Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ANAIS
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Anais do 12º Encontro Nacional de História da UFAL:
Genocídios na História:
passados, presentes, futuros
Comissão Organizadora
Ana Paula Palamartchuk (UFAL)
Anderson Almeida (UFAL)
Danilo Luiz Marques (UFAL)
Elias Ferreira Veras (UFAL)
Irinéia Maria Franco dos Santos (UFAL)
Lídia Baumgarten (UFAL)
Michelle Reis de Macedo (UFAL)
Comissão Científica
Aline Rochedo Pachamama - Churiah Puri (Pachamama Editora)
Álvaro Nascimento (UFRRJ)
Ana Cláudia Aymoré Martins (UFAL)
Ana Paula Palamartchuk (UFAL)
Anderson da Silva Almeida (UFAL)
Andréa Giordanna Araújo da Silva (UFAL)
Antônio Alves Bezerra (UFAL)
Arrizete Cleide Lemos Costa (UFAL)
Aruã Lima (UFAL)
Cássio Junio Xucuru Kariri (SECULT - PALMEIRA DOS ÍNDIOS)
Claudio Tomás (Universidade Agostinho Neto/Angola)
Danilo Luiz Marques (UFAL)
Edson Kayapó (IFBA)
Elias Ferreira Veras (UFAL)
Flávia Maria de Carvalho (UFAL)
Flávio dos Santos Gomes (UFRJ)
Gian Carlo de Melo (UFAL)
Iracélli da Cruz Alves (IFBA)
Irinéia Maria Franco dos Santos (UFAL)
Ivanildo Gomes dos Santos (UFPB)
Jéssica Evelyn Pereira dos Santos (UFRJ)
José Vieira da Cruz (UFS)
Lídia Baumgarten (UFAL)
Luana Teixeira (UFAL)
Luís Alberto Marques Alves (Universidade do Porto/Portugal)
Marcelo Góes Tavares (UNEAL)
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Matheus Carlos O. de Lima (Egresso PPGH/UFAL)
Michelle Reis de Macedo (UFAL)
Muryatan Barbosa (UFABC)
Osvaldo Maciel (UFAL)
Pedro Lima Vasconcellos (UFAL)
Raquel Parmegiani (UFAL)
Renata Meirelles (UNIRIO)
Sandra Catarina de Sena (Egressa PPGH/UFAL)
Wellington da Silva Medeiros (SEDUC-AL)
Ynaê Lopes dos Santos (UFF)
Monitoria
Adeildo José dos Santos Júnior
Anderson Inácio da Silva
Ana Clara Martins Miranda
Ana Paola Santos Silva
Arthur Davis do Nascimento Lima
Bruno Rodrigo Carvalho de A. da Silva
Camilly Victória dos Santos Torres
Carla Catarina dos Santos
Carolina Maria Albuquerque de Lima
Caroline Alexandre Cavalcante de Almeida
Elaine Menezes Araujo
Evangelista dos Santos Ferreira
Haniel Soares Lemos
Helena Sayane dos Santos Silva
Hilda Maria Couto Monte
Ícaro Samuel Santos Barros
Isaac Freitas da Silva Filho
Jammerson Leonardo da Silva Sales
Jennifer Thayna de Lima dos Santos
Jonatas dos Santos Silva
Lara Fernanda Café da Silva
Larissa da Silva Vieira
Lauane Beatriz da Silva Paixão
Marcio Vinícius do Nascimento Ramos
Maria Cecília Santos Cerqueira da Silva
Maria Fernanda Alves da Silva
Maria Laura Rosas Soares Silva
Marília Gabryella dos Santos Silva
Marina Andréa Moreira Cunha
Matheus Elifaz da Costa Ribeiro Cavalcanti
Matheus Henrique Pereira Ayres Câncio
Nicolas Kervin Menezes de Almeida
Paulo Henrique Araújo dos Santos
Pedro Vinícius dos Santos Lima
Samuel Soares da Silva
Vandejer Adrian Melo das Chagas Filho
Vitória Moreira Antoniol
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Anais do 12º Encontro Nacional de História da UFAL
Genocídios na História: passados, presentes, futuros
(Editoração e Revisão)
Bruno Rodrigo Carvalho de A. da Silva
Hilda Maria Couto Monte
Camilly Victória dos Santos Torres
Irinéia Maria Franco dos Santos
Maria Cecília Santos Cerqueira da Silva
Michelle Reis de Macedo
Realização
Cursos de História - graduação e pós-graduação - UFAL e Centro de Pesquisa e Documentação
Histórica (CPDHis-UFAL)
Apoio e Agradecimentos
Programa de Pós-Graduação em História (PPGH)
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Catalogação na fonte Universidade Federal de Alagoas Biblioteca Central
Divisão de Tratamento Técnico
Bibliotecário: Marcelino de Carvalho Freitas Neto – CRB-4 - 1767
C748
Encontro Nacional de História (12 : 2021 : Maceió, AL);
Anais do 12o. Encontro Nacional de História da UFAL: Genocídios na História:
passados, presentes, futuros. – Maceió: UFAL, 2021.
829 p.
Inclui bibliografias.
Organização: Universidade Federal de Alagoas. Departamento de História.
Centro Científico de Pesquisa e Documentação Histórica.
ISSN 2176-284X
Maceió (AL)
Novembro
2021
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Sumário dos Textos Completos
ST01 – Escravidão e Pós-Abolição .......................................................................................... 13
Mulato ou Homem de Cor: Atuação política dos negros livres (1833) ................................................... 13
Ana Paula Caetano da Silva
Quem delle/della souber: cotidiano e vestuário dos escravizados por meio da seção Escravos Fugidos do
Diario de Pernambuco ............................................................................................................................. 23
Dionisio Tito de Barros Neto
“E que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas”: algumas notas sobre a família de escravizados
africanos e a reprodução natural em Pernambuco (século XVIII) ......................................................... 33
Filipe Matheus Marinho de Melo
“Reprimir vadios e contê-los na desregrada vida que levam”: cenas do pós-abolição em Maceió (18801910) ......................................................................................................................................................... 44
Kedimo Barbosa da Paixão
Quilombos urbanos na Paraíba: a cultura, a resistência e a luta do povo preto paraibano .................... 57
Kynara Eduarda Gonçalves Santos
J. Jonas Mangueira
Ana Maria Veiga
Os debates acerca da escravidão no Brasil na segunda metade do século XIX ..................................... 71
Lara de Sousa Lutife
Criminalizações e silêncios: a construção de uma representação do medo branco em torno do escravo
Lucas da Feira, 1890-1910 ....................................................................................................................... 85
Lázaro de Souza Barbosa
Quebrando as correntes: o letramento dos negros e escravizados no século XIX ................................. 95
Maria Lidiane Santos Cardoso
Aqueles que descem aos sertões: o processo de escravização das populações nativas amazônicas durante
o século XVIII ....................................................................................................................................... 106
Nathália Moro
Anelisa Mota Gregoleti
Gabrielle Legnaghi de Almeida
Entre a filantropia e a civilização: os debates sobre a escravidão nos periódicos de Alagoas (1850-1888)
................................................................................................................................................................. 115
Vanieire dos Santos Oliveira
ST02 – Histórias de África, Histórias da Diáspora: Diálogos, Abordagens e
Conexões ........................................................................................................................................... 123
"Da conservação do Reino de Angola depende todo o estado do Brasil": a política violenta dos
governadores de Angola e o comércio no Atlântico Sul (1648-1666) ................................................... 123
Ana Maria Soares de Araújo
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Notas para o estudo da imprensa angolana oitocentista ........................................................................ 135
Eduardo Antonio Estevam Santos
Notas sobre os Serviços de saúde na Província de Angola: sujeitos, instituições e práticas (1845-1880)
................................................................................................................................................................. 144
Idalina Maria Almeida de Freitas
Conhecimento Antropológico e Colonialismo em Angola (1926-1961) ............................................... 154
Jéssica Evelyn Pereira dos Santos
O protagonismo dos senhores da guerra nas relações políticas e comerciais na África Centro-Ocidental
(segunda metade do século XVIII) ........................................................................................................ 168
Leonardo Oliveira Amaral
Intérpretes africanos da administração colonial francesa e a produção da história: entre retratos,
silêncios, arquivos e hiperlinks (décadas de 1880 e 1890) .................................................................... 179
Rafaél Antônio Nascimento Cruz
Vicus Juda: redes de comércio judaico na Villa de Penedo Neerlandês (1637 a 1646) ...................... 191
Robson Williams Barbosa dos Santos
ST03 – História da Educação: Objetos de estudo, Teorias, Fontes e Metodologias
de Pesquisa......................................................................................................................................... 210
O Ensino de História da Educação Local: formação profissional e identitária de professores ............ 210
Andrea Giordanna Araujo da Silva
Sujeitos revolucionários: trabalhadores/as rurais como fonte de conhecimento histórico escolar ....... 226
Adriana Mastrangelo Ebecken
SECADI (2001-2019): vestígios materiais de uma breve política afirmativa indutora da educação
antirracista .............................................................................................................................................. 236
Aldilene do Nascimento Alves
Ana Lucia Malta Soares
Andréa Giordanna Araújo da Silva
Ensino de História Local nos estados brasileiros: um mapeamento legislativo (1990-2019) ................ 245
Gabriel Costa de Souza
Professor Cônego Valente e as configurações para o Ensino da História do Brasil colonial no Liceu
alagoano (1929-1952) ............................................................................................................................. 259
Ivanildo Gomes dos Santos
O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939) como fonte para a História das Instituições
Escolares em Alagoas ............................................................................................................................. 273
Marcondes dos Santos Lima
Instruções pedagógicas para o trabalho da professora primária veiculadas pela Revista do Ensino de
Minas Gerais (1925-1930) ...................................................................................................................... 286
Monalisa Lopes dos Santos Coelho
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A imprensa escrita como fonte na pesquisa histórica ............................................................................ 299
Sheila Cristina Ferreira Gabriel
ST04 – O Brasil Republicano: Histórias, Memórias, Historiografia ....................... 312
Protagonismo das mulheres indígenas em Alagoas (1989-2010) ........................................................... 312
Ana Valéria Dos Santos Silva
“A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”: memórias do jornalismo brasileiro - entre o
silenciamento e o reconhecimento ........................................................................................................ 323
Carlos Alberto de Melo Silva Mota
História e memória em narrativas orais como experiências de lutas para (re)afirmação da identidade: de
Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe (1978-2021)
................................................................................................................................................................. 339
Ivanilson Martins dos Santos – Xokó
A gente é trabalhador: a (in)existência do ferroviário na Historiografia do Ceará republicano (19701997) ....................................................................................................................................................... 357
Jaciara Azevedo Rodrigues
Fernando Collor de Mello através das charges do Jornal de Alagoas (1989 – 1992) ............................ 366
José Cláudio Lopes dos Santos Junior
A banda de música da polícia militar de Alagoas como meio de ascensão social para o músico: trajetória
do
capitão
Jonas
Duarte
da
Silva
(1952-1980)
................................................................................................................................................................. 379
José Guido Dantas Lessa da Silva
A Censura à Revista Adventista durante o Governo Médici (1969-1974) ............................................. 390
Moizes Saboia da Silva
A representação dos superpoderes nas histórias em quadrinhos - aspectos históricos dentro da
sociedade ................................................................................................................................................ 402
Peter Ferreira
O anticomunismo nas páginas da Revista do Clube Militar (1995-2005) ............................................. 412
Vitória Weber Vieira do Nascimento
ST05 – História e Marxismo...................................................................................................... 424
Genocidio político: el extermínio de la Unión Patriótica en el marco del conflicto armado en Colombia
Felipe Garzón Serna ............................................................................................................................... 424
O genocídio ucraniano na histórica guerra diplomática Rússia-Ucrânia ............................................... 431
Maurício da Silva Lima
ST06 – Combates pelo Ensino de História: teoria e prática em tempos de
negacionismo histórico ................................................................................................................ 445
Compromissus com os saberes ancestrais na sala de aula ..................................................................... 445
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Sueli do Nascimento
Alonso Bezerra de Carvalho
ST07 – Formação Inicial e Continuada: a Educação Histórica como forma de
construir a Consciência Histórica de Estudantes e Professores (as) do Estado de
Alagoas................................................................................................................................................. 458
Africanidade e formação docente: reflexões sobre o Ensino de História no Alto Sertão alagoano ..... 458
Tamires Vieira da Silva
ST08 – Mulheres, raça e classe: história e abordagens intelectuais, luta por
direitos e organizações sociais ................................................................................................... 470
Trabalho, violência e feminismo para o Movimento de Mulheres Camponesas (MMC) .................... 470
Caroline Gonzaga
A mulher como sujeito silenciado na sociedade, 1970-2021.................................................................. 484
Diana Melo Silva
A inserção da pauta das mulheres na esfera pública e a democratização brasileira............................... 496
Glenda Lunardi
Feminismo e ecofeminismo: a marcha pela vida das mulheres e pela Agroecologia - PB ................... 508
Laís de Oliviera Neves
Eu vejo você............................................................................................................................................ 518
Maria Adriana Pereira dos Santos
As mulheres indígenas na cidade de Garanhuns-PE.............................................................................. 527
Verônica Araújo Mendes
ST09 – Territórios e Saberes Históricos: embates/debates ……………………….…......... 534
Nativos americanos e abundância da abundância da Mata Atlântica: a exploração das naus
europeias.........................................................................................................……….…………………......... 534
Anelisa Mota Gregoleti
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Gabrielle Legnaghi de Almeida
Nathália Moro
Historiografia Ambiental: problemas, práticas científicas e combate pelos direitos comunais…....……. 542
Arrizete C. L. Costa
As múmias Incas e os caçadores de cabeças: Ritos fúnebres, epistemicídio e genocídio de populações
americanas pré-colombianas …………...................................................................................................... 552
Eduardo Mangolim Brandani da Silva
Anelisa Mota Gregoleti
Gessica de Brito Bueno
Petrolândia: uma velha cidade submersa no submédio do São Francisco pernambucano ................ 565
Érica Gabriela Fonseca de Menezes
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Paraíso destruído de Bartolomé de las Casas: a denúncia do genocídio nativo americano na Era dos
Descobrimentos………............................................................................................................................. 575
Gabrielle Legnaghi de Almeida
Anelisa Mota Gregoleti
Nathalia Moro
Genocídio indígena na contemporaneidade .......................................................................................... 582
Henry Mähler-Nakashima
“Sacó hueste para yr contra los moros”: o fazer da guerra e o panorama das disputas territoriais na
Crónica de Castilla (séc. XI a XIV)…………............................................................................................. 594
Higor Soares de Melo
Debate de História Ambiental: cultura e sustentabilidade ecológica nas Reservas Extrativistas Marinhas
do Brasil (1990-2020) …………….............................................................................................................. 607
Marcus Vinícius da Silva Santos
ST10 – Narrativas Dissidentes: historiografia, gênero, interdisciplinaridade e
interseccionalidade ........................................................................................................................ 620
Vidas trans importam! A série Pose numa análise histórica................................................................... 620
Hblynda Morais
Rafaela Lima De Souza
Os tabus da sexualidade feminina e a apreensão social do gênero ....................................................... 634
Ingryd Damásio Ribeiro Tófani
A representação da domina no afresco da Vila dos Mistérios, Pompeia (século I EC) ....................... 643
Irlan de Sousa Cotrim
Fazer da teoria um lugar de cura: narrativas dissidentes na encruzilhada epistêmica ........................... 656
Lucas Silva Dantas
Homossexualidades e travestilidades na literatura capixaba na década de 1980: discursos e
representações ........................................................................................................................................ 669
Randas Gabriel Aguiar Freitas
Narrativas nas margens: histórias e memórias de mulheres .................................................................. 678
Silvano Fidelis de Lira
ST11 – Dinâmicas Religiosas na História ........................................................................... 690
As mulheres na Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios da Cidade das Alagoas (1851-1900) ........... 690
Élida Kassia Vieira da Silva
““Ou cismas, ou prisões, ou apostasia ou cadeia”: Administração das freguesias da província no contexto
de embate entre o regalismo e o ultramontanismo em Alagoas (1859-1868) ....................................... 702
Lydio Alfredo Rossiter Neto
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“Subversão para êles é tudo o que êles querem. Ou melhor tudo o que êles não querem ”: relação entre
Igreja Católica piauiense e regime militar no O DOMINICAL (1964-1972) ....................................... 712
Mariana Rita de Paula
“A mulher sábia edifica a sua casa” – Imprensa maçônica, mulheres e o combate ao jesuitismo no
periódico Labarum (1874-1875) ............................................................................................................ 721
Marney Garrido
Sacerdócio, ação social e repressão na implantação do regime civil militar: a trajetória de Humberto de
Araújo Cavalcanti ................................................................................................................................... 731
Séfora Junqueira dos Santos
Memória, Identidade e História: por uma reflexão acerca da produção historiográfica dos festejos de
Nossa Senhora do Rosário em Delmiro Gouveia (Alagoas), 1951-2021 .............................................. 741
Thiego da Silva Barros
Entre pesos e batinas: a participação do padre Ibiapina no Quebra-Quilos ......................................... 752
Wellington Luís de Albuquerque Espíndola
O Caminho do Direito e o Sagrado no Ilê Asé Sogbô Aganjú da Yalorixá Zefinha de Aganjú ........... 764
Wellington Ricardo Felix dos Santos
As guerras sexuais no Anglicanismo contemporâneo: um histórico das rupturas na Diocese Anglicana
do Recife (2002-2018) ............................................................................................................................ 779
Wilton da Silva Rocha
Mesa de Encerramento
Epistemícidio e o silenciamento do passado: combatendo o racismo historiográfico .......................... 792
Palestrantes: Álvaro Pereira Nascimento, Flávio dos Santos Gomes e Ynaê Lopes dos Santos
Mediador: Danilo Luiz Marques
Transcritor(a): Ana Beatriz L. de Araújo
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Textos Completos
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ST01 – Escravidão e Pós-Abolição
Mulato ou Homem de Cor:
Atuação política dos negros livres (1833)1
Ana Paula Caetano da Silva2
Resumo: A imprensa do século XIX possui um papel importante, especialmente para a
disseminação de ideias e discussão de projetos políticos na esfera de gestação do espaço
público no Brasil. No período regencial (1831-1840), ela exerceu uma relevante atribuição
diante das disputas políticas em cena, marcado por transformações e novas ideias, que
circulavam na nação recém independente, sendo o liberalismo uma delas. Foi neste cenário de
transformações que a imprensa negra deu seus primeiros passos. Neste texto, temos como
objetivo central analisar o pasquim O Mulato ou Homem de Cor − publicado em 1833 no Rio
de janeiro pela tipografia Fluminense de Paula Brito − inserido num horizonte mais amplo dos
pasquins negros, que se disseminaram na primeira metade do século XIX. Para tal, faz-se
necessário expor e analisar a atuação política dos negros livres e seus respectivos papéis naquele
contexto, bem como o papel exercido pela imprensa. Por fim, compreendemos a atuação
política do pasquim O Mulato, ou o Homem de Cor como o início da imprensa negra no
Brasil, denunciando as hostilidades, os preconceitos, lutando pelos direitos garantidos pela
Constituição de 1824, além de ter aberto espaço para o desenvolvimento de outros impressos
negros.
Palavras chaves: Homens livres, Imprensa Negra, Período Regencial.
A historiografia tratou o Período Regencial (1831-1840), como um período caótico e
anárquico, tendo como cerne as diversas revoltas e rebeliões que houve em todo o Brasil,
porém, nos últimos anos esse período vem sendo tratado sob novas perspectivas. De acordo
1 A presente pesquisa é parte do desenvolvimento do projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), na
Universidade Estadual de Londrina, sob a orientação da Professora Drª Célia Regina da Silveira. Apresentamos,
neste artigo, parte do estudo feito para o primeiro capítulo, o qual analisa o contexto de produção e circulação do
pasquim O Mulato ou Homem de Cor.
2 Graduanda na Universidade Estadual de Londrina (UEL). E-mail: anacaetanno133@gmail.com
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com Basile (2009)3, o período Regencial é complexo, atuando como um contexto de inúmeras
possibilidades, pois novos agentes sociais passaram a ter destaque na historiografia em geral e,
por sua vez, nos estudos sobre as regências. Para o autor, a historiografia por muito tempo não
lidou com a complexidade e particularidades que este período possui e requer ainda muitos
estudos.
O Período Regencial é marcado por diversas disputas políticas, os principais grupos
políticos que participaram desses conflitos são denominados: Moderados, Exaltados e
Restauradores. Os dois primeiros grupos se denominavam liberais, todavia, tinham linhas
divergentes. Enquanto os Restauradores, como o nome indica defendiam a monarquia absoluta
na pessoa de D. Pedro I.
O Sete de Abril − data da abdicação de D. Pedro I − trata-se de um movimento
complexo, que abriu espaço para que outros agentes sociais participassem, e com isso novas
demandas se desenvolvessem. Apesar de ter grupos políticos à frente do movimento, a
participação popular foi muito importante, uma vez que movimentou centenas de pessoas,
trazendo uma politização para as ruas (BASILE, 2009, p.59). As associações políticas, que
lideravam o movimento eram os liberais, Moderados e Exaltados, que neste momento se unem
com um objetivo em comum, a abdicação de D. Pedro I.
A participação popular no movimento não trouxe grandes resultados, como sublinha
Arnaldo Fazoli Filho (1990), o povo continuaria lutando, já que esses não possuíam influência
nenhuma no governo que se instaurou. Dessa forma, o autor denomina como “Jornada dos
Logrados”4. Portanto, os Moderados ficaram à frente do governo no período Regencial, e este
grupo político defendia os interesses da elite, sendo assim, a participação popular na abdicação
não passou “de uma Jornada de Logrados” (FILHO, 1990, p.20). Além disso, a Guarda
Nacional foi criada como uma forma de conter possíveis tentativas de golpe, advinda não
apenas do povo, mas de outros grupos políticos, como os Restauradores e os Exaltados.
Os primeiros anos da Regência, é marcado pelo avanço liberal, no qual se tinha maior
autonomia para as províncias e liberdade de imprensa. Entretanto, esse avanço liberal durou
até o regresso restaurador, período esse que se encaminhou para o início do Segundo Reinado.
Como aponta Filho (1990), o progresso do liberalismo neste contexto não está relacionado a
3 BASILE, Marcello. O laboratório da nação: a era regencial (1831-1840). In Grinberg, Keila; Salles, Ricardo
(orgs). O Brasil Imperial- vol II 1831- 1889. Vol II. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
4 FILHO, Arnaldo Fazoli. O Período Regencial. São Paulo: Editora Ática S.A, 1990, p. 20
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democracia, isso porque tinham o interesse de ascensão dos comerciantes e o fim dos
privilégios; todavia, sem tocarem no ponto da escravidão, tendo-a mantida.
Os grupos políticos Exaltados e Moderados uniram-se e tomaram à frente do Sete de
Abril, no entanto, essa união durou até a disputa de poder, momento em que se tornaram
oposição. Os liberais Moderados, contavam com grande influência no governo regencial,
defendendo os seus interesses, que eram voltados para os bens da elite. Além disso, esse grupo
político queria impedir os “baderneiros” e anárquicos, referindo-se aos Exaltados, que eram
assim descritos nos impressos Moderados (FILHO, p.24).
Os Moderados, estavam organizados desde 1826, seus integrantes eram advindos não
apenas do Rio de Janeiro, mas de outras províncias como São Paulo e Minas Gerais, ocupavam
em sua maioria do setor militar, além do comércio. Os Moderados, tinham como principal
linha liberal marcada pelos autores clássicos como John Locke, Guizot, Benjamin Constant,
assim defendiam a autonomia das províncias e do judiciário, redução dos poderes do
imperador, ainda eram a favor da manutenção da escravidão (BASILE, p. 61).
Os Exaltados, organizados desde 1829, possuíam um grupo social heterogêneo, poucos
eram seus representantes no governo, ocupavam setores como: militar, cargos públicos civis e
eclesiásticos. Os autores que norteavam o pensamento liberal dos Exaltados eram Rousseau,
Thomas Paine, Montesquieu, pensadores que defendiam a ampliação dos direitos políticos e
civis, o fim gradual da escravidão e uma relativa igualdade social (BASILE, p.61).
Diante a este contexto de indefinições e lutas políticas, a imprensa era um locus central
de debate e atuação dos grupos políticos. Neste sentido, fomentou os embates entre as
associações políticas bem como permitiu que diferentes vozes alcançassem maior visibilidade.
De acordo com Lima (1999), o número de folhas, panfletos e cartas cresce com a liberdade de
imprensa. Essa expansão é acompanhada pelo aumento de tipografias instaladas no Rio de
Janeiro5.
O redator nunca era apenas redator. Isso se dava por não haver especialização
profissional, assim os redatores mantinham outras profissões, como: políticos, livreiros, donos
de comércio e afins. Uma vez que, a imprensa se instalou no Brasil, com a vinda da família
5 LIMA, Ivana Stolze. Com a palavra, a cidade mestiça: Imprensa, política e identidade no Rio de Janeiro, 18311833. In: MATTOS, llmar Rohloff de. (Org.). Ler e escrever para contar - Documentação, historiografia e
formação do historiador, Rio de Janeiro, Access Editora, 1999. p. 161-184.
15
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Real em 1808, ao longo dos anos foi se tornando cada vez mais importante6, sendo utilizada no
período Regencial, como “as arenas políticas" (BASILE, 2009), pois era consumida de forma
ampla e aberta. Neste sentido, Basile afirma:
Esse desenvolvimento da imprensa vinculava-se intimamente às disputas
políticas, à emergência de diferentes projetos políticos e à mobilização da
opinião pública. Foi a arena na qual os debates transcorreram com maior
abertura e amplitude, além de franca virulência, facilitados pela relativa
liberdade de expressão e pela prática comum do anonimato (BASILE, 2009,
p. 65).
Mesmo com a grande quantidade de analfabetos, os números de jornais e panfletos
aumentaram, tornando-se a principal forma de comunicação. A partir de 1831, houve a
proliferação dos pasquins, sendo que em 1833 temos o registro dos primeiros pasquins negros.
Esta categoria de impresso, se diferenciava dado as suas características específicas, da qual
Nelson Werneck Sodré, em suas pesquisas feitas ainda na década de 1960, especificou-as:
A técnica de imprensa, ainda nos primeiros passos no país, ao tempo,
acrescentou características formais ao pasquim: formato in-4º, quatro páginas
em regra, preço de venda avulso de 40 réis, 80 no caso de dobrar o número
de páginas. Não havia venda na rua; comprava-se nas tipografias e nas lojas de
livros indicadas, exemplares isolados ou por assinaturas. O título se referia, via
de regra, a pessoa, acontecimento, coisas de interesses notório no momento;
quando não, sob disfarce, guardava alusão a isso. O pasquim, habitualmente
não trazia o nome do redator (SODRÉ, 1999, p.158).
Os pasquins não tinham um objetivo comercial, à vista disso, durava poucas edições,
não tendo grande tiragem, sua circulação ficava restrita às áreas urbanas do local de publicação.
Portanto, no ano de 1833, diversos pasquins surgiram, com títulos sugestivos, como: O
6 Para saber mais sobre o início da imprensa no Brasil, consultar: LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa
brasileira. Rio de Janeiro:Jorge Zahar Ed, 2004.
16
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Cabrito7, O Meia Cara8, Lafuente9, Brasileiro Pardo10, e o Mulato ou Homem de Cor11 − nosso
objeto de estudo.
Ana Flávia Magalhães Pinto (2010), em sua pesquisa faz uma análise de vários
impressos, entre os anos de 1833 e 1899, apresentando uma diversidade de locais e contextos.
No entanto, como assinala a autora, mesmo com as diferenças de tempo e espaço, os
conteúdos tratados nestes impressos se assemelham. Dessa forma, pretende-se neste texto
expor um dos primeiros impressos negros que se tem conhecimento. Intitulado, primeiramente
como O Homem de Cor, foi publicado entre os meses de setembro e novembro de 1833, no
Rio de Janeiro, contendo cinco edições. Em sua terceira edição, tem o nome alterado para O
Mulato, ou O Homem de Cor , foi publicado pela tipografia Fluminense de Brito e Cia,
12
pertencente ao jovem Francisco Paula Brito13.
O jovem negro Paula Brito, foi mais um dos homens de cor a fazer sua carreira no
mundo das letras, isso porque o fato de saber ler e escrever, em um contexto no qual a maioria
da população era analfabeta, era um diferencial, ainda mais sendo negro e descendente de
escravos, parcelas da população (negros livres e escravos) em que o analfabetismo intensificavase (FELIPE,2016, p.75). Como aponta Felipe (2016), a escrita também era tida como uma
forma de ascensão, o mundo das letras não rendia muito; por isso, muitos iniciavam sua
7 O impresso é intitulado O Cabrito, sua primeira edição foi publicada no dia 07 de novembro de 1833, pela
Typographia de Miranda & Carneiro, este impresso possui apenas duas edições, a primeira se encontra na
Hemeroteca Digital (BND), de onde foi retirada tais informações.
8 O pasquim Meia Cara, publicado em 11 de novembro de 1833, pela Typographia Fluminense de Brito & Cia, a
mesma tipografia onde foi impresso o pasquim Mulato ou Homem de Cor. A principal pauta do “Meia Cara” era
o antilusitanismo.
9 Contendo apenas uma edição, Lafuente, é um pasquim publicado no dia 16 de novembro de 1833, pela
Typographia Paraguassu, seu conteúdo denuncia a perseguição ao Sr. Maurício José de Lafuente, este era
perseguido dado a sua atuação política a favor dos restauradores.
10 O impresso Brasileiro Pardo, difundido primeiramente no dia 21 de outubro de 1833, pela Typographia
Paraguassu, mesma tipografia onde foi impresso o pasquim Lafuente, sua posição política era voltada para os
“caramurus” ou “restauração”.
11 Intitulado primeiramente como O Homem de Cor, tem sua primeira edição publicada dia 14 de setembro de
1833, possui cinco edições, não contendo uma periodicidade. O nosso objeto de estudo se encontra na
hemeroteca digital, da Biblioteca Nacional, tendo todas as edições digitalizadas e disponíveis para download. Link:
http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=701815&pagfis=1. Acesso em: Outubro de 2021
12 O impresso não apresenta nenhum motivo para tal alteração no título. Nas leituras feitas até o momento
também não há explicações. Porém, essa será uma questão que a presente pesquisa pretende ainda amadurecer e
levantar hipóteses possíveis, tendo em vista o significado da categoria social dos mulatos na primeira metade do
século XIX.
13 Francisco Paula Brito, nasceu em 1809, no Rio de Janeiro, negro e descendente de escravos, foi comerciante
no ramo dos livreiros, sendo proprietário da Typographia Fluminense de Brito & Cia, entretanto o auge da sua
carreira foi com a Typographia Dous de Dezembro. Em sua carreira lançou nomes como Machado de Assis,
faleceu em 1861. Para mais informações consultar a pesquisa de Rodrigo Godoi. GODOI, Rodrigo Camargo de.
Um editor no império: Francisco Paula Brito (1809-1861). São Paulo: editora da Universidade de São Paulo,
Fapesp,2016.
17
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
carreira nas tipografias, como o Paula Brito, que ganhou maior notoriedade como tipógrafo,
mas também foi escritor, poeta e redator.
A tipografia Fluminense de Brito e Cia editou, imprimiu e vendeu o pasquim Mulato
ou Homem de Cor, desde sua primeira edição; porém, existem autores que trazem como
hipótese de que o dono da tipografia Fluminense, Francisco Paula Brito, seja o redator do
pasquim. Ana Flávia Magalhães, faz uma ponte da relação entre o jovem negro e o impresso,
afirmando que a sua tipografia era um espaço de debate e reuniões da Petalógica, sociedade
lítero-humorística, que era liderada por Brito (PINTO, p. 34-35). Paula Brito, era filiado ao
grupo político liberal Exaltado, grupo esse que o pasquim também fazia parte, outro episódio
que coincide com o conteúdo do pasquim, é fato de que dois anos antes da publicação do
Homem de Cor, Paula Brito tentou um cargo no Senado, junto ao regente da época −
Francisco de Lima e Silva − todavia, foi uma tentativa frustrada, e depois desse episódio Paula
Brito não tentou outro cargo público. (GODOI, 2016).
No entanto, são apenas hipóteses levantadas, uma vez que não se tem nenhuma
informação concreta. Nesta direção Rodrigo Godoi, que em sua pesquisa faz um panorama da
vida e carreira de Francisco Paula Brito, afirma: “O único laço empírico que se pode
estabelecer com segurança entre O Mulato ou Homem de Cor e Francisco de Paula Brito é
que esse periódico foi impresso na Tipografia Fluminense de Brito e Companhia.” (GODOI,
2016, p. 90).
O pasquim apresenta em seu cabeçalho, além do título, algumas informações. Todavia,
o que mais chama a atenção é que do lado esquerdo, o redator evidencia um artigo da
Constituição de 1824, o parágrafo XIV do art.179, onde se enfatiza que todos os cidadãos
brasileiros, poderiam ser admitidos em cargos públicos civis, militares e políticos desde que
tivessem os talentos e virtudes necessários. Ao passo que do lado direito, o pasquim apresenta o
ofício do dia 12 de junho de 1833, do Presidente da província de Pernambuco Manuel
Zeferino, onde este propõe que haja eleições, para que não tenha confusões entre os povos.14
Os dizeres descritos estão presentes em todas as edições.
Deste Modo, havia um determinado medo de que os negros ascendessem a cargos de
destaque, sendo assim, Zeferino propõe que haja divisão de classes de acordo com a tonalidade
14 Homem de Cor, 14 de set. 1833, p.1.
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de pele.15 Sobre o ofício do Presidente da Província de Pernambuco, Ana Flávia Magalhães
Pinto afirma que o “objetivo era instituir uma forma mais eficaz de controle de poder, em que,
no caso da Guarda Nacional, as altas posições não fossem ocupadas pelos “homens de cor”
(PINTO, p.24-25).
Utilizando o principal meio de comunicação que se tinha no período, o pasquim O
Mulato ou O Homem de Cor, traz para o contexto novos debates e protestos, sendo que a
questão racial figura como o tema principal. Sobre a atuação do pasquim Pinto ainda declara
que a “novidade vinha apenas das especificidades do veículo de protesto: um pasquim que
trazia o debate racial para o centro” (PINTO, 2010, p.25.). Outros assuntos são tratados no
pasquim, como o assassinato do ex-redator do impresso Brasil Aflicto, que a partir deste evento
que se deu outra polêmica também registrada no pasquim, a prisão do homem de cor,
Maurício José de Lafuente16.
A prisão do ex-cadete Lafuente, foi de tal relevo que possui um pasquim de uma edição
apenas, da qual leva o seu nome: Lafuente. Além de o impresso O Mulato, ou o Homem de
Cor − nosso objeto de estudo − que destina a sua quarta edição para narrar o ocorrido, temos
outro impresso que aborda o caso Lafuente, o pasquim Brasileiro Pardo. Deste modo, nota-se
que a prisão de Lafuente, repercutiu entre os pasquins da corte. N’O Mulato ou Homem de
Cor, o acontecimento foi descrito como “uma prisão arbitrária" a de Lafuente, sua prisão se deu
por estar portando uma arma de fogo, sobre isso o redator afirma:
foi infeliz Cidadão preso, por dizer que andava armado, licença esta, que na
forma da lei tinha obtido do Juiz de Paz do 2. Distrito da Freguezia do SS.
Dando, uma justificativa de sua conduta, mostrando como sua vida estava
ameaçada, pois as folhas do Governo, todos os dias lhe lançavam montões de
injúrias e desafiava a sua cólera (Mulato ou Homem de Cor, 23 out. 1833, p.
1-2).
15 A distinção pela tonalidade da pele, já era utilizada na sociedade, como afirma os autores: “A cor da pele era
um elemento poderoso de classificação social dos indivíduos, apesar de não haver discriminação legal como
ocorria nos Estados Unidos. Para o branco pobre e até o mestiço, apadrinhamento e acesso a financiamento
podiam abrir as portas para o ingresso nas camadas mais altas e em cargos públicos. Mas as barreiras se erguiam
para os que tinham pele mais escura, sobretudo os crioulos e africanos, estes últimos genericamente chamados de
pretos” (ALBUQUERQUE,Wlamyra R. de; FILHO, Walter F. 2006. p. 164).
16 Mauricio José de Lafuente, negro e ex-cadete, não foi encontrado até o momento uma biografia que desse
informações concretas, o que sabemos é que este passou por diversas províncias, como Espirito Santo, Bahia e
Pernambuco, sempre envolvido no meio político e nas revoltas. (PINTO, 2009, p. 35).
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O pasquim continua a descrever a prisão, informando que Lafuente, ficou sem
comunicação, todavia foi solto no mesmo dia. A todo momento, o pasquim ressalta a inocência
de Lafuente, de sua boa conduta, além de fazer críticas aos homens de cor que apoiavam os
moderados, que para o redator esses homens haviam sido enganados pelos Moderados, “Nas
eleições tivemos o exemplo, não há um representante das nossas cores, dos Empregos
Públicos, e de toda parte nos excluíram, e vós, os escravos, que mamando na teta de tais feras
estão lhe dando força”17. Segundo o redator, o que poupou Mauricio Lafuente da prisão, foi o
fato de ter sido ex-cadete da Marinha. O que nos leva a pensar, sobre a importância da carreira
militar, como uma forma de ascensão dos negros e mulatos, entretanto, a presença desses
homens dentro da Guarda Nacional era uma bravata, uma vez que poderiam ocupar altas
patentes. (Pinto, 2010, p.24-25).
Neste sentido, o pasquim O Mulato, ou o Homem de Cor, faz-se muito relevante para
as denúncias desses ocorridos − O ofício do Presidente de Pernambuco e a prisão do Lafuente
−, ademais, era uma forma de conceder voz às questões raciais, que se sucediam, em razão de
que, quase não eram noticiadas pela imprensa geral. De acordo com Lima (1999), esses
impressos de pouca duração, portam uma identidade política e racial − como o caso do
Homem de Cor e outros pasquins citados −, explicitando as questões políticas da época, o que
estava sendo debatido na esfera pública e política.
Se faz necessário enfatizar que, nenhum jornal, pasquim ou revista, é neutro, por
conseguinte, esses pasquins disponham de uma opinião política, principalmente no período
Regencial, no qual havia uma maior tensão política. Sendo assim, o pasquim O Mulato, ou o
Homem de Cor, era um pasquim Exaltado, se utilizando da imprensa como estratégia política
não apenas para denunciar as injúrias e defender a integração dos negros, mas era uma forma
de influenciar seus leitores a irem ao encontro das ideais Exaltados (ROSA, 2014).
Em síntese, vemos que o pasquim Mulato ou Homem de Cor, faz parte dos novos
agentes que se expandiram no período Regencial; além disso, mostra a atuação política dos
negros e mulatos através da imprensa, nos dá um vislumbre de como aqueles homens negros
enfrentavam essas adversidades. E por fim, este impresso nos possibilita pensar sobre como os
preconceitos vividos naquele período, ainda são enfrentados atualmente.
17 Mulato ou Homem de cor,23 out. 1833, p. 4.
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Referências
Arquivos e Instituições pesquisadas
BND- Biblioteca Nacional Digital. Brasileiro Pardo (1833).
____________________________. Lafuente (1833).
____________________________. O Cabrito (1833).
____________________________.O Homem de Cor (1833).
____________________________. O Meia Cara (1833).
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Quem delle/della souber: cotidiano e vestuário dos escravizados por meio da
seção Escravos Fugidos do Diario de Pernambuco
Dionisio Tito de Barros Neto18
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo explanar na seção Escravos Fugidos do jornal
do Diario de Pernambuco, entre os anos de 1825 a 1827, algumas possibilidades de análise
sobre o cotidiano dos escravizados. Compreendendo o contexto do surgimento desse veículo
de informação, a que se propunha, e como esse periódico pode ser útil para os estudos acerca
da escravidão na contemporaneidade, principalmente com foco no vestuário dos escravizados e
como a fuga é interpretada pela historiografia.
Palavras-chave: Escravizados, Século XIX, Vestuário.
Introdução
O Diario de Pernambuco, que está em circulação desde 1825 pode ser de grande valia
para os estudos acerca da escravidão através de diferentes abordagens. Uma das práticas
adotadas pelos senhores de cativos era anunciar no jornal quando seus escravizados fugiam, a
finalidade era recuperar esses sujeitos. Nesta perspectiva, a descrição do cativo era fundamental
para que o objetivo fosse alcançado, assim, na seção Escravos Fugidos, ou Fugidas de Escravos
como também é possível encontrar em alguns exemplares do jornal, a qual iremos nos
debruçar, é possível observar a etnia, marcas corporais, os ofícios, o vestuário que portavam,
entre outras coisas. Vale destacar que os cativos são abordados no jornal em diferentes seções,
seja por meio dos anúncios de compra, venda e aluguéis.
O vestuário na condição de escravizados ainda é muito pouco explorado.
Todavia, as vestimentas expressam as relações de poder entre os sujeitos, principalmente numa
sociedade escravista, as formas de produção de uma época, a forma como cada sociedade
atribui valores simbólicos a vestimenta, entre outras possibilidades de compreender a relação
entre os sujeitos e as normas imposta no contexto que são refletidas através do vestuário.
A análise dos escravizados por meio dos anúncios de jornal não é algo novo, Gilberto
Freyre foi o precursor quando publicou em 1963 a primeira edição do livro O escravo nos
18 Mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
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anúncios de jornais brasileiros do século XIX, o autor analisou como os escravizados eram
abordados em alguns periódicos. Todavia, a pesquisa historiográfica ganha novos
questionamentos através do interesse do pesquisador e dos questionamentos feitos por ele às
fontes, existentes na sua trajetória, por meio de um olhar atravessado pelo seu tempo. No caso
desta pesquisa, o foco principal é observar o vestuário a fim de entender quais materialidades
esses homens e mulheres portavam durante a fuga, quais possíveis estratégias que esses
escravizados utilizavam para “parecerem-se” como libertos, como expressavam possíveis
ancestralidades, ou referências culturais refletidas no vestuário num contexto permeado pela
escravidão em todos suas esferas: social, política e econômica.
A produção sobre a temática ainda é tímida no Brasil, como já mencionado. Todavia,
alguns trabalhos foram desenvolvidos nos programa de Pós-graduação do Brasil,
principalmente no Sudeste do país. A dissertação, Atrás dos panos: vestuário, ornamentos e
identidades escravas: Colégio dos Jesuítas, Campos dos Goytacazes, século XIX, de autoria de
Isabela Suguimatsu (2016) analisa a prática do vestir e adornar como “camadas” que constroem
a identidades dos cativos. Analisando botões, ornamentos e amuletos, contas de colar,
braceletes, anéis argolas e moedas perfuradas. Isabela compreende esses elementos como
objetos que afetam e influenciam as pessoas, dando sentido às experiências cotidianas,
entendendo qual a importância da materialidade na construção do sujeito na condição de
cativo.
Aline Monteiro (2012) na sua dissertação de mestrado, Para além do “Traje de
Crioula”: um estudo sobre materialidade e visualidade em saias estampadas da Bahia
oitocentista, fez uma análise descritiva das características visuais, materiais e as tecnologias
aplicadas na confecção de duas saias que são datadas do século XIX que atualmente estão no
Museu do Traje e do Têxtil da Fundação Instituto Feminino da Bahia, localizado na cidade de
Salvador, com objetivo de explorar a história das saias e dos tecidos na Bahia oitocentista.
A tese, Visualidades da escravidão: representações e práticas de vestuário no cotidiano
dos escravos na cidade do Rio de Janeiro oitocentista, de autoria de Patrícia March (2011)
buscou compreender de modo geral a forma de vestir na condição de cativos, e como a
vestimenta expressava crenças, costumes e valores socais e culturais. Desse modo, Patrícia
March ampliou a compreensão da maneira como os escravizados experenciaram a forma de
vestir através de duas formas: alteração do corpo e meio de comunicação interpessoal.
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Para o contexto da cidade do Recife ainda não se tem registro de trabalhos que
abordem o vestuário na condição de cativos. Assim, esta pesquisa busca apontar como a seção
Fugidas de Escravos pode contribuir para estudos sobre o entendimento das materialidades
usadas na cidade de Recife na condição dos cativos.
O jornal como fonte
O Diario de Pernambuco, o 24° veículo impresso oficial que surgiu em Pernambuco,
foi fundado em 7 de novembro de 1825 por Antonino José de Miranda Falcão, da Tipografia
de Miranda e Companhia. Possuía 38 anúncios e tinha dimensão de 27x19 centímetros19 e
circulava pelas ruas do Recife durante 6 dias da semana, com exceção do domingo.
À frente do jornal, Antonino Falcão chegou a ser preso em duas ocasiões, a primeira
delas em 1826, por lutar a favor da liberdade de imprensa, e anos depois, quando foi acusado
de publicar versos contra d. Pedro I, em 1829. O periódico foi vendido em 1835 à Tipografia
Pinheiro & Farias. Manoel Figueroa ficou responsável pelo veículo e nova gestão,
implementando algumas inovações, passou a ter contos, e foram ampliados o número de textos
e informações (MAIA, 2016).
Em sua primeira edição já ficou explícita a sua principal finalidade, pelo menos naquele
momento: anunciar. Antonino Falcão parece ter enxergado uma necessidade dentro da cidade
do Recife e resolveu supri-la com a fundação do jornal. Logo na sua Introducção20 se
apresentava como uma solução para a sociedade, como exposto abaixo:
Faltando nesta cidade assaz populosa um Diario de Annuncios, por meio do
qual se facilitasse as transacções, e se communicassem ao publico noticias, que
a cada em particular podem interessar, o administrador da Typographia de
Miranda a Companhia de propoz a publicar todos os dias da Semana excepto
aos Domingos somente o presente Diario, no qual debeixo dos títulos de
Compra, Venda, Leilões-Alugueis—Arrendamentos—Aforamento—Roubo—
Perdas—Achados-Fugidas
e
Apprehensões
de
escravos—Viagens-
19
Conforme
Diário
de
Pernambuco.
Disponível
em:
<
http://blogs.diariodepernambuco.com.br/diario190anos/index.php/2016/11/08/o-inicio-da-historia/>. Acesso em:
24 jul.2021.
20 Bastos (2016) compara a Introdução do jornal, no período abordado, como o que na atualidade consideramos
como o editorial desse meio de comunicação.
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Afretamentos-Amas de leite etc., tudo quanto disser respeito a taes artigos;
para o que tem convidado a todas as pessoas, que houverem de fazer estes ou
outros quasquer annuncios, aos levarem a mesma Typographia que lhes serão
impressos grátis, devendo ir assignedos (Hemeroteca Digital da Biblioteca
Nacional, Diario de Pernambuco, 1825, n. 01. In. Introducção)
O conteúdo do veículo era apresentado em duas colunas por página, totalizando oito
colunas, distribuídas em 4 páginas por exemplar, cada página custava 10 réis e o exemplar
completo 40 réis. As informações ali contidas necessitavam chegar aos ouvidos de uma
população, que em sua maioria era composta por analfabetos. Dessa forma, segundo Bastos
(2016), a leitura em voz alta feita nos espaços públicos possibilitava que mais sujeitos tivessem
acesso às informações contidas no veículo de cunho conservador, assim o jornal destinava-se às
classes mais abastadas, o que não impedia, claro, que demais sujeitos dos mais diversos estratos
sociais tivessem acesso às informações proferidas naquela “praça”.
Não por acaso a posição que esses homens, mulheres e crianças ocupavam dentro do
jornal explicitava a forma como eram vistos e tratados na sociedade, como mercadoria/coisa.
Partilhavam das mesmas páginas nas quais eram anunciados objetos, terrenos e outros bens de
consumo.
Do ponto de vista da quebra de como os escravizados eram abordados nos estudos
acadêmicos o sociólogo Gilberto Freyre tem uma contribuição fundamental no que diz respeito
disso. Reportando-os como detentores de costumes e práticas culturais por meio de suas obras,
Freyre marca os estudos abordando os cativos não mais como mercadorias. No ano de 1963,
com O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX, em sua primeira edição,
Freyre inaugura a “anunciologia”, a qual, pode ser utilizada por vários pesquisadores das mais
diversas áreas do saber.
Para Bastos (2016) o início dos anúncios dos escravizados tem surgimento com a
implementação da imprensa brasileira, ocasionado pela vinda da família real para o Brasil. A
forma como os escravizados são descritos no jornal é variável, o que nos possibilita analisar essa
fonte com vários objetivos, e que na contemporaneidade nos permite investigar a dinâmica
social da época e a forma como os sujeitos escravizados eram descritos neste tipo de fonte,
como podemos observar abaixo.
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Quem souber ou achar huma negra de Angola de idade de 30 annos por
nome Mariana que sahio a vender Fazendas, e miudezas, em hum batuleiro,
com signaes seguintes, alta, seca do corpo, levou um cabeçaõ de bertanha, saia
branca de babados, e baeta azul, quem a pegar a entregará a seo Sr. Joze
Bernardino, na rua do Queimado na quina que vira para o Colejo que serà
pago do seu trabalho (Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de
Pernambuco, 1827, n. 69. In. Fugas de Escravos).
Como apresentado, podemos observar que Mariana comercializava alguns artigos,
“miudezas”, nas ruas do Recife, que era uma escravizada de ganho, onde seu senhor morava e
consequentemente o lugar onde deveriam levá-la caso a encontrassem. A descrição dessas
roupas nos possibilita investigar como esses escravizados vestiam-se e quais possíveis estratégias
que os mesmos empregavam na fuga para que não fossem capturados, como por exemplo uma
possível troca da muda de roupa.
Segundo Carvalho (2003), o contexto político da primeira metade do século XIX no
Recife possibilitou o aumentou das fugas, uma vez que esses conflitos agitavam as ruas e tiravam
o foco dos senhores, abrindo margem para que os cativos escapassem. A fuga, estaria para João
José Reis e Eduardo Silva (2009) na categoria de resistências físicas, sendo um ataque ao
sistema, é também por meio dela que os escravizados recorriam a negociação com seus
senhores. Para Reis e Silva (2009), as fugas poderiam ser de duas categorias: fugasreivindicatórias e fugas-rompimento.
As fugas-reivindicatórias não tinham como finalidade um rompimento completo do
sistema, mas como o próprio nome diz, reivindicavam algo. Seriam um meio pelo qual os
cativos utilizavam para barganhar algumas conquistas, tais como melhores condições de
trabalho, por exemplo. Esta categoria estaria na categoria de negociação/resistência. De todo
modo, haviam motivos específicos pelos quais cada escravizados empregavam a fuga. As fugas
individuais são associadas a maus tratos causados pelos senhores, ou para reestabelecer os mais
diversos laços afetivos do cativo. Essas “pequenas” fugas são chamadas pelos franceses como
petit marronage (REIS e SILVA, 2009). Segundo Carvalho (2010), essas fugas por vezes tinham
datas marcadas, nos dias santos e feriados, e muito possivelmente foram utilizadas como forma
de experiência e possível aprimoramento para fugas permanentes, segundo o autor.
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Os senhores tomavam medidas para impedir que seus cativos fugissem, utilizando
ganchos em seus pescoços, por exemplo. Essa prática pode ser observada conforme descrito
quando Anna21 crioula, de 20 anos fugiu. A mesma portava um gancho em seu pescoço.
Segundo descrito pela sua senhora ao jornal, a cativa era acostumada a fugir, desse modo, o
gancho servia para prendê-la, e no contexto das ruas do Recife era mais fácil de identificá-la.
De todo modo, ambas as categorias de fuga demarcavam algo nessa relação com os
senhores: a imposição do cativo em relação ao sistema escravista e formas de negociação.
Todavia, a fuga não significava necessariamente liberdade do sujeito.
Para Carvalho (2010, p. 237), a liberdade no século XIX para os cativos não era algo
dada, mas um processo gradual, como afirma: “o caminho da liberdade correspondia a uma
conquista gradual de espaços e posições nas várias hierarquias sociais justapostas.” Ainda
segundo Carvalho (2010, p. 248) A liberdade “tinha graduação e era multifacetada.” Todavia
esse processo poderia ser brusco, ou mesmo retroagir, assim como avançar. Desse modo,
precisamos entender neste contexto a liberdade como algo dinâmico, não como uma situação
dada. Nesse caminho de construção, Marcus de Carvalho (2010) aponta as malhas de
solidariedade como uma forma para esta luta. Nem todos os escravizados fugiam para os
quilombos, mas, para que a fuga fosse mais bem sucedida, era necessário que o cativo fugisse
para pelo menos um outro bairro, os escravizados canoeiros poderiam ajudar nessa
empreitada.
Para Nascimento (2019) a fuga dos anúncios demonstra as estratégias adotas por esses
homens e mulheres, além de mostrar as possibilidades de refúgio encontradas por eles, como:
nas matas, em bairros vizinhos e outras províncias. Ainda de acordo com o autor, independente
do lugar para onde o escravizado fugisse, sempre contava com redes de solidariedade para
auxiliá-lo.
De acordo com Carvalho (2010), Recife se distinguia das demais cidades escravistas,
entre outras coisas, devido aos rios que cortavam os bairros. Em virtude disso haviam ofícios
ligados aos transportes dos rios: os canoeiros. Essa categoria de escravo de ganho, ou “negro de
ganho” como Carvalho (2010, p. 241) coloca, “tinham mais autonomia do que muita gente
livre. Muitos desses escravos pagavam semanalmente uma certa quantia ao senhor e moravam
21 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1827, n.31. In. Fuga de Escravo.
28
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
nos seus próprios casebres [...]”. Desse modo, trazemos o ofício de canoeiro para exemplificar
a dinâmica social que a cidade escravista recifense vivenciava no século XIX, assim como na
figura do mesmo um possível aliado para empreender as escapadas, fazendo parte de uma rede
de solidariedade, além de exemplificar como a categoria dos escravos de ganho poderiam
acumular pecúlio e gozar de uma certa autonomia e liberdade, no sentido aqui já mencionado,
referente do contexto/sistema no qual estava inserido. É notória a presença desses escravizados
de ganhos no Diario de Pernambuco, principalmente nos anúncios de fugas.
O vestuário nos anúncios
A roupa usada durante a fuga, ou levadas durante a mesma, e descritas nos anúncios
nos possibilita compreender e especular algumas questões acerca da população cativa no Recife
oitocentista. A dinâmica da cidade do Recife no que se referia a escravidão era diversa, como já
abordado. Homens, mulheres e crianças que viviam sobre posse de seus senhores empregavam
suas forças de trabalhos nos mais diversos meios econômicos e sociais espalhados pela cidade,
transportando cargas nos rios e canais que cortavam a cidade, sendo amas de leite, inseridos
nos serviços domésticos, descarregando navios e como escravos de ganho. Assim, seria
simplista demais reduzir a prática do vestir na condição de cativo a um único modo, ou com
base na aproximação do seu senhor, relacionando essa proximidade como único e exclusivo
meio para obtenção de roupas de qualidade.
Para Souza (2011, p. 180), de fato “a condição social e econômica seria um fator
determinante na quantidade, formas e materiais de itens de vestuário que compunha a
aparência dos escravos”, porém, outros fatores estariam ligados a tal prática. Ser escravo de
ganho poderia possibilitar obtenção de melhores vestuários, uma vez que os mesmos ficavam
com uma parte do ganho. É necessário entender a dinâmica social para que possamos fazer
alguns apontamentos necessários acerca da temática. Observemos o anúncio abaixo.
No dia 15 de abril fugio huma escrava criolla de nome Rita, estatura regular,
cor preta, corpo alguma couza cheio, cara regular, e com os beiços alguma
couza saídos para fora, levou vestida de chita parda uzada, cabecaõ de
paninho com recorte no talho, e embrulhada hum pano da Costa; qualquer
Capitaõ de Campo, ou qualquer pessoa que a pegar a poderá levar na rua do
Vigario caza N°26 segundo andar, que será bem recompençado do seu
29
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
trabalho (Hemeroteca Digital. Fugas de Escravos in. Diario de Pernambuco,
1827, n.120).
No anúncio acima podemos observar o que Rita portava quando fugiu. Além disso,
sabermos que o tipo de tecido do seu vestido era de chita, sabemos também a condição
material do mesmo, já “uzado”, portava também um cabeçaõ, que segundo Antonio de Moraes
Silva (1789, p. 205) no Dicionário de língua portuguesa, afirma ser uma a parte que ficava em
volta do pescoço, e virado para trás, Mariana22, já citada anteriormente, também utilizava
cabeção, o que é algo recorrente no periódico. Outro elemento que nos chama atenção nos
anúncios é a presença do pano da Costa.
Desse modo, é possível perceber os vários elementos que constituíam a forma como
escravizados se vestiam e quais objetos estavam sobre os corpos desses sujeitos pelas ruas,
becos e vielas da cidade. Como pontua Braudel (1995) histórica das roupas apresenta várias
questões que contemplavam desde os meios de produção até as hierarquias sociais. Paulo
Debum corrobora com Braudel no sentido de que vestuário possuir várias questões para além
da estética, segundo Debrum (2011, p. 3) “pelas tramas dos tecidos leem-se múltiplos discursos
que vão desde os anseios pessoais, a expressão de personalidade, a influência da sociedade
sobre o indivíduo e sua postura política”. De fato, através do vestuário é possível expressar ou
forjar os lugares sociais, assim como usar elementos que pudessem resgatar memórias afetivas
que remetiam, possivelmente, as suas origens, também é possível perceber as influências que a
sociedade impõe sobre os sujeitos. O vestuário é atravessado por várias questões.
Ao analisar a fonte é recorrente notar o uso da chita pelas escravizadas. Quando Josefa23
fugiu, usava um vestido de chita portuguesa, também usava chita Izabel24 e várias outras
mulheres. É importante pontua que o uso da chita é descrito apenas relacionado a mulheres e
meninas, quando o vestuário masculino é descrito não é evidenciado a utilização pelos cativos.
Desse modo, podemos inferir que a chita era um tecido utilizados pelo gênero feminino.
Consideração
22 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diario de Pernambuco, 1827, n. 69. In Fugas de
Escravo.
23 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diário de Pernambuco, 1827, n.38. In. Fugas de Escravos
24 Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional, Diário de Pernambuco, 1827, n. 47. In. Fugas de Escravos
30
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Desse modo, o artigo versou sobre as possibilidades de investigação acerca da seção
Escravos Fugidos com intuito de apresentar como tal fonte pode ser utilizada para estudos da
dinâmica social da época, perpassando os motivos do surgimento do jornal Diario de
Pernambuco, como estava inserido no contexto social e para que se propunha. Além disso,
explorando como a seção pode subsidiar estudos relacionados ao vestuário e como o mesmo é
descrito, e abordando de modo geral, por meio de três autores, os principais motivos que os
estão associados as fugas dos escravizados.
Os pontos apresentados até aqui são partes de uma reflexão inicial de uma pesquisa
mais ampla sobre o vestuário dos escravizados na cidade do Recife durante a primeira metade,
mas já se pode perceber algumas especificidades relacionadas ao uso da chita, utilizado apenas
por mulheres e a presença do pano da Costa. Assim, vale uma investigação mais profunda,
explorando se o uso era socialmente atribuído à população feminina cativa. Desse modo, há
particularidades no cotidiano dos cativos que precisamos nos debruçar para compreender
como essa população se articulava, onde compravam determinada materialidades, assim como
perceber como o vestuário fazia parte das possíveis estratégias empregadas pelos escravizados
de negociação e resistência.
Referências
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permanências de tradições discursivas nos jornais do Recife. Tese (Doutorado em Letras) –
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da-historia/>. Acesso em 24 de jul. de 2021.
32
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
“E que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas”: algumas notas sobre a
família de escravizados africanos e a reprodução natural em Pernambuco (século
XVIII)
Filipe Matheus Marinho de Melo25
Resumo
O trabalho em questão objetiva discutir resultados parciais de um estudo mais amplo acerca das
experiências de escravizados africanos no Pernambuco colonial da segunda metade do século
XVIII. Tendo como principais fontes para discussão os inventários post-mortem deixados por
pequenos e médios proprietários, foi possível observar que já nos Setecentos havia, entre eles, o
estímulo às práticas de reprodução natural no cativeiro, algo destacado em demasia pelos
estudiosos do século XIX. Versar sobre essas questões, não só confirma a existência dessas
famílias, como possibilita pensar nas relações desenvolvidas entre senhores e escravizados.
Palavras-chave: Família cativa; africanos; Pernambuco colonial;
Introdução
No ano de 1778 abriu-se o inventário de José Alves Crasto. Dentre seus bens, além das
propriedades imóveis, como seu engenho em Ipojuca e seu sítio no Cabo, situados no litoral
sul da capitania de Pernambuco, distante apenas por alguns quilômetros do Recife, chama
atenção sua propriedade em cativos. Dos 37 escravizados arrolados, que variou entre homens e
mulheres africanos, mulatos e crioulos, cerca de 27% eram compostas de “crioulinhos”. Esses
“crioulinhos”, como são informados no documento, eram filhos de mães e pais escravizados do
próprio Crasto, compondo assim, famílias cativas. Interessante notar ainda que não apenas
havia homens e mulheres em relações estáveis – como se pode perceber pela expressão
“mulher do dito” ao lado do nome das mulheres que, no momento da listagem, eram arroladas
logo em seguida aos seus companheiros –, como também mães sem nenhuma descrição de
relacionamento com outros cativos homens de Crasto, como foi o caso de Joana de nação
25 Mestre em História Social pela Universidade Federal Rural de Pernambuco. Professor do curso de História
EAD da Universidade de Pernambuco. Esta pesquisa contou com o financiamento da FACEPE. E-mail:
filipemarinhoo@gmail.com
33
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Angola, mulher de 20 anos, e já mãe do crioulinho Estevão, de 12 anos à época. Ou mesmo
Antônia de nação da Costa da Mina, com seus 30 anos, mãe da pequena crioulinha de 7 anos,
com nome de Izabel.26
Este trabalho, desdobramento de uma pesquisa mais ampla27 e apresentando resultados
parciais de uma investigação ainda em andamento, tem o intuito de demonstrar empiricamente
práticas de reprodução natural entre alguns proprietários de cativos no Recife e freguesias
vizinhas na segunda metade do século XVIII. Para tanto, a documentação ao qual lançou-se
mão foram os inventários post-mortem e testamentos presentes no Instituto Arqueológico,
Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP). Com isso, buscamos apontar que as práticas
de reprodução natural, amplamente estudadas por historiadores do século XIX, poderiam ter
suas raízes já no período colonial. O que as diferia, vale destacar, era o sentido atribuído nos
Oitocentos ao fim da escravidão e a tentativa, por parte do grupo senhorial, em preservá-la.28
O comércio de escravizados na segunda metade do século XVIII: um ponto de partida
Estamos inclinados a acreditar que um dos motivos que levou os proprietários de
cativos na segunda metade do século XVIII a estimular a reprodução natural foi a baixa entrada
de escravizados no porto do Recife, de um lado. Por outro, o baixo poder de compra de
pequenos e médios proprietários – responsáveis por mais da metade de nossos dados.
Portanto, antes de partirmos para os dados em si, vale debater um pouco sobre a situação do
comércio de cativos para Pernambuco a partir de 1750.
Não é novidade na historiografia as medidas de controle régio implementadas na
década de 1750, sobretudo em Pernambuco. No começo desta década, a criação da Mesa de
Inspeção tinha como principal função regular os preços dos produtos exportados e importados.
Entre 1759 e 1780, foi a vez da criação e atuação da Companhia Geral de Comércio
Pernambuco e Paraíba (doravante CGPP) que visou estimular não apenas o desenvolvimento
dos gêneros da terra – o açúcar, sobretudo –, como também monopolizar o comércio na mão
dos funcionários da CGPP, o que situava Angola como principal exportador de mão de obra
para Pernambuco, ao mesmo tempo que diminuía a ida de negreiros locais para a Costa da
Mina, embora na documentação presente nos avulsos de Pernambuco do AHU, é possível
26 IAHGP, Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de José Alves Crasto (1778).
27 MELO, Filipe Marinho de. “Que negros somos nós?”: africanos no Recife, século XVIII. Dissertação
(mestrado em História). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2021.
28 Agradeço ao prof. Dr. Gian Silva e a profa. Dr.ª Luana Teixeira pela observação.
34
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
perceber que duas ou três embarcações ainda faziam a rota Recife-Costa da Mina, mesmo
dentro da CGPP. No entanto, não há espaço aqui para debater sobre os méritos, formas de
atuação e declínio da CGPP, assunto já debatido em trabalhos primorosos29.
De acordo com o Slave Voyage Database (TDST2), entre 1759 e 1780, cerca de 46.462
escravizados desembarcaram no porto do Recife. E essa queda se mantém nos anos seguintes,
já findada a CGPP. Ainda segundo as informações deste banco de dados, entre 1781 e 1800, há
o desembarque de 28.726, ou seja, quase metade dos dados para o recorte anterior. Isso
demonstra o sucessivo de declínio na entrada de cativos no porto do Recife. No entanto,
somente a partir de 1801 até as vésperas da independência é que se retoma um crescimento
aterrador: segundo os dados do TDST2, entre 1801 e 1820, houve 105.636 pessoas
desembarcadas. Isso se deveu ao surto algodoeiro, somado com a saída da colônia francesa de
São Domingos, com a revolução instaurada na década de 1790.
Saindo dos dados amplos do TDST2, vale olhar para a avaliação do declínio da entrada
de cativos feitos pelo então governador de Pernambuco, José César de Menezes. Segundo o
que César de Menezes redigiu em 1778, durante os 18 anos de atuação da CGPP, ou seja, de
1760 até aquele ano, o número de entrada de cativos da Costa da Mina teria apresentado uma
queda, se comparado aos 18 anos de livre comércio, ou seja, antes da atuação da Companhia.
A queda, segundo informou, foi de 16.189 para 7.801 pessoas, no caso, mais da metade do
valor. A queda desses dados não é surpresa, dado que eram os portos de Angola encarregados
de exportar mão de obra para Pernambuco. Mas os dados do governador também apontam
para quedas desta região. Ainda segundo as informações de sua missiva de 1778, também para
os 18 anos de atuação da CGPP e de livre comércio, a queda de escravizados sentida foi de
38.383 para 29.73330. Segundo o TDST2, a década de 1780 foi marcada por um leve aumento
geral de entrada de cativos, mas logo apresentou queda novamente na década de 1790, talvez
devido aos problemas climáticos e de saúde pública enfrentados, tão relatados pelo governador
à época, D. Tomás José de Melo31. Apesar disso, foi justamente pelos estímulos empreendidos
pela Companhia que se deu especial atenção à cultura do algodão na capitania, o que levou a
29 Cf. DIAS, Érika Simone de Almeida. “As pessoas mais distintas em qualidade e negócio”: a Companhia de
Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel de Setecentos. Tese (doutorado
em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014; MELO, Felipe Souza. O negócio de Pernambuco:
financiamento, comércio e transporte na segunda metade do século XVIII. Dissertação (mestrado em História).
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2017.
30 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 130, d. 9823.
31 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 190, d. 13117.
35
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
região da zona da mata de Pernambuco a se dedicar fundamentalmente a esta produção32. Mas
isso já é outra história.
O que vale destacar até aqui é que a baixa entrada de cativos no porto do Recife e, sem
dúvida, aos movimentos de comércio interno de onde cativos saíam do Recife em direção a
outras capitanias, como o Rio de Janeiro33, devem ter estimulado pequenos e médios
proprietários a incentivar a formação de famílias para fins de reprodução natural. Nessa
direção, concordamos com Laird Bergad quando, estudando a sociedade de Minas Gerais,
informou que, na virada dos séculos XVIII ao XIX, afirmou que tais práticas estiveram ligadas
com uma “menor dependência da importação de mão de obra”34, por parte dos proprietários,
ou seja, estratégias senhoriais em momentos de baixa – fosse de entrada ou de poder de
compra.
Famílias de africanos cativos no Recife e as práticas de reprodução natural: dados e reflexões
iniciais
Algumas páginas atrás, o leitor ou leitora deve lembrar, afirmamos que a prática de
reprodução natural (ou endógena, como quer alguns autores) teve suas raízes no período
colonial. E, arriscamos dizer, era uma prática aconselhada pelos intelectuais do período –
eclesiásticos, sobretudo – para que um proprietário melhor administrasse e dominasse seus
cativos. Se retrocedermos ao final do século XVII e início do XVIII, vemos no padre Antonil
um aconselhamento nesse sentido. No Capítulo IX de sua obra, Cultura e Opulência do Brasil,
que versa sobre como um senhor de engenho deve administrar seus cativos, Antonil trata de
festas, trabalho, alimentação, punição (o famoso PPP de Jorge Benci, outro jesuíta bastante
conhecido), casamento e reprodução. É muito curta a passagem, mas não deixa de ser
reveladora. O jesuíta escreveu: “ver que os senhores têm cuidado de dar alguma coisa dos
sobejos da mesa aos seus filhos pequenos é causa de que os escravos os sirvam de boa
vontade”. E completa: “e que se alegrem de lhes multiplicar servos e servas” 35. Em outras
palavras, o tratamento positivo dado por um determinado proprietário ao seu escravizado lhe
32 Cf. MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o federalismo pernambucano de 1817 a 1824. São
Paulo: Ed. 34, 2014.
33 AHU, códice 1821.
34 BERGAD, Laird. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais. Bauru, SP: EDUSC, 2004,
p. 248.
35 ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília: Senado Federal,
2011, p. 111.
36
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
seria benéfico não apenas pelos bons serviços prestados por este último para com seu senhor,
mas também para que o cativo fosse um meio de aumentar sua propriedade humana. Ou seja,
o comportamento positivo, como um estímulo, gerava e um sentimento de gratidão por parte
dos cativos. Aliás, vale comentar que, finalizando o capítulo, Antonil diz que como resposta a
relação conturbada entre senhores e escravizados, as próprias cativas “procuram de propósito
aborto, só para que não cheguem os filhos de suas entranhas a padecer o que elas padecem”36.
É possível que esses ensinamentos tivessem ecoado entre o grupo senhorial pela
América portuguesa afora, chegando aos ouvidos de proprietários do Recife e freguesias
vizinhas. Infelizmente não dispomos de dados sistemáticos para fins do século XVII ou mesmo
para a primeira metade do século XVIII. Aliás, mesmo nossos dados são bastante limitados,
seja pela conservação dos documentos – alguns se encontram bastante desgastados pelo tempo
–, seja pela limitação das informações dadas pelos escrivães do período. Mas arriscamos
indicar, como hipótese, já que não dispomos de dados empíricos, que pelo fato da primeira
metade dos Setecentos ser um momento de alta entrada devido ao boom aurífero, a prática de
reprodução natural não fosse tão difundida. Hipóteses, como se assinalou. Só para ilustrar,
entre 1722 e 1731, conforme documento revelador do Provedor da capitania de Pernambuco,
João do Rego Barros, se registrou a entrada de 22.220 africanos da Costa da Mina, o que perfaz
uma média anual de 2.222 escravizados37. Número superior ao da própria população do Recife,
que à época não ultrapassava nem 15 mil pessoas.38
A partir do momento de baixa demanda provocado pela crise na mineração, por volta
da década de 1750, e sobretudo porque a CGPP priorizava a venda de cativos para os grandes
proprietários do açúcar, já que tinha como propósito o incremento na produção local39,
possivelmente os pequenos e médios proprietários, aqueles com cativos para auxílio do
trabalho cotidiano ou mesmo para o serviço em pequenas roças e sítios, optaram pela prática
de reprodução natural.
O caso mais emblemático que encontramos foi de Luís Mendes de Sá. No ano de 1765,
abria-se seu inventário. Dentre seus bens, estava um sítio localizado na Boa Vista, apenas uma
36 Idem.
37 AHU, avulsos de Pernambuco, cx. 42; d. 3786. Cf. Para mais detalhes sobre o comércio entre Pernambuco e a
Costa da Mina, ver: LOPES, Gustavo Acioli. A Fênix e o Atlântico: a capitania de Pernambuco e a economiamundo europeia (1654-1750). São Paulo: Alameda, 2018.
38 MELO, Filipe Marinho de. Op. Cit., 2021, p. 73.
39 Ver a discussão sobre a baixa na produção do tabaco e o déficit de cativos da Costa da Mina em Pernambuco,
durante atuação da CGPP, em: DIAS, Érika Simone de Almeida. Op. Cit., 2014, p. 306-307.
37
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ponte da freguesia de Santo Antônio e duas pontes da vila do Recife. E neste sítio, certamente
trabalhavam seus 7 cativos. O curioso é que dos 7 cativos arrolados, todos eram descendentes
de primeira e segunda geração de Feliciana do gentio do Congo, a escravizada mais velha de
Luís de Sá, já com seus 60 anos de idade. Os demais, portanto, eram seus filhos e uma netinha,
a crioulinha Joanna, de 9 anos de idade. O Quadro 1 abaixo ilustra o que se encontrou no
inventário.
Quadro 1: Lista dos cativos de Luís Mendes de Sá
Nome
Origem
Idade
Avaliado em
Feliciana
Gentio do Congo
60 anos
30$000
Domingos
Crioulo (filho da 27 anos
120$000
dita)
Anna
Crioula
(filha
da 25 anos
80$000
dita)
Joanna
Crioulinha (filha da 9 anos
55$000
dita Anna)
Gonçalo
Crioulo (filho da 18 anos
110$000
dita Feliciana)
Roza
Crioula
(filha
da 16 anos
110$000
dita Feliciana)
Francisco
Crioulinho (filho da 12 anos
70$000
dita Feliciana)
Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de Luís Mendes de Sá (1765).
Se era um “bom” proprietário, nos termos do padre Antonil detalhados acima, pouco
importa, pois o que se pode extrair desse caso é que certamente esse proprietário utilizava suas
escravizadas – primeiro a mãe, depois a filha mais velha – para aumentar o volume de seus
cativos.
Voltemos agora ao caso de José Alves Crasto, citado na introdução deste trabalho. É
interessante retomá-lo porque é um caso da década seguinte, de 1770. Detalhamos um pouco
sobre quem foi Crasto e seus bens em terras e em cativos, mas não sobre a composição das
famílias arroladas em seu inventário. Para além do que julgamos ser mães solteiras, nos casos
38
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
de Joana Angola e Antônia Costa da Mina, há pelo menos 3 famílias de africanos dentro dos 37
cativos de José Crasto. Das três, duas estão listados os filhos e apenas uma não há indicação de
descendência. O Quadro 2 abaixo detalha esses cativos em questão.
Quadro 2: Lista de parte dos cativos de José Alves Crasto
Nome
Origem
Idade
Avaliado em
Félix
Angola
Não informado
75$000
Izabel
Costa
da
Mina 30 anos
75$000
(mulher do dito)
Jerônima
Crioulinha (filha da 7 anos
60$000
dita)
Francisca
Crioulinha (filha da 7 anos
55$000
dita)
Maria
Crioulinha (filha da [corroído]
50$000
dita)
[danificado]
Crioulinha (filha da 3 anos
25$000
dita)
Florencio
Crioulinho
(filho 1 ano
18$000
do dito)
Antônio
Angola
Joana
Costa
da
30 anos
70$000
Mina 40 anos
70$000
(mulher do dito)
Anna
Crioulinha (filha da 3 anos
30$000
dita)
Marcos
Angola
Não informado
[corroído]
Romana
Angola (mulher do Não informado
[corroído]
dito)
Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de José Alves Crasto (1778)
Na listagem dos cativos de Crasto há outros “crioulinhos” que não são filhos de
africanos, mas este grupo social é o nosso principal interesse. É interessante notar que os dois
39
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dos três casais arrolados acima são de nações diferentes, o que demonstra uma certa escolha
senhorial na formação dos arranjos, conforme informa alguns trabalhos que se dedicaram a
compreender estes arranjos familiares de pessoas escravizadas40. Uma outra questão, e que nos
retorna ao caso de Feliciana do gentio do Congo, analisado páginas acima, é o distanciamento,
em anos, entre um filho e outro, algo em torno dos 2 ou 3 anos. Tanto Manolo Florentino e
Roberto Góes41, quanto Stuart Schwartz42 debateram sobre questões semelhantes indicando que
havia um “padrão de natalidade” e que as africanas, nas Américas, adaptavam-se às
circunstâncias locais. Segundo Herbert Klein, foi justamente tal “padrão” – demorado em
demasia na opinião dos proprietários – que fazia com que tivessem dependência do
abastecimento d’África43. Se é o caso, tanto de Feliciana quanto de Izabel, é algo a se investigar
com maior profundidade.
Por fim, também há o caso do proprietário Julião da Costa Monteiro. Em seu
inventário aberto em 1800, há a presença de 5 escravizados, sendo dois adultos e três crianças.
Embora não esteja detalhado no documento, acreditamos que se tratava de uma família, sendo
os dois adultos os pais das crianças. Os dois adultos são africanos, do serviço da casa, e seus
filhos, sem ofícios, foram classificados como “crioulinhos”, conforme se vê no Quadro 3
abaixo.
Quadro 3: Lista dos cativos de Julião da Costa Monteiro
Nome
Origem
Idade
Avaliado em
Francisca
Angola
35 anos
110$000
Vicência
Crioulinha
11 anos
10$000 (?)
Joaquina
Crioulinha
4 anos (?)
[corroído]
Francisco
Crioulinho
?
10$000
Francisco
Angola
?
100$000
Fonte: IAHGP. Fundo Orlando Cavalcanti, inventário de Julião da Costa Monteiro (1800).
40 Cf. PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800). Afro-Ásia, 33 (2005).
41 Cf. FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto José. A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
42
Cf. SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
43
Cf. KLEIN, Herbert. O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC editora,
2004.
40
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Seja como for, chamar atenção para os casos de reprodução natural no Recife, o
terceiro maior porto de desembarque de cativos da América portuguesa, nos faz repensar
aspectos das relações senhor-escravizados, mesmo para uma região movimentadíssima, de
muitas idas e vindas, como era o Recife na era do comércio de cativos. Robson Costa já teria
observado, entre os séculos XVIII e XIX, práticas de reprodução natural como estímulos
dentro da ordem de São Bento em Pernambuco, sendo uma das ferramentas da gestão
escravista desempenhada por esses metódicos eclesiásticos44. Novidade, no entanto, é que
práticas semelhantes fossem reproduzidas por proprietários leigos desta capitania, ainda que
em menor medida, sem dúvidas. Há muito o que se fazer e muitas perguntas necessitam de
respostas, mas dado o pouco espaço aqui, nos restringimos em apontar alguns casos que serão
analisados de forma pormenorizada em um trabalho futuro.
Considerações finais
Em um outro trabalho, com base em um artigo de Nicolau Parés45, indicamos que esses
casos de reprodução natural mostravam o “processo de crioulização” demográfica pela qual o
Recife e as freguesias vizinhas tinham experimentado, dado o recuo nos números de entrada de
africanos, como se viu páginas atrás. Ainda sustentamos tal hipótese, mas ela é apenas parte de
um contexto mais complexo e que deve ser analisado com mais cautela e com menos
generalizações. O espaço aqui é reduzido, mas em cada década da segunda metade do século
XVIII foi possível encontrar nos inventários post-mortem e testamentos, famílias de
escravizados (africanos ou não) gerando descendência para seus proprietários, ou seja, casos
típicos de reprodução natural.
Como destacamos no começo deste trabalho e reiteramos na discussão que se seguiu, é
provável que a reprodução natural fosse uma prática já utilizada na colônia, mas não tão
disseminada entre a população dada a constante entrada de africanos, mesmo em momentos de
baixa oferta nos mercados do Recife. A existência dessas práticas revela as estratégias senhoriais
para manter sob seus domínios sucessivas gerações de pessoas em cativeiro, fomentando, em
um jogo de força e favor, a relação paternalista que era o centro do relacionamento senhor-
44 Cf. COSTA, Robson Pedrosa. Os escravos do santo: uma história sobre paternalismo e transgressão nas
propriedades beneditinas, entre os séculos XVIII e XIX. Recife: Ed. UFPE, 2020.
45 Cf. PARÉS, Luis Nicolau. Op. Cit. 2005.
41
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escravizado46. No entanto, se por um lado, isso deixava os cativos reféns de seus proprietários,
por outro, garantia o espaço de negociação necessário para a construção de laços entre os seus
e outras autonomias variadas. Não há mais lugar na História para se pensar o escravizado como
submisso, passivo em relação às vontades de seu senhor. Ora, que tipo de acordos Feliciana do
gentio do Congo não teria tecido com Luís Mendes de Sá, seu proprietário, para manter sua
família intacta? Só nos resta conjecturar.
Referências
Fontes
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil por suas drogas e minas. Brasília:
Senado Federal, 2011.
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU) – Avulsos de Pernambuco e Códices
AHU, caixa 42; documento 3786.
AHU, caixa 130, documento 9823.
AHU, caixa 190, documento 13117.
AHU, códice 1821.
Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGP) – Fundo Orlando
Cavalcanti
Inventário de Luís Mendes de Sá (1765);
Inventário de José Alves Crasto (1778);
Inventário de Julião da Costa Monteiro (1800);
Bibliografia
BERGAD, Laird. Escravidão e História Econômica: demografia de Minas Gerais. Bauru, SP:
EDUSC, 2004.
COSTA, Robson Pedrosa. Os escravos do Santo: uma história sobre paternalismo e
transgressão nas propriedades beneditinas, nos séculos XVIII e XIX. Recife: Ed. UFPE, 2020.
46 Cf. SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org.).
História da vida privada no Brasil: o Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo: Companhia de Bolso,
2019.
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DIAS, Érika Simone de Almeida. “As pessoas mais distintas em qualidade e negócio”: a
Companhia de Comércio e as relações políticas entre Pernambuco e a Coroa no último quartel
de Setecentos. Tese (doutorado em História). Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, 2014.
FLORENTINO, Manolo; GÓES, Roberto José. A paz das Senzalas: famílias escravas e tráfico
atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. São Paulo: Editora Unesp, 2017.
KLEIN, Herbert. O Tráfico de Escravos no Atlântico. Ribeirão Preto, SP: FUNPEC editora,
2004.
LOPES, Gustavo Acioli. A Fênix e o Atlântico: a capitania de Pernambuco e a economiamundo europeia (1654-1750). São Paulo: Alameda, 2018.
MELO, Felipe Souza. O negócio de Pernambuco: financiamento, comércio e transporte na
segunda metade do século XVIII. Dissertação (mestrado em História). Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2017.
MELO, Filipe Marinho de. “Que negros somos nós?”: africanos no Recife, século XVIII.
Dissertação (mestrado em História). Universidade Federal Rural de Pernambuco, Recife, 2021.
MELLO, Evaldo Cabral de. Uma outra independência: o federalismo pernambucano de 1817
a 1824. São Paulo: Ed. 34, 2014.
PARÉS, Luis Nicolau. O processo de crioulização no Recôncavo baiano (1750-1800). AfroÁsia, 33 (2005).
SCHWARTZ, Stuart. Segredos Internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 15501835. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
SLENES, Robert. Senhores e subalternos no Oeste paulista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe
de (org.). História da vida privada no Brasil: o Império: a corte e a modernidade nacional. São
Paulo: Companhia de Bolso, 2019.
43
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“Reprimir vadios e contê-los na desregrada vida que levam”: cenas do pósabolição em Maceió (1880-1910)
Kedimo Barbosa da Paixão47
Resumo: Este trabalho visa abordar a identidade negra alagoana, no final do séc. XIX e início
do séc. XX, período de miséria e crise escravista. Nesse período o negro era tido como vadio e
suas práticas eram reprimidas, a exemplo da Quebra de Xangô. Para melhor compreendê-la, é
necessário revisar a construção histórica do país e analisar suas abordagens legislativas.
Utilizaremos, para isso, periódicos como Gutemberg e o Decreto n.º 847/1890. Entendemos,
assim, que a cidadania dada constitucionalmente ao negro gerou apenas aparente igualdade
formal, pois a sociedade continuou a inferiorizá-lo.
Palavras-chave: Pós-abolição; Silenciamento; Lei da Vadiagem.
Introdução
O presente artigo visa uma reflexão sobre os eventos que se processaram no Brasil após
o 13 de maio de 1888, tomando como referência a produção de fontes e a própria produção
historiográfica, como instrumentos que delinearam uma estratégia discursiva que tinha como
objetivo transformar o evento em si num instrumento de redenção nacional, após quatro
séculos de manutenção de um regime escravista. Devemos deixar claro que tal estratégia só
poderia ser executada de forma satisfatória na medida em que a produção historiográfica tivesse
como pressuposto uma narrativa bem traçada de silenciamentos acerca da materialização real
da liberdade na vida dos supostos sujeitos históricos, beneficiados pela lei Áurea.
Como principal ferramenta teórica que utilizaremos para fundamentar as nossas
hipóteses, tomaremos como referencial os textos e abordagens com ênfase na ressignificação do
próprio conceito de História que se processa a partir dos séculos XVIII e XIX e que é
abordado por Koselleck na obra: “O conceito de História” (2013 [1975]) e Peter Burke, na
obra: “História e teoria social” (2002 [1991]).
47
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História pela Universidade Federal de Alagoas.
44
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O texto ao qual recorremos, escrito por Reinhart Koselleck, teve um papel fundamental
na elaboração desse artigo, na medida em que fundamentou uma noção de História sem a qual
seria impossível, para qualquer historiador, formular uma releitura crítica acerca dos eventos
que se processaram em Alagoas e no Brasil, após o 13 de maio de 1888. Assim, novas
perspectivas desenham novas perguntas, para as quais somos orientados a buscar novas
respostas.
Naturalmente, voltar ao 13 de maio e aos eventos posteriores a ele, diz muito respeito
ao tempo de vida que nos toca viver; um tempo no qual os negros no Brasil ainda encontram
enormes obstáculos para terem acesso à educação digna, moradia, saúde, educação e,
principalmente, ao ensino universitário. Essa situação de exclusão a que os povos de matriz
africana ainda hoje se encontram, mesmo passados tantos anos da abolição da escravidão, é o
elemento que fundamenta as perguntas e as hipóteses que forjam a espinha dorsal desta
pesquisa, que ainda se encontra na sua fase embrionária.
A dimensão da temporalidade se soma aqui a uma dimensão qualitativa pela qual o
historiador se assume, ele mesmo, como resultado de um processo histórico, patrimônio de
todas as experiências vivenciadas e, que a partir dessas mesmas experiências, desenha um
horizonte de perspectivas; a partir das quais constrói e dá materialidade à sua produção
historiográfica.
Quanto a Burke, o artigo tem para com o teórico uma dívida impagável, pois deriva do
seu texto a percepção de que seria impossível produzir uma nova concepção acerca do 13 de
maio sem fazer uso das categorias e conceitos tão bem apresentados por ele e que, por muito
tempo, soavam tão pouco familiares a nós historiadores. Aqui nos referimos à resistência,
movimentos sociais, poder, hegemonia.
É fundamentalmente o presente e as inquietações derivadas do ambiente
socioeconômico, no qual nós historiadores estamos inseridos, que promove o reencontro com
o 13 de maio e irriga a principal hipótese que pretendemos sustentar, a saber, que a
materialidade jurídica da liberdade se deu, simultaneamente, à implantação de um arcabouço
também jurídico e político que impediria a materialidade real de uma liberdade, que pudesse
ser tomada como sinônimo de igualdade. Contudo, tal constatação que hoje se apresenta diante
de nós, como algo relativamente óbvio, como uma nuvem cinzenta a nos anunciar a chuva,
durante muito tempo foi obstruída por uma eficiente estratégia de silenciamentos, que
permeavam uma produção historiográfica responsável por introjetar no imaginário das pessoas
45
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a ideia de que a abolição teria redimido o Brasil do seu passado escravista e elevado os antigos
cativos a uma cidadania plena e universal.
A partir da leitura de Peter Burke, entendemos ser possível enriquecer as hipóteses e
argumentos sustentados no artigo, fazendo uso de duas categorias já há muito tempo
trabalhadas, principalmente na sociologia, e que só recentemente passaram a ser usadas de
forma mais sistemáticas pelos historiadores. Utilizando a categoria papel social, se torna
possível entender como a abolição formal da escravidão não alterou de forma qualitativa os
papeis que a elite brasileira atribuía aos libertos, na medida em que todo papel social é uma
construção histórica e construções históricas não podem ser criadas, tampouco devem ser
abolidas por decretos.
A história contada a contrapelo que, embrionariamente, motivou esta pesquisa, constata
que mesmo após o 13 de maio, a sociedade brasileira continua atribuindo aos ex-cativos, o
mesmo papel social, o qual projetava a figura do negro e até certo ponto o reduzia à condição
de trabalhador braçal, forte; porém, atrofiado intelectualmente, como aquele Hérculesquasímodo a quem se referia Euclides da Cunha, inapto a desempenhar papéis para os quais
seria necessário supostamente maior elaboração teórica e mental. Tal papel social parece
querer retirar dos recém libertos a mais genuína de todas as capacidades humanas, que vem a
ser a própria capacidade de teleologicamente poder objetivar suas ideias, de pensar, aquilo a
que Sócrates se referia como diálogo silencioso, que todo ser humano é capaz de produzir
consigo mesmo.
Ao trabalhar com a categoria identidade, compreendemos, ainda que de forma inicial,
que a construção de uma identidade nacional pressupunha uma abordagem na qual negros,
índios, mestiços e brancos constituiriam um amálgama, que resultaria na formação do povo
brasileiro sintetizando, assim, uma riqueza multiétnica e multicultural que, sistematicamente,
busca traduzir em forma de “democracia racial” e consensual um Brasil que jamais existiu, nem
antes, nem após o 13 de maio. Poderíamos citar inúmeros pensadores que se inclinaram a essa
abordagem, mas talvez, o símbolo maior da concretude dessa ideia tenha sido Gilberto Freyre
através, da sua obra épica, “Casa grande e senzala”.
Afirmar o Brasil como nação multiétnica e multicultural, não é o mesmo que afirmá-lo
como palco de democracia racial. O uso dessas duas categorias, extraídas da obra de Peter
Burke, nos foi muito útil para iniciar um processo de desconstrução das bem-sucedidas
estratégias de silenciamento que marcaram nossa produção historiográfica e que, até hoje, são
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amplamente reproduzidas, na literatura, na teledramaturgia, na produção de matérias
jornalísticas e na produção de consensos dentro e fora das produções acadêmicas.
Breves apontamentos do contexto do 13 de maio de 1888
O termo História, como ademais quase todos os outros termos, é permeado de
polissemias. Contudo, duas delas nos convidam a uma reflexão para o debate que
desenvolveremos neste artigo. Aqui nos referimos ao termo História quando relacionado à
existência a que cada ser humano é chamado a viver; e o termo história enquanto produção
intelectual, quando visa resgatar essas mesmas existências, tanto numa dimensão coletiva quanto
individual.
O presente artigo pretende investigar, com a devida cautela necessária, quando se trata
de terminologias tão polissêmicas, uma das mais relevantes existências coletivas que
contribuíram para nossa formação étnica e cultural, sobretudo, quando essa existência coletiva
foi supostamente promovida a um novo estatuto sociojurídico. Nessa aparente promoção, uma
elite econômica e intelectual pretendia redimir a nação e a si mesmo de um patamar
civilizatório que predominou durante quatro séculos e do qual essa mesma elite agora se
envergonhava; pois, ele revelava diante do mundo o seu atraso cultural.
Quanto a isso, é importante enfatizar que o 13 de maio de 1888 aparece numa parte
considerável da historiografia nacional como objeto suspenso no ar, um ponto sem nexo com
um passado permanentemente silenciado e, com um futuro que começa a ser construído na
manhã seguinte, sob uma lógica sistemática de silenciamentos, cuidadosamente construídos:
“uma vez abolida a escravidão, a codificação civil tardiamente realizada se fez a partir de um
silêncio, ainda assim racializante, sobre o passado escravista” (MATTOS, 2002, apud,
ALBUQUERQUE, 2009, p.123.)
No ensaio proposto, teremos como foco os elementos de silenciamento que permeiam
a construção historiográfica brasileira no pós 13 de maio. A partir desta data começa a ser
empreendido um esforço, por parte das nossas elites econômicas e intelectuais, no sentido de
edificar, no imaginário coletivo da população brasileira, a ideia de que a abolição e todo o
fundamento jurídico e político institucionalizado, a partir dela, produziria uma cidadania
universalizada e horizontalizada, da qual todos os elementos constitutivos da identidade
nacional poderiam usufruir. Sobre esse aspecto, é também importante observar que a
horizontalidade almejada, a partir da inserção na esfera da cidadania de elementos que haviam
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sido historicamente marginalizados, exigia uma engenharia discursiva que, a princípio,
transformaria esses mesmos elementos em heróis míticos, de uma identidade nacional
multifacetada e que, agora, passaria a ser objeto de exaltação e ufanismos.
Contudo, como já havíamos alertado no início, a história enquanto existência real, não
se confunde com História enquanto produção intelectual sobre existências vividas. Na prática, a
vida dos ex-escravizados beneficiados pela abolição e, até mesmo dos chamados “homens de
cor” que já não vivenciavam a experiência do cativeiro, se transformou num mosaico de
tentativas de inserção social. A inclusão, entretanto, foi obstruída na prática por
direcionamentos jurídicos e políticos que visavam neutralizar as possibilidades de
universalização da cidadania, que eram propagadas nos discursos oficiais e na maioria das
narrativas produzidas pela nossa elite intelectual.
É sobretudo, nessa outra história, ou seja, a história enquanto existência vivida que
encontramos o uso frequente e sistemático do termo vadiagem, como instrumento através do
qual, suscintamente, a elite procurou instrumentalizar toda uma pulsão de poder para
neutralizar as possibilidades de acesso a uma cidadania plena e real a sujeitos que,
teoricamente, estavam elevados a condição de cidadãos no marco jurídico legal.
O termo vadiagem, na prática, condenava os recém elevados a condição de cidadãos a
mutilarem a sua identidade cultural como pressuposto fundamental, se quisessem gozar do
estatuto de cidadãos de segunda categoria. Ora, não há cidadania concebível quando a
expressão cultural de um povo passa a ser tipificada em códigos criminais. O que se tem nesse
caso é um processo objetivo e consciente de silenciamento das manifestações de um povo, que
se reverbera numa duplicidade de silenciamentos, na medida em que uma ampla parte da
produção historiográfica, sobretudo aquela ligadas à tradição positivista, corroborava o
silenciamento que já se materializava na existência real desses indivíduos.
Pós-abolição em Maceió: revisitando a historiografia do período entre 1880 e 1910
A produção historiográfica, apesar das incursões de silenciamento, era facilitada por
uma vasta fonte documental, que era facilmente manipulada em arquivos públicos e, ainda
hoje, pode ser revisitada por aqueles que se debruçarem sobre os jornais da época. No
fragmento abaixo extraído do periódico Gutemberg (15/05/1888), em Maceió, percebe-se o
quanto a imprensa pressionava as instituições a enquadrarem os ex-cativos na lei de vadiagem.
É válido lembrar, ainda, que a edição inicia saudando o 13 de maio, vejamos:
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Sendo a vadiagem um crime punido pelo artigo 295 do código criminal,
recomendo a vmc. haja de providenciar de modo a que sejam obrigados a
tomar ocupação lícita os vadios e vagabundos existentes nesse termo,
compelindo-os pelos meios legais, nos termos do artigo 111 do regimento de
31 de janeiro de 1842. Se os vadios e vagabundos forem libertos deverá vmc.
dentro de um prazo razoável, que lhes marcará, obrigá-los a empregarem-se,
ou a contratarem seus serviços. Se, porém, terminar esse prazo sem que o
liberto mostre ter cumprido a determinação da polícia, deverá vmc.
comunicar o juiz de órfãos para os devidos fins, de conformidade com o art.
3° da lei de 28 de setembro de 1885 (GUTEMBERG, 15/05/1888).
De acordo com Albuquerque, antevendo o caos social que poderia ser gerado, a
“atuação policial se intensificou, nos momentos últimos da escravidão e imediatamente no pósabolição, revelando as tensões geradas com a iminente desarticulação do escravismo” (2009, p.
181). Além disso, chama a atenção o fato de a matéria ter sido produzida com tanta brevidade e
guardar tão pouca distância com o 13 de maio. Isso nos leva a especular que o triunvirato
constituído pela imprensa, instituições jurídicas-militares e elite econômica passa a
desempenhar a base fundamental sobre a qual a historiografia da chamada Primeira República
passa a ser produzida.
O mesmo periódico vem à tona no dia 10/01/1883 para pressionar as instituições,
sobretudo o aparato policial, a aumentarem o seu manancial repressivo sobre o povo negro,
que, numa estratégia discursiva também cuidadosamente pensada, passava a ser associado à
violência e gatunagem, termo muito comum na época, para se referir a prática de assalto e
pequenos furtos:
Desenvolve-se assustadoramente a gatunagem nesta capital; a polícia tem feito
algumas prisões, porém que não são bastantes para reprimir vadios e contê-los
na desregrada vida que levam. Em cada canto da cidade, encontra-se grupos
de peraltas, gente suspeita, sem meio de vida conhecido e que, entretanto, faz
alarde da mais invejável abundância de notas do tesouro de que trazem
repletas algibeiras. Se a polícia se lembrasse de fazer assinar termo de bem
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viver esses sevandijas [parasitas e vermes] sempre que fossem presos... talvez
melhora-se este estado de coisas. (GUTEMBERG, 10/01/1883)
O que esperar de uma produção historiográfica que se propõe a reproduzir de forma
acrítica essas fontes jornalísticas, sem transformá-las em nenhum momento em um objeto de
reflexão? A sintonia entre fonte documental e produção historiográfica era tão grande que se
assemelhava ao alfaiate que faz roupas sob medida para seu cliente. A historiografia que
sustentava a ideia, segundo a qual, os negros eram seres humanos atrofiados, supostamente,
pertencendo a uma raça inferior, é aquela que dialoga com fontes documentais que
reproduzem diariamente a mesma ideia.
Sem nenhum receio de ser repetitivo, recorremos ao mesmo periódico, o artigo de
opinião pública no Gutemberg, quando, no dia 15/05/1909, questiona o patamar civilizatório
do povo negro e introjeta no imaginário do seu leitor a ideia de que esses indivíduos estariam
hierarquicamente numa escala civilizatória inferior as demais:
Desejava agora que o dr. Ferreira Pinto me explicasse como os indígenas e
africanos
introduzidos
em
nosso
meio
social
influíram
para
o
desenvolvimento de nossa cultura moral?
O que sei de taes raças é que são as mais inferiores e retrogradadas da escala
ethnica e, por conseguinte incapazes de qualquer que seja o acto moral a que
não seja uma religião estupida própria das mais baixas raças humanas.
(GUTEMBERG, 1909)
É sempre bom lembrar que essa escala civilizatória composta por camadas hierárquicas
era utilizada como base discursiva que estabelecia o acesso dos sujeitos sociais aos direitos e
benefícios promovidos pelo Estado. Nosso trabalho, adquire dessa maneira, também o caráter
de prospecção semiótica, na medida em que, todo termo enuncia e ao mesmo tempo apaga ou
refrata parte da realidade que pretende retratar, como bem nos alertou Jaques Derrida, a
palavra jamais vai dar conta do objeto em si que aspira revelar.
Nesse sentido, o termo vadiagem enuncia que os sujeitos podem participar da festa,
desde que assumam e internalizem os comportamentos e práticas que as elites esperam deles e,
ao mesmo tempo, o termo silencia quanto à estratégia adotada após o 13 de maio, para manter
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sob forte sujeição os atores sociais que institucionalmente haviam sido libertados do cativeiro.
Fica claro, portanto, que liberdade não pode ser confundida com igualdade.
Um episódio ilustrativo, daquilo que queremos abordar, ocorreu em terras alagoanas,
no início do século XX. A abolição da escravidão ensejou, principalmente, na capital e em
seguimento conservadores ligados ao clero católico, um sentimento de profunda rejeição às
manifestações culturais, ligadas aos povos de matriz africana.
O personagem que melhor simbolizava esse sentimento de repulsa, que emanava das
camadas conservadoras, era um político de baixa penetração no interior do Estado, mas que
conseguia certa densidade na capital, chamado Fernandes Lima. Galvanizando em torno de si,
parte desse eleitorado católico, Fernandes Lima articulou movimentos que recorreriam a
práticas violentas para reprimir as manifestações religiosas dos povos de matriz africana.
Contudo, a complexa engenharia socioeconômica implantada no Brasil, no pós 13 de maio,
fazia com que alguns líderes tentassem se equilibrar, mantendo relações muitas vezes orgânicas
com lideranças religiosas de matriz africana, como foi o caso de Euclides Malta.
Transitando num populismo de matriz embrionária que tinha como finalidade última a
consolidação do seu projeto político, Euclides Malta procurou garantir proteção aos seguidores
e simpatizantes do Candomblé. Interessante observar aqui a instrumentalização do conceito de
vadiagem em nome de projetos políticos abertamente conservadores.
Marques tece relevante consideração relativa ao conflito perpetrado por estas figuras:
Compreender o episódio apenas como uma querela política entre Fernandes
Lima e Euclides Malta, é no mínimo um olhar reducionista. Haja vista, que
mecanismos de controle social dos negros e a criminalização de suas
religiosidades e culturas vem desde os tempos da escravidão, sendo
atualizados e “sofisticados” pelos grupos dominantes no poder a partir de
1888. (2020, p.13)
Para além das querelas políticas que envolveram esses dois representantes, se camufla a
estratégia
bem-sucedida
de
silenciamento
das
religiões
de
matriz
africana
que,
consequentemente, potencializaria os mecanismos mutilantes dessas manifestações culturais.
A evolução dos acontecimentos produziu em Alagoas um dos episódios mais chocantes
de violência religiosa da História do nosso país e, aqui me refiro aos fatos que resultaram no
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Quebra de Xangó, conhecido movimento de violência contra os terreiros praticantes e
simpatizantes do candomblé em Maceió. A consequência desse episódio em nosso Estado é,
ainda hoje, objeto de pesquisas históricas e estudos de antropologia do mundo inteiro. O
“xangô rezado baixo” é uma modalidade de liturgia umbandista que não se verifica em outros
Estados da Federação.
A prática litúrgica mais discreta, utilizada pelos praticantes do candomblé que
permaneceram em Alagoas, se enquadra tanto numa forma de resistência por parte daqueles
que, corajosamente, não estavam dispostos a mutilar suas manifestações culturais, quanto de
silenciamento; pois, o metamorfoseamento de uma manifestação cultural, por uma prática
exógena, não deixa de ser uma evidência do triunfo de um etnocídio, legitimado à época
inclusive por agentes estatais.
Um historiador minimamente perspicaz e distanciado de uma interpretação rankeana
da história, saberia diferenciar a fronteira que separa o mundo real do mundo legal. O mundo
real se desenvolve com a sua dinâmica própria, enquanto o mundo legal busca refleti-lo, muitas
vezes, com um certo atraso. Contudo, no caso específico que agora é objeto de nossa análise, o
mundo legal se apressou a estabelecer uma sintonia com o mundo real. A legislação sobre a
vadiagem se apressou a dar contornos jurídicos e criar um marco legal sobre algo que, na
prática, já se materializava de muitas maneiras, como é possível notar no estabelecimento dos
critérios dispostos no artigo 399, do Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890, Código Penal
da época, transcrito conforme o texto original:
Art. 399. Deixar de exercitar profissão, officio, ou qualquer mister em que
ganhe a vida, não possuindo meios de subsistencia e domicilio certo em que
habite; prover a subsistencia por meio de occupação prohibida por lei, ou
manifestamente offensiva da moral e dos bons costumes:
Pena - de prisão cellular por quinze a trinta dias.
Ao estabelecer o critério da empregabilidade comprovada, da comprovação oficial de
domicílio e a criminalização aberta de práticas culturais como a capoeira, a lei da vadiagem se
tornava, assim, um anômalo caso no qual o Estado se propunha a analisar de forma coercitiva
práticas que, em grande parte, eram decorrentes da sua própria ingerência; na medida em que a
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lei áurea de 1888 não criou as condições necessárias para que os libertos pudessem ter acesso a
emprego digno, moradia e terra.
A necessária reescritura do pós abolição
A reescritura desta história é necessária e, a nosso ver, pressupõe uma minuciosa
atividade pela qual os silenciamentos e os atores sociais silenciados possam ser libertados das
cadeias da quais foram aprisionados e, a partir desse exercício de escutar quem não foi ouvido,
tem-se um resgate das consciências individuais e coletivas, que não puderam se expressar, pois
foram, cuidadosamente, diluídas numa cidadania, supostamente universal, mas que não se
materializou efetivamente em inclusão socioeconômica e cultural.
Que elementos desta historicidade permeada de silenciamentos, condicionam a vida
dos descendentes de escravos no Brasil contemporâneo? Quando olhamos para o Brasil atual
imbuídos do sentimento de formular respostas para esta pergunta, nos deparamos com um
terreno no qual as práticas de manifestações culturais do povo negro, embora não sejam mais
objeto de coerção jurídica e policial no campo formal, ainda são amplamente criminalizadas ou
marginalizadas por uma parte considerável da nossa sociedade. Nesse sentido, afirma Miranda:
História e memória são territórios em permanente disputa. Relegar o outro –
o diverso – ao silêncio e à invisibilidade é uma forma de mantê-lo subjugado,
excluído. As produções simbólicas e intelectuais que poderiam reconectá-lo
com valores e laços de identidade são, muitas vezes, soterradas, escondidas.
Ao restringir ou interditar o direito à palavra, compromete-se também a
possibilidade de inventar, difundir e modificar existências (MIRANDA, 2019,
p. 08)
Em conformidade com o autor supracitado, não entender a relação entre a construção
historiográfica que ora examinamos e o grau de preconceito que determinadas manifestações
culturais ainda sofrem no Brasil é ignorar que o termo vadiagem já não tipifica mais um crime
estabelecido pelo código penal, mas tipifica um olhar que uma parte da nossa sociedade
incorporou, a respeito de práticas que ela considera incompatível com um modelo de
sociedade que quis construir no pós 13 de maio. A república instituída em 1889 tornava-se
desta forma uma espécie de camisa de força, mais adequada do que a própria monarquia para
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legitimar os dispositivos de contenção pelos quais os libertos seriam mantidos sobre controle
numa liberdade que jamais se traduziu em igualdade e inclusão.
Faz-se necessário pontuar a influência da tradição positivista e de uma análise rankeana
da história no processo de produção da república brasileira. Os indivíduos libertados no pós 13
de maio, e mesmo aqueles que já usufruíam deste status antes dessa data, não estavam
habilitados para o mundo do trabalho que se projetava, para uma sociedade que pretendia se
guiar por um movimento de inércia que se expressava da palavra ordem e outro de dinâmica
que se expressava através da palavra progresso.
O progresso como pressuposto da manutenção da ordem, se materializaria em formas
de trabalho para os quais os antigos cativos não estariam aptos, por conta das suas limitações
intelectuais e até mesmo “genéticas”. Daí que, então, os sujeitos seriam quase que
mecanicamente condenados a levar, não como escolha própria, e sim por obstáculos
estabelecidos pelo liberalismo vigente, a vida de vadiagem da qual eram acusados.
Curiosa situação na qual o próprio Estado, através de seus mecanismos, condena os
indivíduos a uma forma de vida e, ao mesmo tempo, tipifica essa situação no código criminal.
Curioso é também observar como a produção historiográfica de alguma maneira se reorienta
para estudar o passado escravista; mas, ao mesmo tempo passa a ignorar o presente, no qual os
ex-escravos agora elevados a condição de cidadão livres, permanecem aprisionados; porém,
com outras correntes pelas mesmas elites.
Uma outra abordagem reveladora sobre essa estratégia bem-sucedida de silenciamentos
é analisar como os movimentos feitos pelos antigos cativos, para romper as amarras jurídicas
econômicas e políticas, após o 13 de maio, desapareciam com frequência dos arquivos oficiais
ou, eram escritos com outras roupagens na historiografia e na literatura produzida e
direcionada para uma casta econômica e intelectual.
Um bom exemplo disso, pode ser extraído de um clássico da literatura nacional. Aqui
nos referimos a Euclides da Cunha que, no seu épico, “Os sertões”, enuncia com certo
ufanismo o homem preto do sertão como um Hércules Quasímodo. Uma expressão que
enseja ao mesmo tempo uma visão positiva e simultaneamente depreciativa acerca dos mesmos
sujeitos.
Hercules é a expressão que denota força, enquanto Quasímodo faz referência ao ser
esteticamente e fisicamente atrofiado, no qual a força só pode se manifestar no ambiente do
sertão, tal como o corcunda, o qual toda utilidade se esvairia, se fosse retirado da sua monótona
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tarefa de badalar os sinos de Notre Dame. Esse homem negro do sertão, então, é belo e até
apreciável, desde que permaneça no sertão, desde que não se arrogue em se aventurar pelos
espaços dos quais não foram convidados. Não seria essa uma cuidadosa e bem-sucedida
estratégia de silenciamento?
Considerações finais
Tomando como base todo o exposto, nos propomos a refletir uma pesquisa que, em
seu caráter ainda muito embrionário, se apodera de alguns instrumentais teóricos com
aspiração de escrever uma história a contrapelo, no sentido benjaminiano que essa expressão
permeia. Um fato pouco conhecido daqueles que transitam pelas ciências humanas é que
Walter Benjamim (2020) por muito pouco, não assumiu uma cadeira de professor titular da
universidade de São Paulo, o que certamente o teria colocado diante da realidade que é objeto
de reflexão deste texto e que ele não conheceu. Tivesse ele conhecido essa história, certamente
teria proposto que ela fosse reescrita.
Este trabalho buscou abordar a identidade negra alagoana, no final do séc. XIX e início
do séc. XX, considerando este um período de transição e de crises em que, por meio da
construção história e da legislação, os negros foram tidos como vadios e suas práticas,
consequentemente, deveriam ser reprimidas, a exemplo da Quebra de Xangô. Para melhor
compreensão dessa historiografia do país e do aparato jurídico como mecanismos ratificador,
utilizamos fontes como o periódico Gutemberg e o Decreto n.º 847/1890. Concluímos,
embrionariamente, que a cidadania, constitucionalmente estabelecida ao negro, gerou somente
aparente igualdade formal, uma vez que a sociedade continuou a subalternizá-lo, sendo
necessária a reescritura dessa historiografia para revelar e, ao mesmo tempo, combater os
silenciamentos.
Sendo este um artigo que visa estabelecer conexões entre o objeto da nossa pesquisa e
os fundamentos teóricos que foram abordados na disciplina de Teoria e Metodologia, ofertada
pelo Programa de Pós-Graduação em História da UFAL e ministrada pela professora Irinéia
Maria Franco dos Santos, entendemos que a própria pesquisa ganhou novos contornos e abriu
diante dela própria novas possibilidades de horizontes e perspectivas.
Assimilamos a compreensão de que o grande elemento enriquecedor para o projeto em
si se dá no instante em que ele incorpora a noção de História, enquanto construção produzida
no espaço tempo presente e permeada por uma noção sólida de temporalidade, na qual as
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interrogações decorrentes das circunstâncias vivenciadas pelo historiador retiram o passado do
seu casulo hermenêutico e o transforma em objeto, permanentemente aberto, a novas
interpretações.
As conjecturas suscitadas por novas problemáticas só podem ser produzidas pela ação
ininterrupta do tempo, quando este se materializa em forma de presentes vivenciado por
aqueles que querem e até mesmo para quem seria conveniente laçar o passado, numa
masmorra da qual convenientemente, ele não deveria tê-la retirado.
Referências
ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no
Brasil. São Paulo: Companhias das Letras, 2009.
BENJAMIM, Walter. Sobre o conceito de história / Walter Benjamin; organização e tradução
Adalberto Müller, Márcio Sleligmann-Silva. I ed. São Paulo: LAMEDA, 2020.
BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Promulga o Código Penal. Disponível
em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/d847.htm. Acesso em: 17 set.
2021.
BURKE, Peter. História e teoria social / Peter Burke; tradução Klauss Brandini Gerhardt,
Roseneide Venâncio Majer. São Paulo: Editora UNESP, 2002 [1991].
MARQUES, Danilo Luís. Entre a Abolição da Escravidão e o Quebra de Xangô: cultura e
sociabilidade negra em Maceió (1880-1910). In Anais Eletrônicos do XXV Encontro Estadual
de História da ANPUH, São Paulo, 2020, p. 01-13. Disponível em:
https://www.encontro2020.sp.anpuh.org/resources/anais/14/anpuh-sperh2020/1590619620_ARQUIVO_43cb68013eeee81d6fab99af8a03b509.pdf. Acesso em: 12
ago 2021.
MIRANDA, Danilo Santos de. Prefácio: Em busca de história e tesouros ocultados. In:
DOMINGUES, Petrônio. Protagonismo negro em São Paulo: história e historiografia. São
Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2019.
REINHART, Koselleck; et al. O conceito de História, tradução René E. Gertz. Belo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013 [1975].
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Quilombos urbanos na Paraíba: a cultura, a resistência e a luta do povo preto
paraibano
Kynara Eduarda Gonçalves Santos48
J. Jonas Mangueira49
Ana Maria Veiga 50
Resumo: Entendendo o quilombo urbano contemporâneo como um espaço de resistência
onde os/as negros/negras podem desenvolver sua cultura e religiosidade por onde se fazem
presentes no território brasileiro, e sendo a cidade de João Pessoa - PB constituída por 58% de
pessoas pardas e 8% de pessoas pretas, a intenção deste trabalho é discorrer acerca dos
quilombos urbanos pessoenses e entender sua trajetória e contribuição para a história, a cultura
e a resistência negra paraibana. Para alcançar tais objetivos, a metodologia escolhida é de uma
pesquisa qualitativa e bibliográfica nas plataformas digitais. Foram pesquisados dois quilombos
urbanos da cidade de João Pessoa: o Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a Casa de Cultura
Vó Mera. A partir desses dois quilombos, foram analisados a atuação, a história, os objetivos e
os conflitos do povo preto paraibano nesses espaços.
Palavras-Chave: Quilombos contemporâneos; Cultura negra; Paraíba; Negritude.
Introdução
A palavra quilombo origina-se do vocábulo quimbundo kilombo e significa o
aldeamento de escravizados fugidos, como também acampamento, arraial, povoação e união51.
O quilombo surgiu como uma resistência ao período escravista, uma alternativa para os negros
se tornarem livres das amarras do colonialismo e do escravismo. No Brasil, muitos quilombos
foram criados, sendo o mais famoso o Quilombo dos Palmares, no estado de Alagoas, que
esteve em atividade no período entre 1595 e 1695, e foi considerado o maior espaço de
resistência de escravos durante mais de um século no período colonial.
48 Autora. Universidade Federal da Paraíba. Graduanda em Licenciatura em História.
49 Coautor. Universidade Federal da Paraíba. Graduando em Direito.
50 Orientadora. Universidade Federal da Paraíba. Professora doutora.
Ver Nei Lopes. Enciclopédia brasileira da diáspora africana. 4 ed. São Paulo: Selo Negro, 2011.
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Segundo Candeia e Isnard (apud NASCIMENTO, 1985, p. 26) o quilombo nasceu da
necessidade de se preservar toda a influência afro na cultura brasileira, uma herança que foi
negada pelos brancos, que buscaram apagar a cultura negra presente na construção do Brasil
como nação. De acordo com Lélia Gonzalez (1988, p. 69), se olharmos a formação históricocultural do Brasil, podemos perceber que o país não é aquilo que reiteradamente se afirmou:
um país cujas formação do “inconsciente” é exclusivamente europeia e branca. Ao contrário,
ele é, em muito maior escala, parte de uma América Africana, ou Améfrica Ladina, como
afirma Gonzalez (1988) inspirada em Magno e na psicanálise. Ou seja, o Brasil é analisado pela
autora como um país que se olha no espelho e não se enxerga como ele realmente é: um país
negro e indígena.
Porém, a luta e a resistência dos amefricanos52 proporcionou uma permanência cultural,
dos saberes e de vestígios linguísticos, com suas variações que chegam à atualidade, naquilo que
Lélia Gonzalez denomina o pretuguês. O povo preto resistiu às pressões culturais da sociedade
dominante e foi submetido aos mais diversos tipos de violência, incluindo a religiosa, que
impunha o batismo assim que os escravizados chegavam aos portos brasileiros. Segundo Abdias
do Nascimento (1985), desde o início da colonização, as culturas africanas foram mantidas num
verdadeiro estado de sítio. A mito da “democracia racial”, que predomina até hoje no Brasil,
tenta transmitir a ideia de que neste país há uma convivência harmoniosa entre todas as raças e
culturas, exaltando a mistura pacífica das raças, escondendo que a mestiçagem (MUNANGA,
1999) é fruto do estupro de mulheres negras e indígenas, e omitindo os dados que expõem as
prisões e mortes, o desemprego e a miséria em que vive a população negra brasileira.
A Paraíba, apesar de não ser um grande ponto de desembarque dos africanos, possuía
uma pequena população africana que se fixou e reconstruiu a vida na província
(GUIMARÃES, 2013). Essa presença negra foi por muito tempo desvalorizada pelos grandes
pesquisadores e revistas da época da escravidão e da pós-abolição, que pretendiam afirmar que
a população negra existente até o século XIX não contribuía com a cultura local ou com a
mestiçagem. De acordo com Rocha (2007), em 1798, a maioria da população da Paraíba era
composta por negros, 60,2%. De 122.407 habitantes, 73.794 eram negros, sendo divididos em
Termo criado pela intelectual Lélia Gonzalez, para designar os nascidos nas Américas, o termo “americano”,
para autora, tem implicações políticas e culturais democráticas, pois permite ultrapassar as limitações de caráter
territorial, linguístico e ideológico. A palavra traz a América como um todo e incorpora todo um processo
histórico de intensa dinâmica cultural que é afrocentrada.
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61.458 pardos e 12.336 pretos. A maioria dos negros era livre (56.161) e havia uma minoria de
escravos (17.633). Esses dados sobre uma população tão expressiva de negros, sobretudo livres,
vai de encontro às informações publicadas nas revistas do Instituto Histórico e Geográfico
Paraibano (IHGP), um dos importantes espaços institucionais nos quais se produziam discursos
sobre a população negra na Paraíba. Porém, muitos autores que escreviam para o IHGP
retratavam a população negra na Paraíba como uma parcela insignificante dos habitantes.
A população negra paraibana sempre existiu, embora historiadores e jornalistas não
estivessem preocupados em mencioná-los. A historiografia dominante também foi atravessada
pelo racismo que estrutura a sociedade brasileira, o que resultou na invisibilidade dessa
população e na pouca produção acadêmica e midiática sobre as pessoas negras no estado. Essa
história oficial foi escrita para glorificar os governantes: a classe dominada quase não era citada.
(HOBSBAWM, 1998).
Diante
disso,
a
presente
pesquisa
busca
localizar
os
quilombos
urbanos
contemporâneos existentes e resistentes na Paraíba, perquirir acerca de sua importância e
contribuição para a cultura negra. Nesse intuito, foi utilizado o conceito trazido por Lopes
(2011, p. 1182) de quilombos contemporâneos. Segundo o autor, são
[...] comunidades em que os habitantes se identificam por laços comuns de
africanidade, reforçados por relações de parentesco e compadrio, e pela
antiguidade na ocupação de sua base física (fundamentada em posses
seculares e tradições culturais próprias), dentro de um sistema que combina
apropriação privada e práticas de uso comum, em uma esfera jurídica
infraestatal. Segundo a Associação Brasileira de Antropologia, a expressão
define “toda comunidade negra rural que agrupe descendentes de escravos,
vivendo da cultura de subsistência e onde as manifestações culturais têm forte
vínculo com o passado”.
No filme Ôrí (1989), as escolas de samba, os terreiros de macumba, de candomblé, são
definidos como os quilombos da atualidade, “os quilombos do século XX”. Seguindo tais
conceitos, consideramos como quilombos urbanos do século XXI na Paraíba as casas de
cultura, escolas de samba, grupos de capoeira, locais de afetividade ligados à arte e à cultura,
que resgatam e fortalecem a negritude, como também lutam para melhores condições de vida
para a população negra. Para além disso, tais grupos e instituições demonstram que o
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quilombo, a partir do século XIX, passou a ter significado de um instrumento ideológico contra
as mais diversas formas de opressão.
Quilombo passou a ser sinônimo de povo negro, sinônimo de
comportamento do negro e esperança para uma melhor sociedade. Passou a
ser sede interior e exterior de todas as formas de resistência cultural. Tudo, de
atitude à associação, seria quilombo, desde que buscasse maior valorização da
herança negra (NASCIMENTO, 2006, p. 124).
A cultura paraibana tem uma intrínseca relação com a cultura africana, haja vista a
marca da história da população negra nesse estado desde a época da escravidão. Nesse sentido,
não podemos discorrer sobre a cultura da Paraíba, de modo especial sobre a cultura de João
Pessoa, sem nos reportarmos à cultura afro-brasileira (ROCHA, 2007; FLORES, 2011 apud
OLIVEIRA, 2019, p. 52). Oliveira (2019, p. 62) afirma que as manifestações culturais da
Paraíba são, antes de tudo, práticas sociais e inventariadas a partir da cultura dos
afrodescendentes.
Metodologia
De acordo com Alyrio (2009), a pesquisa bibliográfica tem como atividade básica a
investigação de material teórico sobre o assunto de interesse. E é o passo inicial na construção
efetiva do processo de investigação, quer dizer, após a escolha de um assunto é necessário fazer
uma revisão bibliográfica do tema apontado. Essa pesquisa auxilia na escolha de um método
mais apropriado, assim como no conhecimento das variáveis e na autenticidade da análise. É
também um trabalho que se diferencia do levantamento de campo porque busca informações e
dados disponíveis em publicações – livros, teses e artigos –, de origem nacional ou
internacional, e na internet, realizados por outros pesquisadores (RODRIGUES, 2007).
Na presente pesquisa foi utilizado o método qualitativo, que é o estudo de um objeto,
buscando interpretá-lo em termos do seu significado. Neste sentido, a análise considera mais a
subjetividade do pesquisador. O objetivo é considerar a totalidade, e não dados ou aspectos
isolados (ALYRIO, 2009).
Diante disso, para chegarmos aos objetivos, a metodologia escolhida é uma pesquisa
bibliográfica nas plataformas digitais. Inicialmente, foi realizado um levantamento bibliográfico
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objetivando embasar teoricamente o objeto de estudo, aprofundando o conhecimento a
respeito dos quilombos, da chegada dos negros na Paraíba e da relação entre a cultura negra e o
cenário paraibano, até os dias atuais.
Ademais, foram utilizados artigos, livros e teses sobre os quilombos urbanos abordados,
bem como a busca nas redes sociais para sabermos as atividades realizadas pelos quilombos,
sua formação e trajetória. Para alcançar o objetivo proposto, questões norteadoras foram
levantadas para nos guiar diante da imensidão de histórias e conteúdo que cada quilombo
possui; são elas: o surgimento, o objetivo, as atividades desenvolvidas, o público, a importância
para a cultura negra, a presença de elementos da negritude e o impacto da pandemia. Foram
realizadas também visitas aos quilombos urbanos para conhecer e fotografar os espaços e
atividades.
Resultados e discussões
A partir da metodologia utilizada, localizamos e aprofundamos nossa pesquisa em dois
quilombos urbanos contemporâneos, sendo eles: o Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a
Casa de Cultura Vó Mera. Trazemos ainda a atuação do Fórum de Artistas Pretes da Paraíba.
Esses espaços foram escolhidos por se alinharem ao significado de quilombo contemporâneo,
já citado anteriormente. De acordo com Reis (2020, p.17), “o quilombo traz pra gente não mais
o território geográfico, mas o território a nível duma simbologia. [...] A Terra é o meu
quilombo. Meu espaço é meu quilombo. Onde eu estou, eu estou. Quando eu estou, eu sou.”
Esses lugares reúnem pessoas negras a fim de propagar aspectos da cultura, como
danças afro-brasileiras, tranças afro, músicas, religião, capoeira, entre outros. E também
promovem espaços de acolhimento, onde pessoas negras possam trocar afetividades em meio a
um país/Estado colonial.
O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes, é um quilombo urbano fundado em 2005,
inicialmente localizado na Ladeira da Borborema, no bairro do Varadouro, centro da cidade
de João Pessoa - PB. O espaço foi idealizado por Elioenai Gomes, artista multivisual, bailarino
e ativista cultural paraibano, a partir das necessidades pessoais do artista enquanto cidadão que
buscava construir coletivamente políticas afirmativas culturais para artistas negros e para a
negritude em geral. O artista queria um espaço de referência étnica, com falas, artes, ações,
projetos e eventos direcionados ao povo preto. No que se refere ao objetivo, o Ateliê busca o
acolhimento afetivo; a partir desse acolhimento, foca-se na identidade do ser, buscando
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resgatar, fortalecer e expandir memórias e histórias utilizando a arte como ferramenta de
transformação.
O Ateliê desenvolve inúmeras atividades, acompanhando o calendário comemorativo
da cidade, do estado e do país. São realizados debates, exposições de artes visuais,
performances artísticas, shows, apresentações teatrais e danças. E também eventos como bailes
de máscaras, cortejos de tambores, reuniões e ensaios do bloco carnavalesco “Foliões de
Ladeira Abaixo”, Festival Aiê, Auto dos Orixás, Festival Zumbi de Cultura Negra, Festival do
Africaxé, Celebrando o povo cigano, Sagrado feminino das mulheres capoeiristas, Acolhimento
afetivo afroindígena, que são eventos voltados para variados públicos, incluindo estudantes de
escolas públicas, privadas, instituições, ONGs, entre outros.
Figuras 1 e 2 - Acolhimento Afetivo Afroindígena no Ateliê Multicultural, 2019. Fonte: Instagram.
O espaço não só acolhe e promove eventos, como também integra vários grupos de
cultura popular de matrizes africanas, tais como a Escola Ilú Odara, Baque Mulher - JP,
Associação dos Alas Ursas de João Pessoa, Grupo Kun Dayo e o Raízes, grupo de ritmos e
danças afro-indígenas.
O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes trabalha com diversos segmentos, entre eles
estão artistas, ativistas, fóruns e conselhos culturais, feministas, comunidade LGBTQIA+,
educadores, turismólogos, pesquisadores, mestras e mestres de capoeira. E atende o público
em geral. O gestor, Elioenai Gomes, afirma, em uma conversa informal, que as culturas negra,
cigana, indígena e quilombola estão presentes em tudo: no espaço, nas ações e no próprio
gestor. Além disso, o espaço é considerado quilombo pela identidade, seus objetivos, pela
genética e pela história.
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O Ateliê tem sua importância referenciada e é reconhecido por todos os segmentos dos
movimentos sociais, pelos parceiros sociais, pelo movimento negro e pela “negrada” que
usufruem do espaço. Tornando-se um importante equipamento cultural no combate ao
racismo, à intolerância afro-religiosa e a todas as formas de preconceito, além de promover e
fortalecer a identidade do povo paraibano.
Todas essas atividades eram realizadas antes da pandemia do novo coronavírus. Devido
a este fator imponderável, a maioria das ações foram paralisadas ou adiadas, mas, referenciando
Milton Nascimento (1981)53, “todo artista tem de ir aonde o povo está”. Por isso, o ateliê inova
ao se adaptar ao sistema remoto para realizar algumas ações. Os debates presenciais se tornam,
então, lives, e o Auto dos Orixás – um dos mais importantes eventos produzidos pelo ateliê
para a cidade de João Pessoa no dia da consciência negra – também ganha o formato digital.
Ao indagarmos a respeito dos problemas enfrentados, Elioenai Gomes elencou vários,
entre eles o partidarismo das gestões (necessidade de promover o gestor, ao invés da arte); a
realidade decadente e degradante do Centro Histórico; a invisibilidade dos moradores do
centro histórico; a falta de segurança e a urgência de um policiamento que respeite os agentes
culturais, os pontos de culturas e suas ações; a invisibilidade dos fazedores de cultura e arte,
incluindo a urgência de políticas públicas culturais; a burocracia para o fazer cultural e a falta de
respeito com a sociedade civil, os fóruns e pontos de cultura, pois suas demandas não são
ouvidas; e a falta de profissionais capacitados para auxiliar tecnicamente os artistas. Além disso,
podemos destacar o desconhecimento dos gestores desses equipamentos culturais quanto à
identidade dos artistas, às casas de cultura e à localização de tais pontos culturais, ressaltando o
racismo estrutural (ALMEIDA, 2019) e a intolerância religiosa.
O Ateliê localiza-se no centro histórico da cidade de João Pessoa, anteriormente era
situado na Ladeira da Borborema no bairro Varadouro. Mas em 2021 ganha uma sede própria,
também no centro histórico da cidade, em um prédio de 168 anos de idade que está em
processo de restauração. Um ganho não só para o ateliê e para toda a comunidade preta e
artística da Paraíba, mas também para a preservação da história do estado.
Estando dentro do contexto histórico, político, social e territorial brasileiro, e paraibano,
que é colonialista e sofre com o neoimperialismo, o quilombo urbano Ateliê Multicultural
BRANT, Fernando; NASCIMENTO, Milton. Caçador de mim. Rio de Janeiro: Ariola, 1981. Disponível em:
https://open.spotify.com/album/01zFz4ac6dhTga7MqEonsy?si=7NvVF97ZSqeaGknB0vwUhg&dl_branch=1.
Acesso em: 07 set. 2021.
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Elioenai Gomes se apresenta como um espaço onde a cultura, a história e a arte negra resistem
em seu conjunto. Suas ações artísticas persistem, apresentam a cultura negra para uma ampla
população que não conhece sua ancestralidade, exaltam e propagam essa cultura, que é
marginalizada e demonizada historicamente, além de ser considerada “inadequada” aos editais
públicos. Essas ações vão além, ao adentrar o subjetivo para tratar as dores e os traumas,
causados pelo racismo e tantos outros preconceitos, a partir da arte negra e sua divulgação.
Ademais, o ateliê também promove uma ocupação no centro histórico da cidade e luta
para que o centro permaneça vivo, com o uso engajado de seus casarões históricos. Diante
disso, vale ressaltar a importância do Auto dos Orixás, uma apresentação anual que ocorre no
mês da Consciência Negra e a cada ano tem um tema ligado aos povos originários e às matrizes
africanas. Este evento está inserido no calendário paraibano, cuja apresentação é em uma praça
histórica, a Vidal de Negreiros, que abriga grandes eventos públicos.
Logo, constatamos que o quilombo constrói a memória e a identidade dos negros, a
partir do corpo. De acordo com a pesquisa de Reis (2020, p. 16),
[...] o corpo seria o grande guardião da memória e o indivíduo seria sujeito e
objeto de si mesmo. Os corpos dos negros espelhariam entre si e os corpos se
reconheceriam pelo contraste e pelo movimento ou deslocamento do corpo
que carrega consigo um território abstrato, uma terra firme no “continente da
memória”.
Esse corpo, que guarda a memória, se materializa e transforma em espaços que
objetivam perpetuar a história e a memória dos negros, através das expressões de arte e estética
de matriz africana. O guardião deixa de ser um só corpo e torna-se espaço, com a presença de
outros sujeitos, permitindo assim trocas de memórias e saberes.
São trocas que também ocorrem na Casa de Cultura Vó Mera, espaço que foi
inaugurado em 2017 e localiza-se na rua Bom Jesus, no bairro do Rangel, também localizado
em João Pessoa - PB. Tendo uma grande importância na ciranda paraibana, a cantora de
ciranda e coco de roda Domerina Nicolau da Silva – a elidada carinhosamente de Vó Mera – já
recebeu o título de Mestra das Artes e o troféu de Honra ao Mérito Cultural. Uma atuação que
visibiliza a cultura popular e as raízes afro-brasileiras e teve como um dos seus principais
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produtos a criação da Casa de Cultura pela própria cirandeira, com assessoria de sua filha,
Mônica Pimentel.
Na casa de cultura são realizadas Feijoadas Culturais, que promoviam apresentações
artísticas do universo da cultura popular de matriz afrobrasileira. Na maioria das vezes, o evento
inicia-se a partir das 12h e se estende até 19h. Segundo Oliveira (2019), no espaço são
desenvolvidas práticas e manifestações culturais de matriz afrobrasileira, desenvolvidas pela
mestra Vó Mera, que conta com a colaboração das mulheres que integram o grupo cultural Vó
Mera e suas netinhas, juntamente com as parcerias firmadas entre grupos de cultura popular e
artistas de João Pessoa, Conde e Cabedelo, municípios paraibanos.
Devido à pandemia, as feijoadas culturais não estão ocorrendo, porém, a atuação de Vó Mera
não parou. Durante o momento pandêmico, é desenvolvido o sopão solidário na casa de
cultura, e em breve, quando o contexto permitir aglomeração, o sopão solidário também irá
contar com apresentações culturais. Além disso, na casa de cultura são realizadas as lives
culturais e os ensaios para as apresentações virtuais. Essas apresentações e atividades atendem a
um público eclético, abordando os vizinhos, o “pessoal do rock”, do candomblé e não apenas o
pessoal da cultura, relata Mônica Pimentel, em uma conversa informal.
A cultura negra está presente em todo o espaço, nas pessoas que compõem o grupo de
Vó Mera e suas netinhas, nos ritmos e no acervo de Vó Mera. O intuito é abraçar a cultura
negra, trazer e difundir a ancestralidade, a história, a cultura popular e as religiões de matriz
afro, e mostrar quem são, guardar essa memória ainda durante a vida de Vó Mera.
A casa de cultura não é apenas um espaço de apresentações, é também um acervo
histórico-cultural. No acervo, estão presentes instrumentos musicais da cultura popular, como o
pandeiro, chocalhos, tambores, entre outros. Também possui no acervo suas medalhas e
troféus, instrumentos de trabalho quando ainda atuava na agricultura, figurinos, objetos da
cultura popular como chapéus e sombrinhas de frevo.
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Figuras 3 e 4 - Acervo Vó Mera, 2021. Fonte própria.
O ambiente residencial expõe em suas paredes e cômodos a história da artista que
caminha lado a lado com a do próprio coco de roda, da ciranda e demais manifestações
musicais populares locais das últimas décadas. Na casa, o público tem acesso a fotos dos
eventos em
que Vó Mera esteve presente, pode ver roupas utilizadas em apresentações
especiais e os já citados instrumentos musicais típicos e tradicionais. Além disso, o espaço é
utilizado para receber e apresentar outros artistas da cultura regional (ADYA, Geovanna. apud
OLIVEIRA, 2019, p. 69).
Figura 5 - Vó Mera e seu mural de fotos, 2021.
Fonte Própria.
Figura 6 - Ensaio de Vó Mera e o grupo As
Calungas, 2021.Fonte Própria.
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Segundo Almeida (apud OLIVEIRA, 2019, p. 70), “Os documentos e artefatos
pertencentes ao acervo da Casa de Cultura Vó Mera estão relacionados à cultura de matriz afrobrasileira, bem como as ações, práticas e manifestações culturais desenvolvidas pela mestra
cirandeira e coquista.” O Acervo da Casa de Cultura Vó Mera é um lugar de preservação da
memória tanto dessa artista como das práticas e manifestações culturais (OLIVEIRA, 2019). A
casa de cultura é considerada um quilombo urbano, que resgata a história, a ancestralidade e a
memória do povo negro por meio da vida e da obra de Vó Mera.
Ao se tratar das dificuldades do espaço, nota-se que a ausência de políticas públicas é
uma das principais. A falta de investimentos para se conseguir verbas para as atividades, como a
contratação de oficineiros, professores e músicos, para atuarem de maneira ainda mais efetiva
na comunidade, buscando transmitir os conhecimentos a respeito da ancestralidade ligados à
arte. Outra dificuldade é em relação ao espaço/território, pois o imóvel é alugado e as feijoadas
culturais arrecadavam dinheiro para o pagamento. Tal qual acontece no Ateliê Elioenai Gomes,
a maior dificuldade para a Casa de Cultura Vó Mera neste momento é a pandemia, justamente
porque as atividades que proporcionavam o retorno financeiro, foram interrompidas.
Diante disso, percebemos que os principais problemas enfrentados são estruturais,
sendo o maior deles a falta de políticas públicas voltadas para a cultura afro-brasileira e a luta
pelo território.
Em se tratando do direito ao território, é importante salientar que o espaço territorial
faz parte da cultura de uma comunidade, e pode ser demandado como direito à própria
existência (HEINEN, 2011, p. 54). O direito, inclusive, à liberdade de realizar seus ritos,
danças e diversas manifestações culturais de forma segura, pois em um país colonial, racista,
marcado pela violência policial contra os negros, e artistas negros, o aquilombamento e a luta
por melhores condições de vida e pela sobrevivência são sempre necessários.
O direito ao território permite também a proteção dos saberes e tradições, pois são
nesses espaços que se tem a presença da memória ancestral em forma de resistência com as
manifestações culturais, que irão preservar a cultura popular de matriz africana.
Heinen (2011, p. 54), argumenta:
Portanto, o que está em jogo não é a particularidade dominial, objeto da
relação de propriedade (CASTILHO, 2006), mas sim, o valor que as
comunidades que ali residem ofertam ao espaço geográfico. Trata-se de um
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valor cultural que perpassa a mera acomodação espacial, enfim, de mera
morada. As asserções culturais intensificam a utilização desses espaços, não
podendo a legislação desconhecer dessas peculiaridades, sob pena de
desconhecer a própria cultura.
No que se refere à falta de políticas públicas, ao racismo estrutural e à burocratização do
acesso aos editais, um problema enfrentado por todos esses espaços e artistas negros abordados
na pesquisa, uma das alternativas foi um aquilombamento maior, com outros integrantes.
Durante a pandemia, surgiu um quilombo virtual, intitulado Fórum dos Artistas Pretes da
Paraíba. Esse quilombo manifestou-se a partir da necessidade de artistas pretos/as/es da Paraíba
se reunirem para discutir os editais e denunciar os descasos para com a população negra artista
da cidade. Os agentes culturais dos dois quilombos estudados, fazem parte do Fórum, que
objetiva juntar mais vozes para denunciar o racismo estrutural. O Fórum realiza o mapeamento
de artistas pretos na Paraíba, como também elabora notas de repúdio e cartas de denúncia ao
racismo institucional presente no estado.
Últimas considerações
A partir do entendimento de que quilombos urbanos são os espaços onde o povo negro
se une para resistir e criar esperança entre si, seja por meio da luta política, seja por meio da
luta política expressada na cultura, podemos identificar nessa categoria as casas de cultura, os
coletivos, as escolas de samba e os grupos de capoeira, entre outros. Sendo assim, mesmo
diante de uma tentativa clara de apagamento da população paraibana negra e sua identidade,
podemos observar a resistência e o trabalho desses grupos dentro do estado da Paraíba.
O Ateliê Multicultural Elioenai Gomes e a Casa de Cultura Vó Mera, em seus
respectivos meios de atuação, usam da cultura e da arte como forma de driblar o racismo na
sociedade paraibana e se impor mesmo diante da história oficial pregada pelos brancos. Os
problemas enfrentados apresentam semelhanças: são derivados do racismo estrutural e
estruturante na formação da nossa sociedade e são sintomas diretos de um Estado burguês
branco. Ademais, entendemos, por meio deste trabalho, que as ações promovidas por tais
pontos de cultura, e pelos quilombos urbanos em geral, fazem parte de uma luta pelo direito
territorial e pela liberdade de expressão.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Os debates acerca da escravidão no Brasil na segunda metade do século XIX
Lara de Sousa Lutife54
Resumo
A presente pesquisa propõe evidenciar as discussões que ocorriam em torno da questão
escravista durante a segunda metade do século XIX. Para tanto, optou-se por analisar como
estava posta a conjuntura da sociedade naquele período histórico, de modo a perceber as
questões políticas, sociais e econômicas que estavam envoltas nessa problemática. Em vista
disso, o estudo sobre o que os intelectuais e políticos da época pensavam/escreviam foi basilar
para compreender o contexto de discussões sobre a escravatura, a qual foi palco para intensos
debates em relação ao abolicionismo em nosso país.
Palavras-chave: Escravidão; Debates; Abolição.
Introdução
No Brasil, o período que compreende os anos de 1850 a 1860 foi marcado por uma
gama de acontecimentos importantes, dos quais estava incluso a efervescência dos debates
ligados à problemática da escravidão. Isso porque, naquele contexto, o sistema escravista
mantinha-se em voga na conjuntura imperial brasileira, embora fossem crescentes as pressões
de grupos políticos e intelectuais tanto nacionais quanto europeus que viam a necessidade de
findar o regime escravocrata no país, a exemplo do que vinha ocorrendo em outras nações.
Contudo, essa estava longe de ser uma vontade unânime, pois também havia aqueles
que davam preferência à manutenção do escravismo, uma vez que a maioria não demonstrou
abertamente um posicionamento contra o tráfico de escravos. Em vista disso, é preciso dizer
que, “quase todos os políticos reconheciam a obrigação moral e legal de terminá-lo, mas
temiam as consequências econômicas da medida” (CARVALHO, 2008, p. 300).
Sendo assim, as discussões promovidas por aqueles que eram pró ou contra a
permanência da escravidão, se configurou em intensos desdobramentos ao longo do período
54 Graduanda do curso de História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú – UVA, cursando o 8°
período.
E-mail: laralutife13@gmail.com
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imperial e com maior vigor a partir da segunda metade do século XIX. Nesse cenário, as
agitações partiam tanto dos setores econômicos e sociais, quanto dos intelectuais e políticos da
época. Isso reforça a ideia de que
[...] a década de 1860 foi a mais fértil e agitada de todo o Segundo Reinado.
Em nenhuma outra se discutiram tanto a Constituição, o Poder Moderador, o
sistema Representativo, as reformas políticas e sociais. Discutiu-se em livros,
na imprensa, no Parlamento, em panfletos, em cartas, em conferências
públicas. Mais ainda, foi nessa década que se formaram as propostas mais
radicais de reforma social e política. (CARVALHO, 2009, p. 15)
Tendo isso em mente, buscaremos perceber de que maneira se configuraram o
conjunto de acontecimentos e reformas no início da segunda metade do século XIX,
sobretudo, com o intuito de compreender através desses eventos como as questões
relacionadas à escravidão eram vistas e debatidas nesses diferentes segmentos do Brasil
oitocentista.
1. O estabelecimento das leis abolicionistas
O início da década de 1850 foi determinante para fervilhar os debates em torno do
regime escravocrata, uma vez que algumas Leis referentes ao tráfico de escravos, bem como
pela busca da emancipação dos mesmos puderam, ainda que gradualmente, ser promulgadas
no país. Entretanto, elas geraram posicionamentos distintos entre os diversos grupos
constituintes da sociedade brasileira.
Seguindo essa linha de raciocínio, a priori, faz-se necessário destacar as principais leis
emancipacionistas que foram estabelecidas ao longo da segunda metade do século XIX com a
finalidade de compreender como se deram os conflitos em torno dessas, que foram
responsáveis por movimentar as discussões sobre a questão escravista, além de terem feito parte
do processo ao qual culminaria posteriormente no abolicionismo.
Nesse contexto, no ano de 1850 foi criada a Lei Eusébio de Queirós com o objetivo de
proibir o tráfico de escravos africanos ao Brasil, sendo esta a primeira das principais leis que
iriam ser promulgadas mais a adiante a respeito da emancipação dos escravos no país. A dita
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Lei possui este nome em homenagem ao ministro da justiça da época, Eusébio de Queirós
Coutinho Matoso da Câmara55 (1812-1868) que foi o responsável por sua elaboração.
Naquele Momento, o Brasil observava que em diversos países como a Inglaterra, o
tráfico de escravos já havia sido proibido, como também constatava que as resistências dos
negros e a busca por Liberdade eram crescentes em todo o mundo, a exemplo da Revolução
do Haiti (1791 – 1804) a qual foi liderada, majoritariamente por negros e mestiços.
Mesmo diante desses fatores e temendo uma possível revolta dos escravizados no
território brasileiro, os grandes latifundiários se mostravam avessos à ideia sobre o fim do
tráfico de escravos, uma vez que estes representavam a principal mão de obra trabalhadora do
país e sem eles os fazendeiros temiam o declínio das produções, sobretudo de café, que era
uma das principais matérias-primas produzidas no Brasil na época. Ademais, havia o receio por
parte dos senhores de que suas terras fossem tomadas pelos portugueses. Posto isso,
Não é mesmo de estranhar que o progresso da ideia emancipatória tenha
seguido semelhante curso num país onde a grande exploração agrária era
amplamente dominante. Ou melhor, na luta entre o poder e a Nação, a
última era realmente, em grande parte, escravocrata. As atividades
econômicas voltadas para o mercado interno e os homens e mulheres
situados entre o grupo senhorial e os escravos estavam, de uma maneira ou de
outra, vinculados à grande exploração. Consequentemente, o setor da
sociedade, que Caio Prado Jr. chamou de inorgânico, era ainda incapaz de
universalizar seus interesses e valores para além dele mesmo, fazendo-se
nacional. (RICUPERO 2004, p. 189)
Nesse sentido, nas palavras de Ricupero (2004) já é possível perceber que a Lei Eusébio
de Queirós gerou uma série de tensões principalmente entre as elites agrárias brasileiras.
Apercebendo-se disso, na tentativa de amenizar a insatisfação dos donos de escravos, o Senado
aprovou a lei de Terras56 em 18 de Setembro de 1850, que, dentre outras coisas, garantia o
direito a propriedade contanto que fosse comprada e registrada em cartório. Desse modo, aos
55 Nasceu em Angola, mas ainda criança veio para o Brasil. No país, ele atuou como senador, deputado
e Ministro da Justiça.
56 Lei nº 601 ou Lei de Terras foi promulgada no ano de 1850 durante o governo de D. Pedro II e tinha por finalidade promover uma
organização sobre a propriedade privada. Por isso definiu a compra como a forma de se obter terras, bem como estabeleceu normas acerca da
posse, manutenção e comercialização das mesmas.
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fazendeiros seria retirada a possibilidade de comprar escravos no exterior, mas por outro lado,
teriam a garantia sobre a manutenção da propriedade sobre suas terras.
Mesmo com o estabelecimento da Lei, o tráfico intenso não só permaneceu, como
aumentou, além do preço do escravo ter sido consideravelmente elevado,
Assim, com a alta sucessiva do preço dos escravos, era mais difícil, para
aqueles cativos que vinham economizando para comprar a liberdade, que
alcançassem seu objetivo. Isso fazia com que a negociação entre senhores e
escravos, sempre existente nos processos de obtenção de liberdade, muitas
vezes gerasse conflitos – que tanto podia provocar atitudes como fugas e
crimes quanto gerar processos na justiça. Afinal, tanto, as ações de
manutenção de liberdade quanto as de escravidão são a tentativa de
solucionar, no âmbito público, um longo processo de negociações ocorrido na
esfera privada. (GRINBERG, 2009, p. 427)
Diante desse cenário de disputas entre senhores e escravos, acima destacado por
Grinberg (2009), no ano de 1854 foi promulgada mais uma Lei que se enquadra nas tentativas
de estabelecer condições para que o abolicionismo fosse concretizado. Desta vez, foi decretada
a Lei Nabuco de Araújo (n° 731) que estabeleceu algumas questões sobre a Lei Eusébio de
Queiros, definindo então, que não seria preciso flagrante para que a denúncia do crime de
tráfico de escravos fosse realizada.
Dessa forma, a Lei partiu de uma tentativa para que a anterior passasse a ser cumprida
no país, mas na realidade o tráfico não foi totalmente extinto, conforme relata o jornal o Diário
do Rio de Janeiro no ano de 1855 na segunda página, quando enfatiza que mesmo com o
estabelecimento dessas Leis “a existência da escravidão, com tudo, é uma fonte constante de
tentação para homens pouco escrupulosos; em quanto ella durar haverá o perigo de reviver o
trafico”. Isso de fato aconteceu nos anos subsequentes, já que, ainda segundo o jornal o tráfico
de escravos entre as províncias do Rio de Janeiro e Bahia subiu consideravelmente naquele
mesmo ano e os escravos continuavam a ter tratamentos dos piores possíveis.
Perante o exposto, é importante frisar, que esses debates e as promulgações de leis em
benefício da emancipação dos escravos já vinham ocorrendo fora do Brasil. Na Inglaterra, por
exemplo, foi promulgada a Lei Bill Aberdeen (1855) que estabeleceu a proibição do tráfico de
escravos entre os continentes africano e americano, além de conceder autorização à Inglaterra
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para apreender navios negreiros intercontinentais. Dessa forma, os Ingleses defendiam o fim da
escravidão, todavia, pensavam em seu próprio proveito, haja vista que eles já tinham passado
pelo processo de abolição dos escravos, contudo os concorrentes portugueses ainda não.
Nessas condições, o Brasil era pressionado pelos países europeus para por fim a
escravidão, que embora com essas leis e com o crescente movimento abolicionista, caminhava a
passos largos, fazendo com que prevalecesse a vontade dos escravocratas, uma vez que a
transição gradual estava assegurada diante da forma que o processo estava sendo conduzido.
Em contrapartida, tal fato fazia com que a reputação do país internacionalmente não
fosse das melhores, o que aumentava as exigências para que o imperador D. Pedro II tomasse
medidas a fim de contornar a situação. Para tanto, uma dessas medidas encontradas pelo
monarca foi encarregar um de seus conselheiros a encontrar uma solução para a situação. O
conselheiro foi José Antônio Pimenta Bueno57 que propôs então a libertação dos filhos das
escravas.
Apesar de a proposta ter sido realizada em 1866, somente no ano de 1871 a Lei que
ficou conhecida como Lei do ventre Livre foi promulgada no Brasil. Esta Lei concedia a
liberdade aos filhos de escravizadas nascidos a partir daquele mesmo ano. Entretanto, somente
após o término da Guerra do Paraguai (1664-1870) que tinha sido o centro das discussões no
país até aquele momento, é que a Lei esteve em cena novamente, desta vez proposta por
Vicente do Rio Branco58.
É válido pontuar que apresentar essas Leis faz-se necessário para compreendermos
como o estabelecimento delas aconteceu aos poucos no país, o que evidencia o longo processo
e os intensos debates que estavam postos naquele contexto. Além disso, através das mesmas,
pode-se perceber a maneira com que elas estiveram centradas em disputas políticas entre
aqueles que davam mais ênfase aos prejuízos econômicos que na condição nas quais os
escravos eram explorados. Dessa forma, o exame desses conflitos ideológicos se faz
fundamental, uma vez que é
[...] revelador da natureza do pacto que sustentava o sistema político
imperial. Em nenhum outro momento, em nenhum outro tema, ficou
57 Também conhecido como marquês de São Vicente, foi um político e diplomata brasileiro.
58 José Maria da Silva Paranhos (1819-1880), também conhecido como Vicente do Rio Branco, foi um
estadista, militar e jornalista brasileiro.
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mais clara a oposição entre as motivações e os interesses do pólo
burocrático do poder e os interesses do pólo social e econômico deste
mesmo poder. Se, na expressão muitas vezes usada na época, a
escravidão era o cancro que corroía a sociedade, ela era também o
princípio que minava por dentro as bases do Estado Imperial, e que,
afinal, acabou por destruí- lo. (CARVALHO, 2008, p. 293)
Partindo dessa premissa, em que as disputas pelo poder estavam relacionadas às
questões escravistas, torna-se de interesse dessa pesquisa compreender quais os
posicionamentos manifestados sobre a escravidão no Brasil. De modo que, buscaremos
perceber como os intelectuais da época pensavam acerca dessa situação nos diferentes
espectros nos quais atuavam. Isso será possível através da análise do contexto sócio-político no
qual o país se encontrava na época, bem como do que era escrito e debatido por aqueles que
formavam a intelectualidade brasileira.
1.1 - A conjuntura política da Segunda metade do século XIX
O alvorecer da segunda metade do século XIX veio acompanhado de intensas pressões
reformistas que cresciam no Brasil eminentemente por conta dos reflexos das emancipações de
escravos que vinham acontecendo em outros países, como nos Estados Unidos com a Guerra
Civil59 e na Inglaterra que almejava o fim do tráfico de escravos em nosso país. Diante desses
fatos, a condição do Brasil frente às demais nações era um tanto preocupante, haja vista que era
um dos poucos países onde o escravismo ainda perdurava.
Como era de se esperar, no âmbito do parlamento ganhava força às discussões sobre a
escravidão, conforme evidencia um dos principais líderes do movimento abolicionista, o
importante político da época Joaquim Nabuco60, quando fala que
É, porém no decennio que começa em 1860 que a escravidão sofre as
primeiras investidas sérias, ainda que em geral, cautelosas e animadas para
59 Conflito ocorrido nos EUA entre 1861 e 1865. A Guerra de Secessão ou Guerra Civil Americana foi
uma disputa entre os Estados do Sul e do Norte dos Estados Unidos acerca da escravização dos negros
no país.
60 Foi um importante nome do movimento abolicionista, tendo atuado em diferentes funções durante
sua vida, como por exemplo, na política, como historiador e jornalista brasileiro.
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com ella de todas as possíveis deferências. Será sempre a honra do instituto
dos advogados poder dizer que a serie dos seus primeiros presidentes (como
mais tarde os que se lhe seguiam, Nabuco e Saldanha Marinho), Montezuma,
Carvalho Moreira (4) Caetano Alberto Soares, Urbano Pessôa (5), Perdigão
Malheiro quando ainda fora não se tratava da emancipação, foi toda de
abolicionistas. N’uma epoca em que o principio da escravidão era acatado por
todos como um mysterio sagrado, aquelles nomes representam o protesto
solitário do Direito. (NABUCO, 1866, p. 24)
A fala de Nabuco retrata o quanto naquele momento, a causa abolicionista já obtinha
muitos adeptos, como foi o caso dos grupos de advogados e políticos que marcavam presença
em suas atuações no parlamento.
Nessas condições, o imperador D. Pedro II era pressionado para realizar as reformas
acerca da escravidão, contudo o foco naquele momento estava nos conflitos provocados pela
Guerra do Paraguai, em que as nações da bacia platina, dentre outras coisas, buscavam se
consolidar. O país necessitava ampliar suas forças e os escravos seriam utilizados como
soldados. A eles restava a promessa da liberdade, caso saíssem vivos do serviço na guerra.
Perante essas ações, o governo demonstrava estar disposto a promover a reforma servil e assim,
executar as medidas emancipadoras. A começar com [...] “a decisão de acabar com o uso do
chicote no trato dos escravos condenados a trabalhos forçados e a proibição do emprego de
escravos em obras governamentais” (SILVA, 2004, p. 15).
Essas medidas já davam encaminhamento, mesmo que lentos para as decisões que
seriam tomadas na sequência. De modo que em 1866, uma mensagem da Junta Francesa de
Emancipação foi enviada ao imperador D. Pedro II, em que a mesma encorajava o monarca a
se utilizar de seu prestígio e poder real para acabar com a escravidão no Brasil.
Tal mensagem foi respondida pelo Ministro Martim Francisco Ribeiro de
Andrada assegurando que “a emancipação dos escravos, consequência
necessária da abolição do tráfico não passava de uma questão de forma e de
oportunidade”. Além disso, a carta acrescentava que o governo brasileiro não
dava encaminhamento à questão naquele momento devido às dificuldades
decorrentes da Guerra do Paraguai. Dessa forma, ficava publicamente
declarada a intenção emancipacionista do governo e o Brasil, de certa forma,
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comprometia-se internacionalmente a encaminhar a reforma escravista.
(SILVA, 2004, p. 15)
As ações do governo brasileiro davam abertura para que se sucedessem as leis
emancipacionistas no país. O próprio D. Pedro II encarregou homens de sua confiança para
pensarem acerca da reforma servil. Dentre os quais o Marquês de São Vicente foi um dos
responsáveis nessa elaboração. Em que ele através de estudos sobre a questão escravagista no
país, apresentou projetos que visavam promover medidas acerca da emancipação dos escravos.
Tais projetos de Lei foram levados à câmara por Zacarias de Góis61 e discutidos na câmara nos
dias 2 e 9 de Abril de 1867.
Sobre essas sessões, vale destacar o resumo feito por Joaquim Nabuco em referência ao
que foi discutido pelos conselheiros, sendo que para Nabuco,
A atitude do conselho de Estado nessas duas sessões de 1867 poder-se-ia
definir assim: na sua maioria quisera adiar a reforma sine die,
indefinidamente; aceita-a, porém, pela força das coisas, pela pressão do
governo, para quando não oferecesse perigo a apresentação, isto é, para uma
data que ninguém poderia fixar. Nesse grupo devem contar-se os que não
ocultam a sua oposição à reforma – Muritiba e Olinda – os que preveem
perigos, sublevações, ruína econômica – Itaboraí, Eusébio de Queirós – e
também Abaeté e Paranhos, que flutuam. A minoria reformista compõe-se de
São Vicente, Jequitinhonha, Francamente, ainda que excentricamente,
abolicionista,
Souza
Franco,
Sales
Torres
Homem
e
Nabuco,
emancipacionistas. Dos ausentes, que figurarão mais tarde nas deliberações
do Conselho, Sapucaí deve ser contado entre os da máquina, Bom Retiro
entre os de freio. A maioria era assim pela reforma. Desde a primeira reunião
fica patente que o Imperador tomava a peito a reforma, que ele era, como
depois foi chamado nas câmaras, o general da idéia, e que combatê-la era de
antemão renunciar ao poder. (SILVA, 2004, p. 17).
61 Foi um político brasileiro que atuou em diversos setores do governo imperial, como por exemplo, no conselho
de ministros do império e como senador.
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As impressões de Joaquim Nabuco nos revelam como os debates na câmara estavam
concentrados na questão escravista, mas também nos permite perceber que a reforma partia
principalmente do imperador, ainda que sob imposições de terceiros, enquanto que o conselho
continuava a resistir ao estabelecimento das medidas reformistas.
Nesse cenário, cabe ressaltar que pensar a escravidão no Brasil requer compreender, ao
menos o básico sobre a corrente política Liberal estabelecida no Brasil dos oitocentos, já que as
ideias liberais exerceram forte influência sobre os movimentos abolicionistas que se sucederam
no país. O Liberalismo surgiu na Europa, no contexto de independência americana de 1776 e
também da Revolução Francesa (1789-1799), de modo que o Liberalismo pode ser entendido
como “uma corrente de pensamento vastíssima, na qual abrange vários campos do pensamento
humano.” (AFONSO, 2013, p. 84). Dentre o campo das ideias liberais, o referido autor
destaca a busca pela liberdade, onde se inclui a propriedade privada e a vida humana. Nesse
sentido, o autor pontua que,
Durante o império, temos a formação de dois grupos políticos distintos que
caracterizam o período com suas falas e conciliações, inclusive com a “troca
de lado” de figuras relevantes, são eles o partido conservador e o partido
liberal. Muitas das ideias que poderiam ser tomadas como liberais, foram
implantadas no Brasil pelos conservadores, mas nenhuma delas deixava de
buscar a realização de interesses particulares de uma elite social e política e a
manutenção da exploração do trabalho (AFONSO, 2013, p. 84)
Valendo-se desses debates entre grupos políticos liberais e conservadores, um dos
principais espaços de discussão do período sobre a questão escrava aconteciam,
principalmente, no âmbito do parlamento, onde os parlamentares estabeleciam os debates e
decisões políticas referentes ao país. No entanto, o historiador José Murilo de Carvalho ressalta
que além da tribuna parlamentar, as discussões políticas também se concentravam na imprensa
sendo ainda mais [...] “na imprensa, uma vez que a tribuna se limitava ao período de quatro
meses das sessões. A exceção foram os anos iniciais da regência, quando várias associações e
clubes políticos se organizaram, sobretudo na capital do Império”. (CARVALHO, 2007, p. 19).
Em vista disso, os escritos literários e as publicações nos periódicos eram fortes veículos de
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informação e expressão sobre os diversos acontecimentos daquele contexto, incluindo a
escravidão.
1.2 – Os posicionamentos dos intelectuais sobre o escravismo no Brasil
A partir da década de 1860, os movimentos em favor da campanha abolicionista se
acentuaram no país, sendo que a liderança de alguns intelectuais na luta pela liberdade de
escravos se tornou de extrema relevância, mas também, tiveram aqueles que defendiam uma
proposta de estabelecer a emancipação de forma gradual. Tendo isso em vista, vamos conhecer
algumas dessas personalidades que estiveram debatendo acerca da escravidão.
A figura de Luís Gama (1830-1882) um homem negro, que nasceu livre na Bahia, mas
que fora vendido como escravo pelo próprio pai ganhou notoriedade, principalmente por sua
trajetória que esteve marcada por muitos percalços, mas também por intensa superação.
Embora tenha sido escravizado no Rio de Janeiro e também em São Paulo, com muito esforço
Gama reconquistou sua liberdade, além de conseguir se alfabetizar, o que possibilitou que se
tornasse literato, jornalista e escritor brasileiro.
Sua luta e empenho pela causa dos escravos lhe rendeu o título de patrono da abolição
da escravidão no Brasil. Dessa forma, ele ficou conhecido por defender judicialmente os
escravizados e por reivindicar a carta de alforria dos mesmos. Inclusive,
Ficaram famosos os anúncios desses serviços que Luís Gama fazia questão de
publicar logo abaixo de anúncios de fugas e recompensa por captura de
escravos nos jornais da corte. Ele sustentava publicamente que a escravidão
era um roubo, por estar assentada numa transação ilegal, já que o tráfico
atlântico havia sido proibido em 1831. Sua ousada atuação nos tribunais e na
imprensa, bem como a participação em sociedades abolicionistas, interferiu
nos encaminhamentos da chamada “questão servil”. Gama foi incisivo, como
poucos, na exposição do quanto escravidão e racismo se entrelaçavam na
cultura do Brasil oitocentista. (ALBUQUERQUE, 2018 p. 347)
Em vista disso, a atuação de Luís Gama em mobilizar as massas populares a se unirem
ao movimento antiescravista foi fundamental no processo de busca pela abolição dos escravos.
Como também, vale destacar sua preocupação em incentivar a classe trabalhista para fazerem
parte dessa luta e das associações em prol da liberdade dos escravizados, já que, na imprensa
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“ainda na década de 1860, lia-se nas páginas do jornal O Typographo a convocação aos
trabalhadores para erguerem a bandeira abolicionista.” (ALBUQUERQUE, 2018, p. 348).
Além de Gama, André Rebouças (1838- 1898) foi outro nome que devemos ressaltar
quando se fala na luta pelo abolicionismo. Ele formou-se em engenharia, mas também se
destacou nas atividades jornalísticas. De modo que, nos chama atenção sua visão e atuação
política em apoio ao fim da escravidão. Para ele, não somente a abolição era necessária, mas
pensar em projetos que inserisse o negro no universo social e no trabalho livre. Na década de
1880 quando já se aproximavam os processos que culminariam na proibição do escravismo
brasileiro, Rebouças se uniu a Joaquim Nabuco na fundação da Sociedade Brasileira Contra a
Escravidão62.
Joaquim Nabuco (1849- 1910), por sua vez é referência quando se fala nos movimentos
abolicionistas, pois sua presença foi marcante nesta luta. Atuando como político, advogado e
escritor a pauta da liberdade dos escravos era uma questão que o acompanhava em todos os
espaços por ele ocupados. Em 1883, ele publica o livro o abolicionismo em que expõe suas
opiniões sobre a escravidão, mas a respeito da obra, não será aprofundada por estar em uma
temporalidade um pouco à frente da que nos propomos abordar nesta pesquisa.
Contudo, é importante dizer que Nabuco esteve atuando e se contrapondo com o
escritor e político José de Alencar (1829-1877) em diversos pontos, principalmente motivados
pelas questões políticas já que aquele era defensor e adepto das ideologias do partido liberal,
enquanto este fazia parte do partido conservador. Assuntos referentes à conjuntura imperial e a
respeito de obras publicadas por eles foram alvo de críticas por um e por outro.
Mas neste momento o nosso objetivo é perceber como a ideia desses autores sobre a
escravidão foram manifestadas. Nesse cenário vivenciado pelo Brasil, em que os projetos de leis
abolicionistas aumentavam, José de Alencar se posicionou sobre as questões a respeito da
abolição sobretudo através dos seus discursos parlamentares e de suas cartas políticas, sendo
que ele
[...] acreditava que a abolição não poderia ser apressada por decretos ou leis,
mas que seria resultado da ação natural do tempo, com a raça negra, em
62 Instituição brasileira criada em 7 de Setembro de 1880 pelo escritor e político Joaquim Nabuco da qual o
engenheiro André Rebouças era sócio-fundador juntamente com o jornalista José do Patrocínio. O instituto tinha
como finalidade a luta contra o escravismo no Brasil.
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menor número, sendo absorvida pela raça branca, após gerações de
cruzamentos inter-raciais. O maior temor do escritor era de que a abolição
jogasse o Brasil em um caos econômico e social, com a possibilidade até
mesmo de uma insurreição civil, a médio ou a longo prazo. (REIS, 2013, p.
67)
Sendo assim, é válido destacar que “enquanto membro do partido conservador, Alencar
defendeu os proprietários de terra, o trabalho escravo e o poder moderador, seguindo os ideais
e a base política do partido pelo qual optara [...]” (ARAGÃO, 2019, p. 15). Esse trecho revela
que Alencar possuía ligação com o partido conservador, contudo, o fato de pensar nos
proprietários de terra ocorre paralelo ao entendimento do autor cearense de que uma abolição
por meio das leis não seria suficiente para a libertação dos escravos, mas esta deveria ocorrer de
forma gradual, com a inserção destes na sociedade, de modo que lhe garantisse condições
mínimas de sobrevivência ao tornar-se livre.
Considerações finais
Em suma, foi possível identificar como às discussões em torno dos negros escravizados
no Brasil acarretou intensos debates ao longo do período oitocentista. Sobremaneira, na
segunda metade do século XIX quando as pautas acerca da escravidão foram aguçadas, e
acrescidas pela participação de intelectuais que se manifestavam a favor da abolição e outros
que pretendiam seu estabelecimento de forma gradual, conforme apresentado ao longo desse
trabalho.
Dessa forma, esse estudo nos possibilitou ter um panorama geral das discussões sobre a
escravidão e os negros do período analisado. Através da análise da conjuntura política da época
e das reformas resultantes das leis abolicionistas, como também, das discussões desenvolvidas
no âmbito do parlamento e nas atuações da sociedade brasileira naquele período, se consegue
perceber a relevância dessa pesquisa, que evidencia como o escravismo brasileiro representou e
continua representando uma temática pertinente a ser pensada e problematizada pela
historiografia dada a importância desses acontecimentos para compreender o processo de
construção histórica do nosso país.
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Criminalizações e silêncios: a construção de uma representação do medo branco
em torno do escravo Lucas da Feira, 1890-1910
Lázaro de Souza Barbosa63
Resumo:
Este trabalho examina a relação entre representação e escravidão em Feira de Santana-BA,
buscando refletir sobre o processo de elaboração de um conjunto de escritos de pretensão
científica entre os anos de 1890-1910, que acabaram por efetivar a criminalização das memórias
a respeito do escravizado Lucas da Feira, insurgente no contexto de uma sociedade policultora
e escravista na primeira metade do século XIX. Os objetivos dessa investigação buscaram
entender até que ponto a existência desses escritos fortaleceu construções de silêncios e
disputas em torno das memórias sobre este sujeito.
Palavras Chaves: Escravidão; Lucas da Feira; Pós-Abolição.
Terras do ódio racial: o lugar social de produção das histórias e das representações sobre
Lucas da Feira
Investigar as histórias e as representações sobre Lucas Evangelista dos Santos é tentar não se
perder na grande encruzilhada de ditos e não ditos, imagens de controles e de apagamento, estratos
de tempo e um vasto campo de repetições odiosas que monumentalizaram e fizeram erigir a figura
mitificada de Lucas da Feira. É não se deixar seduzir pelas tentativas tautológicas e pouco reveladoras
de recontar ou reler a sua história, perspectiva muita em voga nos cenários de produções
historiográficas nas duas últimas décadas.
Entender que essa representação em que foi transformada Lucas da Feira o apresenta
enquanto símbolo dos negros, de uma raça incivilizada e bestializada na região de Feira de Santana
nos idos de 1890-1910, seja talvez um passo historiográfico necessário para a compreensão do lugar
social de produção dessas representações e histórias. Essas elaborações e imagens de controle sobre
Lucas, num contexto de incipiente urbanização e de arregimentação de um projeto de civilidade de
63 Graduado em História pela Universidade Estadual de Feira de Santana; professor do Projeto Popular de
Educação Malungos /Anguera-BA. E–mail: lazzosza@gmail.com
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feição antinegra, carregam dimensões concretas no tocante à configuração de um arcabouço jurídico
penal feirense que deu conta da interdição da escravidão sem necessariamente abrir mão das técnicas
de controle endereçadas a população negra e pobre.
Os nomeamentos para Lucas da Feira foram e são vários, e durante muitas décadas
foram marcados pelo viés racial, criminológico, animalesco. A desqualificação histórica
marcou parte da trajetória do dizer, do contar, do oralizar e escriturar Lucas Evangelista dos
Santos, como, por exemplo, demônio negro, o famigerado, salteador perverso, de ferocidade
habitual, a figura do diabo, um bárbaro com entranhas de fera, o que acaba por resultar num
enquadramento desse sujeito, atendendo assim a uma forma peculiar de ver, dizer e lembrar
sua trajetória.
Nessa empreita, os letrados baianos e de outras regiões do Brasil cumpriram um
importante papel para as elites locais ao dedicarem parte significativa dos seus escritos a um
labor de pretensa ciência e de efetiva criminalização das histórias e das representações sobre
Lucas. Saltam aos olhos as várias narrativas encontradas nesses textos, que o tratam enquanto
o celebre bandido, ou como um destacado personagem na história do crime em Feira de
Santana. Aí se percebe uma erosão da escravidão enquanto processo e contexto de existência
de Lucas Evangelista dos Santos, enforcado e a partir daí inscrito enquanto Lucas da Feira, o
bandido, o criminoso, o facínora, preto assassino, mas diluído enquanto escravizado.
A grande feira de representações existente sobre Lucas esconde que as vias simbólicas
de dominação são efetivamente importantes na mediação de contradições em economias
políticas em transformação. A fabricação de representações unidimensionais sobre Lucas,
essa que é produto do racismo de verniz científico, não foi uma operação intelectual
inofensiva, esses estudos seminais sobre o escravizado feirense protegiam interesses materiais
e políticos reais.
Ao narrar Lucas enquanto herói ou bandido repõe-se uma dada relação de poder que
tira de cena o Lucas Evangelista dos Santos, sujeito de condição escravizada de um específico
contexto da escravidão baiana, portador de contradições virulentas e filho de pai e mãe
africanos com nomes, histórias e parentes silenciados. Com isso torna-se necessário dizer que
a ‘raça’ esteve longe de ser o único vetor relevante na composição e na trama de poderes que
possibilitaram a emergência histórica das representações sobre Lucas. O comportamento
temporal pelo qual passava Feira de Santana no pós-abolição disponibilizou condições para a
edificação de um Lucas enquanto reservatório dos medos das elites comerciais e agrárias
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dessa região, ou seja, há ali evidentes sentidos de classe que tornavam mais amplo o projeto
de civilidade e que revelavam as experiências a serem confrontadas na urbe ruralizada de
Feira no contexto de final do século XIX e início do século XX.
Compreender as representações sobre Lucas enquanto parte angular do projeto de
civilidade feirense é partir da necessidade de se atentar para quem são os fabricantes dessas
representações. A historiadora Tânia LUCA (1996, p. 94-95) indica que nas primeiras
décadas do século XX, parte considerável da vida intelectual brasileira gravitou em torno da
imprensa. Buscando validar seus discursos vias canais de ordem científica e publicá-los pelos
periódicos ávidos por seu lugar no projeto de civilidade, letrados como Thomé de Moura,
Nina Rodrigues, Melo Morais Filho, Virgilio Cesar Martins Reys, Arthur Cerqueira da Rocha
Lima, Eduardo Pinaré, Silvo Romero, Andre Pinaré Silva Morais e Guimarães Cova
trataram de Lucas Evangelista dos Santos narrando-o enquanto Lucas da Feira, confirmandoo enquanto um monumento a ser velado de perto pela ciência da época.
Pode-se dizer que essas figuras das ciências (com trajetórias nas faculdades de
Medicina e/ou faculdades de Direito) tinham em vista as possibilidades concretas de extração
simbólica para usos e abusos nos projetos político/pessoais e de urbanidade pautados pela
lógica de higienização da miséria e crivados de utopias disciplinadoras, assim como
comprometidos com a agenda nacional – haja a vista a atenção dada a uma específica forma
de ver e dizer Lucas da Feira – de formulação de uma identidade racial, que compreendia o
povo negro enquanto objeto da ciência e que mobilizou várias formas e tentativas de
silenciamentos na chegada da República.
Vale dizer, amparado nos estudos de Lilia Moritz SCHWARCZ (2017, p. 25), que no
Brasil, [...] o negro apareceu caracterizado antes de tudo enquanto expressão de sua raça. No
contexto feirense, Lucas foi o sintoma dessa caracterização no que diz respeito à população
negra local. Ao atentar-se para a malha de conteúdo e interesses que atravessam os escritos
desses letrados sobre Lucas, escritos que inclusive apresentam uma intertextualidade muito
escandalosa, identifica-se a condenação póstuma desse escravizado enquanto expressão de
uma raça e de uma memória antitética a todo empreendimento de civilidade que era
espraiado via discursos de progresso e modernização pelo Brasil, e que era bradado em Feira
de Santana. Daí, “tendo em mente supostos atributos biológicos interpretados à luz da
prepotente ciência do período, os teóricos da época impunham uma imagem absolutamente
negativa do homem de cor perante outros tipos raciais” (SCHWARCZ, 2017, p. 25).
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Medos e distorções e deslocamentos
O nome é Lucas e, com base nas escritas dessas figuras das letras e dos jornais locais, o
sobrenome é crime (salteador, facínora, bandido, criminoso e etc.), já que não era digno
conspurcar o nome da cidade narrando-a ao lado do nome de um escravo. O filho de
africanos escravizados foi retirado de seu contexto de existência e isolado de suas
historicidades. Em diálogo com o historiador Durval Muniz de ALBUQUERQUE (2013, p.
23) pode se apontar que essas historicidades foram neutralizadas politicamente ou
censuradas, para serem colocadas a funcionar em novos contextos para a ocupação de novos
lugares, para se constituir em formas quase que empalhadas des-historicizadas, transformadas
em símbolo, em ícone do crime e das práticas indesejadas na cidade feirense.
Vale dizer que a maioria dos letrados que se debruçaram na confecção das histórias e
das representações sobre é representante de uma dada ordem social em tempos de
escravidão. A consagração de Lucas enquanto bandido e ao mesmo tempo eclipsado
enquanto escravizado está situada também no processo de materialização dos medos brancos
em Feira de Santana. As representações distorcidas que conformam as histórias sobre Lucas
da Feira recobrem a conflitividade social que esse escravizado agenciava com sua existência
em contexto de elevado grau de insurreição negra antiescravista na Bahia.
É possível sugerir que as representações que sustentam esse campo de histórias sobre
Lucas subsidiaram os equipamentos policiais da Bahia no que diz respeito à formulação de
imagens do crime e do criminoso que iriam constituir o modus operacional da polícia
baiana, essa que em muito operou com lógicas gestadas em clara sintonia com a díade
civilização x barbárie. A partir dos estudos do historiador baiano João José REIS (2019), em
específico seu livro Ganhadores: A Greve negra de 1857 na Bahia pode se apontar caminhos
de entendimentos mais clarificados a respeito desse uso de representações de crimes e
criminosos sob a ótica da ciência para elaboração de imagens de controle de gente e do
trabalho no final do século XIX e início do XX.
Segundo João REIS (2019, p. 340), no final dos oitocentos não é certo, assim que a
polícia baiana [...] tivesse sido rigorosamente treinada nos moldes da escola italiana ou
quaisquer outros métodos de polícia científica que se espraiavam pela Europa da época. De
acordo com esse autor, “o uso mais sistematizado desses métodos no Brasil esperaria a
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chegada da Republica, quando foram introduzidos os gabinetes de identificação criminal”
(REIS, 2019, p. 340). Ele dispõe que,
[...] na Bahia isto se deu em 1911, e sua regulamentação veio no ano
seguinte, tendo como objetivo, entre outros, produzir fichas criminais
que descrevessem filiação morfológica e exame descritivo, notas
cromáticas, traços característicos, particularidades, cicatrizes, tatuagens,
anomalias congênitas acidentais ou adquiridas, conforme rezava seu
regulamento (REIS, 2019, p. 340).
Em tempos de consolidação das histórias e das representações sobre Lucas da Feira,
também se regulamenta as instituições policiais baianas e suas técnicas e imagens de controle
que emergem em meio à interdição da escravidão. João José REIS (2019, p. 340) destaca que
embora na década de 1880 já devessem ter chegado à Bahia notícias da nova abordagem
criminológica, esta devia se entrelaçar com velhos procedimentos usados para descrever em
minúcias o sujeito das classes pobres e perigosas como adverte Sidney Chalhoub. Essas
descrições, como foi o caso da feita sobre Lucas, que em muito foi utilizada nos textos de
letrados fabricantes de histórias e representações sobre o mesmo, ainda com João REIS
(2019, p. 340) não eram para prevenir o crime, mas para identificar o criminoso, capturá-lo e
puni-lo.
Os estudos de João Reis também são fundamentais para a percepção de que
Não era somente a chave sociológica que abria novas portas de entrada
para a construção da ideia de raça naquele período. À sociologia estava
a biologia. A racialização das desigualdades sociais ganharia foro
acadêmico nas teorias raciais que iriam definir o continente africano
como o inferno berço genético do negro brasileiro, em parte, de seus
mestiços. [...] Isto se encaixava melhor no pensamento racialista que
começava a ocupar as elites letradas crentes que eram brancas. O que
passava a valer era o critério cientifico, mais especificamente a biologia
(REIS, 2019, p. 294).
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Ou seja, “agora na forma de um racismo com veleidade científica de elite, embora uma
versão mais antiga e popular, baseada no estigma da escravidão, continuasse alimentar o
imaginário daquela sociedade, mesmo (talvez, sobretudo) após a abolição (REIS, 2019, p.
356)”. No contexto da Feira de Santana situada entre as décadas de 1890 e 1910, é possível
identificar lógicas similares de difusão de saberes racializantes, como o de Nina Rodrigues,
pela biblioteca pública da cidade. O periódico feirense O Município, em edição de 1892,
através do “bibliothecario Francisco da Silva Pimentel” faz menção pública a Nina Rodrigues,
agradecendo ao mesmo pelo envio de um das suas produções para a biblioteca pública da
cidade feirense. Segundo o periódico, “pelo exm. sr. dr. Nina Rodrigues, ilustrado lente da
Faculdade de Medicina da Bahia, foi offerecido um volume dos Fragmentos de Pathologia
Intertropical, publicado pelo mesmo sr64”. A circulação dos estudos desses letrados
comprometidos com a feitura de distorcidas histórias e representações sobre Lucas pela
região de Feira de Santana esta situada num contexto de montagem e/ou regulamentação dos
aparelhos penais dessa região. A de se falar das semelhanças também encontradas nesses
trabalhos no que diz respeito às formas de ver e dizer Lucas da Feira enquanto bandido,
criminoso, facínora, monumento a ser velado pela ciência em favor dos atos inaugurais dos
discursos e representações sobre o crime.
