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Artigos Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasileiros Gibran Ayupe Mota Henrique Geaquinto Herkenhoff Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Docente do Programa de Mestrado em Segurança Pública – Universidade Vila Velha – Vila Velha/ES e da Escola de Inteligência – ABIN/PR. Mestre em Segurança Pública pela Universidade Vila Velha (UVV). Docente do Programa de Mestrado em Segurança Pública e da Graduação em Direito – Universidade Vila Velha – Vila Velha/ES. Doutor em Direito Civil (USP). Pablo Silva Lira Docente do Programa de Mestrado em Segurança Pública – Universidade Vila Velha – Vila Velha/ES. Doutorando no Programa de Pós-graduação em Geografia (UFES). Coordenador do Núcleo Vitória do INCT Observatório das Metrópoles. Erika da Silva Ferrão Docente do Programa de Mestrado em Segurança Pública e da Graduação em Psicologia– Universidade Vila Velha – Vila Velha/ES. Doutora em Psicologia (UFES/SDSU-EUA). Membro de grupos do Diretório de Pesquisa do CNPq (Pesquisas em Psicologia Pediátrica/USP-Ribeirão Preto; Processos Psicológicos e Saúde/UFES). Data de recebimento: 18/02/2018 Data de aprovação: 03/08/2018 DOI: 10.31060/rbsp.2018.v12.n1.912 Resumo No contexto histórico brasileiro, em razão de conjunturas passadas por vezes fomentada por determinados setores da mídia e grupos políticos, a Inteligência de Estado se ressente da ausência de uma política pública consistente para a área. Dentre os reflexos desse abandono, destaca-se a insuficiente regulamentação legislativa, entendida como necessária à implementação de formas de controle e à atribuição de prerrogativas para essa atividade pública, cuja missão precípua resume-se em contribuir, com informações, para os processos decisórios que visam à integridade da sociedade e do Estado brasileiros. Neste contexto, buscou-se, por meio de uma revisão temática da literatura e registros existentes sobre o tema, investigar e refletir sobre a inserção da atividade de Inteligência na Constituição Federal Brasileira, sob os prismas da legalidade e legitimidade, tal como ocorre com as áreas da Defesa e da Segurança Pública. De acordo com a pesquisa, constatou-se o quão carente de regulamentação encontra-se a atividade de Inteligência no Brasil, redundando no risco de graves violações a princípios republicanos, dentre eles o da eficiência e do controle. Palavras-Chave Constituição Federal. Informação (Intelligence). Prerrogativas e Controle. 134 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 Abstract Constitutionalization of the Intelligence Acivity - Brazilian Perspectives and Challenge In the Brazilian historic context, due to past scenarios many times fostered by certain media sectors and political groups, Artigos State Intelligence resents the absence of a consistent public policy for the area. Among the reflexes of that absence, one can highlight insufficient regulatory legislation, that being the necessary implementation of control means as well as allocation of prerrogatives to the public activity, whose primary mission is mainly to contribute, with information, to the decision making processes that aim the integrity of the Brazilian society and State. In that context, the aim was, through a review of literature and existing reports, to investigate and reflect over the insertion of the Intelligence activity in the Federal Consitution of Brazil, under the light legality and legitimacy, as it happens in the Public Defense and Safety areas. According to the research, it was determined how so very legislation deprived is the Intelligence activity in Brazil, jeopardi- Keywords Federal Constitution. Intelligence. Control and prerrogatives. Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 135 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios zing republican principles, effiency and control among others. Artigos Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios INTRODUÇÃO A partir da deposição do presidente João Goulart em 31 de março de 1964, o Brasil passou por sucessivos governos militares, somente retornando à democracia no final dos anos 80. Não havia sido o primeiro movimento de “sístoles e diástoles”, como denominara o General Golbery do Couto e Silva, que o país experimentava. O fato novo nesta oportunidade foi a duração do governo militar (PERALVA, 2000) e, principalmente, o longo período de distensão, que já vinha ocorrendo desde o Governo do General Ernesto Geisel, bem antes da anistia política que, em 1979, inaugurou formalmente o processo institucional de reabertura. A partir deste marco histórico, sucederam-se a eleição, ainda indireta, do primeiro presidente civil, a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CF/88) e a primeira eleição direta para presidente da República em 1989. Esse distendido processo de redemocratização, “lento e gradual” conforme consignado na História, espraiou seus efeitos em todos os segmentos da sociedade brasileira, o que redundou em expressivo consenso acerca da necessidade de ampla reforma do ordenamento jurídico brasileiro, por meio da convocação de uma Assem- bleia Constituinte, 1987-1988. Sendo assim, a CF/88 recebeu a alcunha de “Constituição Cidadã”, como clara referência aos avanços conquistados em matéria de direitos civis, políticos e sociais (BARBOSA, 2016). Permeada de processos complexos e demandas dos mais variados matizes ideológicos, a Assembleia Nacional Constituinte foi convocada por meio da Emenda Constitucional n. 26 de 27 de novembro de 1985, que determinava a conversão