministas,
a contradição de mulheres europeias defenderem o Estado (e seus direitos)
quando o próprio Estado pode ser lido como símbolo da “derrota do sexo
feminino” — para usar as ideias de Engels em seu clássico livro A origem da
Familia, da propriedade privada e do Estado, publicado originalmente em
1884. Fecharei então com a famosa anedota de Virginia Woolf que nos faz
pensar na questão: direito em nome de quem? Em suma, procurarei uma
leitura do texto de Mahmood através de tensionamentos feministas.
A reação das pessoas que se consideram modernas e não religiosas à reação
dos muçulmanos, que se sentiram pessoalmente atacados pelas charges do
jornal dinamarquês, nos leva diretamente ao debate das feministas brancas,
2
O texto de Mahmood foi publicado em 2009, mas em 2015 exatamente a mesma questão e
as mesmas bandeiras se levantam depois do ataque ao jornal francês Charlie Hebdo, quando
dois irmãos militantes religiosos vingam a imagem do Profeta matando 15 funcionários do
periódico em sua sede parisiense. Aqui também e durante anos consecutivos, o hebdomadário teria publicado charges satíricas do Profeta, consideradas mais do que ofensivas por
diversas pessoas da religião muçulmana. Após o ataque, dois movimentos simultâneos e
incompatíveis se formam: “Eu sou Charlie” e “Eu não sou Charlie”.
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RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR: UM COMENTÁRIO FEMINISTA
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heterossexuais, de classe média e burguesas que, a partir de sua posição de
privilégio, se consideram o exemplo de “mulher livre” e feminista a ser seguido
por mulheres mundo afora. Os argumentos trazidos por Mahmood em
“Razão religiosa e afeto secular” se encaixam nesta discussão não por acaso,
pois o posicionamento da autora com relação à religião se sustenta de forma
idêntica quando o debate se volta para o feminismo. Se na leitura secular os
muçulmanos que se sentiram pessoalmente ofendidos não estavam fazendo
a divisão necessária entre sujeito (o estatuto divino atribuído a Maomé) e o
objeto (representações pitorescas de Maomé), no posicionamento dos seguidores de Maomé o Profeta é visto como uma forma de habitar o mundo,
corporalmente e eticamente. O comportamento do Profeta é tido não como
mandamento, mas como virtude, e nesse sentido seus seguidores procuram
emular a forma como ele se vestia, comia, falava, dormia, andava, etc. Da
mesma maneira, para as mulheres do movimento da’wa no Egito — que faz
parte daquilo que ficou conhecido como “renascimento islâmico” — usar
véu e procurar agir de forma “dócil” e “tímida” é uma maneira de adquirir
as virtudes da modéstia e piedade feminina (Mahmood, 2012, p. 16),
necessárias para sentir “felicidade”, “pureza”, “sabedoria” (Mahmood, 2012,
p. 210). Al-hayã, algo que poderíamos traduzir por “ser modesta e agir com
timidez”, é um modo de ser e estar no mundo, particularmente importante
para a plenitude feminina no Islão. Enquanto que para o feminismo liberal
e social-marxista, formado sobretudo por mulheres ocidentais, o uso do véu
e a “agência dócil” são lidos como passividade e seriam a prova do poder
de opressão masculino: as mulheres, enquanto seres subjugados, deveriam
lutar por sua liberdade, recusando, por exemplo, o porte do véu.
É interessante perceber aqui que, de uma forma geral, as feministas
social-marxistas e as liberais, em sua grande parte mulheres brancas de
classe média “ocidentais”, tendem a defender certa liberdade que seria
proporcionada na luta contra a opressão do estado patriarcal. Essa liberdade, como sabemos, se cristaliza em termos de determinados direitos,
tais como direito a um corpo liberto/livre, direito a reprodução, direito
a aborto, direito a creche, direito ao divórcio, direito a liberdade sexual,
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Fabiana Maizza
direito a trabalho fora de casa, direito ao modo de se vestir, entre outros.
O irônico dessas reivindicações é que elas surgem como necessárias devido
à própria modernidade que essas mesmas feministas reivindicam como “a
verdadeira libertação das mulheres”. Isto, pois, foi a própria construção do
Estado moderno que retirou das mulheres o domínio sobre seus corpos,
sobre sua sexualidade, sobre sua reprodução, e as colocou em um domínio
que poderíamos qualificar de “exclusivamente doméstico”. A retomada de
controle sobre esses pontos é agora reivindicada por elas como o mote para
um feminismo universal unificado, em que todas as mulheres do mundo
devem lutar por liberdade e pelo direito de igualdade com os homens — e
contra o sistema patriarcal. No entanto, nem todas as mulheres do mundo
passaram pelo processo de construção do capitalismo, e as que passaram não
o fizeram da mesma maneira que as mulheres brancas europeias.
Silvia Federici, em sua famosa argumentação sobre a inquisição e perseguição das bruxas na Europa, sobretudo na virada do século XVI para o XVII,
dirá que o surgimento do capitalismo e da ciência coincide com a guerra
contra as mulheres. A caça às bruxas procurou destituir o controle que as
mulheres haviam exercido sobre sua função reprodutiva e serviu para preparar
o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor
(Federici, 2017), no qual uma nova divisão sexual do trabalho confina as
mulheres ao trabalho reprodutivo — mas, agora, sem o controle de seus
corpos. A caça às bruxas foi, sob essa perspectiva, o processo bem-sucedido
da eliminação de um saber empírico feminino, relativo a ervas e remédios
curativos, que havia sido acumulado e transmitido de geração a geração
durante centenas de anos. A perseguição à curandeira popular culmina no
surgimento da medicina profissional, que exclui as mulheres da esfera do
conhecimento. Para Federici, a contínua expulsão dos camponeses da terra, a
guerra e o saque em escala global e a degradação das mulheres são condições
necessárias para a existência do capitalismo em qualquer época (Federici,
2017), mas são também as condições que possibilitam o seu surgimento.
Nesse sentido, é a própria invenção do capitalismo que destitui as
mulheres de seus saberes. Capitalismo que hoje é reivindicado pelas mulheres
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RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR: UM COMENTÁRIO FEMINISTA
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brancas como o caminho para a libertação feminina. Como nos explica
Hazel Carby, uma pensadora afro-britânica (Black British), as mulheres
brancas, feministas social-marxistas, reivindicam o trabalho assalariado
dentro do capitalismo industrial de estilo ocidental como a única maneira
de assegurar e aumentar a liberação feminina (Carby, 1997). Carby nos
lembra também que a criação da ciência fez com que práticas relacionadas
ao corpo das mulheres passassem de mãos femininas para mãos masculinas.
No entanto, a ciência é vista como um elemento central para o pensamento
considerado “progressista”, inclusive pelas próprias feministas social-marxistas
e liberais, que encontram na ciência a forma mais reconfortante para pensar
o sistema sexo/gênero — usando o termo forjado por Gayle Rubin (2017)
— longe das práticas que elas consideram reminiscências do período feudal,
ou simplesmente “bárbaras”, tais como “circuncisão feminina”, “clitoridectomia” e outras mutilações do corpo feminino, mas também a poligamia
e casamentos arranjados, que elas relacionam de forma reducionista a falta
de desenvolvimento tecnológico (Carby, 1997). Além disso, as europeias
agem como se a imigração de mulheres para a Grã-Bretanha (e outros países
europeus) possibilitasse às mulheres do mundo a entrada em uma sociedade
mais liberal e com leis e costumes mais “progressistas/iluministas” do que
suas sociedades de origem (Carby, 1997). Carby nos lembra que o contato
de culturas africanas e asiáticas com sociedades brancas em geral não trouxe
uma mudança mais progressista nos sistemas sexo/gênero. Bem pelo contrário,
o colonialismo visou sempre destruir estruturas de parentesco que não se
moldavam em termos da família nuclear, muitas das quais permitiam mais
autonomia e poder às mulheres, como fica claro, por exemplo, se olharmos
as investidas coloniais a diversos povos na África (Carby, 1997).
O livro Três Guinéus, de Virginia Woolf, é uma longa resposta a uma
carta em que seu correspondente lhe perguntava “como fazer para impedir
a guerra” e lhe pedia para assinar um manifesto para “proteger a cultura e a
liberdade intelectual”. Virginia Woolf se recusa a assinar o manifesto, não
porque ela acreditava que a guerra era inevitável, mas porque se recusa a
qualquer lealdade a sua pátria, e pede às mulheres recusarem os ideais defendidos por seus pais e irmãos, “homens cultivados”, que tentam preservar
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Fabiana Maizza
seus mundos. Ela declara: se houver uma guerra, não a faça em nome das
mulheres, “não em nosso nome”, é seu refrão. Essa história foi relatada por
Vincienne Despret e Isabelle Stengers (2011, p. 17-26), que contam também
que, em 2002, esse grito foi reutilizado pelos manifestantes americanos
contra a invasão de Bush ao Iraque; e em 2004 pelas feministas do grupo
nextgenderation, no Dia Internacional das Mulheres (Despret; Stengers, 2011).
As jovens europeias do nextgenderation argumentavam que os colonizadores europeus legitimaram suas leis em nome de “civilizar as colônias” e que
a missão civilizadora era muitas vezes fundamentada em termos de “proteger
as mulheres de suas culturas opressoras e dos homens”. Mas, ao voltarem
para casa, esses mesmos “cavalheiros” eram os maiores oponentes às lutas da
primeira onda do feminismo. No entanto, como bem colocado por Hazel
Carby, as próprias sufragistas tinham muitas vezes atitudes imperialistas com
implicações racistas (Carby, 1997) — e aqui não podemos deixar de pensar
no potente discurso de Sojourner Truth, E não sou uma mulher? O que nos
leva à pergunta: As mulheres muçulmanas precisam ser salvas?, título do livro
de Lila Abu-Lughod (2013), em que a autora argumenta que o vocabulário
ocidental de opressão, escolha e liberdade não é adequado para descrever a
vida das mulheres no Islã. A autora denuncia um tipo de mentalidade que
deseja justificar a interferência estrangeira, incluindo a invasão militar, em
nome de socorrer as mulheres do Islamismo. O que vemos nessas tensões e
idas e vindas na historicidade ocidental é que, apesar de hoje muitas jovens
europeias defenderem a ideia de que políticas anti-imigracionistas, islamofóbicas e etnocêntricas não podem falar em nome da emancipação feminina
(Despret; Stengers, 2011), são justamente essas vozes racistas e colonialistas
que tendem a emergir quando nós, feministas brancas, não desaceleramos o
nosso pensamento — usando o conceito de Stengers.
Voltando ao texto de Mahmood, a questão parece ser que a suposta
incomensurabilidade entre democracia e religião só se sustenta quando
recusamos sistematicamente repensar nossas instituições e a história de suas
criações. Nesse caso, nos apoiamos no pensamento ocidental que exalta a
objetividade, a racionalidade, a coerência, sem perceber que esses adjetivos
são justamente os que qualificam e descrevem aquilo de mais violento para
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RAZÃO RELIGIOSA E AFETO SECULAR: UM COMENTÁRIO FEMINISTA
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outros povos, mas também para as mulheres, no pensamento do homem
branco europeu. Enfim, se a luta contra outros mundos pretende se justificar
por meio da racionalidade e dos “direitos democráticos”, que ela não o faça
em nome de mulheres feministas ou, ao menos, das feministas que se recusam
a assumir a posição eurocentrada e condescendente dos homens brancos.
REFERÊNCIAS
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University Press, 2013.
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sisterhood. In: MIRZA, Heidi Safia (ed.). Black British feminism, a reader.
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font les femmes à la pensée? Paris: Les Empêcheurs de Penser en Rond, 2011.
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
1884.
FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. São Paulo: Elefante, 2017.
MAHMOOD, Saba. Politics of piety: the Islamic revival and the feminist
subject. Princeton: Princeton University Press, 2012.
RUBIN, Gayle. O tráfico de mulheres. In: RUBIN, Gayle. Políticas do sexo.
São Paulo: Ubu Editora, 2017. p. 9-62.
Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 111-117, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.100023
O TEMPO DA CRÍTICA
Eduardo Dullo1
Resumo: O presente comentário ao texto de Saba Mahmood visa trazer para a
discussão a proposta teórica da autora (e também de Talal Asad) que dá sustentação
para a formulação da crítica antropológica. Para tanto, tratarei sua abordagem
antropológica da secularidade a partir de dois pares de conceitos: tradição e
sensibilidade, e tradução e impasse/incomensurabilidade. Terminarei apontando
como a proposta teórica de Mahmood (em sua formulação crítica) está em linha
de continuidade com a tradição antropológica, e que a sua contemporaneidade
deve-se a tensionar as sensibilidade atuais.
Palavras-chave: Saba Mahmood; Talal Asad; Teoria Antropológica; Crítica; Secular.
CRITIQUE’S TIME
Abstract: This commentary to Saba Mahmood’s text aims to discuss how the author’s
(and Talal Asad’s) theoretical position offer a basis for a properly anthropological
critique. To accomplish this goal I highlight the two pair of concepts used in analysing
secularity: tradition and sensibility, and translation and incommensurability/impasse.
The conclusion will suggest that Mahmood’s theoretical proposal (in its critical
aspect) is both a continuity of anthropological tradition and an innovation of it,
this last aspect due to the tensions provoked in current sensibilities.
Keywords: Saba Mahmood; Talal Asad; Anthropological Theory; Critique; Secular.
A nossa capacidade de pensar fora deste conjunto de limitações requer necessariamente o trabalho de crítica, um trabalho que não se assenta nas suas
pretensões putativas de superioridade moral ou epistemológica, mas na sua
1
Professor do Departamento de Antropologia e do PPGAS da UFRGS, Brasil. Editor da
revista Debates do NER. E-mail: eduardo.dullo@ufrgs.br.
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Eduardo Dullo
capacidade de reconhecer e paroquializar seus próprios compromissos afetivos
que contribuem para o problema de várias formas. (Mahmood, neste volume).
O artigo de Saba Mahmood, publicado inicialmente no volume 35,
número 4, da Critical Inquiry de 2009 promoveu uma reflexão sobre o debate
e o embate que se seguiu à publicação das ilustrações em revistas dinamarquesas. Esta reflexão afetou muitos campos e aspectos, como os demais
comentários (sobre Islã, mulheres, raça, injúrias e linguagem) publicados
neste número da Debates do NER permitem entrever, mas não apenas estes.
Desejo neste texto tecer alguns comentários sobre uma questão que não foi
objeto de escrutínio público e que é bastante relevante tanto para a Teoria
Antropológica quanto para a relação com que os intelectuais e acadêmicos se
colocam na cena pública, isto é, a proposta da autora de revisitar a discussão
acerca da crítica e atrelar esta com a tradição antropológica. Ao discutir em
seu artigo a crítica não mais no singular, mas no plural, Mahmood nos leva
a considerar que existem distintas práticas críticas, cada uma possivelmente
atrelada a uma tradição e a um estilo de pensamento. Qual seriam, portanto,
as práticas críticas próprias da tradição antropológica? E de que maneira o
artigo de Mahmood nos permite repensar o que é a antropologia contemporânea se ela se quiser crítica?
Este foco na crítica foi a motivação para um evento (e sua publicação em
livro, em 2009) posterior à publicação do artigo aqui finamente traduzido.
O volume Is critique secular? Blasphemy, injury and free speech é resultado
de um evento organizado por Wendy Brown com a participação de duas
falas: o artigo de Mahmood e o artigo de Talal Asad Free speech, blasphemy,
and secular criticism; ao que se seguiu um diálogo por meio da resposta de
Judith Butler, The sensibility of critique: response to Asad and Mahmood e da
tréplica de Asad e Mahmood. Podemos dizer que, juntamente com o único
artigo de Mahmood já traduzido para o português (pela revista Etnográfica em 2006), em ambos o diálogo com Butler se faz presente e a própria
influência da posição antropológica de Asad e Mahmood em Butler é visível
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O TEMPO DA CRÍTICA
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em inúmeros textos, incluindo o artigo inédito de Butler que publicamos
neste presente volume da revista Debates do NER.
O que faz Mahmood neste artigo? Com quais materiais e dados ela
trabalha para produzir uma reflexão antropológica? O que a torna imersa
em uma tradição antropológica consolidada e, ao mesmo tempo, inovadora
e contemporânea?
Para além da merecida homenagem que prestamos neste número da
Revista, a tradução deste artigo de Mahmood se deve a sua proximidade com
temas e tensões presentes no cenário brasileiro atual. Isto ocorre menos pelo
seu foco no Islã e na dinâmica migratória (ainda que a vinda de imigrantes
muçulmanos africanos para o Brasil tenha aumentado significativamente
nos últimos tempos) e mais ao dedicar-se a repensar antropologicamente o
mundo secular — na continuidade do trabalho de Asad (2003). Para tanto,
a autora recorta um acontecimento específico de intensa controvérsia: a
publicação de ilustrações que representam o profeta Maomé de uma maneira
que gera reações negativas por parte dos muçulmanos. Temos acompanhado,
no Brasil, uma série de eventos que são aproximáveis desta problemática:
sejam eles a censura de exposições de arte e de vídeos em canais no YouTube,
sejam eles disputas políticas entre religiosos cristãos e posições consideradas
não-religiosas ou próprias da laicidade do Estado brasileiro. O crescimento
dos evangélicos, na sociedade e nos cargos representativos no Estado, tem
gerado situações de embate cada vez mais frequentes e visivelmente públicos.
Nessa direção, pesquisadores brasileiros têm se voltado para estes eventos a
partir, sobretudo, do conceito de controvérsia (Giumbelli, 2014; Montero,
2015).
No entanto, a proposta de Mahmood, diferentemente das brasileiras,
não formula um conceito analítico de controvérsia. Montero (2015) expõe
em sua introdução à coletânea (resultado de um projeto coletivo de pesquisa
sobre controvérsias públicas), e em meu capítulo (Dullo, 2015) também
enfatizo a distinção entre (1) o acontecimento de discordância que gera um
embate e (2) a tarefa de pesquisa e análise, a qual envolve uma reflexão sobre
quais dados precisam ser levantados e as maneiras pelas quais as posições
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Eduardo Dullo
são tratadas. Um dos aspectos cruciais nesta diferença analítica, influenciada
pela abordagem pragmatista francesa e, sobretudo, por trabalhos de Luc
Boltanski, é o cuidado com a posição político-moral do pesquisador ao lidar
com um acontecimento que envolve a disputa política de sentidos e significados. Como escrever, falar, em suma, tornar pública a reflexão sem que
isto seja uma simplória tomada de posição naquela disputa, mascarada de
reflexão acadêmica? Como não se tornar uma simples parte nas controvérsias,
dizendo que o lado A ou B está errado, mas produzir uma reflexão que nos
permita compreender a situação? Não se trata de sugerir uma impossível
(e/ou indesejável) neutralidade, mas de valorizar o trabalho intelectual e
acadêmico da pesquisa e da análise, a partir da qual posições embasadas
poderão ser tomadas por qualquer um dos muitos lados das disputas.
Já defendi anteriormente (Dullo, 2016) que determinados recortes de
pesquisa são mais interessantes do que outros, pois nos obrigam a repensar
nossas práticas intelectuais e os efeitos políticos delas derivados. A análise de
controvérsias, como foi feita pelos autores acima mencionados, nos convida
a isto pelo simples fato de ser a análise de uma relação. Não se trata de um
recorte no qual o pesquisador vá descrever um determinado ponto de vista,
demonstrando compreensivamente, de perto e de dentro, o que pensam
aquelas pessoas. Por melhor que este trabalho possa ser feito, tal recorte não
tem como foco a relação de dissenso (variando em seu grau de conflito) entre
múltiplos pontos de vista — incluindo aí o do pesquisador, que aparece
como sujeito num plano de imanência e não como um observador externo
e transcendente. Por isso sugeri (Dullo, 2016) que o trabalho da crítica é
com frequência dirigido àqueles sujeitos sociais com os quais o pesquisador
está em discordância política e/ou moral. O pesquisador critica, portanto,
aqueles que não é epistemologicamente capaz de levar a sério. Em contrapartida, tornou-se uma dificuldade para a Antropologia contemporânea
assumir uma postura crítica com aqueles que ela busca “levar a sério”. Eis
uma das muitas questões que o texto de Mahmood nos convida a pensar:
qual a posição de uma antropologia que se pretende crítica?
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O TEMPO DA CRÍTICA
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ANTROPOLOGIA DO SECULAR/ISMO
Ao deslocar o eixo de uma alteridade radical para uma antropologia
at home, temos visto nas últimas três décadas um aumento significativo de
pesquisas que se voltam para aspectos considerados “centrais” da experiência
e forma de vida dos países Euro-americanos. Isto inclui, por exemplo, o
Estado e o mundo jurídico; a ciência e a tecnologia; e por fim, o secular. Este
último aspecto é concebido por Asad como uma episteme e, portanto, como
englobante aos exemplos anteriores do Direito e da Ciência. Ao distinguir
conceitualmente secular, secularismo e secularidade (ver Dullo, 2012), os
domínios da pesquisa são também mais ou menos elásticos. Uma antropologia do secularismo volta-se, prioritariamente, para as maneiras pelas quais
são atualizados os projetos e práticas político-ideológicas de sustentação da
secularidade e da episteme secular, ao passo que uma pesquisa sobre esta
episteme pode ocorrer tendo como objeto a Ciência ou o Direito ao travar
relações com seu Outro constitutivo, a Religião. A proposta de Mahmood é,
assim, caudatária da proposta de Asad ao não tomar nenhum destes termos
como previamente e substancialmente determinados: são conceitos relacionais e produzidos discursiva e historicamente a partir de relações de poder
e efeitos de verdade. Para investigar o secular/ismo, sugeriu Asad (2003),
devemos proceder por desvios e de maneiras indiretas, isto é, fazendo uso
das alteridades que circundam esta centralidade da experiência Euro-americana at home. A dificuldade de encarar diretamente esta centralidade fica
evidente na pergunta do título do artigo de Charles Hirschkind (2017):
Existe um corpo secular? O que faz Mahmood, portanto, é lançar mão de
dois pares de conceitos que a permitem estruturar a argumentação. Por um
lado, os conceitos de tradição e sensibilidade. Por outro, os de tradução e
incomensurabilidade/impasse.
Em um texto publicado em 2015 na mesma Critical Inquiry (posterior ao
texto de Mahmood, portanto), Talal Asad (2017) revisou seu entendimento
e abordagem de alguns conceitos, entre eles o de tradição. Proveniente da
tradição britânica e marcado por um diálogo com autores franceses como
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Eduardo Dullo
Dumont, Bourdieu e Foucault, Asad não faz uso do conceito antropológico
de Cultura. Diferentemente de Bourdieu, que formulou detalhadamente
o que entendia por habitus, campo e capital (entre outros conceitos), Asad
apenas tardiamente apresentou a maneira pela qual fez sua abordagem.
Entre seus alunos e colegas, entretanto, estas ideias circulavam em aulas e
diálogos, razão pela qual tanto o texto de Hirschkind acima citado quanto
os de Mahmood, são caudatários dessa abordagem. Partindo de um diálogo
com MacIntyre, Asad2 afirma que utilizou o conceito de duas maneiras em
seus trabalhos:
[P]rimeiramente, como um espaço teórico para levantar questões sobre a
autoridade, o tempo, o uso da linguagem e a corporização; e, em segundo
lugar, como um arranjo empírico no qual a materialidade e a discursividade
estão conectadas por meio das particularidades da vida quotidiana. (Asad,
2017, p. 347-348).
O central para Asad é, assim como na proposta de Bourdieu, rejeitar as
dualidades que estruturaram o conhecimento social até meados do século
XX, isto é, entre representações e práticas, entre subjetivo e objetivo, entre
reprodução e mudança. Assim, o conceito de “tradição enfatiza a aprendizagem crítica corporizada, ao invés da teorização abstrata”, de forma que
ele utiliza o conceito “para falar tanto do uso da linguagem herdada quanto
da aquisição de capacidades incorporadas pela repetição” (Asad, 2017, p. 348).
Esta ênfase em uma aprendizagem crítica corporizada difere de muitas abordagens sobre cultura na medida em que tanto o corpo quanto a crítica são
percebidas como constitutivas dessas experiências de vir a ser. Como consequência, ninguém está enclausurado, fechado ou limitado (bounded) em
sua Cultura, mas as pessoas podem aprender, participar, criticar, rejeitar e
deixar uma tradição (inclusive a antropológica). Como ele reforça, “existem
diferentes formas de estar articulado à e desarticulado da tradição”, pois “o
2
Este comentário é propositalmente breve, tendo em vista a redação em curso de um
texto específico sobre Talal Asad.
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O TEMPO DA CRÍTICA
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que é aprendido não é uma doutrina (regras), mas um modo de ser” (Asad,
2017, p. 349). Tanto para Asad quanto para Hirschkind e Mahmood, o
conceito de tradição enceta a preocupação com o sensório e com um modo
de ser, isto é, uma forma de vida corpórea, reunida na ideia de sensibilidade.
Porém, a sensibilidade adquire contornos específicos em cada um deles e,
no caso de Mahmood, vemos no artigo aqui traduzido como esta ligação é
fortemente estabelecida com a linguagem por meio da abordagem da ideologia linguística (ver texto de Daniel Silva, neste volume). A sensibilidade é
não apenas um modo de ser individual, mas uma participação na tradição,
marcando um processo coletivo no qual as pessoas percebem o mundo de
uma determinada maneira. Não se trata de uma (des)conexão entre símbolos,
ícones, corpos e suas subjetividades, mas da observação de que cada tradição
não apenas (des)vincula de uma forma diferente cada uma destas noções,
como neste mesmo processo pode atrelar sentidos completamente distintos a
cada uma delas. É por isto que Asad propõe, tal como faz Mahmood (2009,
neste volume) uma abordagem que faça o contraste e a comparação de tais
feixes de relações internos a cada tradição, partindo ao mesmo tempo (e
com isso rejeitando a dualidade) da sensibilidade tanto no nível sensório
corporal (como em sua análise sobre a tortura e a crueldade, Asad, 2011)
quanto no nível da linguagem escrita e formulada em leis, códigos e livros
(sobretudo os sagrados para cada tradição como o Al Corão, os Padres da
Igreja [Santo Agostinho], e decisões jurídicas).
Este contraste e comparação de duas (ou mais) tradições a partir do seu
feixe de relações e da rede de conceitos na qual se estruturam permitiu que
tanto Asad quanto Mahmood opusessem a tradição liberal secular à tradição
islâmica. A controvérsia que Mahmood analisa neste artigo, portanto, é
resultado deste entrar em relação das duas tradições em suas diferenças constitutivas — o que, por sua vez, traz à tona o dissenso e o conflito estabelecido
por este mal entendido entre as sensibilidades próprias de cada tradição. A
questão de fundo é a mesma que estruturou a tradição britânica da qual Asad
(ver 1986) é fruto: a da tradução entre diferentes modos de pensar (modes of
thought). Para Asad e Mahmood, entretanto, esta tradução ocorre entre modos
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Eduardo Dullo
de pensar e de sentir, ou melhor na intraduzibilidade imediata das tradições e
suas sensibilidades. Esta dificuldade de tradução ocorre aqui não mais entre um
antropólogo britânico e os nativos das colônias, mas numa relação triangular:
entre antropólogos não-europeus (ambos ligados ao Paquistão), cidadãos
de democracias liberais seculares euro-americanas e a tradição islâmica (seja
interna a estes países, seja na figura de imigrantes). O contraponto entre a
tradição liberal secular e a tradição islâmica enceta a incomensurabilidade da
tradução. O que faz a pesquisadora é compreender que as partes do conflito
não se compreendem3 e traçar as razões para este impasse.
O TEMPO DA CRÍTICA
O artigo de Mahmood apresenta uma potente digressão sobre a crítica
no espaço destinado às Conclusões. Quero chamar atenção para este fato
por considerar que suas conclusões são justamente sobre a difícil tarefa da
crítica por parte do pesquisador que encara um impasse ou uma situação de
incomensurabilidade na tradução entre diferentes sensibilidades e tradições.
Considero, também, que suas conclusões chamam atenção para uma multiplicação da crítica — não mais singular, restrita à tradição do Esclarecimento
moderno europeu, mas abrindo para a possibilidade de pensarmos distintas
práticas críticas, internas à cada tradição e condizente com distintos estilos
de pensamento.
Koselleck (1999) já havia feito a história do desenvolvimento do conceito
de crítica na modernidade européia apontando para como esta “arte de julgar”
consistiu desde o início em “levar a cabo uma distinção” (p. 93). A trajetória
deste conceito é marcada pela autoconfiança da “razão” na busca pela verdade
bem como pela sua suposta condição apolítica, na qual coloca-se acima dos
partidos. Ao longo dos séculos XVII e XVIII, mostra-nos Koselleck (1999),
3
A proximidade desta problemática com o trabalho de Sahlins (1990) e Viveiros de
Castro (2019) não é mera coincidência. Infelizmente não será possível explorar aqui
importantes diferenças entre eles.
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O TEMPO DA CRÍTICA
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o desenvolvimento deste sentido de crítica se fez por meio de uma visão de
mundo dualista, que opunha inicialmente razão e revelação e, posteriormente, ampliou-se para Estado e Igreja e política e religião, de tal modo que
religião e revelação não tem nada em comum com a razão. Desse modo, Bayle
traçou uma delimitação que facilitou à época seguinte submeter a religião e a
revelação à crítica e, em seguinte, passar à crítica da existência das igrejas em
geral. Por um lado, a atividade judicativa da razão repousava nessa delimitação
da religião; por outro, traçava essa distinção para criticar a própria religião.
(Koselleck, 1999, p. 98).
Separada entre um julgamento no interior do sujeito, no âmbito privado,
em Bayle a crítica ainda delimitava um campo próprio, apolítico, o da moral,
contrapondo-se à religião. É assim que Mahmood nos leva a questionar:
Na medida em que a tradição da teoria crítica está impregnada de uma
suspeita, se não de rejeição, dos compromissos metafísicos e epistemológicos
da religião, cabe-nos pensar “criticamente” sobre esta rejeição: como é que a
epistemologia e a crítica estão relacionadas dentro desta tradição? Será que
tradições distintas de crítica requerem uma epistemologia particular e um
pressuposto ontológico do sujeito? (Mahmood, neste volume).
Em compensação, neste momento inicial a crítica ainda se submetia
ao Estado. Esta posição mudou com os Iluministas, e, em particular, com
Voltaire, quando ela se amplia para tornar-se uma crítica política inclusive
ao Estado, ainda que se pretenda acima das disputas partidárias pela sua
característica crucial de busca da verdade:
[O]s prós e contras da crítica, que conduzia um processo apolítico no seio da
república das letras, tornaram-se, efetivamente, um processo entre o reino da
crítica e a autoridade do Estado. Neste processo, os críticos eram ao mesmo
tempo os acusadores, a mais alta instância de julgamento e uma das partes.
(Koselleck, 1999, p. 101).
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Eduardo Dullo
O trabalho de Mahmood, na medida em que explicita que o conflito não
ocorre entre uma sociedade (Euro-americana) que detém a verdade racional
(secular) e uma população religiosa (muçulmana) que não compreende a
liberdade de expressão e o caráter de sátira contida nas ilustrações, mas
reformula criticamente esta controvérsia como a falta de compreensão mútua
entre duas tradições com ideologias linguísticas próprias, ela paroquializa a
tradição liberal, moderna e secular Euro-americana dominante como uma
tradição de crítica dentre outras, expondo suas contradições internas. Por
exemplo, a própria aporia de uma crítica política que se pretende apolítica
e reivindica para si mesma o papel de acusadora, juíza e parte do processo
político. O mais curioso, podemos dizer, é que Mahmood faz este movimento reivindicando para a Antropologia (e para si) uma atitude crítica. É
importante enfatizar o uma atitude crítica para explicitar que a Antropologia pretende-se em um lugar distinto da tradição crítica Euro-americana
traçada por Koselleck. Porém, antes de chegarmos neste ponto, é necessário
compreender a proposta de uma atitude crítica e como ela pode ser concebida como uma prática da virtude, isto é, como parte das práticas éticas de
cultivo de si (Mahmood, neste volume).
Este movimento, sugiro, é caudatário da proposta de Foucault sobre “o
que é a crítica?”, na qual ele define a crítica como uma atitude que estabelece
“uma certa relação com o que existe, com o que se conhece, com o que se faz,
uma relação para com a sociedade, para com a cultura, para com os outros
também”, de maneira que “a crítica existe somente em relação a outra coisa
que ela mesma: é instrumento, meio para um devir ou uma verdade que ela
não saberá nem será, ela é um olhar sobre um domínio que quer policiar e
não é capaz de fazer a lei” (Foucault, 2000, p. 170). Assim, a atitude crítica
é uma relação que se coloca como instrumento para policiar um domínio no
qual não se pode fazer a Lei, isto é, o domínio das normas (e, por conseguinte,
da moral, como havia pontuado Koselleck). Não é por menos que o texto
de Mahmood dedica-se tanto às injúrias morais quanto ao jurídico-legal,
pois permite demonstrar como as relações de poder se jogam em ambos os
domínios e entre os domínios, seja como crítica racional seja como legalidade
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democrática da maioria (daí suas incursões sobre a questão da maioria e
minoria). Parte do exercício de poder se faz justamente no silenciamento
desta dimensão das normas em detrimento da Lei como o único domínio a
ser observado, ou seja, o exercício de poder da tradição dominante consiste,
também, em silenciar as críticas que são levantadas contra ele:
Para qualquer pessoa interessada em promover uma melhor compreensão
no espectro de diferença religiosa, seria importante recorrer não à lei, mas à
textura espessa e às tradições de normas éticas e intersubjetivas que proveem
o substrato para os argumentos legais (consagrados na linguagem da ordem
pública). Neste ensaio, sugeri várias razões pelas quais a ideia de injúria
moral que analisei permaneceu invisível e inaudível no debate público sobre
os cartuns dinamarqueses, centrais entre elas a incapacidade de tradução
através de diferentes normas semióticas e éticas [...]. Em última análise, eu
diria que o futuro da minoria muçulmana na Europa depende não tanto de
como a lei pode ser expandida para acomodar suas preocupações, mas de uma
transformação mais ampla nas sensibilidades culturais e éticas da maioria da
população judaico-cristã, que sustentam a lei. (Mahmood, neste volume).
Ao pontuar que a “ancoragem histórica” da crítica Europeia se fez
“historicamente bíblica”, “essencialmente jurídica” e na crítica à autoridade
em nome da verdade, Foucault afirma que “o foco da crítica é essencialmente
o grupo de relações que amarram um ao outro, ou uns aos outros, o poder,
a verdade e o sujeito” (Foucault, 2000, p. 173). O que fez Mahmood em
seu artigo a não ser questionar as limitações que a tradição secular liberal
Euro-americana impôs a este “grupo de relações”?
Reconhecendo a historicidade deste grupo de relações e sua particularidade por meio do contraste com a tradição islâmica, Mahmood fez, também,
uma demonstração da falsa oposição entre assimilação e marginalização
dos muçulmanos em sociedades europeias como as únicas alternativas existentes. Estruturar o campo de possíveis do sujeito é uma das definições que
Foucault (1995) ofereceu para as relações de poder. É crucial para Foucault
(e, penso, para Mahmood) que a crítica seja o olhar relacional sobre um
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outro (que tem a capacidade de fazer aquela Lei), de maneira que a relação
de poder se faz presente, por este lado, como a “arte da não-servidão voluntária, da indocilidade refletida” (Foucault, 2000, p. 172), isto é, como um
contraponto histórico (interno do Esclarecimento europeu) ao processo
de governamentalização da vida. Assim, a crítica aparece como a atitude
daquele que afirma querer “não ser governado dessa forma e a esse preço”
(Foucault, 2000, p. 172), seja essa a atitude das reações muçulmanas a partir
de outro grupo de relações entre o poder a verdade e o sujeito, seja a atitude
da antropóloga que se recusa a aceitar as limitações e opções colocadas para
os muçulmanos (assimilação ou marginalização), demonstrando a ausência
no debate público “[d]a questão da traduzibilidade de práticas e normas
através de diferenças semióticas e éticas” (Mahmood, neste volume). É hora
de retomarmos o trecho utilizado como epígrafe:
A nossa capacidade de pensar fora deste conjunto de limitações requer necessariamente o trabalho de crítica, um trabalho que não se assenta nas suas
pretensões putativas de superioridade moral ou epistemológica, mas na sua
capacidade de reconhecer e paroquializar seus próprios compromissos afetivos
que contribuem para o problema de várias formas. (Mahmood, neste volume).
Mahmood procede um ataque em duas frentes complementares: por
um lado, ela questiona o “não-pensamento em nome do normativo” (Butler,
2015); por outro lado, ela não assume a posição crítica em sua aporia de
apolítica que julga politicamente os demais. A crítica que Mahmood reivindica é própria de uma terceira tradição, a tradição antropológica, sobretudo
em sua vertente pós-colonial, objetivando questionar a universalidade dos
pressupostos epistemológicos Ocidentais e paroquializar seus compromissos
afetivos. O primeiro ataque sugere que “para aqueles de nós interessados em
outras formas de compreender o problema, talvez seja necessário repensar as
estruturas avaliativas envolvidas em tais impasses” (Mahmood, neste volume),
ou seja, cabe à análise perceber que “o enquadramento binário pressupõe
saber tudo o que se precisa saber antes de qualquer investigação efetiva sobre
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 119-134, ago./dez. 2019
O TEMPO DA CRÍTICA
131
essa realidade cultural complexa” (Butler, 2015, p. 206). A atitude crítica
entendida como prática ética do cultivo de si, ou, como colocou Foucault,
é uma virtude do pensamento e da recusa de ser governado por enquadramentos previamente estabelecidos sem que o sujeito exerça o imperativo
de ousar conhecer. Manter-se sob este governo é,
pois, de uma forma de não pensamento, ratificada por um modelo restritivamente normativo, um modelo que necessita de um mapa de realidade capaz
de assegurar um julgamento mesmo que esse mapa seja evidentemente falso.
Na verdade, é uma forma de julgamento que falsifica o mundo com o propósito de reforçar o próprio julgamento moral como sinal de certo privilégio e
de certa ‘perspicácia’ culturais, uma maneira de manter as hordas a distância.
(Butler, 2015, p. 206-207).
O segundo ataque segue desse colocar-se em relação distanciada com
o enquadramento normativo, de olhar ao mesmo tempo de dentro (para
compreender) e de fora (para situá-lo historicamente). É ao colocar-se nesta
relação que reside a atitude crítica, mas a particularidade a ser ressaltada
aqui é como a tradição antropológica nos permite fazer tal movimento.
Mencionei no início que Mahmood (e outros, no Brasil) tem focado nas
controvérsias envolvendo religião e pressupostos seculares. Este foco tem
o mérito de evidenciar a relação entre sujeitos distintos, e o conflito e/ou
desentendimento de seus pressupostos. Porém, quem faz isso é um terceiro,
que também se coloca em relação. A antropóloga, em sua atitude crítica, é
aquela que se coloca propositadamente numa relação de exterioridade com
ambos, ou melhor, coloca-se em relação com a relação estabelecida entre
ambos. Sua empatia e sua crítica é direcionada às duas tradições, suspendendo
temporariamente a ação política com o objetivo de, primeiro, compreender.
É a tradição antropológica da tradução entre diferentes sujeitos que
reaparece aqui transformada: não mais o antropólogo branco euro-americano
secular observando o nativo religioso e/ou mágico das colônias e traduzindo-o para seus pares; é agora uma antropóloga que explicita o impasse e a
incomensurabilidade que dificulta a tradução entre o sujeito secular liberal
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 119-134, ago./dez. 2019
132
Eduardo Dullo
e o sujeito religioso muçulmano, uma antropologia que é eminentemente
comparativa: ela compara “conceitos (representações) entranhados em sociedades diferencialmente localizadas no tempo e no espaço” (Asad, 2003, p. 17,
tradução nossa) ou, quem sabe, compara diferentes ontologias, explicitando
o grupo de relações entre o sujeito, a verdade e o poder. É por isso que o
central no trecho de Asad é sua continuação: “O importante nesta análise
comparativa não é sua origem (ocidental ou não ocidental), mas as formas
de vida que os articulam e os poderes que são permitidos ou impedidos por
eles.” (Asad, 2003, p. 17, tradução nossa). Se, como colocou Viveiros de
Castro (2019, p. 250, grifo do autor), “[c]ontrolar esta comparação tradutiva
entre antropologias é precisamente no que consiste a arte da antropologia”,
o artigo de Mahmood é, ao mesmo tempo, clássico e inovador desta arte
da antropologia.
O último parágrafo de seu texto, por fim, remete tanto para uma defesa
da vida intelectual universitária (que se faz cada vez mais necessária no nosso
momento histórico) quanto para um alargamento disciplinar (veja, por
exemplo, Robbins, 2006) e de diálogo entre tradições (por exemplo, Furani,
2019). Infelizmente ela não estará por aqui para continuar este caminho.
Cabe a nós pensarmos nas rotas e nas maneiras que desenvolveremos de
cultivar esta virtude.
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O TEMPO DA CRÍTICA
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Eduardo Dullo
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Centro-Oeste, Cuiabá, v. 5, n. 10, p. 247-264, 2019.
Recebido em: 29/10/2019
Aprovado em: 29/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 119-134, ago./dez. 2019
DOSSIÊ TEMÁTICO
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99954
PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO
THINKING WITH SABA MAHMOOD: A PRESENTATION
Michael Allan
Bruno Reinhardt1
INTRODUÇÃO: SOBRE AMOR E TRABALHO
Em 28 e 29 de março de 2017, acadêmicos de diversas parte do mundo
se reuniram no Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, Berkeley, para refletir sobre alguns conceitos-chave dos escritos
de Saba Mahmood. O objetivo não era simplesmente responder ao seu
trabalho, mas engajar-se e pensar através dele, e assim conectar diferentes
gerações de estudantes que aprenderam com Saba ao longo de seus anos de
pesquisa e docência. De Politics of Piety a Religious Difference in a Secular
Age, Saba forjou métodos que tocaram o nervo da análise da política, da
história, da religião, do gênero, e da sexualidade. Ela produziu modelos —
em sua produção acadêmica, assim como em seu ensino — comprometidos
com questões candentes para as sensibilidades políticas de nosso tempo e
demonstrou a importância profunda do conhecimento histórico, cultural
e linguístico. Em seus escritos, conceito teóricos emergiram da análise
crítica de disciplinas e práticas situadas no tempo e no espaço, sejam eles
os movimentos sociais do Egito dos anos 1990 ou as tradições jurídicas
Otomanas. O amplo apelo de seus seminários derivava de sua atenção a
campos contemporâneos de investigação e da abordagem crítica que ela
1
Michael Allan é docente do departamento de Literatura Comparativa da Universidade
do Oregon, Estados Unidos. E-mail: mallan@uoregon.edu. Bruno Reinhardt é docente
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Florianópolis, Brasil. E-mail:
bmnreinhardt@gmail.com. Ambos são organizadores do dossiê.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019
138
Michael Allan, Bruno Reinhardt
oferecia, nos desafiando em sala de aula e em conversações pessoais sobre
nossos trabalhos. Em cursos cujos tópicos se estendiam de “Liberalismo e
Secularidade” a “Políticas da Liberdade Religiosa”, de “Diferença pós-colonial na Era Secular” a “Antropologia da Violência e da Esperança”, Saba nos
encorajava a pensar para além das intuições do senso comum e a questionar
os protocolos que asseguram nosso pertencimento a imaginários políticos
específicos. Apesar das diferentes direções para as quais fomos levados, cada
um de nós parece ter internalizado muitos dos compromissos duradouros
que Saba nos ajudou a cultivar.
Como transparece em alguns dos comentários que seguem, Saba tinha
um estilo próprio de relacionar-se com seus estudantes, uma pedagogia
aparentemente contraditória, que aliava crítica e paixão em doses igualmente
intensas. A crítica convencionalmente implica em distanciamento reflexivo,
na submissão das ideias a um frio teste de coerência, um bombardeamento
impessoal dos argumentos em seus fundamentos históricos, etnográficos
e lógicos, representando talvez o momento mais hierárquico e tenso da
relação entre professor e aprendiz. Por sua vez, a paixão caminha na direção
contrária, dissolvendo tal hierarquia e produzindo uma identificação absoluta
entre aqueles que amam o conhecimento mais do que a si mesmos, e que
nesse amor encontram sua vocação e sua política. A veia crítica rigorosa e
amorosa de Saba nos legou não apenas conhecimento, mas também um
modo de aprender a aprender em que distanciamento reflexivo e aproximação
passional não apenas se complementam, mas também sanam suas deficiências. Considerando a centralidade do tema da pedagogia e da exemplaridade
para a antropologia de Saba, pode-se dizer que aqui não apenas professor e
aprendiz, mas também vida e obra se encontraram.
É interessante recordar que, quando Michael Allan e Judith Butler
inicialmente a abordaram com a ideia de reunir diferentes gerações de seus
estudantes, Saba rejeitou qualquer possível celebração de seu trabalho. Ela
queria explicitamente evitar um festschrift, uma comemoração estática de
sua obra, ao invés de um engajamento com a disposição crítica que tanto
valorizava. Mesmo quando o nosso planejamento avançava, seu temor sobre
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019
PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO
139
esse evento permanecia, e ela nos encorajava a imaginar outros formatos de
interação para além de uma conferência convencional. Saba sempre valorizou
as possibilidades que emergem do engajamento criativo e das interações que
surgem em torno da leitura e da reposta coletiva a textos. Abraçamos suas
preocupações e começamos a especular sobre formatos que nos permitiriam
evitar o show de autopromoção das apresentações acadêmicas, em que um
apresentador após o outro publiciza projetos separados. Por fim, Saba estava
convencida de que o evento seria menos uma olhada retrospectiva sobre seu
trabalho acadêmico e mais um tributo prospectivo para as múltiplas direções
tomadas por seus estudantes. E assim foi e acadêmicos do campo da religião,
da política, do gênero, da literatura, da performance e do direito vieram
de diversas partes do globo para pensar em conjunto sobre a sobrevida das
contribuições críticas de Saba.
Durante dois dias em março, reavivamos o estilo de debate e conversação que tanto viemos a valorizar nos seminários de Saba. Tínhamos em
mente um formato que sublinhava a inspiração de sua obra para um amplo
campo de disciplinas acadêmicas, geralmente tomando o secularismo e a
secularidade como um ponto de inflexão para o entendimento crítico da
política, da sociedade e da cultura. Ao invés de termos indivíduos focando
em seu próprios trabalhos, dividimos os participantes em grupos reunidos
em torno de palavras-chave, que orientam a totalidade da obra de Saba. A
finalidade era facilitar o tipo de pensamento coletivo que seus seminários
inspiravam e a atenção que Saba dedicava a conectar estudantes de diversas
gerações, que atenderam seus cursos em Chicago, Harvard e Berkeley. Como
verão a seguir, dividimos os participantes em torno de cinco palavras-chave:
religião e política; minorias; encorporação; ética e hermenêutica. Cada um
dos grupos temáticos se reuniu por duas horas, como uma oportunidade
para dialogar sobre a carreira do conceito que lhe foi atribuído, tanto em seus
trabalhos pessoais quanto no de Saba, e passamos o tempo restante juntos
em uma conversa coletiva facilitada por cada um desses grupos.
Esse dossiê representa apenas uma amostra deste evento original e
reflete o impulso crítico das conversações que travamos. Os vários ensaios
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019
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Michael Allan, Bruno Reinhardt
curtos aqui selecionados visam forjar caminhos e antecipar direções para
investigações futuras, e atestam para um presente de despedida que Saba
nos deixou: um conjunto de amizades e de conexões intelectuais. Se, como
acadêmica, Saba forneceu modelos e métodos através das páginas de seus
escritos, então, como professora, ela nos ofereceu algo além: uma promessa
para o trabalho continuar através das amizades que ela fez possível e a
inspiração que legou para gerações de estudantes. Seja ou não intencional,
esse evento serviu o propósito de conectar muitos de nós, que aprendemos
e nos beneficiamos tão ricamente com Saba. E a nossa esperança é que os
ensaios aqui compilados joguem luz tanto sobre suas contribuições passadas
quanto sobre as direções futuras que seu trabalho possibilitou. Um dos
exemplos que testemunha para o potencial destas contribuições é o ensaio
de Judith Butler, posteriormente adicionado a este dossiê e traduzido por
Letícia Cesarino. Nele, Butler dialoga de maneira criativa com as teses de
Saba sobre secularismo, religião e família no Egito tendo em vista refletir
sobre um problema atual e candente: a popularização global do que chama
de “ideologia anti-gênero”.
Seria negligente ignorar as circunstâncias que cercaram este evento. Era
sabido, na época de nosso encontro, que os dias de Saba estavam contados
e ela estava consciente de que provavelmente não teria outra ocasião de nos
rever pessoalmente. Sendo assim, no último dia do evento, depois da última
conversa em torno das palavras-chave, Saba falou durante uma hora, de
forma a dar fechamento às discussões que antecederam. O que poderia ter
sido uma resposta acadêmica assumiu um tom notadamente distinto. Ela leu
em voz alta uma narrativa em que refletia e rememorava sua conexão com
cada um de nós individualmente, e terminou, como frequentemente fazia,
com um poema de Faiz Ahmad Faiz, “Ku’ch Ishaq Ki’ya Ku’ch Kaam Ki’ya”.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019
PENSANDO COM SABA MAHMOOD: APRESENTAÇÃO
Those were very fortunate people,
Who considered Love an obligation,
Or they just loved their task,
I remained busy all my life,
Loved a little, worked a little,
Sometimes love was a snag in the way
of my work,
While sometimes duty didn’t allow me
to love with passion,
Ultimately I got upset of the situation,
And left both my love and my work
incomplete.
141
Aquelas eram pessoas bem afortunadas,
Que consideravam o Amor uma
obrigação,
Ou eles apenas amavam a sua missão,
Já eu, permaneci ocupado por toda
minha vida,
Amei um pouco, trabalhei um pouco,
Algumas vezes o amor foi um obstáculo
para o meu trabalho,
Enquanto em outras, o dever não
me deixou amar com paixão,
Por fim, eu me cansei daquela situação,
E deixei tanto meu amor quanto
meu trabalho incompletos.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 137-141, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99955
OBITUÁRIO: SABA MAHMOOD — UM TRABALHO
PIONEIRO NA BATALHA DAS IDEIAS1
OBITUARY: SABA MAHMOOD — PIONEERING WORK
IN THE BATTLE OF IDEAS
Judith Butler2
Nascida em Quetta, Paquistão, em 1962, Saba Mahmood imigrou para
os Estados Unidos em 1981 para estudar arquitetura e planejamento urbano
na Universidade de Washington, em Seattle. Ela recebeu seu Ph.D. em
antropologia da Universidade de Stanford, em 1998, e ensinou na Universidade de Chicago antes de se transferir para a Universidade da Califórnia,
Berkeley, em 2004, onde ofereceu seu último seminário em 2017.
Professora Mahmood fez contribuições inovadoras para debates contemporâneos sobre o secularismo, propondo novos modos de se entender a
religião na vida pública e contestando concepções dominantes sobre a
religião e o secular.
Diante das vozes estridentes, que se apressavam a denunciar as sociedades
muçulmanas no contexto pós 11 de setembro, ela trouxe uma compreensão
mais nuançada e educada acerca do Islã para dentro de debates travados nos
campos das teorias feministas, da ética e da política.
Suas publicações e apresentações reverberaram através das Humanidades
e das Ciências Sociais, moldando de forma profunda uma nova geração de
acadêmicos interessados em uma abordagem mais reflexiva e crítica acerca
da religião na modernidade.
1
2
Tradução por Bruno Reinhardt.
Judith Butler é filosofa e teórica do gênero. Seu trabalho tem influenciado a filosofia política, a ética e a terceira onda do feminismo e da teoria literária. Desde 1993, ela ensina na
Universidade da Califórnia, Berkeley, onde é professora no Departamento de Literatura
Comparativa e no Departamento de Teoria Crítica. E-mail: jpbutler@berkeley.edu.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019
144
Judith Butler
Como pesquisadora e professora, ela incorporava e era guiada por fortes
princípios morais e políticos, oferecendo análises agudas sobre o poder colonial e capitalista através de sua abordagem para o secularismo, e formulou
novos modos de se entender temas como o feminismo, a subjetividade
relacional, a liberdade religiosa, a injúria, os direitos das minorias religiosas,
e as legislações seculares e religiosas sobre a família e a sexualidade.
Na companhia dos antropólogos Talal Asad e Charles Hirschkind,
professora Mahmood mostrou que o secularismo é uma formação política
complexa, que produz diferenças entre as tradições religiosas que ele mesmo
visa regular. Em suas palavras, “o secularismo político é o poder soberano
do Estado moderno de reorganizar traços substantivos da vida religiosa,
estipulando o que a religião é ou deve ser, pautando seu conteúdo próprio,
e disseminando subjetividades, enquadramentos éticos e práticas cotidianas
concomitantes” (Mahmood, 2016, p. 3).
O secularismo nunca escapa às sua próprias histórias religiosas, nem
adquire autonomia com relação às formações históricas que ele pretende
regular. De fato, a distinção entre público e privado, central para a razão
secular, funda-se sobre uma ênfase cristã moderna na devoção privada. Esse
enquadramento religioso cristão, focado na crença, contrasta fortemente com
tradições como o Islã, que enfatizam o papel das práticas corporais para a
vida religiosa. Como resultado, ela argumenta, as epistemologias seculares
não podem capturar como o Islã articula valores religiosos, interpretando
erroneamente tanto o sujeito islâmico quanto os significados públicos de
suas práticas.
No campo da teoria feminista, Mahmood desafiou suas leitoras a
entender que as mulheres muçulmanas devotas que estudou no Cairo não
eram sujeitos irrefletidamente obedientes, mas que de fato se engajavam
de forma ativa com uma hermenêutica corânica específica, em escolas por
elas geridas, cultivando práticas religiosas como formas de conduta ética.
Desafiando visões sobre a liberdade subjetiva defendidas pela filosofia
moral Ocidental, ela propõe um argumento corajoso e desafiador: para se
entender a agência feminina no Islã devemos conceber um sujeito moldado
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019
OBITUÁRIO: SABA MAHMOOD — UM TRABALHO PIONEIRO...
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por sua relação com as representações textuais e imagísticas do divino. As
mulheres que abraçam práticas desse tipo, ela argumentou, estão se dedicando a um projeto de cultivo de si.
Em seu último livro, ela estudou a discriminação contra cristãos ortodoxos Coptas no regime secular do Egito contemporâneo. Contra a visão
que afirma que as diferenças tribais e religiosas seriam evidência de um
processo incompleto de secularização, ela mostrou como as diferenças e
conflitos religiosos foram exacerbados por regimes seculares de poder. Longe
de realizar ideais de igualdade cívica e política, o Estado secular facilitou
desigualdades e violências religiosas.
Professora Mahmood foi autora de Religious Difference in a Secular Age:
a Minority Report (Princeton University Press, 2015) e de Politics of Piety:
the Islamic Revival and the Feminist Subject (Princeton University Press,
2005), que ganhou o prestigioso Victoria Schuck Award, da Associação
Americana de Ciências Políticas3. Seu trabalho foi traduzido para o árabe,
francês, persa, português, espanhol, turco e polonês. Professora Mahmood
foi também recipiente de várias honrarias e prêmios, incluindo uma Axel
Springer Fellowship, da Academia Americana em Berlim, e prêmios da
Centre for Advanced Study in the Behavioural Sciences, da Universidade de
Stanford, e do Humanities Research Institute, da Universidade da Califórnia.
Professora Mahmood foi uma pesquisadora brilhante, uma estimada
colega, e uma professora e orientadora dedicada. Além de sua paixão política e análises refinadas, ela era grande apreciadora das belezas naturais, da
poesia de Ghalib, do prazer de cozinhar e compartilhar excelente comida. Ela
cultivava com enorme e alegre atenção suas relações com parentes e amigos.
Ela treinou seus estudantes com cuidado e intensidade notáveis, demandando seu melhor trabalho, ouvindo, respondendo com enorme generosidade,
pensando de forma viva e solicitando que os outros fizessem o mesmo. Em
seus meses finais, ela reafirmava os valores do pensamento livre e do amor,
3
Nota dos editores: Religious Difference ganhou o 2016 Clifford Geertz Prize in the
Anthropology of Religion, da Associação Americana de Antropologia.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019
146
Judith Butler
tendo deixado para trás um vibrante legado que persistirá e florescerá entre
todos aqueles cujas existências foram tocadas por sua vida e obra. Ela deixa
seu marido, Charles Hirschkind, seu filho, Nameer Hirschkind, e seus irmãos
Tariq Mahmood e Khalid Mahmood, que vivem e trabalham no Paquistão.
REFERÊNCIAS
MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report.
Princeton: Princeton University Press, 2016.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 143-146, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99956
RELIGIÃO E POLÍTICA
Noah Salomon1, 2
Se há alguma posição política normativa que fundamenta este livro, ela
seria apelar para que — meus leitores e eu mesma — embarquemos em uma
investigação em que não se assuma que as posições políticas que defendemos
serão vindicadas ou que serão a base para nossa analise teórica, mas que
mantenhamos aberta a possibilidade de endereçar à política uma série de
questões que pareciam asseguradas antes de adentrarmos nesta investigação.
(Mahmood, 2005, p. 39).
Apesar de eu ter lido essas linhas muitas vezes enquanto trabalhava como
assistente de pesquisa durante a produção de Politics of Piety, eu não sabia
quão essencial elas se tornariam para mim quando cheguei a um momento
de crise. Eu fui ao Sudão para estudar o chamado Estado Islâmico. Mas
quando lá cheguei, eu não consegui encontrá-lo nos lugares onde esperava.