João José Reis sinaliza que
[...] ao passar a ser chamado como antes eram chamados os africanos, o
negro brasileiro sofreu uma espécie de africanização. Pode-se dizer que
ele foi rebaixado à categoria de africano no imaginário daquele fim de
século, e digo rebaixado porque o africano estava mais próximo à base
da pirâmide social do que o crioulo de antigamente, o africano era,
enfim, o cativo típico do escravismo luso-brasileiro (REIS, 2019, p.
294).
As histórias e as representações sobre Lucas da Feira atendem por essas lógicas
indicadas por Reis, Lucas representando a africanidade indesejada nas históricas de Feira de
Santana, a sua figura e memória são antitéticas ao projeto de civilidade que avançava na
cidade. Desafricanizar as ruas não bastava, era preciso também desafricanizar as histórias.
64 Jornal O Município, edição de 1892, nº 150.
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Assentar as narrativas sobre Lucas da Feira longe da ordem escravista foi uma tentativa
consolidada. Essas narrativas dão conta de Lucas enquanto figurante de uma representação
do medo branco da elite comercial e agrária feirense.
Recorrendo aos estudos da historiadora Vera Malaguti BATISTA (2003, p. 7), vale
dizer que as representações de Lucas enunciadas por esses letrados se transformam em
discursos, em teorias criminológicas baseadas num senso comum com fundo de ciência, e
que estiveram alinhavadas a difusão de imagens do terror que produz políticas violentas de
controle social. Vera Malaguti BATISTA (2003, p. 51) é salutar para o entendimento de que
o importante aqui não é o que os discursos, mensagens, representações proclamam, mas
principalmente o que escondem. E as histórias e as representações fabricadas sobre Lucas
escondem a ordem escravagista que foi organizada na região de Feira de Santana e com a
qual Lucas Evangelista dos Santos confrontou-se.
Nesse contexto em que se inscreve a tentativa de apagamento da memória da
escravidão na história de Feira de Santana, há indícios de fragilidade nessa tentativa por
acontecidos que guardavam relações oriundas das práticas escravagistas que imperaram
naquela região do agreste baiano. O jornal feirense Gazeta do Povo, por exemplo, em edição
de 1892, numa notícia chamada “Desordem”, anuncia que “Henrique-marcineiro, constanos, por motivo fútil, chicoteou, ao romper do dia 7 do corrente, a mulher de nome
Etelvina, mesmo a porta da casa em que mora a referida mulher, a praça da cadeia 65”. Não se
sabe aqui a fundo sobre as implicações desse acontecido nem seu contexto de
acontecimento, mas talvez seja importante ressaltar a dimensão da existência de práticas
oriundas da escravidão que se queria apagar com a fabricação das histórias e representações
de Lucas da Feira enquanto ícone e símbolo do crime e da raça negra, não só descivilizada,
incabível na memória da cidade, mas também descivilizadora, raça que era representada por
experiências de pessoas concretas no cotidiano das décadas iniciais do século XX feirense.
Identifica-se esse processo a partir de trechos do periódico O Município de 1892, que,
por exemplo, atuava enquanto agencia de divulgação e execução, em certa medida, do
projeto de civilidade feirense. Com uma notícia de título “Passeio das ruas”, o periódico
informa que “o cidadão intendente municipal da nossa capital recomendou, aos fiscaes que
tenham muito em vista as posturas que prohibem que estejam ocupados [sic] os passeios
65 Jornal Gazeta do Povo, 1892.
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com cargas, em detrimento dos transeuntes66”. Em outra notícia do mesmo ano, o periódico
em questão, com o título “Melhoramentos municipaes”, anuncia que “já tiveram começo e
continuam em andamento os trabalhos de calçamento da Rua do Senhor dos Passos”. O
articulista ainda pontua que “era essa uma necessidade palpitante, attendendo a beleza d’essa
rua, uma das mais importantes d’esta cidade67”. Além desse processo de higienização com
sentidos antinegreiros que estava localizado nos componentes do projeto de civilidade
feirense, também tinha o processo de aprisionamento sustentado pela lógica racial de
combate a vadiagem e ao consumo de álcool. O Município veiculou em 1892, ano de intenso
empreendimento das utopias disciplinadoras na cidade feirense, um acontecido nomeado de
“Prisões” pelo articulista, onde dizia que “a disposição da delegacia de polícia foram presos
[...] Pedro das Virgens por estar embriagado promovendo desordem na Praça do
Commercio, e João Ferreira da Silva que se acha processado, segundo informações prestadas
a mesma delegacia, no termo de Cachoeira68”. Assim, vai ficando patente o lugar e contexto
de produção social da razão fabricada sobre Lucas Evangelista dos Santos enquanto Lucas da
Feira.
Faz-se necessário destacar que vários sujeitos diretamente escalados em instituições do
judiciário e da polícia baiana produziram textos e expandiram uma dada forma de ver e dizer
o escravizado feirense gritantemente enquanto bandido e ícone das práticas de crimes a
serem folclorizadas e esvaziadas na sua conflitividade social. Lançando mão de trechos “do
livro Municípios da Bahia”, onde é possível localizar escritos sobre Lucas, elaborados por
Guimarães Cova no ano de 1907, identifica-se que Guimarães “foi delegado em Feira de
Santana no final do século XIX e início do século XX” e buscava “publicar um trabalho que
[...] fosse, pelo menos, um repositório de informações de tudo quanto possuem os
municípios da Bahia”.
Buscando “não omitir o mínimo esclarecimento sobre a vida nessas terras do interior”,
Cova versa sobre Lucas compreendendo-o enquanto personagem de uma “pagina negra” da
história feirense, e “della não se” apagaria “uma só letra, [...] não se” apagaria “o borrão da
vida de Lucas, o salteador, sem que não fique uma grande falha na história de Feira”. O
mesmo dizia narrar “desapaixonadamente a vida dos bons e dos maus”, nesse sentido, ele
66 Jornal o Município, 1892, nº 150.
67 Jornal o Município, 1892, nº 164.
68 Jornal o Município, 1892, nº 164.
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iniciava “a narração dos factos principaes da vida de Lucas e sua quadrilha (COVA, 1907)”.
O conteúdo do texto de Cova apresenta fragmentos, mesclas e empréstimos de outros textos
produzidos sobre esse escravizado nesse mesmo contexto histórico. É perceptível a
intertextualidade com trabalhos de Virgilio Reys, por exemplo, quando Guimarães aponta
Lucas enquanto “terrível facínora”, sujeito de “índole perversa”, de “cogitações diabólicas”,
“chefe” dos “miseráveis (COVA, 1907)”, só para ficar com alguns intercâmbios de
representações e tentativas de definições de Lucas da Feira.
Ainda com percursos no campo jurídico, encontramos Thomé de Moura, produtor de
um documento de extensiva exposição sobre as acepções e percepções que se tinham da
questão racial naquele contexto de 1880-1920. Thomé de Moura, que já atuou em cargo de
promotor público em Feira de Santana, trocava com Arthur Cerqueira da Rocha Lima,
também implicado na formulação dessa razão sobre Lucas, saberes e informações a respeito
de Lucas Evangelista dos Santos. Essas informações evidenciam o caráter fantasmagórico
que, como uma fonte de subsídios caudalosa, marca a razão e o campo de estudos sobre
Lucas. Mais que isso, se trata de informações e saberes que revelam o grau de terror e medo
alocados em representações sobre o mesmo.
Falava-se de Lucas da Feira em abundância naquele contexto de repaginação urbana
de Feira de Santana, falava-se, sobretudo, para esquecer, falar é também esquecer. E é o que
parece acontecer no contexto das décadas que recobrem essa pesquisa. Escriturar Lucas da
Feira, e em volume documental considerável, como um bandido, que se deve falar, mas falar
para esquecer, para não se pulverizar, e nem se imaginar pela urbe com futuras pronúncias
de Princesa do Sertão, ou falar para lembrar, mas lembrá-lo como bandido, e bandido a ser
combatido inclusive no campo das histórias e das representações, é, sobretudo, a tentativa de
induzir e justificar os olhares criminalizantes, descivilizadores e demonizadores para os
corpos negros e pobres que, por via de migração intensa, povoavam a cidade da Feira de
Santana entre o final do século XIX e início do XX.
Referências
ALBUQUERQUE, Durval Muniz de. O morto vestido para um ato inaugural:
procedimentos e práticas dos estudos de folclore e de cultura popular. Prefácio de Regina
Guimarães. – São Paulo: Intermeios, 2013.
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BATISTA, Vera Malaguti. Na periferia do medo. Estados Gerais da Psicanálise: Segundo
Encontro Mundial, Rio de Janeiro, 2003.
LUCCA, Tânia Regina. A Revista do Brasil (1916-1925) na história da imprensa. Travessia
Revista Literatura, nº 32, UFSC, Ilha de Santa Catarina, p. 94/126, 1996.
REIS, João José. Ganhadores: a greve negra de 1857 na Bahia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São
Paulo no final do século XIX. São Paulo, 2ª ed. Companhia das Letras, 2017.
Lista de fontes
1. Fontes impressas: os Periódicos.
Jornal O Município 1892 e 1893. (Museu Casa do Sertão/UEFS).
Jornal Gazeta do Povo 1892. (Museu Casa do Sertão/UEFS).
2. Documentos escritos:
Documento de título Lucas o Salteador [continuação], enviado por Thomé de Moura ao seu
colega Artur Cerqueira da Rocha Lima. (Museu Casa do Sertão/UEFS).
Trecho do livro Municípios da Bahia, 1907. COVA, Guimarães. (Museu Casa do
Sertão/UEFS).
Alguns traços da vida de Lucas. REYS, Virgilio. Efemérides Cachoeiranas, 1896. (Museu
Casa do Sertão/UEFS).
Alfredo do Valle Cabral escrevendo sobre Lucas. Pasta doc sobre Lucas, MCS/UEFS.
André Pereira da Silva Morais escrevendo sobre Lucas, Gazeta de Noticias 1895. Pasta doc
sobre Lucas, MCS/UEFS.
Dois Metros e Cinco: romance de costumes brasileiros, 1905, Garnier, Rio de Janeiro. Pasta
doc sobre Lucas, MCS/UEFS.
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Quebrando as correntes: o letramento dos negros e escravizados no século XIX
Maria Lidiane Santos Cardoso69
Resumo
O objetivo deste texto é discutir sobre o processo educacional da população negra e
escravizada, que conseguiu acesso ao sistema escolar de ensino na Província de Alagoas em
meados do século XIX. Serão analisadas, as vivências e experiências cotidianas desses agentes
históricos que viveram “acorrentados” ao sistema escravista oitocentista, para a partir disso,
tecer observações teóricas e metodológicas necessárias acerca do estabelecimento da relação
entre escravidão, educação e letramento.
Palavra chave: letramento, escravidão, educação.
Entender como se deu o processo educacional dos negros e escravizados que habitaram
o Brasil do século XIX é abordar uma história de exclusões, desigualdades sociais,
discriminações e subtração da cidadania. Tais modelos definiam o caráter excludente entre
ricos e pobres, negros e brancos, escravizados e livres. Evidencia-se que nesse período, os
lugares dos sujeitos eram definidos conforme a hierarquia social, onde se estabelecia e
dividiam-se espaços segundo a cor da pele e posição social. Essa prática social dificultava o
acesso e a ascensão social do negro, pois existia uma hierarquia dos lugares sociais. Cabe
ressaltar, que essa hierarquia social não mudou muito nos dias atuais, uma vez que, a população
negra ainda luta para ocupar um papel e lugar na sociedade.
É dentro desse contexto de marginalização e humilhação que iremos analisar como se
deram as práticas de escolarização/educação dos negros e escravizados que habitaram a
Província de Alagoas no século XIX.
Para que se possa entender como essa população de “marginalizados” foi submersa no
processo educacional brasileiro, é preciso compreender a sociedade oitocentista escravista e
69 Graduada em História pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL. Mestranda em História pelo Programa
de Pós-graduação em História, Universidade Federal de Alagoas -UFAL e Professora da Educação Básica de
Ensino.
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seus mecanismos educacionais arbitrários, bem como analisar o processo de Instrução Pública
no Brasil a partir do decreto de 1827. E assim perceber o tipo de educação que era oferecida
para aqueles que estavam à margem da sociedade na Província de Alagoas no século XIX.
Assim, a educação brasileira no período oitocentista privilegiava atender a elite. Não há
como negar que a população menos favorecida economicamente ao longo da história ficou em
segundo plano, tendo que lutar contra o sistema que o inferiorizava. Podemos perceber que
isso é um problema que perpassa a escravidão, pois quando se acrescenta ao processo de
exclusão social a questão étnica racial, ele se agrava, Farias et al (2007). Nesta perspectiva,
frisamos que o mundo das letras para os negros e/ou escravizados se apresenta como uma
forma de ascensão social, pois, à medida que se aprendia a ler, escrever e contar, esses sujeitos
históricos migravam das áreas rurais para as áreas urbanas, isso possibilitava um trabalho
diferenciado daquele do cativeiro (CORREIA, 2000).
Todavia, existia um preconceito étnico racial por parte da sociedade dominante o de
que não haviam escravizados e negros letrados no Brasil do século XIX (SILVA, CORD,
2017). Entretanto, isso era um olhar por parte daqueles que viam o negro na condição apenas
de escravizado. Apesar de a historiografia ser escassa no que diz respeito ao tema, é
ingenuidade acreditar que as práticas de leitura e escrita não ocorreu no mundo dos
escravizados. Winssembach (2017) aponta, que alguns aspectos devem estar presentes na
abordagem sobre o tema da população cativa: “entre eles, o sentido e a simbologia quase
mágicos que a habilidade de escrever, ou ainda a simples posse de “papel e de caneta de pena,
assumiu entre escravos e libertos no processo de afirmação de sua identidade social e no
âmbito das relações de sociabilidades cotidianas” a autora observa que uma das principais
razões para o escravizado desejar o letramento, era a tão sonhada alforria
Numa sociedade com baixos índices de letramento e entre frações sociais
destituídas da habilidade da escrita, tal como imperava no Brasil colonial e
imperial, além de a compra da alforria ser o grande objetivo da maioria dos
escravos, a “carta” – como era familiarmente conhecida por eles –
transformava-se em materialidade da liberdade desejada e obtida,
constituindo-se, de fato, no principal documento capaz de distinguir os forros
dos escravos. (WINSSEMBACH, MARC, 2017, P. 63).
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Ora em um mundo onde os parâmetros sociais eram os europeus, era impossível
pensar em indivíduos presos ao cativeiro ou negros livres e pobres com o domínio das letras,
pois, isso lhes dava privilégios e poderes como afirma Silva. “A língua escrita sempre foi
instrumento de poder. O domínio da leitura e da escrita com correção e precisão distingue
quem é potencialmente intelectual” (SILVA, CORD, 2017, p. 07).
Greive enfatiza, que durante o período imperial, “elaborou-se o imaginário de uma
sociedade disforme70 a ser formatada pelas instituições. Esse imaginário tanto possibilitou a auto
- representação das elites como pedagogas da nação, quanto das populações como portadoras
de várias anomias71”. (GREIVE, 2010, p. 03). Assim, percebemos que a sociedade hegemônica
“civilizada” se autodeclarou como letrada, implementando assim o modelo imperial de ensino.
Em contrapartida as populações “incivilizadas” seriam a dos negros, índios e escravizados que
habitavam a Província de Alagoas no século XIX. Cabem destacar que, essas populações foram
consideradas como os incultos, os destituídos de alma e, portanto, ficariam fora do projeto
escolar dominante. Assim, o espaço delegado a esses povos seriam as ocupações no mundo do
trabalho.
Desse modo, a Instrução Pública no Brasil iniciou-se com o decreto de 1827, que
obrigava as províncias brasileiras a implementarem o ensino de primeiras letras seguindo o
modelo imperial europeu de ensino. Oliveira (2019) observa que, foi a vinda da Família Real
portuguesa para o Brasil em 1808, que acelerou o processo de regulamentação do ensino de
primeiras letras nas províncias brasileiras: “a Instrução Pública no Brasil foi pensada para
atender as camadas mais abastadas” (COSTA, 1993). Não obstante, seguindo o modelo
imperial, as escolas passaram a funcionar em um regime
de ensino mútuo, desenvolvido a
partir do método de Lancaster72.
70 A sociedade oitocentista coloca o negro e o escravizado como seres destituídos de alma, sem forma. Os negros
vindos da África eram colocados como um ser deformado, sem cultura, língua ou religião. Ocorre que esse
pensamento tinha o intuito de inferiorizar a humanidade dos africanos inserindo-os num processo colonizador
cruel e desumano. (FONSECA, 2010).
71 Greive enfatiza que a sociedade colonial europeia tinha por objetivo inserir os africanos que chegavam ao Brasil
no projeto colonial civilizatório. Partindo do princípio de que os africanos eram incivilizados, seres destituídos de
alma e precisavam ser formatados pelas instituições. Esse projeto tendia incorporar o negro no processo
educacional hegemônico (educação direcionada para a submissão) que negava toda e qualquer herança africana.
Isso serviu como justificativa para colocar o africano como inculto e o colonizador como o detentor do saber.
(GREIVE, 2010).
72 Este modelo foi desenvolvido pelo inglês Joseph Lancaster (1778-1838) consiste em dividir a escola em classes
de rapazes quase da mesma idade, que tenham feito iguais ou quase iguais progressos, o lugar de cada um era
determinado pelo seu adiantamento. Cada classe se divide em decuriões, e em discípulos. Os decuriões devem
fazer estudar as lições os seus discípulos ao mesmo passo que as estudam suas próprias. Deve vigiar o grupo no
seu bom comportamento, e no sossego e boa ordem da classe. (MOACYR, 1939, p. 590).
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Entretanto, as escolas de primeiras letras no Brasil oitocentista, apresentaram-se como
mecanismos de controle social, visando difundir um modelo de comportamento que buscava
atingir uma nação civilizada e uniformemente cultural, seguindo o modelo europeu, e com
isso, negar a cultura indígena e negra (SANTOS, 2011). Assim, as populações de negros e
escravizados que habitavam as províncias brasileiras nesse período, tiveram o acesso à
escolarização colocada em segundo plano. A Constituição de 1824 em seu artigo 79 proibia
veementemente o acesso de o escravizado e todo aquele que sofria de moléstia acessar a
escola (OLIVEIRA, 2010). Entretanto em relação ao negro, a Constituição não o excluiu,
porém, tendo em vista a sociedade discriminatória e excludente do período, esse também foi
condenado a ficar fora do ensino, pelo menos era o que se supunha.
Farias Filho (2000) observa que em algumas Províncias existiam debates nas assembleias
a respeito da escolarização das chamadas “camadas inferiores” (negros, escravos, forros e
crioulos). Porém a presença do Estado no ramo da Instrução Pública nesse período ocorria de
forma pequena e insatisfatória73, chegando a ser até prejudicial para as Províncias em alguns
casos. Segundo o autor, o poder público não dispunha de verbas, as aulas eram dadas nas casas
dos mestres por não haver local próprio e adequado. Além disso, os professores eram mal
remunerados e despreparados (SANTOS 2011).
Entretanto, para enfatizar a não educação do negro, a sociedade imperial o reduziu a
condição de escravizado, com o intuito de negar sua humanidade, e automaticamente exclui-lo
do processo escolar. Veiga (2007) chamou esta associação, de sinonímia negros e escravos. A
autora aponta que este modelo foi responsável por produzir uma sériede equívocos na
historiografia no que se refere a situação da educação dos negros e escravizados. Pois, por
muito tempo analisou-se o negro sob a perspectiva do escravizado. Incorporar tal
nomenclatura em seus escritos causou ao longo dos tempos, reflexões contraditórias, pois, é
preciso se atentar para as diferenças entre cor e condição jurídica desses sujeitos históricos.
Porém, Wissenbach chama a atenção que,
73 A educação em Alagoas nos oitocentos, não tinha recursos suficientes para seu desenvolvimento. Desta
maneira, a educação dependia de investimentos da elite e dos grandes proprietários de terras, porém estes também
não tinham interesse em investir por priorizar a parte econômica na Capitania (COSTA, 1931). Os professores
eram mal remunerados e despreparados, não existiam materiais mínimos nem local adequado para o
desenvolvimento das aulas. Como observava presidente da província de Alagoas em 1844, Francisco Anselmo
Peretti, “nestas aulas não sabem os alunos nem ler, nem escrever, nem as quatros operações, nem a doutrina cristã
(...) e ainda dispara que os professores conquistaram as cadeiras por meio do patronato”. (MOACYR, 1939, p.
571).
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Nos últimos tempos, a historiografia sobre a escravidão no Brasil conheceu
mudanças significativas e, em seus vários rumos e inovações, alguns enfoques
interpretativos têm se mostrado particularmente produtivos, especialmente
aqueles que, partindo da consideração do escravo como agente histórico,
romperam com as visões tradicionais que insistiam na reificação do cativo e
também em sua vitimização. (WISSENBACH, CORD, 2017, p. 53).
A Constituição de 1824 enfatizava a proibição ao escravizado em acessar o ensino,
porém esta associação do negro como escravizado, tirava-lhe as possibilidades de acessar a
escola dentro dos padrões oficiais. Fonseca et al (2016) analisam essa sinonímia negro e escravo
como sinônimo que, segundo suas concepções, esse modelo de análise resultou na construção
de conceitos que reduziram ambos a objetos. Assim, é importante frisar que a situação de
escravizado já definia a condição social e educacional com embasamento legal. Podemos
perceber que excluir a população escravizada do sistema escolar no século XIX estava dentro
da legalidade, pois a Constituição de 1824 não o considerava cidadão74. Com essa prerrogativa
da Constituição, excluíam-se também os negros, forros, livres, crioulos ou ingênuos75.
Freyre enfatiza que, “no Brasil as relações entre brancos e as raças de cor foram (...)
condicionadas, pelo sistema de produção econômica – a monocultura latifundiária”,
(FREYRE, 2005, p. 33). A partir do pensamento de Freyre, observamos que a influência
negra no Brasil, estava restrita ao mundo do trabalho e à capacidade de submeter-se à
imposição e à ordem dos brancos. Isso confirma a análise de Gorender (1998) quando diz
que a sociedade patriarcal via os negros como mera mercadoria, podendo ser vendido,
alugado e comercializados.
Dessa maneira, a condição de ser humano foi negada ao negro, cedendo lugares às
narrativas que os delimitaram a lugares sociais de mercadoria, coisa/objeto (GORENDER,
1998). Aos negros libertos não existia respaldo jurídico que os impedissem de frequentarem a
escola, porém, era preciso provar que eram indivíduos livres. Ocorre que mesmo o negro
74 Segundo a Constituição brasileira de 1824, cidadãos eram todos aqueles nascidos livres, libertos ou
ingênuos. Por muito tempo, os escravos ficaram fora das escolas de Primeiras letras, por não serem
considerados cidadãos. (FONECA, 2007).
75 Ingênuos no Brasil oitocentista eram todos aqueles nascidos do ventre livre. (FARIAS FILHO,
2003).
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liberto provando a liberdade através da alforria, havia a negação por parte das autoridades em
inseri-los na escola. Bastos (2016) enfatiza que, muitos negros entravam na justiça para garantir
que seus filhos acessassem a escola, mas sempre eram-lhes negado este direito. “Uma viúva
parda, em Mariana/MG, que tentou, junto ao juiz de Órfãos, assegurar a instrução de seus
filhos, porque não queria que fossem feitores e nem trabalhassem com a enxada. O juiz negou
a demanda alegando que eles deviam mesmo, como pardos, trabalhar”. (BASTOS, 2016, p.
05). Podemos observar nesse relato, a opressão contra a população negra impedindo-lhes o
acesso ao sistema escolar formal.
É evidente, que os dominadores não aceitavam o ingresso dos negros nos mesmos
ambientes que os brancos. Isso não estava restrito a província de Minas Gerais, mas também
as demais províncias do Império. É importante frisar que em 1834, o ensino no Brasil sofreu
uma descentralização, a partir desse período as províncias deveriam criar leis próprias e
especificas para atender a demanda da população que seria letrada. No entanto, a população
negra e escravizada continuou tendo seus direitos a educação sufocado pelo sistema operante.
Porém, é importante observar que mesmo com esses sufocamentos, essas populações lutaram
pelo direito ao letramento, pois, ter o domínio do ler, escrever e contar nesse período
conferia-lhes liberdade.
Assim, a partir de 1836 foi decretado pelo então governador da Província de Alagoas,
Antônio Joaquim de Moura a regulamentação do ensino primário (MOACYR, 1939). A
constituição brasileira dos oitocentos excluía do ensino os escravizados como já analisado,
porém, com a descentralização do ensino, cada província criou leis próprias e específicas para
atender a demanda da população no ramo da Instrução Pública. Fonseca (2010) observa que
foi a descentralização do ensino que possibilitou aos negros e escravizados o acesso às letras.
Entretanto, na prática isso não ocorreu de forma dinâmica, pois a sociedade excludente, não
aceitava os agentes provenientes do cativeiro frequentando os mesmos ambientes. Nesse
sentido, a população negra que habitava na Província de Alagoas, ficou à margem da
escolarização.
É dentro desse contexto que podemos observar que mesmo podendo criar leis que
garantisse o ensino aos negros e escravizados, muitas das Províncias brasileiras preservaram o
caráter excludente de ensino aos modos europeus (ROMÃO, 2016). A elite branca teria seus
direitos educacionais resguardados, e às populações de escravizados, e negros ficariam
reservados o direito ao trabalho bem como as ocupações subalternas. (FONSECA, 2010).
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Podemos constatar o fato em Moacyr (1939) onde encontramos documentos províncias
das mais diversas províncias brasileiras. Em relação à Província de Alagoas, observam-se que
não se criou uma lei impedindo o negro e o escravizado de acessar ao ensino, mas apesar da
não proibição, vemos que a sociedade continuava com os mesmos sufocamentos. Podemos
constatar isso quando o governador da província de Alagoas Antônio Joaquim de Moura via
como um inconveniente estudar nos mesmos ambientes brancos e negros. (MOACYR, 1939).
A população presa ao cativeiro, bem como os negros livres e libertos, tinha ciência de
que ler e escrever, poderia ser uma arma para a libertação física e intelectual, sendo, portanto,
um meio de expressar e defender o projeto social fora do cativeiro. Silva (2012) analisa que
decifrar os códigos escritos de linguagem criavam possibilidades diversas como conhecimentos
de seus grupos étnicos, significava ainda o manejo de uma arma que os conduziriam a construir
a libertação76.
Todavia, a sociedade hegemônica “civilizada” se autodeclarou como detentora do saber,
implementando no Brasil o modelo imperial de ensino. Em contrapartida as populações
incivilizadas seriam a dos negros, índios e escravizados que habitavam a sociedade no século
XIX. Cabe destacar, que essas populações, foram preparadas por seus dominadores para
desenvolver ocupações relativas ao mundo do trabalho, porém, podemos perceber que
mesmo com essas predisposições hegemônica, as lutas sociais ocorriam na dinâmica local
contra a imposição do dominador, conforme observa Chartier.
As percepções dos sociais não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e práticas (sociais, escolares, politicas) que tendem a
impor uma autoridade a custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas. (...) as representações supõe-nas como estando sempre
colocadas num campo de concorrências e de competições cujos desafios se
enunciam em termos de poder e de dominação. (CHARTIER, 2002, p.17).
Contudo, o termo civilizar traz consigo uma intenção perversa ocultada em um pseudo
altruísmo, na realidade não tínhamos incivilizados, pois os colonizadores portugueses estavam
76Muitos escravizados fizeram da leitura e da escrita – descendentes seus ainda o fazem – meio para afirmar sua
negritude, e a partir dela, combater a assimilação a conhecimentos e comportamentos nocivos ao seu
pertencimento étnicos – racial que é enraizado em africanidade”. (SILVA, MARC, 2017, pg. 08)
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comparando culturas diferentes, a deles, e a dos negros, e colocando-se como superiores.
Dessa forma, o surgimento da educação em Alagoas, foi caracterizada por um olhar perverso
dos governantes e da sociedade em geral.
A estrutura monárquica, da Província de Alagoas no século XIX seguia o caráter
educacional vigente bem definido, conduzida pelo modelo colonial de educação. Nos
ambientes escolares, os mestres propagavam essas ideias tão presentes a partir da obediência
obtida através da violência física (FONSECA, 2010). No entanto, esses modelos
discriminatórios e excludentes não ficaram restritos a sociedade escolar oitocentista, eles
perpassam o período escravista. É notório que esses modelos acompanham o ambiente escolar
nos dias atuais nas formas de racismo, discriminação e preconceito (SILVA e MUNANGA,
2008).
Porém, vale destacar, que mesmo com as duras condições impostas pelo sistema,
aqueles que foram submetidos ao cativeiro, não renunciaram em momento algum a sua
humanidade. Fonseca aponta que “os escravos foram capazes de construir um conjunto de
experiências que se encontravam além daquelas que lhes eram impostas pelas regras e
prescrições da sociedade escravista” (FONSECA, 2007, p. 18).
É dentro desta perspectiva, que pretendemos inserir a educação dos negros e
escravizados destacando suas possibilidades de relações entre escola, letramento e liberdade. A
educação dos negros e escravizados como já citado, é o foco desta análise, retirar esses sujeitos
históricos do cativeiro e da condição de submissão e colocá-los no palco como sujeitos ativos
no processo de letramento em Alagoas é fundamental para entender sua ascensão social.
Fonseca destaca que os processos ocorridos entre a educação pública e aquela ocorrida
nos espaços privados são fundamentais para que se compreendam as influências da escravidão
na formação dos indivíduos. A educação dada às crianças escravizadas ao longo da sua vida
tendia a especificar o seu lugar na sociedade. Era uma educação para a manutenção do
cativeiro, através da obediência ao senhor nas relações públicas e privadas. Dentro desse
contexto, é necessário observar a distância entre a educação e escolarização desses sujeitos.
“Tratar das práticas educativas voltadas para a formação dos trabalhadores escravos implicam
em colocar de lado os processos relacionados com a escolarização”(CORD, 2017).
Sabe-se que o processo colonial objetivava inserir e manter os negros no cativeiro para a
manutenção do sistema econômico escravista. Para isso, se educava os escravizados desde
criança para suas tarefas dentro dos modelos hegemônicos. Os africanos que chegavam da
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África eram dominados, “adestrados” e controlados para aceitarem o padrão europeu de
trabalho. Esses modelos abrangiam a educação e não a escolarização desses sujeitos. Desta
maneira, tanto as crianças como os adultos escravizados eram preparados para o trabalho. “Os
meninos começavam a trazer a profissão por sobrenome: Chico Roça, Ana Mucama”
(FONECA, CORD, 2017, p. 22). O autor observa que essas práticas não eram mero
adestramento, eram práticas sociais com controle e direção bem definidas, sendo portanto,
uma prática pedagógica. Para enfatizar a educação para o trabalho, podemos observar que
ofícios eram atrelados ao nome dos indivíduos. Esses recursos eram utilizados para destacar as
ocupações, estas, deveriam acompanhar suas vivências por toda vida. Destacamos que apesar
dessas práticas ocorrerem no período colonial, podemos perceber uma continuidade, pois a
população de escravizados que habitaram a século XIX ainda sofriam com esse modelo
colonial de educação que atrelava o nome dos indivíduos as suas ocupações.
É importante perceber, que apesar de as crianças escravizadas receberem a educação
imposta pelo poder senhorial com o intuito de controlá-las, esses, estavam longe de serem os
únicos sujeitos ligados a sua formação. Fonseca analisa que,
De alguma forma, estas crianças também estavam ligadas a outros
escravos que, como sujeitos específicos, tinham conhecimentos e
valores a lhes comunicar. Esses valores certamente não se
incorporavam aos seus nomes, mas tinham importância na trajetória
social destes indivíduos que nasceram e viveram no cativeiro.
(FONSECA, CORD, 2017, p. 22).
É notório que, apesar de toda articulação e imposição do sistema escravista negando sua
civilização, cultura e humanidade, podemos perceber que esses, não perderam sua
humanidade, longe disso, articulavam estratégias que objetivavam a preparação para os
enfrentamentos nas relações sociais. Essas estratégias podem ser vistas como educacionais, ou
seja, os comportamentos, ritos, processos e finalidades, garantiam a organização e o
funcionamento da sociedade cativa.
Assim, mesmo sendo-os ensinados e direcionados para as tarefas relacionadas ao
mundo do trabalho, os negros e escravizados usaram de mecanismos e estratégias diversas para
conciliar as aprendizagens também no mundo da escrita. Dito isto, com muito luta e resiliência,
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esses sujeitos históricos adentraram também nos espaços públicos buscando a inserção no
processo de letramento nas escolas formais do século XIX.
Contudo, mesmo enfrentando dificuldades, partes da população de negros e
escravizados alcançaram o mundo da escrita. Podemos constatar isso nos estudos sobre o tema
nas diversas províncias do Império, como na pesquisa de Santos (2011), que estudou vestígios
do letramento dos negros na Alagoas oitocentista. Fonseca (2010), que observou o fenômeno
do letramento negro na província de Minas Gerais, constando que haviam negros e
escravizados letrados. Neste sentido, vemos nos estudos de Winsembach (2017) no município
de São Paulo no século XIX, análises em documentos criminais, onde detectou nos pertences
dos escravizados presos, cartas endereçadas as suas famílias, configurando, portanto, o
letramento desses agentes históricos. Silva (2002) corroborou com o letramento dos negros no
século XIX, quando analisou uma documentação do município da Corte (Rio de Janeiro) a
respeito de uma escola primária particular na freguesia de Sacramento, destinada a atender
meninos pretos e pardos sob coordenação de Pretextato dos Passos e Silva que se designava
negro. Essas evidências provam que mesmo a sociedade hegemônica enfatizando a
inferiorização física, intelectual e cultural daqueles que sofreram o processo de escravização,
esses foram inseridos no mundo da escrita. Porém, podemos perceber que a história desses
povos sofreu ao longo dos tempos um silenciamento sufocador. Portanto, constata-se, nos dias
atuais, que esses mesmos silêncios e sufocamentos acompanham as populações dos afro descendentes que continuam lutando por seus espaços nas esferas públicas e privadas nas mais
diversas partes do Brasil nos dias atuais.
Temos assim consciência de que esses homens e mulheres lutaram contra um sistema
desigual e cruel, sendo necessário resistir constantemente, procurando sobrepujar o sistema e
seguir buscando a liberdade. Desta forma, o letramento negro apresenta-se como possibilidade
de ascensão social, garantindo-lhes novas formas de sobrevivência, o que corroborou para
afastar os negros da experiência do cativeiro e da dependência dos senhores de escravos.
Dentro desta lógica, vemos o letramento negro como algo desafiador e transformador, pois ao
contrário do que acontecia nos quilombos, ele ocorria no cotidiano, dentro das casas dos
senhores, nas fazendas, nas senzalas, nas áreas urbanas de maneira formal e informal, ou seja,
ocorria nas áreas públicas e privadas, propiciando-lhes a liberdade física e intelectual para além
do cativeiro.
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Aqueles que descem aos sertões: o processo de escravização das populações
nativas amazônicas durante o século XVIII
Nathália Moro77
Anelisa Mota Gregoleti78
Gabrielle Legnaghi de Almeida 79
Resumo
Durante o século XVIII, a colonização portuguesa da floresta amazônica esteve voltada para a
exploração das drogas do sertão. Muitas populações nativas foram utilizadas como mão de obra
escrava. Aproximadamente, um terço dos homens indígenas das reduções e aldeamentos era
utilizado especificamente nas viagens de coleta das drogas. Nosso objetivo aqui é analisar de
que forma estas estruturas colonizatórias estavam impostas e de que maneira as populações
indígenas da Amazônia setecentista foram exploradas e escravizadas em prol de uma
colonização portuguesa.
Palavras-chave: América portuguesa; escravização indígena; colonização portuguesa.
Introdução
A colonização do norte da América portuguesa remonta desde o século XVI quando
espanhóis, portugueses, holandeses e ingleses já disputavam áreas de interesse na região. No
entanto, as práticas exploratórias se intensificaram apenas no século XVIII, a partir do
comércio de plantas nativas da floresta amazônica. O extrativismo vegetal teve tamanha
importância por dois motivos principais: em primeiro lugar, essas espécies possuíam grande
peso comercial, já que, muitas vezes, equivaliam às especiarias orientais e podiam substituí-las;
77 Mestra e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do Laboratório de História,
Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História da Alimentação e História Ambiental.
78 Doutoranda, Mestra e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do
Laboratório de História, Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História das Ciências
Naturais e História Ambiental.
79 Mestranda e Graduada em História pela Universidade Estadual de Maringá; integrante do Laboratório de
História, Ciências e Ambiente (LHC-UEM) e pesquisadora nas áreas de História da Saúde e História das Ciências
Naturais.
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em segundo lugar, mostrou-se a opção mais viável para a colonização de terras que não
produziam espécies agrícolas com as quais os portugueses estavam acostumados. Em outras
palavras, podemos afirmar que, além de gerar um lucro muito elevado, a extração de frutos,
óleos, cascas, raízes e resinas, denominadas de drogas do sertão, somava-se à exploração
agrícola da Amazônia, marcada pelo clima equatorial muito quente, solos pobres em
determinados nutrientes, elevada precipitação anual das chuvas e excessiva quantidade de
insetos, fungos e pragas (FIORI; SANTOS, 2015, p. 16-17).
A Companhia Geral do Comércio do Estado do Grão-Pará e Maranhão, criada em
1755 por Sebastião José de Carvalho e Melo (Marquês de Pombal, posteriormente), foi a
principal instituição responsável por favorecer o reino português através do comércio
monopolista entre Brasil, Portugal e África. A Companhia utilizava 27 de seus 42 navios para
realizar viagens de longas distâncias, nas quais transportava mercadorias de produção africana e
brasileira para Portugal e trazia africanos escravizados para o norte da América portuguesa
(CARREIRA, 1988, p. 97). Houve uma grande mobilização da coroa para que a escravização
indígena, predominante na região amazônica, fosse substituída pela africana, pois assim,
poderiam lucrar ainda mais com o tráfico negreiro e obter maior controle sobre a região
colonizada. É importante lembrarmos que, nesse momento, os missionários eram os maiores
detentores de poder e influência da região norte da colônia, uma vez que comandavam as
reduções e, consequentemente, o trabalho indígena, principal mão de obra empregada na
exploração extrativista amazônica.
A partir disso, fica evidente uma disputa de interesse entre missionários religiosos e a
coroa portuguesa. Nossa intenção aqui é, justamente, entender como esse processo se
estabeleceu e de que forma as populações indígenas foram exploradas e escravizadas a partir da
colonização portuguesa. Para alcançarmos este objetivo, utilizaremos fontes setecentistas
escritas por viajantes, colonizadores e missionários europeus que estiveram na floresta
amazônica naquele período e de referências especializadas que nos ajudarão a compreender
como a escravidão indígena se tornou um dos temas mais debatidos pela coroa portuguesa no
século XVIII.
Desenvolvimento
Muito antes da chegada dos primeiros europeus na América, a Amazônia já era
habitada por diversas populações humanas. É difícil dizer com precisão quantas pessoas
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moravam ali em 1500, mas o trabalho arqueológico, os relatos dos primeiros colonizadores, as
taxas de destruição prováveis e o número de indígenas sobreviventes contribuem para algumas
estimativas. Acredita-se que havia, pelo menos, de 4 a 5 milhões de pessoas apenas nas terras
baixas da Amazônia no ano de 1500, sendo que, destas, quase 3 milhões estariam divididas em
grupos de 400 indivíduos, aproximadamente (HEMMING, 2011, p. 24).
Como sabemos, as numerosas populações foram massacradas ainda nos primeiros anos
de colonização. O biólogo estado-unidense Jared Diamond (2013) analisa tudo isso a partir de
três eixos centrais: armas, germes e aço. Para ele, o desenvolvimento agrícola e a oferta de
grandes mamíferos que puderam ser domesticados, proporcionaram tais vantagens aos
europeus. Isso nos ajuda a compreender não apenas a colonização na América, mas também o
grande massacre das populações indígenas, que estavam tanto em desvantagem imunológica
quanto militar. Em resumo, podemos dizer que as populações americanas nativas foram vítimas
das doenças, que dizimaram milhões de pessoas que não possuíam defesas imunológicas
contra os vírus e bactérias vindos da Europa; e das guerras, pois os europeus ocuparam à força
um continente já habitado. No caso da Amazônia, muitos grupos tiveram que fugir para áreas
de difícil acesso, tentando evitar que fossem capturados e transformados em escravos (PYDANIEL et al., 2017, p. 52). Infelizmente, sabemos que muitos não conseguiram fugir. A
estimativa de historiadores e arqueólogos é que, apenas no primeiro século de contato, houve
uma dizimação de cerca de 50 a 95% das populações indígenas da várzea (MORÁN, 1990, p.
24).
Como dito acima, a escravidão indígena foi predominante na região norte da colônia.
Até o governo pombalino, a coroa portuguesa aceitava a escravização de indígenas em casos
específicos, como os que eram aprisionados em guerra justa ou resgatados do cativeiro imposto
por outros indígenas. Essas regras estavam baseadas nos princípios de teólogos-juristas
espanhóis do século XVI e admitiam legitimidade na obtenção de escravos indígenas. Algumas
leis, promulgadas em 1595, 1609 e 1680, passaram a declarar irrestrita liberdade indígena nos
casos de guerra (deveriam ser prisioneiros e não mais escravos) e afirmavam que os resgates
estavam, terminantemente, proibidos (DIAS, 2017, p. 240).
Analisando fontes do século XVIII, podemos perceber que, embora existissem leis na
tentativa de controlar a escravidão, elas não se aplicavam tanto na prática. O governador e
capitão-geral da capitania do Grão-Pará (1751-1759), Francisco Xavier de Mendonça Furtado,
em uma de suas cartas, denuncia Francisco Portilho de Melo que estava: “(...) no rio Negro há
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muitos anos, (...) fazendo ou resgatando os índios, contra as ordens de V. Maj.”
(MENDONÇA, 1963a, p. 87). Em outro documento, Furtado também apresenta alguns dos
motivos que levavam os colonizadores ao “resgate” dos indígenas:
Nas conversações com estes homens, lhes vou dizendo, quando eles se
queixam que não tem escravos e que, em consequência, estão perdidos, que
S. Maj. tem resoluto não mandar fazer resgates aos sertões, e que pela barra a
dentro lhes há de vir a fortuna; que os negros são melhores trabalhadores do
que os índios, e que eu espero vê-los por este modo remidos; ao que me
respondem que não têm meios para comprar negros, que custam muito mais
dinheiro; que ainda que lhos deem fiados, que depois não os poderão pagar;
e como sobre esta matéria hei de informar a V. Exa. com mais largura, então
direi o que me parece com os fundamentos que me ocorrerem.”
(MENDONÇA, 1963a, p. 86).
É importante lembrarmos que o governador-geral era irmão de Sebastião José de
Carvalho e Melo que, por sua vez, era secretário de Estado do Reino de D. José I (1750-1777)
e futuro Marquês de Pombal. Isso evidencia a preocupação da administração portuguesa em
colocar alguém de confiança para comandar a região e, mais do que isso, para defender os
interesses da coroa frente à ocupação e influência dos missionários. Nas palavras do próprio
Furtado, “(...) nestas terras pelo número dos escravos é que se medem as riquezas (...)”, e como
os missionários, denominados também de Regulares, escravizavam os indígenas e tiravam o
domínio de suas aldeias, logo “(...) hão de ser senhores de todas as riquezas deste Estado.”
(MENDONÇA, 1963b, p. 503).
Os missionários, de fato, comandavam a mão de obra indígena no norte da América
portuguesa nesse momento. O padre José Xavier de Moraes (1860, p. 205) chegou a comparar
o trabalho de “resgate das almas” dos indígenas com o processo de extração das drogas do
sertão, ou seja, assim como os colonizadores precisavam adentrar as matas para extrair as
drogas tão valiosas, eles faziam o mesmo em relação às populações nativas. Porém, sabemos
que a atuação dos missionários não se restringia à catequização. Outro padre, João Daniel,
descreve de que forma os acordos entre missionários e caciques eram feitos para que os
primeiros pudessem obter mais mão de obra para além das que já possuíam em suas reduções:
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Chegado o tempo do ajuste, sobe o Missionário pelo Amazonas acima, os rios
colatraes [onde] estão os índios practicados em üa canoa das mais possantes,
ou em mais senão baste [roto o original] do gentilismo, que se espera, bem
provida de pano de algodão, e de algüas outras drogas; de farinhas, e víveres
etc. esquipada com índios mansos, e com algum língua para lhes falar. Gastam
muitas vezes um mês, ou mais para lá chegar conforme a sua longitude.
Chegado o Missionário vem a fala o cacique com os mais principaes índios, os
quaes o Missionário procura acariciar mui bem já brindando-os com águas
ardentes, já vestindo-os com camisas, e cabeções que é o usado vestuário dos
índios mansos, e dos que leva por remeiros; reparte-lhes algüas carapuças, ou
chapéos; mas sempre fazendo distinção do cacique, e dos mais graves; e
depois de os ter contentes, entram a practicar o embarque; e o cacique a
consultar os vassalos, a propor dúvidas, e dificuldades ao Missionário, e
primeiro que se resolvam, e ajustem se gasta muito tempo, andando o padre
com muita cautela, de que nem ele, nem seus remeiros digam algüa palavra,
ou façam algüa acção, que eles possam estranhar, porque bastará qualquer
palavra estranha para desfazer tudo (DANIEL, 1976b, p. 44).
Nesses casos era comum que se realizassem trocas durante os acordos. Apesar do
cacique receber algo por ceder homens para os missionários, podemos considerar que as
condições de trabalho desses indígenas eram análogas à escravidão. Se por um lado, os
colonizadores criticavam os missionários por utilizarem os indígenas como mão de obra, por
outro, os missionários também criticavam a ganância dos colonizadores que sempre chegavam
até as missões procurando e exigindo escravos indígenas. João Daniel denuncia a prática dos
resgates feita em exagero pelos portugueses:
[...] Com esta boa indústria livrou a milhares, e milhares do injusto cativeiro
dos brancos; porém também muitos saíram escravos, sem o serem. Chegou
finalmente à Corte a notícia destas injustiças, e para as atalhar, foi servido o
Senhor Rei Dom Pedro, de boa memória, mandar recolher, e proibir a tropa
de resgates, julgando por menos mal, que os índios se comessem uns aos
outros, do que fazerem-se tantos, e tão injustos cativeiros, com a capa de os
resgatar. Como porém esta proibição era remora da ganância dos
portugueses, tanto pediram, instaram, e alegaram, que tornaram a conseguir a
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tropa: porém como as injustiças subiam ao galarim, depoes de várias vezes
proibida, e concedida, finalmente no ano de 1750 foi Sua Majestade servido
proibi-la de todo, para a qual resolução deram motivo vários casos. Um foi,
que chegaram a tanto excesso estas amarrações, que não se contentando com
o fazer no grande destricto português, se arrojaram ao mesmo dentro nos
limites dos Monarcas Católicos, entrando em ua povoação, e amarrando nela
alguns índios, não só uma, mas várias vezes. Por estes insultos se viram
obrigados os missionários espanhoes a dar conta ao seu Monarca, e a
Majestade Católica os fez propor ao Rei Fidelíssimo. [...] (DANIEL, 1976a, p.
232).
Para o padre, foram esses “tiranos insultos” que teriam motivado a total proibição da
tropa dos resgates no ano de 1750, “depoes de terem saído, só do Rio Negro perto de três
milhões de índios escravos, como consta dos resistos, os quaes vendidos em pública praça, se
repartiam pelos moradores.” (ibidem, p. 232). De qualquer forma, fosse por colonizadores ou
missionários, os indígenas eram explorados por europeus preocupados em lucrar com o
extrativismo vegetal da Amazônia. Denominadas de “descimentos”, as expedições em busca
das drogas do sertão sempre partiam determinadas a coletarem uma carga principal que, na
maioria das vezes, era o cravo, a salsa ou o cacau. Depois que está carga estivesse garantida, os
colonizadores também aproveitavam para obter outras espécies, como a copaíba e a baunilha
por exemplo. Caso não encontrassem a principal espécie buscada, eles costumavam optar por
mudar a rota e buscavam navegar em outros rios (DANIEL, 1976b, p. 61). As principais drogas
eram escolhidas visando seus valores no Velho Mundo, já que as espécies partiam do porto de
Belém (Brasil) e chegavam à Porto (Portugal), onde, posteriormente, seriam distribuídas para o
restante da Europa. Francisco Xavier de Mendonça Furtado nos dá uma ideia do valor do
cacau e dos impostos cobrados sobre ele:
Aqueles moradores mandaram à colheita das drogas do sertão, na forma da
liberdade que lhes dei para isso, e tiraram 240 arrobas de cacau que de novo
acresceram para se pagar dízimo delas, o que não sucedia aos da aldeia, e o
venderam a 1$200 réis a arroba, vindo a pertencer ao dízimo vinte e quatro,
que importaram em 28$800 réis que, juntos àquela acima vêm a importar em
144$425 réis, e como também cessa a côngrua do missionário, que eram
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25$000 réis, que deve acrescer à conta acima, vem tudo a importar em
169$425 réis que esta povoação, sem ainda estar estabelecida, mas nos puros
termos em que a conservavam os padres, vem a render, mostrando-se assim
que de nenhum encargo é à Fazenda Real, antes sumamente útil, porque
ainda sem terem intervindo nesta matéria os novos povoadores que tenho
mandado, tem S. Maj. com que pague ao Vigário, sobejando-lhe ainda o que
vai de 80$000 réis para a soma acima, como se faz evidente, sem dúvida
alguma (MENDONÇA, 1963c, p. 944-945).
Alguns relatos, como o de Alexandre Rodrigues Ferreira, evidenciam que a exploração
extrativista era superior à agricultura na região amazônica. Podemos pensar em diversos fatores
para justificar esse fato. Destes, dois merecem maior destaque: as drogas do sertão possuíam
alto valor econômico (eram mais rentáveis) e o cultivo das terras amazônicas não era uma tarefa
fácil (exigia alto grau conhecimento sobre o ecossistema local). O trecho abaixo demonstra
como Ferreira estava preocupado com a agricultura de algumas espécies, uma vez que toda a
mão de obra estava sendo empregue nas colheitas dos sertões. Segundo o filósofo natural
setecentista:
Não tem até agora prosperado tanto, quanto podia prosperar a agricultura
do anil, do café e do tabaco, que são generos ricos e permanentes; porque os
poucos braços, que ha, se tem empregado na colheita das drogas do sertão,
por onde andam distrahidos os indios a maior parte do anno, dependendo da
riqueza precaria do
mato;
sem
se
coadjuvarem
os commerciantes dos calculos da arimethica mercantil e politica, que são a
chave do commercio mais bem entendido entre os povos (FERREIRA, 1983,
p. 657).
É interessante notarmos que Ferreira cita a “riqueza precária do mato”. Apesar da
tentativa de endossar sua crítica, exagerando nas palavras, a ideia de uma Amazônia
extremamente fértil, defendida pelos primeiros colonizadores, de fato, foi sendo desfeita na
prática pouco a pouco. As expedições em busca das drogas do sertão demandavam muitos
esforços e um conhecimento profundo da região, especialmente, de sua hidrografia. Esse foi
um dos motivos que levaram os europeus a utilizarem a mão de obra indígena. Ter alguém que
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conhecia a natureza local era de fundamental importância para que a empreitada tivesse o
sucesso esperado.
Conclusão
A partir do estudo das fontes do século XVIII e das referências de especialistas da área,
é notável que a colonização da floresta amazônica só foi possível por conta de toda a
exploração da natureza e das pessoas que ali já moravam. Os números que apresentamos sobre
a dizimação das populações nativas evidenciam a brutalidade dessa colonização que matava e
escravizava em prol da exploração e do lucro. Missionários, colonizadores e funcionários
diretos da corte portuguesa disputaram zonas de influência na maior floresta tropical do mundo
durante bastante tempo. A coroa sabia que precisava aumentar seu poder sobre a região que
estava sob domínio dos missionários, especialmente, dos jesuítas. Isso explica, de certa forma,
porque após receber inúmeras denúncias e relatos de seu irmão, Marquês de Pombal orientou
D. José I a expulsar os jesuítas da colônia em 1759.
Inúmeros foram os motivos para que a mão de obra indígena escravizada fosse adotada
em maior quantidade do que a africana no norte da colônia: populações nativas numerosas;
alto custo dos africanos escravizados; facilidade em escravizar populações que já estavam
reduzidas e dominadas pelos missionários; conhecimento dos nativos sobre o ecossistema local;
domínio indígena das técnicas de exploração das drogas do sertão etc.
Seja sob domínio dos missionários ou dos colonizadores enviados pela corte, os
indígenas foram vítimas desse processo que mudou, completamente, suas rotinas, divisões de
poder e motivos de combate. Algumas fontes relatam que os colonizadores estimulavam
conflitos entre indígenas para pessoas da tribo rival fossem capturadas e pudessem ser vendidas
como escravas durante os “resgates”. Outras nos mostram como toda a vida dessas populações
foi desorganizada, completamente, com as reduções jesuíticas: nova língua, crença e hábitos
foram impostos às populações locais. Dessa forma, caso não morressem no primeiro contato
com os europeus, poucas eram as saídas encontradas por essas populações. Os que conseguiam
fugir tinham que abandonar suas terras, casas e rotinas. Os que não conseguissem fugir,
acabavam reduzidos em missões jesuíticas e/ou escravizados pelo processo colonizador da
região.
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do Governador e Capitão-General do Estado do Grão Pará e Maranhão Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, 1751-1759. v. 2. São Paulo: Carioca; IHGB, 1963b.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Entre a filantropia e a civilização: os debates sobre a escravidão nos periódicos de
Alagoas (1850-1888)
Vanieire dos Santos Oliveira80
Resumo:
A partir de 1850 é possível perceber os embates acerca da questão escravista na imprensa de
Alagoas resultantes, especialmente das transformações políticas e econômicas que ocorreram
entre a primeira metade do século XVIII e primeira metade do século XIX. As mudanças no
cenário mundial implicaram em ações que desencadearam o fim do tráfico de escravos e
consequentemente a abolição da escravidão no Brasil. Logo, o presente trabalho tem por
intuito buscar refletir os discursos dos agentes da imprensa sobre a escravidão em Alagoas entre
os anos de 1850 a 1888. Para o desenvolvimento da pesquisa foram consultadas como
principais fontes os jornais disponibilizados no site da Hemeroteca Digital para Alagoas sobre o
referido período. Através da análise dos periódicos alagoanos do período estudado é possível
perceber
as diferentes posturas que revelam as primeiras demonstrações contrárias ao
trabalho escravo e que se detém a mencionar a necessidade do fim da escravidão, ora
relacionando o trabalho escravo à barbárie, ora coloca a abolição da escravidão como um ato
filantrópico.
Palavras-chave: Escavidão - Abolição - Periódicos
Desde a segunda metade do século XIX, em várias províncias do Brasil teve início às
discussões sobre a questão escravagista. Os embates sobre a temática podem ser encontrados
por meio da imprensa, onde é possível perceber de um lado a defesa pela manutenção do
trabalho escravo e do outro as manifestações sobre a necessidade do fim da escravidão. Neste
trabalho, o interesse é focar a partir da segunda questão, tendo em vista que através dos jornais
nota-se argumentações contrárias no que se refere ao fim da escravidão, especialmente na
província de Alagoas. A articulação discursiva daqueles que defendiam os prejuízos causados
80 Graduada em História Licenciatura - Universidade Federal de Alagoas.
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pela escravidão permeia tanto entre um discurso moralista associado a ideia de humanitário
como também ao discurso civilizatório que se encontra em jornais como O Orbe, Gutenberg,
Jornal do Penedo, Lincoln, Jornal do Pilar, entre outros.
O avanço de tais ideias nessa segunda metade do século XIX, fez com que o trabalho
escravo passasse a ser associado à barbárie. Ao mesmo tempo fica a problemática em torno de
quem poderia substituir a mão de obra escrava. Nesse cenário, os jornais tornam-se palco de
diferentes grupos que buscavam defender seus discursos ideológicos e nos oferecem um
vislumbre das disputas e pressões políticas em torno da questão escravista, como explica Luca e
Martins
juntamente com as folhas oficiais, nasciam folhas de oposição nas pequenas
cidades, na capital da província ou na própria Corte. Do núcleo regional de
oposição sairiam outros grupos, multiplicando-se as tendências e aumentando
o número de impressos lançados fundamentalmente como instrumento de
luta política.81 (LUCA; MARTINS, 2008.p 104)
Pelo mostrado pelas autoras, nota-se a repercussão de debates de ideias próabolicionistas quanto os contra apropriando-se da imprensa para defender suas argumentações
no jogo político dos grupos em disputa. Além disso, cabe destacar a importância do surgimento
do movimento abolicionista e a organizações das primeiras associações com a finalidade de
discutir o fim de escravidão. Em Alagoas, o movimento se fortaleceu especialmente a partir da
década de 1880, e é quando surgem críticas acirradas na imprensa abolicionista, como nos
jornais Gutemberg e Lincoln, este último autodeclarado como "órgão de propaganda
abolicionista”. De acordo com Santos
a estratégia inicial dos abolicionistas era a propaganda, direcionada não aos
escravizados, mas aos seus senhores e à população livre do país, despertando
nestes os horrores do cativeiro e disseminando os modelos norte-americano e
europeu de civilidade e progresso como incompatíveis ao regime escravista,
desconstruindo as
LUCA, Tânia Regina de & MARTINS, Ana Luiza. História da Imprensa no Brasil. São Paulo: Contexto,
2008.p.104.
81
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teorias justificadoras da escravidão.82 ( SANTOS, 2017)
Ambientado em um contexto de mudanças políticas e econômicas, o período
conhecido como Segundo Reinado no Brasil foi impulsionado por discursos antiescravistas
influenciados, sobretudo pelas ideias que chegavam da Europa. Cabe destacar que outro fator
determinante nos esforços em favor de se adotar a mão de obra livre ocorreu mediante a
pressão inglesa que se fez presente desde a promulgação da lei de 1831. O que se percebe a
partir desse momento é que a escravidão passa a ser ameaçada pelo avanço do sistema
capitalista que vê na mão de obra livre e assalariada uma forma para obter lucros, o que pode
ser visto logo na segunda metade do século XIX, quando se evidencia a necessidade de pôr fim
ao tráfico de escravizados, como é exposto no Jornal O Constitucional
A extinção do tráfico era para o país uma necessidade indeclinável que, por
demais se tardia O tráfico repugnava com os princípios eternos e imutáveis do
justo e do útil; era um contrassenso natural com a bondade natural do
brasileiro, com sua civilização, com a religião que professam, com suas
instituições políticas, e a sociedade auxiliadora da indústria nacional se
compraz em acreditar que em breve os brasileiros se acharão totalmente
libertados desse cancro que corroía suas fortunas, que venenava seus
sentimentos de moral e os lançava na ociosidade, triste consequência da
escravidão e eficaz promotora do pauperismo com toda sua corte de vícios.83
O CONSTITUCIONAL. 21 de Junho de 1851. Série.II n.20.p.3.
Logo, surgem narrativas que passam a defender uma forma de trabalho mais
humanitária e civilizadora, no qual apenas o trabalho livre poderia levar o país ao progresso e
ao desenvolvimento, e o estabelecimento de mecanismos que passam a aprofundar a
valorização e exaltação do trabalho, como o artigo denominado “Amor ao trabalho” publicado
pelo Jornal do Penedo em 8 de maio de 1875, que diz
SANTOS, Ricardo Alves da Silva. Interfaces do movimento abolicionista brasileiro: a imprensa abolicionista
alagoana (segunda metade do século XIX). Temporalidades – Revista de História, ISSN 1984-6150, Edição 25, V.
9, N. 3 (set./dez. 2017) p. 108.
O CONSTITUCIONAL. 21 de Junho de 1851. Série. II n.20. p.3. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=779644&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa
gfis=67. Acessado em 09 de Out. de 2021.
82
83
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Um dos maiores e mais importantes benefícios que se podem fazer aos
homens, em especial a classe popular é inspirar-lhes o amor ao trabalho,
mostrar-lhes a sua utilidade, as suas inapreciáveis vantagens e seus felizes
resultados, fazer entrar este assunto como parte essencial, no plano da
instrução das primeiras escolas.
O trabalho é o destino commum de todos os homens que existem sobre a
terra: “comerás o pão”( Disse Deus ao nosso primeiro pae) “e comerás o pão
à custa do suor do teu rosto.”
Quem trabalha cumpre com o seu destino; obedece a voz do seu Criador.
O trabalho é a verdadeira pedra philosofal, que os antigos com tanto
empenho, e tanto em vão pretenderam indagar. 84
JORNAL DO PENEDO, 8 de Maio de 1875, ano V, n. 18, p. 3.
Aqui observa-se o elemento de associar o trabalho como fonte essencial da vida, e ainda
remetendo ao componente religioso de que o homem comerá à custa do próprio suor, ou
ainda que o trabalho é o destino reservado a todo homem, buscando dessa forma legitimar o
caráter natural da escravidão. O que podemos perceber nas argumentações do Jornal do
Penedo em suas argumentações em favor do trabalho é uma espécie de contradição, já que o
mesmo se sustenta tanto na base religiosa como na evocação de ordem científica ao citar
Lavoisier, Kepler.
Outro ponto que é mostrado em outras edições do Jornal como a de 22 de Maio de
1875 é a de que o trabalho induz a riqueza, a moralidade, a ordem e a pacificação. Diante da
promulgação da lei do ventre livre existia o temor de que a mesma pudesse gerar uma
desordem social provocada pela ociosidade dos escravizados. Nisto fica perceptível a visão do
trabalho do como mecanismo de controle social. Em outras edições do mesmo jornal a
narrativa continua mostrando o trabalho como a base do mundo moderno, e único meio de se
atingir o progresso. O discurso revela as facetas das transformações econômicas que ainda
buscaria manter a exploração do trabalhador em uma sociedade pós-abolição.
84
JORNAL DO PENEDO, 8 de Maio de 1875, ano V, n. 18, p. 3. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa
gfis=29.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Além disso é perceptível a resistência por parte da elite local que insiste em lançar
críticas ao fim do trabalho escravo e como tal ato poderia provocar uma crise econômica na
lavoura brasileira, conforme se observa no editorial publicado em 10 de Novembro de 1876
pelo Jornal do Penedo
AOS LAVRADORES DO BRASIL O elemento servil no Brasil – seu
desaparecimento em 20 anos: ruína completa da lavoura – medidas urgentes
no sentido de remediar o mal – meio de substituir o escravo pelo colono,
utilizando as fontes de produção atual.
[...] O período de transição do trabalho servil para o trabalho livre é cheio de
perigos, pode marcar a época da ruína da lavoura e do comércio e realizar e
realizar então as previsões sinistras, que se opuseram a decretação da lei.85
JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 43, p. 1.
O texto demonstra a preocupação com as consequências provocadas pela promulgação
da lei do ventre livre. Para o autor desse texto a lavoura entraria em queda pela falta de mão de
obra escrava. A crítica sobre o fim da escravidão continua em outra publicação do dia 17 de
Novembro de 1876, no qual o prosseguimento do editorial continua
“Hoje, no meio das crises comerciais a situação da lavoura é por demais aflita,
sem capitais baratos e a longo prazo ela começa a lutar com a impossibilidade
de se manter ou aumentar a sua produção, porque ou vão escasseando, o
norte não os podendo suprir em larga escala, ou porque, por efeito da lei
natural da emancipação as alforrias os vão os retirando da lavoura. 86
JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 44, p. 2.
Para a elite da época o avanço gradual do fim do trabalho escravo claramente estava
sendo a causa da crise na economia alagoana. Ao que parece para os latifundiários da época
Alagoas era totalmente dependente da mão de obra escrava, apesar de a escravidão já esta em
85
JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 43, p. 1. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811777&Pesq=trabalho&pagfis=353. Acessado em 08 de
Out. de 2021.
JORNAL DO PENEDO, 10 de novembro de 1876, ano VI, n. 44, p. 2. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811777&Pesq=trabalho&pagfis=358. Acessado em 08 de
Out. de 2021.
86
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queda devido ao tráfico interprovincial. Desta forma, tem início a busca por uma outra
alternativa que pudesse substituir o trabalho escravo, com o incentivo a vinda de imigrantes.
Todavia, em meio as narrativas em favor da escravidão em Alagoas, vale destacar que a
Lei do Ventre Livre representou o início do processo para a extinção do trabalho escravo no
Brasil. Como explica Santos, desde a década de 1860 já havia a constatação da forma desumana
como os escravizados eram trabalhos. A partir daí, começa a atuação da Igreja Católica que
através dos jornais se coloca contra o trabalho escravo, como publicado em 18 de Fevereiro de
1874 pelo Jornal do Pilar, onde é dito o seguinte “É Christã a ideia a abolição da escravidão. É
próprio do christianismo oppor-se a que continue o crime das sociedades pagãs, oppor-se a que
negue o negro a igualdade religiosa87” ( Jornal do Pilar). Em outro artigo intitulado “ Costumes
bárbaros", publicado em 17 de Março de 1874 conclama que “O christianismo proclamou a
igualdade de todas as raças, emancipou a todos os povos. [...] A sociedade não irá de acordo
com os sagrados princípios da moral enquanto não se convencer que no século XIX , o
captiveiro é um espantalho terrível, a escravidão é um absurdo.88”. Em ambos os trechos nota-se
uma postura contrária a manutenção da escravidão, que em meio as mudanças decorrentes da
segunda metade do século XIX passar relacionar a escravidão como um costume bárbaro e
contrário aos princípios da fé cristã.
Ao mesmo tempo, acompanhados do discurso civilizatório contra a escravidão surgem
denúncias da situação dos escravizados nas mãoss de seus proprietários sendu repudiadas na
imprensa como no Jornal Gutenberg. Assim, “ o mal-estar da escravidão não era mais uma
constatação genérica, mas uma vivência concreta, experimentada extamente no momento em
que a política externa imperial conhecia seu ápice.” (SALLES, 2009, p.69).
Considerações Finais
Os jornais como fontes historiográficas constituem um rico acervo capaz de oferecer ao
historiador mecanismos para compreender o passado e a intencionalidade discursiva de suas
publicações. No que tange aos discursos sobre a necessidade do fim da escravidão em Alagoas,
os períodicos nos mostram um cenário de narrativas discursivas que se veem em meio ao
JORNAL DO PILAR. 18 de Fevereiro de 1874, Ano II, n.12, p. 2. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa
gfis=22. Acessado em 09 de Out. de 2021.
JORNAL DO PILAR. 17 de Março de 1874, Ano II, n.12, p. 1. Edição disponível em
http://memoria.bn.br/DocReader/DocReader.aspx?bib=811696&pesq=escravid%C3%A3o&hf=memoria.bn.br&pa
gfis=29. Acessado em 09 de Out. de 2021.
87
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embate entre adotar uma forma de trabalho livre atrelada ao progresso e a modernidade, e por
hora reconhecendo o caráter explorador da escravidão; por outro lado convive nessa mesma
realidade a resistência por parte da elite local em manter a escravidão.
Dessa forma, o que se percebe é que o caminho que levou ao fim da escravidão em
Alagoas conviveu com duas realidades opostas coexistindo, com o aumento progressivo da mão
de obra livre, a chegada de imigrantes, e a realidade do trabalho escravo presa na mentalidade
escravista dos latifundiários. Essa contradição também é percebida na forma como se concebeu
as discussões em torno da questão escravista. Aqueles que defendiam o fim do tráfico
demonstram intenções e argumentos diferentes, o que nos leva a indagação de buscar conhecer
quem estava por trás desses discursos, bem como a intencionalidade. É sabido que em todo
Brasil, existiram expressões pró-abolicionistas atuando através de associações e se expressando
através de periódicos. Todavia, resta a produção historiográfica avançar para identificar os
sujeitos desses discursos.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ST02 – Histórias de África, Histórias da Diáspora: Diálogos, Abordagens e
Conexões
"Da conservação do Reino de Angola depende todo o estado do Brasil": a política
violenta dos governadores de Angola e o comércio no Atlântico Sul (16481666)89
Ana Maria Soares de Araújo90
Resumo: Este artigo analisa os governos brasílicos na Angola restaurada da ocupação holandesa
e como esses agentes da Coroa, diretamente ligados com o Brasil pelo mercado atlântico de
escravos, se empenharam na manutenção dos territórios conquistados e nas investidas de
expansão do domínio luso.
Essas gestões nos mostram o contraste entre a política
administrativa “pacifista” e indireta determinada pela Coroa e a realidade de fomentação de
guerras para a obtenção de escravos na conquista angolana, associado ao processo de expansão
econômica do Atlântico Sul e à integração desses governadores ultramarinos nas conexões
mercantis entre os dois lados do atlântico, representando uma nova forma de mobilidade social
e ascensão política e econômica.
Palavras-chave: Angola, comércio atlântico, administração portuguesa.
“É só o que nos convinha para domar os desaforos destes negros”: os governos brasílicos e as
guerras no sertão
Em 12 de maio de 1648, partiu do Rio de Janeiro uma expedição liderada por Salvador
Correia de Sá e Benevides com o objetivo de restaurar Angola das mãos holandesas – que
haviam invadido e ecupado a região em 1641. A expedição aportou em 12 de agosto na capital
Luanda, seis dias depois atacou os fortes do Morro e da Guia e, encurralados, os holandeses
acabaram cedendo. Com Angola restaurada, Salvador de Sá assumiu o cargo de governador de
Luanda, iniciando o período dos governos com interesses brasílicos em Angola, concentrado
89 Esse artigo é um fragmento de dissertação de mestrado intitulada “Não há cousa que mais danifique os homens
que a ambição e soberba”: redes de poder e revoltas em Angola sob a administração ultramarina portuguesa pósRestauração (1640-1667), defendida em 2020.
90 Mestra em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Alagoas.
E-mail: anams.araujo@outlook.com
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no controle dos sertões, mais exatamente nas feiras e redes de comércio que conduziam ao
porto de Luanda.
Para reabrir o comércio, o governador promoveu campanhas ofensivas contra sobas
rebeldes (aliados aos holandeses durante a invasão) e livres, avassalando o sertão até um raio de
180 quilômetros através da imposição de armas. Essas ações expedicionárias contradiziam a
política minimalista e indireta definida pela Coroa. Os conselheiros do Rei não viam um
quadro favorável ao domínio mais amplo da região: o clima difícil, a povoação colonial escassa,
a resistência nativa e a presença estrangeira eram alguns dos fatores que corroboravam para a
defesa de uma estratégia de controle restrito e concentrado na região costeira
(ALENCASTRO, 2000, p. 262-264). Em carta régia, o restaurador de Angola é advertido a
fazer guerra somente em última instância: caso “não for muito forçosa, a escuseis o mais que
possa ser” (MMA, X, p. 343).
Apesar de alguns feitos mais tolerantes de sua gestão, como a concessão de perdão aos
vassalos pelos tributos anuais de escravos não pagos e a isenção de tais tributos a antigos e
novos vassalos, as campanhas não cessaram e o sertão “ardia no fogo de viva guerra”,
padecendo seus habitantes pela precedente infidelidade (MMA, X, p. 471-472; TORRES,
1825, p. 184). Em julho de 1651, o ouvidor e provedor da Fazenda Real em Angola, Bento
Teixeira de Saldanha, escreveu ao monarca sobre a necessidade de se fazer guerra contra o rei
do Congo, a rainha Nzinga e a província de Kissama sob o pretexto de escassez de escravos,
principal recurso da conquista de Angola. Impedido o resgate nas feiras por esses inimigos da
Coroa, restava-lhes pôr guerra em campo para adquirir cativos. Sua Majestade, contudo,
manteve sua posição e reforçou que para tal ação as causas precisavam ser muito bem
fundamentadas, já que muitas vezes os governadores arranjavam pretextos para guerrear contra
os negros sem na realidade haver outra causa além da cobiça de cativá-los e vendê-los. O
resgate, portanto, deveria ser realizado de forma “pacífica e justificada”, não sendo motivo de se
empenharem expedições nos sertões (MMA, XI, p. 245-247). A cautela em evitar os conflitos
com os sobas dos sertões ia além da política “pacifista” da Coroa, havia o receio em deixar a
capital desguarnecida e suscetível a ataques de seus concorrentes castelhanos e holandeses.
A praça de Angola era cara ao império português e qualquer ameaça à perda do
controle sobre o trato negreiro e o fornecimento de escravizados para o Brasil preocupava a
administração ultramarina. Por outro lado, os portugueses foram forçados a autorizar a venda
de escravizados para a América espanhola e em troca obter a prata necessária para arcar com
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os custos da guerra luso-espanhola (SCHWARTZ, 2008, p. 2018) . A reabertura do trato
negreiro entre Angola e o Rio da Prata, que havia sido interrompida com o ataque holandês,
era tida como favorável e impulsionada, principalmente por Salvador de Sá. A oligarquia dos
Sá e seus aliados fluminenses possuíam grande interesse na região platina, já que estavam
envolvidos no escambo de cativos africanos pela prata do Potosí, sendo tal negócio decisivo no
investimento fluminense na expedição restauradora de Angola em 1648 (ALENCASTRO,
2000, p. 110). Salvador de Sá, que havia sido governador do Rio de Janeiro entre 1637-1643 e
entre janeiro e maio de 1648, foi um dos responsáveis pela formação do triângulo Rio –
Luanda – Buenos Aires, chegando a solicitar várias vezes apoio e recursos à Câmara para a
criação de um entreposto no Rio da Prata que facilitasse as relações comerciais com as
províncias espanholas, sempre destacando a conveniência da colonização dessa região
(BICALHO, 1998, p. 9).
Seu sucessor, Rodrigo de Miranda Henriques (1652-1653), enfrentou as más
disposições do manicongo que vinha dificultando o comércio e a livre passagem e determinou
o envio de gente armada para castigá-lo e os demais sobas “desobedientes e alevantados”, mas
não conseguiu levar a empreitada adiante devido a seu falecimento (TORRES, 1825, p. 187).
Tomando posse em Luanda, Luís Martins de Sousa Chichorro (1654-1658) tratou logo de
informar ao Rei a situação da conquista que, por sinal, andava tumultuada pelo comportamento
indesejado dos sobas. As queixas incluíam impedimento do trato, danos aos pumbeiros, roubo
de cativos e a consequente paralização do comércio, causando danos aos moradores de
Massangano, Muxima e Cambambe. Expostas as circunstâncias, convinha, para evitar a “ruína
de Angola”, guerrear e conquistar a província de Kissama (MMA, XI, p. 497-499). A
expedição, iniciada em fevereiro de 1655, chegou a um fim inconclusivo depois de
aproximadamente um ano e meio de muitas perdas e gastos à Fazenda Real. Mesmo
conseguindo refrear algumas revoltas, os sobas da “província indômita” continuavam livres e
insubordinados. Vários fatores contribuíram para a retirada das tropas portuguesas da região,
dentre eles a difícil geografia do território, o amparo de grupos jagas aos inimigos, a ameaça
holandesa que ainda rondava a costa angolana e demandava a presença de um aparato militar
para a proteção de Luanda e a proibição da obrigatoriedade da ida dos moradores às guerras
nos sertões.
Enquanto isso, D. Garcia II estava em contenda com o Conde do Soyo e com o
Marquês de Mpemba, que reivindicava ter mais direito ao trono do Congo que o então
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soberano e, ameaçado pelo manicongo, pediu auxílio português (CADORNEGA, II, p. 133135). O relacionamento com D. Garcia II mantinha-se instável: as constantes quebras das
capitulações estabelecidas após a restauração fomentavam o anseio dos governadores por
guerra. Quando informado por Chichorro acerca da fuga dos escravos dos moradores de
Luanda para o Congo, o monarca ordenou a criação de uma junta com religiosos, ministros
superiores da guerra, oficiais da Câmara e alguns cidadãos civis para tratar sobre a questão e
qual desfecho deveria ser efetuado. Em abril de 1657 o governador escreveu ao Cabido do
Congo para que este comunicasse ao soberano que, caso não tomasse as providências
necessárias acerca de suas obrigações para com a Fazenda Real até junho, iria lhe enviar guerra
(MMA, XII, p.42-43, 114).
A guerra contra o manicongo havia sido votada e aceita no Conselho, que a considerava
justa pela “pouca fé e afeição” do soberano à Coroa, e foi logo comunicada ao Rei. Segundo o
governador, além de não ressarcir os prejuízos causados, D. Garcia II ainda estava gerando
conflitos com seus vassalos, a exemplo da prisão de dois irmãos do Marquês de Mpemba.
Além de subjugar o manicongo, o confronto acarretaria rendimentos ao Rei, como a chegada às
marinas de sal. Com a posse das salinas a Coroa poderia adquirir renda necessária para a
conservação do Reino e das forças militares e expandir sua influência sobre os sobas mais
distantes, pela necessidade que estes tinham do sal. Mesmo com a decisão da ofensiva aprovada
em Luanda, o Rei recomendou a criação de mais juntas e mais votações sobre tal tópico
(MMA, XII, p. 124, 126, 146, 273).
As ordens vindas de Portugal continuavam as mesmas: as guerras deveriam ser evitadas
a todo custo e empregadas somente quando bem fundamentadas, a paz com os sobas era de
“grande conveniência a defensa e conservação daquele Reino, principalmente enquanto não há
nele grande poder, como algumas vezes se tem representado” (MMA, XII, p. 74). Essa política
indireta não agradava a administração angolana. João Fernandes Vieira (1658-1661), relatando
sobre a situação da conquista, destacou que os resgates e o comércio andavam de mal a pior,
consequência da rebeldia dos sobas, com pouca ou nenhuma obediência desde a invasão
holandesa, “porque como então viram suas armas superiores às nossas, logo tiveram delas
muito diferente opinião da que tinham de antes” (MMA, XII, p. 172). Os ndembu estavam
quase todos rebeldes e as armas portuguesas não mais tinham autoridade sobre eles. Para
reverter esse quadro convinha:
126
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[...] serem aqueles sovas castigados, e fazer-se com eles uma demonstração, para que
outros se não atrevam [a] cometer semelhante maldade, e para que aqueles que são
vassalos conheçam se deve fazer com os mais que forem rebeldes e impedirem o
comércio, e o não deixarem fazer livremente (MMA, XII, p. 172).
Em contraponto ao Conselho, Fernandes Vieira via a guerra como único remédio para
a conservação da presença portuguesa e esse posicionamento se externou em seu governo. Em
mais uma reunião com os prelados das religiões, autoridades civis, judiciais e militares a
declaração de guerra contra o Congo foi deliberada, pois havia tempos D. Garcia II não
respeitava as decisões estipuladas e mostrava-se inimigo declarado da Coroa, alegando
publicamente seu descontentamento em entregar os escravizados fugidos à Luanda e com os
impostos excessivos que lhes eram colocados, chegando a consumir metade de sua fazenda.
Fora as reclamações, teria declarado seu intento em não mais permitir portugueses e nem
resgates em suas terras (MMA, 1ª série, XII, p. 226). Reforçando a decisão, a Câmara de
Luanda escreveu ao Rei D. Afonso VI em abril de 1659 que a ruína daquele reino de Angola
nascia da acolhida desses fugitivos que se achavam no Congo e que calhava executar a guerra
durante a gestão de Fernandes Vieira devido a sua grande fama entre o gentio “de quem tenha
tanto temor, que é só o que nos convinha para domar desaforos destes negros” (MMA, XII, p.
231-232).
O governo de Vidal de Negreiros (1661-1666) não foi menos violento que o de seu
antecessor. D. Garcia havia morrido e D. António, Vita-a-Nkanga, era o novo soberano do
Congo. Negreiros continuou investindo na legitimação da guerra contra o Congo e além das
acusações de insubordinação e acolhimento de escravizados fugidos, o manicongo agora era
acusado de não entregar as minas de metais de seus territórios à Coroa. Assim, Negreiros
escreveu a D. António solicitando a entrega das minas e no caso de sua inexistência, como
afirmava o mani, que lhe permitisse enviar seu pessoal para confirmar. D. António manteve sua
posição e respondeu que desconhecia a existência de alguma capitulação sobre a entrega das
minas no tratado de paz anteriormente estabelecido e que não as entregaria, mesmo que
existissem (MMA, XII, p. 475-476).
Os rumores da ofensiva portuguesa continuaram e chegaram aos ouvidos do cabido do
Congo e sendo a região um reino independente, cristão e aliado da Coroa, tal ação não se
mostrava “justa”, como protestavam os cônegos e padres de São Salvador, que escreveram ao
127
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governador pedindo que desistisse da guerra e que em caso de hostilidades o soberano do
Congo enviaria seus protestos a Luanda e suas queixas ao monarca português D. Afonso VI, ao
que Negreiros respondeu que não preparava guerra contra o reino do Congo, mas para
assegurar o descobrimento das minas de metais. O cabido mais uma vez destacou que para a
exploração das minas (que não eram de ouro e sim de cobre) não havia necessidade de
conflito, apenas que o Rei do Congo fosse comunicado “porque isso é entrar em casa alheia
sem primeiro bater à porta” (MMA, XII, p. 545, 547, 552), mas o governador não voltou atrás,
reforçando que se o manicongo não mudasse de parecer não só ia conhecer o erro desta sua
resolução e o “que merece faltar sempre tanto ao reconhecimento e à fidelidade que deve, [...]
mas se lhe eu bater à porta sobressaltar-se de maneira que temo lhe caia a coroa da cabeça e
que a não possa mais levantar” (MMA, XII, p. 566-567). Em meio a isso, D. António declarou
guerra à Coroa publicamente convocando todos os seus súditos (MMA, 1ª série, XII, p. 549).
Com isso o manicongo lançou um atentado contra o Duque de Wandu (Oando) que
desamparado fugiu para Mbwila (Ambuíla). Acolhendo o Conde de Wandu e com D. António
marchando em direção ao seu potentado, o soberano de Mbwila recorreu ao auxílio português.
O episódio de Mbwila trouxe muitas perdas à aristocracia congolesa: o soberano do Congo, um
sobrinho seu, os duques de Mbamba, Mbata, Sundi e Mpemba, noventa e cinco altos
dignitários, o clérigo mulato e quatrocentos outros muissicongos (MMA, XII, p. 589-591;
SILVA, 2011, p. 488-489). O Congo agora se encontrava politicamente enfraquecido e
descentralizado e a fragmentação do poder decorrente de 1665 acarretou em diversos conflitos
pela ocupação do trono, iniciando um quadro político ainda mais conturbado (GONÇALVES,
2008, p. 96-97).
A inserção desses personagens nas relações comerciais entre as duas margens do Atlântico Sul
A ligação desses governadores com o Brasil era clara: todos possuíam histórico de
ocupação de cargos administrativos ou envolvimento no comércio. Salvador de Sá, além de
governador do Rio de Janeiro, foi membro da Companhia Geral do Comércio do Brasil, um
grande proprietário de terras e determinava a economia açucareira fluminense desde 1635,
controlando exclusivamente a exportação de todo açúcar fluminense à Europa. Logo, seu
empenho na reconquista de Angola não refletia apenas sua fidelidade com a Coroa portuguesa,
mas seus interesses no reestabelecimento do comércio de escravizados – fundamental para o
funcionamento das lavouras – e também no escoamento dos produtos fluminenses: o açúcar e
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a jeribita. Com isso, Salvador de Sá atendia às necessidades tanto do Brasil quanto da região da
Prata (CAETANO, 2004, p. 349-350, 353). Rodrigo de Miranda Henriques tinha sido
governador do Rio de Janeiro entre 1633 e 1637, conhecia bem as rotas da prata peruana e as
transações comerciais no Atlântico Sul, dando continuidade ao processo de reabertura da
carreia Luanda–Rio–Buenos Aires, iniciada por Salvador de Sá. Luís Martins de Sousa
Chichorro ficou a par do negócio negreiro e da carreira de Angola na sede do governo-geral e
em Luanda seguiu a mesma política de seus antecessores (ALENCASTRO, 2000, p. 271-272.
João Fernandes Vieira participou da resistência contra a invasão holandesa em
Pernambuco em 1630, trabalhou para o comerciante e senhor de engenho judeu neerlandês
Jacob Stachhouwer, passando a ter experiência com o trato negreiro, foi indicado ao cargo de
escabino em Olinda e ingressou na aristocracia rural pernambucana após seu casamento com
Maria César. Vieira foi aclamado como uma das principais lideranças do movimento de
restauração pernambucana contra o domínio holandês, atributo cedido também a André Vidal
de Negreiros (SOUSA, 2013, p. 70). Nascido na Paraíba, Negreiros foi mestre-de-campo,
governou o Maranhão entre 1655 e 1656 e Pernambuco de 1657 até 1661, quando assumiu em
Angola. Exercer o cargo de governador de Pernambuco enquanto Vieira administrava Angola
mostrou-se conveniente para unir as duas costas do Atlântico no mesmo objetivo: aumentar a
produção açucareira com a mão-de-obra escrava adquirida na costa angolana (PESSOA, 2009,
p. 5; SOUSA, 2013, p. 11).
Apesar de seus postos como representantes da Coroa, a maior parte dos lucros no
contexto ultramarino derivava do resgate e exportação de mão-de-obra escravizada e, portanto,
esses funcionários tinham uma assídua participação no trato negreiro na busca por
enriquecimento pessoal. Aqui há uma ascensão do controle de comerciantes coloniais sobre a
economia atlântica, compondo um grupo com ambições próprias: a expansão das conexões
mercantis com outras conquistas, sobretudo com a África. Os governadores ultramarinos
estavam encarregados de cumprir as ordens régias transmitidas pela Coroa, eram
representantes do Rei em suas conquistas (OLIVEIRA, 2013, p. 13, 22), mas, para suprir a
demanda da produção açucareira no Brasil, desviaram da política estabelecida pelo monarca.
Em um levantamento de dados obtido no Trans-Atlantic Slave Trade Database91,
estima-se que o número de escravizados transportados para o Brasil entre 1646 e 1665 passou
91 Disponível no site slavevoyages. org, plataforma online que dispõe de um banco de dados sobre o transporte
transatlântico de escravizados.
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de 6.210 para 38.738. Esses dados revelam um crescimento de 523,80% na quantidade de mãode-obra escravizada exportada entre 1646-1650 e 1651-1655, período de transição para a
administração brasílica em Angola. A maior parte desses africanos foi destinada para a Bahia e
para a região sudeste, no Rio de Janeiro, para o trabalho na produção de açúcar.
O século XVII assistiu a decadência do Estado da Índia e a expansão econômica do
Atlântico Sul devido às plantações de açúcar e, posteriormente, as minas de ouro descobertas
no Brasil. A competição de espanhóis, ingleses e holandeses e a perda de Ormuz (1622),
Malaca (1641), Cochim e Ceilão (década de 1660) provocaram uma redução das atividades
comerciais nas conquistas portuguesas orientais. As viagens da carreira despencaram, com uma
perda média de vinte por cento da tonelagem embarcada na segunda metade do século XVII
mesmo com a autorização da parada de navios partidos de Goa no Brasil, onde havia uma
grande demanda de mercadorias de luxo asiáticas. O fato é que o complexo açucareiro
brasileiro havia se tornado o cerne do império português: em meados de 1630, os 350
engenhos do Brasil produziam mais de vinte mil toneladas de açúcar por ano e na década
seguinte o açúcar era o centro das atenções no cenário econômico (SCHWARTZ, 2008, p.
2012). Sobre essa expansão atlântica, Boxer afirma:
“Quem diz Brasil diz açúcar e mais açúcar”, escreveu o conselheiro municipal da Baía à
Coroa em 1662; e, dois anos mais tarde, um marinheiro inglês dizia do Brasil: “O país
está completamente cheio de engenhos de açúcar, os quais produzem a maior parte do
melhor açúcar que é feito”. Acrescentou que o Rio de Janeiro, a Baía e o Recife “todos
os anos carregavam muitos navios com açúcar, tabaco e pau-brasil para os mercadores
de Portugal, sendo isso muito enriquecedor para a Coroa de Portugal, sem o que não
passaria de um reino pobre” (BOXER, 1969, p. 155).
Em 1640 havia aproximadamente setenta ou oitenta mil indivíduos de ascendência
africana no Brasil, metade deles distribuídos em atividades ligadas à produção do açúcar
(SCHWARTZ, 2008, p. 216). A crescente procura por escravizados para o trabalho nas minas
e plantações conduziu ao aumento do trato negreiro com a África Ocidental e a consequente
procura por novos mercados nessa região (BOXER, 1969, p. 159, 162). A interiorização do
aparato administrativo português buscava viabilizar a canalização de cativos para o porto de
Luanda, por isso o investimento em feiras no interior e a preocupação com a livre circulação de
pumbeiros e promoção dos resgates. Nas feiras sertanejas circulavam o marfim, a cera de
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abelha, peles, almíscar, cobre, ouro, goma, azeite de palma, entre outros. Esses produtos eram
encaminhados para os portos junto com os cativos e serviam para aumentar os lucros obtidos
com os carregamentos de escravizados (ALENCASTRO, 2000, p. 114).
A maior parte das expedições punitivas postas em campo pelos governadores brasílicos
foram respostas às queixas sobre os danos causados pelos sobas rebeldes nas transações
mercantis e quando derrotados pelas armas portuguesas essas chefias eram coagidas a prestar
vassalagem e manter as vias comerciais desimpedidas. O envio de assistência do Brasil era
sempre solicitado nos conflitos contra os sobas insubordinados. Em uma consulta do Conselho
Ultramarino de 1656, solicita-se o envio de dois navios com quatrocentos infantes para somar à
guerra preta e aos colonos na guerra de Kissama, salientando a conexão entre as duas
conquistas: sem o Brasil não haveria o trato negreiro e sem Angola não se sustentariam os
engenhos de açúcar do Brasil, pois Luanda “pode ser o posto naquela costa que mais riquezas
dê a este Reino, do que dão as Índias a Castela” (MMA, XII, p. 7-8, 18).
Após a expulsão dos holandeses, a esfera econômica da região nordeste do Brasil se
deparou com outro problema: a rápida consolidação do complexo açucareiro escravista nas
Antilhas. O crescimento da produção inglesa e francesa no Caribe afetou negativamente a
economia açucareira brasileira, derrubou o preço do açúcar nos mercados europeus e a
demanda por mão-de-obra nas plantations antilhanas aumentou os preços dos escravizados no
litoral africano. Além disso, a política mercantilista adotada pela Inglaterra e pela França na
tentativa de elevar a produção antilhana garantiu-lhe proteções monopolistas e praticamente
excluiu o açúcar brasileiro desses dois mercados europeus. O império português,
financeiramente abalado pela guerra contra a Espanha e dependente dos lucros gerados por
suas possessões na América, precisou aplicar uma tributação maciça sobre o açúcar brasileiro,
necessária para a defesa do Reino. Para manter a estabilidade de produção nos engenhos
brasileiros, a união com a África foi primordial; a garantia do fluxo contínuo de escravizados a
baixo custo para os engenhos assegurou a conservação da economia açucareira da América
portuguesa apesar da adversidade no contexto internacional (MARQUESE, 2006, p. 113).
As transações no Atlântico Sul fluíam dos dois lados e existia uma demanda por
mercadorias brasileiras na costa africana. Produtos de escambo, como os zimbos, a farinha de
mandioca, a jeribita, tabaco, cavalos, fubá, marmelada, peixe seco e salgado, queijos, louça de
barro, etc., eram adquiridos para as mais diversas finalidades: alguns serviam para rituais
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religiosos e cerimônias políticas, outros compunham o banzo92, e todos integravam as redes de
trocas no trato transatlântico. Os zimbos (ou nzimbu), búzios extraídos do mar, eram usados
como moeda de troca, principalmente na região do Congo. Mesmo com a extração na costa
angolana e congolesa, os zimbos baianos eram frequentemente importados de Salvador ou do
Rio de Janeiro, de onde saíam sem pagar tributos, furando o controle metropolitano português.
A mandioca era uma das bases da alimentação dos escravizados africanos e com a
crescente deportação de cativos passou a ser muito requisitada. A baía de Guanabara enviou
cerca de 680 toneladas de farinha de mandioca anualmente para Angola na primeira década do
século XVII e, por conta da demanda, chegava ao porto de Luanda com seu valor
quadruplicado. O predomínio da mandioca na alimentação negreira barateava o frete entre os
dois lados do Atlântico e fortalecia o comércio entre as conquistas. O consumo em Luanda
chegou a 35-40 mil em meados do Seiscentos, representando uma média diária de 1,5 tonelada
de farinha e mesmo com o transporte dessa cultura para as lavouras africanas, os mandiocais
regionais estavam suscetíveis às secas e pragas, fazendo com que a importação desse gênero
perdurasse (ALENCASTRO, 2000, p. 251-256).
Considerações finais
Com Angola restaurada das mãos dos concorrentes holandeses, era hora de retomar o
que foi perdido da jurisdição portuguesa. Os governos que se seguiram à restauração adotaram
medidas similares: castigar os sobas que se aliaram aos flamengos e se revoltaram contra a
Coroa; expandir o controle português, avassalando sobas livres; reabrir e expandir as rotas
comerciais nos sertões e, consequentemente, retomar o comércio com o Brasil. A política
adotada por esses governadores ultramarinos foi violenta e marcada por expedições punitivas
no hinterland angolano, contradizendo as ordens administrativas determinadas pelo monarca
português. A “dominação indireta”, respaldada na aproximação por meios brandos, foi
constantemente frisada nas correspondências enviadas pelo Rei e seu Conselho. Contudo, as
campanhas militares fomentadas por esses brasílicos e a construção da legitimação da guerra
contra os sobas rebeldes, principalmente contra o manicongo, mostram a divergência de
interesses entre centro e periferia e como as ordens saídas de Portugal podiam ser adaptadas
por esses agentes da Coroa.
92 Banzo era uma unidade formada por vários produtos e usada para adquirir escravizados no sertão
(ALENCASTRO, 2000, p. 115).
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Angola estava estreitamente conectada ao Brasil por meio do comércio atlântico e a
política adotada por esses governadores só pode ser analisada através dessa ligação. A
promoção de guerras, avassalamentos compulsórios e o investimento nas feiras e no livre
comércio nos sertões visava principalmente a captação de mão-de-obra destinada à produção
açucareira brasileira. A exportação de escravizados para o Brasil, que cresceu
consideravelmente nesse período, e a importação de mercadorias brasileiras mostram como
esses agentes viam na economia atlântica um meio de enriquecimento pessoal.
Referências
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Agência Geral do Ultramar, 1965.
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Geral do Ultramar, 1971.
______. Monumenta Missionária Africana. Série 1, Volume 12 (1656-1665). Lisboa: Academia
Portuguesa da História, 1981.
CADORNEGA, A. de O. de. História Geral das Guerras Angolanas. Lisboa: Agência Geral
das Colônias/Editorial Ática, 1940, tomo II.
The Trans-Atlantic Slave Trade Database. Disponível em: < https://www.slavevoyages.org/>.
Acesso em: 10 jun. 2019.
TORRES, J. C. Feo Cardozo de Castelo Branco e. Memórias contendo a biografia do vicealmirante Luis da Mota Feo e Torres. A História dos governadores e capitães-generais de
Angola, desde 1526 até 1825 e a Descrição Geográfica e Política dos reinos de Angola e
Benguela. Paris: Fantin Livreiro, 1825.
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BOXER, C. R. O Império colonial português (1415-1825). Lisboa: Edições 70, 1969.
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ser sombra e ser sol. Clio, Recife, n. 22, v. 1, p. 347-361, 2004.
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XVII). 2008. 154 f. Dissertação (Mestrado em História) – Faculdade de Filosofia, Letras e
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alforrias, séculos XVII a XIX. Novos Estudos – CEBRAP, n. 74, p. 107-123, mar. 2006.
OLIVEIRA, L. A. S. Redes de poder em governanças do Brasil à Angola: Administração e
comércio de escravos no Atlântico Sul (Luís César de Meneses, 1697-1701). 2013. 240 f.
Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade
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SCHWARTZ, S. B. Prata, açúcar e escravos: de como o império restaurou Portugal. Tempo,
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SILVA, A. C. A Manilha e o Libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700. 2. ed. Rio de
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Vieira, 1658 a 1661. 2013. 110 f. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de Filosofia e
Ciências Humanas, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2013.
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Notas para o estudo da imprensa angolana oitocentista
Eduardo Antonio Estevam Santos93
Resumo: Este breve artigo analisa e interpreta historicamente o surgimento e a produção de
periódicos em Angola no século XIX. Apresenta um balanço do estado da arte, às
características, às dinâmicas e particularidades desse tipo de imprensa.
Palavras-chave: Imprensa, Política Colonial, Historiografia.
Abstract: This brief article analyzes and historically interprets the emergence and production of
periodicals in Angola in the 19th century. It presents a balance of the state of the art,
characteristics, dynamics and particularities of this type of press.
Keywords: Press, Colonial Politics, Historiography.
Este artigo pretende contribuir, de forma limitada em função do limite destinado para
esta publicação, para a historiografia da imprensa angolana, mais precisamente, para a escrita da
História de Angola por meio da imprensa. Nosso marco temporal tem início em 1845, com o
surgimento do Boletim do Governo Geral da Província de Angola, e a década de 1890, o
encerramento desse ciclo, quando finalmente as pretensões de Portugal em África foram
asseguradas internacionalmente, repercutindo na feição editorial da imprensa.
A história da imprensa angolana tem início em 1836, quando o ministro Sá da Bandeira
autoriza no artigo 13.º do decreto de 7 de dezembro a criação nas possessões ultramarinas
portuguesas, publicações que pudessem transmitir informações militares, civis, legais,
comerciais e gerais. O Boletim do Governo Geral da Província de Angola foi pioneiro, mas a
imprensa não oficial teve sua primeira aparição em 1852 com o periódico Almanak Estatístico
da Província de Angola e suas Dependências, que segundo Júlio de Castro Lopo, preocupava93 Prof. Dr. do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-brasileira, campus dos Malês/Bahia. Este trabalho foi apresentado no simpósio temático Histórias de África,
histórias da diáspora: diálogos, abordagens, conexões, parte integrante do 12º Encontro Nacional de História e 1º
Encontro Internacional de História da Universidade Federal de Alagoas, realizado virtualmente entre os dias 8 e
10 de setembro de 2021.
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se com as notícias do governo e informações genéricas sobre clima, população, religião,
comércio e indústria, cujo objetivo era satisfazer o leitor com curiosidades e aprofundamento
de assuntos sobre a história de Angola. Fundado por dois militares, um advogado e um
funcionário do governo, o Aurora, foi o terceiro semanário fundado em Angola, em 1856, suas
intenções eram exclusivamente literárias.
O primeiro periódico noticioso, que inaugurou a chamada imprensa livre, A Civilização
da África Portuguesa, teve o seu primeiro número editado em 06 de dezembro de 1866, esse
impresso foi um marco na história do jornalismo angolano. Alguns meses depois, surgiu o
Comércio de Luanda. Na década de 1870 surgiram mais 7 periódicos, O Mercantil (1870), O
Almanach Popular (1872), O Cruzeiro do Sul (1873), O Meteoro (1873), Correspondência de
Angola (1875) e o Jornal de Luanda (1878). O Almanach era composto e impresso nas
oficinas do Mercantil. O Correspondência de Angola foi um jornal noticioso, literário e político
e, assim como O Meteoro, também teve uma curta duração. Não era comum apresentar a
tiragem das edições, apenas O Mercantil o mencionava, com publicações semanais, sua tiragem
era de 700 exemplares.
Em todo o século XIX foram publicados 52 periódicos e, no geral, esses impressos
tiveram uma curta duração. Apresentavam-se no formato padrão do seu tempo, dividido em
quatro partes. Nos primeiros periódicos havia uma ausência total de ilustrações. Na década de
1870 passou a circular impressos com gravuras e eram mais atrativos para ler. Contudo, para
uma interpretação histórica desses materiais, apresentaremos um balanço do estado da arte, às
dinâmicas e particularidades deste tipo de imprensa.
Tabela 1
Periódicos
Ano/duração
Boletim do Governo Geral da Província
de Angola
1845
Almanak Estatístico da Província
1852
d’Angola e suas Dependências
A Aurora
1856
A Civilização da África Portuguesa
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1866/1867
O Comércio de Luanda
1867-1870
O Mercantil
1870-1891 / 1896-1897
O Almanaque Popular
1872
O Meteoro
1873
O Cruzeiro do Sul
1873-1878
Correspondência de Angola
1875
Jornal de Luanda
1878-1882
Noticiário de Angola
1880
Boletim da Sociedade Propagadora de
1881
Conhecimentos Geográfico-Africano de
Luanda
Gazeta de Angola
1881
O Echo de Angola
1881-1882
O Jornal de Mossamedes
1881-1882
O Ultramar
1882
A Verdade
1882
A União Áfrico-portuguesa
1882-1883
O Raio
1884
O Bisnaga
1884
O Futuro de Angola
1882-1894
O Pharol do Povo
1883-1885
O Rei Guilherme
1886
O Arauto dos Concelhos
1886
O Serão
1886
A Tesourinha
1886
O Exército Ultramarino
1887-1888
O Progresso de Angola
1887
O Exército Ultramarino
1887
O Foguete
1888
137
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Mukuarimi
1888
Muen Exi
1889
Arauto Africano
1889-1890
O Desastre
1889-1890
O Tomate
1889-1891
O Correio de Luanda
1890
O Chicote
1890
Os Concelhos de Leste
1891
Notícias de Angola
1891
O Polícia Africano
1890-1891
Commércio d’Angola
1892
O Sul de Angola
1892-1893
A Província
1893
O Independente
1894
Bofetadas
1894-1895
O Imparcial
1894-1895 / 1898
Propaganda Colonial
1896
O Santelmo
1896
Revista de Luanda
1896
Propaganda Angolense
1897
A Folha de Luanda
1899
Fonte: LOPO, Julio de Castro. Para a História do Jornalismo de Angola. Luanda: Museu de Angola,
1952.
Os trabalhos do Júlio de Castro Lopo são nomeadamente um marco na historiografia
da imprensa angolana. Esse pesquisador nasceu em Valpaços (Portugal), em 1899, morou em
Angola por mais de cinquenta anos e morreu em 1971 no mesmo local do seu nascimento. Foi
funcionário público, mas, a sua grande paixão foi a investigação. Para a História da Imprensa
de Angola, publicado em 1962 e Jornalismo de Angola – subsídios para a sua história, editado
em 1964, são as suas principais contribuições para a historiografia da imprensa angolana. Em
138
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linhas gerais, Lopo estava preocupado com a evolução da imprensa periódica 94 e jornalística,
por meio de análises que se pautaram mais nas descrições dos materiais impressos que na
articulação entre os processos históricos que os influenciaram ideologicamente.
Na historiografia dos periódicos e dos jornais angolanos, embora a produção de artigos
seja extensa, podemos destacar em ordem cronológica os seguintes autores e suas respectivas
obras: Brito Aranha escreveu o livro Subsídios para a história do jornalismo nas províncias
ultramarinas95, editado em Lisboa, pela Imprensa Nacional, em 1885; o jornalista Teófilo José
da Costa, publicou importantes artigos em A Voz de Angola e Tribuna dos Musseques (19651974); Carlos Erverdosa, Roteiro da Literatura Angolana, publicado em 1979; Vittorio
Salvadorini, Os Primeiros Números de um Jornal de Angola: O Cruzeiro do Sul; Rosa Cruz e
Silva, O nacionalismo angolano. Um projeto em construção no século XIX? Através de três
periódicos da época: O Pharol do Povo, O Tomate e O Desastre apresentado no II Seminário
sobre a História de Angola; Fernando Gamboa, A guerra luso-dêmbica, através de um
periódico oitocentista angolense (1872-1885), trabalho apresentado no Seminário Encontro de
Povos e Culturas em Angola, atividade integrante da Comissão Nacional para as
Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, em 1997; Marcelo Bittencourt, Dos jornais
às armas - trajectórias da contestação angolana, 1999; por fim, o livro A Imprensa e o império
na África portuguesa, 1842-1974, resultado da tese de doutoramento da pesquisadora Isadora
de Ataíde Fonseca. Esse vasto estudo de longa duração da Isadora de Ataíde analisa as
dinâmicas da imprensa e do jornalismo nos territórios compreendidos como a África
Portuguesa (Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe e Guiné). No estudo de
caso dessas regiões Isadora Ataíde demonstra que a imprensa e o jornalismo nos cinco
territórios apresentaram dinâmicas e características similares no período colonial, e que a
mesma foi decisiva na afirmação do colonialismo português, mas o jornalismo também
contestou e opôs-se ao projeto imperial.
94 Segundo o decreto publicado no Boletim do Governo Geral da Província de Angola no dia 12 de fevereiro de
1857, sobre as restrições à liberdade de imprensa, entendia-se por imprensa periódica, toda a estampa, escrito
impresso ou litografado, publicados em dias certos ou irregulares, que contivesse notícias ou matérias religiosas,
políticas ou atos da vida particular de qualquer pessoa, dos quais possa resultar infâmia, desonra ou injúria, e que
não excedesse seis folhas de impressão. Boletim do Governo Geral da Província de Angola, 12 de fevereiro de
1857, p.4.
95 Ver LOURENÇO, João Pedro da Cunha. A dinâmica e o estatuto dos jornalistas em Angola no período da
imprensa livre (1866-1923). União dos Escritores Angolanos. https://www.ueangola.com/criticas-e-ensaios, consulta
em 12 de maio de 2019.
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Essa imprensa periódica oitocentista, já foi classificada pela historiografia de forma
exagerada, como amadora96, acreditamos que tal crítica não procede, pois, O Mercantil, foi tido
como o primeiro jornal profissional de Angola, durou 27. A longa duração era um sinal de que
esse meio de comunicação conquistou o grande público e teve leitores ativos durante muito
tempo. A Civilização da África Portuguesa e O Cruzeiro do Sul também foram periódicos
respeitáveis, dentro das condições técnicas e tecnológicas do seu tempo. Para garantir a
confiança do público leitor os editores tinham que demonstrar posturas éticas. Vejamos o
seguinte exemplo:
No nosso n.º 42 apenas demos aos nossos leitores uma notícia sucinta, mais exacta,
sobre os acontecimentos do Ambriz, como nos permitiu a falta de tempo e o
recomendava a prudência para não sermos falsos noticiadores.97
Preocupações com a profissionalização existiam desde o surgimento da imprensa livre,
e, em 1894, nota-se uma certa consciência coletiva, onde-se falava de critérios de admissão e
conduta profissional. Sobre as condições técnicas, existiam poucos especialistas com o domínio
dos prelos, os primeiros tipógrafos da imprensa livre eram os mesmos do Boletim Oficial. Era
comum anúncios aceitando candidatos a aprendizes para composição nas tipografias nas
décadas de 1860 e 1870. “Os nossos compositores e impressores são moços africanos de
quinze anos que acabam de sair da aula de leitura, e nem sequer tinham entrado numa oficina
tipográfica antes de aberta a nossa”98. As tipografias não imprimiam somente jornais, senão
morreriam de fome, imprimiam todo tipo de material. Ter a sua própria tipografia revelava
uma certa autonomia financeira, mas, nem todos a possuíam, o Aurora, o terceiro semanário
fundado em Angola, em 1856, era impresso na tipografia do governo. O Desastre era impresso
na tipografia do Arauto Africano, esses são apenas alguns exemplos.
As edições eram
numeradas, de modo que os leitores pudessem saber se tinham perdido algum exemplar.
Novos temas dominaram a pauta política e influenciaram muito no surgimento de
novos periódicos, tais como, os debates internacionais acerca da nova política colonial
96 A generalização de Júlio de Castro Lopo revela pouca profundidade analítica, ao caracterizar de forma
homogênea 5 décadas de periodismo do século XIX como episódica e amadora. Lourenço, A dinâmica e o
estatuto dos jornalistas em Angola no período da imprensa livre (1866-1923), s/p. Op. Cit.
97 Idem.
98 A Civilização da África Portuguesa, 31 de janeiro de 1867. Acervo Biblioteca Nacional de Portugal. Coleção
Fundo Geral Monografias, cota 5150.
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(Conferência de Berlim 1884-1885), as influências do republicanismo português e brasileiro, o
movimento contestatório dos filhos do país, dentre outros. A elite letrada, principalmente
mestiça, acreditava que nos ideais republicanos poder-se-ia concretizar a igualdade jurídica
conforme preconizava a constituição portuguesa. Houve uma explosão de novas publicações,
dos 52 periódicos do século XIX, 41 surgiram nas décadas de 1880 e 1890.
Suas fontes de informações eram resultado de consultas realizadas junto aos sujeitos
envolvidos no fato, em relação ao exterior, os periódicos de maior circulação tinham
correspondestes em São Tomé, Moçambique, Lisboa. As portarias, nomeações, decretos e
ofícios publicados no Boletim do Governo Geral de Angola, a depender o seu teor, tornavamse fatos políticos nos periódicos. Notamos que o periodismo, em seu conjunto, correspondia às
necessidades informativas da população, dentro dos limites de suas limitações tipográficas, pois
não evidenciamos críticas sistemáticas aos perfis editoriais. Ainda que a objetividade seja
impossível, os fatos e as opiniões não se separavam no discurso periodista. Em linhas gerais esta
imprensa periódica oitocentista foi mais opinativa e ideológica (imprensa de opinião) que de
notícias, mas sobretudo, um fórum de discussão. A mudança do tom opinativo para o relato de
notícias do cotidiano só aconteceu nas primeiras décadas do século XX.
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143
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Notas sobre os Serviços de saúde na Província de Angola: sujeitos, instituições e
práticas (1845-1880)
Idalina Maria Almeida de Freitas
Resumo: Este estudo pretende analisar o papel que a medicina e a assistência desempenharam
no processo de (re) colonização de Angola, na segunda metade do século XIX. Destaque
especial para a atuação de médicos angolenses na estrutura dos Serviços de Saúde, suas
ambivalências como agentes da colonização em face as atuações políticas e sociais. As principais
fontes pesquisadas são o Boletim Oficial da Província de Angola, Annaes do Conselho
Ultramarino, Relatório dos Serviços de Saúde das Províncias, dentre outros. Buscamos seguir a
chave de interpretação de que a identidade africana e o componente racial influenciaram nos
desdobramentos das ações desses sujeitos.
Palavras-chave: medicina - colonização – africanos.
Essa comunicação é uma primeira abordagem de uma pesquisa mais ampla e em
andamento, cujo objetivo é realizar uma história social da saúde em Angola do ponto de vista
africano. Os processos de cura e desenvolvimento da assistência à saúde estiveram diretamente
relacionados as transformações na vida social do continente. O argumento é que a identidade
africana e o componente racial mediaram as experiências do chamado pluralismo médico,
sobretudo a partir da sistematização de uma burocracia e hierarquias próprias, que em meados
do século XIX de fato, se assentou como uma política sanitária para o continente.
Cabe mencionar que em 1844 é esboçada uma primeira organização dos serviços de
saúde no ultramar, no tocante aos regimentos de preços dos medicamentos, assim como a
administração hospitalar. Em 1862 foi publicado o Regulamento Geral dos Serviços de Saúde
das Províncias Ultramarinas, que criou o cargo de diretor do serviço de saúde pública, em 1869
é publicado outro decreto intitulado Organização do Serviço de Saúde das Províncias
Ultramarinas que determinava a distribuição dos médicos e farmacêuticos nas diversas
localidades. Os hospitais nos distritos e concelhos eram militares, atendendo a este grupo e aos
Professora adjunta no curso de História do Instituto de Humanidade e Letras da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), campus dos Malês. Email: idaensino@unilab.edu.br
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civis. Existiam também as instituições de assistência por caridade como a Santa Casa e o
Recolhimento Pio de D. Pedro V.
Do ponto de vista historiográfico, na primeira metade do século XIX a ocupação
portuguesa em território Angolano, restringia-se a aos chamados “reinos” de Angola e
Benguela, a maioria da população era classificada como “preta”, destaque para o elevado
número de mestiços, rotulados segundo vocabulário colonial como “pardos, mulatos ou filhos
do país”. Os decretos de 1836 e 1854, referentes a abolição do tráfico e a criação da categoria
jurídica dos libertos, fomentou uma “evolução” em relação a condição de “escravo”, no
entanto, apesar da “carta de alforria” dada pelo estado, esses “libertos” não podiam dispor
livremente de si e do seu trabalho, continuando “tutelados”, por uma junta especialmente
designada.99 Esses “pretos libertos” empregados muitas vezes em obras públicas, davam entrada
no hospital militar de Luanda, onde segundo correspondências do conselho de saúde naval
eram “entregues aquella repartição e não eram tratados como deviam sêl-o ”.100 Tais afirmações
nos permite visualizar as condições sanitárias que esses indivíduos estavam sujeitos, para além
do trabalho compulsório.
O combate mais metódico aos embarques de escravos assumiu um caráter de fato
internacionalizado a partir da década de 1840. Pelo prisma da administração colonial, os planos
forjados para estimular a transição da economia angolana do tráfico para uma economia
assentada no chamado comércio lícito, utilizou como principal vetor a implementação de uma
agricultura de exportação, o que nos moldes português daria uma maior “soberania” a
província.101 Nesse sentido, os impactos dessas mudanças para uma sociedade com grupos
diversos e interesses conflitantes foi enorme.
Conforme explica Jill Dias, ocupar cargos dentro da estrutura colonial portuguesa além
de garantir uma certa segurança material, era também, em última análise, fonte de prestígio
social e político dentro da sociedade africana. Já antes de 1850, a posição implantada pela
aristocracia crioula vinha sendo minada devido às transformações nas esferas da economia
mundial e política portuguesa, que tentou redefinir seu interesse metropolitano por Angola.
Com isso, alguns membros dessas famílias queixavam-se acerca da discriminação contra eles
99 NETO, Maria da Conceição. De Escravos a “serviçais”, de “serviçais” a “contratados”: Omissões, percepções e
equívocos na história do trabalho africano na Angola colonial. Cadernos de Estudos Africanos (Online), 33/2017.
p. 112.
100 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, 1859.
101 FERREIRA, Roquinaldo. Abolicionismo e fim do tráfico de escravos em Angola, século XIX.
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em nomeações para cargos oficiais, ao passo que agentes metropolitanos passavam a concorrer
a postos nas províncias africanas.102 Marcelo Bittencourt também adverte que a perda do espaço
político e econômico em meados do século XIX, na lógica de teias coloniais emergentes, traria
novidades pouco favorável ao grupo crioulo, afinal essa camada perderia espaço com a chegada
de um maior número de homens vindos da metrópole, resultando na delimitação de espaços
mais afunilados para a sua atuação e o componente racial era um ingrediente inegável no
reforço dessas tensões.103
A revolução liberal e a restauração da monarquia portuguesa, seguidas no ano de 1822
pela Declaração de Independência do Brasil, impuseram transformações nas relações coloniais.
As questões ligadas à abolição do tráfico de escravizados e à proteção dos interesses de
negreiros foram determinantes. Outros elementos como a existência em Angola de um “partido
brasileiro”104, as relações comerciais entre brasileiros da corte do Rio de Janeiro em detrimento
de Lisboa, o apoio dos habitantes de Benguela à causa da independência brasileira, revelavam
as transformações que estavam em curso.
O governo liberal chefiado por Marquês de Sá da Bandeira promulgou as primeiras
medidas dessa efetiva presença portuguesa em África, apesar do caráter gradual dos decretos
relacionados à abolição da escravidão. Ancorado no discurso de desenvolvimento dos recursos
agrícolas e minerais de Angola, baseado no trabalho livre e na colonização branca, uma camada
fina de “novidades” impulsionadas pelo liberalismo português abrigava a velha estratégia de
maximizar os rendimentos coloniais através do estímulo ao livre comércio. Já nessa época, as
tensões entre a comunidade crioula e o influxo de europeus para Angola alistava as bases para,
segundo Jill Dias, um aumento perigoso da consciência de raça, especialmente em Luanda na
década de 1830.
Na senda dos serviços sanitários, a legislação de 1825 instituiu a criação de escolas de
cirurgia em Lisboa e no Porto, visando a conservação da saúde das populações do reino e das
102 DIAS, Jill. Uma questão de identidade: respostas intelectuais as transformações econômicas no seio da elite
crioula da Angola portuguesa entre 1870 e 1930. Revista Internacional de Estudos Africanos, revista semestral,
jan/jun, 1984. P. 67-68.
103 BITTENCOURT, Marcelo. Velho tema, novos problemas: a crioulidade em Angola. III Reunião
Internacional sobre a História de Angola, Arquivo Nacional de Angola. P. 15-27.
104 Cumpre destacar, de antemão, que a expressão “partido brasileiro” não constituía um partido no sentido
stricto sensu corrente, ou seja, não era uma sigla política tampouco seguia um programa político partidário. A
expressão foi cunhada pelas autoridades metropolitanas de Angola única e simplesmente para identificar os
indivíduos cujos interesses comerciais se achavam ligados ao Brasil e não a Portugal. APUD GUIZELIN, Gilberto
da Silva. “Província de um partido brasileiro, e mui pequeno o Europeu”: a repercussão da independência do
Brasil em Angola (1822-1825). Afro-Ásia, 51 (2015), 181-106, p. 83.
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províncias do Ultramar, para que pudessem os estudantes dominar a importante Arte da
Cirurgia e assim contribuir com o progresso, que, em outros países, estava se avantajando
consideravelmente.105 No estudo de Patrícia Sanches sobre a Escola Médico Cirúrgica de Lisboa
(EMCL), o objetivo foi compreender os percursos profissionais dos alunos daquela instituição,
entre as décadas de 1837 e 1889, buscando analisar a predominância dos “filhos” da EMCL,
nas décadas finais do século XIX, no que se refere à ocupação de cargos nos serviços de saúde
pública e nas instituições médicas da capital do reino. No entanto, sobre a análise acerca da
naturalidade dos alunos, segundo a autora, as informações recolhidas nos Livros de Termos de
Exames e de Atos Grandes da EMCL revelaram que, contabilizando a naturalidade daqueles
estudantes, apenas 196 alunos eram naturais da cidade de Lisboa e 479 de outras localidades,
sendo muitos advindos das províncias do Ultramar.106 Mesmo considerando que a EMCL
indiscutivelmente teve uma preponderância de estudantes de “outras naturalidades” e que os
alunos lisboetas nunca foram a maioria naquela instituição, a autora ignora os possíveis
desdobramentos desse desequilíbrio, sendo a EMCL possivelmente um reduto desses jovens
filhos das províncias africanas. O que isso significou frente aos projetos e expectativas futuras
desses estudantes? Quais impactos nos serviços de saúde das províncias a presença desses
profissionais trouxe? Podemos supor desistências, formações políticas, retorno às suas
províncias de origem, fixação em Lisboa, articulações contrárias a política colonial, dentre
outras possibilidades.
Tais questões recaem na análise da trajetória de Leonardo Africano Ferreira, médico
negro, “filho do país”, que teve seus estudos subvencionados pela Real Fazenda e formou-se na
EMCL, publicando no ano de 1878 a sua tese acerca da -“pulga penetrante”- inseto que
segundo Africano, danificava severamente as populações da província de Angola e as duas Ilhas
de S. Thomé e Príncipe que eram possessões portuguesas”107, sendo os principais atingidos os
“infelizes escravos”, ocasionando muitas mortes. Os aspectos excepcionais da trajetória desse
médico, ultrapassa o foco apenas da sua própria experiência, pois nos permite perceber um
105 Legislação Régia (1825), nº 124, p. 56 e seg, www.parlamento.pt. APUD SANCHES DA GAMA, Patrícia
Eugenia Moreno. Médicos em Lisboa. Alunos da Escola Médico-cirúrgica de Lisboa 1837-1889. Tese de
doutoramento em História Moderna e Contemporânea. Instituto Universitário de Lisboa, 2018. p. 55.
106 Idem. p. 89.
107 FERREIRA, Leonardo Africano. Pulga Penetrante (Pulex Penetrans). Das Lesões que esse inseto produz
quando penetra nos tecidos do corpo humano: e das que sobrevem depois da sua extração do Tratamento dessas
lesões e dos meios prophylacticos de as evitar. These Inaugural apresentada e defendida perante a Escola Médico
Cirúrgica de Lisboa. Imprensa Democrática, 1878. p. 3
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contexto mais amplo de deslocamentos geográficos e sociais de sujeitos no atlântico lusoafricano, descortinando redes de relações e significados. As práticas profissional e pessoal desse
personagem como médico cirurgião vivenciadas em diferentes espaços — África, Europa e
América — proporcionam uma reflexão acerca das tensões e dos conflitos que permearam a
natureza da presença portuguesa em Angola, a estruturação dos serviços de saúde nas
províncias africanas frente ao papel político e social de grupos crioulos, a fronteira entre o fim
do tráfico transatlântico e o comércio lícito, ancoradas em tentativas mais sistemáticas de
implementação da burocracia colonial em territórios como Luanda, Benguela e São Tomé e
Príncipe.
A escassez de médicos e boticas em várias regiões da província de Angola era um tema
discutido amplamente, parte da população pobre, segundo o olhar europeu, não teria recursos
para consultas e medicamentos, apostando na busca por milongos nativos.108 Os poucos
médicos de partido
109
contratados naquela altura recusavam os vencimentos oferecidos pela
Câmara, no valor de 60$000 ao ano, equivalente a 164 réis por dia, como foi o caso do dr.
Matheus Alexandre Gueulette em ofício endereçado à Câmara de Luanda:
A Ilma. Câmara quebrantou o contrato, que comigo celebrou e assignou logo
que sem meo consentimento reduziu o ordenado entre nós estipulado ao de
60$000 réis anual ou de 164 rs por dia! Dá-me pois direito a declarar a Va.
Sa. Para que o faça contar a mesma Câmara, que por tal preço não posso e
não devo querer continuar a ter a satisfação e honra de me considerar como
Cirurgião de seo partido; mas como habitante domiciliário do Município
sejam-me permitido que eu apresente a minha admiração e reconhecimento a
tanta economia que a actual Câmara vai realizando benefício de certo de
todos, menos dos pobres, que ficarão sem facultativo, se não houver algum
108 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 38.
109 O Dr. Saturnino de Sousa e Oliveira, médico brasileiro, que há muitos anos exerce a clínica nesta província,
enviara a junta de saúde um projeto de regulamento para o serviço do médico de partido da câmara (...) Distinguese o dr. a população em três classes: a 1° - das pessoas reputadas pelo recenseamento como possuindo de
rendimento mais de 20$000 réis mensais, as quais não concede o direito de se aproveitarem gratuitamente dos
serviços do médico de partido; - 2° - das pessoas que se reputarem possuir menos de 20$000 réis de rendimentos
mensais, mas não classificadas pobres, ás quaes propõe que sejam assim como as pessoas de sua família, prestados
socorros médicos gratuitamente, mediante uma licença, de que elas deverão prover-se anualmente, e pela qual
deverão pagar 1$000 réis, que entrarão num cofre destinado a ocorrer ao pagamento do médico e a outras
despesas da polícia municipal em serviço médico e hygienico; 3° - a das pessoas inteiramente indigentes, ás quaes o
pároco e regedor devem das gratuitamente atestado de pobreza, e que devem ser de todos gratuitamente tractados.
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que por caridade própria e não por interesses dados pelo município, lhe
acuda em suas enfermidades – Deus Guarde a V. Sa. Loanda 14 de março de
1850. Ilmo. Sr. João de Souza Netto. Prezidente da Camara Municipal –
Matheus Alexandre Gueulette, Cirurgião Civil.110
Os facultativos de partido, dentre outras atribuições, eram responsáveis pelo exame
médico dos presos da cadeia pública, que eram muitos e as cadeias apresentavam péssimas
condições de salubridade. As tentativas de inserção na profissão médica, nos postos da
administração colonial, aliadas à escassez de recursos e disputas políticas, contribuíam para a
desorganização dos serviços sanitários. Como foi o caso do dr. Januário Vianna de Resende,
que, por meio de uma portaria de dezembro de 1854, fora substituído do cargo de Physico-mór
da província, pela ordem de el-rei Pedro V. Segundo José de Almeida Santos, o médico era um
homem de “franqueza rude, exigente e minuncios em fazer aplicar o rigor da lei, atitude que
fatalmente lhe iria acirrar o vespeiro de inimigos.”111 No entanto, após apoio popular e
intervenção do Chefe da Província junto ao Trono, o dr. Resende acabou permanecendo no
seu posto. O tal médico, após edital datado de 28 de julho de 1855, que promulgava atitudes
enérgicas contra sangradores e cirurgiões improvisados e punia esses “indivíduos destituídos de
todos os conhecimentos”
112
, decidiu não aplicar aos “transgressores” as penas preconizadas,
uma vez que, naquele período, não existia em Luanda, segundo ele, qualquer sangrador ou
oficial menor de saúde. Nesse ensejo, o Physico-mór apresentou as suas providências:
Tendo feito ver a S. Exa. o Governador Geral, o muito que approveitarão os
povos, com a existência de pessoas habilitadas na dita arte, oferecendo-me
para leccionar gratutitmente, um curso em que ellas se possam instruir e
preparar para o competente exame público; e obtenção do respectivo
Diploma: Tendo o mesmo Exmo. Sr. aceitado o meu oferecimento como
meio mais próprio de remediar aquelles malles, faço saber que: 1°) No dia 15
do mez de agosto próximo futuro, no Hospital militar, darei princípio a um
curso público e gratuito para a instrução de sangradores, dentistas, officiaes
110 Carta Transcrita, a folha 42 e 42 verso do livro nº 376 do Arquivo Municipal de Luanda – “Copiador de
Correspondência Recebida – 1850/1853”. In SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da
Câmara Municipal de Luanda, 1973.
111 Idem, p. 27.
112 Idem, p. 31.
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menores de saúde, de que já se acha aberta a matricula em minha casa;
2°)Todos os indivíduos que se quiserem matricular hão de provar que sabem
lêr e escrever, e que são maiores de 18 annos; 3°) Somente terão direito a
fazer exame os estudantes que tiverem seguido o estudo, com matricula, e
frequência regular; 4°) Logo que tenham sido aprovados alguns destes
estudantes, será severamente punido, nos termos de lei, qualquer indivíduo
que, sem esta habilitação, sangrar, tirar dentes, ou exercer alguma operação de
cirurgia ministrante.113
Ao que parece, as medidas não surtiram efeito, no entanto foram retomadas pelo seu
sucessor, nomeado em janeiro de 1856, o dr. Jacques Nicolao de Salis. O historiador Kalle
Kananoja assinala que o pluralismo médico esteve presente nas primeiras tentativas de
organização dos serviços de saúde na Europa moderna, e que o cenário terapêutico incluía
diferentes formas de cura.
Nesse contexto, cirurgiões e barbeiros não acadêmicos recebiam treinamento prático de
médicos habilitados nas universidades. Em seu estudo para Angola setecentista, Kananoja
oferece pistas sobre a transmissão de conhecimentos de médicos portugueses para africanos,
uma vez que as aulas de medicina oferecidas pelo médico-chefe José Pinto de Azeredo, no final
do século XVIII, eram frequentemente citadas como primeiro exemplo de formação médica
em Angola, podendo ter havido precedentes e planos para formar pessoal médico em Luanda
já no início do século XVIII. Na mesma esteira, outro profissional também obteve autorização
para exercer a medicina em Angola, tanto para curar soldados quanto para ensinar medicina a
todos os residentes que quisessem aprender, permanecendo em Luanda por mais de uma
década.114
Tais exemplos na pena dos discursos adeptos do colonialismo, como era José de
Almeida Santos115, unidos aos anúncios de médicos que viveram em Luanda, tais como
Gueulette, Salis e Resende, que ofereciam tratamentos gratuitos aos pobres e indigentes,
livrando a população de curandeiros e “charlatões”,116 laureavam o sentimento de ofício da
113 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, 1855.
114 KANANOJA, Kalle. Healing Knowledge in Atlantic Africa. Medical Encounters, 1500–1850. Cambridge
University Press, 2021. p. 134.
115 SANTOS, José de Almeida. Páginas Esquecidas da Loanda de há 100 anos. Edição da Câmara Municipal de
Luanda, 1970, 1971, 1972 e 1973.
116 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 34
150
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medicina como um serviço de caridade ou filantropia. Vejamos uma nota veiculada no Boletim
Oficial, a pedido do dr. Africano sobre os honorários médicos:
Illm° Sr. – Hontem quando eu recebi o recado de V. Sa. Primeiramente
pensei, que V. Sa. Pretendia falar-me sobre algum negócio particular; porem
recebendo o segundo, vi que V. Sa. Pretendia tratar-se comigo. Não me
demorei, prestando-me logo a tratal-o, o que fiz visitando-o. Agora pois
cumpre-me dizer-llhe, que tenho estabelecido ser cada visita cinco mil réis, - o
que está em harmonia, segundo me parece, com a excessiva despesa que se
faz neste paiz onde tudo é muito caro – Sendo a visita feita a noute, é o
tresdobro daquela quantia: por tanto se convém a V. Sa. O preço que deixo
estabelecido, terá a bondade de responder-me ao pé desta, afim de eu ficar
sciente. Desculpe esta franqueza, e aos mais – sou com estima de V. Sa.
Muito Attento Venerador – Illmo. S. Vicente Ferrer Barruncho – S.C. (BOA
8 de abril de 1856) – Leonardo Africano Ferreira.117
Nas palavras de Santos, alguns médicos em Luanda exploravam de forma pouco
decente os seus doentes. Nesse ensejo, o mesmo afirmava que, em Benguela, isso também
acontecia, uma vez que, se aproveitando do fato de ser o único facultativo da cidade, o dr.
Africano não passava de um “interesseiro” e estava muito longe de ser um “devotado guardião
da saúde”, como era os outros médicos.118 Viver em Angola naquelas décadas, porém, não era
nada fácil. A alta nos preços dos produtos, além de escassez de água potável, atingiu níveis
severos, vide os preços da farinha, do feijão e do milho que eram, respectivamente, de 550 a
800 réis, de 350 a 700 réis e de 400 a 600 réis, por cada saco, como consta no Mapa do
Terreiro Público, referente ao movimento dos cereais para a semana de 8 a 14 do ano de
1856.119
Obviamente, para a população local da província, a situação era ainda mais crítica tendo
em vista que, unido ao caos sanitário, não era raro ouvir das autoridades “soluções” para a
insalubridade pública, como a demolição de cubatas, criação de alojamentos, incêndios de
musseques, além de imputar a culpa às centenas de pretos que vinham do Sertão e que
117 Boletim Oficial do Governo-Geral da Provincia d’Angola. nº 554, de 10 de maio de 1856.
118 SANTOS, José de Almeida. A alma de uma cidade. Edição da Câmara Municipal de Luanda, 1973. p. 47.
119 Boletim Oficial do Governo-Geral da Província de Angola, nº 542, 1856.
151
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vagueavam pela cidade sujando onde quisessem, os tocadores de marimbas às portas dos seus
senhores, entregues ao ócio, a frequência das danças e batuques que sempre “denegeram em
orgia”, apresentando tantas outras “cauzas nocivas que convém contrariar, ou pelo menos
diminuir-lhes a sua acção, e prevenir seus resultados.”120
A historiadora Rafaela Jobbit explica que, devido a uma série de variáveis, o chamado
“pluralismo médico” era observado em províncias africanas como São Tomé e Príncipe, o que
não implicava em atitudes tolerantes ou benevolentes de autoridades coloniais para com
médicos não europeus, pelo contrário, podemos dizer que a necessidade de médicos oriundos
das províncias africanas algumas vezes era bem vinda, mesmo que em cargos provisórios,
devido a uma estrutura conflituosa do serviço de saúde, sobretudo em decorrência de inúmeros
pedidos de licença que médicos europeus solicitavam com bastante recorrência, muitas vezes
sem ao menos cumprir o tempo necessário em cada localidade. Outras impressões de
comentaristas da época acerca dos serviços de saúde recaíam na sua ineficácia, pois, para eles,
muitos profissionais tinham bastante conhecimento prático de doenças, mas nenhum
treinamento formal ou diploma.121
As relações estreitas entre as províncias de Angola e São Tomé e Príncipe é uma outra
dimensão interessante que o estudo das experiências com a territorialização da saúde
implementada pela coroa portuguesa, nos ajuda a entender. Tais províncias tinham um
histórico de relações muito estreitas e que interagiam de múltiplas formas, desde a circulação
de agentes da burocracia colonial, até a troca de produtos agrícolas e o caso que pode ser mais
emblemático nesse contexto: o resgate de libertos sob contrato de trabalho para as plantações
de cacau. A legislação de 1854 criou essa categoria intermediária como forma de indenização
aos antigos senhores. Os libertos trabalhariam durante dez anos evidenciando os limites do
liberalismo português, sob formas camufladas de tráfico. Segundo Roquinaldo Ferreira, duas
regiões concentraram o maior número de libertos em Angola: Luanda e Golungo Alto. As
razões residiram desde a condição privilegiada da capital até a expansão econômica para o
norte da província, a partir do eixo econômico do Ambriz. No Golungo Alto, expandiam-se as
rotas do comércio para o sertão.122
120 Idem, 1856.
121 JOBBIT, Rafaela. Medical Practitioners anda The Colonial Project: medicine, public hygiene, anda the
contested recolonization of São Tomé and Príncipe, 1850-1926. York University, Toronto, 2016. p. 126.
122 FERREIRA, Roquinaldo Amaral. Dos Sertões ao Atlântico: tráfico ilegal de escravos e comércio lícito em
Angola, 1830-1860. Dissertação de Mestrado, UFRJ, 1996. p.71.
152
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Essa confluência de identidades políticas, étnicas e culturais formularam uma dinâmica
de confrontação mútua, muito embora as fontes escritas e produzidas pelo colonialismo
tendam a registrar as atuações portuguesas ou ações diretas e indiretas do resultado da interação
com os africanos. As ações de africanos que mesmo em grupos privilegiados onde transitavam e
dominavam os códigos culturais europeus, podem revelar posturas ambivalentes frente ao
projeto colonizador, revelando assim as suas fragilidades. A chave das ações sanitárias no século
XIX nas províncias de Angola e São Tomé e Príncipe é um caminho fértil para entender
mudanças inter-relacionadas que impactaram as estruturas econômicas e sociais de africanos e
europeus.
Referências
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Conhecimento Antropológico e Colonialismo em Angola (1926-1961)
Jéssica Evelyn Pereira dos Santos123
Resumo:
De modo a contribuir com a compreensão dos contextos e implicações da produção de
conhecimento antropológico para as experiências coloniais africanas, iremos discutir, neste
trabalho, as condições de produção das publicações de caráter antropológico em Angola ao
longo da vigência do Indigenato, de 1926 a 1961. Ao mapearmos as narrativas sobre as
populações locais, buscaremos traçar as linhas gerais do cenário que permitiu a condução das
investigações de caráter antropológico e seus significados para a trajetória histórica das
sociedades locais.
Palavras-chave: Colonialismo, Angola, Conhecimento Antropológico.
1. Introdução
Conhecer, descrever, sistematizar e classificar foram elementos recorrentemente
instrumentalizados pela gramática do discurso colonial124. No âmbito dos colonialismos em
territórios africanos, essa tendência foi operacionalizada, majoritariamente, através do
empreendimento de missões científicas, de recolhas etnográficas e museológicas, de censos
demográficos e da atividade cartográfica125. Essas atividades produziram determinadas narrativas
e discursos sobre os sujeitos em situação colonial e ocuparam um lugar na construção do
repertório de conhecimento colonialista126.
A atividade etnográfica e as investigações no campo da antropologia física foram parte
da construção desse universo discursivo sobre os sujeitos africanos, principalmente na primeira
123
Doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
Fluminense.
124 PEREIRA, R. M. Conhecer para dominar: o desenvolvimento do conhecimento antropológico na política
colonial portuguesa em Moçambique, 1926-1959. Dissertação Doutoramento em Antropologia—Lisboa:
Universidade Nova de Lisboa, 2005; PORTO, Nuno Manuel de Azevedo Andrade. Modos de objectificação da
dominação colonial: o caso do Museu do Dundo, 1940-1970. Tese de Doutorado em Ciências da Vida. Coimbra:
Universidade de Coimbra, 2002.
125 ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
126 MUDIMBE, V. Y. The Invention of Africa: Gnosis Philosophy, and the Order of Knowledge. Bloomington
and Indianapolis: Indiana University Press, 1988; SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2011.
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metade do século XX. Como Talal Asad (1991, pp. 315-6) pondera, esse conjunto de sentidos
não deve ser resumido à instrumentalidade direta da antropologia a serviço dos governos
imperialistas. Embora a colaboração entre antropólogos e agentes do colonialismo tenha
ocorrido127, as implicações dessa relação não se limitam aos casos explícitos de cumplicidade.
Asad sugere que “o processo do poder global europeu foi central para a tarefa antropológica de
registrar e analisar os modos de vida das populações estudadas” (1991, p. 316). Nesse sentido,
compreender como esse léxico foi construído, e, portanto, o que dizia sobre a cultura e a
organização social das populações locais, pode oferecer uma contribuição importante para a
localização desse corpo de informações, descrições e análises no contexto da experiência
histórica do período colonial.
O questionamento acerca do lugar da antropologia na produção dos discursos sobre o
“outro”128 começou a se fortalecer na década de 1960, seguindo a tendência da crítica
epistemológica que floresceu por dentro das disciplinas das ciências humanas129, diante das
implicações dos debates intelectuais e políticos que emergiram no cenário de fortalecimento da
crítica anticolonial e das lutas de libertação130. Das suas raízes no pensamento anticolonial131,
passando pela a análise do discurso colonial132 e pelas abordagens pós-coloniais133, a crítica à
127 Ver, por exemplo, LECLERC, Gerard. Anthropologie et Colonialisme. Paris: Fayard, 1972; GOUGH,
Kathleen. Anthropology and imperialism. Radical Education Project, 1967; AFIGBO, Adiele E. Anthropology
and Colonial administration in South-Eastern Nigeria, 1891-1939. Journal of the Historical Society of Nigeria, v. 8,
n. 1, p. 19-35, 1975.
128 SAID, Edward. Op. Cit.
129 JOSEPH, George Gheverghese; REDDY, Vasu; SEARLE-CHATTERJEE, Mary. Eurocentrism in the social
sciences. Race & Class, v. 31, n. 4, pp. 1-26, 1990; WALLERSTEIN, Immanuel. Eurocentrism and its avatars:
The dilemmas of social science. Sociological bulletin, v. 46, n. 1, p. 21-39, 1997. ASAD, Talal. Anthropology and
the colonial encounter. London: Ithaca Press, 2011; CLIFFORD, James; MARCUS, George. Writing Culture:
The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California Press, 1986; STEINMETZ, George. A
child of the empire: British sociology and colonialism, 1940s–1960s. Journal of the History of the Behavioral
Sciences, v. 49, n. 4, pp. 353-378, 2013.
130
GOPAL, Priyamvada. Insurgent empire: Anticolonial resistance and British dissent. London: Verso
Books, 2019.
131
PARRY, Benita. Postcolonial studies: A materialist critique. Routledge, 2004. p. 32; Alguns trabalhos que
trazem linhas gerais do pensamento anticolonial: FANON, Frantz. Racisme et culture. Présence Africaine, (8/10),
nouvelle série, 122-131, 1956. FANON, Frantz. Os condenados da Terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968; MEMMI, Albert. Retrato do colonizado. Precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007; CÉSAIRE, Aimé. Culture et colonisation. Présence Africaine, (8/10), nouvelle série, 190-205,
1956.
132 SAID, Edward. Orientalismo; Para uma discussão conceitual sobre a análise do discurso colonial, ver: Homi
Bhabha, The other question - the stereotype and colonial discourse, Screen, 24, 6, 1983; YOUNG, Robert JC.
White mythologies: Writing History and the West. London: Routledge, 2004.
133 SPIVAK, Gayatri Chakravorty; HARASYM, Sarah.The post-colonial critic: Interviews, strategies, dialogues.
London: Routledge, 2014; SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Outside in the teaching machine. Routledge, 2012;
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noção de uma alteridade instrumentalizada pelo repertório de poder e conhecimento
colonialista134 forneceu as bases para um redirecionamento no campo dos estudos coloniais, em
oposição à lógica do eurocentrismo. Esse “descentramento”135 tornou possível a projeção de
contribuições que se voltaram à investigação de como a subalternidade dos sujeitos nativos é
construída nos discursos coloniais136.
Neste trabalho, discutiremos o quadro geral de produção das pesquisas etnográficas em
Angola na primeira metade do século XX, principalmente após a década de 1920 e da
consolidação da figura jurídica do indígena através do Estatuto de 1926 137. Ao identificar os
trabalhos que dialogavam com o campo etnológico sobre as populações locais de Angola, nos
indagaremos acerca das afiliações sociais e institucionais dos sujeitos que conduziam e
participavam dessas investigações. Ao identificarmos quais povos, culturas e geografias foram
“etnografadas” no período, refletiremos acerca do contexto que permitiu a emergência de
narrativas antropológicas sobre os povos de Angola em contexto colonial.
2. Antropologia e Colonialismo em Angola
As publicações de caráter antropológico sobre os povos que habitavam o território que
atualmente corresponde à Angola ganharam projeção no período colonial, especialmente a
partir dos anos 1920138. Esse quadro reflete uma tendência geral de destaque da disciplina
antropológica nos estudos africanos, ao menos até a Segunda Guerra Mundial139.
Embora Donato Gallo (1988, p. 28) avalie que o colonialismo português ignorou as
disciplinas etno-antropológicas até a metade da década de 1940, isso não significa que a
circulação de discursos de teor etnográfico e etnológico sobre as populações colonizadas do
império português não desempenhou um papel nas imagens projetadas sobre essas populações.
BHABHA, Homi K. The location of culture. London: Routledge, 2012; ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS,
Gareth; TIFFIN, Helen. The empire writes back: Theory and practice in post-colonial literatures. London:
Routledge, 2003.
134 MUDIMBE, V. Y. Op. Cit.
135 SLENES, Robert W. A importância da África para as Ciências Humanas. História Social, n. 19, p. 19-32,
2010.
136 WILLIAMS, Patrick; CHRISMAN, Laura (Ed.). Colonial discourse and post-colonial theory: A reader.
Columbia University Press, 1994. p. 16.
137 “Indígena” se refere à denominação jurídica para os sujeitos locais estabelecida a partir do Estatuto do
Indigenato nas colônias portuguesas, vigente de 1926 a 1961. Lei n.º 12533 de 23 de outubro de 1926.
138 Dados extraídos de: DE AREIA, ML Rodrigues et al. Angola. Bibliografia Antropológica. 3º edição.
Imprensa da Universidade de Coimbra/Coimbra University Press, 2019. e da base bibliográfica do acervo
“Memórias de África”. Disponível em <http://memoria-africa.ua.pt/>.
139 Southall, A. (1983). The Contribution of Anthropology to African Studies. African Studies Review, 26(3/4),
63. DOI:10.2307/524162 p. 64.
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Uma abordagem que olhe para essas produções apenas a partir dos limites disciplinares pode,
como Peter Pels (1999, p. 1) argumenta, negligenciar uma compreensão mais aprofundada das
práticas etnográficas e das relações sociais construídas nos espaços coloniais. Para o autor,
ampliar o escopo da investigação, para incluir a contribuições de caráter antropológicos de
sujeitos não necessariamente vinculados a posições profissionais, é um caminho que permite
melhor avaliar o contexto histórico e os significados dessas produções. Uma posição
semelhante é desenvolvida por Lyn Schumaker (2001) em Africanizing Anthropology, quando
a autora se volta a análise do papel das práticas de colonização, missões cristãs e da
administração colonial na construção do conhecimento antropológico sobre as populações do
Norte da Rodésia140.
Rui Pereira (2005), ao abordar as relações entre a antropologia e o colonialismo
português para o contexto moçambicano, adota a perspectiva de Peter Pels (1999), a partir da
conceitualização de uma chave de leitura que permite explorar as práticas e construções
discursivas sobre os povos colonizados: a “atenção antropológica”. De acordo com o autor, a
“atenção antropológica” se desenvolve a partir do interesse nas práticas culturais das populações
locais, de maneira imanente aos processos sociais e culturais, o que “implica, portanto e ainda,
que se levem em consideração não apenas as práticas e conceitos que, até agora, temos
considerado como ‘científicos’, mas, igualmente, as atitudes, comportamentos e concepções
que emanam de múltiplos agentes das diversas instâncias do social” (PEREIRA, 2005, p. 17).
Os caminhos apontados por Peter Pels (1999), Schumaker (2001) e Rui Pereira (2005)
oferecem uma direção interessante para lidarmos com a natureza multifacetada desse campo de
conhecimento. Na Angola da primeira metade do século XX, esse domínio era explorado por
antropólogos profissionais, mas também por missionários, viajantes e administradores coloniais
e implicava determinadas relações sociais e processos de mediação com as sociedades locais.
Partindo dessas considerações, é importante localizarmos os sujeitos e instituições que
compõem esse cenário de elaboração dos saberes de caráter antropológico. Dessa maneira,
poderemos mapear os interesses e entender melhor como esse conhecimento é construído e
impacta os povos locais.
Para entendermos melhor o cenário de formulação das práticas e estratégias discursivas
que se apoiavam na “atenção antropológica”, caracterizaremos o quadro da produção
140 SCHUMAKER, L. Africanizing Anthropology: Fieldwork, Networks, and the Making of Cultural Knowledge
in Central Africa. Durham: Duke University Press, 2001.
157
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antropológica na Angola colonial a partir de três abordagens principais: a antropologia
portuguesa vinculada à administração colonial, a missionária e a institucional. É importante
considerar que esses limites não são totalmente definidos e há interseções entre os sujeitos,
instituições e interesses implicados nessas vertentes. No entanto, essa categorização oferece um
ponto de partida para entendermos melhor como as redes se formam, se relacionam e
mobilizam agências e sujeitos em terreno colonial.
2.1 A Antropologia Portuguesa e a Administração Colonial
Ao final do século XIX e nos primeiros anos do XX, alguns personagens ligados à
administração colonial portuguesa publicaram trabalhos sobre as culturas dos povos de Angola,
como Fonseca Cardoso, com o Em Terras do Moxico: Apontamentos de etnografia angolense
(1919) e Henrique Dias de Carvalho, com o Etnographia e história tradicional dos povos da
Lunda: Expedição Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888 (1890)141. Esses trabalhos
compartilhavam uma tendência de adoção do vocabulário de “usos e costumes”, o qual, de
acordo com Ricardo Roque, “era assim visto por vários teóricos e praticantes da colonização
europeia como um caminho necessário para assegurar aos Europeus uma governação eficaz e
eficiente das populações nativas, bem como o controlo das formas locais de organização
política” (ROQUE, 2011, p. 5).
Foi apenas a partir da segunda década do novecentos que uma “atenção antropológica”
um pouco mais sistematizada pôde ser observada por parte do governo português. Em 1919, o
curso de formação de administradores coloniais da Escola Superior Colonial142 passou a
incorporar a cadeira de Etnografia e Etnologia Colonial143. Com a reforma do estatuto da
instituição em 1926, através do decreto n° 12.539, o programa da disciplina foi ampliado, e
incorporou conteúdos de raciologia, estudos da religião e usos e costumes nativos 144. Até a
141 CARDOSO, Fonseca. Em terras do Moxico (Apontamentos de etnografia angolense). Trabalhos da
Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia, vol. I, fase. 1, 35 pp, 1919. (publicação póstuma);
CARVALHO, Henrique Augusto Dias de. Ethnographia e história tradicional dos povos da Lunda: Expedição
Portuguesa ao Muatiânvua 1884-1888. Imprensa nacional, 1890.
142 A Escola Colonial foi criada em 1906, com o apoio da Sociedade de Geografia de Lisboa.
<http://tecop.addition.pt/np4/escola-colonial.html>.
143 ABRANTES, Carla Susana Alem. “Problemas” e “soluções” para a gestão de Angola: um estudo a partir do
ensino superior de administração colonial, 1950-1960. Tese de doutorado, Rio de Janeiro, Museu
Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. p. 84; SOUSA, Lúcio. A etnografia em concurso
administrativo: a “monografia etnográfica” em Timor Português em 1948. Anuário Antropológico, n. II, p. 57-82,
2017. p. 61.
144
SOUSA, Lúcio. Op. Cit. pp. 62, 63.
158
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década de 1950, a Escola do Porto145, que se voltava para a Antropobiologia (ou Antropologia
Física), mantinha uma aproximação com as instituições oficiais portuguesas. As missões
científicas enviadas às colônias nos anos 1930 e 1940, promovidas pela Junta de Investigações
do Ultramar146, foram conduzidas por vários membros da Escola do Porto.
Em Angola, pesquisadores ligados à Escola do Porto desenvolveram trabalhos que
visavam construir, majoritariamente, uma caracterização dos elementos físicos dos sujeitos
coloniais. Alexandre Sarmento desenvolveu pesquisas de seroantropologia e hematologia entre
populações do centro e sul de Angola147, que foram publicadas em periódicos tanto acadêmicos,
como os Trabalhos da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e os Anais do
Instituto de Medicina Tropical, quanto oficiais, como o Mensário Administrativo e o Boletim
Geral das Colónias. António de Almeida, que liderou as campanhas da Missão Antropológica
de Angola de 1948 e 1950, realizou investigações entre 1934 e 1955 no território angolano,
principalmente nas regiões norte e sul. Abordando temas que tratam desde a descrição das
“raças indígenas”, medição de índices corporais, até a caracterização das mutilações étnicas,
Almeida publicou, assim como Sarmento, em veículos tanto acadêmicos quanto vinculados à
administração colonial148. Outros pesquisadores trouxeram temáticas como a miologia (estudo
da composição muscular), por Luis de Pina, a psicologia, por Alfredo Athayde, e o estudo dos
145 PEREIRA, Rui M. Raça, sangue e robustez. Os paradigmas da antropologia física colonial portuguesa.
Cadernos de Estudos Africanos, n. 7/8, pp. 209-241, 2005. p. 211; MATOS, Patrícia Ferraz de. Mendes Correia e
a Escola de Antropologia do Porto: contribuição para o estudo das relações entre antropologia, nacionalismo e
colonialismo:(de finais do século XIX aos finais da década de 50 do século XX). Tese de doutoramento, Ciências
Sociais (Antropologia Social e Cultural), Universidade de Lisboa, Instituto de Ciências Sociais, 2012.
146 De acordo com Claudia Castelo, “A Junta de Investigações do Ultramar, enquanto organismo central da
política científica do Estado português para as colônias, foi um dos instrumentos usados pelo regime para,
na era das descolonizações, fazer durar o império” In: CASTELO, Cláudia. Investigação científica e política
colonial portuguesa: evolução e articulações, 1936-1974. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 19, p. 391-408,
2012. p. 403.
147 SARMENTO, Alexandre. Contribuição para o estudo da hematologia do indígena angolano Coloquio de
Hematologia Africana, 1951; Contribuição para o estudo da seroantropologia dos Huambos, Medicamenta, 1959;
Contribuição para o estudo das mutilações étnicas dos indígenas de Angola - Huambos e Sambos, Trabalhos de
Antropologia e Etnografia e Etnologia, 1951. Os Huambos subsídios para o estudo da sua antropologia física
biológica e cultural, Anais do Instituto de Medicina Tropical, 1956. Sobre alguns caracteres antropométricos da
população Quimbunda do Bié, Arquivos de Anatomia e Antropologia, 1943.
148 ALMEIDA, Antonio. As investigações antropológicas e etnográficas em Angola. Anuário da Escola Superior
colonial, 1943; Sobre o índice esquelético dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino subsidio para
o estudo antropológico da população dos Dembos Angola, Congresso Luso Espanhol, 1942; Sobre o índice nasal
dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino dos Dembos Angola, Africa Medica, 1936; Sobre os
índices ponderais de Rorher e de Livi dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino dos Dembos
Angola, Congresso Nacional de Ciências Naturais, 1942; Subsidios para o estudo antropológico da população dos
Dembos Angola - Sobre a frequência do pulso dos Mahungos e dos Luangos adultos do sexo masculino, Boletim
Geral das Colônias, 1943.
159
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
cânones antropométricos, por Maria Galhano e Maria Emília de Castro. Mendes Correia, um
dos expoentes da Escola do Porto, também contribuiu para o quadro, seja com pesquisas
originais, como no caso de Notas antropológicas sobre os Luangos da região dos Dembos ou
com escritos de revisão ou avaliação da literatura já publicada, como é o caso de suas notas
sobre o trabalho de Fonseca Cardoso149. Esses trabalhos carregavam uma expressiva tendência à
investigação das características físicas, biológicas e anatômicas dos sujeitos coloniais, a partir de
um repertório que visava compreender os “tipos” humanos a partir de uma perspectiva
comparada, que dialogava com a noção de Antropologia Aplicada defendida por Mendes
Correia150.
No campo da antropologia, a perspectiva antropobiológica dominou o cenário de
investigações portuguesas nos territórios coloniais portugueses. Apenas a partir da reforma do
ensino colonial de 1946151, abordagens da antropologia cultural passaram a ter espaço na
formação dos administradores coloniais. Na segunda metade da década de 1950, a “atenção
antropológica” passou a incorporar trabalhos voltados à etnologia, como pode ser observado,
por exemplo, no caso de Moçambique, na obra de Jorge Dias152, e de Angola, de Manuel Viegas
Guerreiro e Mesquitela Lima153. Rui Pereira sugere que “essa notável inflexão no campo dos
interesses antropológicos coloniais deverá ter reflectido, necessariamente, idêntica inflexão nos
propósitos da política colonial portuguesa” (2005, p. 177). No entanto, esse direcionamento
não assumiu um caráter sistematizado para a administração colonial, refletindo o que Rui
149 CORREIA, Antonio Augusto Esteves Mendes. Estudos sobre antropologia física do Ultramar Português,
Memórias da Junta de Investigações do Ultramar, 1959; Notas antropológicas sobre os Luangos da região dos
Dembos, O Instituto, 1922; CORREIA, Antonio Augusto Esteves Mendes. 'Antropologia Angolense. Quiocos,
Luimbes, Luenas e Lutchazes. Notas antropológicas sobre observações de Fonseca Cardoso', Arquivo de
Anatomia e Antropologia, 2, 1916; Antropologia Angolense II. Bi-N'bundo, Andulos e Ambuelas-Mambundas.
Notas antropológicas sobre observações de Fonseca Cardoso, Arquivo de Anatomia e Antropologia, 4, 1918.
150 CORREIA, Antonio Augusto Mendes. Antropologia aplicada. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, v. 3,
1926.
151 Para uma discussão sobre reforma de 1946 no ensino colonial, ver ABRANTES, Carla Susana Alem. Op.
Cit. p. 98.
152 Jorge Dias (1907-1973) foi um antropólogo português, que desenvolveu pesquisas etnológicas em Portugal e
Moçambique. Foi docente do Instituto Superior de Estudos Ultramarinos – antiga Escola Superior Colonial e
atual
ISCSP.
Para
uma
biografia
resumida
do
autor,
consultar:
<https://dichp.bnportugal.gov.pt/imagens/dias_jorge.pdf>
153 LIMA, Mesquitela. Alguns aspectos da cultura Quioca, Mensário Administrativo, 1962; A Etnografia e
Etnologia angolana considerações acerca da sua problemática actual, Museu de Angola, 1964; GUERREIRO,
Manuel Viegas. Boers de Angola, Garcia de Orta, 1958; Os Quiocos, Revista de Ensino, 1950; Ovakwankala
Bochimanes e Ovakwannyama Bantos, Garcia de Orta, 1960; Relatório da Campanha de 1957 Moçambique e
Angola, Junta de Investigações do Ultramar, 1958.
160
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Pereira considera como “a inércia resultante de uma acrisolada ideologia colonialista” (2005, p.
178).
Mais do que uma transição do interesse antropológico português, esse panorama reflete
um momento de tensão e conflito por dentro do discurso colonial português sobre os
significados do que consistiria a necessidade de “conhecer” o “indígena” dos territórios
ultramarinos. O discurso português sobre as dimensões antropológicas dos sujeitos colonizados
assumiu diferentes ênfases e referências, presentes nas perspectivas antropobiológicas,
culturalistas ou voltadas à política indígena154.
2.2 A Etnografia Missionária
Boa parte da produção etnográfica sobre territórios coloniais africanos na primeira parte
do século XX se desenvolveu a partir de contextos missionários. As contribuições de sujeitos
provenientes da missionação ao campo etnográfico compõem um repertório heterogêneo, que
compreende desde a compilação de comentários às “sociedades indígenas” até o
desenvolvimento de completas monografias etnográficas voltadas ao estudo das culturas locais.
A circulação do material produzido no âmbito das atividades missionárias ganhou força
no último quartel do século XIX. Patrick Harries (2005, pp. 239, 240) explica essa projeção a
partir do crescimento de boletins, periódicos e revistas que circulavam nas metrópoles,
apresentando informações sobre os costumes e modos de vida dos sujeitos os quais, segundo os
missionários, necessitavam de evangelização155.
O estabelecimento de missões cristãs em vários pontos do território angolano a partir da
segunda metade do século XIX possibilitou um espaço de contato com sujeitos locais, o que
propiciou a condução de trabalhos etnográficos tanto por parte de personagens envolvidos com
a missionação como também por etnólogos profissionais. O interesse antropológico que
emergia do contexto missionário mantinha uma aproximação, em vários níveis, com a
inclinação classificatória, tanto do ponto de vista étnico quanto linguístico156.
154
ABRANTES, Carla Susana Alem. Op.Cit. p. 100.
155 BARRINGER, T. Why Are Missionary Periodicals (not) so Boring?, African Research and Documentation,
LXXXIV (2000), pp. 33–46.
156 DULLEY, I. Deus é feiticeiro: prática e disputa nas missões católicas em Angola colonial. São Paulo:
Annablume, 2010. p. 39; RANGER, Terence. Missionaries, migrants, and the Manyika: The invention of ethnicity
in Zimbabwe. African Studies Seminar series. Paper presented 2 April, 1984.
161
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
As missões católicas, promovidas pela Congregação do Espírito Santo157, apresentavam
uma leitura dos “indígenas” que tinham vários pontos em comum com as perspectivas adotadas
pela administração colonial. De acordo com Iracema Dulley (2010, p. 39), as duas instituições
se baseavam em uma noção de alteridade que deveria ser adequada a seus projetos
universalizantes de cristianização e civilização. Ainda segundo a autora, a concepção dessa
alteridade partia de um repertório ligado ao racialismo e aos ideais civilizatórios. A prática
etnográfica se mostrou como um dos caminhos empenhados por sujeitos missionários para
conceber essa alteridade.
O padre Carlos Estermann foi um dos personagens da Congregação Espiritana que se
destacou no campo etnográfico. Para ele, a etnografia era um elemento subsidiário da atividade
missionária, embora tenha tido significados variados para as ações do apostolado:
À semelhança da linguística, a etnografia é uma ciência subsidiária do
apostolado, que nenhum missionário digno dêste nome pode ignorar.
Mas, como noutros ramos da ciência, há que distinguir entre missionários
que adquirem conhecimentos etnográficos apenas para uso próprio e
outros que comunicam os resultados dos seus estudos ao grande público.
Infelizmente os representantes desta segunda classe são menos numerosos
do que os da primeira. Ainda assim, podemos afirmar que, se muitos se
não dão ao trabalho de publicar o fruto de longas e pacientes observações,
se não mostram avarentos quando se tratam de fornecer dados a
publicistas coloniais. Assim, grande parte dos capítulos que se referem às
populações indígenas nos livros de João de Almeida, Ferreira Diniz e
outros, deve-se à colaboração informadora de missionários. Há no entanto
bastante material etnográfico publicado por missionários, que se encontra
disperso por várias revistas, como: Portugal em África, Missões de Angola
e Congo, Les Missiones Catoliques, Annales Apostoliques, etc.
(ESTERMANN, 1941, pp. 13, 14).
Ao longo de sua atuação enquanto missionário, Estermann dedicou-se ao estudo e
análise das sociedades do sul e sudoeste do território angolano. Resultado dessas investigações,
157 A Congregação do Espírito Santo é uma congregação católica de origem francesa que atuou na missionação
em Angola a partir das décadas finais do XIX.
162
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
publicou três volumes do Etnografia do Sudoeste de Angola entre os anos de 1956 e 1961.
Nesses trabalhos, o missionário158 aborda temas como costumes, rituais, crenças e parentesco,
além de se voltar aos modos de nomeação dos clãs, tribos e etnias159.
Os padres espiritanos Alphonse Lang e Constant Tastevin publicaram uma monografia
etnográfica sobre os Va-nyaneka em 1937160, que tratava de temas relacionados à vida social,
intelectual, artística e industrial dos povos residentes no planalto da Huíla, além de dedicar uma
seção ao que os autores consideravam como “religião e magia”. A recolha de informações que
deu origem ao trabalho foi iniciada pelo também padre espiritano Eugênio Dekindt e
completada em 1920 pelos autores da publicação161. No norte de Angola, os sacerdotes Manuel
Vaz e Joaquim Martins publicaram textos sobre os significados do casamento e do simbolismo
para as populações do enclave de Cabinda162. O padre José Francisco Valente, que atuou
principalmente no planalto central, apesar de concentrar maiores esforços na construção de
gramáticas e na recolha de provérbios e contos em umbundu, também trouxe contribuições no
campo dos estudos sobre o casamento nativo163.
As missões protestantes promoveram e mediaram um número significativo de
investigações de caráter antropológico nos territórios angolanos. Carlos Serrano atribui o maior
investimento desses missionários no campo antropológico ao fato de a formação desses sujeitos
majoritariamente consistir de cursos superiores de Teologia, os quais geralmente incluíam
cadeiras de Antropologia em sua base curricular (1992, p. 34). O planalto central, em Angola,
158 Sobre os trabalhos de Estermann, consultar: OLIVEIRA, J. P. Etnografias Missionárias no Sul de Angola:
Danças Rituais e Celebração do boi sagrado na escrita do Padre Carlos Estermann. Revista Canoa do Tempo, v.
10, n. 2, p. 8–21, 26 jan. 2019; BAHU, Helder Pedro Alicerces. O sudoeste angolano e suas valências: uma análise
crítica da produção teórica colonial. Com a Palavra, o Professor, v. 5, n. 13, p. 134-144, 2020.
159 ESTERMANN, Carlos. Etnografia do sudoeste de Angola. Lisboa: Junta de investigações do Ultramar, 1956;
EDWARDS, A. C. Etnografia do Sudoeste de Angola. Vol. II. Grupo étnico Nhaneca–Humbe. By Carlos
Estermann. Lisboa: Ministério do Ultramar (Mem. Sér. Antrop. e Etnol. 5), 1957; Etnografia do Sudoeste de
Angola. Vol. III. O Grupo étnico Herero. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar (Memórias, 30), 1961.
160
LANG, A; TASTEVIN C. Ethnographie. La Tribu des Va-nyaneka. Mission Rohan-Chabot, V. Corbeil,
1937.
161 ESTERMANN, CARLOS. Contribuição dos missionários do Espírito Santo para a exploração científica do
sul de Angola. Boletim Geral das Colónias, v. XVII, n. 196, 1941. p. 14.
162 VAZ, Manuel. Filosofia popular casamento indígena no enclave de Cabinda. Portugal em Africa, 1955;
MARTINS, Joaquim. O simbolismo entre os pretos do distrito de Cabinda. Luanda: Instituto de Angola, 1961
(Luanda: Gráfica Portugal, Lda, 1961. - nº 15: il. - Separata de: Boletim do Instituto de Angola, nº 15, JaneiroDezembro 1961.
163 VALENTE, José Francisco. Seleção de provérbios e adivinhas em umbundu. Lisboa: Junta de Investigações
do Ultramar, 1964; Gramática Umbundu – a língua do Centro de Angola. Lisboa: Junta de Investigações do
Ultramar, 1964; A problemática do casamento tribal. Lisboa: Instituto de Investigação Científica Tropical e
Congregação do Espírito Santo, 1985.
163
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
concentrou parte significativa do interesse antropológico desenvolvido na primeira metade do
século XX por sujeitos ligados a missões protestantes, sobretudo as congregacionalistas164. Um
caso de destaque é a trajetória do congregacionalista Gladwyn Murray Childs, autor de
Umbundu Kinship and Character, monografia etnográfica voltada ao estudo sistemático da
cultura umbundu, dos padrões de comportamento dos sujeitos locais e de sua psicologia
social165. O trabalho foi publicado pelo International African Institute166 em 1949 e ganhou certo
alcance no debate acadêmico167. Childs ocupava uma dupla função: era missionário e
antropólogo de formação168. Essa condição sinaliza uma delimitação ainda fluida, àquela altura,
da antropologia e missiologia enquanto campos de conhecimento.
As afiliações da prática etnográfica com a atividade missionária cristã não devem ser
negligenciadas na análise das obras. Essas conexões imprimem significados que devem ser
considerados como componentes do universo de sentido dos agentes que os produzem, os
quais compartilham, em vários níveis, noções de “cultura” e “civilização” que dialogam com
referências do repertório de conhecimento colonial. Para Mudimbe, descortinar essas relações
entre as etnografias sobre os povos africanos e as políticas de conversão é um dos caminhos
para compreender como os discursos sobre “os outros” são construídos (1988, p. 64). A partir
dessa direção, podemos melhor localizar, para o contexto angolano, como a alteridade é
construída e mobilizada em contexto colonial e suas implicações para as trajetórias e
percepções dos sujeitos africanos.
2.3 A Antropologia Institucional
164 Algumas etnografias produzidas no contexto das missões congregacionalistas: HASTINGS, Daniel Adolphus.
Ovimbundu customs. Unpublished Ph.D. thesis, Kennedy School of Missions, Hartford, Conn, 1933; CHILDS,
Gladwyn Murray. Umbundu Kinship And Character. Oxford: Oxford University Press, 1949.
165 CHILDS, Gladwyn Murray. Op. Cit.
166 O International African Institute é uma instituição que foi fundado no ano de 1926, voltado ao fomento e
difusão dos estudos africanos. A partir de 1928 o IAI passou a publicar um periódico trimestral, o Africa.
167 READ, Margaret. Umbundu Kinship and Character. By Gladwyn Murray Childs. London: Oxford University
Press for the International African Institute and the Witwatersrand University Press, 1949. pp. xi. 245, maps and
plates, 21s. Africa, v. 21, n. 2, p. 159-162, 1951; EVANS‐PRITCHARD, E. E. Umbundu Kinship and Character.
Gladwyn Murray Childs. AnthroSource, 1951.
168 Foi também fundador da missão do Dôndi, em 1914. SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO,
Michele de Barcelos. A Coleção Ovimbundu do Museu Nacional, Angola 1929-1935. Mana, Rio de Janeiro, v. 22,
n. 2, p. 493-518, Aug. 2016. p. 496; Gladwyn M. Childs Papers. Inventory. Special Collection. University of
Washington
Libraries.
Disponível
em:
<https://www.lib.washington.edu/static/public/specialcollections/findingaids/2208-001.pdf>
164
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
No campo institucional, podemos destacar o notável interesse de instituições
museológicas em empreender expedições ao território angolano, principalmente nas décadas
iniciais do XX. Essas expedições se voltaram não apenas ao trabalho de campo etnográfico,
mas também à recolha de objetos etnográficos.
Em 1913 e 1914, o Museu de Etnologia de Berlim promoveu uma expedição de
pesquisa e recolha etnográfica ao território do centro e sul de Angola. Liderada pelo etnólogo
alemão Alfred Schachtzabel, a viagem, interrompida pela eclosão da Primeira Guerra Mundial,
forneceu as bases para a escrita de Im Hochland von Angola (No planalto de Angola).
Publicado em 1923, o trabalho é um híbrido entre relato de viagem e monografia etnográfica
sobre os Nganguela e os Tchokwe169. Em 1930, o mesmo museu enviou os etnólogos Hermann
Baumann e Heinrich Meinhard ao território angolano, mais precisamente para o trabalho de
campo com os povos Tchokwe, Lunda, Lwena e Lwimbi do norte de Angola170. Anos depois, já
em 1954, Baumann retornou à Angola para desenvolver pesquisa etnográfica no sudoeste
angolano, financiado pela Deutsche Forschungs-gemeinschaft (Sociedade Alemã de
Investigação). Fragmentos dos resultados do trabalho de campo desenvolvido nos territórios
dos povos Humbi, Musho, Kuvale, Handa, Mwila (Nyaneka), Nkhumbi, Ngangela e
Kwankhala podem ser encontrados em várias publicações do autor, que incluem Les peuples et
les civilisations de l'Afrique (Os povos e as civilizações da África), publicado em co-autoria com
Diedrich Westermann em 1948 e Lunda: bei Bauern und Jägern in Inner-Angola (Lunda:
entre fazendeiros e caçadores no interior de Angola), publicado em 1935.
Em 1929, o museu de História Natural de Chicago, o Field Museum, enviou uma
expedição que teve como objetivo a recolha de material etnográfico e fotográfico nos territórios
das atuais Angola e Nigéria. A viagem foi liderada pelo etnólogo Wilfrid Dyson Hambly e
financiada por Frederick Holbrook Rawson, presidente do National Bank de Chicago, à
época171. Os objetos recolhidos somaram mais de dois mil itens. Hambly e seus colaboradores
também produziram registros fílmicos e 550 fotografias172. Esse conjunto de itens compôs, ao
169 HEINTZE, Beatrix. Exploradores alemães: apropriações etnográficas entre comércio de escravos,
colonialismo e ciência. Frankfurt: Universitätsbibliothek Johann Christian Senckenberg, 2011. pp. 340, 343.
170 HEINTZE, Beatrix. Op. Cit.
171 NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Curators, collections, and contexts: anthropology at the Field Museum.
Fieldiana. Chicago: Field Museum, 2003. p. 159.
172 Os números são encontrados em NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Op. Cit. p. 154; Mariza de Soares
Carvalho (2016, p. 507) relata que a coleção referente à Angola no Field Museum tem aproximadamente 30 mil
165
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
menos até 1971, uma parte essencial da exposição da ala de Etnologia Africana do Field
Museum173. Além da catalogação e coleta de objetos da cultura material, Hambly desenvolveu
um trabalho de campo que forneceu as bases para os textos The Ovimbundu of Angola (1934)
e Anthropometry of the Ovimbundu (1938)174. A primeira publicação é um texto etnográfico,
que se concentra primariamente na análise cultural dos povos do planalto angolano. A segunda
é o resultado de um trabalho no domínio da antropologia física, baseado na medição corporal
de indivíduos locais para explicar a constituição racial e cultural dos ovimbundu, a partir de
uma perspectiva comparativa com outros agrupamentos sociais africanos.
A circulação dos resultados dessas pesquisas ocorria, além de publicações de
manuscritos e livros originais, em periódicos importantes para o campo dos estudos africanos,
como a Africa e a Anthropos. Ainda que os responsáveis por esses trabalhos estivessem
geralmente mais distantes do discurso colonialista do Estado do que seus contemporâneos
administradores e missionários, observamos que as produções ainda carregavam referências do
repertório imperialista nas categorizações, principalmente no que tange às concepções de raça,
cultura e civilização e na tendência à “recolha” de cultura material, que parecem ter dado a
tônica dessas investigações no território angolano na primeira metade do século XX.
3 Considerações Finais
Neste trabalho, apresentamos um esboço do quadro geral das produções de caráter
antropológico desenvolvidas no contexto colonial angolano ao longo da primeira metade do
século XX. O panorama traçado funciona como um ponto de partida para entendermos os
processos e experiências históricas que permitiram a emergência de narrativas antropológicas
sobre os povos de Angola. Essas narrativas expõem uma dimensão importante do arquivo
colonial, necessária para compreendermos como certas imagens dos povos locais são
projetadas enquanto outras são obliteradas.
4 Referências
objetos catalogados. In: SOARES, Mariza de Carvalho; AGOSTINHO, Michele de Barcelos. A coleção
ovimbundu do Museu Nacional, Angola 1929-1935. Mana, v. 22, p. 493-518, 2016.
173
NASH, Stephen; FEINMAN, Gary. Op. Cit. p. 157.
174 HAMBLY, Wilfrid D. The Ovimbundu of Angola. Anthropological Series Vol. XXI, No. 2. Chicago: Field
Museum of Natural History, 1934; HAMBLY, Wilfrid D. Anthropometry of the Ovimbundu. Anthropological
Series, Volume XXV, No 2. Chicago: Field Museum of Natural History, 1938.
166
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167
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O protagonismo dos senhores da guerra nas relações políticas e comerciais na
África Centro-Ocidental (segunda metade do século XVIII)175
Leonardo Oliveira Amaral176
Resumo: Não somente os portugueses, mas também alguns senhores da guerra africanos
tinham seus interesses calcados pelo comércio atlântico de escravos na segunda metade do
século XVIII. Analisando os documentos da administração portuguesa ao longo deste período,
consideramos as inclinações de Cassange – um sobado poderoso que teve sua ascensão no
século XVII177 – em dominar o comércio ao redor do Cuango, tornando-se assim, intermediário
entre chefes de áreas mais distantes do litoral e aqueles europeus que vinham negociar com o
poderoso jaga, e as ferramentas que usou para se manter nesta posição. Neste artigo
investigaremos também os métodos pelos quais a Coroa portuguesa e seus administradores
usaram para se impor frente às lideranças locais, fazendo um comparativo entre os
governadores, em especial aos reformistas ilustrados e aqueles considerados “conquistadores”,
pretendendo assim, evidenciar que muitas vezes o discurso ilustrado permanecia na
documentação, enquanto a prática se mostrava bem diferente.
Palavras-chave: Angola, chefias africanas, protagonismo.
Entre os descontentes com o tráfico de armas e pólvora em seus territórios, a lista não
se limitava às autoridades portuguesas; líderes africanos também se mostravam insatisfeitos com
a fiscalização portuguesa desses produtos, como é o caso do jaga de Cassange, Dom Paschoal
Rodrigues Machado, que por meio de cartas trocadas com o governador Barão de
Mossâmedes, rebate uma das exigências presentes em seu termo de vassalagem de 1789 que
visava a viabilização do comércio de armas entre os feirantes africanos e os comerciantes
vassalos da Coroa, pois o jaga se sentia ameaçado e via seu poder diminuir à medida que
autoridades menores que a dele passaram a ter acesso ao acervo bélico vindo da Europa, em
175 Fragmento de dissertação de mestrado intitulada Fluxo de armas, guerra e territorialização em Angola:
Ferramentas de chefes africanos e administradores lusitanos na segunda metade do XVIII defendida em 2021.
176 Mestrando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Alagoas. Email: leonardo.amaral.18@outlook.com
177 LOVEJOY, Paul E., A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2002, p. 128-129.
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especial no Songo, “que com a provisão de Pólvora, e Armas, se tem Rebelado ao mesmo”178.
Para o jaga, facilitar este comércio era promover os conflitos em suas terras e nas redondezas, o
que enfraqueceria diretamente o mesmo e os comerciantes portugueses que ali tratavam, “pelo
dano, que se segue de os proverem de armas, e pólvora, porque logrando esta força,
experimentaria rigorosa inquietação de Guerra contra os Povos das suas Terras”179.
Para que os acordos entre o jaga e a Coroa fossem estabelecidos, os interesses de ambos
deveriam ser levados em consideração, convergindo para que o pacto fosse conservado e
respeitado de forma duradoura pelos senhores africanos e pelos governadores e militares
portugueses180. Notamos que não só a Coroa impunha obrigações nos tratos de avassalamento,
mas que os chefes locais, até certo ponto, tinham voz de escolha ao exigir a retificação de certas
condições, as quais os administradores portugueses examinavam e decidiam se aceitariam ou
não diante dos embaixadores do chefe local.
Ana Maria Araújo181 sugere que as constantes quebras dos juramentos de vassalagem
demonstram o quanto sobas e jagas eram relevantes nas relações comerciais. Era indispensável
para a administração portuguesa cativar esses agentes e, enquanto favoráveis aos interesses
portugueses, os administradores da Coroa se referiam aos mesmos em suas correspondências
com cortesia182 e, para agradá-los, faziam mudanças administrativas dos funcionários que
trabalhavam nas feiras ou presídios ligados aos territórios dos chefes.
A pedido do jaga em 1790 o governador português troca o escrivão da feira de Cassange
– desgostado pelo jaga – por outro, “para todos ficarmos bem, e eu ter muitas ocasiões de darvos gosto”183. Comportamento que ainda se faz presente em 1792, quando em carta para novo
dirigente da feira, informa que parte das vontades do jaga devem ser atendidas: “para manter o
Cassange ligado ao nosso comércio pelos motivos ponderados, se faz indispensavelmente
178 Termo de fidelidade e vassalagem que jurou o Jaga de Cassange na presença do Embaixador Marcos Pereira
Bravo, de 19 de Dezembro de 1789. Códice 3259 A-2-12, AHNA, 1789.
179 Ibid.
180 CARVALHO, Flávia Maria, Sobas e homens do rei: Relações de poder e escravidão em Angola (séculos
XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015, p. 279 e 301.
181 ARAÚJO, Ana Maria Soares de. O avassalamento como feramenta de poder nas relações comerciais entre
cassanges e portugueses no século XVIII. Monografia – Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte,
Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018, p. 5.
182 “Estimo muito e muito a sua amizade e me comprazerá que seja firme pra se unir aos meus desejos, que se
empenham a conservação de um amigo que estimo.” VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta escrita pelo
Excelentíssimo Senhor Manoel ‘Almeida Vasconcellos para o Jaga de Cassange a 17 de Novembro de 1790.
Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1789.
183 VASCONCELLOS, Manuel d’Almeida. Carta para o dito de 9 de Dezembro de 1790. Códice 3259 A-2-12,
AHNA, 1789.
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necessário condescender com ele de alguma forma para o agradar e conservar por meio de
uma máxima política”184.
Alguns sobas, devido ao seu posicionamento territorial e poder militar, dispunham de
maior voz no momento da realização de acordos pois “para alcançar seus objetivos,
portugueses e seus aliados precisaram muitas vezes ceder aos interesses de determinadas
chefias para conseguir o apoio e a base”185, como vemos no caso de Cassange. Apesar disso,
muitas vezes a comunicação entre a administração portuguesa e chefes locais era carregada de
ameaças, expostas em duas cartas do então governador Manoel d’Almeida Vasconcellos ao jaga
de Cassange em 1792, após inúmeras tentativas do chefe local de mudar os preços dos escravos
de sua feira, visando seu maior ganho: “Então verás a diferença que fazem os protegidos e fiéis
vassalos de traidores, inimigos e ladrões” 186 e “Eu vos tratarei e aos vossos povos como os mais
indignos rebeldes, o que Deus não permita, porque sendo vós vassalo desejo a vossa
conservação e assistir-vos com tudo que possa concorrer para a vossa felicidade”187.
A preocupação do jaga de Cassange em proibir o tráfico de armas e pólvora no
território sob sua influência também pode ser atribuída ao fato de que o mesmo funcionava
como poder intermediário entre os povos mais ao interior e a administração portuguesa. Sua
localização estratégica permitia que Cassange recebesse levas de escravos de seu vizinho
interiorano, o Muatiânvua de Lunda, e as repassasse para os portugueses a partir das feiras.
Tanto o chefe Muatiânvua quanto a administração portuguesa tinham interesse em ter contato
direto entre si, mas isto era dificultado por Cassange, “empenhado em exercer o papel de
Estado tampão, entre o hinterland a leste do seu território”188 e portugueses a oeste.