temporária do Congresso Nacional em assembleia nacional constituinte, a inaugurar seus trabalhos a partir de 1 de janeiro de 1987 (BARBOSA, 2016). A partir do advento da Nova Constituição - enquanto base da estrutura normativa e pressuposto de validade de todo o ordenamento jurídico pátrio (KELSEN, 2006) –, em maior ou menor grau, houve profundas alterações na arquitetura, finalidades precípuas, prerrogativas e deveres das instituições públicas no Brasil. Sob este diapasão, houve por bem aos legisladores constituintes, a título de exemplo, a inédita opção enquanto política legislativa de “constitucionalizar” a Segurança Pública1 que, a partir 1 A segurança pública ultrapassa as atribuições das polícias. Do mesmo modo, a defesa nacional ultrapassa as atribuições das forças 136 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 É consabido que governantes, ao se depararem com temas afetos à segurança nacional, tendem a justificar institucionalmente e a delimitar as funções das forças armadas, das polícias e dos serviços de Inteligência, com lastro na clássica concepção que estes três ramos de atividades estatais caminham conjunta e complementarmente (CEPIK, 2003). Neste ponto, inexoravelmente, ressoa a seguinte questão: por qual razão a milenar e a cada dia mais relevante atividade de Inteligência – partindo do pressuposto de estarmos inseridos na “sociedade do conhecimento” – não ter seus contornos minimamente delineados na então novel Constituição? Mais relevante talvez: quais os efeitos, sob os prismas republicanos da eficiência e do controle democrático, essa lacuna constitucional referente à Inteligência se fizeram perceber na sociedade brasileira, nas últimas dé- Artigos Há pouca literatura nacional sobre o tema da Inteligência e menos ainda quando se trata especificamente da sua normatização e controle, ao passo que os autores internacionais não se ocupam de questões específicas do cenário brasileiro. Ainda assim, a base Scielo contribuiu com alguns artigos correlatos que puderam ser utilizados com proveito. Nos capítulos a seguir, será traçado inicialmente um resumido histórico da atividade de Inteligência no Brasil e como a associação ao Regime Militar conduziu, de um lado, à sua deslegitimação e à quase extinção das suas estruturas quando da redemocratização e, de outro, a uma regulação jurídica frágil, com sua omissão no texto da Constituição da República, implicando tanto a falta de instrumental jurídico para a atuação como de mecanismos de controle dos órgãos atualmente responsáveis pela atividade. Após um breve passeio pelas estruturas jurídicas da atividade de Inteligência estrangeiras, conclui-se pela necessidade de refazer um arcabouço jurídico que permita tanto uma atuação efetiva dos serviços de Inteligência quanto o seu efetivo controle, na medida em que legalidade e legitimação, poder e controle andam e devem realmente andar juntos em qualquer Estado democrático que, por outro lado, não deve prescindir de fortes estruturas para assessoramento das decisões estratégicas e para a elaboração das políticas públicas vetoriais. Breve Histórico da Atividade de Inteligência do Brasil Conceitua-se Inteligência de Estado como armadas. Outras instituições também devem ser, de certo modo, fortemente responsáveis pela contribuição para com a defesa nacional e com a segurança pública. (SANTOS, 2015, p. 31-32) Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 137 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão As Forças Armadas, por sua vez, enquanto protagonistas da Defesa Nacional, foram minuciosamente regulamentadas na Constituição Federal de 1988, considerado o paradigma acerca do que se concebe enquanto normas constitucionais materiais. Conforme se constata do Capítulo III, no artigo 142, por meio de três parágrafos e dez incisos, a Carta Magna desceu, por exemplo, ao detalhe de prescrever normas acerca do uso de uniformes por parte dos militares, enquanto prerrogativa das patentes (BRASIL, 1988). cadas? O presente trabalho visa lançar luzes sobre esses questionamentos, inquietantes àqueles que se dedicam à pesquisa e à análise da coisa-pública no Brasil. Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios da promulgação da CF/88, passa a ter previsão normativa expressa em seu artigo 144. Esta relevante temática cada vez mais presente na pauta de políticas públicas brasileiras, até então, contara tão somente com menções indiretas nas Constituições pretéritas (SOUZA NETO, 2007). No mesmo sentido, segue a conceituação oficialmente adotada no âmbito da administração pública brasileira: A atividade de Inteligência é o exercício permanente de ações especializadas orientadas para a obtenção de dados, produção e difusão de conhecimentos, com vistas ao assessoramento de autoridades governamentais, nos respectivos níveis e áreas de atribuição, para o planejamento, a execução e o acompanhamento das políticas de Estado. Engloba, também, a salvaguarda de dados, conhecimentos, áreas, pessoas e meios de interesse da sociedade e do Estado. (CONSELHO CONSULTIVO DO SISBIN, 2004). Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Artigos atividade especializada voltada à antecipação de identificação de ameaças e oportunidades, em apoio ao processo decisório no mais alto nível estratégico estatal (SANTOS, 2016). A atividade de Inteligência é conhecida desde os tempos mais remotos (VEIGA; ZOTES, 2012), originando-se a partir de quatro matrizes básicas históricas: economia, guerra, diplomacia e polícia (CEPIK, 2003). A consolidação da Inteligência, enquanto atividade componente da burocracia estatal, no entanto, somente se dá a partir do século XV, quando as cidades-estados italianas abriram embaixadas no exterior, das quais os enviados obtinham informações2 estratégicas e em cujas bases estabeleceram redes regulares de espionagem de estado (DULLES, 1963). O emprego da atividade de Inteligência de Estado no Brasil, compreendido como instru- mento de assessoria às decisões estratégicas do chefe do Poder Executivo, teve início em 1927, durante o governo do Presidente Washington Luís, com a criação do Conselho de Defesa Nacional (CDN), por meio do Decreto nº. 17.999, de 29 de novembro daquele ano (BRASIL, 2016). A partir da inserção do Brasil na Segunda Guerra Mundial, a Inteligência de Estado brasileira passa a contar efetivamente com um órgão próprio, e não apenas com um Conselho instalado ad hoc e sem corpo técnico próprio. Assim, em 1946, por meio do Decreto nº. 9.775-A, de 6 de setembro do mesmo ano, criou-se o Serviço Federal de Informações e Contrainformações (Sfici), compreendendo as seções de exterior, interior, segurança interna e operações especializadas (BRASIL, 2016). O contexto político extremamente conturbado do ano de 1964, que culminou com a deposição do Presidente João Goulart, sob a alegação de estreitas vinculações deste com segmentos radicais de esquerda e de colocar em marcha profundas reformas de base que contrariavam o status quo da época, inaugurou o período reconhecido como Governo Militar ou Regime Militar, em março de 1964 (BARBOSA, 2016). Essa conjuntura foi o cenário no qual se deu a criação do Serviço Nacional de Informações (SNI), em 13 de junho de 1964, sob o prumo da Doutrina de Segurança Nacional, gestada na Escola Superior de Guerra (ESG). O SNI caracterizou-se por sua ligação direta ao Presidente da República e pelo monitoramento de oponentes internos – ou “inimigos internos” -, cujos alvos eram, principalmente, aqueles 2 Informações (intelligence) é um termo específico e significativo, derivado da informação, informe, fato ou dado que foi selecionado, avaliado, interpretado e, finalmente, expresso de forma tal que evidencie sua importância para determinado problema de política nacional corrente. (PLATT, 1974, p. 30). 138 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 Por quase uma década, a Inteligência brasileira ficou relegada ao ostracismo, até que, em 1999, por meio da Lei n. 9.883, criou-se a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), bem como regulamentou-se o funcionamento do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin). O Processo de Redemocratização Brasileiro e seus Reflexos na Inteligência de Estado O Regime Militar e processo de redemocratização No contexto do processo de redemocratização, sentido no Brasil na década de 1980, conforme mencionado, não houve por parte dos Artigos Diante do significativo envolvimento dos órgãos de Inteligência, tanto militares quanto civis, na repressão aos opositores do regime militar, o SNI era concebido como o núcleo do aparato de informações brasileiro (GONÇALVES, 2008). “Ao contrário do que se costuma pensar em alguns círculos, o SNI nunca se envolveu – diretamente – com a repressão, tortura ou morte de adversários do regime militar durante a ditadura” (FIGUEIREDO, 2005). A partir desse estigma, mesmo decorridas algumas décadas da abertura democrática brasileira, a Inteligência federal ainda é encarada por setores da sociedade com desconfiança e não como um serviço público destinado a contribuir para a segurança e a soberania nacionais. Mesmo que tardia e infraconstitucionalmente, conforme registra Antunes (2002, p. 09), o governo teve que superar obstáculos em relação à Agência que, criada por força de medida provisória em 1995, apenas foi oficializada por meio de lei em 07 de dezembro de 1999. Ainda segundo Antunes (2002, p. 10), houve resistência por parte da sociedade à sua implantação, sobretudo por setores da imprensa, que acabou por se refletir no Congresso Nacional. 3 A Agência Brasileira de Inteligência recebe as atribuições constitucionais de planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência de Estado. Além de uma instituição que executa ações de inteligência e produz conhecimentos para assessorar o Presidente da República, a Abin supervisiona e controla as atividades desempenhadas por outros órgãos. (SANTOS, 2015, p. 32) Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 139 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Apesar da mudança de seus objetivos e métodos a partir da Nova República inaugurada em 1985, o SNI subsistiu até o ano de 1990, quando, em 15 de março, o recém-eleito Presidente Fernando Collor de Melo o extinguiu. A partir de então, a atividade de Inteligência de Estado no Brasil deixa de ser exercida por um órgão diretamente vinculado ao Presidente da República e passa a ser exercida pelo Departamento de Inteligência, subordinado à Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (SAE/ PR) (BRASIL, 2016). membros da Assembleia Constituinte um compromisso de reestruturação da atividade de Inteligência. Ao contrário, esta estratégica atividade estatal ficou relegada ao ostracismo e à indiferença daqueles que estavam à frente da elaboração e gestão de políticas públicas até o ano de 1999, quando a Inteligência passou a contar com a normatização infraconstitucional que culminou com o processo político com a criação da Abin3. Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios alinhados a ideologias anarquistas e de esquerda. Em 1975, foi instituído o Sistema Nacional de Informações (Sisni), com a missão precípua de integrar os órgãos estatais afetos à Inteligência, a fim de conferir maior operacionalidade à produção de conhecimentos julgados estratégicos à época. O SNI era o órgão que coordenava as ações do Sisni (BRASIL, 2016). A Regulamentação da Inteligência Brasileira – Lei n. 9.883/99 Em 1999, com a promulgação da já referida Lei nº 9.883 – diploma legal que criou a Abin e regulamentou o Sisbin –, uma preocupação que reiteradamente norteou os trabalhos do Congresso Nacional foi a preservação intransigente dos valores democráticos consagrados na CF/88 (MOTA, 2006). Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Artigos Nenhum dos países democráticos e economicamente desenvolvidos prescinde de serviços de Inteligência responsáveis, legais e fortes. A atividade de Inteligência é essencial ao desenvolvimento e preservação dos interesses públicos do Estado Democrático de Direito brasileiro (GONÇALVES, 2008). Neste contexto, a nova fase do constitucionalismo4 brasileiro, vigente a partir de 1988, exigiu que se complementassem esforços no sentido de adequar a atividade de Inteligência com o regime democrático (BRASIL, 2016), ora erigido sob o manto do conceito de Estado Democrático de Direito (BRASIL, 1988). Todo o processo legislativo que deu origem à lei em questão demonstrou a consolidação, no parlamento, do entendimento de que, sem Inteligência, um país não alcança o status de nação soberana. Associado a este consenso, porém, não mais se concebia soberania sem democracia. A nova onda democrática reclamava da atividade de Inteligência a irrestrita observância aos imperativos da jovem Constituição de 1988, principalmente no que diz respeito aos princípios atinentes à Administração Pública e aos Direitos e Garantias Individuais (MOTA, 2006). Este compromisso democrático, sob o prumo constitucional da irrestrita observância dos direitos fundamentais e Estado Democrático de Direito, consta expressa e detalhadamente preconizado na Lei de criação da Abin e do Sisbin, logo em seus artigos primeiro e terceiro, conforme segue abaixo: Art. 1, § 1o O Sistema Brasileiro de Inteligência tem como fundamentos a preservação da soberania nacional, a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal, os tratados, convenções, acordos e ajustes internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte ou signatário, e a legislação ordinária (grifo nosso). Art. 3o, Parágrafo único. As atividades de inteligência serão desenvolvidas, no que se refere aos limites de sua extensão e ao uso de técnicas e meios sigilosos, com irrestrita observância dos direitos e garantias individuais, fidelidade às instituições e aos princípios éticos que regem os interesses e a segurança do Estado (grifo nosso). 4 O constitucionalismo pode ser visto, em seu nascedouro, como uma aspiração de uma constituição escrita, como modo de estabelecer um mecanismo de dominação legal-racional, como oposição à tradição do medievo, onde era predominante o modo de dominação carismático, ao poder absolutista do rei, próprio da primeira forma de estado moderno. (STRECK, 2002, p. 95) Ainda, para Carvalho (2009, p. 243), o constitucionalismo “[...]reporta-se a um sistema normativo, enfeixado na Constituição, e que se encontra acima dos detentores de poder”. Por fim, para Bonavides (2011, p. 225) ”a Constituição veio a exteriorizar-se, pois, num instrumento escrito, adquirindo aspecto formal. O caráter de rigidez há sido em alguns Estados o seu traço mais simbólico”. 140 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 A Democracia fundamenta-se no direito de cada cidadão de tomar parte nos assuntos públicos, seja de maneira direta, seja por intermédio de seus representantes eleitos (MEIRELLES, 2015). Se informação é poder e se o poder emana do povo, a informação deve ser acessível a todo o povo - ou ao menos ao Parlamento. Neste sentido Max Weber qualifica um Parlamento como ativo quando, mediante o exercício do direito de pesquisa ou investigação, possa ter acesso a todos os segredos no poder da burocracia (MIGUEL, 2002). Segundo Gonçalves (2005, p. 20), enquanto o controle envolve um conjunto de parâmetros e limitações legais aos quais deve-se ater a Administração, a fiscalização refere-se ao legítimo poder de determinadas instituições e autoridades de averiguar o cumprimento das atribuições da Administração em conformidade com o arcabouço jurídico-normativo (GONÇALVES, 2005). Sob este primado, assim como as demais funções estatais, a atividade de Inteligência está sujeita a mecanismos públicos de controle. Este controle visa a garantir a lisura no cumprimento da Política Nacional de Inteligência (PNI) que, na condição de política pública de governo, há que considerar os princípios constitucionais ex- Artigos Controle Específico ou finalístico. O controle acerca da Inteligência Estratégica ou de Estado é, por força de lei, atribuição da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI) – comissão permanente do Congresso Nacional (BRASIL, Lei 9883) – na forma prevista em seu Regimento Interno (Resolução n. 2, de 22 de novembro de 2013, do Congresso Nacional). Para o desempenho de seu papel institucional, a CCAI recebe relatórios gerais, parciais e extraordinários advindos de cada órgão que compõe o Sisbin. Ademais, a CCAI tem a prerrogativa legal de realizar inspeções em áreas, documentos e arquivos, sem a restrição de acesso decorrente de eventual atribuição de grau de sigilo. Sob a perspectiva de controle finalístico, a atividade de Inteligência de Estado submete-se, ainda, ao controle