O Sudão havia passado por um famoso golpe islamista em 1989, chamado
por seus apoiadores de “A Revolução da Salvação Nacional”. No entanto,
em 2005, quando cheguei ao Sudão, as instituições daquele Estado estavam
sendo reescritas de modo a conformá-lo às demandas de um acordo de
paz prestes a ser assinado, que demandava que este Estado absorvesse os
princípios do multiculturalismo, logo que reconhecesse as grandes parcelas
não-islâmicas da população do país como autores de seu futuro político. Ao
mesmo tempo, a agenda que o Estado havia implementado no período de
islamismo institucionalizado estava presente em toda parte, nas atividades
tanto daqueles que o abraçaram quanto daqueles que, ao criticá-lo, respondiam mesmo assim às muitas questões que ele havia posto. A infraestrutura já
1
2
É professor de Religião e diretor do Centro de Estudos do Oriente Médio do Carleton
College, EUA. E-mail: nsalomon@carleton.edu.
Tradução por Bruno Reinhardt.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019
148
Noah Salomon
havia sido construída e o tráfico fluía sobre ela ativamente. Sua manutenção
de fato também acontecia, através de uma série de projetos menos públicos.
Minha própria noção do Estado e de onde ele estava localizado havia
sido profundamente desestabilizada pela situação em curso. Baseando-me
em narrativas tradicionais sobre o sofrimento do Sudão, eu tinha imaginado
o projeto de um Estado Islâmico que projetava seu poder de cima para baixo
sobre um público. O que eu encontrei, pelo contrário, era um público e
um Estado que eram co-constitutivos (Salomon, 2016). O Estado não era
o Golias distante que eu esperava que fosse, mas uma série de composições
[assemblages] extremamente cotidianas. Com o Estado desmembrado, para
onde eu teria que olhar de modo a encontrar a política?
Esse problema era agravado pelo fato de alguns dos meus interlocutores
engajados no projeto de expandir, retrabalhar ou contestar aquele Estado
rejeitarem o termo “política” (siyasa) como representativo daquilo que eles
faziam. Ao insistir em seu apoliticismo (“não estou fazendo siyasa”) ao
mesmo tempo em que opinavam e interviam nos temas mais “políticos”
do momento (“Eu não me silenciarei”), eles portanto desestabilizavam o
monopólio que o Estado Sudanês pretendia estabelecer sobre a governança
moderna da vida, um monopólio desde sempre construído em bases fracas,
já que fundava sua legitimidade no Islã, uma tradição representada por
múltiplas vozes, que pretendiam falar em seu nome. Esses interlocutores
sugeriam um campo de ação que era a um só tempo político e difícil de
capturar através de abordagens disponíveis para o estudo da política islâmica,
devedoras que eram de categorias sobre o estado-nação pós-colonial às quais
eles recusavam a ser subsumidos.
Para mim, o conceito de “política da devoção” [politics of piety] era
uma forma de se pensar através deste atoleiro. Discutindo as atividades
do movimento feminino das mesquitas no Egito, Mahmood escreve que
“raramente elas engajam em instituições e práticas comumente associadas
com o campo da política, tal como participar do processo eleitoral, endereçar reivindicações ao Estado ou usar o sistema judicial para expandir o
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019
RELIGIÃO E POLÍTICA
149
lugar da religião na vida pública” (Mahmood, 2005, p. 35). Mesmo assim,
Mahmood nos conta que
ignorar o caráter político deste movimento […] é um erro político e analítico
crasso… porque o poder transformador de movimentos como este é imenso
e, em muitos casos, excede aquele de grupos políticos convencionais. A
eficácia política destes grupos é, eu sugeriria, uma função de sua plataforma
no campo ético — suas estratégias de cultivo de si, através das quais uma
conexão encorporada [embodied] com formas historicamente específicas de
verdade são forjadas. (Mahmood, 2005, p. 35).
Ao mesmo tempo, Mahmood nos lembra que “as estruturas modernas
de governança [...] proveram as condições necessárias para a emergência e
o florescimento deste movimento devocional no Egito” (2005, p. 35), ou
seja, que a política da devoção tem uma história específica profundamente
entrelaçada com a emergência tanto do Estado moderno quanto de outras,
menos institucionalizadas, “estruturas de governança secular” (p. 44). De
fato, é justamente por essas estruturas também insistirem em modos particulares de encorporação e formas de verdade historicamente específicas
(mesmo que apresentadas como universais), que o movimento feminino
das mesquitas adentra o político através de seu projeto de fomentar outros
sujeitos, sujeitos outros. Apesar dessas estruturas não serem um objeto
primário de atenção para Mahmood, elas permanecem um pano de fundo
essencial para se entender a valência política do movimento que ela analisa
(e.g. p. 74-78). Assim, a política da devoção parece ser predicada na devoção
assim como projetada pela política.
O que acontece com a política da devoção em um sistema em que o
secularismo não é uma força contra a qual esses movimentos se posicionam?
Essa é a situação que encontrei no Sudão durante os anos de governo islamista, onde a conversa se dava em um enquadramento tido como interno
ao pensamento islâmico, e que entendia o Estado ele mesmo (ao menos
em sua potencialidade) como uma categoria autóctone. Enquanto a teoria
liberal pode ser criticada por ignorar a importância do ético para o político,
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019
150
Noah Salomon
regimes de diversas cores — dos islamistas do Sudão aos nossos Trumpistas,
e muitos outros entre esses dois — têm reconhecido o entrelaçamento entre
ambos, focando no treinamento dos “modos viscerais de avaliação” (Connolly,
1999 apud Mahmood, 2005, p. 34), que são essenciais para a formação dos
sujeitos políticos. Os grupos com os quais eu trabalhei visavam avançar os
limites dessa política ancorada na tradição islâmica mesmo para além do
que o contexto sudanês permitia. A sua política se perguntava não somente
o que é a boa vida, mas também o que é a boa morte (husn al-khatima).
Não apenas como podemos exercitar a liberdade individual, mas “qual tipo
de política é desejável e viável em uma tradição discursiva que abraça as
convenções como [...] necessárias à realização do Self ” (Mahmood, 2005,
p. 149). O trabalho de Mahmood nos ajuda a ver o peso político de tais
questões, e a ver aqueles que as colocam não como abjetos clamando por
esclarecimento, nem como meras curiosidades, mas como interlocutores,
expandindo nossos horizontes políticos e desestabilizando o que pensávamos
ser a verdade.
REFERÊNCIAS
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject.
Princeton: Princeton University Press, 2005.
SALOMON, Noah. For Love of the Prophet: an Ethnography of Sudan’s
Islamic State. Princeton: Princeton University Press, 2016.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 147-150, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99957
RELIGIÃO E POLÍTICA
Milad Odabaei1, 2
Gostaria de usar essa oportunidade para sublinhar a atenção ao tempo e
à história que fundamentam a contribuição de Saba para o estudo da relação
entre religião e política. Para começar, “religião” e “politica” no trabalho de
Saba não são conceitos genéricos e pré-fabricados, que podem facilmente
ser transportados entre diferentes geografias e temporalidades. Eles são
conceitos históricos. Eles emergem dentro de um processo histórico particular e seu uso conceitual relaciona-se ao próprio desdobramento temporal
deste processo. Em outras palavras, concepções de religião ou política têm
passados particulares e pertencem a futuros particulares. Enquanto tal,
eles emergem atrelados a práticas e performances, formas de razoabilidade,
habituação e encorporação [embodiment] que simultaneamente materializam o seu processo histórico subjacente e o levam adiante no tempo. O
trabalho de Saba no campo da teoria crítica nos convida a interrogar os
conceitos dominantes de religião e de política que herdamos e a explorar
suas limitações presentes e possibilidades futuras. Por sua vez, seu trabalho
no campo da antropologia nos convida a mover na direção contrária: a
navegar etnograficamente processo históricos em curso com a finalidade
de explorar concepções menos familiares de religião e política, que podem
abrir futuros diferentes daqueles (condenados) que herdamos.
O modo com que o tempo e a história são enfatizados pelo trabalho de
Saba também é registrado pela centralidade do conceito de “tradição”. Através
de um engajamento com a obra de Alasdair MacIntyre (2001) e Talal Asad
(1986), o conceito de tradição dá especificidade e substância para a “religião”
e a “política” ao entrelaçar suas dimensões corpóreas, práticas e temporais.
1
2
É pesquisador pós-doc Andrew W. Mellon no Departamento de Antropologia da
Universidade de McGill, Canadá. E-mail: milad.odabaei@mcgill.ca.
Tradução por Bruno Reinhardt.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019
152
Milad Odabaei
Tradições políticas e religiosas mantêm-se vivas através de sensibilidades
encorporadas e atualizações de convenções. Elas são renovadas através da
temporalidade rítmica da repetição e reinterpretadas e renegociadas diante
de circunstâncias em mutação. Talvez o aspecto mais importante do conceito
de tradição no trabalho de Saba seja seu modo de fazer valer os domínios
extra-jurídicos da historicidade e da socialidade sobre concepções jurídicas
seculares de política e religião. Em outras palavras, seu trabalho defende uma
compreensão ampla de política e de religião que articula diversas formas
de lei (reveladas, instituídas, etc.) às pré-condições históricas e sociais que
possibilitam sua adesão.
O trabalho de Saba deixou uma segunda marca no estudo da religião
e da política, também devedora de sua atenção para a história: a qualidade
relacional desses conceitos. Seu engajamento histórico com o liberalismo e
com o secularismo, para citar algumas instâncias, elabora sobre essas tradições políticas tendo em vista a longue durée do desenvolvimento da Europa
e do Cristianismo. Saba sublinha, por exemplo, a significância do processo
de secularização na Europa para a elaboração da política do secularismo e
da concepção de “religião” constituída em meio a esse processo. Ela torna
legível as afinidades entre liberalismo e Protestantismo, que proveem o
primeiro de eficácia histórica e potência. Em uma direção contrária, Saba
investigou etnograficamente o reavivamento islâmico no Egito de modo a
provincializar as políticas emancipatórias liberais e de esquerda, e trouxe à
luz as energias históricas e o substrato epistemológico particulares que as
sustentam.
Ao oscilar entre a interrogação da dívida da política liberal e de esquerda
com a hegemonia europeia e a interrogação da política islâmica contemporânea, o trabalho de Saba aponta ainda para um outro modo de se atentar
para a história: a simultaneidade. Sua crítica dos conceitos de religião e
política, sua ênfase permanente nos legados destrutivos e excludentes do
passado e do presente do colonialismo e do imperialismo, sua análise do
encolhimento do político no Oriente Médio e seu exame das minorias
religiosas sujeitas à lógica do secularismo, são todas predicadas na atenção
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019
RELIGIÃO E POLÍTICA
153
à simultaneidade dos processos temporais e das tradições, assim como nas
assimetrias e desentendimentos entre estes. No espaço que me resta, gostaria
de elaborar sobre uma das possibilidades abertas pela atenção de Saba ao
problema da simultaneidade e das tradições discordantes. Eu desenvolvo
essa possibilidade nos termos de minha própria pesquisa, situada no Irã, de
modo a mudar o foco da relação entre o Islã como uma “religião” minoritária
e o desenvolvimento de longo prazo do liberalismo na Europa, para uma
situação histórica em que o Islã é uma tradição dominante tanto em seus
registros corpóreos e rituais quanto em suas extensões legais e intelectuais.
Apesar do modo de investigação de Politics of Piety (Mahmood, 2005)
ser centrado no reavivamento Islâmico no Egito e nos atentar para os limites
da política liberal, este livro provê insights que nos ajudam a pensar a história
do Irã e do Oriente Médio. Faz isso porque a política liberal e de esquerda
não é imanente aos desenvolvimento dessas regiões e ocupa o terreno da
história ao lado de tradições que têm outros ritmos e fluxos. O trabalho de
Saba nos convida a considerar a natureza das circunstâncias históricas de um
lugar como o Irã, em que os enquadramentos discursivos e historiográfico que
tornam eventos e a própria história legíveis, logo, que condicionam possibilidades sociais e políticas, têm a sua gênese no desenvolvimento histórico da
Europa. Que tipo de mundo é o Irã, que, apesar de não-europeu, (também)
fala através dos idiomas europeus da religião e da política? Quais são as suas
possibilidades para a crítica e o cultivo de si? Quais são suas coordenadas
espaciais e temporais, seu passado, presente e futuro?
Meu trabalho aborda essas questões através de um estudo histórico e
etnográfico sobre a tradução de textos de teoria social europeia para o farsi
no Irã pós-revolucionário, em que a tradução tem emergido como uma
prática central entre oficiais do Estado, seminaristas Xiitas, acadêmicos,
ativistas, e jovens de classe média proficientes em inglês, enquanto esperam
emigrar para o Ocidente (Odabaei, 2018). Apesar de atento para as questões
da história e da simultaneidade assim como abordadas no trabalho de Saba,
meu trabalho muda o locus da in-traduzibilidade da historiografia política
europeia para o Irã. Interrogo os problemas da religião e da política como
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019
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Milad Odabaei
parte de uma trajetória que, apesar de entrelaçada com desenvolvimentos
europeus, não corre paralela a estes, logo não pode ser subsumida pela historiografia europeia, mesmo as de teor mais crítico. Esta pesquisa desenvolve
uma potencialidade do trabalho de Saba que abre espaço para pensar as
especificidades e qualidades disjuntivas das histórias não-europeias em um
mundo de hegemonia europeia. Em um momento de encolhimento do
político no Oriente Médio, minha esperança é responder de maneira fértil
o convite de Saba a explorarmos as histórias do presente, a nos atentarmos
aos seus registros de in-traduzibilidade e suas possibilidades restritivas, de
modo que sejamos de fato capazes de pensar a política e a religião, ao invés
de simplesmente reagir a elas.
REFERÊNCIAS
ASAD, Talal. The Idea of an Anthropology of Islam. Washington, DC: Georgetown University, 1986. (Occasional Papers Series).
MACINTYRE, Alasdair. Depois da Virtude. Bauru: EDUSC, 2001.
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject.
Princeton: Princeton University Press, 2005.
ODABAEI, Milad. Giving Words: Translation and History in Modern Iran.
2018. Thesis (Ph.D. in Anthropology) – University of California, Berkeley,
2018.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 151-154, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99959
MINORIAS
Kabir Tambar1, 2
O que seria uma antropologia das minorias políticas? Há certamente
muitas formas de se endereçar este problema em termos de método, mas em
Religious Difference in a Secular Age, de Saba Mahmood, encontramos um
esforço sistemático para historicizar as próprias condições de possibilidade
desta questão.
A perspectiva de Mahmood é genealógica. Ela se pergunta não apenas
quando a categoria “minoria” emergiu, mas também de que forma tal
emergência imbuiu esse conceito com um conjunto específico de ansiedades históricas. Ela se baseia em diversos componentes desta genealogia
no Oriente Médio: formas institucionalizadas de hierarquia inter-religiosa,
tratados de paz, contextos distintos de “soberania diferencial” e assimetrias
geopolíticas gestadas no século passado. Ao especificar esta história, o objetivo de Mahmood é analisar
uma tensão irresoluta localizada no coração do conceito de minoria: por
um lado, uma minoria deveria ser um parceiro igual à maioria no processo
de construção da nação; por outro, sua diferença (religiosa, racial, étnica)
representa uma ameaça incipiente à identidade da nação, que é assentada nas
normas religiosas, linguísticas e culturais da maioria. (Mahmood, 2016, p. 32).
Se o discurso sobre a minoria visaria a garantir a igualdade, ele também
constitui a minoria enquanto uma fonte de ameaça e um objeto de suspeita.
O conceito de minoria, assim como ele emerge no século XX, é emblemático da tensão familiar entre igualdade formal e desigualdade substantiva, e
1
2
É professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Stanford, EUA.
E-mail: ktambar@stanford.edu.
Tradução por Bruno Reinhardt.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
156
Kabir Tambar
Mahmood analisa esse ponto exaustivamente. Essas tensões entre lei e justiça
também contribuem para aquilo que podemos chamar de o problema das
fundações da política moderna. Esforços para promover a proteção jurídica
das minorias tendem a trabalhar sobre a assunção de que a minoria pode ser
reconhecida e que seu direitos podem ser assegurados. Mas tratamos aqui
de qual Estado e de quais leis? É sugestivo que os cristãos coptas no Egito
do início do século XX recusavam-se a ser interpelados como uma minoria
nacional. Neste contexto, intelectuais coptas avançaram uma leitura astuta
da política imperial em jogo sob tal designação. Ao invés de se colocarem
como uma população sob a proteção da lei Britânica (logo, como uma
justificativa para o controle Britânico sobre a região), muitos líderes coptas
insistiram na primazia de sua afiliação nacional egípcia. O que a categoria
de minoria ameaçava era a própria “identidade da nação”.
A noção de minoria política parece oscilar entre dois registros. Uma
minoria pode ser engajada como parte de uma luta por direitos contra várias
formas de discriminação estrutural. No entanto, esta formulação pressupõe
uma contextualização política particular. O que de fato frequentemente
se torna objeto de contestação (no caso copta, por exemplo, mas também
em outros casos) é a própria validade daquela contextualização política.
Mahmood demonstra que os debates no Egito do início do século XX
implicavam uma interrogação reflexiva sobre o próprio enquadramento
do político: são os coptas uma minoria no Egito sob o mandato Britânico
ou são eles apenas mais um elemento da nação egípcia lutando por sua
soberania contra o poder imperial? Sob certo ângulo, a noção de minoria
política parece se referir à dimensão restrita — às vezes mesmo restritiva —
da política dentro de determinado Estado, uma preocupação para estudos
altamente especializados. Sob um segundo ângulo — aquele que o livro de
Mahmood desenvolve — podemos pensar sobre a política da minoria como
apontando para as lutas que politizam as próprias condições do político.
O que talvez salte mais ao olhos nos debates do início do século XX
descritos por Mahmood é que os Coptas se recusam a ser classificados
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
MINORIAS
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como minorias e recusam a compreensão de suas próprias atividades como
uma luta por direitos minoritários. A noção de minoria não opera neste
contexto como uma categoria positiva, que descreve uma população empírica. Ela funciona, neste exemplo, como um espectro a ser rejeitado. É
possível que uma antropologia da política das minorias, tendo começado
com a genealogia desta categoria, precise então teorizar as várias táticas de
sua rejeição. As recusas em abraçar a categoria de minoria pode assumir
inúmeras e diferentes formas, dirigidas para uma variedade de fins. Elas não
são sempre animadas pelo espírito da resistência anticolonial. A categoria
pode ser recusada simplesmente como um modo de evitar o estigma associado à classificação. Se ela é tática, logo não será nem uniforme em termos
das motivações que a animam, nem homogênea em termos dos fins que a
guiam e dos efeitos que produz.
Em minha própria pesquisa na Turquia (Tambar, 2014), impressionou-me a frequência dessas recusas — tanto da parte de comunidade que
tinham sido formalmente designadas como “minorias” quanto das que nunca
assim o foram. Na Turquia, as comunidades que tendem a ser reconhecidas
como “minorias” são comunidades não-Muçulmanas: Armênios, Ortodoxo
Gregos e Judeus. Há outros grupos, que têm lutado por direitos acordados
às minorias — direitos relativos à linguagem e religião — mas que insistem
em não ser classificados sob tal acunha. Atores políticos curdos e alevitas
têm persistentemente repudiado a classificação de suas comunidades como
“minorias”. Em diversas ocasiões, nos últimos 15 anos, agências da União
Europeia destacaram que os problemas políticos associados às minorias
alevitas e curdas seriam importantes bloqueios à aceitação da Turquia por
este bloco. Mas, muito comumente, os membros destas comunidades têm
respondido declarando que, longe de minorias, eles seriam “elementos
fundacionais” (asli unsur) do Estado Turco.
É importante destacar que há um equação aqui entre recusar o status
de minoria e proclamar o status de ser fundacional. Essas asserções deixam
claro que a designação de minoria não é apenas um mecanismo para se
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
158
Kabir Tambar
obter certos direitos e recursos. Não é apenas um meio para um fim. Ou
melhor, se ela é um meio político, esses grupos têm que avaliar as possíveis
consequências e custos de aceitá-la: que eles poderiam cair na mesma categoria que os armênios; que eles poderiam reforçar suspeições existentes de
que essas comunidades seriam uma ameaça à identidade nacional; que eles
poderiam estar abrindo mão de conexões territoriais e de pertencimento, já
que a categoria de minoria é contaminada pelo sentido de estrangeiridade.
No entanto, há ainda uma terceira alternativa aqui, que vai além de
simplesmente abraçar ou recusar o status de minoria. Essa alternativa coloca
um enorme desafio para o tipo de política da identidade geralmente associada
às lutas das minorias. Estou pensando nos esforços de certos grupos curdos
ao longo da última década para se aliarem aos armênios ou, ao menos, a uma
certa memória apagada do genocídio armênio na Turquia. Dois exemplos
ajudam a elaborar esse ponto.
Primeiro: uma organização majoritariamente curda de mães de desaparecidos — que normalmente se reúne para lembrar daqueles que foram
presos e eliminados pelas forças de segurança nos anos 1990 — começaram
a organizar vigílias para os armênios que passaram por processo similar em
1915 (o que historiadores veem como um prelúdio ao genocídio). Nessas
vigílias, membros do grupo referem-se à violência perpetrada contra os
armênios como um precedente à violência vivida pelos curdos civis nos
últimos 30 anos. Elas reconhecem o papel que alguns grupos curdos tiveram
no genocídio que se inicia em 1915 e reivindicam responsabilidade pelos
armênios da mesma forma que o fazem com relação aos seus próprios filhos
desaparecidos.
O segundo exemplo: certas cidades de maioria curda, governadas por
prefeitos associados ao partido pró-curdo, têm tentado reavivar a história
e a memória do passado armênio: restaurando igrejas, usando múltiplas
línguas na sinalização urbana (Curdo, Armênio, Assírio), e interpelando os
Armênios a retornarem a essas cidades. Em alguns caso, líderes municipais
têm se referido a esses projetos através do termo “multiculturalismo”. Deve-
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
MINORIAS
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ríamos ter o cuidado de distinguir esses esforços das formas mais familiares
assumidas pela política multicultural pelo mundo, em que o Estado, agindo
em nome da maioria, estende tolerância à minoria (logo, agindo como um
“benfeitor”, assevera a assimetria que afirma estar superando). Esses esforços
municipais não acontecem em nome de uma maioria turca, e eles operam
conscientemente em contravenção ao projeto de pluralismo avançado pelo
Estado. Não me é claro o que essa política emergente irá produzir e eu acho
que seria apressado delinear seus efeitos cedo demais. Talvez, para nosso
presente propósito, seja suficiente dizer que essa estratégia nos permite
adicionar mais um elemento à antropologia da política das minorias. Ao lado
de uma genealogia do conceito e de uma etnografia de sua recusa, podemos
também estudar a repolitização deste termo em atos de solidariedade.
Com esses atos de solidariedade, a preocupação com as fundações
permanece, mas ela é fundamentalmente alterada. Ao invés de afirmar serem
um elemento fundacional, os curdos estão se aliando com aqueles cuja morte
e apagamento foram fundacionais para a formação do estado-nação. Sou
relutante em conceber esses esforços como o de duas minorias trabalhando
juntas. Numa primeira instância, os curdos não têm sido definidos como
minorias do mesmo modo que os armênios, e a abordagem genealógica
insistiria em levar a sério essa diferença de categorização. De fato, o que é
especialmente interessante aqui é que os curdos estão se posicionando ao
lado de uma minoria primordial [ur-minority], logo as implicações deste
movimento devem ser exploradas cuidadosamente. Numa segunda instância
— talvez a mais importante — o enquadramento destes grupos enquanto
minorias pressupõe que o estado-nação seria o contexto relevante e que a
maioria turca seria o destinatário relevante. Mas é precisamente essa contextualização política que está sendo colocada em cheque. O que está em jogo
neste ato particular de solidariedade é o enquadramento controversamente
reflexivo do contexto político através de formas que não assumem que a
maioria nacional seria o destinatário e que o Estado seria o contexto de sua
arbitração. Como exatamente essas práticas de solidariedade precipitam
um projeto político positivo permanece um problema ainda a ser estudado.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
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Kabir Tambar
REFERÊNCIAS
MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report.
Princeton: Princeton University Press, 2016.
TAMBAR, Kabir. The Reckoning of Pluralism: Political Belonging and the
Demands of History in Turkey. Stanford: Stanford University Press, 2014.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 155-160, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99960
MINORIAS
Mayanthi Fernando1, 2
Relendo Religious Difference in a Secular Age, não pude deixar de notar
as similaridades entre a posição dos Cristão coptas no Egito, descrita por
Mahmood, e a dos muçulmanos franceses na França, sobre os quais eu
escrevi (Fernando, 2014). O desafio que os coptas egípcios encaram —
“como forjar um futuro político que aplaine as desigualdades do passado
sem reificar a sua diferença com relação à maioria muçulmana” (Mahmood,
2016, p. 73) — é paralelo àquele dos muçulmanos franceses:
[…] como agir como cidadão dentro de um arranjo político ancorado em um
universalismo abstrato quando se é constantemente reduzido à sua diferença
encorporada [embodied]; como responder enquanto alvo óbvio de discriminação anti-muçulmana sem reforçar a sua diferença comunal; e como interferir
enquanto muçulmano e cidadão quando a particularidade do primeiro contra
-efetua a universalidade do segundo. (Fernando, 2014, p. 10).
Esse desafio emerge, como escreve Mahmood, de
[…] uma tensão irresoluta localizada no coração do conceito de minoria: por
um lado, uma minoria deveria ser um parceiro igual à maioria no processo
de construção da nação; por outro, sua diferença (religiosa, racial, étnica)
representa uma ameaça incipiente à identidade da nação, que é assentada nas
normas religiosas, linguísticas e culturais da maioria. (Mahmood, 2016, p. 32).
Uma forma possível de se administrar essa tensão irresoluta, eu propus,
é problematizar a estabilidade ontológica da minoria como sendo desde
1
2
É professora do Departamento de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Santa
Cruz, EUA. E-mail: mfernan3@ucsc.edu.
Tradução de Bruno Reinhardt.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019
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Mayanthi Fernando
sempre uma forma de diferença. O reavivamento islâmico francês e o ativismo
muçulmano francês são geralmente entendidos entre círculos acadêmicos
e políticos como demandas por reconhecimento de, ou direito à, diferença
muçulmana. No entanto, muitos dos meus interlocutores muçulmanos
franceses rejeitam esse enquadramento, ninguém de modo mais incisivo
que Farid Abdelkrim, um experiente ativista. “Slogans como direito à diferença”, ele declarou,
[…] contribuem para a ideia de que nós ainda não somos inteiramente franceses.
Nós ainda somos separados. Ao invés de sermos cidadão plenos (citoyens à part
entière), nós somos inteiramente apartados (entièrement à part) […]. Eu não
quero o direito à diferença. Eu quero o direito à indiferença! Isso quer dizer,
eu não quero ninguém prestando atenção em mim. Eu quero ser esquecido.
Com a indiferença, Abdelkrim rejeita tanto o paradigma republicano —
que vê a prática pública do Islã como uma asserção inaceitável de diferença
comunal que contravém o universalismo moral e político da República
— quanto o chamado mais ostensivamente tolerante para se acomodar à
“diferença muçulmana” de uma série de intelectuais públicos influenciados
pela abordagem seminal de Charles Taylor (1994) para a política do reconhecimento. Recusando a política da integração republicana, que demanda que
os muçulmanos restrinjam sua religiosidade à esfera privada e se comportem
como cidadão abstratos e des-encorporados [disembodied] na esfera pública,
Abdelkrim e outros muçulmanos franceses afirmam seu direito de praticar
o Islã no privado e no público, e que a sua “muçulmanidade” [Musliness]
permeie as suas vidas privadas, públicas e políticas. Mas eles recusam igualmente um paradigma que reconhece a sua “muçulmanidade” como uma
forma de diferença da nação. Eles reclamam, em outras palavras, por indiferença à sua “muçulmanidade” — convencionalmente entendida como a
sua diferença — logo que não seja nem abstraída nem sobre-determinada,
que ela se torne nem invisível nem hipervisível. Franceses muçulmanos
argumentam que eles não são diferentes, mas sim franceses.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019
MINORIAS
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Ao fazer isso, eles se esforçam por reimaginar a França como uma entidade heterógena, onde modos de vida não dominantes poderiam florescer
sem serem classificados como essencialmente diferentes, e como uma comunidade política que poderia acomodar — mesmo que de maneira agonística
— formas de vida ética e política não apenas múltiplas, mas eventualmente
incomensuráveis. E, de forma interessante, ao imaginar a República desta
forma, explodem-na em várias seções de diferenças igualmente diferentes (ou
identidades) que fundamentalmente desfazem a configuração existente sobre
o que é identidade (francês) e diferença (muçulmano), centro e periferia,
maioria e minoria. Ao recusar a priori maioria e minoria, a comunidade
política que muitos muçulmanos contemplam também recusa, quase que
por definição, qualquer formação política unificada ou estável. Alianças são
sempre ad hoc. Elas não duram.
Porque, então, a política do reconhecimento emergiu de maneira tão
dominante como o modo mais comum tanto de se interpretar quanto de
se adjudicar as reivindicações de sujeitos não-normativos (ou minorias)?
Religious Difference in a Secular Age nos oferece duas razões interconectadas:
as aspirações por igualdade da parte das minorias (o que Lauren Berlant
[2011] chamaria de um tipo de otimismo cruel) e o investimento do Estado
em assegurar a sua soberania. Como escreve Mahmood:
As minorias frequentemente contestam as práticas discriminatórias da lei
secular através dos mesmos instrumentos legais que consagram os privilégios
majoritários. Essa constante oscilação — a possibilidade de preconceito e
igualdade — é altamente generativa no sentido de manter a promessa da
neutralidade secular viva. (Mahmood, 2016, p. 176).
Esta “ambiguidade genuína” (Mahmood, 2016, p. 176) ou “indeterminação” (Agrama, 2012) parece ser integral ao princípio de soberania do
Estado: as minorias conclamam o Estado para compensar seu não reconhecimento e, ao fazê-lo, permitem a ele afirmar sua neutralidade e reforçar sua
soberania. Logo, a soberania, Mahmood argumenta, é chave para a questões
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019
164
Mayanthi Fernando
dos direitos das minorias e direitos religiosos, tendo se tornado “a condição
inelutável de nossa imaginação política” (2016, p. 87). Com relação à política
do reconhecimento, diversos acadêmicos têm observado que ela assegura a
posição de poder daquele que reconhece e reifica a organização estrutural
da maioria e da minoria. O Estado e/ou a maioria normativa outorgam o
reconhecimento às minorias e permitem a chamada diferença existir e talvez
até florescer, enquanto reafirma a sua própria posição de fonte central de
autoridade e árbitro neutro das dinâmica de conflito (Brown, 2006; Markell,
2003). De fato, como demonstra Patchen Markell, a estrutura profundamente não-recíproca que sustenta a política do reconhecimento ecoa a
dialética do senhor e do escravo de Hegel e sua relação de auto-certeza (ou
identidade) através do reconhecimento. Markell aponta que a realização da
auto-certeza e a aquisição da soberania são assentadas na subordinação de
um outro e que “a subordinação é uma possibilidade persistente nas relações
de reconhecimento” (2003, p. 119).
Ao mesmo tempo, eu me pergunto se esta estrutura de soberania estatal,
baseada como é na adjudicação de demandas minoritárias (por igualdade,
por reconhecimento), poderia também ser uma condição de possibilidade
para a desestabilização da própria soberania estatal e mesmo a geração de
um novo arranjo político. Taylor reverte a parábola de Hegel, de modo que a
entidade subordinada (configurada em minoria) é a que sempre necessita do
reconhecimento da entidade poderosa (a maioria ou o Estado). No entanto,
na história original de Hegel é o mestre que necessita do reconhecimento do
subordinado para se realizar, não o escravo. Eu me pergunto se a insistência
de que são as minorias que precisam de reconhecimento é, de alguma forma,
um deslocamento de outra necessidade de reconhecimento, uma que não
pode ser reconhecida, pois isso — assim como no caso do Senhor em Hegel
— minaria a estabilidade e a soberania do segundo (de fato, do original)
reclamante, que seja, da maioria dominante e do Estado. O que eu quero
dizer é que, se o Estado assegura sua soberania e seu poder ao reconhecer
minorias subordinadas, é que ele também necessita daquele modo de retificação. Ele depende do reconhecimento das minorias de modo a garantir
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MINORIAS
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a sua soberania. Poderíamos então entender a demanda de Abdelkrim pelo
direito à indiferença de outra forma, não apenas como indiferença do Estado,
mas também indiferença ao Estado? Isso nos leva de volta a Politics of Piety
(2005), onde Mahmood argumenta que enquanto o movimento feminino
das mesquitas no Egito é largamente indiferente ao Estado e à política no
sentido convencional — tal indiferença é profundamente perturbadora
para o Estado (esse é um dos motivos, ela argumenta, que o movimento
é de fato político, já que é um desafio implícito ao Estado). O que seria a
indiferença ao Estado no caso de Muçulmanos franceses, Egípcio coptas ou
outras minorias? Ela pareceria com a visão política talvez utópica, que eu
esbocei anteriormente, de uma entidade heterógena e agonística de diferenças
transversais? Há um modo de se alcançar a igualdade religiosa (e outras
formas de igualdade) sem engajar com o Estado? A visão política oferecida
por muçulmanos franceses como Abdelkrim ressoa com as possibilidades de
igualdade sem a agência do Estado na direção da qual Mahmood gesticula
no final de Religious Difference in a Secular Age (2016), onde ela distingue
entre igualdade religiosa enquanto um “mandato do Estado moderno” e uma
aspiração da vida cotidiana para comunidades como os coptas e os bahá’ís
(p. 211)? Ela conclui este livro perguntando se “a ideia de igualdade entre
as fés pode requerer não a suspensão [bracketing] das diferenças religiosas,
mas a sua tematização ética como um risco necessário quando os recursos
políticos e conceituais do Estado se provam inadequados ao desafio que este
ideal coloca diante de nós” (Mahmood, 2016, p. 213).
Ou será que a indiferença ao Estado implica em abandonar o ideal mesmo
da igualdade religiosa, acompanhado por um refúgio na vida comunal e uma
recusa em engajar-se com a política liberal-secular convencional — não apenas
suas implicações práticas (i.e. engajamento com o Estado), mas também seus
ideais? Estou pensando em Aissam Ait-Yahya, um francês muçulmano sobre
o qual escreve Nadia Fadil (2014). De acordo com Ait-Yahya, o secularismo
não é neutro, mas tem uma história cristã específica, logo ele se baseia em
e reproduz um sujeito política e ontologicamente particular. Ele é portanto
crítico da democracia e aconselha os muçulmanos da Europa a se absterem
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Mayanthi Fernando
de votar e de participar do processo político. De acordo com Fadil, ele vê
o voto não como uma ação cívica sem consequências para a fé de quem
a exercita, mas como uma prática encorporara [embodied] que, quando
repetida, sedimenta-se em uma orientação afetiva e subjetiva. “O principal
objetivo de Ait-Yahya”, explica Fadil (2014, p. 8), “é desafiar a assunção
comum (entre muçulmanos), de que o secularismo pode ser considerado um
princípio universal adaptável a qualquer realidade social e tradição religiosa”.
Em outras palavras, diferente de Abdelkrim, Ait-Yahya não vê futuro político para os muçulmanos na Europa, ao menos através da participação em
qualquer sistema político existente. O que é particularmente notável é que
ele chega a essa conclusão através de um entendimento da Europa familiar
à maioria dos aqui presentes, um que destaca “a centralidade fundamental
das normas, valores e sensibilidades cristãs [...] para as concepções do que
significa ser secular” (Mahmood, 2016, p. 8). O que devem fazer as minorias religiosas neste caso? Como aponta Mahmood, nenhum dos conceitos
fundamentais que estruturam a liberdade religiosa — o forum internum e a
ordem pública — protegem as minorias religiosas na Europa. O primeiro
por se baseado em uma concepção protestante da religião-enquanto-crença.
O segundo por ser baseado em normas majoritárias. Será que Ait-Yahya
tem razão? Ou existem outros modos de se buscar a justiça (apesar de não
necessariamente a igualdade) para as minorias, que dispense as restrições
estruturais do secularismo?
REFERÊNCIAS
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Rule of Law in Modern Egypt. Chicago: University of Chicago Press, 2012.
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MINORIAS
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TAYLOR, Charles. The Politics of Recognition. In: GUTMANN, Amy
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Princeton University Press, 1994. p. 25-73.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 161-167, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99961
ENCORPORAÇÃO
Lucinda Ramberg1, 2
Inspirando-me no modelo oferecido por Eve Sedgwick (1990), proponho
quatro axiomas:
AXIOMA 1: OS CORPOS IMPORTAM/MATERIALIZAM
[MATTER]
Tomar como axiomático que os corpos importam é apontar para a sua
materialidade teimosa (corpos como matéria), assim como para sua força no
mundo (corpos se projetam). Corpos não simplesmente expressam, representam, ou simbolizam formas de significado e poder que jazem em outro
lugar. Formas de significado e poder existem no mundo enquanto corpos;
ou, formas de significado e poder são encorporadas [embodied]. Nós trabalhamos no mundo em, através de e com corpos — os nossos e os de outros.
No trabalho de Saba sobre gênero e devoção no Egito, ela explora esse
axioma com relação ao lugar do corpo no cultivo ético de si: “[Na] injunção
sobre o uso feminino do véu (há) toda uma conceptualização sobre o papel
do corpo na produção do sujeito em que o comportamento externo do corpo
constitui-se tanto na potencialidade quanto no meio através dos quais uma
interioridade é realizada” (Mahmood, 2001, p. 214). Teorizar esta conceptualização implica em repensar a “relação entre o desejo e a produção de si,
a performance e a constituição do sujeito, a ação moral e a encorporação nos
debates feministas” (Mahmood, 2001, p. 203), assim como reestabelecer “a
relação encorporada com o mundo e consigo” como um aspecto “daquilo
1
2
É professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Cornell, EUA.
E-mail: ler35@cornell.edu.
Tradução por Bruno Reinhardt.
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Lucinda Ramberg
que chamamos de política” (p. 224). A atenção crítica a debates sobre o véu
lança luz sobre o lugar do corpo na formação do sujeito, assim como sobre
a constituição do político. Colocando esse ponto de maneira diferente, o
político é feito de, por e através de corpos.
Mechas embaraçadas de cabelo me levaram a pensar como o corpo
das mulheres atualiza a política e materializa mundos (Ramberg, 2014).
Especificamente, as mechas de cabelo usadas por mulheres extáticas casadas
com uma deusa indiana ambivalente que elas incorporam, cujas aflições
elas tentam sanar e cujas bênçãos elas dispersam. As esposas de Yellamma
são mulheres sexualmente ativas e “solteiras” amplamente reconhecidas na
Índia como prostitutas exploradas sexualmente por uma falsa religião que
se busca reformar. Nos templos de Yellamma, que se espalham pelo platô
de Deccan, devadasis podem ser vistas usando jade, mechas pesadas de
cabelo que a deusa ofertou a quem escolheu incorporar. Jade são ungidas
com cúrcuma e cultuadas como a deusa ela mesma. Agentes de reforma
cortam jade e distribuem frascos de shampoo. Campanhas reformistas se
apresentam como projetos de higiene e mobilidade social, projetos que
visam liberar essas mulheres de suas falsas crenças. Essas campanhas não
entendem a si mesmas como interessadas em reconstruir corpos à luz de um
tipo normativo. Elas cortam jade para provar que jade não importa [matter].
Considerem a linguagem utilizada por um panfleto distribuído por esses
agentes reformistas no principal templo de Yellamma: “Milhares de pessoas
tiveram seus cabelos embaraçados e sujos limpos e agora vivem uma vida
feliz. Isso é evidência de que a aparência de jade ou cabelo embaraçado não
se deve à Deusa.” De acordo com essa formulação, cabelos embaraçados
não são matéria que se projeta [matter forth] como a Deusa, mas apenas
sujeira insignificante.
No entanto, mesmo que os reformistas enquadrem jade como algo
imaterial, suas campanhas reconhecem a sua força e se apropriam dela como
um meio eficaz de refazer os corpos das mulheres Yellamman. Cortar jade
é desincorporar a Deusa dos corpos dessas mulheres. Esse corte as restitui
como mulheres ordinárias, disponíveis para domesticação. Ele restitui a
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ENCORPORAÇÃO
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deusa em uma divindade amena, que exige apenas uma adoração interna,
do “coração”, e o Estado como uma autoridade legítima na proteção das
mulheres contra a exploração e a superstição. Como bem entendem esses
reformistas, refazer o corpo é um modo efetivo de reformulação do mundo.
AXIOMA 2: TEORIAS TÊM CORPOS
Teóricos têm corpos, apesar de muitos negarem esse fato. Todo trabalho
intelectual é encorporado. Ele procede através de corpos, os nossos e os de
outros, que reproduzem as condições que fazem nosso trabalho possível.
Essas condições não são meramente intelectuais. O trabalho reprodutivo
de quem fez o seu pensamento e a sua escrita possível hoje? Quem lavou as
roupas que você vestiu hoje de manhã, preparou o seu café da manhã, ou
varreu os corredores que você cruzou no trabalho hoje? Enquanto eu rascunho
esse ensaio, descansando minhas pernas de meia-idade em uma cadeira
localizada no pátio de uma casa de três quartos que é meu lar em Bangalore,
nesse momento, Sumitra, uma viúva mãe de dois filhos, lava meus pratos
e varre meu chão. Seu corpo suplementa essa escrita. Essa suplementação
descreve relações desiguais de casta, classe, gênero, geopolítica, nação, raça
e sexualidade subscritas por histórias e futuros de violência. Futuros sobre e
contra os quais eu tento ensinar e escrever enquanto eu reproduzo algumas
de suas condições no presente. Algumas, não outras; a minha falta de um
marido é mais escandalosa que a de Sumitra. Outros corpos suplementam
essa escrita. Estou pensando no trabalho encorporado de Michael Allan,
o organizador do simpósio que ocasionou este ensaio, e em Saba, é claro.
Não é apenas o pensamento de Saba que tornou o meu possível, mas
também a sua corporalidade. Pensamos com e através do corpo, como
seu trabalho nos lembra. Ela toma seu próprio corpo como um ponto de
partida em Politics of Piety. Mesmo reconhecendo a repugnância que, em
suas palavras, “frequentemente brotava de mim” (Mahmood, 2005, p. 37),
contra práticas que pareciam circunscrever e subordinar as mulheres na
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Lucinda Ramberg
sociedade egípcia, ela se virou da denúncia para uma investigação cuidadosa
sobre a educação dos afetos e os cultivos corporais. Ao revelar a sua própria
repugnância, ela expõe a epistemologia da agência feminina que anula a
possibilidade de que, ao praticar a modéstia, mulheres devotas poderiam
estar ativa e significativamente exercitando a sua capacidade de autocultivo.
Quando começamos a olhar para os corpos em nossas teorias, nós os
encontramos em toda parte. Eles descentram o autor e desvelam a teoria
como um efeito de redes de relações encorporadas.
AXIOMA 3: CORPOS DIFEREM UNS DOS OUTROS
Se teorias têm corpos, eles estão necessariamente localizados no tempo
e no espaço e permeados por relações de poder. Ou seja, corpos são diferentemente carregados de significado, dotados de força, e implicados na teoria.
Sumitra já me ajudou a estabelecer este ponto. Seu corpo suplementa a
presente escrita, mas ela dificilmente será vista como uma teórica. Isso me leva
à questão ética sobre como ser responsabilizada por distribuições desniveladas
de reconhecimento e recursos. Saba nos ensina que uma resposta para este
dilema é atentarmo-nos para a questão da diferença não apenas como um
problema de desigualdade e injustiça a ser resolvido, mas também como um
recurso epistemológico para a crítica. Ela se vira para as diferenças que ela
encontra entre a sua própria sensibilidade e aquela das muçulmanas devotas e
as usa como um recurso para reteorizar a agência religiosa e de gênero, e assim
desvelar as pressuposições seculares que condicionam o pensamento feminista
liberal. Esse impulso duplo, que articula crítica e reparação, também informa
meu trabalho sobre a política da sexualidade com relação ao estigma de casta
(Ramberg, 2017). Por um lado, na condução cotidiana de minha pesquisa — o
modo com que eu como, sento, falo, e ando com meus interlocutores — eu
trabalho de modo a intencionalmente desestabilizar os protocolos “castistas”
de interação. Por outro, ao traçar o processo através do qual alguns corpos
vieram a carregar a repugnância dos outros como uma propriedade de sua
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ENCORPORAÇÃO
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própria carne (intocabilidade), eu redefino o estigma como um atributo do
corpo das castas superiores. Ou seja, eu interrogo a diferença de casta como
um recurso para a reformulação do estigma enquanto modo de relação.
AXIOMA 4: RELIGIÃO E SECULARISMO SÃO
ENCORPORADOS
Ser religioso é abraçar e/ou ser submetido a uma educação em afeto,
sensibilidade e conduta. As pedagogias religiosas do corpo podem ser explícitas
ou implícitas, mas elas estão sempre presentes. Como um modo de governo
e uma filosofia política, o secularismo parece se fundamentar na negação do
corpo. No entanto, como Talal Asad nos ensinou, a secularidade, enquanto
um habitus ou sensibilidade, necessariamente precede projetos conscientes
de secularização política. Os corpos importam [matter] tanto em projetos
seculares quanto em religiosos.
Saba expõe o lugar crítico da sexualidade e do gênero, logo, do corpo,
na constituição do secularismo político em seu livro Religious Difference.
Como ela destaca, a família raramente é vista pelos estudiosos do secularismo
como “uma unidade necessária do secularismo político” (Mahmood, 2016,
p. 147). Como ela detalha, a guinada da autoridade religiosa para além dos
assuntos civis e públicos para o espaço reconstruído da família e das relações sexuais através dos regimes da “lei de família” teve impactos poderosos
nas relações de gênero. Como em outros contextos pós-coloniais em que
operam sistemas duais separados entre leis de família e leis civis, a questão
da disposição da capacidade sexual das mulheres estabelece um abismo entre
seus direitos enquanto indivíduos perante o Estado e seus direitos enquanto
membros das comunidades que trabalham para manter costumes com
relação ao casamento e a propriedade tidos como particulares a determinada
comunidade. Isso significa que as possibilidades da governança secular do
Estado e da autoridade religiosa comunitária são ambas entrelaçadas com a
questão do status e da conduta sexual da mulher. Tanto as formas seculares
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Lucinda Ramberg
quanto as religiosas de autoridade se apropriam do corpo feminino como
um espaço para se atualizarem e exibirem sua legitimidade.
O argumento de Saba é um importante corretivo para abordagens para o
secularismo que o tomam como uma força desprovida de sangue, e problematiza
a assunção de que o secularismo político garantiria equidade para mulheres,
logo que seu avanço corresponderia necessariamente a uma maior liberdade das
mulheres com relação aos limites impostos pela religião patriarcal. Sua visão
me ajudou a diagnosticar a criminalização dos ritos das mulheres Yellamma.
Secularismo, sexualidade autoautorizada e libertação das mulheres de costumes
repressores são equacionados de um modo particular na Índia pós-colonial. Assim
como o chamado feminista para restringir o uso do véu em locais públicos na
França, esforços para erradicar a dedicação de mulheres para Yellamma implica
em uma série de assunções: a sexualidade deve ser própria ao indivíduo, escolhida
e expressada livremente; a pessoalidade deve ser autopossuída e insubmissa ao
costume, à comunidade ou à religião; e cabe ao secularismo político assegurar e
garantir essas liberdades. Reformistas criticam os modos com que Yellamma se
apropria das mulheres que ela escolhe para representá-la no mundo como um
uso impróprio do corpo sob o disfarce ilegítimo da religião. Mas eles não estão
menos investidos no corpo, em colocá-lo em uso. Se a religiosidade pública e a
sexualidade dessas mulheres fossem erradicadas, elas emergiriam como sujeitos
próprios de um estado-nação legítimo. Em outras palavras, os corpos fazem a
soberania, secular, assim como religiosa.
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ENCORPORAÇÃO
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SEDGWICK, Eve. Epistemology of the Closet. Berkeley: University of California Press, 1990.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 169-175, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99962
ENCORPORAÇÃO
Nadia Fadil 1, 2
Em seu trabalho, Saba Mahmood atenta-se consistentemente para a
importância da encorporação [embodiment] e do afeto para a vida social.
Este é o caso tanto de seu trabalho inicial, que foca em práticas cultivo de si
(como elaborado no já clássico Politics of Piety), assim como em seu interesse
mais recente pelo problema da injúria moral, ou como controvérsias particulares — as revoltas populares islâmicas em torno dos cartuns dinamarqueses
ou a revolta dos Coptas no Egito contra o romance Azazeel — ignoram os
vínculos particulares (schesis) que conectam os sujeitos a imaginários religiosos
que permanecem intraduzíveis quando submetidos aos protocolos disponíveis
para a deliberação pública (Mahmood, neste volume). No que segue, gostaria
de refletir brevemente sobre algumas premissas aludidas por Mahmood, mais
particularmente a sua atenção para o que chama de “relações vivas” (neste
volume). Meu interesse por essa questão é derivado de observações sobre como
a subjetividade ética de meus interlocutores — pessoas de origem Islâmica que
poderiam ser rotuladas como “liberais”, “modernos” ou “seculares” — não é
predicada apenas em operações discursivas e corpóreas de formação subjetiva,
mas também condicionada por uma forma de relacionalidade igualmente
visceral. Essa perspectiva, que visa entender como formas igualitárias de vida
são também informadas por modos de pertencimento (a uma comunidade ou,
nesse caso, a uma tradição) obviamente não é novo, e tem estado no coração
de projetos nas ciências sociais interessados em compreender o Self como
mediado pela presença de outros “significantes” (Cooley, 1902) ou outros
“constitutivos” (Hall, 1996). No entanto, o interesse etnográfico cuidadoso
1
2
É professora do departamento de Antropologia e do Centro de Pesquisa em Interculturalidade, Migração e Minorias da Universidade Católica de Leuven, Bélgica. E-mail:
nadia.fadil@kuleuven.be.
Tradução por Bruno Reinhardt.
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Nadia Fadil
pelos componentes viscerais do “social”, assim como apresentado pelo trabalho
de Mahmood sobre as injúrias morais, permanece largamente inexplorado. Me
baseando nestes insights, meu interesse corrente está em como a constituição de
uma subjetividade Muçulmana seria condicionada não apenas por um engajamento consciente e explicito com uma tradição discursiva (Asad, 1986), mas
também em como esse relação com o Islã é mediada por uma série de vínculos
viscerais, operações corpóreas que são in/conscientemente performadas. Eu
considero esses vínculos importantes não apenas para aqueles que ativamente
se inscrevem em uma tradição (i.e. Muçulmanos devotos), mas também para
aqueles que (ocasionalmente) adotam uma posição de não-conformidade.
Esses atores estão no centro de minha pesquisa etnográfica atual.
De modo a explorar esta interrogação teórica, eu gostaria de mergulhar
nos mundos e experiências de uma de minhas interlocutoras — uma mulher
que chamarei de Zakia. Conheci Zakia durante o trabalho de campo de
minha tese de doutorado. Zakia estava, naquele momento, envolvida com o
movimento Présence Mulsumane. O movimento funcionava como uma das
redes mais organizadas e estruturadas de Bruxelas e reunia uma variedade de
ativistas interessados em colocar as questões da “cidadania” e da “espiritualidade”
no coração de seus engajamentos comunitários. Fundada no fim dos anos
1990, com uma filiação pronunciada com as redes da Irmandade Muçulmana
(apesar da maioria dos membros não pertencer a esta organização), e organizada em torno de figuras-chave como Tariq Ramadan e Hassan Iquioussen,
o movimento Présence Mulsumane mobiliza centenas de ativistas no espaço
europeu francófono através de reuniões regulares e momentos formais e
informais de troca. Zakia tem sido um membro ativo desta rede por vários
anos. Quando perguntada se ela aceitaria ser entrevistada para o meu projeto,
ela prontamente aceitou. Nossa entrevista aconteceu em sua casa. Era um
apartamento pequeno e aconchegante, que imediatamente me colocou em
um estado de ânimo acolhedor por causa da luz de velas e do cheiro relaxante
dos incensos que preenchia o espaço. Quando eu notei isso e mencionei o
quão relaxada estava, ela explicou que tinha trabalhado conscientemente para
criar aquela atmosfera em seu apartamento, porque a sua casa representava
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um refúgio, onde ela podia desafogar e de fato “sentir-se em casa”, física e
espiritualmente. Ela era bastante atraída pelo budismo e essa busca espiritual
por orientações alternativas também se refletia em sua relação com o islã. Em
diversas ocasiões, Zakia descreveu a si mesma como uma “ovelha desgarrada”,
que estava desesperadamente em busca por algum tipo de orientação espiritual que ela não mais encontrava em sua comunidade. Isso tinha a ver, entre
outras coisas, com uma série de interrogações fundamentais sobre a tradição
islâmica, uma delas incidindo sobre o princípio da revelação do Corão. Tendo
sido treinada em linguística, Zakia não poderia aceitar a visão dominante que
o Corão figuraria como uma emanação direta das palavras de Deus — uma
ideia geralmente aceita pela maioria dos muçulmanos e considerada um dos
princípios basilares da tradição islâmica. Na passagem que segue, ela esclarece
o dilema em que se encontrava:
Eu acredito que uma Mensagem foi enviada, e que ela era inicialmente oral...
Mas para mim é inconcebível que um texto que atravessou tantos séculos permaneça intacto [...]. Eu respeito o Corão, e estou certa de que Deus enviou uma
mensagem. Mas a Bíblia, a Bíblia nós também questionamos [sua autenticidade
— NF]. Porque esse não seria o caso com o Corão? Porque há um verso que o
afirma intocado? Eu acredito que é a versão que temos disponível que permanece
intocada. Que Deus me perdoe se eu estiver enganada. Eu falo apenas com a
minha alma e a minha consciência e acho que... Se eu estou errada, eu peço
a Deus que me guie. Que ele me guie. Eu não quero influenciar ninguém, e
eu espero que eu não a tenha ofendido com essa palavras hoje. Então... voilà.
Alguns aspectos podem ser destacados da narrativa de Zakia, elementos
sobre os quais eu gostaria de brevemente refletir ao comentar sobre meu
interesse na questão da encorporação e no trabalho de Saba Mahmood. O
primeiro deles está na observação de que a relação de Zakia com a tradição
o islâmica é condicionada e marcada por um engajamento com o texto que
vai além da bifurcação entre intelecto e corpo, já que implica essas duas
dimensões. A ideologia semiótica proposta por Zakia (Keane, 2007), que
não concebe o Corão como a palavra de Deus, mas como um texto históDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019
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Nadia Fadil
rico, não foi fruto de um mero exercício intelectual, já que está imbricada
em um “lar” afetivo. O trabalho de gradualmente alçar esse entendimento
do Corão não a deixou incólume. Ele implicou a totalidade de sua pessoa.
Essa observação foi comum à maioria das minhas interlocutoras, que enquadravam a “descoberta” desta abordagem hermenêutica alternativa como um
“choque”, assim como a “descoberta” de que a prescrição do véu não era de
fato verdadeira como um momento de “confusão emocional”, levando-as
ao que chamo em outra ocasião de um sentimento de marginalidade e
isolamento epistemológico (Fadil, 2011). Os debates hermenêuticos sobre
fontes religiosas e práticas eram portanto mediados por uma série de emaranhamentos afetivos que pareciam escapar ao modelo diligente e consistente
das práticas de cultivo de si descritas por Mahmood (2005), mas que mesmo
assim iluminavam como esses debates exegéticos se desenrolavam sobre
camadas afetivas profundamente sedimentadas (Hirschkind, 2006).
Segundo, em duas ocasiões durante nossa entrevista, Zakia usa a metáfora da “ovelha desgarrada” para se autocaracterizar. Esta metáfora advém
da famosa parábola bíblica do “Bom Pastor”, em que Jesus fala para seus
seguidores sobre as características da boa liderança moral. A tarefa pastoral
de guiar os cristãos para uma direção correta, salvá-los quando eles erram e
manter o rebanho unido está no coração desta narrativa. Essa convergência
entre cuidado coletivo e individual inspirou Foucault e outros a refletir sobre
como o poder pastoral é condicionado por uma lógica simultaneamente
individualizante e totalizante (omnes et singulatim). No entanto, enquanto a
narrativa dominante sobre o autoconhecimento liberal tende a se basear em
um entendimento do sujeito [Self] construído em oposição a um “outro”, a
narrativa de Zakia parece ser mais ambivalente a esse respeito. Observamos
em seu caso um sentimento de exasperação moral, que reflete um profundo
isolamento (i.e. estar sozinha em seus questionamentos). Esse esforço solitário
tem sido central para tratados filosóficos Ocidentais do século XIX e início
do século XX (Kierkegaard, Nietzsche, Sartre), que refletem sobre como a
existência enquanto sujeitos autônomos é igualmente condicionada por um
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sentimento profundo de desconexão. Zakia parece refletir sobre esse tipo
de trabalho emocional, que subjaze à constituição individualista do sujeito.
Mas há algo a mais. Em suas últimas frases, nós testemunhamos que,
para Zakia, viver como uma muçulmana também significa viver em conexão
com outros (ou um tipo particular de outro) e de assim beneficiar-se de algum
tipo de liderança moral. Suas palavras logo também podem ser lidas como
uma prática confessional, em que ela não apenas expressa suas dúvidas, mas
que igualmente pede a Deus para guiá-la (Hollywood, 2004). Essa imbricação profunda com os outros torna-se particularmente reveladora em suas
últimas frases, em que Zaria pede a mim — Nadia, a pesquisadora — que
não se ofenda com suas palavras. Apesar de a entrevista ter sido claramente
colocada como um contexto de pesquisa (fiz o máximo para colocar-me de
maneira mais neutra possível), eu ainda fui percebida e interpelada como
uma muçulmana. Esse ato parece transformar o que parecia, à primeira
vista, uma empreendimento acadêmico e “profissional” em um testemunho
pessoal através do qual eu, uma pesquisadora muçulmana, tornava-me
uma testemunha e talvez mesmo uma aliada em sua trajetória, o que a fez
desculpar-se por suas palavras, caso elas houvessem me ofendido.