Grupo da África Centro-Ocidental que também via na guerra e captura de escravizados
a maior fonte de sua economia graças ao mercado atlântico, os lundos, segundo Paul Lovejoy,
“participavam do comércio escravo porque podiam mobilizar a população do interior para a
escravização, a produção e o comércio” – onde escravizados pelo Muatiânvua e seus guerreiros,
184 Diretório que levou o dito Chagas de 22 de Agosto de 1792. Códice 3259 A-2-12. AHNA, 1792.
185 CARVALHO, F. M., op. cit., p. 299.
186 VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta para o Jaga de Cassange de 28 de Maio de 1792. Códice 3259
A-2-12. AHNA, 1792.
187 VASCONCELLOS, Manoel d’Almeida. Carta para o Jaga de Cassange de 22 de Agosto de 1792. Códice
3259 A-2-12. AHNA, 1792.
188 SANTOS, Maria Emília Madeira. Em busca dos sítios do poder na África Centro-Ocidental. Homens e
caminhos, exércitos e estradas (1483-1915). In: HEINTZE, B.; OPPEN, A. Angola on the move: transport routes,
communications and history. Lembeck: Frankfurt am Main, 2008, p. 30.
170
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eram posteriormente encaminhados às feiras imbangalas, entre elas a de Cassange189. Assim, se
o comércio de gêneros bélicos chegasse a seus vizinhos, Cassange se veria vulnerável a ataques
dos mesmos, interessados em sobrepor o Jaga e negociar diretamente com comerciantes
portugueses.
No mapa a seguir podemos ver com mais clareza a localização de Cassange e a Leste,
Lunda, responsável, segundo a documentação, por fornecer escravizados para outros
potentados africanos na África Centro-Ocidental. No mapa, observamos que Cassange ficava
exatamente entre Lunda e Luanda, causando assim a barreira comercial que os administradores
portugueses tanto falavam, fazendo com que Cassange se tornasse intermediário entre
Muatiânvua e a administração portuguesa do litoral:
FIGURA 1: África Centro-Ocidental
Fonte: BIRMINGHAM, op. cit., p.
Em sua viagem sob ordens do governador António Álvares da Cunha, o sargento-mor
Manuel Correia Leitão observa que o soberano de Cassange não queria permitir sua passagem
para as terras além do rio Cuango por “arrogância e ambição”, pois “não querem que os
189 LOVEJOY, op. cit., p. 201.
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portugueses tratem com os gentios de além do rio”190: “Ainda que se dê ao Cassange um
milhão, sendo tão ambicioso, não deixará nenhum português chegar àquele rio [Cuango]”191. É
importantíssima a análise deste documento pois comprova os interesses dos chefes locais não
só em negociar diretamente com europeus, mas em barrar que outros povos africanos
(potencialmente concorrentes) viessem a estabelecer comércio com os estrangeiros, não
permitindo que portugueses fossem além de seus territórios, controlando as transações dos
sertões:
Este grande Cassange impede todos que em caso nenhum tenham os
portugueses trato ou comércio com os poderosos e muitos potentados de
além do rio [Cuango]; pena de vida, e de geração vendida aos seus vassalos
que mostrarem tal caminho, e a razão da sua teima e ordem e, além de outras
particularidades, para que se não ponham os portugueses da outra banda do
rio e lhe tiremos o comércio dos escravos de que vivem, e os deixemos
avassalados e sujeitos a presídios e nos não façamos senhores dessas muitas
gentes que habitam tão dilatadas terras192.
Para entender melhor quem eram Cassange e Muatiânvua, devemos nos voltar para o
estabelecimento dos grupos imbangalas nos sertões angolanos. A despeito de não citar as
épocas a que se refere, em carta de 26 de julho de 1789 ao jaga de Cassange, o barão de
Mossâmedes enfoca para o líder africano a importância do apoio português no estabelecimento
e fortificação de seu território no passado, comparando-o a seus ancestrais no que tange ao
reconhecimento destes pela superioridade das forças e da tecnologia bélica portuguesas, que
segundo o governador, foram responsáveis pelo “sossego” nas terras dos Cassanges:
Aqueles [Jagas de Cassange anteriores] sim, que levaram o amor paternal para
com os seus filhos, até acharem o verdadeiro, e mais sólido tratamento do Seu
Estado que de todo o bem referido; que aborrecendo a vida, errante a que se
viram necessitadas para subsistirem os primeiros Jagas aquém jamais foi
possível ocuparem sossegadamente o menor canto desse Sertão, vendo-se a
190 LEITÃO, Manuel Correia. Viagem que eu, sargento-mor dos moradores do distrito do Dande, fiz às remotas
partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa,
Lisboa, 1938, p. 9.
191 Ibid, p. 23.
192 LEITÃO, op. cit., p. 14-15.
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cada passo expostos a perder o fruto das suas pilhagens, e cercados de
contínuo pelos inumeráveis vizinhos, aquém tenham agravado: os vossos
próximos Antepassados, conhecendo a força, e o justo Respeito, que tinham
neste Continente, como em todo o Mundo, conseguido as Armas de Sua
Majestade e Fidelíssima, não duvidaram, mas avisados, que vós, em procurar
o seguro abrigo das Suas Reais Bandeiras. À sombra das quais, não só
respiraram livremente à vista dos seus poderosos Inimigos, mas conseguiram
ressarcidos com glória, e introduzir entre eles o Respeito, o temor do nome
Cassange193.
Lovejoy nos traz mais detalhes sobre o período da formação dos estados imbangalas
que – não por mera coincidência – é o mesmo no qual a administração portuguesa usou tais
grupos como mercenários em suas guerras na primeira metade do século XVII, fortificando-os
política e militarmente face a seus vizinhos:
Em 1601, alguns imbangalas tinham entrado em contato com os portugueses,
formando alianças temporárias para capturar escravos em troca de produtos
importados. Na segunda década do século XVII, esses arranjos tornaram-se
permanentes, e os imbangalas na verdade foram transformados em
mercenários dos portugueses. Alguns imbangalas permaneceram no Congo
meridional e em outros lugares perto da costa; outros fundaram estados no
interior194.
Apesar de aqui problematizarmos o que Lovejoy apresenta como “arranjos
permanentes” entre os imbangalas e a Coroa portuguesa – pois observaremos ao longo deste
capítulo que até o fim do século XVIII muitos destes grupos imbangalas ainda não estavam sob
o comando português, sendo assim estados independentes –, vemos que tanto o
estabelecimento quanto a desintegração de sociedades e etnias africanas poderiam ocorrer pela
influência ou interferência da administração portuguesa de Luanda no que tange assuntos
internos das relações de poder entre uma sociedade africana e outra, direta ou indiretamente. A
fundação de Lunda não foge à esta regra:
193 VASCONCELLOS, José de Almeida. Carta para o Jaga de Cassange escrita a 26 de Julho de 1789. Códice
3259 A-2-12, AHNA, 1789.
194 LOVEJOY, op. cit., p. 128-129.
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Da última década do século XVII em diante, uma série de guerras irrompeu,
alimentando as rotas dos escravos para a costa. Essas guerras estavam
associadas à consolidação de vários estados, sendo os mais importantes Luba,
Lunda, Cazembe e Lózi. [...] Um desses se impôs na área que se tornou a
Lunda, centralizada entre Luba e Caçanje, estando dessa forma bem
localizada para tirar proveito do mercado escravo para a costa. O governante
desse Estado, o mwant yaav ou muantiânvua, fundou uma capital
(mussumba195), de onde os exércitos de Lunda atacavam, capturando escravos.
No devido tempo, o número de províncias e outros pequenos estados foram
estabelecidos sob o domínio de chefes guerreiros lundos, que canalizavam os
escravos para a mussumba196.
Segundo o sargento-mor, o chefe Muatiânvua fornecia escravos para Benguela,
Cassange, Olos, Congo e muitos outros potentados africanos que faziam comércio direto com
os portugueses. Manuel Correia se surpreendeu pelo fato de que até aos dembos Ambuela e
Mutemos (mais distantes de Lunda e próximos ao litoral) os escravizados capturados por
Muatiânvua costumavam alcançar, chegando à conclusão de que “a não serem eles, não
teríamos tantos escravos, porque eles, pela sua ambição e fama de vencer, feito águias
terrestres, correm terras tão remotas de sua pátria, só para se fazerem senhores das outras
gentes”197.
Era no comércio de povos aprisionados por meio dos conflitos que senhores da guerra
locais tinham acesso aos produtos manufaturados europeus. Enquanto isso, europeus tinham
interesse em escravos, metais preciosos, minérios e em algumas circunstâncias, alimentos198.
Para isso, introduziram produtos do interesse de africanos dos sertões, muitas vezes bélicos,
como nos mostra a carta do governador Manoel d’Almeida e Vasconcellos199 ao jaga de
195 Lovejoy afirma que mussumba seria o equivalente a capital para Lunda. De acordo com o dicionário
Kimbuntu-Português de A de Assis Junior, o significado da palavra seria o seguinte: “Músumba, sub (II) bot.
Árvore fam. Das leguminosas, de madeira muito resistente (brachistegia tamarindoides).| Planta têxtil e
ornamental.” ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário Kimbundu-Português. Linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Luanda: Argente, Santos e Cª L , p. 319.
196 ASSIS JÚNIOR, op. cit., p. 131.
197 LEITÃO, op. cit., p. 25.
198 FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de
Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 89.
199 1790-1797.
da
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Cassange, dizendo enviar armas de fogo ao mesmo por meio de seus embaixadores na tentativa
de fazer com que o senhor do sertão respeitasse as regras impostas pelos portugueses referentes
ao comércio e aos preços dos escravizados:
Faço explicar ao vosso embaixador depois de o ter ouvido e aceitado os
presentes que me mandais e que no conceito de seres bom vassalo e estares
pelo que vos digo, o recebi, e em recompensa mando-vos a vossa bandeira
um bonito par de pistolas, pólvora e bala para vos defenderdes dos vossos
inimigos, e várias miudezas para os amigo.
Ainda em sua viagem a Cassange, Manuel Correia Leitão conta do mérito das armas de
fogo fornecidas por portuguesas nos conflitos travados pelo jaga, confirmando a dinâmica do
comércio das armas de fogo e sua importância nas relações locais, garantindo superioridade
bélica para africanos que as possuíssem, acesso que ajudou a moldar as relações e políticas dos
reinos africanos200. Para Manuel Correia, os povos de Cassange eram bons atiradores, admitindo
a facilidade a qual africanos possuíam em instruir-se no uso das armas de fogo201.
Graças a essa habilidade e ao acesso às armas europeias, Cassange garantiu poder
militar superior frente seus vizinhos: “a não ser o calor do nosso nome, armas e pólvora, seria já
destruído da nação Malundo”202. Ainda na carta de 1789, o Barão de Mossâmedes elucida ao
Jaga que portugueses introduziram armas aos soldados de Cassange, incentivando seu emprego
nas batalhas com vizinhos: “quem vos mostrou o uso do fogo, para invadir os Inimigos ou para
afugentar? [...] A vantagem do fuzil sobre a de uma flecha [...] que só vós estejas de posse desta
vantagem, que vos resulta do nosso Comércio e da nossa amizade e da nossa Proteção”203. Além
de atribuir aos portugueses a introdução inicial das armas de fogo europeias aos antepassados
do então Jaga de Cassange, a afirmação do governador também evidencia a relevância em
Cassange ser o único, entre seus vizinhos, a ter acesso às armas portuguesas, o que lhe garantiria
superioridade bélica com outros senhores da guerra da região do Cuango.
Caso os portugueses monopolizassem o comércio de armas e pólvora, tornando-se os
únicos fornecedores para os chefes dos sertões, garantiriam que estes não se rebelassem, pois
200 FERREIRA, Roquinaldo. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil during the Era of
the Slave Trade. Cambridge University Press: New York, 2012, p. 44.
201 LEITÃO, op. cit., p. 18-19.
202 Ibid, p. 17.
203 VASCONCELLOS, op. cit., 26 de julho de 1789.
175
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assim perderiam o privilégio que o acesso das armas, munições e pólvora portuguesas conferia,
sendo enfraquecidos perante outros povos dos sertões. A própria ameaça de interrupção no
transporte de gêneros bélicos era capaz de coagir africanos a acatar desejos portugueses204. Mas a
administração portuguesa em Angola não foi capaz de coibir o mercado de outras nações
europeias no território, assim como não conseguiu estabelecer a exclusividade do comércio
entre os chefes africanos205.
A documentação nos permite mapear um pouco dos caminhos que produtos
introduzidos por outras nações europeias percorriam desde o litoral aos sertões mais distantes
da costa à procura de escravizados, causando prejuízos aos negociantes portugueses que por sua
vez não eram capazes de concorrer na qualidade ou preços ofertados:
Os negros dos portos do mar desta costa trabalham incansavelmente em se
entranharem pelo sertão com as fazendas estrangeiras a comprarem os
escravos por uns preços tão excessivos que com eles não podemos competir,
levando com abundancia os gêneros da maior estimação do gentio, que nos
não é permitido levar, pela notícia que temos, já os ditos pretos se acham nas
vizinhanças d’Ambaca com fazendas estrangeiras, e nas terras do Ginga,
donde tem um quilombo, do qual espalham as ditas fazendas para o mais
sertão com que compram os escravos e conduzem para a beira-mar, de onde
os levam os estrangeiros206.
Não apenas portugueses, mas chefes locais também lutavam pelo monopólio sobre o
acesso aos produtos europeus, tentando impedir muitas vezes que estes fossem introduzidos a
seus vizinhos. A exclusividade garantia poder político e bélico. Por causa de tentativas
portuguesas de estabelecer comercio direto com chefes do Holo na segunda metade do XVIII,
Matamba retaliou estes avanços comerciais atacando presídios e comerciantes vassalos da
Coroa que adentravam no território. Os senhores da guerra mais poderosos próximos ao
204 “Quando o ameacei, mostrou temor, especialmente quando lhe disse que, se se fiava nas armas, visse que as
havíamos de reduzir a paus, ficando todas sem préstimo, negando-lhes totalmente a pólvora.” LEITÃO, op. cit.,
p.19.
205 AMARAL, Leonardo Oliveira. O dilema das armas e da pólvora nos governos ilustrados em Angola (segunda
metade do século XVIII). ANPUH-Brasil – 30º Simpósio Nacional de História – Recife, 2019.
206 VASCONCELLOS, op. cit., 22 de agosto de 1792.
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Cuango buscavam manter suas posições privilegiadas de intermediários do fluxo de bens e de
escravizados nos sertões de Angola.
Numa tentativa de frear os avanços comerciais portugueses, Matamba ataca estes
negociantes. Por sua vez a administração de Luanda reage e em guerra contra o potentado
africano, captura grande número de escravizados e coage o líder a assinar acordo permitindo o
livre comércio aos seus vassalos e territórios, garantindo ao reino do Holo o comércio direto
com a costa. Ainda segundo Roquinaldo, “a escravização rotineira resultou não apenas na
propagação do comércio itinerante, mas também no controle rígido que os reinos Ambundos
de Casanje e Matamba exerciam sobre o comercio escravo interno no interior de Luanda”207.
A exploração portuguesa na África Centro-Ocidental não teria se efetivado sem o
interesse de uma elite local em lucrar a partir da venda e troca de escravizados. Apesar de se
estabelecer como uma troca desproporcional, os produtos vindos do além-mar garantiam aos
sobas e outros atores locais status e acumulação de poderes em seu nicho social. Ainda assim,
muitas vezes as trocas foram forçadas pela ocupação portuguesa, onde o soba avassalado se
encontrava obrigado a atender as especificações portuguesas em troca de um apoio bélico frágil
que, por sua vez, era sustentado pelo número elevado de tropas africanas que o
acompanhavam, estas, de outros sobados avassalados, explicando o porquê de que de tempos
em tempos sobas recentemente avassalados voltavam a revoltar-se contra a administração
portuguesa, “insultando-os” ao negar apoio militar ou assaltando comerciantes portugueses que
circulavam pelos sertões.
Referências
Fontes:
ASSIS JÚNIOR, A. de. Dicionário Kimbundu-Português. Linguístico, botânico, histórico e
corográfico. Luanda: Argente, Santos e Cª Lda.
Códice 3259 A-2-12. Arquivo Histórico Nacional de Angola.
LEITÃO, Manuel Correia. Viagem que eu, sargento-mor dos moradores do distrito do Dande,
fiz às remotas partes de Cassange e Olos, no ano de 1755 até o seguinte de 1756. Boletim da
Sociedade de Geografia de Lisboa, Lisboa, 1938.
Bibliografia:
207 Ibid, p. 16, tradução nossa.
177
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AMARAL, Leonardo Oliveira. O dilema das armas e da pólvora nos governos ilustrados em
Angola (segunda metade do século XVIII). ANPUH-Brasil – 30º Simpósio Nacional de
História – Recife, 2019.
ARAÚJO, Ana Maria Soares de. O avassalamento como ferramenta de poder nas relações
comerciais entre cassanges e portugueses no século XVIII. 2018. Monografia - Instituto de
Ciências Humanas, Comunicação e Arte, Universidade Federal de Alagoas, Maceió, 2018.
CARVALHO, Flávia Maria. Sobas e homens do rei: relações de poder e escravidão em Angola
(séculos XVII e XVIII). Maceió: Edufal, 2015.
FERREIRA, Roquinaldo. Cross-Cultural Exchange in the Atlantic World: Angola and Brazil
during the Era of the Slave Trade. Cambridge University Press: New York, 2012.
FLORENTINO, Manolo. Em costas negras: uma história do tráfico de escravos entre a África
e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). São Paulo: Editora Unesp, 2014.
LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
SANTOS, Maria Emília Madeira. Em busca dos sítios do poder na África Centro-Ocidental.
Homens e caminhos, exércitos e estradas (1483-1915). In: HEINTZE, B.; OPPEN, A. Angola
on the move: transport routes, communications and history. Lembeck: Frankfurt am Main,
2008.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Intérpretes africanos da administração colonial francesa e a produção da história:
entre retratos, silêncios, arquivos e hiperlinks (décadas de 1880 e 1890)
Rafaél Antônio Nascimento Cruz208
Resumo: Neste texto objetiva-se pensar como os retratos de africanos que atuaram na condição
de intérpretes formais ou ocasionais a serviço da administração francesa na África do Oeste nos
convidam a questionar os silêncios das narrativas e repensá-las, lançando luz sobre ações e
iniciativas de agentes africanos para além de chaves analíticas dicotômicas (que os reduzem a
resistentes ou colaboradores). Para tanto, recorreremos a fotografias oriundas de diferentes
acervos digitais de instituições de guarda documental; procura-se com isso estabelecer uma
reflexão sobre a produção da história.
Palavras-chave: Intermediários; Colonialismo; Fotografia.
Introdução
Ao longo do século XIX, cada vez mais africanos tiveram de lidar com a imposição da
ocupação colonial. No Sudão ocidental,209 a invasão francesa teve lugar nas últimas décadas
desse século. As sociedades das terras localizadas no alto rio Senegal e no alto e médio rio
Níger, com suas diferentes formas de organização social e política, viram-se diante de uma
modalidade de dominação até então desconhecida.210 De um ponto de vista historiográfico, os
intermediários transacionais africanos que atuaram a serviço dos franceses oferecem uma
possibilidade de explorar essa complexidade social e as diferentes maneiras de lidar com o
poder colonial em implementação. Longe de ser um grupo homogêneo, a posição
intermediária congregava sujeitos oriundos de diferentes sociedades, regiões, culturas,
estratificações sociais e demais formas de agrupamento e identidade. Acessar esses aspectos
208 Mestrando no Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade de São Paulo (PPGHS/USP).
Neste texto, apresento considerações parciais de minha pesquisa, intitulada “Intérpretes africanos e domínio
colonial francês no Sudão ocidental (1863-1898)” e financiada pela CAPES.
209 “Sudão”, como é sabido, é um termo usado para se referir aos territórios imediatamente ao sul do Saara, nas
zonas sahelianas e de savana. Tem sua origem na maneira como os geógrafos árabes e alguns letrados muçulmanos
se referiam a essa região: vem da expressão árabe “bilad al-sudan”, que significa, em tradução literal, “terra dos
negros” ou “país dos negros”.
210 O enfoque em pensar as distinções sociais e a sua intensa transformação em face da invasão colonial advém
das reflexões formuladas por Lefebvre (2021) em seu estudo sobre o início da ocupação colonial no território que
corresponde ao atual Níger.
179
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demanda uma leitura “a contrapelo” da documentação produzida por europeus ligados ao
poder colonial: relatos de viagem, tratados, recolhas de contos ou tradições orais – ou seja,
apesar da diversidade de tipologia, trata-se de peças da “biblioteca colonial” (MUDIMBE,
2013). Contudo, conforme salienta Stoler (2002, p. 91-92), para fazer uma leitura “a
contrapelo” é necessário entender também qual é o sentido que conforma a documentação e as
categorias sociais mobilizadas na ordem do conhecimento colonial europeu.
Por ora, gostaria de discutir um tipo específico de documento do corpus mencionado:
as fotografias. Nesse sentido, acho pertinente a imagem da “galeria de retratos” aludida por
Jean-Louis Triaud para comentar as transformações na historiografia sobre a colonização em
África (DULUCQ et al., 2006, p. 240-241). Segundo o historiador, a “história colonial” durante
a primeira metade do século XX era composta por uma galeria de retratos de heróis da
colonização. No caso da região de meu recorte geográfico, podemos citar o exemplo de Louis
Faidherbe, Louis Archinard ou Joseph Gallieni. São os “grandes nomes” de uma certa “história
imperial”, laudatória e legitimadora da dominação colonial. Nessa narrativa, eles são “os
construtores do Império”.
Com a emergência da história da África como campo de estudos, Triaud observa que
“Os combatentes e as gestas das independências, as galerias de retratos de grandes ancestrais
africanos substituíram os heróis da colonização e a lenda dourada do Império” (DULUCQ et
al., 2006, p. 240, tradução nossa). Novamente, a imagem da galeria de retratos, mas agora
daqueles que foram escolhidos como heróis da luta anticolonial. Não significa com isso uma
equiparação de valor moral entre uns e outros; não se trata disso e não se equiparam. Para se
contrapor à “história imperial” e seus postulados, as historiadoras e os historiadores da década
de 1960 enfatizaram a legitimidade de se produzir uma história da África. Até então, as
resistências à invasão e à ocupação colonial eram entendidas como episódios sem
consequências importantes, dando ensejo a processos de “pacificação”. A preocupação dos
autores, então, era afirmar a pertinência das resistências em África, classificá-las, interpretá-las e
identificar os seus condicionantes. Nesse período, as antigas colônias se tornavam países
independentes e essa produção historiográfica era parte desse momento no qual a preocupação
dos historiadores e historiadoras era a construção de um passado ligado ao ideário dos Estadosnações que surgiam. Assim, a “galeria de retratos” foi ornada, por exemplo, com figuras como
Lat Dior, Samory Touré e el-hajj Omar.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Intermediários africanos retratados por militares franceses
Reconhecida a pertinência das diferentes abordagens sobre as resistências – importante
notar que esse é um dos grandes temas da história da África e muitos trabalhos excelentes são
produzidos nessa linha – gostaria de deslocar o olhar para agentes que não são grandes nomes
da história desse período. Dos três citados, por exemplo, todos foram dirigentes de estruturas
políticas: Lat Dior foi damel do Cayor; Samory Touré foi senhor de domínios que chegaram a
ter quase 400 mil km²; el-hajj Omar foi dirigente do chamado “Império Tukulor”. As pessoas
que eu gostaria de olhar não opuseram resistência armada aos invasores franceses – pelo
contrário, foram empregados de baixo escalão e atuaram a seu serviço. Eram “pessoas comuns”
que viviam nas regiões controladas pelos franceses. São homens como estes quatro, cujos
retratos são reunidos abaixo.
Figuras 1 a 4
Fig. 1. Hamadou Alpha, interprète. Fonte: Museu do quai Branly. Fig. 2. Amadi Coumba, interprète
toucouleur en tenue de guerre. Fonte: Museu do quai Branly. Fig. 3. Diawé Fofana, domestique du
capitaine Binger puis du colonel Archinard. Fonte: ANOM. Fig. 4. Abdulay-Diack, interprète. Fonte:
Museu do quai Branly.211
Da esquerda para a direita, temos: Hamadou Alpha, Amadi Coumba, Diawé Fofana e
Abdulay-Diack. Possuímos poucas informações sobre suas vidas e, no caso de alguns – como
Hamadou Alpha e Abdulay Diack – sabemos apenas seus nomes. Há também o fator comum
aos quatro: no momento em que foram fotografados, todos eles trabalhavam para a
administração colonial francesa na condição de intérpretes, de modo formal ou ocasional. Os
211 As referências completas se encontram relacionadas ao final do texto.
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intérpretes dos retratos 1 e 4, Hamadou Alpha e Abdulay-Diack, integraram a missão de
exploração enviada ao Sudão ocidental entre 1880 e 1881. Foi nesta ocasião que foram
fotografados pelas lentes do militar francês Pierre-Léon Delanneau, que também fazia parte da
missão. Quanto aos outros dois, Amadi Coumba e Diawé Fofana, até o momento não foi
possível identificar alguma ação específica que ocasionou a produção de seu retrato. Foram
também fotografados por um militar, Jean-Marie Collomb, que produziu diversas fotografias no
continente africano durante a década de 1880. Desse modo, nessa seleção temos quatro
retratados e dois retratistas. A diferença na pose dos retratados expressa as diferentes escolhas
por parte dos fotógrafos. Enquanto nas fotografias de Delanneau os retratados olham para o
horizonte para além do enquadramento ou então olham para a câmera de soslaio,
apresentando-se parcialmente de perfil, nos retratos de Collomb eles assumem uma pose na
qual olham diretamente para a objetiva – estes padrões são observáveis em outras produções
destes dois militares.212
A função primeira de um intérprete era a de tornar a comunicação mutuamente
inteligível. A região de que tratamos é notória por sua heterogeneidade linguística. Para tomar a
atualidade como parâmetro, a região conta com mais de 300 línguas e, no século XIX,
possivelmente possuía uma multiplicidade linguística ainda mais acentuada (VAN DEN
AVENNE, 2017a, p. 15). São línguas como o fulfulde, o uolófe, o bambara, o diúla, o árabe, o
malinquê, etc. Porém, as atividades do intérprete transcendiam a tradução em um sentido
estrito e eles atuavam como mediadores culturais, emissários políticos, guias em expedições,
negociadores de tratados; também não era raro que desempenhassem outras atividades
manuais, como soldados, cozinheiros ou carregadores (MOPOHO, 2001, p. 616). Com isso,
observamos a conformação de uma situação paradoxal: os intérpretes – e intermediários
africanos em geral – foram onipresentes e figuras centrais no processo de expansão e na
dominação colonial; ao mesmo tempo, somente figuram de modo marginal e residual nos
vestígios documentais que chegaram até nós.
Esse paradoxo foi assinalado por historiadores que trabalharam anteriormente com esse
tema, como é o caso de Brunschwig (1977, p. 5), Robinson (2000, p. 50) e M’bayo (2016, p.
169-177). Ou ainda, conforme apontado por Gebara (2019, p. 209), em artigo recente sobre
212 Outras fotografias de Delanneau e de Collomb podem ser encontradas no acervo virtual disponibilizado pelo
museu do quai Branly. Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/. Acesso em 4 de
dezembro de 2020.
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intermediários africanos e registros a seu respeito na literatura de viagem de expedições inglesas
na África do Oeste: as menções a estes agentes costumam ocorrer com “objetivos anedóticos
e/ou contextuais”, e se apresentam por meio de uma perspectiva eurocêntrica e pautada pela
noção de suposta superioridade racial europeia.
A ausência destes agentes na documentação chama a atenção para os silêncios. Trouillot
(2016, p. 57) aponta que o silêncio é um elemento inerente da produção histórica. E esse
elemento não constitui a história apenas no que toca aos vestígios documentais. Como ele
aponta, os silêncios operam na elaboração das fontes, dos arquivos, das narrativas e da “história
em última instância”. Ou seja, implica pensar nas seguintes questões: quem faz o registro e
como? Como são compostos os arquivos e com qual objetivo? Quem estabelece as narrativas
sobre o que aconteceu? (sempre pertinente recordar que a “história imperial” começa a ser
narrada durante o próprio ato de expansão pelos militares franceses) Com base em que
gramática do conhecimento a história foi produzida? Quem fica de fora e quem fica de dentro
da história?
A seleção e a discriminação são operações fundadoras dos arquivos. Escolhe-se aquilo
que é “arquivável” e aquilo que deve ser descartado (MBEMBE, 2002, p. 20). A essa camada
inicial de operação básica do arquivo, outras se somam no que respeita aos documentos que
pudemos acessar. A partir daquilo que foi selecionado para se preservar da ruína do tempo ou
não, escolhe-se o que vai ser digitalizado ou não vai, e o que será ou não disponibilizado nas
plataformas digitais e de que forma. A minha pesquisa é feita por meio de repositórios on-line
de documentos e esse é um ponto importante para entender as suas possibilidades e limitações.
No tocante às fotografias, recorremos à biblioteca digital da Biblioteca nacional da França, a
Gallica; à base de documentos iconográficos dos Archives Nationales d’outre-mer da França
213
(Ulysse);214 e ao acervo digital do Museu do quai Branly.215 As informações associadas às imagens
nessas bases diferem entre si em muitos casos, oferecendo dados complementares ou, às vezes,
conflitantes entre si. Muitas fotografias não são descritas com precisão, demandando um
exercício de “escavação” por meio dos hiperlinks, das conexões e das palavras-chave. Um
exemplo disso foi encontrar a autoria de algumas fotografias, como é o caso das que foram
selecionadas para essa discussão. Foi por meio das informações fornecidas pelo Museu do quai
213 A biblioteca digital está disponível em https://gallica.bnf.fr/. Acesso em 11 de dezembro de 2020.
214 Disponível em http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/ulysse/. Acesso em 11 de dezembro de 2020.
215 Disponível em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/. Acesso em 4 de dezembro de 2020.
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Branly que conseguimos encontrar este dado e, com isso, localizar outros registros destes
fotógrafos que não apareciam por meio de pesquisas por palavras-chave.
Delanneau e Collomb eram militares franceses, como foi dito. Os militares produziam
fotografias nesse período, na África do Oeste, com o objetivo de enviá-las para jornais ou então
de reproduzi-las em relatos de viagem em formato de livros ou em revistas especializadas. Além
disso, essas peças poderiam vir a alimentar as coleções das sociedades de geografia e das
entidades dedicadas ao estudo das sociedades tidas como primitivas.
Tomemos o exemplo da fotografia de Diawé Fofana. Em um primeiro momento,
encontrei esta fotografia na Ulysse, base virtual de imagens dos Archives nationales d’outre-mer.
O seu título identifica o retratado e descreve sua função: “Diawé Fofana, criado do capitão
Binger e depois do coronel Archinard”. Este último, Archinard, é ainda identificado como o
proprietário do álbum do qual faz parte esta fotografia e a ele é atribuída a autoria. A
proveniência aponta o acervo a que pertence originalmente a fotografia e é sugestivo: MAAO é
a sigla do Musée national des Arts d’Afrique e d’Oceanie. Em nenhum momento Diawé
Fofana foi identificado como intérprete, o que não causa espanto: ele trabalhou como criado
para Binger e Archinard e sua atividade como intérprete ocorreu de modo ocasional. Contudo,
aqui a ligação com o poder colonial é mantida.
Já no acervo virtual do Museu do quai Branly, encontramos outra cópia dessa fotografia
com o título “Diabé fofana, bambara do Bélédougou”.216 Na descrição, há ainda o
complemento: “menino pastor”. O doador é Jean-Marie Collomb, que também é identificado
como o fotógrafo. Apesar de ser uma reprodução digital, é sensível a diferença de suporte
material: a anterior, conforme descrição, era impressão em papel albuminado colado sob
cartão, ao passo que a do quai Branly é o negativo em gelatina e brometo de prata sobre placa
de vidro. Possivelmente, o negativo constante do acervo deste Museu deu origem à fotografia
presente nos Archives nationales d’outre-mer. Essa hipótese parece provável, uma vez que o
Museu do quai Branly, inaugurado em 2006, abriga a coleção do antigo Musée national des
Arts d’Afrique et d’Océanie.
Aqui, nenhum dado fornecido faz referência ao poder colonial – exceto, claro, pelo
militar que registrou a fotografia. Um visitante desavisado do site poderia olhar essa imagem e
216 Disponível em:
https://www.quaibranly.fr/en/explore-collections/base/Work/action/show/notice/519266-diabe-fofana-bambara-dubelegougou/page/1/. Acesso em 6 set. 2021.
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sua descrição e pensar que se trata de uma fotografia de um pastor da região do Bélédougou,
atualmente no Mali, que foi flagrado durante suas atividades de pastoreio. De fato, o dado que
organiza essa imagem nesse espaço é a etnia do sujeito, informada no título da fotografia:
“bambara”. É uma fotografia de “tipos humanos”, moeda corrente nos registros da etnografia e
da antropologia primitivistas do período. Esse tipo de fotografia se propunha a captar
objetivamente em uma pessoa as características (ou, melhor dizendo, as estereotipias) do grupo
ao qual ela pertencia (ou cujo pertencimento lhe atribuíam), em um processo de classificação
dos grupos humanos (muitas vezes com viés de evolucionismo social). O padrão desse tipo de
representação é a posição frontal e o perfil. Nesses registros, o retratado não é visto como uma
pessoa singular, mas como um representante intercambiável de um grupo (BOËTSCH;
FERRIÉ, 2001).
Diawé Fofana integrou a missão chefiada por Gustave Binger, que ocorreu entre junho
de 1887 e março de 1889 e que percorreu cerca de quatro mil quilômetros entre Bamako,
atualmente no Mali, e o litoral da atual Costa do Marfim. Ele foi descrito por Binger em seu
relato como “um Fofana do Dogofili” (BINGER, 1892a, p. 9). Como a maioria dos membros
da expedição, Diawé Fofana falava uma língua mandinga – que, de acordo com o modo como
é referido pelo próprio Binger, incluía línguas como o bambara, o malinquê e o diúla. Além
disso, Diawé Fofana falava também francês e Binger atribui a ele algumas falas em seu relato
por meio do discurso direto, enquadrando esse registro no recurso literário (tido como cômico)
do estereótipo do petit-nègre. Dentre os “indígenas” que compunham a missão de Binger, não
havia nenhum com a função de intérprete. Binger falava rudimentos do que denominava de
“bambara” ou “mandê” e se propunha a falar sem intermediação. A língua teria sido aprendida
no período anterior de sua estada no Sudão ocidental, entre 1884 e 1885. Esse aprendizado
resultou na produção de um manual linguístico em francês para a língua “bambara”, publicado
em 1886 (BINGER, 1886). De acordo com o próprio Binger, ele aperfeiçoou o conhecimento
da língua “bambara” na missão de 1887-1889 e aprendeu outras línguas com as quais entrou
em contato (VAN DEN AVENNE, 2017a, p. 30-31).
Foi em Kong, em janeiro de 1889, altura em que Binger afirma ter aprendido
satisfatoriamente o “bambara”, que Diawé Fofana deixou de integrar a missão. Nesse
momento, ele foi enviado de volta para sua aldeia, Dogofili, para realizar seu desejo de se casar
com uma moça que lhe era prometida. De acordo com Binger, isso teria sido uma recompensa
de sua parte pelos bons serviços prestados por Diawé Fofana, que não queria deixar a missão
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antes de seu final (BINGER, 1892b, p. 211). Como fica demonstrado na narrativa do capitão,
Diawé atuava como intérprete ocasional nos diálogos com autoridades locais ou com a
população em geral. Ele também atuou como informante e propagandista de Binger, assim
como foi o principal instrutor de Binger no aprendizado do “bambara” – em estudo de seus
cadernos de campo, Van den Avenne demonstra como a interlocução com Diawé Fofana foi
crucial para o aprendizado da língua que foi feito pelo francês (VAN DEN AVENNE, 2017b).
Figura 5
Fonte: BINGER, Gustave. Du Niger au Golfe de Guinée (1887-1889). In:
Le Tour du monde, v. 61, Paris, 1891, p. 4. Reprodução: Smithsonian Libraries.
A fotografia de Collomb serviu de base para a elaboração de desenhos feitos pelo
ilustrador Édouard Riou e que acompanham o relato de Binger (Fig. 5): pela primeira vez na
publicação concisa que saiu pela revista Le Tour du Monde, em 1891 (BINGER, 1891, p. 4);
e, no ano seguinte, quando o relato foi publicado no formato de livro, em dois volumes
(BINGER, 1892a, p. 11). O desenho, ao que parece, consiste em uma composição que se
baseou em fotografias diferentes e produziu uma junção de figuras. A fotografia de Diawé
parece ter sido acrescida do seu igual, também criado de Binger, Moussa Diawara. Contudo, a
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legenda dos desenhos, nos dois casos, lança uma dúvida: seria mesmo o retratado Diawé? São
duas as possibilidades. A primeira, é que o retratado por Collomb seria na verdade Moussa
Diawara. E, nesse caso, a legenda nos relatos informa as pessoas corretamente e pela ordem.
Não seria impossível que as pessoas que legendaram as fotografias nas instituições de guarda
tenham errado os sujeitos, ainda que pareça improvável. A segunda possibilidade, que nos
parece mais provável, é de que a pessoa que fez a legenda para os relatos de Binger foi
desatenta ou indiferente e não pensou na ordem de nomeação. Infelizmente, o texto de Binger
não ajuda a esclarecer o ponto – pelo contrário, no relato publicado na revista Le Tour du
monde, a menção à espingarda de cano duplo parece sugerir que a nomeação da legenda
corresponderia à ordem no desenho. Nesse excerto que acompanha o desenho – ausente no
livro publicado no ano seguinte –, Binger afirma ter dado de presente a Moussa Diawara uma
espingarda de cano duplo. Seria aquela que aparece em mãos do sujeito no desenho? Ou então
seria essa uma pista do que poderia ter causado a confusão do editor que criou a legenda nos
relatos? Essa especulação permanece irresoluta.
Considerações finais
Com esse caso, pretendemos demonstrar quais os recursos necessários para abordar o
nosso tema, bem como ilustrar as maneiras pelas quais esses atores se fazem presentes na
“biblioteca colonial”. Aqui, as problemáticas suscitadas dizem respeito especificamente às
fotografias e aos acervos digitais de instituições de guarda francesas. Porém, mecanismos de
leitura semelhante precisam ser empregados na abordagem de outras tipologias documentais,
como os relatos de viagem. O desafio é o de tentar refletir sobre a vida de atores africanos a
partir das parcas informações oferecidas pela documentação.
E como devemos, a nível teórico, compreender essas pessoas? Retomando o debate
sobre as resistências que mencionamos no início deste texto, por vezes essas pessoas são
compreendidas por meio da noção de “colaboração”. Porém, não foram poucos os autores que
apontaram os limites e problemas dessa noção. Para citar apenas um exemplo, menciono a
crítica de Adu Boahen (2010, p. 12) a este respeito, escrita em seu capítulo no volume VII da
coleção História geral da África (que tem como tônica a abordagem das resistências e iniciativas
africanas em face da invasão e da ocupação coloniais europeias). Reproduzo:
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Somos contrários ao emprego do termo “colaboração”, pois, além de inexato,
é pejorativo e eurocêntrico. (...) Por colaborador entende-se seguramente
aquele que trai a causa nacional, unindo-se ao inimigo para defender os alvos
e os objetivos deste último ao invés dos interesses de seu próprio país.
A noção de “colaboração” carrega consigo aspectos de valoração negativa, associando muitas
vezes os “resistentes” ao heroísmo e os “colaboracionistas” à responsabilidade e à “culpa” pela
dominação colonial. Pensamos que abordar os atores africanos que participaram do
empreendimento colonial francês na África do Oeste oferece uma possibilidade de reexaminar
a problemática da situação colonial no continente e de sua instauração, de modo a lançar luz
sobre aspectos recorrentemente negligenciados. Examinar a agência de sujeitos como Diawé
Fofana e os demais africanos que foram intermediários e trabalharam para os franceses
possibilita repensar como se implementou a dominação, bem como permite que nos
aproximemos de uma compreensão mais aprofundada da configuração do poder europeu no
continente. Eles impõem que seja negado o reducionismo no qual os africanos aparecem
destituídos de ambiguidades e destituídos de qualquer possibilidade de existência fora da
resistência (preferencialmente a armada e direta) ao poder colonial. Sem descurar das
assimetrias e da violência do poder colonial, pode-se dizer, em resumo, que a Resistência,
escrita com “R” maiúsculo, pode estreitar a compreensão da história ao invés de ampliá-la
(COOPER, 2008, p. 40).
Relação de fotografias
Figura 1. DELANNEAU, Pierre-Léon. Hamadou Alpha, interprète. c. 1880-1881. 1 fotografia,
preto e branco, 20,5 cm x 15 cm, museu do quai Branly. Disponível em
http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/503227hamadou-alpha-interprete/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de 2021.
Figura 2. COLLOMB, Jean-Marie. Amadi Coumba, interprète toucouleur en tenue de guerre.
c. 1880-1889. 1 fotografia, preto e branco, 13 cm x 18 cm, museu do quai Branly. Disponível
em http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/530168amadi-coumba-interprete-toucouleur-en-tenue-de-guerre/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de
2021.
188
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Figura 3. ARCHINARD, Louis [Proprietário do álbum, o fotógrafo provável é Collomb].
Diawé Fofana, domestique du capitaine Binger puis du colonel Archinard. c. 1889-1894. 1
fotografia,
preto
e
branco,
12
cm
x
16,5
cm,
ANOM.
Disponível
em
http://anom.archivesnationales.culture.gouv.fr/ulysse/notice?q=diaw%C3%A9&coverage=&date
=&from=&to=&mode=list&id=FR_ANOM_8Fi121b-7. Acesso em 31 de janeiro de 2021.
Figura 4. DELANNEAU, Pierre-Léon. Abdulay-Diack, interprète. c. 1880-1881. 1 fotografia,
preto e branco, 20,4 cm x 15 cm, museu do quai Branly. Disponível em
http://www.quaibranly.fr/fr/explorer-les-collections/base/Work/action/show/notice/503209abdulay-diack-interprete/page/1/. Acesso em 31 de janeiro de 2021.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Vicus Juda: redes de comércio judaico na Villa de Penedo Neerlandês
(1637 a 1646)
Robson Williams Barbosa dos Santos217
Resumo
A presença judaica na região de Penedo, atual cidade do estado de Alagoas, faz-nos
associar essa presença à questão da tolerância religiosa, que foi uma das primeiras resoluções
políticas no período da Pax Nassoviana (1637-1644) ou ao tribunal de Inquisição em Alagoas,
mas nunca do ponto de vista econômico desenvolvido pelos judeus sefarditas nas vilas de
Alagoas. Tomamos em questão aqui a Vila de São Francisco de Penedo, que no período da
dominação flamenga teve o comércio de mercadorias coloniais dinamizadas pelos judeus,
fazendo pensar que o intenso comércio na região do São Francisco era judaico. Isso nos mostra
que os judeus não ficaram restritos apenas ao Recife e que essas personagens controlavam um
intenso comércio de açúcar, escravos, retalhos e de produtos usuais da terra (fumo, salitre,
cachaça, âmbar, pau-brasil, farinha, de mandioca, etc.), além da criação de gado naquelas
cercanias.
Palavras-Chave: Vila de São Francisco de Penedo. Presença Judaica. Comércio Colonial.
“Bem-aventurado o homem que acha sabedoria, e o homem que adquire
conhecimento, porque é melhor a sua mercadoria do que artigos de prata, e
maior o seu lucro que o ouro mais fino. Mais preciosa é do que os rubis, e
tudo o que mais possas desejar não se pode comparar a ela.”
Provérbio, 3:13-15
Um dos temas mais recorrentes na historiografia brasileira é o período da dominação
neerlandesa218 no Norte do Brasil219, que se concretizou em 1630 quando os flamengos
Mestre em História Social pela Universidade Federal de Alagoas (Ufal), e integrante do Núcleo de Estudos
Sociedade, Escravidão e Mestiçagem (NESEM). E-mail: robsonwilliams55@gmail.com
218 “Países Baixos” é a tradução em português de Nederland, que no original neerlandês é "Neder-landen", termo
que literalmente significa "terras baixas". Isso nos remete ao reino dos Países Baixos, formado pela República das
217
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ocuparam Olinda e Recife, estendendo sua ocupação até 1654 quando foram expulsos. Com a
ocupação neerlandesa veio a necessidade de uma organização econômica, que só aconteceu, de
fato, com a chegada de Nassau em 1637, em que reorganizou a produção açucareira e o
comércio de escravos e de produtos coloniais nas regiões de produção de açúcar.
Mas ao que refere sobre a produção açucareira e comércio colonial na região de
Alagoas220, constam apenas a tese de doutorado de José Ferreira de Azevedo; “Formação
socioeconômica de Alagoas; o período Holandês (1630-1654) – Uma mudança de rumo”.
Então, por esse motivo, faz-se necessário empreender maiores investigações sobre o tema e por
consequência destacamos como recorte histórico, para esta pesquisa, o período conhecido
como Pax Nassoviano (1637-1644) e estendemos até 1646.
Nesse sentido, iremos empreender nossa pesquisa acerca de como era vista Alagoas
pelos neerlandeses através do comércio judaico sefardita na região da vila de São Francisco de
Penedo221 com a óptica de historiadores alagoanos. O que nos mostra que os judeus não
ficaram restritos apenas ao Recife e que essas personagens controlavam o intenso comércio de
retalhos, imobiliário, produtos usuais da terra222 (fumo, salitre, cachaça, âmbar, pau-brasil,
farinha de mandioca etc.), açúcar, bem como o comércio de escravos e da criação de gado
naquelas cercanias.
Em “O Banguê das Alagoas”, Diégues Jr. considera que a região passou a produzir o
“ouro branco” na segunda metade do século XVII diferente de Porto Calvo de Santo Antônio
dos Quatros Rios223, como também afirma Barbara Consolini, “onde a produção de açúcar era
Províncias Unidas dos Países Baixos, cujo órgão máximo de governo eram os Estados Gerais. Então, por esse
motivo, ao nos referirmos à Província, iremos usar o adjetivo pátrio “neerlandês” para substituir o adjetivo
“holandês” e, em algumas vezes, utilizaremos o termo “batavo” (os que são nascidos na Batavia) como sinônimo
de neerlandês, ou até “flamengo”, nome dado para aqueles que nasceram nos Flandres. Ver LUCIANI, Fernanda
Trindade. Munícipes e Escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil holandês (1630-1654). São Paulo:
Alameda, 2012. p. 19.
219 No ano de 1621, os Estados da América portuguesa foram divididos em dois (Grão-Pará e Brasil), e nesse
período não havia essa denominação para região do nordeste, que era conhecida como região norte.
220 Nesse período, não havia Alagoas, e sim uma região isolada, ou a periferia, ao sul da Capitania de
Pernambuco que recebeu pouca atenção do governo colonial. AZEVEDO, José Ferreira. Formação
socioeconômica de Alagoas; o período Holandês (1630 - 1654) – Uma mudança de rumo. São Paulo: USP, 2002.
111 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de São Paulo, São Paulo,
2002. p.149.
221 Quando estava sob domínio holandês, a vila passou a se chamar de Maurícia.
222 MATHIAS, Carlos Leonardo Kelmer. As múltiplas faces da escr avidão. O espaço econômico do
ouro e sua elite pluriocupacional na formação da sociedade mineira setecentista, c. 1711 – c.
1756.
Rio de Janeiro: Mauad, 2012. p. 121.
LINDOSO. Formação de Alagoas Boreal. Maceió, Impressa Graciliano Ramos, 2019. p. 32.
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maior, pois aí havia oito engenhos”224. Por outro lado, Diégues Jr. aborda que a região225 de
Penedo, como produtora de outros gêneros agrícolas226, era fundamental para o processo de
colonização neerlandesa da região, e a mesma visão se encontra na descrição de Verdonck, de
maneira que não indica engenhos, mas aponta que era
rica em outros produtos: gado, bastante farinha, muito peixe, fumo, paubrasil, âmbar. Contudo, fazia-se açúcar, embora pouco.
Outros relatos
holandeses silenciam igualmente quanto a engenhos na região do Penedo,
donde se pode concluir que ou não existissem, ou, existindo, fossem de
pequeno valor. Talvez algumas desvaliosas engenhocas. Foi no decorrer do
século XVII que se alastrou o povoamento da região, e criaram-se para
engenhos de açúcar; os vales de Coruripe e do Poxim prestavam-se para
agricultura da cana. E começaram a encher-se de canaviais de boeiros de
engenhos, de casas-grandes; igualmente – e principalmente – negros
escravos227.
O próprio Verdonck descreveu, em seu relatório, que na Vila de São Francisco de
Penedo havia poucos engenhos e que Nassau tinha problemas com a colonização da região,
por falta de um contingente humano para a produção industrial do açúcar e, também, para a
pecuária com a criação de gado, já que a Vila de São Francisco de Penedo tinha
poucos habitantes e nas imediações 5 ou 6 engenhos, mas fazem pouco
açúcar e anos há em que alguns não moem; ainda nesse lugar existe grande
quantidade de bois e vacas, por causa do excelente pasto, de sorte que por
esse motivo os moradores possuem muito gado, que é a sua principal riqueza
e constitui a melhor mercadoria destas terras e com a qual mais se ganha
devido à sua rápida multiplicação (...)228
224 SILVA, Maria Angélica da. O Olhar Holandês e o Novo Mundo. Maceió: Edufal, 2011. p. 27.
225 Revista do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 50.
Na legenda das iconografias de Frans Post Forte Mauricius 1647 (figura 2), referente à Vila de Penedo, aparece a
inscrição latina “Pascua Humilis Foli”, que significa “pastagem de terra fértil”, o que comprova que havia gado na
região e, por consequência, condições para o desenvolvimento da lavoura da cana.
227 DIEGUES JÚNIOR, Manuel. O bangüê nas Alagoas. Maceió, EDUFAL: 2006. p. 84.
VERDONCK, Adrian. Descrição das capitanias de Pernambuco, Itamaracá Paraíba e Rio Grande. Memória
apresentado ao conselho político do Brasil por Adriano Verdonck, em 20 de maio de 1630. In: MELLO, José
Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a economia açucareira. Recife: Companhia Editora de
Pernambuco, 1981. p. 36.
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Em outras palavras, mesmo com a construção de alguns engenhos na região, a atividade
que se desenvolveu com mais força foi a pecuária, com a criação de gado e do trânsito
comercial dos produtos já citados. Mas, dos engenhos que ali constavam, quatro pertenciam a
judeus sefarditas que, em terras brasílicas, movimentavam-se numa diversidade de atividades
econômicas. A Vila de São Francisco de Penedo teve como catalisador econômico a fleuma
comercial judaica229 que lá se estabeleceu e dominou toda a região do São Francisco230. Na Vila
de São Francisco de Penedo, temos a figura do rabino Samuel Israel, da esnoga da vila, situada
aos pés do Forte Maurício — apesar de não haver mais a sua edificação física podemos recorrer
às iconografias231 dos pintores neerlandeses Frans Post (1612-1680)232 e Jacob van Meurs (16201680), bem como aos relatórios que os funcionários da WIC 233 enviaram para Amsterdã como
registro durante a ocupação flamenga.
A esnoga de Penedo tinha como rabino Samuel Israel, um médio comerciante, que
fazia o trânsito de produtos com outros judeus que viviam em Porto Calvo e outras capitanias, e
até mesmo outros, que viviam na Vila de São Francisco de Penedo como comerciantes de
escravos que adquiriram através dos navios da WIC, que os traziam de Angola234 e Guiné235,
como é o caso de João Nunes Velho, Jacob Franco Mendes, David Shalom, Jacob Bueno e
Isaac Baru. Isso porque, em 1638, os neerlandeses, através da WIC, conquistaram a Fortaleza
de São Jorge da Mina e, em 1641 e 1648, a ilha de São Tomé e o litoral do Congo e de
229 Podemos dizer aqui, que antes da chegada dos neerlandeses já havia um comércio movimentado por judeus e
cristãos novos na Capitania de Pernambuco. Ver SILVA, Janaina Guimarães da Fonseca e. Cristãos-novos nos
negócios da capitania de Pernambuco: relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os
anos de 1580 e 1630. Recife: UFPE, 2012. 255 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade de Federal de Pernambuco, Recife 2012. p. 11.
230 Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900). p.
253.
Documentação visual que constitui ou completa obra de referência e/ou de caráter biográfico, histórico,
geográfico, e representa algum evento ou comportamento social e histórico.
Em 23 de janeiro de 1637, Nassau traz ao Brasil a primeira grande missão científica a cruzar a linha do Equador,
da qual fazia parte o médico Willem Piso, os botânicos Guillerme Piso e George Markgraf, os pintores Frans Post,
Albert Eckhout e Zacharias Wagener, e o biógrafo Gaspar Barléus. CORRÊA DO LAGO, Pedro & Bia. Frans
Post {1612-1680}. Obra Completa. Rio de Janeiro: editora Capivara, 2006. p. 21
A Companhia das índias Ocidentais foi criada em 1621 e era composta por um conselho administrativo de 19
membros conhecidos como “Heeren XIX”. BLACKBURN, Robin. A Construção do Escravismo no Novo
Mundo, 1492-1800. (Trad.). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003. p. 235.
234 Revistas do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 38.
Segundo Rômulo L. Xavier Nascimento, os neerlandeses dominaram a costa da Guiné antes mesmo de 1617,
ao construírem uma pequena fortificação com o nome de Forte Nassau, em Mori. Ver SILVA, Francisco Carlos
Teixeira da. et al. Atlântico: a história de um oceano. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2013. p. 145.
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Angola236, incluindo os portos estratégicos de Mpinda e Luanda. Durante esses anos, são eles
que controlam o comércio de escravos no Atlântico Sul237 e, desde do primeiro quartel do
seiscentos, havia uma cobiça dessas áreas fornecedoras de escravos, ou seja, os holandeses
fecharam as “duas portas” do Atlântico Sul: Recife e Luanda da mesma forma que fizeram no
238,
Oriente com Ormuz e Málaca239, e isso
já no começo da década de 1620, o Conselho começa a discutir sobre o
lucrativo comércio de escravos, e, em 1624, a Companhia envia expedições
para a conquista da Bahia e de Luanda, que, sem grandes sucessos, muito
exigiu de seus cofres. Com a consolidação da conquista no nordeste
brasileiro, após 1635, a Companhia passou a concorrer no mercado de
escravos, uma vez que a reorganização da produção açucareira no Brasil
dependia do fornecimento de mão de obra escrava. Dessa maneira, São Jorge
da Mina, São Tomé e Luanda voltaram a despertar grande interesse e os
diretores da WIC passam a armar navios para a conquista desses entrepostos
portugueses na costa africana. Em maio de 1641, Pernambuco envia a Angola
uma expedição neerlandesa com vinte e um navios sob o comando de
Cornelis Jol e, no final desse mesmo ano, Luanda é conquistada240.
Então, entre os anos de 1643 a 1646, os navios da WIC desembarcaram no norte do
Brasil com 14.440241 cativos vindos dos portos africanos citados; porém, nesse período, boa
parte da mão de obra compulsória que veio para o Brasil era de Luanda, que se tornou o porto
de exploração de escravos do mundo Atlântico . Com isso, mostraremos, através do gráfico
242
abaixo, uma linha do tempo do número de cativos embarcados e desembarcados no Brasil, de
1643 a 1646, vindos do litoral africano.
Rômulo L. Xavier Nascimento fala que o frete do pau-brasil que saía de Pernambuco para Portugal era pago
com o dinheiro das vendas dos escravos de Angola. Idem, p. 125 e 126.
CALDEIRA, Arlindo Manuel. Escravos e traficantes no Império Português: O comércio negreiro português no
Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisbon, Esfera do Livro, 2013. p. 31.
SILVA, Francisco Carlos Teixeira da. et al. Atlântico: a história de um oceano. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 2013. p. 120.
Idem, p. 136.
LUCIANI, Fernanda Trindade. Munícipes e Escabinos: poder local e guerra de restauração no Brasil holandês
(1630-1654). São Paulo: Alameda, 2012. p. 88.
https://www.slavevoyages.org/assessment/estimates/. Acesso em: 30 dez. 2020.
CALDEIRA, Arlindo Manuel. Escravos e traficantes no Império Português: O comércio negreiro português no
Atlântico durante os séculos XV a XIX. Lisbon, Esfera do Livro, 2013. p. 95.
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Notamos, nesse gráfico, que o auge de escravos desembarcados no Brasil através do
monopólio do comércio de escravos no Atlântico através do controle da WIC foi no ano de
1644, mas que houve uma variante entre o ano anterior, em que obtemos os seguintes números
expressivos de desembarcados: no ano de 1643, temos 5.009; enquanto, em 1644, temos 5.142
desembarcados. Esses números começam a baixar no ano seguinte, com 3.719 desembarcados.
Isso devido à retomada portuguesa ao controle do comércio de escravos no Atlântico, através
da restauração do trono português.
Mapa 1 - Mapa das possessões da WIC e ano da conquista
Fonte: LUCIANI, 2012. p. 96.
Temos registros de 4 navios da WIC, que atracaram nos portos da Capitania de
Pernambuco, incluindo a Vila de São Francisco de Penedo. Os navios De Gulde Ree, Groote
Gerrit, Leeuwinne e Leiden243 fizeram esse comércio com Angola e Guiné entre os anos de
1643 a 1644 e fizeram desembarques de escravos na Vila de São Francisco de Penedo. O
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654.
Recife, Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 235.
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primeiro navio – Leiden - desembarcou por duas vezes nos anos de 1641 e 1642244 e é o único
que registra escravos vindos tanto de Angola quanto da Guiné. No ano de 1641, ele
desembarca e vende 181 escravos vindos de Angola. A venda dessas “peças” rendeu 85.102
florins para WIC e, desses 181 escravos, 72 foram vendidos para judeus, que pagaram 27.432
florins por eles. Já em 1642, esse navio desembarca 42 “peças” vendidas no valor de 23.813
florins e, dessas “peças”, 16 foram vendidas para judeus, que pagaram 7.500 florins por esses
16 escravos.
De Gulde Ree, o segundo navio citado, desembarcou em Pernambuco em 1643, com
148 escravos vindos da Guiné e vendidos no valor de 40.034 florins; desses 148 escravos, 77
foram vendidos para judeus que pagaram nesses escravos o valor de 20.664 florins. O Groote
Gerrit desembarcou duas vezes. Em 1643, com 105 escravos vendidos no valor de 26.119
florins, sendo 82 “peças” vendidas para judeus, que pagaram 19.595 florins por elas. Já no ano
de 1644, no auge do comércio, esse navio vendeu 896 escravos no montante de 121.554
florins, sendo 354 “peças” vendidas para judeus, que pagaram o valor de 46.631 florins pelos
escravos.
O último navio de que temos registros de desembarque em Pernambuco e, depois, em
Penedo, com escravos vindos da Guiné, é o Leeuwinne, que desembarcou com 270 “peças”
em 1644, gerando montante de 22.837 florins; 140 escravos foram vendidos para judeus, que
pagaram 12.288 florins por eles.
Assim, como já foi dito anteriormente, foi através das conquistas lá na África que o
comércio de negros245 na Vila de São Francisco de Penedo foi parar nas mãos dos judeus —
algumas vezes, quando os negros não eram vendidos diretamente com a WIC, eram adquiridos
através dos leilões. A exemplo disso, temos cinco judeus que ampliaram o comércio de negros
em Penedo. O primeiro deles foi Jacob Franco Mendes, morador da Vila de São Francisco de
Penedo que vendia vinho, mas obtinha seu maior lucro com a venda de negros de Angola que
vieram em navios da WIC [Zeelandia, Salamander, Concórdia, St. General, Haskamot, Engel e
Destacamos os anos de 1641 e 1642 — mesmo estando fora do nosso recorte histórico —, visto que os dados
levantados nesses navios nesses anos são fundamentais por possuírem informações que coadunam com o período
do domínio dos portos com o crescente comércio de escravos no Atlântico.
Vamos usar aqui o mesmo recurso que Silvia Lara usou para chama a atenção para os termos “negros” e
“pretos”, em que o preto designa a cor e o negro equivale a condição de escravo. Nós usaremos, para fácil
compreensão, o termo negro para designar o escravo, já que as fontes trabalhadas nesta pesquisa utilizam o termo
negro para designar a mão de obra africana. FARIA, Sheila. Fragmentos setecentistas. Escravidão, cultura e poder
na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 132 e 135.
244
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no Iate de Brack]. Isso nos anos de 1646 a 1649. Também temos Samuel Velho246, aliás, João
Nunes velho247, que era negociante de tabaco, vinho e cobrava dívidas, além de ser o maior
credor248 da Coroa portuguesa e comerciante de negros vindo de Angola e Guiné. Ele, assim
como Jacob Franco Mendes, dinamizava esse comércio com outras vilas em Alagoas e regiões,
como é o caso da Vila de Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios, Una, Santo Antônio
e Camaragibe — as três últimas localizadas em Pernambuco.
Já David Shalom de Azevedo, aliás, David Shalom, Jacob Bueno (Henriques) e Isaac
Baru, negociavam exclusivamente como comércio de escravos que vinham de Angola através
dos navios da WIC [Groote Gerrit, De Poortier, De Brack, Caritas e Leiden, Fortuna, N.Sra.
do Carmo249, De Gulde Ree, D'burght, Leeuwinne e Haskamot]. Isso entre os anos de 1641 e
1646.
Todo esse comércio começou a ser desarticulado a partir da Restauração do Trono
Português, em 1640, e um levante dos moradores de Pernambuco, em 13 de junho de 1645,
até resultar na expulsão dos batavos em 1654. Esse levante de 1645 coadunou com a
insatisfação dos cristãos que se achavam prejudicados com o domínio judaico em todo
território de Pernambuco. Isso inclui a Vila de São Francisco de Penedo.
Com isso, a presença da Inquisição foi marcante por estes tempos, chegando à Vila de
São Francisco de Penedo, em que foram presos sob acusações de blasfêmia e “judaizar”
(praticar os ensinamentos religiosos da religião de Moisés, o que era condenado pela
Inquisição)250. Em seguida, foram enviados para Bahia, em 18 de setembro de 1646 dez251
judeus, que carregavam o estigma252, cujos os nomes eram; Jacob Polaco, Samuel Israel,
David Michel, Isaac Johannis, Salomão Jacob, David Shalom, Abraão Bueno, Isaac de
ANTT-IL. Processo contra João Nunes Velho, nº 11575. Código de Referência:
PT/TT/TSO-IL/028/11575. Disponível em: <http:\\digitarq.dgarq.gov.pt>. Acesso em: 30 dez.2020.
Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, não era possível identificar o judeu ibérico pelo seu nome, já que
muitos usavam nomes cristãos. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Tempo dos Flamengos: Influência da
Ocupação holandesa na Vida e na Cultura do Norte do Brasil. Recife: Editora Pernambucana – Volume XV,
1987. p. 258.
Idem, p. 239.
Não temos informação se os navios, Fortuna e N.Sra. do Carmo eram da WIC.
Machado, Alex Rolim. Cristãos-novos, inquisição e escravidão: Ensaio sobre inclusão e exclusão social (Alagoas
Colonial, 1575 – 1821).Disponível em; https://www.seer.ufal.br/index.php/criticahistorica/article/view/2974>
Acesso em: 20 fev. 2021.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654.
Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 320.
252 SILVA, Janaina Guimarães da Fonseca e. Cristãos-novos nos negócios da capitania de Pernambuco:
relacionamentos, continuidades e rupturas nas redes de comércio entre os anos de 1580 e 1630. Recife: UFPE,
2012. 255 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Federal de
Pernambuco, Recife 2012. p.12.
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Carvalho, Samuel Velho e Abrão Mendes, que viviam na região do forte e fizeram um levante
contra as perseguições e as acusações apócrifas e ultrajantes.
Para os comerciantes luso-brasileiros e espanhóis, os judeus e cristãos-novos eram vistos
como perigosos. Não é à toa que, em 1641, os comerciantes253 cristãos do Recife escreveram
uma carta pedindo a Nassau que ele limitasse o advento dos judeus e cristãos-novos para a
Capitania Duartiana e a influência deles na economia e comércio locais e, ao mesmo tempo,
fizesse restrições à abertura de lojas e vendas de retalhos254. Sem deixar de mencionar que,
desde o controle do comércio negreiro no Atlântico pela WIC255, a venda das “peças” era à vista
e quem tinha esse poderio econômico eram comerciantes judeus256 de médio e grande porte,
como é o caso dos nossos 5 amigos judeus que viviam em Penedo e do rabino da esnoga da
vila, Samuel Israel.
Por consequência, eles revendiam os negros com valores altos, mas boa parte dos
senhores de Penedo e cercanias não podia pagar esse valor de uma só vez e caía nas mãos dos
judeus, que repassavam os negros com prestações e juros abusivos e deixavam muitos senhores
em débitos257 com eles. Cobrava-se às vezes joias que vendiam, até dez vezes mais do que
valiam; e, ainda, estipulando juros nunca vistos de 3, 4, 5, e 6 por cento ao mês258. Segundo
Mello, o pagamento dos escravos à vista saía a 100 florins, enquanto a prazo, entre 6 a 12
meses, saía a 250 florins; muitas vezes não se cumpria o prazo e, quando não se podia fazer a
devolução do valor emprestado, pagava-se com o açúcar259. Não é à toa que houve a maior
reclamação dos senhores de engenho onde
BOOGAART, Ernst van Dean. et al. Atlântico: a história de um oceano. Recife, Editora Massangana, da
Fundação Joaquim Nabuco, 2007. p. 67.
Retalho. Pedaço de pano retalhado. BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino – volume 1.
Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/vila.
Acessado em 12/01/2021, às 23: 08 min.
Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, a WIC era a única credora dos senhores de engenho que, ao
mesmo tempo, era também devedora de comerciantes holandeses e judeus. Mello, José Antônio Gonsalves de.
Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II. Recife, Companhia Editora de
Pernambuco, 2004. p. 200.
Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, o Conselho administrativo conhecido como “Heeren XIX”, em
1642, determinou taxativamente que a venda das “peças” fosse a dinheiro, ou seja, à vista. Idem, p. 191.
Segundo Arno Wehling e Maria José C.M. Wehling, havia uma lista de devedores que foi elaborada pela WIC,
em que se somavam quase 200 senhores de engenhos, lavradores e comerciantes livres. Ver WEHLING, Arno. et
al. Formação do Brasil Colonial. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1999. p. 131.
Idem, p. 219.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654.
Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 234.
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queixava-se de que os negros que aqui desembarcaram são comprados em
leilões pelos Judeus do Recife, aos quais, se quiserem compra-los, têm de
oferecer altos preços, o que não lhes é possível fazer. Dizem, ainda, que os
Judeus, sabendo que os senhores de engenho têm necessidade deles,
valorizam-nos tanto que lhes parece melhor não fazer trabalhar os engenhos
do que adquiri-los a tão altos preços260.
Segundo Anita Novinsky, os judeus sefarditas eram bem-sucedidos nos negócios
coloniais e isso levantava rivalidades econômicas por parte dos calvinistas e dos cristãos, que
acusavam os judeus de desonestos por usarem a prática de juros, que era condenado pela
Igreja, e dominarem o comércio colonial. Não é à toa que, anualmente, eram enviados à
Companhia das índias Ocidentais relatórios sobre os negócios na colônia. O relatório de 1641
pedia que os judeus fossem proibidos de participar dos leilões (…)261.
Figura 1 – Mercado de escravos em Pernambuco. 1641 – Zacarias Wagner262.
Fonte: SCHWARCZ, 2015, p. 43.
Mas o comércio colonial do século XVII, no nordeste neerlandês, incluindo a Vila de
São Francisco de Penedo, não estava restrito à venda de escravos e à produção de açúcar. As
diversidades dos produtos que se comercializavam eram tantas que, em muitos casos,
funcionários civis da WIC e pessoas da Nação Judaica pediam desligamento para comercializar
Mello, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II.
Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 152.
NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história.
São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 137.
SCHWARCZ, Lilia Moritz; STARLING, Heloisa Murgel. Brasil: uma biografia. São Paulo: Companhia das
Letras, 2015. p. 43.
260
261
262
200
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os diversos produtos que circulavam nas áreas açucareiras e iniciaram o chamado Kleine
profijten263, ou seja, pequenos lucros.
Não é à toa que muitos se fixaram em locais como a Vila de São Francisco de Penedo e
passaram a fazer grandes negócios264. Segundo José Antônio Gonsalves de Mello, havia uma
penetração dos mascastes judeus em Penedo265 e, em alguns casos, compraram até engenhos e
construíram casas para aluguéis residenciais e pontos comerciais, como é o caso do rabino da
esnoga266 da vila, Samuel Israel. Para a historiadora Anita Novinsky, como os neerlandeses não
falavam o português, os judeus sefarditas que viviam em Amsterdã faziam uma ponte
intermediária nas transações comerciais aqui no Brasil neerlandês, e isso era um outro fator
que deixava na vantagem os judeus sefarditas. Por isso,
o comércio foi a atividade mais importante dos judeus sefaraditas no período
holandês no Brasil. Além do açúcar, outros produtos como tabaco, conservas,
peles, escravos, títulos de crédito, aparelhagem de navios de corso e todo o
gênero de fazendas secas e molhadas eram negociados. A arrecadação de
impostos, atividade exercida por judeus, levou a unia grande animosidade
contra eles. Atuavam também em profissões liberais, eram médicos, boticários
e juristas. Corno artesãos, sobressaíram-se na ourivesaria, na confecção de
uniformes de soldados e na instalação de uma fábrica de alvejante mineral.267
Para Douglas Apratto, em “A Presença Holandesa: A História da Guerra do açúcar
vista por Alagoas”, há duas formas de enxergarmos a dominação neerlandesa e uma das
primeiras é que “uma coisa é uma sociedade que seria construída sob o comando de Nassau;
outra seria com a WIC”268. Em que a primeira mostra “as obras publicas emprehendidas
NASCIMENTO, Rômulo Xavier. O Desconforto da Governabilidade: aspectos da administração no Brasil
holandês (1630-1644). Rio de Janeiro: UFF, 2008. 320 p. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal de Fluminense, Rio de Janeiro, 2008. p. 89.
Mello, José Antônio Gonsalves de. Fontes para a história do Brasil Holandês. Administração da Conquista II.
Recife, Companhia Editora de Pernambuco, 2004. p. 218.
Isso só é possível comprovar por conta de uma carta de crédito de João Nunes Velho, que foi relatado ao
inquisidor quando fora preso em Penedo 1645. MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: CristãosNovos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 239.
Idem, p. 231.
NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história.
São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 135.
268 TENÓRIO, Douglas Apratto; DANTAS, Carmem Lúcia. A presença holandesa. A história da guerra do
açúcar vista por Alagoas. Brasília: Editora: Senado Federal, 2013. P. 149.
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levavam em si mesmas o cunho da bôa administração, e essa paginas do livro da civilização de
um paiz (...) não houvera anteriormente obras tão consideráveis, e tão habilmente executadas”269
Então, se há duas formas de enxergarmos vamos trabalhar naquele que está voltada na
óptica da WIC, que tinha apenas propósitos comerciais e dentro dessa óptica cabe o comércio
judaico sefardita na Vila de São Francisco de Penedo e por consequência, vamos extrair as
informações mais valiosas para o tema aqui trabalhado e expondo as informações voltada ao
desenvolvimento do comércio desenvolvidos por esses comerciante judeus como e o caso da
produção açucareira, o mercado fornecedor e consumidor de escravos, dentro do comércio
transatlântico, produtos usuais da terra e a navegação desses produtos através das “estradas líquidas”270
que serviam para o escoamento dos produtos tanto produzidos em terras brasílicas quanto os que viam
da Europa, em destaque os que viam de Amsterdã.
Podemos perceber essa óptica comercial quando Rômulo L. Xavier Nascimento,
descreve em uma tabela as entradas e saídas de embarcações, sobre o controle comercial da
WIC, do porto do Recife através de navios, barcos, chalupas, e cruzadores com mercadorias
para o “sul de Pernambuco”271. Ele não informa o destino dessas embarcações, mas acreditamos
piamente que o “sul de Pernambuco”, seja a vila de São Francisco de Penedo, já que os outros
locais de chegada dessas embarcações em Alagoas ele deu nomes como Porto Calvo de Santo
Antônio dos Quatros Rios, Barra Grande e a vila de Alagoas.
São Registrados 44 desembarques dessas embarcações que saíam do Recife com destino
a Alagoas, sendo que a metade desses desembarques foram para o “sul de Pernambuco”, ou
seja, para a vila de São Francisco de Penedo, em que estavam concentrados os grandes
comerciantes judeus e entre eles João Nunes Velho, Jacob Franco Mendes, David Shalom,
Jacob Bueno, Isaac Baru e o rabino da vila, Samuel Israel.
Mas todo esse comércio só foi viável por conta do reaquecimento da indústria do açúcar
na região. Não é à toa, que Nassau consolida a administração local no contexto da produção
dos engenhos de açúcar e do comércio local que já havia antes de sua chegada com os judeus
269 Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900).
270 CARVALHO, Cícero Péricles de. Formação Histórica de Alagoas. Maceió, EDUFAL: 2015. p. 26
271 NASCIMENTO, Rômulo Xavier. Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o Atlântico no
Brasil Holandês. O envolvimento mitológico do Brasil Holandês: interpretação dos trabalhos de Albert Eckhout e
Frans Post (1637-2011). In: Brasil holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda,
2012. p. 215.
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sefarditas e junto a isso parte desses judeus possuíram alguns engenhos que foram confiscados e
leiloados por Nassau.
Então, através desses leilões não era apenas o comércio local que estava nas mãos dos
judeus, mas os engenhos em boa parte, sem deixar de mencionar que muitos senhores de
engenhos, cristãos, estavam nas mãos dos judeus que eram acionistas da WIC. A estrutura
administrativa local não foi alterada com a dominação neerlandesa, já que
a administração neerlandesa impôs à territorialidade luso-brasileira uma
territorialidade econômica, baseada fundamentalmente nas relações
entre a Companhia e a produção açucareira da interlândia. E a isso se
adaptaram bem vários senhores de engenho. Observemos, finalmente,
que os holandeses não alteraram as estruturas econômicas de
Pernambuco, baseadas na monocultura e na escravidão, daí a relativa
facilidade com que alguns senhores de engenho se adaptaram à
administração da WIC.272 (NASCIMENTO, 2015, p. 73)
Então, tomando essa medida Nassau alarga o domínio comercial da WIC sobre os
territórios conquistados, nesse caso aqui a Vila de São Francisco de Pendo, que era o limite do
Brasil neerlandês. Tendo em vista dos argumentos apresentados, o intuito dessa pesquisa é
trazer à tona esse comércio praticado por esses judeus sefarditas e mostrar às novas
interpretações em mundo em que o dinamismo econômico construiu uma intensa
comunicação entre a vila de São Francisco de Penedo e as demais capitanias e o mundo
Atlântico.
Segundo Ronaldo Vainfas273, entre os dez presos consta o nome do rabino Samuel
Israel, que dominava muito bem os dois idiomas, tornando-se muito rico por dominar ambas
as línguas. Segundo relato documental da Inquisição, ele era um dos mais ricos, assim como
João Nunes Velho. O rabino era um médio comerciante de panos, possuía nove casinhas nas
272 NASCIMENTO, Rômulo Xavier. Entre os rios e o mar aberto: Pernambuco, os portos e o Atlântico no
Brasil Holandês. O envolvimento mitológico do Brasil Holandês: interpretação dos trabalhos de Albert Eckhout e
Frans Post (1637-2011). In: Brasil holandês: história, memória e patrimônio compartilhado. São Paulo: Alameda,
2012. p. 215.
VAINFAS, Ronaldo. Os prisioneiros do Forte Maurício: redes judaicas e identidade religiosa no contexto da
Restauração portuguesa e das guerras pernambucanas no século XVII. In: FRAGOSO, João e GOUVÊA, Maria
de Fátima. (Orgs.) Na trama das redes: política e negócio no império português, séculos XVI-XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 207 - 313.
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cercanias do forte, possuía dois negros e emprestava a juros, além de atuar não só em Penedo,
mas no Recife e na Paraíba, como consta no processo inquisitório274 de 17 de agosto de 1646.
Mas o que nos chama atenção sobre o rabino diz respeito à posse das nove casas275 em
Penedo. Para que ou quem as usava? Será que uma delas era a esnoga de Penedo? Eram
alugadas? Se sim, para quem? O que funcionava nelas? Eram casas de escravos? Como havia
na região, em 1601, quando ainda era uma sesmaria de João da Rocha Vicente, como chama a
atenção o geógrafo alagoano Ivan Fernandes Lima276, em sua obra “Ocupação Espacial do
Estado de Alagoas”? Era um mini armazém para produtos coloniais? São perguntas que
precisam de respostas.
Segundo Tânia Kaufman, é costume nas comunidades judaicas buscarem nos locais
mais próximos um ponto para as principais celebrações religiosas e culturais do judaísmo.
Também há referência à casa onde havia os "livros proibidos", o que é uma clara referência ao
local onde se praticava o judaísmo. Essas casas e a esnoga, possivelmente, são retratadas na
iconografia Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci, de 1647, do pintor batavo Frans
Post, citado por Barleus em “Reurm per octennium in Brasilia”, como podemos observar na
figura 2. Nela, vê-se o Rio São Francisco e, acima da colina, o forte, além de, próximo a ele,
uma concentração urbana e casas no leito do rio São Francisco.
Figura 2 – Detalhe da iconografia Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci 1647 –
Frans Post.
ANTT-IL. Processo contra Samuel Israel, nº 11575/ 11.362. Código de Referência:
PT/TT/TSO-IL/028/11575. Disponível em: <http:\\digitarq.dgarq.gov.pt>. Acesso em: 30 dez.2020.
João Nunes Velho, aliás, Samuel Velho, em seu depoimento ao inquisidor, em 1647, declara que, além de bens
de raiz e bens móveis, 2 negros, ações e créditos, ele possuía em Penedo uma casa de 30 florins. MELLO, José
Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654. Editora
Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 239.
LIMA, Ivan Fernandes. Ocupação Espacial do Estado de Alagoas. Maceió SEPLAN 1992. p. 129.
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Fonte: CORRÊA DO LAGO, 2006, p. 56.
A iconografia, de Frans Post277, nos faz pensar que essas casas poderiam pertencer ao
rabino Samuel Israel e que uma delas poderia ser a esnoga, já que, segundo Bruno Feitler278, o
termo “sinagoga” é uma designação muito genérica. Desse modo, uma dessas casas poderia ser
a esnoga da Vila de São Francisco de Penedo. Para a historiadora Anita Novinsky, os judeus
quando aqui chegaram reuniam-se na casa de proeminente homem de negócio279. Isso fortalece
a ideia de que uma dessas casas seria a esnoga de Penedo e as demais eram casas para fins
comerciais. Por outro lado, essas casas, e até a própria esnoga, não são citadas nos relatórios
dos funcionários da WIC, como é o caso do belga Adriaen van der Dussen no “Relatório sobre
o estado das Capitanias conquistadas no Brasil”280, em 4 abril de 1640 em que o Forte Maurício
ficava
à margem do Rio São Francisco, no morro chamado Penedo, situado 5 ou 6
milhas da foz, rio acima; o morro é alto e íngreme e só há um ponto de
aproximação pelo qual se pode chegar ao forte. (...) Está situado na margem
Norte do rio e tem cinco baluartes, dos quais três estão voltados para o lado
pelo qual é possível atingir o forte, que domina o rio e a planície em torno,
que no verão o rio cobre. No forte estão 7 peças de bronze, 2 de 12 libras, 3
de 6 lb e 2 de 3 lb.281
Na cartografia de Johannes Vingboons, de 1665, aparece o Forte Maurício, com suas
legendas, mas não aparece nenhuma legenda sobre a edificação judaica. Em contrapartida, a
legenda à direita mostra a letra E indicando moradias portuguesas e lugares para animais, como
277 Frans Post, em que a representação da paisagem açucareira em Alagoas estava inserido dentro do projeto de
dominação do Conde João Maurício de Nassau-Siegen (1604-1679) e de Jacob van Meurs que estava fora desse
projeto idealizado pelo conde de Nassau mostrando que ambos os pintores divergiam em muitos aspectos. Ver
Revistas do Instituto Arqueológico Histórico e Geográfico Pernambucano (Recife, ano 38, n. 54, 1900).
Em uma Live no canal do youtuber para o Museu Judaico de são Paulo em 27 de julho de 2020, às 18 horas,
com o título; No Brasil holandês: a primeira comunidade judaica das Américas [História e Cultura no museu].
Acesso em: 27 jul. 2020.
NOVINSKY, Anita. et al. Os judeus que construíram o Brasil. Fontes inéditas para uma nova visão da história.
São Paulo, Editorial: Planeta, 2015. p. 135.
VAN DER DUSSEN, Adriaen; J. Maurice Conte de Nassau, M. Van Ceullen. Breve discurso sobre o Estado
das quatro capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte
setentrional do Brasil. (1638). In.: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a
economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981.
VAN DER DUSSEN, Adriaen; J. Maurice Conte de Nassau, M. Van Ceullen. Breve discurso sobre o Estado
das quatro capitanias conquistadas, de Pernambuco, Itamaracá, Paraíba e Rio Grande, situadas na parte
setentrional do Brasil. (1638). In.: MELLO, José Antônio Gonçalves de. Fontes para o Brasil Holandês – a
economia açucareira. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1981. p. 38.
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podemos notar na figura 4. Ou será que essas moradias se referem aos judeus sefarditas? Será
que essas moradias são as nove casas e a esnoga de Samuel Israel?
Figura 3 - Kaart van het fort 't welk graaf Maurits van Nassauw heeft doen leggen aan de rivier St.
Francisco den 29 maart de 1665 – Johannes Vingboons.
Fonte: https://www.google.com.br/. Acesso em: 18 fev. 2021.
Por outro lado, na tela Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci, de Jacob van
Meurs282, de 1671, notamos não só o Forte Maurício como casas, como também navios,
provavelmente os da WIC, desembarcando escravos ou embarcando produtos usuais da terra;
observamos, ainda, a figura do homem europeu desembarcando dos navios e os negros
puxando a carroça de boi e carregando-a, como se fossem negros cangueiros, além de algumas
coisas como produtos que foram embarcados ou desembarcados dos navios.
Figura 4 - Castrum Maurity Ad Ripam Fluminis S. Francisci de 1671 – Jacob van Meurs.
SALES, Francisco A. Arruando para o Forte: roteiro sentimental da cidade do Penedo. Penedo, Editora
Fundação Casa de Penedo, 2013. p. 30.
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Fonte: SALES, 2013, p. 30.
Dentre os 10 judeus presos com o levante do Forte Maurício, apenas dois
comercializavam o fumo283, produto a que os holandeses não davam importância, enquanto os
judeus sefarditas não desprezaram a “eva santa”284 dentro do contexto comercial da região.
Samuel Velho e Jacob Franco Mendes eram os dois comerciantes do fumo. Ainda não
sabemos a quantidades que eles vendiam, para quem vendiam e de onde vinham esses
produtos.
O que sabemos é que ambos faziam negócios em Porto Calvo e que os dois eram os
maiores comerciantes do fumo que se produzia em Porto Calvo e Penedo. Não é à toa que foi
relatado a Guilherme Rozen, intérprete do Santo Ofício, que Samuel Velho tinha como ofício
“enrolar tabaco”285. Além de Porto Calvo e Penedo, a incipiente indústria fumageira expande
seus tentáculos para as vilas de Alagoas, como é o caso da Vila Real de São José do Poxim e de
São Miguel (termo do Poxim). Isso no período da ocupação holandesa estando sob o controle
dos judeus, que controlavam esse comércio, ainda tímido, do fumo do século XVII.
No período colonial, o fumo foi considerado como atividade econômica secundária, já
que o lastro econômico da colônia estava centrado no açúcar, mas o cultivo do fumo foi uma
atividade essencial para o Brasil no comércio transatlântico de escravos em pleno século XVIII.
Unia-se a qualidade indiscutível como facilidade de plantio ao alto valor comercial,
como afirma Ana Emilia Staben, segundo a qual “a produção de tabaco na Capitania de
Pernambuco estava diretamente relacionada ao comércio de escravos com a Costa da Mina” 286
e, coincidentemente ou não, ambos faziam comércio em portos como Luanda, em Angola,
com escravos como foi citado anteriormente. A Costa da Mina foi o principal destino de grande
parte do tabaco produzido na Bahia e Pernambuco durante o período colonial. Isso desde do
século XVII.
O fumo começou a ser plantado no Brasil lá pelos idos de 1570, apenas para consumo
local, e não era necessária uma estrutura econômica complexa para plantar o tabaco e produzir
283 Revistas do Instituto do Açúcar e do Álcool (Rio de Janeiro, n. 1, 1942), p. 37.
Expressão utilizada por Sebastião Rocha Pita. Ver PITA, Sebastião da Rocha. História da América Portuguesa.
Ed. Senado Federal. Brasília, 2001. p. 38.
MELLO, José Antônio Gonsalves de. Gente da Nação: Cristãos-Novos e Judeus em Pernambuco, 1542-1654.
Editora Massangana, da Fundação Joaquim Nabuco, 1996. p. 513.
STABEN. Ana Emilia. Negócios de escravos. O comércio de cativos entre a Costa da Mina e a Capitania de
Pernambuco (1701 - 1759). Curitiba, 2008. Recife, 121 p. Dissertação (Mestrado) – UFPR. p. 45.
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o fumo; era preciso apenas a limpeza do terreno em volta. Com isso, as pessoas mais simples,
com acesso a terra, tinham a facilidade do cultivo do fumo sem possuir um investimento
econômico grande para plantá-lo, e teriam um produto de valor em sua horta no quintal de
casa, diferentemente do açúcar. Segundo Antonil, o início da plantação do tabaco já ocorria no
século XVI, pois
até que, imitado por vizinhos, que com ambição a plantaram e enviaram em
maior quantidade, e, depois, de grande parte dos moradores dos campos, que
chamam da Cachoeira, e de outros do sertão da Bahia, passou pouco a pouco
a ser um dos gêneros de maior estimação que, hoje saem desta América
meridional para o Reino de Portugal e para os outros reinos e repúblicas de
nações estranhas. E, desta sorte, uma folha antes desprezada, e quase
desconhecida, tem dado e dá atualmente grandes cabedais aos moradores do
Brasil e incríveis emolumentos aos erários dos príncipes287.
A plantação da “erva santa” foi proibida em 5 de fevereiro de 1639, ainda no período
da dominação holandesa, pelo então governador do Brasil, D. Fernando Mascarenhas, o
Conde da Torre, alegando que as pessoas deixariam de plantar gêneros alimentícios de
primeira necessidade para a colônia. Coincidência ou não, acreditamos que esse comércio do
fumo, na região sul da Capitania de Pernambuco, teve seu início no Curato288 de São José e
Madre de Deus do Poxim, que era um braço articulador comercial para a Vila de Penedo no
período da invasão holandesa, servindo para o escoamento dos produtos coloniais para a
Capitania da Bahia.
Mas a indústria fumageira289 só se torna expressiva no século XVIII. Não é à toa que, no
final do século XVII — em 1698 —, o desembargador Belchior da Cunha Brochado apontou
Pernambuco como maior produtor de fumo além da Bahia. A Capitania de Pernambuco tinha
lavradores que produziam do “Rio de S. Francisco, Rio de S. Miguel, (rio) Santo Antônio
Grande, Alagoas, Porto Calvo de Santo Antônio dos Quatros Rios, Sirinhaém, Barra Grande,
ANTONIL, André João. Cultura e opulência do Brasil por suas drogas e Minas. 3. ed. Belo Horizonte
:Itatiaia/Edusp, 1982. p. 51.
Curato, curató. Igreja da Cúria. Paróquia. Vocabulario Portuguez e Latino – volume 1. Biblioteca Brasiliana
Guita e José Mindlin. Disponível em: http://dicionarios.bbm.usp.br/pt-br/dicionario/1/CURATO.
Não é a nossa intenção aqui estudar a indústria fumageira no século XVIII. Ver. LOPES, Gustavo Acioli.
Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: Tabaco, açúcar, ouro e tráfico de escravos: Pernambuco: (16541760). São Paulo: USP, 2008. Tese de Doutorado.
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Rio Fermozo, e Guayana (Goiana)”290, de onde o tabaco era levado “em sumacas291” para os
portos baianos292 e, ao norte, seguia para Paraíba através do descaminho e contrabando.
Com o tabaco, geralmente se fazia troca ou resgate por escravos sem a figura de moeda.
O tabaco que saía das regiões da Vila de São Francisco de Penedo ia até chegar à Paraíba para
fazer negócio com a Costa da Mina e Angola e adivinha quem tinha negócios na Capitania da
Paraíba? Ele mesmo: Samuel Velho.
Contudo, concluímos e concordamos com Schwartz em que os produtos tropicais,
como o tabaco, eram responsáveis por um número expressivo dentro do superávit colonial, que
variava de 36% a 50%293. Esses números nos possibilitam ter o conhecimento do comércio do
fumo que havia entre a colônia e a Costa da Mina.
Então, levando-se em conta o que foi observado, o controle do intenso comércio que
havia na Vila de São Francisco de Penedo, por judeus, com outras vilas e regiões, permite-nos
fazer uma reflexão sobre a mentalidade comercial de Penedo, não através da óptica
neerlandesa, e sim da sefardita.
LOPES, Gustavo Acioli. Negócio da Costa da Mina e comércio atlântico: Tabaco, açúcar, ouro e tráfico de
escravos: Pernambuco: (1654-1760). São Paulo: USP, 2008. Tese de Doutorado. p. 119.
Navio pequeno, ou pequena embarcação, à vela, geralmente com dois mastros, comum na América do Sul até o
início do Século XX; usado, principalmente, em navegação de cabotagem e muito utilizado para o contrabando
no Brasil colonial. O tamanho das sumacas variava de 90 a 110 palmos. Seu tamanho era adequado para singrar
nos “rios-do-açúcar”.
Salvador era o melhor destino do tabaco produzido em Alagoas, pois além das praças baianas pagarem bem e
mais que as praças do Recife e Olinda pelo produto eram mais perto, e o custo do frete do fumo e de outros
produtos sairia mais barato. Ver SANTOS, Robson Williams Barbosa. ESCRAVIDÃO, SOCIEDADE E
ECONOMIA NA VILLA REAL DE SÃO JOSÉ DO POXIM – 1774 A 1854. Maceió: Programa de PósGraduação em História, Universidade Federal de Alagoas - UFAL, 2019. Dissertação.
Contudo, mesmo com a exportação desses produtos e da exploração do ouro, o açúcar sempre foi o lastro
econômico do Brasil colonial. Ver. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos Internos. Engenhos e escravos na sociedade
colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 167.
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ST03 – História da Educação: Objetos de estudo, Teorias, Fontes e Metodologias
de Pesquisa
O Ensino de História da Educação Local:
formação profissional e identitária de professores
Andrea Giordanna Araujo da Silva*
Resumo: Uma das questões fundamentais da educação superior é conhecer como ocorre o
processo de aprendizagem e como os conhecimentos experienciados e as habilidades
desenvolvidas, a partir dos estudos teóricos e das vivências pedagógicas, colaboram para a vida
social e profissional após o término do curso de graduação. Por conseguinte, o objetivo deste
estudo foi verificar como uma disciplina eletiva, com conteúdo de História Local, pode
contribuir para a formação profissional e identitária do pedagogo e da pedagoga. A pesquisa
documental teve como documentos de análise os relatos de experiência elaborados pelos
estudantes do curso de Pedagogia, cursistas da disciplina Tópicos da História da Educação em
Alagoas (2018-2019). As fontes analisadas foram documentos produzidos na disciplina ofertada
a três turmas dos turnos matutino, vespertino e noturno (2018) e duas turmas dos turnos
vespertino e noturno (2019). Para a identificação dos documentos, os Relatos de Aprendizagem
foram enumerados em ordem crescente e deles foram extraídos trechos para a composição do
corpus de análise, o que possibilitou identificar os sentidos e os significados atribuídos à
História Local na formação dos professores e das professoras que irão atuar nos anos iniciais
do ensino fundamental. Para compreender a relação entre memória e identidade realizou-se a
interpretação dos escritos de Pollak (1992; 1989) e Nora (1993). Como aporte teórico para
entender as possíveis relações estabelecidas entre a construção da memória nacional e o
currículo escolar, consideramos os estudos de Bittencourt (1993), Fonseca (2004), Nadai (1993)
e Arroyo (2013; 2019). Observou-se que o estudo da História da Educação Local possibilita
entender os processos políticos e culturais constitutivos da memória coletiva e dos sistemas de
ensino, como fenômenos históricos. Colabora, ainda, com o reconhecimento da necessidade
* Graduada em História. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestra em Educação pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (PE). Professora
da Universidade Federal de Alagoas. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação, Cultura e
Literatura; E-mail: andrea.giordanna@cedu.ufal.br.
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de preservação e guarda dos patrimônios históricos e culturais locais, mais especificamente os
documentos históricos alocados em espaços oficiais de memória (arquivos públicos e privados,
museus e institutos de pesquisa) ou disponíveis nas instituições de ensino escolar. Identificou-se
que o estudo da História Local é um recurso para o reconhecimento das práticas e resistências
pedagógicas e políticas inventadas por professores e estudantes no cotidiano escolar e também
se apresenta como um lugar de inclusão dos sujeitos marginais (negros, mulheres, indígenas e
operários) nos estudos históricos.
Palavras-chave: História Local. História da Educação. Formação Inicial de Professores.
Introdução
Uma das questões fundamentais no processo de escolarização atual é entender como se
dá o processo de aprendizagem e como os conhecimentos adquiridos e as habilidades
desenvolvidas colaboram para a vida social e profissional após o término do curso de
graduação. Estudos que abordam conteúdos sobre como os egressos se inserem e vivenciam o
cotidiano laboral contribuem para a compreensão sobre como os processos de formação
colaboram com as atividades profissionais cotidianas. Desse modo, conhecer as aprendizagens
experienciadas, ainda no percurso de formação dos graduandos, pode possibilitar a elaboração
e o desenvolvimento de práticas pedagógicas mais aproximadas das reais aptidões e saberes
necessários ao campo de laboral e à prática social. Assim, o objetivo deste estudo é apresentar
os conhecimentos tomados como relevantes à formação do(a) pedagogo(a) e relacionados ao
campo da História da Educação, mas especificamente ao estudo da História da Educação
Local.
O que fazemos é, de fato, repetir a questão: para que ensinar História? Porém, voltamonos para a educação superior, mais especificamente para a formação de professores(as)
polivalentes, e tomamos como objeto de referência a História Local, como parte dos estudos
sobre Educação.
No desenvolvimento da pesquisa, adotamos como documentos de análise os relatos de
experiência elaborados pelos estudantes do curso de licenciatura em Pedagogia294, cursistas da
disciplina Tópicos da História da Educação em Alagoas (THEAL), dos anos de 2018 e 2019.
Assim, as fontes em análise são documentos produzidos na disciplina ofertada a três turmas,
294 O curso é ofertado no Centro de Educação da Universidade Federal de Alagoas.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
dos turnos matutino, vespertino e noturno (2018), e a duas turmas, dos turnos vespertino e
noturno (2019). O objetivo do estudo foi verificar como uma disciplina eletiva, com conteúdo
de História Local, pode contribuir para a formação do(a) professor(a) polivalente, que se
qualifica para atuar na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental ‒ sendo,
portanto, um(a) profissional qualificado(a) para o exercício da docência com pessoas que se
encontram em processos de desenvolvimento/maturidade intelectual e lugar/identidade social
diversos.
Para a identificação dos documentos, os Relatos de Aprendizagem (RA) foram
enumerados em ordem crescente e foram extraídos deles trechos que possibilitam identificar as
possíveis aprendizagens alcançadas no processo de formação e os sentidos atribuídos à História
Local na formação dos professores dos anos iniciais do ensino fundamental.
Percurso das práticas de formação e pesquisa
No desenvolvimento da disciplina, um conjunto de atividades, divididas em dois ciclos
de formação, foram propostas aos graduandos e às graduandas. No primeiro momento, eles e
elas deveriam, de forma individual ou em grupo, realizar a interpretação e produzir uma
resenha de uma das dissertações elaboradas por egressos da linha de pesquisa de História e
Política da Educação do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal
de Alagoas. O exercício tinha como finalidade identificar possíveis temáticas, objetos e
abordagens de estudo sobre a História da Educação Local. Os textos acadêmicos foram préselecionados pela professora da disciplina e competiu aos estudantes, ainda, elaborar um plano
de aula e apresentar um seminário temático, tendo o texto acadêmico analisado como objeto de
interpretação, análise e exposição.
Como continuidade das práticas de formação técnica e pedagógica, os cursistas
participaram de visitas monitoradas realizadas no Arquivo Público de Alagoas (APAL), no
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e no Instituto Histórico e
Geográfico de Alagoas (IHGAL). A ação pedagógica teve como objetivo apresentar aos
licenciandos e às licenciandas importantes espaços para pesquisa sobre o patrimônio e a
história alagoana. Essas instituições são responsáveis pela guarda e preservação de documentos
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
históricos e detêm importante acervo da cultural material e imaterial de Alagoas. Também são
espaços que ofertam visitas guiadas para os usuários dos acervos295 e para o público em geral.
Na sequência, para trabalhar as especificidades da pesquisa histórica no tempo presente,
foi vivenciada a palestra “O currículo e a educação escolar indígena em Alagoas” (2018)296,
como atividade complementar ao estudo da dissertação A educação dos Jeripancó: uma
reflexão sobre a escola diferenciada dos povos indígenas de Alagoas (FERREIRA, 2009). No
segundo ano de oferta da disciplina, os alunos vivenciaram a oficina “Pesquisa histórica
escravidão em Alagoas”297 (2019), ofertada pelo Arquivo Público de Alagoas. Terminado esse
primeiro ciclo de atividades, os alunos produziram o primeiro relato de aprendizagem, tendo
como diretriz: descrever as aprendizagens obtidas com as atividades vividas na primeira fase de
formação, na disciplina THEAL. Também foram incorporados como fontes complementares
de análises, os relatórios de visita produzidos pelos(as) alunos(as) das disciplinas Saberes e
Metodologias do Ensino de História 1 e 2 (SMEH 1 e SMEH 2), que participaram das visitas
monitoradas nas instituições caracterizadas como lugares de preservação do patrimônio cultural
e histórico de Alagoas.
Por conseguinte, no segundo ciclo de formação, os estudantes, de forma individual ou
em grupo, realizaram a coleta e a análise de documentos históricos, disponíveis no site do
Grupo de Pesquisa História da Educação, Cultura e Literatura, e produziram um artigo e um
plano de aula para dar subsídio à realização dos seminários temáticos, em que apresentaram a
análise dos seguintes documentos históricos: “Almanaque do Ensino” (ALAGOAS, 1939),
“Compêndio de Pedagogia Prática” (ARAÚJO, 1886), “O desenvolvimento da Instrução
Pública em Alagoas” (BASTOS, 1939), “Instrução Pública e Instituições Culturais de Alagoas”
(COSTA, 1931) e “Como se ensina” (DORIA, 1923).
Para definir os conteúdos de análise dos documentos históricos estudados, adotamos os
temas apresentados na ementa da disciplina THEAL:
Estudos sobre a trajetória da educação em Alagoas, do Império à República
com enfoque nas políticas públicas, na legislação educacional, nas ideias e
teorias pedagógicas (e na expressão dessas através dos recursos didáticos:
295 Pesquisadores(as) e professores(as).
296 A exposição foi realizada pelo professor doutor Gilberto Ferreira, pesquisador da Temática História e
Educação dos Povos Indígenas em Alagoas.
297 Ministrada pelos professores Gean Carlos de Melo e Wellington Gomes.
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obras didáticas e métodos de ensino), na biografia de educadores alagoanos,
nas instituições educacionais públicas, particulares e filantrópicas e na
educação superior (UFAL, 2006, p. 67).
Assim, considerando as orientações da ementa da disciplina, na análise dos documentos
históricos buscou-se contextualizar o cenário político, cultural e educacional de produção das
obras e as biografias dos autores, realizando associações (não anacrônicas) com as práticas e as
instituições educativas alagoanas do tempo presente.
Segundo Moreira e Silva (2008), não é possível prever o resultado do currículo prescrito
(idealizado), pois como receptores e produtores de cultura, os sujeitos professores(as) e
alunos(as) elaboram os seus próprios itinerários de transmissão e de recepção de
conhecimentos. Isso porque
O currículo pode ser movimentado por intenções oficiais de transmissão de
uma cultura oficial, mas o resultado nunca será o intencionado porque,
precisamente, essa transmissão se dá em um contexto cultural de significação
ativa dos materiais recebidos. A cultura e o cultural, nesse sentido, estão tanto
naquilo que se transmite quanto naquilo que se faz com o que se transmite
(MOREIRA; SILVA, 2008, p. 27).
Arroyo (2019, p. 9) reclama que a memória nacional não trata da história dos “Outros”.
Declara que a falta de reconhecimento das produções culturais e intelectuais dos coletivos
populares marginalizados (“[...] expropriados de seus direitos à vida, terra, teto, trabalho, renda,
saúde, educação”, identidades sexuais e étnicas) contribui, no ambiente escolar, com a
precarização dos corpos e mentes humanas. Para o autor, conhecer a história educativa dos
“Outros” e suas formas de resistência possibilita conhecer e compreender as estratégias
políticas administradas pelo Estado para controlar e dirigir os interesses dos oprimidos.
Esta matéria contribuiu para o aprendizado de como trabalhar com documentos históricos,
fontes históricas e a produção de dissertações e teses, principalmente com a visita ao Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas que nos deu uma noção material da história desse estado em
que nos encontramos hoje, e nos proporciona um conhecimento para ser passado aos nossos
futuros alunos, pois precisamos reviver a identidade do nosso estado, relembrarmos de toda
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riqueza que passa despercebida, desde uma Avenida Fernandes Lima, até a cidade de Delmiro
Gouveia.
[...] em um momento ele [Delmiro] investe no interior de Alagoas, construindo uma fábrica, e é
a partir desse momento que a educação entra na sua história, ao perceber que era necessária
uma mão de obra qualificada para o funcionamento da fábrica, ele funda uma escola, que
apesar de uma formação para o trabalho, e uma educação baseada em castigos e recompensas,
era algo surreal para época, e os operários idolatravam Delmiro, porque ao levar em
consideração a situação fora daquele ambiente que eles viviam, aquele contexto era o melhor
que se poderia ter (AMARÍLIS298, Relatório 12, 2019b, p. 4).
Dois conteúdos de aprendizagem são apontados pelo estudante: a) a necessidade de
conhecer a História Local para aptidão/saber profissional; e b) o interesse em reconhecer as
demarcações sócio-históricas do espaço geográfico alagoano, a partir do estudo (e
desmistificação) dos eventos históricos e das memórias selecionadas para serem coletivas: “[...]
precisamos reviver a identidade do nosso estado, relembrarmos de toda riqueza que passa
despercebida, desde uma Avenida Fernandes Lima, até a cidade de Delmiro Gouveia”
Relatório 12, 2019b, p. 4). Goksu e Someni (2019) observam que o ensino de História Local
possibilita a aprendizagem de saberes do campo geográfico e especialmente das culturas locais,
aproximando o passado e o presente por apresentar conexões entre os acontecimentos
ocorridos no passado e os efeitos e as experiências relacionados a eles, vividos pelos sujeitos do
presente, de modo que a transferência do patrimônio histórico de uma geração a outra ocorra
de forma mais interessada.
Os eventos históricos citados estão intrinsecamente relacionados à memória dos
excluídos. O primeiro trata-se da rememoração de um personagem político, Fernandes Lima,
que teve participação ativa no Quebra do Xangô (1912), um grave acontecimento de
intolerância religiosa e de violência policial e política imprimida aos terreiros de cultos afrobrasileiros em Alagoas, no começo do século XX. O segundo acontecimento citado lembra o
surgimento da cidade de Delmiro Gouveia, a partir do processo de implantação da Usina
Hidrelétrica de Paulo Afonso (1913) e da Fábrica de Linhas Estrela (1914), uma indústria de
produção de tecidos, instituída no sertão alagoano, também nos primeiros anos da segunda
298 Para preservar a identidade dos graduandos e das graduandas produtores dos documentos analisados neste
estudo, utilizaremos nomes de flores como substitutos de seus sobrenomes.
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metade do século XX. A empresa associou práticas culturais da sociedade patriarcal e
coronelista do sertão com procedimentos técnicos próprios da produção industrial e criou um
conjunto de condutas e procedimentos culturais e educativos impositivos para os operários da
fábrica, tendo como perspectiva a promoção da civilidade (NASCIMENTO, 2012).
Pollak (1992) observa que a memória pública (coletiva) pode ser subsidiada por “lugares
de apoio à memória”. Mesmo distante no que tange ao tempo-espaço de seus ancestrais, uma
geração pode ser provocada ao pertencimento político, cultural, étnico ou racial, por exemplo,
por meio dos lugares formadores de memória. Observamos que as visitas monitoradas
provocam nos(as) estudantes o reconhecimento299/sentimento de pertencimento cultural e de
reinvindicação do saber como direito/patrimônio coletivo.
A visita ao arquivo gerou momentos de descobertas e sentimentos de pertencimento, pois
conhecer um pouco mais sobre aquilo que nos pertence, é nosso – nossa história – nos faz
compreender coisas que talvez sem a experiência oferecida não fosse tão bem consolidada
(LÍRIO, Relatório 02, SMEH I, 2019).
Não poderia deixar de falar sobre a visita no Arquivo Público e no IPHAN, que vergonha nasci
e me criei em Maceió e nunca tinha ouvido falar desses patrimônios e nem das importâncias
dos mesmos para a nossa cultura. A experiência foi única e riquíssima, poder ver que os
documentos estudados se encontram lá sem dúvidas isso já dá uma vida aos textos. Agradeço a
você professora e a nossa Universidade por me proporcionar um momento desse, após 29 anos
uma descoberta valiosa. E com toda certeza levarei a minha filha para que ela desde pequena
possa vivenciar e perceber a importância da História em nossas vidas. Ninguém tem o direito de
apagar o nosso passado, e nem nos privar dele. Acredito que faria toda a diferença na formação
de todos da Universidade, que eles tivessem o direito de também conhecer esses patrimônios e
refletir sobre a sua importância para a cultura e das futuras gerações (JADE, Relatório 20, 2019,
p. 1).
299 Nos relatos, os(as) estudantes utilizam a palavra “sentimento” para expressar a sua condição de partícipe de
um grupo social específico. Nos fragmentos analisados, observa-se o que significado social e o sentido político
produzido se aproxima do que Arroyo (2019) denomina de “reconhecimento dos professores”, de suas origens
étnicas, culturais e classe.
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Desnaturalização300, desmitificação e problematização dos fenômenos sociais e históricos
são os objetivos do estudo da História da Educação em âmbito universitário. A abordagem da
História da Educação Local proporciona o desenvolvimento do olhar crítico sobre a realidade
escolar do presente, pois desvela as intencionalidades políticas e ideológicas de um discurso
que busca rememorar que estão no passado as experiências mais exitosas de desempenho
estudantil e de qualidade da educação pública. A produção de uma memória que ressalta as
práticas curriculares conservadoras (cultura letrada), tradicionais (ensino memorístico),
autoritárias (disciplinadoras) e excludentes (meritocráticas) como sinônimos de qualidade
educacional é ainda uma narrativa muito presente no senso comum; isto fortalece a exclusão
dos saberes e das práticas produzidos pelos “Outros” no ambiente escolar.
Nas aulas de história de Alagoas, realizamos leituras fundamentais para a formação dos futuros
docentes, pois é compreendendo sobre a constituição do estado e de como foi fundado o
sistema educacional, conseguimos ter uma consciência maior e conseguimos estabelecer uma
relação, sentimento de pertencimento e de identidade com o local que moramos, buscando
romper com ideias pragmáticas, tradicionais e preconceituosas (DICENTE, Relatório 30, 2019,
p. 1).
Com a leitura desses e de outros autores, percebo que não podemos afirmar que antes se tinha
uma boa educação, pois não existia a condição de escolhas para a maioria, era aquilo ou nada.
Fica bem claro no estudo de Delmiro Gouveia, aquelas pessoas da Vila da Pedra não tinham
escolhas, era pura sobrevivência e por essas razões não podemos julgar aquela educação de boa
qualidade. Estudar esses acontecimentos, me leva a olhar o presente de forma diferente, e
defender a educação pública que temos, e não permitir que digam que antigamente se tinha
educação com qualidade (JADE, Relatório 20, 2019, p. 1).
No Brasil, a História Local tem perdido sentido e lugar na formação dos jovens. A
instituição de exames de verificação do desempenho acadêmico estudantil, com conteúdo
único e generalista, pode estar contribuindo para reduzir as práticas e o tempo pedagógico
direcionado a esse tipo de proposta de ensino. Mesmo que o dispositivo oficial (MINISTÉRIO
DA EDUCAÇÃO, 2017) apresente 40% para carga horária dos campos disciplinares para os
300 Entendimento das instituições escolares, práticas pedagógicas e relações educativas como construção social,
por isso instituídas por interesses políticos e ideológicos em disputa (ARROYO, 2011).
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estudos de conteúdo local, na análise da proposta para o ensino de História, do Referencial
Curricular de Alagoas (ALAGOAS, 2019), não observamos uma proposta estruturada para o
ensino de História Local. Verifica-se o indicativo de abordagem de alguns eventos pontuais da
História Local, mas nem sempre numa perspectiva de formação articulada com outros campos
do saber e mesmo com os conteúdos referentes à história do Brasil; e menos ainda com a dita
história universal (ocidental).
Goksu e Someni (2019) apontam que o tempo para o estudo da História Local e os
recursos disponíveis são restritos nos currículos escolares. No caso da universidade pesquisada,
a disciplina THEAL caracteriza-se como eletiva e, sem um professor com concurso específico
para ministrá-la, cabe a professores de áreas científicas aproximadas, como os de Metodologia
do Ensino de História ou de Fundamentos Históricos da Educação, ministrá-la. Como
consequência, o componente curricular é ofertado sazonalmente, de acordo com a necessidade
dos docentes de complementar a carga horária de trabalho ou de acordo com o interesse
acadêmico particular (envolvimento em projetos de pesquisa com a temática, por exemplo). No
curso da última década, a disciplina foi ofertada em 2012, depois em 2016 e só voltou a ser
ofertada em 2018. Se consideramos que o curso de Pedagogia do Centro de Educação da
Universidade Federal de Alagoas é ofertado em três turnos letivos e recebe 180 ingressantes
por semestre, podemos afirmar que algo em torno de 24 turmas não tiveram a possibilidade
discutir de forma sistemática questões históricas e específicas relacionadas à História da
Educação em Alagoas. Entendemos isso como uma perda no processo de formação, pois os
relatos dos futuros professores e professoras possibilitam pensar que práticas de disciplina
contribuem com a formação cultural ampla e a profissionalização, mediante o desenvolvimento
da consciência sobre a necessidade de preservação e guarda do patrimônio histórico local.
Em suma, a experiência obtida através desse momento que se caracteriza pela ida ao Arquivo
Público, possibilitou-me a inúmeras sensações e sentimentos que nunca tinha tido antes, um
deles foi a percepção de quão rica é a história de Alagoas, dos inúmeros documentos que
existem ali e tratam da história de um povo, história essa que muitas vezes é ocultada devido à
ausência de acesso dos sujeitos a esses documentos e bens patrimoniais. Além disso, minha
sensibilidade foi despertada quanto a importância de preservar aquele espaço, pois, trata-se de
um ambiente de um valor histórico riquíssimo, uma vez que, se aquelas fontes forem apagadas
ou destruídas, a história e a memória de um povo e de um estado inteiro (Alagoas) também será
esquecida (PETÚNIA, Relatório 01, 2019, p. 3-4).
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Só vim saber da existência do Arquivo Público de Alagoas a partir da disciplina de Saberes e
Metodologias do Ensino de História I, apesar deste acervo era de acesso garantido para a
população. Após conhecer este lugar que têm marcos importante da história de Alagoas, fiquei
bastante curiosa para conhecer mais profundo a historicidade do lugar onde resido
(ORQUÍDEA, Relatório 09, SMEH 1, 2019).
A visita monitorada ao APAL, e às demais instituições de pesquisa e guarda de
patrimônio cultural e histórico de Alagoas, como prática estrutural da disciplina, foi uma
demanda política reconhecida/surgida mediante situação traumática. Em 2 de setembro de
2018 ocorreu um incêndio no Museu Nacional do Brasil e, nesse momento, identificamos que
muitos estudantes das disciplinas SMEH 1 e SMEH 2 não apresentaram sensibilidade com a
situação; falavam de forma racionalizada, mas sem apresentar sentimento de perda. Era só um
evento ocorrido, lá longe, no Rio de Janeiro.
Assim, em 2018, a visita de caráter pedagógico foi incorporada às práticas da disciplina
de THEAL e, em 2019, também se tornou atividade didática regular das disciplinas SMEH 1 e
SMEH 2. Isso porque entendemos que o ensino no campo pode possibilitar a aprendizagem e
o desenvolvimento de sensibilidades que não são possíveis de serem realizadas no ambiente da
sala de aula:
[...] foi a primeira vez nesse semestre que a turma do 7º período vespertino saia para uma aula
de campo, na realidade poucas vezes fizemos isso ao longo do curso. E foi um momento de
muita ansiedade para mim, porque eu nunca tinha visitado o arquivo público, só passava na
porta e não fazia ideia da riqueza de coisas que tinham ali dentro, documentos tão antigos,
aonde vimos que os danificados eram todos congelados e mais de 6000 caixas, dívidas por
números e o mais importante tudo isso sobre o Estado de Alagoas. Analisar as fotografias
antigas, ver lugares que passamos diariamente e que estão extremamente diferentes de antes,
além do jornal do século passada, onde rapidamente podemos ver o conteúdo dele, as
propagandas e em como tudo era tão diferente de hoje em dia, até mesmo a grafia das palavras.
Durante toda a visita ao arquivo me senti muito empolgada com tudo que víamos e estávamos
descobrindo, mas para mim o momento mais importante foi o da oficina, mesmo conhecendo
algumas questões que ali foram discutidas, a questão da escravidão, de como tudo ocorreu de
forma tão cruel, a revolta dos malês, as questões das leis, do processo de alforria e de como
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tudo isso contribui e implica de forma direta pra explicar nossa sociedade atualmente é muito
pertinente, porque algumas pessoas ali não tem acesso a esse tipo de discussão e aquele espaço
foi de suma importância para isso, além de me levar mais uma vez a refletir sobre meu papel
enquanto mulher negra na sociedade (CAMÉLIA, Relatório 32, SMEH 1, 2019).
Durante a realização da oficina citada, os expositores apresentaram documentos
(fontes) que foram utilizados para a produção de suas pesquisas e que estavam sob a guarda do
APAL. A conexão entre a visita ao ambiente de preservação de guarda dos documentos
históricos e a vivência de uma formação que abordava o uso dos documentos manuseados
durante a visitação foi abordada como algo positivo nos relatórios elaborados pelos estudantes:
[...] e o mais interessante dessa palestra foi quando o palestrante nos informou que partes das
informações que ele apresentou para nós, foi fruto de pesquisas dentro do acervo.
E isso deixou ainda mais nítido, a importância arquivo público de Alagoas, dado que esse se
trata de uma verdadeira fonte de informação e saber. A visita técnica me proporcionou
conhecer tal espaço além disso, compreender a importância desse espaço, a mim foi
possibilitado mesmo que de modo breve um grande resgate com relação a história local cultural
do estado, a história de um povo, do meu povo. E diante disso só posso expressar minha
gratidão a professora por ter me proporcionado tamanha experiência (BEGÔNIA, Relatório
14, SMEH I, 2019).
[...] é notória a grande relevância de ensinar a todos a conhecer e pertencer a sua história local
buscando compreender os acontecimentos em volta em suas relações. No final da visita,
participamos de uma oficina com um estudo histórico sobre os percursos da escravidão em
Alagoas e demais regiões trazendo um novo olhar a respeito da reação dos negros, como
protagonistas e reativos a tudo que lhe acontecia no caminho de escravidão com uma
subordinação forçada, sacríficos, trabalho escravo e preconceito. Os pesquisadores
desmistificaram a ideia de ‘protagonismo’ que os registros reforçam só relacionada a raça branca
dos senhores, mas cabe trazer com clareza o real protagonismo dos negros escravos nessa
história pois foram acima de tudo inconformados, sujeitos ativos na caminhada, usaram a
inteligência, a força e a razão para resistir contra os levantes e opressão da burguesia mostrando
a perseverança de um povo contra os levantes políticos, econômicos e sociais (AZALÉIA,
Relatório 11, SMEH I, 2019).
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A visita ao APAL e à vivência da oficina possibilitou aos(às) estudantes a compreensão
de que é possível o estudo histórico de outros sujeitos para além dos membros das elites locais
(os ilustres alagoanos301). Pois no APAL, assim como no IHGAL, é possível encontrar
documentos de diferentes tempos e que fazem referências a grupos sociais e sujeitos históricos
diversos que podem servir de recursos para a elaboração da história dos excluídos da
historiografia tradicional, aquela de viés eurocêntrico, que não considera os dissidentes
da heteronormatividade, a diversidade cultural étnica das comunidades indígenas e quilombolas
como objeto de pesquisa, por exemplo. Assim, é possível entender que a história oficial é uma
elaboração política com funções práticas: produzir e difundir um tipo exclusivo de memória
nacional (BITTENCOURT, 1993; FONSECA, 2004; NADAI, 1993). Logo, não são os
documentos ou fontes que decidem quem serão os sujeitos da história oficial, mas são os
sujeitos pesquisadores e as instituições de pesquisa que realizam essa seleção e a hierarquização
das históricas contadas, bem como o silenciamento dos sujeitos oprimidos.
Nora (1993) observa que, com a sociedade moderna, a história-nação vai perdendo o
sentido e a história-sociedade ganha espaço. Essa última perspectiva de escrita talvez seja o que
se busca na produção do conhecimento e do ensino de História Local: aproximar o sujeito de
suas ancestralidades, dando-lhe o direito de identificar-se com a História dos “Outros”, aqueles
que não estão na historiografia nacional oficial (ARROYO, 2019).
Considerações finais
Para a produção de um saber laico, de discurso crítico, fundamentado na análise de
bens materiais e imateriais e de uso comum como a História (NORA, 1993), é fundamental
que os espaços de preservação dos documentos históricos sejam mantidos pelo setor público e
estejam disponíveis como lugares de vivência social e de práticas de pesquisa.
O estudo de História Local possibilita: a) interrogar as tradições; b) questionar os
valores que contribuem para a produção de ações coletivas e individuais discriminatórias e
violentas; c) repensar o significado histórico e o sentido político do uso no presente de
determinados símbolos políticos e ideológicos produzidos em outras conjunturas históricas; e
301 Essa é uma expressão comum no cenário intelectual alagoano quando se faz referência a um dos membros da
elite intelectual, política ou literária do estado.
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d) disputar os espaços culturais de produção de representações que, no caso alagoano, tem
dado sustentabilidade à cultura do patriarcado e do colonialismo (VERÇOSA, 2015).
Esses estudos contribuíram para entender o descaso com ensino primário até os dias atuais, ver
a desigualdade existente em relação as raças e classes. Com os índices de analfabetismo em
Alagoas é problema antigo. Como as questões políticas em Alagoas de desmando, e interesses
são antigos, as indicações em relação as cadeiras de professores mesmo com avanços de
conquistas continuam as mesmas. A organização da forma tradicional de ensinar ainda é
praticada. Ainda existe casa em bairros em Maceió, sem muita organização ou com professores
capacitados que servem para o ensino das primeiras letras.
Portanto com essa contribuição rever a prática e assumir uma responsabilidade de
comprometimento com educação, principalmente em se tratando na nossa Alagoas que traz
uma trajetória de descaso e um alto índice ainda de analfabetos, e com escolas com ensinos
precários (ANTÚRIO, Relatório 24, 2019a, p. 2).
Através desses estudos podemos compreender, que traz uma contribuição para entendemos a
precariedade da educação, principalmente em relação ao ensino iniciais que muito foi
negligenciado desde a instituição do ensino no Brasil, vimos professores sem qualificação,
escolas desorganizadas, politicagem, interesses individuais, que refletem nos dias atuais, mesmo
com tantas lutas e conquistas, o reflexo de analfabetismo ainda é alto em Alagoas em relação aos
outros estados. Com esse entendimento a nossa prática devem ser conscientes desse atraso,
mesmo que sozinhas não podemos resolver, mas a nossa atuação deve ser responsável e com
seriedade, e comprometimento em se tratando de atuamos no ensino dos anos iniciais. A nossa
prática reflete na história futura da educação em Alagoas e que seja escrita com avanços, pois
mesmo com mais de 200 anos não tem dado resultados positivos em se tratado da educação
pública, e da forma de se fazer política em nosso Estado (ANTÚRIO, Relatório 33, 2019b, p.
1).
Observamos que os conhecimentos e as práticas vivenciadas na disciplina, além da
consciência crítica, possibilitam o reconhecimento do pertencimento e uma maior sensibilidade
para a militância político-pedagógica no interior das escolas, sustentada pelo conhecimento das
formas de dominação e de exclusão social e pela produção, com participação ativa e criativa
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dos trabalhadores professores e professoras, de práticas e estratégias alternativas à dominação e
à precarização da vida e do desenvolvimento humano (ARROYO, 2019).
Vemos no curso da disciplina que a memória (individual e coletiva) ‒ como fenômeno
social, constituída por lembranças, sendo mutável e fluída, que possibilita esquecimentos e
silenciamentos (NORA, 1993; POLLAK, 1992; 1989) ‒ vai sendo problematizada como um
instrumento para a constituição da identidade social. Assim, a História da Educação Local vai
sendo observada como um instrumento que propicia a reorientação da memória coletiva, numa
perspectiva mais interpretativa e crítica do passado e de constituição da identidade social e
profissional.
Referências
ALAGOAS. Referencial curricular de Alagoas: ensino fundamental. Maceió: Secretaria de
Estado da Educação, 2019.
ARROYO, Miguel Gonzáles. Currículo, território em disputa. Petrópolis: Vozes, 2011.
ARROYO, Miguel Gonzáles. Vidas ameaçadas: exigências-respostas éticas da educação e da
docência. Petrópolis: Vozes, 2019.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Sujeitos revolucionários: trabalhadores/as rurais como fonte de conhecimento
histórico escolar
Adriana Mastrangelo Ebecken*
RESUMO
Este trabalho pretende colocar em pauta a invisibilidade dada à história dos trabalhadores/as
rurais e movimentos sociais do campo no ensino de História na educação básica. Refletir sobre
a importância de se conhecer esses sujeitos históricos desde a formação escolar – suas histórias
e luta por melhores condições de vida. Propõe que esses sujeitos sejam discutidos em sala de
aula a fim de construir um conhecimento histórico escolar a partir da interseccionalidade entre
classe e raça para que possibilite aos educandos uma melhor compreensão da estrutura social
brasileira. É construído, portanto, partindo da compreensão de que a colonização do Brasil se
deu pela codificação das diferenças entre conquistadores e conquistados na ideia de raça, que
foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais e de que o currículo escolar é um
espaço de disputa. Dessa forma, ao apresentá-los como sujeitos de suas vidas, propõe romper
com um sistema de relações de força simbólica – que se dá através de sua invisibilização – cujo
papel é reforçar as relações de força material na sociedade brasileira.
Palavras-chaves: ensino de História; história do Brasil; história dos movimentos sociais no
campo.
Introdução
O presente artigo é reflexo da pesquisa realizada no mestrado profissional em Ensino
de História (ProfHistória), cursado na Universidade Federal Fluminense (UFF). Tal pesquisa
visa construir uma reflexão acerca da invisibilidade dada aos trabalhadores rurais brasileiros no
ensino de História e, dessa forma, elaborar um material para professores da educação básica, a
partir do levantamento de fontes históricas, para que os mesmos possam abordar a história dos
movimentos sociais no campo em sala de aula. Pensa essa proposta através de um recorte
*
Licenciada e graduada em História. Professora de História na rede estadual de educação do estado do
Rio de Janeiro. Mestranda em Ensino de História pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
dricaebecken@yahoo.com.br. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
(CAPES); orientada por Samantha Quadrat.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
múltiplo sobre os atores que vivem no mundo rural a fim de quebrar com um olhar
homogeneizante sobre estes, visto que, no pouco que aparecem, são apresentados como um
grupo submisso ou ignorante em relação a suas demandas e necessidades para viver/sobreviver
– quando não aparecem de forma caricaturada como o matuto, o ingênuo ou o fanático
religioso.
O trabalho compreende que tais personagens possuem, na sua essência, o intuito de
transformação da sociedade brasileira e de rompimento com a colonialidade imposta pelo ideal
da modernidade. Sujeitos revolucionários. Entende ainda que apresentá-los na educação básica
como conteúdo escolar se faz dentro de um espaço de disputa que é o currículo. Quando se
está dentro de sala de aula, pouco se fala sobre as populações do campo, como se estas
fizessem parte apenas dos bastidores dessa história. Suas trajetórias e lutas por direitos não
possuem visibilidade no ensino de história, uma vez que o conteúdo é especialmente focado
numa história econômica ou sob o olhar das relações político-administrativas.
Onde estão os trabalhadores rurais brasileiros?
A atual Base Nacional Comum Curricular (BNCC) afirma a importância em destacar a
relação sujeito/trabalho e toda a sua rede de relações sociais (BRASIL, 2018, pp 556-557). Traz
apontamentos que dão respaldo para levar a história da população do campo para dentro do
ensino de História, por exemplo, quando coloca como competências específicas da História
para o ensino fundamental (BRASIL, 2018, p 402):
4. Identificar interpretações que expressem visões de diferentes sujeitos,
culturas e povos com relação a um mesmo contexto histórico, e posicionar-se
criticamente com base em princípios éticos, democráticos, inclusivos,
sustentáveis e solidários.
5. Analisar e compreender o movimento de populações e mercadorias no
tempo e no espaço e seus significados históricos, levando em conta o respeito
e a solidariedade com as diferentes populações.
No entanto, em uma análise sobre os textos referentes ao ensino fundamental e ao
ensino médio, como documento norteador do currículo, percebemos a invisibilidade desses
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
atores sociais na sua descrição. Por exemplo, referente ao ensino fundamental, a menção aos
camponeses, especificamente, aparece somente no conteúdo final do 9° ano em:
Objetos de conhecimento: A questão da violência contra populações
marginalizadas; Habilidades:
(EF09HI26) Discutir e analisar as causas da violência contra populações
marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses,
pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura
de paz, empatia e respeito às pessoas (BRASIL, 2018, pp430-431).
De acordo com Kátia Abud (2004, p 28), currículos e programas são instrumentos de
intervenção do Estado no ensino, interferência na formação da clientela escolar para o
exercício da cidadania no sentido que interessa aos grupos dominantes. O discurso do poder se
pronuncia sobre a educação e define seu sentido, forma, finalidade e conteúdo e estabelece
sobre cada disciplina o controle da informação a ser transmitida e da formação pretendida. O
currículo é o veículo para disseminação do discurso do poder e difusão da ideologia entendida
como corpus de representações e normas que fixam e preservam o que e o como se deve
pensar, agir e sentir, assim como legitima a divisão social a partir de um imaginário coletivo. A
ausência dos trabalhadores rurais no currículo corrobora para o apagamento da população do
campo, assim desarticulando “o que e o como se deve pensar, agir e sentir” a respeito desses
sujeitos. Invisibilizados para a população como um todo, invisibilizados no retrato sobre si. O
texto da BNCC acaba por dissolver também a interseccionalidade entre classe e raça quando se
pensa a estrutura social brasileira, já que, apesar de reiterar algumas vezes como conteúdo de
aprendizado a questão indígena e quilombola, reflexo das leis 10.639/2003 e 11.645/2208,
referente a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena na
educação básica, não apresenta esses grupos dentro ou em relação à realidade do campo
brasileiro.
No texto referente ao ensino médio, ao desenvolver a categoria fronteira para ser
trabalhada nas Ciências Humanas e Sociais, a BNCC coloca:
Também há fronteiras de saberes, que envolvem, entre outros elementos,
conhecimentos e práticas de diferentes sociedades. Caçar ou pescar, por
exemplo, são atividades que demandam habilidades nem sempre conhecidas
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e desenvolvidas por populações das grandes cidades. Plantar e colher exigem
competências e habilidades experimentadas no dia a dia por populações
dedicadas ao trabalho agrícola, desenhando fronteiras, frutos de diversas
formas de produção e convívio com a natureza. Assim, no Ensino Médio, o
estudo dessas categorias deve possibilitar aos estudantes compreender os
processos identitários marcados por territorialidades e fronteiras de diversas
naturezas, mobilizar a curiosidade investigativa sobre o seu lugar no mundo,
possibilitando a sua transformação e a do lugar em que vivem, enunciar
aproximações e reconhecer diferenças (BRASIL, 2018, pp 552-553).
E para a Competência Específica 2 das Ciências Humanas e Sociais:
Os atores sociais, na cidade, no campo, nas zonas limítrofes, no interior de
uma cidade, região, Estado ou mesmo entre Estados, produzem diferentes
territorialidades que envolvem variados níveis de negociação e conflito,
igualdade e desigualdade, inclusão e exclusão. Dada essa complexidade de
relações, é prioritário levar em conta o raciocínio geográfico e estratégico,
bem como o significado da história e da política na produção do
espaço(BRASIL, 2018, p 561).
Logo adiante, como uma das habilidades a serem estimuladas a partir desta
competência:
(EM13CHS204) Comparar e avaliar os processos de ocupação do espaço e a
formação de territórios, territorialidades e fronteiras, identificando o papel de
diferentes agentes (como grupos sociais e culturais, impérios, Estados
Nacionais e organismos internacionais) e considerando os conflitos
populacionais (internos e externos), a diversidade étnico cultural e as
características socioeconômicas, políticas e tecnológicas (BRASIL, 2018, p
561).
Percebe-se certa superficialidade para o tratamento das questões do campo bem como
das histórias de sua gente, ainda que, em determinado trecho, o texto da BNCC traga certa
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isenção ao colocar que os agrupamentos propostos não devem ser tomados como modelo
obrigatório para o desenho dos currículos (BRASIL, 2018, p 402).
A análise da BNCC se faz sob a perspectiva de Michael Apple (2011, p 59) ao afirmar
que o currículo não é um conjunto neutro de conhecimentos, mas parte de uma tradição
seletiva, produto das tensões, conflitos e concessões culturais, políticas e econômicas. Ao nos
perguntarmos como os trabalhadores rurais e movimentos sociais do campo no Brasil são
apresentados em sala de aula (ou não) coloca-se esse questionamento sob a perspectiva da
relação do sistema de ensino com a estrutura das relações de força que se estabelecem entre as
classes sociais, compreendendo que este grupo ocupa na sociedade o lugar daqueles que
vendem sua mão de obra e estão, historicamente, sujeitos a redes de poder que os colocam em
posição subalterna àqueles que detém a posse da terra ou melhores condições materiais de
produção e sobrevivência no campo brasileiro.
Convém colocar que muito do que aqui se coloca a respeito dos trabalhadores do
campo também ocorre com os trabalhadores fabris, de serviços e de outros espaços referentes
ao ambiente urbano brasileiro. Encontramos a possibilidade de tratar sobre estes em sala de
aula na unidade temática “O nascimento da República no Brasil e os processos históricos até a
metade do século XX” da BNCC para o 9° ano (BRASIL, 2018, p 428), nos objetos de
conhecimento com os títulos “A emergência da vida urbana e a segregação espacial”, bem
como "O trabalhismo e seu protagonismo político” com as referidas habilidades “Identificar e
discutir o papel do trabalhismo como força política, social e cultural no Brasil, em diferentes
escalas (nacional, regional, cidade, comunidade)” e “Relacionar as conquistas de direitos
políticos, sociais e civis à atuação de movimentos sociais”. Na unidade temática
“Modernização, ditadura civil-militar e redemocratização: o Brasil após 1946” (BRASIL, 2018,
p 429), no objeto de conhecimento “O Brasil da era JK e o ideal de uma nação moderna: a
urbanização e seus desdobramentos em um país de transformação” também parece ser possível
de inserir a discussão a cerca das demandas e lutas sociais dos trabalhadores urbanos,
entretanto estes não se veem nomeados ou sinalizados para serem abordados em sala de aula.
Dessa forma, a abordagem dos trabalhadores enquanto sujeitos históricos, tanto do campo,
quanto da cidade, ficam subentendidas quando pensamos o processo histórico brasileiro,
porém não são diretamente tratadas como conteúdo curricular para o ensino de História.
Compreende-se essa invisibilidade curricular aos trabalhadores de maneira geral sob a ótica de
Quijano (2005, p 108), que afirma que a divisão social do trabalho na América Latina se
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constrói a partir de uma distribuição racista do trabalho e das formas de exploração do
capitalismo colonial, os trabalhadores fazem parte de um processo histórico de subalternização,
vinculado a suas origens e a uma imposição da colonialidade, assim, deve-se perceber suas
ausências no conteúdo curricular de História a partir dos seus condicionantes histórico-sociais.
Ou seja, invisibilizar se encontra dentro de um processo de dominação simbólica sobre a classe
trabalhadora brasileira, suas raízes subalternas a partir do fenômeno da colonialidade, e que
trazê-las à tona faz parte do processo do que Saviani (1999, p 74) explica como a transformação
da igualdade formal (o acesso dos filhos dos trabalhadores à educação) em igualdade real, que
está associada à transformação dos conteúdos formais, fixos e abstratos, em conteúdos reais,
dinâmicos e concretos (a possibilidade de enxergarem suas histórias e a de suas famílias em sala
de aula como potência de transformação da sociedade brasileira).
Os movimentos sociais no campo tomam maior amplitude a partir da década de 1950
com o aparecimento das Ligas Camponesas, associações e uniões de trabalhadores rurais. No
entanto, é possível percebê-los desde a escravidão a partir dos levantes e fugas das populações
escravizadas. A colonização do Brasil se deu pela codificação das diferenças entre
conquistadores e conquistados na ideia de raça, que se tornou o principal elemento constitutivo
das relações de dominação, produzindo identidades novas (índios, negros e mestiços). Essas
identidades foram associadas às hierarquias, lugares e papéis sociais dentro de uma nova
estrutura global de controle do trabalho (QUIJANO, 2005, pp 107-108). Os trabalhadores
rurais no Brasil são descendentes de um processo histórico no qual o Brasil, desde a sua
formação, representou uma estrutura socioeconômica no quadro do capitalismo global
constituída e organizada para fornecer produtos do setor primário. Nesse contexto, as diversas
formas de controle e exploração do trabalho rural foram desenvolvidas, como a escravidão, a
servidão, a reciprocidade e o salário.
Ronaldo Vainfas (1999, p 8) ao fazer uma análise sobre a questão da miscigenação na
historiografia brasileira coloca que o projeto português de ocupação e exploração territorial até
certo ponto definidos não podia se efetivar com base na imigração reinol, consideradas as
limitações demográficas do pequeno Portugal, por isso, buscou implantar a exploração agrária
voltada para o mercado atlântico e que, até os anos de 1930, a historiografia brasileira tratava a
miscigenação, não como problema de investigação, mas como problema moral ou patológico
que cabia resolver para o bem da Nação (VAINFAS, 1999, p 4). O historiador conclui ainda
que nossa historiografia atual avança, é certo, no tocante à mescla cultural, e nisso busca nossas
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originalidades, mas evita o tema da miscigenação racial (VAINFAS, 1999, p 11). Como se
esperar, portanto, que os trabalhadores, descendentes dessa mão de obra colonial, miscigenada,
fossem retratados em livros didáticos de acordo com sua participação no processo histórico
brasileiro e de luta por melhores condições de vida que, consequentemente, impõe uma
transformação na estrutura social do país? Os trabalhadores rurais na sociedade até os dias de
hoje vêm com marcas dessa dominação social que se fez na oposição entre colonizados e
colonizadores.
Como coloca Medeiros (1989), para o pesquisador que se debruça sobre as lutas do
campo, o grande desafio que se coloca é tirá-las do silêncio a que foram submetidas e
reconstruir alguns de seus momentos, de forma a dar-lhes visibilidade. A socióloga afirma que:
[...] pensar os conflitos agrários nos leva a refletir sobre seu passado, mas
também sobre sua importância nos dias atuais. No seu modo de aparecer, eles
anunciam e denunciam questões cruciais que afetam nossa vida cotidiana,
apontando algumas das razões da urbanização caótica, da pobreza, da
violência, da crise ambiental, da reprodução de condições de vida que negam
direitos básicos e, portanto, as dificuldades de realizarmos condições próprias
à modernidade (MEDEIROS, 1989, p 28).
Sujeitos revolucionários para o ensino de história
A lógica da pesquisa de que se trata este artigo passa pelo intuito de romper com um
currículo que funcione enquanto violência simbólica, via invisibilização de tais atores sociais. A
violência simbólica se manifesta de múltiplas formas, por exemplo, como é o caso da formação
da opinião pública através dos meios de comunicação de massa, da pregação religiosa, da
atividade artística e literária, da educação familiar, entre outros. À medida que qualificamos as
lutas das populações do campo dentro de sala de aula, rompendo com a ideia de um
trabalhador rural passivo, submisso, incapaz de formular seus próprios interesses e de lutar por
eles, nos colocamos contrários à reprodução de um sistema que garante uma assimetria de
poder entre grupos sociais, e igualmente permite que – por meio da educação – se conteste tais
desigualdades sociais. São sujeitos históricos como as Ligas Camponesas, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra, o Movimento dos Atingidos por Barragens, a União dos
Lavradores e Trabalhadores Agrícolas do Brasil, a Marcha das Margaridas, dentre tantos
outros.
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Para este artigo, coloca-se o exemplo da história de Dona Rosa Geralda da Silveira:
posseira, descendente da população escravizada da Fazenda da Caveira (Cabo Frio, RJ) e
primeira mulher farinheira da região. Projetou-se como liderança local atuando através do
sindicato rural, do qual esteve presente na organização e fundação. Ficou conhecida como a
primeira mulher a ir à feira vender seus produtos por conta própria, eliminando a figura do
atravessador (PERES, 2020, p 89). O território pelo qual dona Rosa vai disputar o direito de
morar e tirar seu sustento recebe o nome de Caveira porque, durante o Brasil colonial, era o
lugar onde as carcaças de gado morto eram deixadas, bem como onde eram enterrados os
corpos de escravizados que não sobreviviam na vinda para o Brasil. A fazenda, originalmente,
fazia parte do Complexo Agrícola Campos Novos, dos padres Jesuítas. Com a expulsão destes
do território brasileiro, deu-se a fragmentação de Campos Novos em várias propriedades, que,
consequentemente, resultou em conflitos fundiários envolvendo os descendentes da população
escravizada da região.
Na década de 1920, a fazenda da Caveira é comprada pelo alemão Eugene Honold,
que passa a explorar a mão de obra da população quilombola dessa terra como “colonos”,
“pagando o dia para morar”. Em 1952, sua administração é passada para o italiano, Antonino
Paterno Castello, o "Marquês". A partir desse momento, as famílias passam a sofrer a imposição
de novas regras de trabalho e moradia, além do arrendamento das terras que ocupavam.
A história de Dona Rosa permite compreender, por exemplo, como se constituiu alguns
tipos de conflitos fundiários no Brasil. Os termos grileiros e posseiros são antagonistas quando
estudamos a luta pela terra. Permite ainda compreender a utilização do conceito de diáspora.
Se ela é, em primeira análise, descendente de uma população que já viveu sua diáspora, a saída
de seu território de forma forçada e sob o regime da escravização e subalternização, a
resistência de Dona Rosa em sua terra é desenho de uma luta para não viver uma nova
migração como aconteceu a outras famílias da Caveira.
Exemplo de fonte histórica a ser disponibilizada encontra-se no arquivo virtual da
Videoteca Virtual Gregório Bezerra, disponível no Youtube, no qual em mesa redonda, sob o
título “Memória Camponesa”, Dona Rosa dá o seguinte depoimento:
“Essa história do marquês, eu conto de outra maneira, eu vou pedir a vocês,
se vocês me permitirem um pouco da sua atenção, eu vou te contar uma
história que se deu lá no sertão:
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Em Cabo Frio e São Pedro, onde vive os lavrador, por causa de tanta
injustiça, nós tornamos lutador. Foi na década de 50, nós começamos a lutar
contra um grupo de grileiro que veio pra nos expulsar. Conhecido por
marquês, um tal de Antônio Paterno, quis transformar a nossa vida quase
num verdadeiro inferno. Chamou o velho Severino e o senhor Marcelo
Gaspar, quando foram pagar renda, pra um tal papel assinar, os velhos não
aceitaram a ordem que estava lá, ‘vocês só vão tomar água se meu jagunço
mandar’ ‘tira o cachimbo da boca, você não pode fumar’ ‘se não obedecer as
ordens, já pode se retirar’ Tinha dois meninos menores, queria os dois
meninos pra pagar dois dias de cada um pra fazer um dia de adulto. Os dois
meninos menores responderam sem demora: ‘ou os velho fica aqui, ou todos
nós vamos embora’, pediram pra Santo Inácio, que nos cubra com seu manto,
foi José Joaquim Silveira e o menor, Joaquim Afonso dos Santos. Saímos dali
pra casa, pensamos numa união, chamamos os trabalhadores e fizemos uma
reunião. Uma palavra de ordem: ‘nunca mais pagamos renda!’, ‘morra a
palavra patrão’, ‘todos juntos lutaremos por um pedaço de chão’ e estamos
lutando por esse pedaço de chão até hoje, mas nós vamos chegar lá, Deus
quiser, vai chegar lá”. (SILVEIRA, 2004: 00:36:35 a 00:38:21)
Conclusão
No processo de construção histórica do país, o lugar do trabalho braçal ficou confinado
às populações dominadas. É necessário trazer suas histórias e lutas para a compreensão da
formação da sociedade brasileira e a possibilidade destes de se enxergarem dentro desse
processo entendendo a interseccionalidade entre classe e raça que os compreende. Esta
discussão se justifica pela importância e necessidade, como afirmado por Saviani (1999, pp 6768), de se valorizar os conteúdos que apontam para uma pedagogia revolucionária, com intuito
de abalar as certezas e desautorizar o senso comum. Trata-se de uma proposta possível para o
ensino de História que aproximará o público da educação básica a uma gama de fontes
históricas produzidas pelos próprios movimentos – hoje em dia, inclusive, disponibilizados a
partir de suas páginas oficiais na internet e redes sociais, presentes também em acervos da
Biblioteca Nacional, do Arquivo Nacional e de instituições de ensino que se ocupam do papel
de guarda dessa memória e de produção de conhecimento científico a partir de pesquisas no
campo.
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Compreende-se que enquanto conteúdo curricular para o ensino de História esta
discussão se torna necessária pela invisibilidade imposta a luta por direitos da população do
campo no Brasil, pela necessidade de construção de um conhecimento escolar a cerca dessas
histórias a fim de desenvolver um pensamento crítico sobre a realidade social do passado e da
atual, entendendo como tais histórias refletem na realidade social brasileira de maneira ampla,
afetando não só essas vidas individuais, mas a vida também daqueles que estão no meio
urbano.
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235
em:
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
SECADI (2001-2019): vestígios materiais de uma breve política afirmativa
indutora da educação antirracista
Aldilene do Nascimento Alves 302
Ana Lucia Malta Soares 303
Andréa Giordanna Araújo da Silva 304
Resumo:
O trabalho apresenta o levantamento e a análise da estrutura organizacional e a importância
política da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (20012019). Tendo como objetivo observá-la como uma das políticas afirmativas de âmbito federal
indutora de formações e produções pedagógicas que possibilitaram o desenvolvimento de
práticas de ensino de perspectiva antirracista no interior da escola brasileira, especialmente as
instituições de ensino público. De natureza documental e tendo como fontes de análise
diversos documentos e materiais pedagógicos originais produzidos pelo aparelho público, a
pesquisa delineia um conjunto de textos pedagógicos que podem ser utilizados como recursos
para formação inicial e continuada de professores e professoras.
Palavras-chave: SECADI; Diversidade; Política Afirmativa; Educação Antirracista.
Introdução
No Brasil, as práticas políticas, do final do século XIX e início do século XX, que
pretendiam promover o embranqueamento da população Brasileira foram constituídas a partir
de uma imagem negativa da população negra e uma imagem positiva do sujeito branco. Tais
práticas foram atualizadas e apresentam formas diversas, mas efeitos semelhantes em diferentes
espaços do tempo presente. Silva (2005, p. 23) aponta que “A ideologia do branqueamento se
302 Graduada em Pedagogia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Integrante do grupo de Estudo e
Pesquisa História da Educação Cultura e Literatura (GEPECL). E-mail: Aldilene.nascimento@cedu.ufal.br.
303Graduada em Pedagogia. Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Integrante do grupo de Estudo e Pesquisa
História da Educação Cultura e Literatura (GEPECL). E-mail: ana.malta@cedu.ufal.br.
304Graduada em História. Universidade Federal Rural de Pernambuco. Mestra em Educação pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL). Doutora em Educação pela Universidade Federal de Pernambuco (PE). Professora
da Universidade Federal de Alagoas. Líder do Grupo de Estudo e Pesquisa História da Educação, Cultura e
Literatura; E-mail: andrea.giordanna@cedu.ufal.br.
236
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
efetiva no momento em que, internalizando uma imagem negativa de si próprio e uma imagem
positiva do outro, o indivíduo estigmatizado tende a se rejeitar, a não se estimar [...]”
procurando sempre se igualar as características do outro grupo dominante, tidas como
características boas e perfeitas. Por isso, é importante “Trazer para dentro da escola a temática
do racismo, do preconceito e discriminação racial para ocupar espaços importantes de
discussão e práticas voltadas à educação que promovam o respeito à diversidade étnico-racial e
cultural da sociedade brasileira” (COQUEIRO; GUELF, 2008, p. 03).
O racismo é um problema de todos e envolve toda a sociedade brasileira,
principalmente os educadores que estão em contato diário com essa problemática, dentro das
escolas. Diante de vários casos de racismos expostos na sala de aula, devemos considerar que a
sala de aula é um dos processos educativos de trocas de saberes, sobretudo, entre alunos de
diferentes grupos sociais; o que falamos, discutimos e refletimos pode influenciar sobre as suas
atitudes e as relações que são estabelecidas dentro e fora das escolas. Nesse contexto “O resgate
de memórias coletiva e da história da comunidade negra não interessa apenas aos alunos de
ascendência negra. Interessa também aos alunos de outras ascendências étnicas, [...], pois ao
receber uma educação envenenada pelos pré-conceitos, eles também tiveram suas estruturas
psíquicas afetadas” (MUNANGA, 2005, p.16).
A escola é “[...] um espaço que agrega múltiplas relações, tem desempenhado o papel
de reprodutora do pensamento dominante, afirmando que não existem tratamentos
diferenciados” (COQUEIRO; GUELF, 2008, p. 4-5). Por muitas vezes, o ato de discriminar
está relacionado com a naturalização das práticas de racismo, que foram reproduzidas e
“inovadas” a cada geração. Muitos brasileiros negam suas origens e identidade devido à falta de
conhecimentos que lhes permitissem desvendar, conhecer, saber e perceber a diversidade na
sociedade.
Considerando o contexto descrito, a Secretária de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade (Secad) pode ser historicamente considerada uma importante ação federal,
situada no tempo presente, de combate ao racismo no Brasil. Criada em 2001, como política
para inclusão da diversidade étnica, cultural e social no âmbito da educação, A Secad tinha
como um dos seus principais objetivos oferecer aos/às professores(as) formação continuada, de
forma a estruturar as escolas com conhecimentos, práticas pedagógicas e estratégicas de
combate ao preconceito, à discriminação e ao racismo.
237
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Na perspectiva de ampliar as ações de inclusão social no âmbito da Secad, em 2011,
ocorreu a fusão entre a Secretaria de Educação Especial com a Secad, passando a ser chamada
de Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi).
Todavia, em 2019, com o Decreto nº 9. 465, publicado no Diário Oficial da União (BRASIL,
2019), as mudanças na estrutura e funções de algumas secretarias do Ministério da Educação
provocaram perdas e a Secadi passou a se chamar Secretaria de Modalidades Especializadas de
Educação (Semesp), com a criação isolada ainda da Secretaria de Alfabetização (Sealf), que se
tornou o suporte estratégico do governo para a reconfiguração do currículo escolar e para a
formação de professores alfabetizadores.
O estudo de caráter documental (PRODANOV; FREITAS 2013, GIL, 2002) observa a
importância social e política da Secadi, como prática afirmativa de âmbito federal que
possibilitou a produção de várias ações que buscavam a promoção da igualdade racial, dentre
elas a produção de materiais pedagógicos e didáticos, de cunho antirracista, e direcionados às
escolas públicas.
A SECADI como política afirmativa
A Secadi, em sua origem, tinha uma concepção institucional inovadora e buscava
contemplar a eficiência gerencial e a participação democrática como pilares institucionais: “[...]
pluralidade de atores governamentais e sociais no desenvolvimento de políticas públicas
voltadas para a inclusão e diversidade” (BRASIL, 2004, p. 11). Uma das características
inovadoras da Secadi era a Transversalidade Intersetorial na composição das ações afirmativas,
estruturadas por meio do diálogo entre diversos setores da sociedade e órgãos do governo,
permitindo a criação de várias ações integradas, sendo capaz de planejar com maior eficiência
as ações necessárias à escolarização antirracista, da educação infantil à educação superior.
As políticas, sob gerenciamento da Secadi, tinham ligação direta com todas as demais
unidades operacionais do Ministério de Educação (MEC), especificamente com as secretarias
de Educação Básica (SEB), Educação Especial (Seesp), Educação Profissional e Tecnológica
(Setec), Educação Superior (Sesu) e Educação a Distância (Seed). Tendo em vista que a
questão da transversalidade de suas políticas públicas buscava atuar especificamente na
articulação intersetorial e interinstitucional no âmbito do governo federal, destaca-se “[...] a
busca permanente de cooperação e entrosamento com os seguintes ministérios: Meio
238
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Ambiente, Cultura, Esportes, Reforma Agrária, Desenvolvimento Social, Integração Nacional,
Saúde, Justiça e Secretária-geral da Presidência da República” (BRASIL, 2004, p.11).
Assim, a Secadi buscou ter um bom entrosamento com os órgãos do governo federal,
contribuindo para firmar parcerias estratégicas com os sistemas estaduais e municipais de
ensino.305 Era atribuição da Secadi: “[...] planejar, orientar, coordenar, fomentar, acompanhar e
avaliar, em âmbito nacional, a formulação e a implementação de políticas voltadas para a
alfabetização e educação de jovens e adultos, educação indígena, educação ambiental, educação
do campo e educação em áreas remanescentes de quilombos” (BRASIL, 2004, p. 16).
A Secadi tinha entre as suas atribuições ofertar a formação inicial e continuada de
professores e colaborar com a produções de materiais didáticos e pedagógicos para os
diferentes níveis e modalidades de ensino. Desenvolveu, portanto, programas e ações que
contribuíram para diminuição das desigualdades educacionais e de combate ao racismo.
Podemos afirmar, que Secadi tinha as características dos grupos sociais que lutaram por sua
origem e concepção institucional, segundo Taffarel e Carvalho, (2019, p. 86), a “[...] SECADI
não brota espontaneamente da vontade dos governantes”, foi, “[...] sim, fruto de uma intensa
luta pela Reforma Agrária e por Educação”.
Deste modo, o aniquilamento da Secadi, “[...] não significa somente menos política
pública social para as populações do campo brasileiro”, para os povos indígenas, negros,
comunidades ciganas... “Significa mais do que isto. São medidas para destruir forças produtivas
e assegurara as condições de (re)produção do capital” (TAFFAREL; CARVALHO, 2019, p.
87).
A associação do fim da Secadi com a dilatação do capital ocorre devido ao caráter
compensatório e distributivo que tinha a prática governamental. Na qualidade de política
afirmativa, ela dava lugar e voz aos excluídos da história e da justiça, no âmbito da esfera
pública, pois possibilitava o uso dos recursos do estado para promover práticas que visavam
ampliar as ações de justiça social. Assim, no quadro a seguir, observam-se alguns dos projetos
desenvolvidos pela Secadi e materializados em textos pedagógicos e literários:
Quadro 1 - Obras para a formação continuada dos professores
305 “O governo de Bolsonaro, empossado em 2019, em aproximadamente quatro meses, vem tomando
sucessivas medidas governamentais, via Ministério da Educação, que, não só retiram conquistas, direitos, mas, que
impõe um retrocesso sem precedentes na história educacional do Brasil, [...]” (TAFFAREL; CARVALHO, 2019,
p. 88).
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Título da Obra
Autor (a)
Editora
Ano
Financiamento
ou Contribuição
institucional
Ações afirmativas e combate
Sales Augusto dos
MEC/SECA
Santos.
D
Educação como exercício de
Osmar Fávero e
SECAD
diversidade.
Timothy Denis
ao racismo nas américas.
2004
SECAD/MEC
2004
MEC/
UNESCO
Ireland
(organizadores)
Dimensões da inclusão no
Maria Lúcia de
Ensino Médio: mercado de
Santana Braga,
trabalho,
religiosidade
e
educação quilombola.
SECAD
2006
SECAD/MEC
SECAD
2007
UNESCO
SECAD
2008
SPM/PR
Edileuza Penha de
Sousa e Ana Flávia
Magalhães Pinto
(organizadoras).
Acesso e permanência da
Maria Auxiliadora
população negra no ensino
Lopes e Maria
superior.
Lúcia de Santana
Braga
(Organizadoras)
Gênero
na
Andreia Barreto
de
Leila Araújo e
SEPPI306R/PR
professoras/es em Gênero,
Maria Elisabete
SECAD/MEC.
Orientação Sexual e Relações
Pereira
escola:
e
diversidade
formação
Étnico-Raciais.
História geral da África
Vários autores
8 Volumes: I, II, III, IV, V,
2010
UNESCO
UNESCO
SECAD/MEC
UFSCar.
VI, VII e VIII
306 Secretaria de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (Seppir).
240
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Ciganos
documento
Vários autores
SECAD
2014
orientador para os sistemas
SEPPIR e
de ensino.
Uma
SNDH,
MinC
história
do
povo
MEC
SECAD
2001
SEF/MEC
MEC
SECAD
2005
SECAD/MEC
Kalunga – livro do professor
(2ª edição) e do aluno.
Quilombo
resistência
espaço
de
de
homens
e
REDEH
mulheres negras.
Estória Quilombolas.
A
Presença
Indígena
na
Formação do Brasil.
Formação
de
SECAD
2005
SECAD/MEC
João Pacheco de
SECAD
2006
SECAD/MEC
Oliveira e Carlos
UNESCO
Augusto da Rocha
LACED/Museu
Freire
Nacional307.
MEC
SECAD
2006
SECAD/MEC
Minas de dos Quilombos.
MEC
SECAD
2010
SECAD/MEC
Yoté: o jogo da nossa história.
MEC
SECAD
2010
SECAD/MEC
O índio brasileiro: o que você
MEC
SECAD
2010
LACED/ UFRJ/
indígenas:
professores
MEC.
repensando
trajetórias.
precisa saber sobre os povos
Fundação Ford/
indígenas no Brasil de hoje.
História
dos
Ciganos
no
UNESCO
MEC
SECADI
2014
SECAD/MEC
Brasil
Ciganos.
307 Projeto Trilhas de Conhecimentos: o Ensino Superior de Indígenas no Brasil / LACED –– UFRJ.
241
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Superando
o
racismo
na
MEC
SECAD
2001
SECAD/MEC
Educação infantil, igualdade
MEC
SECAD
2005
SECAD/MEC
MEC
SECAD
2013
SECAD/MEC
MEC
SECADI
2014
SECAD/MEC
escola.
racial e diversidade: aspectos
políticos,
jurídicos,
conceituais.
Indicadores da Qualidade na
Educação:
Relações
na
Escola/Ação Educativa.
História e cultura africana e
Programa Brasil-
afro-brasileira na educação
África: Histórias
infantil.
Cruzadas,
desenvolvido por
meio da parceria
entre a
Representação
da UNESCO no
Brasil e o
Ministério da
Educação
Fonte: As autoras (2020).
Consideramos que as obras bibliográficas e pedagógicas disponibilizadas pela Secadi
foram e são importantes instrumentos para o trabalho do professor, elas devem auxiliar no
fazer pedagógico, em diferentes disciplinas escolares. Os materiais são importantes, mas, sem
formações para os/as docentes, os mesmos acabam, por vezes, sendo pouco utilizados. Por isso
, cabe ressaltar que a Secadi foi também irradiadora de muitos projetos de formação
continuada de professores em modalidade presencial e a distância, deste modo a sua extinção
significa menos espaços institucionais de aperfeiçoamento para o trabalho docente e de luta
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
antirracista. Ainda assim, consideramos o acesso ao material, descrito neste estudo, como
elemento fundamental de estímulo à leitura e à formação do professor.
Considerações
Observamos a Secadi como uma política educacional antirracista porque nos últimos
anos vinha contribuindo com práticas de inclusão social; atuava de forma articulada entre os
diferentes setores da sociedade de forma a integrar ações, saberes e esforços com o objetivo de
enfrentamento dos problemas sociais e oferecer aos professores formações institucionais,
conteúdos teóricos e materiais e estratégias pedagógicas de combate ao preconceito e
discriminação racial
Segundo Jakimi (2021, p. 122), a Secadi foi “[..], um marco histórico do ponto de vista
da garantia do direito à educação para a diversidade já que passa, pela primeira vez, a
reconhecer os sujeitos historicamente excluídos como titulares do direito à educação”.
A extinção da Secadi é mais um meio de reforçar a injustiça social e cognitiva no Brasil,
por meio do reforço ao apagamento institucional dos pensamentos, das práticas, das memórias
e das diversas identidades culturais, no interior das escolas. É sabido que, historicamente, no
Brasil, sem política afirmativa e governamental torna-se mais difícil ampliar as práticas
pedagógicas de educação antirracista e a justiça social.
Referências
BRASIL. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares para Educação das Relações
ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: 2004.
Disponível em: . Acesso em: 11 jun .2020
__________.Decreto nº 9.465, de 2 de janeiro de 2019. Seção 1. Diário Oficial da União.
Brasília. DF, Ed: 1-, p. 6. jan . 2019. Disponível em: https://www.in.gov.br/web/dou/-/decreton-9-465-de-2-de-janeiro-de-2019-57633269?inheritRedirect=true. Acesso em: 21 jul. 2021.
COQUEIRO, Edna Aparecida; GUELF, Wanirley Pedroso. A naturalização do preconceito
racial no ambiente escolar: uma reflexão necessária. In: PARANÁ. Secretaria de Estado da
Educação. Superintendência de Educação. O professor PDE e os desafios da escola pública
paranaense: produção didático-pedagógica, 2008.
GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. São Paulo : Atlas, 2002.
243
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
JAKIMIU,Vanessa Campos de Lara. Extinção da Secadi: a negação do direito à educação (para
e com a diversidade). Revista de Estudos em Educação e Diversidade. v. 2, n. 3, p.115-137,
jan./mar.
2021
.Disponivel
em:
https://periodicos2.uesb.br/index.php/reed/article/view/8149/5735. Acesso em: 31 ago. 2020.
MUNANGA, Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da
Educação, Secretária de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005
SECAD. Ministério da Educação. Relatório de Gestão da SECAD – 2004. Secretaria de
Educação Continuada Alfabetização e Diversidade. Brasília - DF Fevereiro 2005. Disponível
em: Acesso em: 20 out. 2020.
SILVA, Ana Célia. A desconstruç‹o da discriminaç‹o no livro didático. In: MUNANGA,
Kabengele (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Ministério da Educação, Secretária
de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, 2005.
TAFFARE. Celi Nelza Zulke; CARVALHO. Marize Souza. A extinção da Secadi: um golpe
fatal nas conquistas no campo da educação. Cadernos Do GPOSSHE On-Line, Fortaleza, v. 2,
n. 1, 2019. Disponível em: file:///C:/Users/positivo/Downloads/1523-Texto%20do%20artigo5543-2-10- 20190814%20(1).pdf Acesso em: 31 ago. 2020.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Ensino de História Local nos estados brasileiros: um mapeamento legislativo
(1990-2019)
Gabriel Costa de Souza308
Resumo
A presente pesquisa tem como objetivo central compreender o processo de territorialização e
desterritorialização experienciado nos últimos trinta anos no aprendizado de História Local no
Brasil. A pesquisa adota a metodologia estatística e a análise de conteúdo como ferramentas de
investigação das legislações educacionais que normatizam o ensino de História Local nos
estados brasileiros. Deste modo, insere-se esta pesquisa no âmbito da História da Educação,
procurando compreender as estruturas conceituais, pedagógicas e legislativas que fundamentam
a normatização da História Local e a sua relação com o aprendizado.
Palavras-chave: História da Educação; História Local; Ensino de História.
Introdução
O Brasil é um território de múltiplas expressões culturais, sociais, políticas e regionais
que marcam distintos processos históricos. Nesse ambiente de multiplicidade e diferenças, a
escola se torna um espaço que necessita reconhecer e valorizar a diversidade como o
fundamento da vida social. O processo de ensino-aprendizagem, no entanto, apresenta um
significativo conflito representativo em que as instituições escolares das variadas regiões
brasileiras estruturam o seu cotidiano escolar a partir de determinações e normativas
construídas por indivíduos e organizações que nunca estiveram ou vivenciaram os seus
territórios. A História, as especificidades, os simbolismos locais e as relações com outros
espaços são distanciadas da formação dos estudantes em prol de uma unidade que reafirma um
conjunto de elementos que produzem um sentimento de pertencimento nacional.
Essas ideações nos permitem levantar a problemática central desta pesquisa que, por
sua vez, possibilita outras questionamentos correlatos. O ensino de História brasileiro
308 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas
Populares (PPGEDUC-UFRRJ). Graduado em História pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ). E-mail de contato: prof.gabriel.costa.souza@gmail.com
245
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
experiencia um processo de desterritorialização? A História Local está presente nas legislações
dos estados brasileiros? Que tipologia de localismo se constrói nessas normativas?
Deste modo, esta pesquisa tem como objetivo central compreender o processo de
territorialização e desterritorialização experienciado nos últimos trinta anos no aprendizado de
História Local no Brasil. Nesse sentido, a investigação identificará o espaço da História Local
nas legislações estaduais, analisará a concepção teórica, metodológica e conceitual do localismo
nessas normativas, além de refletir sobre os objetivos pedagógicos mobilizados por essas leis
para o aprendizado na temática.
O mapeamento estatístico dos dados das legislações estaduais propiciará um original
panorama do espaço da História Local nas normativas educacionais, relacionando a
temporalidade e os objetivos engendrados para o letramento dos estudantes. Essa escolha
metodológica é importante por evidenciar estatisticamente os territórios, dos estados e das
regiões, que dedicaram um espaço ao localismo em suas determinações curriculares, ou seja,
que tiveram a preocupação de legislar sobre o ensino de História Local.
O ensino de História Local no Brasil: um mapeamento legislativo dos estados (1990-2019)
A influência política nas diretrizes curriculares de História é uma das questões mais
instigantes para compreender o poder que uma simplória disciplina escolar possui, além de
mensurar as potencialidades políticas que determinados grupos enxergam nessa ferramenta
formativa. A História é capaz de reconhecer, valorizar ou apagar e minorar, de produzir heróis
e de apontar inimigos, de narrar vitórias ou evidenciar derrotas, de unir ou separar, em síntese,
a formação histórica é um ambiente em que os discursos são os elementos constituidores da
escrita, leitura e interpretação dos fatos. O interesse político sobre o processo de ensinoaprendizagem é destaque da investigação do professor-pesquisador Christian Laville: “A
história é certamente a única disciplina escolar que recebe intervenções diretas dos altos
dirigentes e a consideração ativa dos parlamentos. Isso mostra quão importante é ela para o
poder” (1999, p. 130).
No âmbito do território, o ensino da História Local/Regional figura como um
importante instrumento de aproximação territorial dos estudantes com os aspectos temporais,
geográficos, sociais e com os distintos processos históricos experienciados pelas comunidades,
bairros, cidades, grupos sociais, aglomerados econômicos, enfim, a partir das inúmeras
classificações que se modificam de acordo com o objeto a ser mediado e/ou pesquisado. Essa
246
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
potencialidade gera disputas e tensões com intuito de reforçar laços culturais, de intensificar
diferenças territoriais, de apagar processos históricos, entre outros fatores que intensificam o
interesse dos organismos legislativos locais.
Ao apresentar um singular mapeamento das leis que regem o local/regional em todos
estados brasileiros podemos mensurar em quais territórios se lançaram as bases de um ensino
reconhecedor das particularidades locais, associados aos aspectos globais, além de identificar
quais não os fizeram. Reconhecemos a amplitude das fontes que exige um árduo trabalho de
leitura, mapeamento, identificação e catalogação das leis nos 27 repositórios institucionais da
Assembleias Legislativas dos estados e do Distrito Federal. Com isso, fica impossível abarcar a
extensão completa e pormenorizada dos resultados, mas ficará evidente um panorama
territorial das legislações, uma análise estatística dos dados, um desenho temporal das
normativas e, sobretudo, uma leitura crítica das finalidades dessas normas.
As legislações educacionais produzidas nos legislativos são um terreno fértil para entrar
no sentimento político que prepondera sobre determinado tema sem, necessariamente, um
rigor técnico que as diretrizes curriculares ou orientações metodológicas advindas de estruturas
da administração do poder executivo possuem. Com isso, essas leis são a oportunidade de se
aproximar das demandas que as comunidades escolares expressam ou das representações
sociopolíticas determinadas para essas necessidades. O professor-pesquisador Wenceslau
Gonçalves Neto ressalta a dimensão política que uma legislação educacional carrega consigo
deve reconhecer que estão “[...] carregadas do cotidiano da comunidade, pois suas análises,
descrições, críticas ou propostas visam ao envolvimento e à busca de soluções para os
problemas conjuntos dessa comunidade” (GONÇALVES NETO, 2001, p. 11).
A leitura das legislações que determinam o ensino de História Local e Regional, imerso
nesse ambiente, é uma oportunidade de compreender a concepção pública dotada a esse
conjunto temático, além de observar a relação entre o movimento de territorialização,
fundamentado numa percepção de distanciamento do local com as outras escalas, e o intenso
processo de desterritorialização. O espaço da História Local nas legislações dos estados
brasileiros é observado abaixo:
Figura 1 – Legislações de História Local nos estados brasileiros (1990-2019)
247
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Fonte: Elaborado pelo autor, 2021.
Os resultados evidenciam que os estados de Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito
Santo, Maranhão, Minas Gerais, Paraíba, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
São Paulo, Sergipe e Tocantins, além do Distrito Federal, não possuem qualquer legislação,
estruturada pelas suas respectivas Assembleias Legislativas, sobre o ensino de história
local/regional. Por outro lado, o localismo/regionalismo logrou êxito em cristalizar-se em
legislações de estados como Acre, Amapá, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso,
Pernambuco e Rondônia com uma lei, nos estados do Pará, Piauí e Roraima com duas
legislações e, por fim, no estado do Paraná com três normativas.
Esse mapa, no entanto, não pode ser compreendido como a expressão da realidade
experienciada no cotidiano da sala de aula dado que é possível que uma instituição escolar de
um estado sem legislação possua alguma atividade relacionado ao local/regional, bem como
uma escola de uma unidade federativa com legislação pode não cumprir com a normativa.
Com isso, é possível aferir em que territórios foram lançadas as bases do ensino de História
Local, além de compreender que tipo de localismo esse aprendizado está assentado, ou seja, a
estrutura legislativa educacional “[...] não corresponde à realidade da escola, mas pode ser uma
interessante porta de entrada para a compreensão dessa importante categoria de análise na
história da educação brasileira”. (GONÇALVES NETO, 2009, p. 70).
Em uma observação estatística dos estados brasileiros podemos identificar que a maioria
dos estados brasileiros, um conjunto significativo de 55%, não destinou empreendimento
248
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
político efetivo na aprovação de diretrizes para o ensino do local/regional. Em contraposição,
41% dos estados centraram discussões políticas que regimentaram, após o longo processo
institucional de aprovação de leis, o local/regional em suas diretrizes educacionais.
A regionalização dos dados indica uma multiplicidade territorial na institucionalização
de legislações que regem o local/regional no ensino de história. Enquanto na região CentroOeste e na região Norte há uma diversificação do quantitativo de legislações pelos estados que
possuem entre uma e duas legislações, na região Sul, Sudeste e Nordeste a maioria dos estados
não possuem leis sobre o ensino de história local/regional, mas alguns estados apresentam
legislações que variam entre uma e três normativas sobre a História Local.
A institucionalização de legislações que demarcam as especificidades locais na maioria
dos estados das regiões Centro-Oeste e Norte, como é possível observar no gráfico abaixo,
demonstra uma preocupação em rememorar e valorizar os seus processos históricos em
complementariedade aos direcionamentos do currículo nacional. Essa realidade pode ser
resultado da centralização curricular em um padrão historiográfico e pedagógico que representa
as regiões Sudeste e Sul, distanciando-se da realidade territorial centro-oestina e nortista.
Figura 2 – Legislações de História Local nas regiões brasileiras (1990-2019)
Fonte: Elaborado pelo autor, 2021.
249
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
O destaque das particularidades locais em meio ao padrão nacional emerge, como
destaca o excerto da obra da professora-pesquisadora Janaína Amado, como um mecanismo de
reafirmação, de sentimento de representatividade e, sobretudo, de determinar a agência
cultural, histórica e política do território em que se media o localismo. Com isso, a significativa
quantidade de legislações que regimentam o local no ensino nas regiões Centro-Oeste e Norte
representam uma resposta à lacuna representativa desses territórios no currículo nacional, além
de se constituírem como uma oportunidade de os agentes locais influenciarem nas diretrizes
curriculares. A obra República em Migalhas analisa os motivos da valorização do localismo e
do regionalismo por determinados territórios:
[...] o estudo regional oferece novas óticas de análise ao estudo de cunho
nacional, podendo apresentar todas as questões fundamentais da História
(como os movimentos sociais, a ação do Estado, as atividades econômicas, a
identidade cultural, etc.) a partir de um ângulo de visão que faz aflorar o
específico, o próprio, o particular. A historiografia nacional ressalta as
semelhanças, a regional lida com as diferenças, a multiplicidade. A
historiografia regional tem ainda a capacidade de apresentar o concreto e o
cotidiano, o ser humano historicamente determinado, de fazer ponte entre o
individual e o social. (AMADO, 1990, pp.12-13).
O recorte geográfico apontado na investigação é significativo por evidenciar uma
preocupação legislativa na mediação do local/regional em determinadas regiões do país, como
no Norte, e de, por outro lado, ressaltar que em alguns ambientes de intenso localismo, como
em Minas Gerais e na região Nordeste, não ocorreu um empreendimento normativo do ensino
de História Local/Regional. No entanto, é necessário avançar para além de um desenho
geográfico das legislações e conectar o panorama legislativo com a realidade temporal das
políticas públicas nacionais que influenciam essa temática na História.
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Figura 4 – Marca temporal das legislações de História Local
Fonte: Elaborado pelo autor, 2021.
O panorama temporal das legislações educacionais, centradas no local e regional,
dialoga precisamente com as políticas públicas adotadas nacionalmente seja na organização das
estruturas curriculares, seja nas políticas de inserção nas universidades públicas que
influenciaram na importância dada ao localismo e o regionalismo pelos legislativos dos estados.
Com isso, podemos definir dois ciclos que determinaram uma relação heterogênea em que o
ensino de História Local seguiu de complemento ao padrão curricular nacional – com uma
valorização e interesse para os legislativos estaduais – para um elemento restrito as formações
iniciais do estudante – com a indiferença por não abarcar um grande quantitativo de alunos.
O primeiro decênio, entre 1990 e 1999, remonta a nacionalização das diretrizes
curriculares que regimentavam o ensino público brasileiro, porém esse período se destaca pela
distinção entre o currículo nacional e a complementaridade com temáticas regionais indicada
pela LDB e pelos PCNs. A intensa proposição e aprovação de leis do localismo e do
regionalismo são evidências objetivas do cumprimento dos poderes legislativos estaduais com a
legislação do sistema de ensino nacional a qual determinava que “os currículos [...] devem ter
base nacional comum, a ser complementada [...] por uma parte diversificada, exigida pelas
características regionais e locais” (BRASIL, 1996, p. 9).
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
As normativas nacionais autonomizaram os estados e municípios na elaboração de
conteúdos associados às demandas locais, respeitando o multiculturalismo brasileiro, exigindo
que dialogassem com os padrões estabelecidos pela legislação nacional (FIORAVANTE, 2018,
p.7). Segundo a professora-pesquisadora Luciana Velloso (2012), esse processo se refere a uma
recontextualização pedagógica em que as diretrizes nacionais são implementadas a partir das
necessidades locais apropriando-se da infraestrutura, da formação do docente, dos êxitos e
déficits dos estudantes, enfim, a matriz curricular passa a ser construída no cotidiano escolar.
Esse padrão histórico-temporal expandiu sua importância no decênio seguinte,
especificamente entre os anos de 2000 e 2009, que lograram nove legislações dedicadas ao local
e ao regional no ensino de História. No entanto, o ano de 2009 marca uma ruptura com a
complementariedade e cristaliza o movimento de nacionalização do ensino de História, como
esteio da formação discente, com profundas alterações da política educacional em relação a
transição do ensino médio para a educação universitária, cabe destacar dois programas
essenciais para esse processo: o novo Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) e o Sistema
de Seleção Unificado (SISU).
O novo ENEM tinha por objetivo a nacionalização do processo de seleção dos
estudantes, abandonando um sistema desintegrado e possibilitando uma democratização na
concorrência, uma reforma nacional do ensino médio e a mobilidade dos estudantes pelas
instituições inseridas na avaliação (LUZ; VELOSO, 2014). A produção de um exame com
parâmetros, metodologias de avaliação e questões comuns aos múltiplos territórios no Brasil,
no entanto, produziram um movimento de afastamento da mediação do local e do regional nas
instituições escolares influenciadas pelas demandas dos estudantes e suas famílias. O artigo ‘O
Enem e a subsunção do ensino de História do Amapá’ demonstra essa realidade do localismo e
do regionalismo após 2009:
O ensino de História Regional e/ou Local praticamente desapareceu das salas
de aula e dos conteúdos repassados nos cursinhos pré-vestibulares. Isso
ocorreu apesar de a LDBEN estabelecer [...] a matriz nacional, porém com
uma parte dos conteúdos sendo escolhidos livremente pelas escolas. Esse
programa de nacionalização do currículo escolar do Ensino Médio reflete
uma série de mudanças que já vem ocorrendo desde o início dos anos 2000,
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
com diversas alterações ao longo dos anos, aprofundadas a partir de 2009.
(BARBOSA, 2017, p. 192).
O apagamento do local e do regional, como ressalta a professora-pesquisadora Júlia
Barbosa, ficou marcante mesmo com as normativas federais que determinavam a
complementariedade curricular. O Enem operacionalizou o Sisu que efetivava um sistema
nacional das vagas das instituições que aderiram ao programa intensificando a constante
mobilidade dos estudantes entre cidades e estados (LUZ; VELOSO, 2014).
É evidente que essas políticas possibilitaram um avanço na simplificação do processo de
seletivo das instituições acadêmicas, na democratização do acesso aos ambientes acadêmicos,
na expansão da rede federal de educação superior, na unificação da educação em uma rede
nacional com parâmetros de eficiência, enfim, trouxeram distintos benefícios. No entanto, essas
políticas, influenciaram na importância dada ao localismo e ao regionalismo no sistema
educativo e, consequentemente, nos parlamentos estaduais. Com isso, no último decênio em
análise, entre os anos de 2010 e 2019, não tivemos nenhuma legislação sobre essa temática em
todo o Brasil, evidenciando uma ruptura com a trajetória ascendente da primeira fase das
políticas federais no âmbito da educação e, consequentemente, se relacionando com a
nacionalização educacional intensificada a partir de 2009.
Muitos poderiam observar esse panorama histórico-temporal e determinar que o Brasil
experienciava um movimento de territorialização que rompe diante programas nacionais do
sistema educativo. Essa percepção, no entanto, não dialoga com o fundamento das legislações
que está em sua finalidade ou no que podemos definir como uma resposta política que se
pretende dar a determinada questão educacional.
Esse resultado nem sempre está fundamentado em diretrizes técnicas, metodológicas ou
intelectuais do processo de ensino-aprendizagem pois partem majoritariamente de indivíduos
sem formação no âmbito das licenciaturas. Com isso, ao observar as legislações podemos aferir
que a maioria, especificamente 68%, compreende o local e o regional a partir da
obrigatoriedade do ensino da História do Estado ou dos municípios, relacionando a
territorialização ao enraizamento estanque do estudante aos processos históricos do seu
entorno.
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Figura 5 – Objetivos das legislações de História Local dos estados brasileiros
Fonte: Elaborado pelo autor, 2021.
As finalidades engendradas pelas legislações para o ensino de História, como é possível
observar acima, se restringem aos recortes locais e regionais. As normativas propostas
compreendem o ensino do localismo e do regionalismo fundamentado em aspectos próximos
aos estudantes e que, por ventura, possam ser incluídos nas estruturas de avaliação. A
professora-pesquisadora Circe Bittencourt ressalta o fundamento do ensino de História Local e
Regional:
Não se trata, portanto, ao se proporem conteúdos escolares da história local,
de entendê-los apenas na história do presente ou de determinado passado,
mas de procurar identificar a dinâmica do lugar, as transformações do espaço,
e articular esse processo às relações externas, a outros “lugares”. (2008, p.
172).
O isolamento do local ou do regional, como se fossem elementos à parte dos processos
históricos, no ensino e na aprendizagem é um elemento constituidor da desterritorialização que
aliena a relação do estudante com o território. Com esse olhar, as normativas, propostas nas
Assembleias Legislativas dos estados, homogeneízam o local e o regional contribuindo para o
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processo de desterritorialização do ensino de história com a repartição do localismo do restante
das escalas e, sobretudo, com a não correlação histórica existente entre o local, o regional, o
nacional e o global. É significativo observar essa realidade nessas leis já que possuem um
discurso
de
reafirmação
histórico-regional
e,
consequentemente,
de uma
suposta
territorialização do ensino que enraizasse os estudantes em suas comunidades.
As legislações, observadas em uma lente estatística, evidenciam um movimento de
territorialização em que o local e o regional são valorizadas por determinado conjunto de
estados. No entanto, essas normativas fragilizam a ideia do local ou do regional, restringindo o
ensino aos recortes concretos e eliminando a complexificação das escalas que a História
evidentemente constrói em sua constante relação pluriterritorial. A necessidade de
correlacionar escalas para dotar o território de significado é tema em análise da obra O mito da
desterritorialização:
Hoje, poderíamos afirmar, a “experiência integrada” do espaço (mas nunca
“total”, como na antiga conjugação íntima entre o espaço econômico, político
e cultural num espaço contínuo e relativamente bem delimitado) é possível
somente se estivermos articulados (em rede) através de múltiplas escalas, que
muitas vezes se estendem do local ao global. Não há território sem uma
estruturação
em
rede
que
conecta
diferentes
pontos
ou
áreas.