exercido pela Câmara de Relações Exteriores e Defesa Nacional (Creden), a qual compete supervisionar a fiel execução da PNI, por parte dos órgãos nacionais integrantes da comunidade de Inteligência Estratégica (BRASIL, 1999). Constitucionalização da Atividade de Inteligência. Controle e legitimação Serviços de Inteligência, em sua acepção clássica, são órgãos do Poder Executivo que funcionam assessorando os chefes de Estado e de governo e, dependendo de cada ordenamento Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 141 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Controle é a “faculdade de vigilância, orientação e correção que um Poder, órgão ou autoridade exerce sobre a conduta funcional do outro” (MEIRELLES, 2015). Em regimes democráticos, o controle da Administração Pública é um pilar fundamental com vistas à implementação da eficiência da máquina estatal, ao incremento da cidadania e, em última instância, à consecução do bem coletivo (BRASIL, 2016). plícitos e implícitos (BRASIL, 2016). Controle Ordinário. A Inteligência de Estado está sujeita ao controle externo exercido pelo Congresso Nacional, com o auxílio do Tribunal de Contas da União (TCU). Este controle consiste na fiscalização contábil, financeira, orçamentária, operacional e patrimonial, conforme artigos 70, 71 e 72, da Constituição Federal (BRASIL, 1988). No âmbito do controle interno, enquanto controle exercido por ente do mesmo Poder, é responsável pelo controle de gestão da Inteligência a Secretaria de Controle Interno da Presidência da República (Ciset). Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Mecanismos de controle da Atividade de Inteligência no Brasil - do Republicano Equilíbrio Entre Eficiência e Controle Acredito que a principal discussão a ser elaborada sobre o vínculo da atividade de Inteligência com o Estado Democrático deve dizer respeito ao grau de constitucionalidade desse serviço, à regulamentação pública e ao conhecimento sobre os órgãos e cargos estatais responsáveis pela condução da atividade de Inteligência no país. Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Artigos constitucional, outras autoridades na administração pública e mesmo ao Parlamento (CEPIK, 2003). Portanto, é a Constituição de cada país que, ao versar direta ou indiretamente acerca da atividade de Inteligência, estabelecerá de forma suprema o perfil, limites e prerrogativas desse serviço público. Neste sentido, cumpre-nos registrar o depoimento de Antunes (2001, p.09): Diante dessas premissas, sobreleva-se a questão fulcral do presente trabalho: a constitucionalização, ou sob outra terminologia, a positivação constitucional da atividade de Inteligência brasileira teria o condão de implementar formas aperfeiçoadas de controle democrático e de elevar os padrões de eficiência voltados a essa atividade considerada estratégica em qualquer nação próspera e soberana? Inicialmente, há que se registrar que existem várias acepções acerca da palavra “constitucionalização”: A primeira delas e, na ambiência dos fins traçados para este artigo, a mais relevante trata-se da “constitucionalização-inclusão”,5 que é imediata. Determinado assunto, antes tratado pela legislação ordinária, ou simplesmente ignorado, passa a fazer parte do texto constitucional. Também denominada ‘constitucionalização-eleva- ção’, consiste na transferência para a Constituição da sede normativa da regulação de determinada matéria (SOUZA NETO e MENDONÇA, 2006). Voltando-nos diretamente ao objeto ora em análise, constata-se que a situação da Inteligência brasileira se enquadra perfeitamente na primeira hipótese acima descrita. Isto porque, em toda a extensão do texto constitucional de 1988, não há atualmente qualquer menção à Inteligência na estrutura do Estado Brasileiro, quer como organização, atividade ou conhecimento (KENT, 1949). Esta temática tão estratégica e cara aos países democráticos e soberanos, no ordenamento jurídico brasileiro, não possui sequer previsão constitucional expressa, sendo matéria regulada por leis ordinárias. Constituições classificadas como sintéticas limitam-se a prever princípios e normas gerais de regência do Estado, organizando-o e limitando seu poder. De modo oposto, as Constituições analíticas regulamentam toda gama de assuntos entendidos como relevantes ao funcionamento do Estado – a exemplo da CF/88 (MORAES, 2003). A partir dessa classificação, salta aos olhos que, mesmo que nossa Constituição Federal se enquadrasse na modalidade de uma Constituição sintética, deveria prever em seu corpo a atividade de Inteligência de Estado, estruturando-a e limitando sua atuação com vistas à preservação dos direitos fundamentais de seus cidadãos. Não é compreensível nossa prolixa CF/88 descer ao detalhe de prever que o “Colégio Pedro II, localizado na cidade do Rio de Janeiro, será mantido na órbita federal”, dentre outras regulamentações 5 Sarmento (2012, P. 98) entende haver, além da constitucionalização-inclusão, a constitucionalização-releitura, as quais define da seguinte forma: “A constitucionalização-inclusão consiste no tratamento pela constituição de temas que antes eram disciplinados pela legislação ordinária ou mesmo ignorados. Na Constituição de 88, este é um fenômeno generalizado, tendo em vista a inserção no texto constitucional de uma enorme variedade de assuntos – alguns deles desprovidos de maior relevância. Já a constitucionalização releitura liga-se à impregnação de todo o ordenamento pelos valores constitucionais” 142 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 A legislação, além do mister