Dois elementos devem ser destacados aqui. O primeiro é o corpo da
pesquisadora e o modo com que nós aparecemos não como sujeitos “neutros”,
mas como sujeitos encorporados. Essa questão tem emergido frequentemente
em minha pesquisa, já que tenho sido frequentemente guiada por meus
interlocutores a domínios de sua vida privada que eles, em outro caso, considerariam “pecaminosos”. Sempre me sinto desconfortável quando pergunto a
eles sobre suas vidas sexuais ou se eles consomem álcool. Ao fazer isso, estou
de fato questionando publicamente práticas que não apenas pertencem ao
domínio privado (referido pelo termo êmico hchouma), mas que também
têm uma existência legítima enquanto práticas sociais justamente por não
existirem discursivamente. Muito das práticas não-conformistas de meus
interlocutores (ou para manter o léxico teológico: práticas pecaminosas)
não eram necessariamente naturalizadas enquanto “práticas seculares”, mas
permaneciam geralmente no domínio do não-discursivo. Alguns de meus
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Nadia Fadil
informantes tiveram relações sexuais fora do casamento e ocasionalmente
beberam álcool, etc. Mas essas práticas não eram necessariamente entendidas
como significativas para a sua autoconstituição como muçulmanos (nem
necessariamente resultavam em dilemas morais). Aqueles que, por outro lado,
consideravam essas práticas significativas, tornavam-nas significantes de uma
posição subjetiva distinta — ou seja, aquela do ser “secular” ou “liberal”.
É claro que, ao tentar circunscrever verbalmente as suas interrogações epistemológicas, Zakia estava igualmente posicionando-se — logo, constituindo-se
— discursivamente. Vimos acima como esse não é um processo absolutamente
claro – não apenas por causa de seu sentimento de isolamento, mas também
porque ela parece temer os efeitos performativos de suas palavras em minha
própria subjetividade ética. Isso me leva a meu segundo ponto: a sensibilidade
de meus interlocutores sobre como as suas orientações pessoais poderiam
ressoar ou se relacionar com a avaliação de outros, algo que considero próximo
ao que Mahmood alude quando descreve a relação particular que vincula os
muçulmanos devotos ao profeta (schesis). Muitos dos meus informantes de
fato se posicionavam de maneira prudente quando expressavam suas dúvidas
sobre a tradição. Outros preferiam mantê-las para si mesmo, especialmente
em frente a seus pais. Para um outro tipo de interlocutor, por sua vez, o ato
de explicitamente “perturbar” os afetos cercantes (algo que estaria no coração
da norma do “sair do armário”) era essencial para a sua autocompreensão.
Sua capacidade de existir era condicionada pela habilidade de performar uma
conduta potencialmente ofensiva (em outras palavras: eu existo porque eu
ofendo). Ao traçar essas várias trajetórias éticas, meu interesse é entender como
a subjetividade muçulmana de meus interlocutores é mediada por uma série
de práticas de cultivo de si e “relações vivas”.
REFERÊNCIAS
ASAD, Talal. The Idea of an Anthropology of Islam. Washington: Georgetown
University, 1986. (Occasional Papers Series).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019
183
ENCORPORAÇÃO
COOLEY, Charles. Human Nature and the Social Order. New York: Scribner’s, 1902.
FADIL, Nadia. Not-/Unveiling as an Ethical Practice. Feminist Review,
London, v. 98, n. 1, p. 83-109, 2011.
HALL, Stuart. Introduction: Who Needs Identity? In: HALL, Stuart; DUGAY,
Paul (ed.). Questions of Cultural Identity. London: Sage, 1996. p. 1-17.
HIRSCHKIND, Charles. The Ethical Soundscape: Cassette Sermons and
Islamic Counterpublics. New York: Columbia University Press, 2006.
HOLLYWOOD, Amy. Gender, Agency, and the Divine in Religious Historiography. The Journal of Religion, Chicago, v. 84, p. 514-528, 2004.
KEANE, Webb. Christian Moderns: Freedom and Fetish in the Mission
Encounter. Berkeley: University of California Press, 2007.
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject.
Princeton: Princeton University Press, 2005.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 177-183, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99964
ÉTICA
Jean-Michel Landry1, 2
Os escritos de Saba Mahmood sobre a ética (Mahmood, 2001, 2005)
são frequentemente discutidos sob a rubrica de “ética da virtude” e associados à teorização singular de Michel Foucault sobre este tema. Politics of
Piety (2005) é largamente reconhecido como um marco da chamada “virada
ética” na antropologia e um texto essencial para a compreensão antropológica das práticas de subjetivação que fazem a vida ética possível. Essa visão
de fato captura importantes aspectos da abordagem de Mahmood para a
ética, mas também ignora uma série de outras dimensões de sua obra, que
foram determinantes para a minha pesquisa etnográfica (Landry, 2016)
entre seminaristas libaneses xiitas.
Durante minha pesquisa de campo, acompanhei as aulas e outras práticas
pedagógicas que permitem jovens muçulmanos xiitas se constituírem como
agentes humanos de uma figura mística chamada “O Imã Escondido”.
Enquanto os sunitas usam o termo imã para descrever líderes litúrgicos, os
xiitas reservam esse termo para os descendentes de Muhammad, escolhidos
por Deus para guiar os fiéis. Eles também asseguram que o último membro
desta linhagem sagrada ocultou-se (ghayba) em 874 DC e permanece escondido dos olhos dos vivos desde então. Ao longo dos últimos séculos tornou-se
um consenso entre os xiitas que clérigos bem treinados podem se tornar
representantes (na’ib) do Imã Escondido. Muçulmanos devotos consultam
estes clérigos para saber como obedecer a lei da sharia em circunstâncias
contemporâneas. É correto investir em Bitcoins? A tecnologia de DNA
pode determinar a filiação de uma criança? O aborto é lícito? Clérigos xiitas
1
2
É professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade de Carleton,
Canadá. E-mail: jeanmichel.landry@carleton.ca.
Tradução por Bruno Reinhardt.
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Jean-Michel Landry
respondem estas questões desvelando as opiniões dessa figura escondida que
habita nosso meio.
Xiitas devotos que buscam tornar-se autorizados para falar em nome
do Imã devem se matricular em seminários (hawza, plural: hawzat), onde
eles devem aprender a decifrar o corpus que agrega as revelações de Deus
a Muhammad (o Corão) e narrativas de como o profeta, sua filha mais
nova e os imãs encorporaram [embodied] essas revelações. O currículo das
Hawzat começa com classes de gramática, retórica e lógica. Seminaristas
recém-chegados também são treinados em jurisprudência islâmica (fiqh) e
hermenêutica corânica (tafsir). Os mais avançados aprendem a confrontar
questões ético-jurídicas ao interpretar o corpus islâmico, eventualmente
também dialogando com a teoria social moderna (e.g., Durkheim, Marx).
Ser reconhecido como um fiel representante do Imã Escondido, no
entanto, demanda muito mais do que domínio da jurisprudência da sharia
e da lógica aristotélica. Esse status também demanda mais do que a habilidade de articular regras e conselhos baseados nos textos sagrados do islã.
Clérigos em busca de uma voz autorizada — e eventualmente de seguidores — devem forjar a si mesmo enquanto exemplares merecedores de
uma emulação sem reservas (taqlid). Seminários xiitas oferecem classes de
ética (akhlaq), que ajudam os estudantes a cultivar um caráter exemplar e
comportamentos inspiradores. Aqueles que atendem e oferecem essas aulas,
no entanto, destacam que uma parte significativa deste trabalho também
envolve emular a conduta de figuras reverenciadas (ex. o profeta, os imãs)
através de interações diárias como vizinhos, amigos e estranhos.
Logo me tornei intrigado por esse tipo particular de práticas. Quais
são elas? Como seminaristas aprendem a sua performance? O que emergia
dessas conversas com o estudantes não era exatamente uma narrativa sobre
a formação do Self, mas um sentimento de que o trabalho ético que eles
realizavam era dirigido por — e não poderia ser separado de — preocupações sobre a condição moral da comunidade. Ao discutir suas estratégias
de cultivo de si, por exemplo, seminaristas frequentemente sublinhavam a
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019
ÉTICA
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urgência de se contrapor ao ethos consumista que permeia o ambiente xiita
desde o fim da guerra civil libanesa. Outros insistiam que desigualdade
social e corrupção perduram por detrás da fachada de símbolos religiosos
pela qual as vizinhanças xiitas do Líbano são hoje conhecidas. Gradualmente
se tornou claro para mim que o projeto de cultivo de si de meus colegas de
classe era indissociável de um projeto muito mais amplo que visava cultivar
um ambiente mais pio e justo.
Essas conversas, assim como as minhas experiências nas aulas de hawza
me forçaram a pensar sobre a relação (talvez a sinergia) entre cultivo de
si e transformação social. Podemos caracterizar esses dois esforços como
éticos? Se não, por quê? Perseguir essas questões me colocou à contrapelo
da literatura antropológica recente sobre a ética (ou “a nova antropologia
da ética”), que tende a dar prioridade ao primeiro esforço em detrimento
do segundo. Muitos protagonistas da chamada virada ética de fato conceituam a ética como um assunto largamente privado, que começa e termina
no Self: ela é um processo de auto-bricolagem (Rabinow, 1997), uma arte
de si (Connolly, 1999) ou uma forma de auto-invenção (Deleuze, 1990;
Massumi, 2002). Até mesmo Foucault, com quem o trabalho de Mahmood
é associado, frequentemente descreve o Self humano como objeto e sítio
da ação moral (Foucault, 1997).
Infelizmente, essas abordagens deixam pouco espaço para se pensar
sobre as dimensões coletivas da ética ou sobre como o cultivo de si se articula
com aspirações sociopolíticas mais amplas. Quando comecei a compartilhar
essas reflexões em diferentes ambientes acadêmicos, eu era frequentemente
questionado se o meu argumento era dirigido — conscientemente ou não
— contra o trabalho de minha orientadora, Saba Mahmood. Essa questão
a princípio me pegava desprevenido: nem eu nem a própria Saba tínhamos
entendido minha abordagem para a ética como um contraponto ao seu
trabalho. Justamente o contrário: ao trabalhar de maneira próxima a ela,
eu vim a perceber que a sua teorização da ética (diferente de muitas outras)
recusava-se a tomar o Self como o horizonte último da ética.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019
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Jean-Michel Landry
Em Politics of Piety, ela de fato faz uma série de importantes comentários sobre a noção do Self e seu significado para uma antropologia da ética.
Quando lidos de perto, no entanto, esses comentários mostram que a ética
para ela envolve muito mais do que processos centrados no Self per se. No
fim do primeiro capítulo, Mahmood relembra seus leitores que as práticas
éticas de cultivo de si que ela analise não são orientadas pelas escolhas individuais. Seus interlocutores do movimento da’wa não criam a si mesmos,
eles intencionalmente se submetem a algo maior e mais antigo do que eles
mesmos, ou seja, a uma tradição compartilhada. O Self portanto não é
produto da criatividade e deliberação dos sujeitos, mas sim “um produto
das tradições discursivas historicamente contingentes nas quais ele está
localizado” (Mahmood, 2005, p. 32).
Mas há ainda outras formas através das quais as práticas éticas viajam
para além dos confins do Self. Algumas páginas abaixo, Mahmood esclarece que “a eficácia política [dos movimentos islâmicos] é uma função do
trabalho que eles realizam no campo ético” (Mahmood, 2005, p. 35), para
mais tarde afirmar que os programas de cultivo de si que ela analisa são “uma
condição necessária” (Mahmood, 2005, p. 152) para a agência política destes
movimentos. Tomadas em conjunto, essas passagens sugerem que as práticas
éticas frequentemente excedem os limites do Self: elas alimentam projetos e
reforçam a eficácia política dos movimentos religiosos que Mahmood analisa.
Em outras palavras, o cultivo de capacidades éticas (como a modéstia e a
honestidade) tem importantes repercussões políticas; elas ajudam a “criar
uma nova ordem social e moral” (Mahmood, 2005, p. 193). Apesar de
Politics of Piety deixar em aberto a questão de como a ética deve de fato
se relacionar com a política, somos continuamente lembrados da sinergia
existente entre os dois domínios.
Qualquer conversa sobre a antropologia da ética de Saba Mahmood
hoje tenderá a orbitar sobre as noções de cultivo de si, virtudes individuais,
subjetivação e conceitos afins, que ela compartilha com outros acadêmicos
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019
ÉTICA
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do campo. Mas acredito que o modo mais frutífero de explorar as questões
que seu trabalho suscita seria colocar essas questões à luz do problema da
apreensão do “ético em termos do político, e vice-versa” (Mahmood, 2005,
p. 194). Reter essa continuidade entre a política e a ética pode de fato nos
ajudar a entender melhor a última frase de seu último livro, Religious Difference in a Secular Age (2016). Ali ela escreve que “a ideia de igualdade entre
as fés pode requerer não a suspensão [bracketing] das diferenças religiosas,
mas a sua tematização ética” (Mahmood, 2016, p. 213, grifo da autora).
REFERÊNCIAS
CONNOLLY, William. Why I Am Not a Secularist. Minneapolis: Minnesota
University Press, 1999.
DELEUZE, Gilles. Negotiations, 1972–1990. New York: Columbia University Press, 1990.
FOUCAULT, Michel. The Ethics of the Concern for Self as a Practice of
Freedom. In: RABINOW, Paul (ed.). Ethics, Subjectivity and Truth. New
York: New Press, 1997. p. 281-301.
LANDRY, Jean-Michel. The Practice of Shi‘i Jurisprudence in Contemporary
Lebanon. 2016. Thesis (Ph.D. in Anthropology) – University of California,
Berkeley, 2016.
MAHMOOD, Saba. Feminist Theory, Embodiment, and the Docile Agent:
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Arlington, v. 16, n. 2, p. 202-236, 2001.
MAHMOOD, Saba. Politics of Piety: the Reform of the Feminist Subject.
Princeton: Princeton University Press, 2005.
MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report.
Princeton: Princeton University Press, 2016.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019
190
Jean-Michel Landry
MASSUMI, Brian. Parables from the Virtual: Movement, Affect, Sensation.
Durham: Duke University Press, 2002.
RABINOW, Paul. Introduction: the History of Systems of Thought. In:
FOUCAULT, Michel. Ethics: Subjectivity and Truth. New York: The New
Press, 1997. p. XI-XLII. (The Essential Works of Michel Foucault 1954–
1984, v. 1).
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 185-190, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99965
ÉTICA
Mareike Winchell 1, 2
Seja enquanto caminhávamos pelos bosques perfumados de eucalipto de
Wildcat Canyon ou navegávamos a multidão de estudantes que cruzavam a
avenida Shattuck em Berkeley, minha amiga e mentora Saba Mahmood sempre
demandou o máximo de mim. Ela demandava clareza de argumento e uma
habilidade resoluta de encarar incertezas e expor minha ideias e intenções.
Em retorno, ela me ensinou como sentar diante de um problema etnográfico, habitá-lo, dar-lhe seu devido respeito enquanto uma formação histórica
e cultural distinta. Nesse curto ensaio, reflito sobre um problema empírico
e um conceito normativo central para o trabalho de Saba, assim como para
o meu: a desigualdade. Ecoando as intensidades corporais através das quais
nossas conversas frequentemente se desenrolavam, Saba me ensinou a abordar
esse problema não apenas através de ideais jurídicos e passados legislativos,
mas também de texturas, afetos e práticas cotidianas. Afinal de contas, Saba
nunca permitiu aos conceitos o privilégio de existir em um mundo sem
limites, desprovido das vulnerabilidades que caracterizam a vida próxima às
superfícies da terra. Tratar conceitos como materializações instáveis é particularmente importante para os antropólogos preocupados com as questões
éticas e políticas da desigualdade — seja nas tradições religiosas, nas relações
de gênero, ou nas estruturas racializadas de marginalidade e risco.
Em seu primeiro livro, Politics of Piety: the Islamic Revival and the
Feminist Subject (2005), Mahmood nos apresenta os casos de Sana e Nadia.
Cada uma delas, Mahmood nos mostra, está lutando com questões sobre a
desigualdade de gênero com relação a seus maridos e a categorias patriarcais
mais amplas relativas à autoridade religiosa. Enquanto Sana abraça uma
1
2
É professora do Departamento de Antropologia da Universidade de Chicago, EUA.
E-mail: mareike@uchicago.edu.
Tradução por Bruno Reinhardt.
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Mareike Winchell
nova linguagem, a da autoestima, de modo a dar sentido à sua condição
de marginalidade, Nadia se apega à prática de sabr, a virtude islâmica da
persistência, enquanto um modelo para se viver e habitar a sua marginalidade. No entanto, Mahmood argumenta que
[…] o exercício de sabr não impediu Nadia de embarcar em projetos de
reforma social, não menos que as práticas de autoestima mobilizadas por
Sana. Não se deve, portanto, extrair correlações pouco fundamentadas entre
uma orientação secular e a habilidade de transformar condições de injustiça
social. (Mahmood, 2005, p. 174).
Enquanto nenhuma das mulheres foi completamente capaz de “levar a
cabo o projeto de reformar a situação opressiva em que elas foram forçadas
a participar” (Mahmood, 2005, p. 174), cada uma delas trouxe recursos
éticos distintos para habitar aquela situação. Apesar de não necessariamente
transformativos, Mahmood mesmo assim insiste que Nadia e Sana revelam
“dois modos distintos de se engajar com a questão da injustiça social, um
assentado em uma tradição que viemos a valorizar, a outra em uma tradição
não-liberal, que está sendo ressuscitada pelo movimento religioso com o
qual trabalhei” (Mahmood, 2005, p. 174).
O argumento é de uma simplicidade quase enganosa. Ao insistir que
os engajamentos com a injustiça sejam desagregados do domínio mais
legível e familiar da mudança através das reformas do Estado, Mahmood
expande dramaticamente os contornos do que os acadêmicos normalmente
entendem como ética, por um lado, e engajamento político com a justiça,
por outro. Nenhuma dos dois, ela demonstra, deveriam ser predicados na
transformação social enquanto capacidade ou fim.
Mahmood retorna à questão da igualdade no prefácio de seu segundo
livro: Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report (2016). Nessa
ocasião, ela se pergunta sobre “o ideal da igualdade religiosa” e “sua significância enquanto um mandato jurídico, mais do que uma aspiração humana,
que caracteriza nosso imaginário secular moderno” (Mahmood, 2016, p. 28).
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ÉTICA
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Insistindo, mais uma vez, que a igualdade mediada pelo Estado e pelo direito
deveria ser distinguida da igualdade enquanto “aspiração”, ela argumenta
que cada uma delas requer “diferentes tipos de ação social” (Mahmood,
2016, p. 28). Porque o secularismo “reduz o ideal da igualdade religiosa a
uma política dos direitos e do reconhecimento, ele privilegia a agência do
Estado” (Mahmood, 2016, p. 28). Por outro lado, no epílogo, ela conclui o
livro desafiando nossa “incapacidade coletiva de imaginar uma política que
não trate o Estado como o árbitro das relações maioria-minoria” (Mahmood,
2016, p. 213). Dada essa condição, “o ideal da igualdade inter-religiosa”
requer que nós não nos intimidemos com as diferenças (e desigualdades)
religiosa, mas que nós as tematizemos eticamente, em particular porque os
recursos do Estado têm se provado inadequados para se resolver as disparidades
existentes. Pelo contrário, o livro mostra como abordagens institucionais para
a igualdade religiosa no Oriente Médio, assim como em outros lugares, tem
servido para “hierarquizar as diferenças religiosas, consagrar normas religiosas
e culturais majoritárias enquanto lei e identidade nacional, e permitir que
as desigualdades religiosas floresçam na sociedade enquanto as proclama
apolíticas” (Mahmood, 2016, p. 212). Ao assegurar a igualdade formal,
abordagens jurídicas não apenas não resolvem, mas podem até asseverar e
criar novas divisões e desigualdades entre sujeitos e grupos religiosos.
Uma das contribuições-chave de Mahmood, que atravessa esses textos,
refere-se à sua problematização de nossas convenções sobre a desigualdade.
A desigualdade tende a ser enquadrada como perversão ou variância de uma
igualdade apriorística de outro modo natural — uma premissa devedora das
filosofias dos direitos naturais do século XVII. Em contraposição, Mahmood
pergunta-se sobre as possibilidades que emergem da tematização da desigualdade enquanto um traço constitutivo dos mundos sociais, algo que não
pode ser simplesmente obliterado pelas promessa de igualdade jurídica ou
pelo horizonte de premissas do humanismo universalista.
Muitos trabalhos recentes em antropologia se alinham com o chamado
de Mahmood para uma atenção renovada para a desigualdade. Ao invés de
ver a desigualdade como uma aberração, esses trabalhos a abordam com
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Mareike Winchell
uma característica constitutiva da vida cotidiana, endereçada por diferentes
tradições jurídicas, culturais e religiosas de modos divergentes3. Empregando
os termos de Mahmood, esses trabalhos tematizam a diferença enquanto algo
constitutivo às práticas éticas através das quais as pessoas habitam a injustiça, seja em termos de desigualdades constitutivas entre sujeitos, seja em
termos de desigualdades institucionais atreladas a modos liberais-jurídicos
ou não-liberais de se engajar e dar sentido ao risco.
Meu trabalho coloca esse corpus antropológico recente sobre a desigualdade em diálogo com pesquisas sobre os múltiplos sentidos do dinheiro e da
riqueza na América do Sul e explora os modos com que falantes de Quéchua
e Espanhol da região boliviana de Ayopaya imaginam, habitam e endereçam
a desigualdade (Winchell, 2017). Enquanto a história de servidão agrária em
Ayopaya perdura em estruturas racializadas contemporâneas de disparidade,
argumento que ela também fornece idiomas particulares de obrigação que os
falante de Quéchua dessas aldeias mobilizam de modo a desafiar o comportamento das novas elites, ligadas à extração do ouro. Contrária a narrativas mais
pessimistas sobre o capitalismo tardio como um movimento de inexorável
abandono, particularmente para as populações indígenas, eu me pergunto
sobre a longevidade da obrigação e exploro as suas possibilidades como prática
de reivindicação (e como uma heurística acadêmica), que trabalha para expor
— e contestar — a recusa ética em que a troca “livre” se fundamenta. Desse
modo, as práticas de reivindicação dos habitantes de Ayopayan emergem como
fontes de insight para possibilidades mais amplas de se pensar a obrigação como
uma orientação ética para a desigualdade, ou seja, enquanto uma analítica
que insiste na riqueza como relação.
3
A literatura sobre desigualdade é robusta. Por abordagens etnográficas do engajamento
ético com esses problemas, veja-se em particular Bornstein (2012); Duggan (2004);
Englund (2011); Ferguson (2013); Green (2005); Guyer (2012); Leinaweaver (2008);
Muehlebach (2012); Piliavksy (2014); Ramberg (2014). Por tratamentos clássicos sobre
a desigualdade e a hierarquia, veja-se Dumont (1966); Mauss (2016); e Marx (1972).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019
ÉTICA
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Essa abordagem avança a preocupação duradoura de Mahmood com
os recursos éticos divergentes com que as pessoas vivem a desigualdade.
Assim como ela, eu insisto que nossos recursos para se pensar a desigualdade
são empobrecidos quando presumimos uma igualdade “natural” e então,
quando não a encontramos, recorremos ao Estado para restaurar ou retornar
aquilo que nunca deveria ter sido violado. Ao invés disso, eu foco em como
as pessoas habitam a injustiça social quando não são capazes de realizar
projetos reformistas de transformação de suas circunstancias e condições
de vida. Eu entendo que Mahmood insiste que levemos a sério as práticas
éticas de habitação, mesmo quando elas divergem de nossa preocupação
valorosa com a reforma social via projetos seculares liberais orientados para
a justiça enquanto ente jurídico.
Na minha pesquisa, tenho destacado os modos complexos com que
práticas de patronagem e reciprocidade conectadas ao modelo da hacienda
moldam relações contemporâneas entre as elites espano falantes e aldeãos
falantes de Quéchua na região mineradora de Ayopaya, Bolívia. Durante
meu trabalho de campo entre 2010 e 2012, e em novas viagens de pesquisa
em 2015 e 2017, aprendi sobre a importância do sistema de haciendas da
região não apenas como um referente histórico, mas também como uma
dobradiça relacional que ocupa o centro de uma complexa rede de reciprocidade e ajuda. Redes de ajuda eram comuns durante a era das haciendas e
elementos delas se mantiveram primordiais no tempo em que conduzi minha
pesquisa de campo. Por exemplo, os parentes de certos proprietários de terras
proviam aldeões falantes de Quéchua com ajuda em transporte, roupa e
comida, remédios, assim como dinheiro para se pagar educação, batismos,
casamentos, ou funerais. Ao mesmo tempo, aldeões também retrabalhavam
criticamente e estendiam idiomas de patronagem para contestar os novos
arranjos sociais relativos à economia do ouro na região. Apesar da abolição
legal da instituição da hacienda em 1953 e a mudança subsequente para
o trabalho assalariado, na Bolívia, a abolição da hacienda não resultou na
dissolução absoluta de relações “verticais” em um individualismo suposta-
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019
196
Mareike Winchell
mente atomizado e livre. No entanto, ao invés de execrar a existência desses
vínculos patrimoniais, minha abordagem explora os modos criativos com
que os aldeões articulam estes idiomas existentes para desafiar tendências
individualistas de uma nova e mais ostensivamente “livre” economia de
extração aurífera. Respondendo a essas demandas, eu procuro reestabelecer
a obrigação não apenas como uma base para reivindicações populares na
Bolívia mas também como uma heurística acadêmica para escavar as bases
relacionais que a troca “livre” pretende negar.
Essa mobilização popular ativa de redes patrimoniais históricas problematiza narrativas sobre o patrimonialismo latino-americano como um resquício
colonial que constrange a agência nativa. Acadêmicos tendem a ver a patronagem como uma subsistente “força de hábito” (Pilavsky, 2014). Na América
Latina, acadêmicos têm tendido a localizar a agência social não na patronagem,
mas na habilidade de abandonar laços patrimoniais, associada a uma “consciência desenvolvida”, capaz de refletir sobre sua própria condição na estrutura
de classes. Essa posição nega a possibilidade de que os vínculos entre elites
e trabalhadores possam ser mais do que acidentes históricos ou sintomas de
manipulação. De forma contrária, minha pesquisa mostra como meus interlocutores de fato retrabalham tradições herdadas de trocas assimétricas de modo
a produzir uma crítica política e econômica do presente, incluindo o uso de
ideais baseados nas hacienda relativos à obrigação das elites, tendo em vista
desestabilizar as economias regionais do ouro (Winchell, 2017). A extensão
criativa dos idiomas morais da hacienda para os novos proprietários de minas
destaca como as instituições “paternalistas” herdadas operam não apenas como
um limite para a agência camponesa, mas também como um mediador para
reivindicações e críticas. Enquanto as demandas patrimoniais são geralmente
posicionadas à contrapelo dos ideais liberais de igualdade e autonomia, elas
no entanto reclamam atenção neste caso não como bloqueios a uma história
política progressiva, mas também como atos desde sempre políticos. Ao insistir
que o status deve ser ligado a formas de responsabilização, esses aldeões bolivianos (assim como em outros lugares) rejeitam a valorização da acumulação
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ÉTICA
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abstrata da qual depende o trabalho “livre”. Tais práticas demonstram que as
relações de abandono que podem parecer evidentes para os acadêmicos não
são vividas enquanto tal em qualquer parte.
Atenção para a força contínua de demandas baseadas na patronagem
problematiza visões teleológicas sobre o capitalismo enquanto deslocamento cronológico de relações realmente existentes de obrigação e seu
acoplamento em relações atomizadas de alienação. Da mesma forma, ela
interrompe narrativas seculares sobre a necessidade da governança liberal
como um meio de se adjudicar a diferença religiosa e cultural. Seguindo
Mahmood, podemos nos perguntar sobre quais tipos de ação política essas
tendências descritivas permitem e ocluem. Levar a sério as práticas de troca
assimétrica e suas reivindicações em funcionamento em Ayopaya requer que
os acadêmicos abordem a justiça não apenas como igualdade formal a ser
realizada por reformas jurídicas, mas também como uma aspiração que guia
práticas existentes e modos de habitar a marginalidade. Recompor a justiça
dessa forma revela um modo de se entender a desigualdade menos como
uma aberração legal e mais como uma propriedade relacional constitutiva
dos mundos contemporâneos. Aqui, assim como em outros lugares, sou
devedora da insistência de Saba em aprender com a materialização incerta
dos conceitos: as hierarquias existentes que interrompem as fantasias da
“igualdade” enquanto um conceito universal e transhistórico. Em um nível
mais pessoal, essa materialização desestabiliza a ilusão confortável de nossa
inocência com relação à desigualdade e as demandas éticas que ela nos
coloca no presente, demandas das quais ninguém está inteiramente isento.
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Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 191-199, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99966
HERMENÊUTICA
Bruno Reinhardt1, 2
O status da hermenêutica na obra de Saba Mahmood ganha em clareza
quando colocado em contraponto com a antropologia interpretativa de
Clifford Geertz. Geertz nos ensinou que os antropólogos traduzem textos
culturais ao interpretarem como outros interpretam, de maneira recursiva e
simétrica. Nada mais distinto que a abordagem proposta por Mahmood, que
de certa forma liberta a hermenêutica nativa da hermenêutica antropológica,
e produz conhecimento através da fricção e da incompatibilidade, mais do
que da traduzibilidade entre esses dois estilos de leitura3.
A história profunda da antropologia interpretativa remete ao Romantismo
Alemão, Schleiermacher, Dilthey e Ricoeur, e ao processo sócio-histórico de
abstração das chamadas “hermenêuticas técnicas” — ferramentas exegéticas
mobilizadas pela Teologia e pelo Direito — em uma “hermenêutica geral”,
método de análise tido como típico das ciências sociais e das humanidades.
Em um ensaio estratégico, Ricoeur problematiza o que considera o apego
último de Dilthey à hermenêutica técnica: a distinção entre Auslegung
(exegese textual) e Verstehen (compreensão) e argumenta que
[…] se há problemas específicos que são suscitados pela interpretação de
textos porque eles são textos e não linguagem falada, e se esses problemas
são aquilo que constitui a hermenêutica, então as ciências sociais podem ser
consideradas hermenêuticas i) contanto que seu objeto demonstre algumas
das propriedades constitutivas de um texto enquanto texto, e ii) contanto que
1
2
3
É professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. E-mail: bmnreinhardt@gmail.com.
Tradução por Bruno Reinhardt.
Sobre o tema da traduzibilidade no encontro antropológico, veja-se Asad (1986a).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
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Bruno Reinhardt
a sua metodologia desenvolva procedimentos da mesma ordem que aqueles
da Auslegung ou interpretação textual. (Ricoeur, 1971, p. 532).
Como podemos imaginar, sua resposta para ambas condições é afirmativa, e o modelo de Geertz da cultura-como-texto elabora sobre tal
axioma. Geertz também compartilha com Ricoeur uma forte aversão ao que
considera a natureza impessoal e ahistórica do estruturalismo e seu foco em
sistemas de símbolos auto-referenciais, vendo na hermenêutica geral uma
alternativa para se resgatar o lugar da subjetividade e da atividade história
de significação na antropologia simbólica.
A antropologia interpretativa de Geertz viveu seu ápice nos anos 1970 e
80, e foi ofuscada desde então por uma série de concepções alternativas acerca
do objeto e da atividade antropológicos: de Roy Wagner e seu pioneiro A
Invenção da Cultura, passando pelo textualismo pós-moderno (uma radicalização das próprias pressuposições de Geertz) à provincialização do chamado
“grande divisor” entre Natureza e Cultura proposta por Bruno Latour. No
entanto, considero encontrar-se na obra de Talal Asad a desconstrução mais
sistemática dos protocolos da antropologia interpretativa. Como sabemos,
a antropologia da religião e do secularismo de Saba Mahmood representa
uma contribuição crucial no interior desta linhagem acadêmica.
A crítica de Asad à antropologia interpretativa tem duas dimensões.
Primeiramente, Asad oferece uma genealogia cuidadosa do próprio processo
de secularização através do qual a Hermenêutica é extraída da teologia e
abstraída em um método científico neutro que unificaria as humanidades.
Segundo, Asad fornece uma abordagem mais imanente acerca da relação
entre textualidade e historicidade religiosas, tendo o Islã como parceiro
privilegiado. Essas duas questões são fortemente interdependentes, considerando que, para Asad, a chamada “religião vivida” seria inevitavelmente
entrelaçada com a pulsão secular de defini-la e regulá-la (Asad, 1993, 2003).
Em um ensaio influente, Asad (1983) demonstra que a definição de
religião promovida por Geertz, a de um sistema cultural orientado para o
problema do significado, seria uma atualização epistemológica pouco refleDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
HERMENÊUTICA
203
xiva do processo sociopolítico de longo prazo através do qual a categoria
universal de religião teria sido construída ao longo da formação do estado-nação secular na Europa e da sua expansão via imperialismo. Ao privilegiar
a “crença” e o “significado” imateriais, Geertz reencena a seu próprio modo
o recalque protestante das condições disciplinares através das quais essas
forças de fato emergem na prática. De maneira geral, Asad problematiza a
estabilidade dos textos culturais na antropologia interpretativa ao propor
um foco alternativo nas técnicas de subjetivação [ensoulment] e encorporação
[embodiment]. Ele se pergunta: “Quais são as condições através das quais os
símbolos religiosos podem de fato produzir disposições religiosas? Ou, como
o não-crente colocaria: como o poder (religioso) cria a verdade (religiosa)?”
(Asad, 1993, p. 33). Tais questões o levam a mover-se da análise de sistemas
simbólicos e rituais para um estudo mais aprofundado sobre a pedagogia
religiosa ou a aquisição de competências encorporadas [embodied]: “Será
que o conceito de treinamento religioso é inteiramente vazio?” (Asad, 1993,
p. 55). Enquanto a abordagem hermenêutica de Geertz privilegia o ato de
ler símbolos como um diacrítico da vida religiosa (talvez da vida cultural
em geral, já que religião e cultura para Geertz são quase sinônimos), Asad
recua e questiona-se sobre as práticas e sensibilidades autorizadas que tornariam tais símbolos legíveis. Esse processo nos levaria a avaliar se o adjetivo
“simbólico” seria de fato adequado ou não às realidades subjetivas e objetivas
gestadas por essas práticas e sob qual ponto de vista4.
Outro ensaio que merece ser destacado é The Idea of an Anthropology
of Islam (Asad, 1986b), onde a questão do texto e da textualidade aparecem
de maneira mais convencional, referindo-se à literatura sagrada e autorizada
do Islã. Nessa ocasião, Asad argumenta: “Se alguém quer escrever uma
antropologia do Islã, deve começar, assim como o fazem os muçulmanos,
4
A bibliografia sobre a variedade histórica e etnográfica da leitura enquanto técnica corporal,
modo de subjetivação e gênero interpretativo é longa. Destacaria respectivamente Manguel
(1997) e Boyarin (1993). Veja-se Asad (2003) e Allan (2013, 2016) sobre como o processo
de secularização implica na conversão de historicidades não-seculares em “literatura”.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
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Bruno Reinhardt
do conceito de uma tradição discursiva que inclui e se relaciona com os
textos fundamentais do Corão e das Hadith.” (Asad, 1986b, p. 15). A
textualidade do Islã é considerada por Asad uma parte intrínseca da historicidade desta tradição — o modo com que os muçulmanos concebem e
articulam passado, presente e futuro — ambos sendo cultivados através de
uma preocupação específica com a “performance apta” (Asad, 1986b, p. 15),
o que inclui a busca por significado lado a lado com posturas, pronúncias
do Árabe clássico, memorização, aspectos poéticos da recitação, o cultivo
de modos somáticos-afetivos de atenção e a produção de paralelismos entre
texto e vida5. A leitura de textos, neste caso, não é simplesmente uma busca
por interpretações historicamente ostensivas, sob a ótica secular. A leitura
é uma competência ética adquirida e um esforço vitalício por coordenar
temporalidades e princípios textuais com modos de agir, sentir, viver e ser.
É desse esforço que o objeto “Islã” emerge e se diversifica no tempo e no
espaço, logo ignorar esse processo só pode levar antropólogos a posições ou
essencialistas ou nominalistas sobre como defini-lo.
Politics of Piety, a etnografia de Saba Mahmood sobre o movimento
feminino das mesquitas no Egito (da’wa), é um livro de enorme fôlego e
criatividade, que articula de forma inovadora uma grande variedade de temas,
como refletido nas quase 6000 citações endereçadas a ele no momento em
que reviso esse texto. No que tange o problema da hermenêutica, Mahmood
torna o modelo de Asad mais etnograficamente situado e conceitualmente
preciso. Diante da proliferação de literaturas pedagógicas Islâmica no Egito
contemporâneo (gêneros como as fatwa populares e manuais de fiqh) e
a participação mais ativa das mulheres em sua produção, transmissão e
consumo, Mahmood opta por contrastar o modelo interpretativo do sujeito
religioso que lê símbolos em busca por significados com o modelo da habilitação ética, preferindo compará-lo a uma pianista “que submete-se ao, às
vezes doloroso, regime de práticas disciplinares, assim como às estruturas
5
Veja-se Hirschkind (2006) por uma abordagem seminal para os entrelaçamentos entre
esta tradição textual e processos de midiatização no Egito contemporâneo.
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HERMENÊUTICA
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hierárquicas do aprendizado prático [apprenticeship], em vistas de adquirir
tal habilidade” (Mahmood, 2005, p. 29). Textos sagrados, glosas autorizadas e manuais que regulam a vida cotidiana provêm modelos normativos
exemplares para uma série de exercícios ético-espirituais que textualizam
corpos e corporificam textos, processo que frequentemente engloba outros
artefatos materiais, como o véu.
Mahmood aborda essa relação em termos de “citacionalidade”, adaptando a um contexto islâmico o argumento de Judith Butler (1999) sobre
a normatividade do gênero: “a iterabilidade da performatividade já é uma
teoria da agência” (Butler, 1999, p. xxiv). Tal abordagem transcende debates
estéreis sobre se essa modalidade de leitura seria “literalista” ou “simbólica” ao
examinar práticas religiosas como formas generativas de sincronizar temporalidades sagradas e seculares. Mahmood demonstra que, ao interpretarem
como outros interpretam, antropólogos não operam em uma meta-escala
neutra, já que o ato de interpretação ele mesmo varia quando embutido
em regimes de prática e sensibilidades islâmicas ou seculares. A traduzibilidade entre esses regimes é fundamentalmente uma questão de poder, como
explora Mahmood em seu engajamento posterior com controvérsias, como
as polêmicas em torno das representações satíricas do profeta Muhammad na
Dinamarca (Mahmood, 2009, neste volume) e do romance Azazeel no Egito
(Mahmood, 2013), quando objetos e narrativas se movem entre domínios
religiosos e seculares ao evocar tanto os seus entrelaçamentos quanto as suas
fricções inevitáveis na modernidade.
O trabalho de Mahmood foi de grande inspiração para o desenvolvimento
de minha tese de doutorado sobre a pedagogia e política do treinamento
pastoral entre Pentecostais em Gana (Reinhardt, 2013). Eu me tornei particularmente interessado em expandir seu modelo de habilitação ética para além
da questão do cultivo de si, de modo a englobar o que Alasdair MacIntyre
(1999) chama de “redes de florescimento”. No meu caso, isso implicava em
considerar o millieu da habilitação pentecostal, comunidades hierárquicas de
prática formadas por conversos novatos e experientes, através das quais o ofício
do pastor é transmitido neste país, incluindo contextos institucionalizados,
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
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Bruno Reinhardt
como “Escolas Bíblicas” ou Seminários Pentecostais, onde fiz a maior parte
do meu campo. A dinâmica dessas redes formais e informais ressoava fortemente com que Jean Lave (2011), em seus estudos sobre o aprendizado da
alfaiataria na Libéria, chama de “participação legítima periférica”, uma forma
de transmissão baseada sobretudo em formas controladas e hierárquicas de
fazer coletivo. Ao examinar a dinâmica de transmissão nesses seminários não
pude deixar de notar que meus interlocutores também tendiam a insuflá-la
com a historicidade bíblica, seguindo um padrão hermenêutico bem similar
ao que Hans Frei (1974) chama de “figuração”, um regime interpretativo
e semiótico dominante antes do criticismo bíblico ganhar força na Europa
do século XVIII, submeter a autoridade desta narrativa à História secular e
assim propiciar a Hermenêutica geral (Reinhardt, 2014, 2016).
De acordo com Frei, três aspectos principais caracterizam a leitura
figural. Primeiro, as narrativas bíblicas descreviam ocorrências históricas,
logo o texto não provia “evidências” para eventos que se desenrolavam
em uma temporalidade não bíblica (o que Benjamin chama de o “tempo
vazio e homogêneo” da História secular). O texto fazia o que chamamos de
“sentido literal” dentro de uma historicidade em que Deus tinha um papel
definitivo. Segundo, a história bíblica era cumulativa, o que colocava o
problema da unidade de uma cânone altamente fragmentado. Essa tensão
era endereçada ao se fazer personagens, eventos, e profecias do Velho Testamento “figuras” de suas versões posteriores. O sentido figural era portanto
uma extensão ou realização do sentido literal e não o seu oposto, como no
caso do sentido “simbólico”. Isso se reflete no terceiro aspecto: a figuração
também extravasava as fronteiras do texto ao assistir o leitor a “incorporar
o pensamento, a experiência e a realidade extra-bíblica ao único mundo
detalhado e tornado acessível através da narrativa bíblica, não o contrário”
(Frei, 1974, p. 3). Uma figura bíblica portanto não é uma metáfora, mas
um evento histórico que antecipa outros eventos históricos ao desvelar um
padrão de iterabilidade divino.
Entre meus interlocutores — pastores neófitos e seus mestres — notei
uma tendência particular a sincronizar a historicidade bíblica e o processo
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
HERMENÊUTICA
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pedagógico em que participavam através de uma figuração de relações, o
que chamo de imitatio relationes, em contraposição ao modelo da imitatio
Christi (Reinhardt, 2016, p. 57). Para eles, ser um bom aprendiz de pastor
era imitar não apenas Paulo, Moisés e Elias, mas sobretudo imitar relações
bíblicas de discipulado, como Paulo-Timóteo, Moisés-Josué, Elias-Eliseu.
Esse processo particular de citacionalidade não apenas delineava como a
autoridade deveria ser exercitada durante o aprendizado, mas também incutia
a transmissão religiosa como uma série de potencialidades carismáticas,
baseadas no axioma biblicamente fundamentado de que “o Espírito Santo
trabalha através das relações”. Meu interesse particular com esse mergulho
imanente na hermenêutica do discipulado pentecostal foi explorar a especificidade teopolítica do poder pentecostal em África. Tal projeto me levou
à noção de “poder apostólico”: centrípeto, como a autoridade carismática
em Weber, e centrífugo, como o poder pastoral em Foucault. Destaco
como uma abordagem teopolítica para essas igrejas problematiza as opções
disponíveis na vasta literatura sobre o tema, que tendem a caracterizá-las
ora como “democráticas”, já que fortemente baseadas na participação e no
empoderamento horizontal, ora como “patrimoniais”, já que baseadas em
líderes carismáticos fortes e verticais. Meu trabalho expande para o caso
do pentecostalismo africano o projeto comparativo de Mahmood de uma
antropologia do “sujeito das normas” (Mahmood, 2005, p. 22). Como na
inspiradora obra de Saba, esse processo implica em encontrar o político em
lugares não usuais ao começar a pensá-lo assim como o fazem nossos interlocutores, o que inevitavelmente inclui o problema da hermenêutica religiosa.
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Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 201‑209, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99967
HERMENÊUTICA
Michael Allan1, 2
Na conclusão de um de seus primeiros artigos sobre gênero e Islã no
Egito moderno, Saba Mahmood reflete sobre as implicações de sua abordagem hermenêutica. “Eu sou frequentemente perguntada”, ela afirma, “se
essa abordagem hermenêutica para as atividades de um movimento islâmico
não necessariamente implica na suspensão do julgamento político” (2001,
p. 223). Ela continua sublinhando seu compromisso com um tipo particular
de investigação:
[…] [A]o analisar o problema da política, devemos começar com questões
fundamentais sobre a relação conceitual entre corpo, Self e agência moral
enquanto constituídos por diferentes posições culturais e políticas, e não
apegar-se a nenhum modelo particular como axiomático, como tende a ser
o caso nas narrativas progressistas. (Mahmood, 2001, p. 223).
Muito poderia ser dito sobre a sobrevida desta passagem em sua crítica
subsequente ao feminismo politicamente prescritivo em Politics of Piety
(Mahmood, 2005, p. 10, 36, 39, 153, 195, 197), suas reflexões sobre as
polêmicas em torno dos cartuns dinamarqueses em “Religious Reason and
Secular Affect” (Mahmood, 2009, neste volume) ou sua leitura do romance
histórico Azazeel em Religious Difference in a Secular Age (2016). No entanto,
eu começo com essa passagem anterior para sublinhar as ressonâncias do que
Mahmood descrevia como sua “abordagem hermenêutica”. Dos vários eixos
críticos que compõem a sua obra — subjetividade, gênero, encorporação,
ou religião — hermenêutica tem uma aparição mais discreta, apesar de
1
2
É professor do Departamento de Literatura Comparativa da Universidade do Oregon,
EUA. E-mail: mallan@uoregon.edu.
Tradução por Bruno Reinhardt.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211‑216, ago./dez. 2019
212
Michael Allan
persistente. Os compromissos duradouros de Mahmood enquanto acadêmica
são ancorados menos em uma visão prescritiva sobre como o mundo deve
ser (narrativas progressistas) do que em um engajamento analítico com o
problema de como as sensibilidades são formadas (hermenêutica).
Como, então, deveríamos ler, interpretar ou entender o uso que
Mahmood faz do termo hermenêutica? Um antropólogo toma esse termo
de modo diferente que um teólogo, um literário, um historiador? Essas
questões têm peso importante para mim. Enquanto professor de Literatura Comparativa, eu admito que a hermenêutica crítica de Mahmood
tem informado e inspirado a forma com que leio (Allan, 2013, 2016).
Seus seminários expandiam a hermenêutica para além da linhagem de
Schleiermacher, Gadamer e Ricoeur, de modo a englobar preocupações
com disciplinas corporais, sensibilidades e disposições. E dada a extensão
com que meu próprio campo se ancora em observações textuais, eu aprendi
ricamente com a ênfase de Mahmood na leitura como uma prática encorporada [embodied]: uma conexão íntima entre o cultivo de sensibilidades,
de um lado, e uma ideologia textual, por outro. De acordo com o uso de
Mahmood, a hermenêutica não é uma questão de leitura, no sentido estrito,
referindo-se mais às sensibilidades que inflectem a atitude crítica. De fato,
pode-se dizer que o sítio interpretativo primário na obra de Mahmood é
menos o texto (seja ele Azazeel ou os cartuns dinamarqueses, por exemplo)
do que as condições de sua recepção, os termos das respostas, os enquadramentos rivais de inteligibilidade que evocam. Pode-se ver que o engajamento
minucioso de Mahmood com o corpo (situações, sensibilidades e condições)
e a mente (interpretação, respostas, crítica) tem implicações especialmente
agudas para o modo com que concebemos o pensamento, a interpretação
e, em última instância, a própria hermenêutica.
A teoria literária tem há muito tempo se inspirado na antropologia e
eu suponho que o mesmo possa ser dito ao contrário. A versão de Stephen
Greenblatt para o novo historicismo se baseia em Clifford Geertz, e o Writing
Culture, de James Clifford, visa absorver os debates da teoria literária correntes
em sua época. Como uma prática de leitura inspirada em Mahmood se
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HERMENÊUTICA
213
pareceria? Quais implicações sua análise hermenêutica teria para os estudos
literários e culturais? Para começar, eu vejo o trabalho de Mahmood como
uma guinada crítica da análise textual representacional (do tipo avançada
por Edward Said e Timothy Mitchell) para uma consideração da análise ética
(que ecoa o trabalho de Talal Asad). Assim como Asad, Mahmood empurra
a hermenêutica para além da textualidade, interpretação, ou representação
de modo a considerar as práticas e disciplinas que fazem possível um certo
tipo de relação para com os textos e o significado. Podemos pensar na crítica
de Asad (1983) à antropologia da religião de Geertz — esse ensaio basilar
para os seminários de Mahmood. Enquanto Geertz endereça o papel dos
símbolos em contextos religiosos como um sistema cultural, Asad endereça
as práticas através das quais estes símbolos se tornam simbólicos. Com a sua
ênfase em “como disciplinas sociais produzem e autorizam conhecimentos”
(Asad, 1983, p. 252), Asad questiona a formação de categorias e as contingências do modelo semiótico de interpretação. Mesmo na introdução de
Formations of the Secular, em que engaja com termos-chave dos estudos
literários clássicos (símbolo, mito, alegoria), Asad o faz através de uma
abordagem antropológica crítica das disciplinas e práticas através das quais
certos pensamentos se fazem possíveis.
Já na passagem anteriormente citada de Mahmood, “hermenêutica”
aparece de maneira inseparável de “análise”, e seu engajamento analítico
já é ele mesmo compromissado com uma abordagem hermenêutica. Sua
dívida com a teoria da prática é clara. Seu ensaio Secularism, Hermeneutics
and Empire (Mahmood, 2006) e suas reflexões sobre Azazeel são dois exemplos bastante explícitos deste engajamento com a leitura, a interpretação e a
ideologia textual. De forma intrigante, no entanto, é seu artigo “Religious
Reason and Secular Affect” que me vem à mente pelos insights que oferece
ao emaranhamento entre leitura, interpretação e ética. Como em muitos
de seus artigos, este ensaio começa destacando a distinção entre “polêmica
estridente” e “vozes mais reflexivas” (Mahmood, 2009, p. 833) de modo
a reenquadrar os termos em que o escândalo dos cartuns dinamarqueses
deve ser entendido. O ensaio apresenta uma antropologia predicada não na
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019
214
Michael Allan
distinção entre “aqui” e “alhures”, mas em distinções analíticas entre respostas
estridentes e reflexivas, leituras boas e descuidadas. O que eu admiro neste
ensaio é sua capacidade de isolar e descrever os limites de uma compreensão
mimética dos cartuns. Por um lado, Mahmood provincializa pressuposições
sobre a função mimética dos textos e, por outro, ela considera ideologias
textuais alternativas — neste caso ancoradas em uma atenção à schesis (que
ela lê contra a mimesis). Ao levar a sério o papel do profeta Muhammad
como um modelo encorporado de/para a virtude, ela expande a conversa
para muito além do problema da representação boa ou má, liberdade de
expressão ou blasfêmia. A análise de Mahmood e seu interesse duradouro
nos debates históricos em torno da schesis a levam a examinar as sensibilidades que informam a experiência do encontro estético. Definir o que é um
cartum, a arte, a religião ou a literatura assim se torna inseparável de debates
sobre como eles vêm a se realizar e relacionar. E esse processo é predicado
criticamente nas sensibilidades que subjazem ao tipo de leitura em jogo.
Parte da riqueza das discussões hermenêuticas (em oposição a formulações generalizadas sobre a leitura) é que a hermenêutica demanda um
engajamento com tradições interpretativas. Se a riqueza da abordagem de
Mahmood está em como ela situa práticas no tempo e no espaço, então
podemos especular sobre as implicações mais amplas de seu trabalho para
uma compreensão da leitura. É possível pensar comparativamente sobre
práticas hermenêuticas? Existiria algo como uma hermenêutica comparativa?
Ou seja, poderia o termo “hermenêutica” englobar tradições interpretativas
bíblicas, védicas, talmúdicas ou corânicas, por exemplo? Em caso positivo,
a partir de qual posição poder-se-ia comparar tradições interpretativas?
Há uma tendência dentre os acadêmicos de meu campo a conectar modos
literários de leitura à hermenêutica bíblica e o alto criticismo alemão. Eu
valorizo a riqueza desses argumentos sobre a inter-relação entre tradições
bíblicas e seculares, mas me pergunto sobre suas implicações sobre tradições
(sejam elas literárias ou religiosas) que fogem ao alcance do cristianismo.
Se adotamos a linguagem da hermenêutica, não arriscamos a nos encasular
em um mundo em que toda prática de leitura seria um desenvolvimento
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HERMENÊUTICA
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inerente da exegese bíblica? Colocando de forma simples: será que toda
leitura literária seria necessariamente protestante? Será que haveria um fora
para a ideologia textual da leitura literária?
Quando coloco essas questões, já antecipo as várias maneiras que o
trabalho de Mahmood já nos provê com algumas respostas. Formalmente,
poderíamos encontrar ecos de uma resposta nos modos com que ela endereça
o secularismo como um desenvolvimento do cristianismo. Mas eu sou atraído
a considerar traços do trabalho de Mahmood pertinentes para entender a
declaração de Asad de que o secular constituiria uma forma de mediação
transcendente (Asad, 2003, p. 5). Se até aqui eu sublinhei a hermenêutica
no nível da interpretação prática conectada historicamente à análise textual,
então sou igualmente atraído pelo modo com que o trabalho de Mahmood
também se esforça para pensar para além de modelos linguística ou textualmente determinados, ou seja, o que seu trabalho oferece para expandir o
conceito de mediação. Haveria uma hermenêutica para as mídia? De que
maneira as práticas não textuais complicam as tradições interpretativas?
Em um momento em que minha pesquisa se expande da literatura para
explorar a fase inicial da história do cinema no Oriente Médio e no Norte
da África, eu continuo a aprender ricamente com as reflexões de Mahmood.
Sua atenção para as sensibilidades que informam a inteligibilidade social
dos textos no tempo no espaço é essencial, permitindo uma virada crítica
da reverência às fontes textuais para os termos em que elas são constituídas.
Sou imensamente grato por essa lição sobre como ler e sou igualmente grato
por reencontrar recursos para se pensar os limites da textualidade mais uma
vez em seu trabalho. Essa, poder-se-ia dizer, é outra implicação ressonante
de sua abordagem hermenêutica e a disciplina generativa que ela oferece.
REFERÊNCIAS
ALLAN, Michael. In the Shadow of World Literature. Princeton: Princeton
University Press, 2016.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019
216
Michael Allan
ALLAN, Michael. Reading Secularism: Religion, Literature, Aesthetics.
Comparative Literature, Durham, v. 65, n. 3, p. 257-264, Summer 2013.
ASAD, Talal. Anthropological Conceptions of Religion: Reflections on
Geertz. Man, London, v. 18, n. 2, p. 237-259, 1983.
ASAD, Talal. Formations of the Secular: Christianity, Islam, Modernity.
Stanford: Stanford University Press, 2003.
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Arlington, v. 16, n. 2, p. 202-236, 2001.
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Princeton: Princeton University Press, 2005.
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Princeton: Princeton University Press, 2016.
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MAHMOOD, Saba. Secularism, Hermeneutics, and Empire: the Politics of
Islamic Reformation. Public Culture, Durham, v. 18, n. 2, p. 323-347, 2006.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 211-216, ago./dez. 2019
ARTIGOS
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99586
IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR
DE SABA MAHMOOD1
Judith Butler2
Resumo: Neste artigo, Butler retoma o argumento de Mahmood sobre secularismo,
direito de família e desigualdade de gênero no Egito para compreender a “ideologia
de antigênero” nos Estados Unidos e alhures. Ao invés de vê-la como ressurgência
de um fenômeno pré-moderno, Butler sugere que pode ser melhor entendida
como uma reação à recente incursão de movimentos sociais na última jurisdição
da religião no contexto do Estado secular: a esfera privada da família.
Palavras-chave: Ideologia de Gênero; Secularismo; Direito de Família.
ANTI-GENDER IDEOLOGY AND MAHMOOD’S CRITIQUE
OF THE SECULAR AGE
Abstract: In this paper, Butler engages with Mahmood’s argument about secularism,
family law and gender inequality in Egypt, in order to make sense of “anti-gender
ideology” in the U.S. and elsewhere. Instead of seeing the latter as the resurgence of
a pre-modern phenomenon, Butler suggests that it might be best understood as a
reaction to the recent incursion of social movements into religion’s last jurisdiction
in the secular state: the private sphere of family law.
Keywords: Gender Ideology; Secularism; Family Law.
1
2
Traduzido por Letícia Cesarino, a partir de “Anti-Gender Ideology and Mahmood’s
Critique of the Secular Age”. No original, a expressão “anti-gender ideology” aparece
com o prefixo “anti” associado ora ao termo “gênero”, ora a “ideologia”. Mantivemos a
ambivalência na tradução, de acordo com o contexto.
Judith Butler é filósofa e teórica do gênero. Seu trabalho tem influenciado a filosofia
política, a ética e a terceira onda do feminismo e da teoria literária. Desde 1993, ela ensina
na Universidade da Califórnia, Berkeley, onde é professora no Departamento de Literatura Comparada e no Departamento de Teoria Crítica. E-mail: jpbutler@berkeley.edu.
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Judith Butler
Em Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report, Saba
Mahmood dedica um capítulo ao tema “Secularismo, direito de família e
desigualdade de gênero”. Sua discussão ataca a suposição comum de que o
direito de família seria governado por autoridade ou códigos religiosos – algo
pré-moderno, que persiste na modernidade enquanto uma sobrevivência.