(HAESBAERT, 2004, p. 79)
Inexiste, como podemos ver na exposição do professor-pesquisador Rogério Haesbaert,
um território isolado, inerte e cristalizado nos mais distintos espaços e tempos, ou seja, o
território é, por natureza, uma estrutura das relações que não necessariamente são geográficas,
podendo apresentar uma relação simbólica, cultural, entre outras. Pensando nisso, todas as
legislações que, à primeira vista, são mobilizadores do movimento de aproximação,
enraizamento e territorialização acabam por desaproximar, desenraizar e desterritorializar por
não compreender a multiplicidade do território e, por consequência imediata, produzir um
espaço dotado de significado artificial que mimetiza nomes, datas e lugares.
As legislações educacionais sobre o local e o regional na História no Brasil, portanto,
apresentam duas faces de uma mesma moeda. O movimento de territorialização, ao isolar o
localismo e o regionalismo, passou a ser um catalizador do processo de desterritorialização em
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que o estudante, em seu aprendizado, reafirma as particularidades e não as correlaciona com as
universalidades. O territorializar, quando realizado sem os fundamentos técnicos e
metodológicos das investigações sobre o ensino de História, produz a desterritorialização,
padroniza a História como um produto de recortes e, sobretudo, afasta a realidade múltipla de
um ensino de singularidades.
Conclusão
Ao longo dessa pesquisa foi possível compreender o complexo processo de
territorialização e desterritorialização que o ensino de História Local tem experienciado nos
últimos trinta anos na educação brasileira. Esse movimento ocorre a partir da desconexão entre
as distintas etapas do processo de concepção teórica, normatização legislativa e mediação da
temática no sistema educativo.
Essa definição cristalizada do localismo é a compreensão mais difundida no âmbito da
História como disciplina escolar, bem como está presente nos documentos que estruturam os
currículos. A documentação, presente no mapeamento das legislações que regimentam a
História Local nos estados brasileiros, evidenciou os fundamentos engendrados para a
mediação do localismo, bem como a percepção conceitual das normativas.
Uma observação preliminar determinaria que o ensino de História brasileiro vivencia,
de alguma forma, um processo de territorialização que se distancia da nacionalização curricular
do sistema educativo e, consequentemente, haveria um processo de aproximação,
enraizamento e territorialização. A análise discursiva das legislações estaduais, entretanto,
evidenciou que as fundamentações das normativas estruturavam objetivos de aprendizado e
concepções teórico-metodológicas para a História Local que propiciavam um movimento de
desterritorialização do ensino do localismo.
Refletir sobre a (des)territorialização é, necessariamente, refletir sobre os currículos, as
legislações, a autonomia docente, as concepções teóricas, o território, enfim, um integrado
modelo educacional consciente, crítico e constantemente reavaliado para reconhecer as
multiplicidades que o cercam. A História Local é uma oportunidade de repensar toda a
estrutura de ensino para conhecer, reconhecer, valorizar e dinamizar a o aprendizado do
estudante mobilizando uma consciência multiterritorial hábil em correlacionar suas
particularidades com as universalidades.
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Ao final deste percurso, é possível observar que o ensino de História vivencia um
processo de desterritorialização em que o localismo não está presente na maior parte dos
estados brasileiros. Um conjunto expressivo dos estados, especificamente 55%, não estruturou
nenhuma ação política legislativa de inserção da temática nos currículos ou em outros espaços
institucionais relacionados ao ambiente educacional.
Os estados que apresentam legislações que instituem e regimentam a História Local se
fundamentam em padrões metodológicos e pedagógicos que limitam o processo de ensinoaprendizagem dos estudantes. Essas normativas produzem uma lógica cartográfica da temática
em que a memorização de datas, nomes e lugares figura como o fundamento da formação,
abandonando as potencialidades históricas da História Local.
Essas legislações que auxiliariam na territorialização, aproximação e no aprendizado
crítico tornaram-se instrumentos da desterritorialização em que os estudantes são posicionados
em processos históricos isolados, artificiais e concretos em uma lógica de aprendizado
desconectado da multiplicidade que constrói significado aos territórios ocupados pela
sociedade. A complexidade do localismo exige o reconhecimento das disputas, tensões e
correlações da economia, da geografia, da natureza, do simbolismo, da sociedade, da cultura,
enfim, das múltiplas dimensões que cercam o ambiente histórico da instituição escolar. O
localismo é uma ferramenta de multiterritorialização que compreende que a História não é
produto isolado, inerte ou à parte dos conjuntos globais, mas que os processos são construídos
por muitos nomes, lugares e momentos.
A multiterritorialidade é a resposta metodológica, conceitual e pedagógica para a
desconstituir a desterritorialização do ensino de História. É necessário mobilizar um
aprendizado consciente das múltiplas dimensões do território, construindo uma visão
heterogênea e dinâmica sobre a História Local a partir das ferramentas que dão significado ao
ambiente escolar: a autonomia docente, a valorização dos territórios escolares, a produção de
currículos conectados à multiterritorialidade e, sobretudo, a relação entre a pesquisa, legislação
e prática pedagógica.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Professor Cônego Valente e as configurações para o Ensino da História do Brasil
colonial no Liceu alagoano (1929-1952)
Ivanildo Gomes dos Santos309
Resumo: Este artigo tem por objetivo analisar os conteúdos de história colonial veiculados nas
disciplinas História do Brasil e História da Civilização, ministradas no Liceu Alagoano pelo
professor cônego Antônio José de Cerqueira Valente. A Dissertação sobre os pontos
controvertidos da historia do Brasil defendida pelo referido sacerdote, quando candidato ao
cargo de docente da instituição, nos fornece pistas sobre a cultura literária e escolar da época, as
preferências teóricas do autor, e os saberes que circulavam na formação discente no Liceu
Alagoano da primeira metade do século XX. Nesse sentido, a pesquisa apontou que a escrita
de Valente era coerente com as discussões encontradas nos compêndios e manuais didáticos da
época. Estes, por sua vez, estavam associados à construção da identidade nacional, a partir,
principalmente, do culto aos heróis. Esse tipo de “nacionalismo de direita”, como ficou
conhecido, estava voltado para a manutenção dos projetos das elites, de seu poder e privilégios.
Para identificarmos a finalidade do ensino de história nos apropriamos das obras de
Bittencourt (2004; 2005) e Abud (2006).
Palavras-chave: Cônego Valente; Ensino de história; Liceu Alagoano.
Inserindo o homem no seu tempo e lugar: o percurso do cônego Valente
Antônio José de Cerqueira Valente era filho de Arnóbio Monteiro de Cerqueira
Valente e Leopoldina America da Costa Valente e nasceu na cidade do Pilar, em Alagoas, no
dia 19 de abril de 1888. De acordo com Soares (1981), nessa cidade cursou as primeiras letras
na escola do professor Antônio Florêncio, na rua do Pará; e concluiu o curso primário com
monsenhor Francisco Maria, Vigário do Pilar.
Coroinha da Matriz, desde cedo foi encaminhado para o sacerdócio. Para abraçar esta
vocação, ingressou no antigo Seminário de Alagoas, em 1902. Conforme Soares (1981, p. 4),
por ser de família com poucos recursos financeiros, sua pensão para ingresso na instituição, foi
309 Professor CEDU/UFAL. Doutor em Educação PPGE/UFPB.
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paga por uma tia, e sua roupa “[...] seguia em um bauzinho, na lancha do Pilar, para ser lavada
em casa dos pais, porque não podia pagar o lavado em Maceió [...]”.
No Curso de Humanidades, o seminarista Antônio Valente foi aprovado com distinção
em História Universal e História do Brasil. O mesmo ocorreu nos cursos superiores de
Filosofia e de Teologia, tendo sido aprovado também com louvor em Teologia Moral,
Teologia Pastoral e Direito Canônico (SOARES, 1981). Após concluir seus estudos, foi
ordenado padre em 12 de novembro de 1911, por D. Manoel Antônio de Oliveira Lopes,
segundo bispo de Alagoas e primeiro arcebispo de Maceió (1911-1923).
Depois de ordenado, o padre Antônio Valente passou a exercer funções ministeriais
como coadjutor da Paróquia de Viçosa (AL), que também englobava Chã Preta e Mar
Vermelho. Em 1913, foi transferido para a capital para exercer seu ministério na Capelania do
Bomfim, no atual bairro do Poço, e posteriormente na Igreja Nossa Senhora do Rosário310.
Para a divulgação do pensamento católico, que receava o avanço das ideias liberais e
comunistas no país, em 02 de março de 1913, com a colaboração do monsenhor Luis Carlos
de Oliveira Barbosa e do cônego Franklin Casado de Lima, Valente fundou o jornal da
arquidiocese, O Semeador. A fundação e direção de O Semeador representavam uma de “suas
maiores glórias”, como menciona o Arcebispo Coadjutor de Maceió, D. Adelmo Machado, em
discurso proferido pelas bodas de ouro de sacerdote de Valente, em novembro de 1961311.
Nesse periódico, ele fazia um jornalismo calcado nos ideais pelos quais fez defesa a vida inteira.
Medeiros (2007), atesta que o fato de O Semeador ter uma periodicidade diária era
motivo de orgulho para a Arquidiocese de Maceió, que possuía o primeiro diário católico do
país. Vasconcelos (1962), também chama a atenção para o fato de o periódico ser o diário
católico mais antigo do Brasil. Por isso, sempre que ocorria alguma comemoração pelo
aniversário do jornal esse feito era lembrado, como ocorreu em 1968, pelos 55 anos do
periódico: “Ao tempo que tantas negativas de diários católicos surgiram no Brasil, ‘O
Semeador’ foi o primeiro, na ordem do tempo, diário católico brasileiro e foi um dos poucos
(três ou quatro) que conseguiram viver até hoje”312. No referido ano, por ocasião da morte de
Valente, seu diretor-fundador, foi o último de circulação diária do jornal, que posteriormente
310 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 64v.
311 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 36.
312 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 64v,
apud MEDEIROS, 2007, p. 106.
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foi reativado passando a ter publicação semanal313. Tal fato nos faz refletir que O Semeador era
mantido pela dedicação e obstinação de monsenhor Valente, que tinha ciência do papel de
persuasão da imprensa escrita à época.
Em 1917 Valente foi transferido da Igreja Nossa Senhora do Rosário para a Paróquia
da Catedral Diocesana. Como vigário de Maceió, ele fundou na Igreja Catedral de Nossa
Senhora dos Prazeres várias instituições religiosas, destacando-se a Associação de Santa Zita,
que tinha por finalidade prestar assistência às empregadas domésticas314 e a Escola Dom Bosco,
noturna e gratuita, para crianças pobres. Quando iniciou sua gestão de pároco, a Catedral estava
em ruínas, por isso monsenhor Valente realizou várias obras na igreja Matriz da cidade: “[...]
nesse período, a Catedral se enriqueceu de majestosa escadaria, de um grande e artístico altarmor, de vários altares laterais, de um grande salão paroquial floriram as associações
religiosas”315. Nessa igreja serviu durante mais de cinquenta anos, de 1917 a 1968. De acordo
com Vasconcelos (1962, p. 30):
Mons. Valente, pela sua cultura e tenacidade, promove a renovação dos
quadros das associações, funda novos órgãos de assistência educacional e
social, e cria, nas funções sagradas, êsse ambiente de serenidade e de
recolhimento que tanto distingue a vida litúrgica da Catedral.
O Cônego Capitular da Igreja Catedral foi ainda assistente da Ação Católica316, cuja
atuação marcou o governo de D. Ranulpho da Silva Farias (1939-1948), instituindo-a em
Alagoas. Vasconcelos (1962, p. 33) atesta que a primeira semana da Ação Católica em Maceió
ocorreu em 1943, contando com a presença do bispo de Garanhuns, D. Mário de Miranda
Vilas Boas, e a segunda em 1944, presidida por D. José Delgado. Conforme O Semeador:
A Acção Catholica é a organização que fará voltar a christandade toda a
humanidade. Ela poderá intervir indirectamente, semeando doutrinas,
313 Atualmente O Semeador tem periodicidade quinzenal.
314 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 65.
315 Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de Maceió, p. 36v-37.
Palavras de D. Adelmo Machado, em discurso proferido pelas bodas de ouro do sacerdote Valente, em novembro
de 1961.
316 Movimento de apostolado, criado pela Igreja Católica no século XX, visando ampliar sua influência social,
através da inclusão de setores específicos do laicato e do fortalecimento da fé religiosa, com base na Doutrina
Social da Igreja. Em Alagoas, foi fundada por Dom Ranulpho da Silva Farias, 3º Arcebispo de Maceió, implantado
nos diversos setores da sociedade alagoana.
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defendendo os direitos dos pobres, formando a consciência catholica,
educando religiosamente a consciência do cidadão, para que saiba cumprir
seus deveres. Directamente, defendendo os interesses de Deus sempre que
estiverem em jogo (O Semeador, Maceió, 1º de agosto de 1934, p. 01).
Apesar de ter tido sua origem a partir do avanço e da ameaça comunista, a Ação
Católica foi de fundamental importância para pôr em discussão graves questões sociais. As
disparidades entre ricos e pobres, sobretudo no campo, tornaram-se alvo de análise e crítica
por parte dos clérigos, que passavam a enxergar as necessidades dos mais pobres, como “[...]
bem o comprovam a realização de diversos encontros de bispos, como o do vale do São
Francisco e os encontros dos bispos do Nordeste e, no caso particular de Arquidiocese de
Maceió, a realização das Semanas Ruralistas, a educação de base, a rádio educação, o
sindicalismo rural [...]” (MEDEIROS, 2007, p. 103). O pensamento católico entendia que era
necessário resolver esses graves problemas sociais, antes que o comunismo o fizesse.
O religioso também era sócio efetivo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
Nessa instituição, tomou posse no dia 11 de setembro de 1923317. Como membro da diretoria,
atuou no cargo de suplente de secretário (1922-1923), Secretário Adjunto (1925-1927) e 2º
Vice-Presidente (1929-1931)318. Foi também redator da Revista do Instituto, formando comissão
juntamente com Craveiro Costa e Amphilophio Mello. Entre 1941 e 1949 participou da
comissão de história, composta ainda por José Guedes Ribeiro Lins, Carlos Cavalcante de
Gusmão, e posteriormente Manuel Diégues Júnior, Luiz Lavenère e Théo Brandão.
Durante 19 anos, Valente lecionou Teologia Dogmática e Direito Canônico no
Seminário Arquidiocesano de Maceió. E ao lado de Gabriel Mousinho, em Olinda, Angelo
Sampaio, em Petrolina, monsenhor Tapajós, no Rio de Janeiro e Manoel Pedro Cintra, em
São Paulo, o Vigário de Maceió tornou-se uma das maiores autoridades brasileiras na área do
Direito Canônico (SOARES, 1981).
Atuando no Liceu Alagoano, Valente foi professor catedrático de História do Brasil319,
sendo nomeado por concurso em 18 de abril de 1929 e aposentando-se em 20 de fevereiro de
317 Acta da Sessão de 11 de setembro de 1823.
318 IHGAL, 2008.
319 Valente foi aprovado para a cadeira História e Corografia do Brasil, porém pelo Decreto nº 1293, de 21 de
fevereiro de 1929, Corografia foi anexada à cadeira de Geografia.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
1952320. Conforme Duarte (1961, p. 217-218), Valente assumiu ainda a 2ª cadeira de História
da Civilização, criada pelo Decreto nº 1783, de 31 de maio de 1933, e retornou à cadeira de
História do Brasil, quando restaurada em 1941. Foi também professor interino de Latim, no
ano de 1932, além de diretor da instituição por duas rápidas oportunidades. Na primeira
passagem entre outubro e novembro de 1931, sendo exonerado a pedido; e na segunda
oportunidade entre março e maio de 1933. Essas funções eram tidas com muito orgulho pelo
monsenhor, tanto que sempre eram lembradas nos discursos de homenagens que lhes eram
feitas, como por ocasião dos seus cinquenta anos de sacerdócio e do seu falecimento. Afinal,
ser professor do Liceu Alagoano era um privilégio e motivo de grande satisfação para os
intelectuais da época.
Vítima de um derrame cerebral em viagem ao Recife, monsenhor Antônio Valente
faleceu no dia 04 de dezembro de 1968, aos 80 anos de idade, no hospital do Câncer de
Maceió, sendo sepultado no Cemitério Nossa Senhora da Piedade.
Consideramos indispensável traçar esse percurso para melhor compreensão do objeto
deste trabalho. Segundo Certeau (1982), quando um autor escreve uma obra, o faz em função
do seu grupo ou da instituição a qual pertence. Por isso, é importante nos darmos conta do
lugar social-econômico, político e cultural de onde escreve o autor. Assim, é possível se ficar
mais atento para captar as “leis silenciosas” nas produções historiográficas com as quais lidamos
como fonte de nossa pesquisa:
[...] Nesta perspectiva, gostaria de mostrar que a operação histórica se refere à
combinação de um lugar social, de práticas “científicas” e de uma escrita. Essa
análise das premissas, das quais o discurso não fala, permitirá dar contornos
precisos às leis silenciosas que organizam o espaço produzido como texto [...]
(CERTEAU, 1982, p. 66).
Feito esse percurso, que nos possibilitou compreender o lugar sociocultural, políticoeconômico e religioso do cônego Valente, examinaremos, a seguir, a tese Dissertação sobre os
pontos controvertidos da historia do Brasil, que o religioso defendeu para ingresso como lente
no Liceu Alagoano.
320 É justamente o período em que ele foi professor do Liceu Alagoano que demarcar o espaço temporal da
pesquisa.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A Dissertação sobre os pontos controvertidos da história do Brasil e suas configurações para o
ensino da História do Brasil colonial
Como ponto escolhido para concurso de professor catedrático, Valente defendeu, em
15 de abril de 1929, junto à egrégia Congregação do Liceu Alagoano, a tese denominada
Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil, dividida em duas partes. Na
primeira, o professor-autor busca discutir versões a respeito da chegada dos europeus em terras
Pindorama321, defendendo, entretanto, a primazia da esquadra cabralina. Na segunda, analisa a
atuação dos membros da Companhia de Jesus no Brasil.
A primeira controvérsia que o autor questiona é a reivindicação de Pernambuco que os
espanhóis teriam chegado às terras pernambucanas antes da esquadra cabralina aportar em
Porto Seguro, na Bahia. De acordo com os historiadores do Instituto Archeologico de
Pernambuco, o navegador espanhol Vicente Yáñez Pinzón, companheiro de Colombo, teria
alcançado a costa brasileira em 26 de janeiro de 1500, desembarcando num cabo que
denominou Santa Maria de la Consolación, posteriormente nomeado Cabo de Santo
Agostinho. Ainda segundo os pernambucanos, Pinzón teria seguido viagem e, em fevereiro,
alcançado a foz do rio Amazonas, que chamou de Mar Dulce (1928, p. 6).
321 Designação dada ao Brasil pelas populações dos Andes e dos pampas (FERREIRA, 2004).
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Imagem 1 – Capa de Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil (1928)
Fonte: Acervo do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas.
Conforme essa teoria existiria igualmente a possibilidade do também navegador
espanhol Diego de Lepe ter circundado a costa brasileira em fevereiro e março de 1500. Assim,
outros europeus teriam chegado ao Brasil, pelo menos três meses antes do português Pedro
Álvares Cabral ancorar em Porto Seguro, na Bahia, em 22 de abril do mesmo ano, conforme
narra a maior parte das obras oficiais de história do Brasil322.
322 Vale lembrar que em sua obra História da civilização das alagoas (1962), Altavila defende que a esquadra de
Cabral aportou no Pontal de Cururipe, em Alagoas.
265
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Diante dessas afirmações e rejeitando tais possibilidades, Valente se coloca como
defensor da tese que Cabral foi o primeiro europeu a chegar ao Brasil. Para defender que o
“descobrimento” do Brasil teria se dado em terras baianas, baseia-se em autores como o
filósofo e historiador norte-americano Edmund Fisk Green (de pseudônimo John Fiske), o
geógrafo português Carlos Viegas Gago Coutinho e o historiador lusitano Duarte Leite Pereira
da Silva. E assim, utilizando-se dos argumentos geográficos, astronômicos e históricos de tais
autores atesta que Pinzón teria pisado na verdade a costa da Guiana Francesa (1928, p. 8).
Assim o professor-autor confirmou “[...] o primado de Cabral entre os navegadores que
attingiram as costas do Brasil [...]” (1928, p. 12).
Não nos foi possível captar o motivo que levou Valente a fazer a reflexão exposta, uma
vez que era tema de livre escolha. Contudo, supomos que havia realmente um grande debate à
época sobre tais questões. Entretanto, o cônego incorpora a ideia de que a “[...] nação brasileira
era uma dádiva da Europa, de um Portugal famoso nos séculos XVI e XVII [...]”
(BITTENCOURT, 2005, p. 194). Esse tipo de visão, que concebe a História como genealogia
da nação, era comum junto aos historiadores do IHGB e constava em alguns compêndios de
História do Brasil, a exemplo das Lições de História do Brasil, de Joaquim Manuel de
Macedo. Nessa concepção
[...] prevalecia a idéia de que a identidade nacional deveria sempre estar
calcada na Europa – o “berço da Nação” – e de que a história nacional havia
surgido naquele espaço. Esse ideário explica a razão de os estudos da História
do Brasil começarem fora do espaço nacional. O Brasil nasce em Portugal e é
fruto de sua expansão marítima. O povo brasileiro, constituído de mestiços,
negros e índios, continuava alijado da memória histórica escolar e da galeria
dos heróis fundadores e organizadores do Estado-nação (BITTENCOURT,
2004, p. 81).
A segunda parte da tese é destinada a fazer a defesa dos jesuítas, considerados por ele
como injustiçados com a “anti-propaganda e as calúnias” lançadas pelo Ministro português
Marquês de Pombal. Para o autor, a Companhia foi injustamente criticada, uma vez que foram
“[...] os grandes operários, os immortaes construtores da nossa nacionalidade” (1928, p. 13).
No período compreendido entre 1549 e 1759, o ensino, sobretudo de Humanidades,
esteve quase que exclusivamente sob a tutela dos inacianos. A ação dessa congregação teve um
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efeito profundo na formação do povo brasileiro. Contudo, embora gratuito, o ensino oferecido
pela Companhia era destinado aos filhos das elites, que se preparavam para o ingresso na
Universidade de Coimbra. Salientamos que o atendimento a esse grupo evitou o investimento
na escola de primeiras letras para a população.
A exposição de Valente a respeito dos jesuítas está pautada em três principais ações de
construção da nação. A primeira, do ponto de vista físico-geográfico, pela qual eles formaram
“[...] os primeiros nucleos, as primeiras habitações, as primeiras vilas do Brasil, dando aqui, ali
normas e feições de vida collectiva” (1928, p. 13). Não é demais lembrar que muitas cidades
brasileiras foram edificadas a partir das missões jesuíticas, a exemplo de Piratininga (SP),
Salvador, Vitória, dentre outras. O segundo tema apresentado pelo autor diz respeito à
construção da religiosidade brasileira. Nesse sentido, eles catequizaram o gentio lhes ensinando
os primeiros rudimentos da fé cristã (1928, p. 13). A terceira linha de pensamento aponta para
a ação educacional, pois “grandes educadores, os jesuítas espalharam escolas primarias por
todas as capitanias e edificaram institutos de ensino superior nas principaes cidades do Brasil,
tornando-se os pioneiros da litteratura nacional” (1928, p. 15).
Dessa forma, o professor-autor considera que os inacianos despertaram na nação
brasileira os sentimentos de patriotismo e conservaram a unidade nacional, inclusive ajudando
na expulsão dos “estrangeiros”. Essa ação se deu na formação de uma tríade, que unia o país
numa única língua, pela formação intelectual, numa mesma fé, pela catequização e “civilização”
dos indígenas e numa particular arquitetura, pela construção de vilas, povoados e estradas.
Os programas para o ensino de História do Brasil destacavam a importância dos padres
da Companhia de Jesus e de outras ordens religiosas católicas no período colonial,
especialmente em se tratando das suas obras em favor da manutenção da integridade nacional.
Segundo Abud (2006, p. 38), os programas de 1931 determinavam o seguinte:
[...] conteúdos para a 4ª série do curso secundário: “A transmissão da cultura
européia: início da literatura e da arte brasileiras. A Igreja no Brasil: sua
organização e influência; a visitação do Santo Ofício e a Inquisição”. “Os
jesuítas e a catequese” era a sexta unidade do programa de História do Brasil
para a 4ª série, elaborado em 1940.
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Ao afirmar que os jesuítas foram os grandes construtores da nação Valente aproxima-se
da versão proposta por outros autores. Silva (1959, p. 202), por exemplo, afirma que eles “[...]
chegaram a formar todos, ou quase todos que, no Brasil dos séculos XVI a XVIII, tiveram
algum nome nas letras, nas ciências, nas artes, na política [...]”. Ainda segundo Silva (1959), é
falsa a crítica de que os que estudaram com os inacianos não se destacaram nas ciências, a não
ser que reneguem sua formação inicial, a exemplo de Descartes. Assim, os inacianos – para o
bem ou para o mal – foram os grandes formadores de uma elite intelectual no período colonial,
haja visto que por meio do seu ensino chegava a cultura clássica aos homens ilustres da época.
Tal entendimento se aproxima das suposições de Certeau (1982), em A escrita da
história, ao abordar o sistema religioso dos séculos XVII-XVIII, sobre o qual ressalta que a
Igreja Católica passava a se amparar pelo jargão de que “não existe fé sem obras”. Para o autor
francês, os jesuítas foram os principais introdutores da civilidade, da honestidade, do dever de
estado e da honra, ao cuidarem de organizar tarefas no terreno das práticas civis e políticas. As
edificações erguidas por eles ilustram esse propósito, ao tomarem o lugar do estado no cuidado
de salvaguardar a moral e o corpo dos representantes da escória social.
Pois bem, é na defesa desses “obreiros da nacionalidade brasileira”, que foram
expulsos, perseguidos e caluniados pelo Marquês de Pombal (1928, p. 15), “aqueles a quem a
história começa a fazer justiça”, que o Cônego Valente se coloca. Para isso, busca embasamento
em dois eventos de história ocorridos no Rio de Janeiro. Inicialmente cita a moção de apoio
aos inacianos, feita no Primeiro Congresso de História Nacional (1914), por ocasião do
centenário do restabelecimento da Companhia, concedida pelo Papa Pio VII em 1814. Assim
se manifestaram os congressistas:
Considerando que o nome da Companhia de Jesus se acha indissoluvelmente
ligado á História do Brasil e de modo tão estreito, que relembrar os seus
factos é assignalar ao mesmo tempo os extraordinários serviços que na tríplice
missão humanitária, política e social realisaram os Jesuitas no paiz durante
mais de dois seculos; evangelizando as tribus selvagens, salvaguardando o
principio da moralidade em face da corrupção e execrável cubiça dos colonos,
alimentando a chama do patriotismo que repeliu as invasões extrangeiras,
concorrendo efficazmente para a conservação da unidade e integridade da
Nação, e diffundindo por toda a parte a cultura intellectual que preparou o
surto brilhante na nossa litteratura; 2º Considerando que escriptores Jesuitas
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
foram dos primeiros que colaboraram com as descripções chorographicas, as
biographias e as chronicas monásticas, os elementos primordiaes em que se
baseia o estudo da geographia, da historia e da ethnographia do Brasil; 3º
Considerando que a commemoração de todos esses grandes feitos tem lugar
precisamente no anno do centenario do restabelecimento e rehabilitação da
Companhia de Jesus pelo decreto do Summo Pontifice – Pio VII (7 Agosto
de 1814);
Resolve consignar na acta de sua ultima sessão plena, um voto de
contentamento pela recordação desse acto de justiça que “solemne e
juridicamente restituiu ao seu primeiro ser” a ilustre Sociedade a quem deve o
Brasil tão denodados e eficazes obreiros da sua grandeza e da sua civilização
(1928, p.17-18).
A segunda manifestação ocorreu no Primeiro Congresso Internacional de História da
América (1922), na qual os historiadores reconheceram o caráter humanitário, civil, político e
científico das missões jesuíticas em toda a América Latina. Segundo Valente (1928, p. 19):
Resolve, a exemplo do que fez, em 1914, o 1º Congresso de História
Nacional, recordar na acta da sua primeira sessão plena, entre innumeros
outros, os nomes imperecíveis de Manoel da Nobrega [...] para render a esses
heróes um tributo da mais alta veneração e reconhecimento – e faz votos para
que todos os povos do continente, cada vez mais unidos, se mantenham na
defesa e acrescentamento do precioso legado de civilização, que receberam, e
se pode synthetizar no inquebrantável respeito á liberdade humana, ainda
mesmo daquelles que, na apparencia, se diriam menos dignos della, no
espirito de abnegação e sacrificio, indispensavel a consecução dos grandes
problemas, no culto desinteressado das sciencias, das lettras e das artes [...].
É consenso na historiografia da educação que não se pode falar de escolarização,
especialmente no período colonial, sem mencionar a intensa ação dos jesuítas nas diversas
regiões do país. De formação ilustrada e com sua metodologia baseada na Ratio Studiorium, os
inacianos tinham como projeto o letramento da população e a catequização dos indígenas,
deixando sua marca na formação do povo brasileiro com ações pautadas na escola. Assim, em
que pese o caráter apologético da tese de Valente, não podemos negar o papel significativo que
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a Companhia de Jesus teve na formação cultural, social e religiosa do povo brasileiro,
especialmente porque eles passavam a reafirmar valores relacionados à família, ao civismo, à
nação, à ordem e a conformação social.
Considerações finais
Não se pode negar a ação religiosa e educacional exercida pelo cônego Valente na
sociedade maceioense, seja como sacerdote, atuando na Catedral de Maceió; jornalista, criando
e dirigindo o jornal da Arquidiocese, O Semeador; membro do Instituto Histórico e
Geográfico de Alagoas; ou professor, do Liceu Alagoano e do Seminário Arquidiocesano. Suas
palavras e escritos tiveram um papel significativo na formação cultural, social e religiosa das
elites alagoanas.
Ao que constatamos, monsenhor Valente buscou se utilizar dos espaços sociais,
disputando com a elite intelectual local os lugares de atuação política para difundir os valores
do cristianismo católico. Entretanto, não se limitou à atuação enquanto religioso. Por diversos
meios expandiu seu campo de formação junto aos meios educacional, cultural e social. Dessa
forma, independentemente do juízo que se faça, suas ações estavam imbricadas social e
historicamente, determinando e sendo determinado naquele contexto educacional. Nesse
sentido, lembramos que a historia é uma experiência humana contraditória, não tem um único
sentido ou significado, não é linear, não é homogênea, ela pode gerar várias interpretações.
Portanto, devemos evitar a velha tentação de dividir os humanos em bons e maus,
especialmente quando escolhemos um estudo sobre um sujeito que aos olhos de hoje pode ser
caracterizado como um conservador. Longe de ser um revolucionário, Valente foi um homem
do seu tempo e lugar, e como tal, enxergava o mundo por uma determinada lente.
Como vimos, o professor-autor obedece a uma escrita própria de seu grupo social, em
defesa do lugar da Igreja, e tenta fazer isto habilmente ao elaborar uma narrativa coerente do
ponto de vista dos argumentos. Imerso numa concepção de história a qual privilegia os heróis
da pátria, o sacerdote alagoano se põe numa escrita em defesa dos portugueses e dos jesuítas.
Desse modo, o critério de neutralidade requerido por uma versão positivista da história não se
manifesta nas entrelinhas daquela escrita. O fato de Valente ser um clérigo demarca seu lugar
de escrita, como nos lembra Certeau, pela defesa permanente dos interesses da Igreja Católica.
Pelo que pudemos constatar, Valente escreve sua tese baseada no “heroísmo” de dois
grupos fundamentais para a construção da nação: primeiramente, os representantes do poder
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institucional, que dominaram a Colônia; e segundo, os representantes do poder eclesiástico,
“[...] notadamente os jesuítas, que se encarregavam de civilizar os indígenas antropófagos e
selvagens” (BITTENCOURT, 2005, p. 194). Não é demais lembrar que esse tipo de
ponderação, na qual se insere as reflexões do professor-autor pesquisado, “[...] eram
apresentadas de forma altamente positiva pelos programas e textos didáticos [...]” (ABUD,
2006, p. 38). Assim, a escrita de Valente é coerente com as propostas dos compêndios,
manuais e programas didáticos de sua época.
É possível que, mesmo eventualmente ou seguindo o programa oficial nas suas aulas de
História do Brasil no Liceu Alagoano, as lições tivessem relação com as temáticas da tese.
Desse modo, não é difícil imaginar a exposição do professor cônego Valente, imerso nas
reflexões relacionadas ao “Descobrimento” e aos Jesuítas.
Em relação aos saberes que circulavam na formação dos discentes do Liceu Alagoano, a
partir das teses do cônego Valente, consideramos que eles passavam a reafirmar valores
relacionados à construção e constituição da identidade nacional, como fazia a maior parte dos
intelectuais à época. Além disso, a escrita do professor era marcada pela ideia de pacificação e
conformação social, as quais, embora, de certa forma, fossem oriundas de propósitos do
catolicismo, não ficavam a dever àqueles pleiteados pelos ideólogos da República Brasileira.
Referências
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escola secundária. In: BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes (org.). O saber histórico na
sala de aula. São Paulo, SP: Contexto, 2006.
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Geographico Alagoano. Ano LVI, Vol XIII. Maceió: Officinas graphicas da Livraria Machado,
1928, p. 300-301.
ALTAVILA, Jayme. História da civilização das alagoas. Maceió: Departamento Estadual de
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Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 15 (1961-1964). Arquivo da Arquidiocese de
Maceió.
Arquidiocese de Maceió. Livro do Tombo nº 16 (1965-1968). Arquivo da Arquidiocese de
Maceió.
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fundamentos e métodos. São Paulo: Cortez, 2004.
________. Identidade nacional e ensino de história no Brasil. In: KARNAL, Leandro (org.).
História na sala de aula. 3. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
CERTEAU, Michel de. A operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A escrita da
história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982, p. 65-119.
DUARTE, Abelardo. História do Liceu Alagoano. Maceió: Departamento Estadual de
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MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja Católica, ação social e
imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: Edufal, 2007.
O SEMEADOR. Maceió, 1º de agosto de 1934.
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da Educação e Cultura, Companhia de Aperfeiçoamento e Difusão do Ensino Secundário,
1959.
SOARES, Mons. José Luís. Antônio Valente. Conferência pronunciada no Teatro de Arena
Sérgio Cardoso, em 18 de outubro de 1981, na série Nossas figuras pouco lembradas,
organizada pela FUNTED (Fundação Teatro Deodoro). Maceió, 1981. (Texto datilografado).
VALENTE, Conego Antonio. Dissertação sobre os pontos controvertidos da historia do Brasil.
Maceió: Papelaria Valente, 1928.
VASCONCELOS, Cícero de. Sôbre a história da Catedral de Maceió. Maceió: Departamento
Estadual de Cultura, 1962.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939) como fonte para a
História das Instituições Escolares em Alagoas
Marcondes dos Santos Lima323
Resumo:
O escopo do texto é apresentar, sumariamente, um conjunto de dados acerca do Almanaque
do Ensino do Estado de Alagoas, publicado em 1939. Nisto, considero a sua possibilidade de
ser apropriado como uma fonte para o subcampo da História das Instituições Escolares, uma
vez que em seu conteúdo é apresentado um conjunto de dados sobre as escolas e colégios de
Alagoas da década de 1930. Em especial, de instituições alagoanas que até o momento não se
tornaram objeto de estudo. Ao eleger o Almanaque do Ensino como objeto e fonte deste texto
me servi dos aportes da pesquisa de base documental, em específico, das orientações
metodológicas de Luca (2008), que nos alerta para a observação da materialidade dos
impressos, visto que o seu suporte emite enunciados, que nada tem de natural. Os resultados
apontaram que dada a sua materialidade o Almanaque do Ensino se comporta como uma
potencial fonte para o desenvolvimento de estudos acerca da historicidade das escolas e
colégios alagoanos circunscritas na década de 1930.
.
Palavras-chave: Almanaque do Ensino (1939) – Fonte – História das Instituições Escolares.
Considerações Iniciais
O texto em apreço intitulado de, O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939)
como fonte para a História das Instituições Escolares em Alagoas, se constitui como um dos
resultados iniciais da pesquisa individual que venho desenvolvendo desde meados de 2021.
Trata-se da pesquisa “As fontes para a História das Instituições Escolares em Alagoas, Império
e República”. O referido projeto insere-se no campo da História da Educação e no subcampo
da História das Instituições Escolares.
323 Doutorando em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. Mestre em Educação pela Universidade Federal da Paraíba. E licenciado em Pedagogia pela Universidade
Federal de Alagoas.
273
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O objetivo geral constitui-se em mapear nos periódicos alagoanos veiculados no
Império e República, bem como no Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939), dados
acerca de instituições escolares que foram fundadas em Alagoas, a fim de montar um conjunto
de dados que permitam elaborar uma narrativa acerca da história institucional das instituições
públicas e colégios particulares do Estado. Por sua vez, os objetivos específicos incidem em
identificar nos jornais alagoanos, salvaguardados na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional,
bem como no Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939), o nome das instituições
escolares alagoanas; listar os nomes das instituições escolares alagoanas que funcionaram no
Império e República; elaborar uma narrativa acerca da história institucional das escolas
alagoanas em formato de artigo científico; divulgar e socializar os resultados das análises em
eventos acadêmicos e/ou revistas científicas.
Aqui, pretendo apresentar de formar, preliminar, os primeiros dados que consegui
coletar do Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939). Tais dados que serão
apresentados na segunda seção traz um indicativo do funcionamento de alguns colégios
particulares da capital Maceió/AL, que estiveram em atividades no final dos anos de 1930.
Ressalto ao/a leitor/a que o presente texto é de caráter informativo no sentido de tornar público
aos/as interessados/as a existência desse Almanaque que em seu corpus registra uma riqueza de
dados sobre várias instituições alagoanas.
O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas de 1939, encontra-se transcrito e
disponibilizado no repositório de fontes do site do “Grupo de Estudos e Pesquisas História da
Educação, Cultura e Literatura” (GEPHECL) do Centro de Educação da Universidade Federal
de Alagoas (UFAL)324.
As fontes na escrita da História das Instituições Escolares
Inicialmente, pretendo discorrer de modo pontual as relações que os/as historiadores/as
das instituições escolares podem estabelecer com aquilo que considero como sendo a matériaprima do trabalho do/a pesquisador/a que lida com o passado das instituições, a saber: as fontes
históricas. Embora saiba que esse é um assunto vencido no campo, mesmo assim, entendo que
na produção de todo texto histórico-educacional é preciso nos guiarmos pelo o entendimento
324 Segue o link de acesso:
https://cedu.ufal.br/grupopesquisa/gephecl/wp-content/uploads/2018/05/almanaque.pdf.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
do que concebemos como sendo uma fonte. Para isto, me apoio nas reflexões do historiador
da educação italiano, Dario Ragazzini (2001), num texto onde aborda o processo de
identificação, o uso e a relação do/a pesquisador/a com as fontes nos estudos históricoeducacionais.
A leitura de Ragazzini (2001), me reportou ao entendimento de que há uma diferença
entre o que é uma “fonte” e o que é um “documento”. Toda fonte é um documento, mas nem
todo documento é imediatamente uma fonte. O documento só se configura como uma fonte a
partir do momento que responde as questões referentes ao objeto que se investiga. Para que
um documento se torne fonte é preciso que o/a historiador/a da educação o interrogue, como
pontua March Bloch (2001).
Esse processo a qual me referi acima, segundo o autor, são características peculiares
deste tipo de pesquisa. E complementa que a relação com as fontes é a base sobre a qual se
edifica a pesquisa historiográfica. A partir dessa perspectiva, o autor nos dirá que no que tange
ao tema da relação do/a historiador/a com as fontes, é sabido que no meio acadêmico é
contestada o estabelecimento de uma relação objetiva entre o sujeito que pesquisa e a fonte que
é averiguada. Atualmente, é quase um pecado dizer que é possível ser objetivo no exame das
fontes. Concomitante, mais recentemente, é contestado uma ênfase demasiada na subjetividade
do intérprete na abordagem. Embora, estejamos advertidos dessas duas contestações,
sobretudo, a primeira, todavia o autor pontua que ainda permanece o risco de incorremos no
excesso da subjetividade, isto é, de estabelecermos uma relação enganosa com a fonte, bem
como de extrairmos delas interpretações equivocadas, muitas vezes ocasionadas pelos
problemas contemporâneos que nos perseguem e dos interesses político e teóricos imediatos. É
desse segundo tipo de relação com as fontes que devemos estar precavidos. É por este motivo
que o autor considera emergente um retorno às discussões sobre as fontes, em especial, a
relação do/a pesquisador/a com as fontes no campo da História da Educação e eu
complementaria da relação deste/a com as fontes no subcampo da História das Instituições
Escolares.
Estarmos convencidos de que não é possível manter uma aproximação objetiva com a
fonte, bem como estarmos cientes das armadilhas da subjetividade ou, melhor dizendo, de seu
excesso nos direciona para uma outra questão que é pronunciada nas palavras do autor:
“Agrada-me repetir que o trabalho historiográfico não é atinente à verdade, mas à certeza”
(RAGAZZINI, 2001, p. 16). Interpreto “certeza” no sentido de o/a pesquisador/a ter a
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
convicção de que a sua interpretação/leitura das fontes estar próxima dos fatos. Entendo,
também, que essa “certeza” ocorre mediante ao afastamento dos dois tipos de relação com as
fontes citadas anteriormente. Nem objetivo e nem demasiadamente subjetivo.
O certo é que as fontes não respondem por si só. São vestígios, sinais, indícios, marcas
de um passado que quer se fazer ouvido. Ou, de um passado que aparenta estar morto, mas
que se mostra vivo na medida que os seus mortos gemem. Esse passado mais vivo do que
morto é empiricamente comprovado no momento em que o/a pesquisador/a interroga as
fontes e estas lhes respondem. A fonte provém do passado, mas não é o passado, e sim uma
representação do passado.
As fontes são lidas a partir de múltiplas relações, tais como, as concernentes à sua
produção em um contexto específico, sua seleção por um grupo ou instituição, a sua
conservação no tempo e a da sua interpretação no presente. Entendo que o/a historiador/a da
educação ao analisar o seu acervo deve se atentar para essas múltiplas relações que constituem
as fontes.
Mas não só isto. O conteúdo das fontes é composto por aquilo que se denomina de
“conteúdo denotativo” e “conteúdo conotativo” (RAGAZZINI, 2001). O primeiro teria a ver
com aquilo que está literalmente escrito no documento como palavras e números, por
exemplo. Em outras palavras, é a mensagem explícita. O segundo tem a ver com o que está
implícito, subjacente e que só é desvendado quando o/a pesquisador/a interroga a fonte.
Para ilustrar a sua explicação Dario Ragazzini (2001) utiliza como exemplo um exame
escolar de um estudante. No referido exame há elementos como a nota do aluno, as questões,
as respostas, o seu nome, o nome da instituição, o nome da professora. Todos esses dados
dizem respeito ao aspecto denotativo do exame. Logo, não passa de um exame escolar. Porém,
quando o/a historiador/a da educação se apropria desse exame como fonte histórica, ele passa
não somente a observar o seu conteúdo denotativo, mas também e, sobretudo, o seu conteúdo
conotativo. Aliás, para o autor o que torna um exame escolar uma fonte histórica é justamente
o seu aspecto conotativo. O exame escolar só é interessante quando indagado e pode informar
sobre a cultura escolar da instituição, o perfil do professor e alunado, o sistema de avaliação
implantado, os saberes ensinados. São esses dados que constituem o conteúdo conotativo do
documento, neste caso, do exame. É precisamente a conotação do documento que é estudada
pelo/a historiador/a da educação.
276
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Dessa forma, o conteúdo denotativo seria o dito pela fonte, enquanto que o conteúdo
conotativo seria o não dito, nos termos de Certeau (2010). Um documento vale como fonte não
só por aquilo que está escrito (conteúdo denotativo), mas pelo o que por algum motivo não foi
dito (conteúdo conotativo). Identificar os motivos do porquê determinada informação não foi
registrada, o contexto de produção da fonte, os critérios de seleção e conservação por qual
passou é o que constitui o conteúdo da fonte e, portanto, é o que interessa ao historiador/a.
A partir dessas breves considerações em torno das relações que podem ser estabelecidas
com as fontes é que podemos pensar as fontes “da” história da escola e as fontes “para” a
história da escola (RAGAZZINI, 2001). No primeiro caso, temos as fontes que são produzidas
diretamente pelas instituições de ensino como os cadernos, provas, cartazes, atas do conselho
docente, cadernetas e outros. Por exemplo, um caderno ou um exame escolar permite narrar
uma história das disciplinas ou de uma disciplina específica; uma caderneta ou um mapa de
aula do século XIX permite narrar uma história do trabalho docente.
Antonietta D’aguiar Nunes (2006), apresenta alguns documentos que podem ser
encontrados nas escolas e que têm um potencial de se constituírem em fontes para a História
das instituições escolares. Partindo do pressuposto de que tudo o que o homem toca serve
como fonte de informação, a autora diz que nas escolas encontra-se várias delas, cito algumas:
livros didáticos e paradidáticos, estatutos e regimentos internos, atas de conselho de classe,
orçamentos anuais e plurianuais, livros de matrículas, históricos escolares, cadernetas escolares,
projeto político-pedagógico, powerpoint, transparência, slides, fotografias de eventos e
atividades da escola. Até os sites acessados pelos/as alunos/as no laboratório de informática
devem ser tomados como fontes. A biblioteca e seus livros, também. Todas essas fontes trazem
elementos da cultura escolar e podem auxiliar na compreensão de diversas temáticas que dizem
respeito ao universo escolar. As fontes “das escolas” auxiliam na compreensão não somente do
fenômeno educativo, mas também do cotidiano de uma população como, por exemplo, os
cadernos escolares podem apresentar indícios do nível de escolarização e alfabetização de uma
determinada região geográfica (RAGAZZINI, 2001).
No segundo caso, temos as fontes que são “para” a escola, ou seja, aquelas que não
foram produzidas na instituição de ensino, no entanto ajudam a pensar a escolarização. Este é o
caso da legislação, da imprensa, as estatísticas e outros. A imprensa, por exemplo, pode ajudar
a pensar a época em que a escola funcionou. A apropriação desse tipo de documentação se
justifica pelo o motivo de sabermos que as fontes escolares não são autossuficientes, isto é, não
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
são capazes de dar conta de uma história da escola e da educação, além de o estudo da escola
implicar a relação com outras temáticas como a história da infância, por exemplo.
Para além da documentação que chega à escola, bem como da que é produzida na
escola, o/a historiador/a da educação pode construir, como bem nos lembra Nunes (2006), um
acervo a partir das fontes que conseguiu catalogar durante a realização de sua pesquisa. Por
exemplo, elaborar um catálogo de jornais com informações da instituição na imprensa. Nisto, é
indicado o nome do jornal, ano de edição, número da publicação, número da página e título da
seção. Também, pode criar um acervo com as entrevistas transcritas que foram realizadas com
os/as ex-professores/as, ex-alunos/as e ex-gestores/as da instituição. Outra possibilidade é pedir
autorização do/a entrevistado/a para transcrever, fotografar ou digitalizar algum caderno que
usou no tempo que era aluno/a, fotografias com os colegas de turma, atividades de classe e as
provas de avaliação e outros. Outrossim, ainda que o/a pesquisador/a esteja pesquisando a
história da instituição, pode aproveitar a oportunidade e fotografar as dependência da escola na
atualidade e arquivá-las para futuras pesquisas. Também, as transcrições e/ou digitalização dos
documentos oficiais que dizem respeito à escola. Vale ressaltar que as fontes criadas pelos/as
historiadores/as da educação podem ser disponibilizadas nos sites de grupos de estudo e
pesquisa, bem como podem ficar sob a tutela das instituições escolares que foram o lócus do
estudo.
O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas (1939): indícios das instituições escolares
alagoanas
O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas foi um impresso publicado no ano de
1939, pela Gráfica da Casa Ramalho na cidade de Maceió, então capital de Alagoas. Era
publicado anualmente e tinha como finalidade informar a população fatos e ocorrências que
diziam respeito a algum setor da sociedade civil, desde a educação até a economia, por
exemplo.
O almanaque por apresentar um caráter anual e único, torna-se um objeto
notável. Com o tempo, passaram por mudanças e/ou adaptações a fim de
satisfazer os seus leitores, assumindo diferentes formas e funções. Resistindo
às transformações culturais modernas, os almanaques permaneceram
circulando em uma profusão de produções em variadas modalidades e
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
gêneros, constituindo-se em literários, administrativos, mercantis e industriais,
agrícolas, populares, ilustrados, entre outros. Assim, eles variavam tanto de
tamanho quanto de conteúdo, possibilitando ao público escolher por qual
impresso se guiar (MARQUES, 2019, p. 17).
Nas primeiras páginas do referido impresso consta a informação de que era dirigido a
comunidade escolar, a família, aos envolvidos com o comércio da capital e ao povo
maceioense. Segue o excerto: “O ALMANAQUE DO ENSINO é obra de interesse geral: de
professores e de alunos; de diretores de estabelecimentos e de pais de família; do comércio e
do povo” (O Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, 1939, s/p).
Ao constatar que o público alvo do Almanaque era composto por sujeitos da
comunidade escolar entende-se o motivo de nele haver um conjunto significativo de
informações acerca do funcionamento interno de algumas instituições escolares do Estado, que
estavam em atividade no final da década de 1930. A partir de Marques (2019), percebo que o
Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas pertence ao gênero pedagógico, visto que nele há
registro do funcionamento de algumas escolas como será demonstrado mais adiante.
Considerando que a natureza deste texto é informativo no sentido de tornar público
aos/as interessados/as a existência desse Almanaque que em seu corpus registra uma riqueza de
dados sobre várias instituições alagoanas que atuaram no final dos anos 1930, apresentarei a
seguir uma tabela contendo os dados sobre alguns colégios particulares que estiveram em
atividade na capital Maceió, durante o período citado.
Tabela I - Instituições de Ensino Particular de Alagoas na Segunda República.
Instituição Escolar
Dados
Fragmentos
Dirigido pelos Irmãos da
Congregação
de
Santa
Catarina de Sena;
Oferta os cursos Primário,
Normal e Ginasial;
“O Colégio está sob
inspeção
preliminar
Oferta os cursos de letras, federal e oficializado
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Colégio de São José
música, desenho, pintura e por
despacho
do
atividades em estanho, cobre Exmo. Sr. Governador
do Estado”.
e ouro;
O colégio se organiza na
forma de internato, externato
e semi-internato;
O
prédio
da
localizava-se
instituição
na
Rua
Fernandes de Barros, nº 161,
Cidade de Maceió/AL;
Fundado em 1905 no Estado
de Alagoas;
Dirigido
pelos
Irmãos “Instituto
Maristas;
inspeção
Livre
sob
permanente
pelo Decreto nº 2.597,
Localizava-se na Rua Dr. de 29 de abril de
Cincinato
Pinto,
nº 348, 1938”.
Maceió/AL;
Colégio Diocesano
O colégio funcionava em
próprio, “Acha-se instalado em
edifício
relativamente
espaçoso
e edifício
próprio,
adequado as orientações da espaçoso, dotado de
pedagogia moderna;
todo o conforto exigido
pela
pedagogia
Ofertava os cursos primário e moderna e de todo o
secundário;
aparelhamento para os
cursos
280
primários
e
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
secundários”.
O colégio se organiza na
forma de internato, externato
“sob
e semi-internato;
inspeção
preliminar”.
Ofertava os cursos primário e
secundário;
“O Colégio está situado
A organização da colégio em
Colégio Batista Alagoano
seguia
as
orientações
um
dos
mais
da aprazíveis bairros da
Pedagogia Moderna;
cidade, tendo prédios
bem
arejados
e
Os prédios do colégio eram espaçosos, obedecendo
espaçosos e arejados;
em tudo aos requisitos
da
pedagogia
Localizava-se na Rua Dr. moderna”.
Aristeu de Andrade, nº 376,
Bairro Farol, Maceió/AL;
Colégio
dirigido
religiosas
da
pelas
própria
instituição;
O Colégio foi equiparado à “Equiparado à Escola
Escola Normal do Estado de Normal do Estado”.
Alagoas;
Ofertava
os
cursos
de “Sob
Infantil, Primário, Normal e federal”.
Ginasial;
Colégio SS. Sacramento
O Colégio esteve sob a
281
fiscalização
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
fiscalização
do
Governo
Federal;
Sua organização era na forma
de internato, semi-internato e
externato;
O
Colégio
recebia
a
matrícula e frequência de
alunas;
Localizava-se na Rua Ângelo
Neto, nº 163, Bairro do
Farol, Maceió/AL;
Organizava-se na forma de
internato;
Era
uma
instituição
de
internato feminino;
Ofertava os seguintes cursos:
Primário, “Equiparado às Escolas
Preliminar,
Normal,
Comercial
e Normais
Estado”.
Profissional;
A instituição era equiparada
Azilo Nossa Senhora do
Bom Conselho
às Escolas Normais Rurais do
Estado de Alagoas;
O diretor do Azilo era Firmo
da Cunha Lopes;
282
Rurais
do
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
O
corpo
docente
era
integrado por: Irmã Saint
Louíse, Irmã Maria Noela,
Maria
C.
Santa
Maria
Cavalcante,
Inesia
Mafra,
Selenita Lima Jucá, Maria
Das Dores P. de B. Ferrari;
Localiza-se
no
bairro
de
Bebedouro, Maceió/AL;
Foi fundado e dirigido por
“O corpo docente deste
seculares;
educandário
é
Sua fundação foi no ano de constituído
1932;
O
educandário
por
professores
de
idoneidade
moral
foi reconhecida,
equiparado à Escola Normal registrados
do Estado;
no
Departamento Geral da
Instrução Pública deste
Colégio Imaculada
Conceição
A arquitetura do prédio onde Estado”.
o colégio estava instalado
seguia as recomendações do
higienismo e da pedagogia
“[...]
moderna;
instalado
prédio
em
confortavel
Foi um colégio destinado ao proporciona todas as
sexo feminino, onde recebia garantias que exigem a
alunas;
higiene [...]”.
283
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A sua organização era no
formato de internato, semiinternato e externato;
Ofertava os cursos Primário e
Secundário;
Localizava-se
na
Floriano
Praça
Peixoto,
Maceió/AL;
Ofertava
os
primário,
cursos
de
telégrafos
e
“Corpo docente idoneo
comércio;
e especialisado”.
A sua organização era na
forma de internato, semiColégio 7 de Setembro
internato e externato;
Seu diretor foi o professor
João Valeriano;
Localizava-se
na
Praça
Floriano Peixoto, nº 553;
Fonte: Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas, 1939.
Considerações finais
Como demonstrado acima, os dados aqui apresentados foram extraídos do Almanaque
do Ensino do Estado de Alagoas, publicado na capital Maceió, em 1939. No referido
documento está reunido informações acerca das atividades pedagógicas realizadas no Estado no
final da década de 1930. Nele, encontramos anúncios de colégios particulares (publicidade),
bem como das ações que foram feitas no interior de instituições escolares públicas. Entendido a
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
sua função, corroboro com a ideia de que os almanaques de ensino, em especial, o do Estado
de Alagoas constitui-se em uma potencial fonte de informações que nos permite acessar, de
modo limitado, indícios da dinâmica de algumas instituições.
Referências Bibliográficas
Almanaque do Ensino do Estado de Alagoas. Maceió: Of. Graf. da Casa Ramalho, 1939.
BLOCH, Marc. Apologia da história - ou o ofício do historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zarar,
2001.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Tradução de Maria de Lourdes Menezes. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2010.
MARQUES, Ana Luiza de Vasconcelos. “O Almanach tudo desvenda.... tudo ensina”:
sociabilidades, mediação cultural e elementos civíco-educacionais nos impressos Brasil-Portugal
(1899-1903). 2019. 309 fls. Tese (Doutorado em Educação), Universidade Federal da Paraíba,
João Pessoa/PB, 2019.
NUNES, Antonietta D’aguiar. Fontes para a História da Educação. Práxis Educacional.
Vitória da Conquista, Vitória da Conquista, nº 2, p. 187-206, 2006.
RAGAZZINI, Dario. Para quem e o que testemunham as fontes da História da Educação? –
Tradução Carlos Eduardo Vieira. Educar, Curitiba, n.18, p.13-28. 2001.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Instruções pedagógicas para o trabalho da professora primária veiculadas pela
Revista do Ensino de Minas Gerais (1925-1930)
Monalisa Lopes dos Santos Coelho
Resumo:
Esta pesquisa objetiva analisar os discursos da Revista do Ensino dirigidos às professoras
primárias, compreender a feminização do magistério e analisar o papel da mulher como cidadã
e professora. Como metodologia realizou-se a análise documental dos 52 números da Revista
do Ensino (1925-1930), a partir da Nova História Cultural respaldando-se em Bakhtin (1975)
para a análise dos discursos publicados. Os resultados demostraram uma feminização do
magistério primário em Minas Gerais, e que essa revista aliou o discurso cristão à Escola Nova
para instruir o trabalho das professoras primárias.
Palavras-chave: Feminização do magistério. professora primária. Revista do Ensino.
1 – Introdução
Este trabalho insere-se na linha de pesquisa da História da Educação, que adotou o
recorte histórico (1925-1930) relativo aos primeiros cinco anos de vida editorial da Revista do
Ensino de Minas Gerais. O objeto de pesquisa trata das instruções pedagógicas para a
professora primária veiculadas nesse periódico oficial mineiro.
A imprensa pedagógica enquanto fonte historiográfica traz consigo muitas possibilidades
de leituras, análise e interpretações para as pesquisas científicas no campo da História da
Educação. Este estudo adotou o impresso pedagógico Revista do Ensino de Minas Gerais
entendendo que esta fonte materializou em suas páginas propostas didáticas que expressavam
as várias concepções pedagógicas que existiam em sua época. Desta maneira, por meio desse
suporte material impresso podem ser conhecidas, por exemplo, algumas das práticas
Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de
Uberlândia PPGED-UFU. Mestre em Educação pelo PPGED-UFU. Graduada em Pedagogia pelo Instituto de
Ciências Humanas ICH-UFU. Professora Tutora formadora do Centro Colaborador de Apoio ao Monitoramento
e à Gestão de Programas Educacionais CECAMPE-UFU.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
pedagógicas recomendadas pela concepção educacional da Escola Nova chegou ao Brasil, e em
Minas Gerais no começo do século XX.
Para o estudo da imprensa periódica educacional, este trabalho apoia-se em Catani
(1996), que considera as revistas especializadas em educação como instância “[...] privilegiada
para a apreensão dos modos de funcionamento do campo educacional” (CATANI, 1996, p.
117); e também em Bastos (2002), que expõe a importância do estudo das revistas
educacionais, enquanto fontes documentais significativas para desvelar o passado educacional.
Assim, a imprensa periódica pedagógica, “se apresenta como importante fonte de informação
para a história da educação”, quando “submetida ao crivo da crítica histórico-documental”.
(BASTOS, 2002, p. 49).
A Revista do Ensino325 foi criada em 1892 e extinta neste mesmo ano, alcançando sua
efetiva produção e circulação a partir de março de 1925. Foi interrompida em 1940, reativada
em 1946, e extinta em 1971. Este periódico enquanto impresso pedagógico oficial do governo
de Minas Gerias era produzido pela Diretoria de Instrução Pública do estado, que pôde
circular até as regiões mais distantes do estado, porque era um impresso oficial barato
(acessível) e eficiente, e um dos mais importantes canais de comunicação da Diretoria de
Instrução Pública com os profissionais das instituições escolares, para divulgar as novidades da
reforma educacional mineira (BICCAS, 2008).
Para colocar o Brasil na rota do desenvolvimento econômico, Souza (2001) explica que
a educação deveria formar os cidadãos para um país urbanizado, moderno, industrializado,
assim, era necessária a formação de braços e mentes preparados. Por meio da Reforma
Francisco Campos aprovada em 1927, os professores, e os médicos eram os sujeitos
disciplinadores. Era preciso mudar a realidade atrasada da escola, educar as muitas crianças
analfabetas, doentes, indisciplinadas e sem hábitos de higiene, disciplinando-as, neste sentido a
educação teria um papel fundamental para colocar o país na rota do progresso.
Segundo Carvalho, Gonçalves Neto e Carvalho (2016), Francisco Campos enquanto
Secretário do Interior em Minas Gerais autorizou a reforma do ensino primário e normal, por
meio de regulamentos e decretos embasando-se nos os princípios da Escola Nova, que
objetivava aperfeiçoar a educação, democratizar o ensino, reduzir o analfabetismo, preparar
mão-de-obra para o trabalho, e promover a cidadania.
325 A Revista do Ensino de Minas Gerais possui todos os seus 239 números que circularam no período (19251971) digitalizados e disponíveis no site do Arquivo Público Mineiro: <http://www.siaapm.cultura.mg.gov.br/>.
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Francisco Campos no cargo de Secretário do Interior do Estado de Minas Gerais
implementou leis, decretos e regulamentos para direcionar o ensino primário nas escolas, e a
Revista do Ensino serviu para a divulgação destas mudanças na educação. Neste sentido, a
Revista do Ensino foi instrumento oficial do governo mineiro para materializar e veicular as
propostas pedagógicas da Escola Nova, consideradas na época como as propostas mais
modernas e capazes de melhorar o trabalho pedagógico em sala de aula. Entretanto, Vidal e
Faria Filho (2002) explicam que a Reforma Francisco Campos pode ser considerada como um
caso à parte, se comparada com as outras reformas dos estados brasileiros, pois, ela a admitia
tanto os pressupostos da pedagogia nova, quanto os pressupostos da pedagogia tradicional. Os
reformadores pretendiam superar o passado e estabelecer um futuro inovador sem, contudo,
romperem com a pedagogia tradicional, tentando inovar, mas, sem abrir mão da tradição
católica.
Nascia também uma nova educação, mas ela vinha, por assim dizer, de braços
dados com a tradição católica, a qual, desde há muito tempo, vinha buscando
formas discursivas e mecanismos pedagógicos de modernizar-se e de dialogar
com as ciências e com os novos sujeitos sociais [...] (VIDAL; FARIA FILHO,
2002, p. 33).
Diante deste contexto, pode-se dizer que Minas Gerais experimentou o nascimento de
uma educação nova mergulhada na tradição católica. E que embora a Revista do Ensino fosse
um impresso pedagógico oficial para a divulgação dos princípios da Escola Nova, tal impresso
também veiculava conteúdos pedagógicos de teor cristão.
Diante desse contexto histórico que envolve o objeto de pesquisa, indagou-se: quais
foram as tentativas doutrinárias da Revista de Ensino de Minas Gerais (1925-1930) com a
finalidade de instruir as ações do trabalho pedagógico da professora primária, e o seu
comportamento social? Para responder a essa indagação, foram elaborados os seguintes
objetivos de estudo: o objetivo principal é analisar os discursos pedagógicos da Revista do
Ensino dirigidos às professoras primárias; os objetivos específicos intentam compreender
porque o magistério era majoritariamente feminino, e analisar o papel da mulher como cidadã
e professora.
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2 – Desenvolvimento
Para alcançar os objetivos propostos, como metodologia realizou-se a análise
documental dos 52 números da Revista do Ensino (1925-1930), sob uma abordagem
qualitativa. Esta pesquisa apoia-se na perspectiva da Nova História Cultural e respalda-se em
Bakhtin (1975), para a análise dos discursos veiculados por esta revista educacional.
A seguir, esta pesquisa apresenta as análises dos discursos da Revista do Ensino (19251930) que foram subdivididas em dois eixos de análises: o “2.1 Instruções para a postura social,
política e religiosa da professora”, e o “2.2 Instruções para o trabalho pedagógico das
professoras primárias” respectivamente.
2.1 Instruções para a postura social, política e religiosa da professora
Para analisar os discursos dirigidos às professoras primárias no periódico é importante
compreender inicialmente por que o magistério era majoritariamente feminino. De maneira
geral, observou-se que as fotografias dos grupos escolares mineiros publicadas pelo periódico
mostram o público feminino como a maioria dos professores. No entanto, os cargos da
administração escolar como direção, inspeção, e assistência técnica de ensino eram ocupados
majoritariamente pelo público masculino. Conforme Souza (2001) havia uma imagem social
idealizada para magistério primário: ele deveria ser feminino.
Afirmava-se também que o Ensino Primário deveria ser mais educativo que
instrutivo, incluindo a disciplina, a higiene, boas maneiras, educação física e
artística. Uma máxima constantemente afirmada era: “o fim da educação não
é a educação do intelecto, mas do coração”. Portanto, nesta perspectiva,
esperava-se do professor menos domínio de conhecimentos e mais dos
sentimentos, assim resumida: “Os sábios não devem ensinar às criancinhas”.
A mulher, usualmente tida como mais sensível, carinhosa e emotiva, ocuparia
este lugar de “plasmar almas”, transformando o espaço escolar, antes rígido e
desagradável, em lugar mais alegre, festivo e onde as crianças sentiriam prazer
em estar. (SOUZA, 2001, p.160).
Assim, neste contexto republicano, segundo Louro (2001), na educação das mulheres a
intencionalidade era priorizar a moral em detrimento do intelecto, porque elas deveriam ser
abnegadas e restritas ao lar e à família. Caso elas desejassem trabalhar fora do lar, o magistério
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lhes seria a porta de trabalho mais parecida com o ambiente doméstico, por conta do trabalho
com as crianças. Neste sentido, o ensino normal oferecido em escolas confessionais e públicas
formava suas alunas perpetuando uma formação para o desempenho dos papéis femininos de
mãe e esposa na sociedade. Se as moças quisessem aprofundar seus conhecimentos deveriam
procurar um curso superior. Todavia, alguns nessa sociedade republicana defendiam que o
excesso de instrução deveria ser negado às mulheres, porque elas deveriam ser “mais educadas”
do que “instruídas” (LOURO, 2001, p. 447).
Conforme a autora, neste período a sociedade republicana, de forma geral, acreditava
que não caberia à mulher alcançar um nível de formação intelectual superior ao dos homens,
porque o seu lugar na hierarquia social estava abaixo deles. Por isso, muitos defendiam que não
havia razões para encher a cabeça das mulheres com informações e conhecimentos, porque a
destinação feminina era o matrimônio e a maternidade. Deste modo, às mulheres caberiam
pequenas doses de instrução para lhes habilitar ao trabalho pedagógico no magistério primário.
(LOURO, 2001).
A concepção de João Massena diretor da Escola Normal de Juiz de Fora, num de seus
artigos publicados na Revista do Ensino reforça justamente esta percepção machista de que a
mulher deveria receber menos formação intelectual que os homens. Na visão dele:
[...] foi à mulher que a Providencia confiou o grato e ao mesmo tempo
penoso encargo de dirigir a infância”. “A mulher, pelas limitações naturais de
sua inteligência, pelo absoluto predomínio do seu coração sobre o seu
cérebro, pelos sentimentos de maternidade que são inatos na sua divina
organização, é a professora ideal para as tenras criancinhas [...] (MASSENA,
1929, p. 4).
No entendimento do autor, por causa da maternidade os sentimentos femininos
prevaleciam em relação à capacidade intelectual das mulheres. O papel da professora
consistiria em ensinar os valores morais, as boas maneiras, e os conhecimentos do ensino
primário. Este discurso tentava despertar uma espécie de conformação social e incentivo à
aceitação feminina, de que por conta da maternidade as mulheres eram naturalmente aptas a
desempenharem o trabalho pedagógico no magistério primário. E para corroborar com essa
argumentação, o autor utilizou um discurso cristão para afirmar que foi a Providência divina
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que conferiu tal condição das mulheres de serem mães, e por isso, elas deveriam ser
professoras no ensino primário. No entanto,
[...] nos cargos da educação com remuneração mais elevada [...] eram
ocupados majoritariamente por homens. É o caso do cargo de diretor escolar,
secretário, inspetor e técnico da educação. Portanto, aos homens não só eram
reservados salários pelo seu trabalho, mas ainda seus salários eram mais
elevados. (COELHO, 2021, p. 131).
Nesta conjuntura, “O grande número de mulheres lecionando nas classes do primário
era visto com agrado pelos dirigentes do sistema escolar [...] O magistério alicerçou-se como
trabalho feminino em definitivo” (ALMEIDA, 2004, p. 81). Neste sentido, compreendeu-se
que a feminização do magistério deveu-se à condição das mulheres encontrarem no ensino
primário uma oportunidade de trabalho fora do lar que era aceita socialmente, e também
porque os homens foram abandonado este campo de trabalho porque ele remunerava menos
do que os demais cargos da educação.
Com base em Louro (2001), Almeida (2004), e Coelho (2021) – que expõe sobre a
formação de professores mineiros no recorte (1925-1940) interpelada pela divulgação do
ideário católico nas páginas da Revista do Ensino neste período – compreendeu-se que o
magistério em Minas Gerais aos poucos foi tornando-se majoritariamente feminino.
Além da feminização do magistério, importa analisar o papel da mulher como cidadã e
professora reconhecendo algumas formas de doutrinação presentes no periódico dirigidas às
professoras primárias.
Sabe-se que elas deveriam preparar os futuros cidadãos republicanos para o trabalho,
mas em contrapartida a Revista do Ensino em alguns discursos recomendava que a professora
fosse apartada das questões políticas. No número 1 do periódico, o Diretor de Instrução
Pública Lúcio José Santos dirigiu um discurso a uma professora mineira de forma severa, por
ela ter se envolvido com a política local:
A uma professora do Estado foi dirigido o seguinte officio: Senhora
professora [...] Tive [...] desprazer de constatar que tomaes parte nas luctas
politicas desse florescente município, creando uma atmosphera de antipathias
entre os elementos filiados ao partido contrario áquelle de que fazeis parte,
291
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animosidade essa que se reflecte desfavoravelmente sobre a escola,
promovendo o decahimento de sua frequencia. A vida do professor primario
é antes missão do que indústria [...] uma das suas mais necessarias qualidades
o desinteresse por cousas extranhas ao mister [...] o vosso alheiamento da
politica é medida que se impõe, si quiserdes com proveito a cadeira de que
sois titular. [...] O professor [...] precisa colocar-se em plano elevado fora do
alcance de apreciações injustas que magoam e abatem o espírito, e evitar
disputas inglorias, que consomem tempo precioso e nenhum beneficio
produzem [...] principalmente quando o cargo é exercido por uma senhora
[...] Conto que meus conselhos serão bem recebidos e calarão em vosso
espírito, pois estou firme no propósito de não tolerar a intromissão de
professores públicos [...] desejamos, sinceramente o engrandecimento da
Pátria [...] trabalho intenso, firme e persistente na disseminação da instrucção
primária [...] (SANTOS, 1925, p. 21-22).
A partir deste discurso percebeu-se que o papel da mulher cidadã e professora neste
período republicano, disseminada no periódico, envolvia a adesão de uma postura social alheia
à política. Na visão do Diretor da Instrução Pública publicada no periódico, se uma professora
primária resolvesse se inserir na política, esta atitude seria uma perda de tempo, porque a
mulher deveria preocupar-se com a docência e não com a política. Além desse, outro discurso
que corrobora essa mesma visão de mundo, sobre qual postura social e política as professoras
deveriam aderir é o discurso do Firmino Costa, fundador e diretor no Grupo Escolar de Lavras
em Minas Gerais, que escreveu no número 27 da Revista do Ensino o seguinte: “As professoras
são de fato cidadãs, porque lhes impende o dever de formar cidadãos. Pouco importa que não
exerçam o direito do voto pois seus alunos irão substituí-las nas urnas” (COSTA, 1928, p. 5).
Ou seja, na ótica destes autores no periódico, a professora primária devia ser uma cidadã
patriótica, porém, comportar-se como uma mulher despolitizada.
Outra recomendação para a professora primária era a de encarar o magistério como
missão, como ato heroico, abnegado e feito com dedicação. Outro texto que torna clara esta
percepção é a “Oração da Mestra” publicado na capa da Revista do Ensino número 11 que diz:
“Senhor! Tu que ensinaste, perdôa que eu ensine e que tenha o nome de
mestra, que tivestes na terra. Dá-me o amor exclusivo da minha escola
292
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Arranca da minh’alma o subalterno desejo de justiça [...] Dá-me que eu seja
mais mãe do que as mães [...]” (MISTRAL, 1926, p. 33).
Analisando este e os demais discursos da Revista do Ensino que tratavam sobre a
professora primária reconheceu-se que a postura social recomendada para a professora
primária na Revista do Ensino era a de uma mulher abnegada, amorosa, sacrificada, e dedicada
aos seus alunos, que deveria amá-los como uma mãe. O governo queria transformar a escola
severa, que utilizava os castigos físicos, numa escola alegre, e prazerosa a partir dos princípios
da Escola Nova. Por isso, a missão das educadoras das crianças pequenas era a de fazer do
ambiente escolar um lugar de disciplina, mas sem torturas. Isso requeria delas cativar a
simpatia e admiração dos alunos, por meio do amor ao magistério primário, que recebia
doutrinações católicas dirigidas às professoras, para que elas o encarassem como se ele fosse o
seu sacerdócio, por esta razão, elas foram chamadas de sacerdotisas em alguns textos no
periódico. Um desses textos é o discurso do Inspetor Geral da Instrução Pública Mario
Casasanta, publicado no número 26:
Senhoras professoras [...] Encarae a vossa escola com aquele espirito superior
com que se deve encarar as coisas sagradas [...] esforçai-vos por conservar
dentro de vós como um fogo sagrado, de que sois sacerdotisas, as santas
esperanças [...] Não leveis a vossa tarefa como uma cruz a carregar. A tarefa
de ensinar está longe de ser Calvário, quando ensinava Jesus, escolhia o
caminho de flores, as águas mais bonançosas e mais risonhas [...] Não leveis a
vossa tarefa como uma cruz pesada. (CASASANTA, 1928, p. 80–83, grifos
nossos).
Nesse discurso foram observadas instruções religiosas para a postura religiosa das
professoras primárias, que eram incentivadas a sentirem-se como sacerdotisas, inspirando-se
em Jesus Cristo, que na lógica do cristianismo é considerado o sumo sacerdote que sacrificouse na cruz do calvário. Na Revista do Ensino, tanto na Oração da Mestra, quanto no texto
citado acima, quanto em outros textos326 do periódico, a professora foi chamada de mestra, para
326 Conferir Coelho (2021) que analisa os vários textos publicados na Revista do Ensino (1925-1940) endereçados
às professoras primárias que contém o ideário católico manifesto em suas recomendações.
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que ela se inspirasse no Mestre Jesus, de modo a ensinar aos seus alunos com amor, sacrifício e
abnegação.
2.2 Instruções para o trabalho pedagógico das professoras primárias
Sobre o trabalho pedagógico das professoras primárias, observou-se que os discursos
dirigidos a essas educadoras possuíam um caráter disciplinar, eles ressaltavam que elas
deveriam seguir as instruções pedagógicas da Escola Nova, Escola Ativa ou Escola Moderna
utilizando o método intuitivo327.
Na Revista do Ensino, o método intuito e outros métodos de ensino preconizados pela
Escola Nova eram recomendados às professoras primárias, a partir de prescrições para que elas
fossem leitoras incessantes, que entendessem de Psicologia Infantil, que tentassem
compreender a alma da criança, não reprimindo-as e estimulando-as expressarem seus
pensamentos.
Mário Casasanta no artigo “A Pedagogia de Jesus Christo” publicado no número 29
propôs que as professoras imitassem o “Mestre dos Mestres”, porque Jesus Cristo teria
ensinado pelo método intuitivo, e tinha moral e amor para ensinar os corações infantis, ao
mesmo tempo em que propunha os princípios da Escola Nova. (CASASANTA, 1929).
Neste sentido, observou-se que o método intuitivo preconizado pela Escola Nova,
também foi preconizado pela pedagogia católica. E, embora os princípios escolanovistas
defendessem a escola laica, em Minas Gerais permaneceu a tendência da conciliação dos
princípios pedagógicos católicos, aos métodos de ensino e pressupostos da Escola Nova. por
causa da ciência, percebeu-se que o movimento reformador educacional mineiro recebeu a
influência do catolicismo no estado. Deste jeito, concorda-se com o pensamento de Souza
(2001), de que o governo de Minas Gerais mesmo que quisesse, não podia se opor ao poder
político da Igreja Católica, porque ele precisava dos valores morais para disciplinar o ensino. E
nas análises dos discursos publicados na Revista do Ensino, verificou-se que o governo aliou o
ideário católico aos discursos da Escola Nova.
Mario Casasanta no número 29, defendeu que a Escola Nova deveria se basear nos
ensinamentos de Jesus Cristo: “[...] <<Deixae vir a mim os pequeninos e não os estorveis,
327 No método intuitivo, “o ensino deve partir de uma percepção sensível. O princípio da intuição exige o
oferecimento de dados sensíveis à observação e à percepção do aluno. Desenvolvem -se, então, todos os processos
de ilustração com objetos, animais ou suas figuras”. (SAVIANI, 2005, p. 9).
294
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porque deles é o Reino de Deus>> [...] Vamos para a Escola Nova”. (CASASANTA, 1929, p.
85). Outro discurso que revela essa conciliação entre Escola Nova e pedagogia católica é o do
autor Oscar Arthur Guimarães, assistente técnico do ensino em 1930, que no número 26
escreveu:
Senhoras professoras: Eu não podia deixar de [...] pregar-vos o evangelho
novo das escolas [...] com os preceitos de uma profissão de fé [...]
empenhados numa obra salvadora [...] Quero apelar para a grande massa
educadora [...] não falte à obra redentora a colaboração valiosa de corações
generosos [...] com o fervor de sempre, empunhe bem alto a bandeira da
Escola Nova, propague, pela palavra e pelo exemplo os seus princípios
salutares, pela salvação da raça, pela grandeza de Minas, pela felicidade do
Brasil! (GUIMARÃES, 1930, p. 71).
Nestes discursos percebeu-se que o ideal pedagógico cristão católico incentivava a
crença de que na eternidade, as professoras seriam recompensadas pelos seus sacrifícios
desempenhados na missão terrena do magistério primário. E, por outro lado, este ideário as
incentivava a aceitarem os baixos salários pagos.
Neste sentido, Francisco Campos enquanto era Secretário do Interior e organizava a
reforma educacional mineira, no discurso de inauguração da Escola de Aperfeiçoamento em
Belo Horizonte, em 1929, publicado na Revista do Ensino, número 32 falou aos professores,
sobretudo às professoras presentes, que o magistério era sinônimo de missão, devotamento e
sacrifício:
“[...] senhoras professoras [...] nos seus propósitos de devotamento e sacrifício
[...] depositárias da confiança mineira [...] que Minas Geraes sinta que os seus
sacrifícios fruticficam em verdadeira e authentica riqueza espiritual”
(CAMPOS, 1929, p. 27).
Em relação à essa promessa de riqueza espiritual defendida pelo autor, pode-se dizer
que, implicitamente neste discurso havia uma intenção de sensibilizar as professoras a aderirem
esse viés religioso, para que elas aceitassem se sacrificarem nesta profissão, no sentido de se
contentarem com a condição salarial precária da função.
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Sendo assim, entendeu-se que tanto no texto “Oração da Mestra” quanto nesse discurso
de Francisco Campos, quanto nos discursos de Mario Casasanta, quanto nos demais discursos
aqui explicitados, a religião contribuiu para tentar “naturalizar” a condição das mulheres
ganharem menos que os homens na educação, aceitarem o magistério primário como profissão
que remunera pouco, e a internalizarem que o magistério seria o local mais apropriado para o
trabalho feminino.
Diante desta doutrinação pedagógica, os resultados demonstraram que a Revista do
Ensino aliou o discurso cristão aos procedimentos da Escola Nova, para moldar o trabalho
pedagógico das professoras. Por meio destas prescrições e instruções pedagógicas de como ela
deveria se comportar em sala de aula e fora dela, o periódico disseminou os pressupostos
pedagógicos escolanovistas cristãos para que a mulher professora primária fosse mansa,
submissa, controlável, e abnegada a tal ponto dela conformar que deveria receber menos que
os homens. Assim, o periódico contribuiu para disseminar a ideia de que o magistério primário
deveria ser visto como a missão terrena da professora, feita por amor, como se fosse um
sacerdócio. E toda conjuntura profissional acabou servindo para corroborar com desvalorização
salarial da profissão docente, e a feminização da carreira do magistério ao longo dos anos
republicanos.
Nesse contexto histórico percebeu-se a existência de indícios para esclarecer o
entendimento dos dias atuais, em que a maioria dos professores que atuam na Educação
Infantil, e nos primeiros anos do Ensino Fundamental 1 ainda continua sendo formada por
mulheres, e a razão destas carreiras profissionais serem as que recebem menos em toda a
educação. É que esta categoria profissional historicamente já começou sendo desvalorizada
financeiramente desde a sua constituição e consolidação do campo do magistério primário, que
se tornou marcado pela ocupação majoritariamente feminina, e esta condição profissional ainda
persiste no campo educacional brasileiro até hoje.
5 – Considerações finais
Considerando os objetivos propostos por esta pesquisa, e o questionamento inicial no
texto compreendeu-se que as tentativas doutrinárias da Revista do Ensino de Minas Gerais
(1925-1930), para instruírem o trabalho pedagógico e o papel da professora primária possuíam
a intencionalidade moldar o seu comportamento social, político e religioso, além de instruir
pedagogicamente o seu exercício profissional.
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Considerou-se, neste sentido que a Revista do Ensino foi bem mais que um veículo de
comunicação do Estado aos professores mineiros, ela era um impresso pedagógico que oferecia
formação de professores, e também uma doutrinação religiosa e pedagógica. Neste âmbito, ela
tinha a finalidade de instruir e tentar construir a imagem social da professora primária
preparando-a para que ela desempenhasse sua profissão como uma missão pedagógica
sacrificial, seguindo ao mesmo tempo os fundamentos da Escola Nova, e os fundamentos da
pedagogia católica em seu fazer pedagógico.
Além disso, para além das contribuições trazidas neste artigo científico entende-se que a
imprensa periódica como fonte e objeto de pesquisa oferece múltiplas possibilidades de
construção de conhecimentos na área da História da Educação em novas pesquisas científicas.
Deste modo, admite-se outras interpretações além desta aqui explanada, e compreende-se que
esta pesquisa não se esgota neste breve estudo, que pode ser ampliado, e continuado
focalizando outras nuances da formação de formação de professores, e outros assuntos neste
mesmo periódico oficial mineiro.
6 – Referências
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298
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A imprensa escrita como fonte na pesquisa histórica
Sheila Cristina Ferreira Gabriel328
Resumo:
Este texto aborda sobre fontes históricas escrita. A pesquisa histórica é uma prática que
possibilita descobertas valiosas, as vezes se aproximando da arqueologia, em que vasculhamos e
garimpamos arquivos e acervos, até encontrar as fontes que nos forneçam indícios para análise,
reflexão, escritura e divulgação dos resultados. Além da delimitação temporal, a existência de
fontes é imprescindível para a concretização de uma pesquisa histórica, sejam escritas ou não.
Nesse aspecto o jornal se torna uma possibilidade, aceito por uns e desacreditado por outros.
Assim, cientes desta problemática metodológica, buscamos autores que nos dessem condições
de compreender o jornal como fonte histórica. E para alcançar esse objetivo determinados em:
a) evidenciar a história da escrita histórica; b) apontar as possibilidades e limitações das fontes
impressas; c) analisar os jornais como possiblidade de fontes históricas. Trata-se de uma
pesquisa bibliográfica, em que os resultados evidenciaram a fonte jornal como uma
possibilidade válida para a construção da pesquisa histórica, desde que as ações do pesquisador
sejam orientadas por métodos que sistematizem o processo e deem condições da concretização
do discurso histórico.
Palavras-chave. Metodologia da pesquisa histórica. Fontes históricas. Jornal como fonte
histórica.
1 Introdução
Este artigo é resultado das discussões realizadas na disciplina Seminário, na linha de pesquisa
Fronteiras, Identidades e Cultura e pretende evidenciar aspectos relacionados as fontes ou
documentos históricos, especificamente os jornais. Partimos do questionamento sobre a
possibilidade ou não do jornal ser considerado como fonte histórica. Ressaltamos, que foi
utilizado o termo documento como sinônimo de fonte para a pesquisa histórica, portanto,
alternamos o uso dos dois termos, fontes e documentos. Trata-se de pesquisa bibliográfica, com
328 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Mato Grosso, campus
de Cuiabá, Brasil. Docente do curso de Biblioteconomia da Universidade Federal de Rondonópolis,
Rondonópolis, Brasil.
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a utilização das ideias de Le Goff (2013), Certeau (2002), Reis (2003), Burke (2008), Capelato
(1988), Grespan (2008), Bouder e Martin (1983), entre outros. A reflexão e discussão sobre
fontes históricas é essencial para o entendimento do processo da pesquisa histórica, uma vez
que um dos requisitos obrigatórios para a realização de tal pesquisa é a existência de fontes.
Espera-se com este texto contribuir para as discussões sobre o tema, principalmente entre os
pesquisadores iniciantes, evidenciando autores relevantes neste cenário.
2 Os caminhos da escrita da história
A necessidade de se registrar a história remonta, no Ocidente, à antiguidade grega. Os
gregos percebiam a história como individual e local, registravam o presente, não se
preocupando necessariamente com o futuro, que seria uma continuação daquele.
Consideravam a história como imutável, posto que os seres humanos seriam imutáveis, como o
próprio circuito solar e as estações, nesse aspecto, Reis (2003, p. 18) ressalta que para os gregos
“A natureza das coisas seria crescer e declinar e nada de novo ocorreria sob o sol.”
Um segundo momento da escrita da história, estaria relacionado aos romanos, que
iniciariam a ideia de história universal, cujo final seria a salvação. A escrita da história não
estaria mais condicionada ao individual e local, preocupava-se com o futuro, em relação às
conquistas políticas (romanização, o mundo todo seria controlado pelos romanos) e religiosas
(tudo se submetia a vontade divina) a serem empreendidas (BOUDER; MARTIN, 1983).
Até o século XVIII, a história não tinha a pretensão de ser científica. Isso só ocorreu a
partir do século XIX, com os preceitos do positivismo de Auguste Comte, que pensou a ciência
social e humana com a utilização dos métodos aplicados às ciências exatas. O método ideal
estudaria o fato histórico de curta duração, desconsidera de suas operações a subjetividade,
tanto da fonte, quanto do pesquisador, de forma que a fonte deveria ser apenas escrita e
voluntária, focando os sujeitos que praticavam grandes feitos e que estivessem posicionados no
topo da hierarquia. Era destacada a história política e desconsiderado todos os demais aspectos,
como o social, econômico, estético, cultural etc. A fonte ou documento, nesse contexto, seria o
que fundamentaria a escrita da história (LE GOFF, 2013; BOUDER; MARTIN, 1983;
GRESPAN, 2008).
Posteriormente, outras abordagens se fizeram presente, como o materialismo histórico e
a História Nova. Esta, especificamente, foi resultado de um movimento da Escola dos Annales,
que considerava a História não apenas como constituída pelos fatos políticos e religiosos; e
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somente do ponto de vista dos homens influentes, dos heróis e daqueles que detinham o
poder, defendiam que a história poderia ser contada por meio de fatos aparentemente
corriqueiros e de pessoas simples, inclusive os pobres, mulheres, crianças, negros, que seriam
identificados nas mais diversas fontes e não somente em documentos legais e impressos.
A História Nova estimulou estudos na área que foi denominada História Cultural,
desenvolvida na década de 60 do século XX, sendo que os estudos se intensificaram, na década
de 80 e 90 do mesmo século, tendo como estudiosos: Eric Robsbawm, Edward Thompson,
Jacques Le Goff, Roger Chartier, dentre outros, que se empenharam na missão de pintar o
retrato de uma época, conforme enfatiza Burke (2008). Essa História Cultural propiciou a
emergência de estudos sobre os mais diversos temas como: história do jazz, vida cultural dos
pobres, rituais de iniciação dos artesãos, simbolismo dos alimentos, inclusive a história da
leitura, do livro e das bibliotecas (BURKE, 2008), estimulou também a utilização das mais
diversas fontes, assunto que discutiremos a seguir.
3 As fontes: suas possibilidades e limitações
As fontes são suportes de informação, produtos das experiências humanas, elaborados
de forma intencional, onde indivíduos, ou instituições, registram e compartilham seus
conhecimentos, deixando para a posteridade suas considerações sobre um dado pesquisado, ou
sobre sua sensibilidade. Assim, os documentos se tornam fonte para que outros possam beber
novos conhecimentos e o passado, nessa perspectiva, se torna “[...] sólido na estrutura do
tempo.” (REIS, 2003, p. 182), pois estas fontes permitem o diálogo entre indivíduos que vivem
ou viveram em tempos diferentes. Cabe ressaltar que a diferença entre uma fonte para estudos
diversos de uma fonte histórica é a condição de produção, neste caso a fonte histórica é sempre
uma fonte primária, que foi produzida no período que está sendo estudado pelo historiador,
uma fonte que ainda não foi analisada naquela perspectiva que o pesquisador está investigando
naquele momento.
Com a História Nova houve o aumento da diversidade de documentos a serem
utilizados pelo historiador, que criou maiores possibilidades, mas também algumas
dificuldades. Para alguns assuntos há uma gama enorme de fontes e a dificuldade resulta em
decidir o que utilizar e como organizar tais documentos; em outras situações há dificuldade no
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acesso às fontes porque, muitas vezes, esses documentos não são ainda de acesso público e
dependem de direitos autorais.329
A pesquisa histórica envolve - além da delimitação temporal e espacial - a captação,
seleção, organização, transcrição e análise de fontes históricas (documentos), uma vez que se
apropria das mesmas para compor seu corpus de informação que será devidamente
contextualizado, (re)significado e contemplado no âmbito da produção científica, gerando
novos conhecimentos. E o pesquisador que se envereda pelos caminhos da pesquisa histórica,
na intenção de conhecer o que ainda está obscuro, se depara com uma problemática singular:
ele não estava presente durante os acontecimentos, ele apenas tem no seu presente a pretensão
de, por meio das fontes e vestígios, “[...] apreender o mundo dos homens através do estudo de
suas experiências do passado.” (REIS, 2003, p. 241).
Na perspectiva das fontes históricas, estas são os documentos que, segundo Le Goff
(2013), foram escolhidos pelo históriador para serem a base de suas análises, portanto, tornamse documentos históricos. Nesse contexto, o documento, engavetado, guardado em um arquivo
é apenas um suporte que contem dados ou informação, porém quando ele recebe o olhar
crítico e analítico do historiador, ele se torna documento histórico. Esses documentos, segundo
Le Goff (2013, p. 485) “[...] não são o conjunto daquilo que existiu no passado [...]”, mas uma
escolha do historiador que faz um recorte do fato histórico, no tempo e no espaço e isto, por si
só, já envolve a subjetividade.
Nesse contexto, Karnal e Tatsch (2011, p. 24) conceituam documento histórico como
“[...] qualquer fonte sobre o passado, conservado por acidente ou deliberadamente, analisado a
partir do presente e estabelecendo diálogos entre a subjetividade atual e a subjetividade
pretérita.” Portanto, os documentos históricos, não falam por si só e não são originariamente
neutros, possuem subjetividade, posto que foi uma criação humana, e recebe no processo de
análise do pesquisador/historiador (sujeito que possui subjetividade), interpretações que não
são neutras, mas constituídas de ideologias e percepções pessoais a partir das vivências e
conhecimentos teóricos do pesquisador.
Essa subjetividade porém, não desautoriza a cientificidade da pesquisa histórica, uma
vez que será o método adotado pelo pesquisador, para o trabalho com as fontes, que propiciará
Ao ano de 2020 e 2021 acrescentou-se a problemática do distanciamento social devido ao COVID-19, que
impossibilitou o acesso físico aos arquivos.
329
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a objetividade necessária ao caráter da história como ciência, será o método que dará condições
ao historiador de organizar sua atividade de pesquisa, relacionando o momento empírito com a
teoria (GRESPAN, 2008). Para Grespan (2008) há necessidade de ultrapassar a polarização
sujeito-objeto (tanto das Escola Histórica alemã, quanto da Escola Metódica francesa e das
visões pós-estruturalistas), considerando que há subjetividade no objeto, que não é “puro” e
também “[...] o que há de objetivo, de determinação histórica no sujeito do conhecimento, que
não pode jamais ser considerado neutro.” Sendo assim, retomando Karnal e Tatsch (2011, p.
23) o documento “[...] não é tão autônomo como sonhavam positivistas, nem tão submisso
como defende parte do pós-estruturalismo.”
Le Goff (2013) ressalta que durante os séculos XVII e XVIII o documento foi
denominado mais comumente como monumento, que por sua vez, segundo o mesmo autor,
remete à memória, a recordação e seria toda concretização material do espírito humano que se
perpetua, ele atesta que o monumento é “[...] tudo aquilo que pode evocar o passado[...] é um
legado à memória coletiva.” Sendo assim, o monumento seria qualquer recurso material
elaborado pelo ser humano no decorrer de sua trajetória e mantido e/ou conservado para a
posteridade. Foucault ([200-?] apud LE GOFF, 2013) afirma que na história tradicional o
monumento era memorizado e transformado em documento e que na historia atual os
documentos são transformados em monumento. Nesse aspecto, entendemos que há o
exercício da crítica interna do documento, de extrair a memória contida no suporte, de
desestruturar o documento, evidenciando seu aspecto de monumento, expondo suas
subjetividades.
Le Goff (2013) aponta que na concepção positivista, o documento remetia a
objetividade, a manifestação física (escrita) do fato histórico, o próprio testemunho histórico,
que após comprovada sua autenticidade, seria o suporte da verdade histórica. Nessa
perspectiva, o historiador competente iria extrair do documento, o que ele traz de verdade, não
eliminando nem acrescentando nada, ele deveria se manter “[...] o mais próximo possível do
texto.” (LE GOFF, 2013, p. 487), nesse contexto o documento seria sinônimo de texto e não
de discurso.
Havia nesse contexto, o foco no documento escrito como fio condutor da pesquisa, isso
se modifica no decorrer do tempo, principalmente no século XX com os preceitos da História
Nova, exercitada pela Escola dos Annales. Essa abordagem ampliou as possibilidades de temas,
objetos e fontes de pesquisa. Houve iniciativas de estudos que privilegiavam a longa duração,
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estudos quantitativos com utilização de séries documentais, abordagens econômica e não
apenas política, posteriormente abordagens sociais e culturais e ainda, a aceitação de estudos
que envolviam as representações as ideias, as mentalidades (BURKE, 2008).
O documento, nessa perspectiva, toma uma nova forma, uma nova concepção, continua
a ser protagonista, mas não o único, evocando também aspectos da memória coletiva
(Monumento), assim, Le Goff (2013) entende que houve, portanto modificação no sentido do
documento e este seria considerado pelo historiador como documento monumento, uma vez
que não estaria mais condicionado a se constituir como texto escrito, mas seria suporte da
memória coletiva. O conceito de documento para a História Nova amplia-se para todo o
resultado da manifestação humana, registrada em suportes diversificados (LE GOFF, 2013).
Porém, esta ampliação de possibilidades documentais colocaria como problemática a
validação ou autenticidade do documento. Tudo poderia ser documento histórico? Para Le
Goff (2013) a autenticidade estaria vinculada as condições de produção, distribuição do
documento e ao seu status como instrumento de poder e autoridade.
Na verdade, após apropriação das teorias, compreendo que cabe ao historiador com a
utilização de um método adequado, e utilizando-se de recursos diversos (como exemplo estudo
comparativo e triangulação entre fontes diversas) e suas análise, conferir ao documento ou fonte
a autenticidade necessária para que seja um recurso válido na pesquisa. O documento só se
tornará documento histórico se for visualizado e evidenciado por um historiador, porque
enquanto objeto arquivado ou guardado nas estantes ou gavetas, ele será apenas um
documento. O que fará com que ele se torne uma prova, evidência ou vestígio histórico, será o
olhar do historiador (de seu lugar de fala), suas análises (de posse de uma ampla e profunda
fundamentação teórica) e o registro da síntese deste pesquisador (o discurso). É esta operação
historiográfica que possibilitará ao documento contribuir para a construção do conhecimento
histórico (CERTEAU, 2002).
O pesquisador necessita executar uma seleção cuidadosa e criteriosa das fontes, pois
muitas vezes, estas, estão dispersas e devem ser localizadas e selecionadas; deve estar atento a
questão da preservação física dos documentos, que frequentemente se encontram em má
conservação, tendo o pesquisador que manuseá-lo de forma cuidadosa para não danificá-lo
ainda mais; sendo importante já se ter uma pré-pesquisa para saber se existe alguma fonte
disponível e se estas poderão ser manuseadas. Nesse cenário, o pesquisador deve se preparar
para lidar com: dificuldade na localização dos acervos documentais; a dispersão dos materiais e
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perda de tempo para localizá-los e reuní-los;
a tendência à desoganização dos materiais
acumulados, devendo portanto, manter um controle permanente sobre os mesmos
(CAPELATO, 1988).
Nosso posicionamento em relação as fontes/documentos, está em consonância com a
História Cultural, porque nessa perspectiva, os sujeitos são as fontes/documentos, os vestígios,
os rastros, os indícios, que podem ser textuais ou não. É para eles que o pesquisador volta seu
questionamento e diálogo para compor seu corpus, que permitirá a concretização da
investigação (BURKE, 2008; GINZBURG, 2006). Nesse contexto, os documentos seriam todo
o suporte que possa conter informação, ou seja, todo o resultado concreto das ações humanas,
intencionais ou não, constituídos nas diversas instâncias da vida humana, além dos escritos,
soma-se os documentos iconográficos, arqueológicos, fontes orais “[...] e todo e qualquer
mecanismo que possibilite uma interpretação.” (KARNAL; TATSCH, 2011, p. 22).
São os documentos que possibilitam ao historiador o diálogo necessário à captação das
informações pertinentes ao estudo, para tanto, o pesquisador precisa se despir de pré-conceitos
e posicionar-se, tanto no contexto da época em que as fontes foram produzidas, quanto munirse das teorias disponíveis sobre o objeto e de suas percepções contemporâneas. Caberá ao
historiador identificar as condições de produção do documento, caracterizar sua estrutura física,
levantar questionamentos e manter-se atento às respostas, que muitas vezes estão implícitas nas
entrelinhas. Quanto a isso Burke (2008, p. 33) afirma que “Os historiadores culturais têm de
praticar a crítica das fontes, perguntar por que um dado texto ou imagem veio a existir, e se, por
exemplo, seu propósito era convencer o público a realizar alguma ação.” No contexto da
História Nova, muda-se o foco do documento para o problema e da pura objetividade para as
possíveis subjetividades, inerentes ao documento e ao sujeito investigador, dessa forma, será a
questão de pesquisa que irá direcionar os questionamentos destinados ao documento, este não
mais falará por si só, conforme a visão positivista.
Sendo assim, a tarefa do historiador é singular, porque mesmo não estando presente no
momento dos eventos ou acontecimentos, ele, por meio das fontes/documentos, realizará um
exercício de questionamento e criticidade das fontes, para tentar evidenciar uma versão do que
ocorreu.
Como abordado, há na atualidade, possibilidades diversificadas de fontes. O nosso
interesse se detém, em um primeiro momento - em função da pesquisa a ser empreendida no
doutorado, que abordará sobre: O Universo do livro em Cuiabá-MT no período de 1930 a
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1945 - sobre as fontes escritas, especificamente documentos oficiais emanados pelas Secretarias
de Educação e Secretaria de Cultura, e pela própria Biblioteca Pública Estadual de Mato
Grosso (objeto da pesquisa) e jornais que fazem referência ao objeto de estudo e ao contexto
cultural de Cuiabá no período de 1930 a 1945. A seguir, discutiremos sobre os jornais como
fonte histórica.
3.1 Fontes escritas: jornais
Os jornais como fonte histórica só foram considerados na historiografia com as
premissas defendidas pela terceira geração da Escola dos Annales, que ampliaram as
possibilidades de temas, objetos e fontes.
Porém, no Brasil, as iniciativas foram de escrever a história da Imprensa, e não a história com o
uso da imprensa, sendo a primeira obra sobre história da imprensa, de maior fôlego, produzida
por Nelson Werneck Sodré, em 1966. Sodré aborda o período de 1808 a 1960 e dentre outros
assuntos, ressalta a chegada dos primeiros jornais em terras brasileiras. Relata que o primeiro
jornal impresso no Brasil foi a Gazeta do Rio de Janeiro, publicado em 1808, sendo um
produto da imprensa oficial, que divulgava os assuntos relacionados a monarquia portuguesa.
Outro jornal publicado por um brasileiro no mesmo ano, só que um pouco antes que a Gazeta,
foi o Correio Brasiliense de Hipólito José da Costa, porém, impresso em Londres. Hipólito,
sem o conrole imposto pelo governo português, tinha maior liberdade de divulgar os assuntos
relacionados ao Brasil e ao cenário internacional (CAPELATO, 1988).
Após 1970, iniciaram-se de forma tímida as pesquisas que se utilizaram dos jornais
como fontes históricas, porém, havia no inconsciente acadêmico a desconfiança em relação a
esses suportes como fontes, pela sua relação ambígua entre imparcial e tendencioso. Nesse
aspecto, há o discurso dos jornalistas, afirmando que divulgam a notícia dos acontecimentos, tal
como eles ocorreram, ou seja, a verdade dos fatos (LUCA, 2008). Porém, desconsideram do
processo os fatores que envolvem a sua produção, desde a escolha do que terá ou não
cobertura jornalística; de como o acontecimento será abordado no texto escrito (falando de
imprensa escrita); o que será excluído ou mantido; se virá na página principal, ou impresso em
um pequeno espaço do todo. Claro que não se pode desconsiderar que a notícia divulgada terá
relação com a realidade vivenciada, no entanto, de acordo com Darnton (2010) não podemos
considerar a notícia como aquilo que realmente ocorreu, mas “[...] uma história sobre o que
aconteceu.”, o autor defende que a informação não deveria ser encarada:
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[...] como se assumisse a forma de fatos objetivos ou pepitas de realidade
prontas para serem garimpadas em jornais, arquivos e bibliotecas, mas como
mensagens que são constantemente remodeladas em seu processo de difusão.
Em vez de lidar com documentos fixos e estabelecidos, precisamos lidar com
textos múltiplos, mutáveis.” (DARNTON, 2010, p. 48).
Talvez a desconfiança e desconforto de alguns históriadores em aderirem ao jornal ou
revista como fonte histórica, foi o fato de terem conhecimento desta impossibilidade de
neutralidade e objetividade total das fontes jornalísticas. No entanto, deve-se considerar que isto
se aplica a qualquer fonte histórica que, produzida por seres humanos, não são passíveis de
neutralidade. Destarte, a percepção em relação aos jornais foi se modificando e, atualmente, há
diversos trabalhos que se utilizam desse suporte como fonte única ou principal para o
desenvolvimento de pesquisas históricas. A respeito do periódico como fonte histórica
Capelato (1988, p. 13) ressalta que os jornais são:
Manancial dos mais férteis para o conhecimento do passado, a imprensa
possibilita ao historiador acompanhar o percurso dos homens através dos
tempos [...] A imprensa registra, comenta e participa da história. Através dela
se trava uma constante batalha pela conquista dos corações e mentes[...].
Nesse contexto, sem desconsiderar a subjetividade das fontes, que como já abordado,
sempre serão resultados de ações humanas, portanto nunca neutras, o historiador poderá
utilizar dos recursos metodológicos disponíveis para, por meio de análise crítica, garantir a
objetividade necessária aos resultados das análises. O historiador deve, a partir do seu
problema, dirigir alguns questionamentos à sua fonte: “Quem são seus proprietários? A quem
se dirige? Com que objetivos e quais os recursos utilizados na batalha pela conquista dos
corações e mentes?” (CAPELATO, 1988, p. 14).
Segundo a mesma autora, todos os jornais tem o objetivo de atingir um determinado
público, atraindo-o para o compartilhamento dos seus interesses, sempre com o objetivo de
conseguir adeptos para uma causa, seja ela política, empresarial ou outra. Portanto, o conteúdo
e a materialidade do jornal se concretizará de acordo com o público a que ele pretende atingir e
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para isso serão utilizadas estratégias como ilustrações, charges, conteúdo mais sóbrio ou
sensacionalista, dependendo do objetivo da publicação (CAPELATO, 1988).
Luca (2008) comenta sobre as mudanças ocorridas na maneira de se abordar a notícia,
dizendo que inicialmente os jornais possuiam claramente o objetivo de doutrinação (séculos
XVIII e XIX) e que a partir da década de 50 do século XX, o foco passou para a veiculação de
informação. Porém, é claro que a apropriação de cada informação pelo leitor acontecerá de
formas diversas, dependendo dos conhecimentos acumulados no decorrer de sua vida e do
contexto histórico, social, político e cultural em que ele vive (CHARTIER, 1999).
Portanto, para lidar com a problemática das informações contidas nos jornais, o
pesquisador deve observar no processo de análise, as condições de sua produção, que envolve a
materialidade a técnica e o conteúdo, que para a autora possuem historicidade, devendo o
historiador identificar a função social da publicação. Em relação a materialidade, Luca (2008)
ressalta que o historiador deve buscar se inteirar do processo de produção do jornal, sua
aparência física, capa, formato, tipo de papel, diagramação, qualidade da impressão, uso ou não
de ilustrações. Chartier (1999) enfatiza que a materialidade, o suporte, poderá fornecer pistas a
respeito de um determinado objeto, que este aspecto influencia na apropriação do leitor
(pesquisador). Sobre isso o autor diz que:
[...] a forma do objeto escrito dirige sempre o sentido que os leitores podem
dar àquilo que leem. Ler um artigo em um banco de dados eletrônico, sem
saber nada da revista na qual foi publicado, nem dos artigos que o
acompanham, e ler o “mesmo” artigo no número da revista na qual apareceu,
não é a mesma experiência. O sentido que o leitor constrói, no segundo caso,
depende de elementos que não estão presentes no próprio artigo, mas que
dependem do conjunto dos textos reunidos em um mesmo número e do
projeto intelectual e editorial da revista ou jornal.
Quanto a técnica, o historiador deve estar atento a “[...] estruturação e divisão do
conteúdo, as relações que manteve (ou não) com o mercado, a publicidade, o público a que
visava atingir, os objetivos propostos.” (LUCA, 2008, p. 138), considerando que fazer uma
leitura crítica da fonte envolve historicizá-la e esclarecer o porque dentre um montante de
fontes, elas foram escolhidas.
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No tocante ao conteúdo, que envolve o processo de apropriação por meio da leitura, o
historiador deverá se munir de um método, análise do discurso por exemplo, que lhe dê
condições de lidar com o conteúdo que possui, originalmente, subjetividade e ainda sofrerá
uma análise composta da subjetividade do outro (o próprio historiador), uma vez que não há
possibilidade de neutralide absoluta do pesquisador, mas um esforço de comprensão, crítica,
reflexão e objetivação dos resultados considerando, conforme Certeau (2002), que o processo
historiográfico infere um lugar social do pesquisador, sua técnica e sua escrita.
Portanto, para lidar com o conteúdo das fontes, o historiador precisa ter claro seu objeto,
problema, objetivos, para que elabore as questões necessárias às fontes e esteja atento aos
detalhes, vestígios e com as “lentes” corretas enxergue as possíveis respostas. De posse dos
dados fornecidos pelas fontes, o historiador poderá, junto com o arcabouço teóricometodológico, elaborar sua síntese e registrá-la, construindo portanto, por meio das fontes, um
discurso, ou seja um conhecimento histórico (CERTEAU, 2002).
Entendemos que, na verdade, todas as fontes sejam elas escritas, iconográficas,
arqueológicas ou outra, traz consigo a subjetividade inerente ao ser humano que a produziu,
porque há intencionalidade nas suas ações; mas que há também objetividade, uma vez que os
seres humanos são constituídos pela razão e emoção que vivem em constante disputa, a
objetividade também ocorre por meio do método científico utilizado e da organização das
ideias, culminando em um texto científico (objetivo, que se dá a ver), no entanto sempre
permeadas por sua subjetividade. Então, consideramos a fonte jornal como uma possibilidade
válida para a construção da pesquisa histórica, desde que as ações do pesquisador sejam
orientadas por métodos que sistematizem o processo e deem condições da concretização do
discurso histórico.
4 Considerações
O texto visou abordar sobre o caminho da historiografia, evidenciando aspectos
relacionados as fontes históricas jornais. Nesse sentido, acreditamos que alcançamos o objetivo
e enfatizamos a relevância da discussão sobre fontes/documentos históricos, considerando
imprescindível a divulgação das produções sobre, ou, que envolva o assunto. Ou ainda, a
divulgação das próprias fontes que foram encontradas no processo de pesquisa que porventura
sejam desconhecidas do grande público.
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Tomar conhecimento do que acontece, principalmente em relação à vida do outro, do
seu presente e do seu passado, mobiliza diversos profissionais sejam repórteres, cineastas,
artistas plásticos, autores, historiadores, etc.; conhecer o “outro” é uma busca constante de nós
seres humanos. E uma das maneiras de se “conhecer” o outro é por meio da pesquisa histórica,
que se concretiza por meio do exercício historiográfico do pesquisador, que utilizando-se de
fontes/documento e método(s), faz a análise, a crítica, a síntese e registra este novo
conhecimento, que se tornará novo documento (CERTEAU, 2002).
Inserindo-me no universo da pesquisa histórica, percebi as inúmeras possibilidades de
estudo das questões culturais e de fontes, a quase obsessão dos pesquisadores históricos em
vasculhar documentos em busca de pistas que lhe direcionem às respostas(s) aos seus
questionamentos. Por outro lado, percebi também, que nem todos os pesquisadores se
dispõem a caminhar pela pesquisa histórica por considerarem-na um trabalho insalubre,
cansativo, monótono, uma vez que se fica horas, dias, meses e até anos debruçados sobre
inúmeros documentos, algumas vezes muitíssimo danificados, em busca de alguma informação
que lhe possibilite construir um conhecimento a partir de dados que se não fossem
visualizados, ficaria ali, inerte, sem significação.
Por todas as possibilidades e dificuldades, a pesquisa histórica é atraente e sedutora nos
levando a reconstruir e preservar as construções elaboradas através dos tempos e espaços
trilhados pelo homem e são as fontes históricas que permitem ao historiador executar sua
“operação historiográfica”, citando Certeau (2002), sendo os jornais uma possibilidade valiosa
para a pesquisa histórica, desde que seja utilizado o método adequado para sua análise.
Enfim, ao considerar que não há sociedade sem sujeitos e que sem estes não há
conhecimento (REIS, 2003), são os sujeitos que, com suas experiências e memórias,
possibilitam a construção do conhecimento histórico, utilizando-se de “[...] códigos lingüísticos,
práticas especializadas, regimes de verdade, poderes institucionais que são finitos e históricos.”
(REIS, 2003, p. 156).
Referências
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BURKE, Peter. O que é história cultural?. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: Contexto,
1988. (Coleção Repensando a História).
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CERTEAU, Michel de. A Operação historiográfica. In: CERTEAU, Michel de. A Escrita da
história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
CHARTIER, Roger. A aventura do livro: do leitor ao navegador. São Paulo: UNESP, 1999.
GRESPAN, Jorge. Considerações sobre o método. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes
históricas. 2. Ed. São Paulo: Contexto, 2008. P. 291-300.
GINZBURG, Carlo. O Queijo e os vermes. São Paulo: Companhia de Bolso, 2006.
KARNAL, Leandro; TATSCH, Flavia Galli. A memória evanescente. In: PINSKY, Carla
Bassanezi; LUCA, Tania Regina de (org.). O Historiador e suas fontes. São Paulo: Contexto,
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LE GOFF, Jacques. Documento Monumento. In: LE GOFF, Jacques. História e Memória. 7.
ed. Campinas: Ed. Unicamp, 2013. p. 485-499.
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla
Bassanezi (org.). Fontes históricas. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2008. p.111-153.
REIS, José Carlos. História e teoria: historicismo, modernidade, temporalidade e verdade.
Brasília: UNB, 2003.
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ST04 – O Brasil Republicano: Histórias, Memórias, Historiografia
Protagonismo das mulheres indígenas em Alagoas (1989-2010)
Ana Valéria Dos Santos Silva330
RESUMO: A pesquisa é resultado da Monografia apresentada como requisito para obtenção
do título em Licenciatura em História pela Universidade Federal de Alagoas – UFAL. Procura
analisar o protagonismo da mulher indígena em Alagoas e a sua participação política. Elas,
passam a buscar autonomia através de organizações com objetivo de defender os seus direitos
coletivos e suas particularidades de gênero. Através da historiografia recente, oficinas, encontros
e conferências, a pesquisa busca então a pensar os estudos recentes sobre as mulheres indígenas
no Brasil analisando as primeiras organizações femininas no âmbito nacional até chegar em um
recorte de Alagoas através da trajetória de Graciliana Wakanã e a sua atuação no COIMI.
PALAVRAS-CHAVE: Mulheres, Gênero, Protagonismo.
Introdução
As mulheres indígenas do Brasil ainda são grandes desconhecidas apesar de essas
apresentar grande crescimento na atuação do movimento indígena em geral. Quando
analisamos a atuação das mulheres indígenas no estado de Alagoas é possível constatar essa
invisibilidade, mesmo com mulheres atuantes no movimento indígena com grande importância
não só para o estado de Alagoas, como também para outros estados brasileiros, a exemplo de
Maninha Xucuru Kariri e Nina Katokin. Maninha, foi a primeira mulher dirigente da Apoinme
e liderou a luta pela terra junto ao seu povo e ajudou a construir retomadas por todo o
Nordeste e Nina Katokin é Cacica e uma das principais liderança feminina indígena de
Alagoas.
Pesquisas que abordem a participação feminina indígena em Alagoas ainda são poucas,
mesmo em regiões onde o número de populações indígenas é significativo, a invisibilidade
dessas mulheres em diversos estudos ainda é uma realidade não apenas na historiografia, mas
330
Graduação em História pela Universidade Federal de Alagoas - UFAL
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também em outras áreas da Ciências Humanas. Essa realidade, talvez seja explicada devido as
mesmas não aparecer nas fontes, devido a sua dupla invisibilidade a primeira por ser indígena e
a segunda por ser mulher.
Ao buscar pensar como esse grupo aparece nos primeiros registros escritos pelo olhar dos
europeus ao chegar no território brasileiro, percebemos a caracterização da mulher indígena de
forma pejorativa e hiper sexualizada trazendo uma ambiguidade ao retratá-las como disponíveis
ao sexo ora como esposas devotas.
Sobre isso, a historiadora Suelen Siqueira Júlio reflete, em seu artigo “O recorte de gênero
na História Indígena: contribuições e reflexões”, sobre alguns estudos que prioriza o recorte de
gênero, abordando os papéis exercidos pela mulher indígena no período colonial. Os autores
citados por ela (FLECK, 2006; RAMINELLI, 1997; TENÓRIO & GOMES, 2004) comparam
os relatos dos viajantes e dos missionários sobre as representações da mulher indígena:
Para os primeiros, elas eram belas, sexualmente pecaminosas e as
responsáveis pela recepção dos visitantes das aldeias. Já para os jesuítas,
elas iam passando de auxiliares do demônio e incitadoras da luxúria à
condição de grandes devotas, pregadoras inclusive, à medida que se
convertiam. Os padres buscavam tomar essas convertidas como
exemplos, destacando casos de índias que mortificavam a carne com
golpes a fim de fugir da luxúria, que foram mortas por se recusarem ao
sexo ou que se arrependeram após algum santo aparecer para elas.
(JÚLIO, 2016, p.6)
Algumas pesquisas as colocam como essenciais para a colonização no período colonial,
excluído todo o processor de violência. Porém estudos como "De Cunhã a Mameluca a mulher
tupinambá e o nascimento do Brasil", do historiador João Azevedo Fernandes, traz uma nova
abordagem. O autor busca tratar da importância da mulher nos costumes e trabalho na
sociedade colonial, coloca a mulher como protagonista da História dos tupinambás e da
História da colonização. Sendo assim, a mulher é apresentada no livro como um elemento
autônomo e não submisso aos interesses dos homens.
Os estereótipos sobre as índias construídas através do olhar europeu as colocavam como a
mercê dos interesses e mandos dos homens. Júlio, em sua dissertação de mestrado, utiliza o
autor Joaquim Machado de Oliveira (1790-1867) para defender que, no século XIX, essa ideia
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já era rebatida. Oliveira, no seu artigo intitulado “Qual era a condição social do sexo feminino
entre os indígenas do Brasil?” publicado em 1842, defendia a importância das mulheres nas
diversas sociedades indígenas, baseando-se em exemplos de índios de diferentes localidades e
etnias. “Pretendia mostrar que a ideia de que as índias eram tratadas como escravas era uma
construção baseada nos escritos dos primeiros observadores europeus, que não conheciam a
fundo as realidades ameríndias” (JÚLIO, 2015, p.171).
Novas pesquisas têm sido desenvolvidas sobre a mulheres indígenas com o objetivo de
repensar o papel delas na sociedade brasileira, utilizando diversas abordagens e
problematizando o significado de ser mulher indígena não só no período colonial, mas em toda
a história do Brasil. Esse interesse dos pesquisadores pode ser explicado através da crescente
participação e articulação delas em organizações políticas e pela crescente valorização das
mulheres em geral enquanto sujeitos históricos.
1. Participação política das mulheres indígenas
As mulheres indígenas vêm conquistando espaço de destaque e visibilidade na política, até
então difícil de ser ocupado até por homens indígenas. Recentemente há o caso da conhecida
Sônia Guajajara, que foi candidata a vice-presidente da República no partido PSOL nas eleições
de 2018, e Joênia Batista Carvalho, deputada federal do partido REDE-RR, eleita no mesmo
ano. Esta última foi, de acordo com o site Agência Brasil, “a primeira mulher indígena para a
Câmara dos Deputados, desde que esta foi criada, em 1824 – ano em que a primeira
Constituição brasileira foi promulgada, sem qualquer menção à existência e aos direitos dos
índios brasileiros. Há 31 anos, desde que o cacique xavante Mário Juruna deixou o Congresso
Nacional, em 1987, um índio não era eleito deputado federal.” (RODRIGUES, 2019).
A participação das mulheres indígenas no movimento político não é algo recente, essas
mulheres sempre defenderam seus interesses nos ambientes considerados públicos pelo nas
indígenas. Ortolan Matos (2012), sobre isso, defende que as indígenas não estavam alienadas
das tomadas das decisões coletivas sobre os destinos da sua comunidade. Para explicar o seu
posicionamento, a autora defende “ser necessário reposicionar o olhar analítico para conseguir
enxergar a diferença de perfis entre as esferas pública e privada quando vivenciadas nas
sociedades indígenas e as mesmas esferas quando vivenciadas nas sociedades não indígenas.”
(MATOS, 2012, p.147)
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É nas suas casas que as mulheres debatem junto com outros integrantes da sua comunidade
sobre aspectos que interferem na sua realidade e a partir daí durante certo período históricos os
líderes masculinos saem da sua comunidade para defender o que foi acordado entre todos.
É fundamental entender que, nas sociedades indígenas, os assuntos
políticos e as decisões que afetam a coletividade mais ampla também
são tratados no espaço doméstico e não reservados somente ao espaço
público. Se, por um lado, as atividades femininas pertencem ao espaço
doméstico, por outro, as ações (incluindo falas) protagonizadas pelas
mulheres indígenas também chegam a afetar o espaço público, por
estarem inseridas em comunidades cujo caráter doméstico implica em
atuações políticas. Por muitos anos, entre os povos indígenas no Brasil,
o papel político de interlocução e representação do grupo doméstico
em espaços públicos, dentro e fora da aldeia, foram exercidos pelos
homens com certa exclusividade. No entanto, a situação mudou
significativamente, nos últimos anos. (MATOS, 2012, p.148)
Porém, quando analisamos as primeiras organizações femininas marcadamente de
gênero, pesquisadores afirmam que estas começas a surgir efetivamente a partir de 1990,
apenas duas surgiram na década de 1980, caso da Associação das Mulheres Indígenas do Alto
Rio Negro (AMARN) e Associação das Mulheres Indígenas de Taracuá, Rio Uaupés e Tiquié
(AMITRUT), todas as demais foram fundadas a partir de 1990.” (SACCHI, 2016, p.2).
Nos anos de 1970 e 1980, as mulheres indígenas, que exerceram o papel de lideranças
em suas localidades, ocuparam cargos na Fundação Nacional do Índio (FUNAI) e se fizeram
ouvir por algumas instituições internacionais, tais como: a Agência Norueguesa de Cooperação
para o Desenvolvimento (Norad), a Oxfam, o Departamento para o Desenvolvimento
Internacional do Reino Unido (DFID), a Cooperação Técnica Alemã (GTZ), entre outras.”
(VERDUM, 2008, p.11)
As mulheres indígenas, na década de 1980, intensificaram sua
participação em reuniões políticas tanto no âmbito nacional quanto no
internacional. Sua participação destacou-se quando fizeram parte das
discussões e de campanhas reivindicatórias mais gerais tais como o
direito territorial, a saúde, a educação escolar diferenciada, a
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autodeterminação sobre o uso dos recursos naturais. Os espaços
políticos dos quais elas participavam enriqueciam-se com as pautas
específicas por elas colocadas, tais como a saúde reprodutiva das
mulheres, a violência familiar e interétnica, a soberania alimentar e a
participação nas decisões políticas. (VERDUM, 2008, p.11)
Os autores que se debruçam sobre o assunto afirmam que foi na década de 1990 que as
organizações de mulheres indígenas de diferentes características se intensificaram. Nesse
contexto, elas tinham como objetivo participar e atuar de forma mais direta nos projetos e
demandas do movimento indígena. Ortolan Matos (2012), ao analisar o espaço político das
mulheres na trajetória do movimento indígena na Amazônia Legal Brasileira, defende que as
mulheres indígenas se colocaram no movimento indígena, sobretudo em sua fase inicial, de
modo complementar à luta dos líderes masculinos.
A mesma autora, ao explicar sobre essa crescente participação da mulher em organizações
femininas, defende que estava relacionado com a crescente ampliação e diversificação da
atuação das organizações indígenas no contexto da política indigenista do Estado brasileiro e
também das políticas de financiamento, resultando na abertura de espaços próprios às questões
de gênero. Dessa forma, “mulheres indígenas foram assumindo postos de liderança em
departamentos e organizações que tratavam especificamente das questões envolvendo as
mulheres indígenas.” (MATOS, 2012, p.10)
A Coordenação de Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (COIAB) reuniu-se em
Assembleia Ordinária realizada em maio de 2001, em Santarém (PA) e foi colocado como
encaminhamento a criação de uma instância nacional para tratar das questões das mulheres.
Esse departamento se configurou como o primeiro espaço institucional específico para as
demandas das mulheres indígenas (VERDUM, 2008). Nesse encontro, foi identificado a
necessidade de articulação de um encontro nacional de mulheres indígenas que foi realizado
mais tarde.
“Em 2002 foi realizado o I Encontro de Mulheres Indígenas da Amazônia Brasileira com
financiamento da Agência Norueguesa de Cooperação para o Desenvolvimento (Norad)”
(VERDUM, 2008, p.12). Nesse encontro, foi criado um departamento integrante da COIAB,
que se configurou como um primeiro departamento de mulheres indígenas no Brasil
(DMI/Coiab), visto que se tinha percebido uma ausência de organização nacional de mulheres
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indígenas. O objetivo principal do departamento era o de defender os direitos das mulheres e
as suas demandas específicas.
A Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, conhecida como
COIAB, propõe articular os povos indígenas da Região amazônica e ter um departamento para
tratar de questões específicas das mulheres, o que foi uma grande conquista para elas.
“O que as lideranças femininas pretendiam com a criação do
departamento era articular todas as associações de mulheres da região,
oferecendo-lhes maior oportunidade de participação nas deliberações
da
organização
macrorregional,
ou
melhor,
a
partir
desse
departamento, acreditavam estar garantindo às mulheres indígenas a
inserção de seus interesses e reivindicações específicas na agenda
coletiva do movimento indígena.” (MATOS, 2012, p.157)
Estudar o protagonismo dessas mulheres, suas organizações políticas e as questões de
gênero na sua comunidade é de extrema importância para tomar conhecimento das suas
necessidades e das bandeiras que defendem. Foram nesses espaços que elas tomaram voz e
reivindicaram seus direitos frente aos indígenas e não indígena. Hoje existem várias
organizações de mulheres indígenas no Brasil e em cada região podem se perceber
semelhanças e diferenças que são discutidas em seminários e reuniões desenvolvidas com o
objetivo de diminuir os danos ou solucionar os problemas levantados pelas mesmas.
Os silêncios sobre essas mulheres nas produções históricas precisam ser trabalhados para
que se possa dar voz àquelas que são normalmente esquecidas por ser indígena e por ser
mulher. “Suas experiências precisam ser contadas na contramão dos silêncios, das violações e
das discriminações impostos pelas colonizações aos povos indígenas.” (SAMPAIO, 2001, p.9)
2. O protagonismo feminino em Palmeira dos Índios
Como foi observado no capítulo anterior, a participação política da mulher indígena não
é algo recente, elas sempre buscaram discutir os temas relacionados à sua comunidade dentro
de ambientes que os não indígenas acabam por classificar como domésticos. É nesse ambiente
doméstico que elas passam a ter voz nas discussões políticas que envolviam os interesses do seu
povo, porém aqueles que acabavam por estar na linha de frente defendendo esses interesses já
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discutidos na comunidade terminavam sendo espaços majoritariamente masculinos, mas isso
não quer dizer que elas não participavam das decisões.
Com o decorrer do tempo, a mulher indígena passou a ganhar voz dentro e fora da
comunidade de forma mais significativa, defendendo os interesses do seu povo e de temas
particulares das mulheres. Com isso, buscaram se articular em organizações e a planejar as suas
ações para alcançar determinados objetivos, esses sempre alinhados com o movimento indígena
geral, ou seja, suas pautas não excluíam reivindicações de todos os povos indígenas, sendo eles
homens e mulheres.
A pauta principal do movimento indígena em geral se refere ao direito à terra, pois é
através dela que os povos indígenas conseguem assegurar a sobrevivência e reafirmação da
identidade indígena. Sendo assim, as mulheres indígenas e suas organizações não estão
totalmente desvinculadas a essas questões, pois influenciam diretamente nas suas vidas. Além
disso pautas como o combate ao preconceito, ao uso de bebidas alcoólicas, maior participação
da mulher como lideranças fazem parte da articulação destas mulheres e fortalece a luta do
movimento indígena por seus direitos.
Contudo, é preciso compreender que essas articulações e organizações ocorrem de
forma distintas, cada etnia e cada organização busca transformar uma determinada realidade,
podendo ter aproximações e distanciamentos. Isso acontece porque as mulheres indígenas não
são um grupo homogêneo: as relações de contato, a sua história, relações de poder e outros
fatores vão influenciar e determinar as suas particularidades.
Sabendo disso, buscarei analisar aqui o protagonismo feminino na comunidade indígena
de Palmeira dos Índios e, para isso, será analisada a atuação do Comitê Intertribal de Mulheres
Indígenas de Alagoas (COIMI) e a trajetória de Graciliana Celestino Wakanã, presidente e
fundadora deste comitê. Como fonte de pesquisa será analisada a cartilha do Stsô-Setsônika
elaborada em 2015, recortes de jornais e entrevistas, a fim de entender melhor como as
mulheres passaram a ultrapassar silenciamentos e invisibilidades e quais as suas pautas
reivindicatórias nesta determinada região.
2.1 Trajetória da Graciliana Wakanã e Comitê Intertribal de mulheres indígenas
No dia 17 de junho de 1975, nascia na aldeia Fazenda Canto, município de Palmeira dos
Índios (AL), Graciliana Celestino Gomes da Silva ou Wakanã, seu nome indígena, filha do
cacique Xucuru Kariri, Manoel Celestino da Silva, e de Maria de Lourdes Gomes da Silva, da
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nação Kalankó. Uma Xucuru Kariri “índia boa de briga”, é assim que é colocada no livro Gogó
da Ema (SCHUMAHER, 2004, p.14), como uma consequência do seu trabalho junto ao
Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas e a sua trajetória de vida. Em uma breve pesquisa em
recortes de jornais sobre a participação da mulher indígena na política, o nome dela se torna
constante quando se faz um recorte de Alagoas.
Graciliana cresceu na Fazenda Canto e o seu início no movimento indígena inicia de
forma comum as demais mulheres desse grupo, inicialmente ao para aprender a ler e escrever
passa a auxiliar os líderes da sua comunidade anotando aquilo que foi debatido nas reuniões.
Ela, passou a participar ativamente no movimento indígena quando enfrentou o chefe de posto
da FUNAI que tinha desentendimentos com o Cacique Celestino, seu pai.
A antropóloga Silvia Aguiar Carneiro Martins, em sua dissertação de mestrado intitulada
“Os caminhos da Aldeia... Índios Xucuru-Kariri em Diferentes Contextos Situacionais”, relata
um pouco sobre esses conflitos entre Cacique Celestino e o Chefe de Posto Gracindo. Em sua
ida a campo, percebeu os conflitos entre o chefe de posto e o Cacique e descreveu alguns
detalhes sobre o assunto. Ela comenta que estando em uma loja onde o chefe de posto estava
presente, acaba percebendo algumas articulações entre os que estavam ali contra o Cacique
Celestino. Falavam sobre um trator que foi apreendido pelo chefe do posto por não permitir
seu uso pelo Sr. Manoel Celestino, alegando que o problema seria resolvido com um
motorista, porém o Cacique não havia concordado.
A autora esclarece também que esse chefe de posto não residia em Palmeira dos índios e
sim em Maceió, quando estava no município ficava hospedado no Quartel da Polícia Militar ou
no Verde Hotel. Sobre ele: “os índios de uma forma geral, tanto na Fazenda Canto como na
Mata da Cafurna, demonstravam insatisfação com a atuação dele; vários desentendimentos já
tinham ocorrido em ambas as áreas entre o chefe de posto e os índios”. (MARTINS, 1993,
p.68)
Durante esses conflitos, Graciliana, ao tomar atitudes frente ao chefe de posto, passou a ser
percebida pelos adultos da sua comunidade como tendo um perfil de liderança mesmo ainda
muito jovem. Durante a entrevista, Graciliana comentou que o chefe de posto Gracindo havia
chegado na sua casa para prender seu pai com seus amigos militares e, ao ver aquela situação e
entender um pouco das leis por ter acompanhado as reuniões e ouvir os demais, sabia que ali
não poderia entrar policiais militares no território indígena.
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Mas, foi em 1989 quando começa a participar do Conselho Estadual de Defesa dos
Direitos da Mulher de Alagoas, que Graciliana passa a identificar-se com mulher indígena
feminina. Pois, passa a aprender e trocar conhecimentos com outras mulheres brancas e negras
que haviam se fundado organizações para a defesa dos seus interesses. Assim, que surge o
comitê intertribal de mulheres indígena de Alagoas.
O Comitê Intertribal de Mulheres Indígenas (Coimi), foi criado em uma reunião onde
estavam presentes 21 mulheres; foi institucionalizado em janeiro de 2000 e possuía o mesmo
perfil das demais organizações de mulheres indígenas presentes no Brasil, buscando fortalecer
as lideranças femininas do Nordeste e contribuir junto com outras organizações para melhorar
as condições de vida dos povos indígenas.
O COIMI realizou diversas ações desde a época de sua fundação. Através da cartilha do
Stsô-Setsônika elaborada em 2005, conclui-se que o objetivo do Comitê, além de incentivar a
maior participação das mulheres como lideranças, buscou incentivar o associativismo feminino
na luta pela educação, saúde e criação de renda para essas mulheres.
Os povos indígenas que participaram das ações que consistiam em Seminários, Oficinas e
capacitações do COIMI foram: Tiguí-Boto, Katokin, Karuazu, Karapotó, Wassu-Cocal, KaririXocó, Wakonã-Kariri, KaririXucuru, Geripankó, Kalankó, Pankararú, Kambiwá, Fulni-ô,
Pítaguari, Genipapo Canindé, Tremembé e Kariri. Sendo assim, as etnias que participaram do
comitê são do estado de Alagoas, Pernambuco, Ceará e Bahia, possuindo diversas formas de se
organizar e diferenças culturais.
As diversas ações elaboradas pelo COIMI tinham o objetivo de debater temas sobre
Associativismo, potencialidades produtivas e gênero. Nesse ambiente estavam presentes
homens e mulheres. As mulheres estavam guiando as discussões, mas os homens também
participavam, realizando atividades relacionada a logística e participando como ouvintes
Conclusão
Para falar dos povos indígenas na contemporaneidade, deve-se dar voz àquelas que vem
se destacando cada vez mais não só na comunidade indígena, mas também fora dela, tornandose deputadas e candidatas a cargos políticos de destaque e, com isso, combater a invisibilidade e
os estereótipos que são atribuídos a elas desde o período colonial que perduram até os dias de
hoje.
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Percebe-se que as organizações de mulheres indígenas não estão apenas comprometidas
com pautas sobre gênero. Estas mulheres, além de estarem organizadas na defesa de pautas
específicas das mulheres como uma maior participação destas no movimento indígena, estão
comprometidas também com os direitos essenciais para a sobrevivência do seu povo como
saúde, educação de qualidade e demarcação de terras.
Dessa forma, a importância de aumentar as pesquisas relacionada a esses temas consiste em
trazer novos olhares para elas, que quase sempre são colocadas como excluídas do processo
político e duplamente silenciadas por serem mulheres e indígenas. Conhecer sua realidade, seu
cotidiano e como se dão as relações de gênero presentes na comunidade poderá identificar
como estas mulheres vêm alcançando espaços até então majoritariamente masculinos.
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322
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
“A verdade é dura, a Rede Globo apoiou a ditadura”: memórias do jornalismo
brasileiro - entre o silenciamento e o reconhecimento.
Carlos Alberto de Melo Silva Mota331
Resumo: Este artigo coloca em reflexão debates acerca da história e memória do jornalismo
brasileiro a partir da sabatina para as eleições presidenciais de 2018 entre Jair Messias
Bolsonaro e jornalistas do Grupo Globo. Na ocasião, o candidato a presidência foi
questionado sobre sua posição acerca do Regime Militar instalado após o Golpe de 1964. Em
sua resposta Jair elogiou um editorial do jornal O Globo de 1984 onde seu proprietário,
Roberto Marinho, pontuava a participação e apoio do Grupo Globo à “Revolução de 1964”.
Essa memória gerou mal-estar entre os jornalistas, sobretudo na economista Miriam Leitão,
ex-militante do PCdoB presa pelas Forças Armadas durante o período. Buscamos, portanto,
problematizar aspectos ligados ao esquecimento e silenciamento de determinadas memórias,
por vezes vinculadas a um passado traumático, assim como os usos políticos desse passado e
a importância do estudo dessas memórias.
Construímos essa narrativa a partir da
interlocução com uma série de autores, dentre os quais destacamos Benito Schmidt (2007),
Mateus Pereira (2007), Ulpiano Meneses (1992), Beatriz Kushnir (2012), Tania de Luca
(2012) e Maria José Rezende (2001). O diálogo estabelecido com os escritos de cada um
desses autores possibilitou a construção de um texto permeado por referenciais de memória,
política e escritos jornalísticos, conforme se tornará observável a partir da leitura.
Palavras-chave: História. Memória. Mídia.
1.
“O que é bom está na Globo”332
Durante o primeiro turno da Campanha Eleitoral de 2018, as Organizações Globo
realizaram uma série de entrevistas com os candidatos à presidência mais bem colocados nas
pesquisas. Os encontros tomaram proeminência na última semana de agosto, com sabatinas
nas emissoras Globo e GloboNews, seguindo uma ordem definida em sorteio, onde foram
331
332
Mestre em História do Brasil pela Universidade Federal do Piauí – UFPI.
Slogan das Organizações Globo em 1973.
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contemplados: Ciro Gomes (PDT), na segunda; Jair Bolsonaro (PSL), na terça; Geraldo
Alckmin (PSDB), na quarta; e Marina Silva (Rede), na quinta.
O ex-presidente Lula (PT), que na ocasião liderava as pesquisas eleitorais não pôde
participar das entrevistas, por encontrar-se preso em Curitiba, desde abril de 2018. Dessa
forma, a representação do Partido dos Trabalhadores seria ouvida apenas no dia 14 de
setembro, três dias após Fernando Haddad assumir a posição de candidato do PT à
presidência da República.
As sabatinas das Organizações Globo mostravam-se como programas com alto
índice de audiência na TV brasileira e, portanto, uma vitrine positiva ou negativa para os
candidatos, que foram entrevistados às 20h:30m no Jornal Nacional (Rede Globo) e a partir
das 22:00h na Central das Eleições (Globo News).
O Jornal Nacional é um telejornal brasileiro exibido desde setembro de 1969, em
horário nobre, de segunda-feira a sábado pela Rede Globo. O telejornal recebeu 14 vezes o
Troféu Imprensa, sendo o maior vencedor em sua categoria. Seis desses troféus foram
conquistados de forma consecutiva, desde 2014, naquela que é considerada a mais tradicional
premiação referente ao entretenimento do país, tendo sido criada em 1958.333 Tais credenciais
denotam o alcance do telejornal e a importância desse espaço de fala no jogo político.
Por sua vez, a Central das Eleições foi um programa especial da GloboNews, que
ficou no ar durante toda a campanha eleitoral de 2018, com debates, entrevistas, pesquisas de
intenções de voto e análise de comentaristas acerca da conjuntura política. Estreou na
segunda-feira, 30 de julho, com entrevistas aos, até então, pré-candidatos à presidência. As
exibições foram um sucesso e deram um “boom” de audiência ao canal.
Com a “Central das eleições”, a GloboNews ficou atrás só da Globo no
ranking geral do público AB1. A audiência da faixa (das 22h30m à 0h30m)
registrou um crescimento de 400% comparando com as quatro semanas
anteriores.
... E mais
Ficou assim o ranking geral da audiência, por candidato que participou da
sabatina:
Jornal Nacional é o campeão no Troféu Imprensa 2018. Portal Canãa. Disponível em
<https://portalcanaa.com.br/site/entretenimento/celebridade/jornal-nacional-e-o-campeao-no-trofeu-imprensa2018/> Acesso em: 11/04/2020 às 20:50.
333
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Jair Bolsonaro (1.460.029 espectadores); Ciro Gomes (957.753); Geraldo
Alkmin (930.849); Marina Silva (693.738) e Álvaro Dias (543.717).334
Conforme o ranking geral da audiência podemos observar que a sabatina de Jair
Messias Bolsonaro alcançou um índice significativo de espectadores, concentrando 31,84%
do público total do programa, que recebeu outros 4 candidatos. Esse número é
representativo, tendo em vista que Bolsonaro teria pouco tempo de propaganda no rádio e na
televisão: 8 segundos e 11 inserções - a título de comparação, o tucano Geraldo Alckmin teria
5 minutos e 32 segundos e 434 inserções na programação. Para estipular o tempo de cada
candidato, leva-se em conta o número de deputados federais eleitos pelo partido em 2014.
No caso do PSL, foram apenas dois.335
Esse curto tempo de propaganda oficial foi compensado por uma árdua atuação nas
redes sociais, assim como um constante envolvimento em falas polêmicas que repercutiam
dentro da mídia. Decididamente, a tática de campanha adotada por Bolsonaro encontrava na
imprensa um inimigo a ser combatido, constantemente provocando e pondo em cheque a
credibilidade dos meios de comunicação. Um levantamento feito pelo jornal Folha de São
Paulo encontrou registro de 129 ataques de Jair Messias Bolsonaro à imprensa desde o início
do ano de 2018 até a reta final da corrida eleitoral, “foram contabilizadas 39 acusações de
falsidade e 38 denúncias de partidarismo a veículos de comunicação e jornalistas, além de 49
mensagens genéricas em que o capitão reformado do Exército deixou explícito o objetivo de
estimular o descrédito a imprensa”.336
Um episódio marcante desses ataques aconteceria justamente na sabatina da Central
das Eleições, citada anteriormente e transmitida ao vivo, no dia 03 de agosto. Os jornalistas
das Organizações Globo ficaram desconcertados diante da fala capciosa de Jair Bolsonaro,
que viria se repetir durante a sabatina do Jornal Nacional, no dia 28 de agosto. Ao ser
indagado por Roberto D’Ávila sobre sua negação quanto a existência de uma ditadura no
KOGUT, Patrícia. Central das eleições' faz crescer a audiência da GloboNews em 400%. O Globo. Rio de
Janeiro, 08 de ago. 2018. Disponível em: <https://kogut.oglobo.globo.com/noticias-datv/coluna/noticia/2018/08/central-das-eleicoes-faz-crescer-audiencia-da-globonews-em-400.html>. Acesso em 25
de jun. 2019.
ODILA, Fernanda. Eleições 2018: Os candidatos à Presidência e quais dificuldades têm de superar durante a
campanha. BBC Brasil. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42313908> Acesso em:
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Ataques de Bolsonaro à imprensa chegaram a dez por semana no fim da campanha. Folha de São Paulo. 3 de
nov. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/11/ataques-de-bolsonaro-a-imprensachegaram-a-dez-por-semana-no-fim-da-campanha.shtml> Acesso em: 15/04/2020 às 13:00
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Brasil e como isso poderia influenciar nos seus atos enquanto presidente, o militar da reserva
afirmou que a TV Globo foi fundada durante o Regime Militar (em 1965) e completou:
Eu quero aqui elogiar, saudar a memória do senhor Roberto Marinho.
Editorial de capa do jornal ‘O Globo’ de 7 de outubro de 1984, ‘Senhor
Roberto Marinho’: ‘Participamos da Revolução de 1964, identificados com
os anseios nacionais de preservação das instituições democráticas
ameaçadas pela radicalização ideológica, distúrbios sociais, greves e
corrupção generalizada’.
[...] O senhor Roberto Marinho… O senhor acha que ele foi um democrata
ou um ditador? Eu acabei de falar, por favor, me responda, um democrata
ou um ditador?337
A colocação de Jair Bolsonaro causou um mal-estar entre os entrevistadores, por
trazer à tona um episódio que a emissora buscava esmaecer. Nesse âmbito, situamos a
posição das Organizações Globo ao conceito de esquecimento, que Andreas Huyssen nos
ajuda a compreender, a partir de sua interlocução com Paul Ricoeur; o autor situa o esquecer
num campo de termos e fenômenos como silêncio, desarticulação, evasão, apagamento,
repressão – todos os quais revelam um espectro de estratégias tão complexo quanto o da
própria memória. Com base na análise do discurso empregado pelos jornalistas, torna-se
visível a busca por esmaecer essa memória e silenciar a narrativa que vincula a emissora aos
militares no período de ditadura.
Ricceur sugere algumas distinções básicas: o esquecimento como mémoire
empêchée [memória impedida], que está primordialmente relacionado com
o inconsciente freudiano e com a compulsão à repetição; segundo, o
esquecimento como mémoire manipulée [memória manipulada], que tem
uma relação intrínseca com a narratividade, no sentido de que qualquer
narrativa é seletiva e implica, passiva ou ativamente, certo esquecimento de
que uma história poderia ser contada de outra maneira; terceiro, o oubli
CANDIDATO à presidência Jair Bolsonaro (PSL) é entrevistado na Central das Eleições. Globo News Play. 03
de ago. 2018. Disponível em: < https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6921428/> Acesso em: 20 de jun.
2019.
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comandé [esquecimento obrigatório], ou esquecimento institucional que
prevalece nos casos de anistia.338
Em determinado momento, a economista Miriam Leitão busca deslocar o foco de
debate indicando “candidato, o importante é saber o seguinte: não é o passado, é o futuro.
Em um governo seu, que risco há de se repetir esses atos do passado que o senhor acha que
não são ditatoriais?”.339 Jair Bolsonaro então finaliza “Senhora, Miriam. Zero. Zero. Eram
momentos diferentes, era uma outra época que aconteceu aquilo lá. ” Nesse ponto, podemos
observar nitidamente o desconforto gerado pelo candidato do PSL, ao vincular as
Organizações Globo ao Regime Militar, levando uma mulher que foi vítima do período a
deslocar o foco da discussão para o “futuro”.
A proposição de Miriam Leitão nos oferece uma nova chave para compreender a
memória. Ao passo que a jornalista desloca as discussões do passado para o futuro, não
esquece o questionamento sobre a possibilidade de que os atos anteriormente realizados
voltem a acontecer “que risco há de se repetir esses atos do passado? ”; ao mesmo tempo que
situa a posição de Jair Bolsonaro como apoiador do Regime Militar, “que o senhor acha que
não são ditatoriais”. Conforme Gagnebin, é próprio da experiência traumática essa
impossibilidade do esquecimento.340 Nesse sentido, podemos observar Miriam Leitão como
uma vítima do período que busca respostas e nega-se a aceitar uma relativização desse
discurso.
Abaixo, observaremos um trecho da entrevista concedida pela ex-militante do
PCdoB em 2014, após a divulgação de relatórios das Forças Armadas, seu primeiro esforço
consistia em tentar dizer o indizível, numa tentativa de elaboração simbólica do trauma que
lhes permitisse continuar a viver e, simultaneamente, numa atitude de testemunha de algo
que não podia nem devia ser apagado da memória e da consciência da humanidade.341
HUYSSEN, Andreas. Resistência à memória: usos e abusos do esquecimento público, In: Culturas do passado
presente: modernismos, artes visuais, políticas da memória. P. 158-159.
CANDIDATO à presidência Jair Bolsonaro (PSL) é entrevistado na Central das Eleições. Globo News Play. 03
de ago. 2018. Disponível em: <https://globosatplay.globo.com/globonews/v/6921428/> Acesso em: 20 de jun.
2019 às 14:30
GAGNEBIN, Jeanne Marie. “Após Auschwitz” e “O que significa elaborar o passado, In: Lembrar, escrever,
esquecer. São Paulo: Editora 34, 2006, p. 99.
Ibid.
338
339
340
341
327
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Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas
por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco
elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na
parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e
liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a
roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo.
O de cabelo preto me bateu:
– A roupa! Tire toda a roupa.
Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram
entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as
mãos. O homem de cabelo preto falou:
– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não
tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.
Os soldados ficaram me olhando e os três homens à paisana gritavam,
ameaçando me atacar, um clima de estupro iminente. O tempo nessas
horas é relativo, não sei quanto tempo durou essa primeira ameaça. Viriam
outras.
Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo,
voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da
sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali,
sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas
sabia que a cobra estava lá.342
Ao longo da entrevista, Miriam faz um detalhado relato sobre as condições que lhe
foram impostas no quartel do Exército em Vila Velha, no Espírito Santo, ao longo de um
mês, iniciado em 4 de julho de 1972. Amélia, como era conhecida, tinha 19 anos e estava
grávida, afirma ter entrado no quartel com 50kg e ter saído com 39kg, chegando a passar 48h
sem alimentação alguma, o que lhe provocara enormes chances de perder o bebê, além de
outras mazelas, como carência aguda de vitamina D por falta de sol. Todavia, Miriam nunca
pediu indenização pelas violências sofridas, o que a jornalista espera é um pedido de
desculpas: “Gostaria de ouvir um pedido de desculpas, porque isso me daria confiança de
CUNHA, Luiz Cláudio. Míriam Leitão fala sobre tortura que sofreu nua e grávida de 1 mês durante ditadura.
O Globo. 19 de ago. 2014. Disponível em <https://oglobo.globo.com/brasil/miriam-leitao-fala-sobre-torturaquesofreu-nua-gravida-de-1-mes-durante-ditadura-13663114> Acesso em: 08 de jul. 2019 às 09:25
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que meus netos não viverão o que eu vivi. É preciso reconhecer o erro para não repeti-lo. As
Forças Armadas nunca reconheceram o que fizeram”. 343 Conforme a jornalista, sua vingança
foi sobreviver e vencer, mas aguarda esse pedido de desculpa, por seus filhos e netos. “Não
cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro
democrático do país.”344
O desejo de Miriam Leitão por esse pedido de desculpas pode ser compreendido
com a leitura de Benito Schmidt, que em seu artigo “Cicatriz aberta ou página virada:
Lembrar e esquecer o golpe de 1964 quarenta anos depois” examina estratégias de
enquadramento e de silenciamento das lembranças do período, no que concebe como
“batalhas de memórias”. O cerne de sua análise consiste na promulgação da Lei de Anistia
pelo governo do general João Figueiredo em 1979, que procurava instaurar por decreto uma
reconciliação nacional, baseada no esquecimento do passado. Assim, anistiavam-se tanto os
presos políticos, os exilados e os clandestinos, quanto os mandantes e responsáveis por
torturas e assassinatos.345
A anistia trouxe ao país os presos políticos, exilados e clandestinos, mas os
mortos e desaparecidos não voltaram sequer na forma de um atestado de
óbito. [...] Os torturadores, mandantes e responsáveis pelas torturas e
assassinatos não foram condenados, nem sequer julgados ou citados em
processos criminais, a maior parte mantendo-se no anonimato até hoje.
Porque foram, então, anistiados? Não pelo império da lei, mas através de
uma interpretação da lei de que a abertura política poderia retroceder se
houvesse por parte da oposição uma postura revanchista.346
A maneira como o fim da ditadura foi encarada no Brasil difere em grande medida
do trato estabelecido na Argentina e nos outros países da América Latina que enfrentaram
ditaduras militares. O nosso país vizinho engajou-se numa luta política, jurídica e simbólica
para não esquecer o destino dos “desaparecidos” – as cerca de 30 mil vítimas do terrorismo
do Estado perpetrado pela ditadura e seus esquadrões da morte nos anos 1976-1983.
Ibid.
Ibid.
SCHMIDT, Benito Bisso. Cicatriz aberta ou página virada? Lembrar e esquecer o golpe de 1964 quarenta anos
depois. Anos 90, v.14, n.26, p.127-156, dez.2007, p. 135.
Ibid.
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Andreas Huyssen afirma que o esquecimento era claramente atraente para grande parte da
sociedade, mas a intensa luta pelos direitos humanos travada para reconhecer-se a
criminalidade do regime militar mostrou-se bem-sucedida, no cômputo geral, levando ao
julgamento das juntas militares, que desencadearam sentenças de prisão para os generais.347
No âmbito brasileiro, a política adotada afasta os algozes do regime militar do sentimento de
culpa, dificultando um pedido de perdão das Forças Armadas, como o desejado por Miriam
Leitão, à medida que se fortalecem discursos como o de Jair Bolsonaro, que relativizam ou
negam os acontecimentos do período.
Essa narrativa justifica no presente, em particular, práticas, discursos,
ideologias e lógicas que permanecem. Em grande medida, a impunidade
em relação aos crimes praticados pelo Estado durante o período de 19641985 é o principal motor que faz com que essa “comunidade de memória”
persista, cresça e se transforme e, sobretudo, que não sinta ou manifeste
remorso ou culpa e, por consequência, não aceite nem reconheça qualquer
tipo de erro. Em vez do remorso ou da culpa assistimos ao estímulo ao
ódio e ao ressentimento. Afetos que também impedem ou dificultam um
pedido de desculpas e/ou perdão pelos erros praticados: “o próprio das
afecções é sobreviver, persistir, permanecer, durar, conservando a marca da
ausência e da distância (...); nesse sentido, essas inscrições-afecções
conteriam o segredo do enigma do rastro mnemônico”. Ainda sim, é
preciso destacar, “cabe à noção de inscrição comportar referência ao outro;
o outro que não a afecção enquanto tal. A ausência, como o outro da
presença!” 348
No bloco final da sabatina, a jornalista Miriam Leitão, âncora do programa, toma a
propriedade da fala, para transmitir uma mensagem da direção do programa Central das
Eleições, que busca afastar a culpa das Organizações Globo em seu envolvimento com o
Regime Militar, durante a sua fala a ex-militante não consegue disfarçar a dificuldade em
proferir as seguintes palavras:
Ibid.
PEREIRA, Mateus. Nova direita? Guerras de memória em tempos de Comissão da Verdade (20122014). Varia
História, Belo Horizonte, v.31, n.57. p.863-902, 2007, p. 884.
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O candidato Jair Bolsonaro disse, há pouco, que Roberto Marinho,
identificado com os anseios nacionais de preservação das instituições
democráticas, apoiou editorialmente o que chamava então de "revolução de
1964". É fato. Não somente O Globo, mas todos os grandes jornais da
época. O candidato Bolsonaro esqueceu-se, porém, de dizer que, em 30 de
agosto de 2013, O Globo publicou editorial em que reconheceu que o
apoio editorial ao golpe de 1964 foi um erro. Nele, o jornal diz não ter
dúvidas de que o apoio pareceu, aos que dirigiam o jornal e viveram aquele
momento, a atitude certa, visando ao bem do país, e finalizava com estas
palavras: 'à luz da História, contudo, não há por que não reconhecer hoje,
explicitamente, que o apoio foi um erro, assim como equivocadas foram
outras decisões editoriais do período que decorreram deste desacerto
original. A democracia é um valor absoluto e, quando em risco, ela só pode
ser salva por si mesma'"349
A repercussão em torno dessa mensagem foi ampla, se tornando instantaneamente
um dos assuntos mais comentados do Twitter, rede social popular por sua fluidez na
circulação de informações em tempo real. As postagens variavam em seus conteúdos, porém
predominavam as críticas as Organizações Globo, conforme podemos ver abaixo:
O editorial das Organizações Globo balbuciado por Miriam Leitão ao final
da sabatina com Bolsonaro foi um dos maiores tiros no pé que o jornalismo
brasileiro já deu em sua história.350
Todavia, alguns usuários da rede foram menos enfáticos e buscaram contextualizar a
fala da apresentadora: “Pô gente, sério que ninguém entendeu o que houve? A Globo ‘se
deu’ um direito de resposta no programa, já que o Bolsonaro falou que ela apoiou o golpe. A
Miriam Leitão era a porta voz da mensagem e só repetiu o que estavam falando no ponto
APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. 2019
às 16:35
VASQUES, Martim. O editorial das Organizações Globo balbuciado por Miriam Leitão ao final da sabatina
com Bolsonaro foi um dos maiores tiros no pé que o jornalismo brasileiro já deu em sua história. Twitter:
@martimvasques, 4 de ago. 2018. Disponível em: <
https://twitter.com/martimvasques/status/1025589149125025792> Acesso em 24/04/2020 às 9:00.
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dela. Tem tanta dificuldade de entender?”(sic)351, comentou o jornalista Casimiro Miguel em
seu perfil. A então pré-candidata a vice-presidente Manuela D’Ávila, na chapa formada pelo
PT/PCdoB, solidarizou-se com Miriam Leitão, relembrando o seu passado e considerando
um equívoco a escolha das Organizações Globo em colocar a nota no ar através da figura da
jornalista, junto ao texto abaixo seguia o vídeo com o momento da fala.
Não sei de quem foi a decisão de ler a nota sobre a Globo e ditadura ao
final da entrevista de Bolsonaro. Ñ pude deixar de pensar, apesar de todas
as divergências que tenho com Miriam Leitão, o assédio moral q é colocar
uma mulher presa e torturada pela ditadura p/ ler aquele texto. (sic) 352
Minutos após, Manuela acrescenta o seguinte tópico à postagem inicial: “2) Afinal,
conforme o vídeo mostra, juntar Globo e Democracia na mesma frase provoca gagueira,
constrangimento, vermelhidão e rubor na face.”353
1.1.
Entre no ar, no pique da Globo354
O editorial citado por Miriam foi publicado semanas após um leva de protestos em
junho de 2013, que ficaram conhecidas por “Manifestações dos 20 centavos” ou “Jornadas de
Junho”. Os movimentos desencadeados nesse contexto tiraram milhares de pessoas de casa,
em diversas cidades do Brasil, sobretudo nas capitais e cidades de grande porte, com
reinvindicações inicialmente ligadas a diminuição da tarifa do transporte público, todavia as
reclamações escritas em cartazes feitos à mão foi uma marca importante desses atos,
demonstrando a diversidade de posições e pensamento sobre a realidade brasileira, assim
MIGUEL, Casimiro. Pô gente, sério que ninguém entendeu o que houve? A Globo “se deu” um direito de
resposta no programa, já que o Bolsonaro falou que ela apoiou o golpe. A Miriam Leitão era a porta voz da
mensagem e só repetiu o que estavam falando no ponto dela. Tem tanta dificuldade de entender?. Twitter:
@casimiro. 4 de ago. 2018. Disponível em: < https://twitter.com/Casimiro/status/1025586817947582464> Acesso
em: 24/04/2020 às 8:20.
D’ÁVILA, Manuela. Não sei de quem foi a decisão de ler a nota sobre a Globo e ditadura ao final da entrevista
de Bolsonaro. Ñ pude deixar de pensar, apesar de todas as divergências que tenho com Miriam Leitão, o assédio
moral q é colocar uma mulher presa e torturada pela ditadura p/ ler aquele texto. Twitter: @ManuelaDavila. Porto
Alegre, 4 de ago. 2018. Disponível em: <https://twitter.com/ManuelaDavila/status/1025813559060484096>
Acesso em: 08 de jun. 2019 às 10:00
D’ÁVILA, Manuela. 2) Afinal, conforme o vídeo mostra, juntar Globo e Democracia na mesma frase provoca
gagueira, constrangimento, vermelhidão e rubor na face.. Twitter: @ManuelaDavila. Porto Alegre, 4 de ago. 2018
Disponível em: <https://twitter.com/ManuelaDavila/status/1025813863147728902> Acesso em: 08 de jul. 2019 às
10:02
Slogan das Organizações Globo em 1984.
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como a ausência de uma direção única e de lideranças de movimentos sociais já conhecidos
no cenário político coordenando tais atos.355 Nesse contexto, junto aos coros contrários as
organizações públicas também podia ouvir-se: “A verdade é dura, a Globo apoiou a
ditadura!”. O grito dos manifestantes evocava uma memória silenciada, que ao ser instigada
provocou a instituição a responder.
Desde as manifestações de junho, um coro voltou às ruas: “A verdade é
dura, a Globo apoiou a ditadura”. De fato, trata-se de uma verdade, e,
também de fato, de uma verdade dura.
Já há muitos anos, em discussões internas, as Organizações Globo
reconhecem que, à luz da História, esse apoio foi um erro.
Há alguns meses, quando o Memória estava sendo estruturado, decidiu-se
que ele seria uma excelente oportunidade para tornar pública essa avaliação
interna. E um texto com o reconhecimento desse erro foi escrito para ser
publicado quando o site ficasse pronto.
Não lamentamos que essa publicação não tenha vindo antes da onda de
manifestações, como teria sido possível. Porque as ruas nos deram ainda
mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que
o reconhecimento do erro, necessário.356
MOREIRA, Orlandil de Lima. Vem pra rua: os protestos de junho. In: SOUSA, Cidoval Morais de; SOUZA,
Arão de Azevêdo (org.). Jornadas de Junho: Repercussões e Leituras. Campina Grande, PB: EDUEPB, 2013, p.
14.
APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. às
16:35
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Figura 2: Levante Popular da Juventude
357
Figura 3: Protesto da
União da Juventude Socialista358
Mediante as manifestações populares, as Organizações Globo anteciparam o
editorial que seria publicado no projeto Memória, um espaço online que estava em fase de
desenvolvimento com o intuito de, conforme o site do jornal, “resgatar e preservar a história
do jornal”359 Nesse sentido, problematizamos essa proposição a partir das noções de Ulpiano
Meneses, o autor situa que a crescente popularidade da memória, seja como tema acadêmico,
seja como bandeira política, tem obscurecido sua natureza de fenômeno social. Conforme
Ulpiano, com frequência a memória é associada como mecanismo de registro e retenção,
depósito de informações, conhecimentos e experiências; por outro lado, também, diz-se que
a memória corre o risco de se desgastar, dessa forma precisa ser preservada ou restaurada na
sua integridade; numa busca de afastá-la do esquecimento, da ocultação, afirmam quem a
memória deve ser resgatada: como uma criança que caiu num poço e não consegue subir à
superfície sem o auxílio providencial dos bombeiros. Contudo, o autor considera, que a
memória não pode ser confundida nem com seus vetores e referências objetivas, nem como
ser considerada uma substância redutível a um pacote de recordações; ao contrário, a
memória é um processo permanente de construção e reconstrução, um trabalho. A
heterogeneidade que pode estar presente na memória individual e, mais amplamente, na de
grupos e coletividades, torna seu resgate uma ilusão.360 Cientes disso, continuamos a análise
do projeto Memória, desenvolvido pelas Organizações Globo.
Ao adentrarmos na página inicial do portal, temos a possibilidade de observar uma
série de abas, onde podemos navegar, nas quais se incluem: capa; linha do tempo; jornalismo;
perfis e depoimentos; institucional; fotos; erros e acusações falsas; humor e vídeos.
Enfatizamos a sessão “erros e acusações falsas”, onde estão presentes cinco matérias, em ordem
cronológica, onde as Organizações Globo fazem um exercício de autocrítica para com a
memória. Todavia, nas matérias não fica evidente um pedido de desculpas, mas uma tentativa
Disponível em: <https://www.agenciajovem.org/wp/apoio-ditadura-midia-que-defendeu-militares-nao-sedesculpa>
Acesso em: 22 de jun. 2019 às 15:30
Disponível
em
<https://www.conversaafiada.com.br/pig/bolsonaro-enfia-roberto-marinho-na-goela-dobonnerkamel> Acesso em: 22 de jun. 2019 às 15:40
O QUE é memória? O Globo. Disponível em: <http://memoria.oglobo.globo.com/> Acesso em: 23 de jun.
2019 às 10:00
MENESES, Ulpiano de. A história, cativa da memória? Para um mapeamento da memória no campo das
Ciências Sociais. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. São Paulo, n. 34, 1992, p. 10-11.
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de minimizar os seus erros. Ao falar do seu apoio ao golpe, a instituição cita outros jornais de
grande circulação: “A lembrança é sempre um incômodo para o jornal, mas não há como
refutá-la. É História. O GLOBO, de fato, à época, concordou com a intervenção dos militares,
ao lado de outros grandes jornais, como ‘O Estado de S.Paulo’, ‘Folha de S. Paulo’, ‘Jornal do
Brasil’ e o ‘Correio da Manhã’, para citar apenas alguns.” 361 E complementa, ressaltando o clima
de instabilidade do período, fazendo alusão a um possível golpe do presidente João Goulart,
evidenciando uma lógica maniqueísta de conceber a história:
Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de
um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo
apoio de sindicatos — Jango era criticado por tentar instalar uma “república
sindical” — e de alguns segmentos das Forças Armadas.
[...] A situação política da época se radicalizou, principalmente quando
Jango e os militares mais próximos a ele ameaçavam atropelar Congresso e
Justiça para fazer reformas de “base” “na lei ou na marra”. Os quartéis
ficaram intoxicados com a luta política, à esquerda e à direita. Veio, então, o
movimento dos sargentos, liderado por marinheiros — Cabo Anselmo à
frente —, a hierarquia militar começou a ser quebrada e o oficialato reagiu.
Naquele contexto, o golpe, chamado de “Revolução”, termo adotado pelo
GLOBO durante muito tempo, era visto pelo jornal como a única
alternativa para manter no Brasil uma democracia. Os militares prometiam
uma intervenção passageira, cirúrgica. Na justificativa das Forças Armadas
para a sua intervenção, ultrapassado o perigo de um golpe à esquerda, o
poder voltaria aos civis. Tanto que, como prometido, foram mantidas, num
primeiro momento, as eleições presidenciais de 1966. 362
Com base em Fernando Felizardo Nicolazzi e Caroline Silveira Bauer, podemos
compreender esse recurso como a reprodução de uma construção discursiva baseada na
chamada teoria dos dois demônios, desenvolvida durante os processos de transição política na
Argentina e no Brasil. Os autores empregam esse conceito ao analisar a obra de Marco Villa,
APOIO editorial ao golpe de 64 foi um erro. O Globo. 31 de ago. 2013. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/brasil/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604> Acesso em: 18 de jun. 2019
às 16:35.
362
Ibid.
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Ditadura à Brasileira (2014), onde o historiador, formado pela Universidade de São Paulo,
pontua que uma fração importante da esquerda brasileira que atuava na década de 1960,
sobretudo aquela envolvida com a militância armada, tinha ela própria tendências golpistas,
terroristas e, em certa medida, foi a grande motivadora da violência da repressão estatal. O
autor constrói uma argumentação semelhante à das Organizações Globo, propondo que a
grande vítima neste conflito entre a direita e a esquerda seria a democracia.363
Os autores estabelecem essa análise para enfatizar a questão dos usos públicos do
passado, manifestando aos historiadores que o gesto historiográfico, como forma de atuação
pública, é ele também um gesto político, e pode ser assim encarado. A atenção às variadas
formas de usos públicos do passado pode ajudar a lançar luz sobre os fatos e incitar a reflexão
crítica. Ao falar sobre o passado, o autor de Ditadura à Brasileira está agindo sobre o presente,
sua escrita da história, assim como sua atuação midiática, são formas de uso público, e,
portanto, político do passado. Assim como nas manifestações das Organizações Globo, que ao
evocar o embate dos dois demônios e ao citar a participação de outros jornais, constrói uma
defesa para os embates de memória recentes.
Considerações Finais: “A gente se vê por aqui”364
Consideramos assim, que ao estudar a história e a memória do jornalismo durante o
Regime Militar não devemos cair em determinismos ou leituras cristalizadas. Avaliamos, dessa
forma, a imprensa como um grupo circunscrito no contexto de sua época, sujeita as condições
impostas pelo governo, como decretos-lei assinados em diferentes momentos do regime que
impunham uma censura prévia aos escritos de jornalistas; por outro lado, não podemos perder
de vista a autocensura, uma subcategoria da censura cujos danos são mais perigosos, haja visto
que não é o silêncio da ignorância ou falta de discernimento, e sim o da abstenção consciente.
Os resultados, para o público, são semelhantes aos da censura em termos de manipulação do
conhecimento e do entendimento, mas com frequência acrescenta-se o elemento de que o
público sequer sabe que lhe está sendo negada a informação. Isso representa um nível mais alto
de distorção ao qual ele está sendo submetido.365
BAUER, Caroline Silveira; NICOLAZZI, Fernando Felizardo. O historiador e o falsário. Usos públicos do
passado e alguns marcos da cultura histórica contemporânea. Varia Historia, v.32, n.60, 2016, p. 823.
Slogan das Organizações Globo de 2001-2012
SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: O consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2000, p. 138.
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Referências
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
História e memória em narrativas orais como experiências de lutas para
(re)afirmação da identidade: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São
Pedro, Porto da Folha, Sergipe (1978-2021)
Ivanilson Martins dos Santos - Xokó366
Resumo:
A proposta do texto é refletir sobre o processo de retomada Xokó a partir das narrativas orais;
da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo presente. Pretendeu-se identificar como
os antigos Caboclos da Caiçara — como eram conhecidos —, alcançaram no tempo e espaço
num processo de luta contra personagens que detinham poder hegemônico, a autoafirmação
indígena Xokó. Interessa como essas identidades são (re) afirmadas em 2021. Utilizamos o
método: história oral temática e pesquisa qualitativa do tipo analista completo. Dando-nos
elementos para identificarmos a diáspora Xokó a partir da década 1970 com o cercamento da
Ilha de São Pedro, antigo aldeamento, até 1991; data da homologação pelo Decreto Federal
n.º: 401 de 24/12/1991. A terra indígena Ilha/Caiçara fica localizada no município do Porto da
Folha, Sergipe. Para isso, dialogamos com autores sobre alguns conceitos: T. Eagleton,
conceitos de cultura; P. Burke, poder, hegemonia e resistência; Stuart Hall, identidade cultural
e diáspora, dentre outros para compreensão da (re) afirmação identitária Xokó. Essas análises
são partes da pesquisa em andamento no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em
História da Universidade Federal de Alagoas. Entender as dinâmicas e as transformações ao
longo desse processo de memória diaspórica são de suma importância para a minha pesquisa.
Palavras-chave: História oral; Identidade Cultural e Diáspora Xokó; Poder hegemônico
Abstract:
The purpose of the text is to reflect on the process of retaking Xokó from the oral narratives; of
historical memory and social subjects in the present time. It was intended to identify how the
ancient Caboclos of Caiçara – as they were known –, reached in time and space in a process of
struggle against characters who held hegemonic power, the Xokó indigenous self-assertion. It is
Indígena Xokó; Graduado em História Licenciatura Plena – UFAL; Mestrando no PPGH/UFAL; Ativista e
Membro GT: "Os índios na história/SE", (ANPUH-SE); E-mail: ivanilsonmartins762@gmail.com .
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interesting how these identities are (re) affirmed in 2021. We used the method: thematic oral
history and qualitative research of the complete analyst type. Giving us elements to identify the
Xokó diaspora from the 1970s onwards, with the enclosure of São Pedro Island, a former
village, until 1991; date of approval by Federal Decree No.: 401 of 12/24/1991. The
Ilha/Caiçara indigenous land is located in the municipality of Porto da Folha, Sergipe. For this,
we dialogued with authors about some concepts: T. Eagleton, concepts of culture; P. Burke,
power, hegemony and resistance; Stuart Hall, cultural identity and diaspora, among others for
understanding the self (re) affirmation of Xokó identity. These analyzes are part of the ongoing
research at the Stricto Sensu Graduate Program in History at the Federal University of Alagoas.
Understanding the dynamics and transformations throughout this diasporic memory process
are of paramount importance for my research.
Keywords: Oral history; Cultural Identity and Xokó Diaspora; Hegemonic power
Introdução:
Fazer história oral significa, portanto, produzir
conhecimentos
históricos,
científicos,
e
não
simplesmente fazer um relato ordenado da vida e
da experiência dos “outros” [...]. Além disso, a
história oral é um ponto de contato e intercâmbio
entre a história e as demais ciências sociais e do
comportamento, especialmente com a antropologia,
a sociologia e a psicologia (LOZANO, 2006, p.1719).
A diáspora é a década 1970. Em 1978 o meu povo Xokó367 cercaram a Ilha de São
Pedro — antigo aldeamento — e, em 1991, conseguiram na Justiça federal a homologação pelo
Decreto n.º: 401 de 24/12/1991, da demarcação da terra indígena Ilha/Caiçara. Quando
Utilizamos o termo Xokó com o “K” e não com o “C”, considerando a nomenclatura Xokó, pois, nós indígenas
Xokó da Ilha de São Pedro/Caiçara/Sergipe nos identificamos hoje assim. Nos documentos históricos e coloniais
podem ser encontrados grafias: Xokó, Shocó, Chocó, Chocoz, Ciocó ou Ceocose. A FUNAI expede documentos
com K, e considerando também a 1ª Convenção Para a Grafia dos Nomes Tribais da Revista de Antropologia,
São Paulo, v. 2, n. 2, p. 150-152, dez. 1954. Transcrição de documento assinado na 1ª Reunião Brasileira de
Antropologia. Rio de Janeiro, em 14 nov. 1953. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/ra/issue/view/8378>.
Acesso em 17 de agosto de 2020.
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falamos em Ilha/Caiçara, estamos nos referindo a todo território pertencente ao meu povo
Xokó, à terra indígena que fica localizada no município do Porto da Folha, Sergipe. Portanto,
entendemos que esse processo de retomada pelo territorial e pela identidade, se deu,
sobretudo, a partir das narrativas orais; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo
presente, ou seja, da história presentista. Através dela, os antigos Caboclos da Caiçara — como
éramos conhecidos — alcançamos no tempo e espaço, num processo de luta contra
personagens que detinham poder hegemônico, nossa auto (re) afirmação indígenas Xokó.
Hoje, entra em questão, como essas identidades são (re) afirmadas em 2021.
Utilizamos o método da história oral temática e a pesquisa qualitativa, com estilo de
pesquisa faceta metódica, que utiliza fontes orais, do tipo analista completo.368 Sobre a epígrafe,
porém, não é um chamamento para a discussão de mérito em história oral, mas, para
esclarecer o nosso entendimento enquanto a metodologia. Neste sentido, encontramos
respaldo na história oral temática e na pesquisa qualitativa. Desta forma, “(…) as entrevistas não
se sustentam sozinhas ou em versões únicas” (MEIHY; HOLANDA, 2015, p. 38). Além disso,
buscam através das teorias, intercâmbios entre a história e as demais ciências, bases epistêmicas
para as interpretações e análises.369 De acordo com Jorge Eduardo Aceves Lozano (2006, p. 23),
o estilo analista completo: “Não se limita a um único método e a uma técnica, mas as
complementam e as tornam mais complexas. Explicitam sua perspectiva teórico-metodológica
da análise histórica e, sobretudo, estão abertos e dispostos ao contato com outras disciplinas”.
Elementarmente, entendemos as narrativas orais como sendo fontes “criadas no encontro entre
historiador e narrador” (PORTELLI, 2016, p. 9).370
Concordamos com Amado e Ferreira (2006, p. XVI), ao enfatizar que “(…) história
oral, como todas as metodologias, apenas estabelece e ordena procedimentos de trabalho — tais
“Nesse estilo de trabalho, a tarefa de produzir conhecimentos históricos se torna válida, especialmente rica e
atual, já que implica: reflexão teórica, trabalho empírico e de campo; maior ligação e vínculo pessoal com os
sujeitos estudados; um processo de constituição de uma fonte e um processo de produção de conhecimentos
científicos (...)”. Ver: LOZANO, Jorge Eduardo Aceves. Prática e estilos de pesquisa na história oral
contemporânea. In: AMADO, Janaína; FERREIRA, Marieta de Moraes (Org). Usos & abusos da história oral. - 8.
ed. - Rio de Janeiro: Editora FGV. 2006, p. 24.
“Com a História Oral temática, a entrevista tem caráter temático e é realizada com um grupo de pessoas, sobre
um assunto específico. Essa entrevista – que tem característica de depoimento– não abrange necessariamente a
totalidade da existência do informante. Dessa maneira, os depoimentos podem ser mais numerosos, resultando
em maiores quantidades de informações, o que permite uma comparação entre eles, apontando divergências,
convergências e evidências de uma memória coletiva, por exemplo”. FREITAS, Sônia Maria de. História oral:
possibilidades e procedimentos. 2. ed. – São Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006, pp. 21-22.
Quando nos referirmos as narrativas orais, estamos situando em forma transcrita como fonte. Ver: PORTELLI,
Alessandro. História oral como arte da escuta. Tradução: Ricardo Santhiago. São Paulo: Letra e Voz. op. cit., p. 9
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como os diversos tipos de entrevista e as implicações de cada um deles para a pesquisa (…)”. É
interessante a afirmação de Reinhart Koselleck (2014, p. 37), quando diz que “A transmissão
oral de avós a netos não basta para que se perceba a mudança em longo prazo”. Podendo ser
compreendida por meio da reflexão histórica, pois, ultrapassam gerações e fogem à experiência
imediata. Entendemos, portanto, que a metodologia da história oral pode ser ampliada através
de outras fontes. Neste caso, “(…) utilizando a metodologia da História Oral produz-se uma
documentação diferenciada e alternativa da história (…)” (FREITAS, 2006, p. 46). Na qual, é
claro, possa haver subjetividades como quaisquer outras fontes, no entanto, devemos nos
atentar e estar abertos às outras possibilidades de análises.
Nessa perspectiva, Wilson do Nascimento Barbosa (1992, p. 19), afirma que “O
encontro dos métodos adequados para tratar os problemas que foram identificados permite o
entrecruzamento de percepções propiciadas por diferentes análises, cuja riqueza pode então ser
explorada na síntese que se elabora”. Sendo assim, sustentamos na história oral como
metodologia e buscamos interações com antropologia; história social; cultural e epistemologia
decolonial. Pois, a história oral como uma metodologia, “(…) não dispõe de instrumentos
capazes de compreender os tipos de comportamento descritos (bastante comuns, aliás). Apenas
a teoria da história é capaz de fazê-lo, pois se dedica, entre outros assuntos, a pensar os
conceitos de história e memória, assim como as complexas relações entre ambos” (AMADO;
FERREIRA, 2006, p. XVI). Para Alessandro Portelli (2016, p. 18), “A história oral, então, é
história dos eventos, história da memória e história da interpretação dos eventos através da
memória”.
Porquanto, pensamos a luta pela reconquista do território e da identidade indígena
Xokó, despertada, sobretudo, pelo sentimento de rememoração que “(…) pode ser um difícil
processo de negociação entre o individual e o social, pelo qual identidades estejam
permanentemente sendo construídas e reconstruídas, garantindo-se uma certa coesão à
personalidade e ao grupo, concomitantemente” (GOMES, 1996, p. 6). Ou seja, a memória
como processo de (re) afirmação da identidade, que, por motivos sensíveis, foram
reivindicadas. Pois, “(…) ela refaz o passado segundo os imperativos do presente de quem
rememora, ressignificando as noções de tempo e espaço e selecionando o que vai e o que não
vai ser "dito", bem longe, naturalmente, de um cálculo apenas consciente e utilitário (GOMES,
1996, p. 6). Assim, a memória retoma os acontecimentos que para meu povo Xokó, foram
estratégias de permanência para a continuidade no território ancestral, usurpados pela família
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Brito desde pelos menos meados do século XIX, e retomado pelo meu povo Xokó na década
de 1970. Para Peter Burke (2002, p. 108), o apadrinhamento pode “levar ao problema do
poder”, numa relação o qual Antonio Gramsci chamara “hegemonia” . O que explicaria, a
relação e o tempo que os Xokó levaram para reaver nossa identidade cultura e o nosso
território sagrado por direito imemorial.
Para Stuart Hall (1996, p. 69), “(...) as identidades culturais provêm de alguma parte,
têm histórias. Mas, como tudo o que é histórico, sofrem transformação constante”. Deste
modo, “Aqui surge um fenômeno que torna tão interessante a história: não só acontecimentos
súbitos e singulares produzem mudanças; as estruturas de maior duração — que possibilitam as
mudanças — parecem estáticas, mas também mudam (KOSELLECK, 2014, p. 22). Uma
mudança necessária para que os Xokó se libertassem e retomassem a vida cultural e as práticas
de nossa identidade indígena. Neste sentido, partindo do conceito de cultura e das suas raízes
etimológicas, “Se somos seres culturais, também fazemos parte da natureza sobre a qual vamos
trabalhar. Com efeito, parte do sentido da palavra «natureza» é recordar-nos o continuum entre
nós próprios e o que nos rodeia, tal como a palavra «cultura» é útil para realçar a diferença”
(EAGLETON, 2003, pp. 16-17). Para Marx (2011, p. 25), “Os homens fazem a sua própria
história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem
as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas assim como se
encontram”. As escolhas foram a lutas e a consequências a retomada do território com a
homologação em 1991 e a (re) afirmação identitária de ser Xokó da Ilha de São Pedro.