regulamentador, pode assumir função adicional de implementar a confiança dos cidadãos em instituições públicas – o que se convencionou denominar “legislação simbólica” (NEVES, 2011). Acerca dos efeitos regulatórios e simbólicos6 decorrentes da previsão expressa pela Constituição referente à determinada temática pública, bastante ilustrativo o depoimento que se segue acerca da constitucionalização da Segurança Pública, mas que se aplica perfeitamente à seara da Inteligência: A constitucionalização traz importantes consequências para a legitimação da atuação estatal na formulação e na execução de políticas de segurança. As leis sobre segurança, nos três planos federativos de governo, devem estar em conformidade com Artigos Um segundo e coexistente paradigma de constitucionalidade, segundo o mesmo autor, trata da observância dos princípios constitucionais e da observância dos direitos e garantias fundamentais, conforme reiterado abaixo: Devem ser especialmente observados os princípios constitucionais fundamentais – a república, a democracia, o estado de direito, a cidadania, a dignidade da pessoa humana –, bem como os direitos fundamentais – a vida, a liberdade, a igualdade, a segurança. O art. 144 deve ser interpretado de acordo com o núcleo axiológico do sistema constitucional, em que se situam esses princípios fundamentais – o que tem grande importância, como se observará, para a formulação de um conceito constitucionalmente adequado de segurança pública” (SOUZA NETO, p. 03, 2007). Neste ponto, é notório que a subsunção da atividade de Inteligência no Brasil à Constituição Federal opera-se conforme o modelo acima. Em que pese não ter sido acolhida expressamente pelo constituinte, trata-se de atividade constitucional, na medida que sua lei ordinária regulamentadora preconiza expressamente, conforme pontuado alhures, o dever de “cumprir e preser- 6 As legislações simbólicas, ao se prestaram a uma função política-ideológica, trazem a lume a discussão da autonomia operacional do direito na concepção da Teoria dos Sistemas de Niklas Luhmann, ou seja, da dicotomia entre a autopoiese, que é autoreprodução de um sistema por meio de seu código-diferença e a alopoiese, que é perda dessa capacidade. (OLIVEIRA, 2017) Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 143 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Além da função regulamentadora, a norma constitucional confere à matéria nela veiculada significativo grau de legitimidade perante a sociedade. Ainda segundo Moraes (2003, p. 4), as normas constitucionais conferem aos institutos por ela regulamentados elevado grau de legitimidade: primeiramente, pelo fato de, na condição de resultado de um processo legislativo regular, ser elaborada por parlamentares legitimamente escolhidos pelo povo; em segundo, por se tratar, em Estados laicos, de norma fundamental do ordenamento jurídico, conforme a clássica lição de Hans Kelsen (2006, p. 387). Em irretocável síntese, consigna Barroso (2014, p. 92): “com a promulgação da Constituição, a soberania popular se converte em supremacia constitucional”. a Constituição Federal, assim como as respectivas estruturas administrativas e as próprias ações concretas das autoridades policiais. O fundamento último de uma diligência investigatória ou de uma ação de policiamento ostensivo é o que dispõe a Constituição. E o é não apenas no tocante ao art. 144, que concerne especificamente à segurança pública, mas também no que se refere ao todo do sistema constitucional (SOUZA NETO, p. 03, 2007). Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios de somenos importância estrutural ao País, porém ignorar por completo a Inteligência de Estado (BRASIL, 1988). Miguel (2002, p.25), ao analisar o regime jurídico dos diversos serviços denominados serviços de Inteligência, espionagem ou de informações, sustenta a tese que “o Estado constitucional, enquanto Estado e enquanto constitucional, necessariamente tem que preservar uma série de áreas reservadas ao acesso irrestrito da população”. Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Artigos var a defesa do Estado Democrático de Direito e a dignidade da pessoa humana, devendo ainda cumprir e preservar os direitos e garantias individuais e demais dispositivos da Constituição Federal [...]” (BRASIL, 1999). Trata-se de uma atividade constitucional, porém não constitucionalizada. Dentre os serviços de Inteligência historicamente destacados por suas capacidades operacionais e, ao mesmo tempo, por implementarem efetivos mecanismos de controle democrático, cumpre evidenciar os Serviços americanos e os alemães. Como supedâneo da atividade de Inteligência eficiente e controlada, inexoravelmente constata-se a constitucionalização da Inteligência nesses países. Estados Unidos da América Apesar da Constituição americana não mencionar expressamente seus serviços de Inteligência, as teorias políticas que alimentaram o processo constituinte contemplaram os fundamentos constitucionais aptos a organizar os serviços secretos (MIGUEL, 2002). A partir dessa premissa, a Suprema Corte Americana consolidou o entendimento no sentido que o Poder Legislativo daquele país tem competência universal para regulamentar não somente a atividade de Inteligência, como também para criar, por ato próprio, novas agências a incorporarem sua Intelligence Community (MIGUEL, 2002). Alemanha A República Federal da Alemanha conferiu 144 Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 ao seu serviço federal de Inteligência voltado à defesa da Constituição, o Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV), um