Ela argumenta que essa visão, historicamente desinformada, desconsidera
que, quando o direito de família é relegado ao domínio privado da religião,
a própria religião é transformada em uma questão privada, e casamento e
divórcio tornam-se objetos não apenas da religião, mas da lei religiosa em
particular. Ainda que uma religião tradicionalmente lidasse com questões
relativas a casamento e família através de meios não-legais (costumes, normas,
consulta a autoridades religiosas), em condições seculares ela se torna um
sistema ou autoridade legal concorrente. A perspectiva que vê no direito
de família de base religiosa uma sobrevivência pré-moderna é portanto
incapaz de explicar o modo como o estado secular estabeleceu o direito
de família como traço definidor da própria religião – o que corrobora o
modo como o secularismo redefine a religião e suas preocupações essenciais.
Convenções e normas envolvendo a vida familiar só são entendidas como
“legais” quando o direito secular se diferencia da lei religiosa, e, no mesmo
movimento, define a jurisdição adequada desta última.
Mahmood considera casos de conversão e divórcio no direito de família
cristão copta no Egito moderno – ou melhor, as tensas negociações e conflitos
abertos entre autoridades da Igreja e do Estado, onde estas últimas pretendem
defender uma hegemonia presumidamente muçulmana. Seu argumento
avança por várias etapas, e conclui sugerindo que “secularismo é uma
modalidade compartilhada de estruturação político-legal que atravessa o
divisor Ocidente e não-Ocidente” (Mahmood, 2016, p. 147). Com efeito,
no mesmo capítulo, Mahmood havia feito referência ao trabalho de Janet
Halley e Kerry Rittich (Halley; Rittich, 2010), que argumentam que o
direito de família só emerge como esfera legal autônoma no século dezoito.
Contra uma forma de liberalismo político que prioriza o individualismo
e a racionalidade autointeressada no campo dos mercados e contratos, a
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“família” vai se tornando a esfera na qual são prescritos e regulados laços de
afeto, condições de coabitação e casamento, e regras relativas a trocas sexuais.
É portanto como consequência do direito de família que a família passa a
ser aceita como lócus do cuidado, da reprodução e da moralidade sexual
(Mahmood, 2016, p. 120). Em outras palavras, o investimento afetivo na
família é resultado do direito de família, isto é, da “modalidade secular de
estruturação político-legal” (Mahmood, 2016, p. 147) produzida no curso
do desenvolvimento do direito de família.
Embora esse processo venha acontecendo no Egito moderno e em
muitos outros países e regiões sujeitos a poderes seculares, ele não vem
acompanhado de uma compreensão da sua operação global; pelo contrário,
tem alimentado formas de nacionalismo. No argumento de Mahmood,
“supõe-se que o direito de família ... emana de, e expressa, ‘o espírito do povo’”
(Mahmood, 2016, p. 120). Seguindo Halley e Rittich (2010), ela aponta
que o direito de família é visto como representando e preservando aquilo
que é tradicional, autêntico, mas também um espírito nacional – quando
não um nacionalismo explícito. Contra a visão de que o direito de família
preserva esses valores nativistas, Mahmood argumenta que esses valores
são retroativamente delegados à família através do direito de família. O
caráter “arcaico” ou “primordial” desses valores é, na realidade, produzido
pelo secularismo moderno, embora pareçam preceder a modernidade. A
própria anterioridade temporal é estabelecida por poderes seculares – um
ponto corroborado pelo fato de que, antes do século dezoito, o próprio
direito de família era inexistente. Mesmo a proibição copta do divórcio é um
fenômeno moderno, vista a longa história de permissibilidade do divórcio
dentro da tradição copta – ou seja, antes da obrigação de que problemas
maritais passassem a ser resolvidos por meio de um aparato legal específico,
que teve que ser produzido para tal.
No que segue, proponho reconstruir o argumento de Mahmood de
modo a lançar luz no movimento contemporâneo de oposição à “ideologia de gênero”. A ideia da ideologia de gênero emergiu nos anos noventa,
quando o Pontifício Conselho para a Família alertou contra a noção de
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Judith Butler
“gênero” enquanto ameaça à família e à autoridade bíblica. A ideia de gênero
como construção social desencadeou a crença de que indivíduos podiam
escolher seu próprio gênero, ou viver sem os constrangimentos do casamento e da heterossexualidade. Na Argentina, Joseph Scala publicou um
livro atacando a “ideologia de gênero” que foi amplamente distribuído
por igrejas evangélicas. Ele alertou para o caráter agressivo e destrutivo do
conceito, sugerindo que “gênero” seria contrário tanto à religião quanto à
ciência. Nos anos que se seguiram, gênero se tornou uma questão saliente
em eleições no Brasil, Costa Rica, Colômbia, França, Suíça, Alemanha e,
mais recentemente, intensamente disputada na Hungria (onde os estudos
de gênero foram abolidos) e nos Bálcãs.
Em todos esses contextos, gênero é entendido enquanto uma “ideologia”
singular que refuta a realidade da diferença sexual e busca se apropriar do
poder divino de criação para aqueles que desejam criar seus próprios gêneros.
Na Alemanha, a ideologia de gênero – ou, de fato, os estudos de gênero –
são frequentemente caracterizados como totalitários. No Brasil, a ideia da
nação, e a própria masculinidade, são vistas como ameaçadas pela “ideologia
de gênero”. Parece não haver interesse algum pelo que de fato ocorre no
complexo e conflituoso campo de estudos de gênero e sexualidade. Ele é
unificado como um tipo de fantasma, que serve para justificar o fato de
que praticamente ninguém lê os textos produzidos pelo campo, ou mesmo
considera seus argumentos. Na Suíça, fui abordada por uma mulher que
disse que rezava por mim, e quando eu perguntei por que, ela explicou que
gênero era “diabólico”, e que ela esperava que eu encontrasse redenção por
minha responsabilidade em difundir o termo, ou a teoria, ou o fantasma.
Quando lhe perguntei se ela havia lido meu trabalho, ela exclamou que
jamais leria livro algum sobre gênero!
O furor começou alguns anos atrás, quando o Pontifício Conselho
para a Família, então dirigido por Joseph Ratzinger, alertou que teóricos
de gênero estavam colocando a família em risco ao questionar a noção de
que papéis sociais apropriadamente cristãos podiam ser derivados do sexo
biológico. Era da natureza do sexo feminino realizar trabalho doméstico, e
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do masculino, exercer atividades na vida pública. A integridade da família,
entendida como cristã e natural, estava sendo ameaçada pela ideologia de
gênero. Os argumentos utilizados eram marcadamente pré-feministas – o
que talvez ajude a explicar por que a primeira objeção da Igreja Católica
ao conceito de “gênero” foi considerada esdrúxula, ou mesmo risível, para
feministas que, naquele momento, não anteciparam as implicações daquela
oposição. Ratzinger externou sua preocupação na Conferência de Beijing
sobre as Mulheres de 1995, e novamente em 2004, enquanto diretor do
Pontifício Conselho para a Família, em uma Carta aos Bispos, onde destacou
o potencial do “gênero” para destruir valores femininos importantes para a
Igreja, assim como a distinção natural entre os dois sexos (Vatican, 2004).
Enquanto Papa Bento XVI ele foi além, alegando, em 2012, que essas
“ideologias” negavam a “dualidade pré-ordenada entre homem e mulher”, e
portanto “a família” enquanto “realidade estabelecida pela criação.” Porque
homens e mulheres foram criados por Deus, continuou ele, aqueles que
buscam criar a si mesmos negam o poder criativo de Deus, e são movidos
por crenças ateias. Em 2016, mesmo o Papa Francisco, que ocasionalmente
apresenta visões progressistas, continuou na linha do seu antecessor: “Estamos
vivendo um momento de aniquilação do homem como imagem de Deus”.
Ele incluiu especificamente como uma das vias deste ataque a “[ideologia
de] gênero”, e se mostrou claramente contrariado ao afirmar que “Hoje
crianças – crianças! – são ensinadas na escola que todos podem escolher seu
sexo ... Isso [sic] terrível!”. Ele então acenou positivamente para Bento XVI,
alegando que “Deus criou homem e mulher; Deus criou o mundo de uma
certa forma ... e nós estamos fazendo o oposto”. Essa perspectiva faz crer que
os humanos teriam se apropriado do poder criativo de Deus. Papa Francisco
foi ainda além, ao sugerir que proponentes do gênero seriam os mesmos
que apoiam ou utilizam armas nucleares, e que seu alvo seria, em última
instância, a própria criação. Isso sugere que, o que quer que seja o gênero,
ele carrega enorme poder destrutivo nas mentes de seus opositores – com
efeito, uma capacidade destrutiva terrível e inimaginável. É representado
como uma força demoníaca de destruição, contraposta aos poderes criativos
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Judith Butler
de Deus. Essa é uma das razões pelas quais o gênero é entendido como um
exercício de poderes demoníacos: uma “ideologia diabólica”.
Talvez tenha sido o apoio papal que, em 2015 e 2016, encorajou bispos
em todo o mundo a ampliar a campanha contra a ideologia de gênero em
um projeto internacional, que atravessasse hemisférios, afetasse eleições na
Colômbia, México e Costa Rica, e, mais recentemente, desempenhasse um
papel importante na eleição de Jair Bolsonaro no Brasil. Seu discurso de
posse em janeiro deste ano incluiu um compromisso pela erradicação da
“ideologia de gênero nas escolas”, jurando resistir à “submissão ideológica”.
Uma vez eleito, tem buscado abolir a educação sexual nas escolas, substituindo-a por um currículo que reforce a ideia da diferença binária de gênero.
Em outubro de 2018, a Hungria não apenas retirou estudos de gênero da
lista de programas de mestrado credenciados, como forçou a Universidade
Centro-Europeia, reconhecida por seu programa internacional em gênero,
a mudar-se para Viena.
Na França, uma batalha legal pelo casamento gay vencida em 2013
sofreu um contragolpe no ano seguinte. Um currículo proeminente na França
chamado “ABC da igualdade” oferecia aos estudantes um modo de pensar
a diferença entre sexo biológico e gênero cultural, e foi descontinuado após
fortes acusações públicas de que a teoria de gênero estava sendo ensinada em
escolas primárias. O Papa Francisco se encontrou com um dos organizadores
do esforço pela eliminação do programa. Argentina, o país de origem do
Papa, é o país com leis mais progressistas no campo da liberdade de gênero,
ao permitir que qualquer um mude de gênero sem autorização médica.
Em 2014, em reação à Lei da Identidade de Gênero aprovada em 2012, La
ideología de género foi publicado por Jorge Scala e começou a circular entre
comunidades cristãs, tanto católicas quanto evangélicas, na Argentina e, após
traduzida, também no Brasil. Na região espanhola da Andaluzia, o partido
ultraconservador Vox solicitou ao partido de centro-direita Ciudadanos que
combatesse o que chamavam de “jihadismo de gênero”. Eles se opunham ao
foco em homens que cometiam violência contra mulheres e pessoas trans,
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IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR...
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convocando uma oposição à violência “intra-familiar” no lugar da violência
de gênero, sob a alegação de que homens também podem ser vítimas.
A plataforma da aliança anti-ideologia de gênero entre evangélicos
e católicos de direita é clara: eles se opõem ao feminismo, aos direitos
LGBTQI, especialmente ao casamento gay e ao direito médico e legal de
pessoas trans, mães solteiras, pais e mães gays, entre outros. Minha sugestão
é que, na medida em que as políticas econômicas neoliberais devastaram a
vida laboral e a perspectiva de futuro de muitas pessoas que hoje enfrentam
trabalho contingente e dívidas impagáveis, a virada contra o “gênero” emergiu
como um modo de defender um sentido tradicional de posição e privilégio.
Também traça uma linha entre público e privado, protegendo a família e
seu privilégio patriarcal do mercado, onde a humilhação e a prescindibilidade tornaram-se a norma. O investimento tanto nacionalista quanto
tradicionalista na proibição do casamento gay, de famílias gays e lésbicas e
seus direitos a adoção, de direitos de trans e travestis, da adoção por parte
de mães e pais solteiros e seu acesso a tecnologias reprodutivas, na desigualdade de gênero, assim como no próprio conceito de “gênero” é efeito
de uma defesa, por vezes violenta, da família heteronormativa enquanto
última barreira contra a devastação das forças de mercado. O movimento
anti-ideologia de gênero cresceu na esteira da promulgação de leis sobre
o casamento gay, alegando que a religião deveria ser o árbitro de arranjos
maritais, e que a família heterossexual com seus papéis distintos, naturais e
hierárquicos para mulheres e homens estaria sendo minada pela legislação
“progressista”. Opor-se a, ou reverter, tendências inclusivas no direito de
família, ou demandar novas leis proibindo formas de procriação ou adoção
fora da família tradicional, assim como mudança do gênero designado ao
nascer ou a afirmação de igualdade entre homens e mulheres – tudo trabalha
para o mesmo fim. Embora seja normalmente presumido que avanços nos
movimentos por direitos LGBTQ dependem da intensificação do secularismo, eu sugiro que o secularismo é ao menos parcialmente responsável
pela intensificação da forma-família como foco de conflito legal e moral.
Entretanto, para avançar esse argumento, devemos estabelecer (a) como a
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Judith Butler
família tem se tornado foco de investimentos nacionalistas e nativistas tão
intensos; e (b) como o secularismo tem estruturado o campo deste debate,
distribuindo a intensidade de seus investimentos em formas sexuais e de
gênero naturais ou normativas.
Talvez pareça um salto grande dos dilemas legais do divórcio copta
para o movimento anti-ideologia de gênero. Lembremos, todavia, que os
efeitos da secularização da forma-família têm, para Mahmood, um caráter
global, atravessando o divisor entre Oriente e Ocidente. Se eles também
atravessam o divisor entre Norte e Sul é outra questão, visto que os ideólogos
do antigênero no Brasil e na América Latina tendem a alegar que “gênero”
é uma importação dos Estados Unidos e do Norte global.
Mahmood argumenta que os grandes conflitos entre muçulmanos e
cristãos coptas nas últimas décadas têm, em larga medida, girado em torno
de quando e como o divórcio torna-se possível. Diversos casos bem difundidos seguem a mesma linha: uma mulher copta desaparece ou deixa sua
família, presume-se que ela tenha se convertido ao Islã, e que tal conversão
tenha sido forçada. Quando homens ou mulheres convertem-se ao Islã para
poderem se divorciar e casar novamente, sempre são levantadas questões
sobre se eles ou elas o fizeram de forma voluntária. Visto que o divórcio
está proibido no Cristianismo copta há mais de trinta anos, o único modo
de alguns deixarem uma situação marital indesejada é mudar de religião,
e assim recair sob uma jurisdição de família diferente: no caso da adjudicação contemporânea do divórcio, o Islã é mais liberal que a religião copta.
A conversão ao Islã tornou-se uma forma de exercer uma opção sexual
ou marital que seria de outro modo impossível. É significativo que, se
um homem copta converte para o Islã, ele pode permanecer casado com
sua esposa copta, mas uma mulher que converte para casar-se novamente
terá ambos seus casamentos – o anterior e o prospectivo – anulados pelas
autoridades copta e muçulmana (Mahmood, 2016, p. 113). Ela não pode
utilizar a conversão para exercer uma nova opção sexual ou marital. Não
obstante, essa proibição codifica uma fantasia recorrente de que nenhuma
mulher poderia, ou iria, escolher se converter, e que qualquer conversão
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que eventualmente ocorra seria portanto forçada. A mulher é entendida
pelos representantes coptas como carente de desejo ou vontade sexual, sem
preferências próprias de companheiros ou parceiros maritais, e simplesmente
sujeita a manipulação e coerção por uma comunidade muçulmana ardilosa
e nefasta. Com efeito, a proliferação de “estórias de abdução cotas”, em que
mulheres coptas são recrutadas, sofrem lavagem cerebral e são fisicamente
coagidas a converter ao Islã, é testemunho da noção de que as mulheres não
iriam – não poderiam – exercer sua própria agência sexual ao abandonar
uma religião que não lhes permite deixar o casamento ou casar-se novamente.
Contra aqueles que veem conflitos entre coptas e muçulmanos como
um antagonismo tribal arcaico, Mahmood deixa claro que foi o Estado
secular que produziu tais conflitos. Estados seculares têm buscado relegar a
religião à esfera privada. Até certo ponto, questões envolvendo moralidade,
a forma da família e seus conflitos, desenvolvimento de gênero e educação
sexual foram designadas para a esfera privada. Como efeito, cada vez que
leis favorecendo diversidade de gênero, protegendo orientações sexuais ou
expandindo as fronteiras da família, do casamento ou da adoção penetram
na esfera pública, aparecem objeções religiosas. Essas objeções atacam temas
específicos, mas também se contrapõem como um todo ao fato de essas
questões estarem sendo definidas fora do domínio religioso. Sob o regime
secular, esse domínio é considerado privado, separado da esfera pública e
de suas leis universalistas, e controlado pela religião. Para Mahmood, os
conflitos entre religiões frequentemente se dão em torno de questões como
gênero, sexualidade, formas de família, adoção e divórcio precisamente
porque o Estado secular relegou ou designou tais questões para a religião
e moralidade privada. Estas nem sempre foram a marca das religiões, mas
acabaram tornando-se como resultado dos poderes delimitadores do Estado
secular. No Egito, por exemplo, onde o direito de família opera em paralelo
à lei civil comum, o Islã é visto exclusivamente como jurisdição do direito
de família religioso. A ideia de um direito de família religioso reestrutura
o significado e o funcionamento da religião muçulmana, e é, na visão de
Mahmood (2016, p. 115), uma “invenção moderna”. Em suas palavras,
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o secularismo moderno associou perniciosamente questões religiosas, sexuais
e domésticas quando a família se tornou o lugar central para a reprodução da
moralidade e da identidade religiosas, exacerbando padrões preexistentes de
hierarquia religiosa e de gênero (Mahmood, 2016, p. 115).
Não apenas a religião ficou encarregada de regular a moralidade sexual,
conflitos de família e significados de diferença sexual, como foi privada de
qualquer participação no domínio público, incluindo na vida civil e na
esfera da ética pública como um todo. Não havia lei separada na Shari’a
antes do Estado secular estabelecer uma jurisdição religiosa sobre assuntos
de família. Da mesma forma, não havia proibição copta do divórcio antes
da emergência do direito de família copta, precisamente porque não havia
direito de família até que os direitos público e privado fossem separados, e a
religião, relegada a este último. A própria distinção entre privado e público
emerge a partir dos poderes da autoridade secular de fazer e reforçar essa
distinção.
Do ponto de vista da autoridade propriamente religiosa, não há referência
a essa genealogia dos poderes do Estado secular de designar e restringir sua
ação à esfera privada, definida primariamente pela família e seu mandato
moral de reproduzir sua própria estrutura enquanto uma forma social
natural e normativa. Essa designação foi, em larga medida, aceita, assim
como a tarefa de regular a vida sexual, os laços de intimidade, as condições
de casamento e divórcio em um domínio próprio. A forma da família não
é, em si, contingente, e nem as regras que governam casamento e divórcio,
e que decidem quem tem o direito de se casar, se divorciar e se reproduzir.
Não estou tão certa quanto Mahmood de que secularismo seja o nome
para uma modalidade de poder que produz todos esses fenômenos. Minha
impressão é que diversos poderes convergem neste ponto. Noto, por exemplo,
que a distinção entre os domínios público e privado é uma característica
central das sociedades capitalistas, assume uma forma específica sob o neoliberalismo, e que modos antigos e novos de produzir desigualdade de gênero
têm vidas históricas desde a época clássica até o presente que ultrapassam ou
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IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR...
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embaraçam a distinção entre o secular e o religioso. Não obstante, Mahmood
é persuasiva ao argumentar que o secularismo assegura um domínio privado
para a religião, e, ao fazê-lo, orquestra uma convergência significativa entre
autoridade religiosa e política familiar, sexual e hierarquias de gênero. Ceder
controle sobre questões envolvendo família, casamento e sexualidade é, para
muitas autoridades religiosas na era secular, perder o único tipo de autoridade que ainda detêm. É possível vê-lo no movimento contra a chamada
“ideologia de gênero”. As acusações feitas em nome de evangélicos e católicos de direita contra o conceito de gênero presumem que “sexo” seja uma
categoria adequada para descrever as distinções naturais, dadas por Deus,
entre homens e mulheres, que a hierarquia entre elas também deriva da
natureza e da autoridade bíblica, que qualquer orientação sexual que não
se conforme com o mandato da heterossexualidade dentro do casamento
é uma afronta às leis naturais, e que qualquer um que assuma um gênero
legal que desvie daquele designado ao nascer comete uma monstruosidade.
É tentador alegar que o problema é precisamente a religião. Afinal, esses
polemistas se fundamentam em textos religiosos, e se opõem a potenciais
emancipatórios liberados pelo processo de secularização. Mas por outro
lado, categorias como “sexo” raramente aparecem na Bíblia, e é possível
selecionar passagens com um número razoável de referências ambíguas a
afeição queer que trariam problemas para seus defensores contemporâneos.3
De fato, muitos dos argumentos utilizados por aqueles que se opõem ao
gênero são enfaticamente modernos, orquestrados dentro de debates seculares,
e movidos pela revolta reacionária contra o deslocamento da autoridade
religiosa sobre o que eu chamaria de questões de gênero e sexualidade na
sociedade civil – tanto suas leis quanto as formas de reconhecimento que
se tornaram mais comuns nos últimos anos.
A parte do argumento de Mahmood que pode ser transposta do modo
mais produtivo para o atual cenário de ataques ao “gênero” por cristãos de
direita tem a ver com a inversão da sequência temporal. É possível dizer, por
3
Ver, por exemplo, Case (2011, 2016), Dunning (2019) e Penner (2010).
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Judith Butler
exemplo, que a proibição do divórcio é a essência da religião copta, ou que
a família está no coração do Islã – mas ambas as alegações só tornaram-se
possíveis em períodos históricos que são distintivamente modernos e seculares.
Em outras palavras, essas “essências” foram estabelecidas; elas não estavam
já dadas, na história de cada uma dessas tradições religiosas. Elas não estão
na origem dessas religiões, e, não obstante, do ponto de vista presente, são
tratadas como se sempre estivessem. Nesse sentido, são instaladas retrospectivamente enquanto origens fictícias. Da mesma forma, a ideia de que
o sexo determina o papel da pessoa na sociedade, na família e em arranjos
sexuais dificilmente pode ser encontrada na tradição cristã. Toda a ideia do
propósito “teleológico” do sexo manifestado em arranjos familiares e sociais
específicos só se tornou possível uma vez concluída a sua redução ao “sexo
biológico”. Afirmar que “no começo, havia o sexo” apaga toda genealogia
dessa categoria na sexologia, assim como suas contestações na biologia,
sociologia, neurociências, genética, e no Comitê Olímpico Internacional.
Com efeito, o sexo natural foi retrospectivamente instalado enquanto um
dado biológico, e a redução da vida corporificada aos “sexos” foi produzida
através de processos históricos específicos dentro da modernidade. Uma
origem torna-se um efeito plausível de um discurso que busca apagar a gênese
daquele discurso para afirmar sua autoridade inconteste. A linguagem das
orientações sexuais “não-naturais” é semelhante: não há histórico da noção
de “orientação sexual” antes do século dezenove, e tampouco da formação
de um sujeito entendido como tendo uma orientação desse tipo. O mesmo
poderia ser dito da “família”, como já foi demonstrado por muitos historiadores e antropólogos.
Mas talvez a crítica mais relevante venha sendo feita pela literatura feminista sobre neoliberalismo, em autoras como Melinda Cooper e Bethaney
Moreton. De formas diferentes, ambas argumentam que a retirada do apoio
estatal às famílias, às crianças dependentes e a serviços sociais deslocou
a função de apoio básico para as famílias. Esta seria uma razão para a
reabilitação ferrenha da família tradicional no exato momento em que sua
estabilidade financeira tem sido gravemente comprometida. A autoridade
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IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR...
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das igrejas evangélicas tem se insinuado não apenas para botar ordem moral
na família – sem a qual a economia não poderia funcionar – mas para apoiar
e aliviar a economia de livre mercado. Não posso ir mais a fundo aqui na
complexa aliança entre a proliferação dos evangélicos e o suporte à economia
do laissez faire em sua forma neoliberal, mas Moreton (2009) argumentou
que mulheres brancas cristãs – a força motriz do movimento evangélico
nos Estados Unidos – entendem com clareza que “valores familiares são um
elemento indispensável à economia global de serviços, e não um obstáculo”
(5). Com efeito, as igrejas evangélicas são parte da livre iniciativa – ou, como
diriam alguns, da iniciativa cristã –, e essa convergência é frequentemente
colocada como única alternativa ao socialismo ou comunismo, ou às elites
acadêmicas. Daí a centralidade do Walmart como “multinacional populista”.
Assim como valores familiares são indispensáveis à sustentação da economia
de serviços, já que apenas o trabalho livre da família pode tornar minimamente suportável seus termos econômicos, redes de bem-estar baseados na
fé são indispensáveis para a retração do Estado do seu papel de prestador
de serviços sociais aos necessitados. Na medida em que o Estado se afasta
de ideais básicos de democracia social, o domínio privado da família e da
religião assume um papel cada vez mais central no funcionamento econômico e político da sociedade.
A precariedade crescente dos trabalhadores sob o neoliberalismo, e
a depreciação da renda doméstica que a acompanha, impõem à família
a tarefa de encontrar suas próprias soluções. E a resposta à precariedade
parece assumir a forma de uma renovação da autoridade patriarcal, tanto na
família quanto na igreja. A ameaça passa então a ser identificada não com
os processos de precarização neoliberais, mas com os movimentos culturais
e sociais que buscam descentrar ou dissolver essa autoridade. Seria fácil
sugerir que a oposição ao “gênero” é um deslocamento sintomático de uma
ansiedade produzida pelo neoliberalismo. Pode ser que formas de patriarcalismo que buscam defender o poder patriarcal no interior da família e do
Estado (assim como no mundo do trabalho) sejam uma resposta à “emasculação” do trabalhador. Mas há outra dimensão que é mais preocupante: um
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Judith Butler
exercício da liberdade que não é constrangido pela liberdade de mercado
e sua dependência ideológica na noção de liberdade pessoal. Além disso,
em formas neoliberais tradicionais, a liberdade de mercado não se estendia
a questões de moralidade pessoal, embora avançasse múltiplas suposições
sobre a importância da disciplina do trabalhador e da gestão do dia de
trabalho. O propósito secular de relegar a família ao domínio da religião
parece ter preenchido uma lacuna aberta pela auto-circunscrição neoliberal.
A emergência de uma “liberdade” aparentemente secular dentro da esfera
privada, tipificada pelo “gênero”, opera então conjuntamente com a forma
de neoliberalismo que restringe a liberdade (assim como a democracia) à
liberdade de mercado. Seria esperado que as autoridades cristãs se opusessem
à saturação da racionalidade neoliberal na vida privada (Brown, 2015, p. 30-31),
e identificassem movimentos por maior liberdade de expressão de gênero
como manifestações de uma “liberdade pessoal” pressuposta tanto pelo
liberalismo quanto pelo neoliberalismo; porém, algo diferente parece estar
acontecendo. Movimentos sociais são mais que uma coleção de indivíduos,
e o conceito de liberdade social avançado por esses movimentos aparece
como uma intervenção colonizadora por parte do secularismo e do ateísmo.
Curiosamente, a autoridade sobre a família alocada pelo secularismo à religião
promove hoje uma oposição ao secularismo em nome daquela mesma autoridade. A liberdade à qual as autoridades cristãs se opõem é a da “construção
social” e da “liberdade para criar” – uma prerrogativa que, aparentemente,
pertence exclusivamente à divindade, e não a coletivos sociais que buscam
transformar pressupostos sobre gênero, sexualidade e família.
A ideologia de antigênero difunde fantasias públicas, no Brasil e em
outros lugares, de que professores de educação sexual, guiados pelo “gênero”,
estariam ensinando estudantes a se masturbar, ou a como se tornarem “homossexuais”. Partindo da perspectiva de Mahmood, podemos nos perguntar se
essas acusações infundadas, como as estórias de sedução coptas, não seriam
fantasmas políticos reveladores de um profundo receio de perder a jurisdição
sobre tais questões. Num contexto em que a autoridade patriarcal na família
e na igreja emerge como “resposta” aos efeitos precários da financeirização
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global, o argumento de Mahmood assume uma especificidade histórica
aguda. Os exemplos citados pretendem alertar a comunidade cristã para
as incursões da cultura pública no domínio da família, isto é, no domínio
próprio da Igreja. Se essa Igreja é evangélica ou católica importa menos
que o fato de a Igreja ter aceitado sua circunscrição, pelos poderes liberais,
à esfera privada, e, junto com ela, sua autoridade moral e jurisprudencial
sobre questões de família, casamento, sexualidade e gênero (Scott, 2017,
p. 3-15, 30-59, 156-184). A oposição aos direitos legais e movimentos
sociais feministas e LGBTQI, à adoção fora do casamento ou ao acesso a
tecnologias reprodutivas independente do status marital, baseia-se numa
forte aversão aos novos movimentos sociais e culturais que têm buscado
reconhecimento, mas também à incursão desses movimentos em seus domínios. Tanto o trabalho não-pago da mulher no núcleo doméstico quanto a
garantia da reprodução de filhos são questionados por movimentos sociais
que demandam igualdade para o trabalho da mulher, e que não presumem
o tipo de arranjo sexual de que os filhos farão parte.
Entretanto, a autoridade sobre o domínio da família foi circunscrita
precisamente pelos poderes seculares que buscaram, inicialmente, restringir as
reivindicações universais de igualdade e liberdade a sujeitos de direitos homens,
brancos e proprietários. Ao mesmo tempo, permitiram que desigualdades e
constrangimentos persistissem como prerrogativa da esfera privada – uma
esfera de prerrogativas heteronormativas, patriarcais e racistas. A mesma
divisão secular que delimitou a esfera de direitos possíveis enquanto esfera
pública permitiu a preservação e reprodução de desigualdades radicais na
esfera privada – desigualdades estas que a religião agora perpetua em nome
de uma lei natural. Deste modo, a defesa da família enquanto província da
religião busca afastar ou abafar críticas de injustiça econômica e restrição
de liberdades sociais produzidas por perspectivas feministas e LGBTQI. O
fato de o secularismo ter buscado construir suas noções de direitos públicos
alocando a família na esfera da religião não apenas manteve as mulheres em
condições de desigualdade ou destituição econômica, constrangidas dentro
de casamentos heteronormativos, como também estabeleceu a religião como
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Judith Butler
autoridade punitiva em detrimento de muitas outras possibilidades culturais
e sociais – incluindo aquelas compatíveis com um socialismo democrático
em que lutas LGBTQI não pareçam “secundárias”. A oposição à “ideologia”
de gênero teme especialmente as expressões de liberdade e igualdade social
que comprometeriam o patriarcalismo e o controle que garante à religião
seu último bastião de poder em regimes seculares. A resposta adequada seria
aliar a crítica do secularismo a uma visão radical de liberdade e igualdade
social, e nós então veríamos a religião assumir relações diferentes com o
“gênero” e com os movimentos sociais para os quais ela oferece um atalho
no discurso contemporâneo.
REFERÊNCIAS
BROWN, Wendy. Undoing the Demos, Neoliberalism’s Stealth Revolution.
Cambridge, MA: Zone Books, 2015.
CASE, Mary Anne. After Gender the Destruction of Man? The Vatican’s
Nightmare Vision of the “Gender Agenda” for the Law. Pace Law Review,
New York, v. 31, n. 3, p. 802-817, 2011.
CASE, Mary Anne. The Role of the Popes in the Invention of Complementarity
and the Vatican’s Anathematization of Gender. Chicago: University of Chicago,
2016. (Public Law & Legal Theory Working Papers, 565).
DUNNING, Benjamin (org.). The Oxford Handbook on New Testament,
Gender, and Sexuality. Oxford: Oxford University Press, 2019.
HALLEY, Janet; RITTICH, Kerry. Critical Directions in Comparative
Family Law: Genealogies and Contemporary Studies of Family Law Exceptionalism. The American Journal of Comparative Law, United States, v. 58,
n. 4, p. 753-775, 2010.
MAHMOOD, Saba. Religious Difference in a Secular Age: a Minority Report.
Princeton: Princeton University Press, 2016.
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IDEOLOGIA ANTIGÊNERO E A CRÍTICA DA ERA SECULAR...
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MORETON, Bethany. To Serve God and Wal-Mart: the Making of Christian
Free Enterprise. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2009.
PENNER, Todd. Women, Gender, and Sexuality in the New Testament
and Early Christianity. Oxford Bibliographies: Biblical Studies. 2010.
Disponível em: https://www.oxfordbibliographies.com/view/document/
obo-9780195393361/obo-9780195393361-0131.xml#. Acesso em: 24
jun. 2019.
SCOTT, Joan. Sex and Secularism. Princeton: Princeton University Press,
2017.
VATICAN. Letter to the Bishops of the Catholic Church on the Collaboration
of Men and Women in the Church and in the World [by Joseph Cardinal
Ratzinger]. Rome, 2004. Disponível em: http://www.vatican.va/roman_curia/
congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_20040731_collaboration_en.html. Acesso em: 24 jun. 2019.
Recebido em: 28/10/2019
Aprovado em: 28/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 219-235, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.87631
MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES
SOBRE A CRIAÇÃO DE TEMPLOS RELIGIOSOS
NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO ENTRE 2006 E 2016
Amanda Lacerda Jorge
André Augusto Pereira Brandão
Christina Vital da Cunha1
Resumo: Neste artigo temos como objetivo apresentar uma análise preliminar de
dados sobre a criação de templos religiosos na cidade do Rio de Janeiro entre os
anos 2006 e 2016. A partir da divulgação deste material buscamos contribuir para
a qualificação e ampliação dos debates e investigações acerca do crescente conflito
religioso no contexto urbano no Brasil hoje, sobretudo em suas periferias. Os
números e informações aqui disponibilizados foram produzidos no âmbito do projeto
de extensão e pesquisa intitulado “Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa”,
vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da Universidade Federal Fluminense. A
pesquisa, ao centrar-se no caso do Rio de Janeiro, estado com o maior número de
registros de Intolerância Religiosa no país, segundo dados do relatório da Secretaria
Especial de Direitos Humanos, pretendeu incentivar uma reflexão que leve em
conta as atuais interfaces entre violência, territorialidade e religião no país.
Palavras-chave: Religião; Templos; Rio de Janeiro; Intolerância Religiosa.
MAPPING RELIGION IN THE CITY: REFLECTIONS ON THE CREATION
OF RELIGIOUS TEMPLES IN THE CITY OF RIO DE JANEIRO
BETWEEN 2006 AND 2016
Abstract: In this article we present a preliminary analysis of data on the creation
of religious temples in the city of Rio de Janeiro between 2006 and 2016. From
the dissemination of this material we seek to contribute to the qualification and
expansion of the debates and investigations about the growing religious conflict in
1
Amanda Lacerda Jorge é doutora em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, Brasil. E-mail: amandalacerdajorge@hotmail.com. André Augusto
Pereira Brandão é docente na mesma Universidade. E-mail: andre_brandao@id.uff.
br. Christina Vital da Cunha é também docente da Universidade Federal Fluminense.
E-mail: chrisvital10@gmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
238
Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
the urban context in Brazil today, especially in its peripheries. The numbers and
information provided here were produced within the scope of the extension and
research project titled “Promotion and Defense of Religious Freedom”, linked to
the Pro-Rectory of Extension of the Federal Fluminense University. According to
the report of the Special Secretariat for Human Rights, the study focused on the
case of Rio de Janeiro, which had the highest number of Religious Intolerance
records in the country. It aimed to encourage reflection that takes into account
the current interfaces between violence, territoriality and religion in the country.
Keywords: Religion; Temples; Rio de Janeiro; Religious Intolerance.
INTRODUÇÃO
Neste artigo temos como objetivo apresentar uma análise preliminar
de dados resultantes de uma pesquisa que visava quantificar a criação de
templos religiosos na cidade do Rio de Janeiro entre os anos 2006 e 2016,
produzindo alguma comparabilidade com dados existentes sobre outros
períodos (Fernandes, 1992; Jacob; Hees;Waniez, 2013) na mesma cidade.
A partir da divulgação deste material buscamos contribuir para a qualificação e ampliação dos debates e investigações acerca do crescente conflito
religioso no contexto urbano brasileiro atual, sobretudo em suas periferias.
Os números e informações disponibilizados neste trabalho foram produzidos no âmbito do projeto de extensão e pesquisa intitulado “Promoção
e Defesa da Liberdade Religiosa”, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão da
Universidade Federal Fluminense.
O projeto ao centrar-se no caso do Rio de Janeiro, estado com o maior
número de registros de Intolerância Religiosa no país, segundo dados do
relatório da Secretaria Especial de Direitos Humanos2, pretendeu incen2
O relatório é fruto de uma parceria entre a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa
(CCIR), Centro de Articulação de Populações Marginalizadas (CEAP) e Laboratório de
História das Experiências Religiosas (LHER) do Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
239
tivar uma reflexão que levasse em conta as atuais interfaces entre violência,
territorialidade e religião no país e o fizemos a partir das diversas atividades
promovidas ao longo dos anos de 2016 e 2017 no estado do Rio de Janeiro,
resultado da parceria entre a Universidade Federal Fluminense e a Fundação
Cultural Palmares. A construção de um banco de dados para o mapeamento
de locais de culto no município do Rio de Janeiro fez parte deste rol de
ações propostas inicialmente. Portanto neste artigo, além da divulgação dos
dados da pesquisa que ocorreu no âmbito do projeto “Promoção e Defesa da
Liberdade Religiosa”, pretendemos destacar o percurso metodológico utilizado no tratamento e análise dos dados com vistas a incentivar a replicação
destes mecanismos para a quantificação de templos religiosos em outras
cidades e estados da federação.
Para tanto, inicialmente, recorremos à classificação proposta por
Fernandes (1992) no conhecido Censo Institucional Evangélico – CIN
1992, para a criação de tipologias que nos permitissem identificar os locais
de cultos no município do Rio de Janeiro. A classificação proposta pelo autor,
fundada em sua longa experiência de pesquisa e nos debates acadêmicos
nas Ciências Sociais no período, tinha como critérios cronologia, liturgia,
relações ecumênicas e doutrina (Fernandes, 1992, p. 23).
O modelo de análise construído por Jacob, Hees e Waniez (2013), no
qual se apresenta a geografia da filiação religiosa no Brasil através de indicadores sociais e demográficos da população em diferentes regiões do país,
também nos serviu de inspiração. Neste caso, os dados do Censo Demográfico Nacional realizado pelo IBGE em 2010 foram fundamentais para
os autores delimitarem espacialmente onde as confissões religiosas estavam
dispostas no território brasileiro.
Ainda em termos teórico-metodológicos tivemos como referência os
trabalhos de Almeida (2004) e Almeida e Montero (2001) que analisam o
trânsito religioso no Brasil refletindo sobre características sociodemográficas
e sobre estratégias de localização de templos na cidade de São Paulo.
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Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
CONSTRUINDO UMA METODOLOGIA
PARA O MAPEAMENTO SOBRE A CRIAÇÃO
DE TEMPLOS RELIGIOSOS
Iniciamos o trabalho de recolhimento de informações sobre a criação
de templos religiosos no Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro
(D.O.M), mapeando a publicação dos registros de estatutos de organizações
religiosas. A princípio, nosso propósito era cobrir a criação de templos na
cidade do Rio de Janeiro e Região Metropolitana. Dado o grande volume
de registros somente para o Rio, tivemos de limitar o escopo da pesquisa
somente a este município com um recorte temporal de criação dos locais de
culto3. Ainda assim, foi necessária a mobilização de colaboradores externos
à equipe inicial da pesquisa4 para coletarmos as centenas de registros realizados no período de 2006 a 2016, além de posteriormente classificar as
organizações criadas entre estes anos. Um passo a passo se fazia necessário,
e o conhecimento da legislação vigente era imprescindível.
A Lei nº 10.825, de 2003 (BRASIL, 2003), define as organizações
religiosas como pessoas jurídicas de direito privado5. Este dispositivo institui
que tais organizações possuem o direito de serem reconhecidas pelo Estado
que deve garantir a estas liberdade de criação, estruturação e funcionamento.
As organizações religiosas são caracterizadas, assim, como local de culto, de
instrução de seus membros e fiéis, de atividades beneficentes entre outras
ligadas à esfera religiosa6. Para serem reconhecidas como “pessoa jurídica de
3
4
5
6
A delimitação dos anos a serem cobertos na pesquisa de mapeamento se deveu, principalmente, aos anos 2000/2010 corresponderem a um período cujo crescimento do
debate sobre Intolerância Religiosa gerou uma série de ações nos âmbitos da sociedade
civil e do Estado visando ao seu combate.
Agradecemos ao DataUff pela colaboração na formulação e preenchimento do banco
de dados da pesquisa.
Sobre uma recente discussão comparativa entre Brasil, México, Uruguai e Argentina
sobre processos de legalização do religioso ver Giumbelli (2017).
Com vistas à realização do mapeamento, foram contabilizados, somente, os lugares de
culto religioso como terreiros, igrejas, e sinagogas, dentre outros.
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MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
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direito privado” precisam estar legalmente instituídas, o que ocorre através
do registro em cartório de seu estatuto, acompanhado da ata da assembleia
de sua fundação. Estes documentos devem ser apresentados em um Cartório
de Registro de Pessoa Jurídica (CRPJ). Com esta documentação em ordem é
que o cartório realiza os trâmites necessários para o lançamento da certidão
de registro.
No município do Rio de Janeiro, foi possível encontrar a publicação
do registro destes estatutos no Diário Oficial do Município. Vale lembrar
que o Diário Oficial tem como objetivo dar publicidade aos atos da esfera
executiva, legislativa ou judiciária de interesse do cidadão. A primeira fonte
de informações para a pesquisa veio do D.O.M., especificamente na parte
de “publicações a pedido”, onde estão registradas atas, estatutos, certidões,
avisos, editais. Foram, então, os registros dos estatutos das organizações religiosas que nos deram as pistas iniciais sobre a criação de templos na cidade.
Assim, no site do Diário Oficial do Município do Rio de Janeiro (http://
doweb.rio.rj.gov.br/), a busca foi feita pelo registro de estatutos das instituições
religiosas, utilizando a ferramenta de busca com a palavra-chave “estatuto”.
A pesquisa nos direcionava para uma lista de links que correspondiam a
cada dia de publicação no intervalo de tempo proposto. Ao abrir o link,
procurávamos pela palavra chave selecionada e então encontrávamos a lista
nominal das instituições, data de publicação do registro e, em alguns casos,
o endereço da organização religiosa.
No que tange ao caminho de legalização das organizações religiosas,
há outro passo a ser concretizado: o registro na Receita Federal, pela via do
Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica (CNPJ). Este ato, além de regular o
funcionamento, permite que a organização religiosa realize legalmente transações financeiras ou administrativas, por exemplo. Para tanto, é necessário
que a instituição apresente à Receita Federal, o estatuto e ata da assembleia
de sua aprovação já registrados em Cartório ou ainda, no caso da Igreja
Católica, especificamente, a apresentação de documento emitido pela administração central da mesma, acompanhado do ato de designação do titular
da respectiva representação, também registrados (BRASIL, [201-]).
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Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
É interessante ressaltar que tem crescido nos últimos anos a divulgação
de informações – na forma de cartilhas, principalmente – para que os locais
de práticas religiosas de matriz africana também se instituam como sujeito
de direito privado. Uma cartilha divulgada pela Secretaria de Assistência
Social e Direitos Humanos do Estado do Rio de Janeiro em 2012, traz o
debate sobre a invisibilidade destes segmentos religiosos, sobre a intolerância religiosa sofrida pelos mesmos e sobre a importância de se estabelecer
direitos e deveres para terreiros e demais espaços de cultos de matriz africana.
A cartilha traz também, explicações detalhadas acerca de como efetivar a
legalização destes espaços.
Ou seja, independente da organização religiosa, o estatuto é um documento importante, pois tem como objetivo descrever os fundamentos e
diretrizes da instituição religiosa. Após a criação, aprovação e registro do
estatuto, podemos afirmar que é o CNPJ o responsável por atribuir uma
identidade burocrática à pessoa jurídica, neste caso, à organização religiosa.
No cadastro realizado na Receita Federal, algumas informações, são
exigidas – data de abertura da instituição, nome (Razão Social ou fantasia),
código e descrição das atividades, descrição da natureza jurídica e endereço.
Estes elementos fazem parte da caracterização da instituição como uma
organização religiosa. Tais variáveis, presentes no cadastro nacional de pessoa
jurídica (CNPJ) da Receita Federal, podem ser pesquisadas em sites de busca
de CNPJ como: empresas.com, empresasdorj.com e empresasdobrasil.com
– foi desta forma que levantamos informações mais específicas sobre estas
organizações. O conjunto de dados coletados no Diário Oficial do Município
do Rio de Janeiro e nos sites de busca de CNPJ foram digitados em uma
ficha eletrônica previamente padronizada que, posteriormente, foi exportada
para um banco de dados. Logo a seguir, podemos verificar a ficha de coleta
de dados utilizada. Vale ressaltar que um número expressivo de locais de
culto foi encontrado durante a pesquisa nestes sites de busca, embora não
tenhamos localizado sua publicação no Diário Oficial do Município. O
subregistro de templos religiosos é bastante comum em favelas e periferias
(CIN 1992) e, especialmente, entre religiões afrobrasileiras como apontam
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MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
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alguns estudos (Silva Jr., 2009; Fonseca; Giacomini, 2013; Rego; Fonseca;
Giacomini, 2014; PUC-Rio; SEASDH-RJ, 2012).
Quadro 1 – Exemplo de ficha de coleta de dados com informações das organizações religiosas
CNPJ: 10.492.926/0001-03
Razão Social: COMUNIDADE CRISTÃ NOVA VIDA DO BRASIL
Nome Fantasia: não tem
Data de Abertura: 11/11/2008
Natureza Jurídica: 399-9 - Associação Privada
Atividade Principal: 94.91-0-00 - Atividades de organizações religiosas ou filosóficas
Endereço:
CEP: 21.031-700
Logradouro: R JOAO ROMARIZ
Número: 47
Complemento:
Bairro: RAMOS
Município: RIO DE JANEIRO
UF: RJ
Fonte: Elaborado pelos autores.
Outra fonte de coleta de informações para a pesquisa foi o Anuário Católico (ARQUIDIOCESE DE SÃO SEBASTIÃO DO RIO DE JANEIRO,
2015) publicado pelo Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais
(CERIS) do ano de 2015. Trata-se do levantamento mais recente realizado
pela Igreja Católica. Neste documento estão disponibilizados os nomes,
endereços e datas de fundação de paróquias até o final do ano de 2015 em
todo o território brasileiro. No entanto, o ano de criação de capelas, igrejas
e santuários que estão sobre a jurisdição territorial das paróquias, não está
disponível neste anuário de maneira detalhada. Foi possível verificar neste
documento que estão registradas no munícipio do Rio de Janeiro 265 paróquias, e vinculados a estas estão, aproximadamente, 1400 espaços de cultos.
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Christina Vital da Cunha
Como não era possível obter o ano de criação de capelas, igrejas e
santuários no Anuário, recorremos a ligações telefônicas para a Cúria da
Arquidiocese do estado do RJ e também para as paróquias listadas no documento para levantar as informações necessárias para a construção do banco
de dados. No entanto, grande parte das paróquias não atendia às ligações
ou, quando atendia, não possuía as informações que demandávamos. Como
resultado obtivemos dados relativos à criação de espaços de culto católicos
em 225 (das 265 paróquias) a partir de 2006. Neste sentido, destacamos que
a Igreja Católica poderá estar sendo representada no banco de dados com
um número de templos menor do que os que foram abertos no período.
A construção do banco de dados e a produção de tipologias
No banco de dados, base de informações da pesquisa de mapeamento,
trabalhamos com as seguintes variáveis: CNPJ, nome da organização religiosa,
bairro, zona geográfica, atividade econômica principal, natureza jurídica,
data de publicação do estatuto, ano de abertura da instituição e endereço
(logradouro, número e complemento). Além destas variáveis, buscamos
produzir tipologias que nos permitissem organizar a apresentação dos espaços
de culto ligados às diferentes religiões, assim como identificar se os templos
criados no período delimitado pela pesquisa estavam em favelas.
E quanto ao uso de tipologias? No âmbito das Ciências Sociais, podemos
afirmar que as tipologias têm como objetivo organizar, agrupar elementos
e informações, ao buscar aproximações possíveis frente à diversidade de
elementos que compõem um determinado contexto de interesse para a
análise. Sua construção é um processo dinâmico e interpretativo que dialoga
com a produção especializada já existente e com a singularidade de seus
objetivos de pesquisa. Neste sentido, as tipologias deveriam nos possibilitar:
1) agrupar os espaços de culto em termos doutrinários/sociais; 2) além de
referenciá-los no mapa da cidade, ou seja, nos diferentes bairros do município do Rio de Janeiro.
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Para mapear os espaços de culto foi necessário classificar os 158 bairros
listados no banco de dados em um conjunto de zonas geográficas utilizadas
pelos órgãos oficiais do município (RIO DE JANEIRO, 2017). Sendo assim,
os bairros foram divididos em zonas: Sul, Norte, Central, Oeste. No caso da
Zona Oeste estabelecemos uma separação especificamente definida a partir
de nossos interesses de pesquisa entre: a) uma área em que há tendência de
maior presença de população com renda elevada e; b) outra onde há tendência
oposta. Com isto, separamos a Zona Oeste 1 (composta especificamente
pela Barra da Tijuca e pelo Recreio dos Bandeirante cujo nível de renda é
maior) em relação aos bairros contidos na Zona Oeste 2 (integrada pelos
bairros de Bangu, Realengo, Jacarepaguá).
Obviamente esta classificação7 em zonas não esgota todas as variáveis
que circundam o fenômeno em análise e muito menos garantem homogeneidade socioeconômica em cada uma destas. Um espaço de culto religioso
situado na Zona Sul ou na Zona Oeste 1, áreas com tendência a apresentar
indicadores socioeconômicos mais elevados, pode estar especificamente
localizado em uma favela ou espaço correlato que apresente indicadores
opostos ao do conjunto da região. Da mesma forma, um local de culto
religioso situado na Zona Norte (onde tendencialmente encontraríamos
indicadores socioeconômicos mais baixos), pode ter como endereço uma
área de classe média e indicadores sociais mais elevados como algumas
regiões do bairro da Tijuca.
Enfim, a organização dos endereços por zonas definidas na cidade do
Rio de Janeiro nos possibilitou identificar tendências geoespaciais. Com
isto, tornou-se possível estabelecer uma correlação aproximada entre estas
tendências, as variáveis socioeconômicas mais amplas e os locais de culto
religioso.
7
A classificação das zonas foi construída a partir do índice de desenvolvimento social
de bairros e favelas do município do Rio de Janeiro. Disponível em: http://portalgeo.
rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2394_%C3%8Dndice%20de%20Desenvolvimento%20Social_IDS.pdf. Acesso em: 3 fev. 2019.
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Maior refinamento conseguimos ao efetuar uma segunda classificação.
Esta foi construída tomando como base o georreferenciamento do endereço
completo dos locais de culto religioso identificados e a comparação dos
pontos geográficos gerados através de mapas elaborados e disponibilizados
publicamente pela prefeitura do Rio de Janeiro que identificam as áreas do
município caracterizados como “aglomerados subnormais”8.
Tal nomenclatura, segundo o IBGE, “engloba os diversos tipos de
assentamentos irregulares existentes no país, como favelas, invasões, grotas,
baixadas, comunidades, vilas, ressacas, mocambos, palafitas, entre outros”
(IBGE, 2010a).
Esta segunda classificação, portanto, somente identifica se um dado local
de culto está ou não situado em uma área de favela. No entanto, mais uma
vez, trata-se de uma aproximação posto que, apesar dos mapas utilizados
como base datarem do ano de 2016, a dinâmica da ocupação territorial da
cidade tende a provocar alterações no número, dispersão e tamanho dos
“aglomerados subnormais”.
8
Segundo o IBGE, um aglomerado subnormal corresponde a um conjunto constituído
de, no mínimo, 51 unidades habitacionais em sua maioria carentes de serviços públicos
essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade
alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e/
ou densa. A identificação dos aglomerados subnormais é feita com base nos seguintes
critérios: a) Ocupação ilegal da terra, ou seja, construção em terrenos de propriedade
alheia (pública ou particular) no momento atual ou em período recente (obtenção do
título de propriedade do terreno há dez anos ou menos); e b) Possuir pelo menos uma
das seguintes características: • urbanização fora dos padrões vigentes – refletido por vias
de circulação estreitas e de alinhamento irregular, lotes de tamanhos e formas desiguais
e construções não regularizadas por órgãos públicos; ou • precariedade de serviços
públicos essenciais, tais quais energia elétrica, coleta de lixo e redes de água e esgoto.
Os aglomerados subnormais podem se enquadrar, observados os critérios de padrões de
urbanização e/ou de precariedade de serviços públicos essenciais, nas seguintes categorias:
invasão, loteamento irregular ou clandestino, e áreas invadidas e loteamentos irregulares
e clandestinos regularizados em período recente. (IBGE, 2010a, p. 18).
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Como foi realizado este georreferenciamento? Com base no banco de
dados contendo as informacões sobre as instituições religiosas criadas entre
os nos anos de 2006 e 2016, utilizamos alguns programas específicos para o
processamento geográfico9 Todas as informações adquiridas neste processamento foram transformadas em pontos específicos em um mapa a partir dos
campos “logradouro”, “número” e “bairro”. Após esta etapa, utilizamos as
tipologias para filtrar e diferenciar os espaços de culto por zonas geográficas.
Em um segundo momento, buscamos identificar locais de cultos situados
em favelas. Para isso, utilizamos a “mancha” das favelas do ano de 2016 do
município do Rio de Janeiro. O resultado deste último procedimento pode
ser observado na tabela 1 logo a seguir. Como vemos, somente locais de
culto evangélicos e afro-brasileiros foram criados em áreas que identificamos
como favela no período abarcado pela pesquisa.
Tabela 1 – Percentual de templos criados entre 2006 e 2016 em áreas de favela no município
do Rio de Janeiro
Vinculação
religiosa
Nº de locais de culto
Total de locais % de locais de culto criados
criados em áreas de favela de culto criados
em áreas de favela
Evangélico
488
3537
13,80%
Afro-brasileiro
11
231
4,76%
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
No tocante à caracterização dos lugares de culto conforme religiões e
correntes internas as mesmas (quando não se tratavam de denominações
referidas e classificadas na bibliografia especializada), foi necessário um
esforço específico – para tanto, nos apoiamos em diferentes referenciais
9
Para o georreferenciamento foram utilizados os softwares QGIS e Google Earth. Também
foram úteis as informações sobre bairros e zonas geográficas do município do Rio de
Janeiro disponíveis no site www.armazemdedados.rio.rj.gov.br. Foi pesquisada, além
disso, a localização geográfica de favelas no site do Instituto Pereira Passos (IPP, 2014).
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Christina Vital da Cunha
metodológicos e especializados no tema da religião. Para o primeiro caso,
tomamos como referência ampla a proposta de Ginzburg (1989) relativa ao
que o autor denomina como paradigma indiciário. Trata-se de utilizar um
conjunto de detalhes, sinais e indícios que poderiam ser tomados mesmo
como “negligenciáveis” para descrever ou classificar uma “realidade complexa”
que não foi experimentada diretamente pelo sujeito da investigação (Ginzburg, 1989, p. 152).
Obviamente tal perspectiva enseja elevado grau de subjetividade no
que tange aos indícios e detalhes selecionados e a forma de interpretação
destes. De fato, os indícios nos possibilitaram chegar a construção de um
conjunto de “tipos ideais”. No sentido weberiano do termo, questão básica do
conhecimento nas ciências sociais, o “tipo ideal” corresponde a um modelo
teórico construído a partir de fenômenos isolados ou da relação entre estes
com vistas a ser testado empiricamente. Na obra “A objetividade do conhecimento nas ciências sociais”, Weber (1985, p. 109) define o tipo ideal:
Trata-se [...] de um quadro de pensamento, não da realidade histórica, e
muito menos da realidade “autêntica”; não serve de esquema em que se possa
incluir a realidade à maneira de exemplar. Tem, antes, o significado de um
conceito-limite, puramente ideal, em relação ao qual se mede a realidade a
fim de esclarecer o conteúdo empírico de alguns dos seus elementos importantes, e com o qual é comparada. Tais conceitos são configurações nas quais
construímos relações, por meio da utilização da categoria de possibilidade
objetiva, que a nossa imaginação, formada e orientada segundo a realidade,
julga adequadas.
Como se depreende da citação acima, o tipo ideal não corresponde
a uma descrição, nem a uma hipótese. Também não é ideal em sentido
normativo, mas sim um “tipo puro” em sentido lógico. Por outro lado, a
construção de tipos ideais não corresponde ao objetivo da pesquisa, mas
sim a um recurso para viabilizar a análise da realidade empírica. Isto se faz
por meio da “acentuação unilateral” de um ponto ou de vários pontos de
vista e do “encadeamento de grande quantidade de fenômenos isoladamente
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dados” e difusos, “que se ordenam segundo os pontos de vista unilateralmente
acentuados, a fim de se formar um quadro homogêneo de pensamento”
(Weber, 1985, p. 106).
Frente a esta saída metodológica informada, por um lado, pela noção
weberiana de tipo ideal e, por outro lado, pela procura de indícios e detalhes
derivados de uma realidade excessivamente complexa, chegamos a elaboração de três tipologias relativas ao enquadramento religioso dos locais de
culto mapeados. Uma primeira, que contém 17 variáveis é mais ampla e
tendencialmente mais sujeita a possibilidade de imprecisões. A segunda
com 11 variáveis é mais restrita e potencialmente carrega menores riscos
classificatórios que a anterior. E por fim, a tipologia de número três repete
em linhas gerais a primeira.