Trabalhamos o conceito de história ressaltado pelo historiador alemão Reinhart
Koselleck (2013, p. 206). Para ele, “(...) o conceito de História varia correspondentemente à
experiência de ruptura que o determina. Por um lado, podia não apenas se referir à
durabilidade do passado em processo de desaparecimento, mas também requerer a
preocupação permanente com o futuro, indicando o rumo a ser seguido. Uma explicação clara
e interpretativa, mostra que o meu povo Xokó não desapareceu como indicava a historiografia
tradicional, mas fez uma escolha “permanente com o futuro, indicando o rumo a ser
seguido”.371 A nossa história! Nessa perspectiva, o tópico, História e Memória: experiências e
narrativas orais para (re) afirmação da identidade Xokó e seus contextos históricos, discorre,
sucintamente, sobre a história de luta do meu povo Xokó a partir do levantamento
Sobre os desaparecimentos, ver: LEGRE, Maria Sylvia Porto. Cultura e História: sobre o desaparecimento dos
povos indígenas. Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, vol. XXIII/XXIV, nº1/2,1992/1993. Disponível em:<
http://www.repositorio.ufc.br/bitstream/riufc/9648/1/1992_art_mspalegre.pdf> Acesso em: 18 de maio de 2021.
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bibliográfico; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo e espaço. Para isso,
entendemos a história do tempo presente e a memória histórica base de uma construção
histórica para esse [nosso] protagonismo. Neste sentido, a legitimidade e delimitação “(...) ao
passado recente pode ajudar‐nos produzir uma história mais reflexiva, ou seja, mais atenta à
historicidade da sua epistemologia e mais consciente da complexidade dos desafios do fazer da
história hoje” (DELACROIX, 2018, p. 42).
Para Le Goff (1990, p. 425), “O processo da memória no homem faz intervir não só a
ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios”. Para tanto, o tópico Memória
histórica: de caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha, Sergipe e
suas relações com a memória, refletimos a partir das narrativas orais; da memória histórica e
dos sujeitos sociais no tempo presente (1978) como os Caboclos da Caiçara deixaram de ser
agricultores sendo reconhecidos como Xokó da Ilha de São Pedro. Destacamos a memória
histórica dos sujeitos como meio para autoafirmação de ser Xokó da Ilha de São
Pedro/Caiçara. Nessa perspectiva, trabalhar com as narrativas orais tende a abrir outros olhares
e perspectivas outras, visto que muitas das pesquisas em história com povos indígenas “(…)
exigem um minucioso trabalho de interpretação da documentação produzida por viajantes,
cronistas, etnógrafos e outros que, ao longo do tempo, conviveram com populações indígenas e
sobre elas deixaram registros escritos e iconográficos, dentre outros” (SILVA, J.; SILVA, G.,
2010, p. 37). Esses trabalhos, muitas vezes, abrem margem para os preconceitos e estereótipos
atualmente, por silenciar os povos indígenas contemporâneos.
História e Memória: experiências e narrativas orais para (re) afirmação da identidade Xokó e
seus contextos históricos
Nós indígenas Xokó, Socó de onde vem a denominação Xokó; pássaro pescador —
somos povos graficamente encontrados nos documentos históricos e coloniais como: Xokó,
Shocó, Chocó, Chocoz, Ciocó ou Ceocose entre os séculos XVII e XVIII, de Sergipe ao sul do
Ceará. E, no século XIX, no aldeamento São Pedro do Porto da Folha/SE como Ceocose.
Historicamente, nosso protagonismo estende-se a esse vasto território. No entanto, não é uma
proposta realizar um levantamento histórico desse percurso temporal dos deslocamentos do
meu povo. O farei em outro momento, mas entender como são ao longo desse processo (re)
afirmados enquanto Xokó da Ilha/Caiçara. Para isso, as narrativas orais como experiências de
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lutas para (re) afirmação da identidade: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São
Pedro, Porto da Folha, Sergipe de 1978 a 2021 são importantes para o nosso ponto de partida.
O historiador, Eric Hobsbawm, em seu livro Sobre História, 2001, disserta sobre o
sentido do passado; da história social à história da sociedade; história de baixo para cima. Ali
nos proporciona o entendimento sobre a memória como justificativa de direitos imemoriais; de
que todo ser humano tem consciência do passado. O passado pode ser visto como afirmação
do presente (direito indígena, identidade) e memória coletiva. Ou seja, o passado possui uma
dimensão da consciência humana. Nessa perspectiva, pois, “A memória, onde cresce a história,
que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para servir o presente e o futuro” (LE
GOFF, 1924, p. 478). Essa explicação fundamenta sobre a relação da memória e história.
Porquanto, base para entendermos que o meu povo Xokó efetuara o uso desta memória para
se reinventar enquanto Xokó contemporâneo. Em entrevista realizada por Angelita Queiroz,
sobre a festa da retomada Xokó, 2020, ela pergunta a seu Heleno Bezerra Lima — Xokó, sobre
o significado desta festa para ele, e para os Xokó, ele responde o seguinte:372
A festa da retomada me representa um passado que eu não vou... desejo para
ninguém muito menos para as futuras gerações. Deixando a gente muito alegre
e com um sentimento profundo porque a gente sabe que foi muito complicado,
custou muito caro essa vitória. Porque hoje a gente vê os jovens sempre. Essa
cicatriz pra mim é uma vitória muito grande, porque o que a gente viveu sarou,
mas a cicatriz ficará, está e ficará pro resto da vida, porque o tempo apaga, sara
uma ferida, mas não apaga a cicatriz. [...] (Heleno Bezerra Lima, 08/09/2019 –
Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE, grifos do original).373
Heleno Bezerra Lima — Xokó, explica que a vitória do nosso povo pelo
reconhecimento da identidade e do território, foi uma vitória árdua e enfatiza a “cicatriz” dessa
Concordamos com a professora Valeria Maria Santana Oliveira, sobre a explicação da festa de Retomada Xokó:
para ela, “A Festa da Retomada é a principal celebração dos Xokó e rememora o dia em que os indígenas saíram
da Caiçara, onde eram oprimidos pelos fazendeiros, para tomar posse das terras da Ilha de São Pedro. Era o dia 9
de setembro de 1979, data que, no imaginário Xokó, tornou-se análoga ao Sete de Setembro, o Dia da
Independência do calendário civil” ver: OLIVEIRA, Valeria Maria Santana. Memória/ identidade Xokó: práticas
educativas e reinvenção das tradições. 2018. Tese (Doutorado em Educação). - Programa de Pós-graduação em
Educação. Universidade Tiradentes, Aracaju: UNIT, 2018, p. 132).
Entrevista realizada por: QUEIROZ, Angelita. A festa da retomada: uma celebração identitária de ser Xokó na
Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE. 2020. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Culturas Populares). –
Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT). Universidade Federal de
Sergipe (UFS). São Cristóvão (SE), 2020, p. 96.
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luta como elemento decorrente da resistência Xokó. Retoma nessa narrativa a história recente,
recorre à retórica para expressar nas entrelinhas as lutas dos nossos antepassados. Nesse
sentido, “o tempo apaga, sara uma ferida, mas não apaga a cicatriz”. Lembrando-se dos
sofrimentos que nós Xokó, quando éramos pejorativamente chamados de Caboclos da Caiçara.
Pois, “Não se trata, portanto, de colocar em competição [entre a] memória e história, mas de
considerar como pode se realizar a reapropriação do passado histórico por uma memória que a
história introduziu e com muita frequência feriu” (DELACROIX, 2018, p. 59).
Vejamos, nessa perspectiva, os séculos XVIII e XIX. Quando os Brito — família
proprietária de terras — influenciaram e se apossaram de grandes extensões no Sertão do São
Francisco pertencentes ao meu povo Xokó. Terras, “doadas” em Alvará de 1700 e confirmadas
pela Lei de 4 julho de 1703 por El-Rei de uma légua em quadra para os indígenas e os
missionários.374 O fazendeiro João Fernandes de Brito, “se assenhora gradativamente das terras
na qualidade de foreiro [das terras Xokó] e no ano de 1897 desfruta da posse de 5 dos 8 lotes
em que foram divididas as terras dos índios” (DANTAS, 1980, p. 169). Os terrenos
pertencentes ao meu povo Xokó (local do antigo aldeamento São Pedro do Porto da Folha —
SE), foram sendo gradativamente arrematados por diversos fazendeiros utilizando-se do
discurso de mestiçagem no século XIX. Conforme o pensamento da professora Dr. Luana
Teixeira (2013, p. 5–6), quando enfatiza que um dos objetivos da política imperial a respeito
dos indígenas, e: “(...) que, quando não eliminados fisicamente, a população nativa passasse a se
integrar à massa da população. Por um ou outro modo, físico e simbólico, tratava-se de um
projeto de extermínio”.
Nessa perspectiva, atrelado a um projeto de branqueamento e “homogeneização
nacional da população, segundo o modelo eurocêntrico de nação, só teria podido ser alcançada
através de um processo radical e global de democratização da sociedade e do Estado”
(QUIJANO, 2005, p. 135). O que não deu certo, acarretando ainda mais os preconceitos e
estereótipos para essas populações. Nós, povos indígenas! Para Aníbal Quijano (2005, p. 118):
(...) os povos conquistados e dominados foram postos numa situação natural
de inferioridade, e consequentemente também seus traços fenotípicos, bem
como suas descobertas mentais e culturais. Desse modo, raça converteu-se no
Sobre os direitos dos povos indígenas, ver: CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos do índio: ensaios e
documentos. Editora Brasiliense, 1987.
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primeiro critério fundamental para a distribuição da população mundial nos
níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade.
No Brasil, esse projeto foi sustentado nas leis indigenistas do império, a exemplo, do
Regulamento acerca das Missões de Catequese e Civilização dos Índios (Decreto 426 de
24/7/1845) e da Lei 601, de 18 de setembro de 1850, e seu Decreto de execução (1.318 de 30
de janeiro de 1854), que, explicitamente, possibilitavam os arrendamentos e aforamentos dos
antigos aldeamentos pertencentes aos indígenas por direitos ancestrais. Após esses
arrendamentos, nós indígenas pertencentes ao povo Xokó, não paramos de reivindicar os
nossos territórios. Com essas reivindicações, entendemos como sendo forma de resistência. Em
1888 efetuamos viagens ao Rio de Janeiro para reivindicar os contratos de aforamentos
empreendidos pelo coronel João Fernandes de Brito em conluio com a Câmara Municipal da
Ilha do Ouro — SE, que, “(...) pede ao Imperador uma légua de terras pertencentes ao extinto
aldeamento de São Pedro” (DANTAS, 1980, p. 17). Ou seja, pertencente ao meu povo Xokó.
O Governo Imperial entrega as terras à Câmara que as por em aforamento em 1888. Sendo
assim, viajam ao Rio de Janeiro, Manuel Esteves dos Anjos; Lourenço Marinho; Jesuíno
Serafim de Souza e Manuel Pacífico de Barros, ambos Xokó.375
Essas estratégias de irem diretamente ao governo imperial demostram ativamente o
protagonismo do meu povo na reivindicação pelo reconhecimento do direito ao território
ancestral e sagrado. Infelizmente, dessa viagem não temos muitas informações de como se
procedeu e quais foram os benefícios tidos nesse momento no que diz respeito aos
documentos reivindicados.376
Decerto, na pesquisa de campo poderemos obter respostas através das narrativas orais.
Pois, (…) a memória (talvez seja melhor dizer as memórias) pode entrar em concorrência com a
história, e até mesmo opor‐se a ela censurando a esta última os seus “esquecimentos” ou os
seus “recalques” (DELACROIX, 2018, p. 54). Para essas análises, bastam percebermos as
trajetórias e as formas de resistência Xokó para entendemos os conceitos referentes as
DOCUMENTO N° 20 PÁG. LXXXV OFÍCIO DA DIRETORIA DE AGRICULTURA DO MINISTÉRIO
DOS NEGÓCIOS DA AGRICULTURA, COMÉRCIO E OBRAS PÚBLICAS AO PRESIDENTE DA
PROVINCIA DE SERGIPE: 20 DE AGOSTO DE 1888, APES – 421. Resumo: Comunica que voltam para
Sergipe índios de São Pedro que foram ao Rio de Janeiro reclamar contra a invasão de suas terras. Recomenda
providências para que seus direitos sejam garantidos. DANTAS, Beatriz G; DALLARI, Dalmo. Terra dos Índios
Xokó: estudos e documentos. São Paulo: Comissão Pró-Índio. op. cit., pp. 50-51.
Infelizmente não iniciei minha pesquisa de campo e com certeza existem algumas informações sobre tais
circunstâncias.
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resistências e protagonismos da memória da nossa história. Em 1916, os Xokó, “ensejaram um
novo ciclo de viagens ao Rio de Janeiro e à Bahia promovidas por lideranças Xokó, a fim de
reivindicar diretamente junto ao Governo Central a posse das terras em aforamentos”
(SANTOS JUNIOR, 2016, p. 131). Também sem sucesso! No entanto, bastante retomada
como narrativa para sustentação da memória ancestral e (re) afirmação de ser Xokó da Ilha de
São Pedro/SE.
A continuidade dessas resistências pela retomada do território indígena, se deu pela
“ocupação da Caiçara e Ilha de São Pedro, em 1930, liderada por Inocêncio Pires e que reuniu
aproximadamente 30 Xokó em busca de se reestabelecer na Caiçara após anos de refúgio
juntos aos Kariri, de Alagoas” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 133). No entanto, apenas 20
famílias pertencentes ao meu povo Xokó permaneceram na terra Caiçara silenciando a
identidade como estratégia para continuar no território. Trabalhando como meeiros
assalariados e ceramista de forma “a tolerar o regime dos coronéis, submetendo-se às relações
de favores e de obediência, a trabalhos de baixo rendimento, e ao regime de “meia” em
diversas atividades, como na rizicultura, no cultivo de algodão, pesca e até na produção de
cerâmica” (SANTOS JUNIOR, 2016, p. 134). Em 1978, já cansados dessa vida, sem
perspectiva de melhoras, decidimos em reunião coletiva e secreta, a retomar o território e
cercar a Ilha de São Pedro, onde fica a sede da antiga Igreja construída em meados do século
XVII, por volta de 1670. Consideramos, pois, a década de 1970 como sendo marco da
diáspora pela retomada identitária de ser Xokó da Ilha de São Pedro/Caiçara. O colonialismo
encobria e silenciava a verdadeira identidade cultural Xokó, a exemplo, de nos conhecermos
como Caboclos da Caiçara.
Para Reinhart Koselleck (2014, p. 62), “A história decorre sempre em diferentes ritmos
temporais, que se repetem ou se modificam lentamente; por isso, as experiências humanas são
preservadas, mudadas ou refratadas em tempos escalonados”. Sobre o silêncio, difere do
silenciamento estratégico, que “(…) está ligado em primeiro lugar à necessidade de encontrar
um modus vivendi com aqueles que, de perto ou de longe, ao menos sob a forma de
consentimento tácito, assistiram à sua deportação” (POLLAK, 1989, p. 5). Nesse sentido, a
retomada pelo reconhecimento da identidade Xokó, se dá em circunstâncias das experiências
que “(…) também são reunidas, resultam de um processo de acumulação, na medida em que se
confirmam ou se consolidam por meio de correções recíprocas” (KOSELLECK, 2014, p. 34).
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Neste caso, pelos apoios externos e pelo reconhecimento da identidade e do território indígena
Xokó.
Memória histórica: de Caboclos da Caiçara aos Xokó da Ilha de São Pedro, Porto da Folha,
Sergipe e suas relações com a memória
O processo de luta pela retomada Xokó, é, sobretudo, um processo de regate da
memória histórica no sentido de “(…) conservar certas informações, [e que] remete-nos em
primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar
impressões ou informações passadas, ou que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1990,
p. 424). Porém, bastante presente em nossa consciência ou para esclarecer; em nossa
ancestralidade reivindicada pela retomada de 1978 para nos afirmarmos enquanto indígena
Xokó. Michael Pollak (1989, p. 10–11), diz que a “(…) memória é também o sentido da
identidade individual e do grupo” […] que “A memória é assim guardada e solidificada nas
pedras (…)”.
Essas memórias foram os suportes para a auto (re) afirmação de ser Xokó. Foi através
dessas memórias que nós nos reconhecemos enquanto indígenas da Ilha/Caiçara. Nesse
sentido, “A rememoração pode ser um difícil processo de negociação entre o individual e o
social, pelo qual identidades estejam permanentemente sendo construídas e reconstruídas,
garantindo-se uma certa coesão à personalidade e ao grupo, concomitantemente” (GOMES,
1996, p. 6). Portanto, entendemos essa reconstrução a partir da diáspora, em 1978, com o ato
de retomar o território. Isso, imbricado no sentimento de pertencimento, o qual é oficialmente
exportada pela retomada que se dá em 1979, com as 22 famílias Xokó. Para tentar esclarecer, é
importante o pensamento de Hebe Castro (2011. p. 78), para ela, “(…) em história, todos os
níveis de abordagem estão inscritos no social e se interligam (…)”. Ou seja, como sugere Michel
de Certeau (1982), “(…) a história social, quer dizer, a história dos grupos sociais e de suas
relações” (CERTEAU, 1982, p. 78). Pois, entendemos o processo de retomada Xokó a partir
das narrativas orais; da memória histórica e dos sujeitos sociais no tempo presente, como sendo
também uma história social pelas relações exportas.
Nessa perspectiva, é importante para esse processo, as alianças de apoios das ONGs —
Organização Não-Governamentais —, e dos laços de amizades com os quilombolas e sociedade
civil organizada para esse reconhecimento que ocasionaram na homologação do território
indígena em 1991. Com essa reação de resistência, o meu povo Xokó reativaram todas as
349
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práticas culturais de nossa ancestralidade. A reação dos fazendeiros foram diversas.
Conseguindo retardar através de influências políticas até 1991 a homologação do território
indígena Xokó. Após vários anos de luta, o meu povo consegue pelo Decreto N° 401, de 24 de
dezembro de 1991, a homologação administrativa da Terra Indígena Caiçara/Ilha de São
Pedro, no Porto da Folha / Estado de Sergipe, observemos o texto do Art. 1.º:
Fica homologada, para os efeitos do artigo 231 da Constituição Federal, a
demarcação administrativa promovida pela Fundação Nacional do Índio —
FUNAI, da área indígena Caiçara/Ilha de São Pedro, localizada no Município
de Porto da Folha, Estado de Sergipe caracterizada como de ocupação
tradicional e permanente do grupo indígena Xocó, com superfície de
4.316,7768ha (Quatro mil, trezentos e dezesseis hectares, setenta e sete ares e
sessenta e oito centiares) e perímetro de 35.529,93 metros (trinta e cinco mil,
quinhentos e vinte e nove metros e noventa e três centímetros) (BRASIL,
1991, Art. 1º).
É perceptível que essa homologação se deu pelos atos de luta como bem já expomos
anteriormente. Atos, que “(…) foram realizados, em sua maioria, a partir e pela exigência de
demandas sociais de reconhecimento e de justiça — que podem ser rotuladas como
reivindicações memoriais” (DELACROIX, 2018, p.47). Porquanto, é parte de uma dívida
histórica pelas atrocidades do colonialismo conosco. É emblemático esse Decreto, visto que
mesmo com essa homologação, até 1993, outro fazendeiro chamado Jorge Pacheco, que teria
comprado parte do terreno do meu povo anterior a homologação, ainda não teria saído do
território. Permaneceu na terra de 1991 até 1993. Sendo assim, gerando mais conflitos pela
regularização e demarcação da terra indígena. A homologação é de suma importância para
bem-estar social e cultural do meu povo e para a garantia da nossa sobrevivência enquanto
culturalmente diferentes. Além disso, asseguramos e garantimos proteções da fauna e flora. Um
ano depois dessa homologação, no dia 2 de dezembro de 1992, nós Xokó ocupamos a
“fazenda São Geraldo que faz limite com Caiçara e com povoado Mocambo (quilombola),
objetivando a desapropriação definitiva da Caiçara” (SANTOS, 2020, p. 54).
Por conta dessa ocupação, ocorreu uma troca de tiros com pistoleiros de Jorge Pacheco
nas mediações da fazenda Surubim e da fazenda sede Caiçara e São Geraldo. Não houve
mortes. Esse episódio foi noticiado pelo Jornal Gazeta de Alagoas. Com a notícia ocorrendo
350
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nos meios de comunicações e as pressões feitas pelo meu povo na FUNAI e, em Maceió,
Alagoas, as cobranças para a regularização aumentaram, e, em 12 de maio de 1993, a fazenda
Caiçara foi deixada por Jorge Pacheco e seus empregados. O “(...) final da luta pela
reintegração das fazendas São Geraldo, Surubim, Caiçara e Belém. Em celebração é realizada
uma romaria (…)” (SANTOS, 2020, p. 54). Essa romaria saía da fazenda São Geraldo com
destino a sede da fazenda Caiçara. Celebração em homenagem à luta e aos apoios recebidos da
Igreja católica naquele momento.377
Com as terras indígenas Xokó regulamentadas pelo governo federal, o meu povo
retoma toda vida cultural e ancestral. Nessa perspectiva, utilizamos o termo cultura com
significado antropológico que começa a solidificar-se no século XIX. Para Terry Eagleton
(2003) “Na opinião de Geoffrey Hartman, Herder é o primeiro a utilizar a palavra cultura em
sua moderna acepção de uma cultura de identidade: um modo de vida social, popular e
tradicional, caracterizado por uma qualidade que perpassa tudo e leva a que uma pessoa se
sinta enraizada ou em casa” (EAGLETON, 2003, p. 41). Sendo assim, é entender que “(…)
uma memória também, ao definir o que é comum a um grupo e o que, o diferencia dos outros,
fundamenta e reforça os sentimentos de pertencimento e as fronteiras sócio-culturais”
(POLLAK, 1989, p.3). Portanto, mesmo após esses eventos históricos, permanecemos na luta e
continuamos na Caiçara como Caboclos e Agricultores. Essa permanência é resistência como
narra a indígena Xokó, Maria Idalina dos Santos, em entrevista realizada por Angelita Queiroz
(2020), vejamos:
Saímo do cativeiro pra libertação! Não trabalhamo para rico nem pra nada. O
que nós trabalha aqui, o que nós trabalha aqui é nosso. São Pedro deu muita
força a nós também. A força primeira é a Deus, e depois é a da mãe natureza.
A Igreja deu uma força a nós, o sindicato deu a força a nós. E então e o ritual
tem muita, graças a Deus tem muita força. O ritual, o Ouricuri pra nós é
muito forte. [...] Ah tem coisas que eu não posso que deve ser segredo. Só
posso dizer que é bom pra quem comunica lá sabe? Daquela serra pra lá
sabe. De mês em mês a pessoa vai pra lá, se reúne... Tem os que não pode ir,
Ver a tese de Doutorado da professora Valéria Maria Santana Oliveira sobre Memória/ identidade Xokó:
práticas educativas e reinvenção das tradições. A professora, tece explicações sobre o apoio da Igreja católica na
década de 1970 com as minorias. Naquele momento com base na teologia da libertação: OLIVEIRA, Valeria
Maria Santana. Memória/ identidade Xokó: práticas educativas e reinvenção das tradições, 2018. Tese (Doutorado
em Educação). - Programa de Pós-graduação em Educação. Universidade Tiradentes, Aracaju: UNIT, 2018.
377
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mas a maioria vai no ritual. (Maria Idalina dos Santos, 08/09/2019 – Ilha de
São Pedro – Porto da Folha/SE, grifos do original).378
É salutar entender que a retomada pelo território indígena Xokó é ponto de sustentação
e continuação da vida cultural por representação. Na narrativa acima da indígena, o Toré e o
Ouricuri são retomados em consequência da luta pela terra. Além disso, uma narrativa ligada à
nossa ancestralidade, à terra e a Mãe Natureza. Nessa linha de pensamento, é simpático o
pensamento de Pierre Bourdieu (1989, p. 10). Para ele, os “símbolos são os instrumentos por
excelência da integração social enquanto instrumento de conhecimento e de comunicação […]
eles tornam possível o consensus acerca do sentido do mundo social”. Os símbolos nos
permitem interpretar o mundo o qual o social está impelido ou inserido. Nesse sentido, é
considerar essas simbologias como realidade cultural e social da sociedade. Bourdieu, enfatiza
ainda que: “os símbolos são instrumentos de conhecimento e de comunicação, é um poder da
realidade” (1989, p. 9). Portanto, “Os ‘objetos de memória’ são eminentemente bens
simbólicos que contêm a trajetória e a afetividade do grupo. Sejam documentos, fotos, filmes,
móveis, pertences pessoais etc., tudo tem em comum o fato de dar sentido pleno, de 'fazer
viver' em termos profundos o próprio grupo” (GOMES, 1996, p. 7).
Sendo assim, “A cultura não é suplementar ao pensamento humano, mas seu
ingrediente intrínseco” (LEVI, 1992, p. 146). Nesse sentido, o reconhecimento pelo direito ao
território do meu povo Xokó, é um processo de nascimento de nossa nova identidade,
sobretudo porque passamos por mudanças temporalmente. Nessas perspectivas, e do pondo de
vista metodológico, abre novas possibilidades para o “(…) entendimento do passado recente,
pois amplifica vozes que não se fariam ouvir. Além de nos possibilitar o conhecimento de
diferentes 'versões' sobre determinada questão, os depoimentos podem apontar continuidade,
descontinuidade ou mesmo contradições no discurso do depoente” (FREITAS, 2006, p. 49).
Assim, entendemos que a memória histórica está atrelada à diáspora Xokó, a partir da década
de 1970, como dinâmica e transformações ao longo desse processo diaspórico.
Considerações finais:
Entrevista realizada por: QUEIROZ, Angelita. A festa da retomada: uma celebração identitária de ser Xokó na
Ilha de São Pedro – Porto da Folha/SE. 2020. Dissertação (Mestrado Interdisciplinar em Culturas Populares). –
Programa de Pós-graduação Interdisciplinar em Culturas Populares (PPGCULT). Universidade Federal de
Sergipe (UFS). São Cristóvão (SE), op. cit., p. 100.
378
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Não foi nosso objetivo realizar um histórico completo da história e luta de nós Xokó.
Mas, compreender a partir da história e da memória como os atuais Xokó se auto (re) afirmam
em 2021. Neste sentido, traçamos um panorama sucinto dos eventos históricos e a partir das
narrativas orais entendemos que a auto (re) afirmação de ser Xokó se dá, sobretudo, a partir da
luta pela posse das terras e da retomada da identidade através do suporte da memória ancestral.
A ancestralidade Xokó foi reivindicada como (re) afirmação de pertencimento e isso foi
possível pela memória cultural. A festa da retomada que acontece todos os anos em 9 de
setembro, é o ponto de resistência e demostra a reinvenção da identidade enquanto Xokó
contemporânea, ou seja, do presente. Portanto, a luta Xokó e o processo de retomada em 1978
com o cercamento da Ilha/Caiçara, demostra o primeiro momento pela oficialização que só
aconteceu em 1979 com as 22 famílias Xokó, reivindicando o reconhecimento perante o
estado e a identidade indígena. Assim, a diáspora Xokó é resistência e o (re) encontro de ser
Xokó da Ilha de São Pedro/Sergipe, concretiza-se por uma luta conjunta.
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A gente é trabalhador: a (in)existência do ferroviário na Historiografia do Ceará
republicano (1970-1997)
Jaciara Azevedo Rodrigues379
Resumo: O presente trabalho analisa as histórias e memórias dos ferroviários no Ceará,
apontando como os mesmos estão inseridos ou não na historiografia dita oficial, uma vez que
contribuíram eminentemente para o desenvolvimento das cidades. Contudo, torna-se preciso
afirmar que as histórias do cotidiano desses sujeitos estão invisibilizadas, em detrimento de uma
história que destaca grandes figuras ilustres do espaço local. Na maioria das vezes, essas elites
nomeam bairros e ruas da cidade. Para concretização da pesquisa, são utilizadas fontes orais
que serão produzidas pelos próprios sujeitos do estudo. Através do método de história oral,
buscar-se-á acessar as memórias dos ferroviários que prestaram serviço à Rede Ferroviária
Federal (RFFSA). De modo a dizer que esses sujeitos não transmitem apenas informações, mas
sim, adentram aspectos de sua cultura e cotidiano, estando sempre envolvidos em um
imaginário social sobre determinada época. Dessa forma, mais do que nossos informantes,
esses sujeitos são protagonistas do processo transformador da história. Nesse sentido, é
importante dizer que embora essas histórias sejam oriundas de um grupo coletivo, estas, são
subjetivas, tornando possível analisar conflitos e possíveis divergências por trás desses discursos,
problematizando-os.
Palavras-chave: memória; trabalho; ferroviários.
Introdução
O presente trabalho diz respeito a uma pesquisa em andamento que adentra na
história e memória da população que experimentou os efeitos da ferrovia, símbolo de
modernidade no referido espaço delimitado. A problemática que fundamenta essa temática
parte da discussão das memórias dos ferroviários. Um exercício de interpretação que dialoga
com outros tipos de fontes como iconografia e relatórios descritivos da Rede Ferroviária
Federal que fazem referência ao cotidiano do ferroviário.
Graduada em História pela Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA)- E-mail:
jaciara.azevedo2011@hotmail.com Especialista em Historiografia Brasileira pela Faculdade Venda Nova do
Imigrante (FAVENI).
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Os sujeitos da pesquisa são trabalhadores ex-ferroviários que fizeram parte da referida
demarcação temporal indicada no título da pesquisa, ou seja, 1970-1997 faz referência ao
tempo de funcionamento do trem de passageiros quando a RFFSA administrava a ferrovia
cearense. De forma que observando as práticas e representações do cotidiano do “tempo do
trem”, é possível contar muito sobre a história desses sujeitos que não ocupam espaço na
historiografia oficial. Assim, faz-se necessário dizer que a proposta em que se solidifica essa
pesquisa não está pautada apenas no registro dessas histórias, mas em uma investigação para
além dessas falas, problematizando-as de acordo com as devidas divergências que irá haver
entre os entrevistados. Nesse sentido, indo para além de uma mera nostalgia de apitos, mas
adentrar nessas narrativas subjetivas que serão invocadas pelos ferroviários.
Com isso, mais do que nossos informantes, esses sujeitos são protagonistas do processo
transformador da história. Nesse sentido, é importante dizer que embora essas histórias partem
de sujeitos dotados de memórias individuais que nós, históriadores críticos, possamos
problematizar essas falas considerando os seus perfis econômicos, políticos e culturais. Apesar
de compartilhar as vivências dentro de um mesmo espaço, cada sujeito pôde sentir em um
formato diferente, possuindo assim uma relação distinta com o passado.
O trem impulsionou na fundação de alguns munícipes cearenses, possibilitando um
desenvolvimento econômico significativo juntamente a uma vivência de novos ritmos sociais,
atrelados à cultura do trem desenvolvida pela sociedade local. Por exemplo, muitas pessoas
saiam de suas calçadas ou até mesmo iam para a própria estação esperar o trem e assisti-lo
chegar ou partir, trocando relações de sociabilidades e interações que aconteciam. Desse modo,
o trem mexeu com o cotidiano e rotina da cidade e de seus cidadãos, que muitas das vezes,
embora não fossem viajar, tinham em mente os horários fixos que o trem passaria, se
preparando para vislumbrar a grandiosidade dos vagões.
Como ficou perceptível no resumo desse artigo, pensou-se o protagonismo de sujeitos
subalternos esquecidos nos escritos oficias, percebendo que a inserção dos trabalhadores no
campo historiográfico parece ainda algo desafiador para historiadores da atualidade. Sabemos
que é um grande desafio pensar a história local como campo de produção de uma consciência
histórica, pois envolve o reconhecimento do sujeito dentro de um imaginário social, no caso
aqui envolvendo o tempo do trem de passageiros, ou seja, devemos entender o local como
dimensão relacional dos sujeitos e suas ações ao longo do tempo. logo, as cidades ferroviárias
cearenses merecem uma grande atenção na historiografia.
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Portanto, fica notório que as contribuições acadêmicas e científicas poderão dar
notoriedade para pesquisas que envolvem sujeitos. Ademais, a concretização do trabalho
oferece contribuições práticas quando tratamos dos resultados dessa pesquisa que podem ser
executados, pensando de forma analítica baseada no cotdiano. Neste texto, o foco será
demonstrar que é possível falar sobre ferrovia e memória dos trabalhadores no Ceará. De forma
que, analisar uma cidade do interior do Ceará, nos leva a propor inovação historiográfica local,
instigando a produção de uma bibliografia especialista desses espaços. A cidade cearense
ferroviária que se trata essa pesquisa é Reriutaba-CE, localizada na zona Noroeste do Estado do
Ceará.
É notório que a instalação dos trilhos na cidade analisada dá origem ao município,
diminui distâncias e melhora as relações com outras localidades da região, gerando
consequentemente um processo de significativas transformações tanto na paisagem local, cada
vez mais urbana, quanto no perfil da vida cotidiana. Lima e Pereira (2007) contam que ocorreu
de certo modo, uma inovação na área de transportes e que essa medida amenizaria as distâncias
entre o sertão. À medida que os trilhos penetram o interior do Estado, sertanejos são
transformados em operários. E longe de serem sujeitos passivos, são protagonistas de greves,
conflitos, sobretudos sentidos com impacto do regime ditadorial, uma vez que a demarcação
temporal contempla esse período tão turbulento na história do Brasil.
Nesse sentido, para uma análise efetiva das memórias e histórias dos ferroviários, leva-se
em conta os contextos sociais, colocando em pauta os acontecimentos e circunstâncias que
moviam o comportamento desses trabalhadores, nos convidando a pensar a memória não
somente atrelada ao saudosismo que pode conter nas vivências desses sujeitos, mas também na
análise de possíveis conflitos dentro do mundo do trabalho ferroviário, quiçá esses
apontamentos preenchessem as lacunas precisas para (des) construção de boa parte da
historiografia ferroviária cearense.
1 Um olhar histórico para os novos sujeitos/protagonistas
Assim como já ficou notório, a metodologia de História Oral fará parte da pesquisa,
sendo primordial a leitura de uma bibliografia especialista. Alessandro Portelli é uma das
referências mais utilizadas para quem pesquisa se utilizando do método de História Oral. O
autor trabalha de forma teorico-metodológica essa poderosa ferramenta capaz de conectar
experiências. Portelli então nos fala que as fontes orais, ao contrário da maioria dos
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documentos históricos, não são encontradas, mas co-criadas pelo historiador. “Elas não
existiriam sob a forma que existem sem a presença, o estímulo e o papel ativo do historiador na
entrevista feita em campo” (p. 10, 2018).
Além disso, para essas pessoas que não foram escutadas ao longo da história, Portelli
nomeia-os de sem-poder, levantando a premissa que esses sim têm voz, porém não há ninguém
que os escute. Essa voz está incluída em um espaço limitado. O que faz o pesquisador é
recolher esses discursos, amplificá-los e levá-los ao espaço público. A troca de olhares que
acontece durante uma entrevista, costuma dar espaço aos sujeitos que ao longo da história
foram silenciados. Desse modo, Portelli então nos diz que a questão norteadora dessa
discussão não é que esses seres são sem voz, possuem voz sim, se não a tivessem, não teríamos
nada a gravar e consequentemente nada a escutar.
Conforme Thompson (1992) nos diz que a história oral é uma história construída em
torno de pessoas. Ela lança a vida para dentro da própria história e isso alarga seu campo de
ação. Admite heróis vindos não só dentre os líderes, mas dentre a maioria desconhecida do
povo. Estimula e leva a história para dentro da cominidade e extrai a história de dentro da
cominidade.
Pollak (1989) nos diz que essas lembranças que são despertadas por meio da história oral
durante tanto tempo foram confinadas ao silêncio e transmitidas de uma geração a outra
oralmente, e por meio de documentos escritos, permanecem sempre na memória. O longo
silêncio sobre o passado desses grupos minoritários, longe de conduzir ao esquecimento, é a
resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais.
Como já mencionado, a partir da chegada do trem, a cultura e o cotidiano serão
alterados, fazendo com que a sociedade crie um elo social com o trem nesse espaço. Diante
disso é perceptível que a letra do hino municipal da cidade em análise retrata a ligação da
sociedade com o trem, trazendo em uma parte de sua composição a seguinte passagem
“cidade que acorda mais cedo, com o barulho do trem”380 esse simbolismo que consta numa
simples letra do hino, pode ser problematizado e trazido em evidência na (pseudo)
valorização da história ferroviária do espaço local.
Hino municipal que teve como compositor e cantor o conterrâneo Edvar de Castro. A letra do hino está
disponível
na
página
virtual
oficial
da
cidade:
https://www.reriutaba.ce.gov.br/simbolos.php#:~:text=Hino%20de%20Reriutaba&text=%C3%89s%20bela%2C%20
dotada%20de%20prosperidade,%2C%20te%20amo%2C%20oh%20Reriutaba!
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Ou seja, o hino se utiliza da figura do trem como forma de contar um pouco da
história da cidade. Porém, pode-se perceber que o hino é um trecho bem breve, ou seja, há
necessidade de uma visibilidade maior do trabalhador ferroviário. Um grande admirador da
ferrovia cearense também escreve textos sobre a saudade do tempo do trem, dando um
enfoque grande para o trem na sua vida:
Eu fui esse menino ferroviário correndo pelas encostas de meus dias
floridos, atrás de um trem que passou em minha vida e fez comigo uma
amizade sem fim. Passou, mas esqueceu de levar a suplicante voz de seu
apito e deixou a sua imagem nos cafundós de mim mesmo. Por isso, eu vivo
sempre voando nas asas de suas lembranças. (XIMENES, 1984, p. 13)
Como dito anteriormente, a análise desse perfil saudosista por parte dessas pessoas, só é
possível através dos registros orais, os quais ao longo dos relatos, pode-se vislumbrar diversos
fios tecidos de narrativas que são analíticos de contextualização, redesenhando o cenário desse
tempo da ferrovia tanto por parte dos ferroviários, como também dos demais passageiros
inseridos nos longos passeios de trens. Seu Hamilton, engenheiro aposentado e um dos chefes
do Museu Ferroviário Cearense, conta-nos a sua ligação desde criança com a ferrovia:
Eu fui “ferroviário” desde os 4 anos, por conta do meu pai, eu descobri
muitos territórios do ceará. O cargo dele permitia viajar de estação para
estação, então eu me envolvi na ferrovia não depois de jovem, e sim, comecei
acompanhando meu pai. Sempre gostei do trem. Eu, como ainda era menino,
gostava de brincar naquelas grandes máquinas, eram viagens longas...mas
gostava de ver as paisagens tudo bonitas, rios, florestas, pontes e as estações
que o trem passava, então, eu gravava tudo na memória. Eu tive essa vivência
todinha de andar de trem com meu pai, ele me explicava tudinho...assim,
todas as estações eu conhecia na palma da mão.381
Todo esse cenário confere as possibilidades de enunciação por parte de grupos
subalternos, visto que ter o espaço de fala significa proporcionar a tal pessoa o
Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2019, à pesquisadora Jaciara Azevedo Rodrigues, pelo senhor
Hamilton Pereira José, 79 anos de idade. Engenheiro da antiga RFFSA aposentado. Morador do centro de
Fortaleza-CE,
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reconhecimento do seu discurso. Deve-se pensar que os trabalhadores não devem ser postos
em animosidade, por isso colher seus relatos se faz essencial. Porém a pesquisa como ainda
está em andamento, pretende-se ainda comparar e colocar em evidência essas narrativas
trazidas pelos sujeitos ferroviários.
Atualmente estamos vivendo um período muito atípico na nossa sociedade, e que
preservar a vida continua sendo prioridade. Há algumas semanas atrás recebo a notícia do
falecimento de um dos ferroviários que muito iria contribuir para a pesquisa, vítima de
COVID-19, e como estamos falando de humanos, é válido dizer que junto com esse exferroviário, Sr. Olímpio, foi junto uma parte da história da ferrovia cearense. Tomando isso
como base, ressaltamos a necessidade urgente do compromisso social de colocar em evidência
as histórias dos ferroviários que por décadas estavam envolvidos no desenvolvimento das
cidades.
2 PARTIU QUEM TANTO PARTIA
Conforme Certeau (2008) sobre o conceito de lugar e espaço, o autor considera que
um lugar acaba incorporando um espaço, desde que seja repleto de vivências e experiências
históricas, e todo esse modo de viver trará memórias. Tendo em vista essas concepções, um
espaço pode constituir-se lugar de memória, conceito trazido por Nora (1993), a partir do
momento que recebe (res) significações por parte dos habitantes que passarão a interagir nesses
locais. Sendo assim, o referido autor introduziu o termo lugar de memória, fazendo ligações
diretas aos espaços repletos de práticas, levando em consideração as cidades como espaços
praticados, sobretudo, lugares de cultura.
Assim, de acordo com obras bibliográficas que contam a história das estações
ferroviárias, pode-se considerar cada estação cearense como um lugar de memória, onde
estão guardadas tanto as vivências dos trabalhadores quanto das pessoas que viajaram por
muitas décadas de trem, assim, fica notório que esses espaços estão revestidos de aura
simbólica, e é isso que torna esses espaços repletos de memórias. Pode-se pensar de modo
que Nora (1993) fala que a memória está imbricada no espaço, tornando-se lugar de
mediação crítica.
Segundo Candau (2012, p. 118) “transmitir uma memória e fazer viver, assim, uma
identidade não consiste, portanto, em apenas legar algo, e sim uma maneira de estar no
mundo.” Esses espaços eram a forma na qual esses indivíduos tinham de perceberem com
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
mais afinco a si e o outro. Podia-se considerar os locais das estações como os espaços mais
democráticos das cidades, uma vez que passavam por ali inúmeras pessoas pertencentes a
diferentes classes sociais.
Candau (2012) aponta que a necessidade de recordar é imperiosa, mesmo que apenas
para que não nos tornemos seres “pobres e vazios”. Dessa forma, a cidade moderna é
vislumbrada como espaço de formação de novas identidades sociais, em que as atividades
urbanas se desenvolviam efetivamente, passando a ser pensada como sinônimo de progresso,
lugar onde seus sujeitos eram capazes de construir suas próprias histórias.
Esse (re) conhecimento da identidade ferroviária na cidade em análise, contribuirá para
a historiografia local que passará a ser vista a serviço dos próximos trabalhos que poderão, por
sua vez compor a história da cidade. As relações de sociabilidades se alteram e assim é visível a
importância do registro dessas histórias dos sujeitos envolvidos no tempo do trem de
passageiros.
Conhecer os principais elementos que envolvem o estudo da história cotidiana de
trabalhadores da extinta RFFSA que atuaram no Ceará se faz primordial, uma vez que como
Matos (2002) reflete que essa visão de novas perspectivas para a história ampliou o leque de
estudos interdisciplinares. Os estudos que abordam o cotidiano têm se mostrado um campo
multidisciplinar, com uma pluralidade de influências, na tentativa de reconstruir experiências
outrora vistas por baixo, logo pode-se constatar a inserção dos trabalhadores ferroviários na
história.
Sabemos que a ferrovia foi desativada em décadas do período republicano. A partir de
1930, as estradas de ferro começam sofrer concorrência no Brasil. O governo de Washington
Luís, ao final da Primeira República Brasileira, adotou como lema: “Governar é abrir estradas”.
Isso significa dizer que outros meios de transportes iam aos poucos sendo implantados no
Brasil, não como complementos das ferrovias, mas como concorrentes. Vale ressaltar que a
extinção da rede ferroviária de passageiros foi se dando de forma lenta e gradual em um
determinado período de tempo, quando em 1956, no governo de Juscelino Kubitschek se teve
essa desarticulação de forma mais proeminente, uma vez que a maior proposta do governo de
JK, centrava-se numa prometida modernização em detrimento da produção da indústria
automobilística.
Essa crise crescente em meio a mudanças culminou na falta de investimentos da
indústria ferroviária até não haver mais o crescimento da ferrovia, e quando o Ceará começou
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
sentir esse impacto, alguns ramais cearenses foram desativados por conta de serem
considerados antieconômicos para a época. Infelizmente, o Brasil perdeu muito com a
marginalização da ferrovia, enquanto países que sempre apostaram nos trilhos, estão bem a
frente do desenvolvimento e progresso econômico.
Com o desenvolvimento dessa política danosa, foi posto à tona a extinção do trem de
passageiros, e o que se pode dizer é que ficou a saudade do “tempo do trem”, fazendo-se
imperioso problematizar as narrativas dos ferroviários que por décadas prestaram serviço ao
desenvolvimento da cidade. É previsivel encontrar ao longo da pesquisa algumas partes na fala
dos ferroviários que veredam para além da nostalgia, ou seja, a produção de discurso de
angústias, desencantos e outras tensões que poderão estar fundamentando suas experiências na
relação com o trem e cidade.
Considerações finais
A historiografia sobre ferrovias no Ceará, está repleta de enfoques, sejam ligados à
matriz econômica, educação patrimonial, ou até mesmo estudos de caso. Contudo, uma
pesquisa com ênfase na memória está por ser produzida, perpassando, por sua vez, por seres
humanos, pelos trabalhadores da ferrovia, do que foi desenvolvido em torno dela e,
principalmente, das relações sociais advindas da ferrovia que penetrou nos sertões como
espetáculo, inovação tecnológica, símbolo da modernidade e campo de trabalho. Sendo assim,
a pesquisa adentra na história e memória da população que experimentou os efeitos desse
símbolo de modernidade no referido espaço delimitado.
Ainda no que se discute, através das memórias desses sujeitos poderá ser possível
acessar um pouco desse passado, que por vezes poderá ser saudosista e repleto de
simbolizações históricas, fazendo referência às práticas sociais experimentadas pelos sujeitos
históricos. É notório que a memória se constitui através de um caráter social, assim, se precisa
ainda lutar muito por seu espaço na história, sobretudo, quando se trata das cidades do
interior do Ceará.
Fonte oral
Entrevista concedida no dia 28 de outubro de 2019, à pesquisadora Jaciara Azevedo Rodrigues,
pelo senhor Hamilton Pereira José, 79 anos de idade. Engenheiro da antiga RFFSA,
aposentado, morador do centro de Fortaleza-CE.
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Bibliografia
BRANCATELLI, Maria Odete. LOPES. Helena (org.) A riqueza nos trilhos: A História das
Ferrovias no Brasil. Editora Moderna, 1998.
CANDAU, Jöel. Memória e identidade. Trad. Maria Letícia Ferreira. 1.ed. São Paulo,
Contexto, 2012.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 2008.
LIMA, Francisco de Assis de; PEREIRA, José Hamilton. Estrada de ferro no Ceará.
Fortaleza: expressão Gráfica e editora Ltda., 2007.
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e Cultura: história, cidade e trabalho. Bauru, São
Paulo; EDUSC, 2002.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História, São Paulo, n° 10, p. 07-28, 1993.
POLLAK, Michael. Memória, esquecimento, silêncio. Disponível in: Estudos Históricos, Rio
de Janeiro, vol.2, n. 3, 1989, p. 3-15.
PORTELLI, Alessandro. História Oral como arte da escuta, São Paulo: Letra e Voz, 2016.
THOMPSON, Paul. A voz do Passado: História Oral. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1992.
XIMENES, Luís. Paixão Ferroviária. Fortaleza, Ed. Tribuna do Ceará,1984.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Fernando Collor de Mello através das charges do Jornal de Alagoas
(1989 – 1992)
José Cláudio Lopes dos Santos Junior382
Resumo
O presente trabalho pretende ser uma contribuição para a história política do tempo presente,
tendo como objetivo central investigar como Fernando Collor de Mello - entre seu último ano
de mandato como governador de Alagoas, em 1989, e a abertura do processo de impeachment
já como presidente da República, em 1992 - foi retratado nas charges do Jornal de Alagoas. A
problemática é compreender como as charges veiculadas no periódico atuaram no
desenvolvimento das narrativas jornalísticas, seja apresentando os governos de Fernando Collor
e sua figura política como vitoriosa, seja construindo um personagem moderado e de forte
influência no cenário estadual e nacional. Os principais autores que norteiam a análise proposta
são René Rémond, Raoul Girardet, Peter Burke e Rodrigo Patto Sá Motta.
Palavras-chave: Fernando Collor, Jornal, Charge.
Considerações Iniciais
O presente texto pretende fazer o diálogo das charges do Jornal de Alagoas durante o
período de 1989 a 1992 em referência à figura de Fernando Collor de Mello com algumas
referências bibliográficas. Esse recorte específico das charges faz menção à minha pesquisa de
mestrado que tem o tema Nas tramas da sucessão: Fernando Collor de Mello e a
Redemocratização do Brasil nas páginas do Jornal de Alagoas e da Gazeta de Alagoas (1989 –
1992).
O projeto possui como escopo o estudo do desempenho de Fernando Collor de Mello
entre seu último ano de mandato como governador de Alagoas, em 1989, e a abertura do
processo de impeachment, em 1992, por meio da análise do Jornal de Alagoas e da Gazeta de
Alagoas. Pretende-se, a partir da produção impressa, ressaltar como seu processo de campanha
e seu período de governo foi arregimentado em confluência com o marketing político da época
e direcionado à construção de discurso que primava pela estética pessoal. A problemática é
Graduado em licenciatura em história, especialista em ensino de história pela UFAL, mestrando em História
Social pela UFAL – PPGH e professor de História da rede privada de Alagoas.
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compreender como os textos jornalísticos veiculados nos periódicos atuaram no
desenvolvimento de distintas narrativas históricas, seja enquadrando os governos de Fernando
Collor e sua figura política como vitoriosa, ou enquanto personagem moderado e de forte
influência no cenário estadual.
Nesse processo de analisar as fontes, percebi o quanto as charges e ilustrações dos
jornais possuem uma riqueza fora do comum para análise das narrativas do período. Esse artigo
terá como análise as charges e ilustrações do Jornal de Alagoas.
O Jornal de Alagoas e a pesquisa em periódicos
O Jornal de Alagoas foi fundado em 1908 pelo jornalista Luiz Silvestre, e depois de
alguns anos, o grupo Diário dos Associados passou a administrar o jornal.383 Esse meio de
comunicação era o mais antigo em circulação em alagoas durante o recorte cronológico dessa
pesquisa. Em seus quase 90 anos de circulação, passou por vários problemas administrativos,
tendo em consequência alguns períodos sem circulação, e pouca venda de exemplares. Foi o
único veículo de informação de massa impresso em Alagoas que informou acerca de todas as
constituições brasileiras após o advento da República, a exceção da promulgada em 1891. Na
década de 1980, precisamente 1988, lançou um livro comemorativo aos seus 80 anos contendo
depoimentos de funcionários, ex-funcionários e pesquisadores.384
A historiadora Tania Regina de Luca no texto História dos, nos e por meio dos
periódicos, que está no livro Fontes Históricas (2008) explana que o historiador possui
ferramentas para análise do discurso na problematização da narração e do acontecimento na
imprensa. A historiadora afirma que o pesquisador dos jornais trabalha com o que é publicado,
que se torna notícia. Com a publicação, ocorre a questão de entender as motivações que
levaram à decisão de publicar. É observado que os jornais não são obras solitárias, mas
empreendimentos que reúnem várias pessoas, gerando projetos coletivos através de ideias e
crenças que serão expostas na palavra escrita. Por isso é importante analisar e identificar o
grupo responsável pela linha editorial, pesquisar sobre os funcionários mais antigos, examinar
os títulos das matérias, e os textos de cada publicação.385
A trajetória dos Diários Associados começou em 1924 quando o jornalista Assis Chateaubriand adquiriu O
Jornal, periódico que circulava no Rio de Janeiro desde 1919. Chateaubriand adquiriu outras empresas de mídia
impressa, rádio e televisão e o grupo se tornou um dos mais importantes do Brasil.
ALAGOAS, Jornal de. Jornal de Alagoas 80 anos. Maceió, Editora Escopo, 1988. p. 9-40
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PÍNSKY, Carla Bassanez
(Org).Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008. p. 111-153.
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A historiadora expõe no texto sugestões práticas para o trabalho com a fonte imprensa.
É enfatizado que são várias possibilidades de pesquisas no campo, e que não é viável sugerir
um procedimento metodológico, ou técnicas de pesquisa para dar conta de tantas viabilidades.
Nas sugestões constitui que o primeiro passo da análise é localizar a fonte em alguma instituição
de pesquisa, e ter a ciência de que nem sempre os exemplares dos jornais estão organizados à
espera do pesquisador, e ainda existe a possibilidade de encontrar exemplares em péssimo
estado de conservação. Por fim, a historiadora divulga uma listagem de procedimentos para o
primeiro passo em uma pesquisa, mas ressalta que não existe uma receita pronta para aplicar,
pois o pesquisador irá perceber ao folhear a fonte, e aventurar na pesquisa. A historiadora
explana
A seguir, no box, uma listagem de procedimentos que vale como inspiração
para que se dê o primeiro passo. Nunca é demais lembrar que não há uma
receita pronta a ser aplicada e que os esquemas, por mais abrangentes que
sejam, têm utilidade muito limitada, como você vai perceber assim que
folhear sua fonte. A partir deste ponto a aventura é sua. Encontrar as fontes e
constituir uma longa e representativa série; localizar a(s) publicação(ções) na
história da imprensa; atentar para as características de ordem material
(periodicidade, impressão; papel, uso/ausência de iconografia e de
publicidade); assenhorar-se da forma de organização interna do conteúdo;
caracterizar o material iconográfico presente, atentando para as opções
estéticas e funções cumpridas por ele na publicação; caracterizar o grupo
responsável pela publicação; identificar os principais colaboradores; identificar
o público a que se destinava; identificar as fontes de receita; analisar todo o
material de acordo com a problemática escolhida.386
As historiadoras Heloisa de Faria Cruz e Maria do Rosário da Cunha Peixoto escrevem
no artigo Na Oficina do Historiador: Conversas Sobre História e Imprensa (2007), sobre a
importância da imprensa para as pesquisas não só na história, como também em diversas áreas
de conhecimentos, e destacam a diversidade de caminhos sobre as fontes que os estudos
LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PÍNSKY, Carla Bassanez (Org).
Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, cap. 11, p. 142.
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históricos passam a incorporar de forma crescente à imprensa como documento de pesquisa e
material didático para o ensino. As historiadoras destacam
Nesse período, a imprensa periódica, seja nas suas variedades históricas e de
veículos, grandes jornais diários, jornais regionais e locais, revistas nacionais,
revistas de variedades, culturais, especializadas ou militantes, gibis, jornais
alternativos ou de humor; seja em suas diferentes partes e seções, como
editoriais, noticiário corrente, carta de leitores, seção comercial, artigos
assinados; ou ainda, nos diversos gêneros e linguagens que se articulam nos
veículos, como artigo de fundo ou editorial, a notícia e a reportagem, as
crônicas, críticas e ensaios, as cartas e pequenos comentários, a fotografia, o
desenho e a charge, o classificado e o anúncio comercial – tem sido
amplamente utilizada na pesquisa acadêmica e no ensino de história.387
Seguindo essa gama de variedades que o jornal oferece para a pesquisa, esse artigo
busca dialogar sobre as charges e ilustrações, as quais existem motivações e contextos políticos
para suas produções. Peter Burker no seu livro Testemunha ocular: O uso de imagens como
evidência histórica (2017), atribui à leitura das imagens como fontes históricas a mesma
importância de como pesquisamos outros documentos. O autor menciona que as imagens
oferecem virtualmente a única evidência de práticas sociais, e afirma que historiadores de
atitudes políticas e opinião pública já estão utilizando há tempos evidências das imagens.
Burker faz um diálogo sobre a iconografia e a iconologia, lembrando que a iconografia é uma
forma de linguagem visual que usa imagens para representar algum tema. Conforme destacado
pelo autor
Nos últimos tempos, os historiadores têm ampliado consideravelmente seus
interesses para incluir não apenas eventos políticos, tendências econômicas e
estruturas sociais, mas também a história das mentalidades, a história da vida
cotidiana, a história da cultura material, a história do corpo etc. Não teria sido
possível desenvolver pesquisa nesses campos relativamente novos se eles
CRUZ, Heloisa de Faria; PEIXOTO, Maria do Rosário da Cunha. Na oficina do historiador: Conversas sobre
história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007.
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tivessem se limitado a fontes tradicionais, tais como documentos oficiais
produzidos pelas administrações e preservados em seus arquivos.388
A iconografia estuda a origem das imagens, e como elas são expostas e formadas. Mas
aprofundando sobre esse conceito vale a busca do entendimento através dos Dicionários de
conceitos históricos (2009), escrito pela historiadora Kalina Vanderlei e pelo historiador Maciel
Henrique, que em suas definições sobre a iconografia a descrevem como qualquer imagem
registrada, e suas representações, e o conceito inclui desde desenhos, pinturas, fotografias,
propagandas, e nesse sentido vale incluir charges e ilustrações. Os autores fazem o diálogo com
Carlo Ginzburg onde o historiador italiano descreve uma diferença entre iconografia e
iconologia sendo a primeira o conjunto de aspectos formais e estéticos de uma obra de arte, e a
iconologia a série de significados sociais e mentais apresentados por toda obra. Kalina e Maciel
expõem o significado historiográfico sobre esse conceito, explanando que o mesmo abarca
todos os aspectos envolvidos não apenas em obras de artes, mas em qualquer imagem.389
O imaginário por trás de cada imagem é de fundamental importância para a leitura e
interpretações, pois são representações de ideias, sonhos, motivações, medos de uma época.
Logo surge a fonte histórica para a pesquisa. Quais motivações e crenças dos ilustradores para
as elaborações das charges no Jornal de Alagoas?
Considero a charge uma fabricação, a construção de uma ideia com técnicas e
motivações. O que fabrica a charge? Nesse sentido menciono os questionamentos de Michel de
Certeau no livro A escrita da História (1982) “O que fabrica o historiador quando "faz história"?
Para quem trabalha? Que produz?”390 Através das leituras analiso que a historiografia também
dá sentidos às imagens, e com os sentidos a análise cotidiana das páginas dos jornais passou a
evoluir.
As charges seguem uma ideologia? Para essa resposta vamos dialogar com o texto de
Terry Eagleton em Ideologia (1997), o qual no capítulo 1 já menciona que não existe uma
definição exata para tal conceito, e sim um texto em forma de tecido com uma trama inteira de
diferentes fios conceituais; é traçado por divergentes histórias, ainda menciono que seja um
tecelão do tempo. Eagleton faz uma listagem de possíveis significados do termo ideologia, dos
BURKER, Peter. Testemunha ocular: O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Editora Unesp
Digital, 2017. p. 11.
SILVA, Kalina Vanderlei; SILVA, Maciel Henrique. Dicionário de conceitos históricos. São Paulo: Contexto,
2009. p. 198
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982. p. 55.
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citados eu menciono aqui “ideias que ajudam a legitimar um poder político dominante”, e
“comunicação sistematicamente distorcida”, ambos segmentos se encaixam no universo das
charges do Jornal de Alagoas, pois no periódico existia a escolha por parte da direção de qual
tema o chargista deveria abordar na ilustração, ou a ordem de não mencionar alguma figura
política local. Seguindo as ideias do historiador Terry Eagleton, que ensina que a ideologia se
encontra naturalmente em outra pessoa, acredito que o chargista colocava diariamente sua
ideologia nas páginas do jornal.391
O cientista político Carlos Melo, autor do livro Collor - O ator e Suas Circunstâncias
(2007), classifica Fernando Collor como um fenômeno político. Melo explica que a ascensão
do ex-governador de Alagoas à presidência foi essencialmente um fenômeno de mídia e de
medo. Essa concepção de Collor como fenômeno não fica apenas reservada para o autor,
outras obras e artigos também destacam esse conceito. A revista Veja foi a fonte de pesquisa
para elaboração da obra, e o autor enfatiza que a revista tinha uma posição de ceticismo com a
candidatura do governador de Alagoas. A cada semana a publicação o tratava com maior
atenção e prestígio, enquanto tratava outras candidaturas com desacertos reveses.392 Trazendo
essa análise para o Jornal de Alagoas, e para as charges, de que forma os chargistas
desenhavam/divulgavam a imagem de Fernando Collor e do seu contexto político através das
imagens nos anos de 1989-1992?
O personagem Fernando Collor de Mello e as charges
Na intencionalidade de classificar Fernando Collor como fenômeno político é
importante o estudo sobre a questão do Mito. A obra do historiador Raoul Girardet Mitos e
mitologias políticas (1987) é de grande importância para analisar a figura de Fernando Collor
como Mito político. Girardet analisa que em momentos de crises políticas, econômicas e
sociais as pessoas ficam mais suscetíveis à efervescência mitológica, e surge o apelo ao grande
líder salvador. O mito do herói encarnado nos políticos, os quais afirmam que irão combater o
mal e salvar o povo. O autor enfatiza que a sociedade acorda seus mitos, e elegem
personalidades capazes de encarnar os sonhos coletivos. A obra menciona que o mito tem
audácia e ímpeto, e busca a glória, acumulando uma série de histórias e promessas fabulosas.
Girardet destaca que o processo de heroísmo depende da relação da personalidade do
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Editora Boitempo, 1997. p. 15-25
MELO, Carlos Alberto Furtado de. Collor: O ator e suas circunstâncias. São Paulo: Editora Novo Conceito,
2007. p. 5-19
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salvador. Mesmo com tantas propagandas, acesso à mídia, não é fácil criar um herói. O
candidato deve possuir um conjunto de elementos que corresponde à sociedade naquele
momento.393 As charges favoráveis a Fernando Collor ajudam na construção desse Mito.
As charges no Jornal de Alagoas atravessaram tempos e momentos. Em entrevista com
um dos chargistas do periódico, Léo Villanova394, busquei entender melhor sua rotina diária na
redação do veículo de comunicação, e como se perdurava a formação das charges e ilustrações
de cada dia. Villanova mencionou que durante o tempo em que trabalhou no Jornal, seu
trabalho foi fiscalizado e muitas vezes silenciado. Durante o ano de 1989 as charges sobre as
eleições presidenciais daquele ano sofreram silenciamentos quando carregava críticas contra o
presidenciável Fernando Collor. O silenciamento ocorre na substituição do ilustrador, ou na
repetição de alguma charge que não direcione algum grupo político.
O Jornal de Alagoas também publicou desenhos a favor de Collor. Além do chargista
Léo Villanova, o periódico tinha no corpo de funcionários o chargista Fred Ozanan395, que não
atuava presencialmente na redação do jornal, pois residia na Paraíba, de modo que as charges
eram enviadas via TeleFax. Percebo que nas ausências das charges de Léo Villanova, que
sabemos agora terem sido causadas por ordens da direção, Fred entrava em ação com suas
charges, que às vezes silenciavam temas relevantes do momento, ou como aconteceu nos
primeiros meses de 1990, quando publicou charges a favor de Fernando Collor, umas delas
tinha a frase: “Bonita camisa Fernandinho!!”, em referência às atitudes de Collor ao fazer
aparições vestindo camisetas estampadas com frases.
GIRARDET, Raul. Mitos e Mitologias Políticas. São Paulo: Companhia da Letras, 1987. p. 9-24.
Léo Villanova trabalhou como chargista no Jornal de Alagoas durante os anos de 1982 a 1994, além de ser
arquiteto, fotógrafo e publicitário. Foi chargista colaborador de vários jornais e revistas alagoanas e nacionais, entre
eles as publicações Bundas e Pasquim 21.
393
394
Frederico Ozanan Pinto Gomes Pereira, mais conhecido como Fred Ozanan (Residente em Campina Grande PB), é cartunista, jornalista, designer gráfico brasileiro. Começou no jornal Gazeta do Sertão e trabalhou no Diário
da Borborema, Jornal de Alagoas, O Norte, Correio da PB e diversos jornais, incluindo o Pasquim. Também
atuou como chargista do Portal UOL e publica charges políticas nos sites Charge on Line, Brazil Cartoon e
PBONLINE.
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Figura 1- Charge no Jornal de Alagoas
Fred Ozanan, 1990 – Acervo do Arquivo público de Alagoas
Villanova revelou que não tinha interesse em fazer charges e ilustrações em benefício de
Collor, e não aceitava as ordens que eram colocadas. Um exemplo foi a charge que
mencionava o último debate na Tv antes das eleições de 1989. No desenho a imagem de Lula e
da estrela do PT estão em ênfase, não mostrando imagens do outro candidato. Villanova
deixou bem claro que não queria fazer material de teor positivo sobre Collor, pois seu
posicionamento sempre foi contra a figura do candidato. As intervenções por parte da direção
do periódico não ficavam apenas nas matérias e sim também nas charges.
Figura 2 – Charge no Jornal de Alagoas
Léo Villanova, 1989 - Acervo do Arquivo público de Alagoas.
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O cientista político Francisco Wefort destaca a importância da imprensa na política
afirmando que “jornais não são partidos, mas como se parecem às vezes!” 396 Analisar charges é
um exercício minucioso, pois mesmo quando existiam críticas contra Fernando Collor em
criações de Fred, é perceptível que elas não se comparavam às críticas produzidas através dos
traços de Villanova. É notável que quando o Jornal de Alagoas passa a criticar Collor
sequencialmente, as charges ficam “livres” para aparecer na página “opinião” sem intervenções
prévias. Com isso, pude comparar as críticas sobre Collor em trabalhos dos dois ilustradores, e
fica visível que as charges de Léo Villanova apresentam um teor “pesado”, e explícito. No ano
de 1992, durante os meses do processo de Impeachment contra Fernando Collor, Villanova
manteve sequência diária de charges criticando o presidente, e Fred também manteve a mesma
linha, mas de maneira “leve”. Percebo então que o Jornal de Alagoas estava pró Impeachment.
Gostaria de fazer um diálogo sobre o tempo através do texto Teoria e História (2012)
de José Carlos Reis,397 minha justificava para essa abordagem é a provocação do silenciamento
que acontece nos periódicos, e especialmente do Jornal de Alagoas através das charges. Reis,
em seus questionamentos sobre o tempo, pergunta “Como se define o presente?”, e a coloco
dentro de minha pesquisa, pois trabalho com o tempo presente, e esses estudos sempre causam
provocações. Muitos historiadores tem optado por definições complexas sobre o tempo
presente, o historiador alemão Reinhart Koselleck que se sobressai. Para ele o conceito de
tempo presente ao longo da história vai sendo experimentado, definido e redefinido
continuamente.398 Koselleck ainda coloca em pauta a indagação “Por que agora esta história do
tempo presente e não aquela ou já não aquela?”399
Voltando aos diálogos sobre o tempo, Reis continua suas indagações, e faz o
questionamento “E o passado e o futuro, como podem ser definidos?”. Converto essa dúvida
para as charges e suas interpretações, pois a ilustração do presente é decorrente de um passado,
e quando se enquadra na política isso fica bem explicito. Por exemplo, o Jornal de Alagoas em
vários meses dos anos 1989 - 1992 não emitia críticas em suas páginas sobre a figura de
Fernando Collor, as vezes apareciam elogios, propagandas do governo, mas em outros meses
WEFFORT, Francisco. Jornais são partidos? Lua Nova. Cultura e Política, v. 1, n. 2, p. 37-40, jul./set. 1984.
REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. p. 23-25.
GUIMARÃES NETO, Regina Beatriz. História e escrita do tempo: Questões e problemas para a pesquisa
histórica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves. História do Tempo
Presente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014. cap. 1, p. 35-40.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos Sobre História. Rio de Janeiro: Editora PUC, 2014. p.
115-117
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divulgava opiniões negativas sobre o candidato de Alagoas para presidente do Brasil. Durante
as leituras dos jornais, percebi as repetições de charges sobre o mesmo tema, e questionei Léo
Villanova quais os motivos para isso, e sua resposta foi incisiva, de que isso era decorrente de
censura/silenciamento da direção sobre as charges polêmicas que eram criadas.
A prática de repetição das charges remete à relação do tempo que José Reis explana. O
historiador faz uma análise afirmando que o tempo predomina a regularidade, o retorno, a
repetição, uma ordem estável. Essa concepção é associada às motivações que existem por trás
de cada editorial ou charge dos jornais. Ao analisar uma charge a relação com o tempo ganha
mais nitidez, através das motivações do passado e do presente. Quando associo a fala do
chargista Léo Villanova, charges e o editorial daquela edição do jornal, o círculo do passado e
presente se expressa para aprofundar a pesquisa e entender o que acontece por trás da
empresa/jornal. Sobre passado e presente Reis diz
O passado é o conhecimento de si do presente, de sua trajetória, que tem a
forma da recapitulação, da retrospecção, da anamnese. Contudo, a memória
presente pode recuperar fielmente o passado? Como “conhecimento”, o
passado pode ser considerado também um não ser: ilusão, ficção,
impossibilidade de reconstituição da experiência vivida. Mas, a memóriapresente produz uma “ilusão intelectual”, pois o real acontecido disciplina a
fantasia. A representação do passado liga-se a uma situação presente e é nessa
situação que ela ilumina a ação.400
Voltando a falar sobre as charges, é necessário entender mais sobre suas técnicas, pois
para cada traço de ilustração existe o tempo, a ideologia e as múltiplas técnicas recheadas de
críticas e humor. Com essa finalidade de entender as técnicas, a obra do historiador Rodrigo
Patto Sá Motta, Jango e o golpe de 1964 na caricatura (2006) foi de fundamental importância
para os estudos. O autor busca entender como a grande imprensa utiliza das caricaturas para
divulgar suas opiniões, e vale ressaltar que no Jornal de Alagoas as charges chegam até o leitor
dentro do caderno “opinião”, contido na mesma página em que se encontra o editorial do
REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico ocidental e pensamento
brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012, p. 27
400
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periódico. Durante a pesquisa percebo a relevância da página, pois é nessa leitura que a direção
do jornal divulgava sua visão sobre os assuntos mais relevantes.
Na rotina em analisar uma charge, não importa se os desenhos estão bem criativos,
belos, engraçados ou bem executados, o importante é a mensagem que está sendo carregada
nos traços, e quais os discursos políticos. Mas, Motta enfatiza que se as imagens nos
proporcionarem risadas, não tem problema. O historiador faz uma análise de como a
caricatura/charge chega até os jornais, e vale enfatizar que os desenhos eram gravados e
impressos para serem vendidos ao público de maneira isolada. No século XIX devido à grande
demanda, as imagens de sátiras e caricaturas começam a aparecer nos periódicos. Por que as
charges e caricaturas se adaptaram facilmente aos jornais? Talvez pela crônica política, o
desenho atua de maneira diária nos acontecimentos sobre o tema, auxiliando o periódico na
comunicação com o público, e mostrando a posição política do jornal. A charge tem o método
de emitir opinião de quem divulga. O historiador explana que
Interpretar caricaturas pode ser tarefa mais simples que decifrar pinturas
renascentistas, embora não necessariamente menos polêmica. Para desvendar
o sentido dos desenhos cômicos não é preciso atingir níveis elevados de
abstração, tampouco se demandam grandes especulação ou intuição. Afinal,
os caricaturistas desejam ser compreendidos pelo púbico comum, o que não
ocorre com todos os artistas plásticos. Muitas vezes a caricatura usa artifícios
metafóricos, mas quase sempre se trata de figura de linguagem simples, ao
alcance da compreensão popular.401
Consideração Finais
Podemos dizer que ao longo do tempo evoluiu a maneira de como as ilustrações
chegam até o público. Durante o recorte temporal da minha pesquisa, é visivel o quanto o
tempo se torna importante para as mudanças de opiniões do Jornal de Alagoas, tanto nos
editoriais, quanto nas matérias, e nas charges. Faço o exercício de analisar as charges dos
jornais, os editoriais e as matérias, e percebo a mensagem que o veículo de comunicação
transmite, fazer isso é um exercício diário. É válido ressaltar que até quando a charge é
MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge Zahad Editor, 2006.
p. 30.
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repetida, ou quando o desenho não faz relação com os acontecimentos do momento, existe
alguma mensagem sendo divulgada. O silenciamento faz parte do processo.
Antes de buscar analisar a figura de Fernando Collor através das charges, logicamente
estou em análise das manchetes e matérias do Jornal de Alagoas. Existe a percepção que
estudar a trajetória política, ou até mesmo apenas no recorte de 1989 – 1992 em todos os
aspectos é impraticável para apenas um artigo ou uma pesquisa, devido à riqueza o objeto. Nos
trabalhos sobre a temática (livros, artigos, dissertações e teses) muitas questões são ressaltadas,
mas também é notório o que ficou de fora. É preciso fazer escolhas, por isso o foco angular
desse artigo é o estudo do objeto em Alagoas através das charges dos periódicos do Jornal de
Alagoas (1989-1992).
Durante o processo de pesquisa fiz o questionamento: Por que um objeto de riso causa
desconforto? Essa pergunta surge devido ao silenciamento de temas importantes nas charges do
Jornal de Alagoas. Durante o processo de Impeachment, o Brasil “fervendo” com os
acontecimentos, e o Jornal de Alagoas silenciava charges colocando outros temas, até que
depois mudou de posição e seguiu com críticas ao então presidente Collor. Por que o Jornal de
Alagoas mudou de posicionamento? As pesquisas sobre o conteúdo do jornal que inclui
manchetes, matérias e charges/caricaturas/ilustrações seguem, pois, a busca por análises das
imagens vai além da charge, estão nos textos também.
Referências bibliográficas:
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Editora Unesp Digital, 2017.
CERTEAU, Michel de. A Escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982.
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Conversas sobre história e imprensa. Projeto História, São Paulo, n.35, p. 253-270, dez. 2007.
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para a pesquisa histórica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; DELGADO, Lucilia de
Almeida Neves. História do Tempo Presente. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2014.
KOSELLECK, Reinhart. Estratos do Tempo: Estudos sobre História. Rio de Janeiro: Editora
PUC, 2014.
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MELO, Carlos Alberto Furtado de. Collor: O ator e suas circunstâncias. São Paulo: Editora
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MOTTA, Rodrigo Patto Sá. Jango e o Golpe de 1964 na caricatura. Rio de Janeiro: Jorge
Zahad Editor, 2006.
REIS, José Carlos. Teoria e história: Tempo histórico, história do pensamento histórico
ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012.
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Paulo: Contexto, 2009.
WEFFORT, Francisco. Jornais são partidos? Lua Nova. Cultura e Política, v. 1, n. 2, p. 37-40,
jul./set. 1984.
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A banda de música da polícia militar de Alagoas como meio de ascensão social para o
músico: trajetória do capitão Jonas Duarte da Silva (1952-1980)
José Guido Dantas Lessa da Silva402
Resumo
Este artigo tem por objetivo trazer a história da Banda de Música da Polícia Militar de
Alagoas, assim como mostrar a importância que a Banda teve e ainda tem no movimento
migratório dos músicos das cidades do interior que buscam não só a ascensão social, como
também realizar o sonho de viver da música de forma segura. Tomamos como exemplo, o
músico Jonas Duarte da Silva que vindo do interior do estado de Alagoas, ingressou na vida
militar como soldado, chegando ao posto de major. Acompanharemos ainda a Banda de
Música da Polícia Militar de Alagoas como relações públicas da corporação, o seu
comportamento durante o período da ditadura civil-militar; uma vez que, sempre teve uma boa
penetração e aceitação nos diversos níveis culturais e sociais, seja em recepções a autoridades,
festas religiosas, inaugurações, momentos cívicos, dentre tantos eventos. Por se tratar de uma
banda militar, teceremos alguns comentários sobre o repertório habitualmente executado nas
diversas ocasiões em que a Banda se fez presente.
Palavras-chave: Música; Migração; Banda.
Introdução
A música sempre teve um papel importante na história, pois “A música é a nossa mais
antiga forma de expressão, mais antiga do que a linguagem ou a arte; começa com a voz e com
a nossa necessidade preponderante de nos dar aos outros” (MENUHIN; DAVIS, 1990, p. 01).
A música esteve presente nas diferentes épocas, culturas e sociedades. No princípio tinha
apenas como objetivo proporcionar prazer aos ouvidos e despertar sentimentos. A música
tornou-se tão íntima do ser humano que o filósofo, filólogo, crítico cultural, poeta e compositor
prussiano Friedrich Nietzsche (1844-1900) afirmou que, sem a música, a vida seria um erro. Se
Especialista em Música pela Universidade Federal de Alagoas, Mestrando do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Federal de Alagoas.
402
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falarmos na música ocidental, existe um fato interessante quanto a sua origem, pois segundo
Carpeaux:
Nossa literatura, nossas artes plásticas, nossa filosofia seriam incompreensíveis
sem o conhecimento dos fundamentos greco-romanos. Mas não acontece o
mesmo com a nossa música. Esse produto autônomo da civilização ocidental
moderna não teve suas origens na Antiguidade que se costuma chamar
clássica (2000, p. 03)
O que Carpeaux diz com essa afirmação é que a música ocidental evoluiu de tal forma
que ganhou personalidade própria, mesmo que moldada pela e para a Igreja Católica, onde
deu-se o desenvolvimento musical particularmente no que diz respeito à harmonia. Não mais
restringia-se a proporcionar prazer auditivo e despertar sentimentos. Daí por diante, o seu
valor como meio de expressão adquiriu também cunho social. A música, com o passar do
tempo, ultrapassou as fronteiras da igreja e encorpada harmonicamente, também se mostrou
bastante útil ás revoluções e movimentos populares, mesmo tratada como música mundana,
pois não era composta em sua maior parte no ambiente sacro. Mesmo assim, essa música
estava presa às regras impostas pela igreja que ditou e aperfeiçoou o sistema tonal. Esse sistema
musical perdura até hoje, com poucas modificações. A música marcou e ainda marca nos
tempos atuais o compasso da marcha, o clima, o temperamento, a paixão e a imponência nas
vitórias; assim como a tristeza e a decepção nas derrotas. Serve como estimulante, incentivando
e unindo tropas e multidões em busca de seus objetivos. Foi assim na grande Revolução
Francesa de 1789 com a La Marseillaise que foi composta inicialmente como uma canção
revolucionária e mais tarde, sendo adotada como Hino oficial da França por força da influência
que teve na revolução. Como exemplo mais recente temos a canção Grândola, Vila Morena
do compositor português José Afonso (1929-1987), que foi executada na rádio Renascença em
Portugal, na madrugada do dia 25 de abril de 1974, como sinal para o início da Revolução dos
Cravos, pondo fim a ditadura de Antônio Oliveira Salazar que dominava o país desde 1926
(MEYER-CLASON, OFFENHÄUSER, 1988). A força da música é indiscutível quando nos
referimos à movimentos sociais, lutas de classe e regimes ditatoriais.
Existem muitas formas de se fazer música, principalmente quando falamos em grupos
musicais. Temos as orquestras, os corais, os trios, quartetos e quintetos, as bandas de música
entre outras tantas formações, pois o homem é um ser sociável e, sendo assim, não poderia
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deixar de se manifestar musicalmente em grupo. A música, como as demais manifestações
artísticas, não foi criada para satisfazer um único indivíduo. Para ser plena, precisa ser
apreciada, compartilhada e reproduzida.
As bandas de música militares tiveram origem na França no século XVII e contavam com
repertório próprio à sua condição de militar. No Brasil, elas surgiram na metade do século
XVIII e daí por diante multiplicaram-se conforme a expansão dos quartéis militares. Vale
ressaltar aqui que em se tratando de bandas musicais não militares a partir do Brasil Colônia, as
informações sobre esses grupos e sua formação são escassas. Segundo Souza, “Durante o
período colonial há poucos relatos da presença de bandas de música no Brasil. Pouco se sabe
desses grupos musicais assim como das suas configurações instrumentais”. (2020, p. 117).
Através de documentos pesquisados, tem-se o conhecimento de uma das primeiras
formações que podemos chamar de banda de música. Era composta por escravos e data do ano
de 1610. “...visitando a Bahia, em 1610, o francês Pyrard de Laval cita um potentado de então,
cujo nome não menciona, mas que diz ter sido capitão-general de Angola o qual possuía uma
banda de música de trinta figuras, todas [sic] negros escravos, cujo regente era um francês
provençal.” (ALMEIDA, 1942, p. 291). Os grupos eram compostos por instrumentos e vozes,
bem diferente da formação atual, não importando se eram civis ou militares. O panorama
continuou assim até 1808 “...Com a chegada do príncipe regente D. João ao Brasil em 1808, o
processo de normatização dos grupos musicais militares ficou intensificado, haja vista os
Decretos que estabeleceram números mínimos de músicos nos regimentos, dentre outras
medidas, tais como a gratificação pecuniária.”(SOUZA,2020, p. 122). Daí por diante, houve
uma melhor organização das bandas militares em corporações e uma padronização nas suas
formações, inclusive com patentes bem definidas.
Este artigo está dividido em três partes distintas. Na primeira parte abordaremos a
história da Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas compreendida, num recorte
temporal, entre os anos de 1952 e 1980, a sua importância dentro do cenário cultural, político e
social no estado de Alagoas, além de alguns fatos importantes da sua história nesse período. Na
segunda parte, como exemplo de ascensão social do músico, trataremos da carreira militar do
músico Jonas Duarte da Silva, ex componente da referida Banda, que migrou do interior do
estado para a capital. O referido músico, já falecido, nasceu na cidade de Coruripe, situada no
litoral sul de Alagoas. Através de levantamento bibliográfico, hemerográfico e entrevistas
realizadas com dois músicos militares contemporâneos de Jonas Duarte, procuraremos
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entender os motivos para a migração e acompanhar a ascensão na carreira de músico militar.
Carlos Ginzburg em sua obra intitulada O Fio e os Rastros, refere-se à mitologia grega citando a
lenda de Teseu e o Minotauro. Ele explora muito bem essa lenda ao nos mostrar que, além do
fio existem os rastros deixados como pista a ser investigada, onde busca-se também a verdade.
Para mim, o fio é a Banda de Música e os rastros são os músicos que fizeram parte dela.
Precisamos dar voz a esses músicos através de suas histórias. O historiador, segundo Ginzburg,
não deve prender-se apenas ao fio condutor, pois pode criar lacunas em suas pesquisas; uma
vez que “Os historiadores (e, de outra maneira, também os poetas) têm como ofício alguma
coisa que é parte da vida de todos: destrinchar o entrelaçamento de verdadeiro, falso e fictício
que é a trama do nosso estar no mundo” (GINZBURG, 2007, p.14). Ao deparar-se com um
documento histórico em sua investigação, por exemplo, o historiador deve concentrar-se não
apenas no texto em si, mas buscar conhecer quem o escreveu e todo um contexto em sua volta
para poder entender e decifrar aquilo que o ator quis nos mostrar. É fundamental para a
pesquisa histórica investigar os elementos que se encontram por baixo do fato ou documento,
como as mentalidades, as técnicas, a sociedade, a economia. É o que buscamos mostrar neste
artigo. No terceiro e último capítulo abordaremos a Banda de Música no período da ditadura
civil-militar, dando ênfase ao repertório utilizado e possível censura. Exemplificaremos o
repertório com algumas letras de músicas compostas para enaltecer o período da ditadura, além
do relato, através de entrevistas, de dois músicos que serviram à Banda de Música por boa
parte do período da ditadura civil-militar.
1.
A Banda da Polícia Militar de Alagoas
A banda de Música da Polícia Militar de Alagoas é um dos mais tradicionais aparelhos
culturais que temos em nosso estado. Centenária, a Banda foi fundada no ano de 1850,
segundo Souza:
A banda de música da Companhia de Polícia da Capital, no decorrer do
século XIX e principalmente após a República, passa por diversas
transformações vindo a ser denominada Banda de música da Força Policial
do Estado de Alagoas. Trata-se de uma banda que surgiu provavelmente por
volta de 1850, de acordo com o estudo hemerográfico, e que chegou aos
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tempos atuais como a Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas. (2020,
P.199).
A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas sempre desempenhou um papel de
destaque. Não só por suas obrigações militares, mas também por sua presença nas mais
diversas manifestações culturais e sociais do estado de Alagoas. É importante conhecer o
ambiente cultural, dentro do recorte temporal, compreendido entre os anos de 1952 e 1980.
Ela Sempre contou em suas fileiras com boa parte dos músicos vinda do interior do
Estado. Dentre os motivos para essa migração do interior para a capital estava, principalmente a
falta de oportunidade para exercer a profissão de músico nas cidades de origem e a busca por
ascensão social que o ingresso na banda de música trazia consigo. Eram músicos, em sua
maioria de origem humilde. Suas cidades contavam apenas com bandas de música filarmônica,
que não ofereciam, como ainda hoje não oferecem remuneração para o músico, tornando-o
amador, tendo que abraçar outra profissão para seu sustento. Muitos eram, além de músicos,
estudantes, pescadores, agricultores, professores, pedreiros, pintores, dentre outras atividades.
A Polícia Militar tornou-se também o abrigo seguro daqueles que viviam também em precárias
condições sociais, pois nas décadas de 1950 e 1960 não era exigido um grau de instrução
elevado para o ingresso na corporação. Segundo entrevistas realizadas com o major Edison
Camilo e o tenente Eraldo Trindade, ambos da reserva da Polícia Militar, ex componentes da
banda de Música, o nível de escolaridade exigido para o ingresso na Polícia Militar nos anos
cinquenta e sessenta era apenas a quarta série do ensino básico, antigo quarto ano primário. No
interior de alagoas, segundo os entrevistados, não havia o antigo ensino ginasial, que se dava a
partir da quinta até a oitava série.
Esse material humano abundantemente disponível em todo o estado era bastante
oportuno para a corporação militar, pois se tratava de pessoas humildes que, para atingir seus
objetivos talvez se submetessem, sem contestação, a qualquer regime de poder que os fosse
imposto, submetendo também suas famílias, que orgulhosamente se vangloriavam por ter um
membro militar. O que em certa época, para os mais humildes, era motivo de segurança e
vaidade. Havia cidades que se orgulhavam em ter alguns de seus cidadãos nas fileiras militares.
A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas participou também de diversos
festivais de bandas militares, com destaque para o Festival Internacional de Bandas Militares
realizado na cidade do Rio de Janeiro no período de 30 de maio a 05 de junho de 1965, onde
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segundo o Major Edson Camilo narrou em sua entrevista, a banda viajou para o Rio de Janeiro
a bordo de um navio da Marinha do Brasil, sem nenhum custo para o estado de Alagoas.
Porém o que os componentes da Banda não sabiam é que não haveria recursos para a viagem
de volta. A Banda apresentou-se com destaque no referido festival e na hora do retorno,
tiveram que esperar por uma negociação, o que acarretou numa viagem fracionada em grupos.
Em 1977, a Banda de Música participou de mais um Festival de Música de Bandas Militares,
também na cidade do Rio de Janeiro a convite da Universidade Federal do Rio de Janeiro –
UNIRIO, segundo o major Edison Camilo e o tenente Eraldo Trindade relataram em suas
entrevistas.
A Banda da Polícia Militar esteve presente nas manifestações populares, religiosas,
políticas, dentre outras e, para isso, teve que se moldar em diversos formatos como a Lira da
Saudade composta por 12 músicos que executavam um repertório nostálgico e que se
apresentava em coretos de praças pelas cidades; uma vez que os coretos não comportam uma
formação musical grande. Outra forma de interagir com a comunidade, era quando a Banda de
Música, tomava a forma do bloco carnavalesco Vulcão que desfilava no período de carnaval em
Maceió. Ali, no calor do frevo, ninguém lembrava que se tratava de militares muito à vontade,
longe das suas fardas e coturnos.
2. Jonas Duarte da Silva: de soldado a regente
Como exemplo de ascensão social, temos a história de Jonas Duarte da Silva, nascido na
cidade de Coruripe, litoral sul de Alagoas em 28 de março de 1928 e falecido em Maceió no
dia 06 de julho de 2003. Ainda jovem, com apenas onze anos de idade, após o falecimento do
seu genitor, iniciou-se na profissão de alfaiate, como aprendiz, mas logo interessou-se por
música, pois seu pai, apesar de ser mestre de barcaça, também tocava um instrumento. Seu
primeiro instrumento foi a clarineta que aprendeu a tocar com um amigo. Logo, Jonas estava
tocando em um pequeno grupo e a futura profissão de alfaiate já estava por ser abandonada. A
nova atividade, no entanto, não era suficiente para o seu sustento e de seus familiares- a mãe e
mais dois irmãos, pois o irmão mais velho migrou para a cidade do Rio de Janeiro. Mesmo
assim, não largou o estudo do instrumento e em 1952, decidiu, apesar de ter estudado até o
quarto ano do ensino fundamental, o que era até comum para as os habitantes das cidades
interioranas, submeter-se as provas para o ingresso na Polícia Militar de Alagoas, mais
precisamente na banda de música. O ingresso na polícia militar garantiu-lhe fazer aquilo que
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mais gostava: dedicar-se à música, apesar de também ter que cumprir outras tarefas comum a
condição de militar. Tornou-se uma celebridade em Coruripe, não apenas por ser militar, mas
por ter também composto o hino daquela cidade. Compôs ainda os hinos das cidades
alagoanas de Coqueiro Seco e Teotônio Vilela. Jonas Duarte da Silva chegou até o ápice da
carreira militar na banda de música, que tem como patente máxima o posto de capitão, com a
função de regente da banda. Sob seu comando, a Banda da Polícia Militar de Alagoas passou a
ser classificada como banda sinfônica e participou de vários festivais concursos de bandas
militares que ocorreram no Brasil nas décadas de 1960 e 1970. Foi integrante da orquestra da
Rádio Difusora de Alagoas e fez parte como corista do Coral Expressionista de Maceió. Era
uma figura respeitada pelo conhecimento musical que tinha, principalmente no quesito
orquestração. Apesar de pouco estudo formal, Jonas Duarte aprofundou-se na ciência musical
participando de cursos e encontros de música em diversas cidades no Brasil como o festival de
inverno de Campus do Jordão, cursos de música em Recife, João Pessoa e outras cidades.
Graças a estabilidade e segurança propiciados pela profissão, realizou-se musicalmente. No dia
29 de setembro do ano de 1980, foi para a reserva remunerada da Polícia Militar ocupando o
posto de Major. Daí por diante, passou a fomentar a formação de bandas de música pelo
interior do estado. Foi professor regente da Banda Filarmônica da cidade de Coqueiro Seco e
ajudou a fundar a banda de música da cidade de Teotônio Vilela. Além disso, ocupou-se com
uma nova atividade: afinador de piano. Jonas afirmava que graças a carreira militar, ele
aprendeu a ter a disciplina que tanto lhe foi útil na carreira musical.
3. A Banda da Polícia Militar de Alagoas e o Golpe Civil-Militar de 1964
Um outro ponto que devemos considerar é a posição que a Banda de Música da Polícia
Militar de Alagoas exerceu e exerce no setor de relações pública da corporação. Levando em
consideração o golpe civil-militar de 1964, podemos acompanhar a banda de música como
porta-voz da corporação nos conturbados anos que antecederam e sucederam ao golpe civilmilitar de 1964, chamado de revolução pelos militares. Segundo Queiroz:
Em 1964, por ocasião do golpe militar, o Estado de Alagoas era governado
por um general do exército brasileiro, Luiz de Souza Cavalcante,
popularmente conhecido como “Major Luiz”. Por essa razão o novo regime
instalado não interferiu nas Alagoas, como fez em outras unidades da
385
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federação, inclusive no vizinho Estado de Pernambuco, que teve seu
governador - Miguel Arraes – deposto. (2017, p. 141)
Dentro desse contexto acima descrito, entendemos que o estado de Alagoas, em termos
de governo, passou com uma certa tranquilidade e estabilidade do regime democrático para o
ditatorial e sendo assim, os militares sentiram-se seguros como donos da situação. Segundo
relatou em entrevista o major da reserva da Polícia Militar Edson Camilo, no dia 30 de março
de 1964, um dia antes da deflagração do golpe civil-militar, a Banda de Música estava em
viagem a bordo de um trem acompanhando a comitiva do governador do estado para a
inauguração de uma ponte na cidade de União dos Palmares. Quando estavam próximos a
cidade, a composição parou e segundo o major, surgiram soldados da Polícia Militar
fortemente armados informando que estavam ali para impedir que o governador de
Pernambuco na época, Miguel Arraes, que segundo informações, teria um comício na Praça do
Pirulito em Maceió, chegasse ao seu destino. Só a partir desde evento é que os componentes da
Banda de Música tiveram conhecimento da situação em que o país seria submetido. Mas,
segundo os ex componentes da Banda major Edison Camilo e tenente Eraldo Trindade, não
houve modificação e ou orientação quanto a modificações no repertório da Banda de Música.
A Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas, nos anos que antecedem ao golpe
militar, executava um repertório, segundo o major Edson Camilo, diferentemente do que hoje
ocorre, recheado de dobrados e marchas militares. Em algumas ocasiões executava músicas
folclóricas, religiosas ou de compositores populares da época.
As
bandas
de
música
gozavam de um certo prestígio nas cidades e estavam presentes nas principais festas e
comemorações como por exemplo, inaugurações públicas e privadas, apresentações em coretos
e festas religiosas. A televisão, assim como outros meios de entretenimento nas cidades eram
escassos. A grande atração nos anos 1950 era o circo, que fazia temporadas com suas novelas e
atrações espetaculares; porém era itinerante e, por sua vez, as bandas estavam sempre
presentes.
A Banda da Polícia, apesar de se tratar de uma banda militar, segundo os entrevistados,
tinha uma certa liberdade para escolher seu repertório, usando o bom senso, evitando certas
músicas tidas como subversivas. O repertório era limitado pela dificuldade em se adquirir
partituras, principalmente na década de 1960. Na década de 1970, segundo relata o tenente
Eraldo Trindade, era comum a banda de Música executar músicas, por exemplo, de autoria de
386
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Caetano veloso, compositor exilado político vítima do AI5. Na década de 1970 foram criadas
músicas exclusivas que exaltavam o poder e a força, assim como a grandeza e desenvolvimento
do Brasil. A banda de música, neste caso, torna-se também um garoto propaganda do novo
sistema de governo. Era frequente a apresentação em escolas e a repetição do mesmo
repertório intencionalmente preparado para essas ocasiões. Lembro-me, como estudante do
primeiro grau, já na década de 1970, pois nasci em 1964, que presenciei várias apresentações
da banda da Polícia Militar, onde eu já sabia de cor pelo menos a maioria das músicas que
seriam executadas, como por exemplo, Pra Frente Brasil ou o Hino do Sesquicentenário da
Independência, comemorado em 1972, e mais uma meia dúzia de músicas já bastante
conhecidas do público.
A censura imposta ao setor artístico foi rigorosa. Vale salientar aqui que a censura
prévia era uma atividade legalizada pela Constituição de 1934 com o intuito de defender a
moral e os bons costumes. Segundo o artigo A Censura Musical Durante o Regime Militar
(1964-1985), escrito por Maika Lois Carocha:
a censura prévia vigiava de perto a música popular, canções de teor político só
eram divulgadas pelo rádio quando elogiosas ao Estado, mas foi sendo
adaptada paulatinamente às especificidades do período em questão. A
censura musical e todas as outras que fizeram parte do conjunto conhecido
por diversões públicas eram feitas previamente, o que conferiu ao processo
censório uma grande capacidade de coerção. (2006, p. 195)
A censura prévia não foi criada pelo regime civil-militar e sim pelo Estado Novo. Já fazia
parte do dia a dia dos nossos artistas, principalmente da área musical, há um bom tempo. À
Constituição de 1934, seguiu-se a de 1937 e a de 1946, todas aumentando a área de atuação da
censura.
Apesar da censura prévia a que todo o meio artístico foi submetido, a banda de Música,
segundo os entrevistados, não foi submetida a essa censura. Logicamente o foco estava voltado
principalmente para a criação artística, onde se filtrava com antecedência os possíveis “abusos e
exageros” de teor subversivo contra o regime.
Conclusão
387
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É incontestável o papel que a música desempenhou na história nos diversos níveis
cultural, político, religioso. Como vimos, no início desse texto, desde os primeiros grupos
musicais, ela sempre serviu para unir os homens em sociedade ou em grupos menores,
inspirando-os em seus sentimentos. O homem é um ser social e naturalmente não pode fazer
música para guardá-la para si. É uma expressão, uma linguagem e, portanto, precisa ser ouvida,
apreciada, refletida, sentida, criticada para que ganhe sentido como arte que reflete a cultura, o
momento, o contexto em que o ser humano se encontra.
Por amor à música, muitos músicos fizeram sacrifícios em deixar suas cidades em busca
de poder realizar o sonho do viver musical. Não hesitaram em deixar suas famílias ainda jovens,
migrando em busca da realização de seus sonhos e melhorar suas condições na profissão de
músico. Quando era criança, já estudando música com a idade de seis anos, certa vez, num
momento de fúria, joguei meus métodos musicais no lixo. Porém, não havia mais jeito, eu já
estava contaminado pelo “vírus” da música e não tardou para que fosse humildemente buscálos de volta da lixeira.
Voltando à Banda de Música da Polícia Militar de Alagoas é importante salientar que,
ao longo de sua existência, ela sempre manteve uma relação de dependência e cumplicidade
com a sociedade alagoana, pois independente das mudanças políticas e de regime ao longo do
tempo, o laço que une as duas partes nunca foi cortado. Há, até os dias atuais, uma admiração
da sociedade, do povo para com a Banda de Música da Polícia Militar e acredito que a banda
retribui já há algum tempo, num período mais brando em que vivemos, com um repertório
bem mais próximo do seu público.
Bibliografia:
MENUHIN, DAVIS, Yehude, Curtis. A Música do Homem. São Paulo: Livraria Martins
Fontes Editora Ltda, 1990
CARPEAUX, Otto Maria. Uma Nova História da Música. São Paulo: Ediouro, 1999.
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Editores, 1942.
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20.Jahrhunderts. , Freiburg: Beck & Glückler, 1988.
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SOUZA, Nilton da Silva. As Bandas de Música do Baixo São Francisco Alagoano: Práticas
Culturais Musicais em Contexto. Programa de Pós-Graduação em Música-Escola de Música da
Universidade Federal da Bahia. Tese de doutorado, Salvador, 2020. 356 f.
GINZBURG, Carlo. O Fio e os Rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007.
QUEIROZ, Álvaro. Episódios da História das Alagoas. Maceió: A.Q.da Silva, 2017.
CAROCHA, Maika Lois. A Censura Musical Durante o Regime Militar (1964-1985). História:
Questões & Debates, Curitiba, n. 44, p. 189-211, 2006.
389
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A Censura à Revista Adventista durante o Governo Médici (1969-1974)
Moizes Saboia da Silva403
Resumo: Este estudo se propõe a analisar como a Revista Adventista passou pelo crivo da
censura aos periódicos durante a presidência do General Emílio Garrastazu Médici (19691974). Pretende-se discutir como a Revista perpassou a censura implementada pelos órgãos da
comunidade de segurança e informação. O estudo da censura imposta aos meios de
comunicação é um registro importante para compreensão tanto das estratégias de permanência
do regime no poder quanto das tentativas de silenciar vozes contrárias. Em suma, neste estudo,
através da Revista Adventista, busca-se evidenciar como uma revista do campo religioso foi
matizada no referido regime pelo olhar da ideologia de segurança nacional em oposição a
liberdade de expressão e a defesa da democracia.
Palavras-chave: Revista Adventista. Governo Médici. Censura.
Em janeiro de 1906, no Rio de Janeiro, circulou o primeiro número da Revista
Adventista no Brasil. Em seu editorial, o impresso fora apresentado como “alimento espiritual”
e justificado como reflexo de “autoconsciência, idealismo, crescimento, mobilização, sonho e
desejo de aglutinar ideias”. (BENEDICTO, Marcos; BORGES, Michelson. Um século: 100
anos de história. Revista Adventista, p. 8, janeiro de 2006.) Com uma população girando em
torno dos 20 milhões de habitantes (censo de 1900)404 e com 1.212 (um mil duzentos e doze)
adeptos, o Brasil era uma grande seara a ser explorada pela doutrina adventista a partir da
publicação do periódico que, como a imagem de corpo congregado, expandiria e conectaria, a
nível nacional, os membros da Igreja.
Pensar em trabalhar a Revista Adventista nasceu através de discussões sobre a dimensão
política da censura e sua relação com a imprensa, realizadas no grupo de pesquisa Memória,
Identidade e Ensino de História (Mnêmis) da Universidade do Estado do Rio Grande do
Norte - UERN. A leitura de textos (dissertações e teses), a pesquisa nos repositórios de teses e
Mestrando pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
E-mail: feziosaboia01@gmail.com
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo de 1900.
https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/populacao/25089-censo-1991-6.html?edicao=25091&t=publicacoes.
Acesso em 08/09/2021.
403
404
390
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dissertações das universidades brasileiras e do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e
Tecnologia (IBICT), dos arquivos digitais da Hemeroteca Nacional ajudaram a localizar a
documentação necessária (sobre a Revista Adventista) para a realização da pesquisa sobre a
relação entre a Igreja Adventista e o Regime Militar brasileiro (1964 – 1985).
Desenterrar silêncios, e a subsequente ênfase do historiador sobre o
significado retroativo de eventos até então negligenciados, consiste em algo
que exige não apenas trabalho adicional com os arquivos – sejam fontes
primárias ou não o material que se use –, mas também um projeto vinculado
a uma interpretação. Isso acontece porque os silêncios combinados, que
cresceram ao atravessar os primeiros três estágios do processo de produção
histórica, se misturam e se solidificam no quarto e último movimento, quando
a própria significação retroativa é produzida. (TROUILLOT, 2016, p. 101.)
A leitura de fontes que venham a contribuir com o processo e discussão de uma
pesquisa vem desse olhar curioso que temos em relação a entender os porquês que nos cercam
e nos atemorizam nos levando, muitas vezes, à busca de respostas que forneçam entendimento,
por menor que seja, sobre os dias presentes em que vivemos. Não existe pesquisa sem um
porquê. O objetivo da leitura nesses ambientes, sites e repositórios, que agregam essas teses e
textos acerca da revista serviram para o processo de construção da proximidade da resposta dos
porquês.
A revista foi criada em 1906 no Brasil, com o propósito de fortalecer a comunicação
entre os adventistas ao redor do país e do mundo. Circulava, inicialmente, com 12 páginas e
posteriormente, ao longo dos anos que se seguiam, passou a circular com uma média de 30
páginas. Curiosamente, não possuía capa e sumário, surgindo apenas em 1953 e 1973,
respectivamente. Até fevereiro de 1931, circulou como Revista Mensal. A partir de março do
mesmo ano passou a ser Revista Adventista, “orgam offcial da Egreja Brasileira dos Adventistas
do Sétimo Dia.”
Seus editores, não profissionalizados em jornalismo, eram pastores (brasileiros e
estrangeiros) missionários etc., que escreviam artigos sobre os mais variados temas religiosos e
sociais para a revista, cujo intuito era mostrar os trabalhos da Igreja em sua expansão pelo Brasil
e mundo. Dentro da revista, os membros adventistas eram constantemente alertados sobre o
dever de ter a assinatura do periódico. Muitas vezes, com repressões severas.
391
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A igreja que nada tem a fazer, que não assina as nossas revistas, especialmente
a REVISTA ADVENTISTA está a caminho do cemitério. Os oficiais da
igreja que nada fazem que não orientam os membros quanto à importância da
leitura de nossos livros e revistas são os que se preparam para carregar o
esquife até a sua última morada. Todos os que se ocupam em seus afazeres
materiais e não têm tempo para ler o que as nossas casas editoras produzem
para a Igreja, são os que preparam a coroa para o enterro. Mesmo os que
possuem os nossos livros, assinam as nossas revistas, mas, indiferentes, os
deixam empoeirar-se nas estantes ou nas gavetas, são os que jogarão as últimas
flores sobre a Igreja morta. (FERRAZ, Itanel. Nossa literatura alimento
espiritual. Revista Adventista, Santo André, São Paulo, ano 67, n° 9, p. 23,
setembro de 1972).
Os editores eram ferrenhos em seus alertas a que a revista fosse não somente adquirida
através das assinaturas, que eram anuais, mas também que se prontificassem a ler o que era
escrito, já que a falta dessa leitura e cuidado que os editores exigiam, caso não viesse a ser
realizada, tornaria os membros não leitores como aqueles que estariam contribuindo com uma
Igreja sem vida.
No periódico, as Sessões da Associação Geral recebiam textos de pastores e
missionários estrangeiros, bem como dos adeptos das igrejas locais que partilhavam
experiências e notícias em torno da fé dos congregados. O objetivo era produzir o discurso de
que a Igreja era união global, corpo único em torno da fé a ser trilhada. Para isso era
fundamental que os membros locais enviassem relatórios de suas viagens pelo Brasil,
evangelização, colportagem405 e demais ações que fizessem em nome da Igreja para que os
leitores do periódico se conectassem de alguma forma e o sentimento de que eram um só povo
se solidificasse.
Era tão importante para os editores e para a evangelização e manutenção da Revista
esses relatos missionários, relatórios de colportagem, relatos pessoais etc., que, muitas vezes, os
membros líderes das igrejas locais recebiam repreensões, exortações e críticas pelo fato de não
mandarem o progresso de suas evangelizações pelo país à redação. A estratégia dos editores
nesse sentido era mostrar que a Igreja obtinha sucesso no país em conquistar membros e que
405
Ação em que membros adventistas saem de porta em porta para vender livros e demais literatura adventista.
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os fiéis não se cansavam em dar seu tempo, dinheiro e disponibilidade em sair aos campos em
busca de novos adeptos. A ideia era, além de fortalecer a fé dos fiéis leitores adventistas,
sensibilizar aqueles que estavam inertes a que também saíssem aos campos em busca de novos
conversos.
Os artigos eram publicados na primeira página abaixo do nome do periódico,
dedicando-se a temas relacionados ao disciplinamento, obediência, princípios doutrinários
adventistas, espiritualidade, saúde e questões sociais como a preocupação com a educação,
trabalho, lazer. A estratégia era fazer da revista um espaço de circulação do suposto unitarismo
do discurso religioso adventista, reforçado pela associação entre imagens e textos de Ellen
White, cofundadora.
O objetivo é entender, discutir, pôr na mesa dos debates o posicionamento da Igreja no
período Médici (1969-1974), pois se faz necessário e de grande importância social ao se
perceber os intuitos claramente doutrinais que corroboram diretamente com o governo dos
militares.
Um poder dominante pode legitimar-se promovendo crenças e valores
compatíveis com ele; naturalizando e universalizando tais crenças de modo a
torná-las óbvias e aparentemente inevitáveis; denegrindo idéias que possam
desafiá-lo; excluindo formas rivais de pensamento, mediante talvez alguma
lógica não declarada, mas sistemática; e obscurecendo a realidade social de
modo a favorecê-lo. (EAGLETON, 1997, p. 19)
Unir-se em ideias com o regime dos militares parece ter sido algo que não foi difícil, já
que a Igreja buscava sua expansão pelo país e não se pôs a ser contrária ao governo vigente,
tendo em vista que a postura contrária seria um grande entrave a sua expansão e, certamente, o
periódico, tão importante para o crescimento da Igreja no país e manutenção da união e
fortalecimento do pensamento entre os adventistas seria censurado devido as margens da
liberdade e de críticas políticas reduzidas a zero FILHO (2014) se implantarem no país.
Autores que estudam o período do Regime Militar como Daniel Aarão Reis Filho
(2014), Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição de 1988; Maria
Aparecida de Aquino (1999), Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o exercício
cotidiano da dominação da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento; Carlos Fico
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(2001), Como eles agiam: os subterrâneos da Ditadura Militar: espionagem e polícia política
etc. Dentre outros que possam agregar a discussão são essenciais para a discussão a respeito do
regime.
Quanto as imagens da própria revista é um ponto de muita ajuda para discutir táticas do
editorial. A capa da revista era um meio de sensibilização pelo olhar em que se apresentavam
datas comemorativas, religiosas e civis, o dia das mães, a Independência do Brasil. A datas são
muito importantes para se buscar o controle e o engajamento da população e seu uso era muito
bem pensamento para os meios e propósitos almejados. “A história se compõe de coisas do
passado e de coisas do futuro, de esperança e de lembrança.” (KOSELLECK, 2013, p .101)
que fazem parte da vida das pessoas e são utilizadas para se atingir os desejos de quem
comanda.
É fundamental perceber como a política era tratada pelos líderes da Igreja e como ela
passou e circulou durante o processo de censura e se aproximou do governo para manter-se
viva e atuante já que “[...] entre 1968 e 1975, a censura assume um caráter amplo, agindo
indistintamente sobre todos os periódicos.” (AQUINO, 1999, p. 212).
Entender a dimensão do que foi a censura aos meios de comunicação é um processo
indispensável ao se estudar os anos do governo dos militares no Brasil, pois sem a censura à
oposição, o processo de manutenção no poder teria sido mais difícil.
Na segunda fase (de 1972 a 1975) há uma radicalização da atuação censória,
com a institucionalização da censura prévia aos órgãos de divulgação que
oferecem resistência. Observa-se que em parte desse período o regime
político recrudesce em termos repressivos, momento em que o controle do
Executivo pertence aos militares identificados com a “linha-dura”. O ano de
1972 marca a radicalização e a instauração da censura prévia, e coincide com
a discussão da sucessão presidencial que levará a escolha do general Ernesto
Geisel, oriundo da ala militar da “Sorbonne” e que terá uma grande
dificuldade de aceitação por parte dos militares da “linha-dura”. Estes
prosseguirão controlando altos cargos (por exemplo, o comando do II
Exército em São Paulo), durante algum tempo. (AQUINO, 1999, p.212)
Nenhum dos presidentes da ditadura deixou de usar os órgãos de repressão e censura à
oposição. O SNI (Serviço Nacional de Informação) atuava dentro do governo e da sociedade se
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capilarizando sem precedentes através das agências regionais formulando dossiês e todas as
informações possíveis dos opositores e até mesmo daqueles que estavam dentro do governo.
Ninguém estava a salvo dos tentáculos do olho observador dos órgãos de busca criados para a
formulação de informações visando o extermínio de todos os que se colocavam contrários ao
modo como o país estava sendo conduzido. O terror que caía sobre os opositores podia ir
desde uma repressão até a morte.
Ainda em 1967 a repressão começa a tomar nova forma de modo mais sólido e
escancarado com o CIE (Centro de Informações do Exército). Um dos órgãos responsáveis
não somente pela coleta de muitas informações, mas também por atuar diretamente na
repressão contra a oposição. Escapar dos órgãos de repressão era cada vez mais difícil e
delicado, já que os centros criados se capilarizavam de forma cada vez mais rápida.
O CIE e outros como o CENIMAR, CISA, OBAN, por exemplo, contribuem de
forma nítida para a criação em 1970 dos CODI e os DOI causando censura como os cortes nas
matérias, censura de matérias completas, quando não, o editorial inteiro, já que os periódicos
tinham um censor para avaliar o conteúdo da matéria antes de ser publicado, apreensão,
tensão, medo, perseguição, tortura, ameaças e cerceamento das liberdades individuais que a
democracia traz.
Prezar pela liberdade, pela democracia, pelo livre pensamento e por entender que a
política deve ser crítica, principalmente, nos anos de chumbo, é lutar cotidianamente pela
sobrevivência não só de si mesmo, mas também pela manutenção de uma sociedade e um país
civilizado com todos os direitos de ir e vir sem ser importunado, vigiado, ameaçado, censurado.
Nesse processo, permanecer inerte diante de uma democracia que era atingida não podia ser
aceitável, pois “uma civilização que prefere fechar os olhos aos seus problemas mais cruciais, é
uma civilização enferma. Uma civilização que trapaceia com seus princípios, é uma civilização
moribunda.” (CÉSAIRE, 1978, p. 16).
A censura agia de modo nítido e presente em vários periódicos do país buscando
silenciar as vozes da oposição e que porventura viessem a levar qualquer tipo de pensamento
crítico contra os atos e maneira de atuar do governo vigente. Médici foi o presidente que mais
tensão e perseguição executou a todos os que pensavam diferente dos pensamentos militares,
ficando conhecido como “Anos de Chumbo” Gaspari (2002).
Todo e qualquer periódico que ousasse publicar qualquer nota, artigo, conto etc.
contrária ao que os militares pensavam poderia ser multado, censurado ou sofrer algum tipo de
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revés para que entendesse que as ordens militares deveriam ser seguidas e obedecidas. A
oposição deveria ser calada e/ou controlada, por isso “a censura, o sistema repressivo, e a
propaganda oficial, é claro, também ajudaram a criar um clima de calmaria e paz social, mais
próxima de uma paz de cemitério, ao menos no plano político.” (NAPOLITANO, 2014, p.
160) já que as vozes que gritavam contrárias a política dos militares eram constantemente
perseguidas e postas distante do olhar crítico da sociedade.
A visão política crítica era um ponto impensável que a população viesse a ter, por isso
era constantemente buscado passar uma imagem de prosperidade e bonança vindo dos
militares tanto pelos meios oficiais quanto pela mídia que se congratulou ao regime.
Nunca fomos tão felizes! O projeto do Brasil Grande Potência parecia ter
uma base material inédita. O sucesso econômico do regime também se
transformava em sucesso político com a derrota da luta armada de esquerda,
que na ótica do regime era apenas uma desagradável serpente a perturbar a
harmonia do paraíso capitalista finalmente atingido.” (NAPOLITANO, 2014,
p. 163)
À população era dirigida notas e números positivos da sobressaltos que ocorreram na
década de 1970, o chamado “milagre econômico”. Embora esse “milagre” não tivesse atingido
a todos, pois “numa sociedade de classe, há principalmente as desigualdades entre as classes.”
(WILIANS, 1971, p. 112.). Esses números, claro, ajudaram a fortalecer o discurso militar de
progresso e prosperidade e de um país imparável. Infelizmente, até os dias atuais, é possível
ouvir pessoas, muitas que não viveram os tempos da ditadura ou não conhecem o cerceamento
de liberdades, bradar pelas ruas, em especial nas mídias sociais, que o tempo dos militares era
melhor e deveria voltar. Ledo engano.
Dentro da Revista Adventista perceber como era composto o editorial e como se
articulavam para selecionar o que iria chegar ao leitor é um meio pelo qual se pode entender
como estava o editorial referente aos anos de chumbo, à política, à sociedade.
Discutir como era pensado o projeto gráfico, o conteúdo, o modo como essas revistas
deveriam chegar aos assinantes e a tecnologia usada para a impressão das revistas e como se
dava a circulação da revista, é de suma importância. Para o editorial, as revistas não somente
deveriam chegar aos assinantes, mas fossem lidas.
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Cada membro da Igreja Adventista deve assinar a Revista Adventista.
Comparando o seu preço, que é apenas NCr $ 9,00 por ano, com as revistas
seculares (sendo que a maior parte delas somente serve para alimentar o
fogo), o preço destas últimas é bem mais elevado. Ela é quase de graça, pois
não se pode comparar o valor moral e espiritual da Revista Adventista, que
instrui, fortalece a fé, traz ótimas notícias de nossos campos missionários e nos
ajuda na preparação para o reino de Deus, com outras revistas e panfletos,
que muitas vezes promovem a degradação, mormente da juventude que se
deixa iludir com os seus enredos de amores ilícitos e apaixonantes. Vale a
pena empregar NCr $ 9,00 por uma assinatura da Revista Adventista. Ela é o
termômetro da igreja. Através de suas páginas, sentimos o calor espiritual e a
fé que mantêm firmes os nossos queridos irmãos em todo o mundo. (ALVES,
Felipe F. O termômetro da igreja. Revista Adventista, Santo André, São
Paulo, ano 65, n° 5, p. 15, maio de 1970).
Percebe-se claramente a estratégia e exortação dos editores em que se comparava não
somente o conteúdo religioso produzidos pela CPB406, mas também o preço. Para os editores
era fundamental que os membros lessem o conteúdo publicado, pois isso era uma forma de
fortalecer as ideias adventistas e de manter a CPB com recursos financeiros para continuar
produzindo. Portanto, não somente o conteúdo era melhor, mas também o preço que cabia no
bolso. As revistas seculares não só eram mais caras, e não traziam edificação espiritual. Desse
modo, os editores buscavam inculcar, talvez, um processo de culpa nos membros que não
lessem e adquirissem a revista. Caso ocorresse algum mal a família e filhos de quem preferisse
ou desse espaço as revistas seculares.
Entender como a revista chegava ao seu público, os assinantes, é de suma importância,
tendo em vista que o crivo da censura estava nos principais periódicos do país, e por menor
que o periódico fosse, caso viesse a afrontar o governo, não seria tolerado em hipótese alguma.
Entender isso contribui no esclarecimento de como a Igreja se relacionou durante o período do
regime militar para poder se expandir e conquistar mais fiéis, passando pelos crivos da censura,
contribuindo com a disseminação dos lemas Deus, Pátria e Família em harmonia com o
governo.
406
Casa Publicadora Brasileira. Editora da Igreja Adventista.
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Em todas as entrevistas mantidas com autoridades militares e civis
procuramos deixar clara a posição da Igreja Adventista do Sétimo Dia, e de
seus membros, de fielmente trabalharem por Deus e pelo nosso Brasil. É
notável o grau de simpatia que desfruta nossa Igreja no mundo oficial. O
nome adventista do sétimo dia, longe de ser um empecilho, é hoje uma
recomendação. Sentimos essa atitude amiga entre militares, senadores,
deputados etc. (NEPOMUCENO, Antônio A. Departamento de Assuntos
Cívico-Religiosos da Confederação das Uniões Brasileiras da IASD. Revista
Adventista, Santo André, São Paulo, ano 66, n° 4, p. 37, abril de 1971).
O editorial frisa que sua relação com os militares em todas as suas entrevistas não
passava de boa vizinhança. No entanto, manter boa vizinha com governos antidemocráticos é
um meio pelo qual não se contribui com o processo democrático e de livre circulação de ideias
e pensamentos. A sociedade é um misto de pessoas de diversos locais e com muitas
características próprias, mas que devem se encontrar nos ideais democráticos de direito. Um
país amordaçado é um país sem voz, sem vida, sem liberdade e sem segurança. Viver sob o
constante medo da censura é um mal incalculável.
O editorial da revista voltava-se a temas bíblicos mostrando seu crescimento pelo país e
mundo. Os artigos publicados pelo editorial buscavam passar a ideia de que a Igreja estava
distante dos atos seculares e tinham sua atenção voltada unicamente para o celestial. No
entanto, também publicava notas e até artigos a respeito de políticos adventistas que estavam no
Congresso, como é o caso da família Losso do Paraná. Ganhando a simpatia e apoio dos
militares. Sem dúvida a religião consiste em um conjunto de discursos que se mesclam a outros
para criar um continuum ininterrupto entre o teórico e o comportamental EAGLETON
(1997).
Trazer isso à tona é clarear como a Igreja circulou sua mensagem através das páginas da
Revista Adventista durante todo o Governo Médici (1969 -1974) e corroborou com ele,
moldando uma membresia obediente e casta. Desta forma, atenta-se para a discussão dos
meios e formas que foram utilizados pelos editores nas páginas da revista para atingir esse
propósito.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
O campo da experiência dos cristãos é o pecado, a punição, o sofrimento, a
profecia, a vinda de Cristo, a Paixão; o horizonte de expectativa é a volta
iminente do Messias, que porá fim ao castigo do tempo e da história e
separará os bons dos maus, salvando a uns e condenando a outros. A
esperança é que, no fim da linha, o Messias os espera de braços abertos e a
história é o caminho que têm de atravessar para retornar à casa do Pai. A
esperança é que a história será totalmente abolida no futuro — a sua
linearidade só é tolerada porque se acredita que ela cessará um dia. A história
não é eterna, o tempo e seu império serão abolidos e a eternidade vencerá. O
cristão aceita conviver e até valoriza a história, mas tem fé que a eternidade
abolirá o tempo de um só golpe. (REIS, 2021, p. 50)
Esse é um meio pelo qual os membros adventistas acreditam na mensagem divulgada
nas páginas do periódico adventista. O aguardo do Messias, de certa forma, causa inercia nos
membros fiéis, pois a crença de que não pertencem a esse mundo os faz esperar unicamente
por intervenção divina. Assim, o membro fiel não age, não atua e não protesta, pois esse
mundo pertence aos pecadores, e existe uma pátria celeste esperando os fiéis, portanto, por
que lutar pelo que não é meu e será destruído? O Messias, portanto, virá e dará o galardão a
todos os que se mantiveram fiéis. Esse é o pensamento que causa inercia e contribui para que
governos ditatoriais permaneçam por mais tempo.
A abordagem religiosa e a relação entre o Projeto Gráfico e Editorial da Revista
Adventista são entendidas como as principais estratégias para atingir o leitor do periódico de
modo fácil e apreciável à leitura. Em seu conjunto, expressavam os interesses em maximizar o
espaço dos artigos sobre a vida social e política tornando a informação mais direcionada aos
objetivos propostos pelos editores, especialmente, à expansão do periódico nos lares dos
membros da Igreja e fora.
É importante lembrar que os militares permaneceram por mais tempo no governo por
terem apoio de jornais e demais meios de comunicação que os apoiaram. Muitos por
acreditarem, talvez, que o país seria grande como o “irmão do norte”, os EUA, outros por
acreditarem que teriam benesses e incentivos ficais, como muitos tiveram, de fato.
Ao longo da empreitada, os proprietários dos veículos de comunicação de
massa – grandes jornais, revistas, estações de rádio e da ainda principiante
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
rede de televisão – demonstrariam, de forma inequívoca, os limites do
liberalismo que professavam e a relativa rapidez com que estavam dispostos a
abrir mão da democracia, da liberdade de expressão e do respeito às
instituições e preceitos legais. (MARTINS; LUCA, 2006, p. 96.)
Muitos meios de comunicação renunciaram a democracia em favor de vastos e variados
interesses que iam desde o pessoal ao econômico. Tratar e discutir como o processo de apoio
que muitos meios de comunicação e a relação que tiveram com o regime é de fundamental
importância para se compreender a dimensão do apoio e até que ponto a censura ia. Estudar o
posicionamento dos editores da Revista adventista é essencial para se compreender até que
ponto membros adventistas brasileiros eram influenciados pelas ideias militares através dos
artigos, avisos etc. publicados.
Fonte
CPB Acervo Digital
Bibliografia
CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978.
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa e Estado Autoritário (1968-1978): o
exercício cotidiano da dominação da resistência: O Estado de São Paulo e Movimento. Bauru:
EDUSC, 1999.
BARROS, José D’Assunção. A fonte histórica e seu lugar de produção. Petrópolis: Vozes,
2020.
ARÓSTEGUI, Júlio. A pesquisa histórica: teoria e método. São Paulo/Bauru: Edusc, 2006
EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Editora Unesp, Boitempo
editorial, 1997.
FILHO, Daniel Aarão Reis. Ditadura e Democracia no Brasil: do golpe de 1964 à Constituição
de 1988. – 1. ed. – Rio de Janeiro: Zahar, 2014.
GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. – São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
KOSELLECK, R.; MEIER, C.; GÜNTHER, H.; ENGELS, O. O conceito de História.
Coleção História e Historiografia. Belo Horizonte: Autêntica, 2013.
400
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina de. Imprensa e cidade. São Paulo: Editora
UNESP, 2006.
NAPOLITANO, Marcos. 1964: História do Regime Militar Brasileiro. 1. Ed., 1° impressão. –
São Paulo: Contexto, 2014.
REIS, José Carlos. Teoria & História. Tempo histórico, história do pensamento histórico
ocidental e pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: FGV, 2012.
WILIAMS, Raymond. Marxismo e literatura. Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
401
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A representação dos superpoderes nas histórias em quadrinhos - aspectos
históricos dentro da sociedade
Peter Ferreira407
Resumo:
Através do surgimento dos super-heróis nos anos 1930, é perceptível que as histórias
em quadrinhos são elementos importantes para entender como um determinada população ou
cultura se interagem. Sendo observado de maneira individual, cada poder dos heróis ou vilões
representa o desenvolvimento no perfil dos personagens das histórias de aventuras, como os
quadrinhos. Ao mesmo tempo, os produtores e desenhistas começaram a interpretar a
sociedade em suas épocas, aprimorando a visão da necessidade dos superpoderes para uma
narrativa social. Elas são vistas de forma velada nos quadrinhos através das lutas sociais,
superação moral e ética, psicológicas e psiquiátricas, com entrada entre a fantasia e a realidade.
Em conjunto de sistemas narrativos, elas se baseiam na análise na jornada do herói, na
qual está encrustada a necessidade da salvação - quase religiosa – da imagem do homem como
ser insuperável, perpassando pela atuação real da sociedade com os fatos do dia a dia, até
mesmo a alienação num todo ao deparar com problemas pessoais e profissionais.
Assim, esta comunicação tem como objetivo de oferecer novas oportunidades para
pensar sobre as histórias em quadrinhos ligados aos superpoderes de heróis e vilões, suas
representações dentro da sociedade e os manifestos culturais, observando os pontos históricos
envolvidos em cada quadrinho e personagem.
Palavras-chave: representação, superpoderes, sociedade.
Questão Psicológica:
Interpretar os quadrinhos para aspectos da construção da sociedade parte da premissa
do objetivo que o superpoder terá no seu papel de representação. Uma característica que tange
a complexidade da ação dos poderes nos quadrinhos são os pontos psicológicos. Estes pontos
Pós-graduando em História Social e Contemporânea pela Faculdade Única de Ipatinga e graduado em História
pelo Centro Universitário de Belo Horizonte. Atualmente trabalha na MCA Auditoria e Gerenciamento na
conferência e montagem de acervo de arquivos institucionais e privados na reparação do rompimento da barragem
de Fundão, em Mariana – MG. Lattes: http://lattes.cnpq.br/7539857896255191
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podem ser notados através das proporções e propostas carregadas pelos superpoderes,
carregadas pelos seus usuários e hospedeiros.408
De acordo com Lilian Graziano, da FDC409, ao analisar as obras de Christopher
Peterson sobre o pensamento aristotélico e suas análises de conjunto de valores ao redor do
mundo – tanto religiosos quanto éticos – se depara com virtudes ubíquas410, presentes em todas
as culturas, tais como: coragem, sabedoria, justiça, humanidade, moderação e transcendência411.
Com base nessas virtudes, verificado por diversos psicólogos, Graziano aponta que esta
análise chegou a caracterizar o modelo chamado de forças pessoais412, nas quais representam as
características do comportamento humano responsáveis pelo desenvolvimento de cada uma
dessas 6 virtudes. Segundo ela, essas forças representam aquilo de melhor que alguém tem a
oferecer ao mundo. E, quando usadas a nosso favor, elas podem nos levar a ótimos resultados.
Por isso, ela compara as forças pessoais às habilidades dos super-heróis413.
Observando os super-heróis, partimos para análise do Superman e Capitão América,
sendo estes personagens que carregarem virtudes desde a sua criação.414 Ao considerarmos as
fases que eles passaram,415 eles possuem similaridades em virtudes na conduta ao utilizar os
poderes.
No caso do Superman, sendo trabalhado por Eco em “O Mito do Superman”, o
comportamento e a influência exercida pelo desenho no leitor ou telespectador são mostrados
sob o olhar semiótico. Demonstrados dos poderes do herói, a invencibilidade – dentre outros
poderes – é personificada através do desejo da ascensão das pessoas que viviam na época nos
Há diferenças entre hospedeiros e usuários de superpoderes. Enquanto hospedeiros podem carregar poderes
vindos de outros seres que os escolhem para habitar o seu corpo, os usuários podem ter poderes ou habilidades
para manipulação de técnicas, a depender do personagem.
Fundação Dom Cabral.
Do latim que significa “em qualquer lugar”.
GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/39nSecG>.
Caracterizado por Christopher Peterson pela Psicologia Positiva trazendo perspectiva de cada indivíduo tem uma
composição própria de virtudes ou forças pessoais. As forças pessoais dão base para os 5 elementos do bem-estar,
ou seja, o emprego de maiores forças leva a mais emoção positiva, sentido, engajamento, realização e melhores
relacionamentos. Assim, estes atributos teriam 6 virtudes e 24 forças de caráter definidos pela própria
humanidade.
Disponível
em:
https://www.dvf.com.br/e-se-voce-tivessesuperpoderes/?fbclid=IwAR2HqntqQCN9FG-0_sBa61it8yyOU2NSkh9ZUEPumpOBJ0Y89Sh21arpb5Q
GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/39nSecG>.
Apesar de serem criados quase na mesma época (Superman em junho de 1938 e Capitão América em
Dezembro de 1940), os dois possuem atributos similares de quando foram criados. Através dos anos, somente
Capitão América permaneceu com alguns traços de personalidade da época de criação, enquanto Superman
houve alterações em seu perfil para atender ao público em diversas épocas.
Desde ascensão do nazismo até o final da Segunda Guerra Mundial, com períodos também demonstrados
durante a Guerra Fria.
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EUA, mas ainda demonstrando humildades e posição ética ao salvar as pessoas, mantendo em
alguns momentos sua identidade humana de Clark Kent.
Agora ao deparar com o Capitão América, os poderes do Steve Rogers também
demonstram os mesmos anseios sociais da época, porém, da forma como foram adquiridos, as
abordagens de seu uso estão atreladas a uma construção de uma imagem suprema de superação
de um povo.
Em ambos os casos, ascensão social do cidadão, de vitórias, aplacadas, maquiadas e
saciadas junto às batalhas vencidas pelos ídolos, episódio após episódio, baseia-se no que lhes
impelem as aspirações de status, de nível social, desejando ser algo formado pela mídia,
inconscientemente integrado a sua mentalidade subjetivamente, ilustrada por Eco da seguinte
forma:
Os meios ligados à nossa cultura, como as revistas de histórias em quadrinhos,
constituem um sistema coerente nesse sentido. Sobre o assunto, [...] a televisão,
o jornal, o rádio, o cinema e a estória em quadrinhos, o romance popular [...]
agora colocam os bens culturais à disposição de todos, tornando leve e
agradável a absorção das noções e a recepção de informações, estamos vivendo
numa época de alargamento da área cultural, onde finalmente se realiza, a nível
amplo, com o concurso dos melhores, a circulação de uma arte e de uma
cultura “popular.”416
Assim, seres poderosos como Superman e Capitão América, podem demonstrar as
virtudes e éticas que envolvem esta imagem ideal que a sociedade busca (seja ela em qualquer
época), está ligada a como a cultura é constituída, sendo verificado estes pontos em suas
criações, como o Quarteto Fantástico417, por exemplo, com superpoderes que transmitem
métodos e aparências diferenciadas a serem exploradas como fonte as ficções científicas,
modelo literário na moda nos anos 1960 e em contexto de Guerra Fria. É valido lembrar que
os personagens mencionados sempre estão sendo reconfigurados, mas alguns graus de essência
ainda permanecem em suas narrativas atuais.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 8-9.
Primeiro time de super-herói criado pelo escritor-editor Stan Lee e o ilustrador Jack Kirby, com primeira
aparição em novembro de 1961.
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De acordo com Cirne (1975), “o espaço criativo da obra é ocupado pela ideologia de
um momento social em sua historicidade mais profunda. Ou mais complexa [...] para refletir
de maneira simplesmente mecânica a ideologia que representa”418. Ou seja, o poder
representado passa a ser valorizado em todas as camadas e, ao mesmo tempo em que os
códigos, que antes deveriam ser feitos de uma forma mais simples para que a grande massa
pudesse entender, muda com os graus de sua representatividade. Este ponto estará
intimamente ligado a questões culturais e políticas, dadas em cada período de publicação das
HQs.
Questão Cultural e Política:
Passar a perceber como os quadrinhos, principalmente a de super-heróis, é interligar a
sociedade como ela realmente é, sendo somente refletida nas HQs os conjuntos de valores
sociais vigentes em cada período. Estas são as formas de que os quadrinhos podem analisar o
superpoder do herói, fazendo que proposta seja vista em algum momento para atender aspecto
social, e quebrada pelas publicações ao identificar ativismos de rompimento no costume.
Pode-se enumerar diversos personagens da Marvel, por exemplo, para entendermos
como a sociedade era retratada e a importância dos seus poderes, percebemos que alguns
deles, como Homem-Aranha419, Luke Cage420, Pantera Negra421 e os X-Men422, rompe com a
mentalidade de representatividade ideal, muitas vezes estereotipadas em variados estilos de
desenho.
No Homem-Aranha, Peter Parker é mordido por uma aranha geneticamente
modificado, passando-lhe as habilidades aracnídeas e assim, sendo utilizados para ganhos
individuais e depois para o combate ao crime. As relações entre o herói e seus poderes vem das
atribuições da responsabilidade e a ética da ação, sendo demonstrado como contraponto da
sociedade que ainda estava preso ao biotipo atlético de seres com poder excedente, como
Superman. Ao colocar a imagem do jovem comum nos quadrinhos, seus criadores estabelecem
um novo padrão de publicação, assim como a retratação de poderes que podem ser específicos,
CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada. 2 ed. Petrópolis:
Vozes, 1975, p. 51.
Criado por Stan Lee e Steve Ditiko, surgindo em Agosto de 1962, sendo um dos primeiros heróis a ter uma
imagem comum da sociedade: um garoto em descobrimento, sem nenhum tipo de porte atlético.
Surgindo em junho de 1972, escrita por Goodwin e desenhada por George Tuska. Foi o primeiro personagem
super-herói negro a ter sua própria série de HQ's.
Surgiu nos quadrinhos do Quarteto Fantástico nº 52, de julho de 1966, criado por Stan Lee e Jack Kirby.
Criado por Stan Lee e Jack Kirby em setembro de 1963.
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sem apresentar altas capacidades. Através do lema “com grandes poderes, vem grandes
responsabilidades”, o individualismo é perdido e a ética é reafirmado.
De acordo com Tardeli, na importância das narrativas heroicas no desenvolvimento da
personalidade moral dos poderes, os super-heróis seriam “um modelo otimizado dos valores
que uma cultura entende como bons e próprios”, [...] que articula tanto o próprio (o que
somos, o que cremos que somos, o que queríamos ser), quanto o que é percebido como outro
(o que cremos que não somos quem cremos não ser), [...] sendo que muitas vezes estes termos
se confundem nos limites entre heroísmo e vilania.423 Portanto, a dualidade de ação faz com
que o poder seja algo limitante para seu usuário, fazendo que em momentos cruciais sejam
pensados, buscando motivação para atuar nos momentos de necessidade.
Estas ações são encontradas também em Luke Cage e Pantera Negra, os primeiros
heróis negros da Marvel Comics, desde seu surgimento até os momentos atuais. Falar deles,
como representantes diretos dos mecanismos sociais dos anos 1960 e 1970, é dar-lhes a
identidade de ícones durante o processo de luta pelos direitos civis nos EUA 424, com
abordagens diferenciados entre eles. Enquanto o Pantera Negra (título que é dado ao chefe de
Estado e o melhor guerreiro do país), sendo um dos primeiros heróis de origem africana,
carrega o equilíbrio entre o misticismo e a ciência em suas habilidades, com utilização de
vibranium425 e capacidades aprimoradas pela poção que lhe dá força, agilidade e velocidade.
Estes poderes só podem ser usados em alguns momentos, sendo estes de interesse de seu
próprio reino, que depois passa a ser utilizado para o bem coletivo global. Só na harmonização
que dá habilidades de combate, é notório que o processo de sua constituição seria uma ponte
para outros heróis negros, mesmo que alguns deles possuam modus operandi de acordo com o
espaço de atuação, como é o caso de Luke Cage.
Luke Cage, um dos primeiros heróis negros a ganhar seu próprio quadrinho na Marvel
Comics, é o conhecido “herói urbano” (operando em cidade grande como Nova York) e
“herói de aluguel” (recebendo remuneração na maioria das vezes em sua atuação). Surge no
TARDELI, Denise. Super-heróis na construção da personalidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.).
Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP:
423
Ideias & Letras, 2011, p. 131.
O movimento dos direitos civis dos negros nos Estados Unidos foi a campanha por direitos civis e igualdade para
a comunidade negra nos Estados Unidos.
Metal fictício encontrado em Wakanda, reino também fictício encontrado na África, sob o trono do Pantera
Negra.
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momento da moda do estilo cinematográfico blaxploitation426, gênero de representatividade
negra em variados títulos e obras, tanto literárias quanto em roteiros com aventuras (ficção ou
reais). Através da reunião da força interior com aumento da capacidade normal, como
superforça e resistência, ele atua no combate ao crime organizado, na maioria das vezes
acompanhado de outros heróis.
Em estabilidade dos heróis Pantera Negra e Luke Cage, os seus poderes e formas de
utilização ajudariam as pessoas como modelo de identificação que aponta para a formulação de
um propósito de vida, o que seria um fator importante para seu desenvolvimento psicossocial.
Isto é, no decorrer dos anos ne publicação e utilização em outras mídias (reformulados ao
longo dos anos), integra a nova forma de ver como a cultura estabelece com identificação dos
poderes. Enquanto o equilíbrio do Pantera Negra na utilização dos poderes e a concentração e
superação das adversidades de Luke Cage são demonstradas, é apontado aqui por Tardeli desta
forma, “explicando o super-herói pela perspectiva moral, observa-se, ao vencer todos os
obstáculos, diferentemente do herói trágico, ele vence todas as vicissitudes”427.
Ainda sobre as lutas pelos direitos civis nos EUA, com referência histórica dos líderes
negros Malcolm X e Martin Luther King Jr.428, a elaboração dos X-Men traz a tona outra
característica de representatividade: a igualdade e diferença ao mesmo tempo em relação a
imagem do ser humano. Enquanto os últimos heróis mencionados buscam na representação
dos poderes ao demonstrarem a superação, os X-Men buscam representar a evolução dos seres
e as consequências dessas questões. Eles partem da premissa de pessoas, com um gene
modificado (aqui chamado de gene X), desenvolverem poderes em níveis de capacidade,
chamados de “mutantes”, com denominações sendo utilizadas através do alfabeto grego. Esta
variedade de poderes, dentre outros motivos, gera grande temor entre as pessoas ditas normais
nos quadrinhos da equipe de Charles Xavier, até mesmo ocasionando revoltas e perseguições
constatntes, similares ao que ocorria com os negros na realidade pela busca de direitos.
Foi um movimento cinematográfico estadunidense que surgiu no início da década de 1970. Os
filmes blaxploitation eram protagonizados e realizados por atores e diretores negros e tinham como público-alvo,
principalmente, os negros estadunidenses.
TARDELI, Denise. Super-heróis na construção da personalidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.).
Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2011, p. 135.
Líderes negros do movimento por direitos civis nos anos 1960 e 1970. Cada líder possuía uma abordagem
diferente, enquanto um buscava por luta armada, o outro buscava por meio de discursos e manifestos, os direitos
igualitários.
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Na busca por direitos aos mutantes, o professor Charles Xavier busca uma
“coexistência” entre as pessoas pelo reconhecimento de direitos, enquanto Eric Lehnsherr, o
Magneto, acredita que um conflito entre os mutantes e humanos é inevitável, então atua como
vilão em boa parte do tempo nas HQs. Os dois líderes entram em embates constantemente,
com ideologias diferentes. O poder do Magneto, por exemplo, possui a característica que
define sua atuação enquanto um dos antagonistas dos quadrinhos, controle sob metais e ondas
magnéticas no controle de armas e seres, ao contrário do professor Xavier, que utiliza seus
poderes, sendo ampliados por dispositivos como Cérebro429 para localizar e manter seguro
mutantes, além de mantê-los acolhidos na sua escola.
De acordo com Vergueiro e Viana, essas narrativas propõe uma trajetória de criação e
transformação dos super-heróis em relação aos superpoderes estão relacionados com o
desenvolvimento histórico e social. Em Viana, o ponto de referência está a “sucessão de
regimes de acumulação”430; já em Vergueiro, é mantida o foco na sociedade estadunidense,
tomando os super-heróis e seus poderes como um fenômeno que se vincula primordialmente a
cultura deste país. Para ele, a produção/invenção dos poderes noutros “contextos culturais
costuma representar uma imitação bastante limitada do modelo narrativo original, com
resultados muitas vezes patéticos, totalmente dispensáveis – o que é pior – contraditórios em
relação à cultura nativa”431.
A partir dessas análises, podemos verificar que os X-Men, assim como outros
personagens, estão interligados para em questões políticas e sociais, através da cultura popular
narrada pelas entrelinhas dos balões dos quadrinhos estadunidenses, influenciados por seus
respectivos quadros sociais na realidade.
A realidade aqui é o centro do texto de Edmilson Marques. Em verdade, o texto de
Marques amarra a uma perspectiva metodológica/política que lhe garantiria acesso a “essência
da realidade social” que ao denunciar o maniqueísmo das superaventuras e a utilização dos
superpoderes, que corre o risco de trazê-los de maneira caricata para representações. Exemplo
disso acontece quando argumenta que:
Máquina fictícia dos X-Men, com capacidade de localizar mutantes, assim como ampliar capacidades de
mutantes telepatas, dentre outras funções.
VIANA, Nildo. Breve história dos super-heróis. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis,
cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos . Aparecida, SP: Ideias &
Letras, 2011, p. 30.
VERGEIRO, Waldomiro. Super-heróis e a cultura americana. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.).
Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP:
Ideias & Letras, 2011, p.148.
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“Assim, partindo de um ponto de vista maniqueísta, podemos chegar à
conclusão de que, nas histórias em quadrinhos, ocorre uma inversão da
realidade, colocando o bem como mal, e o mal como bem, se a partir do
pressuposto de que o mal é aquele que prejudica a vida de seres humanos.”432
Isto só colabora para que as representações sejam fechadas para públicos e formatos
para publicações-alvo, sendo construído nesta perspectiva, inicialmente, mensagens sociais a
serem alcançados, buscando reflexões e aventuras, na condução de personagens poderosos
como referência.
Conclusão:
Esses sistemas de ideias e práticas dos superpoderes dentro da sociedade acabou sendo
utilizado para a construção de uma identidade nacional ao ser usado por países em referência
cultural e mercadológica, tanto nos anos 1940 quanto atualmente, destacando a importância
dos meios de comunicação nesse processo. Será utilizado as análises dos quadrinhos da Marvel
e DC Comics, dentre outras, para uma identificação de como estes poderes representam a
ligação do contexto histórico real e a imaginação dos criadores.
A representação, neste caso, parte de vários pontos que se inserem na sociedade, desde
psicologia até política, estendendo para História como ponto de interseção, capaz de identificar
como um elemento da cultura pop, ao demonstrar pessoas ou seres utópicos com atributos
especiais, conseguem transmitir o lado desejável da superação das adversidades.
A partir da interpretação histórica, com Peter Burke, na obra A Escrita da História,
parte das análises historiográficas através de observações dos esquemas estruturais, como as de
Fernand Braudel. Neste caso, não se pode ignorar totalmente as diversas narrativas, pois o
problema não está na narrativa em si, mas no modelo narrativo usado pelos historiadores, que
deve ser ampliado para abraçar tanto a descrição quanto sua análise estrutural.433 Assim, a
produção de conhecimento, quer ele científico ou de senso comum, são elaborações
interpretativas desta realidade para dotar o mundo de sentidos que guiem as condutas da vida
MARQUES, Edmilson. Super-heróis: ficção e realidade. VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Superheróis, cultura e sociedade: aproximações multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias
432
& Letras, 2011, p.115.
BURKE, Peter. A Escrita da História: Novas Perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992.
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cotidiana.434 Neste caso, os processos de formação e estudo histórico da vida cotidiana são
conjuntos de fenômenos independentes da vontade do produtor, sendo observado a
consciência coletiva da sociedade e suas peculiaridades.
Na questão psicológica, foram apresentados dois personagens que possuem construções
narrativas similares, sendo modificados ao longo dos anos para atender o grande público em
determinadas épocas. Mas ao analisar suas essências, é notório que as diferenças também são
acentuadas. Capitão América, ao ser modificado por ser demonstrado como um poder bélico,
o Superman é apresentado como algo a ser alcançado e desejado pelas pessoas.
Na questão cultural e política, a demonstração através dos personagens pela superação
da visão e o estereótipo do ser é superado através dos poderes que os representam em cada
contexto social dos anos 1960 e 1970. No Homem-Aranha, o herói estabelece um diferencial
no poder ao adquiri-lo, sendo específico em suas habilidades e adotando novamente a ética
como modo de atuação. Em Pantera Negra, existe a harmonização das habilidades distintas e a
capacidade de utilizar em sintonia. Luke Cage carrega uma forma de poder que busca adequar
ao momento para utilização dos poderes, sem ser reconhecido e atuando em pontos locais. Por
fim, os X-Men possui os poderes que interliga o momento político social em que, ao serem
diferenciados, possuem atributos que orientam na atuação perante a sociedade.
Existem ainda outros personagens dos quadrinhos que ainda poderiam ser
mencionados, mas os apresentados possuem marcos históricos que transitam entre o ponto do
real e o imaginário, algo que os quadrinhos de super-heróis ainda realizam atualmente. Mesmo
que o recorte temporal esteja restrito ao momento da criação dos personagens, as publicações
hoje buscam trazer novidades em suas representações, com diversidade social na maioria delas,
com respeito dos novos criadores nas obras e o legado que foi deixado, tendo a liberdade de
criar códigos e mantendo as virtudes e as forças pessoais.
Referências Bibliográficas:
BURKE, Peter. A Escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992. 354 p.
CIRNE, Moacy. Para ler os quadrinhos: da narrativa cinematográfica à narrativa quadrinizada.
2 ed. Petrópolis: Vozes, 1975. 100 p.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2001. 386 p.
Idem.
434
410
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
GRAZIANO, Lilian. E se você tivesse superpoderes? Youtube, 19 mai. 2020. Disponível em:
<https://bit.ly/39nSecG>.
VIANA, Nildo; REBLIN, Iuri Andreas (org.). Super-heróis, cultura e sociedade: aproximações
multidisciplinares sobre o mundo dos quadrinhos. Aparecida, SP: Ideias & Letras, 2011. 184 p.
411
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
O anticomunismo nas páginas da Revista do Clube Militar (1995-2005)
The anti-communism in the pages of the military club magazine (1995-2005)
Vitória Weber Vieira do Nascimento
435
Resumo: O objeto desta pesquisa é o anticomunismo debatido nas páginas da Revista do Clube
Militar. O recorte temporal escolhido compreende o período de 1995 a 2005. Trabalhamos
com a hipótese segundo a qual a Revista do Clube Militar alimenta uma posição de combate ao
que entende ser uma “conspiração comunista” no Brasil. Desse modo, a RCM atua como
porta-voz dos militares e civis vinculados ao Clube Militar bem como a setores militares da
ativa.
Palavras-chaves: anticomunismo, Revista do Clube Militar, Golpe de 64.
Abstract: The object of this research is the anti-communism mentioned in the pages of Military
Club Magazine. The time cut is between the years of 1995 to 2005 and we work with the
hypothesis that the Military Club Magazine uses as a position of combat a “communist
conspiracy” in Brazil. In fact, the MCM act like a spokesperson of military and civilians linked
with the Military Club like a military sector in activity..
Keywords: anti-communism, Military Club Magazine, The Military Blow.
Introdução
Iniciou-se os estudos sobre a Revista do Clube Militar, onde foram observados muitos
ataques feitos pelos militares da reserva acerca do comunismo, pois os indivíduos que
acreditavam nesta ideologia contestavam assuntos polêmicos da Ditadura Militar, dentre eles:
Se ocorreu ou não um golpe por parte dos militares no Brasil; Lei da Anistia, que perdoou não
só os contestadores do regime, como também os torturadores; Como é formada a esquerda e
quais suas premissas no Brasil.
435
Aluna do curso de graduação em História- UFMT. E-mail: vitoriaweber1@hotmail.com
412
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Este tema adquiriu relevância diante do momento político e ideológico vivido no
Brasil nos últimos anos, em que houve grande desconfiança sobre a efetividade da democracia,
como também o início de uma forma de governo com posturas autoritárias.
Este artigo tem como propósito demonstrar como a Revista do Clube Militar
influenciou o pensamento de uma parte da sociedade, especialmente as forças militares, com a
sua interpretação do período militar e como essa visão transformou o modo de pensamento
dos indivíduos e se difundiu para parte da sociedade brasileira no período do recorte
pesquisado.
A fonte de pesquisa utilizada foi a Revista do Clube Militar, um periódico com início
de circulação em 1926. Foi fundada por oficiais da reserva ou reformados da Marinha, da
Aeronáutica e do Exército.
Nas edições da Revista Clube Militar, são narrados os acontecimentos da Ditadura
Militar, o chamado processo de redemocratização e como se sucederam os primeiros anos de
democracia após esse período da história brasileira. A partir desses acontecimentos, é possível
analisar a visão e a abordagem do grupo sobre temáticas relacionadas ao comunismo. Segundo
os autores da Revista, essa ideologia é prejudicial à nação e causa a desordem social. A maneira
em que o periódico aborda aspectos que se relacionam à ótica comunista acaba influenciando
setores das forças armadas – tendo em vista que o público maior da RCM são militares – com
a percepção de que a ideologia comunista é sinônimo de baderna e a solução para evitar a
chamada “ameaça comunista” seria dar poder e voz aos militares.
Há também nas páginas da Revista Clube Militar análises sobre o processo de
desenvolvimento econômico e político do país, com opiniões contundentes dos militares da
reserva. Estes sempre apontando favoritismo para questões como nacionalismo e segurança
nacional, ao mesmo tempo em que criticam formas de governo que se opõem à visão adotada
pelos militares. Diante do acervo do periódico, existem matérias feitas tanto por militares já na
reserva, como também de outros autores, como por exemplo Olavo de Carvalho.
Do ponto de vista teórico vários autores expõem como os meios de comunicação tem
o poder de influenciar na opinião dos indivíduos de forma que os pensamentos se alinhem
com os seus anseios políticos, que no caso da Revista, o alinhamento com o pensamento
conservador e favorável à Ditadura.
A temporalidade da pesquisa sobre o anticomunismo da Revista Clube Militar (19952005) torna-se presente à medida em que vivemos dentro de uma sociedade que ainda sente os
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reflexos da Ditadura Militar vivenciada a partir de 1964 e devido às memórias daqueles que
viveram e aprovavam o período, perpetua-se ideias de cunho autoritário até os dias atuais,
divulgadas por veículos como a RCM.
A Revista do Clube Militar como fonte de pesquisa
A Revista do Clube Militar é tomada como fonte de pesquisa segundo a visão dos
integrantes das forças armadas, entretanto para que seus pensamentos sejam compreendidos é
preciso analisar com mais clareza os autores teóricos já citados na introdução: Jean-Noel
Jeanneney, Jean-Jacques Becker e Tânia de Lucca.
O texto denominado A mídia de Jean-Noel Jeanneney, trata sobre como o autor
classifica o poder da mídia, quais são os interesses por trás dos fatos expostos e sua forma de
agir. Sendo assim, Jeanneney inicia seu artigo afirmando que muitas vezes os meios de
comunicação ao repassarem uma notícia não abordam o essencial (JEANNENEY, 1996), no
caso da Revista Clube Militar, é possível analisar a preocupação dos autores em chamar a
atenção do público para as causas defendidas pelos militares, porém sem fatores concretos que
comprovassem suas teses.
Jean Jaques Becker, em seu livro Por uma história política, aborda o conceito de
opinião pública: “integra-se no processo histórico e muito em particular na história política: se a
história é também explicação do passado, não existe explicação completa sem que seja
elucidado o papel desempenhado pela opinião pública.” (BECKER, 2003, p.201).
Do mesmo modo, no capítulo História dos, nos e por meio dos periódicos, do livro
Fontes históricas, a autora Tânia Regina de Luca informa como pesquisar por periódicos, como
por exemplo, a RCM. Para isso, ela inicia explicando que antes de haver o fortalecimento da
história cultural e da antropologia, os meios de comunicação não manifestavam preocupação
com a historiografia em suas publicações, como conseguinte, os artigos eram produzidos em
sua maioria movidos à interesses e retratavam a história de forma distorcida, com retratos
parciais. Esse fator possuía e ainda possui extrema importância quando tratamos das pesquisas
de periódicos, pois demanda enorme dificuldade saber qual a verdadeira inclinação de
determinado meio de comunicação, como também a influência que a disseminação de alguma
matéria terá. A solução, segundo a autora, é analisar as fontes, sua tiragem, a área de difusão e
sua relação com instituições políticas, grupos econômicos e financeiros (DE LUCA, 2005).
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Como já mencionado com os autores, Jean-Noel Jeanneney e Jean Jaques Becker, é
possível observar e constatar que a Revista do Clube Militar tem interesse em registrar a história
– principalmente o período do Regime Militar – de uma forma que irá beneficiar os militares.
Pode-se citar como exemplo desse interesse a forma como são retratados os opositores do
governo, como o comunismo é abordado e também as denominações utilizadas para
caracterizar o Regime Militar – citando como exemplo: “Revolução Democrática de 64”.
A “conspiração comunista” nas páginas da Revista do Clube Militar
Ao escrever o livro Mitos e Mitologias políticas, o autor Raoul Girardet tratou sobre
mitos que retratam a historiografia política mundial. Deste ensaio, trataremos dos capítulos A
conspiração e Idade de ouro.
O autor retrata os “mitos” criados durante toda a história mundial, para induzir a
sociedade a acreditar que existe um plano sistemático acontecendo enquanto a sociedade corre
perigo. Entretanto, essas ficções não se baseiam na historiografia, ou seja, no processo histórico
de acontecimentos.
Em primeiro lugar, o capítulo sobre o mito da conspiração inicia-se comentando sobre
a conspiração judaica, na qual usou-se a narrativa de que um romance escrito pelo pseudônimo
de “Sir John Retdife”, retirando-o de contexto e adicionando fatos que não existiam. A
finalidade foi fortalecer a ideia da conspiração judia, em que o pseudônimo narra uma reunião
de judeus em um cemitério judaico. Nela, eles dialogam sobre o desejo de subverter
metodicamente a ordem mundial, agindo em diversas áreas da sociedade, sendo elas
econômica, social e religiosa, e então, dominar o mundo. Além dessa história, Girardet ainda
descreve duas outras, entre elas, estão “Judeu Errante”, de Eugene Sue, tratando de uma
conspiração jesuítica e também um romance em que seu enredo principal é a maçonaria
liderando o planejamento de uma nova ordem mundial (GIRARDET, 1986).
Tanto na forma de construção dos mitos de Girardet, como na Revista do Clube
Militar, o tempo cronológico é ignorado, dando lugar à relatividade dos fatos e acontecimentos.
Dessa forma, pode-se concluir que os autores da RCM distorcem as narrativas para que
obtenham sucesso no convencimento do leitor. É possível confirmar essa afirmativa na edição
336 da Revista do Clube Militar, em um artigo denominado Nos 33 anos de eclosão da
Revolução democrática de 64, publicado em junho de 1997. Nesta matéria, o autor general
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Jonas Correa Neto436, propõe a ideia de fazer um projeto histórico, político e cultural sobre as
memórias chamada por ele de “revolução democrática de 1964”, em que os indivíduos que
experenciaram aquela época possam compartilhar suas boas vivências. O general, ao
referenciar os opositores do governo relata que a “Revolução democrática de 64” foi mal
interpretada e é até os dias atuais. Esse fator explica-se, segundo ele, pois os opositores dos
militares ocupam cargos importantes e utilizam seu poder de fala para doutrinar a sociedade
com base na teoria marxista.
A revolução e os revolucionários, somos acusados e ofendidos, condenados e
maltratados, como se houvéssemos feito alguma coisa que não devêssemos.
(...) Os comunistas querem a quebra da coesão das forças armadas e a
subversão da organização militar no país (NETO, 1997, p. 4).
Na edição 347, de maio de 1998, da Revista do Clube Roberto Campos437 faz
referência ao le livre noir du communismè, uma obra feita por professores universitários
europeus, com a temática anticomunista. O livro baseia-se na teoria de que o comunismo foi o
regime que matou mais pessoas do que qualquer outro regime de Estado ou ideologia. Diante
dos argumentos do livro, o autor, ex-Deputado federal pelo partido PPB-RJ (Partido
Progressista Brasileiro), compara o comunismo com as ditaduras que ocorreram na América
Latina após a Guerra Fria. Ao defrontá-los, o então Deputado alegou que o comunismo matou
milhares de pessoas em todos os países que se instalou e que a violência era parte do cotidiano.
Em contrapartida, afirmou que nas ditaduras militares ocorridas na América Latina as
Jonas de Morais Correia Neto, Tenente Coronel, era militar durante o período de Ditadura Militar no Brasil,
ocupou cargos no EME – Estado-Maior do Exército e também assumiu o comando do colégio militar de Porto
Alegre. VERBETE. In: CPDOC FGV. Jonas de Morais Correia Neto. Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbete-biografico/correia-neto-jonas-de-morais. Acesso em: 18 de
agosto de 2020.
Roberto de Oliveira Campos graduou-se em teologia e filosofia e atuou em diversos campos políticos, não
somente durante a Ditadura Militar, como diplomata, embaixador nos Estados Unidos e em Londres, Ministro do
Planejamento e coordenação econômica. Além desses cargos, ainda ocupou a presidência do BNDE e foi senador
em 1983. Era opositor ao governo de João Goulart e apoiou o golpe militar de 1964, alegando que João Goulart
iria comandar uma revolução comunista no país. Ademais, durante sua vida política mantinha posições contrarias
à democracia, por exemplo, durante a Ditadura Militar, votou contra a Emenda Dante de Oliveira – que deu
origem ao movimento popularmente conhecido como Diretas Já. VERBETE. In: CPDOC FGV. Roberto de
Oliveira Campos. Rio de Janeiro. Disponível em:
http://www.fgv.br/cpdoc/acervo/dicionarios/verbetebiografico/roberto-de-oliveira-campos Acesso em: 12 de agosto de 2020.
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repreensões e violências eram promovidas de maneira acidental. Como é possível comprovar
nos trechos abaixo:
Ao contrário da repressão episódica e acidental das ditaduras latinoamericanas, a violência comunista se tornou um instrumento políticoideológico, fazendo parte da rotina do governo. (...) Em termos de violência o
número de mortos e desaparecidos no Chile foi estimado em três mil,
enquanto que Fidel fuzilou 17 mil (CAMPOS, 1998, P.5).
O autor Raymundo Negrão Torres também descreve o presidente Fernando
Henrique Cardoso como um representante arrependido de sua ideologia marxista em sua
juventude e culpa alguns indivíduos que ocupam cargos em seu governo de serem responsáveis
por implantações classificadas como ruins (pelos militares), por exemplo a lei dos
desaparecidos políticos no Brasil e a lei da anistia – para os opositores ao regime. Como é
possível observar nos trechos abaixo:
Porque a maioria esmagadora da sociedade já fizera sua opção contra a
baderna acobertada por um governo que se tornara refém das manobras
cubano-soviéticas para comunizar o Brasil. (...) Fernando Henrique Cardoso,
o antigo militante da Ação Popular e hoje penitente confesso e arrependido
de seu marxismo juvenil (TORRES, 1997, P. 12).
Ao relacionar este artigo de crítica da RCM com o capítulo A conspiração de Raoul
Girardet é possível notar como os militares da reserva colocam todos os indivíduos que não
compartilham da mesma ideia militarista como incompetentes para cargos públicos, ao passo
que somente os militares souberam e ainda saberiam comandar o Brasil.
Já no capítulo Idade de ouro do livro Mitos e mitologias políticas, Raoul Girardet
relembra que a aclamação de parte da população por tempos antigos não é algo recente, pois já
aconteceu outras vezes na história mundial, a exemplo da expressão citada por Girardet
“refazer 1789”. Esse tipo de manifestação social normalmente surge quando existem problemas
graves enraizados na sociedade, ligados à corrupção, crise nos valores e dos costumes.
Entretanto, o autor explica que o desejo de retorno ao passado como algo bom, na verdade, é
equivocado, pois baseia-se na memória histórica individual e esse plano imaginário nunca é um
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registro fiel dos fatos. Sendo assim, o passado desejado pelos indivíduos, na verdade, nunca
existiu ou se passou de forma idealizada e serve como referência saudosista. Esse desejo
encontra-se no imaginário. É um passado idealizado que não retornará no presente.
Esse pedido de volta às dinâmicas de um tempo passado é bastante propagado nas
páginas da Revista do Clube Militar, pois, como já dito anteriormente, os militares, autores da
revista, apenas julgam corretas as medidas governamentais tomadas durante o período militar e,
por conseguinte, todos os outros governos, com destaque nos opositores, são criticados por
eles. Sente-se, então, que no tempo presente somente existem desordem, corrupção e desvio
de valores. Por outro lado, no passado, Período Militar, encontram-se a calmaria, os bons
costumes e as medidas governamentais corretas.
Cabe ainda destacar o autor Olavo de Carvalho, que possui vários artigos publicados na
Revista do Clube Militar, como uma espécie de referência para a RCM e seus muitos dos seus
articulistas. Na edição 382, no artigo encontrado na página 7, com o título Por que ninguém
entrevista Ladislav Bittman, o ex-espião tcheco que sabe tudo sobre 1964? , o autor Olavo de
Carvalho busca distorcer a historiografia quando a mesma aponta os Estados Unidos como
mandantes do golpe militar de 64. Segundo ele, a pauta que é repassada nos livros didáticos a
respeito da tomada de poder do Brasil em 1964 pelos militares deveria ser revista. Olavo
acredita que o serviço secreto da então República Socialista Tchecoslováquia financiava os
jornais e jornalistas da época, levando-os a manipular as informações repassadas para o povo
brasileiro e, por conseguinte, a historiografia brasileira.
Raoul Girardet em seu capítulo O mito da conspiração do livro Mitos e mitologias
políticas, discorre a respeito de uma prática comum na Revista do Clube Militar, que consiste
na construção de um mito onde indivíduos planejam a tomada de poder para a mudança de
regime, no caso da RCM. Segundo ele, os comunistas buscavam tomar o poder no Brasil e
executar uma Revolução Comunista. Por causa desta conspiração, foi necessário que os
militares tomassem o poder e instalassem novamente a paz no país. A semântica desse mito
tem relação com este artigo da Revista do Clube Militar, em que o autor afirma que o chefe do
serviço tcheco de informação, chamado Ladislav Bittman, veio ao Brasil para controlar as fases
finais do Plano “Operação Thomas Mann”, um empreendimento em que os militares e aliados
acreditavam que teria havido uma conspiração na qual o governo da Tchecoslováquia teria
influenciado o desejo de implantação do comunismo no Brasil e, ainda, criado a narrativa de
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que o Golpe Militar de 64 fora uma obra dos EUA com documentos falsificados divulgados
pela imprensa.
Sabem quem inventou essa história e a disseminou na imprensa deste país?
Foi o serviço secreto da Tchecoslováquia, que naquele tempo subsidiava
numerosos jornalistas e jornais brasileiros. (...) A safadeza foi realizada através
da distribuição anônima de documentos falsificados, que a imprensa e os
políticos brasileiros, sem o menor exame, engoliram como “provas” do
intervencionismo norte-americano. (...) Redescobrir a verdade sobre 1964 é
curar o Brasil (CARVALHO, 2001, P.7).
A ideia dos militares como salvadores do Brasil contra o comunismo permanece no
artigo de Hélio Ibiapina Lima438, denominado A contra revolução restauradora de 1964- 1967,
em que se encontra na edição 407. O artigo descreve como foi o processo de planejamento
para a retirada de poder de João Goulart, preparação da “resistência”, em que os militares
observaram a aproximação de pessoas com ideologias socialistas se aproximando do governo e
das Forças Armadas.
O movimento cívico-militar de 31 de março de 1964 abortou a possibilidade
de golpe desfechado pela esquerda populista e o assalto dos comunistas ao
poder. Após uma rápida fase punitiva, abriu caminho para uma verdadeira
revolução nas áreas social, política e econômica que produziu, no período de
20 anos, um extraordinário desenvolvimento do Brasil. (...) Grupos de oficiais
da Reserva, sempre aproximados dos corpos de tropas, nas diferentes
Unidades da Federação , ligavam-se entre si e buscavam integração com civis,
alertando-os para os perigos da sistemática e tendenciosa aproximação do
Governo João Goulart com elementos de formação marxista, nas mais
diversas representações da sociedade, nas áreas do próprio governo, da
política, dos sindicatos, das associações rurais e estudantis (LIMA, 2004, P.
10).
Foi um General brasileiro. Ocupou o cargo de diretor do Clube Militar. É considerado um dos principais
responsáveis pelas violações dos Direitos Humanos durante a Ditadura Militar. Não foram encontradas maiores
informações sobre o General Hélio Ibiapina.
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Inicialmente, o autor critica o governo de João Goulart e determina-o como marxista.
Relata que no governo de Goulart havia tanta desordem a ponto de assustar a população.
Diante disso, Ibiapina narra as mobilizações populares feitas por parte da sociedade no período
anterior à 31 de março de 1964, onde destaca-se o movimento Marcha com Deus pela
liberdade, liderado pela igreja, como também o apoio da imprensa frente aos militares.
O autor ressalta que o compromisso dos militares é com o Estado e não com o
governo. E, assim, pontuou como ocorreu a eclosão para ocorrer a chamada “contrarevolução” de fato, com a destituição de diversos governos estaduais que apoiavam João
Goulart e a adesão de alguns estados ao movimento, como Minas Gerais. Diante da
mobilização, João Goulart decide não resistir e seguir em direção ao Uruguai.
Hélio Ibiapina Lima retrata a consolidação do Ato Institucional n°1, que entre outras
medidas aprovou o governo provisório e regulamentou-o. Além disso, esse Ato estabeleceu
diversas medidas antidemocráticas, tais como: confisco de bens e cassação de direitos políticos
e mandatos, regulamentou uma comissão nacional de investigação e regulou o funcionamento
do legislativo e judiciário – cujos membros foram escolhidos pelos militares.
Vale ressaltar que todos os elementos citados acima seguem o mesmo raciocínio das
demais edições da revista estudadas, justificando que tais medidas forma necessárias para a
implantação da ordem que havia sido perdida no país durante o governo de João Goulart,
como a defesa à ameaça de cunho comunista que havia se estabelecido no Brasil.
Que fazer quando já não há mais um governo que mereça respeito e
confiança ou quando ele mesmo é o principal agente da desordem e
ilegalidade? (...) a ação das Forças Armadas, naquelas circunstancias, foi um
ato lícito e indispensável, conduzido dentro da sua destinação, com
oportunidade e energia necessárias para deter a marcha acelerada do País
para a desordem e a violência com o objetivo de transformá-lo em uma
república “sindicalista-marxista” (LIMA, p. 17, 2004)
Pelo exposto neste artigo, é possível relacionar os dois mitos estudados de Raoul
Giradet: em primeiro lugar, o autor desenvolveu a narrativa da conspiração, ao mencionar o
Golpe Militar, o autor descreve-o como necessário para livrar o Brasil das garras do
comunismo; em segundo lugar, é notável a descrição do autor acerca do Período Militar, em
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especial sobre o Ato Institucional n°1, no qual é possível relacionar o mito da Idade de ouro,
pois Ibiapina a expõe o período de Ditadura Militar como de notável desenvolvimento, sendo
eles econômico, político e social.
Considerações Finais
Neste artigo, pesquisamos a natureza do anticomunismo divulgado nas páginas da
Revista do Clube Militar, no período de 1995-2005. Comprovamos a nossa hipótese segundo a
qual a Revista do Clube Militar alimentou uma posição de combate ao que entendia ser uma
“conspiração comunista” no Brasil do período em estudo. A Revista atuava como porta-voz dos
militares da reserva e de civis vinculados ao Clube Militar bem como a setores militares da
ativa.
No decorrer da nossa investigação da Revista do Clube Militar, surgiram outras pautas
importantes como a questão do Golpe de 64 e a própria Ditadura Militar, temáticas que
complementavam a abordagem feita sobre o anticomunismo, o que enriqueceu muito a
pesquisa.
Em muitos artigos encontrados nas edições da Revista do Clube Militar, a pauta
principal baseia-se no tema do Anticomunismo. Do mesmo modo, é comum nos dias atuais
ouvirmos de pessoas de idade mais avançada, que o movimento intitulado pela história como
“Golpe Militar” ou “Golpe de 64”, na verdade foi uma “Revolução Democrática”, ou ainda
ouvir que “A ditadura só matou os indivíduos criminosos”.
É evidente a necessidade de analisar até que ponto as ideias divulgadas pela Revista se
estabeleceram no pensamento de parcela expressiva da sociedade brasileira ao ponto de, mais
de 30 anos após o fim da cruel Ditadura Militar, o país eleger em 2018 um presidente com
discursos autoritários e tecidos de frequentes elogios a esse regime.
Segundo os anticomunistas, se a ideologia comunista fosse implantada no Brasil, iria
de encontro com as instituições e dogmas religiosos. Já o nacionalismo, por sua vez, para eles,
era pautado na defesa da ordem pública contra as ameaças estrangeiras – ou comunistas.
Ambos discursos são publicados por membros que representam a extrema direita, por
exemplo, e um muito contundente, Olavo de Carvalho, denominado de Guru do atual
governo. Esses indivíduos visam estimular o extremismo de direita, o pânico, o anticomunismo
e o antipetismo em seus discursos.
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No decorrer da nossa investigação tomamos como referência teóricas os capítulos
Mito da conspiração e Idade de ouro do autor Raoul Girardet em sua obra Mitos e mitologias
políticas. Pudemos observar que a Revista do Clube Militar compreende a tomada do poder
em 1964 (por meio de um golpe), sendo necessária diante da existência de um “Plano de
Revolução Comunista”. Esse discurso, mesmo após o fim do Regime Militar, perpetuou-se da
Revista Clube Militar. Interpretamos que em seus artigos há da defesa da teria de que há uma
ideia permanente de uma conspiração comunista voltada a levar o Brasil à desordem, à
violência e à pobreza. No capítulo Idade de ouro Girardet demonstra que muitas vezes os
indivíduos não conseguem diferenciar o que de fato realmente aconteceu daquilo que é parte
da sua memória pessoal. Isso ocorre, pois os seres humanos costumam, em certas situações,
relembrar somente acontecimentos bons e criar uma memória de caráter seletivo. Nesse
sentido, a Revista do Clube Militar, no período aqui estudado, constrói uma versão da história
de acordo com a qual o período da ditadura militar é caracterizado como revolucionário,
democrático e de grande bem-estar social. Nessa visão da história, as medidas autoritárias
tomadas pelo governo, por exemplo, o Ato Institucional n°5, foram necessárias para livrar o
Brasil da Ideologia Comunista.
Considerando o que investigamos ao longo deste artigo, tomando por base os teóricos,
a historiografia e a análise das fontes primárias da Revista do Clube Militar. Acreditamos que
caiba à historiografia desmistificar as narrativas como esta da RCM,
que são voltadas à
construção de uma versão revisionista da história dentro da qual os militares das Forças
Armadas, apoiadas por civis, figuram como heróis nacionais diante do combate à pretensa
ameaça comunista em 1964, ou mesmo no período estudado neste artigo, 1995-2005.
Com efeito, esta pesquisa adquire singularidade diante de uma história do tempo
presente à medida em que desvenda os meandros de um discurso da Revista do Clube Militar
sobre o comunismo ainda muito vivo na sociedade brasileira contemporânea. Cabe destacar
que tanto a temática do comunismo como os articulistas da RCM, entre eles o astrólogo Olavo
de Carvalho, continuam presentes no cotidiano brasileiro e contribuem com a ideologização e
polarização política, via de regra, com a defesa de posturas antidemocráticas.
Por fim, registramos também a relevância da defesa do ensino de História do Brasil a
partir de premissas científicas elaboradas pelo consenso historiográfico acadêmico a fim de que
o revisionismo histórico, com as suas manipulações e distorções dos fatos, tal qual evidenciado
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em nossa fonte primária de pesquisa, não ganhe reconhecimento e apoio popular como
expressão de verdade histórica. O desafio do fazer historiográfico é permanente!
Referências
Fontes
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ST05 – História e Marxismo
Genocidio político: el extermínio de la Unión Patriótica en el marco del conflicto
armado en Colombia
Felipe Garzón Serna439
Resumen: La Corte Interamericana de Derechos Humanos CIDH tiene abierta una denuncia
contra el Estado de Colombia por el asesinato y desaparicón forzada de aproximadamente seis
mil miembros y simpatizantes del partido político Unión Patriótica, movimiento político que
nació como una convergencia de fuerzas políticas alernativas de izquierda creado en el año
1984 como parte de la negociación y los acuerdos de paz alcanzados entre el gobierno del
presidente de Colombia Belisario Betancur (1982 – 1986) y el grupo guerrillero de ideología
marxista – leninista FARC - EP (Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia – Ejército del
Pueblo). Este artículo propone una clasificación de genocidio político al proceso de exterminio
sistemático de este partido político con base en los procesos de denuncia y visibilización
llevados a cabo por las víctimas, familiares, sobrevivientes y organizaciones de derechos
humanos.
Palabras Clave: Genocidio político, Conflicto armado, exterminio
Consideraciones iniciales
Colombia es tal vez uno de los pocos países del mundo (si no el único) en el que un
partido político en su totalidad fue exterminado de forma sistemática por su orientación de
izquierda, alternativo a los partidos tradicionales de derecha (partidos Liberal y Conservador).
Se trata del partido político Unión Patriótica, cuyo exterminio físico ha sido orquestado
por el propio Estado colombiano a través de funcionarios, políticos y agentes de la fuerza
pública (militares y policías) en complicidad con grupos paramilitares de extrema derecha que
fueron creados en Colombia principalmente desde la década de 1980 para combatir y erradicar
Mestrando em História na Universidade Federal de Alagoas UFAL/ Bolsista OEA - GCUB
E-mail: felipe.garzon.wlg@gmail.com
Orientador: Prof. Dr. Anderson da Silva Almeida/PPGH-UFAL
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sistemáticamente la insurgencia armada, el comunismo y todo aquello que fuera considerado
como su base social (sindicatos, movimientos sociales, estudiantes, líderes sociales, defensores
de derechos humanos, ambientalistas, entre otros).
El genocidio practicado contra el partido político colombiano Unión Patriótica (UP) se
inscribe dentro de las experiencias de exterminio de fuerzas políticas de oposición a nivel
internacional (CEPEDA, 2006).
En el mundo, representa un caso emblemático de
aniquilación sistemática de los militantes y simpatizantes de todo un grupo político por motivo
de sus convicciones ideológicas de izquiera, alternativo al bipartidismo tradicional de Colombia
que históricamente ha monopolizado el poder político y económico del país.
No siendo suficiente con el asesinato sistemático de los miembros del partido UP, las
amenazas, persecuciones, desapariciones y muertes también se han extendido hacia
simpatizantes, familiares y todo aquello que pudiera ser considerado como la base social del
partido y de las guerrillas, sin hacer mucha diferenciación entre estas: sindicatos, estudiantes,
líderes campesinos y muchas otras poblaciones fueron y siguen siendo víctimas de un
exterminio sistemático (GMH, 2013).
Antecedentes
Tristemente, el genocidio contra la Unión Patriótica no ha sido el único caso de
violencia masiva y sistemática contra agrupaciones políticas en Colombia. La supresión violenta
de rivales políticos ha sido una práctica trágicamente común en la historia del país. Hace parte
de su cultura política desde su nacimiento como república independiente entre los años de
1810 y 1819. A lo largo de ese siglo XIX los bandos centralistas y federalistas se enfrentaron a
muerte en la naciente nación a través de una serie de guerras civiles por el modelo de Estado, y
el ordenamiento y distribución de los poderes central y regionales (GMH, 2013).
Para el siglo XX, esa violencia política se degradó a un enfrentamiento directo entre los
partidos políticos Liberal y Conservador que encontró su máxima expresión entre los años
1948440 y 1958441, un período que se conocería como “La Violencia” y que dejó alrededor de
200.000 muertos, la gran mayoría de ellos campesinos simpatizantes de uno u otro partido
El 09 de Abril de 1948 fue asesinado en la ciudad de Bogotá el candidato presidencial por el partido Liberal
Jorge Eliécer Gaitán, acto que desencadenaría un nuevo ciclo de violencia entre los partidos Liberal y Conservador
que se extendería por todas las regiones del país.
En 1958 se da inicio al Frente Nacional, un pacto bipartidista que pretendía ordenar la distribución del poder
ejecutivo de manera alternada cada cuatro años para así intentar detener la violencia entre Liberales y
Conservadores.
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(OQUIST, 1978).
Desde la década de 1960, en el contexto internacional de la guerra fría, la persecución y
supresión violenta de grupos políticos se ha concentrado básicamente en los movimientos
alternativos de izquierda, comunistas, socialistas, sindicatos, entre otros. Esta tendencia ha
condicionado contundentemente la posibilidad de que en Colombia surjan opciones políticas
plurales y diversas como se espera que acontezca en una sociedad democrática y en un Estado
Social de Derecho (GMH, 2013).
Para el caso de la Unión Patriótica, este partido político nació como una convergencia
de diversas fuerzas políticas alternativas al bipartidismo tradicional, entre ellas el Partido
Comunista Colombia (PCC). Esta convergencia tiene lugar a raíz del proceso de negociación y
acuerdos de paz alcanzados entre el gobierno del presidente conservador Belisario Betancur
(1982 – 1986) y el estado mayor de la organización guerrillera Fuerzas Armadas
Revolucionarias de Colombia (FARC). En el año 1984 las partes en negociación firmaron un
conjunto de compromisos para posibilitar un alto al fuego entre esta guerrilla y el Estado
colombiano.
Este grupo de compromisos fueron conocidos como los “acuerdos de La
Uribe”442 (CEPEDA, 2006).
Entre los acuerdos alcanzados en este escenario de negociación y de paz se estableció la
creación de un movimiento político legal y de oposición para permitir que los miembros de la
guerrilla de las FARC abandonen la lucha armada y se reincorporen a la vida civil con la
posibilidad de ejercer plenamente los derechos políticos y participar formalmente en los
espacios democráticos a nivel local, regional y nacional. Fue en ese contexto que nació en 1984
el partido Unión Patriótica como una convergencia de miembros de la guerrilla de las FARC
junto a otros movimientos alternativos de izquierda históricamente excluídos de la participación
política en Colombia.
En efecto, desde sus comienzos la UP fue sometida a toda clase de señalamientos,
estigmatizaciones, amenazas, hostigamientos y asesinato de sus miembros que incursionaron en
un escenario político caracterizado por la histórica monopolización del poder en los partidos
tradicionales de derecha: Liberal y Conservador. Desde el momento mismo en que la UP
incursionó en la política nacional comenzaron los asesinatos selectivos contra sus miembros,
quienes eran vistos como una amenaza real que obtuvo resultados significativos en las
elecciones locales y regionales del país de los años 1986 y 1988.
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Por el lugar donde se firmaron: municipio de La Uribe, departamento colombiano del Meta
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El exterminio sistemático
La Unión Patriótica se consolidaría como la tercera fuerza política del país después de
los partidos tradicionales Liberal y Conservador. Sin embargo, el precio a pagar sería inmenso.
En el proceso de exterminio sistemático de la UP fueron asesinados el presidente del partido, 2
candidatos presidenciales, 8 congresistas, 13 diputados, 70 concejales, 11 alcaldes, y en total
alrededor de 6000 víctimas de asesinato o desaparición forzada de miembros y simpatizantes a
través de acciones criminales combinadas por políticos, fuerza pública y grupos paramilitares.
A raíz de la persecución, asesinatos selectivos y la evidente falta de garantías para que
los miembros de la UP pudieran ejercer plenamente sus derechos políticos se produjeron
constantes violaciones a los acuerdos firmados en 1984 entre el gobierno de Colombia y las
FARC. Antes de 1990 se rompieron las negociaciones y la guerrilla de las FARC retomó la
lucha armada, mientras tanto la UP continuó activo en un escenario de altísimo riesgo en el que
abiertamente han sido señalados como simpatizantes de la guerrilla y acusados de servir de
portavoces de la insurgencia armada, situación que conllevó a que el Estado se negara a brindar
condiciones efectivas de seguridad y garantías políticas. Con ello se consolidaría el escenario de
persecución y exterminio sistemático de los militantes de la UP.