fundamento constitucional expresso. A partir dessa regulamentação constitucional positivada, os demais serviços de Inteligência alemães foram regulamentados por normas infraconstitucionais, como leis e regulamentos. Como resultado, o ordenamento jurídico alemão oferece, quiçá, as regulamentações mais detalhadas acerca das competências e controle de seus serviços de Inteligência, mantendo perfeitamente discriminadas as competências da Inteligência e da atividade policial (MIGUEL, 2002). Diante do cenário em que se insere a atividade de Inteligência brasileira, concisamente retratado nestas linhas, percebe-se com clareza solar que esta atividade carece de maiores investimentos em legalidade, justamente a fim de aumentar sua eficiência e, principalmente, a sua legitimidade. Assim sendo, a constitucionalização dessa milenar e estratégica atividade pública, mesmo que de forma sintética, objetivando tão somente institucionalizar em sede constitucional a Inteligência (em suas reconhecidas matrizes, dentre as quais, Inteligência de Estado, Inteligência de Segurança Pública, Inteligência Militar, Inteligência Fiscal e Inteligência Financeira), ampliando os mecanismos de controle democrático sobre a atividade, figura-se como inadiável política pública em prol da segurança da sociedade e soberania brasileiras. A partir da sustentada previsão constitucional positivada, abre-se azo para a regulamentação mais detida, por meio de Lei Complementar (Lei Orgânica), a fim de prescrever de forma detalhada mecanismos de controles acerca das prerrogativas a serem expressamente regulamentadas. O quadro comparativo que se segue (WAGNER, 2017), referente às prerrogativas conferidas pelas respectivas legislações aos principais Fonte: WAGNER, 2017. Disponível em: <http://slideplayer.com.br/slide/10377937/> Serviços de Inteligência estrangeiros ilustra, de forma inexorável, a urgência de o Legislativo pátrio deferir a sua Inteligência brasileira os meios legalmente preconizados, afim de que a mesma possa atuar à altura dos desafios que se apresentam ao País. serviços secretos e a seus mecanismos de controle” (FERRAÇO, 2014). A proposta de emenda à Constituição (PEC) 67/2012, de autoria do senador Fernando Collor (PTB-AL), ora em trâmite no Congresso Nacional, visa ao suprimento dessa lacuna constitucional (BRASIL, 2014). Salta aos olhos, de forma icônica, como a Inteligência brasileira, se comparada aos principais serviços de Inteligência do mundo, se destaca negativamente no que se refere à atribuição de prerrogativas e de meios técnicos universalmente julgados imprescindíveis ao desempenho de sua relevante missão de colaborar no processo de elevar o País ao nível das demais nações soberanas e prósperas. O Título V da CF/88, em cujo âmbito é proposta a inserção de capítulo próprio dedicado à Atividade de Inteligência, enumera as instituições responsáveis pela Defesa (Capítulo II) e pela Segurança Pública (Capítulo III) – resta clarividente a ausência de paralelismo, ao proscrever a Inteligência do texto constitucional. Isso posto, a PEC em comento propugna, pelas razões resumidamente evidenciadas neste trabalho, pela modificação da redação do art. 144-A, de modo que o Sisbin bem como seu órgão central, Abin, estejam expressamente previstos na Constituição da República. É exatamente no sentido de suprir essas lacunas legislativas que, quando presidente da Comissão Mista de Controle das Atividades de Inteligência (CCAI), entre 2013 e 2015, o senador Ricardo Ferraço (PSDB-ES) já defendia que uma iniciativa importante para tornar mais efetivo o controle é dar à atividade de Inteligência de Estado status constitucional: “Não há referência na Carta de 1988 à Atividade de Inteligência, aos Somente por intermédio da elevação da Atividade de Inteligência de Estado ao altiplano constitucional, restará estabelecido um arcabouço normativo mínimo, porém explícito e suficiente, acerca das competências devidas a esta Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 145 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Artigos Prerrogativas Artigos atividade típica de Estado, exercida sempre sob o controle e a fiscalização do Poder Legislativo, consolidando o desenvolvimento de uma cultura de proteção aos conhecimentos sensíveis e a busca de oportunidades, em prol da defesa do Estado e de suas instituições democráticas. Qualquer país democrático e minimamente competitivo no cenário internacional não pode prescindir de serviços de Inteligência fortes e atuantes. Mais do que nunca, considerando-se o fato de vivenciarmos a denominada “era do conhecimento”, o produto obtenível pela atividade de Inteligência – informações estratégicas – ganha relevância inestimável. Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios Conclusões 146 cia pessoal negativa concreta com aquele órgão, afetando negativamente sua capacidade de cumprir suas missões institucionais e democráticas (DAMMERT, 2014. RIBEIRO, 2011. SANDOVAL, 2011). É bem verdade que o índice de confiança e a demanda por maior confiabilidade podem facilmente se misturar na cultura coletiva democrática, de maneira que uma população tende evolutivamente a exigir sempre mais controle e melhores resultados de suas instituições, por mais madura que seja a convivência política (SANTOS e ROCHA, 2011. LOPES, 2004. SCHENEIDER, 2013). No Brasil, em que pese a atividade de Inteligência de Estado ter sido estruturada enquanto instrumento de assessoria às decisões estratégicas do chefe do Poder Executivo desde 1926 e durante toda sua existência ter