A única diferença é que nesta os locais de culto evangélicos que se
referiam à filiação tradicional, mas que haviam sido classificados como pentecostais anteriormente, foram reclassificados como evangélicos tradicionais
renovados (entre estas encontramos as denominações batista, metodista e
presbiteriana já pentecostalizadas, por exemplo). O objetivo desta terceira
tipologia é, simplesmente, identificar os “renovados” na massa de pentecostais. Um exemplo é o espaço de culto “Associação Batista Adonai”, ou ainda
a “Comunidade Presbiteriana da Freguesia”. Logo a seguir, apresentamos o
quadro com as tipologias construídas.
Quadro 2 – Tipologias
Tipologia detalhada
Tipologia menos
detalhada
Tipologia mais detalhada
com separação das igrejas
evangélicas renovadas
Afro-brasileiro
não identificado
Afro-brasileiro
Afro-brasileiro
não identificado
Budista
Budista
Budista
Candomblé
Católico
Candomblé
Católico
Espírita
Católico
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Quadro 2 (cont.)
Tipologia detalhada
Tipologia menos
detalhada
Tipologia mais detalhada
com separação das igrejas
evangélicas renovadas
Cristão Ortodoxo
Evangélico
Cristão Ortodoxo
Espírita Kardecista
Hinduísta
Espírita Kardecista
Espírita não identificado
Islâmico
Espírita não identificado
Evangélico Tradicional
Judaico
Evangélico pentecostal
Evangélico não identificado
Maçônico
Evangélico não identificado
Evangélico pentecostal
Outros
Evangélico tradicional
Hinduísta
Outros Cristãos
Evangélico Tradicional
Renovado
Islâmico
----
Hinduísta
Judaico
----
Islâmico
Maçônico
----
Judaico
Outros
----
Maçônico
Santo Daime
----
Outros
Umbanda
----
Santo Daime
----
----
Umbanda
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
Após a apresentação das tipologias criadas para a nossa análise, cabe
aqui explicarmos melhor a criação destas, começando com o grupo dos
evangélicos. A primeira etapa deste trabalho de classificação se voltava para
o nome de registro do local de culto mapeado. Assim um local com a razão
social “IGREJA EVANGÉLICA PENTECOSTAL MINISTÉRIO DEUS É
GRANDE” já indicava se tratar de uma igreja evangélica de viés pentecostal.
Já um local nomeado como “IGREJA EVANGÉLICA DA CONQUISTA”
trazia a certeza do caráter evangélico, somente. No primeiro caso, onde havia
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MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
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uma nomeação direta do enquadramento religioso, compomos a tipologia
mais detalhada com a identificação do local de culto como “evangélico
pentecostal” e a tipologia menos detalhada com a identificação como local
de culto “evangélico”.
No segundo caso, a razão social por si só nos permitia preencher a
coluna referente à tipologia menos detalhada (como “evangélico”), mas não
a tipologia mais detalhada. A coleta de indícios e sinais se impunha como
ferramenta – assim, frente à impossibilidade de visitar cada um dos espaços
de culto não passíveis de classificação pela razão social registrada, buscávamos
informações referentes a estes na web, seja através de perfis de Facebook, de
blogs ou de sites. Nestes, fazíamos a leitura de textos, assistíamos a vídeos
postados que em geral mostravam atividades religiosas, observávamos as fotos
anexadas, líamos posts, com vistas a localizar “cronologias, liturgias, relações
ecumênicas e doutrinas” (Fernandes, 1992, p. 23) que nos permitissem
identificar as igrejas sob a égide das classificações consagradas no campo
de estudos da religião (Freston, 1994; Mariano, 1999; Fernandes, 1992).
Nos casos em que não conseguíamos classificar o local de culto evangélico
por seu nome de registro e não encontrávamos qualquer possibilidade de
coletar indícios na web, classificamo-los de “Evangélico não identificado”.
No que tange aos espaços de culto que se nomeavam como centros
espíritas, e fraternidades adotamos procedimento semelhante buscando
informações em sites, blogs e Facebook. Quando não conseguimos indícios
que lhes vinculassem ao Kardecismo, apresentamo-los na classificação mais
geral Espírita. Como se poderia inferir previamente, as interfaces entre
candomblé e umbanda eram muitas e tal hibridismo tornava ainda mais
desafiadora a nossa tentativa de classificação por registro dos lugares de
culto, sem possibilidades de ir a campo. Sendo assim, em alguns casos era
possível identificar pelo registro que se tratava de um espaço de culto da
Umbanda, em outros nos quais os registros não deixavam isto claro e que
não conseguíamos informações na web, optamos pela classificação genérica
“Afro-brasileiro não identificado”.
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Encontramos ainda espaços de culto nomeados ou que foram identificados a partir de indícios encontrados após pesquisa na web, como Hinduísta,
Budista, Cristão Ortodoxo, Maçonaria, Islâmico, Judaico e Santo Daime.
Os locais de culto que não se enquadravam em nenhuma destas alternativas
acima descritas foram classificados como “Outros”.
RESULTADOS INICIAIS DO USO DA TIPOLOGIA
Apresentamos a seguir alguns resultados gerais que foram gerados a
partir do banco de dados produzido. Como vemos, no período definido
para a pesquisa identificamos a criação de 3990 locais de culto religioso na
cidade do Rio de Janeiro, o que representa mais de 1 local criado por dia
na década.
Ao utilizar a tipologia mais geral verificamos a ampla maioria de locais
evangélicos que correspondem a 88,65% do total. A elevada presença de
instituições evangélicas se opõe ao peso restrito das demais filiações religiosas.
Vários fatores colaboram na explicação deste fenômeno e a bibliografia especializada já lhes apresentou, tendo notável força a questão do tipo de gestão
das igrejas que mais crescem (congregacional, logo, não centralizada), as
constantes rupturas de líderes com as igrejas nas quais se formaram criando
novas denominações e as ambições e disputas institucionais. As religiões afro-brasileiras tiveram um percentual de abertura de templos muito pequeno
diante dos evangélicos. As considerações sobre estes dados nos forçam a
destacar que o baixo quantitativo não é sinônimo de inoperância sociocultural
desta tradição. A descentralização própria da lógica destas religiões, assim
como o fato de não serem religiões de conversão, universalistas, de serem
religiões chamadas do “segredo” contribuem para explicar estes percentuais.
Chama a atenção, contudo, que nos anos finais do período coberto pela
pesquisa haja um número maior de registros. Nossa hipótese é que este
incremento seja fruto de políticas públicas e do trabalho incansável do
movimento social na elaboração de cartilhas orientando e incentivando ao
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registro de casas e terreiros, além de outras campanhas e ações que visam à
valorização da identidade religiosa afro-brasileira.
Tabela 2 – Locais de culto religioso criados entre 2006 e 2016 no município do Rio de
Janeiro, segundo tipologia menos detalhada
Locais de culto religioso
Nº de locais de culto religioso
%
Evangélico
3537
88,65%
Afro-brasileiro
231
5,79%
Espírita
71
1,78%
Católico
62
1,55%
Outros
62
1,55%
Judaico
7
0,18%
Maçônico
7
0,18%
Outros Cristãos
5
0,13%
Islâmico
3
0,08%
Hinduísta
3
0,08%
Budista
2
0,05%
3990
100,00%
Total geral
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
Na tabela 3, construída a partir da tipologia mais detalhada, é possível
verificar o grande peso dos locais de cultos evangélicos pentecostais criados
frente aos demais deste segmento (tradicionais e não identificados). O boom
evangélico é, de fato, um boom pentecostal, conforme uma farta bibliografia
apresenta (Teixeira; Menezes, 2006, 2013; Mafra, 2009, 2001; Pierucci,
2004, 2003; entre outros). Neste contexto é significativo o baixo percentual
alcançado pelo segmento evangélico tradicional, como tendencialmente
já revelavam pesquisas sobre o número de seus fiéis realizadas pelo IBGE,
DataFolha e FGV. O segundo ponto a destacar diz respeito aos locais de
culto afro-brasileiros. Verificamos que foram criados quase 5 vezes mais locais
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Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
vinculados a umbanda do que ao candomblé. O número elevado de espaços
afro-brasileiros que não foram passíveis de identificação (43) se deve ao fato
de que no caso deste segmento, encontramos em menor medida adesão a
blogs, Facebook e sites que pudessem oferecer maiores informações. Um
ethos do segredo que acompanha estas tradições, junto ao já mencionado
baixo número de registros cartoriais de seus templos nos ajuda a refletir
sobre a pouca visibilidade nas mídias sociais, assim como o baixo número
de templos capturáveis pela pesquisa neste período.
Tabela 3 – Número de locais de culto religioso criados entre 2006 e 2016 no município
do Rio de Janeiro, segundo tipologia mais detalhada
Locais de culto religioso
Nº de locais de culto religioso
%
Evangélico pentecostal
3400
85,21%
Umbanda
154
3,86%
Evangélico tradicional
110
2,76%
Católico
62
1,55%
Outros
61
1,53%
Espírita Kardecista
53
1,33%
Afro-brasileiro não identificado
43
1,08%
Candomblé
34
0,85%
Evangélico não identificado
27
0,68%
Espírita não identificado
18
0,45%
Maçônico
7
0,18%
Judaico
7
0,18%
Cristão Ortodoxo
5
0,13%
Hinduísta
3
0,08%
Islâmico
3
0,08%
Budista
2
0,05%
Santo Daime
1
0,03%
3990
100,00%
Total geral
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
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MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
A tabela 4 a seguir utiliza a classificação que separa os tradicionais
renovados (que seguem padrões litúrgicos pentecostalizados) da massa dos
pentecostais. Vemos que este segmento específico apresenta o segundo maior
percentual de criação de locais de culto na década, embora em índice muito
inferior ao dos evangélicos pentecostais.
Tabela 4 – Número de locais de culto religioso criados entre 2006 e 2016 no município do
Rio de Janeiro, segundo tipologia mais detalhada e separando os evangélicos tradicionais
renovados
Locais de culto religioso
Nº de locais de culto religioso
%
Evangélico pentecostal
3174
79,55%
Evangélico Tradicional Renovado
(pentecostalizado)
226
5,66%
Umbanda
154
3,86%
Evangélico Tradicional
110
2,76%
Católico
62
1,55%
Outros
61
1,53%
Espírita Kardecista
53
1,33%
Afro-brasileiro não identificado
43
1,08%
Candomblé
34
0,85%
Evangélico não identificado
27
0,68%
Espírita não identificado
18
0,45%
Maçônico
7
0,18%
Judaico
7
0,18%
Cristão Ortodoxo
5
0,13%
Islâmico
3
0,08%
Hinduísta
3
0,08%
Budista
2
0,05%
Santo Daime
1
0,03%
3990
100,00%
Total geral
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
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Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
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Entre os locais de culto evangélico pentecostal se destacam aqueles
nomeados como Assembleia de Deus. Nada menos que 1498 locais mapeados
estão neste campo. A tabela 5 mostra que os templos da Assembleia de Deus
criados correspondem a 44,07% do conjunto de templos pentecostais, e a
42,37% do conjunto de templos evangélicos em geral.
Este peso da Assembleia de Deus no conjunto dos evangélicos vem sendo
apontado pela literatura da área. Almeida (2004) ao realizar o mapeamento
de locais de culto na região metropolitana de São Paulo destaca a presença
e construção de templos de duas denominações pentecostais: Assembleia
de Deus e Igreja Universal do Reino de Deus e mostra que o segmento
evangélico pentecostal recebe cada vez mais adeptos entre os mais pobres
desta região. Nas áreas de maior vulnerabilidade é possível verificar principalmente a presença da igreja Assembleia de Deus. Como exemplo, cita a
presença de oito templos na favela de Paraisópolis.
Já os templos da Igreja Universal estão concentrados principalmente
nas vias principais, como estratégia de visibilidade e marketing. O mesmo
acontece com as paróquias católicas – localizadas principalmente no interior dos bairros da região metropolitana de São Paulo, em vias principais
(Almeida, 2004).
Jacob, Hees e Waniez (2013) mostram que, entre 1991 e 2010, o
número de adeptos da Assembleia de Deus no Brasil passou de 29,8%
para 48,5% do total de evangélicos pentecostais. No entanto, é preciso
que tenhamos cuidado com estes resultados, uma vez que a presença da
nomeação Assembleia de Deus na razão social de um dado local de culto
não significa que exista homogeneidade institucional. Isto porque, apesar
desta denominação ter sido utilizada pela primeira vez em 1911, quando da
criação da primeira igreja no estado do Pará, atualmente esta corresponde a
um vastíssimo rol de ministérios, alguns concorrentes entre si, cujo tempo
de fundação, lideranças religiosas, volume de fieis e número de templos são
muito distintos. Parte destes locais está vinculado e obedece a princípios de
uma das convenções nacionais existentes.
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MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
Tabela 5 – Percentual de templos da Assembleia de Deus criados entre 2006 e 2016 no
município do Rio de Janeiro no conjunto dos templos evangélicos pentecostais e evangélicos
em geral
Locais de culto
denominados
Assembleia de
Deus
% de locais de
culto denominados
Assembleia de Deus
entre os evangélicos
pentecostais
Locais de culto
evangélicos
pentecostais
% de locais de
culto denominados
Assembleia de Deus
entre os evangélicos
em geral
Locais de culto
evangélicos em
geral
1498
44,06
3400
42,35
3537
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
A distribuição dos 3990 espaços de culto religiosos criados entre 2006
e 2016, pelas zonas geográficas previamente definidas pode ser observada
na tabela 6, logo abaixo. Há amplo predomínio da criação destes locais na
Zona Oeste 2, que se apresenta como área de expansão urbana no contexto
do município e compreende população tendencialmente de menor renda.
Em seguida, vemos a Zona Norte, que também contém população em geral
mais pobre, mas que não se mantém como área de expansão.
Tabela 6 – Distribuição percentual dos locais de culto criados entre 2006 e 2016, segundo
a zona geográfica no município do Rio de Janeiro
Zonas geográficas
Zona Sul
Número de locais de culto criados
%
118
2,96%
Zona Central
107
2,68%
Zona Norte
1519
38,07%
Zona Oeste 1
84
2,11%
Zona Oeste 2
2128
53,33%
34
0,85%
3990
100%
Não identificada
Total geral
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares
e Universidade Federal Fluminense.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
258
Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
A tabela 7, complementando a anterior, mostra que dos quatro segmentos
evangélicos, três possuem mais da metade dos locais de culto criados no
período, localizados especificamente na Zona Oeste 2. Estes segmentos são:
evangélicos pentecostais, evangélicos tradicionais e evangélicos tradicionais
renovados. Ou seja, a área que ainda possui características de expansão urbana
no contexto da cidade do Rio de janeiro, é exatamente onde os evangélicos
dispuseram mais da metade de seus locais de culto criados entre 2006 e 2016.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
Z.
Central
Z.
Norte
Z.
Oeste 1
Z.
Oeste 2
Z.
Sul
Total
geral
Afro-brasileiro
não identificado
4,65%
2,33%
37,21%
2,33%
53,49%
0,00%
100,00%
Budista
0,00%
0,00%
0,00%
0,00%
0,00%
100,00%
100,00%
Candomblé
11,76%
0,00%
44,12%
0,00%
44,12%
0,00%
100,00%
Católico
1,61%
6,45%
41,94%
6,45%
38,71%
4,84%
100,00%
Cristão Ortodoxo
0,00%
0,00%
40,00%
0,00%
0,00%
60,00%
100,00%
Espirita Kardecista
0,00%
3,77%
45,28%
7,55%
39,62%
3,70%
100,00%
Espirita não identificado
5,56%
0,00%
61,11%
5,56%
22,22%
5,56%
100,00%
Evangélico não identificado
7,41%
3,70%
44,44%
3,70%
33,33%
7,41%
100,00%
Evangélico Pentecostal
0,50%
2,33%
37,21%
1,83%
55,55%
2,58%
100,00%
Evangélico Tradicional
0,00%
1,82%
27,27%
5,45%
60,00%
5,45%
100,00%
Evangélico Tradicional
Renovado (pentecostalizado)
0,00%
2,64%
36,73%
1,77%
57,52%
1,33%
100,00%
Hinduísta
0,00%
33,33%
66,67%
0,00%
0,00%
0,00%
100,00%
259
Endereço não
localizado
Locais de culto
MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
Tabela 7 – Distribuição percentual dos templos criados entre 2006 e 2016 no município do Rio de Janeiro, segundo tipologia
mais detalhada e separando os evangélicos renovados, por zona geográfica.
Z.
Central
Z.
Norte
Z.
Oeste 1
Z.
Oeste 2
Z.
Sul
Total
geral
Islâmico
0,00%
66,67%
33,33%
0,00%
0,00%
0,00%
100,00%
Judaico
0,00%
0,00%
14,29%
14,29%
14,29%
57,14%
100,00%
Maçônico
0,00%
28,57%
57,14%
0,00%
14,29%
0,00%
100,00%
Outros
4,92%
6,56%
37,70%
4,92%
29,51%
16,39%
100,00%
Santo Daime
0,00%
0,00%
0,00%
100,00%
0,00%
0,00%
100,00%
Umbanda
3,25%
5,19%
57,14%
0,00%
34,42%
0,00%
100,00%
Total geral
0,85%
2,68%
38,37%
2,11%
53,33%
2,96%
100,00%
Fonte: Pesquisa Promoção e Defesa da Liberdade Religiosa – Fundação Cultural Palmares e Universidade Federal Fluminense
Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
Endereço não
localizado
Locais de culto
260
Tabela 7 (cont.)
MAPEANDO RELIGIÃO NA CIDADE: REFLEXÕES...
261
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O mapeamento realizado, apesar de ter detectado a criação de 3990
espaços de culto religioso entre 2006 e 2016 na cidade do Rio de Janeiro,
certamente não expressa integralmente a dinâmica de incremento de agregações religiosas naquele espaço e tempo. Isto porque, as características da
metodologia empregada limitam a coleta de dados àqueles agrupamentos
que possuem algum nível de institucionalidade e, potencialmente, de continuidade no tempo, uma vez que buscaram inserção burocrática frente aos
órgãos públicos.
É possível supor que uma miríade incalculável de outras agregações tenha
vindo à luz no mesmo período. Apesar de ser necessário levar em conta este
dado, os resultados gerais que conseguimos produzir a partir do banco de
dados criado, corroboram tendências nacionais e mesmo as configurações
mais específicas do Estado do Rio de Janeiro e da Região Metropolitana,
que podem ser observados nos censos demográficos. É claro que nos censos
encontramos o número de fiéis enquanto que em nossa pesquisa nos dedicamos ao número de espaços de culto e sua dispersão pelo território da cidade.
Ao relacionar geografia e indicadores sociais de cada estado brasileiro, a
pesquisa de Jacob et al. (2006, 2013) já nos revelava no contexto do estado
do Rio de Janeiro, o crescimento dos evangélicos e a sua correlação com os
problemas sociais e econômicos existentes nas grandes cidades, principalmente em espaços de periferia. Assim, como o georreferenciamento realizado
por Almeida (2004) na região metropolitana de São Paulo que localizou a
predominância de igrejas da Assembleia de Deus nestes locais.
O mapeamento dos locais de culto no município do Rio de Janeiro
realizado no âmbito do projeto “Liberdade Religiosa” se aproxima das
perspectivas de análise acima no que diz respeito aos resultados, apesar da
metodologia seguir caminhos diferentes. Do ponto de vista geográfico, os
resultados que encontramos também corroboram análises mais gerais que
indicam o predomínio de populações mais pobres entre os adeptos das
denominações evangélicas pentecostais (Mariano, 2011). Como vimos na
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
262
Amanda Lacerda Jorge, André Augusto Pereira Brandão,
Christina Vital da Cunha
tabela 6 as classificações evangélicas que mapeamos (exceto os evangélicos não
identificados) apresentam maior percentual de criação de espaços de culto
na região que denominamos como Zona Oeste 2. Esta parte da cidade do
Rio de Janeiro é a única ainda considerada como de expansão e, portanto,
tende a agregar em maior proporção características de urbanização recente ou
incompleta que, pelo custo menor da moradia, atrai segmentos com renda
mais baixa. O crescimento de templos nesta região, com destaque para os
evangélicos, revela que esta área de expansão urbana (cujos interesses político
e econômico são grandes) é também uma área de missão, de evangelização,
de difusão de gramáticas, estéticas, de um ethos pentecostal (Mafra, 2011;
Vital da Cunha, 2018).
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Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
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Recebido em: 29/11/2018
Aprovado em: 22/02/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 237-265, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.96166
“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ
EM UMA IGREJA PENTECOSTAL DA PERIFERIA
Réia Sílvia Gonçalves Pereira1
Resumo: No artigo, são apresentados dados etnográficos da igreja Herdeiros do Sião,
pequena igreja pentecostal localizada numa favela de Vitória, Espírito Santo. Em
observação participante empreendida de janeiro a abril de 2014 e retomada entre
janeiro e fevereiro de 2018, apresento pontos de reflexão sobre a singularidade da
expressão religiosa representada pela denominação, que pode ser associada a uma
vertente pentecostal conhecida, em expressão de grupo, como reteté de Jeová. O
termo se refere aos rituais de culto ao espírito santo marcados pelo caráter extático,
sensorial e pela intensidade das performances corporais, que lembram uma dança
giratória. Especificamente, no artigo, a análise se concentra na reflexão sobre como
a Herdeiros do Sião se situa e atua no contexto da favela onde está inserida. Em
sentido mais amplo, partindo do conceito sobre afinidade eletiva (Weber, 2004)
e posição fronteiriça (Coleman, 2006), argumento que os rituais vivenciados na
igreja, bem como sua forma de organização, fornecem pistas sobre a associação
entre a ritualística reteté e o ethos periférico. Nesta esteira, também são discutidas
as disputas por legitimidade da religiosidade reteté, muitas vezes invisibilizadas ou
desconsideradas dentro do campo evangélico brasileiro.
Palavras-chave: Pentecostalismos; Periferias; Ritual.
“LET THE BOY SPIN”: THE “RETETÉ” CHARISMA IN A PENTECOSTAL
CHURCH OF THE SUBURBS
Abstract: This article presents ethnographic data from Herdeiros do Sião, a little
pentecostal church situated in a slum in Vitória, Espírito Santo. In a participant
observation carried out from January to April 2014 and resumed between January
and February 2018, I present points of reflection about the singularity of the
religious expression represented by this denomination, which can be associated
1
Doutoranda em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail:
artigodebates@gmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
268
Réia Sílvia Gonçalves Pereira
to a pentecostal branch known, in an expression used by the group, as “reteté
de Jeová”. The term refers to the rituals of the cult to the Holy Spirit marked by
the ecstatic, sensory character and by the intensity of the corporal performances,
which remind us of a whirling dance. In this article, the analysis focuses on the
reflection about how Herdeiros do Sião situates itself and acts in the context of the
slum. In a broader sense, based on the concept of elective affinity (Weber, 2004),
I argue that the rituals experienced at Herdeiros do Sião, as well as its form of
organization, suggest an association between the reteté rituals and the peripheral
ethos. Disputes for the legitimacy of reteté religiosity are also discussed, as it is often
made invisible or disregarded by the evangelical field, precisely for its association
with the Brazilian peripheral universe.
Keywords: Pentecostalisms; Suburbs; Ritual.
INTRODUÇÃO
Quem tocar no crente ungido, vai com a cara na poeira
(Damares)
Para o artigo, apresento dados etnográficos da Herdeiros do Sião, igreja
pentecostal localizada numa favela (Valladares, 2008) de Vitória, Espírito
Santo. Morei na localidade em virtude da pesquisa de mestrado, de janeiro a
abril de 2014, retornando ao campo em janeiro de 2018. Além dessa igreja,
durante todo o tempo de pesquisa, participei de cultos em muitas outras
denominações de características semelhantes à Herdeiros de Sião. Eram
pequenas igrejas pentecostais, formando grupos com número relativamente
reduzido de integrantes e com intenso controle sobre as condutas de seus
membros. A partir dessas observações, apresento algumas reflexões neste texto.
Como estratégia textual, o trabalho está dividido em dois tópicos principais. No primeiro deles, a análise tem como base a experiência etnográfica
na igreja Herdeiros do Sião. No segundo item, apresento pontos de reflexão
sobre a singularidade das práticas religiosas da igreja estudada, associando tais
experiências a uma expressão de religiosidade muito comum nos bairros das
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
269
camadas populares urbanas conhecidas, em expressão de grupo, como reteté
de Jeová. O termo alude, de modo geral, aos rituais ruidosos e sensoriais,
marcados por expressivas performances corporais que lembram uma dança
giratória (Guerreiro, 2016, 2018). Desta feita, a partir das observações na
Herdeiros do Sião, o reteté será abordado por sua inexorável imprecisão
classificatória, revelando a complexidade das experiências pentecostais
vivenciadas nas periferias.
A HERDEIROS DO SIÃO E O BAIRRO SÃO PEDRO:
AS IGREJAS DE FOGO E AS CAMADAS POPULARES
Pequena e localizada em um espaço adaptado de um estabelecimento
comercial, a Herdeiros do Sião é uma entre tantas outras igrejas pentecostais
presentes no bairro São Pedro, uma favela (Valladares, 2008) situada na região
Noroeste de Vitória, Espírito Santo. Como afirmado, morei no bairro entre
janeiro e abril de 2014, retornando à localidade no período que compreende
janeiro e fevereiro de 2018.
Compondo um complexo de favelas, a região de São Pedro está subdividida em seis áreas, formando os bairros de São Pedro I, II, III, IV e V,
além do Morro Conquista. Cortada por uma rodovia, abriga ao longo da
estrada um intenso centro comercial (Pereira, 2014). Especificamente,
residi em uma das subdivisões de São Pedro, aos pés do Morro Conquista,
considerada a área mais carente da região.
Na localidade, as casas geminadas, algumas em madeira, não tinham
quintais; formavam becos que estreitavam as já afuniladas ruas, numa conformação próxima ao que Oosterbaan (2009) denominou como “densidade
das favelas” (Oosterbaan, 2009, p. 82; Pereira, 2018).
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
270
Réia Sílvia Gonçalves Pereira
Figura 1 – Beco do Morro Conquista
Fonte: Acervo da autora.
Foi ao andar por essas ruas de São Pedro que notei a presença das
pequenas igrejas pentecostais. Eram notáveis tanto pela variedade quanto
pela diversidade de seus nomes. Olaria de Deus, Semente de Deus na Terra
e Adonay eram algumas das igrejas que encontrei apenas no quarteirão
da minha casa. Mesmo em sua variedade, guardavam semelhanças: eram
pequenas, geralmente localizadas em espaços destinados às garagens, com
portas de alumínio de correr. Também chamava a atenção a expressividade
sonora de seus cultos. Em tais igrejas, as orações e os hinos religiosos eram
destacadamente ruidosos, podendo ser ouvidos a significativa distância dos
templos. Na diversidade religiosa do Morro Conquista, a amplitude dos
sons produzidos pelos rituais das pequenas igrejas pentecostais parecia ser
um fator valorizado por tais denominações.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
271
Figura 2 – Igreja Adonay Shalon
Fonte: Acervo da autora.
Figura 3 – Igreja Olaria de Deus
Fonte: Acervo da autora.
Especificamente sobre a Herdeiros do Sião, devo dizer que é uma igreja
como tantas outras localizadas na favela. Pequena. Contava com um pequeno
altar e um púlpito. As cadeiras eram de plástico e não havia equipamentos
de ventilação. Também não havia gravuras ou esculturas.
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272
Réia Sílvia Gonçalves Pereira
Figura 4 – Fachada da Herdeiros do Sião
Fonte: Acervo da autora.
Na denominação, conheci a pastora Cláudia2, uma mulher negra, altiva,
com cerca de 50 anos. Voz potente, exalava autoridade. Viúva com cinco
filhos, Cláudia morava em uma pequena casa vizinha à igreja, sendo uma
das poucas integrantes que sabia ler as passagens bíblicas com desenvoltura. Mesmo com o ar severo, a pastora surpreendentemente fora bastante
atenciosa. Apresentou-me aos demais integrantes, comentava sobre casos
que considerava “interessantes” para apresentar na pesquisa, embora tenha
confessado que “crente não combina com faculdade”.
Sobre os demais integrantes – cerca de 20, segundo informação da
pastora –, notei que as mulheres formavam a maioria dos fiéis da igreja. Em
minhas conversas com algumas delas, percebi que eram mães; pelo menos
cinco delas tinham filhos encarcerados. Tive contato mais próximo com
Glória3, viúva de 37 anos, com um filho encarcerado e uma filha, namorada
de um integrante do narcotráfico.
Participei de alguns rituais da Herdeiros do Sião, dentre eles, uma
campanha de cura e libertação (Mafra, 1999). Na maioria das celebrações
observadas em 2014, notei que todos podiam se manifestar e o faziam por
meio de “exaltações orais” (Pereira, 2014). Seguiam até a frente da igreja,
2
3
Nome fictício escolhido pela interlocutora.
Nome fictício escolhido pela interlocutora.
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usavam o microfone e diziam algum relato, muitos deles sobre situações
aflitivas (Duarte, 1988), como as relacionadas ao encarceramento dos
filhos, tais relatos são chamados testemunhos (Birman; Machado, 2012;
Dullo, 2016). Em 2018, contudo, um outro tema marcava as campanhas:
o desemprego. Percebi, não apenas na Herdeiros do Sião, como em outras
igrejas de caráter semelhante, o quanto o temor pela privação devido à falta
de emprego enseja a realização de campanhas.
Nos cultos da igreja, a música tinha um papel importante. Cada louvor
era acompanhado por um hino, cantado com exaltação pelo fiel. Glória,
uma das minhas mais próximas interlocutoras de campo, também apresentou seu louvor lembrando que orava pelo filho encarcerado por tráfico
de drogas e pela filha, namorada de um também traficante. Cantava uma
música em tom bem alto e, naqueles momentos, parecia não se preocupar
com afinação. Trago alguns trechos:
Quando estiver frente ao mar
e não puder atravessar,
chame este homem com fé,
só ele abre o mar.
Não tenha medo,
irmão, se atrás vem Faraó,
Deus vai te atravessar
e você vai entoar
o hino da vitória.
Toda vez que o Mar Vermelho tiver que passar
chame logo este Homem para te ajudar,
é nas horas mais difíceis que ele mais te vê,
pode chamar este Homem que ele tem poder
(Cassiane, “Hino da vitória”)4
4
HINO da vitória. [S. l.: s. n.], 2007. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Simone
Maximo. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iW4KMdtJoww. Acesso
em: 2 set. 2019.
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Réia Sílvia Gonçalves Pereira
Além do louvor de Glória, com o tempo, outras narrativas se sucederam
e se transformaram em exaltações, sempre em tom combativo. Os gritos e
os cânticos eram estimulados e entravam em um movimento ascendente.
Aquele era o momento do avivamento (Csordas, 1999), quando ocorrem as
manifestações do espírito santo. Naquele instante, alguns choravam, muitos
gritavam, outros se debatiam como se recebessem uma descarga elétrica.
Notei que as performances pareciam ser individuais, porém ritmadas. Cada
pessoa manifestava-se de forma diferente. Alguns integrantes balançavam
os braços, outros se contorciam e alguns pareciam rodar como uma dança
giratória.
Prestei atenção (Forsey, 2010) ao ritmo do som entoado. Não era um
ritmo lamurioso. Ao contrário, com o toque de um pandeiro, a cadência
parecia lembrar a batida do forró. Era um ritmo quase dançante (Bourcier,
2006). Assim, longe de lembrar o ascetismo racional protestante narrado por
Weber (2004), do qual o pentecostalismo é filho, havia um inegável espírito
sobrenatural naqueles cultos. Dessa forma, o caráter extático e emocional
do ritual era evidente.
Ao participar dos rituais da Herdeiros do Sião, uma das muitas igrejas
pentecostais que povoavam Conquista, coloco em perspectiva as conceituações de Mariza Peirano (2002, 2014), ao argumentar que a análise do evento
ritual é importante justamente por evidenciar em uma escala hiperbolizada
a instância do usual e do cotidiano. Diz a autora sobre a relação entre rituais
e cotidiano: “[...] estamos, portanto, lidando com fenômenos semelhantes
em graus diversos” (Peirano, 2002, p. 8).
Nessa esteira, por meio dos rituais da Herdeira em Sião, as aflições de
Glória, que clamava pelo filho preso por narcotráfico, instância que media a
maioria das relações de Conquista, puderam ser narradas. As preces exaltadas
e ruidosas, cujos “O êxtase e a presença física do espírito, compartilhado
por outros que também conhecem ou dividem seus problemas, talvez sejam
a maior expressão dessa ‘vitória’” (Pereira, 2014, p. 98).
Assim, em consonância com Peirano (2002), reitero a importância da
análise da religiosidade praticada na Herdeiros do Sião, não apenas por seu
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aspecto ritualístico, mas também em seu aspecto contextual. Advogo que
essa forma de religiosidade diz respeito também a seu modo organizativo,
como mencionado, geralmente, em pequenas comunidades religiosas nas
periferias.
Sobre a própria forma de organização, observei – não apenas na Herdeiros
do Sião, mas também em muitas outras de características semelhantes – que
as congregações são formadas por um pastor responsável pela gerência da
igreja. Há também os missionários que, embora não tenham o status de pastor,
atuam de forma semelhante, inclusive ministrando pregações. Os demais
são chamados “obreiros”, responsáveis pelas outras funções organizativas.
Ao se inserirem oficialmente na igreja, recebem funções e orientações sobre
a conduta a ser exercida em uma aula doutrinária chamada escola bíblica
dominical. Para garantir o cumprimento das “doutrinas”, tais condutas são
constantemente vigiadas, existindo punições àqueles que, porventura, as
violarem. Tais sanções são tanto mais severas quanto mais altos forem os
“cargos” exercidos.
A organização de igrejas pentecostais de pequeno porte como a Herdeiros
do Sião se aproxima da definição sobre comunidades morais, categoria desenvolvida por Carla Mafra em clássica pesquisa de 1999. Analisando as pequenas
Assembleias de Deus de localidades periféricas, a autora destaca sobre as
comunidades morais, a hierarquia institucional flexível e a forte rede de
solidariedade. Sobre tais comunidades:
Por mais que exista uma grande flexibilidade no estabelecimento da relação
hierárquica entre as redes [...] e pouca fiscalização e intervenção da hierarquia
no «domínio» do pastor presidente (pastor da igreja mãe com cargo vitalício),
estas características de uma organização institucional «flexível» são somadas
para compor «comunidades morais» localizadas: agregados com fortes redes
de solidariedade interna e noção clara das ações limite, aquelas consentidas e
não consentidas pelo coletivo (Mafra, 1999, p. 36).
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“Sou canela de fogo”: a Herdeiros do Sião, o reteté e a afinidade
eletiva com o ETHOS periférico
Intrigada com as primeiras impressões dos vivazes rituais e da composição
da Herdeiros do Sião, percebi uma obviedade: o campo evangélico (Mafra,
2000) era muito mais diverso do que podia supor (Sant’Ana, 2017). Até
então, acreditava que todas as vertentes eram próximas e se reconheciam.
Por não perceber a heterogeneidade desse campo, procurei um dos pastores
da igreja batista do Morro Conquista para me acudir em minhas dúvidas a
respeitos das celebrações da Herdeiros do Sião e de templos vizinhos.
Lembro-me que o pastor dissera com o ar severo: “São os reteté. Pessoas
desesperadas que vivem da misericórdia de Deus”5. Não compreendi de
todo a fala do pastor. De fato, até associar a Herdeiros do Sião ao nome
reteté foi um trabalho que levou certo tempo. Primeiramente, empreendi
intensa pesquisa bibliográfica. Na literatura socioantropológica, raros são
os trabalhos que abordam especificamente a nomenclatura reteté de Jeová.
Clayton Guerreiro (2016, 2018), um dos poucos pesquisadores a abordar
nomeadamente o tema, argumenta que o termo é bastante polêmico, mesmo
no campo pentecostal. Ainda que sua origem seja desconhecida, o autor
aponta três hipóteses difundidas para o surgimento do nome. Na primeira
delas, reteté seria uma aliteração ao ritmo das músicas executadas durante
os rituais, lembrando o forró (Lopes, 2016). Na segunda hipótese, refere-se
à uma “brincadeira” sobre a prosódia da glossolalia6, aludindo às palavras
aparentemente ininteligíveis, mas marcadas pela repetição silábica proferidas
durante os rituais (Guerreiro, 2016, p. 16). Na terceira hipótese, reteté seria
uma alusão aos cultos das religiões afro-brasileiras, historicamente anatemizadas entre os protestantes e pentecostais. Polêmico ou não, o termo é
conhecido principalmente nas periferias brasileiras e, sobretudo, entre os
5
6
Informação verbal colhida em fevereiro de 2014.
Pela teologia pentecostal, glossolalia é um dos dons do espírito santo, possibilitando ao
crente a comunicação verbal com a transcendência (Mariano,1999).
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pentecostais. Sobre a descrição de tal religiosidade, novamente, Guerreiro
(2018, p. 125) descreve sua tentativa de síntese focada na análise ritual:
Nos rituais do “reteté”, há práticas diversas como profecias, visões, revelações,
curas e línguas estranhas, porém, esses cultos se diferenciam principalmente pelos
diversos movimentos corporais executados através de danças, gritos, pulos, quedas,
tremedeiras, sapateados, giros, marchas e movimentos circulares com os braços.
Essas gesticulações são embaladas pela musicalidade expressa nas canções conhecidas
como “corinhos de fogo” que, grosso modo, são cânticos curtos e repetitivos, que
contam histórias bíblicas ou cotidianas por meio de uma gramática tipicamente
pentecostal, em ritmos musicais brasileiros – forró, axé, samba e pagode, ao som
de instrumentos diversos, incluindo pandeiros, surdos e atabaques.
Em minhas pesquisas tanto nas relações face a face quanto pela internet,
descobri dezenas de hinos e orações que remetiam à expressão. Talvez uma das
músicas mais representativas seja a canção composta pela pastora Flordelis:
Eu sou canela de fogo,
reteté de Jeová,
estou nadando no azeite,
não consigo parar [...].
Deus vai entrar na tua vida,
vai restaurar o teu lar.
Sabe aquela enfermidade,
hoje o meu Deus vai curar.
Vai libertar o teu filho
das drogas e da prisão.
Sabe aquele teu marido,
vai marchar com o varão.
Sabe aquela tua filha
que vive na perdição,
ela vai virar a líder
do grupo de oração
(Flordelis, “Eu sou canela de fogo”).
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Percebe-se que os versos abordam sua forma ritual extática. “Nadando
no azeite, não consigo parar”, de fato, é uma forma de descrever o caráter
sensorial dos cultos reteté. Também chama atenção a forma em que se
estabelece a relação entre a transcendência e a vida cotidiana. O Deus
reteté é aquele com poder de se inserir nos problemas de seus fiéis. É capaz
de restaurar casamentos, é capaz de tirar os filhos “das drogas e da prisão”,
dando respostas aos problemas enfrentados por grande parte da população
que vive nas periferias urbanas do Brasil (Novaes, 2006, 2012).
Dessa forma, argumento que reteté seja uma possibilidade de expressar
uma especificidade de cerimônias de maravilhamento e êxtase pelo espírito
(Mafra, 1999, p. 35). A expressividade corporal da dança giratória seria um
dos marcadores e fator central do ritual.
Contudo, e isso deve ser dito, a maioria das pessoas que identifico
nesse trabalho como associadas ao reteté não gosta do termo. Acreditam
que é uma forma de desmerecimento da religiosidade. Perguntei a um dos
integrantes da Herdeiros do Sião se considerava a congregação como reteté”:
“isso [reteté] é coisa maligna. Somos uma igreja viva... Muita gente não
entende e fala coisas que não sabe”.
Nessa disputa por legitimidade, percebe-se que a religiosidade aqui em
questão é uma categoria de acusação, que, para Becker (2008, p. 27), envolve
relações de poder e hierarquia, estabelecendo fronteiras classificatórias entre
o que acusa e o acusado. Gilberto Velho (2008, p. 66) vai destacar o caráter
instável e circunstancial do processo de acusação, possibilitando a negociação
sobre a forma como se estabelecem os termos. Dessa forma, a acusação sobre
os reteté se estabelece principalmente entre os protestantes históricos e/ou
calvinistas, delimitando uma fronteira entre uma religiosidade supostamente
racional e teologicamente correta, em direta acusação à suposta expressão
“herética” e “enganosa” dos reteté (Silveira, 2015, p. 38).
Sobre a acusação relacionada aos seguidores dessa religiosidade, argumento que ao negarem o estigma de reteté, os integrantes estigmatizados
operam a partir da “condição de desacreditado”, tal como explica Goffman
(1988, p. 14). Assumindo uma capa defensiva, aqueles estigmatizados
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respondem de distintas formas a acusação. Guerreiro (2016, p. 202-204)
traz um interessante exemplo. Destaca que uma das principais acusações a
se recair sobre os adeptos da vertente religiosa em discussão neste artigo é a
categoria “meninice”; ou seja, eles seriam poucos sérios e “imaturos na fé”
(Guerreiro, 2016, p. 202-204). Por outro lado, entre os reteté, tal acusação
é rebatida ao destacarem que a suposta imaturidade espiritual seria contraposta pela “inocência infantil”:
Assim, se para os críticos do reteté, a meninice indicaria falta de seriedade
dos que os praticam, os que têm tais práticas justificam suas performances,
afirmando que são as práticas de certos pecados que indicariam a suposta
falta de seriedade. Assim, de acordo com eles, “não adulterar” (forma como os
pentecostais se referem à prática do adultério) é que deveria ser considerado
algo a se preocupar (Guerreiro, 2016, p. 204).
Contrapostas, as falas do pastor batista apresentada no início do item
e daqueles que se defendem da acusação sobre o reteté colocam em perspectiva em complexo processo de busca por legitimidade dentro do campo
evangélico e mesmo no campo pentecostal. Nessa disputa, as acusações
(Goffman, 1988) se relacionam colocando em evidência a heterogenia do
campo. Ao acusar os reteté de serem “desesperados”, o pastor batista explicita uma disputa importante entre protestantes não pentecostais e entre
os pentecostais. Nesse campo, se os protestantes mais tradicionais acusam
os pentecostais de heréticos, ignorantes, em uma associação à condição
de pobreza (Silveira, 2015), em sentido amplo, os pentecostais acusam os
protestantes tradicionais de serem “frios”, cultuadores de um uma expressão
estática do divino. Apresento depoimento de uma jovem pentecostal da
Herdeiros do Sião sobre a igreja presbiteriana, considerada protestante
histórica: “Eles servem ao Jesus que ficou lá, pregado na cruz. O Deus que
eu sirvo é vivo, ele circula pelo poder do espírito santo” (entrevista com
Marta, 24 de janeiro de 2014).
Mesmo no campo pentecostal, no qual o culto ao espírito santo é um
denominador comum, as disputas são significativas. Durante a estada em
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São Pedro, percebi que alguns pentecostais acusam as igrejas de grande
porte, entre as quais a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), de serem
menos “sinceras’ ou se” preocuparem com dinheiro”. A auxiliar de serviço
gerais Mara7 ratifica tal posição: “As igrejas de bairro são mais sinceras. Não
pensam tanto em dinheiro tipo as igrejas grandes. Têm menos falsos profetas,
que não estão preocupados com o reino de Deus”.
Reitero, porém, ao estabelecer o reteté como categoria de acusação, que
não é minha intenção esgotar o termo e tampouco definir e classificar expressões religiosas como pertencentes ou não ao escopo semântico da categoria
(Bispo, 2010, p. 14; Silveira, 2015, p. 47). Antes disso, a intenção é atentar
para as disputas envolvendo o termo, explicitando as rupturas, apreensões,
tensões e instabilidades que rodeiam tal expressão. Assim, a associação dos
rituais reteté e das pequenas igrejas pentecostais não cabe em classificações
automáticas. Nesse sentido, as observações de Giumbelli (2001) ganham
importância por contestarem interpretações que versem sobre um sentido
de pureza nas classificações sobre o campo evangélico:
Todas as críticas dirigidas ao paradigma da “pureza nagô”, elaboradas por
uma geração inteira de pesquisadores [...], deveriam servir de alerta para que
procedimento análogo não fosse aplicado a um outro segmento do campo
religioso e para que privilegiássemos outras formas de considerar as inegáveis
transformações que ocorrem entre os evangélicos e as especificidades que
acompanham sua expansão no Brasil. Mas, além dessa, outras razões existem
para desaconselhar a direção seguida pelas formulações dominantes em termos
de terminologias e classificações do protestantismo. É preciso lembrar que o
pentecostalismo não é interesse exclusivo de estudiosos. (Giumbelli, 2001,
p. 111-112).
Nesse sentido, a diversidade e heterogeneidade das igrejas pentecostais
de pequeno porte e a imprecisão classificatória dos rituais reteté dão provas
do dinamismo e complexidade do campo pentecostal e evangélico (Mafra,
7
Nome fictício escolhido pela interlocutora. Depoimento colhido em janeiro de 2018.
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2000). Dessa feita, denominações como a Herdeiros do Sião não podem
ser associadas completamente à tipologia de Mariano (1999) e Freston
(1994), revelando uma pentecostalidade (Duarte, 2005, p.165) “impura”
e rica em intersecções e circulação fronteiriças (Coleman, 2018). Marcadas
pela relacionalidade própria das camadas populares (Duarte, 1986, 2005),
figuram-se como expressões do “fundo de crença dos grupos populares”
(Fonseca, 1991, p. 131, tradução minha), no qual a experiência pentecostal,
longe de minar a experiência da diversidade simbólica religiosa, acrescenta
a ela novos elementos (Fonseca, 1991, p. 131).
Dessa forma, as disputas por legitimidade dentro do campo pentecostal
remetem explicitamente às assimetrias dentro do próprio campo, revelando
relações de poder que se refletem em diferenças de visibilidade no espaço
público. Raquel Sant’Ana (2014) destaca que, a partir das assimetrias, nas
quais alguns grupos são mais visíveis em detrimentos de outros, é possível
estabelecer relações metonímicas, em que determinados grupos evangélicos
passam a ser imaginados (Asad, 2003) e nomeados como representantes da
totalidade do campo evangélico (Sant’Ana, 2014).
Nesse mesmo sentido, podemos pensar que a configuração dos “evangélicos”
enquanto campo discursivo não é livre de assimetrias. Ao contrário, se dá a
partir da produção de metonímias, apresentando certos grupos e lideranças
como a totalidade dos “evangélicos” a partir das posições privilegiadas que
ocupam em relação aos recursos da indústria cultural e da política parlamentar.
[...] Assim, tem sido possível pensar em “evangélicos” a partir do cruzamento
entre uma produção parlamentar e midiática, revelando disputas e projetos
que se tornam metonímia dos 22% dos brasileiros apontados pelo censo, ele
próprio objeto de promoção midiática da existência desse segmento (Sant’Ana,
2014, p. 213).
Argumento, em consonância, que a forma de organização centrada em
pequenas comunidades religiosas localizadas nas periferias contribui para
a relativa invisibilidade de tais manifestações como possibilidade imaginativa (Asad, 2003) da composição dos evangélicos como campo discursivo
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na cena pública. Em outras palavras, aduzo que a própria organização em
pequenas comunidades, sem a formação de lideranças para além das próprias
denominações e, principalmente, a associação ao cotidiano dos universos
periféricos – estes, também estigmatizados e invisibilizados (Oosterbaan,
2008; Machado, 2005) – contribuem para a relativa invisibilidade das
manifestações reteté das pequenas comunidades religiosas no espaço público
mais amplo.
A Herdeiros do Sião e a periferia
Nessa esteira, a diversidade de igrejas pentecostais com características
próximas à Herdeiros do Sião em um bairro como São Pedro suscita o
questionamento sobre a própria amplitude da relação entre as pequenas
denominações pentecostais e a vivência nas periferias em um sentido mais
geral (Fonseca, 1991; Machado, 2018; Vital da Cunha, 2015).
É plausível recorrer aos números. De acordo com o Censo Religioso
realizado em 2010 (IBGE, 2010), a maior denominação evangélica do
Brasil é a Assembleia de Deus8, com cerca de 29% de adeptos. As igrejas
protestantes clássicas – contando com os batistas, luteranos, metodistas e
presbiterianos –, não chegam a 10%. As demais denominações pentecostais
são as de grande porte – entre as quais, a Igreja Universal do Reino de Deus,
a Adventista, a do Evangelho Quadrangular e a Deus é Amor –, que somam
pouco mais de 10%. Interessante notar que a categoria “outras”, utilizada
pelo Censo para se referir a igrejas de pouca expressão numérica, chega a
34%. Assim, é possível aferir que boa parte dessas “outras” igrejas evangélicas
guardem semelhanças às pequenas pentecostais, como a Herdeiros do Sião.
Clara Mafra (2011, p. 136) chega a falar em um cinturão pentecostal
nas periferias urbanas. Diz a autora que há uma relação de proporcionalidade. Quanto mais afastada dos centros, mais pentecostal e menos católica
é a região.
8
A relação entre os reteté e a Assembleia de Deus será melhor analisada em itens posteriores.
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Boa parte das metrópoles latino-americanas entrou no século XXI com uma
configuração urbana peculiar, o chamado “cinturão pentecostal”: em torno de
um núcleo urbano antigo, com infraestrutura consolidada e uma maioria de
residentes católicos, formou-se um cinturão periférico, de colonização recente,
infraestrutura precária e alta presença de pentecostais (Mafra, 2011, p. 136).
Evidentemente não há como identificar todas as pequenas igrejas pentecostais que povoam as periferias brasileiras à ritualística reteté. Insistir em
tal premissa seria recair em uma redução classificatória e conceitual como
já foi explanado aqui (Giumbelli, 2001, p. 111-112).
Argumento, contudo, analisando o caso da Herdeiro dos Sião, dado
seu pequeno porte possibilitando a formação de hierarquias mais horizontalizadas e a organização em comunidade moral tradicionalmente focada
em cerimônias de maravilhamento e êxtase pelo espírito como observado
por Mafra (1999, p. 35), que há uma associação entre denominações com
elementos ritualísticos que se aproximam da categoria que neste texto se
denomina como reteté ao universo das periferias brasileiras. Clayton Guerreiro (2018, p. 123) também percebeu tal associação:
[...] analiso conflitos protagonizados por fiéis pentecostais, supondo que são
evidenciados, encenados e atualizados nos rituais pentecostais conhecidos
como “reteté”. Esses rituais ocorrem principalmente em pequenas igrejas da
periferia das grandes cidades brasileiras, onde ocorrem vigílias pentecostais.
Silveira (2015, p. 38) destaca a relação do termo reteté às camadas
populares:
As igrejas pentecostais re-te-té [...] podem ser identificadas por um grupo
de características que marcou o surgimento do pentecostalismo no início
do século XX nos EUA e no Brasil: periferia, pobres, negritude, mulheres e
intensa presença do corpo (danças, giros, música batida, espasmos, rodopios
e desmaios). Essas características não são propriamente novidades mas nos
últimos dez anos [...] essa faceta do fenômeno ficou evidente e, com isso, as
categorias de acusação foram acionadas.
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Dessa forma, se proponho uma associação entre a religiosidade reteté
da Herdeiros do Sião à vivência periférica (Novaes, 2012, p. 195), necessária
se faz a delimitação sobre a conceituação de periferia utilizada aqui. Tema
vastamente estudado nas Ciências Sociais (Le Goff, 1998; Blumenfeld,
1972; Sellier, 1992; Santos, 1981; Kowarick, 2000; Sposito, 1993), periferia,
no recorte proposto, é abordada para além de uma referência meramente
espacial, ou mesmo de uma leitura, na qual o contexto periférico é visto
unicamente como espaço de carência e de precariedade de serviços públicos.
Assim, a abordagem proposta prevê uma ampliação do conceito (Dayrell,
2007, p. 1112; Novaes, 2006, p. 190), destacando que, embora tais fatores
sejam levados em conta, periferia se refere a um ethos específico marcado,
também, por relações afetivas de sociabilidade. Cito as precisas palavras de
Dayrell (2007, p. 1112):
Periferia não se reduz a um espaço de carência de equipamentos públicos
básicos ou mesmo da violência, ambos reais. Muito menos aparece apenas
como o espaço funcional de residência, mas surge como um lugar de interações
afetivas e simbólicas, carregado de sentidos. Pode-se ver isso no sentido que
atribuem à rua, às praças, aos bares da esquina, que se tornam, como vimos
anteriormente, o lugar privilegiado da sociabilidade ou, mesmo, o palco para
a expressão da cultura que elaboram, numa reinvenção do espaço.
Neste sentido, entendendo periferia como lócus de interações específicas, advogo que os ruidosos, sensoriais e extáticos rituais das pequenas
igrejas como a Herdeiros do Sião, são expressões privilegiadas dos contextos
das periferias urbanas; onde tais igrejas, na significativa maioria dos casos,
estão inseridas.
O reteté e as periferias: afinidade eletiva
Desse modo, é possível falar em uma relação de afinidade eletiva (Weber,
2004) entre as pequenas igrejas reteté como a Herdeiros do Sião e os contextos
periféricos. Contudo, é preciso destacar que ao utilizar o termo weberiano,
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saliento, em primeiro lugar um movimento mais complexo do que a simples
relação causal. Dessa forma, explicita-se uma obviedade: nem todas as igrejas
com características reteté estão localizadas na periferia, assim como nem todas
as igrejas situadas na periferia apresentam caraterísticas que remetem ao reteté.
No entanto, ao retomar o sentido weberiano dado à expressão afinidade
eletiva, busco destacar uma relação de analogia, um fluxo de convergências
da ritualística reteté vivenciada em muitas das pequenas igrejas pentecostais
tão fartamente presentes na experiência periférica.
Citado três vezes em A ética protestante e o espírito do capitalismo (Löwy,
2011, p. 131), com “afinidade eletiva”, Weber (2004) analisava a relação
de reciprocidade entre o protestantismo enquanto movimento religioso e o
desenvolvimento de uma ética específica sob o capitalismo:
Em face da enorme barafunda de influxos recíprocos entre as bases materiais,
as formas de organização social e política e o conteúdo espiritual das épocas
culturais da Reforma, procederemos tão-só de modo a examinar de perto se, e
em quais pontos, podemos reconhecer determinadas “afinidades eletivas” entre
certas formas da fé religiosas e formas da ética profissional. Por esse meio e de
uma vez só serão elucidados, na medida do possível, o modo e a direção geral
do efeito que, em virtude de tais afinidades eletivas, o movimento religioso
exerceu sobre o desenvolvimento da cultura material (Weber, 2004, p. 81).
Michael Löwy (2011) sublinha o caráter eminentemente dinâmico da
relação de afinidade eletiva. Com a expressão, Weber destacava uma relação
necessariamente ágil, inerentemente simbiótica, ativa e continuamente
reforçada mutuamente.
Afinidade eletiva [...] contém o elemento da seleção, da escolha ativa, da
atração recíproca. [...] Para Weber, que é antes de tudo um sociólogo da ação
social, essa diferença entre a simples “afinidade” e a afinidade eletiva, entre
uma analogia formal e uma relação ativa, não poderia passar desapercebida
[...] opomos, então, a seguinte definição, partindo do uso weberiano do termo:
afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas,
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Réia Sílvia Gonçalves Pereira
intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas
analogias significativas, parentescos íntimos ou afinidades de sentidos, em
uma relação de atração e influência recíprocas, escolha mútua, convergência
ativa e reforço mútuo (Löwy, 2011, p. 138-139).
Dessa forma, tendo em consideração o caráter retroatrativo entre o ethos
periférico e a experiência de uma pequena comunidade moral de ritualística
reteté como a Herdeiros do Sião, a afinidade eletiva se manifesta em uma
relação de complementaridade, materializada na significativa variedade de
igrejas com características semelhantes localizadas nas periferias, tal como
observado no campo. As pequenas, ruidosas e numerosas igrejas pentecostais em suas generalidades e em suas especificidades, compõem de forma
privilegiada os contextos das periferias, numa relação dinâmica e intrínseca
com a experiência periférica.
Cláudia Fonseca (1991), em etnografia sobre vivência religiosa na Vila José,
um bairro popular de Porto Alegre (RS), percebeu a relação entre os diferentes
grupos religiosos e a experiência cotidiana dos moradores. Para a autora, as
interações ocorrem tanto em um nível vertical, forjada no interior das denominações religiosas, como em nível horizontal, a partir das relações entre vizinhos.
Em consonância, ampliando as reflexões sobre afinidade eletiva entre
comunidades pentecostais com a vizinhança nos contextos em que se inserem
é possível analisar as colocações de Simon Coleman (2006). O autor, ao
refletir sobre ética e ação, destaca que as expressões pentecostais se estabelecem necessariamente em uma condição de abertura de suas fronteiras. A
relação, sempre tensionada e dinâmica, com o contexto fora das comunidades pentecostais é um fator que conforma essas próprias comunidades,
numa interação na qual as fronteiras são constantemente acionadas, num
movimento de permanente construção.
Um ponto similar, e muitas vezes subestimado, é que as fronteiras através dos
quais os Pentecostais atuam não estão simplesmente “por aí”, expressando de
alguma maneira as diferenças essenciais entre as visões Pentecostal e local sobre
o mundo. Elas são constantemente construídas e reconstruídas pelos fiéis,
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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embora muitos autores pareçam pensar que o principal motivo para examinar
a atividade pentecostal é pela sua habilidade de converter não-cristãos às suas
visões de mundo. Prefiro reforçar que é igualmente importante examinar
outra dimensão da fronteira: as formas pelas quais o Pentecostalismo em si se
reconstrói através da afirmação de sua necessidade de trabalhar nas fronteiras
que envolvem tanto os fiéis, quanto os não fiéis [...] Tais prestações de conta
são certamente uma forma de auto-objetivação, e a audiência pode ser tanto
o Eu, como um suposto Outro (Coleman, 2006, p. 288).