Varios son los rasgos característicos que configuran el escenario de persecución y
exterminio sistemático de los miembros de la Unión Patriótica. En primer lugar se evidencia
una intencionalidad clara de los autores de los crímenes contra la UP, y esa intencionalidad ha
sido la de exterminar físicamente al movimiento político, incluyendo simpatizantes, familiares y
todo aquello que pudiera ser considerado como la base social del partido (sindicatos,
estudiantes, maestros, líderes sociales, movimientos, defensores de derechos humanos). En
razón de esta clara intencionalidad de exterminar al movimiento político, víctimas y
sobrevivientes del exterminio de la UP han adelantado acciones legales para que este caso
emblemático de violencia política sea reconocido a nivel nacional e internacional como un
genocidio por razones políticas.
Además de esto, cabe resaltar que el proceso de exterminio sistemático de una fuerza
política como lo fue la UP dentro del escenario de un Estado que se considera democrático,
con unas instituciones legales que se suponen ajustadas a las normas del derecho internacional.
En razón de ello, el exterminio de la Unión Patriótica es un fenómeno que cuestiona
profundamente la condición de Democracia y las garantías sociales y políticas que de ella se
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derivan, pues a parte del aniquilamiento físico se han llevado a cabo múltiples acciones
“legales” desde el Estado colombiano para criminalizar a la oposición mediante señalamientos,
estigmatizaciones, campañas de desprestigio y decretos para limitar la participación de fuerzas
alternativas en los escenarios del poder político.
La persecución y exterminio de la UP ha trascendido a un escenario político coyuntural
que se extiende por más de dos décadas desde su creación, a lo largo de las cuales han tenido
lugar diferentes períodos presidenciales con diferentes filiaciones políticas pero de derecha al
fin y al cabo, y que tradicionalmente han ostentado los poderes político y económico de
Colombia, y han negado la naturaleza sistemática de la persecución y el aniquilamiento físico de
la oposición.
El reconocimiento de la naturaleza sistemática del exterminio de la UP ha sido más
bien un esfuerzo incansable de las víctimas sobrevivientes del exterminio, junto con diversas
organizaciones de derechos humanos que se han dado a la tarea de denunciar públicamente y
visibilizar ante la opinión pública nacional e internacional la existencia de un genocidio en
Colombia por razones de ideología política, a pesar de que la posición de los represantes del
Estado frente al exterminio de la UP ha sido la de considerarla como una desafortunada serie
de eventos que no tienen ninguna conexión entre sí (CEPEDA, 2006).
El genocidio político
Desde diferentes esferas de la sociedad colombiana se ha comenzado a cuestionar la
existencia y la naturaleza del exterminio de la Unión Patriótica. En el camino, uno de los
principales obstáculos para visibilizar esta realidad radica en el hecho de que desde el punto de
vista del Derecho internacional443 el crimen de genocidio incluye grupos nacionales, étnicos,
religiosos o raciales, pero no tipifica el crimen de genocidio por razones políticas o ideológicas.
De hecho, a nivel de América Latina solamente dos países han reconocido el crimen de
genocidio por motivos políticos. Estos países son Costa Rica444 y paradógicamente Colombia.
Para el caso de esta última, la tipificación del genocidio por razones políticas ha sido uno de los
logros históricos alcanzados por las víctimas y sobrevivientes del exterminio de la Unión
Patriótica junto con otros crímenes vinculados al terrorismo de Estado.
Después de muchos esfuerzos y reclamaciones, las víctimas consiguieron que el debate
Ver Convención para la prevención y la represión del crimen de genocidio, 1948
El artículo 375 del código penal de Costa Rica reconoce la existencia del genocidio por razón de creencia
religiosa o política.
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se llevara hasta el congreso de la república y después de un largo proceso se logró que el
Código Penal colombiano expedido mediante la ley 599 del 24 de julio del año 2000 reconozca
también la figura de genocidio por motivos políticos. En el artículo 101 de dicha ley se define
este crimen atroz como destruir total o parcialmente un grupo por razones políticas y ocasionar
la muerte de sus miembros por razones de su pertenencia al mismo.
Sin embargo, a pesar de que las víctimas sobrevivientes del exterminio de la UP han
conseguido que se tipifique el crimen de genocidio político, pocas decisiones en los tribunales
de justicia han llegado a sancionar la responsabilidad de funcionarios del Estado en el
exterminio sistemático de la Unión Patriótica lo que en últimas significa que lo que ha primado
ha sido la impunidad en los miles de asesinatos y desapariciones de los militantes de este
movimiento político.
A escala internacional, la Comisión Interamericana de Derechos Humanos CIDH
admitió el caso colectivo número 11227 del 12 de marzo de 1997 presentado por un grupo de
víctimas sobrevivientes del exterminio, la corporación Reiniciar y la Comisión Colombiana de
Juristas.
En el informe de admisión la CIDH señaló que los hechos expuestos por los
peticionarios evidencia una situación que comparte muchas características con el fenómeno del
genocidio en cuanto se ha establecido la existencia de una serie de asesinatos masivos y de
persecusión de los miembros de la Unión Patriótica con la finalidad de exterminar físicamente
al partido y toda su base social.
En desarrollo del proceso ante la CIDH, las víctimas han denunciado reiteradamente la
continuidad de las amenazas, la violencia y la persecución política contra los sobrevivientes de
la Unión Patriótica y contra otros movimientos de oposición en el país; situación de riesgo que
continúa hasta la actualidad.
Los avances que han tenido lugar a nivel internacional y a nivel de la legislación
colombiana son logros muy importantes que marcan precedentes históricos en materia de
derechos humanos; sin embargo eso ha sido sólo el comienzo en un escenario de adversidades
y múltiples formas de violencia política.
Las víctimas sobrevivientes del exterminio de la Unión Patriótica se han constituido en
un importante actor social para movilizar estos procesos históricos en la búsqueda de verdad,
justicia y reparación integral, pero también con el propósito de transformar la cultura política de
Colombia.
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O genocídio ucraniano na histórica guerra diplomática Rússia-Ucrânia
Maurício da Silva Lima445
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar as origens e os desdobramentos do Genocídio
Ucraniano acorrido na União Soviética no período de 1932 e 1933 e fomentar com o
pensamento histórico a partir desse evento o conhecimento sobre a histórica guerra diplomática
Rússia-Ucrânia que tem como um dos seus desfechos atuais a anexação da Criméia à
Federação Russa em 2014 e tensões militares nas fronteiras entre os países, recentemente. Para
estes fins, toma-se (APPLEBAUM, 2019) como aporte teórico sobre o percurso do
nacionalismo ucraniano e as políticas retaliativas soviéticas que culmina em autoritarismo no
início dos anos 1930; e (TAMANINI, 2019) sobre os usos públicos desse evento na construção
da memória coletiva. Os resultados que se alcançam nessas breves páginas são o entendimento
sobre como o Genocídio se situa em uma sequência factual de colonialismo pan-eslavista russo
na história da Ucrânia e como é empregado como pauta de defesa antirusso pelos ucranianos
no litígio político prefigurado por histórias nacionais e sentimentos nacionalistas.
Palavras-chave: Genocídio Ucraniano; Diplomacia; Crise russo-ucraniana.
Introdução
Da disputa de narrativas nacionalistas entre a Rússia e a Ucrânia após a anexação da
Península da Crimeia em 2014 à Federação Russa, surge entre os argumentos do litígio um
caso de Genocídio promovido pelo regime soviético no território ucraniano entre 1932 e 1933,
posteriormente popularizado como Holodomor446, ou Grande Fome Ucraniana, que se tornou
pauta de defesa política dos ucranianos em face do colonialismo russo existente desde os
tempos imperiais quando da adoção dos Pogroms pelos czares na retaliação aos grupos étnicos
do país. O Genocídio Ucraniano marcou a história diplomática entre os dois Estados,
sobretudo após a década de 1990 quando acontece a abertura dos arquivos soviéticos para
pesquisadores do mundo todo e o consequente esclarecimento sobre a conjuntura que deu
445
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Graduando em História pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Mauricio.silvalima@ufpe.br
A formação da palavra deriva de Holod (extermínio) e Mor (fome), palavra em ucraniano para significar o caso.
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origem ao Genocídio a partir de pesquisas documentais e bibliográficas, impulsionadas por
uma nova geração de historiadores e jornalistas. (APPLEBAUM, 2019. p. 25-26).
As narrativas historiográficas em torno do evento desfiam que o regime stalinista
promoveu na Ucrânia uma das grandes tragédias humanitárias que atingiram a Europa no
século XX no auge dos regimes totalitários, chegando à cifra de 3,9 milhões de mortes, o que
equivalia a treze por cento da população da República Popular da Ucrânia na época
(APPLEBAUM, 2019. p.15). O fator causal da mortalidade em massa foi a fome, pensada
como arma política por Joseph Stalin (1878-1953), secretário-geral do Partido Comunista da
União Soviética, para retaliar o recalcitrante nacionalismo ucraniano, movimento insurgente no
período da Guerra Civil Russa e com forte viés antissoviético, acusado de sabotar a política e a
economia do país após o fracasso da coletivização na Ucrânia. Tomando a História como
orientadora do conhecimento político sobre os fenômenos do cenário contemporâneo, faz-se
fundamental trazer esse caso da história soviética para se pensar nos atuais desfechos
envolvendo as relações de Estado que remontam às histórias nacionais entre Rússia e Ucrânia e
aprofundar o conhecimento sobre as motivações das disputas políticas no século XXI entre
essas nações, tomando o totalitarismo e a história da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
no período stalinista como motes.
Russificação, sovietização, ucranização
Para explanar o cenário histórico sobre o evento totalitário em questão é necessário
que partir das origens que deram causalidade política ao Genocídio ocorrido na Ucrânia nos
anos 1932 e 1933. Nesse sentido, tomamos a linearidade histórica com que Anne Applebaum
(2019) constrói a análise dos fatos: ao descrever os desdobramentos do evento nos anos 1930, a
pesquisadora vai apresentar o fenômeno do nacionalismo ucraniano enquanto movimento
político surgido desde a época imperial que ensejara uma inquietação dos governos russos em
face da contrafação que o senso de identidade revelava ao interesse da unidade nacional,
representando um prenúncio de secessionismo no contexto de uma política imperial
centralista. Os ideais autodeterminantes dos nacionalistas ucranianos geraram o que autora vai
chamar de “Questão Ucraniana”, que na verdade foram os problemas envolvendo o
surgimento do nacionalismo no espectro dessa política centralista russa – ainda mais marcada
pelo ideal pan-eslavista. O desenvolvimento do senso de identidade a uma nação que engendra
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a mobilização política pela autonomia alude a uma formação histórica medieval que se
intensifica na Ucrânia durante a formação dos Estados nacionais:
Pelo fim da Idade Média, existia uma língua ucraniana, com raízes eslavas,
relacionada, porém distinta da polonesa e da Russa e bem parecida com a
relação da língua italiana com o espanhol e o francês. Os ucranianos tinham
uma culinária própria, costumes e tradições locais, além dos seus próprios
vilões, heróis e lendas. Assim como em outras nações europeias, o senso de
identidade ucraniano se aguçou durante o século XVIII e XIX. Entretanto na
maior parte de sua história o território que hoje chamamos de Ucrânia foi
como a Irlanda e a Eslováquia uma colônia que fez parte das terras de outros
impérios europeus. (...) A Ucrânia pertenceu ao império Russo entre os
séculos XVIII e XX, antes disso as mesmas terras foram da Polônia, ou
melhor, da Comunidade Polaco-lituana. (APPLEBAUM, 2019, p.30)
É já sob a dominação russa que se dará o surgimento moderno do nacionalismo
craniano, motivado, principalmente, a partir da conquista de autonomia legada pelo regime
czarista que herdara o território ucraniano em 1721 quando Pedro, “o Grande”, expandiu o
território russo para o lado leste anexando a Ucrânia e legando certo grau de autonomia do
poder central – mais do que as outras regiões do Império – para que assim o czarismo pudesse
garantir a fidelidade da região à unidade o imperial.
Os cossacos ucranianos - comunidades autogovernadas de semimilitares, com
suas próprias leis internas - foram os primeiros a transformar tal sentimento
de identidade e de descontentamento em projetos políticos concretos
conseguindo privilégios incomuns e certo grau de autonomia dos czares.
(APPLEBAUM, 2019, p. 33)
Por outro lado, a autonomia em relação às outras regiões do vasto império
multiétnico fez com que o nacionalismo passasse a ser alvo de retaliação ainda no século XIX
sob a prerrogativa da preservação da hegemonia política russa pelo controle da unidade
nacional. O meio de dissuasão adotado foi desestabilizar o eixo central que caracterizava a
motricidade da identificação ucraniana - aquilo que mais o definia era a língua, falada,
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sobretudo, pelos camponeses: “A língua foi mais preservada no campo, pois como observou
Trotsky, as cidades se tornaram centros de controle colonial, ilhas de cultura russa, polonesa e
judaica num mar de campesinato ucraniano” (APPLEBAUM, p. 34). Portanto, os primeiros
reveses ao movimento nacional começaram a ser notados pelo ataque ao idioma, sinônimo de
liberdade política:
O idioma ucraniano foi o primeiro alvo. Durante a grande reforma
educacional no Império Russo em 1804, o czar Alexandre I permitiu que
algumas línguas não russas fossem usadas em novas escolas estatais, mas não o
craniano, pretexto que ele não era um idioma e sim um dialeto. O
governador-geral de Kiev, Pedólia e Evolyn declarou em 1881 que uso da
língua ucraniana nas escolas e seu emprego em livros didáticos fundamentais
poderia levá-la ao ensino de níveis superiores e no fim a legislação, aos
tribunais e administração pública, criando, assim, complicações numerosas e
alterações perigosas ao Estado russo unificado. (APPLEBAUM, 2019, p. 37)
No início do século XX, época da modernização russa em que acontecem as reformas
liberais no Império, as classes políticas e populares se fortaleceram na participação em atos
públicos e protagonizam a luta por abertura política e direitos civis, inclusive a região da
Ucrânia que participara de levantes camponeses em 1902, dando uma demonstração que além
do caráter intelectual do movimento nacional, também se tinha uma caracterização
predominantemente popular. Esse início de século vai se tornar marcante para o movimento
nacional ucraniano, pois nesse contexto de participação popular e reinvindicações é que se
enseja o fortalecimento da causa nacional a partir da liberalização política:
No entanto mesmo dentro do Império russo e os anos imediatamente
anteriores à Revolução de 1917 foram, em muitos aspectos, positivos para a
Ucrânia. O campesinato ucraniano participou com entusiasmo da
modernização ocorrida no início do século XX na Rússia Imperial. Às
vésperas da Primeira Guerra Mundial seus membros adquiriram rapidamente
conscientização política e se tornaram céticos a respeito do Estado Imperial.
Uma onda de revoltas camponesas ricocheteou tanto na Rússia quanto na
Ucrânia em 1902; camponeses desempenharam um papel crucial também no
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levante de 1905. As sublevações deram início a uma reação em cadeia de
inquietações, desestabilizaram o tzar Nicolau II e resultaram na introdução de
alguns direitos políticos e civis na Ucrânia, inclusive o direito de usar o idioma
ucraniano em público.
A segunda década do século XX vai ser também inspirativa para que o movimento
nacional ucraniano logre conquistas, pois após a Revolução de Fevereiro de 1917 os
nacionalistas veem na efervescência de grupos políticos e suas ideias (inclusive a dos
bolcheviques de separatismo dos povos não-russos como fator de desestabilização imperial) e
da queda do czarismo a oportunidade da Independência, intensificando o apoio a Rada
Central, órgão de governo que dirigiu o caminho de liberdade política nos anos de
emancipação. A região alcançara sua independência enquanto República Popular da Ucrânia
em 22 de janeiro de 1918 e sofre invasão soviética em fevereiro de 1921 e teve Symon Pleitiura
como líder socialista da luta pela Independência da Ucrânia – independência que teve curto
prazo e deixou marcas no governo soviético, sobretudo após o envolvimento da Ucrânia na
guerra civil russa que a colocaria numa memorialística de centro de independentistas
antissoviéticos. Em 1919 na assinatura do tratado de Versalhes onde acontece a divisão dos
Estados pelos vencedores da Primeira Guerra, a Ucrânia permanece enquanto território
anexado à Rússia, pois a necessidade dessa nação se desenvolver na construção do socialismo e
no contexto da Guerra Civil precisou dos seus territórios para abastecer de alimentos o exército
e desenvolver sua indústria.
O período da Guerra Civil Russa vai dar a oportunidade para que os bolcheviques
enxerguem no movimento nacional ucraniano um inimigo da causa da construção do
socialismo soviético e interessado somente na sua autodeterminação enquanto Estado
separado. Stalin no primeiro governo bolchevique foi o Comissariado do Povo para as
Nacionalidades e seu papel era convencer ou forçar as nacionalidades não russas a se
submeterem ao comando soviético com o objetivo de solapar o movimento nacional,
claramente o mais importante opositor do bolchevismo na Ucrânia:
Em seu ensaio “O marxismo e a questão Nacional” ponderou em 1913 que o
nacionalismo era um alinhamento para casa do socialismo e que os camaradas
Tinha que trabalhar só lidar e o infatigavelmente contra a névoa do
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nacionalismo sem dar importância ao Rincão do próprio viesse por volta de
1925 seus pensamentos evoluíram ainda mais para argumentação de que o
nacionalismo era essencialmente uma força camponesa. (APPLEBAUM,
2019, p. 54).
A história de lutas internas por hegemonia de territórios para russos e ucranianos, como
vimos, vai se formar a partir do século XIX e se amadurecendo à medida que a política se
transforma de autocracia para um governo mais liberal nos primórdios do século XX e,
posteriormente, com os desfechos envolvendo crises nacionalistas nos governos socialistas.
Applebaum (2019) numa sutil utilização de termos para cada um desses períodos vai designar a
etapa do século XIX como “russificação” da Ucrânia e o período revolucionário de
“sovietização” do país, que se caracterizaram pelo domínio monarquista e socialista,
respectivamente, e a continuidade do jugo russo na região. A mesma autora chama de
“ucranização” a tentativa de Lenin de estabelecer governos bolcheviques na Ucrânia, sob a
tentativa de suavizar a dominação após a Guerra Civil para que não parecesse uma invasão
estrangeira, colocando governantes bolcheviques ucranianos para que o poder não se parecesse
como domínio colonial. (APPLEBAUM, 2019. p.132).
Em 1932 acontece o desfecho final do nacionalismo ucraniano a partir da eliminação
do seu “exército de camponeses”, como identificava Stalin. Após o Plano Quinquenal de 1929
a política econômica do Partido Comunista da União Soviética passa a estabelecer que todas as
propriedades rurais se unifiquem em fazendas coletivas gerenciadas pelo Estado. A política de
coletivização atendia a demanda de crescimento do país sob a tentativa de tornar bem do
Estado todos os minifúndios. Leonardo Vizeu Figueiredo (FIGUEIREDO, 2014, pág. 76-77)
conceitua o empreendimento sob o seguinte pensamento:
[...] a apropriação pelo Estado soviético das terras, colheitas, gado e alfaias
pertencentes aos camponeses. Dessa forma, o Estado passaria a estabelecer
planos de coleta para a produção agropecuária, que lhe permitiam de modo
regular e quase gratuito abastecer as cidades e as forças armadas, bem como
exportar para o estrangeiro. Por outro lado, pretendia-se estabelecer um
efetivo controle político-administrativo sobre o campesinato, forçando-o a
apoiar o regime soviético.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Na Ucrânia a coletivização não se tornou popular entre os camponeses que
relacionavam o sentido de coletivização ao de servidão. A resistência ao coletivismo fez com
que o governo central associasse o pleito a uma tentativa de sabotagem à política e a economia
da União Soviética por parte do movimento nacional ucraniano. Como retaliação a
desobediência foi estabelecida uma cotação de dois terços da produção agrícola em forma de
pagamento de impostos para o fomento à indústria. A Comissão de Aprovisionamento de
Grãos, criada para este fim, cumpriu a tarefa de expropriar os camponeses até de suas garantias
de grãos para o sustento próprio, gerando com isso a mortalidade que perfaz o caso como
genocídio chegando ao número aproximado de 3,9 milhões de mortes pela causa da
engenharia social lançada pelo governo.
Para Figueiredo (2014,76-77)
Com o seu cortejo de violências, de torturas e de chacinas pela fome, o
Holodomor constituiu uma enorme regressão civilizacional. Assistiu-se à
proliferação de déspotas locais, dispostos a tudo, para extorquir aos
camponeses as suas escassas reservas alimentares e à banalização da barbárie,
que se traduziu em rusgas, abusos de autoridade, banditismo, abandono
infantil, "barracas da morte", canibalismo e agravamento das tensões entre a
população rural e a urbana. A “arma da fome esmagou a resistência
camponesa”, garantindo a vitória de Stálin e do seu regime totalitário; abriu o
caminho para a vaga de terror de 1937-1938 (o "Grande Terror"); O fato
deixou um legado de dor em numerosas famílias que nunca tiveram direito a
expressar o luto, porque a fome se converteu em segredo de Estado.
A grande mortalidade de ucranianos em resultado dessa política de devastação soviética
não haveria de não se tornar marcante no discurso da trajetória da Ucrânia pela conquista de
seu aparato jurídico de país, e especialmente memorar a dominação soviética nos dois séculos
de história intrínseca com a Rússia, exaltando suas conquistas sociais e políticas e tornando
expresso o descontentamento contra a sua nacionalidade.
O Genocídio Ucraniano e seu uso político na História Pública: disputas de narrativas na
contenda diplomática
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A história da Ucrânia desde o século XIX até sua Independência em 1º de dezembro
de 1991 enreda a narrativa política de acusação de colonialidade nas relações com a força de
domínio hegemônico antecessor - o Estado russo. O genocídio promovido pelos soviéticos nos
anos 1930 na Ucrânia deixaram chagas políticas muito vivas no século XXI na forma de um
ressentimento do qual os ucranianos apontam qualquer ato político russo que afete a
diplomacia entre os dois países como uma escalada colonialista contra sua soberania,
conquistada após o fim da Guerra Fria, na decomposição dos Estados-membros soviéticos.
(TAMANINI, 2019. p.160) apregoa que:
Nos grupos regionais, nos grupos sexuais, étnicos, comportamentais, de
gerações, de gêneros, entre outros, se procura ter acesso a uma memória viva
e presente no dia-a-dia. Nora conceitua os Lugares de Memória como, antes
de tudo, um misto de história e memória, momentos híbridos, pois em um
evento considerado trágico não há como se ter somente memória, mas uma
constante necessidade de identificar uma origem, os motivos, os pretextos, as
causas. Nesta perspectiva, a fome de 1931-1933, portanto, é reatualizada e
identificada como tributária de uma memória que teve uma gênesis, mas que
não se pode prever seu fim.
A memória em torno do Genocídio Ucraniano põe também em jogo questões do
Direito Internacional envolvendo a discussão sobre o separatismo, questão inconclusiva entre
os países desde a fase da primeira independência ucraniana que acabou motivando àquela ação
política trágica contra o nacionalismo radical. À medida que se vislumbra o plano da história
ucraniana, é evidenciada a tentativa da conquista de autogoverno retardada na Revolução Russa,
que impossibilitou a soberania do país no período entreguerras, no impulso do nacionalismo
de início de século XX e da formação de Estados do Leste Europeu após a divisão das
fronteiras com o fim da Primeira Guerra Mundial. Conforme jugam alguns nacionalistas
ucranianos, a independência foi tardia e a causa do seu adiamento foi o empecilho que o
secessionismo representou para o controle administrativo do socialismo soviético em formação.
Essas questões atuais envolvendo o debate sobre independência regional remetem-nos a pensar
na relação com a memória que os ucranianos dispensam sobre o fato:
438
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A memória coletiva, segundo Halbwachs, não só repete, mas recompõe e
reedita o passado, conforme as circunstâncias e conjunturas. Se memória
coletiva é uma reconstrução de algo já vivido e experimentado por um
determinado grupo ou sociedade, dentro de marcos temporais, ela, por causa
dos mesmos condicionantes pode ser contaminada pelas emoções e
sentimentos. Por certo, as recordações dos ucranianos e descendentes sobre o
Holodomor são reeditadas e remanejadas pelas circunstâncias do tempo e o
espaço em que são demandadas. (TAMANINI, 2019. p. 159)
Importante observar como a memória desse genocídio é reacendida pelas
circunstâncias das crises que a Ucrânia tem vivido desde 2014. Os ucranianos associam a
anexação da Crimeia pela Rússia como um desmando estrangeiro contra sua população assim
como foi em 1932 e anos anteriores ao massacre. O direito a autodeterminação dos povos na
formação do Estado e no reconhecimento internacional da soberania é um assunto transversal
na contemporaneidade que envolve a Ucrânia e Rússia desde quando em 2014 aconteceu no
intervalo de um mês a independência plebiscitária da República Autônoma da Criméia e sua
decorrente anexação a Federação Russa, ressuscitando as semelhanças entre o Genocídio e a
tomada territorial. A secessão é um ponto de disputa que marca o entrave da emancipação
ucraniana e agora marca o discurso russo. Os russos reivindicam a posse sobre o território que
fala em maioria da população a sua língua como fator de nacionalidade e pertencimento russo.
O elo histórico que estabelece mais afinidade histórica entre os assuntos foi esclarecido pelo
embaixador da Ucrânia no Brasil, que na oportunidade explicitou como o Genocídio deixou
traços tão marcantes na história e na geografia do país que levou a desencadear as intrigas na
última década pelas circunstâncias que as geraram:
O embaixador da Ucrânia no Brasil, Rostyslav Tronenko, afirmou em
palestra, em Brasília, que parte da motivação do atual conflito entre Rússia e
Ucrânia por parte do território ucraniano tem origens no Holodomor,
genocídio ocorrido na Ucrânia entre os anos de 1932 e 1933, em que,
segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), tirou a vida de sete a dez
milhões de pessoas, vítimas da fome. “Esquecer essas vítimas é condenar o
passado mais uma vez”, criticou. (...) Segundo o embaixador Rostyslav
Tronenko, o atual conflito entre Rússia e Ucrânia na península da Criméia, e
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mais a guerra entre ucranianos e grupos separatistas em Lugansk e Donetsk se
deve, de certa forma, a esse genocídio. Ele afirma que a fome deixou um
“vácuo populacional” no país e permitiu um preenchimento por russos,
bielorrussos, cazaques e outras nacionalidades da União Soviética que tentam
ser repatriadas pela Rússia. Essa política também teria motivado os conflitos
entre Rússia e Geórgia, que atualmente passam por uma situação parecida.
(UniCEUB, 2018)
Mais que deixar publicizar a memória da fome, os ucranianos reivindicam que ela não
caia no esquecimento.” (TAMANINI, 2019. p.161). Então o governo da Ucrânia luta para que
os Estados legitimem e reconheçam o evento histórico como uma escalada colonialista russa
que se constitui como uma agressão política qualificada como programática no plano da
História.
Na Ucrânia, após a independência nacional de 1991, foi instituído, em 26 de
novembro de 1998, o “Dia da Memória das Vítimas da Fome e das
Repressões Políticas”, a ser celebrado no quarto sábado do mês de novembro.
Mais de uma década depois, o Parlamento ucraniano, através da Declaração
de 15 de maio de 2003 e da Resolução de 28 de novembro de 2006,
formalmente especificou o Holodomor como um ato de genocídio. Na esteira
do reconhecimento ucraniano do Holodomor como um genocídio, fizeram o
mesmo outras câmaras legislativas: o Conselho Nacional da Eslováquia
(12 de Dezembro de 2007); o Congresso dos Deputados da Espanha
(30 de Maio de 2007); a Assembleia Estatal da Estónia (20 de outubro
de 1993); a Assembleia Nacional da Hungria (24 de Novembro de 2003); o
Parlamento da Letônia (13 de Março de 2008); o Parlamento da Lituânia (24
de novembro de 2005); o Senado (16 de Março de 2006) e a Câmara Baixa
do Parlamento da Polónia (6 de Dezembro de 2006); e a Câmara dos
Deputados da República Checa (30 de novembro de 2007). Merece
também destaque a cerimônia comemorativa do 70.º aniversário da Grande
Fome na Ucrânia, promovida pelo Senado da Bélgica (3 de abril de 2003),
bem como a resolução da Comissão dos Negócios Estrangeiros e
Comunitários da Câmara dos Deputados de Itália (22 de março de 2004). A
condenação por crime de genocídio foi igualmente expressa pelos seguintes
440
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
parlamentos nacionais: o Senado (17 de setembro de 2003 e 7 de novembro
de 2007) e a Câmara dos Deputados da Argentina (26 de dezembro de
2007); o Senado (28 de outubro de 1993 e 30 de outubro de 2003) e a
Câmara dos Representantes da Austrália (22 de Fevereiro de 2008); o
Senado (19 de Junho de 2003) e a Câmara dos Comuns do Canadá (27 de
maio de 2008); a Câmara dos Deputados do Chile (13 de Novembro de
2007); a Câmara dos Representantes da Colômbia (10 de dezembro de 2007);
o Congresso Nacional do Equador (30 de Outubro de 2007); a Câmara
dos Representantes e o Senado dos Estados Unidos da América (17 de
Novembro de 1983; 20 de Outubro de 1990; 10 de Setembro de 1993;
12 de outubro de 1993; 10 de Outubro de 1998; 21 de Outubro de 1998; 20
de Outubro de 2003; 29 de setembro de 2006 e 23 de setembro de 2008); o
Parlamento da Geórgia (20 de Dezembro de 2005); a Câmara dos Deputados
(19 de Fevereiro de 2008) e o Senado do México (11 de Novembro
de 2008); o Senado do Paraguai (25 de Outubro de 2007); o
Congresso da República do Peru (20 de Junho de 2007). Merecem
destaques também os relatórios da Comissão dos Direitos Humanos e das
Minorias Nacionais (2 de Dezembro de 2008) e da Comissão dos Veteranos
de Guerra do Parlamento da Croácia (4 de Fevereiro de 2009); a resolução do
Parlamento de Andorra (26 de Novembro de 2009); e a resolução da
Duma Estatal da Federação Russa (Câmara Baixa), aprovada em 2 de Abril de
2008, na qual se condena o regime estalinista pelo desprezo pelas vidas
humanas na concretização dos objetivos econômicos e políticos bem como
quaisquer
tentativas
de
ressurgimento
de
regimes
totalitários
que
desrespeitem os direitos e as vidas dos cidadãos nos estados da antiga União
Soviética. (TAMANINI, 2019. p. 171-173.)
O autor continua o catálogo das organizações internacionais que qualificam esse caso de
genocídio como um evento totalitário no século XX, endossando o discurso de perseguição
étnica durante o governo Stalin no período soviético:
Diversas organizações internacionais e regionais expressaram o seu juízo,
através das seguintes iniciativas: a) “Declaração conjunta sobre o septuagésimo
aniversário da Grande Fome de 1931-1933 na Ucrânia -Holodomor” de 7 de
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Novembro de 2003, subscrita, no âmbito da 58.ª Sessão Plenária da
Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas, por 65 estadosmembros; b) Resolução “Necessidade de uma condenação internacional
dos crimes dos regimes totalitários comunistas” incluindo o Holodomor, no
âmbito da 5.ª Sessão da Assembleia Parlamentar do Conselho da Europa, em
25 de Janeiro de 2006; c) Resolução “Homenagem às Vítimas da Grande
Fome -Holodomor na Ucrânia” de 1 de Novembro de 2007, subscrita, no
âmbito da 34.ª Conferência Geral da Organização das Nações Unidas para
a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO); d) Declaração “Em
Homenagem às Vítimas do Genocídio e das Repressões Políticas Cometidas
na Ucrânia em 1932 e 1933” da Assembleia Báltica, em 24 de Novembro de
2007; e) Declaração Conjunta “No 75.º Aniversário do Holodomor de 19321933 na Ucrânia” de 30 de Novembro de 2007, subscrita, no âmbito
da 15.ª Reunião do Conselho de Ministros da Organização para a
Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), por 33 estados-membros;
f) “Resolução sobre o Holodomor de 1932-1933 na Ucrânia” no âmbito
da 17.ª Sessão Anual da Assembleia Parlamentar da OSCE, em 3 de Julho de
2008; g) “Resolução do Parlamento Europeu sobre a evocação da
Holodomor, a fome programada na Ucrânia (1932 -1933)”, no âmbito da
Sessão Plenária do Parlamento Europeu, em 23 de Outubro de 2008; h)
“Declaração por ocasião do septuagésimo quinto aniversário da Grande Fome
de 1932-1933 na Ucrânia Holodomor” de 16 de Dezembro de 2008,
no
âmbito da 63.ª Sessão Plenária da Assembleia-Geral da Organização
das Nações Unidas; i) Resolução do Parlamento Europeu “Consciência
Europeia e o Totalitarismo” de 2 de Abril de 2009, na qual se evoca o
Holodomor;
j)
merece
também
ser
referida
a
aprovação,
pelo
Parlamento Europeu, de uma declaração sobre o “Dia Europeu da
Memória das Vítimas do Estalinismo e do Nazismo”, em 22 de Setembro de
2008.39No Brasil, as moções da Comissão de Direitos Humanos e Minorias
da Câmara dos Deputados do Brasil (19 de setembro de 2007) e da
Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados do Brasil (16 de
setembro de 2009) impetradas pelo deputado paranaense Angelo
Vanhoni (REQ 124/2007 CDHM). A nível regional, em Curitiba, a Câmara
dos Vereadores da capital do Paraná, acolheu a proposição do
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Vereador André Passos, em11 de junho de 2008 (Prop. 59.00007.2008)
reconhecendo e condenando o Holodomor. (TAMANINI, 2019. p.171-175).
É desses embates discursivos que se constituem as disputas de memória entre as duas
nações em torno do fato histórico do Genocídio, com a Ucrânia sendo apologética política
sobre o caso e a Federação Russa detratora da expressão do evento. O título da matéria do
jornal O Globo de 7 de fevereiro de 2018 “Rússia critica projeto de lei em Israel que reconhece
genocídio na Ucrânia” exemplifica os usos do passado pela História Pública, sobretudo esse
passado misturado em intencionalidades políticas que marca as crises diplomáticas entre esses
dois países e envolve um cenário internacional de crises geopolíticas maiores a medida que o
Genocídio Ucraniano se torna um evento histórico da História Geral para a comunidade
internacional.
Conclusão
A interpretação das questões políticas do presente nos leva a lançar mão de conhecer os
envolvimentos dos sujeitos históricos no passado e os resultados que se produziram das causas
que o geraram. A história magister vitae é aquela que nos ensina que existem mudanças de
tempo, mas algumas características de uma temporalidade se apresentam em outras como
herdeiras de um passado que perfaz o modus operandi com que o presente se constitui
engendrado pelos determinantes temporais. A repaginada sobre o evento que marcou a história
nacional ucraniana e russa produz interpretações inconclusivas sobre o passado comum na
história soviética desses países e gera um efeito discursivo nas pautas de defesa contra as
relações de hegemonia política entre Estados e isso nos permite avaliar os usos públicos do
passado.
São nos tempos de crise que percebemos qual o lugar da História. Após a eclosão da
crise que colocou no debate político os destinos do leste europeu e as consequências e as
adversidades que poderiam advir de tal crise é fundamental que se evidencie que o fenômeno
produzido é marcado por vultos históricos que fazem com que recaiam consequências sobre a
crise atual com conotações de inconcludência que tonificam a guerra diplomática. Por isso é
que se buscou elaborar nesse artigo breves considerações sobre o passado e o presente de uma
relação diplomática centenária marcada pelos pontos de disputa política entre russos e
ucranianos e a expectativa dos resultados da pesquisa é que os interessados em entender o atual
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
conflito se orientem pelo entendimento de uma motivação histórica que gerou todo o estado de
coisas que confluem para a guerra diplomática.
Referências
APPLEBAUM, Anne. A fome vermelha: A guerra de Stalin na Ucrânia. 1º ed.- Rio de Janeiro:
Editora Record, 2019.
FIGUEIREDO, Leonardo Vizeu. Lições de Direito Econômico. 6.ed. Rio de Janeiro: Forense,
2014.
NEIVA, Lucas; MENDONÇA, Vitor. 85 anos após genocídio, ucranianos ainda sofrem
consequências. Agência de Notícias UniCEUB: um novo ponto de vista, 2018.
Disponível em: http://www.agenciadenoticias.uniceub.br/?p=19065 . Acesso em
04/10/2021.
PARLAMENTO EUROPEU. Resolução RC-B6-0571/2008 de 23 de Outubro de 2008. Sobre
a comemoração do Holodomor, a fome artificial na Ucrânia (1932 -1933). Acessível em:
<https://www.europarl.europa.eu/sides/getDoc.do?type=TA&reference=P6-TA-20080523&language=PT> (acesso em 23/10/2020).
PRADO, Anderson. O jornal ucraniano-brasileiro Prácia: Prudentópolis e a repercussão do
Holodomor (1932-1933). 2017. Dissertação (mestrado em História). Programa de Pósgraduação em História, Universidade do Rio dos Sinos - UNISINOS. São Leopoldo, 2017.
Rússia critica projeto de lei em Israel que reconhece genocídio na Ucrânia. Jornal O Globo.
07/02/2018. Disponível em https://oglobo.globo.com/mundo/russia-critica-projeto-de-lei-emisrael-que-reconhece-genocidio-na-ucrania-22375018. Acesso em 09/10/2021.
TAMANINI, Paulo Augusto. O Holodomor e a memória da fome dos ucranianos (19311933): o ressentimentos na História. Projeto História; Vol. 64, (2019)
UNESCO. Parágrafo 12.1 do Regulamento da Conferência Geral. Homenagem às vítimas da
Grande Fome (Holodomor) na Ucrânia. 34º Conferência Geral. Paris, 2007. Disponível em
<https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000153838_spa?posInSet=2&queryId=94c9aa2bf0ba-4cd9-a0a3-ab6cba41309a> (acesso em 26/10/2020).
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ST06 – Combates pelo Ensino de História: teoria e prática em tempos de
negacionismo histórico
Compromissus com os saberes ancestrais na sala de aula
Sueli do Nascimento447
Alonso Bezerra de Carvalho448
Resumo: Em tempos obscuros de pandemia Covid 19, a reflexão inicia-se na origem da palavra
‘compromissus’ (que vem do latim), que requer pensar na ausência de compromisso mútuo.
Este convite é para repensar o compromissus da prática docente numa perspectiva decolonial,
parte da pesquisa, qualitativa e participante, em desenvolvimento junto ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília. A
proposta segue a linha da Filosofia e da História da Educação, tendo por referência a
autorreflexão freireana, com a qual se construa um (re)existir metodológico, epistêmico, ético e
intercultural, envolvendo os saberes dos povos originários. A metodologia envolve o espaço
tridimensional entre a memória social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas,
considerando assim, o apreender com os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as
estrelas, e com eles aprender a interpretar a simbologia que o mito embala. Pretende-se
conectar a ética e a interculturalidade num compromisso com a prática docente e os saberes
ancestrais na sala de aula.
Palavras-chave: Decolonial. Saberes Ancestrais. História e cultura dos povos originários.
Compromissus.
447
448
Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências
(Unesp), Campus de Marília. Linha de pesquisa: Filosofia e História da Educação, orientada por Alonso Bezerra
de Carvalho, mestre em Educação pela Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS/Unidade
Paranaíba-MS); integrante do Grupo de Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (Gepees), Faculdade
de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília/SP. Docente do Centro Universitário
Católico Salesiano Auxilium (UniSALESIANO), campus Araçatuba/SP, e da rede pública municipal de ensino
de Birigui/SP.
Doutor e mestre em Educação; pós-doutor em Ciências da Educação; graduado em Filosofia e em Ciências
Sociais; professor adjunto do Departamento de Didática e do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Faculdade de Filosofia e Ciências da Universidade Estadual Paulista (Unesp), Marília/SP; líder do Grupo de
Estudo e Pesquisa em Educação, Ética e Sociedade (Gepees) - Faculdade de Filosofia e Ciências da
Universidade do Estado de São Paulo (Unesp), Marília/SP.
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1 Introdução
A reflexão proposta sobre o compromissus requer pensar na origem da palavra que
advém do latim – particípio passado de compromittere, com = junto + promittere = prometer,
etimologicamente “uma promessa mútua”, que em contexto histórico-filosófico, significou o
comprometimento e a responsabilidade com o outro, ou seja, um vínculo de amizade. No
momento, tanto a amizade quanto o compromissus se apresentam com outro significado: ou
um “coleguismo”, com ausência de compromissos, com distanciamento social dos sujeitos com
ou sem máscaras, ou obscuridade de relações, que tornam discutível o conceito de alteridade.
Para os pensadores latino-americanos Mignolo e Quijano, um desafio para a sociedade
contemporânea.
Nota-se, em diversos espaços, formais ou não, que, mesmo almejando romper com o
distanciamento, os que foram historicamente silenciados - sejam eles povos originários, negros,
camponeses e comunidades tradicionais – continuam à margem. Isto confirma a necessidade
de se refletir sobre o compromissus.
Em nossa discussão, predeterminados o espaço universitário e o tempo presente - século
XXI e os tempos obscuros da pandemia Covid 19 -, carece indagar sobre a ausência de um
compromisso com o outro, o que, na filosofia dos povos originários e nos saberes ancestrais, se
define como prática de “bem-viver”.
A origem do bem-viver chegou ao Brasil mediada por uma outra língua - o espanhol. A
referência advém de uma prática ancestral dos povos que viviam na cordilheira dos Andes.
Parentes originários de uma constelação de povos que viveram por séculos na cordilheira, que
utilizavam como imagem de cosmovisão ‘a cordilheira viva’, pretendem, figuradamente, por
analogia ou metáfora, a manter uma convivência pacífica e harmoniosa como a de montanhas e
vulcões, todos harmoniosamente. Respeitadas as diferenças, a seu modo vivem. A essa
convivência chama de Pachamama - Mãe Terra - coração da Terra.
Essa cosmovisão designa o modo de estar na Terra e de estar no mundo - que constitui a
vida das pessoas e de todos os outros seres que compartilham o ar, que bebem água e que
pisam na terra - essa constelação de seres é que constitui uma cosmovisão.
A pesquisa, qualitativa e participante, em desenvolvimento junto ao Programa de PósGraduação em Educação da Faculdade de Filosofia e Ciências da Unesp, campus de Marília,
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
segue a linha da Filosofia e da História da Educação, tendo por referência a autorreflexão
freireana, com a qual se pretende construir um (re)existir metodológico, epistêmico, ético e
intercultural, envolvendo os saberes dos povos originários.
Nesta perspectiva, a metodologia envolve o espaço tridimensional entre a memória
social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas, considerando o apreender com
os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as estrelas, e com eles aprender a interpretar
a simbologia que o mito embala.
Pretende-se, nesta parte da pesquisa, conectar a ética e a interculturalidade num
compromisso com a prática docente e os saberes ancestrais na sala de aula.
O foco desta reflexão é exatamente a palavra (pensar) e sua ação (movimento), que
conecta a relação entre ética e interculturalidade. Sendo assim, faz-se necessário repensar que a
criação da palavra advém de uma necessidade humana e, nesse trajeto histórico-filosófico, ela
poderá se esvaziar dos significados que até então carregava, de suma importância para aquele
determinado tempo e espaço.
Observa-se nas sociedades originárias que a palavra possui uma conexão entre os seres.
Cabe lembrar o que mencionou Eduardo Viveiros de Castro sobre o posicionamento que
segrega os povos originários num contínuo silenciar (aos quais todos/as brasileiros/as nos
conectamos por nossas ancestralidades) de sua relação orgânica, política, social, vital com a
terra e com suas comunidades, que vivem em relação integral com a Mãe Natureza. Nota-se
esse processo, nesses mais de cinco séculos de estruturais espoliações, genocídios e etnocídios.
Também há 521 anos os povos originários protagonizam originariamente a resistência e a
(re)existência! A votação da PL 490449 é o exemplo atual do brutalismo capitalista e da ausência
de uma promessa mútua com o outro, sem compromissus.
Infelizmente, ainda se apresenta uma imagem distorcida do originários na escola, nos
jornais, na televisão, enfim, na sociedade brasileira. Mesmo com a Lei 11.645/2008, persiste
um tratamento das sociedades originárias carregado de limitações e silenciamentos. Até
quando?
Nesse contexto, os povos originários seguem no caminho de re(existir) diante da
imposta invisibilidade, como também em seu fazer frente à negação de seus saberes ancestrais
num passado não tão distante de nossa história. Unidos em Brasília, mais de seis mil originários
449
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) e demais entidades de base dos povos originários
organizaram a mobilização nacional “LUTA PELA VIDA” em Brasília: ‘Não ao marco temporal’.
447
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e aproximadamente 170 etnias se reúnem (desde agosto próximo passado), reivindicando os
direitos assegurados na Constituição Federal de 1988.
O compromissus com esses povos advém da voz da floresta, em sua naturalidade de
sentir e viver numa pedagogia própria e distinta, com que cada etnia rompe com o silêncio da
história para ecoar, em sua narrativa, ritualisticamente, sua voz para além das fronteiras
impostas e demarcadas.
Temos muito que aprender com os povos originários para que um diálogo intercultural
ocorra para aprofundar o que Freire diz da “autorreflexão”, que levará as massas à “tomada de
consciência” (2002, p. 44). Este trilhar nos faz acreditar na inserção dos sujeitos “na História,
não mais como espectadores, mas como figurantes e autores”.
Nesse pensar por um movimento que não se pode ignorar, cabe evidenciar as palavras
de Krenak (2019, p. 35-36): “[...]nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo, ao qual
algumas seletas pessoas chamam Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos
social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos
jogados nesse abismo”.
Este estudo acredita no educador que metaforicamente rompe com o silenciamento e o
apagamento histórico-filosófico dos povos num compromissus que metodologicamente
chamaremos de escutatória dialogal: um vínculo com o outro, mais do que simplesmente
perguntar ou responder.
Vínculo que sensibilize o outro a compreender o que estamos vivendo, como menciona
Krenak (2019, p.13): “Nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em
sociedade, do próprio sentido da experiência da vida. Isso gera uma intolerância muito grande
com relação a quem ainda é capaz de experimentar o prazer de estar vivo, de dançar, de
cantar”.
Assim, a proposta metodológica tem necessidade de buscar o trilhar decolonial para
desconstruir os entraves eurocêntricos, para, assim, promover uma dinâmica na perspectiva da
escutatória-dialogal.
Está aí condensada a ideia que constitui o fulcro da tese que pretendemos desenvolver:
adotar um trilhar decolonial para desconstruir os entraves eurocêntricos, corrigindo nosso
rilhar atual por esse sentir repleto de responsabilidade ética, ética alinhada à interculturalidade
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com que iniciamos nossa escutatória-dialogal com um indígena-professor, o qual contribuiu
imensamente com esta reflexão inicial. Trata-se de Casé Angatu. A ele, “Kwekatureté”.450
2 Compromissus numa escutatória-dialogal451
Pensar em ouvir o outro requer o exercício silencioso do ato de ouvir – a que
chamaremos de escutatória-dialogal, num viés ético e intercultural, lembrando que a
perspectiva decolonial possui um grande desafio diante dos entraves sócio-históricos
eurocêntricos de nosso passado e presente. Metodologicamente, a escutatória-dialogal permite
aproximar-nos do pensamento decolonial, aproximar-nos das narrativas que percorrem a
palavra (pensar) e sua ação (movimento), que conecta a relação entre ética e interculturalidade.
Nessa interface, reaprender a ouvir o outro com todos os sentidos, trajeto que nos
permite acreditar que os saberes ancestrais têm muito a contribuir no contexto históricofilosófico em favor de uma educação que contemple um bem-viver.
A diversidade é primeiro ponto a constelar as relações e não a diminuí-las e/ou a
segregá-las. Destarte, conscientemente, é preciso ter o cuidado de não “olhar para os povos
indígenas apenas do ponto de vista ocidental do colonizador” (MEDEIROS, 2012, p. 52). Esse
cuidado é referido por Freire quando fala das palavras que, ao compor frases e ao se trocarem,
não apenas estruturam um sentido, mas promovem “relações entre as pessoas”, estabelecem
uma ligação ou relação que tanto pode representar “a agressividade, a amorosidade, a
indiferença, a recusa ou a discriminação sub-reptícia ou aberta” (FREIRE, 1997, p. 27).
Está aqui o princípio de nossa responsabilidade com as narrativas de quem participou e
participará da escutatória-dialogal que ressaltamos no início, para, assim, ultrapassar as paredes
eurocêntricas que se silenciam em estruturais espoliações, genocídios e etnicídios, e estimular a
aproximação tal como ocorre com a terceira parede de uma peça teatral, com a finalidade do
encontro com o outro e levá-lo a participar do processo de construção.
2.1 Procedimentos metodológicos452
450
451
452
Gratidão!
Pesquisa inicial apresentada no V Colóquio Internacional Diálogos Sul-Sul e o no II Congresso Internacional de
Pesquisa e Práticas em Educação (Conippe), em agosto de 2021, Universidade Federal do Acre (Ufac) e da
Faculdade de Filosofia e Ciências (Unesp), do campus de Marília.
Os procedimentos metodológicos são parte da estrutura inicial da pesquisa, apresentado em eventos neste ano:
XXI Fórum de Análise de Conjuntura: Covid 19: América Latina e os impactos multidimensionais da
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A pesquisa, de natureza qualitativa e participante, em fase de desenvolvimento, foi
iniciada em 2021, e seguirá um procedimento de quatro etapas, desde contatar o possível
participante, até alinhar a primeira fase da construção teórico-prática que resultou na presente
reflexão.
O aspecto metodológico baseia-se em Jacques Le Goff (1996), como também em
Benjamin (1984;1987), Deleuze (1991) e Petrucci-Rosa (2011). Em Le Goff (1996), na relação
entre história e memória e, mais especificamente, sobre memória social, num processo que se
propõe ser ativo, dinâmico e complexo. Nesse contexto, pensar em memória numa relação
comportamental com a narrativa significa adotar a mediação da linguagem – fruto da sociedade
–, em sua dimensão coletiva e suas possíveis interferências sobre o outro durante a socialização.
A confirmar esta intenção de aproveitamento, escreve o próprio Le Goff, “a memória coletiva
pode ser concebida como o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos
fazem do passado” (1990, p. 472).
Além desse aspecto, a proposta segue o pensar da narrativa – ou o pensar em
movimento –, a partir de um espaço tridimensional. Extraímos tal ideia de Clandinin e
Connelly (2011), por sua contribuição na possibilidade de compreender as vidas
experienciadas e narradas, em sua temporalidade, por pessoas, ações e contexto envolvidos.
Enquanto a escutatória-dialogal que citamos é um termo criado especificamene nesta e para
esta pesquisa sob influência de Le Goff, encontramos, como proposta para análise de
narrativas, algo semelhante nas mônadas453 de Walter Benjamin, além de outros autores. Assim
o têm feito Carla Melo da Silva, Marcelo Prado Amaral-Rosa e Maurivan Guntzel Ramos,
aplicando-a ao campo da educação.
No caso desta pesquisa, a escutatória-dialogal possibilitará a construção de nossa escrita
científica, em particular por envolver a dimensão de um espaço tridimensional, constituído pela
relação entre a memória social, a memória coletiva e as vidas experienciadas/narradas.
Com este embasamento, o presente estudo se dedica à escutatória-dialogal do primeiro
indígena-professor com quem dialogamos para além da mera leitura do corpus em análise por
parte de uma pesquisadora-professora, aprofundando-nos num processo reflexivo de
significação do registro de cada mensagem, em sucessão, da primeira a todas as demais, na
453
pandemia; V Colóquio Internacional Diálogos Sul-Sul e II Congresso Internacional de Pesquisa e Práticas em
Educação, e em capítulos de livros.
“Mônadas” refere-se a Benjamin (1984;1987), Deleuze (1991) e Petrucci-Rosa (2011), na perspectiva de que
mônada significa“ideia” e “[...] cada ideia contém a imagem do mundo” (BENJAMIN, 1984, p. 70).
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brecha conectiva para pensar no compromissus para o movimento (ação) em relação ao outro,
contato ao qual fizemos referência neste estudo.
Apresentaremos aqui as etapas que constituem a metodologia deste estudo, a começar
pela questão:
1 - O que é bem-viver para você? Uma educação conectada com o bem-viver necessita
do quê?
Constou como sugestão, ao final das questões: “Se quiser contar outros assuntos, além
das questões dadas, fique à vontade. O sentido de nosso projeto é ouvi-lo com todos os
sentidos que possam contribuir para uma educação numa perspectiva decolonial”.
Constou como sugestão, ao final das questões: “Se quiser contar outros assuntos, além
das questões dadas, fique à vontade. O sentido de nosso projeto é ouvi-lo com todos os
sentidos que possam contribuir para uma educação numa perspectiva decolonial”.
Quanto à narrativa, passará por diferentes fases: a primeira é a da pré-análise; a segunda,
a da exploração do material e a terceira, a do tratamento dos resultados, das inferências e da
interpretação, com base no pensamento de Benjamin (1984; 1987), Deleuze (1991) e PetrucciRosa (2011).
Admitida ou aprovada tal estrutura, descreveremos a prática relacionada exclusivamente
à leitura/escutatória de autores latino-americanos e a narrativas/escutatórias dos nossos
participantes, também por etapas, conforme apresentado a seguir.
1ª Etapa – Contato com o indígena-professor, descrevendo o caminho metodológico de
escutatória-dialogal a ser traçado, explicando tema, objetivo e a questão a ser respondida via
Google Meet, contando que nesse processo a resposta será transcrita.
2ª Etapa – Organização do material a ser investigado, leitura das respostas - constituída por
definição do corpus de análise, formulação da hipótese e interpretação do material coletado,
processo em que se deverão considerar todos os elementos – representatividade, critérios
apresentados, pertinência com o objetivo, ou seja, de acordo com o estudo proposto,
assegurando que as narrativas dos povos originários sejam eticamente respeitadas.
3ª Etapa – Tratamento dos resultados, inferência e interpretação a partir do registro das narrativas,
agrupadas tematicamente em categorias, de tal maneira que possibilitem as inferências. Nesse
processo inferencial, o objetivo não é somente compreender o sentido da fala, mas,
principalmente, entender o significado da mensagem proposta na primeira mensagem.
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4ª Etapa – Construção do artigo a partir da escutátória-dialogal, lembrando que “quanto maior a
naturalidade com que o narrador renuncia às sutilezas psicológicas, mais completamente ela se
assimilará à sua própria experiência e mais irresistivelmente ele cederá à inclinação de recontála um dia” (BENJAMIN, 1987, p. 204). Acredita-se numa possível multiplicação de narrativas,
enquanto reflexão da prática docente, impregnando literalmente as memórias de quem ouve/lê,
valorizando, ao mesmo tempo, as experiências-narradas - a palavra (pensar) e sua ação
(movimento) -, que conectam ética e interculturalidade, cumprindo com o compromissus
escolar numa perspectiva decolonial.
Nossa escutatória-dialogal se iniciou com Casé Angatu Xukuru Tupinambá, indígena e
morador no Território Tupinambá, na Taba Gwarïnï Atã, em Olivença (Ilhéus/BA), Sul da
Bahia. Casé é docente do Programa de Pós-Graduação em Ensino e Relações Étnico-Raciais da
Universidade Federal do Sul da Bahia e na Universidade Estadual de Santa Cruz. Doutor pela
FAU/USP e autor dos livros: Nem Tudo Era Italiano; São Paulo e Pobreza na Virada do
Século (1890-1915, Annablume, 4. ed., 2018). É também um dos autores do livro Índios no
Brasil: Vida, Cultura e Morte (Intermeios, 2018), entre outros.
Casé nos deu a honra, em entrevista pelo Google Meet, para refletirmos sobre uma
ação-reflexão-ação entre escutar, ver e sentir as origens, razão por que lhe somos imensamente
Kwekatureté (gratidão)!
No início do diálogo, ele falou de sua trajetória até chegar à Taba Gwarïnï Atã, em
Olivença (Ilhéus/BA). Antes disso, viveu em São Paulo. Disse na entrevista:
Tive uma vivência em São Paulo. Minha família é de Xukuru, por parte de pai,
exclusa, excluída da terra na década de 30, lá de Palmeiras dos Índios em
Sertão dos Alagoas, Graciliano Ramos prefeito de lá, houve uma forte
perseguição pelo governo Getúlio Vargas e uma série de índios Xukurus
migraram pelo Brasil afora: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e não só
Xukuru...
Segundo Casé, o mesmo se aplica a outras etnias:
O que chamam de migração nordestina, mas chamo de diáspora indígena,
muitos familiares indígenas saíram destas terras e foram morar, é o caso da
minha família. Meu pai vai para São Paulo e conhece minha mãe – uma
Kaingaing do interior de São Paulo - e pouco ficam no interior e já vão morar
452
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
na capital juntos com outros Xukurus. Então eu nasci na cidade de São Paulo,
numa comunidade de mais de oitenta Xukurus, que a gente manteve o sotaque
nordestino. Minha mãe, apesar de ser Kaingaing, ela vem morar numa
comunidade de Xukuru. Ela adotou a cultura Xukuru, o sotaque nordestino, a
língua, a forma de falar indígena e toda a tradição.
Em plena capital paulista, em plena cidade de São Paulo, naquela região da
Zona Leste, perto do rio Tiquatira, na Penha de França, meu parto foi caseiro.
Quem fez foi minha vó – mãe de minha mãe, que veio também morar com os
Xukurus e sempre na tradição do cachimbo, da língua. Aí que vivenciei os
primeiros momentos. Minha mãe nunca conheceu a avenida Paulista; nunca
conheceu o centro da cidade de São Paulo; nunca foi ao cinema. Meu pai
nunca foi ao cinema e ambos não sabiam nem ler e nem escrever. Muita gente
confunde isso com lugar e território. O espaço pode se chamar São Paulo, mas
o território que estávamos lá era um território indígena, por nós mesmos e
nossas criações - porco, cabrito, plantava, tinha palmito. A gente comia
palmito, coco, tudo que a gente fazia numa roça indígena, a gente fazia em
plena cidade de São Paulo, e assim a gente foi criado. Teve que ir para escola,
mas a gente não foi muito bem tratado não, como a gente tem essa cara, e
minha mãe cortava o cabelo tigelinha, e a gente tinha dificuldade de falar a
língua não-indígena, aí fui colocado numa sala de aluno especial.
A escutatória-dialogal possibilitou o contato com a trajetória histórico-cultural de Casé,
além de seu trilhar como docente. Ele lecionou na Unesp, campus de Marília, na UEL, em
Londrina, até chegar à Universidade Estadual de Santa Cruz, onde, coincidentemente, em
Olivença, se encontra o povo tupinambá.
A resistência e a militância de Casé são admiráveis em tempos obscuros, tempos em que
ele já enfrentou paulada ao voltar do trabalho e o racismo médico local,454 que lhe deixaram
marcas físicas. Hoje já não leciona mais à noite por conta do perigo do trajeto do trabalho até o
Território Tupinambá, na Taba Gwarïnï Atã. Segundo suas palavras: “A gente não tem rancor,
mas tem memória”, num local repleto de preconceito, assassinato, genocídio e resistência a
viver as tradições. Continua: “Tem a ciência divina no tronco da Jurema”.455 “Primeiro vem o
454
455
O desconhecido grita “é índio!” e dá paulada; ao ir ao hospital, ao ouvir o “é índio!”, o médico costura sem
anestesia e trata mal. Costurou ele em pé.
Canto ecoado por Casé durante a escutatória-dialogal.
453
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ser, sou indígena, que sou doutor, e depois professor universitário”. “A sabedoria ancestral vem
primeiro do que o conhecimento”. “Converso com minha mãe pelo som dos pássaros, dos
matos, do balançar das folhas das árvores: esse é o bem-viver, tendo junto a natureza, um
princípio indígena”, ele explica.
Casé adverte a respeito da perda de “referência do coletivo e da natureza” e sugere
revisitar o conceito de Antropofagia. Ele diz que “não é devorar o homem, ser humano pelo
ser humano, mas devorar aquilo que já fomos... a essência que está na anga (alma)... o que
somos”, contando que “quando você entra pela mata, você é devorado pela mata e com muito
respeito”, ressaltando que “o bem-viver com a natureza é coletivamente o maior exemplo do
bem-viver indígena”.
2.3 Discussão para pensar em resultados?
Para pensar em resultados, pensemos juntos na atual educação brasileira,
especificamente no ensino superior, num ato de esperançar por uma prática decolonial que
instigue, sensibilize e que possa multiplicar, metodologicamente, a escutatória-dialogal.
Esta primeira escutatória-dialogal, a qual articulamos no trajeto desta proposta é
impregnada de sapiência prática,456 dos saberes ancestrais e da história presente, da origem
mítica e da visão de um povo, além das características ocidentais.
De acordo com as palavras de Kopenawa (2015), gente da floresta tem outra perspectiva
de existência, o que é confirmado por Krenak: “Cantar, dançar e viver a experiência mágica de
suspender o céu é comum em muitas tradições. Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte;
não o horizonte prospectivo, mas existencial. É enriquecer nossas subjetividades” (2019, p. 32).
É o que deve ser ensinado nas escolas dos não originários, escreve Angatu:
Pensamos que as contribuições para o ensino das Histórias e Culturas
Indígenas, como em relação a outros conteúdos, precisam de um constante
processo de discussão e ponderação que acompanhe a dinâmica da sociedade.
É fundamental oferecer prioridade à formação de professores nos cursos de
graduação em história, relacionando o ensino com as vivências, memórias e
sabedorias populares, incluindo a indígena. (2020, p. 62).
456
Sapiência prática; aquele que conta transmite um saber (BENJAMIN, 1984, p. 11).
454
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Além dessa problemática apresentada por Angatu, Quijano (2005, p. 127) afirma que o
não-europeu é percebido como passado, aprofundando a questão e remetendo ao sofrimento
opressivo. O que propomos, a palavra (pensar) e sua ação (movimento) que conecta a relação
entre ética e interculturalidade, é o compromissus, de suma importância na sala de aula, na
perspectiva de aprender com as subjetividades ancestrais. O que se espera é contribua para o
que Krenak manifesta: “O tipo de sonho a que eu me refiro é uma instituição. Uma instituição
que admite sonhadores. Onde as pessoas aprendem diferentes linguagens, se apropriam de
recursos para dar conta de si e do seu entorno” (2020, p. 34).
A sala de aula é espaço libertador para sonhar e no qual se espera que brotem práticas
decoloniais éticas e interculturais, através das quais se manifestem os saberes dos povos
originários; saberes que, ao serem metodologicamente estimulados, possam despertar a
escutatória-dialogal, e seu efeito seja o de (re)existir às estruturais espoliações, aos genocídios e
aos etnicídios.
Nesse espaço de discussão, aspira-se a pensar-juntos (pensamento-outro) em resultados
para um futuro com compromissus, com e para o outro. Este não é somente um convite aos
educadores, mas para pesquisadores, alunos, leitores que são de suma importância nesse
processo plural de vozes para romper com a prática eurocêntrica na sala de aula.
3 Conclusões - por um repensar
A ausência de compromissus na atualidade, que se manifesta no distanciamento social
dos sujeitos, com ou sem máscaras, como também na obscuridade dessas relações, nos
desperta para a necessidade da alteridade, ideia já encarada e discutida pelos pensadores latinoamericanos Mignolo e Quijano. Dadas a história, a cultura e as práticas já seculares, esse
conceito de alteridade representa, insistem os referidos pensadores, um desafio a ser
enfrentado pela sociedade contemporânea.
A presente reflexão considera a contribuição dos saberes dos povos originários, a partir
de uma escutatória-dialogal, uma fonte. O de que se precisa é de uma metodologia que possa
estimular a pluralidade de vozes e caminhos numa perspectiva decolonial.
O compromissus, nesse processo ético e intercultural na universidade, é suspender o céu
dos nossos horizontes e romper com o eurocentrismo na busca pelo comprometimento
decolonial.
455
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Eis o grande desafio: “escutar o outro” para, assim, numa aprendizagem decolonial,
apreender com os elementos que ensinam, como as plantas, o sol, as estrelas, numa simbologia
embalada pelo mito, que está na interculturalidade dos saberes dos povos originários.
Este estudo é um convite inicial. Nele, a palavra (pensar) e sua ação (movimento) se
conectam na relação entre ética e interculturalidade pelo compromissus de um com o outro na
sala de aula.
Nesse processo, deseja-se que todos/as/es tenham coragem, no sentido de sua
etimologia, pois procede do latim - cor, cordis, “coração”, repleto de amor (morada dos
sentimentos), para multiplicarmos nossas discussões e pesquisas!
Referências
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enfrentar os desafios na aplicação da Lei 11.645/2008: por uma história e cultura indígena
decolonial!” In: MATTAR, Sumaya; SUZUKI, Clarissa; PINHEIRO, Maria. A lei 11.645/08
nas artes e na educação: perspectivas indígenas e afro-brasileiras. São Paulo: ECA-USP, 2020.
Disponível
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http://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/view/525/463/1803-1.
Acesso
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457
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
ST07 – Formação Inicial e Continuada: a Educação Histórica como forma de
construir a Consciência Histórica de Estudantes e Professores (as) do Estado de
Alagoas
Africanidade e formação docente: reflexões sobre o Ensino de História no Alto
Sertão alagoano
Tamires Vieira da Silva457
RESUMO: O presente trabalho almeja realizar reflexões em torno da formação de professores
de história no alto sertão alagoano, enfatizando o ensino de História da África e sua
importância no processo de ensino e aprendizagem no âmbito escolar, ao mesmo em que
destaca as formações continuadas que o Grupo de Cultura Negra do Sertão, Abí Axé Egbé
promove na região. Considera-se a necessidade de pensar uma formação docente a partir de
debates que se articulem valorizando a história da África e sua colaboração na formação da
sociedade brasileira, coincidentemente, (des)construindo a visão sobre o povo africano. Como
referencial teórico apresentamos Fonseca (2011) e Bittencourt (2011) e Lamosa (2014) que nos
ajudam a pensar sobre o surgimento da disciplina História e o processo de formação docente;
para discutir a Lei 10.639/03 e as mudanças no ensino de História utilizamos Alves; Silva e
Lima (2019) e Paula; Guimarães (2014); e por fim, Gomes (2019) que apresenta como ocorre a
formação continuada para professores de História, objetivando o ensino de História e cultura
africana no sertão alagoano desde 2013. Observou a importância de incluir no contexto da sala
de aula uma historiografia que dá ênfase a História e cultura africana, além de uma formação
continuada que priorize conteúdos sobre a temática.
Palavras – chave: Formação docente; Ensino de História; Africanidade; Abí Axé Egbé.
1 A disciplina de História e a formação docente
Durante as últimas décadas muito se tem discutido sobre o ensino e a formação de
professores de história. Entre os diversos debates levantam-se questionamentos relacionados
aos desafios enfrentados pelos docentes na sala de aula, livros didáticos, conceitos, conteúdos,
Mestranda em História
tamiresvieira620@gmail.com
457
Cultural
pela
Universidade
458
Federal
de
Alagoas
(UFAL).
E-mail:
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
relação professor-aluno e, principalmente, os preconceitos e tabus que ainda rodeiam o ensino
da história da África, que nesse momento utilizaremos o termo africanidade. Estes estudos
buscam problematizar como se dá o desenvolvimento da disciplina história na sala de aula, ao
mesmo tempo em que buscam melhorar sua prática dentro do ambiente escolar, analisando o
tipo de formação docente e a dedicação ao ensinar sobre a cultura africana, por exemplo. Nesta
circunstância, muitos anseios surgem. Dentre eles, despontam, primeiramente, um em especial:
saber de que forma acontece a formação docente quando se trata de História da África?
Sabemos que a história brasileira se evidencia por intermédio de uma pluralidade
étnica, sendo essa inserida no contexto escolar e no currículo com o objetivo de dar espaço a
história que muitas vezes foi/é silenciada em sala de aula, tentando desconstruir um pouco a
visão eurocêntrica quando se fala em ensino de história. Cabe lembrar que nem sempre
ocorreu dessa forma, pois existia uma silenciamento muito grande com relação a temas como:
escravidão, cultura africana, leis abolicionistas e abolição dos escravos, por exemplo.
Antes, porém, se faz importante conhecer como a disciplina escolar458 História surgiu,
pois só foi possível criar cursos de formação docente após essa disciplina ter sido aplicada nas
escolas. Com base em Beatriz Boclin (2014), a disciplina de História surgiu no campo
educacional especificamente no século XIX, ou seja, os primeiros sinais de uma História de
bases científicas que seria ensinada nas salas de aula, era bem diferente da História ligada à
religião que os jesuítas 459ensinavam no Brasil no período colonial.
Apoiados em Fonseca descrevemos que:
Nas décadas de 20 e 30 do século XIX surgiram vários projetos educacionais
que, ao tratar da definição e da organização dos currículos, abordavam o
ensino de História, que incluía a “História Sagrada”, a “História Universal” e a
“História Pátria”. O debate em torno do que deveria ser ensinado nas escolas,
e como isso seria feito, expressava, de certa forma, os enfrentamentos
políticos e sociais que ocorriam então no Brasil, envolvendo liberais e os
conservadores, o Estado e a Igreja (FONSECA, 2011, p. 42-43).
Entende-se como disciplina escolar o agrupamento dos saberes, que possuem organização própria para o estudo
escolar, contendo objetivos específicos a serem alcançados nas series de ensino e tem a sua forma própria de
apresentar os conteúdos, partindo, contudo, de sua apresentação. (FONSECA, 2011, p.15).
“(...)os jesuítas ensinarem temas de História em suas escolas nos séculos XVII e XVIII não significa que este
conhecimento já estivesse organizado como disciplina escolar(...)”. (Idem, 2011, p.15).
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Nesta perspectiva, a educação se aproxima dos objetivos políticos. Não se pode pensar a
escola longe do Estado na sociedade capitalista (BARROSO, 2005), pois, de acordo com
princípios liberais, para se alcançar fins de êxitos econômicos é preciso reestruturar a educação
para perpetuar esse modelo de sociedade. Compete-nos ressaltar que:
A constituição da História como disciplina escolar no Brasil só ocorreu após a
Independência, quando o governo imperial iniciou a organização de uma
estrutura de ensino. [...] A estrutura curricular do período expressava a forte
presença da Igreja nos assuntos educacionais e a influência do liberalismo
como ideário político presente no país desde o fim do século XVIII
(LAMOSA, 2014).
A primordialidade de reestruturar a educação no Brasil nesse período buscava atender
as demandas capitalistas, implicando na ampliação da sociedade nos âmbitos econômicos e
educacionais. Em conformidade ao objetivo de constituir uma nação que, para além da
independência, conseguisse formar-se política, econômica e culturalmente, a concepção liberal
no século XIX tentava estabelecer o papel de moldar os cidadãos em concordância aos critérios
científicos. Desta maneira, impulsionava o projeto produtivista que é importante no
capitalismo. Formar o indivíduo para a vida civil, importunaria em um ensino controlado pelo
Estado (FONSECA, 2011).
Cabe aqui, ressaltar que nesse momento que a população brasileira era escravista; com
isso, a educação precisava atender as demandas e objetivos econômicos, políticos e sociais,
assim como a formação de professores. Sempre tentando atender a um ensino voltado para
elite, ao mesmo em que, excluíam em boa parte as minorias (pobres, escravos, indígenas).
Esse mesmo modelo foi atualizado no período republicano quando foi dada uma
atenção maior a disciplina de História, pois ela seria responsável por construir esse sentimento
de nacionalidade dos discentes. A nova geração teria que compreender e formar-se de acordo
com o perfil patriota que exigia.
Essas mudanças nos programas para as escolas elementares, profissionais e secundárias
duraram praticamente todo o século XIX, e os objetivos do ensino de História foram se
definindo ao longo desse período com maior nitidez, trazendo a História como disciplina
escolar, ao mesmo tempo em que se almejavam futuras alterações no currículo escolar, que
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precisaria se adaptar ao novo modelo de educação que estava se iniciando, simultaneamente,
em que mudaria também o perfil de cidadão que a sociedade iria cobrar futuramente
(BITTENCOURT, 2011).
A disciplina de História era vista como fundamental no currículo, tendo em vista que os
autores dos livros didáticos (docentes) ocupavam posições de poder dentro e fora da instituição
escolar, o que ajudava de forma direta e indiretamente o perfil de cidadãos que a elite social
esperava no século XIX. Devido a essas informações o currículo da disciplina de História é o
que se transforma sempre com as novas demandas para educação.
Em 1838 surgiu o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), criado com o
objetivo de elaborar uma história nacional transmitida nas escolas com o auxílio do ensino de
História. As elites que estavam no poder colocavam a identidade nacional no centro das
discussões sobre a construção da nação, era necessário que os alunos aprendessem a História
nacional. Como essa história deveria ser reconhecida por todos os brasileiros, a melhor forma
de disseminá-la seria através da escola (LAMOSA, 2014).
Nesse contexto, para a disciplina escolar História cabia:
(...) apresentar às crianças e aos jovens o passado glorioso da nação e os feitos
dos grandes vultos da pátria. Esses eram os objetivos da historiografia
comprometida com o Estado e sua produção alcançava os bancos das escolas
por meios dos programas oficiais e dos livros didáticos, elaborados sob
estreito controle dos detentores do poder (FONSECA, 2011).
Segundo Bittencourt (2011, p. 61) a escola “era lugar destinado a ler, escrever e contar”,
expressando o destaque as disciplinas Língua Portuguesa e Matemática, pois não se pensava na
História, não se articulava uma educação voltada a história local ou regional, tornava-se
importante que os alunos soubessem datas e fatos históricos “na ponta da língua”, enquanto os
professores de história, esses ainda sem uma formação específica, deveriam somente associar as
lições que envolviam leitura com o ensino de História, para que os alunos pudessem aprender
usando a imaginação460.
Cabe ressaltar que a História proposta para o ensino no séc. XIX era positivista, que mostrava necessariamente a
história dos grandes heróis, como por exemplo: Dom Pedro II, Pedro Alvares Cabral, entre outros; Além de
discutir com clareza uma história do povo branco, burguês, cristão, do mesmo modo que ressaltava datas e
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Entre os séculos XIX e XX a discussão voltada para a história nacional se tornou
bastante intensa, pois procurava-se romper com a noção de história sagrada que era aplicada
nas escolas, para que os professores pudessem ensinar aos alunos assuntos voltados à nação.
Com esse objetivo, a partir da 1920 se introduziu a disciplina escolar “Instrução Moral e
Cívica”, que ligada ao ensino de História buscava instruir a formação dos cidadãos, reforçando
assim os sentimentos patrióticos (SANTOS, 2014).
Percebe-se então que mesmo com a História enquanto disciplina aplicada nas escolas
desde século XIX, somente no século seguinte é tratada definitivamente como parte do
currículo escolar. As modificações continuaram se perpetuando. Com a instalação do regime
militar em 1964 passou-se a enfatizar nas salas de aulas, ainda mais, os fatos políticos e as
biografias dos ‘brasileiros célebres’. Entre estes, destacavam-se os principais personagens do,
então, novo regime, esquecendo com isso a História Antiga, História Medieval, e demais temas
relacionados a disciplina (FONSECA, 2011).
Após a LDB, nº 5.692 de agosto de 1971, ainda durante a ditadura civil militar as
disciplinas História e Geografia foram substituídas por “Estudos Sociais” que seria uma junção
das duas no ensino de Primeiro Grau. Nesse momento, as disciplinas de História e geografia
seriam necessariamente resumidas durante as aulas, tentando abranger conteúdos de forma
superficial. A ideia de incluir essa nova disciplina no currículo era discutida desde 1920 pelo
movimento conhecido por Escola Nova461, que buscava trazer para o Brasil uma nova
concepção de educação.
Os objetivos que foram estabelecidos para o ensino de Estudos Sociais462 a partir dos
conteúdos e atividades que eram predeterminados, em que deveriam ajustar os alunos ao meio
social que conviviam, preparando-os para uma convivência cooperativa, cumprindo assim suas
responsabilidades como cidadão através dos deveres básicos para uma comunidade
(FONSECA, 2011).
acontecimentos voltados para uma história política e militar. Certificamos, portanto, que a concepção de história
como disciplina escolar não estava concentrada apenas na formação científica da sociedade, mas também, política.
A Escola Nova foi um movimento pedagógico que reagia contra o modelo tradicional de ensino, valorizando
experiências sobre fatos de aprendizagem. Abrangendo um novo caminho aos educadores, impulsionando o olhar
do professor para novas práticas pedagógicas, dessa forma, consistia na reformulação dos métodos de ensino,
sendo decisivo na mudança do campo educacional do Brasil. (VIEIRA, 2001, p.54).
A disciplina Estudos Sociais nas escolas acabava englobando outra disciplina “Educação Moral e Cívica” que até
os dias atuais algumas escolas ainda permanecem com a mesma em seus currículos. Os conteúdos ainda são
voltados para os direitos e deveres do cidadão e sempre fazem relação a sociedade.
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No início do ano de 1980 surgiram várias propostas de mudanças curriculares voltadas
ao ensino de História e associadas ao contexto de redemocratização463 no Brasil. Neste período
de modificações no ensino, a História voltou a ser uma disciplina autônoma, separando-se
assim da Geografia e se desfazendo dos Estudos Sociais. Ao mesmo tempo, em que seu
currículo disputado por correntes historiográficas (marxismo464 e positivismo) a disciplina
escolar História nesse contexto, era voltada a memorização da biografia dos heróis nacionais
(LAMOSA, 2014).
Lamosa (2014) relata que até o fim do regime militar, nos anos 80 a disciplina de
História esteve muito associada à pedagogia tradicional, focava muito nos fatos políticos e na
história dos grandes heróis, lembrando que se fazia importante mostrar aos alunos a
importância dos grandes acontecimentos políticos, esquecendo assim dos demais conteúdos
voltados a História que são importantes para a formação do cidadão, além de se distanciar das
grandes revoltas populares, da história de desigualdade e exploração, que era o que mais se
aproximava da realidade dos discentes.
De acordo com Fonseca (2011) em meados dos anos 90, os livros didáticos e os
programas curriculares começaram a atender as tendências de uma teoria contemporânea da
História, mais voltada à história do cotidiano e das mentalidades, deixando as aulas de História
com mais conteúdos voltados a realidade dos alunos, não esquecendo, no entanto, os grandes
nomes, mas dando espaço para as pessoas comuns, também sujeitos históricos que antes não
eram ensinados na sala de aula. Contudo, esse novo modelo educacional tratou-se de articular
novos conteúdos em perspectiva contextual, crítica e inclusiva465, pois no ensino de História
também deve ser ensinado além da história dos “heróis”.
A redemocratização nos remete aos novos compromissos políticos com a população, se caracterizando pela
descentralização do poder, no caso do Brasil, a redemocratização se consolida com o fim da ditadura militar, em
1985. As transformações ocasionadas a partir desse processo ampliaram novas garantias individuais e coletivas para
a sociedade, a ponto de culminar uma eleição presidencial (civil) após 21 anos de ditatura. Devido à isso, novas
propostas também surgem ao ensino de história, que antes era regulado pelo Estado militarizado, como uma
forma de controlar o que a população precisa de fato aprender. (SOUZA, 1999).
Corrente teórica entendida como um conjunto de ideias desenvolvidas através das obras dos autores Karl Marx
(1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895). O marxismo possibilita um método próprio para se analisar a
sociedade e seus aspectos, esses ligados aos conflitos de classe e organização da produtividade social. A teoria do
marxismo se apresenta enquanto uma evolução teórica que pretende explicar o capitalismo. (NETTO, 1997).
Lembramos do impacto da Escola dos Annales na historiografia brasileira dos anos 1980/90 que contribuiu para
que a história dialogasse também com outras áreas das Ciências Humanas, desenvolvendo um caráter
interdisciplinar. Nessa perspectiva a História enquanto disciplina escolar poderia utilizar, por exemplo: novas
metodologias, novos temas e maior diversidade documental, expandindo, com isso, os efeitos do ensino de
História na sala de aula.
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Nesse contexto de mudanças, é notório que o Ensino de História continua mudando
até os dias de hoje junto aos objetivos políticos como era no início. A disciplina escolar História
ainda guarda alguns elementos desde sua origem no século XIX, sendo que todos os processos
que contribuíram para as alterações no perfil da disciplina estão interligados as transformações
da própria ciência histórica, como do contexto social, político e cultural da sociedade e do
próprio campo do ensino de História.
2 A lei 10.639/2003 e as mudanças no Ensino de História
Pensando as tantas mudanças que ocorreram no ensino de História desde surgimento
da disciplina no século XIX, destacamos nesse momento a importância da Lei Federal de nº
10.639, sancionada no dia 09 de janeiro de 2003, tal qual estabeleceu como obrigatório o
ensino da História e Cultura da África e afro-brasileira nos currículos nacionais. Perante as
mudanças no ensino de História foram adotadas no Brasil novas iniciativas que visam à
formação docente para educação básica, ao mesmo em que se acompanha os desafios
colocados às suas metodologias e práticas educacionais de acordo com a lei (PAULA;
GUIMARÃES, 2014).
A Lei 10.639/03 viabiliza “combater o racismo nas escolas e, ao mesmo tempo, (...)
reconstruir as memórias e fortalecer os referenciais da identidade negra” (ALVES; SILVA;
LIMA, 2019, p. 59). Dessarte, a formação continuada especializada no tema de africanidade se
torna primordial, visto que aos professores de História não se tinha cobrança sobre o tema na
sala de aula.
Consideramos até aqui, os professores sendo direcionados a um ensino de história
ainda pautado na visão eurocêntrica, em que o próprio livro didático silenciava o tempo todo a
historicidade do povo negro. O próprio currículo, os livros didáticos466, assim como a formação
de professores, precisaram se ‘atualizar’, incluindo com clareza, mesmo que em poucos
capítulos o conteúdo que a partir de janeiro de 2003 se tornou obrigatório.
“De modo geral, os livros didáticos ainda se limitam frente às discussões sobre a diversidade étnica do país, que
mesmo de forma indireta contribui para perpetuação do conflito à pluralidade étnica, tornando latente a ideia de
homogeneidade e mestiçagem que vislumbra a branquitude e a democracia racial”. Ou seja, mesmo que sendo
obrigatório o ensino de História e Cultura da África e afro-brasileira continua enfrentando dificuldades frente a
sala de aula, aos alunos e muitas vezes ao próprio docente. (CARVALHO, 2019, p. 80).
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A partir de então, a historiografia brasileira possibilita discutir com os alunos textos que
dão voz a africanidade, seja a cultura africana ou a história da África como um todo. Pensando
na formação dos professores de história, os mesmos podem utilizar em sala de aula, para além
do livro didático que muitas vezes apresenta um conteúdo bem resumido, autores como Clóvis
Moura e sua obra intitulada “Rebeliões na senzala”; Angela Alonso, com o texto
“Associativismo avant la lettre – as sociedades pela abolição da escravidão no Brasil
oitocentista” e até uma biografia como por exemplo, “FRANCISCO JOSÉ GOMES DE
SANTA ROSA: experiências de um mestre pedreiro pardo e pernambucano no oitocentos” de
Marcelo Mac Cord, para mostrar aos alunos as histórias que muitas vezes são “esquecidas” ou
até que não é possível incluir no planejamento escolar, na tentativa de continuar mostrando
uma história dos vencidos.
O texto Rebeliões na senzala de Moura (1981) foi um dos primeiros no século XX a
desconstruir a ideia do povo negro enquanto submisso e que, como já era costumeiro, um povo
que não se importava com sua situação de cativo. O autor apresenta as questões das rebeliões
de forma sistemática, esclarecendo os fatos históricos e como as organizações em grupo eram
importantes para o processo abolicionista e libertário.
Segundo Angela Alonso (2011), no texto “Associativismo avant la lettre -as sociedades
pela abolição da escravidão no Brasil oitocentista”, nos mostra a veridicidade da sociedade do
Brasil no século XIX, assim como Moura (1981) a autora desmonta uma visão eurocêntrica
que sempre se perpetuou nos livros didáticos, em especial, sobre a abolição dos escravos, que
enfatiza a figura da princesa Isabel, regente no Brasil em 13 de maio de 1888, data da abolição.
O texto de Marcelo Mac Cord (2014) intitulado “Francisco José Gomes de Santa Rosa:
experiências de um mestre pedreiro pardo e pernambucano no Oitocentos” retrata de forma
particular a trajetória de vida de um artesão e mestre de obras, ao mesmo em que, destaca sua
luta pelo trabalho e para manter um status, já que a sociedade no Brasil no século XIX
desprivilegiava a classe baixa e consequentemente, o povo negro.
Não podemos esquecer as formas como a sociedade negra foi por muito tempo
representada em TV, rádio, jornais, revistas, na mídia como um todo. Articulando com a
formação docente, se faz necessário preparar professores de história capazes de aproximar a
africanidade o mais próximo possível da realidade dos educandos.
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Durante a formação de professores e a formação continuada é necessário incluir textos
mais atualizados e que mostrem uma nova realidade e contexto no ensino da História da
África.
3 O Abí Axé Egbé e a formação continuada de professores no Sertão
O Campus do Sertão iniciou suas atividades acadêmicas no dia 15 de março do ano de
2010 como planejado. A vinda da Universidade muda a sociedade, visto que “antes da
instalação do Campus do Sertão o acesso ao ensino superior era limitado as pessoas que
tinham oportunidade e condições de sair do munícipio para ir em busca de uma formação
profissional” (FIRMINO, 2018, p. 10), ou seja, além de contribuir com a economia da cidade,
possibilita novos cursos de formação profissional, tendo em vista que está cada dia mais difícil
aos cidadãos encontrarem emprego fixo, aos que possuírem ensino superior as possibilidades
também aumentam.
No sertão a formação continuada dos professores de História acontece com o apoio do
Grupo de Cultura Negra do Sertão e Equipamento Cultural “Abí Axé Egbé”, criado no ano de
2013 enquanto “projeto de extensão acadêmica (...) como uma oportunidade a mais de
construir saberes acerca da história e cultura afro-brasileira no Campus Sertão” (GOMES,
2019, p. 23). No grupo de pesquisa os integrantes e convidados podem discutir textos
científicos, ao mesmo em que problematizam as experiências negras no Brasil e buscam o
tempo todo acabar com o preconceito e racismo ainda muito presente na sociedade.
Fonte: Google imagens: Slogan do grupo.
De acordo com Gomes (2019 p. 23),
O grupo também promove um evento voltado à formação de professores do
Sertão para relações étnico-raciais (Ciclo de Formação Docente do Abí Axé
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Egbé), além de realizar oficinas itinerantes de dança, capoeira, percussão,
estética negra, contação de histórias africanas, artesanato, história e cultura
afro-brasileira e enfretamento ao racismo religioso em escolas e instituições
públicas.
Mediante a formação de professores467, é primordial o diálogo das escolas com a
Universidade Federal de Alagoas (UFAL) – Campus do Sertão, afim de aprimorar os
conhecimentos e promover formação continuada ao corpo docente468. As formações que são
promovidas pelo grupo almejam preparar os professores para ministrar aulas sobre a temática
e mostrar em sala de aula e/ou ambiente escolar a exiguidade ainda existente.
O Abí Axé Egbé publica no ano de 2019 seu primeiro livro intitulado “Ser(tão) negro
com o Abí Axé Egbé: estudos e pesquisas interdisciplinares sobre as presenças negras no
sertão alagoano” com o objetivo de continuar ajudando os docentes em sala de aula. O livro
contém artigos que foram pensados e organizados por integrantes do grupo, entre eles:
professores, mestrandos, doutores, discentes (dos cursos de pedagogia, matemática, história,
geografia, engenharia).
Fonte:https://ufal.br/ufal/noticias/2019/11/abi-axe-lanca-livro-sobre-presenca-do-negro-nosertao-alagoano
Link de inscrição utilizado no II Ciclo de Formação Docente e cronograma do evento:
https://doity.com.br/abiaxe
As formações em escolas e instituições públicas também contam com a participação dos discentes e de toda
comunidade.
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Desde ano 2020, o grupo realiza formação continuada de professores através dos meios
de comunicação, utilizando redes sociais como: Instagram469 e Youtube470, onde as gravações
ficam salvas, para que deseje visualizar. Devido a pandemia e não sendo possível encontros
presencias, seguindo as medidas de segurança, o Abí Axé garante a continuidade das
formações através de lives.
4 Conclusão
Conclui-se que pensar o ensino de História e todas as suas demandas hoje é entender
que formação docente perpassa por inúmeras mudanças ao longo do tempo, mudanças essas
que buscam acompanhar o desenvolvimento social.
Como observamos, a formação dos professores de História foi por muito tempo voltada
para alcançar objetivos políticos. Não podemos negar que a educação muitas vezes se perpetua
em torno do Estado, por esse motivo, durante governos ditatoriais a formação e o ensino de
História como um todo precisou se adaptar as novas necessidades. Assim como ocorreu com o
surgimento de leis e normas voltadas para a formação docente.
Hoje a formação de história acontece de inúmeras maneiras; no alto sertão alagoano o
curso de história tem uma colaboração do equipamento cultural da UFAL que forma
professores de todas disciplinas sobre a História e Cultura da África, sendo esse um tema
interdisciplinar, podendo ser utilizado na sala de aula formas variáveis. Por fim, percebemos
que a formação docente, seja ela inicial ou continuada almeja sempre o desenvolvimento e
atender as demandas sociais.
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Perfil no Instagram: @abiaxeegbe_oficial
Canal no Youtube: https://www.youtube.com/channel/UCQkNXQpPJQrKeyXjolKJ7OA
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ST08 – Mulheres, raça e classe: história e abordagens intelectuais, luta por
direitos e organizações sociais
Trabalho, violência e feminismo para o Movimento de Mulheres Camponesas
(MMC)
Caroline Gonzaga471
RESUMO: O presente trabalho tem como objetivo analisar o livro “Feminismo camponês
popular: Reflexões a partir de experiências do Movimento de Mulheres Camponesas” a partir
de três eixos temáticos: trabalho, violência e feminismo. Este livro, publicado em 2020, contém
13 textos e foi organizado a partir de um esforço coletivo das militantes e pesquisadoras do
MMC – movimento fundado em 2004 a partir da união de vários movimentos de mulheres no
campo. Objetiva-se com isso compreender uma parte das visões de mundo que permeiam o
Movimento de Mulheres Camponesas no Brasil.
Palavras-chave: Movimento de Mulheres Camponesas; Feminismo camponês popular; História
Agrária.
Introdução
Durante a década de 1980, no Brasil, surgiram vários movimentos autônomos de
mulheres que possuíam objetivos comuns. Entre esses movimentos estavam àqueles ligados à
luta das mulheres camponesas. Nasceram como uma resposta à tentativa do Estado de
implantar um modelo desenvolvimentista e excludente. Esse modelo fez com que o Estado se
tornasse um aliado no fortalecimento do agronegócio, financiando obras de infraestrutura,
reduzindo impostos para os produtos destinados à exportação, liberando o cultivo de sementes
transgênicas, oferecendo empréstimos e renegociando dívidas de grandes proprietários rurais
(GADELHA et al, 2017, p. 181-184). Todo esse “desenvolvimento” foi cobrado dos
trabalhadores, especialmente os rurais. Pode-se citar ainda a chamada Revolução Verde, que
suscitou a organização de movimentos sociais que reivindicavam a reforma agrária. Como bem
Doutoranda em História na Universidade Federal do Paraná, na linha de pesquisa Intersubjetividade e
Pluralidade: Reflexão e Sentimento na História. Possui mestrado em História pelo PPGHIS- UFPR (2020).
Graduação em História - Licenciatura e Bacharelado pela UFPR (2016).
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aponta Isaura Conte (2013, p. 59): “Terra e território são fatores fundamentais que fazem parte
da identidade do povo campesino, pois é por meio deles que se possibilita a própria
(re)produção da vida/cultura”.
Neste período, a organização das mulheres camponesas se deu por meio da influência
de setores progressistas da Igreja, principalmente da Comissão Pastoral da Terra (CPT)
(CINELLI, 2013, p. 39). Um dos frutos desse diálogo entre trabalhadoras rurais e igreja foi o
Movimento de Mulheres Agricultoras (MMA/SC) que teve início em julho de 1981, em
Itaberaba – Santa Catarina (na época distrito do município de Chapecó). A fase inicial desse
movimento se deu em torno da conquista de agricultores e agricultoras da direção do Sindicato
dos Trabalhadores Rurais de Chapecó. As mulheres, juntamente com religiosos e agentes de
pastoral, definiram os rumos de seu movimento próprio (SALVARO; LAGO; WOLFF, 2013,
p. 80). Outro exemplo é o Movimento Popular de Mulheres do Paraná (MPMP), que surgiu
em 1981, contando com a participação de mulheres tanto urbanas quanto rurais. As
Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), a Comissão Pastoral da Terra (CPT), bem como
agentes de pastoral, também tiveram papel decisivo na criação do movimento (GADELHA et
al, 2017, p. 186-187).
Em 1986, em Barueri (SP) ocorreu o Encontro Nacional das Mulheres Trabalhadoras
Rurais – sendo essa a primeira vez que camponesas se reuniram em âmbito nacional para
trocar experiências. A partir do encontro as mulheres definiram uma estrutura organizativa que
partia das comunidades rurais, passando pelas coordenações municipal, estadual, regional e
chegando, por fim, na articulação nacional. Depois disso foram realizados vários outros
encontros que desembocaram, em 2000, no primeiro acampamento nacional de mulheres
trabalhadoras rurais. Esses acampamentos foram espaços ricos de discussões que possibilitaram
a criação do Movimento de Mulheres Camponesas (MMC).
Assim sendo, em 2004 o MMC foi consolidado no Brasil, unificando vários grupos
estaduais. Sua ação, desde o princípio, se deu em torno do objetivo de libertação das mulheres,
da construção de um projeto de agricultura agroecológica e da transformação da sociedade. O
Movimento de Mulheres Camponesas pode ser caracterizado como um movimento camponês,
de classe, feminista e autônomo (CINELLI; JAHN, 2011, p. 87). Além disso, constitui-se como
o primeiro movimento autônomo de mulheres camponesas do Brasil.
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Os diversos movimentos autônomos de mulheres trabalhadoras rurais
possuíam lutas e pautas muito semelhantes, mas cada um tinha bandeiras,
lemas, diferentes. Havia a necessidade de uma identidade que unisse esses
movimentos no Brasil como um todo. Dessa forma, em 2004 ocorre o
Congresso de consolidação do MMC - Brasil (Movimento de Mulheres
Camponesas do Brasil), de 05 a 08 de Março, com a participação de 1.400
mulheres de 14 estados (GADELHA et al, 2017, p. 191).
Considerando os apontamentos acima, o objetivo geral deste trabalho é fazer uma
análise do livro Feminismo camponês popular: reflexões a partir de experiências do
Movimento de Mulheres Camponeses, publicado em 2020, a partir de um esforço coletivo de
militantes e pesquisadoras do Movimento de Mulheres Camponesas. Busca-se compreender as
visões de mundo que permeiam o MMC a partir de três eixos temáticos: trabalho, violência e
feminismo. Os eixos foram escolhidos considerando que sua temática se repete, diversas vezes,
ao longo do livro mencionado.
Estrutura da fonte analisada
O livro Feminismo camponês popular: reflexões a partir de experiências do Movimento
de Mulheres Camponesas, tomado aqui como fonte, foi publicado em 2020 pela editora
Outras Expressões, que faz parte da Expressão Popular. Foi organizado por Adriana Maria
Mezadri472, Justina Inês Cima473, Noeli Welter Taborda474, Sirlei Antoninha Kroth Gaspareto475 e
Zenaide Collet476.
O selo Outras Expressões é dedicado a publicações de produções sobretudo
acadêmicas. Conta com um Conselho Editorial, formado por especialistas de diversas áreas,
que garante ao selo reconhecimento nas instituições acadêmicas. Além disso, um dos critérios
para publicação é o compromisso do proponente em cobrir todos os custos de produção do
Graduanda em Educação do Campo – Ciências da natureza. É militante do MMC.
Graduada em Pedagogia e Pós-Graduada em Filosofia. É militante do MMC.
Graduada em Pedagogia e História pela Uninter. Aluna do curso de Pós-Graduação em Metodologia do Ensino
de História na Uninter. É militante do MMC.
Doutora em Desenvolvimento Regional. Mestre em História e Ciência Sociais. Especialista em Educação em
Direitos Humanos e História no Brasil República. Graduada em Pedagogia. É militante do MMC.
Graduada em História pela Unijuí e Geografia pela Uniasselvi. Mestra em Educação pela Unochapecó. É
professora e militante do MMC.
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livro. Essa informação é importante para que possamos compreender o esforço das mulheres
do MMC em produzir e publicar suas ideias.
Logo na apresentação do livro podemos compreender seu objetivo principal:
Ao ler o livro, será possível ouvirmos as vozes das mulheres camponesas de
nosso país. Diferentemente do que tem ocorrido com os registros da história
oficial, escrita por “vencedores”, homens brancos, abastados e que negaram às
mulheres, especialmente às camponesas, o direito de estudar e escrever sobre
suas vidas e trajetórias. São 13 textos que trazem alguns elementos conceituais
e teóricos, mostrando a face oculta e revelada das mulheres camponesas no
MMC (MEZADRI, et al, 2020, p. 7, grifo nosso).
Tratando especificamente sobre a estrutura do livro analisado, ele contém 189 páginas
e, além da apresentação e do prefácio, possui 13 artigos. Esses artigos falam sobre a história do
Movimento de Mulheres Camponesas, sobre a história do campesinato no Brasil, sobre
mulheres indígenas, sobre feminismo, antirracismo, agricultura, alimentação, trabalho,
violência, economia, entre outros temas. Destaca-se, contudo, os eixos temáticos trabalho,
violência e feminismo. Como já mencionado anteriormente, são questões que se repetem em
diversos artigos que compõem o livro. Acredita-se que apreender estes eixos auxilia na
compreensão de uma parte das visões de mundo que permeiam o MMC.
Sobre as visões de mundo
Antes de adentrar nos eixos temáticos propostos se faz necessário delimitar o que são as
visões de mundo e de que modo é possível apreendê-las. Para tal, considera-se as intuições
teóricas do filósofo húngaro Karl Mannheim, que escreveu o artigo “Beiträge zur Theorie der
Weltanschaungsinterpretation” (Contribuições para a teoria da interpretação das visões de
mundo).
Ao invés de propor uma definição substantiva do conceito de visões de mundo,
Mannheim aponta alguns questionamentos. O primeiro deles é o de indagar qual a tarefa do
pesquisador do campo da história da cultura ao determinar as visões de mundo de uma época,
ou ao tentar explicar as manifestações parciais de uma área de estudo a partir dessa totalidade.
O segundo, indaga se essa totalidade nos é dada, e se nos é dada, como ela se relaciona com a
realidade de outros campos da história da cultura. Ainda, o autor destaca que essas visões de
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mundo nos são dadas sem que possamos explicá-las de maneira teórica (WELLER et al, 2002,
p. 378).
Para Mannheim, as visões de mundo – ou Weltanschauung – são o resultado de uma
série de vivências ligadas a uma estrutura que, por sua vez, constituem a base comum das
experiências que perpassam a vida dos sujeitos (WELLER et al, 2002, p. 378). Assim sendo:
As visões de mundo estão situadas entre os níveis social e espiritual. Elas não
consistem, portanto, nem na totalidade das formações espirituais presentes
em uma determinada época nem na soma dos indivíduos que pertencem a
essa época, mas na totalidade de uma série de vivências/experiências
interconectadas estruturalmente que podem derivar, tanto da formação de
grupos sociais como das criações espirituais (WELLER et al, 2002, p. 379).
Em resumo, as visões de mundo são construídas a partir das ações práticas e pertencem
ao campo do conhecimento ateórico. Portanto, a compreensão das visões de mundo e das
orientações coletivas de um grupo só é possível a partir da explicação teórica desse
conhecimento ateórico. No livro Feminismo Camponês e Popular: reflexões de experiências
do Movimento de Mulheres Camponesas, podemos compreender que:
O feminismo camponês popular não nasce das teorias, dos centros
acadêmicos ou de grandes discursos políticos, mas nasce das experiências das
mulheres camponesas por transformações concretas na vida delas, do
campesinato e da classe trabalhadora. Uma prática cotidiana que está
motivada por um pensamento político, que vai sendo apreendido nos
processos de formação e estudo político ideológico da Educação Popular, da
Teologia da Libertação, do feminismo popular e revolucionário, dos clássicos
sobre o campesinato, do pensamento crítico ao modelo capitalista de
sociedade e apontando a sua superação para a construção de uma sociedade
socialista (LORENZONI; SEIBERT; COLLET, 2020, p. 13, grifo nosso).
Esse trecho demonstra como as visões de mundo do MMC partem de um
conhecimento ateórico e prático. Nesse sentido o livro analisado se mostra como uma fonte
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importante já que traduziu teoricamente conhecimentos que estavam dissolvidos na práxis do
MMC. Para Wivian Weller:
[...] a compreensão das visões de mundo e das orientações coletivas de um
grupo só é possível através da explicação e da conceituação teórica desse
conhecimento ateórico (...) O papel do(a) pesquisador(a) passa a ser, então,
encontrar uma forma de acesso ao conhecimento implícito do grupo
pesquisado, explicitá-lo e defini-lo teoricamente (WELLER, 2005, p. 262).
Para tornar as visões de mundo um objeto de análise científica, Mannheim apresenta
um método de interpretação que caracteriza como documentário. Ademais, as visões de
mundo podem ser compreendidas quando analisadas transversalmente e em relação a um
problema específico, constituindo-se dessa forma como objeto teórico. No caso desta pesquisa,
os problemas específicos selecionados, ou os eixos temáticos norteadores, são trabalho,
violência e feminismo.
Eixo temático 01: trabalho
Para as militantes do MMC a agricultura começou pelas mãos e observações das
mulheres. Elas são as responsáveis por grande parte da produção de alimentos, pela
reprodução da vida e também são guardiãs de sementes e portadoras de grande conhecimento
sobre plantas medicinais. Assim sendo, o conhecimento, perpetuado ao longo da vida, pertence
às mães e avós das mulheres camponesas. Essa questão ressignifica a experiência de luta do
MMC, já que agora é de posse e responsabilidade dessa geração de mulheres levar adiante
essas práticas em suas unidades de produção. Nesse debate surge a agroecologia: uma ciência
capaz de compreender as práticas desenvolvidas pelas camponesas ao longo do tempo (LIMA;
PEREIRA, 2020, p. 87, 92, 94).
As mulheres camponesas manufaturam os alimentos no campo. Também plantam e
colhem, sempre trabalhando muito e se preocupando com a conservação e multiplicação das
sementes crioulas. Apesar disso, essas mulheres não são reconhecidas, valorizadas e
remuneradas pelos seus trabalhos. No momento da comercialização, as mulheres são excluídas
– são os homens que, na maioria das vezes, fazem as relações com os mercados para venda.
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Portanto, as mulheres camponesas não acessam os mercados nem os recursos da venda da
produção que elas mesmas realizaram (CAVALCANTI; SILVA; KREFTA, 2020, p. 120).
Esse sistema patriarcal faz circular uma ideia de que as mulheres camponesas não
trabalham, apenas ajudam seus companheiros. Elas não são remuneradas pelo trabalho na
roça, na casa, no cuidado com a família, na produção nos quintais, na lida com animais, etc.
(ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 76). O não reconhecimento do trabalho produtivo da mulher
contribui para a precarização de sua condição enquanto um sujeito de direito, deixando-as à
margem de direitos como seguridade social, atendimento à saúde, previdência social, etc.
Na legislação previdenciária as trabalhadoras e trabalhadores do campo começaram a
ser mencionados em 1963. Ainda assim, os beneficiários eram apenas os “chefes de família”,
ou seja, os homens. Essa questão invisibilizava o trabalho da mulher e da juventude, o que
reforça o sistema patriarcal e machista no campo. A mulher só teria direito à benefícios quando
se tornasse viúva – uma visão que só enxergava o homem como trabalhador rural, enquanto a
mulher seria sua dependente. Essa questão reforçava, ainda mais, o imaginário de que as
camponesas eram incapazes, que não trabalhavam e apenas ajudavam seus maridos.
Por esse motivo, os movimentos autônomos de mulheres, bem como as camponesas,
atuaram fortemente na luta pelo reconhecimento da profissão de trabalhadora rural pelo
Estado. Em 1986 iniciaram discussões sobre emendas populares para garantir o direito das
trabalhadoras rurais na Constituição. Entre suas reivindicações estavam a aposentadoria para a
mulher trabalhadora rural aos 45 anos e, para os homens, aos 55 anos. Também pediam a
reforma agrária, a melhoria nas escolas rurais, preço justo dos produtos e justiça nos casos de
violência contra a mulher. A conquista da profissão de trabalhadora rural ocorreu somente na
Constituição de 1988.
A luta por direitos também perpassou a luta por documentos de identificação própria
como RG e CPF. Essa luta foi assumida pelo governo Lula, em 2004, que instituiu o Programa
Nacional de Documentação da Trabalhadora Rural. A conquista de documentos representou
uma busca pela emancipação das mulheres já que, até aquele momento, elas apresentavam os
documentos de um homem – pai ou marido. Para as camponesas, ter sua própria
documentação vai além de ter acesso a direitos, significa terem uma identidade e serem donas
de sua própria história (MUNARINI; CINELLI; CORDEIRO, 2020, p. 35-38).
Apesar do não reconhecimento da mulher camponesa enquanto trabalhadora os
impactos de seu trabalho são considerados como importantes pelo MMC e vão além das suas
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unidades de produção. As mulheres possuem uma visão mais ampla e se preocupam com a
comunidade ao redor. Suas ideias e práticas são partilhadas com a família e a comunidade.
Além disso, geralmente são as mulheres que incentivam a cooperação, a fraternidade e o
desenvolvimento sustentável. Por esse motivo o Movimento de Mulheres Camponesas defende
ser necessário uma maior visibilidade ao trabalho da mulher camponesa que é essencial para a
manutenção e desenvolvimento da agricultura sustentável e também para a enfrentar a divisão
sexual do trabalho (LIMA; PEREIRA, 2020, p. 94).
Eixo temático 02: violência
O próprio não reconhecimento do trabalho das mulheres camponesas, citado no eixo
acima, é uma forma de violência. Mas não é a única que essas mulheres enfrentam. Múltiplas
são as formas de violência que perpassam o cotidiano das camponesas. Pode-se citar aqui a
violência de gênero, a violência pela sobrecarga de trabalho, a violência pela desvalorização e
condição social, a violência física, a violência moral e verbal, a violência psicológica, a violência
sexual, a violência pelo uso de agrotóxicos, a violência dos conflitos por terra e território, a
violência institucional, patrimonial, estrutural, etc. (LORENZONI; SEIBERT, COLLET,
2020, p. 26).
No depoimento da camponesa Lucimar podemos ler: “A mulher que mora no campo,
ela tem a vida muito isolada. Se bater. Se gritar. Se chorar. Se espernear ninguém ouve”
(LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p. 148). A fala de Lucimar explicita outra
questão relacionada à violência: o isolamento da mulher camponesa.
Ao se preocuparem com essa questão, em 2008, durante a V Conferência Internacional
da Via Campesina, o MMC coordenou a campanha Basta de violência contra a mulher
camponesa (LORENZONI; SEIBERT, COLLET, 2020, p. 26). “Assim, o tema violência faz
parte das lutas e mobilizações locais, nacionais e internacionais, em um esforço coletivo de
reflexão junto às mulheres e suas famílias sobre esse fenômeno que aniquila os direitos, mata e
destrói a vida de milhares de mulheres” (LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p.
153).
Para o MMC é no processo de acesso à renda que as mulheres camponesas vão se
libertando da discriminação, da desvalorização e das situações de violência doméstica. Ao se
tornarem independentes financeiramente, elas constroem sua autonomia, sua capacidade de
decidir os rumos de suas vidas pessoais e também de sua produção. “Nesse sentido
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entendemos que a geração de renda e o acesso dessa renda pelas mulheres é elemento
fundamental na luta do MMC, para promover a libertação das camponesas” (CAVALCANTI;
SILVA; KREFTA, 2020, p. 121).
O trabalho de combate à violência do Movimento de Mulheres Camponesas se
fundamenta sob três aspectos: 1) organizativo, 2) estudo e 3) formação. Para o movimento é
importante que as mulheres, em grupo ou individualmente, busquem conhecimento para que
possam agir, exercer a cidadania e se engajarem na luta para transformar a sociedade. “Esse
tripé é essencial para nós mulheres identificarmos e reconhecermos as formas de violência,
bem como construirmos estratégias de luta para enfrentar e, dessa forma, fazer o processo de
desnaturalização” (LORENZONI; RODRIGUES; SANTOS, 2020, p. 155).
Eixo temático 03: feminismo
O feminismo camponês assumido pelo MMC do Brasil é construído em
pareceria com as lutas de mulheres de organizações mistas, de forma especial,
junto à Via Campesina. Avança-se coletivamente e se dá força entre
organizações de mulheres em pautas e lutas conjuntas. Por isso, para o MMC,
o feminismo camponês não é individualizado, ele precisa ser cada vez mais
coletivizado para ter mais força frente à sociedade capitalista-patriarcal,
individualista, racista, homofóbica, e sabe-se que há muito a construir
(CONTE, 2013, p. 63).
O MMC se assume como um movimento feminista desde 2004, com a consolidação do
movimento nacional (CINELLI; JAHN, 2011, p. 90). Como já dito anteriormente, o
feminismo camponês popular não nasceu das teorias, da academia ou dos grandes discursos
políticos – ele nasceu das experiências das mulheres camponesas que buscavam transformações
concretas na sua vida, no campesinato e na classe trabalhadora (LORENZONI; SEIBERT;
COLLET, 2020, p. 27). Para as militantes do MMC o próprio termo “camponesas” possui
uma marca de resistência, já que reafirma um compromisso histórico com mulheres como
Elizabeth Teixeira que teve um papel imprescindível na luta das mulheres do campo (SILVA;
SANTOS, 2020, p. 70).
O Movimento de Mulheres Camponesas possui bastante convicção de que sua luta é, e
sempre foi, feminista. Também de que seu movimento faz parte da luta pela transformação da
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sociedade e da luta de classe. A sociedade que o MMC busca transformar é: 1) capitalista, já
que vive da exploração do trabalho e dos bens naturais, tentando transformar tudo em
mercadoria (as sementes, a terra, a vida e os corpos); 2) patriarcal, porque se organiza sob a
divisão sexual do trabalho, que hierarquiza homens e mulheres, tratando as últimas como
propriedade; 3) racista, pois prevalece a atribuição de superioridade dos brancos em
detrimento de outros povos (especialmente os negros e indígenas), essa atribuição de
superioridade legitima as violências e discriminações, utilizando argumentos arcaicos e coloniais
que reverberam até os dias de hoje. “Portanto, é coerente afirmarmos que esse sistema se
encontra amparado em um nó entre capitalismo, patriarcado e racismo” (ALMEIDA; JESUS,
2020, p. 75-76).
Portanto, outro fator que permeia o feminismo do MMC é que ele deve contemplar a
diversidade das mulheres camponesas, levando em consideração a diversidade do campesinato
brasileiro. Por isso, o MMC propõe uma abordagem antirracista, pois as mulheres negras e
indígenas fazem parte desse movimento que se insere em um país assimétrico entre povos,
raças/etnias e culturas (ALMEIDA; JESUS, 2020, p. 76-77).
Na construção do Feminismo Camponês e Popular, temos a convicção de
que só avançamos em uma sociedade socialista se todas as mulheres forem
livres, mas, além disso, temos a compreensão de que existem assimetrias em
como as mulheres vivenciam as explorações e violências nesta sociedade de
classes. Não tratamos a questão racial como um tema ou como algo isolado,
mas imbuído na base de exploração neste sistema injusto (ALMEIDA;
JESUS, 2020, p. 84).
As mulheres do MMC, foram, ao longo de seu percurso, refletindo sobre a cultura
patriarcal, questionando suas “verdades” instituídas que colocam a mulher como sujeito inferior
na sociedade. Ao compreender o sistema patriarcal como uma construção, estas mulheres
contemplaram a possibilidade de que ele poderia ser destruído. Dessa forma, as militantes do
MMC passaram a questionar os papéis designados para homens e mulheres. Também
passaram a buscar formas de sair de uma condição submissa (CINELLI; JAHN, 2011, p. 89).
Uma das maneiras de enfrentar esse modelo de sociedade que as mulheres
organizadas encontraram no decorrer da história
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e
que
perpassa
as
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lutas, a organização e a formação do movimento social aqui pesquisado é a
organização coletiva no feminismo. Ao tomarem contato com teorias e
práticas feministas, as camponesas resistem à cultura imposta a homens e
mulheres e que as convenceu da inferioridade feminina (CINELLI; JAHN,
2011, p. 89).
Por meio do feminismo as mulheres do MMC conseguiram sair do papel secundário de
acompanhar seus maridos em reuniões, de ajudar na coleta das ofertas na igreja, de anotar
nomes em atas de reuniões. Passaram a ocupar o papel de lutar lado a lado de seus
companheiros, cultivando a igualdade, o respeito de gênero – enfrentando as raízes do
preconceito sexual (SILVA; SANTOS, 2020, p. 71).
Por fim, na construção do Feminismo Camponês e Popular, as mulheres do MMC o
relacionam sempre com suas próprias vidas no campo e com as especificidades de ser do
campo. Para elas, esse feminismo é o respeito ao seu modo de vida, baseado em um projeto de
agricultura agroecológica, que busca construir as bases para uma sociedade sem classes,
socialista e feminista. Portanto, a luta por autonomia e o reconhecimento de seu trabalho são
partes essenciais na construção de seu feminismo e de sua libertação (ALMEIDA; JESUS,
2020, p. 76).
Considerações finais
Resgatar a história dos movimentos sociais é tarefa essencial para que
possamos compreender nossa realidade atual, de como nossos direitos foram
conquistados. Compreender as lutas que foram travadas e todo o processo de
construção dessas lutas nos revela que nenhum direito, transformação social,
ocorre se não nos mobilizamos e organizamos socialmente. Conservar viva as
histórias de lutas é uma arma para que as gerações futuras compreendam que
as vitórias contra a discriminação e exploração em nossa sociedade foram
feitas à custa de muito esforço, organização e resistência. Dessa forma, a
história, mais que revelar faces ocultas de nossa realidade cotidiana, inspira,
fortalece e forma tantos outros sujeitos que se conscientizam que não só
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podem, mas devem, ser os sujeitos de sua própria história (GADELHA et al,
2017, p. 181).
Ainda que se tenha apresentado as visões de mundo do MMC divididas em eixos
temáticos é possível perceber que todas as questões estão conectadas, formando uma teia de
ideias. Para que se enfrente a divisão sexual do trabalho é necessário combater a violência e
construir um movimento feminista. Para combater a violência é necessário o reconhecimento
da mulher enquanto trabalhadora rural, bem como discutir sobre o sistema patriarcal que as
cercam. Para construir o feminismo camponês popular é necessário pautas como o trabalho e o
combate à violência.
Nesse sentido, acredito que os eixos temáticos escolhidos representam uma tríade que
ajuda a compreender as visões de mundo que permeiam o MMC. Por meio deles é possível
transmitir teoricamente esse vasto conhecimento ateórico das mulheres campesinas e
apreender, mesmo que sucintamente, a importância desse movimento para a construção da
sociedade brasileira.
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Diana Melo Silva477
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar qual o sujeito que a História descrevia
em sua escrita e qual não; e, que dentre seus silenciados, temos a mulher. Buscou-se ao longo
desse texto mapear obras de historiadores como: Bloch, Burke, Albuquerque, dentre outros,
tendo como finalidade, observar o modo como esses autores citam as mulheres, como é posto
o conceito de História e de que forma tais informações se mesclam com a estrutura da
sociedade que temos. Como resultado, descobriu-se que tais narrativas historiográficas dava
uma representação e papel dominante ao gênero masculino. Tais questões de gênero se
encontram representadas na escrita da História, mediada pelos historiadores através das
estruturas socioeconômicas, políticas e culturais que regem o lugar social no qual residimos.
Essa representação/narrativa ainda interfere na sociedade, no que diz respeito ao forte
enraizamento do machismo, patriarcado, e os vários tipos de violência ao gênero feminino, o
que acaba por impossibilitar a mulher de gozar de sua liberdade, do seu direito de fala, de ser
digna de respeito, de ser julgada por suas escolhas, suas falhas e não pelo simples fato de ser
mulher.
Palavras-chave: Historiografia, Gênero, Mulher, Sociedade.
Introdução
Quando refletimos sobre o conceito de História, logo pensamos em sua conexão com o
passado, o presente e o futuro. Quantas narrativas nos são apresentadas, e quantas definições
nos são dadas. O que nos vem à cabeça quando a ouvimos? Era uma vez... Ou, há muito
tempo atrás... São diversos os contos e historinhas que ouvimos durante nossa infância, dentre
outras façanhas da imaginação humana. Mas não é sobre essa História que iremos nos
debruçar.
Afinal, qual seria a importância da História? Mostrar-nos uma fantasia com inúmeras
possibilidades fora da realidade, ou nos mostrar a verdade nua e crua? E, sem mais delongas,
Graduada em História pelo Centro Universitário Internacional UNINTER e mestranda pelo Programa de PósGraduação em História PPGH da UFAL.
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para que nos serve essa tão preciosa História? Seria para conhecer nossa própria História? E
de quem seria essa história?
Mas, o ponto que queremos chegar no decorrer deste artigo é a forma como a mulher
foi e vem sendo representada na historiografia, qual seu papel e qual sua visibilidade nos
caminhos dessa mesma História. É sabido que a mulher existiu nesse período, pois senão, não
teríamos tamanha nação. Logo, acabamos de associar a mulher à procriação. Por quê? Por sua
função e existência está apenas voltada ao procriar? Por mais que a sociedade tenha suas
mudanças, no quesito de: técnicas de pesquisa, dos estudos feministas, dos estudos
historiográficos, e todos os sujeitos que contribui de alguma forma para uma sociedade livre de
preconceitos, de estereótipos, violência, exploração, dentre outros. A sociedade, ainda,
infelizmente, associa a mulher ao ser que é responsável apenas pela reprodução humana, a
matriarca do lar.
Desenvolvimento
São inúmeros os questionamentos que contribuem para chegarmos à História que
temos hoje. É importante lembrar que a escrita da História assim como todos nós, passou e
vem passando por mudanças, tanto em seus conceitos, quanto em seus métodos.
Burke (1992, p. 10-15), tratando da escrita da História, resume a História tradicional e a
nova História em seis pontos: listemos a tradicional. Primeiro: “De acordo com o paradigma
tradicional, a história diz respeito essencialmente à política”. Em segundo lugar: “uma História
essencialmente voltada para uma narrativa dos acontecimentos”. Em terceiro lugar: “a História
oferecia uma visão de cima... concentrada nos grandes feitos dos grandes homens, estadistas,
generais ou eclesiásticos”. Em quarto lugar: “uma História que suas fontes eram apenas os
documentos oficiais”. Em quinto lugar; “uma História com poucos questionamentos”. E em
sexto lugar: “não apresentava todos os lados da História, ou seja, todos os fatos que estavam por
trás dos acontecimentos”.
É percebível que a metodologia teórica da História tradicional é amplamente voltada ao
discurso do gênero masculino um discurso hierárquico, filtrando qual escrita lhe cai melhor.
Enraizando culturas e ideologias de poder ao gênero masculino, propiciando uma submissão
do gênero feminino. Os padrões culturais e ideológicos de cada época contribuíram para a
formação/construção de uma mulher, sensível, amorosa, que tinha por finalidade cuidar da
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casa, dos filhos e do marido, a então matriarca do lar. A cultura, em um de seus muitos
conceitos, engloba esse fazer e desfazer de funções e papeis. Assim, como diz Eagleton:
Se a palavra «cultura» descreve uma decisiva transição histórica, ela também
codifica várias questões filosóficas fundamentais. Num único termo, os
contornos de questões como liberdade e determinismo, actividade e
resistência, mudança e identidade, o que é dado e o que é criado, surgem
difusamente. Se cultura significa a procura activa de crescimento natural, a
palavra sugere, então, uma dialéctica entre o artificial e o natural, aquilo que
fazemos ao mundo e aquilo que o mundo nos faz (EAGLETON, 2003, p.
12).
Podemos, assim, dizer que a cultura dá liberdade ao homem e aprisiona a mulher? Ela
modifica, ou podemos dizer, cria papeis, ou dá forma à rituais cabíveis ao homem e a mulher?
Seria errôneo dizer que a cultura não teve sua participação nos diversos estereótipos que
rodeiam na maneira como a mulher deve ser e se comportar perante a sociedade e ao homem?
Somos o que somos, devido à cultura, as matrizes ideológicas que nos cercam. Nosso modo de
agir e se comportar estão relacionados ao que nos foi passado, mediante a cultura dos que
conosco convivem, que passa agora a ser também nosso legado de transmissão, sendo, por
vezes, submetidos a modificações, ou as mesmices.
A História, como bem se sabe, não foi representada ou contada por mulheres, tais
funções não eram cabíveis a elas. Se pegarmos obras de Heródoto e Tucídides, considerados
os “pais da história”, não iremos nelas encontrar trechos voltados à mulher. Encontraremos
Histórias bem detalhistas em relação a guerras, disputas de poderes e as inúmeras estratégias
para conseguir a tão esperada glória.
Deste modo, se formos também analisar os acervos históricos, ou até mesmo as
produções historiográficas, vamos nos deparar com uma infinidade de homens; homens para
cá, homens para lá. E, não estamos aqui querendo criticar as obras produzidas por eles, pois
são elas que nos serviram e vêm servindo até os dias de hoje; inclusive, são essas mesmas obras
que nos servem para analisar como a mulher foi e vem sendo apresentada por eles.
Paremos, agora, para analisar algumas concepções de História segundo alguns autores.
Conforme Koselleck: “[...] a “Historie”, como conhecimento, narrativa e ciência, é um
fenômeno antigo da cultura europeia. Não há duvida de que a narração de histórias faz parte da
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sociabilidade dos homens” (KOSELLECK, 2013, p. 37). Quando Koselleck diz, “não há
duvida” podemos dizer que seja porque desde o início dos tempos temos um mar de narrativas
em que é dado aos homens todos os papeis, sendo eles os principais, ou, os coadjuvantes.
Já em Bloch (1997) também é percebível, mais uma vez, uma narrativa que tem como
objeto principal o homem:
A história é busca, portanto escolha. Seu objeto não é o passado: "A própria
noção segundo a qual o passado enquanto tal possa ser objeto de ciência é
absurda.” Seu objeto é "o homem", ou melhor, "os homens", e mais
precisamente "homens no tempo". (BLOCH, 1997, p. 24).
A preocupação de Bloch é com o homem, é ele seu objeto de estudo. Já em Koselleck,
era uma narrativa escrita para homens e contata por homens, sendo o gênero masculino o
instrumento principal e destinatário da obra. Contudo, o homem ao qual autores se referem
está relacionado ao ser humano. Como bem se sabe, o gênero homem e mulher ainda são,
pode se dizer, temáticas recentes. Então, quando os autores colocam em suas escritas “o
homem” é subtendido que eles estão se referindo ao gênero humano universal, o que pode
provocar intrigas no uso apenas do gênero masculino, “o homem”, para quem não tem o
conhecimento de que, ao se usar apenas o sentido de: o homem, como sendo o ser humano
universal.
Então, quando nos perguntamos a quem a História servia, ou de quem seria essa
História, fica meio que evidente que o objeto principal do trabalho da História foi o homem, os
homens que eram conhecidos por seus poderes e seus grandes feitos. É o homem que todos
param para ouvir. É ele o ser livre e independente, é ele que tanto transforma a natureza e a
molda de modo a satisfazê-lo.
Logo mais adiante na obra “O conceito de História,” de Christian Méier, fica evidente
que nas histórias prevalecia os interesses machistas/patriarcal presentes no lugar social, aos
quais os historiadores da época estavam a vivenciar; lembrando que era uma História que se
baseava nos contos da mitologia grega, dos povos antigos, dentre outros. É sabido que a
História teve seus impulsos nessas pequenas narrações. Então, Christian Méier problematiza
que:
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O próprio Heródoto diz que lhe interessa preservar “ aquilo que aconteceu a
partir
dos
homens
(rá
ysvópeva
éÇ
ávQpchncov),
e
de
grandes e admiráveis obras (êpyd) que foram apresentadas por gregos e por
bárbaros”, bem como “ descobrir por que razão e por que culpa (Si rjv ahnjv)
guerrearam entre si” (MÉIER, 2013, p. 42).
Se a mulher não estava presente nessa escrita, nessa realidade, como podemos
identificar seu papel social, sua forma de viver? Como ela era, como se organizava, como se
sentia em relação à maneira a como a História estava sendo escrita? Se tinha vontade de
participar destas façanhas, se participara e ficara silenciada, ou apagaram os seus vestígios?
Enfim, são vários os questionamentos. Nós, historiadores e historiadoras, precisamos vasculhar
camada por camada da construção histórica da sociedade, para obter algum vestígio que virá a
solucionar algumas de muitas de nossas dúvidas.
Mediante tamanhas dúvidas, Albuquerque (2005), em sua belíssima obra “A hora da
Estrela: A Relação entre a História e a Literatura, uma questão de Gênero?” apresenta um jogo
de palavras que faz nossas imaginações flutuarem, quando diz que; “Talvez a diferença entre a
História e a literatura seja mesmo uma questão de gênero”. Dito isto, o autor mostra a relação
de: História e literatura, uma voltada para a masculinidade e, a outra, para a feminilidade.
Mas de gênero no sentido de que o discurso historiográfico pertenceria ao
que na cultura ocidental moderna se define como sendo o masculino,
enquanto a literatura estaria colocada ao lado do que se define como sendo o
feminino. A história seria discurso que fala em nome da razão, da consciência,
do poder, do domínio e da conquista. A literatura estaria mais identificada
com as paixões, com a sensibilidade, com a dimensão poética e subjetiva da
existência, com a prevalência do intuitivo, do epifânico. Só com a literatura
ainda se pode chorar. A história masculinamente escavaria os mistérios do
mundo exterior, iria para a rua ver o que se passa, a literatura, ficaria em casa,
prescrutando a vida íntima, o mundo interior, femininamente preocupando-se
com a alma, um mundo informe que está próximo do inumano
(ALBUQUERQUE, 2005, p. 7-8).
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Certamente, nesta narrativa compreendemos como era definhado o papel da mulher na
cultura ocidental moderna, e o porquê dela se definir como sendo masculina. Como exposto
no início do artigo, a História narrava as ações dos homens, uma narrativa sobre o poder, e
quem, historiograficamente era dono do poder? O homem!
Logo, o homem seria o sujeito que tinha por natureza, deixar a sua zona de conforto e
ir em busca de olhar o que se passa em sua volta, seria ele o ser forte e destemido que a
História representa. E, na representação historiográfica, a mulher seria o ser que fica no lar
preocupado com os afazeres domésticos. A mulher, para a cultura, seria a mãe zelosa que não
pode, em hipótese alguma, desviar o olhar do seu lar. Posto isso, Albuquerque (2005, p. 8)
apresenta uma segunda relação:
Os homens, como a história, tenderiam a acreditar que a realidade é aquilo
que vêem e se quedam pacificados a contemplar o mundo que construíram.
Tudo o que perturba é afastado, dando origem a um mundo de superfícies
nítidas. As mulheres, como a literatura, intuem que a realidade está sempre
mais além ou aquém do que vêem e a buscam incessantemente, buscam um
mundo que ainda estaria por construir, pois só vêem ruínas onde os homens
enxergam construção.
Albuquerque, dá a entender que o homem está relacionado à História porque ele tende
a deixar o mundo ao qual ele construiu com uma superfície mais nítida, uma construção que
seja vista e compreendida. Já as mulheres, como a literatura, ainda estão na busca dessa
construção, estão na espera do mais, algo que seja belo para elas também. E, por fim,
Albuquerque finaliza dizendo:
A história, como o masculino, como o seu poder, como o tempo, seria o que
permanece, a literatura, como o feminino, seria o que se substitui
permanentemente, buscando habitar, ser nas brechas, nas fendas desta
dominação secular, frinchas por onde o vento entra e a revolta pode se
expressar, a raiva e o grito podem se manifestar.24 A literatura, como a
mulher, teria a coragem de se perder, de errar, de se afirmar na queda, de ser
como decaída.25 O realismo da história seria masculino, pois os homens são
a realidade, é isso contra o qual se esbate a literatura, o feminino
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inconformado com essa realidade que o alija, a procura de um outro mundo
que só a mulher poderia compreender.26História e literatura, masculino e
feminino,ainda inimigos, mesmo no amor (ALBURQUERQUE, 2005, p. 8).
De todo modo, Peter Burke nos traz, em sua obra “História e teoria social” um
arcabouço teórico referente à escrita da História, defendendo que a História foi criada sem se
pensar na mulher. Para o autor, as mulheres ficavam invisíveis aos olhos dos historiadores,
sendo por vezes abafadas. São em poucos documentos e artefatos históricos que encontramos
vestígios de que a mulher estava de fato contribuindo para que a escrita da História ocorresse,
contribuindo com a economia, com a política, com os movimentos sociais. Então, é percebível
que essa mulher tinha voz, era vista, só não tinha seu próprio lugar na História, o tempo ao
qual a história se passava não dava tais brechas.
É com o destrinchar de uma nova História, com as mudanças vindas ao longo dos
tempos, com novas perspectivas e novos métodos e o impulso do feminismo que vem se
desenvolvendo para uma História das mulheres, tirando-as das zonas silenciadas e colocando-as
a par dos fatos.
Alguns anos atrás seria surpreendente, se não chocante, discutir a divisão
entre homens e mulheres como exemplo de divisão entre papéis sociais. Se a
idéia de que a masculinidade e a feminilidade são “construídas” socialmente
está passando a ser considerada óbvia, a mudança é, em grande parte,
consequência do movimento feminista (BURKE, 2002, p. 75).
Para compensar tamanha omissão da escrita da História tradicional Burke diz que “as
duas novas formas de História arriscam a perpetuar uma oposição binária entre elite e povo,
em um caso, homem e mulher, no outro” (BURKE, 2002, p. 77). Mas será que ao colocar a
mulher na escrita da História, graças às contribuições das feministas, que ao se questionarem
sobre o seu lugar na sociedade, sobre o vazio de sua existência, não só na escrita, mas também
em seu cotidiano, do ser invisível que éramos, será que ainda há tempo de reverter tamanhas
omissões?
Se a historiografia é escrita sobre os grandes feitos, e esses são citados por homens,
então, seria a História masculina. A historiografia não narra uma História dos grandes feitos das
mulheres, nem sequer lhe dá um papel glamoroso e audacioso de respeito e credibilidade, pois
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suas teorias ainda não se permitiam fazer questionamentos, ou ditar o que propriamente
caberia ao homem e a mulher no tempo ao qual estava situada. São falhas que os historiadores
tendem a não mais cometer. Se formos classificar por classes sociais, cor e raça, o
silêncio/ausência de representação ao gênero feminino veremos que há mudanças em cada
uma delas, e não é à toa que portamos de um feminismo no plural, feminismos. Um
feminismo que busca atender a cada uma das principais necessidades da mulher independente
da raça, cor, classe social, identidade de gênero e orientação sexual.
E se pararmos agora para analisar como a mulher era tratada no quesito cor, raça e
classe social? Como seria olhar de forma diferente a indígena, mulher tida como selvagem, vista
apenas para os prazeres sexuais dos homens brancos que aqui chegaram? E a mulher negra,
explorada, tanto na agricultura como na vida doméstica e também tratada como um objeto
sexual e sem valor, seria essa a imagem que vem se perpetuando até os dias de hoje? Como
historiografar sobre a mulher branca, com algumas regalias, mas que também foi trazida ao
Brasil como mercadoria sexual, para formar família com os homens brancos? E a mulher
camponesa, que tem, por vezes, que fazer o que o homem faz, estando presente nos cultivos da
agricultura, no cuidar do lar e dos filhos? Não é errôneo dizer que a miscigenação no Brasil é
fruto de estupros. E, para completar, temos a mulher trans, vista como um ser anormal, mais
uma vez marginalizada pelo homem e, infelizmente, pela própria mulher em algumas situações.
Sobre essas circunstâncias históricas às quais a sociedade foi submetida, sendo esse
ambiente, extremamente machista e autoritário, tornando o espaço de representatividade da
mulher ainda inacabado, um espaço representativo que ainda é omisso e opressor, podemos
dizer que chega a ser um faz de conta. Faz de conta que agora a mulher pode ocupar todos os
lugares e que agora também tem o poder de falar e ser ouvida. Mas a verdade é que ainda
estamos lutando por mais espaço, não somente de fala, mas também pelo direito de sermos
vistas e respeitadas em qualquer espaço social.
Com relação ao contexto no qual as mulheres estão inseridas na sociedade, vamos citar
a forma como a sua imagem se encontra representada na política. Ali podemos mencionar um
dos inícios dessas lutas conhecidas como “o movimento operário” bem mencionado nas obras
de Michelle Perrot e, também temos “as sufragistas” pelo direito ao voto. Esses movimentos
têm suas origens entre os séculos XVIII, XIX e se prolongam até os dias de hoje, e
possibilitaram não só o direito ao voto, mas a representação no cenário político. E essa luta
pelo espaço no ambiente político, que hoje é algo garantido por lei, ainda vem sofrendo
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modificações na forma como essas leis vêm sendo aplicadas, visto que se tem uma parcela de
representatividade crescente nos últimos anos, mas que não deixa de ter atropelos pela recusa
dos homens de ter mulheres nesse contexto.
É sabido que, no quesito “política” essa palavra demanda autoridade e poder, e falando
em gênero, ela seria aplicada ao masculino, conforme analisamos no decorrer do texto, sendo o
poder, por ordem, destinado ao homem. Com isso, ao adentrarmos no âmbito político, não
somos respeitadas, pois, em primeiro lugar, somos mulheres e também porque somos
consideradas frágeis, por ter como dever apenas o lar e os filhos. É assim que somos vistas,
como uma espécie destinada apenas a reprodução e a um objeto sexual para saciar os desejos
dos homens.
Na página eletrônica da Câmara dos Deputados, constam alguns dados referentes a
variados tipos de violência, aos quais as mulheres são submetidas quando se encontram no
espaço político. Dentre os tipos de violências estão:
82-% das mulheres em espaços políticos já sofreram violência psicológica;
45% já sofreram ameaças; 25 % sofreram violência física no espaço
parlamentar; 20%, assédio sexual; e 40% das mulheres afirmaram que a
violência atrapalhou sua agenda legislativa (BRASIL, 2020).
É nesse contexto que a mulher está inserida, onde muitas delas chegam até a desistir do
mandato por não ter mais saúde mental e física para lidar com tais situações rotineiras. São
xingamentos e atos violentos antes e depois das eleições. Não são ataques voltados a alguma
falha em seu mandato, mas sim ataques ao gênero, a mulher. Não se é enxergado uma
vereadora, prefeita, senadora, deputada, governadora ou presidenta, mas sim, uma mulher,
apenas isso. O modo como se veste, por onde anda com quem se relaciona, dentre outras
coisas. Não se está em julgamento a forma como se posicionam, mediante as funções de seus
cargos, seus projetos, suas falas, seu cansaço, dentre outras coisas. O julgamento é apenas por
ser uma mulher ocupando um cargo político.
Temos um descaso tão grande em nossa sociedade referente ao gênero que, a
orientação sexual é algo que ainda chama bastante atenção da sociedade, uma vez que ainda
estamos lutando por um “lugar de fala” ¹ - um espaço onde cada sujeito tenha o direito e a
liberdade de falar, se auto representar mediante suas lutas diárias ou grupos em que se encontra
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inserido - da mulher. Sabemos que a cota de tabus aumenta no quesito orientação sexual,
contexto que muito está sendo discutido e que envolve uma porcentagem bem elevada de
conservadores que não compactuam com estas discussões. E foi nesse contexto que no dia 01
de julho de 2021 o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite do Partido da Social
Democracia Brasileira (PSDB), no programa “Conversa com Bial”, da TV Globo, se assumiu
homossexual, tendo com isto grande repercussão a sua imagem. 478
O ponto ao qual queremos salientar é sob a forma como o pronunciamento do
governador Eduardo Leite repercutiu tão rapidamente, uma vez que não era mantida em
segredo sua relação com o pediatra Thalis Bolzan, e tendo em vista também que ele não é o
primeiro homossexual no meio político. Temos, na mesma situação, a governadora Fátima
Bezerra, do Partido dos Trabalhadores (PT), que é lésbica, e que em nenhum momento
precisou expor a sua orientação sexual em algum tipo de entrevista, e que, diferente do
governador, tem um trabalho de apoio à comunidade, Lésbicas, Gays, Bissexuais e
Transgênero (LGBT), presente em suas falas e ações.
É sob essas circunstâncias que a questão de gênero está inserida na sociedade ao termos
um alcance diferente de ambos os lados. De um lado, temos um homem se assumindo gay, e
no outro, uma mulher lésbica, ambos do meio político, mas a informação que ganha mais
visibilidade, independente de quem luta pela causa dos LGBT, que tem um papel mais ativo a
quebra do preconceito e dos altos índices de violência não é posto em pauta com tamanho
alcance. É posto aí uma informação que leva a crer que se tem maior poder de fala até no
quesito, orientação sexual é o gênero masculino. E falando em poder de fala, ao acompanhar a
Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), que tem por finalidade investigar/apurar se houve
falhas por parte do Governo Federal no enfrentamento da pandemia da covid-19, que já vem
ceifando mais de 579.052 de vidas é percebível que o momento de fala da mulher tem-se uma
interrupção tremenda da parte dos homens. Não é um lugar de igual para igual. O espaço
ininterrupto de fala é mais favorável ao homem.
Conclusão
478
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 15.
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Portanto, como problematiza Albuquerque (2005), seria a História uma questão de
gênero? Ou, podemos dizer também, seria a construção de uma sociedade mediata por sua
diversidade cultural e ideológica que estava voltada a definhar essa barreira do gênero feminino
e do gênero masculino? Seria essa a vertente que proporcionou esse ambiente hostil de ambos
os sexos? A raiz desses problemas podemos assim dizer que se encontra no berço da
sociedade, ou seja, no seu início, no seu processo de construção. Como diz Certeau (1982, p.
56): “Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção socioeconômica,
política e cultural”. Narramos ou escrevemos o que nos é passado, vivenciado ao longo dos
anos, o que nos foi ensinado conforme o lugar ao qual nos encontramos, sejam elas escritas, ou
em gestos, ou a forma como nos articulamos com os outros sujeitos, creio que seja o mais
cabível a se dizer.
Só sabemos que este silenciamento, essa ausência de respeito que a História nos
apresenta para com a mulher e a forma como vinha sendo posta na construção desse lugar
socioeconômico, político e cultural, propiciou a termos uma sociedade extremamente violenta,
machista, preconceituosa, cheia de rótulos, etc. que vem ceifando vidas diariamente por
consequências dessas divergências ao gênero feminino e masculino, por sempre ter direcionado
o poder ao homem, sempre o alimentando dia após dia. É nessas circunstâncias que se
encontra a sociedade a qual vivemos hoje, um lugar de medo para o gênero feminino, que
apesar de tudo isso ainda tem-se dado mais visibilidade ao homem. E nos fica aqui mais uma
pergunta que pode vir a suceder outros questionamentos: e se a História tivesse sido escrita de
forma diferente, com os sujeitos em conjunto, homem e mulher na construção da sociedade,
sem enaltecimento de ambos os sexos, será que teríamos um cenário diferente? Bem, teríamos
que ter uma sociedade construída de outra forma, ao modo que possibilitasse uma escrita
diferente.
Referências
ALBUQUERQUE, J. M. D. A hora da estrela: a relação entre a História e a Literatura, uma
questão de gênero? Anais do XXIII Simpósio Nacional de História. ANPUH, Londrina 2005.
BLOCH, M. Apologia da História ou o Ofício do Historiador. França, 1997.
BURKE, P. A Escrita a historia: novas perspectivas. São Paulo: Editora da Universidade
Estadual Paulista, 1992.
BURKE, P. História e teoria social. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
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CERTEAU, D. M. A Escrita da história. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1982
EAGLETON, T. A ideia de cultura. Lisboa, 2003.
KOSELLECK, R.; MEIER, C.; GUNTHER, H.; ENGELS, O. O conceito de História. Selo
Horizonte: Autêntica Editora, 2013.
SPIVAK, G. C. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
https://brasilescola.uol.com.br/sociologia/participacao-mulher-na-vida-politica.htm. Acesso em:
10 Ago. 2021.
https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/13/fatima-bezerra-pede-que-congressoaprove-projetos-contra-a-discriminacao. Acesso em: 06 Ago. 2021.
VIOLÊNCIA na política afasta as mulheres. Disponível em:
https://www.camara.leg.br/noticias/693968-violencia-na-politica-afasta-as-mulheres-dizespecialista/. Acesso em: 06 Ago. 2021.
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A inserção da pauta das mulheres na esfera pública e a democratização brasileira
Glenda Lunardi479
Resumo: A ausência das mulheres nos espaços de poder dentro da esfera pública demonstra
que a constituição da democracia brasileira ainda não conta com um processo plenamente
participativo. Diante disso, pretende-se compreender como o campo feminista brasileiro tem
lidado com a pauta da exclusão política desde o início dos anos 2000 até 2015. Nesse trabalho,
faz-se discussões sobre práticas feministas dentro do campo político para compreender como as
novas configurações vistas no feminismo jovem apresentam novas formas de articulação para
dar continuidade a antigas reivindicações.
Palavras-chave: Feminismo, Estado, Democratização
É uma pauta histórica dos feminismos de Segunda Onda pretender que a presença das
mulheres rompa com a sua legitimidade de pertencimento unicamente na esfera privada e se
faça participar da esfera pública. Partindo do princípio de que essa divisão entre esfera pública
e privada é criada pela sociedade civil, Pateman (1993), aos estudar os contratualistas clássicos,
identificou que existe um contrato sexual no modo em que as sociedades ocidentais se
organizam, onde a liberdade civil pressupunha a dominação dos homens sobre as mulheres.
Essa dominação, segundo a autora, permitiu que a esfera pública tivesse se constituído como
um espaço de direitos e de liberdade para os homens, enquanto esses teriam acesso livre ao
corpo e ao fruto do trabalho gerado pelas mulheres.
Os desdobramentos dessa segregação entre esfera pública e privada repercutem nas
relações de gênero em diversos momentos da história. Em 2010, Pinto escreveu que o espaço
político é o mais masculino dos espaços e que quando mulheres precisam adentrar no espaço
da política institucional representativa, tornam-se cada vez menos mulheres, ou seja, não
assumem esse sujeito político para serem eleitas. Essa conclusão veio de uma pesquisa
publicada pela autora em 2009, quando, ao analisar as candidatas à eleição para a prefeitura de
Porto Alegre em 2008, percebeu que em suas campanhas de televisão não havia qualquer
referência à pauta dos direitos das mulheres, enquanto em seus sites, sim. Isso demonstra “que
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Mestranda na Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Bolsista PROMOP.
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as candidaturas não assumem a existência de um número significativo de eleitoras-eleitores que
se sensibilizariam com esse tipo de problemática” (2009, p. 86). Segundo a autora, a mulher
ainda teria dificuldade de irromper o espaço da política porque no Brasil os membros de
parlamentares e governos adquirem um imenso poder pessoal, o que “é fundamental na
reprodução de ordens hierárquicas presentes na sociedade brasileira” (PINTO, 2010, p. 1920), isso faz com que a presença de pessoas que representem outros sujeitos políticos que não o
dominante seja freada de todas as maneiras.
A ausência das mulheres demonstra que a constituição da democracia brasileira ainda
não conta com um processo plenamente participativo, “no qual a sociedade civil e os atores
políticos democráticos estejam plenamente integrados” (AVRITZER, 1995, p. 15). Parte-se
desse princípio para refletir, então, quais são os espaços de presença das mulheres no setor
público brasileiro e por quais meios as pautas feministas podem se fazer presentes na esfera
política. Pinto (2010), mobiliza as teorias de Butler (2003) para demonstrar que as mesmas
estruturas de poder pelas quais as mulheres buscam emancipação, como o espaço da política
institucional representativa, também são responsáveis por reprimi-las
“Não basta inquirir como as mulheres podem se fazer representar mais
plenamente na linguagem política. A crítica feminista também deve
compreender como a categoria das ‘mulheres’, o sujeito do feminismo, é
produzida e reprimida pelas mesmas estruturas de poder por intermédio das
quais se busca a emancipação” (PINTO apud BUTLER, 2003, p. 19).
Nesse sentido, Pinto (2010) segue afirmando que esse espaço não é um espaço novo a
ser conquistado, ele é um espaço a ser invadido, ao contrário dos Conselhos, Delegacias e
Secretarias das mulheres.
Diante disso, pretende-se compreender como o campo feminista brasileiro tem lidado
com a pauta da exclusão política desde o início dos anos 2000 até 2015. Esse recorte temporal
leva em consideração as dinâmicas do movimento, quando percebe-se mudanças nas
configurações das estruturas das atoras e atores do feminismo. A intenção de avaliar essas
movimentações surgiu por meio das leituras de Avritzer (1995) e Pinto (2010). O primeiro
autor, ao refletir sobre as teorias de transição para a democracia sob a perspectiva de cultura
política, coloca como protagonista a relação de negociação e consenso entre atores políticos
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democráticos e atores políticos tradicionais no interior da renovação das práticas sociais para a
construção de um sistema democrático. Tais proposições permitiram a indagação sobre quais
seriam as possibilidades do campo feminista nessa dimensão de negociação e consenso para a
conquista de práticas democráticas referentes aos direitos das mulheres; ou como as teorias de
representação e presença política das mulheres podem ser instrumentalizadas para a expansão
do campo. Nesse sentido, as proposições de Pinto (2010) enfatizam a necessidade do
desenvolvimento de uma inclusão das mulheres na vida política por meio de programas para
construir espaços nos quais as mulheres falam e são escutadas, para a reconfiguração do espaço
público. Lendo seus trabalhos, foi questionado se as propostas e configurações vistas nos
feminismos do início dos anos 2000, quando a autora escreve, são as mesmas propostas pelos
feminismos das novas gerações de juventudes.
Em um primeiro momento pretende-se compreender a possibilidade de absorção dos
discursos e práticas feministas dentro do campo político. A partir do estudo desenvolvido por
Gomes (2016), compreendemos as dinâmicas que essas práticas adquirem dentro dos partidos
político e a partir de Medeiros (2019) compreendemos como essas movimentações ocorreram
formando o feminismo periférico. Em um segundo momento pretende-se fazer um debate
teórico sobre as propostas de participação política, pensando a partir das toerias de Evaristo
(2005) sobre autorepresentação na literatura e do debate construído por Phillips (2001) sobre
representação e presença de sujeitos excluídos na política.
Em um terceiro momento, pretende-se abordar as novas configurações vistas no
feminismo jovem, os quais apresentam novas formas de articulação política para dar
continuidade a antigas reivindicações, por meio das teorias de Alvarez (2014), Di Giovanni
(2003) e Maia (2013).
Marginalização de sujeitos entre amplas relações políticas
A possibilidade de absorção dos discursos e práticas feministas dentro do Estado é
possível, também, por meio da presença das mulheres que defendem essas pautas na política
institucional. No entanto, nas próprias organizações partidárias essa presença é reprimida.
Ao estudar a inclusão das mulheres na política entre partidos que se localizam na
direita, no centro e esquerda do espectro ideológico, os resultados das pesquisas de Gomes
(2016) indicam que existe uma maior quantidade de mulheres dentro de partidos de esquerda,
nos quais também participam de mais cargos dentro da organização em relação a partidos de
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direita. Diante dessa constatação, a pesquisadora entrevistou os diretores de três partidos que se
localizam nos três espectros políticos mencionados, e também realizou um survey com
candidatas a Assembleia Legislativa de Minas Gerais em 2010 desses e de outros partidos. O
interesse em pesquisar esses dois grupos tem como propósito entender como o partido se
posiciona em relação a participação política das mulheres, por meio das entrevistas com os
diretores, e como é o posicionamento das próprias candidatas. Nesse estudo, constatou que as
mulheres sentem
dificuldades em conseguir apoio partidário independente da ideologia do
partido. Enquanto a esquerda apresenta uma pequena preponderância na
abertura de espaços partidários e no conhecimento sobre as causas da subrepresentação feminina, seu apoio às mulheres em tempos de campanha não
difere dos outros campos ideológicos (GOMES, 2016, p. 50)
Em entrevista para Gomes (2016) há um reconhecimento da falta de inclusão das
mulheres na política por parte dos diretores do Partido dos Trabalhadores, Partido Popular
Socialista, e Partido da Social Democracia Brasileira. E apesar de haver mínimos incentivos
para participação das mulheres nos dois primeiros partidos – como a existência de cotas, não
há ações significativas que colaborem com a eleição dessas candidatas ou com a “penetração de
assuntos importantes para as mulheres no interior do cotidiano partidário” (GOMES, 2016, p.
38). Para a autora, o próprio sistema político reforça desigualdades ao incentivar a ação
individual de cada político.
Quando Alvarez (2014) falou que o próprio Estado já foi um nó articulador do
feminismo, ela estava se referindo a outros mecanismos de defesa dos direitos das mulheres,
como os Conselhos, Delegacias e Secretarias das mulheres, principalmente a Secretaria
Especial de Política para as Mulheres (SPM), que realizava grandes conferências com o público
amplo para discutir as propostas de direitos das mulheres. No entanto, Medeiros (2019)
entende que houve uma absorção tecnocrática de gênero por parte desses mecanismos do
Estado, os quais levaram a novos conflitos e desigualdades, produzindo uma reformulação do
campo feminista na América Latina.
Partindo da observação que essas reformulações estavam acontecendo, Medeiros (2019)
buscou compreender as mudanças estruturais que levaram o “feminismo popular” (formado
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por feministas que atuavam em ONGs para o atendimento jurídico e psicológico de mulheres
em situação de violência), ao “feminismo periférico” (constituído por coletivos formados a
partir de movimentos culturais periféricos e debates sobre feminismos nas redes sociais, cujas
principais práticas são de caráter artístico-cultural) na Zona Leste de São Paulo.
A partir do conceito de contrapúblicos subalternos, desenvolvido por Fraser (1992), os
quais podem ser entendidos como “arenas discursivas paralelas nas quais membros de grupos
sociais subordinados inventam e circulam contradiscursos para formular interpretações
oposicionais de suas identidades, interesses e necessidades” (MEDEIROS apud FRASER,
1992, p. 123), podemos entender que as novas gerações de feministas inventaram uma nova
linguagem, reformularam suas identidades afim de reduzir suas desvantagens nas esferas
públicas oficiais, como aquelas formadas dentro do Estado em vínculo com as ONGs.
Essas formulações nos permitem apreender a permanência do campo feminista, ao
mesmo tempo em percebe-se sua dinamicidade. A ocupação de espaços na política
institucional é uma luta a ser conquistada, no entanto o campo feminista não deixa de compor
outras movimentações nesse trajeto.
A representação e a presença feminista na política
Enquanto o campo feminista se modifica constantemente para levar suas práticas e
discursos, também teoriza sobre suas movimentações e perspectivas. Para Evaristo (2005), é
importante levar em conta a auto-representação.
Essa autora percebe a literatura enquanto espaço de produção e reprodução simbólica
de sentidos, e no caso da literatura brasileira, um espaço de discursos em que a mulher negra é
constantemente representada de forma negativa. A autora, em suas pesquisas, percebeu a
ausência de representação materna das mulheres negras, mesmo que a formação de família
tenha representado uma das suas maiores formas de existência e resistência. No entanto, a
representação das mulheres negras na literatura se dá de outra forma quando Evaristo (2005)
analisa obras desenvolvidas por escritoras negras. Essas, segundo a autora,
Criam, então, uma literatura em que o corpo-mulher-negra deixa de ser o
corpo do “outro” como objeto a ser descrito, para se impor como sujeitomulher-negra que se descreve, a partir de uma subjetividade própria
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experimentada como mulher negra na sociedade brasileira. (EVARISTO,
2005, p. 54)
Ou seja, inscrevem na literatura uma auto-representação. A autora entende que nessas
novas escritas estão as vivências das autoras negras, o que movimenta as possibilidades, na
literatura, de novos conteúdos e o desenho de novos perfis.
A constatação de Evaristo, de que as autoras negras se auto-representando na literatura
geraram discursos diferentes e mais justos com suas lutas, causas e vivências, faz-nos refletir
sobre qual poderia ser o impacto de uma maior quantidade de outras minorias sociais se autorepresentando, ou seja, ocupando outros espaços de poder e de produção de discursos e
significados.
A exclusão política tem sido uma pauta histórica dos grupos de minorias sociais.
Phillips constatou em 2001 que a resposta a essa exclusão foi a produção de um debate que
propunha a necessidade da “presença física de grupos excluídos nos locais de decisão”. Nesse
estudo, a autora discute os moldes de representação política nas democracias liberais, e como
isso foi pensado por autores como John Burnheim, Callenbach e Phillips, James Fishkin e
Hanna Pitkin de forma a apresentar novas propostas que visassem uma maior inclusão de
grupos marginalizados nas decisões políticas institucionais. A partir desses autores, percebe-se
que ocorre uma substituição de uma proposta de sistema político que prioriza a diferença de
ideias em direção a uma política que prioriza a presença de pessoas que são historicamente
excluídas desses espaços.
A novidade da presença de pessoas não seria a valorização da diferença e da
diversidade, pois essas já eram valorizadas por liberais, mas no âmbito das ideias. Ou seja,
ideias diferentes eram representadas sempre por um mesmo grupo de pessoas, e aqui a autora
abre um parêntese para indicar que a maior parte desses transmissores e representantes de
ideias são homens. No entanto, a representação de diversidade de ideias na política deixa de
ser o suficiente quando a diferença é percebida enquanto atrelada a experiência e identidades
de diferentes grupos. Nesse caso a inclusão de dos membros desses grupos se torna necessária.
Preocupações contemporâneas sobre representação justa freqüentemente se
traduzem em reformas imediatamente alcançáveis, como os sistemas de
quotas, que têm sido adotados por diversos partidos políticos europeus, para
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produzir paridade de gênero em assembléias eleitas, ou o redesenho dos
limites em torno de distritos de maioria negra, para aumentar o número de
políticos negros eleitos nos EUA. Este não é o mundo das utopias políticas no
limite da imaginação, mas o de reformas realistas, muitas vezes realizadas.
(PHLLIPS, 2001, p. 273)
Para a autora, essas demandas por presença têm emergido das políticas dos movimentos
sociais, as quais se relacionam com outras desigualdades que não as de classe. Nesse sentido,
não foi mais possível homogeneizar as características da população para lutar a favor de uma
única pauta (como a superação da existência de classes), foi preciso valorizar suas diferentes
identidades, mesmo que as desiguales possam estar diminuindo.
Essa mudança sobre a perspectiva do que é inclusão política produz novas estratégias
para associar “representação justa com presença política” (PHLLIPS, 2001, p. 278), de forma a
produzir a necessidade de mecanismos políticos que asseguram a presença da diversidade de
etnicidade, gênero e raça dos representantes. É o que a autora chama de uma “intervenção
deliberada” que pode proporcionar uma mudança mais imediata nas estruturas sociais de
desigualdade ou exclusão de participação política.
Phllips (2001) continua seu trabalho mostrando autores que abordaram possíveis
soluções para a representação política das diferenças, numa sociedade plural, por meio de
autores como Lijphart - que propõe uma democracia consensual alternativa, a qual permitiria a
presença proporcional dos grupos na distribuição do poder executivo; ou Will Kymlicka e
Joseph Raz - que vem de uma tradição liberal e pautam as questões de diferença nos limites da
liberdade e autonomia; e a na obra de John Rawls, que propõe um exercício de imparcialidade
nas tomadas de decisão política, o qual não exige nem igualdade de representação nem de
presença. Por último, a autora critica também as teorias de Iris Young, que reafirma a
importância do papel dos grupos sociais no desenvolvimento de políticas públicas ou acesso a
assembleias deliberativas para isso.
A conclusão da autora diante desses debates bibliográficos é afirmar que a forma mais
favorável a um combate da exclusão política seria mesclar uma política de ideias com uma
política de presença para encontrar um sistema mais justo de representação.
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Embora a política de idéias seja um veículo inadequado para tratar da
exclusão políticas, há pouco que se possa ganhar simplesmente pendendo
para uma política de presença. Tomadas isoladamente, as fraquezas de uma
são tão dramáticas quanto as falhas da outra. A maior parte dos problemas, de
fato, surge quando as duas são colocadas como opostos mutuamente
excludentes: quando idéias são tratadas como totalmente separadas das
pessoas que as conduzem; ou quando a atenção é centrada nas pessoas, sem
que se considerem suas políticas e idéias. É na relação entre idéias e presença
que nós podemos depositar nossas melhores esperanças de encontrar um
sistema justo de representação, não numa oposição falsa entre uma e outra.
(PHLLIPS, 2001, p. 273)
Nesse sentido, acredito que os debates da autora possam contribuir de forma mais
profunda com as preocupações do movimento feminista sobre participação política, já que a
invasão desse espaço, considerado tão masculino, precisa ser pensada de forma questionar a
própria natureza da representação política como ela está dada no Brasil.
Novas configurações, novas dinâmicas, novos feminismos
A percepção mencionada anteriormente por Phllips (2001), de que mecanismos
institucionais não são o suficiente para modificar os sistemas que produzem parte das exclusões
políticas, é uma interpretação presente entre as feministas das novas gerações, que presenciam a
difusão dos feminismos plurais e a multiplicação de campos feministas, segundo o que
interpreta Alvarez (2014). Essa autora interpreta o feminismo enquanto um campo discursivo
de ação, composto por redes político-comunicativas, que são como teias ou malhas, “costuradas
por cruzamentos entre pessoas, práticas, ideias e discursos” (ALVAREZ, 2014, p. 18), nas quais
diversas atoras e atores circulam e se entrelaçam. É a partir dessa chave interpretativa que
analisa dinâmicas do feminismo da América Latina em três momentos. Rompendo com a
categoria de “ondas do feminismo”, Alvarez identifica a construção de uma narrativa oficial
sobre os feminismos, a qual pretende pluralizar. O primeiro momento do campo feminista na
América Latina identificado pela autora é durante os anos 1970 e 1980, no qual existe uma
narrativa que tende a ocultar que os feminismos já eram heterogêneos e permeados por
disputas. O segundo momento, correspondente ao final dos anos 1980 e a década de 1990,
tende a seguir uma narrativa de que é um período em que o feminismo se institucionalizou
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tanto em ONGs quanto em partidos políticos. Essa narrativa também negligencia a dinâmica de
pluralização do campo feminista, no qual diversas atoras estavam atuando em diferentes
espaços. A autora exemplifica a estruturação e visibilidade dos feminismos negros, a
participação das feministas nos movimentos sindicais, estudantis, rurais, católicos, etc.
Com os anos 90, a autora identifica o terceiro momento. Nele, existem outros discursos
articuladores do campo feminista. A perspectiva de gênero é mais instrumentalizada, chegando
a níveis institucionais e empresariais, o que muitas vezes favoreceu com que a pauta da
igualdade fosse usada de forma despolitizada a favor de projetos neoliberais.
Ao mesmo tempo, o discurso de gênero também foi amplamente articulado dentro de
outros movimentos sociais, e seguiu articulando o campo feminista junto a outros discursos,
como os
debates sobre as corporalidades, sexualidades, e identidades de gênero
também têm sido particularmente marcantes, como, por exemplo, o
transfeminismo, o transgênero, o pós-gênero, o queer, e outros debates
trazidos pelas trabalhadoras do sexo, mulheres trans, lésbicas e bissexuais
(ALVAREZ, 2014, p. 44).
Dessa forma, a partir das teorias compostas pela autora, pode-se dar continuidade ao
tema levantado por Phllips (2001), quando essa pesquisadora analisou as teorias relacionadas a
exclusão política de grupos marginalizados, por meio das propostas de representação e
presença política. O que se pretende fazer, é perceber a continuidade da pauta sobre a
marginalização de sujeitos na política, ao mesmo tempo em que as novas configurações do
campo feministas analisadas por Alvarez (2014) encontraram novas formas de articular essa
luta.
As pesquisadoras localizam a reivindicação da participação política das mulheres desde
os estudos compostos sobre os primeiros movimentos de emancipação feminina no Brasil,
como mostra Nascimento (2018). Alguns direitos foram conquistados e os cenários se
modificaram. As novas gerações de feministas encontraram novos projetos para o que Pinto
(2010) identificou como necessário para o desenvolvimento de uma inclusão para a vida
política das mulheres na direção da reconfiguração do espaço público.
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Nesse sentido, é possível compreender algumas diferenças entre as configurações dos
movimentos feministas encontradas no início dos anos 2000 e aqueles encontrados em
2013/2014. Participando da Marcha Mundial das Mulheres no III Acampamento
Intercontinental da Juventude em 2003, Di Giovanni (2003) tentou entender os
questionamentos e pautas que as feministas do evento estavam formulando. Ela ressalta que as
participantes do evento nascerem e cresceram entre promessas e a instituição de políticas
neoliberais, as quais reproduzem constantemente discursos associados a mercantilização da
vida. Essa juventude está lutando contra essas políticas, que reproduzem desigualdades, através
de mobilizações de massa, articuladas por meios de comunicação como jornais, rádios, sites de
internet, e por meio da ação direta não violenta junto a coletivos independentes, grupos de
artistas, etc. Mas também está lutando contra o próprio machismo, tentando afirmar as pautas
feministas dentro dos próprios movimentos sociais em que participam, visando produzir
iniciativas de auto-organização das mulheres no interior desses grupos. O público estudado pela
autora parece estar tentando reformular a linguagem e as práticas feministas para que essas
ocupem espaços dentro das outras organizações sociais que as militantes compõem.
Na pesquisa de Maia (2013), que pretendeu estudar as novas formas de expressões
políticas por meio das articulações dos jovens dentro de coletivos, entende-se que a juventude
está buscando novos tipos de articulação que superem as relações hierarquizadas e autoritárias,
o que se relaciona muito com o reconhecimento de pertencimento dos jovens a diversos grupos
– não apenas uma única pauta identitária - o que resulta no fato de que os coletivos estudados
pela autora acabam agregando múltiplas demandas. Apesar de buscarem alternativas como
grupos com propostas de lideranças mais horizontais, a juventude ainda está participando de
partidos políticos e organizações formais como os Centros Acadêmicos das universidades. O
grupo e a pesquisa bibliográfica estudada pela autora também indicam um intenso uso da
internet para a divulgação e organização dos Coletivos.
Dando continuidade a algumas pautas do início dos anos 2000, as novas configurações
dos campos feministas chamam atenção para a visão extremamente interseccional e diversa. A
continuidade das reivindicações se articula a novos tipos de organização, através de coletivos
mais horizontais e com lutas que abrangem pautas amplificadas.
Consideração finais
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A partir da pauta da exclusão política das mulheres podemos compreender algumas
dinâmicas dos movimentos feministas. Percebe-se que o campo feminista, como diz Alvarez
(2014), é constante, mas muito dinâmico. A solução para a e exclusão das mulheres no campo
da política institucional, foi popular nos anos 80 e 90 com a proposta de criar mecanismos
dentro do Estado para combate-la. A partir dos anos 2000, com um cenário em que o
feminismo se encontra, também, mais institucionalizado do que nunca, os novos grupos se
articulam de formas diferentes, criam outras maneiras de articulações e constituem relações
políticas possivelmente mais potentes do que aquelas estabelecidas no âmbito institucional
nesse contexto.
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Feminismo e ecofeminismo: a marcha pela vida das mulheres e pela
Agroecologia - PB
Laís de Oliviera Neves480 - UFPB
RESUMO
Nas últimas décadas, muitas mulheres têm se organizado em marchas pelas cidades do Brasil
contra as violências de gênero, raça e classe. A Marcha pela Vida das Mulheres e Pela
Agroecologia - PB, realizada convencionalmente no dia 8 de março, iniciada nos anos 2010, é
organizada pelas mulheres do Polo da Borborema e ASPTA - Agricultura Familiar e
Agroecologia, com proposito de reivindicar autonomia, igualdade, equidade e justiça no
combate ao feminicídio das mulheres rurais. Sendo assim, este texto tem o objetivo de
apresentar debates sócio-históricos junto ao feminismo decolonial e ao ecofeminismo, através
da luta de mulheres rurais nesta marcha, seguindo o suporte teórico e metodológico de autoras
como Cecilia Toledo, Heleieth Saffioti, Vandana Shiva, María Lugones, Emma Siliprandi,
entre outras referências que fazem parte do corpo deste trabalho, evidenciando a importância
da união dos feminismos com movimentos sociais agroecológicos na construção de uma
sociedade mais equânime no respeito à vida e a todos os seres.
Palavras- chave: Ecofeminismo; Feminismo decolonial; Mulheres rurais
Introdução
A construção deste artigo se deu no período da Covid-19, uma pandemia que por meio
da qual assisti a transformações nos modelos de vida, de ensino e aprendizagem, assim como
de diálogos e trocas teóricas. Viver em um estado de necropolítica481 diária no Brasil, permite
vivenciar situações de risco de saúde física, psicológica, seja com nós mesmas ou com amigas,
parentes, familiares. A pandemia tornou ainda mais visível a catástrofe ecológica e
a
necessidade de auto-observação para saída sustentáveis, e é nesse interim que correntes de
Historiadora, ecofeminista, mestranda do PPGH/UFPB, compõe o grupo de pesquisa ProjetAH- Mulheres,
Gênero, Imagens Sertões. E-mail:lais_oliveiraneves@hotmail.com
Achile Mbembe descreve necropolítica como
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pensamento científico, como a agroecologia e o ecofeminismo, constituem-se como ações de
luta social em respeito à vida.
Os debates sócio-históricos enquanto campo teórico (História Social) tem estudado, ao
longo de décadas, os fenômenos de mudanças sociais e da ação humana com suas próprias e
diferentes ferramentas disciplinares, a exemplo das vertentes clássicas europeias entre os anos
de 1960 e 1980, com a Natalie Davis, Michelle Perrot, Edward P. Thompson, Eric Hobsbawm;
nos anos 1980-1990, quanto às questões de gênero e sexualidade, com Joan Scott, Michel
Foucault, Jacques Derrida, dentre outras referências que foram e são utilizadas como suporte
teórico-metodológico por diversas historiadoras e pesquisadoras ao pensarem cotidiano,
história social, gênero e sexualidade, costumes, etc.
Segundo Pinsky (2009), nos anos 1990 emerge o “feminismo” diante das potências que
se levantavam e se apropriavam do espaço acadêmico, demarcando diferenças, ampliando
territórios e se tornando uma espécie de “guarda-chuva político” capaz de abarcar movimentos
sociais, assim como ativismos de característica epistêmica, (a exemplo do movimento de
mulheres negras e o movimento LGBTQ+) na busca conjunta de uma coexistência pautada no
respeito, na visibilidade e na luta por direitos equânimes.
De acordo com Carneiro (2011), a demarcação das diferenças no Brasil é visivelmente
caracterizada pelo seu passado colonial, dessa forma vale salientar as diferenças interseccionais
que compreendem as lutas feministas. A exclusão pelo não direito à voz camufla a verdadeira
face do trabalho, além da geração de renda. Se as mulheres burguesas de Simone de Beavouir
(2009), após a Revolução Industrial, enfrentavam a ideologia da feminilidade e uma disputa no
que concerne ao acesso ao mercado de trabalho no âmbito público, as mulheres negras
trabalhavam com jornadas exaustivas no serviço doméstico, mal remunerado482.
A conversa de que a “mulher tem que ser dona de casa” constrói uma dupla jornada de
trabalho, em sua maioria negligenciado e não remunerado; isso acontece tanto nos centros
urbanos como (e principalmente) nas zonas rurais.
Vendo isso, muitas mulheres organizaram-se em marchas pelas cidades do Brasil contra
as violências de gênero, mas também de raça e classe. Freire (2015) destaca que a marcha se
torna um importante momento para denunciar e dar visibilidade sobre as desigualdades de
gênero. A Marcha Pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia - PB, dentre muitas que
Em 2009, no Brasil, cerca de 7,2 milhões trabalharam no serviço doméstico, sendo 93% mulheres, uma vez que
do total 61,6% são mulheres negras (OIT, 2010).
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espalham nas diversas regiões - norte, sul, nordeste sudeste do Brasil -, é uma ação social de
luta pelos direitos das mulheres. Dessa forma, o presente trabalho segue dividido em dois
tópicos: “Me deixe ser quem sou”, onde apresentarei a Marcha pela Vidas das Mulheres e Pela
Agroecologia - PB e sua importância no cenário das mulheres rurais, e “Ecofeminismo
Decolonial”, onde discutirei as implicações do pensamento decolonial aliado ao ecofeminismo
no combate à catástrofe da natureza.
Me deixe ser quem sou
Eu quero ser amiga e companheira
Quero mostrar a força do amor
Quero viver como tenho direito
Não quero preconceito
Me deixa ser quem sou.
Gilvanisa Maia – Apelo de Mulher
ASP-TA 2013
A Marcha pela Vida das Mulheres e Pela Agroecologia - PB começou em 2010, com
intuito de ser realizada convencionalmente no dia 8 de março, Dia Internacional das Mulheres;
é organizada por mulheres do Polo da Borborema, contendo cerca de 150 associações
comunitárias e organizações regionais acerca das invocações da agroecologia e de sistemas
ecológicos, com base agrícolas, se afirmando em uma tradição de resistência a conjuntura
política adversa da agricultura camponesa.
Essa marcha tem ganhado projeção crescente, com abrangência semelhante à Marcha
das Margaridas, em âmbito nacional. Sendo uma Marcha acompanhada por mulheres do brejo,
do sertão e do cariri paraibanos, de diversas cores, idades, classe e amores. O trecho da canção
citada acima propõe uma relação humana de civilidade, ao reconhecer a mulher como um ser,
não um objeto, e que tem liberdade de escolha, pelo direito de viver, amar e ser mulher. De
acordo com a ASPTA (2013), a canção foi ao ar nos programas de rádio, e programas de
regionais, com intuito de divulgar a Marcha e, através da canção, promover sensibilização de
mulheres e homens da região do Polo da Borborema.
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Constituindo-se como uma identidade coletiva protagonizada pelo campesinato, a
atuação da marcha tem avanços importantes na defesa da agricultura familiar, camponesa e na
vida das mulheres. De acordo com Sobreira (2017), a edição do ano de 2017 contou com
aproximadamente cinco mil mulheres reunidas na cidade de Alagoa Nova (PB). A figura 01 é
uma foto tirada na 11ª edição da Marcha na cidade de Esperança, que contou com
aproximadamente seis mil mulheres, de acordo com a ASPTA (2020).
Figura 01
Fonte: Túlio Martins/ Brasil de Fato.483
Siliprandi (2015) aponta para a importância que o cenário feminista proporcionou aos
movimentos de mulheres do campo, principalmente em relação à visibilidade das pautas
relacionadas à acessibilidade das mulheres à terra, ao reconhecimento de sua profissão e à
garantia de seus direitos. Além da participação em movimentos sindicais, em associações e
grupos de produção, na formação de espaços de comercialização, elas desenvolveram
experiências produtivas alternativas no nível das propriedades, além da fundação de centros de
formação, cooperativas, associações, com prestação de assessoria técnica e organizativa.
Disponível em: https://img.brasildefato.com.br/media/0ea84938e4235ae93acae89dd7f6701d.jpeg. Acesso em
26/03/2021.
483
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Assim, é importante dar ouvidos às revoluções que as mulheres têm feito, seja no
âmbito acadêmico, seja no campo ou nas ruas ou dentro de suas próprias casas, são elas que
têm mostrado, com suas ações, “que é possível resistir, denunciar, organizar-se, construindo-se
como políticas”484. A Marcha pela vida das Mulheres e pela Agroecologia - PB tem grande
importância na transformação das ausências dessas mulheres rurais em presenças de lutas,
assim como o movimento de marcha anuncia um novo lugar para suas vidas, um lugar de
inclusão.
Ecofeminismo decolonial
O privilégio do conhecimento, e de quem o produz, passa antes de tudo por uma
estrutura sócio-histórica. O cientificismo e o eurocentrismo são sustentados pelo discurso de
Descartes elaborado em 1637, o Discurso do Método, que instaurou uma tradição de
pensamento que se perpetuou e reproduziu com validade universal, sem determinações
geopolíticas, mas sim de unicidade. Mesmo depois de 500 anos de história colonial, os
modelos de vida importados da Europa, ou até mesmo dos Estados Unidos (desde o período
pós-Segunda Guerra Mundial), são tratados como ápice do desenvolvimento científico
humano, sendo eles exportados dos países do Norte-centro para os do Sul global485, ignorando e
inferiorizando
outros
tipos
de
organização
de
mundo
(BERNARDINO-COSTA;
MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2018).
Imbricada nas diversas esferas constituintes da vida, a ciência do universalismo
apresenta-se nos modos de poder/ser/estar na economia, na política, na estética, na
subjetividade e, ainda mais, nas relações com a natureza. Segundo Dussel (1994), tudo isso
resulta de anos de domínio e exploração dos povos africanos e originários486.
Para Lugones (2008), tanto para as Américas quanto para o Caribe, foram transportadas
bases de dicotomias hierárquicas de denominação humana e o não-humana, acompanhadas
também por outras distinções hierárquicas dicotômicas, incluindo aquelas entre homens e
mulheres. Mesmo que tais distinções fossem carregadas de misoginia com a mulher branca visto que o homem europeu é considerado o portador do conhecimento científico “legítimo”
do sistema heteropatriarcal -, essa mulher, branca e burguesa, ainda estava cercada dos aparatos
???
Santos (2007, p. 12) refere-se ao “Sul Global” como regiões periféricas e semiperiféricas de países do sistemamundo moderno, que foram denominados de Terceiro Mundo após a Segunda Guerra Mundial.
Povos indígenas habitantes do que se convencionou denominar América Latina.
484
485
486
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de classe que validavam a sua humanidade, diferentemente das mulheres indígenas e africanas,
classificadas como espécies não-humanas, como animais, incontrolavelmente sexuais e
selvagens.
Lugones (2008), ao apresentar o feminismo decolonial, busca entender como a
construção histórica da representatividade da humanidade sempre esteve aliada à lógica
colonial de exploração, que passa pela classe, raça, geração, sexualidade e língua. Sendo o
movimento decolonial feminista identificador da constituição dessas opressões e atuante no
empoderamento feminino, abrindo espaço para a construção mais equânime no campo
cientifico, filosófico e político.
Segundo Saffioti (2013), a força de trabalho das mulheres situa-se em uma constante
relação dialética, uma vez que a sociedade capitalista constrói um arquétipo de mulher que
executa simultaneamente um trabalho que só gera trabalho, não mercadoria, sendo esse
trabalho contínuo e sem possibilidade de fim. Nesse contexto, “[...] o sexo opera como fator de
descriminação social, enquanto perdura-se o modo de produção baseado na apropriação
privada dos meios de produção” (SAFFIOTI ,2013, p. 61).
Não só nos centros urbanos, mas principalmente no campo, reproduziram-se
semelhantes e ainda mais intensas formas de exploração da mulher. A tripla jornada de
trabalho - composta pela casa, o cuidado com os filhos e o roçado - traduz-se em atividades
exaustivas que se concretizam no cotidiano das mulheres rurais. De acordo com Duarte (2014),
os trabalhos desenvolvidos nesse espaço consequentemente reproduzem uma hierarquização
sobre a participação das mulheres rurais no âmbito público que, muitas vezes, é controlada
pelos maridos.
Shiva (2010) apresenta o ecofeminismo como um movimento que identifica no sistema
heteropatriarcal a origem da catástrofe ecológica atual, sendo tanto a natureza como as
mulheres alvos de agressões desse sistema mecânico e destrutivo. Nessa perspectiva, o
patriarcado denomina-se com a lógica do poder supremo, opressor e totalitário da
agroindústria, atacando os fundamentos da vida na sua expressão simbólica mais profunda: a
fecundidade do ser vivo.
Para Sobreira (2017), é necessário reconhecer a crise ecológica para que assim haja uma
libertação do sistema de opressão, sendo fundamental a união do movimento feminista com o
movimento ecológico, pois “Sem feminismo não há agroecologia”. A agroecologia apresenta-se
em um campo múltiplo, integrado a diversos saberes e práticas de mulheres do campo, sejam
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negras, indígenas, juntando forças às ações dos movimentos sociais, valorizando conhecimentos
tradicionais, reduzindo os impactos ambientais na produção de alimentos saudáveis e da ética
do bem viver.
Sendo assim, as múltiplas articulações do ecofeminismo e do feminismo decolonial
partem não somente da transformação do processo de exploração das mulheres e da natureza,
mas também de uma profunda reconfiguração das relações capitalistas, racistas,
antropocêntricas e patriarcais que estruturam as ciências, as tecnologias e as desigualdades no
mundo. Desta forma, pensar A Marcha pela vida das Mulheres e Pela Agroecologia como uma
ação de luta e de transformação no quadro ambiental é reconhecer sua capacidade de fornecer
novas articulações combativas à tentativa massificadora do projeto neoliberal, ao mesmo tempo
em que traz mudanças nas formas de participação política das mulheres do campo.
Considerações finais
É importante reconhecer as lutas de resistência que a Marcha pela vida das Mulheres e
pela Agroecologia - PB toma frente, assim como perceber que, mesmo que as mulheres que
compõem a marcha não se autodenominem ecofeministas decoloniais, suas ações podem ser
relacionadas a esse pensamento. No momento em que constituem uma concepção ética de
base ontológica de respeito à vida de todos os seres, em diferentes termos, construindo um
saber próprio de mulheres rurais da agroecologia, e que propõem
um modelo de
desenvolvimento com relações de menor impacto ambiental, no que se refere à
produção/distribuição de alimentos e à apropriação da natureza, assim como os direitos de
todas as mulheres, elas fogem da lógica capitalista que se apoia na reprodução das
desigualdades socioeconômicas, raciais e sexistas. Assim, tornam-se potência decolonial de
enfrentamento às injustiças sociais e de promoção de equidade, em amplos sentidos.
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Eu vejo você
Maria Adriana Pereira dos Santos 487
RESUMO
Este texto tem como objetivo geral identificar e refletir a respeito da invisibilidade de
autores(as) descolonizadores(as) que passaram desapercebidos(as) no processo educacional
brasileiro. Este estudo possuiu uma abordagem de natureza qualitativa utilizando como
métodos e técnicas de coleta de dados, pesquisa bibliográfica e análise reflexiva descritiva. O
que nos é permitido ver, quando temos uma estrutura racista em nosso país? Assim
apresentamos foco em autores(as) que nos fazem enxergar um universo descolonizador
desassociado da opressão e hegemonia ocidental branca racista.
Palavras chave: Racismo. Intelectualidade negra . Invisibilidade
Reanudar
Este texto tiene como objetivo identificar y reflexionar sobre la invisibilidad de los autores
descolonizadores que pasaron desapercibidos en el proceso educativo brasileño. Este estudio
tuvo un enfoque cualitativo utilizando como métodos y técnicas de recolección de datos,
investigación bibliográfica y análisis descriptivo reflexivo. ¿Qué se nos permite ver cuando
tenemos una estructura racista en nuestro país? Por lo tanto, nos centramos en los autores que
nos hacen ver un universo descolonizante disociado de la opresión y hegemonía occidental
racista de los blancos.
