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4 | Jornal da Universidade | JUnho de 2017 IdeIas Judicialização da política e democracia Fabiano Engelmann* flávio dutra/ju A noção de “judicialização da política” aparece desde a década de 60 na ciência política americana como resultante da análise do fenômeno de crescimento da importância do poder Judiciário no sistema político, em especial da Suprema Corte. O Judiciário desponta como um poder contramajoritário capaz de desconstituir decisões de governo e influenciar no direcionamento de políticas públicas. Na base desses processos estão mecanismos institucionais, como o controle de constitucionalidade que confere às cortes a prerrogativa de dizer a última palavra sobre a “adequação às regras” de decisões governamentais, de atos legislativos e mesmo do próprio jogo político-eleitoral. Em outro sentido, também é desenvolvida – a partir do estudo do caso americano – a noção de “ativismo político-judicial”, que tenta explicar as lógicas da expansão das causas judiciais pelo envolvimento das demandas de minorias sociais. Nessa perspectiva, para além dos mecanismos institucionais que induzem à “judicialização da política”, temos como centro da análise as estratégias de mobilização do espaço judicial por movimentos sociais, assim como a emergência de uma advocacia especializada em representar causas políticas junto aos tribunais. Determinados movimentos, inclusive, utilizaram como estratégia principal de luta política o litígio judicial, visando reconhecer direitos ou demandar políticas de governo, fortalecendo a profissionalização de advogados militantes encarregados de “pôr na forma jurídica” demandas políticas. Apesar da origem mais nítida no caso americano, tanto o fenômeno da “judicialização da política” quanto as práticas do “ativismo judicial” são observados também em outras democracias e mesmo em países com regimes autoritários. No último caso, apesar das limitações do contexto jurídico-político, o Judiciário torna-se uma tribuna de resistência e denúncia de violações de direitos civis. As interpretações da ciência política para essa crescente interação entre o espaço judicial e o espaço político divide-se entre uma visão mais “pessimista” e uma mais “otimista” em relação a seus custos e benefícios para o regime democrático. A primeira percepção destacou os limites do protagonismo judicial em influenciar políticas públicas. Alguns autores chegaram a tratar esse ativismo como um desvirtuamento de funções do Judiciário, que deveria ficar restrito ao controle da legalidade do jogo político e dos atos dos governos. A visão “otimista” destacou o caráter contramajoritário do poder e sua capacidade de tutelar as demandas das minorias sociais e políticas, agindo, nesse sentido, como um potencializador da cidadania e dos direitos sociais e como um espaço legítimo para mediar demandas coletivas que não encontram respaldo no Legislativo e no Executivo. No caso brasileiro, parte significativa do crescimento do protagonismo político das instituições judiciais foi desencadeada a partir da vigência da Constituição de 1988, que forneceu a base institucional para o retorno dos juristas ao espaço do poder político. A alavancagem da “judicialização da política”, entretanto, não se explica somente pelas garantias funcionais dos juízes e pelas prerrogativas do poder Judiciário frente aos poderes Legislativo e Executivo. É preciso adicionar ainda outras variáveis, como as mudanças geracionais no recrutamento de juízes e promotores que ocorrem entre a década de 90 e 2000, projetando para es- sas instituições quadros jovens e ciosos de fazer-valer suas prerrogativas e sua posição de poder adquirida através de um concurso público. Também é preciso considerar os efeitos de diferentes conjunturas políticas na interação dessas instituições e agentes com o espaço político. Nesse mesmo período, o Judiciário começou a se destacar como mediador de políticas públicas. A “judicialização da saúde” tornou-se recorrente com demandas judiciais que buscam a distribuição de medicamentos ou internações hospitalares negadas na esfera da administração municipal e estadual. Também outras demandas “sociais” desaguaram no Judiciário, tais como as relacionadas à educação (vagas em escolas públicas) e a problemas ambientais. Da mesma forma, nesse período, não podemos esquecer a consolidação do Ministério Público como fiscal de atos da administração pública em diversas esferas de governo, além de instituição dotada de prerrogativa para representar o “interesse público” judicialmente. Além disso, temos a explosão nos âmbitos federal e estadual das ADINs (Ações Diretas de Inconstitucionalidade). Esse instrumento é utilizado especialmente por minorias políticas no Legislativo para questionar judicialmente atos de governo, potencializando o crescimento do Judiciário no papel de mediador do jogo político. As controvérsias sobre o resultado da versão brasileira da “judicialização da política” e do “ativismo judicial”, de certa forma, reproduzem o debate internacional. Parte da literatura atribuiu o crescimento do protagonismo a um efeito de consolidação da democracia brasileira e do cidadão enquanto “sujeito de direitos”. Entretanto, uma visão mais “pessimista” alertou para o sentido contrário. Ou seja, a possibilidade de as instituições judiciais reproduzirem as lógicas de tradições de autoritarismo bloqueadoras da participação e da representação política presentes de forma recorrente na história política do país. As duas leituras do fenômeno não são necessariamente excludentes. Por outro lado, o cruzamento da trajetória da crescente legitimação do poder Judiciário com o caminho de enfraquecimento da legitimidade do Legislativo e mesmo, mais recentemente, do poder Executivo, merece atenção. Ou seja, os sucessivos escândalos envolvendo membros do poder Legislativo e do Executivo em diferentes esferas, a percepção de ineficiência das administrações públicas e a fraca identidade entre o sistema partidário e o eleitor, por exemplo, não foram mitigadas com o fortalecimento das instituições judiciais no espaço político. É possível afirmar que essa (des)legitimação do sistema político lato sensu foi alimentada por versões desse ativismo político-judicial. Nesse sentido, pode-se indagar se o abuso das prerrogativas de controle possuídas pelas instituições judiciais e seus agentes, em relação aos outros poderes, com o predomínio do denuncismo em uma aliança ambivalente entre arena jurídica e a arena jornalística, não poderá nos levar a um efeito bumerangue. Ou seja, em que medida os próprios avanços em termos de independência e autonomia do Judiciário obtidos com a democracia podem ser postos em xeque como resultado do alargamento da “judicialização da política”. *Professor do Programa de Pós-graduação em Ciência Política e Coordenador do Núcleo de Estudos em Justiça e Poder Político (IFCH e CEGOV)