Assim, especificando a relação de afinidade eletiva e o movimento de
construção fronteiriça entre a Herdeiros do Sião e o contexto de São Pedro
e do Morro Conquista, observei que além da evidente associação aos valores
hierárquicos (Dumont, 1985; Duarte, 1986; 2005) manifesto nas relações
de vizinhança e das redes de parentesco, o ethos periférico se estabelece a
partir de uma paisagem sonora (Schafer, 1997) bastante específica9. Em
São Pedro e o Morro Conquista, a intensa circulação de pessoas nos becos e
vielas é embalada pelos sons das conversas, das músicas de funk, do pagode,
dos hinos evangélicos, que compõem uma confluência sonora marcada por
referências locais e globais (Pereira, 2018). Na junção sonora do Morro
Conquista, igrejas pentecostais como a Herdeiros do Sião disputam a política
da presença (Oosterbaan, 2008) por meio dos sons que produzem. Assim, a
presença desses templos religiosos de pequeno porte é percebida pela exaltação de seus louvores e hinos, transmitidos à significativa distância. Muitas
vezes presenciei “rodas” de jovens que não eram oficialmente pentecostais
conversarem alguns portando roupas associadas ao funk nas calçadas em
frente as igrejas (Pereira, 2018). Além disso, observando as recomendações
de Forsey (2010) sobre a escuta etnográfica parecia se estabelecer na região,
uma certa rotina sonora baseada nos cultos. Depois de um tempo morando
em Conquista, já consegui distinguir quais cânticos e orações pertenciam
a algumas das diversas igrejas vizinhas à minha casa.
9
“[...] o ambiente sonoro. Tecnicamente, qualquer porção do ambiente sonoro vista como
um campo de estudos” (Schafer, 1997, p. 366).
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Réia Sílvia Gonçalves Pereira
“Deixa o menino rodar”: o sobrenatural, o fogo e os corinhos
Diante da pluralidade de igrejas pentecostais de pequeno porte presentes
em Conquista, tentei entender alguns dos pontos distintivos observados em
tais denominações, tendo como cerne a experiência na Herdeiros do Sião.
Pondero, contudo, que não é intenção promover uma tipologia. Antes disso,
trago alguns pontos de reflexão que, acredito, possam trazer luzes sobre a
singularidade da forma de religiosidade aqui abordada em sua relação com
o ethos periférico a partir de uma relação de afinidade eletiva e construção
fronteiriças. Talvez o mais expressivo desses pontos seja a associação explícita
dos rituais pentecostais com a dimensão sobrenatural. O termo, aliás, está
presente tanto nos cultos quanto no cotidiano. Para iniciar a reflexão sobre
como essa dimensão sobrenatural é experienciada, cito algumas músicas
associadas diretamente a ele:
Eu sou pentecostal,
fui gerado no fogo,
eu fui nascido no fogo,
o meu ambiente é o sobrenatural.
Sou batizado com fogo,
sou renovado com fogo.
Eu sou curado no fogo,
meu ambiente é o sobrenatural
(Flordelis, “Eu sou pentecostal”, grifos nossos).
Os versos apresentados acima trazem uma questão importante a respeito
da pentecostalidade produzida em comunidades morais (Mafra, 1999) como a
igreja Herdeiros do Sião. Percebe-se que a dimensão sobrenatural é representada pelo elemento “fogo”. Presente na narrativa bíblica sobre o surgimento
do espírito santo, a associação com o elemento fogo pode ser percebida como
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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a sensação sinestésica do contato com o espírito santo. Expressões como “é
puro fogo” e “o fogo desceu” são ditas repetidas vezes nos cultos10.
Atestando a importância do elemento fogo durante a estada em
Conquista, percebi que os integrantes das igrejas pentecostais são muitas
vezes chamados de “canelas de fogo” ou de “sapatos de fogo”. O próprio
contato com o espírito é chamado de “batismo pelo fogo”. Assim, em um
culto reteté, principalmente no momento do avivamento, há a junção de
dois elementos: o fogo e o espírito sobrenatural. Na igreja Herdeiros do Sião,
como em tantas outras de caráter semelhante observadas, no momento do
avivamento, no qual ocorrem as manifestações do espírito santo, os integrantes – em geral pobres, negras, mulheres – assumem-se como guerreiros
numa batalha, na qual têm o próprio Deus, travestido como espírito santo,
como aliado. Cito música bastante executada nos rituais:
Ele é um anjo de fogo,
no seu pé tem fogo.
Na sua mão tem fogo,
no cabelo tem fogo,
no seu andar tem fogo,
ele caminha no fogo aqui neste lugar.
Labareda de fogo,
fogo, fogo, fogo.
10
Não apenas nas pequenas igrejas pentecostais o fogo é elemento fundante; observa-se que
a associação com o fogo diz respeito à própria narrativa de origem do pentecostalismo.
De acordo com os pentecostais, a explicação sobre o espírito santo encontra-se em um
dos livros da Bíblia, denominado Ato dos Apóstolos. Lendo a narrativa, percebe-se que
Jesus Cristo, após ascender aos céus, teria enviado aos seus discípulos uma força em forma
de línguas de fogo. O contato com tais manifestações teria resultado em exaltação física,
e a partir daquele mana, os discípulos se puseram a falar todas as línguas do mundo.
Essa força em forma de fogo era o espírito santo. Este, em resumo, é o mito inicial dos
pentecostais. É possível dizer que o culto e a crença na atualidade do espírito santo são
os denominadores comuns entre pentecostais, entre os quais estão inseridos os reteté.
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Réia Sílvia Gonçalves Pereira
Sinta a glória de fogo,
fogo, fogo, fogo.
Levante a mão e receba fogo,
fogo, fogo, fogo do altar.
Labareda de fogo,
fogo, fogo, fogo.
Sinta a glória de fogo,
fogo, fogo, fogo.
(Fogo no Pé, “Labareda de fogo”, grifos nossos)11
Outro ponto que destaco sobre a pentecostalidade exercida na Herdeiros
do Sião são os cultos de batalha espiritual. Na igreja, observei que as celebrações de batalha espiritual são mais sensoriais e mesmo menos dependente do
dirigente litúrgico do que os cultos observados na Igreja Universal, onde a
batalha seria, segundo Mariano (2003, p. 25) “hipertrofiada”. De fato, não
presenciei no tempo de campo na Herdeiros do Sião rituais de exorcismo
como os observados nas IURDs.12 Contudo, destaco que observei que,
mesmo o exorcismo não se conformando como prática corrente nos rituais
reteté da Herdeiros dos Sião, a batalha espiritual se apresenta e assume um
conteúdo extremamente beligerante e igualmente hiperbolizado. Palavras
como “batalha”, “peleja”, “guerra”, “marchar” são comuns em diálogos
travados nos rituais e na vida cotidiana. Apresento emblemático hino,
“Batalha travada”, bastante executado durante os rituais observados. Na
letra, a repetição das palavras “batalha”, “peleja e “valente” dão o tom:
Batalha travada é nessa Terra.
Eu entrei nessa peleja foi pra pelejar.
11
LABAREDA de fogo. [S. l.: s. n.] , 2015. 1 vídeo (ca. 5 min). Publicado pelo canal
Claudete Santos. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kp_eMWDagXo.
Acesso em: 2 set. 2019.
12
A menor ênfase aos rituais de exorcismo em pequenas comunidades morais foi observada
desde Clara Mafra (1999).
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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Eu entrei nesta guerra foi pra guerrear,
eu entrei nessa peleja foi pra pelejar,
nessa terra.
Ele é valente na batalha (4x).
A batalha vai começar,
a batalha vai começar.
Esta terra é de conquista
e o mais valente conosco está.
(Ednaldo do Rio, “Batalha travada”)
Um ponto significativo: as músicas entoadas durante o momento de
avivamento têm papel importante para a experiência extática. Existe uma
categoria especial de músicas relacionadas à experiência de transe. Tais
músicas são chamadas de “corinhos de fogo”.
Em minhas observações, percebi que há uma rede de cantores e compositores de corinhos. Alguns inseridos no mercado gospel mais amplo e
profissionalizado, como o grupo Fogo no Pé e as cantoras Damares e Cassiane.
Mas, além disso, percebo uma dinâmica entre as próprias igrejas reteté.
Alguns cantores e compositores costumam circular entre as denominações apresentando suas músicas. Presenciei um desses cantores em visita
à Herdeiros do Sião, em 2014. Durante o culto, cantou uma música, um
forró em ritmo acelerado.
Além das redes entre as igrejas, a internet, em especial a plataforma de
vídeos YouTube, parece ser terreno propício para a divulgação dos corinhos
de fogo. Uma pesquisa rápida é suficiente para perceber a diversidade de
artistas que se dedicam aos corinhos, e os temas são diversos (Albuquerque
Jr., 2014). Há os de caráter pedagógico, como “Varoa do reteté”13, que trata
do papel feminino nas comunidades religiosas; ou “Crente disfarçado”, sobre
13
VAROA do reteté. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (ca. 4 min). Publicado pelo canal Muro
de Fogo Oficial. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=cuHYZPvK7PM.
Acesso em: 2 set. 2019.
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Réia Sílvia Gonçalves Pereira
a hipocrisia nas relações dentro da igreja: “diz que é do manto, diz que é
mulher de oração, mas usa a língua pra falar mal dos irmãos”14.
Há também os corinhos em críticas diretas a outras denominações religiosas. Deste tema, cito “Macumba não mata crente”, sobre as religiões de
matrizes africanas, em especial à umbanda: “Mas porque eu sou protegida,
revestida de poder. Podem até fazer macumba, mas quem fez é quem vai
morrer”15. Há ainda críticas ao catolicismo. Em “Deixa Maria por Jesus”,
o corinho começa com a introdução de “Ave Maria”, clássico do francês
Charles Gounod. Após a introdução, o ritmo de forró irrompe: “Deixa Maria
por Jesus. Quem morreu na cruz pra me salvar, não foi Maria, foi Jesus”16, 17.
Contudo, apesar da diversidade de temas, a maioria das músicas possui um
tom beligerante e bélico, o que é de extrema importância litúrgica para os
ritos reteté.
Devo dizer, porém, que os corinhos não são as únicas categorias de música
executadas nos rituais. Além deles, existem os hinos de louvor, que geralmente
possuem um conjunto melódico mais diverso e menos exaltado, mais próximo
ao gospel religioso norte-americano. Contudo, liturgicamente, os corinhos de
fogo são geralmente executados como uma espécie de “evocação” ao espírito
santo e, geralmente, são os corinhos as músicas ouvidas durante o momento
do avivamento. Argumento que a própria estrutura melódica é geralmente
composta por um padrão rítmico. De acordo com Arthur Costa Lopes (2016,
p. 615), a estrutura costuma ser composta “por duas colcheias e uma semínima
14
CRENTE disfarçado. [S. l.: s. n.], 2018. 1 vídeo (ca. 7 min). Publicado pelo canal Kleber
Corrêa. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KZk1xy8ow8I. Acesso em:
2 set. 2019.
15
MACUMBA não mata crente. [S. l.: s. n.], 2017. 1 vídeo (ca. 6 min). Publicado pelo
canal Grupo de Louvor Geração Peniel. Disponível em: https://www.youtube.com/
watch?v=KFIDitNHt5A. Acesso em: 2 set. 2019.
16
DEIXA Maria por Jesus. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (ca. 5 min). Publicado pelo canal
Delcidio Rodrigues: Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fW_qxoG43QI.
Acesso em: 2 set. 2019.
17
Em alguns corinhos, percebi um tom jocoso.
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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(compasso binário, na qual a semínima é a referência)” (Lopes, 2016, p. 615),
o que, para o estudioso, remetem ao ritmo forró. Acredito que o forró executado pelos corinhos reflita o tom de euforia das cerimônias de avivamento.
Além disso, sua composição poética é marcada pelas várias e criativas rimas,
conferindo musicalidade às letras. “Divisa de fogo”, do grupo Fogo no Pé:
Divisa de fogo, varão de guerra.
Ele desceu na Terra.
Ele chegou pra guerrear (4x).
Foi no quartel general, de Jeová,
você tem que aprender, você tem que adorar.
E uma bola de fogo aqui descerá,
se você tem olhos ungidos,
pode contemplar.
Mas desceu um Varão Resplandecente lá da glória
(Fogo no Pé, “Divisa de fogo”)18
Composto por uma introdução e poucos acordes de harmonização,
percebe-se pelos grifos na citação a preocupação com as rimas19. Para Gilbert
Rouget (1980, p. 180), os significantes musicais têm uma dimensão denotativa e afetivo-emotiva, que remeteriam a estados emocionais como a alegria,
a tristeza, a raiva (Rouget, 1980, p. 150). Todas essas dimensões, que são
construídas culturalmente, podem possibilitar o estado de transe (Aubrée,
1996). Assim, acredito que, como a maioria dos corinhos de fogo, a música
“Divisa de fogo”, com suas repetições harmônicas, conduza a uma dimensão
afetiva que remete a um caráter beligerante conhecido e reconhecido nos rituais
reteté. Destaco que tal caráter beligerante não se estabelece apenas pela melodia,
18
DIVISA de fogo. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Marcos
Paulo Ferreira da Silva. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5zZ4rvAazYE.
Acesso em: 2 set. 2019.
19
Agradeço as valiosíssimas contribuições do cantor lírico Evandro Santana e do pianista
Saulo Araújo.
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mas também pelas letras. “Varão de guerra”, “guerrear”, “quartel general”,
“vitória” são expressões presentes na letra de “Divisa de fogo”. São expressões
conhecidas pelo grupo. Lembro-me que nos cultos da Herdeiros do Sião e de
outras igrejas reteté, quando corinhos expressivos como o “Divisa de fogo”
eram executados, havia uma evidente mudança de tom. As palmas ficavam
mais fortes; os cânticos, mais intensos; os gritos de aleluia ganhavam mais
força. Assim, como um misto de forró e de grito de guerra, de emblema e de
catarse, o corinho de fogo se estabelece como possibilitador de uma experiência
religiosa coletiva associada à experiência do contato pelo espírito santo. Uma
experiência que, segundo os interlocutores, é afetiva e sinestésica, remetendo
a um caráter revigorante de “poder”, “renovação”, “fogo”, “vitória” e “batalha”.
Além dos corinhos de fogo, a performance corporal nos cultos também
reflete a associação com o sobrenatural. Sob o contato com o espírito santo, os
fiéis parecem reproduzir um padrão corporal de uma dança rodada. Como já
mencionado, os integrantes, aparentando transe, costumam “rodar”, como um
balé giratório. Alguns fiéis usam a expressão “manto” para se referirem a essa
performance. Novamente, cito um corinho de fogo que aborda a tal dança rodada.
Eu posso ser crente menino,
mas não adultero, eu posso ser crente menino,
mas eu não me vendo,
eu posso ser crente menino, mas eu sei adorar,
então deixa o menino rodar.
Deixa o menino rodar. (4x)
Que que tem, que que tem se eu rodo assim?
Que que tem, que que tem se eu dou lugar assim?
Que que tem se eu adoro assim?
É melhor pular aqui do que lá na Sapucaí
(Ministério Ardendo em Fogo, “Crente menino”)20
20
CRENTE menino. [S. l.: s. n.], 2016. 1 vídeo (ca. 3 min). Publicado pelo canal Celebrai
Music. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=-2n_LjSoTVg. Acesso em:
2 set. 2019.
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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Quando abordamos a ligação com o sobrenatural, fatalmente abordamos os conceitos de transe, experiência extática e possessão, que são temas
ancestrais na Antropologia (Turner, 1974; Evans-Pritchard, 2005) – desde
os estudos do xamanismo, que vão desde Boas, passando por Lévi-Strauss,
até chegar a autores como Langdon (1996) e Lewis (1971). No Brasil, os
estudos sobre transe e possessão, na maioria das vezes, estiveram ligados às
religiões de matriz africana (Maggie, 1975; Goldman, 1985; Birman, 1996).
Nesse sentido, presenciei o uso de termos como “manto do espírito”,
que seria a forma como o espírito santo se manifesta sobre o fiel. Alguns
integrantes da Herdeiros do Sião falam que a sensação é como se o espírito
os “cobrisse” tal qual um manto. Outro termo é a “revelação”, uma espécie
de profecia, em que o contato com o espírito santo “revela” algum fato sobre
uma pessoa ou situação. Também há a categoria “mistério”, que é usada
para designar fatos sobrenaturais e sem explicação. O mistério, contudo, é
sempre ligado a Deus e nunca ao diabo. Aqueles agraciados pelos dons da
revelação, aqueles que têm contato próximo aos mistérios, são considerados
profetas. Percebo que os profetas têm grande prestígio nas relações travadas
dentro templo. Considerados os mais ungidos, geralmente exercem funções
de liderança (Pereira, 2018).
Durante os cultos, a revelação profética costuma acontecer durante
o avivamento. As orações são irrompidas com expressões utilizadas pelos
profetas bíblicos: “Eis que te digo!”, “Assim diz o Senhor!”, “Deus manda
dizer!” são algumas das expressões que costumam proferir aqueles agraciados
pelo dom da revelação. É a senha para o momento de “entregar a profecia”
ou “entregar o mistério”. O profeta revela a profecia individualmente. Cada
um dos participantes dos cultos pode ser escolhido para uma revelação. As
revelações podem dizer respeito a supostas “feitiçarias” ou “macumbarias”;
a pecados cometidos por algum fiel; a um “livramento” recebido. Em uma
comparação com os rituais da Herdeiros do Sião e de outras igrejas de
pequeno porte presentes nas periferias, nas quais a figura da profecia é um
valor estimado, observa-se em denominações de maior porte com estrutura
mais hierarquizada, como a IURD, que a revelação não é apenas desestiDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
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mulada, mas combatida21. Na página eletrônica da IURD, por exemplo, o
dirigente Edir Macedo condena textualmente a prática da profecia:
Nada tem sido tão devastador nas igrejas como a ignorância com respeito
às profecias. Da mesma forma como Satanás tem usado a falsidade de línguas
estranhas também tem se aproveitado da falta de discernimento espiritual
com respeito às profecias. E o pior é que muita gente escolada também tem
se rendido às farsas das “profetas” que, diga-se de passagem, são mulheres mal
casadas ou frustradas sentimentalmente.22
Há que se dizer, contudo, que existe certa desconfiança para com alguns
profetas. Ouvi integrantes da Herdeiros do Sião se dizerem desconfiados
sobre a veracidade das revelações de alguns “irmãos”; percebi outros dizerem
que os dons proféticos de terceiros eram advindos do “diabo”. Contudo,
reitero que aqueles profetas considerados realmente ungidos possuem grande
status na comunidade religiosa.
Percebi entre aqueles considerados profetas uma conotação de orgulho
e poder. Em outro corinho de fogo, chamado de “Não toque no ungido”,
percebe-se uma postura orgulhosa do crente em sua relação com a transcendência. Sempre protegido por Deus, o fiel estaria imune a eventuais
adversidades causadas por outras pessoas. Os versos são emblemáticos:
“quem tocar no crente ungido vai com a cara na poeira”.
Não adianta levantar contra os ungidos.
Mexer com os ungidos é brincar com fogo.
21
MARTINS, Dan. Bispo Edir Macedo publica alerta a fiéis da Igreja Universal contra “profetas
e profetisas”. Gospel+, São Paulo, 28 abr. 2013. Disponível em: https://noticias.gospelmais.
com.br/edir-macedo-publica-alerta-a-feis-da-igreja-universal-contra-profetas-5327.html.
Acesso em: 2 set. 2019.
22
MACEDO, Edir. Não se deixe enganar... Blog Bispo Edir Macedo, São Paulo, 2 mar. 2017.
Disponível em: https://www.universal.org/bispo-macedo/blog/. Acesso em: 2 set. 2019.
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Quem mexer com crente ungido não é brincadeira,
quem tocar no crente ungido vai com a cara na poeira.
(Damares, “Não toque no ungido”, grifos nossos)23
Dessa forma, dom da profecia parece se revelar num movimento constante, possibilitando uma forma de estar no mundo profundamente “mágica”,
numa conotação a um só tempo de poder e de responsabilidade. Aduzo que
a profecia é uma expressão significativa da experiência reteté em pequenas
comunidades morais como a Herdeiros do Sião. Assim, argumento que a
partir da expressividade das performances rituais e na mediação, a um só
tempo ética e mágica, do espírito santo, as pequenas igrejas pentecostais
reteté afirmam-se a partir de suas interações na própria comunidade religiosa
e nas relações de vizinhança no cotidiano das periferias.
CONCLUSÃO
Ao apresentar pontos de reflexão sobre a igreja pentecostal Herdeiros
do Sião, a intenção foi associar a pentecostalidade praticada em tal denominação com o ethos periférico representado pelo próprio bairro de localização
da igreja. Com os elementos etnográficos, observei que as pequenas denominações pentecostais e seus ruidosos cultos compõem a paisagem sonora
da localidade. Dessa forma, argumento que entre a Herdeiros dos Sião – e
sua ritualística reteté – e o contexto do bairro em que está inserida há uma
relação de afinidade eletiva (Weber, 2004) marcada pelo dinamismo e pela
influência mútua entre comunidade religiosa e o contexto da favela. Uma
relação, na qual as interações são forjadas tanto no interior da denominação
religiosas, como relações entre vizinhos (Fonseca, 1991). Nesse sentido,
concebo que comunidades pentecostais presentes nas favelas são estabelecidas
23
NÃO toque no ungido. [S. l.: s. n.], 2013. 1 vídeo (ca. 4 min). Publicado pelo canal
Jonas Alexandre. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=maxqYR6D8S8.
Acesso em: 2 set. 2019.
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a partir do contato com o entorno, possibilitando uma relação na qual as
fronteiras são constantemente acionadas, num movimento de permanente
construção entre a igreja e o contexto (Coleman, 2006).
Os rituais da igreja aqui estudada são analisados a partir da categoria
reteté, expressão de grupo para se referir aos ruidosos e extáticos rituais de
culto ao espírito santo marcados pela expressividade das performances corporais, que lembram uma dança giratória. Destaquei que “reteté” configura-se
como uma categoria de acusação (Becker, 1985; Velho, 1978), demarcando
uma complexa disputa por legitimidade dentro do campo evangélico. Nesse
sentido, os protestantes históricos – vistos como racionais e teologicamente
corretos – e entre os reteté, acusados de “heréticos”. Tais acusações relacionadas aos reteté, para além de revelar a diversidade do campo pentecostal,
explicitam uma disputa, na qual a ritualística reteté – muitas vezes vivenciada em pequenas comunidades localizadas nas periferias e sem a formação
de lideranças de grande vulto – é relativamente invisibilizada no espaço
público. Aduzo que tais assimetrias se refletem na associação das pequenas
comunidades reteté como a Herdeiros do Sião à condição periférica, também
invisibilizada e estigmatizada (Machado, 2005; Sant’Ana, 2014).
Em sua associação com as periferias, as igrejas reteté foram enfatizadas
por sua ênfase na dimensão sobrenatural, utilizando aqui uma categoria nativa.
Percebe-se que tal dimensão é representada pelo elemento “fogo” e por categorias
como manto, que seria a forma como o espírito santo se manifesta sobre o fiel,
e a revelação, uma espécie de dom profético concedido a alguns, conotando
um fator de distinção na comunidade religiosa. Além disso, a música expressa
pelos corinhos de fogo tem grande importância na experiência.
Assim, em conclusão, argumento que a análise da pentecostalidade
praticada em comunidades morais, como a Herdeiros do Sião, centradas na
experiência de maravilhamento do espírito santo operando na expressividade das performances rituais reteté e na mediação, a um só tempo ética e
mágica, tais igrejas florescem na vida cotidiana das periferias urbanas a partir
de uma relação de afinidade eletiva do contexto em que estão inseridas, em
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“DEIXA O MENINO RODAR”: O CARISMA RETETÉ...
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um movimento constante de circulações fronteiriças entre tais igrejas e os
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Recebido em: 18/09/2019
Aprovado em: 07/10/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 267-305, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.90258
“ESPÍRITOS INDÍGENAS, MENSAGEIROS DOS ORIXÁS”:
CRUZAMENTOS, PASSAGENS E CAMINHOS
NA RELIGIÃO AFRO-BRASILEIRA
João Daniel Dorneles Ramos1
Resumo: Neste artigo, discuto os cruzamentos e as passagens que se dão na religião
afro-brasileira partindo da relação entre espíritos indígenas e orixás. A interpenetração
cosmos/sociopolítica e humano/extra-humano conecta práticas ameríndias e
afro-brasileiras: o intermediário para o orixá que trabalha na pedreira será um(a)
caboclo(a) da linha de Xangô. O Caboclo Sete Encruzilhadas – que abriu a religião
para que os espíritos de pretos-velhos, de indígenas e de outros povos pudessem
chegar – é intensivamente ligado a práticas rituais da Umbanda, da Quimbanda
e do Batuque do Rio Grande do Sul, pois esse caboclo se cruza e pode atuar na
terreira, em outra passagem sua, como Exu das Sete Encruzilhadas.
Palavras-chave: Religiões Afro-Brasileiras; Devir; Caboclo Sete Encruzilhadas;
Territórios Existenciais.
“INDIGENOUS SPIRITS, MESSENGERS OF THE ORISHAS”: CROSSINGS,
PASSAGES AND PATHS IN THE AFRO-BRAZILIAN RELIGION
Abstract: In this article, I discuss the crossings and passages that occur in the Afro-Brazilian religion starting from the relation between indigenous spirits and Orishas.
The cosmos/sociopolitical and human/extra-human interpenetration, connects
Amerindian and Afro-Brazilian practices: the intermediary for the Orisha who works
in the quarry will be a caboclo(a) of the Xangô line. The Caboclo Sete Encruzilhadas
– that opened the religion so that the spirits of pretos-velhos, of indigenous and
other peoples could arrive – is intensively linked to ritual practices of Umbanda,
Quimbanda and Batuque of Rio Grande do Sul, because this caboclo crosses and
can act on the terreira, in another passage of his, as Exu of the Sete Encruzilhadas.
Keywords: Afro-Brazilian Religions; Becoming; Caboclo Sete Encruzilhadas;
Existential Territories.
1
Pós-doutorando (2017-) em Antropologia Social, Bolsa Jacques Gutwirth - PNPD
Capes, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, Brasil. E-mail:
jodorneles@gmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 307-333, ago./dez. 2019
308
João Daniel Dorneles Ramos
INTRODUÇÃO2
Para aquele que cruza as três linhas, a encruzilhada pertence ao exu – na gira;
ao Bará – na nação; e ao Ogum, como orixá, como caboclo, como exu. A questão
fundamental aqui é o jogo com as diferenças. Em lugar de uma identidade definida
e precisa correspondendo ao nome de uma divindade, a linha cruzada apresenta
uma multiplicidade para um nome-intensidade em metamorfose.
(José Carlos dos Anjos, No território da linha cruzada)
A praia, a mata, a pedreira, o mar, a lagoa, a rua e muitos outros
territórios e passagens3 constituem as práticas e relações da Linha Cruzada
– uma religião que agrega, no mínimo, três variações ou linhas4 religiosas/
cosmo-ontológicas que a constituem: o Batuque ou a Nação (dos orixás), a
Umbanda (dos caboclos, pretos-velhos e Ibejis) e a Quimbanda ou a Gira
(dos exus, pombagiras, Povo Cigano e Povo do Oriente) (Anjos, 2006; Ávila,
2011; Barbosa Neto, 2012; Ramos, 2015a, 2015b; Oro, 1994).
Os cruzamentos da religião são feitos nos corpos e nos espaços físicos,
realizados pelas entidades nas terreiras5 e envolvem, intensivamente, santos,
orixás, caboclos, pretos-velhos, exus, pombagiras, ciganos, eguns e outras
entidades do vasto panteão afrorreligioso. Uma linha da religião, como
2
3
4
5
Este texto apresenta algumas reflexões oriundas de minha pesquisa de doutorado (2015a)
e agrega discussões realizadas na XI Reunión de Antropologia do Mercosur, ocorrida
em Montevidéo, em dezembro de 2015. Agradeço os comentários feitos na ocasião por
Marcio Goldman, Maria Belen Hirose e demais participantes do Grupo de Trabalho
Teorias etnográficas da (contra)mestiçagem. Agradeço à Mãe Irma e Mãe Jalba, por todo
aprendizado e convivência ao longo desse tempo e, ainda, à Josiane Wedig pela leitura
atenta do texto, pelas críticas e sugestões.
As palavras grafadas em itálico são noções, conceitos e termos êmicos.
Lado ou Linha são os termos êmicos para designar as variações religiosas, rituais, existenciais etc. que compõem o vasto campo afrorreligioso.
Casa é outro termo para designar os templos. Também podem ser usados: Batuque, Ilê,
Tenda, Terreiro etc. Utilizo no feminino, terreira, para concordar com a definição êmica,
já que minhas interlocutoras a utilizam desse modo, constantemente.
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“ESPÍRITOS INDÍGENAS, MENSAGEIROS DOS ORIXÁS”...
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por exemplo a dos(as) pretos(as)-velhos(as), pode ser cruzada com práticas
de saúde tradicionais quilombolas (benzeduras), com modos de existência
ameríndios (caboclos e caboclas e seus pajés) e ser aliada a outras religiões
(sobretudo, ao espiritismo kardecista e ao catolicismo popular). Esse é o
caso da Umbanda.
Os diversos territórios nos quais as religiões afro-brasileiras operam são
integrados às relações entre humanos e outros entes, em diferentes momentos.
Assim, cada linha da religião tem seus rituais e práticas independentes, que
podem se cruzar com as formas e os modos de fazer e de existência de outros
lados. Esses cruzamentos relacionam entes do cosmos como sujeitos ativos,
que participam nas práticas de cura, nos trabalhos religiosos e espirituais, e
no cotidiano das pessoas. Assim, distintos e intensos movimentos se dão pela
conexão disjuntiva e de abertura para as diferenças que a religião produz,
enquanto “jogo das diferenças” (Anjos, 2006).
Isso nos permite compreender outros modos de existência nos quais
as ações rituais e cotidianas envolvem diferentes cosmo-ontologias e territorialidades, espaços físicos, elementos não visíveis, humanos, animais,
plantas, pedras, entre outros. As diferenças podem ser conectadas, mas não
são colocadas como unidade. Essa conectividade opera “em oposição ao
pensamento arborescente que caracteriza a definição de sincretismo (usual
na definição das práticas religiosas africanas no Brasil)”:
A ideologia da democracia racial fecundou toda uma imagem do Brasil como
o país do sincretismo, da miscigenação racial. Para essa ideologia, a imagem
do cruzamento das diferenças está mais próxima de certo modelo biológico,
em que espécies diferentes se mesclam numa resultante que seria a síntese
mulata. A religiosidade afro-brasileira tem um outro modelo para o encontro
das diferenças, que é rizomática: a encruzilhada como ponto de encontro de
diferentes caminhos que não se fundem numa unidade, mas seguem como
pluralidades (Anjos, 2006, p. 21).
É nessas modalidades intensivas de aliança, agenciamentos territoriais e
cósmicos que os cruzamentos, os caminhos e as passagens movem as diferenças.
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310
João Daniel Dorneles Ramos
O que se expressa na religião são relações entre humanos e entes diversos
(extra-humanos), nas quais, conforme Anjos e Oro (2009, p. 90), as “coisas
‘de outro mundo’ destacam-se como o lugar da presença se puderem ser
encadeadas à série preexistente, conformando um novo enunciado”. Partindo
disso, os encadeamentos cosmo-ontológicos e os modos de existir das religiões
afro-brasileiras são partes da cosmopolítica, ou seja, modulações e práticas
de coexistência de (e entre) mundos, perspectivas nas quais há a irrupção
do Cosmos na política (Stengers, 1997). A cosmopolítica não supõe a
criação de um mundo comum, fechado, no qual teremos como fim último
a integração ou a formação de uma unidade, de um consenso ou a fusão de
sistemas. Ela é, sobretudo, a percepção de que mundos diversos, aliados e/
ou conflitantes, podem ser acionados e ligados em séries diferenciantes sem
que se crie uma unidade de mundos e de práticas.
Atribuo, neste texto, a possibilidade de compreendermos as relações
entre humanos e extra-humanos, da e na religião, como momentos em que
a “cosmopolítica afro-brasileira” (Anjos, 2006) opera. Em certo sentido,
podemos asseverar a fecunda ideia aportada em Brito (2017, p. 175) de que,
ao falarmos das religiões afro-brasileiras, estamos diante de uma “epistemologia”, ao “revelar as conceptualizações nativas acerca de alguns processos
através dos quais o corpo da pessoa-médium”, nas diferentes modulações
afrorreligiosas, “transforma-se em um instrumento para a materialização da
presença dos guias espirituais”. O autor, ao propor uma “abordagem epistêmica”, diz que, no “terreiro, as pessoas aprendem não só uma episteme,
mas também uma epistemologia, a qual inclui técnicas de movimentação
de energias e concepções gerais sobre os substratos ontológicos das coisas e
dos seres” (Brito, 2017, p. 176)6.
6
Encontro ressonâncias entre o que o autor diz e as diversas reflexões que obtive, em
minha etnografia, quando minhas interlocutoras mães de santo afirmam, enfatizando,
que a religião é como uma medicina. Sobre isso, ver Ramos, 2015c.
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“ESPÍRITOS INDÍGENAS, MENSAGEIROS DOS ORIXÁS”...
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A encruzilhada não coloca os elementos que são cruzados na operação
como soluções: eles se concretizam como perspectivas, caminhos e possibilidades que só serão atualizados enquanto regimes de existência se as forças
evocadas e as práticas forem possíveis e fizerem sentido para a relação estabelecida. O “cruzamento de nações” que se opera na religião afro-brasileira
“não é a imagem que normalmente se faz do sincretismo”, pois essas nações
“não são essências identitárias pertencentes a indivíduos, mas territórios
simbólicos de intensidades diversas, passíveis de serem percorridos por
multiplicidades de raças e indivíduos” (Anjos, 2006, p. 22).
Para ampliar esse entendimento sobre a encruzilhada, aciono a noção de
devir (Deleuze; Guattari, 2007), compreendendo outros modos de relação e
de existir, que não tomam o essencialismo identitário nem a formulação do
uno como modelos. As diferenças se tocam, se cruzam e se afastam. Caboclos indígenas, entidades do povo da rua e orixás africanos são agregados
de modo que as relações e as mobilizações de e entre múltiplos agentes no
mundo ocorram. Os cruzamentos, as passagens e os caminhos nos indicam
elementos-chave na compreensão de outros modos de existência nos quais
ritual e cotidiano, sagrado e profano, humano e extra-humano envolvem e
acionam diferentes perspectivas.
Este texto mobiliza reflexões e práticas oriundas de etnografias realizadas7 junto ao Centro Espírita Umbandista Reino d’Oxum e Ogum Beira
Mar e Seguidores do Sete Encruzilhadas, que está situado na zona urbana
do município de Mostardas (litoral médio do Rio Grande do Sul) e que
conta com a participação – na corrente, na organização interna, religiosa e
7
A pesquisa que desenvolvi no doutorado (entre 2011-2015) foi possível a partir de
questões que surgiram durante a pesquisa de mestrado (realizada entre 2009-2011).
Junto a quilombolas, obtive informações de que havia, no centro do município de
Mostardas, uma Casa de Umbanda, cuja mãe de santo era uma mulher nascida naquela
comunidade. Para outras informações sobre essa comunidade quilombola e suas relações
com a religiosidade afro-brasileira, ver Ramos, 2015b.
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nas atividades abertas ao público (festas, homenagens, atendimentos, benzeduras, dia de terreira) – de diversas pessoas pertencentes a uma comunidade
quilombola chamada Beco dos Colodianos8.
A etnografia foi construída na minha participação em atividades nas
terreiras e no convívio com umbandistas em diversos momentos, conversas
etc. Experiências oníricas também foram importantes, pois o modo possível
de afecção, nesse tipo de pesquisa, mobiliza uma outra perspectiva de atuação
no mundo. Logo, o processo de pesquisa foi, e ainda se constitui como, uma
espécie de artesanato, tendo havido uma lapidação constante do texto, das
ideias e de mim mesmo.
Na terreira de Mãe Irma, há sempre uma primeira parte, que é identificada como Linha Branca, na qual chegam caboclos e, eventualmente,
pretos-velhos e ibejis (espíritos de crianças). Há, ainda, uma segunda parte,
tocando-se para a Linha do Povo da Rua, ou seja, para os exus, pombagiras
e ciganos(as). No intermédio entre uma linha e outra, as pessoas da corrente
trocam suas vestimentas (as da primeira parte são, geralmente, da cor branca,
amarela, verde forte; nas da segunda, predominam as cores preto, vermelho
e roxo). Essas duas linhas ou lados ocorrem em um mesmo terreiro e na
mesma noite, operando-se intensidades que se conectam, se cruzam, mas
que se mantêm em diferença. Não há unificação, nem das formas, nem das
forças/intensidades.
A terreira, estabelecida junto à residência da mãe de santo, possui, aproximadamente, 30 anos de existência. Mãe Irma fez seu apronte no Batuque e
demais reforços na religião com outra mãe de santo, Mãe Jalba, cuja terreira,
o Ilê África Reino de Iansã e Xangô, Iemanjá e Bará e Seguidores do Sete
Encruzilhadas, está localizada na cidade de Rio Grande, região sul do estado.
8
O município de Mostardas é, em sua maioria, rural e possui três comunidades negras que
pleiteiam o reconhecimento como quilombolas, todas oriundas da desagregação do sistema
escravista. Uma delas, a comunidade de Casca, já conseguiu a titulação do INCRA em
2010. As outras duas – a comunidade de Teixeiras e a do Beco dos Colodianos – ainda
lutam para conquistar suas titulações definitivas junto ao órgão federal responsável.
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“ESPÍRITOS INDÍGENAS, MENSAGEIROS DOS ORIXÁS”...
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O reforço de Mãe Irma complementou, ainda mais, o seu aprontamento
na religião e foi um processo no qual ela pôde ter o axé de búzios, também
chamado de delegum, o que foi muito relevante para ela. A partir desse
processo, essa mãe de santo pode jogar os búzios. Essas duas mães de santo
são as principais interlocutoras da pesquisa que, não obstante, mobiliza
outras vozes, de filhos(as) de santo de ambas.
“CADA ORIXÁ TEM O SEU TERRITÓRIO E CADA UM
TEM A SUA PASSAGEM”: PERSPECTIVAS
A potência de práticas ameríndias, como o xamanismo, pode ser levada
em conta diante de intensidades, continuidades e descontinuidades que
essas práticas operam e que são, de certa forma, atualizadas na Umbanda?
Os(As) caboclos(as) são intermediários(as) de orixás e essas duas referências
diferentes, a africana e a ameríndia, são conectadas sem precisar cair em
uma unidade e nem em uma “idealização” essencialista do que é ameríndio
ou do que é africano.
Cada intensidade é diferente e produz diferença. Neste item, pretendo
traçar algumas relações possíveis entre os elementos cosmo-ontológicos
ameríndios e africanos que são cruzados constantemente pelas práticas
umbandistas, considerando que podemos evocar o que Vanzolini (2014, p.
280), em outro contexto etnográfico, afirma:
Se os mundos do axé e os mundos perspectivistas apresentam dinâmicas
comuns, isso não se deve à presença, em ambos, de uma força cósmica de
natureza semelhante, nem resulta necessariamente da combinação entre dispositivos lógicos num dado contexto, mas advém do caráter intrinsecamente
indeterminável do universo que esses dispositivos revelam.
As diferentes passagens, como lembra Barbosa Neto (2012), não querem
dizer apenas as gerações que os orixás possuem, tampouco, simplesmente
as formas que cada um(a) pode assumir. Elas são as possibilidades que um
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santo ou santa, orixás e outros existentes podem ter. O caboclo dá passagem,
mas fica encostado, ele não abandona a pessoa por completo. Uma pessoa
pronta suporta mais esse acontecimento de receber uma outra entidade que
possui outras forças, energias diferentes. Ela faz a passagem. Isso é explicado
no seguinte sentido: se Pai Xangô quer chegar e não tem uma pessoa naquela
terreira que seja pronta, para que ele possa nela incorporar, ele chega e ganha
passagem de outra entidade, para incorporar em uma pessoa. Ele pode, assim,
trabalhar em um corpo e fazer o que precisa.
A entidade que teve passagem, podemos dizer que aumentou a sua
potencialidade enquanto entidade da Umbanda, pois fez o trabalho que era
necessário, para o qual havia sido incumbida e por meio do qual operou
algo (uma cura ou limpeza) e o que precisava ser feito. É o caso da pessoa
pronta, que pode receber várias entidades e até espíritos que estão buscando
a luz (eguns). Como pontuam as mães de santo, somente as pessoas prontas
e as pessoas com muitos anos de religião fazem isso, porque possuem força
energética suficiente para tal.
Continuidades energéticas e determinadas forças atuantes, tendo os
ameríndios como mediadores espirituais, são expressas no pensamento e
nas práticas da religião afro-brasileira quando há a referência aos caboclos
da Umbanda. Para Peixoto (2008, p. 27), os caboclos são:
[...] espíritos de índios brasileiros, sul ou norte-americanos, que dispõem de
conhecimento milenar xamânico do uso de ervas para banhos de limpeza
e chás para auxílio à cura das doenças. São entidades simples, diretas, por
vezes altivas, como velhos índios guerreiros [...] São exímios na limpeza das
carregadas auras humanas, experientes nas desobsessões9 [...] Na magia que
9
O autor indica como “desobsessão” a prática de retirada de espíritos chamados como
obsessores, espíritos que operam forças negativas às pessoas e que precisam ser lapidados
por espíritos de luz. Os caboclos são espíritos de luz que lapidam as pessoas e os espíritos.
O xamanismo também opera algo nesse sentido: o xamã precisa mediar a saída dos
espíritos dos animais abatidos antes de a comunidade consumir a carne da caça.
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praticam, usam pembas para riscar seus pontos, fogo, essências cheirosas,
flores, ervas, frutas, charutos e incenso.
Por sua vez, Paulo d’Ogum10 aponta que os caboclos eram caciques e que
eles têm o conhecimento das ervas, da medicina. Isso nos mostra que a força
indígena, enquanto fluxo energético, é operada como síntese disjuntiva – a
conexão entre diferenças –, como uma abertura ao diferente. A Umbanda
opera potências e vibrações cósmicas ligadas aos espíritos indígenas, que
podem estar tanto na Amazônia como em uma pedreira, com grafismos,
localizada no interior do município de Mostardas, como veremos. Então,
os caboclos:
[...] são os espíritos indígenas, os mensageiros dos orixás. Porque os orixás não
chegam na Umbanda, eles são da Nação Afro, então os caboclos são mensageiros
dos orixás. A comunicação deles é espiritual: a pessoa faz um pedido para o caboclo
e ele leva o pedido ao alcance do orixá. Eles fazem o intermédio (Entrevista com
Paulo d’Ogum, Mostardas, dezembro de 2012).
A existência de práticas ameríndias atuando no interior da religião afro-brasileira permite compreender o entrosamento entre espíritos indígenas e
os elementos afro-brasileiros. Segundo Sztutman (2009, p. 2),
[…] pessoas como os xamãs – ou pajés, se quisermos manter a palavra de
origem tupi – podem ter acesso a essa humanidade dos [...] não-humanos,
que se apresentam de variadas maneiras […] Se xamãs são aqueles que podem,
com mais facilidade, gerenciar seu próprio trânsito, eles são necessários, muitas
vezes, para intervir nos trânsitos malsucedidos de seus congêneres. Não por
acaso, muitas vezes foram referidos na literatura etnológica como mediadores,
diplomatas, curadores ou mesmo médicos.
10
Paulo d’Ogum é outro importante interlocutor da pesquisa, reside em Rio Grande.
Algumas vezes, viajou a Mostardas para visitar a terreira de Mãe Irma, onde consegui
conversar com ele.
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O xamanismo ameríndio operaria em termos de uma política cósmica:
os pajés são os “que administram as relações dos humanos com o componente
espiritual dos extra-humanos, capazes como são de assumir o ponto de vista
desses seres e, principalmente, de voltar para contar a história” (Viveiros
de Castro, 1996, p. 120). Entre os “mundos de axé” e os “perspectivistas”
se traça não “apenas aquilo que a atividade ritual ou xamânica pressupõe,
as ‘participações’, mas também seu efeito para a afirmação de uma posição
ativa do sujeito frente a outros (possíveis) sujeitos” (Vanzolini, 2014, p. 280).
Os processos de cura e de auxílio às pessoas ocorrem na religião e estão
ligados, a meu ver, com o xamanismo indígena, à pajelança e também às
relações com a natureza que os diferentes coletivos não ocidentais operam.
Seguindo Anjos (2006), acredito que esses elementos abrem possibilidades
de outras formas de lidar com o sincretismo. As práticas afro-brasileiras vão
além do, e contra o, conceito de “democracia racial”, “sem cair no lusotropicalismo e nos mitos nacionalistas da mestiçagem cultural”11 porque
mostram que estamos diante de acontecimentos, devires e passagens, que são
operados na lógica de “disjunção inclusa” (Deleuze, 2011), que é quando
“cada ser implica de direito todos os seres”, em um “processo [que] consiste
em um percurso de intensidades” (Zourabichvili, 2004, p. 105-106).
No caso pesquisado, opera-se uma relação cosmopolítica quando os
afrorreligiosos evocam a importância dos caboclos indígenas e pajés, que
realizam curas e estabelecem relações com os espíritos auxiliares: os animais
e as plantas. Essas relações são feitas e se dão em territórios nos quais a
mediação não só será possível como é intensivamente necessária, como na
atuação com as práticas de cura e as receitas de banhos de ervas. A interpenetração do cosmos e dos corpos permite aprender a operação de relações:
o intermediário para o orixá que trabalha na pedreira será algum caboclo
da linha de Xangô na Umbanda. Essa relação é explicada por Cristian12:
11
12
Declaração de José Carlos dos Anjos em conversa com o autor deste artigo (2012).
Cristian é outro importante interlocutor, reside em Rio Grande e integra a terreira de
Mãe Jalba.
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Se a filha [carnal] da Mãe Irma for à beira da praia fazer um serviço, não vai ser
a Jurema dela, das Matas, quem vai chegar [incorporar] nela; quem vai chegar
é a Jurema da Beira da Praia. Se ela estiver numa pedreira, quem vai chegar é a
Jurema da Pedreira, de Himalaia, que é a Jurema que eu trabalho, e não a Jurema
das Matas. Isso depende do território! Cada Orixá tem o seu território e cada um
tem a sua passagem! Pelo lado de Umbanda, existem sete Orixás: Bará, Ogum,
Iansã, Xangô, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Quando eu falo Bará, ele não fica restrito
só a um Bará, entendesse? Este Bará, que eu falo, para o lado da Umbanda, puxa
o Xapanã para a linha dele. E, tem um monte de caboclos que são Oguns. São
vinte e sete Oguns e, destes, saem os caboclos. Cada orixá tem seus caboclos, vários,
mulheres e homens (Entrevista com Cristian, Rio Grande, agosto de 2012).
Cristian salienta a relação entre os orixás, caboclos e os territórios nos
quais os trabalhos são realizados: se o serviço ocorrer em uma pedreira, a
pessoa vai receber uma cabocla Jurema que vem na linha de Xangô; se for à
beira da praia, uma Jurema da Beira da Praia, cabocla da linha de Iemanjá.
Assim, é nas intensidades, nas passagens e nas forças energéticas que os
territórios e os corpos operam porque os orixás estão no local da evocação
da intermediação: o orixá da pedreira é o Xangô; da praia de água salgada,
é Iemanjá; da mata, é Ogum. Os diferentes caboclos e caboclas vão operar
os trabalhos e a intermediação entre humanos e extra-humanos. Do mesmo
modo, na terreira, cada ponto chama uma linha específica de cada orixá e
dos caboclos a ele associados. No ponto de Ogum, por exemplo, vão chegar
(incorporar) nas pessoas, caboclos da linha de Ogum.
Quando a pessoa já está bastante lapidada, ou seja, já passou por determinadas fases de aprontamento e participação na religião, ela incorpora um
caboclo e fica com esse até o final da Linha Branca ou pode dar passagem
para outro caboclo de outras linhas que os pontos vão chamando. Já as
pessoas que ainda estão se desenvolvendo na religião recebem uma entidade
no momento ritual e desincorporam antes de darem o passe13 nas pessoas
13
O passe é uma forma de limpeza energética-corporal, durante o qual a entidade de luz
realiza alguns movimentos junto ao corpo da pessoa que está sendo atendida. Mesmo
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e ficam, enquanto cambonos14, no auxílio das pessoas que vão ter com as
entidades que estão na terra.
Sem os intermediários – os diversos espíritos e as diferentes energias –,
a religião não realiza a sua potência. A Linha Cruzada conecta as diferenças
não para formar uma unidade, mas para manter as diferenças intensivas,
enquanto tais: nada se faz sozinho e nada opera pelo uno, há as ligações
e há os distanciamentos possíveis. O cruzamento possibilita que em uma
pedreira dos índios possa ser feito trabalho para Xangô.
Certa vez, quando conversávamos, Mãe Irma e o seu ex-companheiro me
falaram da existência de um local, no interior do município de Mostardas,
no qual havia gravuras indígenas em pedras (grafismos rupestres, em um
sítio chamado Taroca, localizado no Rincão, à beira da Lagoa dos Patos). Na
perspectiva da Umbanda, esse local é intensamente forte nas relações que
a religião opera. Quando se evoca aquela pedreira como um lugar importante para as práticas religiosas, realiza-se um encadeamento cósmico, uma
conexão coexistente de diferenças, atualizando intensidades possíveis de
serem compostas em suas relações.
O Xangô trabalha na pedreira e tem como aliados os caboclos, que
possuem práticas indígenas milenares. Na pedreira do Rincão, segundo as
pessoas da terreira, havia os pajés, os preservadores da religião, os feiticeiros,
como foi dito na conversa que tivemos. Essas forças podem ser acionadas
na terreira e em outros momentos – como em um atendimento, quando o
que essa não apresente nenhum problema de saúde visível, todos os presentes nas
atividades da religião, que são abertas ao público, como as homenagens aos santos ou os
dias de desenvolvimento de membros da corrente, recebem o passe como forma de cura,
proteção e contato com as entidades. É uma característica da linha de Umbanda e da
linha dos pretos-velhos. Nos casos aqui tratados, as pessoas que desejam receber o passe
das entidades são informadas do momento pela cabocla-chefe e se dirigem até elas, que
esperam no centro do salão da terreira.
14
Membro da corrente, auxiliar da mãe ou pai de santo da Casa, e das entidades. Responsável por informar as pessoas e passar as receitas que as entidades indicam para aqueles
com quem conversaram ou em quem deram passes.
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caboclo ou a cabocla possuem a força de curar, mesma força que tem um
pajé, porque ele tem o conhecimento das ervas, da medicina.
Conhecer a força dos índios é a parte da aprendizagem que a pessoa opera
na religiosidade afro-brasileira: ela não pode e não deve conhecer sem ter a
vivência na e da religião, a percepção da natureza e de tudo aquilo que envolve
seu corpo, seu espírito e suas relações com os orixás, com substâncias, com
outras entidades, com animais, com plantas, com o Cosmos. É pela vivência,
pelo entrosamento ritual e cotidiano entre humanos e extra-humanos, que
a pessoa vai conhecer mais e saber como fazer (n)a religião.
Tais circunstâncias são constantemente evocadas no conceito de lapidação, no desenvolvimento do espírito e do corpo batuqueiro (Anjos, 1995).
A pessoa, nas religiões afro-brasileiras, passará por apreensão de substâncias,
que construirão e constituirão seu corpo, por relações entre ela e outros
entes, podendo chegar ao grau de Mãe ou Pai de Santo, iniciando outras
pessoas na religião, abrindo sua própria terreira, realizando atendimentos,
jogando os búzios, fazendo benzimentos etc.
Os caboclos indígenas são intermediários de orixás africanos, são
Mensageiros. Essas duas referências diferentes, a africana e a ameríndia, são
conectadas, sem formar unidade e nem “idealização” essencialista do que
é ameríndio ou do que é africano. Cada intensidade é diferente e produz
diferenças. O Sete Encruzilhadas, como veremos, cruza-se: ele é caboclo da
Umbanda, mas poderá chegar ao Batuque, porque, segundo Mãe Jalba, ele
já é quase orixá e, ainda, já chega como exu, na Linha de Exu, na virada que
ele faz. Aqui, outro elemento de diferenciação ocorre: a possibilidade de
um caboclo indígena assumir uma posição no panteão de orixás africanos,
sem dividir essas potências de forma estanque. Pois, na virada que ele faz,
ele se nomadiza entre diferentes linhas de atuação: Umbanda, Quimbanda,
Batuque...
Há, portanto, um intensivo encadeamento de conhecimentos ameríndios e africanos a partir da intermediação e das práticas que se operam na
Umbanda. No que envolve a cura, umbandistas afirmam que a religião é
uma medicina. Em diversos textos umbandistas e no que as mães de santo
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e outras pessoas evocam, encontramos a ideia de que a Umbanda é mais
que religião, é ciência. A própria palavra “Umbanda” – que, segundo vários
estudos, é oriunda do kimbundu, uma das diversas línguas africanas – quer
dizer “arte de cura”15. Isso a aproxima, de certa forma, da práxis cosmo-ontológica dos pajés, no sentido literal, o que também se conecta ao que afirma
Vanzolini (2014, p. 276): o “axé orienta as religiões de matriz africana para o
desenvolvimento de mecanismos de controle das conexões entre os diversos
elementos e partes do cosmo, em um regime comparável àquele em que, entre
povos indígenas da América do Sul, se dão as transformações xamânicas”.
Estamos diante de coletivos sociocósmicos, nos quais os processos de cura
só podem estar ligados a outros elementos, como as entidades, os animais, as
plantas etc., em uma interação constante. Conforme Sztutman (2009, p. 4)
enfatiza, os povos ameríndios “estariam acostumados a conceber o que
chamamos de natureza como um domínio fortemente dependente da ação
humana, em interação constante com o domínio humano”.
Para afrorreligiosos(as), a meu ver, a “natureza” é também permeada
por diversos entes partícipes dela, sendo permeada pelas relações humanas
e extra-humanas, em interação constante e diferenciante. O peso que essa
dimensão possui se dá em termos de cruzamentos possíveis, entre diversos
modos de existência e nas práticas de cura e saúde. Não se trata apenas
de um “cuidado” com a natureza, mas sim de uma relação intensiva entre
Cosmos, pessoas e outros entes, operada em um plano de coexistência em
que a natureza (a mata) é conectada a outras dimensões16. O acontecimento
de cruzar corpos, entidades e locais, curar pessoas e realizar sacrifícios17 aos
orixás e a outras entidades opera práticas de coexistência entre possíveis.
15
Ao afirmar que praticantes da Linha Cruzada se reconhecem como umbandistas ou
chamam a religião de Umbanda, vemos que eles e elas operam a arte de curar com tal
reconhecimento – a palavra é potência.
16
Sobre isso, ver Cabrera (2012), no contexto afrorreligioso cubano.
17
Sobre o sacrifício de animais, neste contexto de pesquisa, ver Ramos, 2016.
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“SEU SETE ENCRUZILHADAS”, CABOCLO E EXU
Roda Sete Encruzilhadas,
Na sua Linha de Bará.
Ele comanda a sua terreira,
Louvado seja em nome de Oxalá!
Saravá meu pai,
No reino da Oxum,
Ele que é o nosso chefe,
A segurança do Congá!18
O Caboclo Sete Encruzilhadas abre a religião para que os espíritos de
negros escravizados, de indígenas e de outros povos possam chegar. Em textos
umbandistas e sobre a Umbanda, aponta-se como acontecimento fundador
dessa religião a incorporação de um espírito indígena por Zélio de Moraes:
ele recebeu o Caboclo das Sete Encruzilhadas em uma sessão espírita no Rio
de Janeiro, em 190819. Esse acontecimento marca a abertura e propagação
dessa religião, abertura também às linhas, aos povos e suas potências, podendo
realizar curas e caridade.
Essa propagação da Umbanda, atualizada pelo Sete Encruzilhadas, está
baseada na concepção de que essa religião existe há milênios, de que ela é
uma das religiões mais antigas do mundo e que possui ligações com o Egito
Antigo, com a Índia e com o Oriente20. Segundo Peixoto (2008, p. 23), a
Umbanda é caracterizada como um “movimento caritativo mediúnico de
18
Ponto cantado na terreira de Mãe Irma. Noto, aqui, que o nome das duas terreiras possui
o “Seguidores do Sete Encruzilhadas”. Por isso, sempre começam as atividades da terreira
com o ponto de abertura dos trabalhos e, após, vem esse ponto do Sete Encruzilhadas.
Nos casos em questão, troca-se o trecho do ponto, se esse é cantado ou tocado no reino
da Oxum (Casa da Mãe Irma) ou no reino da Iansã (Casa de Mãe Jalba).
19
Ver Giumbelli (2002) e Peixoto (2008).
20
Mãe Jalba me falou, certa vez: Tu vens procurar o que tem de afro na religião? Mas tens
que ver que ela [a religião] é muito mais antiga! Isso vem lá da Índia e do Egito Antigo!
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inclusão espiritual […]. A natureza cósmica não é rígida e imutável, e sim
flexível e em constante transformação”.