Palabras clave: Racismo. Intelectual negra. Invisibilidad
Introdução
O processo de escravização formal no Brasil é caracterizado por uma longevidade
absurda, diante disso, marcado na operação de uma “elite” branca hegemônica que que
sempre possuiu privilégios ao longo da história do Brasil, enquanto nesse processo, a opressão
Mestranda em Educação: Programa de Pós-graduação em Educação-PPGED, pela Universidade Federal de
Sergipe. adrielisa1@academico.ufs.br.
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da população negra (preta e parda), se tornou palco de invisibilidade social, suas subjetividades
foram alijadas a uma descaracterização e precarização humana.
Consequentemente a população negra ficou à parte das riquezas do país, mesmo se
fazendo constructo nesse processo, assim, como refletiu Nascimento (apud Ratts, 2007),
ademais, desencadeando o alijamento de sua cultura, crenças, religião, política e socio histórica,
em um epistemicídio marcando o apagamento das contribuições do povo negro como cidadão
e participativo na sociedade.
No entanto, esse apagamento foi imposto, era como se propositadamente tivessem
atirado um punhado de areia nos olhos da população brasileira, pois os mecanismos de
descaracterização do negro, constituiu-se como operante, cabendo uma nova visão de todo o
processo de nação de uma vida inteira.
Contudo, a resistência do povo negro é algo que não cabe em nenhum estudo acadêmico
social ou fenomenal, e diante desse protagonismo podemos apontar a natureza expressiva e
significativa da mulher negra.
Por isso abordar as contribuições do povo negro, principalmente no processo educativo
social colabora para uma reflexão ao processo de colonização social, e o quanto ficamos por
tanto tempo à mercê de um projeto racista colonizador.
Será que nos tornamos fantoches de um processo racista, sem que ninguém tivesse feito
nada a esse respeito, o que é permitido ver diante de uma estrutura racista? Essa reflexão é
imbuída de sentido, sendo o patriarcado machismo e racismo o limiar de tanto absurdo que
deixou o povo negro à margem, considerando um processo altamente discutível até os tempos
atuais.
À princípio as reflexões sobre colonialidade, raça e racismo são importantes para
composição dessa discussão, seguida da contribuição de autoras negras no processo
descolonizador educacional, como vejo você através de nossos ancestrais intelectuais e dos que
atuam hoje em dia e por fim as considerações finais.
1.Considerações teóricas colonialidade, raça e racismo
A colonização social tratada por Quijano (2005) permite pontuar os processos de
capitalização global do poder hegemônico europeu ocidental sobre os corpos humanos,
deixando prevalecer os eixos que o autor aborda do poder, saber e do ser.
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Assim, tendo a capacidade de exercer em termos geopolíticos histórico da colonização,
atribuindo a dimensão do eixo do poder, denotando a raça/cor branca sobre as demais raças.
O eixo do saber deixando prevalecer os saberes dominantes ocidentais, delegando aos demais
saberes a sua inferioridade, provocando o epistemicídio dos saberes não hegemônicos. E o
eixo do ser delegando o apagamento das contribuições culturais, do ser pensante e atuante na
sociedade quando se trata das raças/cor não branca.
Por ventura, o projeto do poder hegemônico eurocentrado contou com a racialização dos
povos, destacando como uma raça/cor superior, a branca, e as demais como inferior,
subalternizada a ordem escravocrata da dominação política socio cultural. Assim o processo de
colonialidade do poder tratado por Quijano (2005) estabelece nas bases do capitalismo,
neoliberal, à tomada de decisões que deixem seus objetos, os negros, como seres servil e
voltados ao consumo de uma imagem poder branca.
É possível observar que o termo raça, não tem na modernidade, nenhum sentido
biológico, o qual foi seu processo primário, as bases ideológicas são as que a compõe, sendo
essa, fundamentalmente necessária ao projeto de dominação da colonialidade do poder.
Segundo Guimarães apud Sansone (2008, p. 64) “as raças são cientificamente uma
construção social”. Chama atenção a questão da hierarquização das raças para o projeto de
poder dominante, esse aspecto criou estereótipos para justificar todas as atrocidades existentes,
incluindo, genocídios e o racismo, que se tornou difícil de ser combater até os dias atuais.
A população embalada pela canção de Gilberto Gil nos anos oitenta “A raça humana é
uma semana do trabalho de Deus”, poderia pensar em buscar as origens da formação da raça
humana, no sentido cientifico e religioso, gerando especulações várias, de acordo com um
modelo, estabelecido para fins religiosos, todos somos iguais em irmandade, no entanto a
hierarquização de uma raça superior em detrimento de uma inferior, se projeta a uma
dimensão de colonialidade do poder.
Para fins de uma construção de que o negro se caracterizava como uma raça degenerada,
inferior, instrumentos como o racismo cientifico constituíram a caricatura estereotipada de um
ser perigoso, passível de cometer crimes, e assim a ciência colaborou no projeto de eugenia
social (SCHWARCZ, 1993).
Segundo Almeida (2018,p.36) “ raça não é um termo fixo, estático, o sentido está
atrelado as circunstâncias históricas em que é utilizado, assim a história das raças é a
constituição política e econômica das sociedades contemporâneas”
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O racismo segundo Almeida (2018) opera para além da vontade das pessoas, podemos
entender que todas as pessoas, nessa conjuntura, são potencialmente racistas, o mecanismo do
racismo se constitui nas instituições, dinâmicas, estruturais, assim o racismo estrutural permeia
a vida das pessoas.
Contudo no Brasil a identidade negra ficou comprometida pela difusão de diversos
interlocutores, inclusive Gilberto Freire, na obra casa grande e senzala (2019), de que havia
uma harmonia racial, devido ao processo de miscigenação que constituiu a população
brasileira.
Esse ideário ainda atribuiu ao negro no imaginário social, no qual a espontaneidade, o
samba, e o futebol foram uma espécie, por qual os poderes dominantes usaram
de
componentes que impediram a pauta de questões importantes como a racial, para que o estado
promovesse uma reparação e melhoria na vida do negro.
Somente mais recentemente os movimentos sociais, obtiveram conquistas mais concretas
quanto a questão racial, que está sendo pauta importante incluída em projetos de estado,
através das cotas, na Lei 12.711/12 que trata do ingresso de pessoas negras(pretas e pardas) e
indígenas nas universidades públicas, e na Lei 11.645/2008 que atribui a obrigatoriedade da
temática afro-brasileira e indígena no currículo da educação básica.
O racismo é uma lástima que atrasa todo um projeto de sociedade democrática, que
imprime a uma suposta supremacia branca o poder de privilégios dada a opressão e
descaracterização baseando-se na tonalidade da pele.
Munanga (2019) o racismo é operante nesta estrutura da sociedade, e precisamos
conhecer a contribuição do povo negro diante dessa situação, o mito da democracia racial, se
ampara sobre a situação da mestiçagem do povo negro.
Fanon (2008, p. 106) aborda que “é preciso demolir o mito do negro ruim”, assim o
autor reflete o quanto é necessário um tratamento de desconstrução desse imaginário coletivo
de agressão as subjetividades do povo negro na sociedade.
Contudo, temos uma grande contribuição de pessoas negras que se fizeram/fazem um
caminho descolonizador neste universo, machista, patriarcal racista.
2. Eu vejo você através de autores(as) em caminhos descolonizadores
Em uma sociedade permeada pelo racismo estrutural, a percepção que pessoas não
brancas formam uma beleza, cultura, política histórica e social provida de significados, se torna
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invisível aos olhos da população. Nessa estrutura que circula a mídia branca, e postos
prestigiados comandados por brancos, infelizmente para um projeto educacional dentro dessa
estrutura, ainda não conseguiu refletir de forma sistêmica e possível o que é a crueldade do
racismo e levar essa reflexão a uma mudança social.
Para tanto, o sofrimento das pessoas não brancas reflete a uma sociedade do atraso
econômico e estrutural, quando olhamos para a diversidade ampliamos a possibilidade da
dinâmica da vida, de construção, inovação, a partir do momento que se inova se concretiza
mudanças importantes na vida como um todo.
Um país que deslumbre o crescimento econômico, que amplie as possibilidades na
diversidade consequentemente garante a evolução de sua nação, a diversidade deveria ser um
processo prioritário dentro da política de estado (Almeida, 2018).
Consideramos dentro dessa visão a juventude, em suas perspectivas e suas mais
dinâmicas formas de se lançarem para vida, sendo que esta, se encontra altamente invisibilizada
dentro do projeto colonizador racista.
Ainda mais invisibilizada é a mulher nessa estrutura do atraso, que se encontra ainda
operando, imaginemos a mulher negra, e ainda trans ou LGBTQIA+. Portanto merecemos
identificar na sociedade as (os) intelectuais que subsistiram e se encontram ainda não
projetados no processo educacional de nosso país.
Autoras importantes como Lélia Gonzalez e Beatriz Nascimento deveriam ser capa de
revista em todos os artigos que situem proposta de descolonização social e do constructo social.
Para Nascimento apud Ratts (2007) a história do negro foi apresentada pela ótica do
colonizador, o que deixou um lacuna incalculável, delegando aos opressores os registros de
uma história de falácias, pois o negro foi altamente podado nesse processo.
Gonzalez (1983) apresenta uma visão crítica ao projeto ocidentalizado que desprezou a
cultura e a contribuição de outras epistemologias em saberes, tendo através da linguagem um
instrumento de poder.
A trajetória da intelectual, ativista, professora, política, escritora e tantos atributos de Lélia
Gonzalez transforma as epistemologias que levaram ao poder hegemônico, negligenciar tais
contribuições.
Para que haja uma transformação do quadro educacional brasileiro, é importante o
conhecimento da vida e obras de Gonzaléz e Nascimento de demais autores que fizeram
diferença na construção da sociedade brasileira.
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Contando com as desventuras particulares de Gonzalez em relação a sua história de vida,
suas subjetividades afetadas pelo racismo, a conduziu para uma visão espetacular da sociedade,
sendo que diante de um conjunto de oportunidades que ela vivenciou ao longo de sua vida.
Ratts e Rios (2010) realizaram o retrato de um Brasil diferente, aos dados da autora
Gonzalez, seus registros de uma evolução em quanto mulher filha de pai negro, mãe índia e o
primeiro marido branco. Assim essa autora conseguiu capitalizar em tempos de inovação para
o seu tempo, sob contexto da ditadura, e, atualizações em processos históricos políticos, o
conceito de interseccionalidade de raça, sexo e classe.
A aproximação ao universo da brancura, racismo estrutural, a qual estamos sujeitos, por
situarmos nessa estrutura foi ressignificada pela autora, diante de muita luta no campo político
e levando reflexões aos textos deixados como legado.
Um legado que Beatriz Nascimento apud Ratts (2007) e Gonzalez idem Ratts (2010)
levantaram em suas descobertas e ressignificações, diante das relações raciais no Brasil, a
aparência física como o cabelo, determinado por uma sociedade que prioriza e cobra um
padrão, um comportamento, tais autoras circularam por um novo lugar, e nesse lugar as
cobranças de comportamento e modo corpóreo enquanto professoras na sociedade.
As autoras diante dos seus processo nos mostra uma nova forma de vida, como se
enunciassem: “eu vejo você” você faz parte dessa estrutura, você não é feio, seu cabelo não é
“ruim”, você não é filho do diabo por conta de sua fé, a sua alma não é suja nem maldita, você
é inteligente, você é o que você quiser ser.
A descoberta da liberdade de padrões impostos pelo mundo patriarcal, machista, sexista,
colabora para a elaboração de novas epistemologias sociais, considera as relações étnico raciais.
Durante todo o processo escravista, pós abolição a identidade negra passou por conflitos diante
das barreiras do racismo, da colonialidade do poder.
As contribuições de intelectuais negros e negras no projeto que rompe com o pacto da
branquitude, (que Bento (2016) trata, que entre eles existe um narcisismo) que fornece
elementos para combater o racismo, precisaria ser constituído desde a educação básica de
educação.
Autoras como Carolina Maria de Jesus (1999) um marco potencial de intelectualidade e
leitura da sociedade, a favela trazida para desestabilizar o mascaramento de uma sociedade que
não tem nada de igual. O potencial feminino intelectual desprezado por essa estrutura racista,
machista e sexista que temos.
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Contando a história da mulher negra na sociedade brasileira em termos de
produtividade, no mercado de trabalho sempre foram consideradas ativas, ao contrário da
mulher branca que vivia no ócio. No entanto as mulheres brancas na atualidade se destacam
devido a questão da aparência, ser branco em uma sociedade racista é sinônimo de passaporte
para o conforto material do capital.
Proporcionalmente mais mulheres negras sempre trabalharam fora de casa do
que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupou na vida das
mulheres negras, segue hoje um modelo estabelecido desde o início da
escravatura, como escravas, o trabalho compulsoriamente ofuscou qualquer
outro aspecto de existência feminina. (DAVIS, 2013, P. 10)
Logo precisamos focar em algo que a sociedade veja além do que foi mostrado, deixado
a regalia de uma representatividade masculina, branca em nossa sociedade, e desassociando de
uma imagem negativa a situação da população negra da sociedade. Diante de tantos descasos e
operacionalização da natureza de naturalidade de um sistema patriarcal, machista e sexista, o
olhar e o não ver, constituem-se automáticos, que precisa ser superado desse sistema opressor,
3. Considerações finais
Segundo Ratts e Rios (2010, p. 617) “ Afirmação e reconhecimento fazem parte de
espelhos entre pessoas negras em processo de construção de sua identidade racial”. Por isso o
racismo precisa ser enfrentado conforme um processo de educação, mas que a visualização é
um componente muito significativo, pois diante da nossa sociedade capitalista, racista, sexista, o
consumo de uma imagem positiva do negro na sociedade provoca uma reflexão para
encontrarmos o caminho da mudança social.
Assim, é fundamental revisitar a história do Brasil sob uma ótica diferente, a partir da
leitura de intelectuais negros(as). Na escala da hierarquia da opressão, a mulher negra se
encontra em um patamar altamente excludente, levando a compreensão de uma solidão e
apagamento de sua existência.
Consequentemente situam-se nos mais baixos cargos, são menosprezadas sem ao menos
terem o direito de mostrar suas potencialidades. A crueldade do racismo e da colonialidade do
poder, transporta os corpos negros para uma marginalização.
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Levando em consideração a contribuição das autoras apresentadas neste texto, temos
uma saída para realização da transformação da realidade opressora, visto que a partir de uma
imagem da negritude de forma positiva, e desmistificação de estereótipo, a sociedade passa a
enxergar-se e constitui-se distante do racismo que a moldou.
Segundo Gomes (2018, p. 49) “ A emancipação entendida como transformação social e
cultural, como libertação do ser humano, esteve presente nas ações da comunidade negra
organizada, com todas as tensões e contradições próprias desse processo” , a autora reflete o
quanto o movimento negro educou e se fez agente na ruptura da estrutura racista, para que as
desigualdades sejam superadas.
A educação é a ponte para a transformação social, portanto tais intelectuais negros e
negras deveriam fazer parte do currículo desde a educação básica. A Lei 11.645/2008 na
obrigatoriedade da história e cultura afro-brasileira e indígena, promove elementos para a
quebra da estrutura racista, padrão na sociedade brasileira, é impossível essa quebra como as
epistemologias ocidentais operantes, as contribuições de autores negros que
foram
negligenciados ao longo do processo histórico cultual passam a ser ferramentas de visibilidade
social.
Diante dessas reflexões, trilhamos o caminho para a desconstrução dessa violência que
parece absurdamente invisível, despertando para uma educação que desarticule os mecanismos
desse sistema que se encontra fadado, no limbo do atraso socio histórico, político e cultural.
Como diz Evaristo (2016, p. 22) “ Escrever é uma maneira de sangrar” uma busca de
sentido para o vazio causado pelas opressões da vida, a importância de tais registros nos
conforta e leva a uma ação, a de romper com a crueldade do racismo, esse movimento
descolonizador não pode parar.
Referências bibliográficas
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BRASIL. [Constituição (1988)].
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília/ DF: Presidência da
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As mulheres indígenas na cidade de Garanhuns-PE
Verônica Araújo Mendes488
Resumo: O presente trabalho objetiva se debruçar na problemática dos chamados “índios
urbanos” a partir de um recorte de gênero geograficamente localizado. Nesse sentido, pretendese refletir acerca das experiências de vida de mulheres indígenas habitantes da cidade de
Garanhuns – PE. Trata-se de um estudo envolto numa acentuada invisibilidade inserta na
tríplice “mulher-índia-cidade”. Para tanto, o trabalho buscou se respaldar na história oral, bem
como suas possibilidades de uso para o trabalho com a história indígena na
contemporaneidade.
Palavras-chave: Mulheres indígenas, contexto urbano, Garanhuns-PE.
Introdução:
A presença indígena na cidade não constitui dado novo, podendo ser vislumbrada
paralela aos processos de construção citadinas. A novidade consiste no interesse dos
pesquisadores que só recentemente passaram a olhar para a questão, ainda que pouco
explorada. Tal fato talvez se deva há uma forte herança de um imaginário forjado no passado
colonialista, o qual tende a dicotomizar os “índios” dos “não índios” em espaços distantes: os
primeiros, tidos como selvagens, são vinculados às matas, os segundos, tido como civilizados,
aos grandes centros urbanos.
Este trabalho representa um esforço na construção de diálogos teóricos que forneçam
subsídios para pensar à temática dos indígenas nas cidades, focalizando a presença feminina.
Nesse sentido, cabe sublinhar a contribuição epistemológica da Antropologia Urbana e da
História Oral a partir de um enfoque que se concentra nas margens. Ademais, o uso da fonte
oral aparece como instrumento fundamental, uma vez que possibilitou o diálogo com os
sujeitos da pesquisa. Foram entrevistadas quatro mulheres indígenas das respectivas etnias:
Xucuru de Cimbres, Xucuru do Ororubá, Pankará e Kambiwá que, por razões diversas,
Graduada em Licenciatura em História pelo Centro de Ensino Superior de Arcoverde – CESA (2018),
graduanda em Pedagogia pela Universidade de Pernambuco, campus Garanhuns, professora e autora do artigo.
Contato: historia.veronica96@gmail.com
488
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habitam a cidade de Garanhuns – PE. Optei por não as identificar por seus nomes, mas sim
por suas etnias.
Objetivou-se, ainda, apresentar as experiências de vida de algumas mulheres que
somam as estatísticas, onde de acordo com o Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE), Garanhuns – PE possui uma população de 246 indígenas (0,
19%) em domicilio urbana, oportunizando uma perspectiva histórica “vista de baixo” através
dos testemunhos de “pessoas comuns”. Trata-se de contextualizar a história indígena, mais
especificamente a história de mulheres indígenas em contexto urbano com os próprios relatos
pessoais.
2. Existe índio na cidade?
A partir do ano de 1991 os censos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática passou
a incluir no quesito cor e raça a categoria “indígena”, repetindo nos censos subsequentes, de
2000 e 2010. Os resultados censitários para o ano 2000 apresentou significativo aumento de
pessoas que se autodeclaravam indígenas em situação de domicilio urbana. No censo de 2010,
foi acrescentado perguntas acerca do pertencimento étnico e língua falada para aqueles que se
autodeclaravam indígenas. Apesar do número continuar se elevando, o aumento não foi tão
expressivo quanto o indicado no censo anterior.
Além disso, sob um macro prisma, houve uma inversão espacial, com o aumento da
população em área rural e a diminuição na área urbana. Quando o foco recai na região
Nordeste, os dados apontam o contínuo crescimento nos dois espaços, sendo Pernambuco um
dos estados com maior proporção de povos indígenas. De acordo com o último censo, a cidade
de Garanhuns – PE, lócus desse estudo, possuí uma população de 246 indígenas
autodeclarados. Embora as mulheres representem uma parcela bastante significativa, pouco
sabemos sobre elas. De antemão, podemos concluir com base nas cifras citadas, o obvio: que
sim, existe índio na cidade, mesmo com os esforços do imaginário colonialista para apagar tal
presença.
O antropólogo Michel Agier (2015) escreveu um interessante trabalho de antropologia
urbana, apresentando o lócus como um significante vazio, o qual é preenchido de sentido pelos
diferentes sujeitos que o reivindicam. Apesar de compreender a cidade como um espaço que é
constituído por um movimento dialético, no qual os citadinos sem cidades também fazem
cidade. É no diálogo com Lévi Strauss que encontramos uma pista sobre o imaginário
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colonialista que entende o índio como não cidade, como fora do movimento de fazer cidade.
Agier expõe a ideia de Strauss de cidade como expressão máxima de refinação e civilidade.
Ora, se os indígenas configuram o lado da barbárie, não haveria lugar para eles na civilização.
Todavia, o lócus que se funda sob o viés branco, ocidental, normativo e que,
consequentemente, apaga a diversidade, não condiz com o que propõe o autor, o qual nos leva
a contestar e extrapolar as normas, fazendo-nos constatar que para além da visão estática, temse um intenso movimento que faz emergir às contradições sociais. Que faz perceber que os
citadinos sem cidade também constroem cidade a sua imagem e semelhança. Sendo, portanto,
possível vislumbrar forças sociais ocultas que transformam à cidade em um espaço para e dos
excluídos, ou seja, “o fazer cidade dos citadinos sem cidade” (AGIER, 2015, p. 487). Michel
Agier elabora uma noção pertinente à discussão, a de “cidade bis”, para sublinhar a
possibilidade de uma cidade múltipla, a qual possa ser percebida sob a perspectiva dos próprios
citadinos, bem como de suas práticas e relações. É importante lembrar que os conjuntos de
elementos que caracterizam à cidade não são eternos e nem definitivos.
A máxima de Agier, ao evidenciar que os citadinos sem cidade também fazem cidade,
constitui uma chave de leitura fundamental à temática dos indígenas em contexto urbano. Ao
destacar, com tamanha ênfase, populações em “locais fora do lugar”489, consegue demonstrar o
quanto são estigmatizados e agrupados homogeneamente, o que não corresponde à realidade.
Contudo, apesar de todos os pontos problemáticos e da notória desigualdade que enfrentam, o
autor sinaliza algo extremamente positivo: o fato de ocorrer um movimento que os tira da
invisibilidade completa através de sua insistente afirmação no espaço.
Esse movimento é uma tomada do espaço tanto quanto uma tomada da
palavra, é o momento político porque é aquele que cria uma situação
radicalmente nova. Eis por que os atores da margem, citadinos sem cidade,
ocupam um lugar à parte, precário, mas exemplar nos movimentos que fazem
a cidade (AGIER, 2015, p. 491).
O texto de Agrier toma como sujeitos os migrantes de modo mais enfático, além de mencionar outros grupos
que ocupam às cidades e as constrói na precariedade, como os ribeirinhos, autóctones e etc., mas a discussão é
igualmente rica para pensar em outros grupos sociais minoritários e que também configuram o lado dos excluídos
citadinos, como os indígenas.
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Em suma, a concepção de cidade e o “fazer-cidade” deve ser compreendido como um
processo sem fim, como um movimento que, em certa medida, direciona-se à uma conquista
espacial. As lutas e ocupações urbanas é, segundo Agier, um “agir político”, um “direito
humano”, “um direito à cidade” (2015, p.492) capaz de conduzir à uma transformação,
inerente a este movimento permanente de trocas.
3. Vista indígena: quatro mulheres descrevem a experiência na cidade
Xucuru de cimbres (estudante do curso de engenharia de alimentos na
UFAPE): “[...] escuto piada de todo tipo “índio não tem celular, índio tem
que morar em oca, não se veste assim.”
Xucuru do Ororubá (estudante do curso de medicina veterinária): “É difícil
para um indígena viver em cidades grandes porque a natureza faz muita falta,
é ela que renova a nossas energias, ela faz nos sentirmos vivos, é nela que
gostamos de estar.”
Pankará (estudante do curso de medicina veterinária da UAG): “Podemos ser
indígenas e ocupar outros lugares além da aldeia, mas as pessoas parecem
ainda não aceitar ou não se dar conta disso [...] Às vezes dá medo, às vezes
tentam fazer como sintamos vergonhas.”
Kambiwá (estudante do curso de Agronomia da UAG e membro da
associação de mulheres indígenas do povo Kambiwá): “Ouvimos muito que
nossos lugares é na aldeia [...] precisamos nos deslocar das nossas bases para
buscar aprendizagens para trazer para nossos espaços e assim poder soma-los
junto ao nosso povo. E o que os não-indígenas não entendem é que podemos
sim morar na cidade e continuar sendo indígenas.”
A presença indígena na cidade é acompanhada de atitudes de extremos preconceitos,
como observado na fala de algumas das entrevistadas. A inserção no contexto urbano resulta
das mais diversas circunstâncias, só para citar alguns exemplos, encontrados nos diálogos com
essas mulheres: tem-se, o ingresso no ensino superior, para se apropriar dos conhecimentos do
não-índio e instrumentalizá-los a serviço de seu povo, os conflitos territoriais que culminou com
a ida para cidade, a busca por sonhos, por melhorar de vida e etc.
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É importante frisar, que, mesmo diante de uma acentuada invisibilidade, elas resistem e,
por resistirem, elas existem. Uma vez que “ser mulher indígena brasileira é resistência, é força,
é luta, é respeito, é amor pela natureza, é cuidado com nossa casa sagrada e com os que foram
criados para viverem nela” (XUCURU DO ORORUBÁ, 2021). Ser mulher indígena é ser
sujeito atuante, é se inserir nos espaços de poder e tomadas de decisões. “A voz de mulheres
indígenas vem com peso muito grande, pois além de pedirmos por nossos direitos como povos
originários, também exigimos o respeito perante nós mulheres indígenas” (KAMBIWÁ, 2021).
4. História Oral Indígena
A História Oral constitui, para além de uma metodologia de pesquisa, uma alternativa à
história oficial. De modo que, para o estudo de um grupo silenciado pela história oficial,
representa um caminho interessante pra se respaldar. Ela concede uma contribuição de
extrema relevância para a História Social, uma vez que o seu propósito é intrinsecamente
social, é o historiador social que faz uso dos “dados orais para darem voz àqueles que não se
expressam no registro documental” (PRINS, 2011, p. 194).
Há três elementos básicos para o uso da história oral: o entrevistador (que
pode ser mais de um), o entrevistado (que podem ser vários), e a aparelhagem
de gravação (que pode ser apenas de som, como também de imagem, com
filmagens, envolvendo outros participantes, além do entrevistador, e com
outras implicações) (ICHIKAWA; SANTOS, s/d, p.2).
É importante levar em consideração algumas variáveis, dado o contexto pandêmico
ocasionado pela crise sanitária da covid-19, o pesquisador se ver obrigado a ser criativo, a
encontrar outros tipos de aparelhagem, buscar outras alternativas para dar continuidade a suas
pesquisas. As tecnologias de comunicação se revelaram ferramentas muito uteis e válidas para
esse momento de crise, apesar de não substituir o presencial, o contato face a face, é o recurso
disponível para o momento.
Ednaldo Bezerra de Freitas sublinha a importância do registro oral para o resgate da
história indígena no Brasil, ou mais precisamente nas palavras do autor: “para que se dê voz ao
índio, que se escreva a partir do relato narrativo, do que o índio tem para expressar” (2004, p.
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184). Trata-se de “dar voz, ouvir, dialogar, inteira-se dos mundos da memória, da verbalização
da experiência, dos universos de subjetividades. Documentar os fatos que ficam à margem da
oficialidade, dar oportunidade ao anônimo, a uma “história vista de baixo” (FREITAS, 2004,
p.184). Os diálogos teóricos com o autor nos ajuda a construir um projeto de história indígena
por meio do uso da fonte oral de modo contextualizado, ou seja, é preciso sim que se deixe
falar o índio, mas que contextualize com uma conjuntura mais ampla. Conforme nos faz ver, é
importante ter em vista:
• O que este fala;
• De onde fala;
• As circunstâncias e os interesses que os orientam.
Afinal de contas não existe neutralidade, como aponta Gwyn.Prins (2011) ao discutir a
questão da “memória seletiva” presente nas fontes orais. O ser humano é movido por
interesses, e por mais que esses interesses confluam para uma visão consistente da história, ela
não se dar de forma separada da realidade política, social e cultural da qual o sujeito se
encontra imerso.
5. Conclusões:
Em suma, há três elementos de extrema relevância apresentados nesta discussão a
serem considerados e aprofundados em trabalhos futuros. O primeiro diz respeito a
necessidade de se realizar produções cientificas que tenham como objeto de estudo as
mulheres indígenas, nas mais variadas espacialidades e temporalidades, levando em conta as
dinâmicas sociais nas quais protagonizam, haja vista que os estudos historiográficos pouco as
incluíram em suas produções. O segundo concerne a importância de se discutir a problemática
dos indígenas em contexto urbano, sobretudo, focalizando a presença feminina, a partir de suas
próprias vozes, narrativas e experiências. E terceiro, a possibilidade do trabalho com o uso da
fonte oral para a construção de um trabalho cuja perspectiva é “vista de baixo”.
Referências
AGIER, Michel. Do direito à cidade ao fazer-cidade. O antropólogo, a margem e o centro.
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Rio
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Garanhuns – PE, 2021.
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Garanhuns – PE, 2021.
PANKARÁ. Mulheres indígenas na cidade. [Entrevista concedida à autora]. Garanhuns – PE,
2021.
KAMBIWÁ. Mulheres indígenas na cidade. [Entrevista concedida à autora]. Garanhuns – PE,
2021.
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ST09 – Territórios e Saberes Históricos: embates/debates
Nativos americanos e abundância da abundância da Mata Atlântica: a
exploração das naus europeias
Anelisa Mota Gregoleti 490
Eduardo Mangolim Brandani da Silva491
Gabrielle Legnaghi de Almeida492
Nathália Moro 493
Resumo: As expansões dos impérios coloniais de Portugal e Espanha nas grandes navegações
do século XVI, colocaram os colonizadores em contato com novos povos e com novos
ambientes e, progressivamente, deixou claro que a diversidade de plantas e animais era muito
maior e, de certa forma, mais complexa do que os pensadores do Velho Mundo podiam supor.
Diante disso, analisar as descrições feitas pelos colonizadores do Velho Mundo pode auxiliar
na compreensão da Filosofia Natural daquele período e, ter uma dimensão das consequências
que geraram para o período contemporâneo. A Mata Atlântica, com toda sua exuberância, foi a
primeira visão apresentada diante dos olhos europeus. Uma mistura de espanto e fascínio
tomou conta dos colonizadores. Muitos, como o navegador italiano Américo Vespúcio (14541512), chegaram a questionar se não estariam diante do Éden. Logo houve a preocupação em
analisar e catalogar a fauna e a flora do Novo Mundo. Por meio de crônicas, tratados e cartas,
os europeus conseguiam provar que haviam chegado em novas terras e descrever aquilo que
observavam e que mais lhes chamava a atenção. Naturalmente, entre a maior parte dessas
descrições, encontravam-se os alimentos, tanto de origem vegetal quanto animal (FERRÃO,
1992, p. 10). No entanto, também não podemos desconsiderar que o grande impacto sobre a
Mata Atlântica, como nos recorda Dean (1996, p. 59), teve início desde que os portugueses
derrubaram a primeira árvore para construir uma cruz. Ao mesmo tempo em que encantava os
naturalistas e colonizadores, a floresta também apresentava razões econômicas para a
490
491
492
493
Doutoranda em História no PPH - UEM
Mestrando em História pelo PPH - UEM
Mestrando em História pelo PPH - UEM
Mestra em História pelo PPH - UEM
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exploração e ocupação do Novo Mundo. Rapidamente os portugueses descobriram o potencial
econômico atingido pelo pau-brasil (Caesalpina echinata) e deram início a exploração da Mata
Atlântica (TONHASCA JUNIOR, 2005, p. 12).
Palavras-chaves: Mata Atlântica; América portuguesa; século XVI.
Introdução
A Mata Atlântica foi a primeira paisagem que os colonizadores encontraram. Era
exuberante e majestosa. Nada nela lembrava as florestas europeias, nas quais as plantas são
pouco variadas e se distribuem de modo bem-comportado. Um misto de assombro e fascínio
tomou conta dos primeiros exploradores. Estariam diante do Éden? “Se o paraíso terrestre está
localizado em alguma parte da Terra, julgo que não dista muito desta região”, escreveu em
1502, extasiado, o navegador italiano Américo Vespúcio (1454-1512), que teve seu nome
eternizado no novo continente. O encantamento dos forasteiros durou pouco. Logo eles
começariam a destruir aquela floresta aparentemente inesgotável, dando início a uma tragédia
ambiental que se agravou ao longo dos séculos e prossegue até hoje.
A arte de classificar e registrar o mundo natural veio a se transformar em uma
necessidade para compreender as funções das plantas, minerais, rochas, animais, etc. O cenário
e as paisagens do território conhecido atualmente como Brasil, foram escritas e pintadas por
diversos artistas, clérigos, exploradores e demais pessoas enviadas ao Novo Mundo. Esse
conjunto de obra testemunha a variedade de tradições artísticas que combinaram com as novas
paisagens visuais, por exemplo, a imensidão da paisagem despovoada e o estranhamento
causado pela vegetação e pelos animais dos trópicos. (BELLUZO, 1999).
Após a descoberta do Novo Mundo pelos portugueses, o
chamado Brasil se tornou um dos
destinos
mais
desejados
atual
território
pelos
exploradores
europeus, devido às suas riquezas naturais. Nos três primeiros séculos de colonização, viajantes
e jesuítas contribuíram para o conhecimento da fauna e flora. A partir do século XVI, com a
era dos Descobrimentos, até o século XVIII, percebe-se através de relatos de viagem, a
preocupação em obter fontes de proteína e gordura animal para o próprio sustento dos
navegantes, e também o impulso sobre as redes de comércio das especiarias (FLANDRIN;
MONTANARI, 1998, p.532-557).
Os homens renascentistas e aqueles anteriores a eles possuíam uma percepção da
natureza repleta de sentimentalismo e, em certa medida, antropocêntrica. Ao longo da era
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Moderna ocorreram diversas mudanças relacionadas à maneira como o homem observava a
natureza e compreendia sua interação com os animais, plantas e a paisagem que o rodeava. A
partir do século XVI, observou-se que a relação entre o Homem e o Mundo Natural começou
a se transformar. Os animais passaram a ser classificados e considerados primeiramente como
fontes de alimento, perdendo características sentimentalistas (THOMAS, 2010).
Para os homens daquele período, a dominação em relação aos animais era importante,
pois, demonstrava racionalidade, assim como servia de justificativa para a caça, para a
domesticação, para o hábito de comer carne, para o extermínio de raças de predadores e
animais nocivos, assim como qualquer outra operação feita em animal vivo com objetivo de
realizar estudo ou experimentação (THOMAS, 2010, p.55- 56). A dominação sobre os animais
e o conhecimento das espécies, eram fatores de extrema importância para a própria
sobrevivência do homem. As questões relacionadas ao estudo da natureza estavam em foco ao
longo dos séculos XV e XVI na Europa.
À medida que a exploração se torna mais sistemática e extensiva, naturalmente a
observação se torna mais exata sobre a fauna exótica conduzida ao interesse da história natural.
A redefinição do mundo zoológico medieval, a introdução de novos hábitos e ações, o estudo
geográfico, etnográfico, botânico, mineral, meteorológico e muito mais, despertaram o interesse
em estudar a vida dos animais e o conhecimento integrado ao que os colonizadores
vivenciavam e englobavam, fazendo com que a figura do animal não fosse independente
(BOEHRER, 2007).
A área delimitada no estudo é a região da Mata Atlântica brasileira, que compreende
atualmente os estados do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia,
Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro (Carnaval & Moritz, 2008; Costa et al., 2000;
Muller, 1973; Silva et al., 2012). Essa região foi cenário de importantes explorações geográficas
e científicas ocorridas nos primeiros séculos de exploração pelos europeus. A Mata Atlântica
sofreu grande perda florestal e biológica desde o início da colonização pelos europeus,
constituindo uma importante região de interesse. Podendo ser considerada como uma região
com grande carga histórica para ser estudada, explorada e analisada.
A região da Mata Atlântica é uma área extremamente fragmentada e que vem sofrendo
pressão de fora dos Trópicos desde os primeiros anos de colonização europeia. O uso das
fontes antigas que remontam a presença de mamíferos nativos na região da Mata Atlântica no
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século XVI trouxe revelações interessantes sobre a visão dos naturalistas e exploradores dos
séculos passados. Mesmo com a falta de exatidão sobre o comportamento e ecologia desses
animais nativos, esses documentos trazem informações importantes para a Zoologia atual.
Objetivos
Uma das contribuições da História Ambiental refere-se ao questionamento da noção de
tempo cronológico, dominante no campo das ciências sociais, mas que não é suficiente para
compreender ou explicar a evolução das florestas no planeta. Para explicar os processos
evolutivos da natureza, precisamos da escala monumental do tempo geológico, que como
adverte Drummond (1991, p.179), “tem evidentes implicações para pensar a aventura humana
no planeta, mesmo que seja apenas para torná-la cronologicamente insignificante.” Afirmando
que a História Ambiental representa uma tentativa “de ajustar os ponteiros dos relógios dos
dois tempos -, o geológico (natural) e o social” (cronológico) -, o autor acusa a impossibilidade
de pensarmos o
destino das sociedades “sem ancoragem no mundo
natural.”
(DRUMMOND,1991, p. 180).
As florestas sofreram modificações depois de eventos geológicos e sísmicos ocorridos na
era Mesozoica, a partir de 200 milhões de anos, que iniciaram o processo de rompimento da
massa terrestre da Pangeia. Primeiramente em dois subcontinentes e, depois, em porções
menores que se tornaram, com o tempo, os continentes que conhecemos. A separação dos
continentes provocou impactos determinantes na distribuição dos seres vivos. Isso aconteceu na
medida em que o afastamento geográfico ocasionou mudanças climáticas significativas, que
favoreceram a evolução de diferentes espécies da flora e fauna nas regiões formadas pelo
afastamento. Esse fenômeno explica as espécies exclusivas (conhecidas como epidêmicas) de
plantas e animais presentes em determinados ecossistemas da Mata Atlântica.
Os relatos de viajantes, cronistas, religiosos e colonos, no contexto das descobertas,
descrevem o Novo Mundo no intuito de informar aos seus superiores (rei ou membros da
Companhia) as condições de potencialidades daquelas terras. Os viajantes cronistas observaram
muito sobre o conhecimento dos indígenas. (RIBEIRO, 2006, p.6).
Resultados
537
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Sem entrar no debate sobre as primeiras migrações humanas no continente americano,
recorro a um arqueólogo brasileiro, Prous (2006), que afirma serem inquestionáveis os
resultados de pesquisas mais recentes que revelam a presença humana na América do Sul entre
11.500 e 13.000 anos atrás, citando alguns sítios brasileiros em Minas Gerais, no Mato Grosso,
no Nordeste e na Amazônia.
O desconhecido entre os séculos XVI e XIX foi descrito em crônicas, diários de
viagens e textos científicos, porém os desenhos e xilogravuras também eram recurso de alto
valor, pois funcionavam como uma extensão das descrições, constituindo uma conexão para os
textos zoológicos (ENENKEL & SMITH, 2007). As obras dos aventureiros, viajantes e
naturalistas sobre a fauna, flora e biodiversidade da Mata Atlântica constituem, não somente,
informações de como o desconhecido era tratado pelos exploradores europeus no Brasil, mas
também de registros históricos importantes e de informações de caráter geográfico e utilidade
conservacionista.
Os primeiros europeus que vieram para a América portuguesa se depararam com a
Mata Atlântica, uma floresta úmida tropical com abundância em espécies da fauna e flora que
ocupa toda a faixa litorânea e é predominante de 15% do território brasileiro. Sua extensão é
do Norte ao Sul do Brasil. com extensão inicial era de 1.296.446 km2. Seu bioma possui
florestas ombrófila densa, ombrófila aberta, ombrófila mista, estacional semidecidual, estacional
decidual, savana, savana estépica, estepe, formações pioneiras, refúgios de vegetação e tensão
ecológica com ilhas oceânicas (CAMPANILLI & SCHAFFER, 2010, p.56-60)
Sua rica diversidade é resultante de clima úmido formado pela entrada de frentes de
chuvas do oceano atlântico, juntamente com a influência dos trópicos por se estender através de
várias linhas do Equador, com regimes de pluviosidade, insolação e oscilações de temperaturas.
(SILA & CASTELETI et al., 2005, p.44)
O estabelecimento do primeiro contato dos europeus com a Mata Atlântica, em um
ambiente tropical, era um desafio imenso. A diversidade de insetos, animais selvagens, e clima
quente da região quente e úmida foram de total estranhamento para os europeus que chegaram
ao Novo Mundo (CROSBY, 2011).
Devemos reconhecer que os povos nativos não eram inofensivos em relação aos bens
naturais, sendo portadores de tecnologias, embora rudimentares, capazes de impor impactos na
Mata Atlântica, evitando qualquer idealização sobre a vocação ecológica dos ameríndios,
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incorrendo, como sugere Drummond (1997, p.31), num indesejável “etnocentrismo às
avessas”. Podemos considerar, portanto, que as sociedades tribais em questão desenvolveram
estilos de vida explorando os recursos naturais da Mata Atlântica, modificando-a, certamente,
mas sem produzir rupturas ou danos ambientais irreversíveis.
Quando o europeu chegou às terras do Novo Mundo e se deparou com a abundância
terrestre, aquática e aérea, logo, quis investir na exploração desses recursos. A natureza tem o
seu ritmo de produção, os animais tem o seu estilo de vida e reprodução, e tudo isso era
respeitado pelos nativos. Não é exagero dizer que o futuro da caça está por toda parte
ameaçado, podendo ser culpa humana. A pobreza da fauna fez com que em muitos países
pregassem medidas de conservação (COSTA, 1963).
Considerações Finais
Se a Mata Atlântica e os povos nativos foram atingidos no primeiro século de
colonização, nos dois séculos seguintes os impactos foram profundos e irreversíveis, com a
apropriação de amplas porções de terra para o cultivo em grandes propriedades de terras e o
emprego sistemático de mão de obra escrava, sobretudo de africanos.
Ao final do terceiro século de exploração colonial, a Mata Atlântica sofreu perda
significativa de sua extensão, principalmente nas áreas dominadas pela produção do açúcar - no
nordeste e no sudeste da colônia -, além da região impactada pela mineração do ouro e
diamantes. Estima-se que, ao longo do século XVIII, com a mineração, a lavoura de
subsistência e a pecuária, cerca de 30 mil km2 de floresta tenham sido eliminados. Em 1800,
cerca de 1.800.000 de habitantes viviam em áreas originalmente ocupadas pela Mata Atlântica,
exercendo pressões diárias sobre os seus recursos e projetando um futuro sombrio para a
preservação de sua riqueza natural, e que, ao ser atingida pelos cafezais, reafirmaria a
perspectiva predatória já conhecida (DEAN, 1996).
Assim, o entendimento de que os bens naturais, como as florestas, representam apenas
um obstáculo a ser vencido - ou no máximo algum recurso a ser transformado em mercadoria -,
integra a herança colonial mencionada, merecendo também um esforço teórico, filosófico,
pedagógico e político para sua superação. Se desejarmos justiça socioambiental em nosso país,
não devemos perder de vista que “a exploração da natureza foi realizada pari passu com a
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exploração do trabalho de indígenas, africanos, libertos e mestiços, brancos pobres livres”
(MARTINEZ, 2006, p. 28).
O conceito de imperialismo ecológico e o problema de enfermidade no Novo Mundo
precisam ser pensados de outro modo, evidenciando não só a questão das trocas biológicas e
estranhamento geográfico, mas também o fazer humano e as trocas culturais entre colonizados
e colonizadores. Pensar nessas trocas no Novo Mundo é válido quando sabemos das trocas
mais amplas entre os povos. Analisando com isso o impacto das doenças europeias no Novo
Mundo, e como os europeus também foram influenciados pelos aspectos biológicos dos
nativos existentes nas áreas colonizadas (CROSBY, 2011).
Foi a história das interações entre povos distintos que deu forma ao mundo moderno,
epidemias, conquistas, genocídio, exploração indevida do solo, caça excessiva de animais, entre
outras coisas. Esses enfrentamentos produziram consequências que ainda continuam presentes
em áreas do mundo atual (DIAMOND, 2013).
A cobertura de áreas protegidas na Mata Atlântica avançou expressivamente ao longo
dos últimos anos, com a contribuição dos governos federais, estaduais, municipais e iniciativa
privada. No entanto, a maior parte da vegetação nativa ainda permanece sem proteção.
Atualmente, a região da Mata Atlântica é altamente prioritária para a conservação da
biodiversidade mundial, abrigando 849 espécies de aves, 370 espécies de anfíbios, 200 espécies
de répteis, 270 mamíferos e cerca de 350 espécies de peixes. (dados do Ministério do Meio
Ambiente).
Em termos pedagógicos, até o momento, a história da Mata Atlântica nos permite
superar os marcos temporais que costumam limitar a consciência de crianças e adolescentes em
nossas escolas, ao considerar a perspectiva do tempo geológico, sem o qual não
compreendemos os processos evolutivos da natureza. Tal perspectiva histórica pode contribuir
para desconstruir a forte vocação antropocêntrica da cultura escolar tradicional, que apresenta a
natureza como fonte de recursos úteis, como se a história da natureza existisse apenas para
servir aos propósitos humanos. Precisamos aprender, em nossas escolas, a reconhecer valores
intrínsecos na natureza, se desejamos de fato construir sociedades sustentáveis. Podemos,
ainda, afirmar a importância de conhecermos mais sobre a colonização humana do continente
americano, que só recebe atenção nos currículos tradicionais depois do séc. XVI, como se nada
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de importante tivesse acontecido antes, revelando a perspectiva eurocêntrica e etnocêntrica que
prevalece ainda nas narrativas dominantes.
Referências
BELLUZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos viajantes. Faculdade de arquitetura e
Urbanismo de São Paulo. Editora Objetiva. Metalivros, 1999.
BOEHRER, Bruce. A cultural history of animals in the Renaissance. Edited by Linda Kalof
and Brigitte Resl. V.3. 2007.
COSTA, Carlos Eurico. O Caçador. Editora Estampa. Ltda., Lisboa, 1963.
CAMPANILLI, Maura & CHAFFER, Wigold Bertoldo. (Orgs.) M425 Mata Atlântica:
patrimônio nacional dos brasileiros. Ministério do Meio Ambiente. Secretaria de
Biodiversidade e Florestas. Disponível em: <http:www.mata%20atl%A2ntica%20patrimoio%
20nacional%20todos%20brasileiros%20.org.br> Acesso em 10 out. 2016.
CARNAVAL, A. C. and C. MORITZ. Historical climate modelling predicts patterns of current
biodiversity in th Brazilian Atlantic Forest. Journal of Biogegraphy v.35 p.1187-1201, 2008.
CROSBY, A. W. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa 900-1900. Trad.
José Augusto Ribeiro e Carlos Afonso Malferrarri.
São Paulo: Companhia das Letras 2011.
DEAN, W. A ferro e fogo: a história da devastação da mata atlântica brasileira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996.
DIAMOND, Jared. Armas, Germes e Aço: os destinos das sociedades humanas. Editora
Record – Rio de Janeiro. São Paulo, 2013.
DRUMMOND, J. A. A história ambiental: temas, fontes e linhas de pesquisa. In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro: FGV/FBB, no 8, 1991, p. 177-197.
ENENKEL, K. A. E. and SMITH, P. J. Early Modern Zoology: The construction of Animals
in Science, Literature and the Visual Arts. Leiden/Boston, 2007.
FLANDRIN, Jean Louis; MONTANARI, Massimo. História da Alimentação. 4ed. São Paulo:
Estação Liberdade, 1998.
MARTINEZ, P.H. História Ambiental no Brasil: pesquisa e ensino. São Paulo: Cortez, 2006.
______. Ministério do Meio Ambiente. Mata Atlântica. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/biomas/mata- atlantica>. Acesso em 15 dez. 2020.
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Historiografia Ambiental: problemas, práticas científicas e combate pelos direitos
comunais
Profa. Dra. Arrizete C. L. Costa
(UFAL- CITCEM/PT)
A proposição desta comunicação reside em questionar como os inúmeros tumultos, conflitos e
riscos ambientais que estão causando impactos danosos à sobrevivência de um contingente
populacional cada vez mais extenso têm se tornado visíveis aos historiadores. Como a
historiografia tem abordado os problemas ambientais que nos desafiam de maneira tão
“encarnada” (FEBVRE, 1953). Como conciliam às dimensões cognitivas plurais, os domínios,
as abordagens e fontes? Quais são suas práticas científicas relacionadas à cultura, às interações
comunitárias, à reprodução da vida, ao poder e à luta contra as multifacetadas formas de
opressão? Há um campo epistemológico que instaure o combate pelos direitos comunitários
historicamente inscritos em uma ecologia específica baseada no Conhecimento Tradicional?
São algumas das questões inquietantes para as quais buscaremos respostas.
Palavras-chaves: Historiografia Ambiental. Combates. Comunais.
Nos dias atuais, os tumultos, conflitos e riscos ambientais que têm causado impactos
danosos à sobrevivência de um contingente populacional cada vez mais extenso, são
inquietações constantes na pauta dos historiadores. As catástrofes e as pungentes problemáticas
relativa à qualidade de vida vem comprometendo de maneira intensa e extensiva, não só
deslocando, mas exterminando populações de humanos e não humanos, comprometendo o
bem viver na contemporaneidade.
Desde a década de 1970, premidos pelas angústias provocada por tempos disruptivos,
os historiadores vêm, sistematicamente, perscrutando às interações entre a vida humana e os
fatores ambientais, entre os sistemas sociais e naturais contextualizadas no decorrer de
diferentes periodicidades (PÁDUA, 2010, p. 86). Os acontecimentos se lhes apresentam como
uma avalanche de escombros – desaparecimento de espécies, intervenções em conflitos
armados que redundaram em crimes contra a humanidade (agente laranja, Hiroshima,
Nagasaki), desertificação de extensas áreas, mudanças climáticas acentuadas, aquecimento
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global, desastres ambientais (Mariana, Brumadinho e derramamento de óleo, afundamento do
solo de uma parte do território de Maceió pela extração do salgema), endemia e pandemia –
que, recorrentemente violam os direitos ambientais e nos fustigam como farpas nos termos
colocados por Lucien Febvre, em 1953: “[...] conflito vivo e carnal das ideias encarnadas nos
homens [e mulheres] e nos seus agrupamentos pululantes e contraditórios. (FEBVRE, 1985, p.
103/4).494 Este cenário nos coloca frente à urgência de participação e contribuição ativas desde o
nosso ofício do pensar/fazer historiográfico
Os estudos no campo da história ambiental495 que buscam atender aos clamores da
atual conjuntura histórica, mira desde às “formas sociais de destruição ou de coevolução com a
natureza [...] aos fenômenos históricos situados em ambientes concretos, na interação
sociedade/cultura e natureza/mundo biofísico” (PÁDUA apud RODRIGUES, 2013, p. 92).
Essa ampliação da análise histórica permite a reconstituição das redes de relações sustentáveis.
E, diante dos infinitos rastros da vida e da morte, os pesquisadores da história ambiental
apreendem, como todas as outras modalidades do fazer historiográfico, tanto um
aparentemente insignificante pedaço de tecido, uma cruzinha azul ou sementes – “vestígios
materiais dos instantes mais íntimos e menos verbalizados de pessoas às voltas com o espanto,
dor ou o fingimento” (FARGE, 2009, p. 18) até volumosos processos criminais guardados em
arquivos que têm o “mesmo formato, quase a mesma estrutura, informações, declarações de
testemunhas, a sentença [...]” (FARGE, 2009, p. 10).
Os historiadores ambientais lidam com uma vasta e diversificada tipologia de fontes
documentais, sejam elas verbais, escritas e/ou audiovisuais: censos populacionais, econômicos e
sanitários; inventários de recursos naturais e de bens; escrituras de compra e venda de terras;
testamentos; material da imprensa; leis; documentos governamentais; atas legislativas e
judiciárias; crônicas; mitos e lendas; relatos etnográficos; relatos de viajantes e naturalistas;
memórias; diários; descrições de dietas, roupas, moradias, mobiliário; ferramentas e técnicas
produtivas; estudos epidemiológicos; projetos e memoriais descritivos de obras (estradas,
ferrovias); romances, desenhos, pinturas; fotografias e filmes; paisagens e observações pessoais.
Este amplo e infinito espectro foi apontado em 1953, no trecho poético de Lucien Febvre:
494
495
FEBVRE, Lucien. Combates pela história. 2. ed. Lisboa: Presença, 1985. A primeira edição é de 1953).
1972 é o ano/marco criador deste campo de estudo na Academia, simbolizado pelo primeiro curso de História
Ambiental ministrado pelo historiador da cultura Roderick Frazier Nash, na Universidade da Califórnia.
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A história se faz, sem dúvida, com documentos escritos. Quando há. Mas
pode e deve fazer-se sem documentos escritos, se não existirem... faz-se com
tudo o que a engenhosidade do historiador permite utilizar para fabricar seu
mel, quando faltam as flores habituais: com palavras, sinais, paisagens e telhas;
com fores de campo e com as más ervas; com eclipses da lua e arreios; com
peritagens de pedras, feitas por geólogos e análises de espadas de metal, feitas
por químicos. Em suma, com tudo o que, sendo próprio do homem, dele
depende, lhe serve, o exprime, torna significante a sua presença, atividade,
gostos e maneiras de ser (FEBVRE, 1985, p. 249).
Para Julio Aróstegui, a relação estabelecida entre a aquisição das fontes documentais e
os instrumentos operativos conceituais mais apropriados para torná-los “informações
documentais” – é o lugar mesmo da alquimia da reformulação conceitual e penetração na
realidade do histórico (2006, p. 488). Vale acrescentar a contribuição de Michel de Certeau
quando discute sobre o papel que as informações documentais exercem diante da “operação
historiográfica” (CERTEAU, 1982, p. 65). Decerto que este fabrico se faz no intercâmbio entre
práxis e teoria.
Segundo o historiador ambiental José Augusto Pádua, a história ambiental deve ser
perspectivada como uma ampliação da análise histórica, pois, seu movimento expande “[...] as
temáticas e dimensões da historiografia para além da história dos Estados e dos grandes
personagens” (PÁDUA, 2010, p. 94). Um movimento que se manifesta nas várias dimensões
cognitivas da história: a econômica, a social, a cultural, a política – interpelando-as com
desafiantes problemáticas.
Dentre essas problemáticas, singularizo às práticas científicas relacionadas a cultura, as
interações comunitárias, a reprodução da vida, ao poder e a luta contra as multifacetadas
formas de opressão. Para responder, recorro às reflexões estimuladas pelo argumento do
sociólogo ambientalista Enrique Leff:
[...] das ruínas do neoliberalismo ambiental, homens e mulheres edificam um
outro paradigma – o da complexidade ambiental e do diálogo de saberes –
este implica na “apropriação de conhecimentos e saberes dentro de distintas
racionalidades culturais e identidades étnicas. São reelaboradas questões
cognitivas para a apreensão da natureza e formação da sustentabilidade
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partilhada por intermédio de novos conceitos, noções, categorias, narrativas,
agentes históricos e estratégias de um saber/poder para a apropriação do
mundo (LEFT, 2020).496
Complementa-o a afirmação do historiador ambiental Donald Worster497 sobre a
aquisição por parte da história ambiental, do estudo de aspectos da estética e ética, do mito e
folclore, da literatura e do paisagismo, da ciência e religião – ramificando-se “[...] a toda parte
onde a mente humana esteve em voltas com o significado da natureza” (WORSTER, 1991, p.
210). Seu empenho quer, metaforicamente ir até às raízes da natureza humana:
Agora chega um novo grupo de reformadores, os historiadores ambientais,
que insistem em dizer que temos de ir ainda mais fundo, até encontrarmos a
própria terra, entendida como agente de uma presença histórica. E para
apreciar essas forças, devemos de vez em quando deixar os parlamentos, as
salas de parto e as fábricas, abrir todas as portas e vagar pelos campos e
florestas, ao ar livre. Chegou a hora de comprarmos um par de sapatos
resistentes para caminhadas, e não poderemos evitar sujá-los com a lama dos
caminhos. (WORSTER, 1991, p. 199).
Os citados historiadores costumam sistematizar o campo de estudo com base numa
tríplice partição: o nível do estudo da natureza como história; o nível da constituição
socioeconômica das comunidades em sua inter-relação com os espaços geográficos; e, o nível
da construção da relação simbólica humano-natureza. Mas como observa Pádua, os elementos
do conhecimento ecológico e das ciências naturais se misturam nas dimensões da história: a
econômica, a social, a política e/ou cultural ao construírem grandes narrativas (clássicas) que
evoluem ao longo do tempo de maneira bastante linear. Todavia, considera que a novidade
principal está na interação entre o natural e o social. (PÁDUA, 2010, p. 86).
Do recorte “stricto sensu da produção bibliográfica” sobre o campo da história
ambiental realizado por José Augusto Pádua, cito, apenas, algumas abordagens como exemplos:
Webinar com o ecólogo Enrique Leff sobre “Os desafios para a História Ambiental na América Latina. ”
(17/11/2020).
Professor emérito do Departamento de História da Universidade do Kansas, é tido como um dos mais
destacados historiadores clássicos do campo da história ambiental, tendo publicado vários livros e artigos
relevantes.
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uma história do Brasil a partir da destruição da Mata Atlântica elaborada por Warren Dean
(1997); o manguezal na formação da história e na cultura do Brasil, particularmente os usos e
representações dos mangues para os povos indígenas e populações pobres – um estudo de
Arthur Soffiati (2006); a história da indústria madeireira na América portuguesa foi escrito por
Shawn Miller (2000) e Diogo de Carvalho Cabral (2014), abordou a relação entre o corte de
madeira e a produção agropecuária (PÁDUA, 2020, p. 1313/14/15). Estas e tantas outras
referências – de livros, ensaios e artigos – compõem consistentes revisões historiográficas
elaboradas tanto por José Augusto Pádua, quanto por Paulo Henrique Martinez (2005).
O campo epistemológico da história ambiental se complexificou e elaborou outras
configurações na dialeticidade mesma de seus próprios processos produtivos, cujos
protagonistas fundamentam suas pesquisas numa “nova ordem ética ambiental integrando
sociedade e natureza.” Deste campo particularizamos àqueles que instauram um combate
pelos direitos comunitários historicamente inscritos em uma ecologia específica baseada no
Conhecimento Tradicional.
Destaco a declaração de José Augusto Pádua: “o historiador não se forma numa torre
de marfim, ele se forma com as questões do seu tempo, com as suas inquietações pessoais”
(2013, p. 91). Às inquietações pessoais que são também coletivas. Por exemplo, olhemos para o
nosso país, nos chama a atenção às incessantes e programáticas políticas públicas que vêm
agravando às injustiças históricas e sociais contra um contingente populacional majoritário.
Como podemos pensar e agir para testemunhar, demonstrar e apoiar os projetos produtivos –
de autogestão – das comunidades indígenas, comunidades quilombolas, comunidades rurais e
urbanas. Existem muitas histórias para serem (re)constituídas: a dos “ movimentos sociais e
organizações não-governamentais, práticas sociais e ações coletivas, partidos políticos, políticas
públicas em diferentes níveis e articulações importantes no campo das relações nacionais e
internacionais. (PÀDUA, 2005, p. 60).
O cientista ambiental Luiz Antônio Ferraro Júnior e o economista Marcel Bursztyn
descrevem a formação histórica dos “fundos de pasto” como áreas não cercadas de Caatinga,
tradicionalmente utilizadas para pastoreio comunal e representam um padrão de ocupação que
se desenvolveu no semiárido nordestino, passou por um processo progressivo de usurpação
semelhante ao enclosures ingleses nas décadas de 1970 e 1980:
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As comunidades são compostas por familiares, e há inúmeras práticas de
compadrio. As identidades, os acordos e o diálogo são reforçados por essas
relações. A documentação frágil e o pouco interesse em fragmentar as áreas
dos “clãs” em unidades familiares contribuíram para a manutenção do regime
comunal. O longo prazo de maturação dessa ocupação – mais de duzentos
anos, em alguns casos – favoreceu um posicionamento firme por parte das
comunidades, que passam a se perceber e a se afirmar como detentoras de
direitos históricos. (FERRARO JÚNIOR & BURSZTYN, 2010).
O etnohistoriador Dirceu Lindoso ao descrever o espaço das lutas cabanas (18321850) no livro Utopia Armada: rebeliões de pobres nas matas do Tombo Real, 2005, nos
mostra como nas extensões dessas matas:
Os cabanos fizeram o uso comunitário das terras das matas, trabalho
comunitário de organização insurrecional, a produção comunitária de
autoconsumo e escambo, igualdade social, ausência de hegemonias étnicas ou
estamentais e pluralidade religiosa. (LINDOSO, 2005).
Para Dirceu Lindoso, esta insurrecionalidade camponesa, ágrafa, realizada pela massa
popular dos campos e matas do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas, abre no seu
interior, a “brecha camponesa” – expressão que designa àquelas atividades econômicas que
fogem ao sistema de plantação escravista. Esta economia é a base de um campesinato formativo
comunal. Vale citá-lo:
A economia de subsistência dos negros fugidos nos espaços das matas úmidas
do sul de Pernambuco e do norte de Alagoas é bastante antiga, e teve seu
ponto alto no século XVII, com o estabelecimento de uma confederação de
mucambos de negros alçados, que passou à história com o nome de
Quilombo dos Palmares. Neste caso, a brecha camponesa durou
possivelmente um século, ou mais, e não cessou com a destruição dos
Palmares em fins do século XVII. O espaço mucabeiro papa-mel, formado
por mucambos autônomos, absorveu a brecha camponesa palmarina sob a
forma de um proto-campesinato, que se foi inserir, a partis de 1832, no
espaço insurrecional cabano. [...] Era uma economia de proto-campesinato
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baseada na colheita de frutos silvestres, nas plantações de mandiocas e
milharais, e no cultivo de raízes comestíveis (inhames, carás, batatas e
mindubins) e de fruteiras de ciclo sazonário (LINDOSO, 2000, p. 112/13).
Tanto o antropólogo Antônio Carlos Diégues, quanto o ecólogo José Geraldo
Wanderley Marques atestam que os pescadores “caiçaras” fazem uso comum dos mangues,
corpos d’água de lagunas e estuários regulados por “[...] um “ethos” marcado pelo ‘respeito’
através do qual os direitos comunitários e familiares são garantidos pela tradição, pelas festas,
pelos mitos e lendas (DIÉGUES, 1993). Em Alagoas, a “caiçara” consiste num engenhoso
sistema de pesca ou cultivo extensivo de organismos estuarinos baseados na noção de espaço
de uso comum, apropriados pelos pescadores locais. (MARQUES, 1991).
Alerto que não se trata de questões anacrônicas, mas tornar mais visíveis às
experiências históricas – passadas, presentes – social e culturalmente construídas, que
necessitam de investigações que resultem na fabricação de historiografias ambientais, cujas
contribuições aloquem mais conhecimento histórico neste front de debates ou “comunidades
epistêmicas” e “pragmáticas” onde os “[...] membros compartilham crenças baseadas em
princípios, noções de validade e metas políticas”, particularmente, àquelas cuja ética ambiental498
orienta os processos e comportamentos sociais – individuais e coletivos – em direção a um
futuro justo e sustentável; uma nova geopolítica fundada no pensar globalmente e atuar
localmente (POLÔNIA, 2015). Resulta daí o importante apoio de um campo de produção de
saberes que apoia resolutamente:
[...] à criação de uma economia com bases produtivas e distributivas com a
autogestão das comunidades na apropriação e transformação de seus bens e
serviços ambientais para o uso comum, valorização de autonomias culturais,
assessoria às estratégias de resistência às políticas de globalização e
capitalização da vida. (LEFF, 1994).
Para esta linha de pensamento convergem àqueles/as cujas considerações argumentam
que a “ética para a sustentabilidade vai além do propósito de conferir à natureza um valor
intrínseco universal, econômico ou instrumental.” A valoração dos bens comuns a partir das
“O Manifesto pela Vida” surgiu do Simpósio sobre Ética e Desenvolvimento Sustentável, realizado em Bogotá,
Colômbia, em maio de 2002.
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culturas, crenças e sentimentos que, milenarmente vêm desenvolvendo intrínsecas relações,
transformações e coevoluções com a natureza. (HABERMAS, 1986 apud COARASA;
PEQUEÑO, 2006).
Alfonso Coarasa e David Pequeño, professores499 engajados com temas relacionados à
Filosofia da Educação Ambiental, problematizam o paradigma da “sustentabilidade”. Ao
analisar tanto seus elementos de “lucidez”, quanto os de “ingenuidade”, expressam uma
suspeição: “[...] uma versão politicamente correta e constituída de uma racionalidade
instrumental que se consolidou como hegemônica desde os primórdios da Modernidade e da
revolução industrial.” Aqui reside um tópico deveras importante para precisar os alcances
epistemológicos deste campo de conhecimento, todavia, partimos da redefinição dos nossos
objetos de estudo a partir de, como bem a chama Jacques Revel, a história “ao rés do chão”500,
aqui traduzida como:
O critério para valorizar o natural requer um ponto de vista muito mais
abrangente do que a mera consideração dos retornos econômicos: o
fundamental, como já apontou Marx, é não desenvolver políticas econômicas
a partir do reconhecimento da escassez de recursos naturais, mas levando em
conta, em primeiro lugar, os pressupostos sociopolíticos específicos que
produzem a escassez efetiva a partir de um desequilíbrio distributivo excessivo
(COARASA E PEQUENÑO, 2006).
Por fim, corroboro as palavras do historiador Emmanuel Le Roy Ladurie (1974), ao
declarar que os diversos temas da vida e do ambiente na agenda política são catalisados por
uma interpretação ecológica da história – a história ambiental – cujo exercício de reconstituição
narrativa permite-a ser mais inclusiva e descentralizadora no que diz respeito às decisões sobre
os processos de produção e distribuição dos recursos naturais como bens comuns.
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As múmias Incas e os caçadores de cabeças: Ritos fúnebres, epistemicídio e
genocídio de populações americanas pré-colombianas
Eduardo Mangolim Brandani da Silva501
Anelisa Mota Gregoleti502
Gessica de Brito Bueno503
Resumo: O embalsamamento foi utilizado com diferentes propósitos no decorrer do tempo,
inclusive para ritos fúnebres. Diferentes populações andinas e da bacia do Amazonas
preservavam cadáveres com esse propósito. Esse trabalho visa expor o embalsamamento entre
os Incas e os Jívaros ao lado de situar como a colonização espanhola gerou genocídio sobre
essas populações entre os séculos XVI e XIX ao lado do epistemicídio em relação aos grupos
Shuares.
Palavras-Chave: Embalsamamento; Império Inca; Império; Jívaro-Shuar.
Introdução.
A morte por ser um processo natural inerente a vida, acomete todos os seres vivos,
portanto perpassa todas as sociedades e temporalidades. Apesar dessa naturalidade, ela é lidada
artificialmente. Esse processo, historicamente construído, está atrelado a determinantes
culturais. Os ritos ganham vida por meio dessa relação entre questões culturais e aspectos
naturais. Cada grupo possui uma maneira de lidar com seus defuntos. Os únicos padrões que
se notam são o temor à morte e o horror ao cadáver (MOORE e WILLIAMSON, pp.3, 2003)
(COLMAN, pp.42, 1997).
Os indivíduos fugiam da morte nas primeiras sociedades. No entanto, aos poucos, os
grupos sociais foram reconstruindo sua relação com o fim da vida. A ideia passou a ser a busca
Eduardo Mangolim Brandani da Silva é mestrando em história pela linha de história culturas e narrativas no
programa de pós-graduação em História da Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área de história
das ciências da saúde e história das ciências da natureza. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e
meio ambiente).
Anelisa Mota Gregoleti é doutoranda em história pela linha de história culturas e narrativas no programa de pósgraduação em História da Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área de história das ciências da
natureza. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e meio ambiente).
Gessica de Brito Bueno é graduanda em História na Universidade estadual de Maringá. Possui estudos na área
de história das ciências da saúde. Faz parte do LHC (Laboratório de história ciências e meio ambiente).
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de evitar a morte, o que designou diferentes ritos ao cadáver (MOORE e WILLIAMSON,
pp.3-4, 2003). Esse confronto com a morte, suscitou em medidas de preservação cadavérica. O
embalsamamento é uma metodologia muito antiga, que vem sendo realizada desde os
primórdios da humanidade. Quando se compara diferentes culturas, com distintos aspectos
religiosos, é possível compreender quais eram as intenções ao lado das mais diversas técnicas
de preservação cadavérica utilizadas (COLMAN, pp.45-48, 1997).
O embalsamamento, seja natural ou artificial, possui como produto restos humanos que
possuem partes orgânicas preservadas, mantendo assim a forma e parte da aparência. As de
tipo natural são aqueles produzidas em meio à local árido, seja com ou sem intencionalidade
humana. Quando havia intenção nesse processo e havia o uso do espaço natural, a metodologia
passa a ser considerado como natural- artificial. A mumificação mantém a estrutura intracelular
apesar da perda da funcionalidade da célula (LYNNERUP, pp.162-164, 2007).
Os autores Erich Brenner e Robert G. Mayer estipularam que existam três períodos
distintos na história do embalsamamento, que se definem por meio das diferentes intenções
para a conservação do cadáver. O primeiro período é chamado período das culturas antigas, se
iniciando das primeiras evidências até o ano de 650 D.C; o segundo período é conhecido como
período dos anatomistas (650 D.C. – 1861 D.C.) e o terceiro e último período é conhecido
como período funerário (1861 D.C. – tempo presente) (BRENNER, pp.316, 2014)
(JOHNSON et al, pp.983, 2012).
O período das culturas antigas congrega uma multiplicidade de civilizações que
possuíam uma visão de mundo própria. Os fatores religiosos e mágicos individuais aparentam
ser o grande fator motivador da realização da preservação para as civilizações desse período, o
mesmo valendo para técnicas e recursos (JOHNSON et al, pp.983, 2012) (THOMAS, pp.236,
1989). Na maioria desses grupos a intenção era de preservar o cadáver para que seu espírito, ou
identidade, pudesse transitar ao seu respectivo paraíso ou pudesse continuar existindo no
espaço terreno (MOORE e WILLIAMSON, pp.4, 2003) (THOMAS, pp.236, 1989). A
relevância de se estudar um procedimento como esse é devido sua centralidade nessas
sociedades (ARRIAZA et al, pp.196, 1998).
Esse esquema apresentado sobre as eras do embalsamamento pode induzir à um grave
erro de concepção temporal. O marco temporal de 650 D.C. esse ponto deve ser entendido
como divisa entre duas eras do embalsamamento. O período anterior a esse ano é dito como o
período das culturas antigas, servindo como identificação de modelos de embalsamamento com
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enfoque religioso. Tal divisa se dá porque, por volta do ano 650 D.C., na Idade Média
Europeia, surgiu o embalsamamento com foco na preservação da imagem do defunto. O erro
que não deve ser cometido é o de achar que após o ano 650 D.C. não surgiram novas culturas
que realizavam o embalsamamento com enfoque religioso. Os marcos temporais do
embalsamamento referenciam o começo de novas intenções para embalsamar e não o fim das
anteriores (BRENNER, pp.316, 2014) (JOHNSON et al, pp.983, 2012).
Os Incas os Jívaro Shuar são duas culturas que surgiram após o ano de 650 D.C.,
portanto estão na segunda era do embalsamamento. No entanto por realizarem a preservação
cadavérica com intenções religiosas, eles se enquadram melhor nos pressupostos da primeira
era do embalsamamento. A ideia será expor como se davam as metodologias de preservação
cadavérica desses dois grupos, assim como determinar a relação delas com os pressupostos
culturais e religiosos dessas culturas. Com tais determinações, esse trabalho também busca
evidenciar como as invasões espanholas alteraram as configurações culturais desses grupos, de
forma que ficará evidente os impactos da invasão e colonização sobre esses ritos fúnebres.
As múmias Incas: Embalsamamento, invasão e perda de conhecimentos no mundo incaico.
Os Incas em se constituíram enquanto povo por volta do século XII, mas a estrutura de
império só se consolidou em 1438. Enquanto que o grupo Inca se constituía em cerca de cem
mil indivíduos, nota-se que o império era formado por 10 milhões de habitantes. Esse modelo
imperial só foi possível devido a boa administração do grupo central, por meio de questões
militares e vantagens de tipo econômico e de proteção. O império começou sua derrocada com
a invasão espanhola em 1532, essa liderada por Francisco Pizarro, processo esse que logo será
comentado (MONTGOMERY e KUMAR, pp.254-266, 2016).
Os Incas por terem um império de larga extensão acabaram se apropriando de
conhecimentos regionais que lhes foram úteis, um desses fora o embalsamamento. O que se
nota é que haviam várias metodologias, tendo elas variado de acordo com a regionalidade e em
relação à posição social que possuía o defunto que ia ser tratado (VREELAND, pp.168-169,
1998). Ao que tudo aparenta, apenas pessoas de alta hierarquia eram embalsamadas. No
entanto, a metodologia dos imperadores e kurakas (líderes regionais) diferia das dos outros
indivíduos (THOMAS, pp.231-232, 1989). Nenhum exemplar de múmia imperial remanesceu.
Restaram apenas relatos de cronistas Incas e de Espanhóis que se depararam com elas. Dentre
os motivos pensa-se na destruição por parte dos locais e a falta de cuidados por parte dos
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espanhóis, que não as restauraram, provocando a deterioração delas nos séculos XVI e XVII
(HEANEY, pp.21, 2018) (WEBB, pp.176-177, 2015).
A múmia do imperador era conhecida como Yllapa, sendo ela um objeto de veneração
que trazia luz aos indivíduos, pois era dito que ela continha o último sopro de vida do
dignitário. É provável que a metodologia empregada no preparo da mesma foi apropriada de
grupos andinos por volta de 1300 D.C. Os procedimentos técnicos encontrados nos relatos
afirmavam ocorrer a evisceração onde o coração era retirado, secado e disposto num ícone de
ouro, assim como a retirada do intestino. Substâncias balsâmicas eram aplicadas no exterior e
interior do cadáver, sendo esse corpo levado a um local frio com incidência do sol, para que
pudesse dessecar. Essa era a metodologia mais comum nas terras altas centrais (VREELAND,
pp.170, 1998). Esse corpo recebia cera e tinturas para modelar, sendo ele todo enfeitado com
penas de ouro e pedras preciosas (HEANEY, pp.5-6, 2018) (THOMAS, pp.231-232, 1989).
Durante o período de um mês o corpo do imperador permanecia com suas vestes reais,
assim como era disposto num trono (VREELAND, pp.171-172, 1998) (WEBB, pp.177, 2015).
Depois de passado o mês a Yllapa era levada numa praça, para que ocorressem
comemorações, pois ela ainda teria vida. Em seguida ele era colocado num palácio suntuoso,
cheio de joias onde havia o corpo de outros imperadores mumificados (HEANEY, pp.6,
2018). O fato de que o imperador era colocado numa câmara junto de corpos de concubinas,
esposas e lhamas que foram sacrificadas, assim como oferendas, nos leva a crer na ideia de um
pós vida (THOMAS, pp.232, 1989). O papel do imperador mumificado era o de manter sua
linhagem, pois uma vez que seu corpo fosse preservado, a existência de seu grupo estava
assegurada (HEANEY, pp.6, 2018). Nenhum familiar ou indivíduo podia visitar a múmia do
imperador, apenas os profissionais encarregados, que cuidavam de manter as provisões e
oferendas ao corpo defunto (VREELAND, pp.172-173, 1998).
Fora do planalto central, nas terras baixas e costa, as técnicas de mumificação variavam.
No entanto, a evisceração aparenta ter sido uma constante nas diferentes metodologias
desenvolvidas. O corpo era enrolado em tecidos, após isso recebia uma camada de algodão,
seguido de mais uma camada de tecido e uma série de sementes de algodão, sendo muitas
vezes aplicada uma corda ao redor (VREELAND, pp.170, 1998). No topo desse conjunto
trabalhado, era colocada uma cabeça falsa que tinha sido ornamentada. Alguns dos corpos no
interior desses mantos estavam muito bem preservados, enquanto outros encontravam-se bem
deteriorados (WEBB, pp.178, 2015).
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Como colocado, haviam variantes locais. Em Pachacámac o corpo era tratado no
método acima, recebia uma série de oferendas para o pós-vida e as cabeças falsas eram de
diferentes materiais. Dentro desse grupo havia cabeças de madeira talhadas com conchas nos
olhos, de cerâmica com detalhes coloridos e de pano pintado recheado com raízes e folhas
(FLEMMING, pp.40-43, 1986). Na província de Carangas o processo era similar, havendo
uma incisão abdominal para retirar as vísceras, sendo esse corpo dessecado pelo frio e sol e
resguardado com oferendas (VREELAND, pp.170-171, 1998). No grupo Chacapoya a
metodologia era similar. No entanto, as vísceras eram retiradas por um alargamento anal que
depois era selado com panos. A pele nesse grupo era tratada com plantas andinas e esse corpo
também recebia oferendas (WEBB, pp.178, 2015).
O Kuraka recebia um procedimento similar àqueles citados que não eram o do
imperador. No entanto, por ter uma posição social de liderança, os itens que lhe eram
dispostos para o pós-vida eram únicos. Esses líderes regionais eram dispostos numa sala
própria, de maneira que todas as suas posses lhe acompanhavam, assim como oferendas. Além
disso, servos e mulheres sacrificados lhes serviriam no pós-vida, sendo esses cadáveres
dispostos ao seu lado (VREELAND, pp.171, 1998).
Toda essa miscelânea técnica se alterou com a chegada, invasão e colonização do
espaço americano por parte dos espanhóis. O fim do mandato do imperador Wayna Kapaq
em 1528 deu seguimento à um período de interregno. Esse era o processo habitual na transição
de governos de forma que os líderes regionais entrariam em desavenças até que o novo
imperador fosse escolhido. Tal cenário levava certo tempo até que os ânimos se acalmasse, no
entanto isso não foi possível devido á chegada dos invasores espanhóis (FAVRE, pp.84-85,
2004).
Os Incas já tinham tido contatos prévios com os espanhóis desde 1524, isso porque a
expedição de Francisco Pizarro (1478-1541) fazia excursões de reconhecimento nas costas dos
atuais Peru e Colômbia. Huáscar que era o pretendente imperial do sul, se aliou à tais
indivíduos com a ideia de que isso possibilitaria uma mudança de forças na guerra travada
contra seu irmão do norte, Atahualpa. A guerra ia assim ganhando corpo, de forma que esse
processo acelerou com a prisão de Atahualpa por parte de Pizarro (FAVRRE, pp.86-88).
A morte de Atahualpa pelas tropas de Pizarro, fizeram com que a guerra se
configurasse. Caso os Incas não estivessem atravessados pela crise cíclica de transição de sua
cultura, é bem provável que a dominação espanhola não tivesse sido tão fácil. Porém por outro
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lado se Atahualpa tivesse sido poupado provavelmente o regime colonial teria sido instalado
com maior facilidade. Isso fica claro pelos movimento seguintes à morte do pretendente
imperial do norte, onde uma grande anarquia surgiu no interior do império, onde de certa
forma esse se desfez. Sem uma burocracia central de comando, os grupos regionais entraram
em guerra, de forma que antigas rivalidades foram evocadas. No longo prazo esse processo foi
danoso à conquista espanhola que teve problemas na região até o século XVIII (FAVRE,
pp.90-94, 2004).
Frente à desestabilização do império Inca e a queda do poder central, nota-se que tais
processos impactaram os conhecimentos tanatológicos contidos no interior desse domínio.
Nota-se que os modelos regionais continuaram sendo produzidos mesmo após a invasão
espanhola, pois esses grupos que eram dominados pela burocracia central do império foram
conquistados apenas depois pelos espanhóis (HEANEY, pp.5, 2018).
As Yllapas, como foi citado acima, não tiveram a mesma sorte dos outros corpos
embalsamados. Primeiramente é preciso ressaltar que parte delas foram destruídas no processo
da guerra. Os grupos regionais e os espanhóis destruíram parte delas, por serem símbolos de
poder do império. No entanto nota-se que com o abafamento da guerra, parte dessas múmias
imperiais ainda existiam (HEANEY, pp.7, 2018).
Parte dos espanhóis considerava que essas múmias deveriam ser destruídas, no entanto
devido ao estado de preservação desses cadáveres, tais patrimônios incas foram levados para a
Espanha para que pudessem ser estudados. O problema é que os espanhóis levaram essas
múmias para um local com outro clima, saindo de um ambiente árido e seco, para a região
central da Espanha, que era menos seca. Esse cenário, aliado à falta de investimentos em
preservar tais cadáveres, isso devido ao lapso desse conhecimento, fizeram com que essas
múmias não existissem mais até o fim do século XVII. Tal conhecimento caiu no
esquecimento no mundo andino, podendo se configurar como um epistemicídio (HEANEY,
pp.11-15, 2018).
Cabeças encolhidas: Os Jívaro-Shuar, a caçada de cabeças e a resistência ao epistemicídio.
Dentro do espaço sul-americano surgiu, entre diferentes culturas, um fenômeno cultural
chamado de “caçada de cabeças”. Sua presença, em diferentes partes do mundo, conota uma
questão primitiva de muitos grupos. No entanto, uma etnia manteve essa metodologia até o
século XX, os Jívaro-Shuar (ARRIAZA et al, pp.211, 1998). Esse grupo vivia na bacia do rio
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Amazonas, numa região montanhosa que fica ao sul do Equador e ao norte do Peru
(JANDIAL et al, pp.1215, 2004) (SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009). Essa técnica de
embalsamamento vem desde períodos pré-coloniais, sendo que o diferencial dos Jívaro-Shuar,
entre outras etnias de caçadores de cabeça, reside no fato de que estes encolhem o crânio para
o tamanho de um punho adulto (ARRIAZA et al, pp.212, 1998).
A cabeça preparada se chama Tsantsa. Ela funcionava como uma espécie de troféu e
havia muitos motivos para sua busca (THOMAS, pp.233, 1989). O motivo para a promoção
desse tipo de caçada se pautava na questão ideológico-religiosa, pois a morte natural de um
indivíduo do grupo era considerada fruto de pragas feitas por outro grupo (JANDIAL et al,
pp.1217, 2004). O processo era organizado pelo Kuraka do povoado ao lado do xamã, sendo
uma batalha que poderia ter de cinco a cinquenta guerreiros, seu objetivo era obter o máximo
de cabeças possíveis (SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009).
Todo o processo ritual em torno da caçada importava muito. O mesmo se iniciava com
uma preparação na noite anterior ao começo da viagem. Os guerreiros bebiam cerveja de
mandioca, se entorpeciam com um alucinógeno, Natéma, e o xamã bebia o Maikua, que
permitia o contato com os antepassados. O grupo viajava, cercava o outro povoado, invadia o
mesmo e focava em ataques de tacape com dardos venenosos. Quando necessário, lutavam
com lanças de madeira. Com os inimigos mortos, as cabeças eram retiradas pelo pescoço num
corte em V, sendo esse feito com uma faca de metal ou de madeira que eram depois deixadas
no mesmo local (JANDIAL et al, pp.1217, 2004).
O objetivo não era conquistar o território inimigo, mas sim garantir o máximo de
cabeças possíveis. Depois do ataque, os invasores recuavam. O recuo se dava por medo dos
espíritos raivosos na região, por isso as facas também eram deixadas para trás. Os Jívaro-Shuar
retornavam à sua aldeia e davam início à confecção do troféu. A cabeça era toda escalpelada,
sendo retiradas as entranhas e ossos, no entanto as cartilagens eram mantidas assim como o que
restava do cabelo (JANDIAL et al, pp.1217-1218, 2004). Essa etapa era rápida levando de
quinze à vinte minutos. No entanto, o processo completo geralmente levava oito dias
(SAUVAGEAU et al, pp.72, 2009) (THOMAS, pp.233, 1989). Como a viagem de volta com
as cabeças costumava demorar, em muitos casos as mesmas estavam em estado de putrefação
ainda durante o transporte (ARRIAZA et al, pp.213, 1998).
As cabeças eram então dispostas num recipiente com água de rio e plantas cozidas,
havendo a presença de tanino, coagulantes e antissépticos. Se a cabeça estivesse fresca ela não
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necessitava de calor, mas caso a putrefação tivesse começado ela era condicionada a um
processo de aquecimento (ARRIAZA et al, pp.213, 1998). Esse processo levava de quinze a
vinte minutos e, durante o mesmo, havia a recitação de passagens rituais importantes
(JANDIAL et al, pp.1218-1219, 2004). O crânio tinha seus orifícios selados com fibras vegetais
e gravetos, enquanto que o topo era selado pelos cabelos abundantes (ARRIAZA et al, pp.214,
1998). A cabeça era colocada numa estaca e assim os Jívaro- Shuar reiniciavam a marcha de
volta ao seu povoado (JOHNSON et al, pp.1000, 2012).
O processo de encolhimento dependia da introdução de pedras e areia quentes que
tinham sido previamente aquecidas num prato. A cabeça recebia primeiro a areia, sendo
chacoalhada para se espalhar e depois recebia pedras, processo que conforme a redução desse
saco de pele, ia necessitando da introdução de pedras cada vez menores (THOMAS, pp.233,
1989). A preservação do crânio significava manter o inimigo preso e reduzido ali, sendo as
pedras quentes úteis para acalmá-lo (JANDIAL et al., pp.1219, 2004). Óleos vegetais e
gorduras eram utilizados para modelar a face, portanto seu escurecimento vem desses fatores e
da fumaça das pedras e areias aquecidas (ARRIAZA et al, pp.214, 1998). Esse saco de pele era
recheado com carvão e por fim estava pronta a Tsantsa (THOMAS, pp.233-234 1989).
O processo em si tinha mais de uma motivação. A primeira delas era o de poder
libertar os antepassados de seu grupo, pois se alguém morrera por um sortilégio, o rito final da
Tsarutama poderia libertar este antepassado (JANDIAL et al, pp.1220, 2004). O crânio
também funcionava como um troféu e um amuleto, pois detinha os atributos do indivíduo
decapitado, uma vez que o guerreiro inimigo tinha seu espírito ali encerrado, podendo este ser
evocado. Esse processo pode parecer muito violento. No entanto, tais valores eram construídos
entre esses grupos dentro de um modelo ideológico pautado em crença construído desde a
infância. Cabe ressaltar que a vida seria então mantida no pós- morte, só que encerrada dentro
desse crânio e utilizada pelo seu possuidor (ARRIAZA et al, pp.210-214, 1998).
Esse grupo teve de lidar com mais de um tipo de tentativa de dominação.
Primeiramente eles sofreram sucessivas tentativas de serem agregados pelos Incas entre os
séculos XV e XVI. No entanto eles conseguiram barrar essas invasões sucessivas vezes, de
forma que se mantiveram separados do império (JANDIAL et al, pp.1217, 2004). Além das
tentativas de invasão Incas, nota-se que esse grupo não foi conquistado pelos espanhóis.
Inclusive todas as tentativas dos invasores em estabelecer acampamentos espanhóis na região
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bacia do alto Amazonas culminaram em fracassos possuidor (ARRIAZA et al, pp.210-214,
1998).
Esses grupos locais tiveram de lidar com múltiplas tentativas de invasões por parte dos
espanhóis. Inclusive no século XVIII houve uma grande incursão contra eles, de forma que a
resistência dos nativos exigiu que povoados rivais tivessem de se unir contra essa incursão. O
resultado foi a derrocada dos invasores, o que lhes garantiu segurança até o fim do século XIX
(JANDIAL et al, pp.1219, 2004). Uma curiosidade é notar que devido à longa duração desse
grupo, as cabeças- troféus vieram sendo produzidas até o século XX.
No decorrer do século XIX é possível notar que esses grupos foram se desagregando,
de forma que suas populações foram diminuindo. Nesse século conforme suas áreas foram
sendo cada vez mais ocupadas pelos invasores nota-se que o interesse por esses crânios
preservados se ampliou. Muitos estrangeiros buscavam possuir essas cabeças para compor
acervos de curiosidades o que gerou uma série de cabeças falsas, preparadas a partir de animais
ou por meio da obtenção de cabeças de defuntos em hospitais da região. As cabeças falsas
passaram a ser vendidas como acessórios, sendo apenas possível diferenciar as falsas das
verdadeiras por meio de uma análise forense com recursos bioquímicos (SAUVAGEAU et al,
pp.72-74, 2009).
Esse cenário expõe que esse costume religioso e sagrado para os Jívaros mas
considerado primitivo e barbárico pelos estrangeiros, foi apropriado como um modelo de
curiosidade comercial. Esse modelo foi sendo deixado de lado gradativamente conforme os
Jívaros foram perdendo seus espaços. Tanto o modelo original religioso, quanto os falsos de
tipo comercial perduraram até as duas primeiras décadas do século XX. O interessante é
observar a transição de uma visão estrangeira que considerava esse ato barbárico, para uma
apropriação de curiosidade comercial.
Conclusão
No início deste material foi dito que o primeiro período de embalsamamento foi até
650 D.C., momento esse em que o segundo período surgiu (BRENNER, pp.316, 2014). De
fato, a partir de 650 D.C, o ato de embalsamar incorpora novas finalidades (JOHNSON et al,
pp.983, 2012). Posto isso, as intenções que estimavam a garantia do pós-vida não
desapareceram a partir de 650 D.C. A divisão dos períodos designa que intenções dentro de
novos paradigmas surgiram e não que as outras desapareceram. Portanto, enquanto na Europa
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se tem, a partir de 650 D.C., a intenção voltada à proteção da imagem do defunto, nos outros
locais a ideia ainda era proteger a alma ou essência do morto (BRENNER, pp.316, 2014). Essa
prática com intenções religiosas ainda era vista no terceiro período, a Era da indústria fúnebre,
que começou em 1861 D.C., isso bem aparente pelas cabeças encolhidas dos Jívaros
(JOHNSON et al, pp.983, 2012).
É interessante colocar os métodos de embalsamamento desses dois grupos de forma à
pensar elementos sociais e culturais semelhantes ou diferentes que eles possuíam entre si. No
caso dos Incas apenas a elite e membros da corte poderiam ser embalsamados, enquanto que
os Jívaro tinham um sentido coletivo, mas com especificidades. Isso porque no caso dos
Jívaros, a caçada de cabeças fazia com que qualquer indivíduo pudesse ser executado para esse
propósito.
Quando se pensa nos estudos de gênero, nota-se que nos dois casos tanto homens
quanto mulheres poderiam passar pelo embalsamamento. No caso dos Jívaros, a caça de
cabeças trazia esse cenário de uso de qualquer crânio. No caso dos Incas, nota-se que a
prioridades para essa preservação se dava sobre os líderes, e esses eram homens. No entanto
como as esposas e serviçais do imperador e dos Kurakas eram embalsamados para o pós-vida
nota-se a presença do embalsamamento para cadáveres femininos.
As premissas mais coletivas em relação ao embalsamamento se davam no decorrer da
história em relação à grupos com menor grau de diferenciação e hierarquia social. Isso fica bem
aparente no caso do Jívaros e dos Incas. Os Jívaros possuíam baixo grau de hierarquia social e o
embalsamamento se dava sobre todos os inimigos capturados. No caso dos Incas que possuía
uma sociedade muito diversa e dividida, o embalsamamento era limitado apenas aos indivíduos
em posições de poder.
Dentro de questões religiosas, nota-se que o embalsamamento poderia ser para manter
o espirito do indivíduo num plano terreno ou como garantia desse indivíduo ter acesso ao
paraíso. Os Jívaros preservavam as cabeças para utilizar as forças de seus inimigos, portanto era
um modelo de manter a alma num plano terreno. No caso dos Incas a ideia era de garantir que
o dignitário tivesse acesso ao paraíso, este pensado como existente em outro plano
(BRENNER, pp.316, 2014).
A última questão a ser colocada remete às diferentes maneiras que foram propostas
para embalsamar. As inspirações de cada grupo se deram de acordo com as condições
ambientais que lhes cercava. É por meio das primeiras tentativas de conservação de corpos,
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fosse na observação ou realização de mumificação natural, que esses grupos começaram
processos tanatopráticos de preservação (LYNNERUP, pp.162, 2007). Com relação a certas
culturas foram os dois fatores, geografia e costumes internos, como a defumação da caça, que
propiciaram tal prática. Em outros foi apenas um deles, pois as condições ambientais poderiam
não ser propicias para ser natural, ou o grupo não realizava defumação nem salgavam a carne,
estando dependentes de um dos dois fatores (COLMAN, pp. 48, 1997). Existem diferentes
modelos, mas aqui vale citar que tanto Incas quanto Jívaros fizeram uso da evisceração ao lado
do dessecamento.
O processo de invasão da América por parte dos espanhóis ao lado das dinâmicas de
colonização acabou por solapar as estruturas internas das sociedades Ameríndias. A
desorganização social gera impactos em todos elementos pertencentes da malha social, inclusive
aqueles de ordem técnica. No caso dos Incas nota-se que esse processo foi mais severo. Mesmo
que os Incas não tenham deixado de existir, nota-se que o império se desagregou rapidamente
com a guerra instaurada por Pizarro. Portanto os conhecimentos centrais, assim como parte de
seus patrimônios materiais e científicos foram perdidos. Esse processo pode ser configurado
como um epistemicídio (HEANEY, pp.11-15, 2018).
O epistemicídio nesse caso se deu porque o poder central Inca foi perdido, portanto
não havia mais um imperador para ser embalsamado para gerar a Yllapa. As múmias imperiais
que não foram destruídas na guerra, foram destruídas pela ação do tempo, pois os espanhóis
não sabiam lidar com elas em sentido de restauração. Sem a organização do grupo original que
tinha noção de como realizar esse embalsamamento, esse conhecimento técnico foi perdido,
configurando assim o epistemicídio.
No caso dos Jívaros não houve um processo de conquista tal qual se deu sobre os Incas.
Esse grupo resistiu tanto às tentativas de dominação do império Inca, quanto às empreitadas da
colonização espanhola. Esse cenário permitiu que esse grupo existisse e realizasse a produção
das Tsantsa até o começo do século XX. No entanto os avanços sobre as terras desse grupo no
século XIX, fez com que suas cabeças preservadas fossem notadas pelos estrangeiros como
uma curiosidade. Isso levou à produção por parte dos colonizadores de cabeças falsas para a
venda delas, o que denota uma apropriação. Os Jívaros existem até hoje mas possuem outras
configurações sociais.
Ambos os grupos lutaram e resistiram às invasões estrangeiras de intenção de
colonização. Os Incas sucumbiram devido ao momento frágil que se encontravam durante a
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invasão, enquanto os Jívaros permaneceram existindo. Por fim é interessante notar que o
colonizador frente ao conjunto de conhecimentos dos colonizados pode optar pelo recusa e
descarte das técnicas, que pode suscitar num epistemicídio como se deu com as Yllapas. No
entanto, o colonizador pode se interessar pelos produtos nativos, de forma que ele se apropria
e ressignifica esse objeto e técnica à seu bem entender, independente de quão sagrado é para o
grupo nativo, como se deu com as Tsantsa dos Jívaros.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Petrolândia: uma velha cidade submersa no submédio do São Francisco
pernambucano
Érica Gabriela Fonseca de Menezes504
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo resgatar a Memória Social e histórica da
cidade de Petrolândia (PE), focando nas mudanças da paisagem urbana na construção da
Usina e seus espaços construídos e modificados. Resgatar a história local também é uma
forma de recuperar nossa história, nossas origens, permitindo lidar com uma simbologia
muito forte para a cidade e seus habitantes, valorizando suas lembranças construindo a
História Local através da Memória Coletiva. Analisando as consequências e benefícios da
construção da Usina Hidrelétrica - Luiz Gonzaga pela CHESF e a forte intervenção do
Estado e sua relação com a população local no período entre 1940 e 1988, Petrolândia foi
palco de vários empreendimentos ao longo dos anos como a estrada de ferro,
implementação do projeto de irrigação contra a seca e a construção da Usina de Itaparica. A
construção da Usina Hidrelétrica resultou na inundação da cidade velha pelo lago de
Itaparica forçando a transferência dos habitantes com o discurso do progresso, para a
presente cidade em 06 de março de 1988. Em virtude da construção da Usina, a cidade de
Petrolândia, é um dos dez maiores arrecadadores de impostos e o mais importante
município do Sertão do Submédio do Vale do São Francisco.
Palavras-chaves: Petrolândia, História, Memória e Sociedade.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo de estudo refletir os conceitos da historiografia,
atendendo os aspectos culturais da Velha Petrolândia. O interesse da História pelas pessoas
comuns insere-se no Movimento dos Annales que oferece auxílio para as novas gerações de
historiadores, tornando possíveis as pesquisas regionais, locais e uma história cheia de
questionamentos. A primeira geração da Escola dos Annales é liderada por Marc Bloch e
Lucien Febvre. O movimento contribuiu para a renovação da historiografia no final da
504
Mestranda PPGH-UFAL – erica.menezes@delmiro.ufal.br
565
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década de 1920, facilitando uma discussão entre a história e as ciências sociais, rompendo
com os paradigmas da história tradicional positivista.
Segundo, Burke (1992) a nova história corresponde a terceira geração da Escola dos
Annales, ela enaltece o resgate da memória, do cotidiano, das pessoas comuns, das mulheres
e dos imigrantes, “a nova história começou a se interessar por virtualmente toda a atividade
humana” (BURKE, 1992, p.11). A vida cotidiana também é abordada nos estudos sobre
sociologia e filosofia, ambos refletem o mundo as experiências comuns, como valores e
comportamentos. A historiografia procura transmitir ao leitor o cotidiano e a vida dos
indivíduos em uma determinada cultura, cidade, estado ou país.
A pesquisa foi realizada na revisão bibliográfica sobre a cidade de Petrolândia, em
Pernambuco, onde será desenvolvido esse estudo de caso. Discorre-se um pouco sobre a
sua história e apresenta alguns momentos importantes como o período de ocupação e a
ligação existente entre sua história com Jatobá, Tacaratu e a Companhia Hidroelétrica do
São Francisco (CHESF).
Os tópicos abordados objetivam ampliar o conhecimento da história regional do
Município de Petrolândia, estimulando o ensino da história das comunidades trazer essa
relação entre passado-presente onde o comportamento faz com que os indivíduos se
transformem em cidadãos participantes na história da sua cidade só pelo fato de se
reconhecer e de reconhecer o outro, contribuindo para o seu conhecimento histórico.
Segundo Aróstegui (2006, p. 216) a Micro-história trouxe grandes contribuições no
“estudo de história local” na condução de novas ideias no que diz respeito ao uso de fonte
oral. Contudo, a História Oral se completa com o uso de outras fontes como a bibliográfica
e fotográfica na análise de uma sociedade. De acordo com Reis (2012, p.110) a Microhistória favorece o historiador no trabalho de “restaurar a memória” através dos vestígios
deixados “involuntariamente”. O autor cita Carlos Ginzburg:
São os detalhes deixados involuntariamente que revelam a totalidade e se a
realidade/sistema quer se manter invisível e indecifrável, opaca, há sinais,
indícios, que permitem decifrá-la e tornar visível sua violência. A microhistória, ao reconstruir o passado, serve à denúncia e à ação contra a ordem.
Através dela, o todo torna-se visível, o sistema não é uma entidade extra-
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história, mas real, e sua contestação pode ser feita (Ginzburg, 1990, 2007).
(IBDEM, 2012, p.110)
Nesse contexto, o embasamento teórico metodológico deste projeto de pesquisa tem
como metodologia a pesquisa exploratória, proporcionando maior aproximação com o
problema e aprimoramento das ideias. Para Gil (2007, p.41) “o planejamento da pesquisa
exploratória” é bastante flexível, nesse caso “assume a forma de pesquisa bibliográfica e de
estudo de caso”. A escolha da pesquisa bibliográfica e o estudo de caso tem como propósito
valorizar a história local do município de Petrolândia nas aulas de história.
Boa parte dos estudos exploratórios pode ser definida como pesquisas
bibliográficas. As pesquisas sobre ideologias, bem como aquelas que se
propõem à análise das diversas posições acerca de um problema, também
costumam
ser
desenvolvidas
quase
exclusivamente
mediante
fontes
bibliográficas. (GIL, 2007, p. 44)
A pesquisa bibliográfica foi desenvolvida a partir de uma listagem de referências
teóricas como materiais publicados em artigos, livros, dissertações e teses. Conforme
(Fonseca, 2002, p.32) com o objetivo de recolher informações ou conhecimentos prévios
sobre o problema a respeito do qual se procura a resposta.
Um estudo de caso pode ser caracterizado como um estudo de uma
entidade bem definida como um programa, uma instituição, um sistema
educativo, uma pessoa, ou uma unidade social. Visa conhecer em
profundidade o como e o porquê de uma determinada situação que se
supõe ser única em muitos aspectos, procurando descobrir o que há nela de
mais essencial e característico. O pesquisador não pretende intervir sobre o
objeto a ser estudado, mas revelá-lo tal como ele o percebe. O estudo de
caso pode decorrer de acordo com uma perspectiva interpretativa, que
procura compreender como é o mundo do ponto de vista dos participantes,
ou uma perspectiva pragmática, que visa simplesmente apresentar uma
perspectiva global, tanto quanto possível completa e coerente, do objeto de
estudo do ponto de vista do investigador (FONSECA, 2002, p. 33).
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Para Aróstegui (2006, p. 446) algumas teorias acabam incluindo a outras, criando
etapas na pesquisa e o estudo de caso é um método qualitativo que proporciona um
conhecimento mais profundo em determinados grupos, compreendendo melhor os
fenômenos individuais permitindo um amplo e minucioso conhecimento sobre o tema.
A importância da história local como fonte metodológica
O uso da História Local contribuir para uma compreensão diversa da História,
principalmente como base nas pesquisas históricas; pois, é através dela que pessoas comuns
buscam compreender as transformações que aconteceram em suas vidas, tanto social,
tecnológico e intelectual.
Seu domínio de ação é essencial para o resgate histórico de diversas culturas,
exemplo, as que não utilizam a escrita, como é o caso de algumas comunidades indígenas, as
quais apresentam culturas peculiares e na “experiência histórica de pequenas comunidades”
(ARÓSTEGUI, 2006, p. 227). O que se recomenda com essa nova possibilidade da
História é a atribuição de um novo sentido do olhar do historiador, através da sua
problematização, conforme se percebe perceba o seu arredor como construído
historicamente e que, consequentemente, como sujeito histórico, suas escolhas estabeleça
uma construção histórica.
Segundo Reis (2012, p. 27) “O passado é o local da experiência: sido, acontecido,
vivido” que enxerga o “tempo histórico” como retrato mental na construção cultural de uma
determinada sociedade. Transmitir a memória de alguém desde a sua infância e juventude
na velha cidade é reviver a história como sujeito participante de uma história já vivida e
reservada na memória e na expressividade da narrativa de pessoas que guardam uma
saudade daqueles velhos tempos. Nenhuma das grandes histórias das civilizações conseguiu
eternizar suas histórias sem a preservação do seu passado, tanto na memória individual,
coletiva e social.
Para Reis (2012, p. 55), “a memória não é do passado, mas instrumento que torna o
presente a ele mesmo”. Consequentemente, o alicerce social da memória alcança a vida
diariamente, tanto no emprego, com a família, nos grupos sociais, na história, na música,
arte, literatura, em toda memória social existente e o critério para distinguir a memória social
da coletiva muda conforme a ideologia dos autores Segundo Menezes (1984, p. 33) toda
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memória individual e coletiva transforma-se em base fundamental da identidade, sua
essência absorve as “informações, conhecimento, experiências individuais ou social”,
caracterizando dando forma e clareza para a inteligência.
História de uma velha cidade no interior de Pernambuco
Compreender a memória histórica da cidade de Petrolândia (PE) tem como objetivo
focalizar as mudanças da paisagem urbana, com a obra da Usina e seus espaços construídos
e modificados, permitindo lidar com simbologia muito forte para a cidade e seus habitantes.
Petrolândia nasceu de um bebedouro à sombra de um Jatobá; pois, era comum nas margens
de um rio ter sempre um lugar ideal para dar água ao gado à sombra de árvores. Realmente,
muitas cidades nasceram à margem de rios.
Em 1960 até 1977 em Quixaba passava uma das paradas de trem que vinha de
Petrolândia à Piranhas (AL), onde embarcava a população que morava em (Curral do Bois)
Glória antiga, Forquilha (Atual Paulo Afonso), Brejo dos Padres etc.
O motivo de Petrolândia ter nascido foi escolha do lugar para a construção
da estrada de ferro Paulo Afonso, que estava prevista para ser na Vargem
Redonda, lugar mais habitado e conhecido (citado nos relatórios exigidos
por D. Pedro II), o engenheiro responsável resolve fazer a estação na
fazenda Jatobá por ser uma povoação também tinha bebedouro e curral.
(FERRAZ, 2007, p. 28)
Durante os anos 1970 e 1980, a construiu a Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga que
resultou na inundação da antiga cidade pelo lago de Itaparica, forçando a transferência dos
habitantes para a presente cidade, em 06 de março de 1988. Em virtude da construção da
Usina, a cidade de Petrolândia (PE) é um dos dez maiores arrecadadores de impostos e o
mais importante município do Sertão do Submédio São Francisco. Após a obra da Usina e a
mudança entre Petrolândia Velha para a Nova Petrolândia, a cidade ficou conhecida pela
sua Igreja do Sagrado Coração de Jesus, submersa nas águas do rio São Francisco até os dias
atuais.
Petrolândia nasceu de um simples bebedouro que ficava ao lado de vários
jatobazeiros nas fazendas de Brejinho da Serra e de Fora, que durante um século o espaço
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era conhecido e frequentado somente pelos vaqueiros e chamado de bebedouro de Jatobá505.
Em 1859 o Imperador D. Pedro II em suas viagens pelo Norte do Brasil ficou encantado ao
conhecer a cachoeira de Paulo Afonso, e passou a nutrir a ideia de unificar economicamente
o Médio ao Baixo São Francisco através de uma via férrea. Colocando o plano em execução
em 1877 devido à seca no Norte, a primeira província beneficiada foi em Alagoas, seguindo
para Jatobá em Pernambuco no total de 115,136 quilômetros.
No livro “O simples povo brasileiro de Jatobá de Tacaratu: “Petrolândia” o autor
aborda a historiografia da cidade de Petrolândia, que sofreu com o impacto da construção
da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga. Na obra o autor destaca a falta de um plano urbanista
que é uma de suas decepções após a mudança de localidade:
“Quando eu tinha 16 anos e soube da mudança de local da minha cidade eu
sonhei dias e noites com um modelo referência para todo país, ainda
cheguei a comentar com políticos da época[...] A cidade não terá poeira,
insetos, terá praças e avenidas lindas e largas e limpas de fazer inveja a
qualquer outra cidade[...], era só um sonho de um jovem “que não conhecia
a parte suja da política brasileira. (FERRAZ, 2007, p. 13)
No decorrer dos anos 1970 a CHESF chega a Petrolândia com o objetivo de
construir o Reservatório de Itaparica para a manutenção da vazão do curso do rio na
construção da Usina Hidrelétrica Luiz Gonzaga de 834 km² com capacidade de gerar 2.500
MW em complemento com o Complexo Paulo Afonso. Para a conclusão desse projeto foi
necessário a transferência de várias cidades ribeirinhas de lugar e indenizar os proprietários,
de imediato foi indispensável erguer uma vila operaria batizada de Acampamento Chesf
para os funcionários e operários da barragem que ficou conhecido como Cidade Livre. A
cidade de Petrolândia teve sua sede atingida pelo Plano de Desocupação elaborado desde
1985, era importante fazer o cadastro socioeconômico das famílias atingidas pela obra, mas
não foi tão fácil convencer os moradores e os trabalhadores rurais, a área escolhida para a
construção da nova cidade apresentava vários problemas como terras improprias para a
Jatobá: significado de jatobá no dicionário português Aurélio. Nome de várias árvores da família das
leguminosas, que produzem longas vagens comestíveis e copal.; Madeira dessas árvores, dura e de tom
avermelhado. https://dicionariodoaurelio.com/jatoba
505
570
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construção, plantio e as baixas indenizações. Provocando vários movimentos de resistência
mobilizado pelo Sindicato dos Trabalhadores Rurais, apesar dos problemas a escolha do
local foi mantido pela CHESF via repressão e institucional do Estado.
Concluídas as obras da barragem, mais de 800 km² de terra ficou submerso, a
população petrolandense desolada foi relocada dando início a inundação do Reservatório de
Itaparica em 06 março de 1988. A transferência para a nova cidade foi feita ainda sem
suporte suficiente para atender a população no saneamento e nas condições de
abastecimento de água, principalmente na área rural batizadas de agrovilas que a CHESF
não haviam colocado em prática o projeto de irrigação ficando sem funcionamento de
produção até 1993, coisa que não deveria acontecer sendo uma cidade planejada através
intervenção do Estado e de diversas propaganda feitas pela CHESF de “cidade planejada”,
que ainda hoje rende luta judicial pelo Ministério Público de Pernambuco no direito de
reassentamento dos trabalhadores rurais afetados pela barragem.
Ação Civil Pública proposta pelo Ministério Público de Pernambuco –
MPPE em Petrolândia (Proc. 81643-3), resultante de direito de
reassentamento de trabalhadores rurais afetados pela construção da UHE
Itaparica. O Autor afirma ser inexistente por carência de legitimidade o
acordo firmado pelo Polo Sindical dos Trabalhadores Rurais do Submédio
São Francisco, em 06/12/1986, e requer a diferença das verbas de
manutenções temporárias pagas no período (VMT. Recurso de Apelação da
Chesf, alegando a ilegitimidade do MPPE para o feito teve provimento pelo
Tribunal de Justiça de Pernambuco - TJPE, contudo, o STJ, em grau de
recurso especial proposto pelo Autor reconheceu a legitimidade do MPPE e
determinou a remessa dos altos ao TJPE. Em 19/04/2010, julgando o mérito
da Apelação da Chesf, o TJPE, à unanimidade, negou-lhe provimento. A
Chesf interpôs conjuntamente Recurso Especial e Recurso Extraordinário e
correspondentes agravos de instrumento. Em 07/11/2012 foi proferida
decisão que negou seguimento ao Recurso Especial da Chesf. Contra essa
decisão, a Chesf apresentou Recurso de Agravo Regimental, ao qual foi dado
provimento tendo sido reconsiderada a decisão e se determinando o
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
processamento do recurso especial. O Agravo encontra-se pendente de
julgamento em 31/12/2015.506
Apesar da falta de estrutura prometida, parte dos moradores que não tinham casa ou
só tinham casa de barro, taipa e palha pode finalmente realizar o sonho de ter sua casa
graças à indenização. A Constituição Federal de 1988 assegurou a arrecadação de impostos
mensal para os municípios, a compensação financeira pelo uso das águas da barragem pela
CHESF colocando a cidades de Petrolândia entre uma das maiores arrecadadoras de royalty
beneficiando a economia da cidade.
Conclusão
Para a efetivação do trabalho, o presente artigo teve como como objetivo valorizar a
historicidade local. A história da Velha Petrolândia (PE) em específico sugere, nesse
contexto, uma reflexão no resgate da memória coletiva dos pais e avós que moraram na
velha cidade de Petrolândia no interior de Pernambuco, abordando suas experiências vividas
desses moradores mais antigos considerando suas lembranças, entre 1943 ano de sua
fundação e 1988, ano que a cidade velha foi submersa pelo lago de Itaparica.
Na opinião de Mehy toda memória coletiva faz parte da tradição oral, que acaba
produzindo um vínculo entre o entrevistado e a pesquisa. As entrevistas carregam uma
memória coletiva que está o tempo todo interagindo com as recordações individuais de
modo que suas experiências se constituem com a cidade. Para Bosi (1994, p.418) “Cada
grupo vive diferentemente o tempo da família, o tempo da escola, o tempo do escritório...
Em meios diferentes ele não corre com a mesma exatidão”.
Petrolândia teve sua sede totalmente inundada com a obra da Usina Hidrelétrica
Luiz Gonzaga, grandiosa obra realizada pela Companhia Hidrelétrica do São Francisco
(CHESF), forçando a transferência dos habitantes para a Nova Cidade com o discurso do
progresso. A população petrolandense foi relocada pela CHESF através do plano de
reassentamento e indenizados pelos prejuízos causados no quesito físico e econômico. Esses
são registros permanentes e de uma valiosa contribuição histórica no conhecimento dos
5DEMONSTRAÇÕES FINANCEIRAS 2015 – Companhia Hidroelétrica do São Francisco: CNPJ
nº33.541.368/0001-16 – Companhia Aberta. P.120
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fatos acontecidos naquele longínquo período e que merecem sempre serem analisados e
divulgados.
Por fim, Petrolândia, compõe continuamente a memória associada à cidade
submersa e as lembranças dos anônimos deve ser refletida como a identidade da Memória
Social, sendo fundamental para a riqueza cultural. “Uma lembrança é um diamante bruto
que precisa ser lapidado pelo espírito.” (BOSI, 1979, p31) Por tanto, a memória familiar
está ligada a memória de grupos sociais que compõe toda uma cidade, afinal, memória não é
sonho, é trabalho, que constrói as ideias e imagens do passado.
Fontes e bibliografias
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1500-1800. Conselho Editorial do Senado federal, 1998. p.15
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CNPJ nº33.541.368/0001-16 – Companhia Aberta. P.120
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IBGE, 1958. v. 18. P.292 ___________ Pernambuco. Rio de Janeiro: IBGE, 1958. v. 18.
P.214
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REIS, José Carlos. Teoria & história: tempo histórico, história do pensamento histórico
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574
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Paraíso destruído de Bartolomé de las Casas: a denúncia do genocídio nativo
americano na Era dos Descobrimentos
Gabrielle Legnaghi de Almeida507
Anelisa Mota Gregoleti508
Nathalia Moro509
Resumo:
O frade dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas (1484-1566) produziu inúmeras
narrativas envolvendo os mais diversos aspectos do processo de colonização espanhola no
Novo Mundo. Dentre seus trabalhos incluem-se detalhados documentos sobre o cotidiano e
trato com os nativos americanos, dos quais contribuíram para debates e questionamentos sobre
a legitimação da escravidão indígena ainda no século XVI. Assim, buscaremos analisar seu
discurso acerca do genocídio e barbárie nativa, principalmente a partir de sua obra “O paraíso
destruído: brevíssima relação da destruição das Índias”.
Palavras-chave: América Espanhola; genocídio; Bartolomé de Las Casas.
A chegada dos europeus nas terras tropicais impactou os dois lados do Atlântico. Os
castelhanos voltaram a sua atenção para o Novo Mundo, assim como os portugueses, buscando
expandir os seus limites e influências de maneira agressiva, característica herdada
principalmente da Espanha medieval. Consequentemente, a fixação nas novas terras visando a
expansão territorial e a exploração de bens comercializáveis, não implicou somente o
desenvolvimento da Coroa castelhana. Em uma relação diretamente proporcional, quanto mais
avanços econômicos, políticos e geográficos benéficos para os exploradores, maior era o
declínio, mortes e exploração da mão-de-obra dos nativos americanos.
As ações espanholas diante da expansão ultramarina poderiam implicar em desenvolvimento
comercial ou invasões, estabelecendo-se no território ou seguindo em frente. Essas escolhas
impactariam drasticamente o futuro dos continentes. O curso das ações tomadas se vinculou
com as condições locais, a facilidade ou dificuldade de ocupação e os tipos de recursos
507
508
509
Mestranda do programa de pós-graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Doutoranda do programa de pós-graduação em História pela Universidade Estadual de Maringá (UEM)
Mestre pelo de pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM)
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exploráveis, somados com a combinação de interesses individuais que conduziram o processo
da colonização. Dentre os envolvidos, a figura individualista do conquistador, como por
exemplo os famosos espanhóis Hernán Cortés (1485-1547) e Francisco Pizarro (1476-1541),
faziam parte de um grupo comandando de um caudillo, figura de liderança que mobilizava
homens e recursos (BETHEL, 2018, p. 142).
Além das dinâmicas e tenções organizacionais internas envolvendo os caudillos, seus
financiadores, e subordinados, dentre o grupo de europeus que aportaram nos trópicos, os
clérigos, letrados, médicos e aventureiros também estavam presentes nas embarcações
espanholas. Os escritos produzidos por esses homens foram essenciais para os estudos
envolvendo o processo da colonização europeia na América. Desde a descrição da viagem
ultramarina, a chegada das embarcações nas primeiras ilhas caribenhas, o clima, relevo,
hidrografia, fauna, flora, os nativos habitantes dos trópicos e mais uma infinidade de detalhes
sobre as novas terras, atestam o início de um dos mais importantes eventos históricos e,
infortunadamente, o declínio de grandes impérios e grupos nativos originários.
Inegavelmente os principais objetivos das empresas coloniais era o lucro pessoal e a riqueza da
nação. Contudo, a religião não se dissociava da política, e a Igreja Católica desempenhou um
importante papel, tanto quanto o da Coroa, na formação política colonial dos trópicos e nas
relações com os povos nativos. Assim, era necessário o aporte teológico associado com o
padrão sociopolítico espanhol para moldar as interações sociais com os “novos povos”, bem
como o plano da colonização e exploração de recursos de bens comercializáveis, sejam eles
naturais ou humanos (STOLKE, 2006). Um dos personagens de grande relevância histórica
nos estudos acerca da Era Moderna e as questões envolvendo os grupos originários é o frade
dominicano espanhol Bartolomé de Las Casas (1474-1566), também conhecido como bispo de
Chiapas e defensor indígena.
Nascido em Sevilla e filho de um mercador que esteve presente na segunda viagem de
Colombo para as Índias em 1493, Bartolomé tem seu primeiro contato com um nativo
americano quando seu pai, Pedro de Las Casas, recebe um indígena escravo de presente de um
comandante de uma expedição. De acordo com Huerga (1998), o espanhol é seduzido pela
riqueza das Índias e parte rumo aos trópicos na função de clérigo encarregado de doutrinar os
nativos. A partir dessa análise tem-se uma dualidade, ora é apresentado como catequizador ora
como explorador, resultando em diferentes juízos (NETO, 2003, p. 34-35). Mesmo com essa
divergência de análises, uma posição não anula a outra. De acordo com seus escritos,
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testemunha-se uma comoção para com o trato para com nativos americanos, e muitas vezes
denúncias para com as atrocidades da conquista espanhola, destacando que os conquistadores
são estão movidos pela fé. Em sua obra “O paraíso destruído: brevíssima relação da destruição
das Índias” (2008), o frade afirma que os espanhóis “[...] nossos espanhóis, por suas crueldades
e execráveis ações, despovoaram e desolaram mais de dez reinos, maiores que toda a Espanha,
nela compreendidos Portugal e Aragão [...]”. Nas estimativas do bispo, cerca de mil léguas de
reinos foram destruídas (LAS CASAS, 2008, p. 28).
Era inegável a destruição causada pelos conquistadores espanhóis, seja pela violência
características das empreitadas colonizadoras ou pela infortuna troca de patógenos com os
nativos, o declínio da população era alarmante, mas não a ponto de conter o avanço espanhol.
Esses aportaram na Ilha Espanhola, e logo iniciaram um longo processo de matanças e perdas
de gentes, começando pelas mulheres e crianças a fim de usar, servir e adquirir seu viveres. Las
Casas afirma que os colonizadores queriam ainda mais do que os indígenas lhes ofereciam de
bom grado, o abastecimento que normalmente duraria um mês para dez pessoas, um espanhol
consumia em menos de um dia (LAS CASAS, 2008, p. 30).
Esse tratamento agressivo
característico dos espanhóis foi de encontro com o que o bispo de Chiapas narra sobre a
bondade nativa. No primeiro volume de sua “Historia de las Índias” (1986), os nativos são
caracterizados “[...] en su inmensa generalidade, por su inocencia y por su bondade;
naturalmente mansos y pacíficos, humildes e pacientes, moderados en su apetitos y honestos en
su costumbres [...]”. Francos e de natureza serviçal, governam a sua vida material, doméstica e
social ao seu gosto e satisfação. “[...] son felices, en médio de uma hermosa y lozana naturaleza
que les proporciona colmadamente cuanto puedan necesitar [...]”, e mesmo que lhes faltem
uma religião, como a católica, suas faculdades e virtudes os fazem ser plenamente capazes de
aceitar a fé e os costumes cristãos, “[...] con tal que se las enseñen, como a criaturas racionales,
con benevolência persuasiva y con amor [...]” (SAINT-LU, 1986, p. XXXII). A dualidade de
discurso entre o reconhecimento dos nativos como sendo seres racionais, dignos da fé católica
e capazes de exercer sua fé, entra em conflito com a defesa do bispo ao criticar as explorações e
conduta violenta para com os nativos:
De los indios, no podia menos de tener Las Casas, por su larga permanencia
en las islas y países mesoamericanos, un conocimiento directo e incluso
íntimo, fundado en sus primeros contactos de colono y de clérigo, y después
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de religioso y misionero, y hasta de obispo. Abundan en la obra las
observaciones recogidas en el mismo terreno, máxime en la Española y en
Cuba entre 1502 y 1515. Estas, a la verdad, fueron determinantes para la
futura visión del historiador: la imagen que nos da de los indios, en su
generalidad, queda condicionada com toda evidencia por su recuerdo
enternecido de los pacíficos taínos, y más aún de aquellos inocentes lucayos
en que veía, a semejanza de los antiguos Seres (lib. I, cap. 40), la
representación más acabada de la primitiva perfección del género humano
(SAINT-LU, 1986, p. XXXIII).
Las Casas (2008) afirma que os nativos possuem um entendimento nítido e vivo, sendo
criaturas dóceis, de boa doutrina e capazes. Segundo ele são aptos para o recebimento da santa
Fé Católica e a serem instruídos nos bons e virtuosos costumes. De maneira geral, a doutrina
católica vinculava-se com os ideais de dominação espanhola, de tal maneira que mesmo
munidos de perspectivas violentas de conquista herdadas da Idade Média, os conquistadores
também admitiam que os nativos americanos possuíam uma bondade natural, e que seriam
plenamente felizes caso tivessem o conhecimento sobre o “verdadeiro Deus” (LAS CASAS,
2008, p. 27). Essa mistura de pensamentos em que, ora aceita os nativos, reconhece sua
natureza, e os condiciona à religião, e ora permite sua exploração, configura a empreitada
colonialista espanhola evidenciando a barbárie e a uma certa permissibilidade religiosa. Afinal,
a Igreja e seus representantes nos trópicos tinham a função de catequizar e converter,
juntamente com os interesses individuais e da Coroa de conquistar, explorar e colonizar.
Essas gentes, assim como suas terras, tão diferentes dos habitantes do Velho Mundo, não
apareciam nas enciclopédias ou nas sagradas escrituras. O reconhecimento do bispo de
Chiapas sobre os nativos baseou-se nas crenças católicas em que Deus, criador de tudo e todos,
também teria criado as “gentes infinitas” “[...] de todas as espécies, mui simples, sem finuras,
sem astúcia, sem malícia, mui obedientes e mui fieles a seus senhores naturais e aos espanhóis
que a servem [...]”. São humildes, pacientes, pacíficos, amantes da paz, sem ira, sem ódio, e
“[...] de forma alguma desejosos de vinganças [...]” (LAS CASAS, 2008, p. 30). A visão do
“bom selvagem” e do nativo americano pacífico não amorteceu tamanha violência exercida na
fixação castelhana nos trópicos, segundo o frade o único cuidado que tomavam com os
indígenas era de destinar os homens para as minas de extração de ouro e prata, que era um
trabalho considerado “intolerável”, e as mulheres destinadas aos trabalhos nos campos e
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lavrando, também tido como trabalho pesado até mesmo para o mais robusto homem. Além
da dificuldade e intensidade do trabalho as condições de vida eram lamentáveis. “[...] A eles e a
elas não lhes davam a comer senão ervas e cousas semelhantes, sem substância alguma: de tal
sorte que o leite que secava nos seios das mães e assim em pouco tempo morriam todas as
criancinhas [...]”. Como consequência, observando as taxas de natalidade, por “[...] estarem os
maridos separados, não coabiando com suas mulheres, a geração cessou entre eles [...]”, além
das mortes nas minas de trabalho, e fome, nas lavouras o cenário era o mesmo. Assim, foi se
consumindo uma grande parte dos nativos americanos (LAS CASAS, 2008, p. 37).
As Índias Nuevas descobertas em 1492 e povoada no ano seguinte era repleta de suas gentes.
“[...] A primeira terra em que entraram para habitá-la foi a grande e mui fértil Ilha Espanhola.
Essa ilha te seiscentas léguas grandes e infinitas ilhas que vimos povoadas e cheias de seus
habitantes naturais, o mais que o possa ser qualquer outro país do mundo [...]”. Las Casas
descreve sua numerosa população como um formigueiro de formigas, repleto de gente e
densamente povoada. Assim como o bispo descreveu os trabalhos compulsórios em “Paraiso
Destruído”, os adeptos da chamada “Lenda Negra” afirmam que além do sádico assassinato
indígena, a exploração levou a morte de inúmeros nativos. O choque da conquista e da cruel
exploração contribuíram para a perca de vontade de viver, queda das taxas de natalidade,
suicídio, fome, migração forçada, epidemias e uma verdadeira catástrofe demográfica (COOK,
1998, p. 2). Mesmo que as estimativas sobre o número exato de habitantes no Novo Mundo
não sejam exatas, há indícios e aproximações sobre a quantidade populacional da Ilhas de
Hispaniola logo no primeiro contato com os nativos americanos (tabela 01).
Tabela 1 – Estimativa populacional indígena de Hispaniola em 1492.
Fonte
Ano
Estimativa
Verlinden (1973)
1492
60.000
Amiama (1959)
1492
100.000
Rosenblat (1959, 1976)
1492
100.000
Lipschutz (1966)
1492
100.000-500.000
Moya Pons (1987)
1494
377.559
Cordova (1968)
1492
500.000
N.D. Cook (1993)
1492
500.000-750.000
579
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Moya Pons (1971)
1492
600.000
Zambardino (1978)
1492
1.000.000
Denevan (1992)
1492
1.000.000
Guerra (1988)
1492
1.100.000
Denevan (1976)
1492
1.950.000
Watts (1987)
1492
3.000.000-4.000.000
Borah & Cook (1971)
1492
7.975.000
Fonte: Noble David COOK, «Enfermedad y despoblación en el Caribe, 1492-1518», W. George
LOVELL y Noble David COOK (coords.), Juicios Secretos de Dios: epidemias y despoblación
indígena en Hispanoamérica colonial, Quito, Abya-Yala, 1999, p. 36.
Os resultados das investidas colonizadoras foram desastrosos para os nativos americanos. O
processo teve um forte caráter individual, e nenhuma regulamentação era feita visando a
proteção dos indígenas. Las Casas no terceiro volume de “Historia de las Índias” (1986) afirma
que haviam dez coisas que os espanhóis eram obrigados a cumprir, mas que não se cumpriam
e nem era possível. O primeiro ponto de destaque do frade era que a comida era necessária
para que pudesse se viver, e “[...] según los trabajos grandes en que les ponían, que fuese de
sustancia, como de carne o de hierbas, o raíces como les daban, y segun el numero suficiente
tantas vezes as dia como convenia para los [...]”. O segundo era a obrigação de curara-los de
suas enfermidades com um médico e medicinas adequadas. O terceiro era que tenham
conforto nas camas para quando estiverem doentes. O quarto era fornecer ensopado aos
doentes. O quinto e sexto era dar de vestir a todos, “[...] como infieles, no se vistiesen, porque
la honestidade Cristiana no sufre andar los hombres e mujeres desnudos [...]”, e calçá-los. O
sétimo e oitavo era dar-lhes cama e casas nas minas e estancias. O nono item era obrigação
regular os trabalhos evitando a exaustão. E o último ponto era dar o conhecimento de Deus e
ensinar-lhes a doutrina cristã e enviá-los para a vida de salvação (LAS CASAS, 1986, p. 342).
Mesmo com a listagem das obrigações dos senhores para com os indígenas, muito pouco ou
quase nada era executado. O chamado “estanciero” ou “calpsique”, espanhol subordinado nas
terras, tinha a missão de tê-los à mão garantindo que os nativos trabalhassem e fizessem toda e
qualquer atividade que o senhor quisesse. O bispo de Chiapas afirma que “[...] ainda que outro
tormento não existisse no inferno, este lhe pode ser muito bem comparado [...]”, diante da
brutalidade contra os povos originários. As atrocidades denunciadas por Las Casas feitas por
esses estancieros vão desde flagelos, bastonadas, unta-os em gordura fervente, tormentos,
580
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trabalhos contínuos, violência física e sexual, abusos, desonras e o apoderamento de todos seus
tesouros e produtos (LAS CASAS, 2008, p. 144). Assim, pode-se destacar a impossibilidade de
realização de uma colonização da América pautadas em ideais que hoje reconhece-se como
humanitários. A ideologia medieval da conquista, somadas com a doutrinação e fé católica
mesclaram-se em um dos maiores eventos históricos, resultando assim no extermínio e declínio
dos nativos americanos logo nos primeiros séculos de contato entre o Velho com o Novo
Mundo.
Fontes:
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<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104026X2006000100003&lng=en&nrm=iso>. access on: 08 setembro. 2021.
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Genocídio indígena na contemporaneidade
Henry Mähler-Nakashima510
Resumo
O presente texto tem como objetivo entender por que tão pouco se sabe sobre o
genocídio indígena na contemporaneidade. Partindo das atuações das instituições indigenistas
do Estado, o SPI e a FUNAI, de algumas leis, das investigações das CPI’s de 1963 e 1968,
ambas da Câmara dos Deputados, do Relatório Figueiredo (1967) e da Comissão Nacional da
Verdade (2014), é possível identificar um padrão de comportamento genuinamente genocida
por parte do Estado brasileiro para com os indígenas. Entretanto, sua histórica condição de
cristalizados em estereótipos, como selvagem, atrasado, bárbaro, etc, somada ao discurso
desenvolvimentista e à indiferença da sociedade nacional contribuem para que permaneçam
marginalizados, mesmo sofrendo genocídio durante toda história republicana brasileira.
Palavras-chave: genocídio, povos indígenas, decolonialidade
De tal forma se construiu a ideia de um “índio genérico”, muito devido à corrente
romântica da literatura e dos indianistas do século XIX, que uma parcela considerável da
sociedade nacional considera os povos originários – os indígenas – personagens cristalizados no
passado. Até por isso, pode causar estranheza afirmar que aconteceu a prática de genocídio
indígena na contemporaneidade. Sobre o passado mais distante, pode-se dizer que é um
consenso a ideia de que neste espaço geográfico chamado Brasil eles tenham sofrido as mais
variadas formas de extermínio. Afinal, dos dias como colônia portuguesa até a criação de um
império brasileiro, ainda que houvesse entendimento jurídico sobre seus direitos, toda e
qualquer política envolvendo-os era concretizada à sua revelia, o que levou inúmeros à morte.
Lamentavelmente, porém, essa prática não se restringiu ao passado distante. Nos
primeiros anos da república, em 1910, sob forte influência positivista, criou-se o primeiro órgão
estatal indigenista, o Serviço de Proteção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais,
Membro da Ocareté; Doutorando em História Social pela PUCSP, cuja pesquisa analisa sob uma perspectiva
decolonial as ações da FUNAI frente aos Waimiri-Atroari durante a ditadura militar. Contato:
henry@ocarete.org.br
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(SPILTN; tornando-se SPI a partir de 1914), que apesar de ter entre seus objetivos garantir a
“efectividade da posse dos territorios occupados”, “pôr em pratica os meios mais efficazes para
evitar que os civilizados invadam terras dos indios” e “fazer respeitar a organização interna das
diversas tribus, sua independencia, seus habitos e instituições […] consultado sempre a vontade
dos respectivos chefes”,511 como está registrado no decreto que o criou, não se pode afirmar
categoricamente ter cumprido esses termos. Se por um lado o lema de seu idealizador,
Marechal Rondon, “morrer se preciso for, matar jamais!”, vigorava como uma lei oficiosa, por
outro, as ações do Estado brasileiro mantiveram o padrão estabelecido na colônia e no império
brasileiro. Os interesses do poder vigente continuaram prevalecendo.
A despeito das leis indigenistas já existentes à época, foram desconsideradas a estrutura
cultural, social, histórica e sua etnicidade. Isso porque, apesar da eloquência presente no
decreto que criou o SPI, os povos indígenas eram considerados inferiores e cabia ao
“civilizado” a responsabilidade de tirá-los da condição de atraso e selvageria. Esse período
contribuiu enormemente para estabelecer uma ideia presente até os dias atuais, a de que
indígenas vivem em uma condição de transitoriedade em que, ao utilizar tecnologias distintas
das suas, ao terem hábitos urbanos, em suma, ao adotarem práticas consideradas “civilizadas”,
perderiam sua “condição de índio”. Nos dias da chamada primeira república, reforçava-se a
ideia de que a doutrina positivista seria o instrumento para alicerçar “as condições para a
integração natural do indígena à sociedade nacional”.512 E por terem uma perspectiva
evolucionista e linear da espécie humana, acreditavam que isso se daria pela vontade dos
próprios indígenas. Nesse processo, caberia ao SPI lhes garantir uma transição segura.
Ainda que durante algum tempo, especialmente pela presença de Rondon, o SPI tenha
seguido à risca a política de não violência contra os povos indígenas, é preciso expandir o
entendimento de que agressões não podem ser definidas apenas pelo lado de quem as pratica.
A política de jamais matar é por si só suficiente para garantir uma prática respeitosa aos povos
indígenas? Obviamente, a premissa de não matar é louvável e deve ser respeitada. Mas uma
percepção um pouco mais abrangente pode ser profícua para entender que a morte do corpo
físico não é a única possível; e talvez não seja a pior.
Decreto nº 8.072, de 20 de junho de 1910. Artigo 2º. O decreto pode ser acessado em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1910-1929/d8072.htm >. Acesso em: 05/07/2021.
RODRIGUES, 2019, p. 192.
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Se às sociedades ocidentais modernas513 a noção de pertencimento parte de uma
premissa nacionalista, que tem no Estado e seus critérios o referencial, aos povos indígenas a
identidade se pauta na coletividade em que um só o é devido à existência do grupo. Enquanto
aos Estados modernos o território está relacionado à ideia de soberania e segurança nacional,
aos povos indígenas, esse vínculo é ancestral. Primeiro, porque não veem na terra uma
materialidade a ser possuída ou conquistada, mas como parte de um conjunto em que tudo
surge do mesmo direito existencial, o que nos leva ao segundo ponto. Mais do que posições
geográficas e biomas, os elementos do que entendemos por meio ambiente podem ser
considerados entidades ou ainda fazerem parte de uma relação de parentesco. Portanto,
transferi-los ou privá-los de acesso a seu território ancestral pode ser entendido como a
primeira morte.
Considerando essa conexão, as ações do SPI para demarcar terras indígenas podem ser
consideradas o primeiro passo para essa morte simbólica representada na diminuição gradativa
dessas áreas. Ainda que tenha demarcado um número considerável de Terras Indígenas,514 um
levantamento realizado nos primeiros anos da década de 1980, apontou que a extensão total foi
de menos de 300 mil ha, o que na época, considerando as TI demarcadas pela FUNAI,
representava apenas 2,4% do total.515
A estratégia de ação do SPI face à fricção das frentes pioneiras com grupos
indígenas parece haver sido de estabelecer de imediato uma área reduzida
como terra reservada aos índios, assegurando logo tais direitos pela
demarcação, e, paralelamente, livrando para ocupação pelos brancos as
demais faixas de terra.516
Partindo desses dados, pode-se apontar a baixa preocupação do SPI em garantir a
relação ancestral entre a população indígena e a terra, e a intenção flagrante de forçar uma
restruturação no modo de vida dessas pessoas tornando-as dependentes do sistema econômico.
Por ocidental, não me refiro à invenção da divisão geográfica do globo, mas ao grupo que estruturou as bases
colonialistas (política, filosófica, científica, cultural, etc) que vigoram no mundo, composto por Alemanha,
França, Inglaterra e Estados Unidos. Moderno, por sua vez, refere-se ao recorte histórico que começou com a
invasão do continente chamado de América até culminar com a criação dos Estados, no século XIX.
Terra Indígena é entendida como uma definição jurídica em que essa área pertence à União, mas competindo a
ela a garantia de usufruto por parte dos indígenas. Distingue-se de “terra indígena ancestral” por esta não
possuir delimitações específicas e, sobretudo, por ser o entendimento do próprio povo que ela habita.
Cf. OLIVEIRA, 1983, p. 18.
OLIVEIRA, 1983, p. 18.
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Portanto, essas áreas são “muito menos uma reserva territorial do que uma reserva de mão-deobra”.517
À percepção não-indígena, essa mudança pode não se configurar genocídio por não
haver nitidamente a intenção de causar mal à integridade física ou à vida dessas pessoas.
Estando posto o entendimento colonialista de que os indígenas deveriam deixar sua condição
de atrasado, essa usurpação territorial foi entendida como parte do avanço do progresso e da
modernidade, especialmente por aqueles que se apropriaram dessas áreas. Mas há mais a ser
considerado.
No contexto da Segunda Guerra Mundial e nos anos que se seguiram, o entendimento
sobre violências contra minorias começou a ganhar espaço a partir de uma proposta do
linguista Raphael Lemkin de se discutir a definição de genocídio. Assim, sob grande influência
dos males causados a eslavos, ciganos, homossexuais, negros e, principalmente, judeus, a
Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio, realizada em Paris, em
1948, definiu os termos que passaram a vigorar em todos os países signatários. No Brasil, o
Decreto nº 30.822, de 6 de maio de 1952,518 e a Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956,519
descrevem da mesma forma que genocídio é o ato de intencionalmente “destruir, no todo ou
em parte, grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, assim como “matar membros do grupo;
causar lesão grave à integridade física ou mental de membros do grupo; submeter
intencionalmente o grupo a condições de existência capazes de ocasionar-lhe a destruição física
ou parcial. Adotar medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo; e efetuar a
transferência forçada de crianças do grupo para outro grupo”.
Paralelamente a essas discussões, o SPI seguia atuando entre sucessos e dificuldades
impostas pela falta de apoio financeiro e político. Darcy Ribeiro, que atuou pelo órgão,
apontou o cumprimento em “pacificar”520 os indígenas que faziam frente a incursão civilizatória
como um empecilho para a sequência dos trabalhos. Sendo grande defensor do SPI, fosse por
idealização ou por vínculo afetivo de quem vivenciou as ações “de dentro”, apontava forças
externas como principal barreira. Afirmou que “O rápido sucesso alcançado na pacificação das
Idem, p. 19.
O decreto pode ser acessado em: < https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1950-1959/decreto-30822-6maio-1952-339476-publicacaooriginal-1-pe.html >. Acesso em: 05/07/2021.
A lei pode ser acessada em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l2889.htm >. Acesso em: 05/07/2021.
SPI e FUNAI seguiam o procedimento de “atrair” os grupos sem contato para, então, “pacificar” o que
consideravam hostis. Em outras palavras, esse método consistia em garantir que os povos indígenas não
interferissem nos empreendimentos do estado ou da iniciativa privada.
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tribos hostis mais próximas das grandes cidades aliviou o Governo das pressões que sofrera no
sentido de criar e manter o SPI”. Para ele, o fato de o órgão ter se deparado com pessoas
poderosas, que exploravam a mão de obra indígena e se beneficiavam da usurpação de suas
terras, fez com que gradativamente ele entrasse em declínio. Destacou ainda que o Governo ter
utilizado o SPI como moeda de troca política potencializou seu sucateamento, culminando com
as administrações militares, que em suas palavras, levou-o à “condição degradante de agente de
sustentação dos espoliadores e assassinos de índios”,521 especialmente por ter o órgão se
afastado dos princípios filosóficos positivistas.522
Se por um lado Darcy Ribeiro pouco destacou os inúmeros crimes praticados por
servidores do SPI, por outro, era crescente o número de denúncias contra o órgão tornando-se
insustentável ignorá-las. Os casos de violência extrapolaram as páginas dos jornais e alcançaram
as salas do Congresso Nacional, onde foi instituída na Câmara dos Deputados Federais uma
Comissão Parlamentar de Inquérito para averiguar irregularidades no Serviço de Proteção aos
Índios. A partir de denúncias do próprio Diretor-Chefe do SPI, o Cel. Moacyr Ribeiro Coelho,
a Resolução nº 1523 da Câmara dos Deputados, oficializou a criação de uma CPI, em 19 de abril
de 1963, tendo em suas páginas menções a contaminações de indígenas por tuberculose e
malária, subnutrição e arrendamento de terras, como a dos Kadiwéu, o que sempre foi
proibido.
As investigações da CPI chegaram ao fim três meses depois, sendo constatados “delitos
contra a Fazenda Nacional e o Patrimônio Indígena; abandono de indígenas; precária ou quase
nula assistência médico-sanitária”, etc.524 Entretanto, o que marcou essa CPI foram os interesses
transparecidos nas disputas entre o deputado que a propôs, Edson Garcia, cujo sogro tinha
interesse de se apropriar de terras indígenas, e o próprio Cel. Moacyr, que acabou acusado de
“incúria administrativa; conivência ou omissão injustificável quanto ao Patrimônio Nacional e
Perjúrio”, como aponta a Resolução nº 65, de 1964,525 Mas apesar das acusações, o fato é que o
prejuízo financeiro alegado pelo uso indevido das terras indígenas recebeu mais atenção do que
a vida daquelas que as habitavam. Alguns anos depois, em meados de 1967, a sede do SPI, que
RIBEIRO, 2017, p. 134.
Cf. Idem.
A
resolução
pode
ser
acessada
em:
<
https://www2.camara.leg.br/legin/fed/rescad/19601969/resolucaodacamaradosdeputados-1-20-marco-1963-319946-norma-pl.html >. Acesso em 05/07/2021.
Cf. BARBOSA, 2016, p. 152.
Idem, p. 156.
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ficava no prédio do Ministério da Agricultura, foi tomada por um suspeito incêndio levando às
cinzas boa parte da documentação que incriminava seus servidores.
A essa altura, o governo golpista realizava restruturações institucionais visando
concretizar seus projetos desenvolvimentistas. Mas as denúncias contra o SPI e de casos de
massacres de indígenas não cessaram. Nesse contexto, não era somente a mídia nacional que
estampava em suas páginas a forma com que os povos indígenas eram tratados no Brasil,
também a mídia internacional disseminava uma imagem prejudicial aos propósitos econômicos
e à imagem que se criava do país. À frente do recém-criado Ministério do Interior, o General
Albuquerque Lima, mais preocupado em desvincular o corpo militar golpista dos servidores
acusados de estar envolvidos em crimes do que com o bem-estar dos indígenas, convocou o
Procurador do Departamento Nacional de Obras Contra as Secas, Jáder de Figueiredo Correia,
para ficar à frente da CI (Comissão de Inquérito) 154-67 e investigar as diversas denúncias.
Sua primeira descoberta foi a de que os documentos tinham sido consumidos pelo
incêndio, o que o levou a registrar no relatório final que tal fato dava a “impressão de
protecionismo, pois havia em todos uma característica comum, um traço dominante: a
existência de um vício processual que determinava sua anulação e arquivamento”.526 Se a causa
do incêndio teve como objetivo o acobertamento dos envolvidos, foi frustrado pelo que se
sucedeu. A nova investigação aprofundou muito os levantamentos da CPI de 1963 e a CI
chegou ao fim com um processo contendo 20 volumes, com 4942 folhas e mais 6 volumes
anexos com 550 folhas.
Se a CPI já tinha feito descobertas importantes envolvendo políticos, o que motivaria
uma queima de arquivo, as constatações feitas pela CI reforçaram a investigação anterior e
tornaram o incêndio na sede do SPI ainda mais suspeito. Assassinato de indígenas (individuais
e coletivos), prostituição, sevícias (maus-tratos e tortura), trabalho escravo, usurpação do
trabalho do indígena, apropriação e desvio de recursos oriundos do patrimônio indígena e
dilapidação do patrimônio indígena (arrendamento de terras, exploração de minérios, etc)
foram descritos com grande horror por Correia. A lista é por si só repugnante, mas causa mais
assombro quando são mencionadas vendas de “crianças indefesas para servir aos instintos de
indivíduos desumanos” e “Torturas contra crianças e adultos, em monstruosos e lentos
suplícios, a título de ministrar justiça”,527 além de “espancamentos, independentes de idade ou
CORREIA, 1968, p. 5.
Idem, p. 2.
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sexo, (que) participavam de rotina e só chamavam a atenção quando, aplicados de modo
exagerado, (ocasionando) a invalidez ou a morte”.528 A prática de tortura mais comum era o
“tronco”, que consistia na “trituração do tornozelo da vítima, colocado entre duas estacas
enterradas juntas em ângulo agudo. As extremidades, ligadas por roldanas, eram aproximadas
lenta e continuamente”.529
Nas palavras de Correia, diante das práticas de tortura, castigos de trabalho forçado e a
prisão em cárcere privado podiam representar uma humanização dos indígenas, já que de
modo geral não eram respeitados como pessoas, mas serviam como animais de carga para
beneficiar os servidores. No caso das mulheres, em alguns Postos Indígenas, eram mandadas
trabalhar um dia após o parto, sendo obrigadas a ficar longe de seus bebês, além de terem seus
corpos estuprados rotineiramente.530 A completa configuração da prática de genocídio nesse
contexto está manifestada nas “chacinas do Maranhão, onde fazendeiros liquidaram toda uma
nação, sem que o SPI opusesse qualquer reação”531 e na “extinção da tribo localizada em
Itabuna, na Bahia”,532 onde jamais se apurou as denúncias de inoculação do vírus da varíola para
exterminar a população e assim o governo local distribuir as terras.
Eram praticadas as formas diretas e indiretas de extermínio. Os Cinta-Larga, no Mato
Grosso, foram alvos de “dinamite atirada de avião, e a extricnina adicionada ao açúcar
enquanto os mateiros os caçam a tiros de ‘pi-ri-pi-pi’ (metralhadora) e racham vivos, a facão, do
pubis para a cabeça, o sobrevivente”533 (sic), ao passo que “A fome, a peste e os maus tratos,
estão abatendo povos valentes e fortes. […] A Comissão viu cenas de fome, de miséria, de
subnutrição, de peste, de parasitose externa e interna, quadro êsses de revoltar o indivíduo mais
insensível”.534 A lista segue com casos de fome, tortura, arrendamento de terras, precariedade da
saúde, etc, entre os Xavante (MT), os Kaingang (RS), os Kadiwéu (MS), e outros.
O aprofundamento dado pela CI às investigações iniciadas pela CPI de 1963
corroboraram o que a mídia nacional e internacional vinha divulgando possibilitando
“condições objetivas para a efetuação de 17 prisões administrativas e a anulação de 38
Idem, p. 3.
Idem.
Cf. CORREIA, 1968. p. 3-4.
CORREIA, 1968, p. 6.
Idem, p. 7.
Idem.
Idem.
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nomeações ali verificadas”,535 mas dezenas e dezenas de pessoas indiciadas permaneceram
impunes. O relatório final536 da CI passou a ser conhecido por um dos nomes de seu principal
responsável e teve seu paradeiro convenientemente desconhecido desde então até ser
identificado em 2012, por Marcelo Zelic, no Museu do Índio.
Em meio a tantas irregularidades, o SPI foi encerrado e, em seu lugar, estrategicamente
vinculada ao Ministério do Interior, encabeçada por Albuquerque Lima, foi criada a Fundação
Nacional do Índio (FUNAI), em dezembro de 1967, que herdou toda estrutura do antigo
Serviço, incluindo muitos dos servidores, e que se associou à política desenvolvimentista e
expansionista na região norte e no Centro-Oeste. As declarações de Albuquerque Lima, de
outros ministros do Interior e de presidentes da FUNAI eram a de que as irregularidades
foram cometidas por governos anteriores. Oportunamente, Costa e Silva convidou entidades
como a Cruz Vermelha Internacional para enviar missões e testemunharem em que condições
estavam os indígenas, provocando o arrefecimento dos protestos internacionais, anulando uma
investigação do governo brasileiro.537
No entanto, inúmeras denúncias continuavam surgindo na Câmara dos Deputados
levando à criação de mais uma CPI para estudar a legislação indigenista e investigar a situação
em que se encontravam esses povos. Em 1º de maio de 1968, foi criada aquela que ficou
conhecida como “CPI dos índios”, que viajou de Brasília para Tocantins, Pará e Maranhão,
onde puderam conhecer a realidade dos recém-contatados Xikrin, dos Apinayé, dos Xerente,
dos Parkatêjê, dos Gavião, dos Kanela e dos Guajajara, que enfrentavam fazendeiros,
caçadores, grileiros e também as obras do Estado brasileiro, já anunciando o Programa de
Integração Nacional, implementado em 1970. Os membros da CPI puderam testemunhar os
impactos que barragens e rodovias, como a Transamazônica, causaram na vida desses povos.
Em uma segunda viagem, ao Rio Grande do Sul, ouviram dos Kaingang novos relatos de
genocídio. De acordo com a liderança Pedro Silveira, em um primeiro momento, foram
proibidos de plantar na própria terra e, posteriormente, colocados em caminhões e
abandonados em locais distantes. Diante do que ele entendeu ser uma perseguição, afirmou
que seria melhor se “fizesse fogo e queimasse tudo do que fazer sofrer um mundo de
Diário Oficial de 10 de setembro de 1968. Disponível em: < http://www.docvirt.com/docreader.net/docindio/69
>. Acesso em: 06/07/2021.
O Relatório Figueiredo pode ser acessado em: < http://www.docvirt.com/docreader.net/docindio/1 >.
Cf. BARBOSA, 2016, p. 182.
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criancinha nas estradas”.538 Ao que tudo indica, tratou-se ser esse esbulho parte da reforma
agrária promovida por Leonel Brizola no início da década de 1960, que posteriormente se
limitou a dizer ser impossível devolver as terras, já que “o que está feito está feito”.539 Ao ser
decretado o AI-5, em dezembro de 1968, a CPI foi encerrada após somente duas viagens, e
vários de seus integrantes foram cassados. Apesar do ambiente hostil, os remanescentes
publicaram um relatório com depoimentos no diário do Congresso Nacional.
Mais recentemente, foi criada a Comissão Nacional da Verdade (CNV) para apurar
violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988 – o que incluiu o período da
ditadura (1964-1985) –, mas que inicialmente não considerou incluir os povos indígenas.
Somente após diversos debates e muita pressão por parte de indígenas e indigenistas que se
acatou sua inclusão. As investigações, que duraram de 2012 a 2014, acabaram por concluir que
as maiores vítimas das ações do Estado foram justamente aqueles quem inicialmente não foram
considerados.
Os casos registrados no Relatório Figueiredo vieram à tona, mas o que se viu foi um
agravamento no número de vítimas indígenas devido aos projetos do Estado brasileiro que se
intensificaram a partir de 1968. De acordo com o relatório final da CNV, “Como resultados
desas políticas de Estado, foi possível estimar ao menos 8.350 indígenas mortos [...] em
decorrência da ação direta de agentes governamentais ou da sua omissão”.540 Considerando que
a mesma Comissão confirmou ter havido 434 mortes e desaparecimentos de não-indígenas,
sendo “191 os mortos, 210 os desaparecidos e 33 os desaparecidos cujos corpos tiveram seu
paradeiro posteriormente localizado”,541 o número de vítimas indígenas é quase vinte vezes
maior! Essa cifra se torna mais alarmante se considerarmos que somente 10 etnias542 fizeram
parte do levantamento. Foram cerca de 1.180 Tapayuna, 118 Parakanã, 72 Araweté, mais de 14
Arara, 176 Panará, 2.650 Waimiri-Atroari, 3.500 Cinta-Larga, 192 Xetá, no mínimo 354
Yanomami e 85 Xavante de Marãiwatsédé.543
Relato de Pedro Silveira. In: PENNA, 1998.
Cf. BOND, 1989.
CNV, 2014b, p. 205.
CNV, 2014a, p. 963.
Os povos indígenas só passaram a figurar no censo recentemente, sendo que não há dados demográficos sobre
eles no período citado. Entretanto, pode-se assumir que o número de etnias não tenha sofrido grandes
alterações a ponto de minimizar o impacto desses dados. O censo de 2010 registrou 305 etnias falantes de 274
idiomas. Cf.
Cf. CNV, 2014b, p. 254.
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As promessas dos militares golpistas representadas nas palavras de Albuquerque Lima
não cessaram as denúncias e investigações, o que levou o Brasil ao Tribunal Russel II,
“realizado entre 1974-1976, e também à quarta sessão desse tribunal internacional, realizado
em 1980 em Roterdã. Nessa sessão foram julgados os casos Waimiri Atroari, Yanomami,
Nambikwara e Kaingang de Manguerinha, tendo o Brasil sido condenado”.544 Isso porque, com
o AI-5 e a criação do Plano de Integração Nacional (PIN), também as políticas indigenistas se
tornaram mais agressivas. As obras da Transamazônica, das BR-174, 210 e 374 levaram mortes,
doenças e tragédias a diversos povos, o próprio presidente da FUNAI, Bandeira Mello, pra
citar um exemplo, atuou favoravelmente à Vila Bela Agropastoril S/A, afirmando que os
Nambikwara seriam atraídos, pacificados e transferidos a uma reserva definitiva, tirando-os do
caminho da empresa.545
Entre os Waimiri-Atroari, surgiram perguntas dos sobreviventes como “O que é que
civilizado joga de avião e que queima o corpo da gente por dentro?”.546 Até entenderem que seu
território ancestral atraía a atenção de mineradoras (Paranapanema S/A) e que uma rodovia
(BR-174) o atravessaria, muitos sucumbiram à doença, aos ataques realizados por militares e
civis com armas de fogo e ataques aéreos, até que passaram a perguntar: “Por que kamña
matou kiña? Apiemieke?”.547
As fontes revelam muito mais. A própria FUNAI chancelou a criação da Guarda Rural
Indígena (GRIN), em 1969, que visava militarizar indígenas para se tornarem a presença do
Estado nas aldeias e garantir o discurso paranoico de segurança nacional. Da mesma forma,
criaram o Reformatório Krenak e a Fazenda Guarani, onde aprisionavam indígenas que se
rebelavam contra a invasão de suas terras por fazendeiros ou por simplesmente beberem
álcool. Tais locais eram verdadeiros campos de concentração, onde a prática comum era a
tortura.548
Em tão poucas linhas é possível notar que o genocídio dos povos indígenas é prática
corriqueira por parte do Estado brasileiro. Então, por que tão pouco se sabe sobre o assunto,
mesmo após as investigações da Comissão Nacional da Verdade? Essas mortes simbólicas e
CNV, 2014b, p. 208.
Cf. Idem, p. 209.
COMITÊ ESTADUAL DE DIREITO À VERDADE, À MEMÓRIA E À JUSTIÇA DO AMAZONAS, 2014,
p. 32.
Idem, p. 19. Kamña é como esse povo se refere aos “brancos”, aos “civilizados”, como oposição à sua
autodeterminação, kiña, que significa “nós”. Apiemieke significa “Por quê?”.
548
Cf. CNV, 2014b, p. 245.
544
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físicas representam sobretudo a invisibilidade em que se encontram esses grupos. Ainda que
historicamente eles estejam presentes nas narrativas, é sempre de uma forma coadjuvante ou
como empecilho. A forma colonialista com que eles ainda são vistos os cristaliza numa
condição em que ser o que se é faz deles selvagens e atrasados, sendo necessário tirá-los dessa
condição, trazê-los para a sociedade nacional, salvá-los de sua barbárie por meio da
cristianização. Pode soar como ações anteriores ao século XIX, mas é sua realidade atual. Não
à toa, iniciativas como os projetos de lei que tentam alterar a forma de demarcar terras
indígenas, tirando da FUNAI essa responsabilidade passando-a para o Congresso, onde
adversários históricos dos indígenas representados nas bancadas do boi, da bala e da Bíblia
atuam com grande força, passam despercebidas pela sociedade. Por um lado, poucos se
interessam e se importam, por outro, ainda vigora o argumento de que eles precisam “evoluir”,
“capitalizar suas terras” e passar a ser “humanos como nós”. Defensores desses pensamentos
não compreendem que há no mundo muito mais do que cartesianismos e binarismos
ocidentais. As relações que esses povos têm com o meio em que estão inseridos, suas
compreensões de mundo, seus modos de vidas, suas culturas, são sua estrutura existencial, sem
a qual, tornam-se vazios.
Não sendo alterada a forma com que esses povos são vistos, desprovidos de
humanidade, permanecerão invisibilizados, no limbo histórico deste país. A despeito das
recomendações registradas no relatório da CNV, como pedido público de desculpas do Estado
brasileiro aos povos indígenas, reconhecimento da prática de perseguição aos povos indígenas,
a instalação de uma Comissão Nacional Indígena da Verdade, entre outras, o fato é que longe
de
haver
alguma
reparação
histórica,
permanecem
o
descaso e
a
indiferença.
Consequentemente, a negação do genocídio indígena.
Referências
BARBOSA, Rodrigo Lins. O Estado e a questão indígena: Crimes e corrupção no SPI e na
FUNAI (1964-1969). Dissertação de Mestrado em História do Programa de Pós-Graduação
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“Sacó hueste para yr contra los moros”: o fazer da guerra e o panorama das
disputas territoriais na Crónica de Castilla (séc. XI a XIV)
Higor Soares de Melo549
RESUMO
A dissolução do Califado de Córdoba, nas primeiras décadas do século XI, e a desagregação
territorial observada posteriormente a este acontecimento, marca o início da expansão definitiva
das monarquias cristãs do norte da Península Ibérica rumo ao sul. Aproveitando a debilidade
militar dos pequenos reinos taifas, - assim como um breve período de prosperidade, propiciado
por condições climáticas, econômicas e demográficas favoráveis – os cristãos passaram a
pressionar mais fortemente seus vizinhos muçulmanos de Al-Andalus, recrudescendo os
combates que já vinham sendo travados, tanto numa dimensão material como simbólica, desde
o final do século VIII. Testemunhos dos embates territoriais, bem como das operações
militares e das proezas das cavalarias castelhano-leonesas ficaram fartamente registradas em
diversas crônicas régias e gerais, escritas entre os séculos XI e XV. Estas fontes, escritas sob
encomenda da nobreza, para leitura da própria nobreza, tinham por objetivo principal
comunicar às gerações posteriores de aristocratas as condutas e virtudes desejadas nestas elites.
Num período em que a guerra era um aspecto fundamental da vida em sociedade, torna-se
natural que estes tratados pedagógicos se dediquem longamente a descrever as qualidades que
um grande líder militar deveria desenvolver, e saber manobrar no campo de batalha era uma
das mais importantes. Esta discussão foi em boa medida escamoteada por certa historiografia
militar tradicional, herdeira das tradições do período napoleônico – quando as grandes batalhas
campais com exércitos de dezenas de milhares de soldados perfilados eram a norma – que
tendeu a enxergar a guerra medieval uma atividade irracional, regida por operações
desorganizadas, desprovidas de estratégia, onde apenas os números definiriam os vencedores e
os perdedores. Pesquisas mais recentes mostram como essa historiografia ignorou as minúcias e
as particularidades do guerrear na Idade Média, como a importância da guerra de assédio e dos
cercos, por procurar no passado as táticas que se faziam eficazes no presente em que escreviam,
diante desta incompatibilidade, rapidamente taxaram a realidade passada como inferior.
Licenciado em História pela Universidade Federal de Alagoas. Mestrando pelo Programa de Pós-graduação em
História da mesma Universidade.
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Seguindo as discussões mais recentes da historiografia militar medieval ibérica, como elencadas
por GARCÍA FITZ & MONTEIRO (2018), propomos estabelecer um panorama do fazer da
guerra nos combates descritos na Crónica de Castilla, fonte dos primeiros anos do século XIV
que narra os acontecimentos em Castela e Leão desde meados do século XI.
Palavras-chave: Nova História Militar, “Reconquista”, História Medieval.
Introdução
As reflexões sobre a arte da guerra foram constantes entre historiadores. Atentos aos
movimentos de longa duração, muitos buscaram comparar as particularidades deste ofício de
acordo com as divisões tradicionais da cronologia ocidental, nos períodos medieval, antigo e
moderno. A enorme maioria destes historiadores chegou a conclusão de que a arte da guerra
era, na Idade Média, medíocre, rudimentar, simplória ou até não existente de um ponto de
vista heurístico e de organização. As operações do período seriam, segundo esses historiadores,
desengonçadas, e os guerreiros, lutadores individualistas, ignorantes dos conceitos de disciplina e
de trabalho conjunto. Muitos destes historiadores eram, eles próprios, soldados ou oficiais dos
exércitos das potências imperialistas europeias550, em serviço ou reformados. Partindo desta
posição, seu foco foi desenvolver um estudo pragmático, utilitarista no sentido de ensinar o que
se descobria aos novos oficiais em formação e de aplicar imediatamente esses conhecimentos
adquiridos nos campos de batalha aos quais já estavam acostumados. Desta perspectiva,
concluíram que praticamente nada poderia ser aprendido ou aproveitado da Idade Média,
subscrevendo nos vícios e referendando os mesmos preconceitos de positivistas e historicistas,
as mesmas tradições historiográficas que categorizaram o período como uma Era das Trevas,
um interstício estéril entre a grandiosidade da Antiguidade e o esplendor da Renascença
(CONTAMINE, 1986, p. 208 - 209).
Contudo, como Philippe Contamine aponta na obra que foi um marco na superação
desses preconceitos, diversos trabalhos mais recentes demonstraram que a realidade era muito
mais complexa do que estes historiadores supunham, sendo muito factível apreender a partir da
documentação disponível os princípios gerais das táticas medievais; examinar campanhas e
discernir em suas movimentações as ideias diretivas que as guiavam, ou seja, as estratégias
Os primeiros expoentes, já no século XIX, eram herdeiros diretos das doutrinas táticas-estratégicas do período
napoleônico, quando as grandes batalhas campais com exércitos de dezenas de milhares de soldados perfilados,
disparando salvas nos adversários do outro lado, eram a norma. Já no início do século XX, com o advento da Grande
Guerra, o parâmetro do que era adequado implementar no campo de batalha se moldou à realidade das trincheiras.
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empregadas; listar uma série de procedimentos e respostas realizadas de acordo com as
condições específicas de tal ou qual batalha; e reconhecer que os guerreiros medievais tinham a
clareza de que dominar um arcabouço variado de conhecimentos práticos e teóricos sobre a
guerra traziam vantagens diretas às suas operações.
Este breve artigo traz uma singela contribuição nas discussões sobre o fazer da guerra na
Idade Média, para o caso específico da península ibérica, com ênfase ao reino de Castela e
Leão entre os séculos XI e XIV. Há muitas formas de abordar o tema na documentação,
existindo inclusive uma série de tratados do período que contemplam as minúcias do ofício
guerreiro, sendo a Segunda Partida de Afonso X um dos textos mais relevantes nesta seara.
Contudo, nossa exploração seguirá por uma via diferente, a das crônicas, em específico a
Crónica de Castilla, dos primeiros anos do século XIV. Sendo um gênero textual de caráter
eminentemente pedagógico dirigido às aristocracias guerreiras, as crônicas não só ensinavam
aos jovens cavaleiros quais os valores e atitudes exigidas deles, como também descreviam, com
alguns detalhes, a atividade principal que desenvolveriam durante a vida. Com grande apoio na
sistematização recente organizada por GARCÍA FITZ & MONTEIRO (2018), discutiremos
como se dava a organização das operações militares na Castela medieval e como essas
atividades são representadas na fonte.
O ofício da guerra na península tinha algumas características particulares. A mais
importante é que era condicionado pelo território fronteiriço com o Islã. Embora houvessem
confrontos constantes entre as potências cristãs, a guerra contra Al-Andalus era o foco. Neste
sentido, o guerrear na península só é comparável ao das Cruzadas, na Terra Santa. Quanto ao
terreno, infraestruturas – como estradas romanas – canalizavam as operações, que também
eram direcionadas segundo a disposição de acidentes geográficos como rios – Douro, Tejo,
Guadiana e Guadalquivir – e cadeias montanhosas, bem como da rede de cidades. A guerra era
mais frequente na primavera e no verão, quando o frio não era tão intenso, ainda que este fator
perca impacto com o passar das décadas, quanto mais para o sul a fronteira era empurrada. No
mais, as operações militares na península tinham muito em comum com o que se observa no
resto do Ocidente Medieval, podendo ser divididas em três formas principais de guerrear: a
guerra de assédio, ou as incursões; a guerra de sítio, ou os cercos; e as batalhas campais
(GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66).
Guerra de assédio
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Como em outras partes de Europa, os líderes militares hispânicos não empregaram
estratégias de confrontamento direto de forma sistemática. Eles preferiam táticas de confronto
indireto, que eram mais eficientes para os meios limitados dos quais dispunham. Estas
consistiam em operações de assédio temporárias que visavam enfraquecer continuamente as
bases econômicas, militares, políticas e psicológicas de seus adversários. Tratados castelhanoleoneses referem-se a tal modalidade de combate como guerra ligera, guerra de passada ou
guerra guerriada. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66).
Baseavam-se em incursões de devastação de tamanho, alcance, duração e intensidade
variáveis. As operações mais comuns, conhecidas como algarradas, correduras ou cavalgadas
(na Crónica de Castilla, aparecem muito mais os dois últimos termos), eram de curto alcance e
duração, de um ou dois dias. Pequenos contingentes de cavaleiros em armamento leve
adentravam o território inimigo, preferencialmente à noite, aproveitando o fator surpresa, e
retornando a uma fortificação próxima antes que os defensores pudessem se mobilizar. O
propósito dessas operações era atacar alvos específicos, para roubar comida ou gado, matar ou
capturar a população, e destruir infraestrutura agrícola e plantações. O butim tinha papel
central nas operações, fundamentando tanto seu planejamento quanto seus objetivos (GARCÍA
FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66).
Desde os estágios mais remotos da Reconquista, grandes incursões foram realizadas,
guiadas pelo monarca ou por algum grande aristocrata, com forças maiores e penetrando mais
fundo no território inimigo. Sabe-se muito pouco sobre sua organização antes do século XI.
Cavaleiros, infantes e arqueiros se concentravam num local fixo, de onde partiam com
itinerários planejados com a ajuda de guias moçárabes ou muçulmanos. A expedição era
precedida por cerimônias onde o exército e seus estandartes eram benzidos. Na campanha, o
comando ficava na mão dos adalides, que eram líderes militares com conhecimento e
experiência (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 66 - 67).
Estas são as quais a Crónica de Castilla dá mais importância, uma vez que os
protagonistas da narrativa são sempre os reis de Castela – ou cavaleiros de muito renome,
como El Cid. As expedições de larga escala, chamadas na fonte de fonsado, são usualmente
precedidas de jejuns e peregrinações rumo a Santiago de Compostela por parte do monarca
que a lidera. Em geral, poucos detalhes são dados na Crónica sobre a organização dessas
expedições, ficando o enfoque em celebrar os resultados materiais de cada incursão, relatando
enormes ganhos em gado aprisionado, ouro e cativos. Comparada com outras formas do
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guerrear medieval, as cavalgadas parecem ser pouco esmiuçadas na Crónica. Isso, contudo,
parece não se dar por sua escassez. Muito pelo contrário, o motivo parece ser o caráter
corriqueiro e frequente de tais atividades, que estam presentes na atuação de todos os monarcas
dos quais a fonte se ocupa. Seria impossível relatar todas as instâncias nas quais os monarcas
organizaram incursões de assédio, sendo assim, a Crónica se dedica apenas àquelas que
considera especiais na grandeza dos saques, na extensão dos danos causados, ou na função
edificante da narrativa que está construindo, servindo por vezes como etapa de
desenvolvimento de determinados personagens.
Os cristãos desenvolveram, também, mecanismos de resposta às incursões muçulmanas,
especialmente devastadoras no período Omíada. Quando uma incursão era detectada, os
defensores observavam a movimentação de uma distância segura. Se houvesse tempo, a
população fugia para fortificações. Tropas defensivas locais, chamadas apellido, eram efetivas
contra ataques menores. No caso de incursões grandes, preparavam emboscadas (çeladas) em
pequenos grupos, enquanto uma força maior era organizada para interceptar o inimigo durante
sua retirada, uma vez que um exército carregando saques se movia mais lentamente. Era
conveniente bloqueá-los nas passagens de colinas. A perseguição podia, contudo, terminar em
combate frontal (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 67). A Crónica, a princípio, tende a
relatar pouco tais mobilizações de caráter defensivo, muito pelo momento histórico de
enfraquecimento bélico de Al-Andalus nos séculos iniciais dos quais a fonte se ocupa.
Realidade que muda sensivelmente, mas por curtos períodos, com a chegada dos Almorávidas,
em 1086, e dos Almóadas, em 1147. Novamente, o protagonista de tais operações, quando não
o próprio monarca, é El Cid, retratado como eficiente defensor das fronteiras do reino,
responsável por interromper ou impedir incusões muçulmanas em suas terras e nas terras de
seus correligionários.
Durante os séculos XI e XII, muitas operações de assédio foram realizadas por milícias
municipais fronteiriças, de forma autônoma. Farta documentação legislativa (fueros) sobre a
distribuição do butim mostra que essas operações eram uma verdadeira forma de subsistência
para muitos cristãos na fronteira. A partir de meados do século XII, a autonomia operacional
dessas milícias urbanas foi reduzida, a medida que passavam a integrar cada vez mais as
expedições de grande escala organizadas pelos monarcas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO,
2018, p. 67 - 68).
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Crônicas e tratados militares permitem rastrear o desenvolvimento dessas incursões de
longo alcance. Eram operações temporárias, de no máximo 45 dias. Tropas reais, exércitos de
nobres, milícias urbanas e Ordens Militares integravam as forças que poderiam somar alguns
milhares de homens. Entre os contingentes, podiam haver pastores, responsáveis por
transportar o gado apresado, guardiães de espólios e cativos (guardadores), equipes de cuidados
médicos (físicos, maestros de las llagas) e clérigos. Os líderes militares continuavam a ser os
adalides, que acompanhavam o rei ou o comandante do exército. Suas operações eram
planejadas a partir de informações obtidas por espionagem ou interrogatório de prisioneiros.
Eles guiavam o exército buscando por rotas e passagens que oferecessem espaço suficiente para
os acampamentos. Sistemas de segurança também ficavam sob sua discrição (GARCÍA FITZ &
MONTEIRO, 2018, p. 68).
A prudência dos líderes, observação cuidadosa do terreno, vigilância à movimentação
inimiga e a disciplina das tropas eram considerados fatores essenciais aos bons resultados. O
exército em marcha poderia ser dividido, preferencialmente, em quatro colunas, a vanguarda, a
retaguarda e duas alas de cavaleiros prontos para o combate. O exército era precedido e
flanqueado por batedores (descobridores). A coluna nunca deveria se quebrar, especialmente
na travessia de locais acidentados, que eram assegurados previamente por besteiros, infantes e
cavaleiros. Durante a marcha, pequenos grupos faziam saídas regulares para garantir as
provisões da hoste e multiplicar os efeitos da operação. Se a coluna fosse atacada,
recomendava-se que as provisões fossem protegidas no centro, e que fossem evitadas
perseguições para que não caíssem na armadilha tradicional da cavalaria leve muçulmana
conhecida por tournafuy. Em circunstâncias ideais, um exército em retirada poderia dar a volta
e entrar no território inimigo de novo, movimento considerado a tática mais devastadora
(GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 68).
A guerra de assédio, além de seu propósito econômico imediato, poderia ter objetivos
estratégicos de longo prazo. Campanhas importantes foram planejadas para ganhar prestígio e
enfraquecer o domínio muçulmano na região. A partir do século XI, incursões foram usadas
como meio de extorquir e punir os reinos taifas, bem como uma arma política. Diversas são as
menções na Crónica a tréguas compradas pelos reinos taifas, pagas com prata e ouro, para que
as destruições cessassem. Incursões sistemáticas eram lançadas com o objetivo de desestabilizar
politicamente Al-Andalus, abalando a credibilidade dos grupos no poder de serem realmente
capazes de proteger seus súditos, e aprofundando possíveis crises políticas em curso entre os
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domínios mouros. Outro uso estratégico dessas incursões era como distração para outras
ofensivas de propósito mais imediatamente expansionista (GARCÍA FITZ & MONTEIRO,
2018, p. 68 - 69).
Nas áreas fronteiriças, a função estratégica das destruições e do assédio estava
diretamente ligada à expansão territorial. O dano acumulado de sucessivas incursões
neutralizava o potencial ofensivo dos muçulmanos e exauria sua capacidade defensiva,
pavimentando o caminho para a anexação definitiva em médio ou longo prazo. A conquista de
uma praça, por exemplo, dificilmente poderia acontecer sem uma fase anterior de
enfraquecimento, por meio da exaustão de recursos econômicos e da conquista de pontos
fortes circundantes (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69).
Guerra de sítio
A expansão territorial efetiva exigia o controle de fortalezas. O próprio termo Castela
alude à onipresença da guerra nas fronteiras, e da construção de castelos para se proteger de
ameaças externas. Dada a superioridade das táticas de defesa sobre as de ataque, qualquer
grupo numa posição fortificada com muralhas e em terreno mais elevado poderia se defender
de atacantes em maior número. Desta forma, os líderes e habitantes de Castela e Leão, tendo
de lidar constantemente contra os muçulmanos, outras potestades cristãs e conflitos internos,
implementaram a política de construir sistematicamente e manter fortificações. Num nível
estratégico, a função de enclaves fortificados não era a de constituir uma barreira, mas a de
atrasar ao avanço do inimigo. Só o domínio de cidades assegurava controle estável sobre o
território. Ao mesmo tempo, fortalezas eram as bases a partir das quais eram lançadas as
operações de assédio e conquista. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69 - 79)
Essas construções eram tremendamente diversas no que diz respeito a seu
posicionamento, seu desenho, aos materiais de sua construção, tamanho e funcionalidade. As
construções mais comuns incluem as muralhas urbanas, que serviam para defender e marcar a
jurisdição das cidades. As mais antigas eram legado de assentamentos romanos. Contudo,
partindo do século XI, novas cidades começaram a ser construídas em regiões esparsamente
povoadas, equipadas com muralhas. Mesmo com a progressiva expansão de Castela e Leão
rumo ao sul, procurava-se manter intactas as muralhas das cidades conquistadas. Além disso,
muitos pequenos vilarejos tinham fortificações, sendo o meio rural frequentemente associado à
presença de uma fortaleza. Membros da nobreza, Ordens militares e a Igreja construíam
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castelos de onde irradiava seu poder senhorial, exercendo domínio político e econômico sobre
os territórios sob sua jurisdição. Torres de vigia ou atalayas eram erigidas por todo o território,
mas principalmente perto das fronteiras. A importância dessas fortificações era, portanto, não
apenas militar, mas também se dava pelas funções administrativas que possuíam, constituindo
pontos de desenvolvimento agrícola, mercados e locais de coleta de impostos, os verdadeiros
centros de poder da península medieval. . (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 79 - 80)
Havia várias formas de se tomar uma fortaleza. O furto consistia num ataque surpresa
rápido, realizado por um pequeno grupo de guerreiros experientes que se aproveitava da
escuridão da noite, de condições climáticas favoráveis ou do descuido da guarnição para escalar
as muralhas e capturar o lugar. Outro método era o do assalto em massa (por fuerça), que
poderia funcionar em fortificações pequenas, com guarnições reduzidas, mas que era arriscado
demais quando atacando uma cidade (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 69).
Quando esses meios se mostravam impraticáveis, os atacantes poderiam levantar um
bloqueio ou cerco. Por vezes aconteciam lutas fora das muralhas, mas o objetivo dessa
operação era forçar a rendição dos defensores. Para tanto, era necessário isolar fisicamente o
lugar, para que a fome, a sede e as doenças inviabilizassem a resistência. O bloqueio efetivo de
uma cidade exigia um esforço militar, logístico e técnico considerável. A necessidade de
concentrar tantos recursos humanos explica porque muitos cercos eram operações conjuntas de
diferentes potestades. Garantir os suprimentos das tropas que cercavam era essencial, sendo a
inabilidade em garantir a logística necessária o motivo de diversos cercos prolongados acabarem
em retirada dos atacantes. Em lugares com grandes guarnições, sortidas executadas pelos
defensores também constituíam um perigo constante. Durante um cerco, era indispensável
isolar o lugar militarmente, impedindo a chegada de reforços. Via de regra, quando os
defensores percebiam que não havia perspectiva da chegada de ajuda externa, iniciavam-se as
negociações de rendição, segundo termos razoáveis (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p.
69 - 70).
A Crónica de Castilla é farta em descrições de cercos. Alguns são deflagrados com
justificativas vindicantes, como da cidade de Viseu, empreendido pelo rei Fernando I como
punição ao abate de seu sogro, muitos anos antes, por uma seta disparada das muralhas da
cidade. Observamos descrições de métodos empregados para proteger os atacantes de flechas,
prendendo tábuas nos escudos para diminuir o poder de penetração dos projéteis, e da
construção de castelos de madeira ao redor da cidade cercada, técnica que potencializava a
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eficiência do sítio por fortificar as posições de bloqueio dos atacantes, dificultando escaramuças
de tropas do interior da cidade ao mesmo tempo que impedia a chegada veloz de um exército
de reforço aos defensores. A crônica também cita constantemente o emprego de engeños,
torres sobre rodas e catapultas e fondas.
No que tange a essas máquinas de cerco, sabe-se mais do cenário a partir do século XI,
período inicial da narrativa da crônica, sem grandes diferenças entre o que se observa na
península e no resto da Europa. Os atacantes se aproximavam das muralhas usando manteletes
(sarzos) e cabanas móveis de madeira (gatas, viñas). Os equipamentos mais usados em assaltos
eram cordas e escadas, comuns nos furtos. Torres de madeira, eram estruturas de vários
andares sobre rodas, usadas para atingir, com segurança, os topos das muralhas. Para destruir
defesas, haviam várias técnicas, ferramentas e máquinas. O uso de aríetes (boçon, burzón) é
pouco documentado. A demolição de muralhas e torres se dava pelo subterrâneo, cavando
túneis para remover as camadas inferiores de pedra, ou minando os suportes da muralha.
Quanto à artilharia, assim como no resto da Europa, há problemas de interpretação.
Documentação variada menciona balistas – sem evidenciar se se tratam de catapultas ou de
lançadoras de projéteis – e almajaneques, que eram, seguramente, trabucos de contrapeso.
Entretanto a maioria dos termos - machinas, fundibularios, fondas ou algarradas - não deixa
clara qual a fonte de propulsão empregada para o lançamento dos projéteis. (GARCÍA FITZ &
MONTEIRO, 2018, p. 70)
Apesar de sua reputação, os engenhos não costumavam ser decisivos no desfecho de
um cerco. Sua qualidade técnica é muito limitada e eram vulneráveis a ataques dos defensores.
Autores de tratados militares do período eram céticos quanto a sua eficiência no cerco a
cidades, preferindo contar com a fome ou a surpresa. As armas de cerco, porém, aparecem em
quase todos os relatos, o que provavelmente se explica por seus efeitos psicológicos, capazes de
aterrorizar os defensores, contribuindo para uma rendição mais rápida (GARCÍA FITZ &
MONTEIRO, 2018, p. 71).