desempenhado papel imprescindível ao avanço do País em consolidar-se enquanto nação soberana e próspera, sua imagem, ainda hoje, em alguns setores da sociedade, é associada à episódios repressivos operados por todo o conjunto de órgãos de controle que eram demandados durante o Regime Militar. Urge que o Brasil, sem desconsiderar as lições do passado, projete-se rumo à vocação de nação próspera e soberana que lhe é devida. A consequência mais deletéria ao interesse público desse estigma que impregnou a imagem da Inteligência de Estado foi, notadamente nos anos seguintes à reabertura democrática, lançar esta atividade pública nas sendas do ostracismo e da proscrição. Uma grave consequência desse processo emerge no fato de a Assembleia Constituinte de 1988 ter ignorado completamente a existência da Inteligência de Estado, redundando, irônica e lamentavelmente, em menos regulamentação da atividade sob a ótica do controle de seus produtos e do emprego de suas prerrogativas. Tal regulamentação coube à Lei n. 9.883 de 1999, diga-se de passagem, de forma bastante lacônica – o que não atende aos princípios constitucionais que gravitam em torno do conceito de Estado Democrático de Direito. Essa relutância é, em parte, compreensível na ambiência da sociologia política: a confiança nas instituições é proporcional à maturidade do contexto político em que estão inseridas, de maneira que tende a ser muito menor nas democracias recentes que naquelas estabelecidas há mais tempo e de maneira mais estável (RENNÓ, 2001. SILVA e RIBEIRO, 2016. RIBEIRO, 2011), muito mais pela baixa expectativa com relação à sua atuação do que em virtude de uma experiên- É evidente que, após uma atuação nebulosa durante o Regime Militar, os serviços de Inteligência foram duramente atingidos com a redemocratização, praticamente extintos e até hoje, em que buscam lentamente se reestruturar, quase inteiramente privados das prerrogativas legais que todos os países democráticos e avançados do planeta asseguram aos seus congêneres, mas também que, ironicamente, foram igualmente relegados a um controle distante e pífio por parte da sociedade a que devem servir e que tanta des- Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 Artigos Referências Bibliográficas ANTUNES, Priscila Carlos Brandão. SNI & ABIN: Entre a Teoria e a Prática. FGV Editora. Rio de Janeiro, 2001. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2011. BARBOSA, Leonardo Augusto de Andrade. 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Rev. bras. segur. pública São Paulo v. 12, n. 1, 134-150, fev/mar 2018 147 Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Diante de todo enredo sucintamente descrito no presente trabalho, constata-se o quão carente de regulamentação encontra-se a atividade de Inteligência no Brasil, redundando no risco de graves violações a princípios republicanos, dentre eles o da eficiência e do controle. A única maneira de esvanecer as brumas de um passado questionado é estabelecer regras claras e mecanismos eficientes de controle da atividade de Inteligência que permitam, ao mesmo tempo, ferramental jurídico para a atuação das instituições de Inteligência, mas também, ao cidadão, a garantia de que essa atuação será sempre e apenas a serviço do bem comum e da democracia – do que resultaria, aliás, uma garantia essencial para o operador, para o trabalhador do SISBIN: o de não receber demandas ou missões que afrontem a sua consciência, de não temer por si mesmo ao aceitar uma ordem legal ou recusar uma ilegal, na medida em que essas fronteiras estejam claramente traçadas e haja mecanismos de controle que as assegurem. A constitucionalização da Inteligência de Estado brasileira, com redação sucinta que se defende neste trabalho, mostra-se hábil a incrementar significativamente os meios de controle externos, aprimorar a regulamentação de prerrogativas e técnicas passíveis de emprego pelos profissionais de Inteligência, e por fim, promoverá a legitimidade e o apreço público que esta atividade pública, como qualquer outra, merece. Com ela pode iniciar-se um ciclo de ganhos recíprocos (DURAND PONTE, 2006. LANIADO, 2001), no qual a sociedade, à medida em que dispõe de mais e melhores mecanismos de controle sobre essa atividade, deposita maior confiança nas instituições de Inteligência e, consequentemente, oferece-lhe maior colaboração e melhores instrumentos para funcionar; ao longo do tempo, o efetivo exercício desse controle cidadão e a apresentação dos frutos práticos da atividade de Inteligência retroalimentam o ciclo virtuoso, subsidiando um desenvolvimento constante do Brasil. Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios confiança lhes reserva. Artigos Gibran Ayupe Mota, Henrique Geaquinto Herkenhoff, Pablo Silva Lira e Erika da Silva Ferrão Constitucionalização da Atividade de Inteligência - Perspectivas e Desafios Brasilerios ______. Discursos Senado Federal: espionagem cibernética. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ emdiscussao/edicoes/espionagem-cibernetica/realidade-brasileira-sem-cultura-de-inteligencia/congresso-deve-fiscalizar-acoes-do-servico-secreto). Brasília, 2014. GONÇALVES, Joanisval Brito. Sed Quis Custodiet Ipso Custodes? O controle da atividade de Inteligência em regimes de¬mocráticos: os casos de Brasil e Canadá. Tese de doutorado. Universidade de Brasília, 2008, p. 294. ______. Doutrina Nacional da Atividade de Inteligência: fundamentos doutrinários. – Brasília: Abin, 2016. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 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