Paulo d’Ogum enfatiza que o surgimento da Umbanda foi um modo de
abrir muitas portas, para todas as entidades que não tinham como chegar [não
tinham entrada no espiritismo]. O Sete Encruzilhadas fundou a Umbanda e
ele abriu portas para todo mundo! Todos os povos! Porque na Umbanda entra
qualquer linha, pois cada linha tem seu comandante e tem uma porta para
passar, para entrar e sair. Ele ainda declara sobre Seu Sete Encruzilhadas:
Quebrou aquele preconceito, não é!? [de os espíritas não deixarem as entidades
negras e indígenas atuarem nas sessões mediúnicas]. Era um preconceito isso
aí! E, outra coisa, os pretos-velhos, os espíritos dos negros africanos, não tinham
onde chegar, porque na religião africana, no Candomblé, eles eram considerados
sofredores. Então, teve um espaço, uma porta aberta na Umbanda para os negros
africanos chegarem. Assim, começou a chegar a Linha dos Pretos-Velhos e é infinita a quantidade deles. E eles têm uma ‘baita’ sabedoria (Entrevista com Paulo
d’Ogum, Mostardas, 7 de dezembro de 2012).
Essa abertura feita pelo Sete Encruzilhadas realiza um encadeamento
no qual espíritos tidos como “atrasados” e “sofredores” possuem suas intensidades energéticas e podem fazer curas. Paulo d’Ogum ainda explica que o
Caboclo Sete Encruzilhadas,
[...] chegou dentro do kardecismo e eles [kardecistas] não aceitaram! Deste modo, o
Caboclo Sete Encruzilhadas ordenou que juntassem um povo e fizessem a Umbanda
e ela começou só na palma da mão, sem tambores. O tambor foi adaptado da Nação
Afro. Era só na palma da mão e todo mundo vestido de branquinho. E começou
a chegar os caboclos, índios, nesta religião. Eles chegavam um pouco crus, uns
falando Tupi-guarani ou com linguagens que ninguém entendia. Com o passar do
tempo, os índios foram se lapidando e conseguiram se entrosar e serem entendidos,
mas o Sete Encruzilhadas, como Caboclo chefe, entendia tudo (Entrevista com
Paulo d’Ogum, Mostardas, 7 de dezembro de 2012).
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O lapidar é o movimento constante por meio do qual se aprontam
espíritos, humanos, corpos, pedras etc., para que haja conexão com os
outros entes do Cosmos. Quando é evocado que os espíritos – nesse caso, os
ameríndios – foram se lapidando, estamos diante de uma noção que envolve
tanto o sentido de agregação (conseguiram se entrosar) como também o
próprio conceito de aprontamento, iniciação na religião, já que também os
espíritos vão apreendendo elementos, formas e forças, junto aos humanos. O
fundamento, portanto, sempre opera, nas religiões de matriz africana, como
elemento ligado ao processo de feitura – seja esse de uma pessoa, de uma
entidade ou de um outro modo de existir. O fundamento tem a ver com o
criar e recriar procedimentos, e o aprontamento é um dos elementos-chave
e compósitos do fundamento.
Os espíritos, desse modo, vão sendo aprontados, assim como também
a pedra e a pessoa são aprontadas no Batuque21. Ao mesmo tempo, quando
Paulo d’Ogum menciona que chegavam os índios, vemos que ele aciona a
ideia de que os espíritos ameríndios andam juntos com as forças de orixás
e de outros entes relacionais afro-brasileiros (pretos-velhos, exus, pombagiras etc.). Assim, a partir de uma lapidação, a própria linha de Caboclos
vai assentando-se na terreira e nas formas cosmo-ontológicas de atuação na
religiosidade.
Na bibliografia umbandista, Peixoto (2008, p. 15-16) afirma que Zélio
de Moraes, aos dezessete anos, “começou a sofrer estranhos surtos, durante
os quais se transfigurava totalmente”, tomando postura de “um idoso, com
sotaque diferente e tom manso, como se fosse uma pessoa que tivesse vivido
em outra época” ou, ainda, “tomando uma forma que mais parecia a de
um felino lépido e desembaraçado que mostrava conhecer muitas coisas
21
As pedras são, no Batuque, os acutás, que possuem as forças dos orixás. Cada orixá tem
uma pedra (acutá) de tamanho, cor e formatos diferentes. Conforme Anjos (2008, p.
89), o “acutá não remete para um poder que do além se faz representar num mediador
simbólico. O acutá – essa pedra sagrada aqui e agora – já carrega de imediato a totalidade
do ser da divindade. Esta pedra sagrada, aqui e agora, é o Xangô, o Ogum, a Iemanjá”.
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da natureza”. De minha parte, vejo que, por essa descrição, Zélio já estava
apreendendo potências oriundas de outras intensidades, antes mesmo da
incorporação realizada pelo Sete Encruzilhadas, durante uma sessão espírita.
Os “estranhos surtos” que o “transfiguravam” fizeram com que seu
pai o levasse à Federação Espírita de Niterói. Na ocasião, segundo Peixoto
(2008), manifestaram-se entidades de africanos escravizados e indígenas
nos presentes. O dirigente da Federação achou aquilo um absurdo e alegou
que essas forças eram “atrasadas espiritualmente”. O autor conta que Zélio
foi então tomado por uma força estranha e que disse: “‘Por que repelem a
presença desses espíritos, se nem sequer se dignaram a ouvir suas mensagens?
É por causa de suas origens e de sua cor?’”. Ao ser questionado a respeito
de que força era aquela que tomava Zélio, ela respondeu que era o Caboclo
das Sete Encruzilhadas22, “‘pois, para mim, não haverá caminhos fechados’”:
[...] a entidade revelou a missão que trazia do Astral: “Se julgam atrasados os
espíritos de pretos e índios, devo dizer que amanhã (16 de novembro) estarei
na casa de meu aparelho, às 20 horas, para dar início a um culto em que esses
irmãos poderão transmitir suas mensagens e cumprir a missão que o plano
espiritual lhes confiou. Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve haver entre todos, encarnados e desencarnados”
(Peixoto, 2008, p. 17).
Em outro sentido, Giumbelli (2002, p. 194), ao falar de Zélio, pontua
uma série de autores e autoras que se debruçaram a explicar o “surgimento” da
Umbanda no Brasil. Algumas explicações colocavam Zélio como “pioneiro”
ou como “veículo” de “propagação da Umbanda”, e outras nem mencionavam seu nome. Para o autor, “mesmo os textos que tratam das origens
ou da história da Umbanda, ou mesmo do Caboclo Sete Encruzilhadas
22
Peixoto (2008, p. 16-17) explica que o espírito havia falado que era, no momento,
“‘resquícios de uma encarnação em que fui o padre Gabriel Malagrida. Acusado de
bruxaria, fui sacrificado na fogueira da Inquisição... Mas, em minha última existência
física, Deus me deu o privilégio de reencarnar como um caboclo brasileiro’”.
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[…] não se sentem obrigados a mencionar o nome de Zélio”. O autor
reconhece que “o problema das origens da Umbanda não pode ser reduzido
a questões de prioridades e de fundadores”, uma vez que “não faz muito
sentido procurar por prioridades e fundadores em um processo que em boa
medida ocorreu, por assim dizer, rizomaticamente, sem direção única e sem
controle centralizado”.
Considero que é no acontecimento de abertura da Umbanda que o
espiritismo kardecista também se abre para outras entidades (antes repelidas),
como os pretos-velhos e os indígenas. É por esse processo que abre caminhos
diferenciantes, que vemos os cruzamentos enquanto encadeamentos, como
modos criativos de regimes de existência, nos quais se processam aberturas
e fechamentos. É o caso da Linha Cruzada: Mãe Jalba, que recebe o Seu Sete
Encruzilhadas, enfatiza que alguns caboclos podem chegar na linha dos Exus.
Ela fala sobre as passagens, mencionando um ponto que diz: “Sete Encruzilhadas, Santo Antônio ele é”. Então, ele tem uma passagem. E o Santo Antônio,
no cruzamento, é o Bará jovem!
Diversas vezes vi Seu Sete Encruzilhadas praticar cruzamentos na religião. Certa vez, em maio de 2012, quando começavam os preparativos para
se realizarem os sacrifícios e outras práticas rituais para efetivar o reforço de
Mãe Irma no Batuque, em Rio Grande, na terreira de Mãe Jalba, uma das
filhas de santo da Casa perguntou: Mãe Jalba, a senhora me dá licença para
acender uma vela para o Seu Sete? Como resposta, ela disse: eu ia acender, e
me esqueci! Pode sim! Assim, esta senhora colocou em frente à imagem do
Sete Encruzilhadas uma vela acesa.
Em um ritual destinado ao Batuque, o Sete Encruzilhadas foi aliançado: a relação com ele estava sendo efetuada junto com a relação com
orixás, desde o início, mas teve de ser confirmada acendendo-se uma vela,
na terreira, para ele. Se tudo se inicia com exu, com Bará, e o Caboclo Sete
Encruzilhadas se cruza como exu, ele precisou ser agregado ao que estava
sendo feito, antes de começar os sacrifícios. Como vimos, os caboclos são
mensageiros dos Orixás.
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O segundo fato aconteceu em agosto de 2012, na homenagem realizada
para Seu Sete Encruzilhadas, na linha de Umbanda, também na Casa de
Mãe Jalba. Em determinado momento, o próprio caboclo puxa um ponto
no qual mencionava que ele era Exu. O ponto, que eu já ouvira em outras
oportunidades, inclusive cantado por pombagiras, dizia: Se ele ganhou esse
presente/ É porque ele é o Exu. Ele, lhe agradece/ Muito obrigado, na Lei de Exu.
Após o Sete Encruzilhadas puxar esse ponto, falou: se a terreira é cruzada,
tem que puxar o ponto de Exu! Ele puxou esse ponto no momento em que
caboclas e caboclos dançavam com uma torta23, indo do centro do salão da
terreira até a porta de entrada do templo, que ficara aberta o tempo todo.
Naquela noite, de Festa de Caboclo, o Seu Sete puxou o ponto de Exu24. Mãe
Jalba explica como o Sete Encruzilhadas tem a sua virada para Exu:
Existem três passagens do Seu Sete: da mocidade dele à velhice! São as passagens, o
tempo dele25. Seu Sete cruza as linhas porque ele é o índio mais velho. O primeiro
protetor que veio na terra. Ele tem escada para subir, vai evoluindo e passa pela
23
Esse momento ritual ocorre em todas as homenagens realizadas, em ambas terreiras,
pela linha de Umbanda e, na homenagem feita para Exus e Pombagiras. Trata-se de um
percurso no qual as entidades que estão na terra, ou seja, incorporadas, equilibram uma
torta (similar às que são feitas para festas de aniversário) no topo da cabeça e dançam
percorrendo o salão da terreira, dirigindo-se, geralmente, do congá (altar) até a porta
do templo. Cada entidade passa a torta para uma outra, que faz o mesmo percurso.
Nos casos de homenagens para santos, é cantado o ponto correspondente como, por
exemplo, para Oxum, canta-se: “Eu vi mamãe Oxum na cachoeira, sentada na beira
do rio. Colhendo lírio lírio ê, colhendo lírio lírio ah, colhendo lírio pra enfeitar o seu
Congá”.
24
Cristian também ressalta que o Sete Encruzilhadas chega pelas Sete Linhas! Que ele
trabalha em qualquer linha.
25
A dimensão de passagens ocorre em relação a Orixás: por exemplo, existem as passagens
criança, adulto e velho do Oxalá, da Iemanjá, do Ogum... Em outros lugares e contextos
chamam-se qualidades. Já a virada opera algo complexo em que a entidade pode, então,
cruzar as linhas ou lados afrorreligiosos, assumindo características de outros povos, atuando
com outras forças mas, não obstante, produzindo axé.
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Linha do Povo da Rua. Ele comanda a tribo dele toda! A bandeja dele [oferenda]
é caça, mas a gente não pode caçar para dar para ele! Vinho, até hoje não sei
porque, é a bebida dele, porque antes era cerveja preta... Ele deu uma virada e
hoje é vinho! É, ele fez muita virada! Ele é uma tribo […]. A virada dele é um
segredo e foi quando ele veio, por primeiro, é que começou a Umbanda. Com
muitas dificuldades: era tudo feito sem tambor, escondido e com luz apagada!!
Era tudo à luz de velas, porque não se acendia a luz para as pessoas de fora não
verem! Era tudo escondido na época, se não, vinha a polícia e prendia todo mundo!
Mas o Seu Sete, quando vem, traz toda a tribo dele (Entrevista com Mãe Jalba,
Mostardas, dezembro de 2013).
Nessas aberturas, se os entes são encadeados ou cruzados no processo, é
porque eles fazem parte para que isso funcione; eles são confrontados, ligados
e dispersados enquanto forças possíveis de atuação. E, nessas forças, existem
as viradas. Mãe Jalba afirma que, no mundo dos Orixás e dos Caboclos, há
uma irmandade, sem entes superiores:
Eu venho trabalhando com Seu Sete há muitos e muitos anos e ele faz muita coisa!
Quando estou na pior, grito para o Seu Sete. Ainda, ele faz virada para o Exu.
Ele trabalha na Linha de Exu! Ele cruza e ele se cruza! É porque o Exu das Sete
Encruzilhadas é o mesmo que o Seu Sete Encruzilhadas [caboclo], mas ele faz
virada, quer dizer, ele tem luz suficiente para isso! Chega na terreira [umbanda]
e chega na Linha dos Exus. Ele tem a permissão para isso. E, no momento que
ele for considerado um Orixá, ele já não faz mais isso, pois virá o sucessor dele
e ele vai para o Batuque, como Orixá (Entrevista com Mãe Jalba, Mostardas,
dezembro de 2013).
Se a Casa é cruzada, consequentemente, a chefe da terreira e outras
pessoas (e entidades) também são: Mãe Jalba tem como seu caboclo o Sete
Encruzilhadas, mas que chega também em outra linha, ele é cruzado com o
exu, ele faz a abertura para a Linha de Exus. Essa abertura ele já fez também
quando chegou ao espiritismo kardecista, quando abriu a Umbanda, para
que espíritos de negros escravizados e de ameríndios pudessem chegar. Para
Mãe Jalba, o Seu Sete é um caboclo, que ainda não está considerado, mas é
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quase um Orixá! Se ele vier numa Linha de Nação, numa Roda de Batuque,
ninguém diz que ele é um Caboclo!
Quando o Sete Encruzilhadas se cruza, na virada, ele opera um devir-exu
do índio?26 A partir de um devir-orixá, o que as mães de santo operam e
encadeiam é uma aliança intensiva27, porque isso envolve o Cosmos e diferentes entes, ativando a potência de um(a) orixá no território em que ele ou
ela trabalham. Assim, quando a mãe de santo faz o cruzamento, no momento
de iniciar uma pessoa na religião, ativa, consequentemente, uma série de
outros actantes que são espíritos mediadores (da Umbanda, Quimbanda e
do Batuque) e que, também, são potencialmente fortes.
POR UMA CARTOGRAFIA DA “COSMOPOLÍTICA
AFRO-BRASILEIRA”
A abertura e as conectividades na religião são o cruzamento e as passagens. É por meio da diplomacia cósmica de (e entre) mundos e entes que o
encadeamento cósmico ocorre:
A “abertura de caminhos” também passa pelos cruzeiros, aqueles em cruz
(+) ou num xis (x). Abrir os caminhos significa aliviar os percursos de um
empreendimento de possíveis interferências negativas. Os empreendimentos
da vida também são percebidos como caminhos: realizar-se profissionalmente,
ter sucesso escolar, fazer um bom casamento. As linhas de vida devem ser
mantidas livres de obstrução espiritual. Muito além de uma simples metáfora
entre a vida e os caminhos, temos, creio eu, um pensamento que faz da vida
um território (Anjos, 2006, p. 19).
26
Certa vez, quando conversávamos na terreira de Mãe Jalba, Cristian me disse que a
forma dos exus e das pombagiras pode ser de índios e índias. Segundo ele, na África, tem
os negros, mas também tem tribos de índios. Então, existem exus que são índios.
27
Ver Viveiros de Castro, 2007.
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Estaríamos diante de um devir-orixá do caboclo, de um devir-índio do
exu, de um devir-negro de Santo Antônio? Os caminhos só são possíveis se
houver o encadeamento com diversos entes, relacionando-os. Vimos que
há os intermediários, que são caboclos e caboclas, e que há as passagens; e
há, ainda, fluxos e energias que operam cruzamentos nos corpos, nas Casas,
nos territórios e no Cosmos.
Danowski e Viveiros de Castro (2014, p. 93), ao falarem dos povos
ameríndios, dizem que, para esses, o mundo é “uma multiplicidade de
multiplicidades intrincadamente conectadas”. De minha parte, considero
que, para o caso dos grupos afro-brasileiros e, notadamente, afrorreligiosos,
acontece algo muito similar: em suas práticas cotidianas e rituais, estão constantemente envolvidos os elementos da natureza e da cultura, imbricados em
práticas cosmopolíticas, nas quais uma miríade de potências, entes e forças
atuam. Assim, “[...] os ameríndios pensam que há muito mais sociedades (e,
portanto, humanos) entre o céu e a terra do que sonham nossas antropologias e filosofias. O que chamamos de ‘ambiente’ é para eles uma sociedade
de sociedades, uma arena internacional, uma cosmopoliteia” (Danowski;
Viveiros de Castro, 2014, p. 94, grifo dos autores).
Corroboro Vanzolini (2014, p. 280) quando a autora indica que “tanto
nos mundos indígenas quanto no universo das religiões de matriz africana no Brasil, é preciso afirmar-se sujeito em um universo povoado por
outros sujeitos, ou afirmar sua força em um universo povoado de outras
forças – isto é, outros sujeitos e outras forças [...]”. É que para os coletivos
afro-brasileiros e para os coletivos indígenas, estamos diante de modos de
existência complexos, nos quais uma série de elementos estão intrinsecamente imbricados na (quase) dissociação entre natureza e cultura e que são,
notadamente, povoados por diversos entes.
E, ressoando elementos da filosofia grega antiga ao propósito deste texto,
concordo com Spinelli (2006, p. 42, grifos do autor) que, “[s]e tivéssemos
que restringir a palavra kósmos a um único termo, arranjo seria certamente
o que melhor lhe conviria, em razão de sua amplitude e sua variação de
significados...”. Segundo essa premissa, o que chamamos de Cosmo é um
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constante “arranjo” de “modos diferentes” (Spinelli, 2006, p. 43) e, refletindo sobre a religiosidade afro-brasileira, podemos dizer que este arranjo
cósmico se dá tanto pela interação dos diferentes entes em contato como,
também, pelas práticas rituais constantemente desenvolvidas nos terreiros.
Assim, podemos considerar a existência de um devir-outro, um devir
-raça, um devir-povo quando são evocados os cruzamentos das linhas nesse
modo de existir que produz diferenças nas relações e que não toma a unidade
como modelo, produzindo as diferenciações possíveis, em um arranjo. Agenciamentos e devires operam-se em modos de existência porque, justamente,
não são da ordem da semelhança, nem da imitação, nem da identidade.
Segundo Deleuze e Guattari (2007), as relações que compõem, decompõem
ou modificam um indivíduo correspondem a intensidades que o afetam,
aumentando ou diminuindo sua potência de agir, vindo das partes exteriores
ou de suas próprias partes.
É quando um caboclo faz as curas de um pajé indígena na Umbanda
e, na virada, faz a intermediação entre as pessoas e as divindades, como exu,
que as entidades produzem e operam suas relações e fazem cosmopolítica,
conectando territórios, corpos e agenciamentos extra-humanos. Em uma
benzedura, um banho de ervas, uma proteção estão sendo agenciadas potências,
forças cósmicas, natureza, pessoas, locais, acontecimentos. As relações se
constituem nos caminhos percorridos e traçados pela religião afro-brasileira.
Nas religiões de matriz africana, portanto, não temos uma “síntese
mulata”, mas a encruzilhada e é nessa que se opera a cosmopolítica afro-brasileira (Anjos, 2006). Nesse território existencial – que pertence ao Bará,
ao Exu e à Pombagira e também ao Ogum, orixá intensivamente ligado às
matas dos índios –, é que a Umbanda, o Batuque, a Quimbanda e outras
formas cosmo-ontológicas e afrorreligiosas são afetadas por diferentes agenciamentos, arranjos cósmicos e potências.
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Recebido em: 11/02/2019
Aprovado em: 09/09/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 307-333, ago./dez. 2019
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.92108
CRENÇAS E PROMESSAS NAS TRAVESSIAS DA VIDA
Maria Engrácia Leandro
José Pinto1
Foi na Senhora do Amparo. No meio da capelinha apinhada de gente, subi acima
de um mocho, e encomendei a miséria humana à misericórdia divina. Tinha a
impressão que falava realmente com Deus, e de que ele me ouvia, obrigado pela
convicção que eu punha no que lhe dizia […].
(Miguel Torga, A criação do mundo)
Resumo: Este artigo, apoiando-se numa reflexão teórico-empírica, visa estudar o
fenômeno das promessas às forças sobrenaturais, tomando como terreno de pesquisa
três regiões diferentes: duas em Portugal e outra na região parisiense, cujas dinâmicas
econômicas, sociais, culturais e religiosas integram semelhanças e distinções. Tendo
presente uma menor influência da religião nas sociedades hodiernas e, ao invés,
uma procura do sagrado logo que as vicissitudes da vida se manifestam, procuramos
analisar as singularidades das atitudes votivas. Para estudar estas interferências,
damos particular importância ao alcance das transmissões familiares votivas, à
solidez das devoções quando outros recursos não se afiguram fiáveis, colocando
em cena as noções de crença e de fé nos entes sobrenaturais, e aos mecanismos de
transformação em curso acerca deste fenômeno social.
Palavras-chave: Crenças; Entes Sobrenaturais; Potência; Promessas; Transmissões
Familiares.
1
Maria Engrácia Leandro é investigadora do CIES-ISCTE – Instituto Universitário de
Lisboa, Portugal. E-mail: maria.eng.leandro@gmail.com. José Pinto é investigador no
Arquivo Municipal de Arcos de Valdevez, membro do Grupo de Estudos e Pesquisa em
Educação, Religião, Cultura e Saúde (GEPERCS) da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB), Brasil, além de coordenador do Centro de Estudos e Pesquisa Interdepartamental em Culturas e Religiões (CEPICR/UNEB). E-mail: pinto.jmp@gmail.com.
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 335-363, ago./dez. 2019
336
Maria Engrácia Leandro, José Pinto
BELIEFS AND PROMISES IN THE CROSSINGS OF LIFE
Abstract: This article, based on a theoretical-empirical reflection, aims to study
the phenomenon of promises to transcendental forces, taking as the research field
three different regions: two in Portugal and the other in the Paris region, whose
economical, social, cultural and religious dynamics integrate similarities and
distinctions. Considering a smaller influence of religion in today’s societies and,
instead, a search for the sacred as soon as the vicissitudes of life are manifested, we seek
to analyze the singularities of votive attitudes. In order to study these interferences,
we place particular importance on the scope of votive family transmissions, on
the strength of devotions when other resources do not seem reliable, to put into
the picture the notions of belief and faith in the supernatural entities, and to the
mechanisms of transformation underway over this social phenomenon.
Keywords: Beliefs; Supernatural Entities; Potency; Promises; Family Transmissions.
INTRODUÇÃO
Ao falar de crenças e de promessas, da sua relação com a vida e com
as forças transcendentes, podemos invocar toda a espécie de males e acontecimentos, dos mais triviais aos mais árduos, sabendo que em qualquer
das situações há o compromisso de se cumprir o que se prometeu, após a
obtenção da graça implorada. Tal como em qualquer outra circunstância,
há a submissão ao cumprimento de um contrato firmado na crença, na
confiança quanto à realização de algo objetivo e na palavra dada. Transferida
para o domínio do transcendente, cinco pressupostos presidem à essência
da promessa: o conteúdo duma situação, a função do religioso implicando a
crença no ente sobrenatural e na sua capacidade de resposta adequada, o ato
de prometer, a expetativa de ser atendida(o) e o cumprimento do prometido.
Compreende-se que num quadro problemático como este, as promessas
tendam mais a surgir quando os males da vida se afiguram difíceis de vencer
através dos recursos materiais ao alcance de cada um e da sua envolvência
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 335-363, ago./dez. 2019
CRENÇAS E PROMESSAS NAS TRAVESSIAS DA VIDA
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familiar e social. Para o efeito, também podem ter grande influência os
processos de transmissão e socialização familiar e social, criando entre as
gerações uma cadeia de santos protetores devocionais, cujas potencialidades
já foram asseverados anteriormente.
Frise-se, porém, que o ato de prometer, na esperança de vir a alcançar
o solicitado, fundamentando-se na crença na capacidade para intervir da
entidade supranatural a quem é dirigido, implica um trabalho de relação e
o cumprimento do voto formulado, o que, na linguagem corrente, designa
o cumprimento da promessa. Assim, sejam quais forem as circunstâncias,
numa lógica de dom e contra dom, dá-se uma garantia decorrente duma
afinidade relacional de confiança e de compromisso assumido pelo suplicante
que, se esquecido, pode levar à rutura da correspondência biunívoca entre o
prometido e o realizado. No sentido religioso ou espiritual propriamente ditos,
sobretudo, a nível da religião popular, o não cumprimento das promessas
poderá ser um mau prenúncio, uma vez que poderá acarretar consequências funestas para os faltosos e até para os seus familiares, podendo atrair a
vingança ou a ira dos entes sagrados em questão (Augé; Herzlich, 1984). Daí
que, em geral, haja uma séria preocupação em não faltar ao compromisso
assumido, inclusive quando não haja a certeza de ter sido por esta via que
o solicitado foi alcançado.
Neste trabalho, focalizados no fenômeno das promessas às forças sobrenaturais, visando alcançar graças que, de outro modo, se julgariam muito
difíceis ou praticamente inacessíveis, apoiados numa reflexão teórico-empírica, com recurso a trabalho de campo de índole sociológica, procurámos
estudar essencialmente três aspetos. O primeiro analisa as incidências da
transmissão familiar e social na formação de um ethos votivo, capaz de
acreditar na potência daquele(a) a quem se fazem as promessas e de quem
se espera obter as graças solicitadas. O segundo visa destacar a relação entre
situações difíceis da vida e o surgimento das promessas. Segundo Durkheim
(1960), circunstâncias há em que a fé confere força para agir. Enfim, o
terceiro, tendo presente as dinâmicas religiosas, sociais e culturais em curso,
procura apreender as principais vertentes destas vivências.
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Maria Engrácia Leandro, José Pinto
QUESTÕES METODOLÓGICAS
Na linha de orientação que preside a este trabalho de cariz exploratório,
socorremo-nos de técnicas metodologias qualitativas, incidindo na observação direta e na realização de entrevistas semiestruturadas. Partilhamos do
ponto de vista weberiano, segundo o qual estudar o social é compreendê-lo,
a partir da sua realidade intrínseca e extrínseca.
Numa primeira fase, o trabalho de campo realizado focalizou-se na
observação direta junto de algumas famílias e em locais onde a expressão
dos atos votivos é mais notória: ermidas, igrejas, santuários, outros espaços
de culto e peregrinação e locais de exposição de ex-votos. Os primeiros
passos tiveram lugar em 2014, em plena época de crise económica e social
em Portugal, em que se denotava “de novo” uma tendência para recorrer
às promessas, inclusive por parte de jovens em busca de emprego e de mais
segurança para a vida. Devolvidos dois anos, em Portugal, voltamos de novo
ao terreno junto da(o)s mesma(o)s entrevistada(o)s para poder avaliar das
permanências e das mudanças produzidas perante o fenômeno em análise.
Por razões operatórias, mercê das nossas relações de conhecimento do
meio, numa ótica comparativa, escolhemos realizar este trabalho no concelho
de Braga e no concelho das Caldas da Rainha, o primeiro situado no norte
e o segundo no centro/sul de Portugal, na parte designada de Oeste. Aliás,
segundo os dados do recenseamento de 2011 em Portugal, trata-se de duas
regiões onde a prática e a influência religiosas são mais intensas, com destaque
para a primeira, como os trabalhos de Teixeira (2011) também o vieram
a confirmar. Frise-se, todavia, que este era não um fator fundamental da
nossa escolha sociogeográfica.
Pois bem: porque de uma escolha comparativa se tratava, quisemos,
ainda, alargar este trabalho à região parisiense, onde anteriormente já tínhamos
realizado extenso trabalho de pesquisa, junto da coletividade portuguesa2
2
Note-se que entre 1960-1973, cerca de um milhão de portugueses veio para França
em busca de melhores condições de vida. Destes, 345 940, em 1975, e 333 680, em
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CRENÇAS E PROMESSAS NAS TRAVESSIAS DA VIDA
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(Leandro, 1995). Numa perspetiva longitudinal, procurámos, apreender as
novas dinâmicas que se foram produzindo no decorrer do tempo em termos
das vivências dum ethos religioso votivo, muito orientado para entes sagrados
inscritos numa linha genealógica familiar, por vezes à mistura com outros
mais iminentes na sociedade francesa. Tanto mais que as novas gerações de
portugueses neste país tendem a alinhar-se mais pelos valores da cultura
francesa mais racionalizada, urbanizada e secularizada.
O que podemos dizer com estas escolhas espaciais e este conjunto de
elementos pré-definidos, é que nos propiciaram um terreno propício à
realização de um conjunto de entrevistas semiestruturadas capazes de nos
permitirem uma melhor compreensão do fenômeno religioso votivo, do seu
significado, das práticas e das crenças que lhe subjazem.
Até porque a postura de investigação compreensiva apoia-se na convicção
de que os humanos não são simples portadores de estruturas, mas produtores ativos do social, por conseguinte depositários de um importante saber
que se trata de apreender intrinsecamente através das suas práticas e dos
seus valores (Weber, 1992). Sociologicamente, o que pretendemos é uma
explicação compreensiva do social.
No nível em que nos situamos, importa agora dizer que procedemos à
elaboração de um guião de entrevista que, além das variáveis sociais: idade,
género, escolarização, profissão, situação perante o emprego, estado civil e
posição perante a religião, contem um conjunto de questões semiabertas sobre
os processos de socialização familiar, de forma a poder relevar a importância
outorgada às devoções familiares de cariz religioso votivo ou similar, e o modo
como são reinterpretadas em função das necessidades pessoais, familiares
ou outras. Não menos importantes, são as questões que se prendem com o
conteúdo das promessas propriamente ditas e o alcance de que se revestem
1982, residiam na região parisiense. De notar que, inicialmente, a organização religiosa
entre os portugueses neste país foi essencialmente promovida pela Igreja portuguesa
(Leandro, 2005).
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Maria Engrácia Leandro, José Pinto
em todo este processo. Finalmente, juntámos ainda questões abertas de
cariz projetivo, dando azo à expressão dos ensejos dos nossos interlocutores.
Em termos de amostra, importa frisar que não tivemos a preocupação
de selecionar qualquer amostra de tipo estatístico representativo, mas antes
proceder à “construção progressiva de uma amostra” (theoretical sampling,
Glaser; Strauss, 1967), cujos elementos fossem portadores de experiências
diferentes ao nível do social e de visões diversificadas das mesmas realidades
em estudo. Trata-se, pois, de uma amostra reduzida, constituída por 15
mulheres e 12 homens, repartidos pelos três espaços selecionados: 6 M. e 4
H. no concelho de Braga, o mesmo na região parisiense e 3 M. e 2 H. no
concelho das Caldas da Rainha3, com idades compreendidas entre os 21 e os
68 anos. Possuem graus de escolarização que vão desde a antiga 4.ª classe à
licenciatura, cujas situações civis são diversificadas, bem como a sua condição
perante o emprego, estando algumas/alguns em situação de aposentados.
A realização das entrevistas, anteriormente acordada com os nossos
interlocutores, em alguns casos teve lugar na sua própria casa, noutros nas
proximidades dos locais de trabalho, sendo de destacar o caso da(o)s feirantes,
nas cidades de Braga e das Caldas da Rainha, em horas que lhe fossem mais
convenientes. Na região parisiense, todas as entrevistas foram realizadas em
casa da(o)s entrevistada(o)s. Como técnica de registo da informação recolhida,
recorremos ao uso do gravador, depois de obtida a respetiva autorização e
garantidas as regras de anonimato, e à tomada de notas.
Por fim, através da análise de conteúdo, procedemos ao tratamento da
informação recolhida que nos forneceu elementos importantes e significações
pertinentes sobre a problemática que estudamos. O trabalho que a seguir
prosseguimos, até por razões de extensão, não espelha todos os dados recolhidos, mas apenas os que se afiguram mais pertinentes para este trabalho.
3
Esta desigual distribuição também é tributária duma desigual extensão sociogeográfica
e demográfica das áreas de estudo selecionadas, ainda que não nos deixássemos guiar
por critérios de representatividade estatística.
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A este respeito, a observação das práticas, a expressão dos elementos
simbólicos e os dados das entrevistas, permitindo estudar as circunstâncias,
as representações e as dinâmicas sociais em curso, tanto sob o ponto de vista
religioso como social e familiar, relevam algumas perspetivas e dimensões
fundamentais acerca destas problemáticas. Entre elas, destacam-se a importância da transmissão familiar, a permanência de crenças tradicionais nos
entes sobrenaturais e o significado dos respetivos locais de culto, embora
sujeitos a várias formas de recomposição e reatualização de um ethos votivo
como recurso, logo que as situações o exijam e as próprias dinâmicas do
acreditar se conjuguem com estes elementos.
TRANSMISSÃO FAMILIAR E SOCIAL VOTIVA
Transmitir a vida em todas as suas dimensões significa lutar contra
uma prática mortífera de uma temporalidade irreversível, que parece tudo
transportar consigo. A morte atinge todos e tudo o que tem vida, inclusive as
próprias culturas e civilizações (Thomas, 1988). Os historiadores lembram-nos que civilizações poderosas se afundaram ao longo do tempo, esgotando
os seus recursos: a Mesopotâmica (3700-1600 a. C), a Grega (770-30 a. C),
a Romana (500 a. C. a 500 d. C.), a Maia (200-900 d. C), a dos habitantes
da ilha de Páscoa (700-1700 d. C.), entre outras (Broswimmer, 2003).
Contudo, a vida continua a perpetuar-se, sendo continuadamente renovada e transmitida pelas gerações de todos os seres vivos precedentes. Este
processo transporta consigo os milhares de dimensões que a vida contém,
inclusive da própria cultura onde se inscreve, e revela a sua fecundidade e
criatividade, continuando a assegurar a construção e solidificação de memórias familiares, sociais e religiosas. Quanto à família, a transmissão entre
gerações engloba essencialmente a vida humana, os cuidados, os afetos, os
bens, os valores, as crenças, os saberes, as representações e daí por diante
tudo o que se lhe possa associar. Em síntese, a transmissão consiste em situar
cada novo ser humano num mundo, numa cultura e numa sociedade que
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o precederam, como uma totalidade antropológica matricial. Sob diversas
formas, esta figuração da vida, simultaneamente histórica, material e cultural,
representa este pedestal de humanidade em que assenta todo o exercício de
transmissão, na medida em que consiste, antes de tudo, numa atividade
humana e cultural (Lévi-Strauss, 1982; Elias, 1973).
Não sendo, hoje, novidade para ninguém afirmar que existe uma
intrincada relação entre a natureza e a cultura, toda a prática e viver humano
englobam tanto o natural como o cultural e o social. A transmissão, como
prática humana intergeracional, não escapa a estas determinações, bem como
toda e qualquer atividade humana, onde se inscreve também a dimensão
religiosa. É, pois, possível observar a expressão duma dinâmica de continuidade da humanidade na sua própria vida e devir, pesem embora as grandes
mutações e metamorfoses em curso. O que se procura transmitir e assegurar é a vida, acima de tudo, na sua prossecução em termos de identidade
humana e social, contra toda a espécie de morte. Assim sendo, a força da
transmissão implica o colocar em trajeto no contínuo das gerações, através
dos conhecimentos construídos, guardados, modificados, reinterpretados ou
inovados, os procedimentos, os valores, as narrativas históricas, os mitos, os
sistemas simbólicos, os modos de vida, as experiências, as influências sociais,
as próprias mudanças e assim por diante.
No que se refere às relações com o sagrado, muito frequentemente
as práticas familiares e sociais ancestrais reiteram um pacto entre uma
personagem legendária e um território, que asseguram um suplemento
de força, saúde, proteção e mais energia, quando dela se tem necessidade.
Não admira, que no seio da cadeia intergeracional, as pessoas continuem
a dirigir-se a forças sagradas de caráter familiar, qual semelhança com os
penates do tempo dos Romanos. Alguns extratos de entrevistas realizadas
atestam estas asserções.
Não sou muito de ir à igreja. Mas não falto à peregrinação anual ao S. Bentinho
da Porta Aberta, para lhe agradecer a ajuda e voltar a pedir proteção para a
saúde, para a família, o emprego e para a vida em geral. Se não vier, parece que
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CRENÇAS E PROMESSAS NAS TRAVESSIAS DA VIDA
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a vida já não corre tão bem. Desde muito novo que me habituei a acompanhar
os meus pais nestas cerimónias e quero continuar a fazê-lo (H., 47 anos, 9.º
ano, funcionário público, casado).
Não vou à missa todos os domingos ou coisa assim. Mas venho sempre à
festa de Nossa Senhora das Mercês para lhe agradecer a sua proteção e pedir
de novo a sua ajuda para a minha vida e a da minha família. Aprendi estas
coisas com os meus pais e os meus avós e mesmo agora, que já não resido na
freguesia, continuo a vir aqui todos os anos (M., 42 anos, 6.º ano, empregada
no comércio, casada).
Na minha família, antes de ir para França, já se ia a Fátima. Mas como o
dinheiro era pouco, eu só vim duas vezes. Íamos mais ao Senhor do Monte,
uma tradição que já vinha dos meus avós. Agora, quando venho a Portugal,
procuro ir aos dois lados, para agradecer a proteção recebida durante o ano,
sobretudo, para a saúde, para os meus filhos e o trabalho e pedir nova ajuda,
coragem e fé para continuar. Assim, sinto-me mais protegida com a minha
família (M., 64 anos, 4.ª classe, empregada doméstica, casada, e/i/migrante).
Nestes como noutros casos estudados, o desejo de assegurar uma continuidade herdada dos antepassados, visando afastar ou fazer desaparecer o mal,
é muito forte. Os devotos, à semelhança dos seus progenitores, dirigem-se
aos mesmos entes sagrados, frequentam os mesmos lugares, esperando uma
interferência eficaz do sobrenatural, associada a uma preservação e suporte
moral, coragem, confiança, estabilização, cura duma doença ou melhoria
da saúde, em suma, uma vida sem problemas de maior. A peregrinação,
organizada exteriormente ou por iniciativa própria, e a visita aos locais
sagrados familiares, para além de assegurarem uma continuidade na memória
genealógica, afirmam também a sua vocação terapêutica, quer curativa quer
preventiva, e um recurso de proteção e confiança para a vida quotidiana.
Analogamente, estas visitas, podendo não obedecer a datas precisas,
tendem, porém, a inscrever-se em dimensões temporais e espaciais, correlaDebates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 335-363, ago./dez. 2019
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cionadas com calendários litúrgicos e festividades que convocam anualmente
muitos dos habituais frequentadores destes espaços sagrados. Acontece, assim,
com as peregrinações a Fátima durante os dias 13 de maio a 13 de outubro,
mas também com as festividades e cultos locais, na sequência de tradições
religiosas e sociais. Tal não impede que todos guardem simultaneamente a
devoção e a crença nas potencialidades dos santos e de Nossa Senhora das
localidades que lhes são mais próximas e familiares, práticas em que foram
precocemente socializados.
Gosto muito de ir a Fátima. Mas, quando vou a Portugal, também vou sempre
à Senhora da Agonia, o que já fazia com os meus pais e irmãos, para agradecer
as graças recebidas e pedir proteção para a vida e para os meus filhos (H., 64
anos, 4.ª classe, mecânico, casado, e/i/migrante).
Desde muito nova que me habituei a ir com os meus pais e irmãos ao santuário
do Senhor Jesus do Bombarral de quem sou muito devota. Nunca lhe pedi
nada que não mo concedesse. Quando tive um filho bastante doente, fiz uma
promessa que cumpri escrupulosamente. Cada vez que venho aqui, sinto-me
bem e saio daqui com outras forças. Os meus filhos também nos acompanham,
sobretudo, por ocasião dos círios. Pelo menos transmitimos-lhes o que aprendemos com os nossos pais… (M., 49 anos, 4.ª classe, comerciante, casada).
Não sou praticante regular, mas tenho fé… Sou muito devota de Nossa Senhora
do Sameiro e de Santo António, que é muito venerado na nossa terra, o que já
aprendi com a minha família. Nunca lhes pedi nada que não fosse alcançado
(M., 38 anos, 9.º ano, funcionária pública, casada).
Compreende-se, deste modo, que tal santo, tal imagem, tal ícone, tal
Nossa Senhora são protetores em que acreditam aqueles que vivem na sua
área geográfica de proteção e imunidade. Há forças sagradas protetoras de
entre as quais a memória coletiva seleciona apenas as que mais lhe convém,
dado que, ao longo do tempo e das gerações, se têm mostrado mais eficientes
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e familiares. Se, em qualquer destas situações, a crença e a devoção dos fiéis
podem ultrapassar fronteiras de proximidade, como acontece grandemente
com Fátima em Portugal e Lourdes em França, é a este nível que elas se
afiguram mais alicerçadas em socializações familiares anteriores.
Em termos familiares votivos, se as visitas ou peregrinações a espaços
mais emblemáticos, ou a locais mais próximos, podem revestir-se igualmente
de uma dimensão festiva, nem por isso deixa de se afirmar a sua vocação
protetora e terapêutica, extensiva a outros imponderáveis da vida. Em
todo o caso, segundo a(o)s nossa(o)s interlocutoras/es, as visitas aos locais
sagrados mais familiares e o recurso ao religioso de quem se espera obter
graças afiguram-se indiscutíveis.
Na esteira de Gauchet (1998), podemos dizer que o cerne deste tipo de
comportamento religioso é mais o da procura de respostas para as vicissitudes
da vida do que da religião, enquanto orientação para a vida, em sentido mais
amplo. No âmago deste processo de transmissão, em termos religiosos, está
o modo como as diferentes gerações se apropriam destes recursos, sendo
que as mais jovens, embora menos praticantes, nem por isso deixam de se
inscrever numa continuidade genealógica, logo que se trate de promessas
ou pedidos às forças sobrenaturais.
Procedimentos desta índole manifestaram-se identicamente nas três
regiões de estudo. Mas vale a pena referir que foi na região parisiense que
se denotaram mais inovações, em termos devocionais. Se Nossa Senhora
de Fátima, Santo António e outros santos locais portugueses continuam
a ser objeto de devoção, culto e súplica, também aparecem novas figuras
sagradas. No âmbito do catolicismo, o destaque vai para Nossa Senhora de
Lourdes e para Santa Teresinha do Menino Jesus, mais relacionadas com a
cultura francesa. Fora deste quadro, mercê de um processo de aculturação
de proximidade decorrente de novas relações interpessoais, importa relevar
um novo culto em torno do busto de Allan Kardec, fundador do espiritismo,
sepultado no cemitério do Père-Lachaise, em Paris. Este lugar de inumação
tornou-se objeto de um culto de índole popular, à margem de qualquer
intervenção da hierarquia religiosa, cuja devoção se ordena, em primeiro
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lugar, sobre a dimensão “milagrosa” inerente a este espaço, a que se junta,
depois, uma experiência peregrina (Aubrée, 2000).
Neste local, é frequente ouvir falar, ou ler nas mensagens deixadas
junto do busto do defunto, das experiências dos dons recebidos por sua
intercessão. São essencialmente apreendidas como modo de encontro,
fundamentado desde as primeiras visitas, uma vez que se depreende que
as graças solicitadas foram atendidas. Pode não se tratar de um milagre,
como aliás poderá acontecer com outros entes sobrenaturais. Só que, para
estes crentes, há aqui precisamente o assumir de uma dimensão da ordem
do extraordinário que, concebida como tal, produz os seus efeitos. O que
está aqui em questão é um certo tipo de adesão da ordem da crença, que
assenta, em primeiro lugar, numa lógica pragmática, ou seja, na dimensão
e eficácia da potência da entidade invocada.
Entre os portugueses a viver na região parisiense, não sendo muitos
a aderir a este culto e rituais, encontrámos alguns que aderem a este fenômeno. As pessoas com quem falámos a este propósito, podendo até ignorar
a doutrina espiritista, nem por isso acreditam menos na potência deste
ente sagrado. As experiências que lhes vão sendo relatadas pela sua nova
envolvência social despertam nelas não apenas curiosidade, mas vontade
de se dirigirem a este local e praticarem os respetivos rituais, esperando,
deste modo, alcançar os benefícios que procuram. Denota-se, todavia, uma
tendência para agirem de modo sincrético: esta nova descoberta e adesão
não faz com que abandonem os anteriores entes sobrenaturais devocionais
e protetores, como podemos constatar nas palavras das nossas entrevistadas:
Não costumo ir regularmente à igreja ou à missa aos domingos. Vou quando
sinto necessidade. Mas na véspera dos exames na universidade, eu ou a minha
mãe vamos pôr uma vela a arder na basílica de Nossa Senhora de Fátima em
Paris XIX e deixar também uma prece junto do busto de Allan Kardec no
cemitério do Père-Lachaise. É verdade que estudo e trabalho bastante. Nunca
reprovei em nenhum exame. Mas assim sinto-me mais segura e protegida (M.,
21 anos, estudante universitária em Paris, solteira).
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Na nossa vida já vivemos situações muito difíceis que não têm só a ver com
doenças. Desde pequena que, na minha família, sem ser muito religiosa,
se faziam promessas a Nossa Senhora, a S. Brás e a Santo António. Aqui,
quando sinto necessidade, continuo a fazê-lo. Mas também aprendi com
a minha patroa e algumas amigas a recorrer a Allan Kardec. Quando sinto
que alguma coisa se torna mais complicada, também vou ao cemitério do
Père-Lachaise, para pedir a sua ajuda e estou certa que me tem valido (M.,
63 anos, 4.ª classe, porteira, casada).
O que podemos dizer com estes e outros dados é que estamos perante
processos de aculturação religiosa sincrética de ambas as gerações em presença,
em que elementos da cultura religiosa anterior, sem se anularem, se articulam
com outros da nova cultura, procurando objetivos práticos e comuns. O
que essencialmente se procura, por estes diferentes meios, é a eficácia da
realização do conteúdo implorado, quer seja objeto de promessa quer apenas
de súplica. Nos casos estudados as promessas inscrevem-se essencialmente no
quadro de uma transmissão familiar votiva, fazendo apelo ao dom e contra
dom, ao passo que a súplica não implicando, a posteriori, a entrega de uma
dádiva tem mais a ver com novas entidades sacrais, como aparece claramente
na relação com Kardec. Como o faz notar Menezes (2004), a relação de
gratuidade numa e noutra situação, configura significados distintos com os
entes sagrados em questão: o pedido implica agradecimento e a promessa
pagamento.
QUESTÃO RELIGIOSA, QUESTÃO VOTIVA
NAS SOCIEDADES HODIERNAS
Embora a religião tenha sido uma matriz social, política e cultural e
uma força civilizadora do ocidente, com o avançar da modernidade laica e
racional, foi perdendo influência social, tendendo a ficar mais confinada a
certas dimensões culturais da sociedade e da vida privada dos indivíduos.
Neste processo, foi deixando de ser uma religião de massas, assim como
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fator modelar das consciências e dos comportamentos sociais. Assim sendo,
as designadas teorias da “secularização” (pensamento anglo-saxónico) e da
“laicização” (pensamento francês), falando de sociedades secularizadas ou
laicizadas, colocam a tónica num muito menor impacto da religião nas
sociedades modernas (Martin, 1969; Certeau; Domenach, 1974). Estas asserções dão-nos conta de um jogo de soma nula: quanto mais a modernidade
avança, menos o impacto da religião se faz sentir, nas várias dimensões da
vida privada, pública e social. Gauchet (1985) fala mesmo de uma modernidade “desencantada”.
Não obstante, por volta dos anos 1970, numa situação de acentuada
crise social e económica, assiste-se à reemergência do religioso, avançando de
modo manifesto novas crenças e práticas rituais mais consentâneas com os
valores da modernidade, em princípio governada pela ciência e pela tecnologia, ao mesmo tempo que a religião islâmica e o budismo alcançam novo
vigor. Há, ainda, um impulso extraordinário de espiritualidades de vária
índole, muito frequentemente à margem da religião institucional, e de uma
religião de cariz emocional, cujo paradigma pode ser colhido na proliferação
das novas religiões, nos movimentos carismáticos ou similares, inclusive no
seio da Igreja Católica, em busca de mais bem-estar do corpo e da mente.
Para explicitar, teoricamente, o alcance de tais fatos, vale a pena evocar
a definição de Durkheim (1960, p. 65) segundo a qual “Uma religião é um
sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é,
separadas, interditas, crenças e práticas que unem numa mesma comunidade
moral, chamada Igreja, todos os que aí aderem”. Esta definição põe em
destaque dois critérios complementares. O fenômeno religioso é à partida
apreendido a partir das noções de sagrado e de profano que se opõem
de maneira irredutível, designando dois mundos incomensuravelmente
separados: as coisas sagradas são as que os interditos protegem e isolam;
as coisas profanas são aquelas a que não se aplicam estes interditos e que
devem permanecer distantes das primeiras. O sagrado é, por conseguinte,
o que é inacessível ao profano.
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Este esforço reflexivo conduz-nos a outra oposição do autor entre o
“sagrado transcendente” e o “sagrado imanente”. Trata-se no primeiro caso
de algo que é exterior e se eleva acima da sociedade, e no segundo o que é
forjado por si própria em seu favor. Para ilustrar este último ponto, considera que nas sociedades modernas, a criação de grandes ideais coletivos,
sobretudo, em épocas revolucionárias, traduz uma atitude da sociedade para
erigir em “Deus” ou criar deuses que vêm a ser transformados pela opinião
pública em coisas sagradas.
Fenômenos desta natureza não são menos comuns nas sociedades
hipermodernas produtoras que são de muitas formas de “sagrado imanente”,
como tem vindo a acontecer, por exemplo, com a busca da saúde perfeita,
do bem-estar, da riqueza ou do sucesso. Só que nem sempre as coisas correm
de feição, designadamente para os grupos de condição social modesta.
Por outro lado, com novas configurações do religioso, como se tem
vindo a observar, vale a pena destacar o fato dos indivíduos se permitirem
forjar os seus próprios sistemas de crença, alguns fora das referências de um
corpo de crenças institucionais. Porém, não deixam de considerar Deus e
os entes sagrados das suas devoções como “uma força superior” que pode
vir em seu auxílio.
Não menos importante é o fenômeno do que podemos designar de
“peregrinações terapêuticas”, cujos casos paradigmáticos poderão ser recolhidos, por exemplo, em Lourdes (França), Sainte Anne de Beaupré (Canadá),
Senhora da Aparecida (Brasil), Virgem Negra (Polónia), ou em Fátima,
(Portugal) (Leandro, 2001). Em várias circunstâncias, designadamente de
doenças mais ou menos graves, constata-se que o recurso ao santo protetor
se torna mesmo um meio para as gerir, em busca da cura almejada.
Este conjunto de elementos, vindo a revelar novas formas de relacionamento com os entes sagrados e o sagrado em geral, levaram vários
autores e estudiosos a falarem do “regresso do religioso”, o que exige algumas
precauções, uma vez que estes novos movimentos religiosos não são uma
reprodução pura e simples do religioso anterior (Hervieu-Léger, 1999). Em
contrapartida, quando têm vindo a surgir vários tipos de crise, as incertezas
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quanto ao futuro se intensificam e a pressão para a mudança é intensa, mais,
as crenças proliferam, diversificando-se e multiplicando-se indefinidamente
(Vilaça, 2006). Por sua vez, os locais votivos de peregrinação ou de romarias,
onde se destacam santos ou imagens de Nossa Senhora, a quem se atribuem
poderes milagrosos, continuam em alta.
Grosso modo, trata-se de uma busca positiva, uma preocupação de
harmonia que Lambert (1985) define como uma “positivização”, ou seja,
um processo dialético de manutenção e melhoria, por oposição ao que pode
ser a degradação, quer se trate da saúde, quer da felicidade e do bem-estar.
Incansavelmente, embora em circunstâncias diferentes, os humanos sempre
se dotaram de meios para conservar este equilíbrio, no decorrer dos tempos.
E se a ciência e a racionalidade são mais notórias nos nossos dias, se a causalidade, a explicação dos fatos sociais pela ciência entraram diretamente em
concorrência com as ideologias religiosas, desqualificando a intervenção
divina, também não têm podido resolver tudo, abranger tudo, designadamente o espaço do incalculável, do imprevisível e do acaso.
PROLONGAMENTO DOS SÍMBOLOS VOTIVOS
A água, o círio, a imagem, a medalha, o terço, ou outro objeto que
se possa levar dos locais de devoção e de cumprimento de promessas, são
imbuídos de uma alquimia que se acredita poder prolongar e atualizar o poder
e ação que irradia destes locais, através da veneração do ente sobrenatural,
cujo símbolo pode ser colocado em espaços muito peculiares, normalmente
de grande visibilidade, como aliás os antepassados já o poderiam ter feito.
Trata-se de uma praesentia, isto é, uma presença física do sagrado, que
protege e salva dos perigos que possam espreitar daqui ou dali. Dá-se, assim,
expressão a um habitus, que revela e assegura uma devoção quotidiana,
intensamente renovada para lá dos locais e momentos excecionais de súplica
e de assunção de compromissos.
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Neste sentido, pelo menos simbolicamente, como nos disseram alguns
dos nossos interlocutores, ainda com maior ênfase em contexto migratório,
procura-se asseverar uma proteção atemporal e desterritorializada, pois
se acredita nela na vida do dia-a-dia. Em muitas casas dos portugueses,
em França e na Alemanha, de mistura com alguns símbolos nacionais, as
imagens de Nossa Senhora de Fátima e do(a) santo(a) protetor(a) da aldeia
são colocados em espaços bem visíveis. Porém, nos momentos fortes há
necessidade de reafirmar a fé e voltar a praticar ritos de intercessão e de
reconhecimento. As idas a Fátima dos migrantes portugueses nos períodos
de férias, dentro ou fora das peregrinações organizadas, são paradigmáticas
a este propósito. Colocar um ramo de flores, uma vela ou outro objeto
de cera, uma mensagem, andar de joelhos, entregar o valor monetário da
promessa ou outra forma de dádiva, trazer uma medalha ou outro ícone
sagrado, constitui, inevitavelmente, uma demonstração da fé depositada no
ente sagrado da sua devoção e na sua capacidade de intervenção.
Em termos de crença, essa prática possibilita também aos outros
reafirmar fundamentos suplementares aos seus. Aqui se agradece e aqui se
volta a implorar proteção para os males do corpo e da vida, em geral, ora
cumprindo promessas e agradecendo, ora voltando a renová-las, designadamente quando não são consequência de situações difíceis, mas se relacionam
com o percurso da existência, como nos revelam algumas/alguns da(o)s
nossa(o)s entrevistada(o)s.
Já fiz algumas promessas, em situações de doença, a Nossa Senhora de Fátima
e a Nossa Senhora de Lourdes. Mas foi de Nossa Senhora de Lourdes que
obtive as graças que lhe pedi e que na altura bem precisava. De Fátima, pela
minha experiência e da minha família, nunca recebi nada de extraordinário.
Talvez por isso, sinta que é mais uma devoção que me leva quando lá vou
a pedir a proteção de Nossa Senhora para a vida, mas sem prometer isto ou
aquilo. Claro que dou uma esmola ou ponho uma vela por cada um dos
meus filhos, pelo grupo de jovens com quem trabalho e assim…, pedindo a
Nossa Senhora que os proteja, mas só por devoção. Depois até parece que a
vida corre melhor (M., 66 anos, 4.ª classe, aposentada, casada, imigrante).
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Maria Engrácia Leandro, José Pinto
De vez em quando gosto de ir a Fátima. Só fui uma vez para cumprir uma
promessa que a minha mãe tinha feito por mim, quando fazia o serviço militar
em Moçambique. Quando lá vou sinto-me bem e parece que venho de lá
com mais força para a vida (H., 67 anos, 4.ª classe, operário, aposentado,
casado, imigrante).
Nas minhas orações também faço menção a Deus e a Nossa Senhora, das
minhas preocupações e do que gostava que concedessem a mim e à minha
família. Então, quando a doença aparece, ainda o faço com mais fé. Chego
mesmo a ir a Fátima e ao Bom Jesus do Bombarral, pois são lugares onde
sinto a sua intercessão de maneira diferente (H., 54 anos, 9.º ano, funcionário
público, casado).
Trata-se, nestes casos e noutros semelhantes, não tanto de promessas,
mas de atos antecipadores, sob a forma de súplica, comprometendo também
as forças sagradas a estarem permanentemente atuantes no decorrer das
circunstâncias da vida quotidiana. Podemos mesmo dizer que os rituais de
súplica, os ritos peregrinos, a veneração das relíquias, o uso de medalhas
ou outros símbolos sagrados, não sendo uniformes, tendem a variar e a
adaptar-se às circunstâncias.
ATOS VOTIVOS E EXPERIÊNCIA PEREGRINA
A experiência peregrina, contendo a noção de encontro talvez habitual e recorrente, que pode ou não ter lugar em função de promessas,
também pode incluir outras modalidades. Basta invocar a (re)emergência
das peregrinações ou simplesmente caminhadas a pé a locais reconhecidos
de culto, para implorar, agradecer ou, simplesmente, para que aqueles que
as praticam se sintam bem consigo mesmos. Importa, porém, dizer que,
muito frequentemente, uma trajetória desta natureza, podendo ou não incluir
promessas, pode começar por um movimento interior surgido em conversa
com alguém, ou após a obtenção de uma graça sem que antes tenha dado
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azo a compromissos concretos, como são os atos de promessa, normalmente
em correlação com uma presença sagrada, asseverada neste ou naquele local,
e com uma tradição de experiências peregrinas.
Compreende-se, aliás, que as caminhadas a locais de peregrinação,
podendo ser apenas alicerçadas em buscas de mais saúde e bem-estar face
ao aumento do stresse e outras “doenças da civilização”, tenham vindo a
(re)ganhar novo fôlego (Leandro, M.; Leandro, A., 2015). Acontece, contudo,
que, quando o pedido ou desejo são alcançados, o crente agraciado tende
a tornar-se mais firmemente consciente da eficácia do ente sobrenatural e
tem mais probabilidades de ir construindo um habitus de crença, devoção
e experiência peregrina votiva, ainda que possa ser apenas para se sentir
melhor consigo mesmo e com a vida.
Importa sublinhar que, na lógica de uma maior individualidade da
própria relação com as forças sagradas, muito frequentemente, nas sociabilidades peregrinas, não há propriamente uma comunidade que seja percetível
e com a qual os peregrinos se sintam comprometidos. Há, quando muito,
um ajuntamento de pessoas que mudam de uma vez para a outra, tendentes
a partilharem experiências, que podem vir a pesar na elaboração das próprias
crenças e nas dos outros, com os quais se sente formar uma unidade pontual.
Nestes encontros há a procura da prova e a manifestação da realização da
prova, o que favorece a crença no ente sobrenatural que concedeu o favor
solicitado.
Por outro lado, pelo menos no contexto ocidental da atualidade, a
procura de provas sagradas e da sua eficácia traduz-se numa crença na existência da clemência de Deus, que motiva os fiéis através da mediação do
seu santo protetor. É esta crença que se procura solidificar. Os santos, os
entes sobrenaturais não têm poder por si próprios, mas porque participam
de algo divino. Por detrás de um ente intercessor está Deus, embora para
os que fazem as promessas a graça emane daquele(a) a quem se dirigem.
Por sua vez, para quem intercede, designadamente em situação de
absoluta necessidade, seja qual for a sua índole, os sacrifícios, as ofertas,
os dons decorrentes das promessas, longe de subtraírem todas as misérias,
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pelo menos no imediato, podem juntar eficácia à oração ou à promessa,
o que parece assumir ainda outro significado, quando realizado em locais
de peregrinação. O seu valor depende não da pura entrega dos dons ou de
atitudes místicas, mas da reserva digna de intensidade de elevação do espírito para Deus e outras forças sobrenaturais que estes lugares proporcionam
(Bonnet, 1977).
Olhando mais de perto a realidade, constata-se que a crença na potência
que é tida como potenciadora da graça, do milagre, tende a ser muito
forte, o que motiva ainda mais os crentes a dirigirem-se aos locais onde ela
se encontra, quer para suplicarem, quer para agradecerem, cumprirem a
promessa e voltarem para casa mais confortados. Basta estar atento e reparar
na importância que esses crentes atribuem às imagens, através do olhar e do
toque, até quando nas igrejas os comungantes regressam para os seus lugares.
A importância do toque e do olhar, dirigido e fixado na imagem que é objeto
de súplica ou de agraciamento é aqui grandiloquente. O olhar face a face
concede uma sensação de interlocução quase material (antropomorfismo),
o que explica um fenômeno relacional entre a força sagrada e os que se lhe
dirigem personalizando-se. Por sua vez, o toque coloca diretamente em
movimento a potência da imagem. Através deste gesto, procura-se sobretudo
recolher uma força carregada de positividade. O indivíduo apresenta-se em
situação de busca, mas de dependência e reconhecimento, chegando mesmo
a conferir vida às imagens que venera, como refere Lima (2014, 2015),
relativamente a devoções sui generis perante diferentes imagens de Santa
Rita na igreja do mesmo nome, no Rio de Janeiro.
Do nosso trabalho de observação direta, inclusive junto da sepultura de
Allan Kardec, importa ressaltar, igualmente, o fato da procura do momento,
para que seja possibilitado o toque individual e não haja outras interferências ou cruzamentos, evitando ter de confrontar-se com a possibilidade de
ter de recolher energias estranhas, quiçá nefastas, vindas de outros. Estes
gestos procuram captar energias favoráveis e libertar-se de outras que podem
ser menos benéficas. Há aqui uma espécie de permuta que pode conceder
ao crente uma sensação de libertação e de concessão da graça solicitada.
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As imagens são objeto de substituição/representação dos respetivos entes
sobrenaturais, assegurando continuidade, retransmissão, mudança e, por
conseguinte, um circuito entre sagrado, material, necessidades, recursos,
respostas, dom e contra dom. O indivíduo apresenta-se desprovido de meios,
mas em situação de busca, dependência, reconhecimento e consolação. Por
sua vez, o ente sagrado, também por estes meios, aufere do reconhecimento
assegurado da sua potência.
Compreende-se, então, que as imagens sagradas – qual forma de politeísmo – tornem presente fisicamente a força sagrada agraciada ou venerada,
pelo que o toque nas imagens revele essencialmente duas dimensões deste
culto: por um lado, devoção e espiritualidade e, por outro, capacidade de
daí sair com uma graça, porque se acredita na eficácia intrínseca do poder,
energia, força, fluído magnético ou universal aí contido e nos seus espaços
diretos de intervenção. O fato das pessoas quererem contactar diretamente
os entes sagrados nos seus próprios locais públicos de veneração também
se reveste de alto significado como nos foi revelado pelos nossos interlocutores. Normalmente, não faltam réplicas dos mesmos que os devotos podem
inclusive entronizar na sua própria casa. Só que não parecem assumir aqui
o mesmo significado, pois se acredita que destes locais de origem cultual
coletiva emanam forças diferentes de quaisquer outras, carregadas de positividade, capazes de concederem as graças solicitadas.
PROMESSAS FEITAS, COMPROMISSOS ASSEGURADOS
Importa frisar que, para os nossos interlocutores, a fé, a crença na
potência e a confiança são indispensáveis para que a graça seja obtida e o
milagre aconteça. Daí que o ritual das promessas, desde o momento em
que são formuladas até ao seu cumprimento, não dispense uma fé convicta
e ativa, extensiva às devoções, rotinas anuais ou periódicas, (re)encontros,
compromissos e esperanças renovadas. É o próprio Jesus Cristo que, na
cura da hemorroíssa, afirma: “Minha filha, a tua fé te salvou; vai em paz e
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fica sarada do teu mal” (Mc., 5, 34). Jesus Cristo, não tendo exigido nada
em troca do milagre concedido, insiste na atitude de fé. Não obstante, não
é apenas a fé que salva. Importa igualmente agir e entrar em relação, o que
implica um trabalho de construção da própria crença, capaz de se solidificar
à medida que as provas (os “milagres” alcançados) se vão acumulando. Aliás,
o recurso aos entes sobrenaturais também é um modo de gerir as vicissitudes
que a vida possa conter ou a ajuda que se procura para a melhorar nos mais
variados aspetos.
Numa mesma lógica, se o primeiro passo da promessa inscrita numa
longa tradição antecipa o acontecimento, cumpri-la também se inscreve
num processo de compromisso e gratidão. Entre os nossos entrevistados,
o reconhecimento é geral, ainda que, em alguns casos, se possa instalar a
dúvida acerca da mediação solicitada. Mesmo assim, o reconhecimento
conduz ao agradecimento, levando a um ato de reciprocidade, numa troca
indizível, misturada com respeito e dever moral, podendo haver ou não
receio da punição divina. Na crença dos nossos interlocutores, o mundo
celeste afigura-se muito sensível às dificuldades humanas. Para o agradecer,
observam-se ritos, fazem-se orações, ofertas, caminhadas, na continuidade
do que enforma o processo da súplica e das promessas.
Deus, Nossa Senhora, os santos não nos pedem nada. Somos nós que lhes
pedimos e prometemos ou porque estamos desesperados e não encontramos
outro meio para resolver essas situações ou porque acreditamos nos seus
poderes e na sua bondade. Por isso, se prometemos, temos de cumprir. Nos
casos mais difíceis da minha vida, que foram relacionados com o meu filho,
primeiro por motivos de doença quando ainda era criança e mais tarde
quando estava na Universidade do Minho e tinha dificuldades em acabar o
curso, fiz promessas difíceis de cumprir ao S. Bentinho da Porta Aberta e a
Nossa Senhora do Sameiro. Mas cumpri-as à risca, mesmo com dificuldades
à mistura… (M., 64 anos, 4.ª classe, comerciante, casada).
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Não sou muito de fazer promessas, até porque já acreditei mais nisso. Mas
já fiz promessas, sobretudo, pelos meus filhos. Numas alcancei o que pedi e
noutras nem tanto. Mesmo assim em todas cumpri o que prometi.
Ao que retorquimos: se não tinha a certeza, porque quis cumprir?
Porque tinha dúvidas. E quando assim é, prefiro cumprir com o que prometi,
mesmo não tendo a certeza. Mas não foi por medo que depois de morta a
alma cá viesse, como me ensinavam quando era criancinha na minha família
e na aldeia em que vivia. Cheguei a acreditar nisso. Hoje não. Tenho cabeça
para pensar. Quando morrer acaba-se tudo […]. Mas é assim na minha vida:
quando prometo alguma coisa, mesmo na dúvida, prefiro cumprir (M., 62
anos, 4.ª classe, feirante, casada).
Vou pouco à igreja, embora quando era criança tivesse ido à catequese e feito
as comunhões todas. Continuo a ser crente. Também não sou muito de fazer
promessas e quando faço, é mais em função da família. Quando a minha filha
tinha 9 anos, teve uma doença com que os médicos tiveram muita dificuldade
em acertar. Então fiz uma promessa à Senhora do Sameiro, que me ouviu. A
seguir cumpri rigorosamente o que prometi. De resto, na vida de todos os dias
trabalho e procuro ser honesta com toda a gente e não sou de fazer promessas
por isto ou por aquilo (M., 43 anos, 9.º ano, feirante, casada).
Nunca fui muito de fazer promessas. Apenas quando estive no Ultramar fiz
uma promessa a Nossa Senhora de Fátima. Cumpri o que prometi e o que a
minha mãe prometeu por mim. Prometemos, pagámos porque assumimos um
compromisso. E só por isso e mais nada. Mas lembro-me da minha mãe nos
dizer quando se sentia doente para não esquecermos de pagar uma promessa
de cinco escudos que ela devia em tal lado. Porque nos pedia isto não sei.
Será que tinha medo do que lhe poderia acontecer depois da morte? Mas foi
ainda ela que os pagou (H., 66 anos, 4.ª classe, reformado, casado, imigrante).
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Destes extratos das entrevistas destacam-se três dimensões essenciais. A
primeira tem a ver com a assunção dos compromissos. Efetivamente, é dada
uma importância primordial à realização do prometido, mesmo quando
a dúvida possa permanecer acerca da intervenção do ente sobrenatural.
Trata-se de um ato de confiança recíproca, já que a promessa compromete
mais do que descompromete. As relações com as instâncias sobrenaturais
– divindades, santos, antepassados, génios… –, não são passíveis de medir
e pesar como se de medidas e cálculos humanos simplesmente materiais se
tratasse. É preciso ser coerente naquilo em que se acredita, com a crença
no ente sobrenatural, com o que se solicita, promete e realiza. A segunda
dimensão tem a ver com o fato de as promessas serem mais feitas em função
dos familiares do que dos interesses individuais, fazendo notar que a família
continua a ser uma entidade gregária, no amplo sentido do termo. A terceira
dimensão tem em conta um processo de continuidade/transformação em
curso, sob o ponto de vista das mentalidades acerca dos atos votivos e do
seu alcance. De algum modo, nas entrelinhas, aparece uma tendência das
mulheres e dos homens modernos e religiosos, em que os fiéis se dividem
entre duas posições: mais ou menos praticantes, continuam a acreditar na
intervenção divina, mas continuam mulheres e homens do seu tempo, mais
abertos às racionalidades das sociedades hodiernas e às suas influências.
Enfim, para explicitar o alcance de algumas mudanças em curso quanto
a alguns significados intrínsecos das promessas, mormente no atinente ao
seu caráter de negociação/gratuidade, vale a pena acrescentar, ainda, dois
extratos das entrevistas realizadas.
Na minha família já vivi situações muito difíceis, mas as piores foram de
doenças. Numa altura em que o meu marido estava gravemente doente fiz
uma promessa avultada, em dinheiro, a Nossa Senhora de Fátima. Só que as
dificuldades foram-se acumulando e não tinha condições para a pagar. Falei
com o Senhor Padre que me disse que se prometi tinha de cumprir. Ainda
bem que me aconselhou a pagar por fases. Disse-me ainda: Oh Senhora X
quando tiver problemas não negoceie com Deus que não é comerciante…
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Depois paguei a promessa que tinha feito, mas não voltei a fazer promessas.
Quando sinto necessidade de alguma coisa maior peço com confiança e não
sinto menos os resultados (M., 63 anos, 4.ª classe, doméstica, casada).
Na minha família havia o hábito de fazer promessas, o que eu também fiz
durante um certo tempo. Já há muito que deixei de o fazer. Em Braga, isso
continua a ser muito comum. A própria Igreja alimenta este negócio, pois
daí retira benefícios. Ora, se Deus é omnisciente, como aprendi na catequese,
conhece bem o que necessitamos sem que haja necessidade de negociatas:
se me deres isto ou dou-te aquilo. O mesmo acontece com Nossa Senhora
e os santos. Só que as pessoas ainda estão muito arreigadas a estas tradições
que começam logo a ser aprendidas na família… (M., 58 anos, 12.º ano,
secretária, viúva).
Destas considerações vale a pena relevar dois aspetos fundamentais. No
primeiro caso denota-se uma mudança de atitude de promessa para outra
de súplica, através da oração. Em ambas, na relação com outrem de índole
sagrada, se procura obter um efeito. Só que na atitude de súplica, a eficácia
consiste exatamente no fato de ter sido atendido o pedido, desprovido de
pagamento de qualquer contrapartida, como o próprio sacerdote o tinha
explicitado. Por sua vez, no segundo caso, sem qualquer forma de substituição, sobressai o descrédito das práticas votivas tradicionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sejam quais forem as interpretações que se possam fazer do fenômeno
das promessas e das suas (i)lógicas, o que podemos dizer, com base nos dados
recolhidos, sem qualquer pretensão de extrapolação, é que as promessas às
divindades, nas sociedades hodiernas, tratando do comum e do extraordinário,
continuam a ser um recurso e um reservatório de forças, mobilizáveis logo
que as vicissitudes da vida tal impliquem. Contudo, importa ter presente
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que se denota uma maior tendência para se ter mais em conta elementos
de racionalização moderna.
Neste trabalho, relevam-se duas dimensões essenciais. A primeira prendese com os fenômenos da socialização e da transmissão familiar, fazendo com
que as gerações mais novas, no atinente às promessas, tenham tendência
a invocar a intervenção dos mesmos entes sobrenaturais e a frequentar os
mesmos espaços de devoção, culto e peregrinação, logo que se confrontem
com vicissitudes da vida mais complicadas. Estas forças sagradas tendem,
assim, a ser erigidas em recursos familiares terapêuticos ou protetores de
grande alcance, inscritos numa linha genealógica, o que, em termos comparativos, se revelou comum nas regiões em estudo. Porém, é na região parisiense
que se denotam mais inovações, verificando-se alguma tendência para um
certo sincretismo votivo ou de súplica.
A segunda vertente relaciona-se com o fato das permanências e mudanças
em curso darem azo a novas interpretações de sentido do religioso na vida
quotidiana e a novos tipos de práticas religiosas mais fragmentadas, sem
no entanto, abolirem crenças e práticas tradicionais, muito concretamente
quanto às promessas e súplicas de interceção sobrenatural. Deus e outros
entes sagrados continuam presentes na vida daqueles que acreditam nas
virtudes das suas intervenções e nas suas graças, designadamente quando
outros meios materiais se afiguram incertos. Recorrer a Deus, a Nossa
Senhora, ao santo ou outra entidade sobrenatural, devido a uma doença ou
a outro infortúnio da vida, mesmo sem anular outras buscas, pode tornar-se
um recurso de gestão conjunta.
Em síntese, pesem embora mudanças em curso, com as promessas
buscam-se respostas concretas e céleres. Numa época em que se investe
sobremaneira na busca de felicidade e de bem-estar materiais, num éden
terreno e de salvação aqui e agora, as pessoas têm muito mais dificuldade em
conviver com males de qualquer ordem e ainda mais quando se relacionam
com a doença, o desemprego, ou outros infortúnios. Quando assim acontece,
são capazes de mobilizar todos os meios ao seu alcance para modificarem a
situação, inclusive por meio do recurso às forças transcendentais.
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Recebido em: 23/04/2019
Aprovado em: 20/01/2020
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 335-363, ago./dez. 2019
ENSAIO FOTOGRÁFICO
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.99584
KARMA PUJA
Mayane Haushahn Bueno1
Resumo: O diálogo entre a cultura e o evangelho sempre foi um desafio para
os processos de evangelização iniciados no âmbito da Igreja Católica. Na Índia,
particularmente em Déli, esse desafio ainda persiste, visto que desde a colonização
pelos britânicos e muito antes com o presumível apostolado de São Tomé no sul da
Índia a valorização das religiões existentes no território e a tentativa de inculturação
do cristianismo na realidade desses povos impactou culturalmente e socialmente
ambos os lados. Daí a necessidade de um cristianismo mais próximo da realidade
cultural. Meu argumento é que se a cultura é uma dimensão da existência humana
não há processo de evangelização que desconsidere de forma total a religiosidade
local em troca da “inculturação” efetiva da fé católica. Minha proposição é de que
tanto a religião quanto a cultura, vista no sentido popular como unidades estáveis e
monolíticas, não são definições universais, pois dialogam com as questões práticas
de processos históricos, políticos e discursivos de seu contexto.
Palavras- chave: Índia; Evangelização; Cultura; Inculturação.
Abstract: The dialogue between culture and the gospel has always been a challenge
to the evangelization processes begun within the Catholic Church. In India,
particularly in Delhi, this challenge still persists, since the colonization of India
by the British and much earlier with the presumed apostolate of Sao Tome in
southern India, the valorization of the religions existing in the territory and the
attempt to inculture Christianity in India. The reality of these peoples has culturally
and socially impacted both sides. Hence the need for a Christianity closer to the
cultural reality of these peoples. My argument is that if culture is a dimension
of human existence there is no process of evangelization that totally disregards
local religiosity in exchange for the effective “inculturation” of the Catholic faith.
My proposition is that both religion and culture viewed in the popular sense as
stable and monolithic units are not universal definitions, as they dialogue with
the practical issues of historical, political, and discursive processes of their context.
Keywords: India; Evangelization; Culture; Inculturation.
1
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGAS/UFRGS), Porto Alegre, Brasil. E-mail:
mayanebuenoh@gmail.com.
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Mayane Haushahn Bueno
Em agosto de 2016 fui convidada pelo Padre Vincent, amigo e importante mediador no meu trabalho de campo, para participar do festival
Karma Puja, que aconteceu na escola Católica St. Colombs na cidade de
Nova Déli. Este evento ocorreu no início do meu contato com o catolicismo
indiano em Déli e tudo que eu sabia era que as atividades seriam organizadas
por coletivos de mulheres Advasis (termo hindi utilizado para designar o
nativo indiano, geralmente associado a tribos que compõem o território
indiano) em parceria com a Igreja Católica. Cheguei na escola de manhã
cedo e sem interromper a celebração, que já havia iniciado, me aproximei
para ver de perto o que se passava ali. As mulheres estavam cantando uma
música em pé e quando olhei para o lado me deparei com uma mulher de
joelhos como se estivesse rezando Quando a multidão voltou a sentar-se
vi que estava diante de uma missa. Ouvi “Amém” e minutos depois uma
fila começou a se formar se direcionando para os três padres que estavam
distribuindo a hóstia, um deles era o Padre Vincent. Estava eu a comungar
ao lado de indígenas na cidade de Déli. Que loucura, pensei! Uma mulher
se dirige a mim e diz: Jay-yesu. Não entendi a princípio o que significava,
mesmo assim, arqueei a cabeça dando a entender que havia compreendido,
mas não respondi, pois não sabia o que significava. Quando as mulheres me
notaram ali, se voltaram a mim repetindo Jay-yesu com um sorriso tímido.
E eu ainda não entendendo, comecei a repetir como se quisesse dizer que
entendi. Não fosse a minha curiosidade em saber o que significava aquela
palavra, voltei-me à esposa de um dos convidados que estava sentada do
meu lado que respondeu significar “Glória a Jesus!” – uma expressão em
Hindi utilizada para cumprimentar os católicos. Logo, percebi que estava
presenciando algo muito interessante e curioso, pois esperava encontrar
ali um festival indígena e não elementos católicos dentre as populações
Advasis. Estavam presentes aproximadamente 200 mulheres vestindo sarees2
coloridos distinguindo umas das outras, os cabelos adornados com flores
coloridas; nos braços, muitas pulseiras; os pés descalços dançavam ao ritmo
2
Vestimenta indiana usada pelas mulheres.
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do tambor tocado pelos seminaristas. Três padres, incluindo Vincent, se
aproximaram do palco improvisado, suas batinas brancas e estolas com
padrões indígenas representavam os elementos contrastantes para um Cristianismo, que de primeira mão imaginei existir. Seria a combinação de um
cristianismo indígena, ou de uma religião indígena com elementos cristãos?
Poderia dizer que aquilo era a representação de um sincretismo religioso?
Fotografia 1 – Missa realizada antes da celebração do Karma Puja3
O antropólogo Pierre Sanchis (1994) nos ajuda a pensar no sincretismo
não somente como uma mistura contrária a um sistema “puro”. O que
quero trazer aqui é a discussão de algo que sempre acompanhou os debates
antropológicos, ou seja, o encontro entre culturas heterogêneas formuladas
a partir do dualismo “nós” e o “outro”. A celebração do Karma Puja parece
supor a relação entre sistemas simbólicos-culturais opostos. Por um lado, as
3
Crédito das imagens: Acervo da autora.
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práticas e crenças religiosas missionárias, e por outro, o sistema simbólico e
prático das mulheres Advasis. Aqui, não se trata de identificar que elementos
foram emprestados, copiados e reproduzidos de construções essencialmente
“puras” de Cristianismo e de Sarnaísmo, mas de revelar “o modo pelo qual
as sociedades humanas (sociedades, subsociedades, grupos sociais, culturas,
subculturas) são levadas a entrar num processo de redefinição de sua própria
identidade, quando confrontadas ao sistema simbólico de outra sociedade”
(Sanchis, 1994, p. 7). Um processo que se torna cada vez mais abrangente ao
passo que as relações não se esgotam na relação entre missionários e “nativos”.
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Fotografia 2 – Mulher ajoelhada rezando
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A celebração do festival Karam tree ou Karma Puja acontece durante
a 11ª lua cheia (Purnima), entre os meses de agosto e setembro de acordo
com o calendário Hindu. O festival é celebrado pelas comunidades tribais
dentro dos cultos religiosos do Sarnaismo, religião tribal seguida principalmente pelas populações Advasis dos estados centrais de Jharkhand, Madhya
Pradesh, West Bengal, Orissa e Chhattisgarh. Karam é uma árvore oriunda
da região central indiana e de acordo com a cosmovisão indígena simboliza
Deus e a natureza influenciando de forma positiva a juventude e a fertilidade feminina associada com o tempo da colheita do arroz4. Nas aldeias,
as meninas solteiras vão até a floresta e trazem flores, frutos e galhos da
árvore para serem utilizados como oferendas. As músicas e a dança ao som
do tambor são momentos de oração devotados a Deus com a intenção de
receber suas bênçãos. Na cidade de Nova Déli as mulheres Advasis celebram
o festival em parceria com a Igreja Católica, pois além de seguirem alguns
rituais de sua etnia Oraoun, também seguem o Catolicismo como religião.5
4
5
Disponível em: https://www.turisamaj.org/karma-puja/. Acesso em: 17 out. 2019.
Disponível em: http://www.karmapuja.org/significance-and-rituals.html. Acesso em:
17 out. 2019.
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Fotografia 3 – Início do ritual Karma Puja
O contato das populações Advasis com o Catolicismo se deu a partir dos
missionários jesuítas influenciados pelas ideias de “indigenizar” as comunidades católicas na Índia principalmente a partir do século XVI. A conversão
não foi um processo pacificador, mas impactou de forma significativa a vida
dessas populações.. Esse impacto não se deu somente no âmbito da religião,
articulando-se no campo da cultura e redefinindo as matrizes culturais de onde
emergem, assim, “[é] a reinterpretação que vai permitir uma convivência não
explosiva de universos abstratamente contraditórios” (Sanchis, 1994, p. 7).
Essa reinterpretação do âmbito cultural para o religioso permite que a Igreja
e as próprias mulheres reconfigurem suas lógicas, não somente incorporando
novas práticas, mas as ressignificando através de um processo que é incorporado
como parte da religião Católica. Além disso, outras mudanças significaram
o acesso a bens e serviços como educação, saúde e trabalho, mediado pelas
instituições religiosas que se instalaram nas aldeias (Robinson; Kujur, 2010).
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Fotografia 4 – Mulheres fazendo oferendas para a árvore Karam,
símbolo da fertilidade entre as populações tribais
As palavras “cultura” e “religião” nos são familiares, no entanto, as
usamos em diferentes contextos e com sentidos específicos. Diante da
multiplicidade de contextos, o termo “cultura” é usado, principalmente
para definir as práticas de determinados grupos, proponho redescobrirmos
uma perspectiva teórica que enfatize os sentidos produzidos na relação entre
a Igreja Católica e as mulheres Advasis. Segundo o Padre Joseph, um dos
organizadores do evento,
[...] o festival atua como um espaço para as mulheres, o que lhes permite
compartilhar suas histórias com outras pessoas com a mesma experiência e,
assim, capacitá-las. Além disso, a celebração do festival marca um espaço distinto
para que as mulheres abordem sua liberdade de prática de sua própria cultura.
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A fala do Padre Joseph nos mostra um movimento interessante oriundo
da relação entre religião e cultura, ou seja, por mais que essas duas palavras
apareçam no discurso da igreja como unidades semânticas estáveis e distintas,
na prática, essa unidade se mostra mais relacional do que parece.
É verdade que se Cristo é apenas um entre os muitos salvadores, promover
valores evangélicos de modo secular é um objetivo que se encaixa muito
bem no campo da cultura. O que está em discussão é um método evangelizador que leve a sério o diálogo inter-religioso, mas que seja complacente
com a teologia cristã (Amaladoss, 2000). Na Índia, e no chamado “terceiro
mundo”, Pieris (1988, p. 99) diz que “religião e cultura coincidem inteiramente dentro das sociedades tribais praticamente em qualquer lugar
dentro do Terceiro Mundo. Cultura é a expressão variada da religião”. Essa
tendência evangelizadora de separação da dimensão cultural da religiosa e
vice versa, condena os teólogos indianos, nas palavras de Amaladoss (2000),
a assumirem posturas contrárias à proclamação do evangelho sem considerar
as diferenças reais e observadas por eles; outros de serem indiferentes ao
campo da cultura e preconizarem o evangelho ou o diálogo; e outros ainda
de salientarem tanto a proclamação do evangelho quanto do diálogo além
de inter-relacionar na prática a teologia católica.
Esse diálogo inter-religioso depois do Concílio Vaticano II apareceu
como uma dimensão essencial dos processos de evangelização. No entanto,
a atitude positiva em relação a esse diálogo e a necessidade de tradução do
evangelho para as populações indígenas foi iniciado na esfera da cultura.
Estou partindo aqui do entendimento da religião e da cultura como unidades
estáveis. Com a finalidade de demonstrar a minha crítica a essa visão retomo
a fala do padre Joseph e a tentativa da Igreja Católica de evangelizar, por
meio da cultura, como formas em que essa visão monolítica da cultura e da
religião são desestabilizadas pelas próprias relações impostas no âmbito das
práticas rituais. Quer dizer, se a liberdade concedida às mulheres Advasis
para que celebrem e cultuem o Deus Karam (árvore) em um ritual específico
de sua religião tribal (Sarnaísmo), dentro da Igreja Católica, no meio de
uma missa, essa liberdade é concedida dentro da esfera da cultura e não do
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religioso, visto que, para o catolicismo, o culto a um Deus monoteísta é que
é aceito. Estamos diante de um paradoxo: de um quebra-cabeça6 (doutrina
da Igreja) completo, mas que aceita diferentes peças (práticas rituais das
mulheres) para compô-lo.
Fotografia 5 – Mulheres e o padre Vincent contando as histórias da tribo ao redor da
árvore
6
Agradeço a Luiz Antonio Pereira pela discussão propiciada a partir da metáfora do
“quebra-cabeça”.
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Fotografia 6 – Galhos da árvore (Deus) karam adornada com oferendas
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A minha crítica à separação entre religião e cultura se justapõe à crítica
de Talal Asad (2010) sobre a separação entre religião e política. Essa separação representa uma tentativa de confinamento e de defesa da religião
cristã diante da sociedade moderna. O que Asad parece argumentar é que
na arena dos debates político-ideológicos tanto a política, quanto a cultura
(a partir do meu campo), apareceriam como adereços de uma religião que
se impunha como dotada de uma essência e de uma solidez instransponível.
No entanto, as próprias missões iniciadas pela Igreja provaram serem mais
porosas e orgânicas do que a tradição cristã, logo se “não há uma definição
universal de religião” para Asad (2010, p. 264), na mesma medida posso
dizer que não há uma definição universal de cultura.
Fotografia 7 – Cantos e danças em adoração ao Deus Karam
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O que trago aqui é pensarmos a cultura a partir da ideia de mistura, de
relação e de contato na produção cultural desses outros. Lila Abu-Lughod
(1991) nos diz que se a cultura é uma “ferramenta” de fazer o outro, esse
self é constitutivo das relações em que ele se encontra historicamente e
situacionalmente engajado. Amaladoss (2000) destaca, na mesma direção,
essa dimensão nos processos de evangelização na Índia através do contato
e da “inculturação”.7
A inculturação não é apenas a concretização da Palavra em determinada
cultura, mas sua transformação. O diálogo inter-religioso não é apenas o ato
de compartilhar experiências espirituais, mas um desafio à conversão à Palavra
de Deus. Trabalhar com os pobres não é só aliviar sua pobreza, mas também
esforçar-se para mudar estruturas culturais e morais/espirituais que causam
pobreza e opressão e, assim, promover uma libertação integral (Amaladoss,
2000, p. 24).
7
O uso da palavra “inculturação” se apresenta em alguns contextos muito problemático,
utilizo este conceito de Amaladoss (2000) por fazer referência à especificidade dos
processos de evangelização na Índia.
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Fotografia 8 – Mulheres Advasis dançando ao redor do Deus Karam
A mudança das estruturas culturais e morais aplicam-se também a própria
instituição Católica e não correpondem somente às relações produzidas fora
deste âmbito. Se para o antropólogo Marshal Sahlins (1990) os sistemas de
significação são ordenados de forma histórica através da cultura, podemos
notar que a incorporação de práticas rituais próprias das tribos configura
uma forma diferente de experienciar o catolicismo vivido pelas populações
Advasis. Ainda para Sahlins, isso é possível porque as pessoas repensam
criativamente os significados e agem para alterá-los na própria ação (Cf.
Sahlins, 1990, p. 7). Essas mudanças acontecem numa via de “mão dupla”,
ou seja, tanto a Igreja quanto as mulheres contribuem para essa mudança.
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REFERÊNCIAS
ABU-LUGHOD, Lila. Writing against culture. In: FOX, Richard G. Recapturing Anthropology: Working in the Present. Santa Fé: School of American
Research Press, 1991.
AMALADOSS, Michael. Missão e Inculturação. São Paulo: Edições Loyola,
2000.
ASAD, Talal. A construção da religião como uma categoria antropológica.
Tradução de Eduardo Dullo e Bruno Reinhardt. Cadernos de Campo, São
Paulo, n. 19, p. 263-284, 2010.
PIERIS, Aloysius. An Asian Theology of Liberation. New York: T & T Clark,
1988.
ROBINSON, Rowena; KUJUR, Joseph Marianus (ed.). Margins of Faith:
Dalit and Tribal Christianity in India. New Delhi: Sage Publications India,
2010.
SAHLINS, Marshall. Ilhas de História. Rio de Janeiro: Zahar, 1990.
SANCHIS, Pierre. Pra não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações
do ISER, Rio de Janeiro, ano 13, n. 45, p. 4-11, 1994.
Recebido em: 15/11/2019
Aprovado em: 15/11/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 365-379, ago./dez. 2019
RESENHA
DOI: https://doi.org/10.22456/1982-8136.90753
BRAUNSTEIN, RUTH. PROPHETS AND PATRIOTS: FAITH IN
DEMOCRACY ACROSS THE POLITICAL DIVIDE. OAKLAND,
CA: UNIVERSITY OF CALIFORNIA PRESS, 2017.
Ewerton Reubens Coelho-Costa1
A obra Prophets and Patriots: Faith in Democracy across the Political
Divide, de autoria de Ruth Braunstein, publicada em língua inglesa e ainda
sem tradução brasileira, oferece um estudo detalhado e comparativo da
religião dentro de movimentos sociais e lados opostos do espectro político
nos Estados Unidos.
Ruth Braunstein é doutora e mestre em sociologia pela New York
University, com bacharelado em Serviço Exterior pela Universidade de
Georgetown, onde estudou cultura e política internacional. Atualmente é
professora assistente no Departamento de Sociologia da Universidade de
Connecticut (UConn); membro do corpo docente do Centro de Sociologia
Cultural da Universidade de Yale e membro do corpo docente do projeto
Humildade e Convicção em Vida Pública do Instituto de Humanidades da
UConn. Atuando como socióloga cultural interessada no papel da religião
na vida política americana, suas pesquisas exploram práticas, narrativas e
ideais de ativistas em todo o espectro político.
Braunstein faz parte de uma nova geração de sociólogos que une expertise
em sociologia da religião com outros campos de estudo, como sociologia
cultural e os movimentos sociais, e nessa obra em particular ela ressalta os
meandros que circundam a religião na sociedade e passa, com a ajuda de
análise de outros campos, a observar as proximidades e as distâncias deles
com a religião.
1
Doutorando em Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade
Estadual do Ceará, Brasil (Bolsista Edital Capes/Funcap N.º 88887.190852/2018-00).
E-mail: ewertonreubens@hotmail.com.
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Ewerton Reubens Coelho-Costa
Prophets and Patriots: Faith in Democracy across the Political Divide está
dividido nas seções que se apresentam a seguir: “1 Introduction” (p. 1-27);
“2 Becoming Active Citizens” (p. 28-54); “3 Narratives of Active Citizenship” (p. 55-81); “4 Putting Faith into Action” (p. 82-117); “5 Holding
Government Accountable” (p. 118-151); “6 Styles of Active Citizenship”
(p. 152-178); “7 Conclusion” (p. 179-190); “Appendix: Methodological Notes
Studying and Comparing Citizen Groups Ethnographically” (p. 191-200).
A obra passa a comparar dois grupos específicos da era Obama: os
“Patriots” e os “Interfaith” – termos em inglês para Patriotas e Inter-religiosos –, que existem organizadamente nos Estados Unidos no período que
compreende aos anos de 2010 a 2012.
As duas primeiras seções da obra iniciam com descrições apresentando
como os discursos políticos e religiosos convergiram, em ambos os grupos,
para construir um ideal normativo de cidadania democrática. Braunstein
nomeia o grupo organizador comunitário de “profetas” e o grupo conservador
de “patriotas”, delineando as diferentes teologias políticas de cada grupo.
O Patriots trata-se de um grupo conservador afiliado ao Tea Party
– também conhecido como Partido do Chá (Coelho, 2012) –, é um movimento social e político dos Estados Unidos oriundo da ala radical do Partido
Republicano dos Estados Unidos que se apresenta como um mix de conservadorismo (Lima, 2010), populismo (Halloran, 2010), ultradireitismo (Guedes,
2010) e libertarianismo (Ekins, 2011). Tem como missão atrair, educar,
organizar e mobilizar concidadãos para assegurar políticas públicas consistentes partindo de três valores fundamentais: liberdade pessoal, liberdade
econômica e futuro sem dívidas (TEA PARTY PATRIOTS, [201-]) – isso
implica diretamente responsabilidade fiscal, governo constitucionalmente
limitado e mercados livres. O Patriots foi organizado a partir do subúrbio
de uma cidade mediana americana, tendo como membros principalmente
residentes brancos; trata de adeptos de diversidade religiosa.
Enquanto o Interfaith, uma coalizão progressista comunitária, é apresentado como um grupo comunitário de organização religiosa localizado em
uma grande cidade e afiliado à Rede Nacional PICO (Pacific Institute for
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Community Organization, atualmente renomeando a si próprio como Faith
in Action) (FAITH IN ACTION, [201-]), originou-se da organização de um
amplo espectro de congregações de residentes urbanos com diversidade racial
e ligados ao pensamento de esquerda, tendo missão: reconstruir comunidades
e revitalizar a democracia, construir moradias acessíveis, melhorar as escolas
públicas, aumentar o acesso aos cuidados de saúde, tornar os bairros mais
seguros (FAITH IN ACTION, [201-]). Basicamente se explora na obra de
Braunstein as formas como visões simplistas dos dois grupos divergem e se
sobrepõem oportunizando análises sociológica interessante.
A terceira seção descreve narrativas da história norte-americana que
cada grupo constrói para justificar por que seu conjunto de compromissos
e abordagem à cidadania ativa cumpre o ideal da democracia americana. E
nas seções quatro e cinco aparecem comparações e contrates entre as práticas
pelas quais os ideais de cidadania de ambos os grupos são promulgados,
traçando como suas escolhas práticas são uma operação autoconsciente de
seus “imaginários democráticos”.
No entanto, a quarta seção do livro, intitulada “Colocando Fé em
Ação” (tradução literal para “Putting Faith Into Action”), surge como um
dos capítulos mais interessantes por apresentar maneiras práticas pelas quais
os dois grupos utilizam para agir e desempenhar seu papel religioso na vida
democrática norte-americana, fazendo com que a autora compare as visões
distintas de ambos os grupos, e evidenciar o papel do Interfaith em cultivar
um movimento racial, socioeconomicamente e religiosamente diversificado
com base em valores religiosos compartilhados ao mesmo tempo em que
desenvolve uma visão progressiva de uma sociedade mais inclusiva e justa – o
que antes poderia ser associado ao ativismo religioso dos cristãos evangélicos
e à direita religiosa.
Como exemplo prático e de uso da diversidade do grupo Interfaith a
autora menciona o caso de uma mulher de vinte e poucos anos chamada
Farah: uma mulher muçulmana educada por judeus recrutada para trabalhar
com católicos. Ela se juntou à Interfaith como organizadora da equipe depois
de completar um programa de treinamento em organização inter-religiosa
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dirigido por uma organização judaica; ela trabalha com pessoas de origens e
credos diferentes e foi encarregada de se reunir com os membros da congregação diversificada do padre O’Donnell para facilitar reuniões regulares do
comitê organizador local da igreja e desenvolver vários tipos de ações. Dentre
os valores compartilhados por Farah, e que guiam seu trabalho, foram listados
como valores compartilhados por ela, pela igreja que representa e pelos que
são ajudados: justiça, dignidade humana, esperança, respeito, preocupação
com os vulneráveis; e, cuidado com a juventude. Isso, particularmente,
atraiu aqueles ligados ao movimento, e atrai olhares de outros que pensam
que: não importa o Deus que você adora, mas em como você coloca sua
fé em ação. Aqui, acredita-se que é essa visão compartilhada também por
Farah que pode fazer um país mais justo ao qual que todos nós podemos
chamamos de lar.
A sexta seção avalia como e por que julgamentos sobre o que fazer e
como fazê-lo são movidos por considerações de como se conformar ao seu
imaginário democrático. Enquanto na seção final, a autora pincela e discute
como os grupos convergem e divergem uns dos outros, desvendando um
quadro complexo e multidimensional da política democrática que rejeita
as construções simplistas e binárias de bons e maus, vilões e reacionários.
São destacados ao longo do livro dois argumentos principais: 1) ambos
os grupos compartilham preocupações com os cidadãos comuns, apesar de
divergirem em suas posições políticas; 2) ambos contemplam a cidadania
social como solução para os problemas encontrados em suas realidades, e
ambos invocam fontes sagradas e a religião para exercer a tal “cidadania ativa”
e responsabilizar as autoridades políticas pelos problemas encontrados. Para
esses dois grupos, a cidadania ativa é um modo de democracia participativa
que “funde a vigilância política com a virtude pessoal” (p. 7).
A obra de Braunstein apresenta ainda as conveniências analíticas do uso
da “etnografia comparativa multisite” que pode ser uma poderosa ferramenta
para o pesquisador na medida em que ele escolhe sites que permitem que as
dinâmicas chave de interesse variem enquanto matem outros fatores estáveis;
e fundamenta-se em lógica comparativa cuidadosa entre casos, orientado
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pela literatura pertinente que se apresenta no texto a partir de categorias
como relações sociais, estilo de grupo, imaginário democrático, religião civil
e cidadania ativa. Neste quesito em particular, o texto de Braunstein surge
como referência e modelo para os interessados em trabalhar com esse tipo
de metodologia.
A dinâmica entre religião-cultural paralela e o contrastante dos universos
morais que separam ambos os grupos é apresentada ao leitor de forma clara
e coesa: as bases religiosas dos “inter-religiosos” são enquadradas dentro da
prioridade da organização na inclusão religiosa, enquanto as bases religiosas
dos “patriotas” são enquadradas pelo compromisso com a liberdade religiosa.
Essas diferenças refletem nos imaginários democráticos de ambos os grupos
ocasionando conforto dos dois grupos frente ao pluralismo religioso.
Embora seja um excelente trabalho de análise sociológica, o final da
obra apresenta um pensamento otimista sobre a importância democrática da
convivência de ambos os grupos, cujos cidadãos são encorajados a discutir
e deliberar sobre os perigos e os méritos de problemas da sociedade.
Alguns pontos negativos podem ser encontrados com a leitura quando,
por exemplo, retrata os evangélicos brancos norte-americanos como cidadãos
não organizados ao estilo do Interfaith; ou mesmo, quando indica certa
passividade política motivada pela deferência a outras elites, a especialistas
e a políticos – isso, sem falar sobre a deferência a estrelas da mídia e às elites
corporativas.
Braunstein ainda poderia ter explorado melhor a literatura apresentada
já que o texto apresenta amplas literaturas sobre organização comunitária,
mas dificilmente a autora se envolve diretamente com elas. Por exemplo, ela
poderia ter discutido o tratamento do que se entende por interesse próprio, o
papel da religião na dinâmica inter-racial e inter-religiosa de uma sociedade,
o lugar dos discursos de ódio e o que implica deles nos conflitos religiosos.
Ainda que seja evidente que Braunstein toca levemente em alguns desses
pontos, ela não consegue situar ou avaliar o que observa à luz de outros
relatos do mesmo fenômeno.
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Ainda se observa que o texto apresenta ideias pós-seculares e identifica
como práticas e crenças religiosas se coconstroem e estão entrelaçadas com
crenças e práticas políticas; como formações religiosas e seculares existem em
um continuum, e como combinações destas constituem múltiplos padrões
de secularidade, mesmo dentro da mesma política.
Outra oportunidade que Braunstein deixar passar é a de não ter incluído
os dois grupos estudados na categoria populista. Essa omissão surpreende
quando se considera que a preocupação com o populismo era uma inquietação considerável durante a era Obama, período abordado pelo livro.
Contudo, Braunstein oferece ao leitor novas e excelentes visões sobre: a
religião na vida pública da contemporaneidade; prática democrática revestida
por fundamentos culturais e o uso dos espectros políticos voltados para a
democracia e cidadania norte-americana. As práticas de cidadania ativa,
mesmo com implicações políticas diferenciadas de ambos os grupos indica
como a religião pode sustentar narrativas democráticas diferentes.
Considerando que o livro surgiu de um trabalho dissertativo da autora,
ele é fluido para leitura, tendo linguagem clara e coesa. Por esse motivo,
partindo da estrutura teoria bem escrita e fundamentada é uma fonte interessante para acadêmicos e pesquisadores que estejam se dedicando ao estudo
da religião pública na América, e sua relação com a política.
REFERÊNCIAS
BRAUNSTEIN, Ruth. Prophets and Patriots: Faith in Democracy across
the Political Divide. Oakland, CA: University of California Press, 2017.
COELHO, Marcelo. Partido do Chá. Folha de S. Paulo, São Paulo, 18 jul.
2012. Disponível em: https://bit.ly/2qIAXFF. Acesso em: 12 nov. 2018.
EKINS, Emily. Is Half the Tea Party Libertarian? Reason, Los Angeles, 26
set. 2011. Disponível em: https://bit.ly/2OGrXtV. Acesso em: 12 nov. 2018.
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BRAUNSTEIN, RUTH. PROPHETS AND PATRIOTS...
FAITH IN ACTION. About Us. Faith in Action, San Diego, [201-]. Disponível em: https://faithinaction.org/about-us/. Acesso em: 12 nov. 2018.
GUEDES, Fátima. As estripulias da extrema direita americana. IstoÉ, São
Paulo, ed. 2137, 27 out. 2010. Disponível em: https://bit.ly/2zO6CcQ.
Acesso em: 12 nov. 2018.
HALLORAN, Liz. What’s behind the new populism? NPR, Washington,
D. C., 5 fev. 2010. Disponível em: https://n.pr/2T7T7gY. Acesso em: 12
nov. 2018.
LIMA, José Antonio. As ideias da Tea Party. Época, Rio de Janeiro, 15 out.
2010. Disponível em: https://glo.bo/2PoFZpq. Acesso em: 12 nov. 2018.
TEA PARTY PATRIOTS. Our Vision. Tea Party Patriots, Atlanta, [201-].
Disponível em: https://www.teapartypatriots.org/ourvision/. Acesso em:
12 nov. 2018.
Recebido em: 07/03/2019
Aprovado em: 24/12/2019
Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 36, p. 381-387, ago./dez. 2019
DIRETRIZES PARA AUTORES
1) A revista Debates do NER é um periódico publicado semestralmente pelo Núcleo
de Estudos da Religião (NER), do Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem como
objetivo divulgar textos científicos inéditos, decorrentes de pesquisas nacionais e
internacionais realizadas na área das ciências sociais, relativas à religião enquanto
fato social em suas interfaces com outras esferas da sociedade. Os trabalhos submetidos deverão ter relevância acadêmica e social.
2) O manuscrito que for submetido a publicação nesta revista deverá ser original
e inédito, não podendo, portanto, estar simultaneamente submetido a publicação
ou estar publicado em outros periódicos, livros ou quaisquer outras formas de
divulgação acadêmica.
3) A Debates do NER publica trabalhos em português e espanhol. Desse modo, os
trabalhos submetidos para publicação deverão ser redigidos em uma dessas línguas,
sempre obedecendo as normas de bom uso das mesmas.
4) Os originais deverão ser submetidos pela internet, mediante cadastro de todos
os autores no site da revista (http://seer.ufrgs.br/debatesdoner/user/register).
5) A publicação dos artigos será condicionada à aprovação da Comissão Editorial
Executiva, considerando pareceres de consultores externos, reconhecidos nas
temáticas abordadas na Debates do NER. Essa avaliação é feita por pelo menos dois
desses consultores externos, de forma cega, para assegurar a integridade e isenção
dos pares. Todavia, fica a cargo da Comissão Editorial Executiva selecionar entre
os originais aprovados pelos consultores, quais serão publicados em cada edição.
6) Para garantir a avaliação cega por parte dos pares, os dados do(s) autor(es)
não serão encaminhados aos consultores, entretanto, é responsabilidade do(s)
autor(es) certificar-se de que não existem – em nenhum lugar do corpo do texto
ou nas propriedades do arquivo – dados que possam identificá-los. Para remover
a identificação das propriedades do arquivo, o autor dos originais deve realizar os
seguintes procedimentos:
a. Em documentos do Microsoft Office ou Mac: (no menu Arquivo > Propriedades), iniciando em Arquivo, no menu principal, e clicando na sequência: Arquivo
> Salvar como... > Ferramentas (ou Opções no Mac) > Opções de segurança... >
Remover informações pessoais do arquivo ao salvar > OK > Salvar.
b. Em PDFs, os nomes dos autores também devem ser removidos das Propriedades
do Documento, em Arquivo no menu principal do Adobe Acrobat.
7) A Debates do NER a cada número publica dois tipos de textos: artigos e resenhas.
Cada um desses trabalhos tem características com relação a conteúdo e número de
páginas que deverão ser observados pelos autores:
a. Artigos (15-25 páginas): Relatos de investigações originais, baseados em pesquisas
sistemáticas e completas, realizadas com as devidas metodologias e análises científicas. Também serão admitidos, porém em número limitado, artigos teóricos
ou de revisões sistemáticas e atuais sobre temas relevantes para a linha editorial
da revista, que conte com análise crítica e oportuna de um corpo abrangente de
pesquisa, relativa a temas que contribuam para o desenvolvimento das Ciências
Sociais da Religião, preferencialmente num campo de investigação para a qual
o(a) autor(a) contribui.
b. Resenhas (3-10 páginas): Análise crítica de obras publicadas recentemente
(máximo quatro anos), norteando o(a) leitor(a) quanto às suas características
e explicitando usos potenciais. Antes de submeter esse tipo de trabalho, os(as)
autores(as) deverão consultar a Editora Geral.
8) Os critérios que serão avaliados nos artigos submetidos à publicação são os
seguintes:
a. Quanto à estrutura: qualidade da estrutura lógica do trabalho no que se refere
à organização dos tópicos que o compõem.
b. Quanto à redação: será avaliada a clareza do texto, a qualidade ortográfica e
gramatical, além de argumentação elucidada com rigor e propriedade;
c. Quanto à qualidade técnica e científica: serão analisados o emprego correto dos
conceitos abordados, a adequação e a profundidade dos conteúdos bem como o
rigor científico do trabalho.
d. Quanto à originalidade: Serão levados em conta o ineditismo e o grau de inovação
proposto pelo trabalho, além da expressividade e importância do trabalho, para a
discussão de problemas de seu campo de investigação;
e. Atualidade e pertinência das referências utilizadas.
9) Os manuscritos submetidos deverão ter folha de rosto contendo: Título completo
do trabalho, em português ou espanhol, juntamente com sua versão em inglês,
resumo (entre 100 e 150 palavras) com espaço simples, no idioma do artigo e sua
respectiva versão em inglês e palavras-chave (máximo quatro) também no idioma
do artigo, com sua respectiva versão em inglês. Além disso, deverá conter nome(s)
completo(s) do(s) autor(es), suas titulações máximas, o nome completo da(s)
instituição(ões) onde atua(m) e a posição do(s) mesmo(s) em tal(is) instituição(ões).
Também deverão constar os seguintes dados de contato: endereço completo, e-mail
e telefones (recomenda-se utilizar endereços institucionais, tanto para correspondência física quanto eletrônica).
10) Após encaminhado e avaliado pelos pares, a equipe editorial entrará em contato
com o autor principal, para informar o veredito, que poderá ser de aceito, aceito
com alterações ou de recusado. Em qualquer desses casos, o material enviado não
será devolvido.
11) Em caso de dúvidas, os autores poderão entrar em contato com a equipe editorial
através do e-mail: debatesdoner@gmail.com, ou com o departamento de Antropologia
Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, pelo telefone: 3308-6638.
12) Os artigos devem ser escritos em fonte Times New Roman 12. O texto deverá
estar justificado, e em formato A4 (210x297), com espaço de 1,5 e ter até 8 mil
palavras (artigos) e até 4 mil palavras (resenhas), incluindo título, resumo, palavras-chave, referências e notas. Inicial maiúscula deverá ser usada somente quando
imprescindível e os recursos tipográficos devem ser utilizados uniformemente:
a. itálico: para palavras estrangeiras, títulos (livros, eventos etc.) e ênfase;
b. aspas duplas: citações diretas com menos de três linhas, citações de palavras
individuais ou palavras cuja conotação ou uso mereça destaque;
c. negrito e sublinhado: devem ser evitados.
13) Para citações bibliográficas, os autores deverão se guiar pelas normas da ABNT,
de modo que no corpo do texto, a indicação de referência nas citações diretas deve
trazer autor(es), ano de publicação e página(s); nas citações indiretas, a indicação
de página é opcional, conforme os modelos:
a. Segundo Hassen (2002, p. 173): “Há uma grande carência de materiais didáticos
nesse campo, principalmente se aliados à ludicidade.”
b. Sabemos da grande carência de materiais didáticos nesse campo, segundo Hassen
(2002, p. 173).
14) As citações diretas com mais de três linhas, no texto, devem ser destacadas com
recuo de quatro espaços à direita da margem esquerda e corpo menor de letra, sem
aspas, em espaço simples; transcrições das falas dos informantes seguem a mesma
norma. Além disso, as notas explicativas devem ser numeradas ordinalmente no
texto e vir no rodapé da página
15) Os desenhos, as fotografias, as tabelas, os gráficos, os mapas, dentre outros
elementos representativos, deverão estar devidamente numerados, com o título
e com a fonte consultada. Os autores deverão atentar ainda para a qualidade de
tais itens, de modo a garantir a fidedignidade dos mesmos, tanto na reprodução
quanto na impressão.
16) A Debates do NER não se responsabiliza, sob nenhuma circunstância, pelos
conceitos enunciados pelos autores. Ao enviar seu material, o autor cede instantaneamente os direitos autorais de forma integral ao PPG em Antropologia Social
da UFRGS.
17) Os autores de artigos ou resenhas receberão dois exemplares da revista na qual
seus trabalhos forem publicados.
18) As referências devem vir após o texto, ordenadas alfabeticamente, seguindo as
normas da ABNT, conforme os modelos:
a) Livro (e guias, catálogos, dicionários etc.) no todo: autor(es), título (em itálico e
separado por dois-pontos do subtítulo, se houver), número da edição (se indicado),
local, editora, ano de publicação:
DUMONT, Louis. Homo hierarchichus: o sistema de castas e suas implicações. São Paulo:
EDUSP, 1992.
FORTES, Meyer; EVANS-PRITCHARD, Edward. (Org.). African political systems. Oxford:
Oxford University Press, 1966.
MINISTÉRIO DE SALUD. Unidade Coordinadora Ejecutora VIH/SIDA y ETS. Boletín
de SIDA: programa nacional de lucha contra los retrovirus del humano y SIDA. Buenos
Aires, mayo 2001.
b) Parte de livro (fragmento, artigo, capítulo em coletânea): autor(es), título da
parte seguido da expressão “In:”, autor(es) do livro, título (em itálico e separado
por dois pontos do subtítulo, se houver), número da edição (se indicado), local,
editora, ano de publicação, página(s) da parte referenciada:
VELHO, Otávio. Globalização: antropologia e religião. In: ORO, Ari Pedro; STEIL,
Carlos Alberto. Globalização e religião. Petrópolis: Vozes, 1997. p. 25-42.
c) Artigo/matéria em periódico (revista, boletim etc.): autor(es), título do artigo,
nome do periódico (em itálico), local, ano e/ou volume, número, páginas inicial
e final do artigo, data.
CORREA, Mariza. O espartilho de minha avó: linhagens femininas na antropologia.
Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 3, n. 7, p. 70-96, out. 1997.
d) Artigo/matéria em jornal: autor(es), título do artigo, nome do jornal (em itálico),
local, data, seção ou caderno, página (se não houver seção específica, a paginação
precede a data):
TOURAINE, Alain. O recuo do islamismo político. Folha de São Paulo, São Paulo, 23 set.
2001. Mais!, p. 13. SOB as bombas. Folha de São Paulo, São Paulo, p. 2, 22 mar. 2003.
e) Trabalhos acadêmicos: referência completa seguida do tipo de documento, grau,
vinculação acadêmica, local e data da defesa, conforme folha de aprovação (se houver):
GIACOMAZZI, Maria Cristina Gonçalves. O cotidiano da Vila Jardim: um estudo de
trajetórias, narrativas biográficas e sociabilidade sob o prisma do medo na cidade. 1997. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – PPGAS/UFRGS, Porto Alegre, 1997.
f ) Evento no todo: nome do evento, numeração (se houver), ano e local (cidade)
de realização, título do documento (anais, atas, resumos etc., em itálico), local de
publicação, editora e data de publicação:
REUNIÃO DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998, Vitória.
Resumos… Vitória: Departamento de Ciências Sociais/UFES, 1998.
g) Trabalho apresentado em evento: autor(es), título do trabalho apresentado seguido
da expressão “In:”, nome do evento, numeração (se houver), ano e local (cidade)
de realização, título do documento (anais, atas, resumos etc., em itálico), local de
publicação, editora, data de publicação e página inicial e final da parte referenciada:
STOCKLE, Verena. Brasil: uma nação através das imagens da raça. In: REUNIÃO DA
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA, 21., 1998, Vitória. Resumos…
Vitória: Departamento de Ciências Sociais/UFES, 1998. p. 33.
CONDIÇÕES PARA SUBMISSÃO
Como parte do processo de submissão, os autores são obrigados a verificar a conformidade da submissão em relação a todos os itens listados a seguir. As submissões
que não estiverem de acordo com as normas serão devolvidas aos autores.
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por outra revista; caso contrário, justificar em "Comentários ao Editor".
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RTF (desde que não ultrapasse os 2MB)
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http://www.ibict.br) estão ativos e prontos para clicar.
4) O texto está em espaço 1,5; usa uma fonte de 12-pontos; emprega itálico ao
invés de sublinhar (exceto em endereços URL); com figuras e tabelas inseridas no
texto, e não em seu final.
5) O texto segue os padrões de estilo e requisitos bibliográficos descritos em Diretrizes para Autores.
6) A identificação de autoria deste trabalho foi removida do arquivo e da opção
Propriedades no Word, garantindo, dessa forma, o critério de sigilo da revista, caso
submetido para avaliação por pares (ex.: artigos), conforme instruções disponíveis
em Assegurando a Avaliação por Pares Cega.
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