Batalhas campais
Desde as primeiras décadas de confrontos após a conquista islâmica, os exércitos das
Astúrias e de Leão procuraram a evitar batalhas abertas contra os muçulmanos, preferindo
emboscadas e lutas de pequena escala. A partir do século XI, as batalhas tiveram papel
secundário nas estratégias de expansão cristãs, visto que as incursões e a captura de fortalezas
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eram mais eficientes para alcançar um domínio territorial duradouro. Fernando III, rei de
Castela e Leão mais bem sucedido nas guerras contra os muçulmanos, conquistando uma área
de mais de 100.000 km², jamais lutou uma batalha campal (GARCÍA FITZ & MONTEIRO,
2018, p. 71).
É sabido que as batalhas eram muito arriscadas em termos militares e políticos. Vários
governantes morreram em combate, gerando consequências desastrosas. Desta forma, as
batalhas costumavam se desenrolar como resultado circunstancial de outras ações. Alguns
confrontos diretos foram travados para parar o avanço de um exército invasor. Outros
ocorreram durante a perseguição a invasores em retirada. No contexto dos cercos, batalhas
ocorriam quando reforços chegavam ou quando os defensores saíam para enfrentar os
atacantes. (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 71 - 72)
Apesar dos riscos, reis e líderes militares entendiam os benefícios de uma vitória em
campo aberto. Autores castelhanos reproduziam a máxima antiga de evitar uma batalha e só
lutá-la caso seu resultado pudesse decidir uma guerra em definitivo. A ética cavalheiresca, com
todas suas representações a respeito do combate frontal, também nutriu essa consciência. Não
se deve desprezar, também, o fascínio pelos aspectos litúrgicos em volta das batalhas campais.
Por razões práticas e psicológicas, a batalha constituía uma alternativa militar válida para
expulsar uma ameaça externa, para eliminar um rival político, como afirmação de legitimidade
ou para rapidamente resolver um conflito (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72). Este
parece ser o uso preferido das descrições de batalhas campais na Crónica de Castilla. No mais
das vezes, vitórias em batalhas campais são apontadas como o corolário no processo de
legitimação de um novo monarca, por exemplo. Tanto no caso de Fernando I, quanto de seu
filho, Sancho II, a legitimidade de seu senhorio só é reconhecida por todos os súditos diante de
vitórias decisivas em campo aberto contra seus irmãos, também monarcas dos reinos cristãos
rivais vizinhos. Pouco se fala sobre os detalhes táticos e estratégicos, com alguma sorte
nomeando tal ou qual cavaleiro ficou responsável por coordenar determinada seção do
exército, ficando a narrativa mais focada, novamente, nas consequências políticas que a vitória
ou a derrota traziam.
Na hora do combate, a escolha do terreno era importante. No campo aberto, as
posições visadas eram as que garantiam altitude ou obstáculos naturais, também levando em
conta a posição do sol e a direção do vento. Batalhas próximas a muralhas eram comuns,
especialmente quando na defensiva. Quando perfilados, os combatentes se preparavam
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espiritualmente e eram encorajados por discursos dos líderes. Os exércitos eram dispostos
numa ordem específica, algo que era considerado crucial. A organização ideal das hostes era
formada pela vanguarda (delantera), centro (medianera), flancos (costaneras, alas, çitaras,
açitaras), e retaguarda (çaga), posição considerada natural para o rei, devido à segurança que
dispunha e à visão elevada que garantia do campo de batalha (GARCÍA FITZ & MONTEIRO,
2018, p. 72).
As fontes nem sempre permitem conhecer as táticas usadas em cada batalha. Os
exércitos muçulmanos confiavam no assédio à distância através de arqueiros a cavalo, fugas
simuladas (tournafuy) e manobras envolvendo os flancos, ainda que não evitassem combate de
proximidade com cavalaria bem equipada e formações compactas de infantaria. Seu uso
experiente dessas estratégias explica muitas de suas maiores vitórias. Entre os cristãos, há
evidência do uso de cavalaria leve à moda moura bem antes do século XI. Após essa data,
cavalaria com armadura cada vez mais completa, se lançando contra o inimigo em formações
cerradas, preferencialmente portando lança foi prevalente. Não há registros de batalhas em que
cavaleiros tenham desmontado para lutar a pé (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 72).
A unidade tática mais importante era o esquadrão (acies, az), um retângulo com várias
linhas de guerreiros formando uma fronte estendida. Às vezes, grupos menores são
mencionados. Os acies se comunicavam por mensageiros, sinais sonoros (gritos, trompas e
tambores) e sinais visuais (bandeiras e cruzes). Soldados a pé (peones) subestimados pelos
autores medievais, performavam funções táticas essenciais, como defender os acampamentos,
enfraquecer as linhas inimigas com o lançamento de projéteis (fundeiros e besteiros), e proteger
a cavalaria, antes de sua hora de entrar em ação ou entre uma carga e outra. Também
poderiam compor formações mistas com os cavaleiros (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018,
p. 72 - 73).
Também haviam outras disposições táticas. A muela era uma formação em círculo,
usada caso as tropas estivessem cercadas. Para defender o comboio de carga ou o rei, a
formação quadrada de muro podia ser empregada. A çerca ou corral dos Almóadas era similar
a esta. Consistia numa posição fortificada na retaguarda, defendida por soldados a pé, com
lanças fincadas no chão, e outras formações de arqueiros, besteiros e fundeiros. Por ser uma
posição estática, servia para estimular o espírito de combate em todo o exército. Algumas
formações de cavalaria também são conhecidas. A saber, o tropel era uma formação compacta
e estreita, pensada para quebrar a formação inimiga graças a uma vanguarda de cavaleiros
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pesados, bem armados. Já a cunha (cunno) era uma disposição triangular com grande
capacidade de penetração nas linhas inimigas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 73).
O desfecho de uma batalha campal não era sempre previsível. Os textos de juristas
insistem na prudência, na disciplina e na manutenção da formação cerrada, prescrevendo
punições severas para os que não acatassem as ordens. Controlar a sanha dos homens pelo
saque também era uma preocupação constante, mas que por vezes era impossível de conter,
podendo resultar em viradas catastróficas (GARCÍA FITZ & MONTEIRO, 2018, p. 73).
Considerações finais
Percebe-se, ao cabo dessa breve articulação entre a leitura preliminar de uma fonte –
que não é nem específica sobre a temática em sua inteireza – e das referências historiográficas
mais recentes, que um olhar aguçado pemite, sim, apreender o sentido tático e estratégico de
operações militares na península ibérica medieval. É visível, também, que os contemporâneos
não apenas sabiam da importância da organização e da disciplina nessas empreitadas, como
também reconheciam os benefícios que a manutenção de um arcabouço teórico sistematizado
por escrito oferecia às gerações posteriores de guerreiros, conferindo-lhes um referencial a ser
consultado durante a sua formação para o ofício das armas, ou em preparação para
determinada operação. Ainda que seja muito difícil verificar em que nível tais acúmulos
teóricos impactaram diretamente o guerrear naquele cenário, torna-se temerário ignorar a
existência e a permanência da farta documentação que discorre sobre a temática, sob pena de
cair nos mesmos preconceitos que historicistas e positivistas outrora incorreram.
Referências bibliográficas
ALVARO, Bruno Gonçalves e PRATA, Rafael Costa. Guerras rendilhadas da erudição: um
breve panorama dos combates e debates em torno do conceito de reconquista. SIGNUMRevista da ABREM, v. 15, n. 2, p. 104-126, 2014.
CONTAMINE, Philippe. War in the Middle Ages. Oxford: Blackwell, 1986.
FITZ, Francisco García. La Reconquista: un estado de la cuestión. Clio & Crimen, 2009.
FITZ, Francisco García; MONTEIRO, João Gouveia (Ed.). War in the Iberian Peninsula,
700–1600. Routledge, 2018.
FLORI, Jean. Guerra Santa. Formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão. Campinas:
Editora da UNICAMP, 2013.
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Debate de História Ambiental: cultura e sustentabilidade ecológica nas Reservas
Extrativistas Marinhas do Brasil (1990-2020)551
Marcus Vinícius da Silva Santos552
Resumo: Esta comunicação objetiva debater sobre às práticas de sustentabilidade de
Comunidades Tradicionais nas Unidades de Conservação Marítimas do Brasil. Utilizamos
fontes disponíveis na internet: site do ICMBio, site do ISA e dos Planos de Manejo – coletadas
durante o período de pesquisa do Projeto PIBIC 2020-2021, intitulado: “Contribuições
Etnohistóricas para a Cogestão de Áreas Marinhas Protegidas de Uso Sustentável do Brasil”.
As informações sistematizadas foram submetidas à microanálise para destacarmos os elementos
da cultura material e imaterial das comunidades extrativistas pesqueiras de Arraial do Cabo
(RJ), Caeté-Taperaçu (PA), Cassurubá (BA), Cururupu (MA) e Soure (PA). Diante das invasões
territoriais e seus impactos multifatoriais, as Comunidades Tradicionais residentes nas Reservas
Extrativistas acima citadas, empreendem uma permanente luta em defesa de suas autonomias e
da sustentabilidade de seus “bens comuns” de forma ecológica e coexistente entre cultura e
natureza.
Palavras-Chave: Extrativismo pesqueiro tradicional. Sustentabilidade ecológica. Territorialidade
e “bens comuns”.
E no sangue extrativista, vê-se a sua identidade. Verdadeira conquista (no sol, no sol, suor e
dor), ser pescador lá na cidade. E no sangue extrativista, vigorosa batalha, verdadeira conquista.
É arte e chumbo na tralha”.
Marcio Novaes, Artistas da praia (publicado no livro Memórias do Mar – Mero, em 2011).
Tanto o texto quanto a pesquisa foram orientados de perto pela professora drª Arrizete C. L. Costa
(UFAL/CITCEM).
Graduando em História-Licenciatura pelo Instituto de Ciências Humanas, Comunicação e Arte (ICHCA) na
Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Membro do Grupo de Pesquisa Documentos, Imagens e Narrativas –
GPDIN/CNPq.
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1. Neste breve debate, convido cada mente leitora que aqui se aguça para conhecer um
dos frutos do Projeto de Iniciação Cientifica (PIBIC 2020-2021) intitulado: “Contribuições
Etnohistóricas para a Cogestão de Áreas Marinhas Protegidas de Uso Sustentável do Brasil”.
Distanciando-me dos protocolos e burocracias dos relatórios parcial e final, tentarei tecer uma
narrativa menos enfadonha e mais circunscrita a respeito deste último ano de pesquisa,
voltando-me especificamente para as práticas culturais de sustentabilidades ecológicas
empregadas pelas comunidades residentes das Reservas Extrativistas Marinhas do Brasil. Está
dada a largada!
2. Antes de ir de vez ao nosso objeto investigativo, gostaria de explanar rapidamente o
meu encontro com o campo da História Ambiental553. Uma área de conhecimento das ciências
históricas totalmente desconhecida para mim até o início de 2020. Na verdade, igualmente a
nova sarscovid-2, o campo da História Ambiental se fazia novo e completamente imprevisível.
Mesmo dentre as minhas mais improváveis hipóteses, este campo do conhecido se apresentou
como algo único e renovador, e de certa forma – em meio a toda calamidade de crises
econômica, política, ambiental e sanitária que temos vivenciado no Brasil desde o golpe de
2016 –, ele parecia ser uma das poucas “luzes no fim do túnel”.
O contato com alguns nomes representantes da História Ambiental foi um ponta pé
decisivo para minha iniciação em debates das ciências humanas, sociais e ecológicas. Este
caleidoscópio de conhecimentos ambientais só confirma a assertiva do historiador
estadunidense Donald Worster que caracteriza a História Ambiental como um “esforço
revisionista para tornar a disciplina da história muito mais inclusiva nas suas narrativas do que
ela tem tradicionalmente sido” (1991, p. 2)554. Mas o contato com Worster só foi possível pelo
intermédio de alguns nomes pioneiros da História Ambiental aqui no Brasil, dentre eles,
destaco os historiadores José Augusto Drummond e José Augusto Pádua, e a historiadora
Regina Horta Duarte.
Para o historiador José Augusto Drummond, o primeiro a traduzir os textos de Donald
Worster do inglês para o português, a História Ambiental “trata-se de uma mudança séria de
paradigma nas ciências sociais. Significa que o cientista social dá às ‘forças da natureza’ um
Utilizarei as iniciais deste campo científico em maiúsculo para enfatizar as contribuições significantes da História
Ambiental para os resultados de nossa pesquisa.
As principais críticas que partem da História Ambiental a disciplina de história, é o fato de a história ter mudado
em muitas questões, mas permanecido tradicional quanto a sua curta temporalidade de 10 mil anos, especialmente
se comparada aos bilhares de anos da existência da terra, e aos aproximados 5 milhões de anos desde o
surgimento dos primeiros hominídeos (CROSBY, 2011; MCNEIL, 2001; PÁDUA, 2010).
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estatuto de agente condicionador ou modificador da cultura” (1991, p. 180). O historiador José
Augusto Pádua (2010), um dos primeiros a trazer o debate ecológico para o ventre da história,
categoriza a História Ambiental em três níveis: o 1) interdisciplinar, entre a história, a biologia,
a ecologia, a física etc., para conhecer o mundo biofísico; o 2) dialógico, com a interlocução
entre materialismo dialético e a antropologia contemporânea555 para estudar os avanços
tecnológicos criados pelas sociedades passadas; e, por fim, o 3) cognitivo, evocado por Donald
Worster para compreender as relações entre a cultura humana e o mundo biofísico a sua volta.
Desembocando então na relação cultura e natureza.
Desta forma, os historiadores e historiadoras ambientalistas “tem como missão estudar
o homem juntamente com o ecossistema que o comporta, sem dissociá-lo do meio em que está
inserido”. De igual maneira, nunca se devem deixar esquecer que “isso se dá numa busca de
entender esse mesmo meio e suas transformações, suas mudanças, sejam elas causadas ou
sofridas pelos seres humanos” (OLIVEIRA, 2009, p. 10). A História Ambiental surge a partir
da década de 1970556 com a necessidade de uma resposta à demanda global dada pelos debates
ambientais e ecológicos despontados pelo mundo uma década atrás sobre o uso de agrotóxicos,
combustíveis fosseis, desmatamentos, poluição de rios e mares, testes nucleares e as mudanças
climáticas. A invenção de algumas ONGs como International Union for Conservation of
Nature/IUCN, a United Nations Evironment Programe/UNEP (Traduzido como Programa das
Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA), e o surgimento do Greenpeace, deram
origem a chamada “Primavera Verde”557. As ciências históricas, como uma ciência humana e
social, tinham a obrigação de acompanhar estas revoluções.
A História Ambiental surge também num confronto direto com a concepção de história
que reinava nas academias de história pelo ocidente da primeira geração dos Annales, de que
“a história é o homem”, como defendia Lucien Febvre. Ou ainda como Marc Bloch cristalizou
em nós: “a história é a ciência dos homens no tempo”. No entanto, desde Fernand Braudel, e
especialmente em seu delfim, o annalista de terceira geração, Emmanuel Le Roy Ladurie, o
mais emblemático representante da História Ambiental, temos consciência de que na medida
A ideia de antropologia contemporânea é debatida por Donald Worster (1991).
O primeiro curso de História Ambiental foi dado pelo historiador estadunidense Roderick Nash, em 1972 na
Universidade da Califórnia.
A pioneira e uma das mais importantes figuras deste movimento é a ambientalista Rachel Carson com a
publicação de Silent Spring, (1962). No Brasil, o livro-manifesto foi traduzido como Primavera Silenciosa (2011).
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em que “é uma função do tempo, varia. Está sujeito a flutuações. É objeto da história” (apud
PÁDUA, 2010, p. 97).
3. Mas Emmanuel Le Roy Ladurie não me era estranho antes deste processo
investigativo. O primeiro contato que tive com o cânone francês, autor de Montalliou (1975),
foi por conhecimento da corrente historiográfica mundialmente conhecida como microhistória. Esta, que surgiu no Norte do globo a partir da década de 1970, e que tem como
principais representantes o francês Jacques Revel, a estadunidense Natalie Zemon Davis e os
italianos Edoardo Grendi, Enrico Castenuelvo, Carlo Poni, Giovanni Levi e Carlo Ginzburg,
me acompanham em leitura desde o início de minha graduação em 2018.
Para brevemente definir este grande movimento que tem se espalhado pelo mundo nas
últimas quatro décadas, podemos entender a micro-história como um corpus epistemológico
que gira em torno de 13 teses teórico-metodológicas558. Carlo Ginzburg, seu mais proeminente
representante, a classifica como um método analítico “centrado sobre os resíduos, sobre os
dados marginais, considerados reveladores. Desse modo, pormenores normalmente
considerados sem importância, ou até triviais; ‘baixos’” (1991, p. 148/9). Com os avanços nos
debates historiográficos, a micro-história foi readequada a ideia de microanálise, que consiste
na “hipótese de reconstruir o espaço social relevante como um todo, através dos conceitos de
escala, de limiar, de configuração etc.” (GRENDI, E. apud ESPADA LIMA, 2006, p. 284).
Dadas tais informações, acrescento ainda que este embasamento teórico-metodológico
foi fundamental para o processo de leitura e a coleta de informações pertinentes que cada um
destes textos nos permitiu na apreensão de categorias conceituais559 encontradas em fontes
virtuais digitais como o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, às páginas do
Instituto Socioambiental – ISA, e o Instituto Chico Mendes da Biodiversidade – ICMBio.
4. A leitura das fontes acima citadas, nos possibilitou inventariar algumas categorias
conceituais das Unidades de Conservação (UCs), como o Bioma, a Área das UCs, os Decreto
de criação, a Portaria do Conselho Deliberativo, os Planos de Manejo (PMs), a Portaria de
aprovação do Plano de Manejo, e a Composição atual do conselho. Dentre as UCs
inventariadas, selecionamos cinco Reservas Extrativistas Marinhas (RESEX/Resexmar560):
Em seu livro Historiografia e Hermenêutica (2014), a historiadora brasileira Arrizete C. L. Costa descreve de
forma minuciosa as treze teses da corrente microanalítica (p. 73).
Nesta etapa, elaborei fichas de conteúdo e bibliográficas na leitura dos textos selecionados, e nas fontes
consultadas, recorremos ao método de análise de conteúdo da psicanalista francesa Laurence Bardin (2011).
Diante da disposição de espaço que o texto dos anais deve-se enquadrar, utilizarei as siglas UCs para me referir
as Unidades de Conservação, e RESEX ou Resexmar para me referir as Reservas Extrativistas Marinhas.
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Arraial do Cabo (RJ), Caeté-Taperaçu (PA), Cassurubá (BA), Cururupu (MA) e Soure (PA).
Com o apoio do método onomástico, foi possível “sobrepor-se no tempo e no espaço de modo
a permitir-nos encontrar o mesmo indivíduo ou grupos de indivíduos em contextos sociais
diversos” (GINZBURG, 1989, p. 173/4). Tais indivíduos foram sistematizados quanto a
hierarquia e organização social de cada RESEX: 1) Chefe da RESEX, 2) Coordenador(a) da
RESEX, 3) Líder comunitário extrativista, 4) Membros do Conselho Deliberativo, 5) Líder de
Associações da RESEX, 6) Líder da Cooperativa de Mulheres, 7) Líder do CONFREM, 8)
Líder do REMAR e 9) Pesquisadores/as561. Está finalizada a parte metodológica (se é que ela
realmente tem um fim para nós que nos movemos na Teoria e Metodologia da história).
5. Para compreender nosso objeto investigativo, as Reservas Extrativistas Marinhas, é
preciso antes conhecer um pouco de suas origens em território brasileiro. Se acompanharmos a
historiadora Regina Horta Duarte à década de 1930, os anos da “Revolução
Constitucionalista”562, encontramos três biólogos do Museus Nacional, Edgard Roquette-Pinto,
Alberto José Sampaio e Cândido de Mello Leitão se movendo inquietos e apressados para
levar à Câmara de Deputados um projeto de criação de Unidades de Proteção em território
nacional (2010, p. 34-49). A ideia que já havia sido sugerida e “fervorosamente” defendida no
início do século XX por um dos herdeiros de Charles Darwin, o naturalista Herman Von
lhering (DEAN, 1996, p. 245), reaparece duas décadas depois entre os militantes do Museu de
Nacional, resultando na criação de 4 unidades federativas de conservação no Brasil
(BENSUSAN, 2006; DUARTE, 2010; PÁDUA, 2016).
José Augusto Pádua (2016) nos diz que no decorrer das décadas de 1940-1970, são
criadas 38 novas unidades federativas de conservação. Não que os governantes estivessem
preocupados com a preservação de nossos biomas, na verdade, “tratava-se de um mero dever
burocrático e de uma medida convencional no sentido de não deixar o país muito para trás em
relação aos Estados Unidos e, especialmente, à Argentina, onde já existiam parques deste tipo”
(PÁDUA, 2016, p. 10). É apenas a partir da década de 1980, nos anos da reabertura
democrática, e com os avanços dos debates internacionais sobre a importância da preservação
da natureza e do aquecimento global – pode-se destacar a influência da “Primavera Verde” –,
que o Brasil ganha 94 novas unidades de preservação. Já na década de 1990, este número caí
para 54. Com a chegada do século XXI, a criação de Unidades de Conservação chega a 116
A sistematização minuciosa com os nomes de cada uma destas figuras foi publicada no Relatório Final.
Para mais informações sobre este acontecimento, consultar o clássico livro de Boris Fausto: A revolução de
1930: historiografia e história (1970).
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(DRUMMOND, FRANCO E OLIVEIRA, 2011; PÁDUA, 2016). Nestas décadas, são criados
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA (1989),
o Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (2000) e o Instituto Chico Mendes
da Biodiversidade – ICMBio (2007).
No entanto, Pádua nos alerta para um fator geográfico e político que tem sido
determinante na criação destes espaços. Desde meados dos anos 1970 que o avanço de UCs
em direção e na região da Amazonia tem sido significativamente maior em relação a outras
regiões do país que passavam pelo processo de urbanização e industrialização563. Um forte e
infeliz contraste, por exemplo, com a Mata Atlântica, que têm sofrido alarmantes níveis de
desmatamento desde o período colonial564. A menor exploração do território amazônico foi
favorável, de certa forma, para criação de diferentes tipos de UCs: desde parques e florestas
nacionais, até reservas e assentamentos indígenas (PÁDUA, 2016, p. 5-15). Não que a presença
de grupos originários e tradicionais tivessem alguma importância para o Governo Federal, o
interesse deste tipo de preservação por parte das autoridades, e em certa medida de alguns
grupos conservacionistas, era apenas uma “estratégia para proteger as áreas antes que fossem
alteradas pelo processo de desenvolvimento” (ARAÚJO, 2007; SANTOS, 2015).
6. Mas é do coração da floresta amazônica que nasce nosso interesse de pesquisa: as
Reservas Extrativistas (RESEXs). Elas são indicadores da emergência de uma política ambiental
para garantir o uso e a permanência de espaços de preservação, visto que no coração da floresta
amazônica, já se fazia visível a luta travada a sangue e fogo entre seringueiros e latifundiários.
De um lado, liderados por Chico Mendes, estava um grupo de indivíduos ligados a terra, que
dela extraiam seus modos de sobrevivência. Do outro, um grupo incentivado pelo agronegócio
que negava as leis federativas e depredavam o meio ambiente em prol do lucro. Somente após
o assassinato de Chico Mendes, é criada a primeira Reserva Extrativista (RESEX) do país:
Reserva Alto Juruá (98.863/1990), uma área de uso sustentável, protegida por lei e pelas
práticas tradicionais.
7. As Reservas Extrativistas marinhas costeiras são territórios habitados por
comunidades agrícolas ou pesqueiras de subsistência, legalizadas constitucionalmente; inclusive,
Para melhor conhecimento de um tema tão vasto e indelével, recomendo as leituras do cientista social Manuel
Castells (1983), o geografo Candido Malta (1992), a geografa Ana Fani Carlos (1992), e o renomado geografo e
intelectual negro Milton Santos (1996). Para um debate mais recente, recomendo Lucí Hidalgo Nunes (2015).
Quem melhor demonstrou a realidade do desmatamento da Mata Atlântica foi o historiador estadunidense
Warren Dean em seu livro A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira (1996).
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são o único modelo, dentre os 16 classificados pelo SNUC, onde a comunidade local tem
direito total de uso e pertencimento da área. Sua legitimidade institucional é regida pelo
documento denominado de Plano de Manejo (PM). Falando agora deste instrumento tão
relevante para nossa investigação, e que serviu inclusive como nossa “vara de pesca”, os PMs
são para as RESEXs um instrumento que rege o uso sustentável dos recursos naturais através
do manejo. Numa profícua e estimulante entrevista concedia pela bióloga Norah Costa
Gamarra (UFAL), este instrumento de gestão das áreas protegidas exigem “[...] recursos
financeiros e humanos que são necessários para sua formulação, além de ser necessário vários
levantamentos biológicos, históricos e sociais para sua formulação”565. Os PMs das Resexmar
aqui estudados seguem as disposições das unidades, as necessidades apresentadas e os recursos
investidos. Ainda que não haja um padrão escritural na redação de cada PM, há alguns pontos
comuns a todos os PMs analisados: são feitos conjuntamente entre uma equipe de
planejamento do ICMBio (ambientalistas, ecólogos, oceanógrafos etc.), o Conselho deliberativo
da Resexmar, ou seja, um grupo de representantes locais que falam em nome da unidade e
os/as representantes das associações, programas, ou grupos da unidade e os/as redatores/as.
Ouvintes e convidados/as da própria unidade podem participar dos debates nas reuniões
deliberativas. Os encontros de elaboração podem contar com a presença de algum grupo
privado que patrocina a Resexmar em prol do turismo. As reuniões são publicadas nos sites do
ISA e ICMBio.
O antropólogo britânico E. E. Evans-Pritchard (2005) nos revela que o primeiro passo a
ser dado no estudo de uma comunidade é o do distanciamento em relação a ela. Este passo
deve inclusive percorrer todo o processo de construção da análise, pela razão de que apenas o
distanciamento reafirmará nossa identidade e não nos deixará esquecer de nosso objetivo
central: a observação. Muito embora – antropólogos/as e historiadores/as estejam tratando de
tradições cognitivas diferentes, encontramos ecos. No ensaio “Distância e Perspectiva” (2001),
Carlo Ginzburg defende que a prática da perspectiva, permite conhecer representações e
pontos de vista diferentes das nossas e esta pluralidade pode se basear no conflito. Ao traçar os
modelos explicativos da história, o historiador britânico Peter Burke (2012) nos alerta de que
estes modelos são construções intelectuais simplificadoras da realidade para salientar o
recorrente, o geral e o típico, apresentados na forma de conjuntos de características ou
Entrevista concedida por GAMARRA, Norah C. [08.03.2021]. Entrevistador: Marcus Vinícius S. Santos.
Maceió, 2021.
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atributos. E classifica-os em dois tipos: o consensual e o conflituoso. Aqui buscamos nos
aproximar do modelo conflituoso em conformidade com o pressuposto da microanálise ao
fazer uma análise social tornando suas variáveis mais numerosas, mais móveis e mais complexas
(COSTA, 2014, p. 63).
Em uma Conferência intitulada “História Conectada, Global History, Micro-História”,
pudemos compreender junto a Giovanni Levi de que há nas ciências humanas, o risco de uma
leitura mecânica, funcionalista e positivista da sociedade ou da cultura; portanto, “as realidades
históricas necessitam de ser lidas por dentro”566. O trabalho que fazemos aqui segue
propriamente esta linha de pensamento. Pensar as múltiplas realidades históricas por dentro de
suas próprias ações. Não apenas a visão institucionalizada que os Estados-nação reduzem a
cada grupo social para criar sua identidade maior. Pelo contrário, entender cada realidade em si
e em suas complexidades. Não por elas não serem relevantes, mas por não serem mais, como
diria a escritora Conceição Evaristo (2017)567, os únicos protagonistas de nossas histórias.
8. Retomando a José Augusto Pádua (2021), estamos vivendo no Brasil, um fascismo
antiecológico. A desintegração das comunidades tradicionais, a proibição de imigrantes, e a
superexploração das classes subalternas (para usar uma expressão de Mikhail Bakhtin), não
apresenta nem de longe uma falsa preocupação com o mundo natural. As elites brasileiras
querem tomar estes espaços apenas para o avanço do agronegócio.
9. Contra as práticas predatórias e de extermínio, surgem então modelos que ainda que
estejam “sendo subsumidas no universo semântico do conservacionismo ambiental [do
SNUC]”, são vítimas de ingerência nas políticas públicas cogestoras dos bens comuns que se
entremeia não somente nos domínios econômico e ambiental, mas também nas “questões
relativas ao uso e ocupação do território”, nas políticas do cotidiano e da cultura, restringindo a
“ênfase original na proteção e direitos sociais” (SILVEIRA LOBÃO, 2006, p. 153), destas
unidades territoriais, tutelando-as. No dizer de Kátia Barros – extrativista da RESEX de TauáMirim (MA) – se caracterizando mais como uma “congestão” do que uma cogestão.
No entanto, foi contra as práticas de caça predatória do caranguejo uçá, que os
extrativistas de Soure, na Ilha do Marajó (PA), com apoio de ambientalistas criaram o
“Manifesto do Caranguejo”, dando origem a Resexmar na década de 1990, visando a proteção
CEMIDI – UNISINOS: YouTube. História Conectada, Global History, Micro-história - Giovanni Levi.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JtmITnHCeZk (28/05/2021).
ITAÚ CULTURAL: YouTube. Ocupação Conceição Evaristo (2017) – teaser. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=5QBXp-MqF18.
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do ambiente e da vida animal, dos mangues-vermelhos e dos pântanos salinos. As comunidades
tradicionais em Soure, que também sofrem com o uso do puçá (rede que fecha o rio)
incentivado por fazendeiros locais para pescar no interior e nos limites da Resexmar, e que
impede a passagem de peixes do mar para o rio e vice-versa, também se confrontam
cotidianamente com fazendeiros da região que se apropriam dos limites da unidade, chegando
a expulsar os extrativistas com o argumento que as terras os pertenciam. Os extrativistas de
Soure conseguem pôr em prática as práticas herdadas das comunidades originarias do Marajó
na fabricação de cerâmicas, adornos artesanais retirados dos mangais, das danças tradicionais
como o carimbó (patrimônio imaterial do Brasil), mas principalmente na manutenção e
preservação do caranguejo-uçá.
O uçá, em seu período de acasalamento anda quilômetros a procura de uma fêmea, e
após esta etapa, ocorre a chamada “andada do mangue”, que consiste na caça do caranguejo
adulto macho que acabou de acasalar, que pode ocorrer três dias após a lua cheia ou a lua
nova. O uçá também é responsável por repor os nutrientes dos manguezais por meio da criação
de galerias que permitem a passagem de nutrientes nos solos lamosos. O uçá é conhecido pelos
ambientalistas como o “engenheiro do mangue” (SCHMITD, 2015).
A “Andada” é também endêmica da Resexmar de Cassurubá, em Caravelas (BA). A
unidade, formada por retirantes no início do século XX, é uma das mais afetadas pela ação
humana. Mesmo após a proibição da caça as baleias na década de 1980, a unidade foi criada
apenas na primeira década deste século como uma última chance de preservação dos abrolhos.
A Resexmar está sufocada entre uma empresa multimilionária de carcinicultura que invade a
região do rio Macaco e do mar para ampliar seus reservatórios de camarão, a unidade abriga os
maiores bancos de camarões do Brasil, com mais de 30 espécies catalogadas. Outra grande
questão, é uma empresa madeireira que tem uma grande plantação de eucaliptos do lado oeste
da Resexmar e que de lá faz a extração da celulose. O acesso a plantação da empresa é feito
por meio de uma drenagem na rota mar/rio da unidade, que acabou com o ecossistema local,
tornando-a uma zona quase morta (NICOLAU, 2007).
A Resexmar de Arraial do Cabo (RJ), a terceira RESEX marinha criada em 1998 e a
terceira unidade conservação mais visitada do país, herdou das antigas comunidades tamoios –
deserdadas do espaço e da história (PEREIRA, 2010) –, as práticas originárias na preservação
das vidas marinhas dos corais e bentônicas que estavam sendo ameaçadas desde a década de
1970 pela construção de bases petrolíferas (LABOREL, 1977). A unidade que enfrenta com o
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turismo desenfreado patrocinado por empresários e a inserção de espécies invasoras, insiste no
uso de pequenas embarcações e em denúncias dos espaços da RESEX tomada por grileiros.
Voltando a região Norte do país, em especial a Resexmar de Caeté-Taperaçu, em
Bragança (PA), encontramos um grupo de indivíduos que sofreram com os avanços da
modernização. Numa falha tentativa de construção de um píer que invadia os limites marítimos
e a rápida resposta da força das águas, e a depredação da fraca estrutura, deixou uma praia
abandonada, restando apenas famílias com pequenas barracas, onde a fome era a realidade;
todavia, as comunidades de Caeté-Taperaçu souberam se reinventar (CONTENTE, 2013). A
reinvenção surgiu quando os extrativistas locais começaram a replantar os mangais degradados
pelas queimadas provocadas para a construção de rodovias, e especialmente, pelo respeito de
no período de reprodução e crescimento da pescada-amarela, que é conhecido como “defeso”.
A resposta dada pelo mundo natural aos extrativistas locais os fez criar a “Festa do caranguejo”,
um evento anual, além da “Comitiva de São Sebastião”, que se tronou tradicional em
comemoração à garantia do maior fruto de renda da Resexmar.
Da pescada-amarela, se extraí o “grude” (a bexiga natatória), muito apreciado na
culinária oriental. A extração do “grude” é também comum a Resexmar de Cururupu, em
Cururupu (MA), que abriga doze comunidades dentro de seus limites. Divididas em polos
desde o interior do município, passando pela região dos mangues568, até chegar as ilhas nas
regiões salinas. Foi também devido à seca no início do século XX, que as comunidades de
Cururupu chegaram à região norte do litoral maranhense, e ocuparam-na. No entanto, a
unidade sofre com litígios causados pelas famílias de latifundiários, e a presença de
embarcações invasoras patrocinadas pelos “patrões de pesca”. Na chamada pesca de
embarcada, as comunidades que costumam “torar o mangue” para criar artes de pesca,
empregam a prática do defeso três vezes ao ano para garantir a renda e manutenção da espécie
(FREITAS et al. 2012).
10. Todos estes desafios têm sido enfrentados nas unidades analisadas e suas respostas
partem da cooperatividade de seus membros, da articulação com ONGs, ambientalistas,
ativistas e com os movimentos sociais – na defesa de seus territórios, formações históricas,
natureza e populações – constantemente sob ameaças. Finalizamos nossas contribuições neste
debate de História Ambiental, enfatizando que o termo mais identitário para as Reservas
É interessante lembrar que as Resexmar de Caeté-Taperaçu, Cururupu e Soure estão inseridas na maior faixa de
manguezais do mundo que vai desde os limites do Ceará e Maranhão até o Amapá.
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Extrativistas Marinhas é o de territorialidade, entendida como um conjunto de elementos
simbólicos e funcionais que conferem a comunidade local “uma noção de pertencimento, e
que pode ser analisada enquanto um instrumento de emancipação territorial, conduzido a
partir da organização interna de grupos que estabelecem, por meio da sua prática política, os
seus objetivos em comum” (ARAÚJO; CALDAS, 2019, p. 360). Já que para as comunidades
tradicionais e originárias, habitar, é também ser o espaço.
A manutenção da biodiversidade local, e por biodiversidade podemos entender uma
prática de combinação comunal de direitos de uso e manutenção do espaço das sociedades não
industriais (DIEGUES, 2000; SHIVA, 2001); assim como os usos renováveis e sustentáveis do
espaço habitado, visível especialmente na criação dialética de instrumentos comunitários e de
reivindicação social de alguns protagonistas destas histórias: Cooperativa de Mulheres e as
Associações de Pesca Tradicional (AREMAC) em Arraial do Cabo. A Associação dos Usuários
Extrativistas (ASSUREMACATA) e os líderes comunitários em Caeté-Taperaçu. As
associações Mãe, dos Pescadores e dos Agricultores e o Programa dos Jovens Protagonistas em
Cassurubá. A Associação dos Moradores (AMREMC) em Cururupu. E a Associação dos
Usuários em Soure (ASSUREMAS). Além da participação ativa da Comissão Nacional de
Fortalecimento das Reservas Extrativistas Costeiras e Marinhas (COFREM). Aqui, narramos as
práticas culturais de sustentabilidade ecológica como personagens centrais de nossa trama.
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ST10 – Narrativas Dissidentes: historiografia, gênero, interdisciplinaridade e
interseccionalidade
Vidas trans importam! A série Pose numa análise histórica
Hblynda Morais 569
Rafaela Lima De Souza570
RESUMO
O presente artigo tem por objetivo expor a realidade LGBTQIA+ entre as décadas de 1960 e
1990, a partir da análise das duas primeiras temporadas da série POSE, produzida pela
emissora FX. A Série é uma criação de Ryan Murphy, Brad Falchuk, e Steven Canals, onde
podemos notar no decorrer de seus episódios uma estreita relação com o documentário Paris is
Burning, que retrata a cultura dos bailes. Com um elenco constituído em sua maioria por
negros e mulheres transexuais a Série aponta sobre os preconceitos, a luta pelo respeito e por
um lugar na sociedade, destacando problemas e questões que precisam ser discutidas, pois
ainda se faz presente na contemporaneidade. Com isso, também trazemos sobre como
trabalhar a série em sala de aula, tentando romper com as barreiras colônias e fazer desse
movimento um futuro diferente, utilizando autoras e autores que discutem Teoria Queer e
Decolonidade, pois sem o grito não há revolução.
Palavras-chave: Pose, Transgeneridades, Ensino de História.
INTRODUÇÃO
O Transfeminismo571 (JESUS, 2011; NASCIMENTO,2021) luta por direitos políticos e
sociais de pessoas Trans, que essas vidas importam, mas isso não é algo dado, fácil de aceitação
Graduanda Trans não binária do Curso de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco,
halberys.holanda@upe.br
Graduanda do Curso de Licenciatura em História da Universidade de Pernambuco – UPE,
Rafaelalimadsouza@gmail.com
Letícia Nascimento fala que, "O Transfeminismo é, ao mesmo tempo, lugar de luta política e de produção
intelectual, compartilhado por pessoas que se autodefinem como mulheres, queers, mulheres travestis, mulheres
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na nossa sociedade. São muitos os embates enfrentados quando se fala das transgeneridade.
Simone de Beauvoir diz “não se nasce mulher, torna-se mulher". Pois, é nas relações sociais
que o gênero é constituído. A partir do "é menino, é menina" inicia-se a generificação daquele
corpo e consequentemente vão se construindo as formas de viver e do que se espera que
apresente na sociedade. A série Pose se apresenta no afrontamento de seu elenco de mulheres
trans e negras, dando o seu recado com a personagem Elektra, "Deus pode ter dado a Barbie
para você, um jardim com Pônei, um namorado chamado Jake, uma gravidez indesejada que
seu pai pagou para abortar e você pode ir para faculdade se formar em vadia. Mas nada disso
não faz de você mulher." Partindo desse enunciado, compreendemos que a sociedade divide
masculino ou feminino/ azul ou rosa/ carrinho ou boneca. Estruturas compartimentadas numa
lógica biológica, enxergando esses binômios e tantos outros para enquadrar as vidas e classificálas dentro do CIStema.
Temos então, dispositivos que operam o CIStema Heteronormativo e
regulamentam as práticas sexuais. E aqueles que se encontram fora de
suas regulações, infringindo o que se espera destes corpos, sofrem
sanções e estão à mercê das violências sejam elas físicas ou psicológicas.
( BENTO, 2004).
O primeiro pensamento para entender esse dispositivo controlador dos corpos, é a
discussão que a filósofa norte americana Judith Butler traz sobre o sistema sexo-gênero572,
entendendo que ambos se fabricam em meio ao social, e é na base das relações que eles se
constroem. Foi se pensado por muito tempo um sentido relegado ao sexo de ser pré-discursivo,
a-histórico e natural, que construiria o gênero. Mas ambos se retroalimentam e se constituem.
Podemos dizer que o sexo constrói o gênero (BUTLER,2003). Um conceito que precisamos
analisar levando em consideração as formações que foram postas por séculos e que engendram
a vida em sociedade, é a Cisgeneridade.( VERGUEIRO, 2015; NASCIMENTO 2021). A
partir dela se desprendem a bipartição cis x trans, construindo o outro lado que se está em
oposição à concepção sexo-gênero-desejo (BUTLER,2003) . É através da cisgeneridade que
transgêneras, mulheres transexuais, pessoas não binárias, travestis, ou ainda de outros modos, como transviadas".(
NASCIMENTO, 2021, p.58)
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero. 2003.
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vamos ter o processo de patologização, criminalização e subalternização das identidades
trans.(NASCIMENTO, 2021).
A série Pose possui majoritariamente pessoas trans e negras em seu elenco, constituindo
um feito inédito nas produções audiovisuais e uma relevância de grande mérito para as
discussões de gênero e sexualidade. Fazendo com que este trabalho tenha o intuito de analisar
as temáticas levantadas na série, construindo pontes de discussões com autores que abordam
Teoria Queer573 e Decolonialidade574, mas que não tem a intenção de findar com os estudos
produzidos, sendo mais uma ferramenta de possibilidades de compreensão e chave de leitura
sobre os estudos de gênero e sexualidade.
Neste trabalho também será discutido sobre a epidemia da HIV-AIDS, os locais
designados para regulação da vida Trans e os famosos Ballrooms. Encontrando debaixo deste
grande arco-íris, cheio de cores vibrantes, uma história que vai mostrar os sabores e dissabores
das corpas dissidentes. Com isso, esses copos de rebeldia e, sobretudo de (re)existência vão
para jogo e no bordão de Pray Tell iniciamos essa jornada: Viva… Trabalhe.. POSE!
VIVA
O Brasil é o país que lidera por 13 anos o ranking das estatísticas como o país que mais
mata pessoas Trans e Travestis. Também é um dos que mais consome conteúdo pornográfico
de pessoas trans. Aqui podemos encontrar duas situações contrastantes, o corpo que tem
passibilidade de morrer a qualquer momento é aquele que é procurado para satisfazer o prazer
de seus agressores. Angel diz, "você sabe que esses homens têm medo do desejo que sentem.
Eles sempre descontam na gente. Eles não matam porque odeiam a gente, mas sim pelo que
significa gostar da gente". É instaurado a necropolítica (MBEMBE,2018) a estes corpos que
transgridem e desmantelam a ordem social cis-heterossexual.
Temos como mote de exemplificação, a música de Chico Buarque de Holanda Geni e
o Zepelim, onde apresenta em sua composição Geni (a travesti) que sofre as agruras de ser
quem é, com a chegada de um forasteiros a cidade em romaria, só restaria a bela "donzela"
Queer é tudo isso: é estranho, raro, esquisito. Queer é, também, o sujeito da sexualidade desviante –
homossexuais, bissexuais, transexuais, travestis e drags. É o excêntrico que não deseja ser ‘integrado’ e muito
menos ‘tolerado’. Queer é [...] um jeito de pensar que desafia as normas regulatórias da sociedade, que assume o
desconforto da ambiguidade, do ‘entre lugares’, do indecível. Queer é um corpo estranho, que incomoda,
perturba, provoca e fascina. (LOURO, 2016, p.7-8).
574
Proposta apresentada por Ochy Curiel em seu texto Construindo Metodologias feministas a partir do
feminismo decolonial onde apresenta discussão sobre diversos pensadores e pensadoras fora do eixo norte
global, visando produções Latinas.
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salvar a todos. Mas por ironia do destino fica em suas mãos a responsabilidade. Contudo, é
usada e abandonada como bem expressa Buarque por tal ato, recebendo a penalização,
Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni
Geni e Zepelim - Chico Buarque de Holanda575
São muitas as Genis que sofrem violências dia após dias e não há medidas que protejam
suas vidas. Sua vidas importam? Para quem? Quem chora por seus corpos?
Tendo em vista esse bloqueio da aceitação, suas vidas são compelidas a eugenia, uma
tentativa de limpeza das existências, no que no Brasil fica bem evidenciado no período da
ditadura civil-militar com a operação Tarântula, realizada em São Paulo ( SILVA, 2019). Neste
processo em que uma varredura se aplicava, temos um marco na história da população Trans e
Travestis que é quando a Transexualidade entra para o rol de doenças, em 1980. Com isso,
vamos ter o processo transexualizador. O médico Henry Benjamin foi um dos que construíram
práticas de tratamento para a Transexualidade, enquadrando o transexual "de verdade" ou não.
Onde põem também sobre o suicídio pela não conformidade com o gênero e a retomada de
um transtorno psicológico. Berenice Bento discute sobre a despatologização e de como os
manuais médicos reiteram esse ideal. Tendo o Código Internacional de Doenças (CID - 11 e o
DSM - IV) como regulamentadores das normas e parâmetros estabelecidos para determinação
dos corpos.
"Por que diagnosticar o gênero? Quem autoriza psicólogos, psiquiatras, endocrinologistas e
outras especialidades que fazem parte das equipes multidisciplinares a avaliarem as pessoas
transexuais e travestis como “doentes?” (BENTO, 2012,p.579). Pensar sobre as
vulnerabilidades que nos cercam enquanto LGBTQIA+, é pensar em como as estruturas de
opressões foram formadas. A sociedade se constitui em que o homem branco, cis e hetero,
sem deficiência é referência. E todas aquelas que estão fora desse “padrão” estão à margem.
575
Geni e Zepelim - Chico Buarque de Holanda. Disponível em: https://youtu.be/jWHH4MlyXQQ
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Dentro da miríade de identidades, os corpos trans e travestis são os que mais sofrem exclusões
e violências, esse corpo Abjeto conceito utilizado pela filósofa Judith Butler explícita bem como
são corpos que não merecem atenção e o espaço reservado muitas vezes para suas
corporalidades são às ruas. A compreensão de suas vidas são vistas como precárias e que não
possuem importância.
O movimento LGBT comumente traz em suas discussões que um dos marcos mais
importantes de sua História foi a Revolta de Stonewall, em 1969. Dali em diante muitos
processos de emancipação política se desprenderam, com a constituição de grupos
reivindicando espaços de fala e escuta para as questões LGBTQIA+. No Brasil, vamos ter o
Movimento Homossexual Brasileiro (MHB) e um dos primeiros grupos a se organizar é o
SOMOS (Grupo de Afirmação Homossexual) em 1978, buscando uma articulação com
membros da sociedade civil como o objetivo da luta por direitos e visibilidade LGBT. Teremos
também jornais criados na época, como Lampião da Esquina e Xana com Xana, veículos
publicitários que foram disparadores de notícias, transgredindo a ótica social vigente do
período.576
O CIStema Heteronormativo branco, não deficiente, busca a todo momento a
eliminação dessas vidas, e cria maneiras de exclusão para que não haja emprego, acesso à
saúde, à educação. Cooptando as formas de viver a zona de subalternização.577 Para além de
trazer discursões sobre a exclusão, relações de trabalho e preconceito, a série possui em sua
narrativa uma temática constante, a epidemia da AIDS nos Estados Unidos, que durante a
década de 80 passou a ser uma doença associada a homossexuais, e a pessoas de grupo de risco
como, por exemplo, pessoas que possuíssem relações com mais de um parceiro, sendo assim,
pessoas que seguiam com as normas e os padrões cis na sociedade não seriam atingidas pela
doença, e os que transgrediam as normas eram punidos.
O comportamento perigoso que produz a AIDS é encarado como algo
mais do que fraqueza. É irresponsabilidade, delinquência — o doente é
"Nesse momento, o Brasil ensaiava os primeiros e ainda tímidos passos de um lento e gradual processo de
liberalização política. Homossexuais se faziam mais presentes nas grandes cidades e surgia, em diversos veículos
da imprensa, uma curiosidade crescente em torno dessas pessoas que desafiavam as normas de comportamento
padrão de gênero e de sexualidade". ( QUINALHA, 2021, p.3).
576
SPIVAK, Gayatri Chakravorty,1942 - Pode o subalterno falar? Tradução de Sandra Regina Goulart Almeida,
Marcos Pereira Feitosa, André Pereira Feitosa. - Belo Horizonte : Editora UFMG, 2010.
577
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viciado em substâncias ilegais, ou sua sexualidade é considerada
divergente. A transmissão sexual da doença, encarada pela maioria das
pessoas como uma calamidade da qual a própria vítima é culpada, é
mais censurada do que a de outras — particularmente porque a AIDS é
vista como uma doença causada não apenas pelos excessos sexuais, mas
também pela perversão sexual. (SONTAG,2007,p.80)
Na Série, os personagens participam de um protesto do ACT-UP (AIDS Coalition to
Unleash Power) um grupo cujo objetivo era lutar e reivindicar direitos para as pessoas que
estavam com o vírus. De acordo com uma matéria do jornal New York Times publicada em
1989, o protesto realizado na catedral de São Patrício, era contra as declarações do cardeal
John Cardinal O’Connor, sobre sexualidade, aborto e AIDS, dentre essas declarações o cardeal
afirmava quer o uso do preservativo era ineficaz contra a aids, e defendia a abstinência. Outro
momento do protesto que a série reproduziu além das prisões, foi o momento em que os
manifestantes durante a missa, fingiram sua morte em protesto as muitas vitimas da AIDS,
alguns manifestantes acorrentaram-se aos bancos da igreja e outros emitiram palavras de ordem
durante o ato dentro da igreja como relata Jason Deparle na matéria em que escreveu para o
New York Times em 1989.
Como a AIDS ainda era uma doença desconhecida, grande parte da população na
época acreditava que possuir a doença significava que o infectado logo chegaria a óbito, tendo
em vista que o índice de mortes após contrair o vírus era alto. Em Pose esse medo é
frequentemente relatado, Blanca e Pray Tell estão sempre preocupados e temerosos em
relação ao tempo que ainda têm ao descobrirem-se portadores do vírus. E como havia a ideia
de que os portadores do vírus logo morreriam, a omissão daqueles que possuem a doença na
série é uma forma de relatar o preconceito e o imaginário em relação aos portadores da
doença. Outro ponto abordado pela série é a escassez de soluções e de medicamentos para
serem utilizados, o AZT era o medicamento indicado para o tratamento, pois além de possuir
um alto custo, o remédio poderia ser tóxico para alguns pacientes, o que levava muitas pessoas
a rejeitarem o AZT e optarem por tratamentos experimentais ou a tratamentos sem eficácia,
como é o caso do Pray Tell, que na busca por uma opção além do AZT começa a consumir
grandes quantidades de manteiga na ideia de que seu organismo ficasse livre da AIDS.
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E uma mistura previsível de superstição e resignação está levando
alguns aidéticos a não recorrerem à quimioterapia antiviral, a qual,
ainda que não constitua uma cura, tem certa eficácia (retarda o avanço
da síndrome e previne algumas infecções oportunistas comuns), e em
vez disso a tentarem curar-se sozinhos, muitas vezes orientados por
algum guru da “medicina alternativa”. (SONTAG, 2007,p.86)
A produção ainda traz em sua narrativa uma crítica à forma que os corpos dos mortos
pela AIDS eram tratados. No início da segunda temporada a Blanca e o Pray Tell vão até a ilha
Hart, onde de acordo com uma matéria publicada no ano de 2018 pela New York Times, os
corpos dos indivíduos mortos pela AIDS que não eram reclamados por nenhum parente, eram
levados para a ilha e enterrados sem cerimônia em uma grande vala, isso após um período de
quarentena, devido ao crescente medo da doença na época. A ilha Hart foi o local de destino
desses corpos, sendo alguns deles corpos de crianças aidéticas.
TRABALHE
Em Pose, a luta pela vida, a dignidade, o acesso ao trabalho rondam por toda história. E
esse lutar trazendo aqui para os trópicos, a pesquisadora Dodi Leal vai dizer que se dará pelo
Hackeamento do gênero e as fabulações travestis do fim (LEAL, 2021). É através deste fim,
que podemos pensar que o "fim de mundo” refere-se, antes, ao fim de um mundo: o mundo da
branquitude, o mundo da cisgeneridade, o mundo adultocêntrico, o mundo capacitista, etc.” (
LEAL, 2021,p.5)
Encontramos na produção, a história da Candy que ao fundar a casa Ferocity com sua
amiga Lulu, suas despesas aumentam e a personagem passa a fazer programas para ganhar mais
dinheiro, mas infelizmente durante um dos programas Candy é assassinada, nesse momento a
série não só mostra a forma que muitas tinham de conseguir dinheiro, mas também a frequente
violência contra esses corpos, que ainda hoje se faz presente nas estatísticas. Ainda no primeiro
semestre de 2021, de acordo com o boletim feito pela Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA), o Brasil tem “89 pessoas trans mortas no 1º semestre em 2021. Sendo
80 assassinatos, 9 suicídios. Houveram ainda 33 tentativas de assassinatos e violações de direitos
humanos” (BENEVIDES; NOGUEIRA, 2021, p. 1)
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"O fundo do poço somos nós. Tudo aqui vai morro abaixo passando pelas mulheres, os
negros, latinos, os gays, até que chega no fundo e toca na gente". A personagem Lulu traz esse
discurso bastante forte e retoma a ideia de não visualização de possibilidade de vida. Se o poço
são suas vidas, os processos para neutralização de suas existências operam e uns dos primeiros
mecanismos é a patologização. No que fica bem nítido neste trecho "Papi, eu sou transexual, eu
não devia trabalhar nenhum dia, quando mais um ano como modelo. Nós não somos nada
além de loucos. A gente tem que viver em algum gueto e servir de chacota para o mundo".
Diante disso, as relações de trabalhos para pessoas LGBTQIA+ retratadas na Série
apresenta os lugares destinados a esses corpos para a obtenção de dinheiro, que são, o píer e as
boates, tendo em vista que muitos eram expulsos de casa depois de se assumirem
homossexuais e devido ao fato de transgredirem um ideal estabelecido, não eram contratados.
A personagem Angel que sonhava em ser modelo tenta candidatar-se para uma vaga de
emprego em uma loja, mas a chance de concorrer à vaga lhe é negada, por ser uma
transgressora da norma imposta pela sociedade.
“A heterossexualização do desejo requer e institui a produção de
oposições discriminadas e assimétricas entre “feminino” e “masculino”,
em que esses são compreendidos como atributos expressivos de
“macho” e de “femea”. A matriz cultural por intermédio da qual a
identidade de gênero se torna inteligível exige que certos tipos de
“identidade” não possam “existir” – isto é, aquelas em que o gênero
não decorre do sexo e aquelas em que as praticas do desejo não
“decorrem” nem do “sexo” nem do “gênero”. (BUTLER, 2003,p.39)
A personagem Blanca também sofre com a opressão e o desrespeito, ao trabalhar em
um salão de unhas, a cena em que Blanca se demite possui uma fala que retrata a relação de
trabalho para pessoas Transexuais não apenas na década de 80, mas também nos dias atuais, ao
se demitir após uma discussão com a dona do salão, Blanca escuta da mesma a seguinte frase
“Devia beijar meus pés por te contratar. Ninguém mais vai. você verá. Senhoras gostam de ter
suas unhas feitas por senhoras”. Essa fala representa o preconceito de um passado e de um
presente, pois ainda hoje pessoas Transexuais sofrem com o preconceito e na maioria das vezes
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
não são contratadas por subverterem os padrões de gênero, e encontram como alternativa a
prostituição como a Angel.
“De acordo com dados levantados pela ANTRA, 90% da população de
Travestis e Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda, e
possibilidade de subsistência, devido à dificuldade de inserção no
mercado formal de trabalho e a deficiência na qualificação profissional
causada pela exclusão social, familiar e escolar.” (BENEVIDES,
2017,p.18)
Blanca também tenta construir seu próprio salão, mas o sonho dura pouco, pois a
locatária descobre que Blanca é uma mulher Transexual, e devido a isso, Frederica,
proprietária do local tenta sabotar o salão, fazendo ameaças, fechando o local com um cadeado
o que acarreta uma briga na justiça na qual a Blanca vence, mas que não impede Frederica de
incendiar o lugar, Frederica faz uso de diversos artifícios por não querer, manter um contrato
com uma pessoa trans.
POSE
A cultura Ballrom começa a ser fomentada na década de 1960, mas a consolidação e
despontamento da cultura dos bailes só ocorre na década de 1970 com a criação das chamadas
“houses”, sendo a casa Labeija a primeira a ser fundada. A cultura Ballroom que é apresentada
em pose, é herdeira dos bailes voltados para drag queens, frequentados por diversos
seguimentos da sociedade em sua maioria LGBTQIA+, inicialmente ocorriam apenas
performances das drags, mas logo depois esses eventos começaram a promover uma
competição a partir de categorias. Entretanto, a maior parte da população que frequentava esses
bailes era branca, e apesar de haver a participação de indivíduos de diversas classes e contextos,
pessoas negras não possuíam destaque nesses bailes. “[...] os participantes negros que
quisessem uma chance real de ganhar em alguma das categorias, deveriam “branquear” sua
aparência
e,
mesmo
assim,
raramente
conseguiam
(SANTOS,2018,p.16).
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levar
o
prêmio
da
noite”
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Diante desse cenário, na década de 1960 a cultura dos Ballrooms começa a ser
constituída, os indivíduos que não eram contemplados nesses bailes buscaram criar um novo
evento organizado e criado para as pessoas que não se encaixavam nos padrões dos bailes
drags, e dessa maneira se inicia o processo de formação da cultura ballroom. A criação desses
bailes proporcionou a integração e a liberdade que esses grupos almejavam para desenvolver
suas praticas, as categorias e a forma na qual o baile seria organizado. O espaço proporcionado
pelos bailes fornecia um ambiente de segurança e liberdade, onde os grupos que eram
marginalizados nos demais setores da sociedade podiam ocupar um espaço, ter liberdade,
respeito e apoio. O cenário dos bailes não era apenas o cenário de um evento, mas também de
uma comunidade, um ambiente para viver uma fantasia, de sentir-se prestigiado e importante.
Os bailes são mais ou menos como nossa fantasia de ser famosos. Sabe,
como os oscars, algo assim, ou estar numa turnê como modelo. Sabe,
esses garotos que estão nos bailes eles não tem nada. Alguns nem tem o
que comer. Vem para os bailes com fome. E dormem na rua, ou no
píer, não sei. Eles não tem uma casa[...] Eles saem vão roubar algo, se
vestir, e vêm ao baile por uma noite e vivem a fantasia. (transcrição da
entrevista de Pepper Labeija presente no documentário Paris is
Burning de Livingston, 1991)
Os bailes representavam também um espaço de competição, onde havia diversas
categorias que os frequentadores participavam, e o competidor com a maior nota e
performance recebia um troféu, o que contribuía para a construção da imagem daqueles que
estavam sempre em destaque nos bailes e nas disputas durante a anunciação das categorias. Nos
episódios de Pose o cenário dos bailes é bastante explorado, inclusive os conflitos que
aconteciam quando um dos competidores não aceitava a nota fornecida pelos jurados também
são retratados. Dentre as numerosas categorias existentes nos bailes para que os frequentadores
pudessem competir, havia também as categorias de voguing, um estilo de dança que teve sua
origem na prática de insultar ou diminuir um rival, a partir de gestos sutis.
A dança é frequentemente retratada na série, os personagens Rick e Damon, possuem
destaque no cenário da dança, e devido ao sucesso da música Vogue interpretada por
Madonna, Damon ministra aulas para aqueles que querem aprender o voguing. Na série, o
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sucesso da música significa para o público que frequenta os bailes um momento de ascensão da
cultura dos bailes e um espaço a ser ocupado por eles. Durante a década de 1990 a música da
Madonna juntamente com o documentário Paris is burning dirigido por Jennie Livingston
forneceu visibilidade aos bailes, além de gerar oportunidades para alguns frequentadores, como
Willi Ninja um dos entrevistados do documentário, que chegou a participar de clipes musicais,
além de criar coreografias e participar na produção de shows, contudo, após esse período de
visibilidade, esses grupos voltaram para a margem da sociedade.
Voguing, da maneira como ficou conhecido, incorporou à essa atitude
de um jogo de uma ofensa corporal através da imitação das poses das
modelos presentes na revista Vogue, a estética dos movimentos do
kung-fu, assim como a inspiração nas poses precisas e angulares dos
hieróglifos egípcios. (SANTOS,2018,p.22).
Em POSE, é demonstrado que é através dos bailes que elas podem se reunir,
confraternizar a vida e ali também é lugar de luta pelos seus direitos. A constituição de uma
família se apresenta. As casas formam essas famílias, advindas principalmente pela rejeição da
família consanguínea, na fase da adolescência. Temos que pela Associação Nacional de Trans e
Travestis ( ANTRA), no Brasil a idade que esse abandono acontece é em média, aos 13 anos.
Na série, as casas são os lares desses meninos e meninas. A partir da entrada em alguma das
casas que frequentam os bailes, são discutidos questões que são muito caras à causa
LGBTQIA+: o HIV e AIDS é perpassado por toda a série, abordando sistematicamente os
processos de morte, mas também da luta anti-aids, do amor, da aceitação, a luta contra o
preconceito e principalmente a importância da coletividade. Keyla Simpson já disse, "A nossa
vingança será envelhecer” (KEYLA SIMPSON, 2021).
O USO DE POSE NA SALA DE AULA
Contos, lendas, filmes de ficção ou documentários televisivos, poemas,
musicas, artigos de jornal ou revistas, leis, cartas, romances são
documentos produzidos para o público bastante amplo, que por
intermédio do professor e seu método se transforma em material
didático.(BITTENCOUT, 2008, p.297)
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O audiovisual não é uma ferramenta incomum nas salas de aula, e mesmo que a produção
a ser utilizada não seja produzida para fins didáticos, é possível utilizá-la em sala. E diante do
que foi abordado neste artigo sobre a série Pose, porque não levar essa discussão para a sala de
aula? Tendo em mente que é um assunto que precisa ser discutido com os/as alunos(as),
inserido na sala de aula em forma de debate para que assim consigamos realizar pequenos
feitos, desconstruir ideias retrógradas e preconceituosas que representam a legitimação dos
diversos tipos de violências praticados contra pessoas LGBTQIA+. É preciso ter em mente que
o silêncio e a omissão desses debates contribuem para a fomentação da ignorância e
propagação de ideários violentos. Cenas da produção podem ser levadas para a sala de aula e
contextualizadas, o docente pode fazer paralelos entre o período retratado na série e o
presente, questionando os discentes sobre as discrepâncias entre um período e outro,
estabelecendo um diálogo urgente e necessário.
A escola pode e deve ser esse local de encontro para discussão de assuntos tão
importantes. Como bem diz Berenice Bento, é preciso estranhar o currículo. Há uma forma de
produção da escola que gera desigualdades e exclui aqueles(as) que escapam à norma.
Portanto, POSE é uma ferramenta para o ensino de História, extraindo pontos de extrema
relevância, pois muitos professores "não sabem" como tratar em sala sobre as transgeneridades,
configurando o quanto precisamos trazer materiais que versem sobre a temática e mostram que
essas vidas importam e são dignas de estar em qualquer lugar que desejarem.
A ideia é pôr em questão o conhecimento (e o currículo),pôr em
questão o que é conhecido e as formas como chegamos a conhecer
determinadas coisas e a não conhecer (ou desconhecer) outras (...) à
ideia de que há limites para o conhecimento: nessa perspectiva, parece
importante indagar o que ou quanto um dado grupo suporta conhecer.
( LOURO, 2004,p.65)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A série faz o recorte de um período e denuncia para os seus telespectadores questões
que infelizmente não estão encerradas ou distantes de nós, o preconceito, a falta de políticas de
proteção e de valorização a vida das pessoas LGBTQIA+ fazem parte do nosso presente.
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Discutir essas temáticas é fundamental para a construção de uma sociedade livre de
preconceitos e violências, levantar essas pautas significa também um grito de guerra contra um
sistema que oprime e segrega. Diante disso, a produção carrega um significado muito
importante, discussões que merecem ser levadas para os grupos de estudo, rodas de conversas
e também para a sala de aula, debates que poderiam ser acompanhados por cenas da série e
dos dados coletados na contemporaneidade, a Associação Nacional de Trans e Travestis
(ANTRA) e ao Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), são duas instituições que têm
bastante importância à causa trans fornecendo um mapeamento das ações feitas com a
organização de estudos que lutam em prol dos direitos da população Trans. São muitos os
enfrentamos que esses órgãos e outros se lançam todos os dias, tentando romper as barreiras
colônias e fazer desse movimento um futuro diferente.
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Os tabus da sexualidade feminina e a apreensão social do gênero
Ingryd Damásio Ribeiro Tófani578
Resumo: Apesar de as mulheres estarem conseguindo uma maior autonomia e independência
nos dias de hoje, nem sempre as coisas foram assim e por muito tempo as mulheres foram
ensinadas a oprimirem seus sentimentos, suas vontades e seus desejos. Nesse sentido, a
pesquisa tem como tem como objetivo refletir sobre a história da sexualidade feminina no
Brasil, compreendendo suas transformações e evoluções sociais e culturais. Como resultados
pode-se evidenciar que a sexualidade feminina segue padrões próprios de determinadas épocas,
onde, na maioria das vezes, as mulheres se veem obrigadas a adotarem posturas submissas e de
castidade. Além disso, apesar dos ideais de igualdade entre os sexos vigentes na sociedade do
século XXI, a sexualidade feminina ainda é reprimida e permeada por mitos e tabus. Assim,
faz-se necessário trazer cada vez mais essa temática para os espaços de debate como uma forma
de proporcionar um conhecimento maior dessas questões na busca pelo rompimento de
padrões e conceitos errôneos.
Palavras-chave: Gênero; Sexualidade feminina; Tabu.
Introdução
A sexualidade feminina foi por muito tempo entendida como inexistente, por se
atribuírem a elas unicamente a função reprodutora. Sendo o sexo ainda permeado de muitos
tabus, as mulheres ainda se sentem restringidas com relação à exploração e a valorização dos
seus desejos. Contudo, essa temática vem conquistando espaço na sociedade contemporânea
como algo que deve ser exposto e dialogado, propiciando o conhecimento das questões que
envolvem a sexualidade feminina, a busca pelo rompimento dos padrões e dos conceitos
errôneos.
Através da pesquisa bibliográfica e documental busca-se compreender a história da
sexualidade feminina no Brasil e as influências exercidas pelo contexto cultural, social e
familiar. Assim, espera-se que o presente estudo contribua para a remoção da posição de
578
Advogada e Mestranda pelo Programa de Pós Graduação em História Social da Universidade Estadual de
Montes Claros- Unimontes.
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obscuridade ocupada pela mulher que ainda se mantém presente na sociedade mesmo com
tantos avanços já conquistados.
Construção histórica da sexualidade feminina no Brasil
Ao se falar em sexualidade, faz-se necessário realizar um resgate histórico de sua
evolução visto que, as relações sexuais são construídas socialmente ao longo da história e
envolvem diversos valores, modelos e estruturas. Família, igreja, escola e instituições médicas
apresentam-se como instituições importantes nesse processo. Para Louro (2008),
[...] a construção dos gêneros e das sexualidades dá-se através de
inúmeras aprendizagens e práticas, insinua-se nas mais distintas
situações, é empreendida de modo explícito ou dissimulado por um
conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais.
No Brasil, a sexualidade feminina passou por várias transformações até se achegar ao
modelo atual. Até o século XIX, com a normatização pelos padrões cristãos, o sexo somente
podia ser praticado no contexto do casamento, cuja finalidade era unicamente a reprodução. As
mulheres saudáveis eram aquelas que não tinham desejos sexuais e esperava-se delas o não
prazer (ZICAN,2005). Com base nos padrões morais, éticos e comportamentais desde
pequenas as mulheres eram ensinadas a viver em família, a cuidar dos filhos e a zelar pelo seu
lar.
De acordo com Del Prior (2004) a Igreja exercia grande controle sobre a sexualidade
feminina para que assim elas não caíssem em tentação como aconteceu com Eva no jardim do
Éden. A autora expõe ainda que a mulher se tornava apta para o casamento a partir do
momento em que seus desejos estivessem domados: “Finalmente, com prazer ou sem prazer,
com paixão ou sem paixão, a menina tornava-se mãe, e mãe honrada, criada na casa dos pais,
casada na igreja. Na visão da sociedade misógina, a maternidade teria de ser o ápice da vida da
mulher” (DEL PRIORE, 2004, p. 43).
Fomentava-se na mulher a ideia de submissão e de um não poder sobre o próprio
corpo. As mulheres que não se encaixavam nas normas da igreja não eram tidas como honestas
e, logo, não eram para casar. Para Morga e Lage (2015, p.164):
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[...] O mundo feminino passa pela história da humanidade como um
lugar a ser vigiado e punido. Condenada ao degredo de pecados
silenciosos, contidas confissões de corações entristecidos e olhares
melancólicos, a mulher se vê entre o labirinto do pudor e os prazeres
que lhe são negados. Filhas do medo, mães do silêncio, esposas do
recato, mulheres do mundo feérico.
Uma grande mudança nesse contexto ocorreu a partir da entrada da mulher no
mercado de trabalho. Com as duas grandes guerras mundiais, a mulher começa a sair de casa
para trabalhar nas indústrias visto que, nesse período, os homens estavam lutando nas guerras e
muitas mulheres ficaram viúvas, sendo a busca pelo espaço no mercado de trabalho a única
maneira de obter o sustento de casa. A partir de então as mulheres começaram a adquirir
independência e autonomia, fato este que ocasionou mudanças nos papeis sociais para homens
e mulheres.
Na década de 1960, a pílula anticoncepcional representou outro grande avanço para as
mulheres. Com a sua chegada “ela passa a separar sexo produtivo do sexo prazeroso” (ZICAN,
2005, p. 8). Isso permitiu com que as mulheres controlassem a questão da natalidade e também
deixassem de ser vistas somente como reprodutoras, passando a separar a reprodução do
prazer (PEDRO, 2003, p. 248). A entrada da mulher no mercado de trabalho proporcionou
que elas tivessem maior compreensão quanto aos seus direitos e fez com que buscassem a
liberdade e o prazer sexual almejado, tendo clareza de que a sexualidade não se baseia apenas
na reprodução (ARAN, 2003).
Apesar da mulher estar conquistando cada vez mais espaço na sociedade e vivendo com
uma maior liberdade, muitas delas ainda convivem com a repressão de sua sexualidade e de
seus desejos, haja vista que desde pequenas elas são educadas para não conhecer e nem olhar
seu corpo. Nota-se que a sexualidade feminina ainda é permeada de tabus, estritamente
relacionados à ambiguidade entre sagrado e profano.
Entre mitos e tabus
Os temas considerados tabu encontram-se vinculados a questões variáveis entre os
grupos e inevitavelmente se relacionam com as representações sociais de um determinado
povo. Compreender o tabu de determinada cultura resulta na observância dos seus
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comportamentos ideológicos. Vilaça (2009) exemplifica essa questão através dos conceitos de
“decente” e “indecente” que são socialmente aprendidos.
Em diversas culturas o tabu é tido como objeto de temor e proibição, geralmente
associados à ideia de sujeira, poluição e mácula. Sob essa ótica, Frazer (1982) ressalta o tabu
existente no que diz respeito à menstruação. Para a menina, a primeira menstruação representa
um acontecimento marcante. Significa que ela adquiriu sua maturidade biológica, já sendo
mulher e capacitada fisicamente para o amor e para a maternidade. Sobre a primeira
menstruação, Salzedas (2001) diz que:
Entre os primitivos, a primeira menstruação está rodeada de tabus e
cerimônias que culminam num grande festival, durante o qual a menina
é aceita na sociedade das mulheres adultas como uma delas. Com a
aquisição da capacidade reprodutiva do púbere, uma retomada dos
conflitos envolvendo a vivência da sexualidade ronda o adolescente, até
que, superando esta fase, possa vir a ser um adulto que experiência de
forma madura e, possivelmente, prazerosa, sua própria sexualidade.
Assim como a menstruação, a questão da virgindade é outro acontecimento rodeado de
inúmeros tabus. A autora complementa que nas sociedades antigas a defloração ocorria em
meio de uma festa, com o consentimento de toda tribo. Destaca-se ainda que algumas partes do
corpo também são compreendidos como tabu, as quais devem ser escondidas e até evitadas de
serem pronunciadas.
Para as mulheres, a virgindade ainda é considerada como uma entrega; já para os
homens, a primeira relação sexual é um ganho (GIDDENS, 1993, P.61). Elas associam a
primeira relação sexual a um relacionamento; eles, a mais uma experiência social (MARQUES,
2007, p.7). Nota-se com isso que cada pessoa vivencia sua primeira relação sexual de uma
forma diferente.
A maternidade e a infertilidade também são tabus que permeiam a sexualidade
feminia.Quando se pensa em “ser mulher”, logo se pensa na vivência da maternidade. De
acordo com os ensinamentos de Villela (1998, p. 66):
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A construção da feminilidade como maternagem e maternidade, e a
sua associação a comportamentos dóceis e assexuados começou a se
delinear no século XVIII como subproduto significativo do discurso
médico e tomou forma, em especial no século XIX, quando, em
função das altas taxas de mortalidade infantil, era importante que as
mulheres tivessem muitos filhos e pudessem se dedicar exclusivamente
a elas.
Por outro lado, “a infertilidade, historicamente, sempre veio acompanhada de atitudes
de depreciação, acusação e repúdio, principalmente à mulher” (SALZEDA,2001, p.24). A
autora diz ainda que ao longo da história a esterilidade da mulher sempre foi mais falada que a
do homem, sempre se atribuindo a primeira a responsabilidade da fecundidade e a culpa da
infertilidade a ponto de, em algumas culturas, tornar-se legítimo o repúdio do marido a mulher
que não conseguisse ter filhos.
Nota-se que não é somente o corpo da mulher e seus aspectos sexuais que geram tabus,
mas tudo aquilo que representa poder. Ainda persistem as tentativas de reinventarem os
imaginários cristalizados nos homens e mulheres no tocante às noções de masculino e de
feminino. Persistem as expectativas das sociedades e das culturas no ajustamento cotidiano das
pessoas à padronização de comportamentos, em face de que esses modelos são culturais e
históricos coabitam com novas organizações familiares e com relações conjugais mais livres.
A aprendizagem social do ser homem e do ser mulher
A família apresenta-se como um instrumento importante para a formação do ser
humano. É nela que os indivíduos encontram os subsídios afetivos e materiais necessários para
seu desenvolvimento. É nesse espaço que se absorvem os valores éticos e humanitários
decisivos para a formação da educação formal e informal. Ainda, é na família que, segundo
D’Ávila (s/a, p.4) constroem-se “as marcas entre as gerações e a transferência de valores
culturais, bem como o aprendizado do ‘ser mulher’ e do ‘ser homem’”.
A formulação do papel de cada indivíduo é concebida por Negreiros e Carneiro (2004,
p. 34) como “um conjunto de prescrições e proscrições para determinada inserção no meio
social”. Nesse sentido, os papeis masculino e feminino englobariam restrições, aprovações e
proibições aprendidas e transmitidas ao longo das gerações. Mcdougall (1997, p.35) afirma que
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a determinação do que é “feminino” é “masculino” mudam tanto entre as culturas, quanto
entre as épocas.
As relações sociais são atravessadas por diferentes discursos, símbolos, práticas, imagens
e representações, onde as pessoas vivem como masculinos e femininos, movimentando os
lugares sociais e as formas de ser e estar no mundo. As identidades de gênero movem outros
modos de ser homem e de ser mulher na sociedade atual. Desde o nascimento, vivencia-se
experiências determinadas pelo fato de ser menino ou menina: a boneca à menina, o carrinho
ao menino. Para as meninas, o rosa, a maternidade, a beleza e as tarefas domésticas; para os
meninos, o azul, o trabalho fora de casa na intenção de sustentar a futura família
(BRUSCHINI, 1990, p. 57-61).
Sobre a educação das crianças, destaca-se o tratamento diferençado dispensado quanto
à formação dos filhos e das filhas. Quanto aos meninos, geralmente os pais comentam
orgulhosos com os amigos e familiares sobre tamanho do pênis do filho, ou lhes ensinam
palavras eróticas desde cedo e profetizam a sua virilidade e sucesso sexual. Por outro lado, em
relação ao corpo da menina, sempre é recomendado discrição e o constante olhar vigilante dos
pais. A aprendizagem dos papeis sociais é, na realidade, a aprendizagem do conjunto de rituais
que cada sociedade criou (D’ ÁVILA, s/a, p.5). Quando se pensa em “ser mulher, logo vem à
mente a vivência materna. Conforme os ensinamentos de Villela (1998, p. 66)
A construção da feminilidade como maternagem e maternidade, e a
sua associação a comportamentos dóceis e assexuados começou a se
delinear no século XVIII como subproduto significativo do discurso
medico e tomou forma, em especial no século XIX, quando, em
função das altas taxas de mortalidade infantil, era importante que as
mulheres tivessem muitos filhos e pudessem se dedicar exclusivamente
a eles.
A definição do que é “ser homem” e do que é “ser mulher” estará relacionado com as
interpretações associadas a cada momento cultural de vida. Boris (2002) fazendo referência à
Simone de Beauvoir em sua frase “não se nasce mulher, torna-se mulher” salienta que o
mesmo pode ser aplicado ao homem “o homem não nasce homem, torna-se homem”, ou seja,
assim como a feminilidade, a masculinidade também poderia ser ensinada e construída.
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Conclusão
É perceptível que sexualidade feminina passou por transformações que proporcionaram
a sua liberdade sexual. Observa-se que o papel da mulher no processo histórico, bem como a
forma de tratamento da sua sexualidade, nem sempre foram marcados pela passividade.
Devido aos avanços e mudanças sociais ocorridas nos últimos anos, ao se rever a ideia de
família patriarcal, obtém-se uma nova interpretação dos modelos de família e do papel social da
mulher. O comportamento feminino não mais é marcado pelo estereótipo dócil e submisso. O
poder que antes era exercido pelos pais e pela igreja na vida dessas mulheres passa a ser
questionado e resistido. Ao concordar que as diferenças entre mulheres e homens são
discursos construídos - e não apenas determinados pela biologia-, transfere-se o foco de atenção
de uma mulher submissa para uma relação de poder em que as diferenças e desigualdades são
apenas produzidas, vividas e legitimadas.
Para que as relações sociais sejam construídas de forma mais igualitária entre homens e
mulheres, é imprescindível compreender que masculino e feminino se misturam e se cruzam o
tempo todo. Não é mais possível sustentar uma dicotomia rígida e imutável entre os dois
gêneros. Não existe um modelo de mulher e nem um modelo de homem, apenas várias
mulheres e vários homens. Já é possível vislumbrar pequenas mudanças nas relações entre os
gêneros. O azul e o rosa ficam em segundo plano e novas cores ganham destaque. As roupas e
brinquedos tomaram novas formas e nos filmes já se é possível encontrar meninas heroínas e
meninos interessados em arte ou atividades que antes eram tipicamente femininas.
Mostra-se necessário que as mulheres gozem do pleno desenvolvimento de suas
vontades, comportamentos sexuais e desejos e que, sobretudo, os tabus impostos culturalmente
não as persuadam e as impeçam de conhecer seu corpo e refletir a sua identidade sexual. Ainda
tem-se um longo caminho pela frente para que a sexualidade feminina seja expressa de forma
natural, pois infelizmente ainda tem-se uma sociedade baseada num conceito de superioridade
masculina, cujas raízes de violência e repressão feminina ainda se fazem presentes.
Referências
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Annablume; Fortaleza: Secult, 2002.
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A representação da domina no afresco da Vila dos Mistérios, Pompeia (século I
EC)
Irlan de Sousa Cotrim
579
RESUMO: Examinamos uma série de pinturas parietais que adornavam as paredes do oecus
da domus Vila dos Mistérios em Pompeia, datada do século I da Era Comum, a partir da
perspectiva dos estudos interseccionais e culturais. Abordamos as possíveis relações entre a
funcionalidade do espaço e sua decoração associadas às possíveis aspirações dos domini,
mediante o exame do conteúdo da documentação escrita. Analisamos a pintura mural no oecus
da Vila dos Mistérios levando em consideração a espacialidade, a função do cômodo e as
informações da historiografia mais recente. Inferimos que sendo o oecus um ambiente de
socialização, em que os domini poderiam oferecer banquetes a convidados oriundos da
aristocracia, a pintura de temática báquica/dionisíaca estava de acordo com o caráter da domina
– proprietária de uma vinícola – e que, além disso, buscou ser representada como uma devota
piedosa. Utilizamos os conceitos de representação de Roger Chartier e interseccionalidade nos
estudos da Antiguidade romana.
PALAVRAS-CHAVE: Pompeia. Vila dos Mistérios. História das mulheres.
A descoberta do sítio arqueológico de Pompeia data do século XVIII. Diferentemente
de outras cidades antigas como Tróia, Pompeia não foi apagada, mas preservada sob as nuvens
piroclásticas que castigaram a cidade em 79 EC. Casas, estradas, comércios e restos mortais
foram alguns dos legados deixados pela tragédia causada pela erupção do vulcão Vesúvio .
580
Desaparecida durante muito tempo e só reencontrada em fins do século XVI, a região foi um
dos primeiros sítios arqueológicos no mundo. Entre os séculos XVIII a XX, as descobertas de
cultura material na região provocaram duzentos e cinquenta anos de interferências no sítio,
nem sempre bem fundamentadas. Durante esse tempo foram as agendas políticas que ditaram
qual seria o tratamento adequado aos objetos e pinturas encontrados por arqueólogos que,
paulatinamente, descobriam formas outras de exploração do sítio cada vez menos predatórias.
579
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Espírito
Santo (PPGHIS/UFES), sob a orientação da Profa. Dra. Leni Ribeiro Leite. Bolsista Capes. E-mail:
irlancotrim@gmail.com
580
Abordamos a temática dos tesouros arqueológicos de Pompeia concernentes à sexualidade e à religiosidade
da antiga cidade em outro trabalho. Cf. Cotrim (2018, p. 45-68).
643
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Toda descoberta e preservação da antiga cidade foram diretamente proporcionais aos discursos
e concepções morais e estéticos de sua época (HARRIS, 2007, p. 2; SANFELICE, 2016, p.
38).
A pintura que nos interessa está situada no oecus ou triclinium da domus Vila dos
Mistérios, uma das residências preservadas. Podemos conceituar domus como uma residência
particular ocupada por seus proprietários e sua família . Era o tipo de moradia das linhagens
581
mais ricas e de prestígio da Roma Antiga. A arquitetura era toda funcional, ou seja, todos os
cômodos possuíam sua função. Dentro dessas residências existiam espaços destinados ao
aconchego privado e espaços para as visitações e encontros comerciais, protocolares ou
amistosos. Podemos citar alguns dos espaços da domus romana, dividida entre áreas de
circulação e áreas de representação . Por áreas de circulação entendemos os espaços de ligação
582
entre os cômodos da domus, enquanto áreas de representação são os destinados à recepção e
encontros casuais e/ou protocolares. Dentre as áreas de circulação temos o atrium e o
peristylium, e dentre as áreas de representação temos o tablinium, o oecus/triclinium, a exedra
e o balneum (MAGALHÃES, 2013, p. 60).
A residência no Mundo Antigo era habitada por sujeitos distintos e não havia a
separação clara entre o local de trabalho e aquele destinado à moradia, pois o público e o
privado se imiscuíam. Temos documentações do século I AEC que atestam a importância da
relação entre a posição social do indivíduo e sua residência. Por exemplo, Vitrúvio (80-15
AEC) no Tratado sobre Arquitetura , afirma:
583
581
O conceito de família na Antiguidade romana abrangia desde os membros consanguíneos até as propriedades
do pater famílias como os escravizados. Dessa forma, a domus era ocupada também pelos lacaios dos
proprietários, servos e escravizados (SANFELICE, 2016, p. 162). O oecus ou triclinium era o espaço residencial
no qual os proprietários faziam suas refeições diárias e recebiam convidados em ocasiões solenes para o desfrute
de banquetes que poderiam durar o dia inteiro (COTRIM, 2018, p. 29). Para um estudo sistemático sobre o
convivium no Império Romano da Antiguidade Tardia cf. Andrade (2018, p. 125-134).
582
Seguimos as contribuições de Chartier sobre as representações e as práticas. Chartier determina que as
representações, produzidas individualmente ou em grupo, não podem ser observadas pelo pesquisador de forma
desencarnada de seu contexto de produção. As condições de produção, incluindo seu contexto histórico e social,
permitem ao pesquisador compreender as idiossincrasias presentes nos documentos. Por meio das práticas e das
representações, que são conceitos que se coadunam, podemos compreender as diversas maquinações ou
construções estabelecidas pelas sociedades sobre os seus respectivos mundos sociais (CHARTIER, 1991, p.
184).
583
Vitrúvio delineia as características inerentes da arquitetura nessa obra. A ordenação (ordenatio/taxis) –
ordenação, ato de pôr em ordem; a disposição (dispositio/diathesis), disposição, apresentação, representação; a
euritmia (eurytmia), proporção, harmonia; a comensurabilidade, configuração, correlação, sistema de medidas;
decoro (decor), decoro, conveniência, o que fica bem, o que convém; e, a distribuição (oeconomia), distribuição,
repartição, divisão (De Architec. 1.2.1).
644
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[...] Pois parece que residências urbanas deverão ser construídas de um modo, e
aquelas às quais afluem os frutos das propriedades rurais, de outro; e o mesmo se dirá
para as casas dos usuários, diferentes das dos opulentos e dos delicados; todavia, para
os poderosos, de cujos pensamentos a coisa pública se governa, serão planejadas
conforme essa finalidade; e, em geral, as disposições dos edifícios deverão ser
adequadas a cada tipo de pessoa (Vitr. De Architec. 1.2.9) grifos nossos.
584
Nessa passagem Vitrúvio demonstra que as construções deveriam representar o estatuto
social dos proprietários . O fato de serem funcionais evidencia que o edifício deveria se
585
moldar ao caráter do dono conforme a posição que ele ocupava na sociedade. Os cômodos da
domus deveriam se adequar à sua função de modo que os objetos, a iluminação solar, a
posição geográfica em que se assentavam as fundações da construção buscassem corresponder
às necessidades e o status social do dono (BEARD, 2016, p. 146; WALLACE-HADRILL,
586
1994, p. 5).
Dada essa discussão, concordamos com Wallace-Hadrill no tocante à adequação da
construção à vida dos proprietários, pois no Mundo Antigo a divisão público/privado não
possuía o mesmo valor da atualidade. Numa carta a Marco Fábio Galo, Cícero (106-43 AEC)
reclamava das compras de objetos para sua residência . O conteúdo da crítica é emblemático:
587
[…] Em primeiro lugar, eu nunca deveria ter pensado que as próprias Musas valem
todo esse dinheiro, e todas as Musas teriam concordado. Ainda assim, elas seriam
adequadas para uma biblioteca e se harmonizariam com minhas atividades literárias.
Mas quanto às bacantes, onde há espaço para elas na minha casa? Ah, mas você dirá
que são lindas figuras pequenas. Eu as conheço perfeitamente e muitas vezes as vi. Se
eu as tivesse desejado, encarregaria você especificamente para comprar estátuas que
me eram conhecidas. Pois muitas vezes compro o tipo de figuras que adornariam um
584
Tradução de Justino Maciel (2007). Namque aliter urbanas domos oportere constitui videtur, aliter quibus ex
possessionibus rusticis influunt fructus; non idem feneratoribus, aliter beatis et delicatis; potentibus vero,
quorum cogitationibus respublica gubernatur, ad usum eonlocabuntur; et omnino faciendae sunt aptae omnibus
personis aedificiorurh distributiones.
585
Não pretendemos utilizar tal excerto como espelho fiel das construções antigas. O que buscamos é a
prerrogativa da adequação da construção às demandas dos donos, ao seu estilo de vida, a sua posição social.
586
De fato, Vitrúvio aponta que o decoro (decor) também se exprime de acordo com o costume. A construção de
entradas elegantes para edifícios deveria também conter interiores com decoração luxuosa (Vitr. De Archic.
1.2.6); bem como a construção deveria corresponder a um bom aproveitamento das condições naturais em que o
edifício será erigido (Vitr. De Archtec. 1.2.7).
587
Na ocasião Marco Fábio Galo, que estava na condição de agente de Cícero, comprou um conjunto de estátuas
de bacantes em mármore – considerado na Antiguidade como símbolos do descontrole e do estado selvagem.
Cícero na carta apesar de considerar o objeto belo escreveu ao amigo que era inadequado para sua biblioteca
pessoal (BEARD, 2016, p. 146; COTRIM, 2018, p. 27).
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lugar na minha palestra e a fazem parecer com um ginásio. Mas uma estátua de
Marte! O que eu, defensor da paz, quero com isso? Fico contente por não haver uma
de Saturno, pois devo suspeitar que essas duas estátuas tenham me causado dívidas.
Preferiria que houvesse algum tipo de estátua de Mercúrio. [...] Construí novas salas
de leitura em uma colunata na minha vila tusculana e gostaria de decorá-las com
figuras; de fato, se algo desse tipo me dá algum prazer, é a pintura. [...] (Cic. Fam.
7.23) .
588
A partir desse excerto da carta ciceroniana podemos perceber certo cuidado de Cícero
na escolha das estátuas que comporiam a sua biblioteca, local cuja finalidade é a leitura e
reflexão, e do qual as representações de Musas, mesmo sendo caras, poderiam fazer parte.
Cícero, porém, questiona Galo sobre qual espaço de sua residência seria apropriado para as
miniaturas das bacantes. Isso nos evidencia que a decoração não era algo fortuito ou mero
capricho de seus habitantes, mas deveria fazer parte da ornamentação do ambiente bem como
funcionar como retrato de seu dono. Dessa forma, concordamos com Beard quando afirma
que as escolhas decorativas dos proprietários das casas pompeianas tinham a característica de
relacionar o estilo e a função do ambiente, conforme o interesse do proprietário de apresentar
determinada imagem de si (BEARD, 2016, p. 146).
Ao analisar o caso da pintura mural da Vila dos Mistérios, porém, essa autora aponta
duas questões. Dada a íntima relação entre funcionalidade/estilo e o caráter do proprietário do
imóvel, é possível traçar os motivos lógicos por detrás das escolhas decorativas nas casas de
Pompeia? Além disso, seria possível também explicar os motivos da escolha de uma
determinada figuração para decorar um cômodo da domus em específico? (BEARD, 2016, p.
147). Buscaremos as possíveis respostas a esses questionamentos.
A mais remota datação das fundações da domus Vila dos Mistérios corresponde a sua
parte estrutural, que remonta ao século II AEC. A partir da década de 80 AEC a construção é
modernizada após o domínio romano da região, o que lhe forneceu as feições de uma típica
vila abastada romana. A maioria dos afrescos dessa domus pertence ao segundo estilo de
588
Tradução de Glynn Williams (1952). [...] primum ipsas ego Musas numquam tanti putassem, atque id
fecissem Musis omnibus approbantibus. Sed tamen erat aptum bibliothecae studiisque nostris congi-uens.
Bacchis vero ubi est apud me locus? At pulchellae sunt. Novi optime, et saepe vidi. Nominatim tibi signa mihi
nota mandassem, si probassem. Ea enim signa ego emere soleo, quae ad similitudinem gymnasiorum exornent
mihi in palaestra locum. Martis vero signum quo mihi pacis auctori ? Gaudeo nullum Saturni signum fuisse.
Haec enim duo signa putarem mihi aes alienum attulisse. Mercuri mallem aliquod fuisset. [...] Exhedria
quaedam mihi nova sunt instituta in porticula Tusculani. Ea volebam tabellis ornare, Etenim, si quid generis
istiusmodi me delectat, pictura delectat. [...].
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pintura desenvolvida na época, segundo Sanfelice (2016, p. 144), mas Beard (2016, p.149)
discorda dessa assertiva. Segundo a autora, a maioria das paredes pintadas em residências
pompeianas seguia o quarto estilo, que ganhou força a partir de meados do século I EC. A
autora salienta que a Casa dos Quatro Estilos evidencia que os gostos decorativos e
arquitetônicos de Pompeia poderiam mesclar essas tendências. A Teoria dos Quatro Estilos
não leva em conta as possibilidades dos vínculos entre a função dos cômodos e seus motivos
decorativos . Dessa forma, a autora conclui que a decoração residencial pompeiana dentro e
589
fora da construção seguia uma combinação de antigas e novas perspectivas decorativas
(BEARD, 2016, p. 149).
Possuímos uma representação imagética do que seria uma sequência de cenas do culto
a Baco/Dioniso na Vila dos Mistérios em Pompeia. A técnica pictórica mais comum era o
afresco (GARRAFFONI, 2007, p. 153). É necessário pontuar, porém, que o ambiente em que
a pintura se encontra era um oecus, que eventualmente era usado como uma sala para os
banquetes oferecidos pelos domini, ou seja, como um triclinium. O oecus era um espaço entre
o atrium e o peristylium que desembocava no jardim da casa romana. Além disso, o mapa da
domus da Vila dos Mistérios deixa evidente que mesmo sendo um ambiente de representação,
o cômodo era de difícil acesso (SANFELICE, 2016, p. 146). Os banquetes romanos teriam
sido parte das heranças helênicas em Pompeia, uma vez que o hábito de jantar reclinado tinha
raízes gregas (MAGALHÃES, 2013, p. 58; HARRIS, 2007, p. 14-15).
589
A teoria dos quatro estilos explica que as técnicas de pintura e ornamentações parietais romanas ao longo dos
séculos II AEC e I EC passaram por variações no que diz respeito ao uso do mármore, à delicadeza do traçado, o
uso de colunas e de frontões (BEARD, 2016, p. 164). Mais informações a respeito cf. Beard (2016, p. 164-167).
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Fig. 1: Parte do afresco do oecus da Vila dos Mistérios, Pompeia.
FONTE: CUVELIER, 2015, p. 62.
Fizemos então a leitura das cenas conforme Sanfelice (2016, p. 146 e ss.) propôs. A
megalografia deve ser lida como um livro em que as cenas dos mistérios se iniciam da esquerda
para a direita, o que nos mostra uma grande e única alegoria. Na primeira cena temos a
representação de uma mãe ao lado de um menino que segura um pergaminho, que parece ler.
Para Sanfelice, o pergaminho representa a erudição, as liturgias que a mãe passa ao filho, ou
seja, a cena retrata a iniciação do menino pela mãe nos mistérios báquicos (SANFELICE,
2016, p.147). Ainda no tema da maternidade, temos na segunda cena uma mulher grávida,
coroada, segurando o que parece ser uma bandeja com bolo numa mão e na outra um ramo de
videira. A coroa seria a representação da identidade dos tíasos, isto é, dos membros dos
mistérios báquicos e a mulher grávida traz à memória a atribuição do deus Baco enquanto
divindade atrelada à fertilidade e ao nascimento/renascimento. Na mesma cena da mulher
grávida, temos outras três mulheres que estão envolvidas em um ritual de purificação. Segundo
Sanfelice, a mulher coroada e sentada tem suas mãos lavadas por outra à sua direita, também
coroada, que está com uma jarra. A mulher da esquerda oferece um pano cor púrpura para
que as mãos sejam secas. Temos, portanto, o caráter purificador dos mistérios dionisíacos
(SANFELICE, 2016, p. 149). São apresentados dois semideuses ao lado dessas mulheres, o
que pode evidenciar a presença de um Sileno – o responsável pela lira – e um casal de Pã,
sendo o macho aquele que segura um instrumento musical e a fêmea aquela que fornece a uma
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cabra seu leite. Isso pode significar tanto o caráter da fertilidade por conta da presença do leite
quanto da ideia de purificação nos rituais (SANFELICE, 2016, p. 150).
A quarta cena representa uma mulher cuja expressão parece ser de espanto, seja por
conta da revelação do divino falo, seja por conta da quinta cena, na qual vemos Baco,
embriagado, nos braços de Ariadne, sua amante. Na sexta cena temos a representação de
bacantes em êxtase, em transe, durante os rituais báquicos. A de joelhos parece ser chicoteada
pela criatura alada enquanto a outra mais ao fundo porta um manto cor púrpura e segura um
tirso. A outra bacante está nua tocando o címbalo, em estado de possessão o que, segundo
Sanfelice, pode representar que a música, a dança e o consumo de vinho auxiliavam o iniciado
a se contatar com o deus. Assim terminaria a parte sagrada dos ritos báquicos na pintura
parietal, pois, “sendo a dança de possessão báquica a divina transformação da bacante terrena,
o mistério se cumpriu” (SANFELICE, 2016, p. 156).
A historiografia a que tivemos acesso entre os séculos XX e XXI diverge quanto à
interpretação dessa pintura. A rigor percebemos três linhas interpretativas, a saber, uma que
considera a pintura como a representação de um casamento (MAIURI, 1960); outra que a
entende como um ritual de homens e mulheres (SAURON, 1998); e, finalmente, a que
entende ser um registro de um ritual dionisíaco (CLARKE, 2003). Entretanto, para Beard
(2016, p.146) a despeito de qualquer explicação referente ao que a pintura representaria, o
afresco, por ser muito adornado, deveria refletir aquele ou aquela que utilizaria o cômodo
como um triclinium em termos de exibição de opulência. As escolhas decorativas desses
proprietários deveriam corresponder à mescla entre função do ambiente e o caráter de seu
anfitrião. A pintura, por estar em um ambiente representativo, um espaço em que o público se
faz presente, figurava como local de manutenção do prestígio social dos domini. Dessa forma, a
depender do caráter do anfitrião, dos moradores, da atividade que exerciam, da necessidade de
manutenção do prestígio frente ao público, podemos compreender o afresco em relação à
função daquele ambiente para os domini (BEARD, 2016, p. 146).
Os fragmentos do mito de Baco, bem como as representações do culto a essa
divindade, correspondem ao tema do afresco do cômodo (SANFELICE, 2016, p. 96). Além
das imagens divinas, temos a representação de uma mulher que entendemos ser uma possível
anfitriã dos banquetes quando o oecus fosse utilizado como triclinium. A mulher se encontra
bastante adornada com joias e parece contemplar as cenas do ritual báquico (SANFELICE,
2016, p. 158).
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Fig. 2: Parte do Afresco, a domina
FONTE: CUVELIER, 2015, p. 65.
Essa seria a representação da domina que mandou fazer a pintura para demonstrar sua
dignidade e sua piedade . A domina está representada com dignidade matronal em termos de
590
atitude mediativa e austera. O nome dessa figura é incerto, porém nota-se ser de uma pessoa da
aristocracia, com prestígio social. Tal imagem representaria a dona da casa, de origem
aristocrática, que se fez representar com dignidade matronal, ao passo que indicaria também
um dionisismo filosófico. A domina poderia representar, dessa forma, a participação feminina
em rituais religiosos na antiga Pompeia. A razão para isso pode encontrada na cultura material.
Para Sanfelice, essa domus era possivelmente uma propriedade produtora de vinhos da região,
como indica o fato de haver duas prensas de vinho muito próximas à sala dos mistérios.
Baco/Dioniso pode estar relacionado com as preces por prosperidade do cultivo da uva bem
como a fertilidade da vegetação, o que poderia indicar a devoção dos proprietários a essa
deidade (SAURON, 1998; SANFELICE, 2016, p. 160).
Como pudemos perceber, a historiografia privilegia análises do campo das
religiosidades muito mais do que voltada para a funcionalidade do cômodo e sua relação com o
afresco. Aqui nos propomos a preencher tal lacuna. Inferimos que a sociedade romana tinha a
590
Essa representação significaria que a domina pretendia reviver as etapas do relato mítico em sua própria vida,
pois teria se auto representado em conjunto com a divindade. A mulher estaria procurando sua divinização tal
como Ariadne ao casar-se com Baco, após ser abandonada por Teseu. Portanto, a salvação que a domina
representada na megalografia buscava seria oriunda do amor, tal como o mito de Ariadne (SANFELICE, 2016,
p. 158).
650
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preocupação de se manter em concórdia com os deuses, logo a pintura remeteria a esse acordo
entre os dois planos. Tal acordo seria sempre firmado mediante os jantares nos quais a domina
convidaria o deus a se fazer presente. Ao mesmo tempo em que a dimensão religiosa, a
dimensão simbólica também é importante, uma vez que os convidados aos banquetes teriam a
visão imponente da domina ao lado dos deuses Baco, Sémele e Ariadne . A matrona
591
representada na pintura evidencia a construção de uma imagem de piedosa, aristocrata e
anfitriã dos banquetes realizados no triclinium. Nossa hipótese se respalda na assertiva de que
na Antiguidade romana as representações de teor laudatório, em outras palavras o elogio, eram
práticas comuns. A representação de si enquanto alguém munido de virtudes era, para os
antigos, condição essencial para alcançar o prestígio social.
O elogio constituiu no Mundo Antigo, juntamente com o discurso judiciário e
deliberativo, um dos tipos retóricos ao qual o orador poderia se dedicar. A teorização sobre a
retórica em solo romano tem como primeira obra a Retórica a Herênio, escrita entre 86 e 82
AEC, de autoria desconhecida. Essa obra se revela um testemunho da fecundação das ideias
helênicas na cultura das letras em Roma. A tripartição de origem grega é mantida nesse tratado,
sendo o elogio e o vitupério parte do gênero demonstrativo ou epidítico. O elogio incidiria
assim em três categorias centrais, a saber, as coisas externas (como ascendência, educação,
riqueza, poder), as coisas do corpo (características físicas, classificadas como más ou boas) e as
coisas do ânimo, como as virtudes, dentre as quais a prudência, justiça, coragem e modéstia
(GIESEN, 2016, p. 77).
A Institutio Oratoria de Quintiliano, obra quase contemporânea à erupção do Vesúvio
que sepultou Pompeia, enumera as cinco partes do discurso, a saber, a invenção, a disposição,
a elocução, a memória e a ação. Divide os gêneros discursivos em genera causarum compostos
pelos discursos laudativum, deliberativum e iudiciale, e também percebe o discurso epidítico
como aquele destinado ao elogio ou vitupério. Quintiliano apresenta aos leitores os preceitos
sobre o que deve ser louvado ou vituperado e como se deve fazê-lo. Os destinatários aos
louvores seriam os deuses, os homens e as cidades. O louvor aos homens para Quintiliano
poderia elencar e amplificar os acontecimentos antes e depois da existência do elogiado, elogio
a cidade natal da pessoa, sua linhagem nobre ou as formas pelas quais o mesmo enobrece sua
591
Aqui nos referimos ao sistema de representações políticas proposta por Pierre Bourdieu (1989). O autor
conceitua o poder simbólico como o conjunto de sistemas simbólicos (arte, religião, monumentos) cuja
finalidade é o consenso social de uma determinada visão de ser e estar no mundo, o que legitima determinada
ordem ou visão de mundo (BOURDIEU, 1989, p. 15).
651
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
casa, elogio ao caráter do indivíduo, ao físico, aos feitos do elogiado (Quint. Instit. 3.7.10-16).
Os feitos para serem elogiados, contudo, deveriam ser considerados inusitados, de caráter
singular e deveriam contemplar interesses outros do que aos do elogiado (GIESEN, 2016, p.
80).
Podemos ler a sequência de imagens no oecus da Vila dos Mistérios, portanto, a partir
da chave do elogio, inferindo que a associação da imagem daquela mulher com o deus Baco
representa a piedade e opulência da domina. Entendemos a retórica como um sistema de
pensamento que extrapolava os limites do discurso falado e escrito e se realizava em toda parte
no cotidiano da aristocracia romana e provincial. Pensamos, portanto, a ornamentação da
pintura mural pompeiana como uma laudatio – laudação, discurso elogioso – à anfitriã da
domus.
Nosso objetivo com esse trabalho foi o de analisar a série de pinturas parietais dispostas
no oecus da domus da Vila dos Mistérios em Pompeia a partir de uma perspectiva
interseccional . Pensamos numa história que privilegie os estudos culturais das sociedades, dos
592
grupos e dos indivíduos e consideramos que as mulheres possuem sua parcela de contribuição
no jogo sociopolítico. Revisitar o passado do Mediterrâneo Antigo sob a perspectiva de gênero
nos é apropriado na medida em que se na Antiguidade os papéis sociais eram diferenciados
conforme o status social – as mulheres aristocratas não possuíam as mesmas expectativas
comportamentais que as plebeias – a história sempre é um produto contemporâneo, portanto,
deve se preocupar com o resgate histórico desses sujeitos.
Nesse sentido, o estudo sobre a participação de mulheres em processos ritualísticos na
Antiguidade Romana se revela um esforço contemporâneo em apreender a história de
mulheres que exerciam papéis os mais diversos em sua época. O caminho a ser percorrido é
diferente, pois ao se pensar gênero como uma categoria útil para a análise histórica enriquecese o enredo das sociedades analisadas, ao mesmo tempo em que a memória, em sua forma
científica, se torna mais democratizada (SCOTT, 1995, p. 75).
592
Entendemos o conceito como uma proposta dos estudos culturais contemporâneos na qual as ideias de gênero,
raça, classe social e outros se coadunam de modo a explicar desigualdades de gênero e/ou de sexo existentes no
seio social. No entanto, conforme os estudos de Silva (2018) e de Cotrim (2018), esse conceito quando usado
para análises das sociedades do Mediterrâneo Antigo precisa ser matizado por causa da inexistência das noções
de raça e de classe social na Antiguidade. Por outro lado, as noções de gênero, identidades culturais e de estatuto
jurídico-político são categorias que podemos perceber no modus operandi das sociedades do Império Romano
(SILVA, 2018, p. 160-161; COTRIM, 2018, p. 59-60).
652
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A Vila dos Mistérios guarda um tesouro arqueológico em que a vida cotidiana de seus
moradores é revelada por meio de pinturas, objetos e arquitetura. O oecus que possuía a
funcionalidade de triclinium apresenta uma pintura mural em que vemos a domina em posição
de autoridade cercada pelos deuses Baco, Sémele e Ariadne. A representação da anfitriã dos
banquetes, como piedosa e digna, foram algumas de nossas inferências sob a perspectiva da
análise antropológica das imagens, tal como proposta por Burke (2004, p. 237).
A
historiografia de meados do século XX e inícios do XXI apresentou três correntes explicativas
acerca dessa pintura mural pompeiana. Se por um lado temos a questão religiosa como o tema
da imagem é salutar compreender que toda a construção da domus atendia aos propósitos
daqueles que a habitava, bem como cumpria a função de manutenção do prestígio social dos
domini. Dessa forma, compreendemos que os motivos imagéticos pintados nas paredes do
oecus em específico não foram uma escolha fortuita dos responsáveis pela construção e
decoração dos ambientes da domus, antes fruto do ingenium, de uma intencionalidade de
propagar um determinado discurso sobre si, logo de apresentar uma determinada
representação daquela família perante os convidados aos banquetes.
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655
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Fazer da teoria um lugar de cura: narrativas dissidentes na encruzilhada
epistêmica
Lucas Silva Dantas 593
Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar de que forma os corpos dissidentes que
habitam o espaço acadêmico fazem das suas produções teóricas um lugar de denúncia,
manifesto, enfrentamento, resistência e cura. Essa análise integra um dos resultados apontados
pela dissertação intitulada “Dissidência, Resistência e Transgressão no Espaço Escolar: Vozes
Trans, Negras, Indígenas e de Pessoas com Deficiência na Encruzilhada Epistêmica”, onde
analiso a pesquisa de oito autoras sobre a resistência e a transgressão dos corpos dissidentes
na educação. Dessa forma, esse artigo permeia as frestas da produção destas autoras que se
constroem como flecha certeira contra o racismo, o capacitismo e o cisheteropatriarcado na
educação, e a partir dela criando táticas de transgressão na encruzilhada epistêmica.
Palavras-chave: Corpos dissidentes – Educação – Encruzilhada Epistêmica
INTRODUÇÃO
Como pessoa Trans Não Binária594, pertencente da comunidade LGBTQIAP+, pude
vivenciar a dupla pertença ao espaço acadêmico e ao ativismo, como necessidade da formação
e da luta política sobre o entendimento do meu corpo e da comunidade da qual eu fazia parte.
A necessidade em manifestar, denunciar e apontar novos caminhos se tornou uma recorrente
desde a graduação, juntamente com a ânsia em criar alianças com outros corpos dissidentes
que tinham sua permanência ameaçada em sociedade.
O interesse em pesquisar sobre os corpos dissidentes na educação nasceu na
graduação, no início da minha trajetória acadêmica. Em 2016, quando estava cursando a
licenciatura em Letras no Instituto Singularidades, fiz parte da criação e da fundação do
Coletive da Diversidade, que era composto por pessoas Negras, LGBTQIAP+, Pobres,
Periféricas e Migrantes. Tínhamos, naquele momento, como objetivo trazer para dentro da
Mestre em Educação: História, Política, Sociedade - PUC/SP
Ver o texto “Como uma identidade pode começar com um não? Reflexões sobre a construção do mundo
cisgênero e a existência da não binariedade” - Publicado pela Revista Lüvo, disponível em:
https://fundacionluvo.files.wordpress.com/2020/09/v6.n2.revistalucc88vo-para-impresiocc81n_26agosto.pdf
593
594
656
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
universidade as discussões e as pautas que acessávamos a todo tempo nos ativismos e nos
movimentos sociais que nos contemplavam. Sabíamos que
É preciso que muitas vozes se ergam contra o genocídio da população
negra, o aumento crescente da população de rua, o avanço criminoso
do agronegócio sobre os territórios indígenas e quilombolas, o
assassinato das mulheres cis e trans, as práticas de ódio contra a
população LGBT, a criminalização dos movimentos sociais e a
repressão ao conhecimento por meio do ataque às escolas e às
universidades (ALMEIDA, 2019, p. 14).
De 2016 a 2019, travamos uma batalha em modificar a placa dos banheiros da
instituição, em incluir no currículo e na ementa os saberes que contemplavam nossa trajetória,
em pluralizar o corpo docente, em solicitar cotas para pessoas trans e negras, em impulsionar
formações de professores sobre inclusão e diversidade, entre outros fatores que nos eram
essenciais. Diante da consciência de que nossos corpos estavam ameaçados dentro e fora da
universidade, sabíamos que éramos insustentáveis, e que algumas ações poderiam possibilitar
permanência e sustentabilidade aos nossos corpos dentro do espaço educacional.
Como trabalho de conclusão de curso, me propus a investigar e narrar a trajetória do
Coletive da Diversidade dentro do Instituto Singularidades, bem como suas barreiras, seus
desafios e suas conquistas. Para que essa escrita comunicasse de forma direta e política, visto
que eu também estava dentro desse processo, decidi juntar os gêneros textuais manifesto e
monografia. O trabalho que chamei de Manifestografia recebeu o título de “Corpos
(In)Sustentáveis na Formação de Professorxs”, sendo defendido e aprovado em dezembro de
2018.
No capítulo “Morrer de corpo, alma e epistemologia” discorri sobre a
insustentabilidade dos corpos dissidentes na educação através do assassinato de Ágatha Mont
e Matheusa Passareli, ambas pessoas trans, que estavam finalizando suas graduações em
diferentes universidades.
O corpo físico ainda é a premissa básica para continuar a existir nesse
planeta, e quando nos tiram o corpo eles nos tiram tudo, nos levam a
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
alma, o futuro, nossa epistemologia, todas as possibilidades de
desdobramento em projetos de mundo para fundar uma outra
sociedade. Corpos em potência interditados pelo mesmo genocídio
dissidente que aniquilou e matou corpos trans na ditadura militar, nas
fendas da história, desde que o mundo se tem registro e a nossa
história parece ser a mesma, sem evolução ou grandes novidades. Não
há vida para o morrer, não há presença, não há concerto ou chance. A
morte é o ponto máximo da insustentabilidade, e essa eu espero que
não me atravesse (DANTAS, 2018, p. 74).
Nesse trabalho, desenvolvi os conceitos de corpos sustentáveis e corpos insustentáveis
na educação, atrelando a discussão de sustentabilidade ao processo genocida, estrutural,
opressor e violento ao qual os corpos dissidentes estão submetidos. Desta reflexão, publiquei
em 2020 o artigo “Um corpo insustentável: a disputa dissidente pela permanência em
sociedade” na Revista de Estudos Brasileiros da Homocultura (REBEH), onde afirmo que:
Um corpo insustentável é aquele que vivencia o genocídio que mira
nos corpos dissidentes, que ancestralmente atua para colocar para fora
do planeta todos os corpos que não correspondem à norma, retirando e
ceifando vidas. Um corpo insustentável não vira a esquina em paz. Ele
é insustentável porque teoricamente todos teríamos direito à educação,
à comida, ao transporte, ao lazer, à moradia e à cidadania. Mas os
direitos não estão chegando aos humanos que se destinam, eles estão
sucateados, eles se fazem utopia ao não concretizarem sua missão.
Quem não consegue permanecer no mundo, jamais conseguirá
adentrar e permanecer na educação. É insustentável porque a
experiência dos corpos dissidentes na escola é um não lugar, uma
habitação em regresso, um corpo que não consegue usar o banheiro, o
vestiário, a quadra, um corpo que apanha e sofre abuso, um corpo que
constantemente retrocede por vontade alheia, e quando ele não suporta
dizem que ele não quer mais estudar, que ele evadiu, que ele foi
embora (DANTAS, 2020, p. 9).
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Quando entrei no mestrado no programa de pós-graduação em Educação: História,
Política, Sociedade da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, decidi continuar minha
investigação sobre os corpos dissidentes na educação. Desta forma minha dissertação
intitulada “Dissidência, Resistência e Transgressão no Espaço Escolar: Vozes Trans, Negras,
Indígenas e Pessoas com Deficiência na Encruzilhada Epistêmica” teve como objetivo
analisar teses e dissertações escritas por mulheres trans, negras, indígenas e mulheres com
deficiência, que refletiam sobre as práticas de resistência e transgressão, adotadas por estes
corpos para permanecer na educação.
O que chamo de encruzilhada epistêmica, metodologia que criei durante o processo de
escrita da dissertação, é justamente o encontro interseccional de todas estas identidades no
centro da encruzilhada, refletindo de que forma as práticas se assemelham, destoam ou se
encontram. A encruzilhada é trabalhada sob o ponto de vista simbólico e epistêmico, presente
na discussão e na fundamentação de autores como Akotirene (2019), Rufino (2019), William
(2021) e Nascimento (1981).
O que me levou a pesquisar sobre a produção dos corpos dissidentes dentro das
universidades se deve ao fato do meu próprio processo em ser um corpo dissidente que habita
o espaço acadêmico, em escrever para refutar o cânone, escrever para denunciar os
silenciamentos, escrever o que eu não encontrei escrito, escrever como um lugar de dor, de
expurgo, mas também de cura. Queria me encontrar com outras curas epistêmicas nessa
encruzilhada que é a resistência e o enfrentamento dos corpos dissidentes dentro das
universidades. É a partir desse lugar e dessa vivência que nasce esse trabalho.
NARRATIVAS DISSIDENTES
Corpos negros, trans, indígenas e com deficiência são corpos sobreviventes no
território brasileiro. Vivem profanados num solo que nega sua humanidade, que nega seu
corpo, seu gênero, sua sexualidade, sua raça, suas diferenças, e que consequentemente lhe
nega trabalho, estudo, educação, saúde, políticas públicas, assistência, equidade e reparação.
São corpos que carregam a dissidência, a outridade, a subalternidade, a experiência do não
ser, a referência do que não se tornar. São aqueles ignorados em todas as suas contribuições,
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que para a sociedade não tem mais nada a oferecer a este mundo, que já nem deveriam estar
aqui.
Se o trabalho da colonização desde 1.500 é catequizar e evangelizar os indígenas,
escravizar e desumanizar o povo negro, acusar as pessoas trans de sodomia e as executar em
praça pública e abandonar as pessoas com deficiência em hospícios e lugares que as apartam
da sociedade, é porque suas presenças não são bem-vindas neste espaço. Quiseram para além
de matar, escravizar e torturar os seus corpos, apagar qualquer traço que tenha vindo das suas
culturas, da sua espiritualidade, do seu modo de ver e pensar a vida. Quiseram lhes matar de
corpo, alma e epistemologia.
É por isso que Sueli Carneiro (2005) nos lembra que o epistemicídio é matar o saber, é
matar a memória, é matar a ciência, é matar as contribuições, é matar a cultura, visto que essa
ação é uma combinação de genocídio mais epistemologia. Por isso neste trabalho é uma
posição política escolher os corpos dissidentes que produziram na contramão do
epistemicídio, que se colocaram no lugar de autores para contar a sua própria história e a
história do seu povo, que sistematizaram e que deixaram junto ao seu trabalho um legado de
luta e resistência sem desprezar, em nenhum instante, a potência da oralidade e das tradições
orais presentes na cultura indígena e africana, presente no pajubá que se constrói nas ruas
como tática de defesa em meio as violências da prostituição.
Todas as escolhas feitas nesta pesquisa foram pensadas em meio a complexidade das
identidades e da matriz de opressão, considerando as contribuições do pensamento
interseccional. Desta forma foram escolhidas para análise os seguintes trabalhos:
Quadro 1 – Teses e dissertações analisadas pela pesquisa segmentadas por nome da autora,
Universidade, programa em que a pesquisa foi elaborada, ano de defesa, título da
tese/dissertação e problema de pesquisa
Universidade,
Nome do
Nome da
programa de Pós-
Título da
autora
Graduação e ano
Dissertação/Tese
Problema de Pesquisa
da Defesa
Luma
Universidade
Travestis na escola:
Como as estudantes travestis se
Federal do Ceará
assujeitamento e
movem na ordem normativa da
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Nogueira de
(UFC)
Andrade
resistência à ordem
escola e quais as possibilidades
normativa
de resistência diante desse ciclo
Programa de PósGraduação em
de
(Tese)
interdição
e
práticas
reguladoras do sexo existentes
na instituição escolar?
Educação
2012
Universidade
O diabo em forma de
Megg
Federal do Paraná
gente: (r)existências de
subjetivação das experiências
Rayara
(UFPR)
gays afeminados, viados e
negras que fogem à norma cis
bichas pretas na educação
heterossexual,
Gomes de
Oliveira
Programa de PósGraduação em
Como
os
processos
de
expresso
na
experiência de gays afeminados,
(Tese)
Educação
viados e bichas pretas são
agenciados
no
interior
da
escola?
2017
Candice
Universidade de
Inclusão e Ideologias no
Esta pesquisa analisa, através
Brasília (UNB)
Contexto da
de entrevistas com estudantes
Aparecida
Globalização: Uma
com
deficiência
e
com
Rodrigues
Programa de Pós-
Investigação à Luz da
profissionais que vivenciam em
Assunção
graduação em
Análise de Discurso
suas práticas profissionais a
Linguística
Crítica
inclusão educacional,
os
2016
(Tese)
discursos
educacional
da
no
inclusão
contexto
da
globalização com a finalidade de
verificar as ideologias que esses
discursos veiculam.
Universidade
Olhar, (não) ouvir,
Anahi
Federal de Santa
escrever: uma
Guedes de
Catarina (UFSC)
autoetnografia ciborgue
A
metodologia
etnográfico
é
de
o
caráter
objeto
de
reflexão da presente tese, que
tem como objetivo discutir a
Mello
Programa de Pós-
(Tese)
influência da surdez no fazer
Graduação em
antropológico, tomando como
Antropologia
foco da análise a experiência da
própria
Social
pesquisadora
como
antropóloga surda, a partir de
uma
2019
661
perspectiva
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
autoetnográfica.
Universidade
Educação, identidade e
Como
as
pessoas
negras
Maria da
Federal de
histórias de vidas de
doutoras do Brasil construíram
Conceição
Pernambuco
pessoas negras do Brasil
sua identidade negra através da
dos Reis
(UFPE)
sua história de vida e das
(Tese)
Programa de Pós-
influências da educação e se
afirmaram nas questões étnico-
Graduação em
raciais?
Educação
2012
Pontifícia
Trajetória
Maria José
Universidade
educacional de
dos Santos
Católica de São
mulheres
Paulo (PUC SP)
Como
as
mulheres
do
Quilombo das Onze Negras
superaram
as
barreiras
do
quilombolas
racismo,
discriminação
e
no quilombo
preconceito,
acreditando
na
Programa de Pós-
das onze
educação escolar como arma de
Graduação em
negras do
transformação social?
Educação:
cabo de Santo
História, Política,
Agostinho -
Sociedade
PE
2012
(Dissertação)
O Barro, o Genipapo e o
Célia Nunes
Universidade de
Giz no fazer
Correa
Brasília (UNB)
epistemológico de Autoria
Xakriabá
Xakriabá: reativação da
Programa de Pós-
memória por uma
Graduação
educação territorializada
pesquisa
teve
como
objetivo refletir sobre os saberes
e
os
fazeres
território,
analisando
experiências
indígena
presentes
de
mesmo
no
as
educação
antes
da
presença da escola e depois do
Profissional em
Desenvolvimento
Esta
(Dissertação)
Sustentável
2018
662
amansamento dessa.
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Universidade
Que memórias me
A
Mirna
Federal de Goiás
atravessam? meu
autobiográfica do percurso de
Kambeba
(UFG)
percurso de estudante
Omágua-
indígena
Yetê
Programa de Pós-
Anaquiri
Graduação em
estudante
pesquisadora,
tem
(Dissertação)
partir
por
da
pesquisa
indígena
a
da
investigação
objetivo
reunir
elementos para entender como a
Arte e Cultura
narrativa autobiográfica pode
Visual
auxiliar na construção docente,
e como a construção docente
2017
pode auxiliar na identidade
indígena.
Fonte: elaborada pela autora (2021)
As categorias de análise buscaram identificar: como a história pessoal aparece nas
pesquisas, qual a crítica que elaboram sobre a educação, quais as formas de resistência e
transgressão apontadas pelas autoras e qual a elaboração teórica constroem com suas
pesquisas. O que está expresso neste artigo, e mais profundamente na dissertação, é como as
autoras dissidentes fazem da sua teoria um lugar de cura, como narram sua trajetória de vida e
suas vivências dentro dos seus próprios trabalhos, como denunciam e manifestam sua dor,
como produzem a partir de um lugar de dissidência e marginalização, diante de um currículo
que não vislumbra a potência dos diversos sujeitos existentes neste território, e que por
consequência aniquila os seus saberes e suas potências epistêmicas.
FAZER DA TEORIA UM LUGAR DE CURA
Na análise foi possível identificar que as experiências de transfobia, racismo e
capacitismo experenciado pelas autoras em suas vivências não dizem respeito somente a elas
mesmas, mas uma sociedade estruturada que revive e repete esse mesmo preconceito e aplica
essa mesma opressão em todos os corpos dissidentes atravessados pela subalternidade das
questões de gênero, sexualidade, raça e deficiência. Como corpos dissidentes, suas vivências
extrapolam o campo individual, denunciando opressões estruturais e violências que atingem
uma multiplicidade de corpos de formas distintas, mas que estão sempre conectados por suas
dissidências, fazendo com que suas trajetórias pessoais dentro dos seus próprios trabalhos
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denunciem uma estrutura inteira. O pessoal é coletivo, o pessoal é político, o pessoal é
científico e epistemológico.
Em todas as teses e dissertações analisadas as pesquisadoras utilizam várias
metodologias distintas para atingir os resultados de suas pesquisas. Seja através da
autoetnografia, da etnografia, da história oral e de outras metodologias presentes nos
trabalhos, todas elas relatam a si mesmas. Esse relato aparece em lugares distintos da
pesquisa, em alguns casos como um capítulo próprio, em outros como um desabafo, as vezes
no meio da análise, em alguns trabalhos mais detalhados, com fotografias, em outros de
maneira mais concisa, mas sempre presentes.
Contar a própria história e falar de si mesmo em um trabalho científico quando se é
um corpo dissidente pode ser considerado uma espécie de denúncia, um relato político, um
manifesto. Ao relatar suas próprias histórias de vida, dentro e fora do espaço educacional, as
autoras estavam falando mais do que sobre si mesmas, mas todo um grupo de pessoas
atravessados pela mesma dissidência que a sua. Como no caso de Kambeba (2017) quando
fala dos abusos que sofreu e chama a atenção para a condição da mulher indígena, como
quando Santos (2012) fala sobre como se sente dentro do espaço acadêmico e denuncia sua
solidão e a ausência de mulheres negras neste espaço, quando Oliveira (2017) e Andrade
(2012) falam sobre seus processos de transição enquanto travestis e denunciam a transfobia, a
perseguição e a violência.
Para Bell Hocks (2017) a teoria pode ser um lugar de cura, pode ser um lugar para
expurgar traumas, para descarregar os engasgos, para quebrar o silenciamento, para de alguma
forma, tentar se livrar da dor, da angústia, de explicar a mágoa para fazê-la ir embora. Em
muitos relatos, as autoras falam sobre não conseguir ser um pesquisador “neutro”, que não
aparece na sua própria pesquisa, que não fala de si, que não se coloca ou posiciona. Suas
escolhas estão voltadas para abrir a sua pessoalidade de modo a torná-la política, de fazer com
que ela também se torne o corpus analítico da pesquisa, que ela também possa ser analisada,
possa ser lida, possa ser registrada.
Com exceção de Mello (2019) e Kambeba (2017), que utilizaram a autoetnografia e a
autobiografia, todas as outras pesquisadoras escolheram os sujeitos das suas pesquisas que
pertencem ao mesmo grupo identitário ou que permeiam a mesma dissidência que a sua.
Propositalmente ou não, de uma certa forma, elas estavam refletidas em seus próprios
entrevistados, conforme aponta Santos (2012) quando relata que se via refletida naquelas
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mulheres quilombolas que estava entrevistando. Esse encontro entre o pesquisador sujeito e
os sujeitos da pesquisa gera um encontro científico, afetivo, político, dissidente e transgressor.
Essa escolha gera impactos não somente no pesquisador, mas nos próprios entrevistados, que
passam a ter mais confiança, que passam a se abrir mais e que se sentem seguros para expor
suas histórias.
Neste caso, o encontro do pesquisador sujeito com os sujeitos da pesquisa gera um
encontro dissidente na encruzilhada da opressão. O encontro de Luma Andrade com as jovens
travestis na escola; o encontro de Megg Rayara com os docentes Gays afeminados, Viados e
Bixas pretas; o encontro de Candice Aparecida Rodrigues Assunção com as pessoas com
deficiência; o encontro de Mirna Kambeba Omágua-Yetê Anaquiri com as mulheres A'wẽ; o
encontro de Célia Nunes Correa Xakriabá com o corpo-território e os saberes do seu povo; o
encontro de Maria José dos Santos com as mulheres quilombolas do Quilombo das Onze
Negras; o encontro de Maria da Conceição dos Reis com os doutores negros do Brasil.
Desta forma, a pesquisa é potencializada, os resultados compõem uma profundidade
outra, a análise é feita com o material de vida do pesquisador e dos sujeitos entrevistados. A
ausência é preenchida por presença, afinidade e identificação, visto que muitas autoras eram
as únicas mulheres negras/indígenas/trans/com deficiência de suas salas, em alguns casos da
universidade inteira.
Quando Mello (2019) escolhe não se moldar, enquanto uma antropóloga surda, aos
desígnios da etnografia que lhe eram incômodos e faz uma escolha política em mostrar
através de uma autoetnografia ciborgue suas potências mediadas pela surdez, ela representa o
caminho trilhado por muitos corpos dissidentes no espaço acadêmico. Não permitir que sua
subjetividade e seu modo de fazer pesquisa seja moldado por uma prática normativa e
excludente, mas de criar um caminho possível voltado a um modo dissidente de fazer
pesquisa. Sua ação em romper com a etnografia e criar uma autoetnografia ciborgue
representa o movimento que as pesquisadoras aqui analisadas fizeram em suas metodologias,
em suas pesquisas, em seus escritos.
Andrade (2012) narra em sua tese que sempre que chegava a uma turma nova fazia
questão de contar toda a sua história na primeira aula, dizer que era uma travesti e que não
tinha problema algum conversar sobre isso dentro da sala de aula. Segundo a autora, isso fazia
com que os alunos não ficassem especulando sobre a sua identidade e nem criasse tensões e
barreiras. Ao falar de si abertamente imprimia com o seu discurso poder e segurança,
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deixando claro o seu lugar de fala e a sua luta contra a transfobia. Assim como Assunção
(2019) relata que explicou em sua primeira aula todas as instruções necessárias para os alunos
referentes às suas necessidades como alguém com deficiência visual.
Neste sentido, para além do espaço acadêmico, falar de si mesmo e da própria
dissidência na escola também faz parte de um processo de cura e pode ser considerado uma
prática de resistência. Pois como nos aponta Oliveira (2017) quando a bicha preta se torna
professora ela também traz consigo a possibilidade de que alunos que se identifiquem com a
sua identidade não se sintam estranhos, excluídos, a margem e sem perspectiva.
CONCLUSÃO
No fundo, tudo dependerá do modo pelo qual o passado será referido no presente; se
permanecemos no simples remorso ou se resistimos ao horror com base na força de
compreender até mesmo o incompreensível (ADORNO, 1995, p. 46). Na busca de relatar a si
mesmas, as autoras buscam compreender o seu passado, evocá-lo no presente para que ele
possa servir de material impulsionador da resistência, para que seja mais do que um relato de
dor, trauma ou cicatriz. Na tentativa desse diálogo entre os tempos a teoria se torna um lugar
de cura, de potencialidade. É relatando a si mesma e se encontrando com os seus semelhantes
que a teoria passa a ser um encontro dissidente, um lugar de transcendência, uma produção de
conhecimento carregada de urgência, de vozes ainda insurgentes, de denúncias e registros
ainda inexistentes no espaço acadêmico.
Ao relataram suas próprias histórias, em sala de aula e em suas teses e dissertações, ao
se encontrarem com os sujeitos de suas pesquisas e se verem refletidas neles, fazem com que
seu grito vire eco, pois nele está contido uma série de vozes dissidentes, ansiando por justiça e
luta. Fazem com que sua teoria seja também uma prática de resistência e transgressão, um
lugar de denúncia, de manifesto, de justiça epistêmica, de grito contra o silenciamento,
também de dor, mas sobretudo, de cura, porque como nos afirma Castiel Vitorino Brasileiro
(2021) “a cura é uma experiência, e não uma palavra” (p. 37).
Corpos dissidentes habitam o espaço acadêmico driblando o racismo, o capacitismo, a
LGBTfobia, que os queriam fora desse espaço. Habitam as linhas das teses e dissertações
produzindo flechas para o arco das lutas, suas narrativas se encontram na essência da barbárie
que atravessa os seus corpos, na luta que travam cotidianamente por um novo mundo onde
suas diferenças não sejam sinônimos de morte, indiferença e desigualdade. Suas palavras são
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feitiços que desencantam o mundo colonial e que abrem frestas para que possa surgir uma
nova força, um novo fronte, uma nova barricada, são encontros de ruas nessa que é a
encruzilhada epistêmica. A face semelhante que se reflete nesse espelho são as estratégias de
resistência e a resiliência que historicamente nos foram ensinadas, engendrados que somos
pelas lutas (XAKRIABÁ, 2018, p. 58).
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Homossexualidades e travestilidades na literatura capixaba na década de 1980:
discursos e representações
Randas Gabriel Aguiar Freitas595
Resumo: Francisco Ribeiro argumentou que a partir da geração de escritores capixabas dos
anos 1980 o discurso sobre as homossexualidades e travestilidades mudaram. Anteriormente as
sexualidades e gêneros dissidentes apareciam como xingamentos, ofensas ou em discursos rasos
e estigmatizantes. Nos anos 1970 e, especialmente, nos anos 1980, alguns escritores capixabas
abordaram as práticas e identidades gays, lésbicas, bissexuais e travestis de modo a
problematizar “verdades” colocadas a esses corpos e sujeitos. Pensando representação com
Roger Chartier e discurso com Michel Foucault, nos propomos a analisar quatro contos e
crônicas produzidos por escritores capixabas que tematizavam lesbianidades e travestilidades.
Palavras-chave: lesbianidades; travestilidades; literatura; Espírito Santo.
INTRODUÇÃO
A proposta desse ensaio é analisar os discursos e as representações sobre lesbianidades
e travestilidades na literatura produzida no Espírito Santo durante a década de 1980. Pensamos
os conceitos de representação e discurso a partir dos estudos e diálogos entre Roger Chartier e
Michel Foucault, respectivamente.
Para Chartier, perceber o social e representá-lo não é de forma alguma um discurso neutro, na
medida em que produzem “estratégias e práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
impor uma autoridade à custa de outros”596. Entretanto, Foucault destaca que é necessário
compreender que “poder e saber estão diretamente implicados; que não há relação de poder
sem constituição correlata de um campo de saber, nem saber que não suponha e não constitua
ao mesmo tempo relações de poder”597.
595
Mestrando em História Social das Relações Políticas na Universidade Federal do Espírito Santo e licenciado
em História pela mesma instituição (2017). Membro do Laboratório de História Regional do Espírito Santo e
Conexões Atlânticas (LACES/Ufes) e do Grupo de Estudos e Pesquisas em História, Gênero e Sexualidade
(GEPHGS/Ufal). Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Espírito Santo (Fapes). E-mail:
randas.aguiar@live.com.
596
CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro: Difel, 1988. p. 17.
597
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 31.
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Quando escrevemos e falamos sobre algo o dito e o não dito entram nas lutas de
representações, que buscam hierarquizar a estrutura social através de um jogo de ordenação,
como apontado por Roger Chartier598. Para Michel Foucault “o discurso não é simplesmente
aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas é aquilo pelo qual e com o qual se
luta, é o próprio poder de que procuramos assenhorear-nos”599. Isto é, quando escrevemos
sobre algo fora da caixa tradicional das representações não estamos apenas lutando contra as
representações hegemônicas, mas também nos inserindo no próprio jogo de poder de
representar e ser representado.
Analisar as representações e os discursos sobre as homossexualidades e travestilidades
em textos literários passa por verificar “correlações com os outros enunciados a que pode estar
ligado, de mostrar que outras formas de enunciação excluem”600. Por esse motivo, não
pensarmos as lutas de representações como um sistema fechado e rígido no qual um grupo
possui o poder de representar e outro é automaticamente representado, também acreditamos
na capacidade de ressignificar e reorganizar essas hierarquias e definições.
É sob essa hipótese que nos debruçamos para analisar quatro contos/crônicas produzidos por
três escritores capixabas, sendo eles: “Theda Bara” e “Victor ou Vitória?” por Luiz Fernando
Tatagiba, “Primeiro amor” de Sebastião Lyrio e “As namoradas” de Lacy Ribeiro.
Selecionamos duas crônicas e contos que tematizassem lesbianidades e duas que sobre
travestilidades, com o objetivo de verificar regularidades discursivas e lutas de representações.
Nos baseamos no levantamento realizado por Francisco Ribeiro que buscou analisar os
discursos sobre as homossexualidades na literatura capixaba de meados das décadas de 1970
até o início dos anos 1990.
UM BALANÇO ACERCA DAS HOMOSSEXUALIDADES E TRAVESTILIDADES NA
LITERATURA CAPIXABA
Ao analisar a literatura homossexual, uma literatura que não só foi produzida por
homossexuais, mas que também tematizasse as homossexualidades, Francisco Ribeiro
constatou que anterior a década de 1970 as sexualidades e gêneros dissidentes apareciam nos
escritos capixabas como ofensas e xigamentos, tais como: bicha, veado, fanchona, travesti, todos
em tom pejorativo, visto que estes termos buscavam ofender e/ou estigmatizar.
598
Chartier, 1988, p. 23.
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. p. 3.
600
FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. p. 28.
599
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Ribeiro
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verificou que no decorrer da década de 1970, inaugurou-se uma nova conjuntura no qual as
homossexualidades e travestilidades apareciam na literatura capixaba sob outras representações
e discursos.
Pela literatura produzida no Espírito Santo que tematizava as homossexualidades,
Francisco Ribeiro percebeu que, quantitativamente, a homossexualidade masculina era mais
representada. Do mesmo modo, ainda sim, essa geração de escritores acabara por colocar as
homossexualidades e travestilidades de forma complexa, com seus amores e desejos, suas
opressões, seus medos e dificuldades, fugindo de uma narrativa que os ligavam a fraqueza,
doença e perversão601.
Ainda nos anos 1970, Amylton de Almeida abriu portas para essa nova narrativa ao
publicar os romances Blissful Agony (1972) e A passagem do século (1977). Waldo Motta foi o
mais contínuo com poemas nos seus livros Pano rasgado (1979), Os anjos prescritos e outros
poemas (1980), O signo da pele (1981), Obras de arteiro (1982), As peripécias do coração
(1982), De saco cheio (1983), Salariana loucura (1984) e Eis o homem (1987).
Luiz Fernando Tatagiba focou nas travestilidades nas crônicas “Theda Bara” e “Vitor ou
Vitória?”, nos livros O sol no céu da boca (1980) e Rua (1986), respectivamente. A escritora
Bernadette Lira tematizou as homossexualidades masculinas nos contos “1” e “2” no livro As
contas no canto (1980) e “O dourado e o negro”, “Tempo” e “Urália” no livro Jardim das
delícias (1983). No livro Coração de cristal ou a vida secretas das enceradeiras (1984),
Bernadette Lira abordou pela primeira vez as lesbianidades, no conto “Letícia”.
Sebastião Lyrio no livro Tigres de papel (1983) tematizou as homossexualidades femininas em
três contos: as lesbianidades nos contos “Primeiro amor” e “Modulações” e as travestilidades
no conto “Apocalipse: contagem regressiva”. Sérgio Blank deixou implícito o desejo
homossexual nos poemas “rimbaud e verlaine” e “flauta de defais” no livro Estilo de ser assim,
tampouco (1984) e abordou as homossexualidades mais diretamente no livro Pus (1987) nos
poemas “Você castrate”, “Pour lui” e “Cinza de fumaça azul”. Paulo Roberto Sodré abordou as
homossexualidades nos poemas “Germinação”, “Poética”, “Estradas”, “Embriaguez”, “Êxtases”
e “Quendanças” no livro Interiores (1984) e depois publicou o romance Lhecidio Gravuras
de Sherazade na Penúltima Noite (1987).
601
RIBEIRO, Francisco Aurélio. A Literatura do Espírito Santo: uma marginalidade periférica. Vitória:
Nemar, 1996. p. 80.
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As travestilidades foram abordadas no conto “Meus meninos” do livro No escuro,
armados (1987) de Marcos Tavares e no conto “Zaringuer e o mundo” no livro Diga adeus a
Lorna Love (1987) de Francisco Grijó. Este último abordou também a homossexualidade
masculina no conto “Dois meninos e um jazz”. Lacy Ribeiro abordou as lesbianidades no conto
“As namoradas” no livro Avenida República: diário da madrugada em 1987. Por fim, Maria do
Carmo M. Schineider abordou o amor entre mulheres nos poemas “Agonia”, “Alma gêmea”,
“Encontro marcado”, “Timidez”, “Roupagem”, “Fugaz”, “Eco” e Narciso”, presentes no livro
Fio de prumo (1989).
LESBIANIDADES
E
TRAVESTILIDADES
ENTRE
DISCURSOS
E
REPRESENTAÇÕES
Luiz Fernando Tatagiba publicou a crônica “Theda Bara” no livro O sol no céu da boca
em 1980602. O título da crônica e nome da personagem principal é em homenagem a atriz
estadunidense Theodosia Burr Goodman, conhecida popularmente como Theda Bara, que
atuou no cinema mudo na primeira metade do século XX. A crônica narra a história de
Antônio que durante o dia trabalhava como garçom em uma lanchonete e de madrugada se
travestia e transformava-se em Theda Bara. O mesmo se montava “diante do espelho, absorta,
peruca alugada, cílios postiços adquiridos de segundo olho, colar e brincos oxidados, usando
maquilagem da mãe, entrava fraudulentamente em outra dimensão”.
Theda Bara “fazia pista” na praça Costa Pereira. Suas colegas de trottoir não sabiam falar seu
nome e fugiam do assunto quando Theda Bara começava a falar sobre o cinema mudo.
Pediam para que Theda Bara mudasse de nome para algo mais fácil e “Theda, porém, sensível
como era, não suportava que a chamassem de outra maneira. Enraivecida corria para o outro
lado da avenida, soluçando”.
Toda manhã, Theda Bara tinha seu sonho ceifado quando esbarrava no balcão da
lanchonete e seu gerente gritava: “Antônio, atende aqui” ou “Está na hora de fazer café,
Antônio”. Quando anoitecia, Theda Bara se vestia e preparava-se mais um dia para os olhares
dos transeuntes. Quando chegava em casa sua mãe que a esperava dizia: “Chegou, Antônio?” e
quando chovia: “Tira a roupa, Antônio, para não se gripar”. Ao chegar em seu quarto Theda
Bara “apanhava o álbum com as fotos, relia um artigo, beijava o “poster” na parede. Depois,
deitava e fingia que sonhava”.
602
TATAGIBA, Luiz Fernando. O sol no céu da boca. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1980.
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A crônica “Vitor ou Vitória?” de Luiz Fernando Tatagiba foi publicada no livro Rua em
1986603. A crônica leva o mesmo nome do filme Victor ou Vitória?, com roteiro e direção de
Blake Edwards, que tematiza o transformismo em Paris de 1934. A crônica de Tatagiba narra a
história de Vitor que virou a travesti Vitória e paralelamente cria uma metáfora da
transformação urbana da capital do Espírito Santo, Vitória. Vitor se assumiu e “nas imediações
da praça Costa Pereira, galeria Palácio do Café, Av. Beira Mar, todo o mundo tomando
hormônio como quem bebe cafezinho para depois fumar”. Vitor se travestiu, agora é Vitória ou
Vitorinha para os mais íntimos. Vitória “é travesti de trottoir, de michê barato, não podendo
concorrer nem mesmo com as prostitutas”.
Num concurso de fantasia, Vitória concorreu na categoria “Dura realidade”. Sua
fantasia: nos babados, “as meninas famintas de Itanhenga”, na cintura “os pobres que moram
embaixo da ponte da Vila Rubim”, na blusa “as prostitutas das imediações da Lanchonete
Cavalo de aço”, no decote “as crianças de São Pedro, as bocas cheias de lixo”, no chapéu
“gente que pede esmolas nas ruas do centro”, na fita na testa “achada na rua”, no bronzeado
“juntamente com algumas micoses”, nas mãos espalmadas “os que dormem pelas ruas”.
Podem chamar Vitória de Vi ou de Vit, “ele – ou ela? Não estará sozinha na avenida
iluminada”, sempre acompanhada de Serra, Cariacica, Vila Velha, dançando no bloco “Grande
Vitória”. Vitória pode não dar certo como travesti, “mas não custa nada tentar”.
Percebemos algumas regularidades discursivas e representações acerca das travestis: trânsito de
gênero; oposição prática eventual versus sujeito; e, modelos de autoidentificação. Luiz
Fernando Tatagiba ao descrever a “montação” de Theda Bara destaca: “entrava
fraudulentamente em outra dimensão”. Tal colocação está presente numa perspectiva que
entende o gênero enquanto uma construção, mas o coloca como intrinsicamente ligado ao
sexo, isto é, montar-se Theda Bara, montar-se travesti, é algo que você apenas pode tornar-se,
não se ensina de berço como dito por Amara Moira604. Elias Veras ao analisar as bonecas, que
também passavam por esse processo de montar-se, lembra que “o termo boneca é empregado
para nomear homossexuais que se apropriavam de artefatos associados às mulheres para
realizarem performances femininas”605.
603
TATAGIBA, Luiz Fernando. Rua. Vitória: Fundação Cecíliano Abel de Almeida, 1986.
RODOVALHO, Amara Moira. O cis pelo trans. Estudos feministas, Florianópolis, v. 25, n. 1, p. 365- 373,
2017. p. 370.
605
VERAS, Elias Ferreira. Travestis: carne, tinta e papel. Curitiba: Appris, 2019. p. 61.
604
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Elias Veras idêntica a década de 1970 como um ponto de inflexão para pensarmos a
prática de travestir-se e o sujeito travesti. O tempo das perucas é um período anterior a década
de 1980, no qual travestir-se estava muito ligado a uma “prática eventual, clandestina e restrita
aos momentos e espaços privados”606. O tempo dos hormônios, que Veras designa como tempo
farmacopornográfico, mostra que “o sujeito travesti público midiatizado emerge [...] marcado
por uma série de transformações que afetaram a intimidade, o corpo, o gênero e a
sexualidade”, isto é, torna-se um sujeito com suas subjetividades607. Nesse sentido, o processo de
construção da identidade travesti passou por vários modelos de identificações. “Travesti de
peito”, “Travesti de rua”, “Travesti de trottoir” são, segundo Elias Veras, “categorias êmicas que
revelam o quanto a associação entre travesti, corpo transformado e prática da prostituição
marcaram/marcam as (auto)identificações dos sujeitos e sua aproximação-afastamento de certa
identidade travesti”608.
A crônica “Primeiro Amor” de Sebastião Lyrio foi publicada em 1983, no livro Tigres
de papel609. A crônica em formato de diálogos narra o encontro de Hilda e Isis, essa última que
tem seu nome revelado no último parágrafo. Hilda esperava Isis no bar, que chegou atrasada
por causa do trânsito. Hilda questiona se Isis gostaria de tomar uma cerveja ou se beberia outra
coisa. Isis responde: “Acho que vou pedir um Martini” e reclama do jeito que os outros clientes
do bar as olham: “É como se estivéssemos num zoológico”. Hilda questionou se Isis gostaria de
ir para outro bar, afirmando que haviam outros três no mesmo quarteirão. Isis fala que os
outros eram ainda piores que aquele. Hilda questiona se Isis gostaria de ir ao cinema assistir
Godard, que responde que já havia assistido na TV.
Isis pede para que Hilda mude de assunto, que responde: “OK, OK, não precisa se
zangar”, seguido de um silêncio. O garçom Haroldo trouxe a cerveja e Hilda reclama que
demorou. Hilda pergunta para Isis se a zanga passou, que questiona: “que zanga?” e pede
novamente para mudar de assunto. Hilda pede um beijo para Isis, que nega e fala que ali não.
Hilda questiona o problema e Isis argumenta: “Toda essa gente...”. Hilda insiste e Isis fala:
“Não, Hilda. Aqui não. Agora não”. Hilda questiona se seria a primeira vez de Isis beijando
uma mulher. Isis confirma que sim e pede para Hilda falar mais baixo.
606
Veras, 2019, p. 25.
Veras, 2019, p. 55.
608
Veras, 2019, p. 71.
609
LYRIO, Sebastião. Tigres de papel. Vitória: Fundação Ceciliano Abel de Almeida, 1983.
607
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As duas se organizam para irem embora. Isis ajuda Hilda a tomar o resto da cerveja. Pagam a
conta e saem. Fazia frio, vento forte, num trecho mais escuro Hilda cantarolou: “Primeira vez...
Primeiro amor...” e Isis responde confirmando e diz que a ama. Isis chama Hilda, que
pergunta: “O que é meu bem?” e beijam-se.
Lacy Ribeiro publicou o conto “As namoradas” no livro Avenida República: diária da
madrugada, em 1987 . O conto narra que duas mulheres que se namoravam estavam andando
610
na rua de mãos dadas “quando um jorro de luz [...] as iluminou” fazendo com que se
separassem e soltassem as mãos. Foram para um cantinho escuro da calçada onde puderam
voltar a ser aproximar e dar as mãos: “As pessoas as olhavam de soslaio, mostrando, com
meneios de cabeça e risinhos debochados, o espanto”. Uma delas subiu no ônibus e “a que
ficou na calçada teve um ataque de tosse, talvez pela fumaceira preta do cano de descarga do
ônibus que lhe roubava a amada”.
Nessa lógica, na literatura lésbica também verificamos regularidades discursivas e
representações: oposição afeto versus sexo; oposição privado versus público; o escuro como
uma heterotopia. A relação entre as categorias afeto e sexo é um debate presente na literatura
que lida com os relacionamentos entre mulheres. Nádia Nogueira nos fala “a questão do afeto
como elemento de aproximação entre duas mulheres é muito valorizada”611. O sexo é posto
como menos importante que o carinho e o afeto, ele aparece como consequência e não como
causa de alguns relacionamentos lésbicos612. Isso fez parte da construção da identidade lésbica,
que através de regimes reguladores foram categorizadas a partir verdades aceitas que atuam na
manutenção das categorias de gênero.
A apropriação de espaços públicos e própria relação dos relacionamentos lésbicos nos
espaços privados podem ser percebidas como espaços de construção e não exclusivamente de
assujeitamento das normas. Como vimos tanto da crônica “Primeiro Amor” quanto no conto
“As namoradas” a presença de lésbicas em ambientes públicos questiona as normas vigentes
que atuam sob os relacionamentos homoafetivos: “não precisam demonstrar isso em público”.
De igual forma, a repressão que atua em cima desses relacionamentos acaba por criar outras
formas de sociabilidade, isto é, atua como como incitação de subjetividades. É esse caráter
610
RIBEIRO, Lacy. Avenida República: (diário na madrugada). Rio de Janeiro: Catedra, 1987.
NOGUEIRA, Nádia. Invenções de si em histórias de amor: Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop. 2005.
315 f. Tese (Doutorado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH), Universidade Estadual
de Campinas, 2005. p. 93.
612
Nogueira, 2005.
611
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repressão/incitação que atua sob os corpos dissidentes e ao mesmo tempo que tenta
condiciona-los as normas vigentes acabam por incitar o surgimento de espaços de
sociabilidades que fogem dessas normas.
É nesse sentido que o “escuro”, nas crônicas, aparece como uma heterotopia de
sexualidade, isto é, um espaço-tempo em que se pode fugir das normas vigentes da
heteronormatividade. Michel Foucault destaca alguns princípios das heterotopias: toda
sociedade e cultura no mundo cria suas heterotopias; uma mesma heterotopia em determinado
tempo pode adquirir significado diferente do inicial; num mesmo espaço heterotópico pode
haver diversos espaços, inclusive serem incompatíveis; as heterotopias estão ligadas a pequenas
parcelas de tempos-momentos; pressupõem um sistema de inicio e fim; são capazes de criar
espaços-outros613. Percebemos então que em “Primeiro amor” e em “As namoradas” o escuro
da rua age como um espaço heterotópico, capaz de permitir que casais lésbicos desviem por
um pequeno espaço-tempo das normas reguladoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pudemos perceber que na década de 1970 e 1980 emergiu no Espírito Santo uma
literatura que tematizava as dissidências de gênero e sexualidade. A literatura como um gênero
de discurso tanto reproduz quanto produz discursos e representações acercas das categorias
que está falando. Se antes a literatura capixaba abordava as homossexualidades e travestilidades
em tom estigmatizante, verificamos, assim como afirma Francisco Ribeiro, que a geração de
escritores locais abordou as homossexualidades fugindo de uma regularidade discursiva e de
representações que os colocassem como fracos, doentes e depravados. Essa geração abordava
não só os controles que sujeitavam os corpos e sujeitos dissidentes, mas também mostrava
como existia uma pluralidade de experiências que cercavam e ainda cercam esses sujeitos.
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Narrativas nas margens: histórias e memórias de mulheres
Silvano Fidelis de Lira614
RESUMO: O texto é um recorte de minha dissertação de mestrado, defendida em 2015 junto
ao Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal da Paraíba, onde estudei
a constituição de memórias e sensibilidades de trabalhadores dos campos e motores de agave, a
principio a pesquisa seria realizada apenas com homens, contudo, os durante os caminhos da
pesquisa, segui o desvio e realizei entrevistas com mulheres para compreender qual o seu papel
desempenhado nesse campo de trabalho, bem como as os afetos, os sonhos e os desejos que
fizeram parte de suas vidas. Entendo que essas narrativas femininas narram uma História das
margens, que muitas vezes foram negligenciadas por uma historiografia que colocou o
masculino no centro de suas reflexões. Essas memórias nos levam a entender como se davam a
divisão do trabalho, mas também os sentimentos tecidos nas relações afetivas, e sociais que
marcaram a vida das fibreira na secunda metade do século XX.
PALAVRAS-CHAVE: Memórias; Sensibilidades; Mulheres.
O próprio cunhado meu, hoje em dia ele já morreu, ele tá pagandoonde ele tiver. O próprio
cunhado não tinha respeito, dizia cada um palavrão que fazia vergonha. No motor de agave.
Acredita? Era João de Conceição. Eu sofri muito.
615
As palavras de Julieta de Castro além de trazer para a discussão da presença das
mulheres nos campos de agave mostram também as tensões existentes entre homens e
mulheres, os conflitos que se configuravam o cotidiano do trabalho e que foram capazes de
deixar marcas, no corpo e na alma dessas pessoas. O ressentimento que ela mostra em sua fala
é uma resposta às humilhações e ao desrespeito a que estava submetida pelos candangos de
614
Graduado em História pela Universidade Estadual da Paraíba e Mestre em História pela Universidade Federal
da Paraíba. E-mail: silvanohistoria@gmail.com.
615
Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013.
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motor616. Os homens não só ditavam as regras a que elas deveriam ser submetidas, mas
também demarcavam os espaços em que elas poderiam habitar que deveria ir e vir. Essas
mulheres estavam controladas pelos dispositivos de masculinidade que dominavam o
trabalho nos campos e nos motores de agave, bem como grande parte de uma sociedade
machista e marcada pela dominação masculina (BOURDIEU, 2002).
Quando realizei as primeiras entrevistas617 com os trabalhadores dos campos e motores
de agave eu quase que desconhecia a participação feminina nesse trabalho. Até então só tinha
ouvido narrativas masculinas, ou de mulheres que ignoravam o trabalho de outras mulheres e
falavam apenas de homens. Em minha mente, tudo que se falava da produção, da
comercialização e do trabalho no campo de agave era masculino, era traçado pelos fios da
masculinidade. Aos poucos fui percebendo que mulheres também tiveram uma participação
direta naquela história. Quando entrevistei a primeira mulher, do grupo de dez pessoas que
colaboraram com a pesquisa, percebi que elas não só trabalharam, mas que tiveram um papel
de destaque, que embora fossem tidas como inferiores e subalternas, haviam constituído
novos espaços de criação de si, muito importantes para se compreender todo aquele enredo
que falava muito da História de Cubati.
Uma das primeiras entrevistas foi realizada com Dona Julieta, uma senhora de sessenta
e três anos, me recebeu em sua casa e narrou suas experiências, contou-me de como era difícil
trabalhar naquele lugar, de conviver com aqueles homens, embrutecidos, machistas e
extremamente opressores. Sentada num confortável sofá e rodeada de coloridas almofadas,
aquela senhora narrava suas memórias e ao mesmo tempo estabelecia comigo uma relação de
intimidade, falou de seus amores, de suas aventuras e de suas dores, dores da alma por está
num lugar onde era descriminada e hostilizada. Em primeiro lugar ela deixa claro que não era
a única mulher a seguir todos os dias às seis da manhã para o trabalho na fibra do agave;
Não. Era eu tinha doze anos, eu ia mais minhas irmãs. Ia mais minhas
irmãs, depois mais Miguelina, Miguelina que mora ali, tu sabe quem é.
Trabalhei mais Miguelina e a finada Nina, irmã dela. O finado Antônio
616
Candangos de motor é o termo que na época se utilizava para designar os homens que vivam nos motores de
agave, e que eram responsáveis tanto pelas atividades como pela administração do mesmo, portanto os contratos
e pagamentos eram realizados por eles.
617
As entrevistas foram realizadas entre os anos de 2013 e 2014, todas na cidade de Cubati, PB, onde residem os
depoentes.
679
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Velho, a finada Joventina e Inácio Benedito, nóis trabalhava tudim,
aquela ruma de gente trabalhando. Três mil réis, a semana, trabalhava
até umas onze horas, ai de onze horas ia almoçar.618
Identificar outros sujeitos que partilham da vida de quem narra a memória, além de ser
uma tentativa de identificação dentro de um grupo, faz parte do que a Sociologia, através dos
estudos de Maurice Halbwachs, chamamos de memória coletiva (HALBWACHS, 2013) uma
memória que não consegue existir por si só, mas que busca a todo tempo se entrelaçar com o
outro. Seguir cedinho para o campo de agave, unir as amigas e as irmãs para seguirem juntas
me parece uma primeira tentativa de se criar um universo feminino dentro daquele espaço
onde a palavra masculina era revestida de um sentido de autoridade e força. Mesmo o
cunhado dela era capaz de lhe dizer palavras, que feriam, que humilhavam e que a colocava
num lugar maldito, sobre elas pesava a intensa violência de gênero (SEGATTO, 2003), essas
mulheres estavam marcadas pelo signo da exclusão.
O olhar masculino de Francisco Maciel Neto lança sobre a questão do trabalho
feminino nos motores de agave, sua narrativa parece querer pacificar as lutas simbólicas entre
os homens e as mulheres, segundo ele, elas até podiam vir no motor, mas era só pra fazer
alguma coisa. Ele não desconsidera a existência de certo tipo de desrespeito por parte dos
homens, mas especifica que quando as mulheres chegavam eles mantinham o respeito, mas
diz em sua narrativa de maneira clara que elas eram excluídas, vinham e faziam alguma coisa,
mas tinham que voltar imediatamente para o campo, lá, longe, as mulheres estavam livres
daqueles rudes homens, de suas palavras, de seus atos e de seus desejos;
Era. Elas ficavam lá pro campo isoladas, se viessem no motor era pra
botar água, alguma coisa. Mais eram lá pros canto delas. Quando era
pra cuidar do feijão, alguma coisa elas vinham, mais eram separadas.
Era, viu? É, tinha sim. Tinha muito, mais depois se acostumava.
Porque o camarada tem que entrar com respeito, a mulher vem com
respeito. Se diz uma brincadeira é com um conhecido, uma brincadeira
618
Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013.
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ali, aquilo ali passa, ninguém fica aplaudindo não. As mulheres sempre
eram lá, no campo, estendendo a fibra limpando.619
Mas qual a necessidade delas precisavam ficar isoladas? Quais perigos ofereciam? Ou
será que corriam perigo? O campo, onde o agave era estendido pelas mulheres ficava numa
relativa distância do motor, lá elas tinham que limpar e estender toda a fibra. Era um trabalho
bastante penoso e a fibra ainda molhada estava completamente encharcada daquela substância
que provocava intensa coceira, isso fazia com que as mulheres tivessem seus braços atingidos
por aquele liquído, muitas vezes causando feridas.
Naquele espaço as mulheres tinham um espaço só delas, um recanto íntimo, onde
poderiam falar das coisas de que eram privadas pelos homens. Outros amores, outros sonhos,
outros desejos. As mulheres não se submetiam, faziam dali um espaço de criação de si, de
novas subjetividades. Algumas até gostavam de estar separadas daqueles homens, pareciam ser
mais alegres assim. Quem sabe aquele espaço feminino fosse também uma libertação, mesmo
que momentânea, do machismo do lar, exercido pelo pai ou pelo marido;
Quando a gente trabalhava era cantando, era rindo, era contando piada.
Tudo que a gente fazia naquela época a gente fazia alegre, por amor. Às
vezes tava chovendo e a gente ia tirar aquela fibra, tomava banho na
chuva. Ai a gente colocando no varal e a água caindo e a gente tomando
banho, ah era muito bom, isso em João Jerônimo né. Passei muitas
fazes muito boas. Lá em Osvaldo já era diferente, já ninguém ia pra
campo, lá em Osvaldo era misturado, era homem e mulher, assim, as
mulheres, num era misturado porque as mulheres ficavam num galpão,
os homens noutro pegado a fibra, jogando e a mulher pegando e
amarrando e jogando por ouro lado, pra depois fazer os fardo e os
carros levar. Era melhor em João Jerônimo, ganhava mais, mais era
muito atribulado, era muita mulher, muito homem.620
619
620
Francisco Maciel Neto, entrevista concedida em 07/01/2014.
Maria de Lourdes de Oliveira Santos, entrevista concedida em 22/12/2014.
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Para Maria de Lourdes aquilo era até bom, um espaço onde a alegria era mais intensa,
mais livre. Melhor do que quando mudou para trabalhar na fazenda de Osvaldo, onde o
trabalho era junto, homens e mulheres. As fibreiras, ainda sofriam outro tipo de violência,
dentro do trabalho elas eram consideradas frágeis, vulneráveis e mais preguiçosas, portanto
os homens determinavam que o pagamento de uma mulher devesse ser a metade do
pagamento oferecido aos homens. Duas mulheres não valem nem por um homem, diziam.
Outra coisa que chamava a atenção eram as vestimentas, se por um lado, o grande chapéu de
palha, o casaco de mangas compridas e a calça comprida protegiam do sol e do contato direto
com a fibra, essa indumentária também servia para esconder aquilo, que para o machismo a
mulher tem de mais perigoso, indomado: o seu corpo. A mulher além de isolada, ficava
também escondida.
Quase sempre, o marido trabalhava no motor e a mulher, ou suas filhas ficavam na
fibra, então esses homens queriam ocultar o corpo feminino daquelas que faziam parte de sua
família, assim as esconderiam dos olhares, dos desejos daqueles homens que tinham como
conduta o ser macho, ser dominador, sobretudo, sexualmente. Maria Hélia desobedeceu isso,
mãe, negra e separada ela se recusava a vestir aquilo.
Eu não gosto muito de lembrar porque a gente sofria demais. Essa
hora no sol quente, eu era da cor dessa televisão de preta, do sol. Eu
nem botava calça comprida, nem chapéu na minha cabeça. Botava só
um casaco por causa da fibra. Era um calor da mulinga.621
O calor, certamente dificultava muito a vida dessas mulheres que usavam essas roupas.
Trabalhando a céu aberto, elas passavam horas debaixo do sol escaldante, ao contrário dos
homens que ficavam no motor, que ficavam ou debaixo de uma latada improvisada ou
debaixo de alguma árvore de sombra, estando ao menos parcialmente protegidos do sol. Além
disso, elas ficavam distantes e só vinham ao motor nas horas das refeições, em alguns casos,
como relata Maria Hélia, comiam ali mesmo, e voltavam ao trabalho. A hora de comer
o feijão era, muitas vezes um momento de briga, de disputa, onde os homens queriam exercer
seu domínio e mulheres, semelhante a Julieta de Castro ousavam desafiar aqueles códigos
621
Maria Hélia de Sousa, entrevista concedida em 22/12/2014.
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opressores;
A gente fazia fogo. Ora conversava, num tinha tempo de conversar não.
A gente chegava e ia pra fibra, ai quando chegava de onze horas, aí o
puxador que tava lá atiçava o fogo, ai quando nóis chegava, ai naquela
hora a gente botava mais água no feijão, ai botava sal, tempero não, que
não existia tempero. Só era a água, o sal e o feijão. Feijão véi preto, da
cor de tirna, tão duro. A gente ia comer de doze horas, era durim,
desse feijão véi preto. Todo mundo almoçava junto. E tinha vez quando
a gente chegava, eles parava o motor de onze horas e ia comer. Ai a
gente que tava na fibra, estendendo e virando fibra, só chegava mais
tarde. Quando chegava num tinha mais nada, nem feijão, tinha só o
caldo limpim. Ai eu dizia, oxente a gente trouxe o feijão pra botar no
fogo e vocês comeram? Ai eles dizia, “ah, todo mundo bota uma
chicra, aí dentro da panela”, eu digo, eu botei a conta que dava pra eu
pra comadre Rita. Ele dizia, “como caldo se quiser, se não quiser vá
simbora pra casa”. Ai eu disse, pia comadre Rita, é a lei do diabo, essa
da gente aqui, era. Ai tinha vez que num tinha vez que eles nem tinha
respeito, dizia tanto palavrão no mundo, lá no motor. Eu dizia,
respeite que minha irmã é casada e eu sou uma criança, me respeite.
Eles dizia, “num tem respeito não aqui, pra quem trabalha no motor
junto com os machos num tem respeito não”. Foi, mais eu sofri muito.
O próprio cunhado meu, hoje em dia ele já morreu, ele ta pagando
onde ele tiver. O próprio cunhado não tinha respeito, dizia cada um
palavrão que fazia vergonha. No motor de agave. Acredita? Era João de
Conceição. Eu sofri muito.622
De fato, em alguns momentos parecia prevalecer a “lei do diabo” do diabo masculino
e opressor. A cena narrada por essa senhora mostra como a violência de gênero que
operava no dia a dia, nas relações cotidianas. Das quatro mulheres que colaboraram com esta
pesquisa, apenas Julieta de Castro narra tantas tensões na relação entre os homens e as
622
Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013.
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mulheres no trabalho com agave. Eu poderia dizer que isso se dá por causa de seu
temperamento forte, evidente durante toda a narrativa, essa seria uma explicação em um
primeiro momento. Mas comparando as entrevistas percebo que as outras, que narram menos
conflitos e embates tem uma coisa em comum, o fato de terem um homem como ponto de
referência trabalhando no motor.
Maria Hélia tinha seu pai trabalhando junto com os outros homens, e isso lhe permitia
estar no motor quando quisesse isso só deixa de acontecer quando ele morre, aí ela começa a
se distanciar dos homens, ficava só no campo, comia ali mesmo. As fronteiras entre os
homens se alargam quando ela perde sua referência masculina, com a ausência da imagem
protetora de seu pai, Dona Hélia passa, inclusive, a limitar os espaços por onde podia
andar,ou ficar juntamente com os homens. Após a morte de sue pai ela deixa de cozinhar com
os homens e faz suas refeições longe deles, de maneira isolada, juntos às fibras que estendia.
Outra mulher entrevistada, Maria de Lourdes Oliveira, tinha uma condição ainda
melhor. Seu pai, Agenor Cassimiro, era, durante o período em que ela trabalhou como
fibreira, o administrador da fazenda São Domingos, que pertencia a João Jerônimo. Seu pai, a
quem chamavam de encarregado, era responsável por vigiar o trabalho dos candangos, o
funcionamento dos motores e elaborar a lista de pagamento dos trabalhadores, ele era a
extensão do poder do patrão. Evidentemente isso lhe fazia um homem temido, ou no
mínimo, respeitado. E quem ia desrespeitar sua filha? Ela não se refere a nenhuma cena de
violência de gênero, possivelmente, não tenha presenciado mesmo. Até porque, seu pai era
como se fosseo patrão, então a ela se direcionava certo respeito. Ela narra que;
Não. Era separado. Porque os homens ficaram lá, eu e minha irmã,
que na época era adolescente, a gente teve uma época que a gente
pegava o agave, os homens limpava, puxava, no meu tempo chamava
assim, puxava o agave, ai outro, o que chamava bagaceiro, que pegava o
bagaço, amarrava e eu pegava e colocava no burro e levava pra outro
canto pra as mulher estender. Na época quando era adolescente o meu
trabalho era esse, depois quando fiquei maior eu fui estender, lavei
também o agave, mais era separado o povo. Não. Não tinha nada a ver.
Porque meu pai não ficava bem no foco, teve época que ele ficava bem
no foco, mas depois ele ficava na fazenda inteira. A turma que eu
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trabalhava sempre me respeitava, mesmo que a gente num ficava muito
lá. A gente pegava o agave, levava pra fazenda, o agave era no mato,
nos campos lá. Naquela reta grande que você sabe onde é. A gente
pegava o agave, colocava no burro e ia pra fazenda, que os canto de
estender era na fazenda. Então, em São Domingos pelo menos, não
tinha disso não. Eu num vi nem falar. Porque eu só trabalhei lá, lá e
em Osvaldo.623
Ainda, uma terceira mulher fala de não ter presenciado esse tipo de coisa, mais uma
vez trata-se de quem tem uma relação com um homem do motor, nesse caso, Marineide
Duvales se refere com saudades do seu pai, sempre severo e correto. Ainda uma coisa deve
ser levada em conta em sua narrativa, ela não era fibreira, visitava o motor apenas para
observar. Na infância tinha plantado agave e ajudado o pai nos mais diversos trabalhos da
roça, mas quando ele melhorou de vida tirou logo ela e suas irmãs daquele trabalho, que ela
diz ser o pior de todos.
Era mais homens, porque, assim, pra estender a fibra é sempre uma
mulher, dificilmente tinha um homem pra trabalhar na fibra, sempre é
mulher, ai eu participava assim, porque sempre tinha aquele, porque
mamãe fazia muito bolo na época pra vender aquele pessoal do motor,
tinha dia, era na quinta feira pra levar na sexta, mamãe fazia bolo e a
gente ia lá entregar a eles, e comiam lá mesmo, debaixo dos
umbuzeiro, num umbuzeiro não, numa barraca, eles montava aquela
barraca e lá mesmo, aquela comida, sei lá, mas eles comiam lá mesmo,
e eu vinha aqui pra casa. Mas a gente sempre tava ali. Papai deixava,
papai nunca se importou, ele deixava, sempre a gente participou junto
com aqueles, que chamava os candango de motor. Pode ir com eles, ai
a gente sempre tava participando de tudo. Ajudava só não mamãe que
num ia, mais a gente ajudava quando era aqui perto, aquilo dava uma
coceira sem fim gente, aquela fibra do agave. É difícil. 624
623
624
Maria de Lourdes de Oliveira Santos, entrevista concedida em 22/12/2014.
Marineide Pereira Duvales, entrevista concedida em 19/12/2014.
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Maria Hélia, Maria de Lourdes e Marineide tinham uma coisa em comum que as
distinguia de Julieta de Castro. As três primeiras contavam com um homem da família no
espaço do motor, eram respeitadas não por causa delas, mas por causa deles. O que se
constitui também em uma violência, em um apagamento do sujeito em detrimento de outro.
Sem eles, elas voltariam a ser mulheres mal faladas, disputadas como objetos de desejo entre
aqueles homens. O corpo feminino é transpassado assim por vários discursos, que as
inferiorizavam, que as anulavam, essas mulheres eram transpassadas por uma regulamentação
binária da sexualidade (BUTLER, 2014, p, 41).
Dessa forma, as mulheres eram classificas de acordo com categorias de exclusão, sua
presença no espaço habitado pelos homens não era apenas indesejadas, mas
era
regulamentada por um sistema de de esclusão. Se podiam adentrar ali era porque estavam
tuteladas pela presença masculino de um parente próximo ou cônjuge. O corpo era o corpo
maldito, indisciplinado e até mesmo nocivo ao desenvolvimento do trabalho, elas poderiam
desviar os olhares, as atenções. Poderia causar acidentes? Em certo sentido sim. Não apenas
nos corpos, mas também em suas vidas, em suas subjetividades. É certo que o masculino,
mesmo em sua visível força e dominação, teme a mulher. A separação entre os gêneros que é
possível observar nesse mundo do trabalho queria não apenas promover uma divisão social e
sexual do trabalho no motor, há uma vontada escondida por trás disso, não é uma coisa
lnatural. Há uma vontade de controlar os fluxos de desejos (ALBUQUERQUE, JR., 2013)
que poderiam contribuir para um desmantelamento da subjetividade masculina, pautada na
razão, na produção econômica e na sociedade ainda patriarcal.
Mas essas mulheres, cada uma de sua maneira, também criaram novos espaços de
invenção de si, souberam aproveitar as brechas de um sistema opressor e forjarem novas artes
de viver (FOUCAULT, 2004) maneiras artísticas de existência. Essa arte da existência se
mostra, sobretudo, através da deseobediência, em ações demarcadas como proibidas pelos
homens, para subverter a dominação masculina elas viviam namorando escondido, saindo
para lugares não permitidos. E, até mesmo, coisas simples, triviais para quem estava fora
daquela realidade a que foram submetidas, como cantar com as amigas e criar um espaço de
alegria, de felicidade momentânea, tudo isso se constituía em uma nova forma, inventada,
planejada longe do poderdo macho, de ser mulher.
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Julieta de Castro é um exemplo de mulher que se revolta com a condição que era
forçada a viver, em sua narrativa conta as diversas vezes em que “bateu boca” com os “caba”
do motor, os motivos eram diversos. Certa vez ela discutiu com seu cunhado por não tolerar
tanto desrespeito, de outra vez ela reagiu por ter passado a manhã inteira trabalhando na fibra
e quando chegou para fazer a refeeição não tinham deixado nada pra ela, só tinha o caldo de
feijão. Segundo ela aquilo era a “lei do diabo”. Em alguns momentos da narrativa, e não são
poucos, ela fala muito do sofrimento que as mulheres passavam, trabalhando muito e
ganhando pouco, sofrendo todo tipo de violência, se submetendo àqueles homens brutos,
quase animalizados.
Mas, ela, assim como as outras, como as outras sabia escapar, sabia aproveitar as
poucas oportunidades que tinha para forjar suas subjetividades de mulher, de “mocinha”
como ela fala, mesmo em casa essas mulheres não escapavam desses dispositovos de
exploração, ali estavam tuteladas por uma estrutura familiar que também oprimia, que as
tornava responsáveis pelas coisas de casa, por ajudar nas tarefas domésticas;
Ai no domingo, mãe botava o quilo de porco no fogo, botava o arroz e
a gente almoçava, ai, ia lavar roupa dos meninos do motor de agave, ia
pros tanques de manhã lavava a roupa, ai nois, tomava banho nos
tanques, ai almoçava. E nois dizia, agora nois vamo pra rua. Mãe dizia
“vai nada, vai remendar as roupas dos meninos, do motor de agave.”
Eu dizia, ai minha Nossa Senhora, eu quero ir pra rua. Ai pegava a
agulha veia, botava a linha e ia botar os remendos nas camisa deles, nas
calças, ai quando remendava, ai quando eu vinha pra rua era três horas
da tarde. Ai assistia a novena de noite, ai na rua, no domingo, a novena.
Ai quando dava dez pra onze horas a gente ia pra casa, eu e ela sozinha.
As vez, nois arrumava namorado, eu ia com um e ela com outro. Eles
deixar na porta de casa. Deixava a gente porta. Ai o povo ia dizer aos
meninos. Ai foram dizer que eu tava namorando com um soldado. E
ele ia me deixar na porta de casa. Ai ele me deu uma pisa com uma
macaca de boi, quase que me matava, com a macaca. O soldado disse,
“eu vou matar ele com um tiro na boca”, ai eu disse, não, não faça isso
687
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não, porque se você fizer, eu acabo agora mesmo. Eu disse, vamos
namorar escondido.625
Essas mulheres não fizeram nenhum tipo de grande revolução, não protagonizaram
nenhum evento da luta pela humanização daquele trabalho, o seu mérito está em, nos
pequenos e moleculares espaços, subverterem à ordem, inventarem novas formas de vida,
desafiaram o que lhes era imposto de uma forma micro, simples e para muitos invisíveis.
Ficaram ocultas, “isoladas no campo”, como narrou um dos colaboradores da pesquisa, e hoje
elas só desejam ser ouvidas, pois isso possibilito a elas se constituírem narrativamente, criarem
uma identidade que lhes foi negada, uma subjetividade feminina quase sufocada pelo
machismo dos homens do motor. Suas falas guardam potências, formas e sentidos que, embora
façamos um grande esforço, seremos incapazes de decifrar completamente. É preciso
empreendermos um trabalho historiográfico que lhes permita a fala antes da interpretação
(ROVAI, 2021).
Mulheres simples, mulheres de fibra, que conseguiram subverter códigos contrariar
disciplinas e dar um rosto feminino ao duro e difícil trabalho nos campos e motores de agave
que se espalhavam por Cubati, a partir da segunda metade do século XX. Mulheres fortes,
mulheres frágeis, mas que sempre nutriram grande força, potências que nós não somos
capazes de compreender ou de decifrar, seguimos, pois o desafio de ouvir é tão importante
quanto o desafio de interpretar, talvez devessémos inciar nosso conhecimento sobre o passado
não pelos centros, mas a partir das margens.
REFERÊNCIAS:
ALBUQUERQUE, JR. Durval Muniz de. Nordestino: invenção do “falo” – uma história do
gênero masculino (1920-1940). 2ª ed. São Paulo: Intermeios, 2013.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Tradução de Maria Helena Kühner. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
FOUCAULT, Michel. Uma estética da existência. In: _________. Ditos e escritos, volume V:
ética, sexualidade, política. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa. 3ª ed.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, pp, 281-286.
625
Julieta de Castro da Silva, entrevista concedida em 29/07/2013.
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HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Tradução de Beatriz Sidou. 2ª ed. São Paulo:
Centauro, 2013.
ROVAI, Marta de Oliveira (Org.). Escutas sensíveis, vozes potentes: diálogos com mulheres
que nos transformam. Teresina: Cancioneiro, 2021.
SEGATTO, Rita. Las estructuras elementales de la violência: Ensayos sobre género entre la
antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal, Universidad de Quilmes, 2003.
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ST11 – Dinâmicas Religiosas na História
As mulheres na Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios da Cidade das Alagoas
(1851-1900)
Élida Kassia Vieira da Silva
626
Resumo: O presente trabalho busca elaborar apontamentos iniciais sobre as relações entre
gênero e religiosidade a partir da irmandade do Bom Jesus dos Martyrios, localizada na cidade
das Alagoas (atual Marechal Deodoro), entre 1851 e 1900. Com base no livro de entrada da
associação, do Compromisso e de notas encontradas nos jornais circulantes em Alagoas no
período proposto, pretende-se problematizar a presença feminina nos espaços de poder da
irmandade, assim como estabelecer conexões entre o percentual de participação feminina e
seus respectivos estados civis.
Palavras-chave: Irmandades religiosas. Bom Jesus dos Martyrios. Gênero e poder.
Mulheres, poder e historiografia
Enquanto campo de conhecimento, a historiografia sofria em seus primórdios o
domínio e a influência dos homens. Esse domínio levou a uma produção historiográfica que
privilegiava a ação masculina na história, assim como no ambiente público. Segundo Maria
Gabriela e Nadja Paraense
627
“[...] o registro da história, de maneira geral, privilegiava os
cenários público, políticos, econômico e de guerra, nos quais as mulheres não estavam
incluídas”. Nesse sentido, o privilégio masculino reverberou em uma invisibilidade feminina na
história.
Essa invisibilidade atuou tanto nas narrativas sobre as mulheres, quanto na própria
produção historiográfica, situação que tem mudado há pouco tempo, com a entrada das
626
Graduada em licenciatura em História e mestranda em História pela UFAL, professora de História
da rede pública e privada de Alagoas e membra do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das
Religiões – Lier – da Universidade Federal de Alagoas.
627
SANTOS, Nadja Paraense; SILVA, Maria Gabriela Evangelista Soares. A historiografia e a
exclusão da história das mulheres. In: Scientiarum Historia IX: Congresso em História das Ciências e
das Técnicas e Epistemologia, 9, 2016, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro, RJ: UFRJ, 2016.
Disponível em: http://www.hcte.ufrj.br/downloads/sh/sh9/SH/trabalhos%20posteres%20completos/AHISTORIOGRAFIA.pdf . Acesso em 23/08/2019.
690
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mulheres nos cursos de História e a consequente escrita da história pelas mulheres. Desde
então, as historiografias sobre tais problemáticas têm suscitado debates e olhares múltiplos, e
pode-se observar o crescimento de trabalhos com recortes de gênero, trabalho feminino, etc.
Para Joan Scott , a análise histórica a partir do recorte de gênero contribui para a formação de
628
“novas perspectivas sobre velhas questões”. Essa mudança nas tendências historiográficas foi
objeto de reflexão para diversos autores, entre eles Michel de Certeau, que apontou as relações
entre estrutura e conjuntura como pontos importantes a serem levados em consideração na
historiografia e que levam a mudanças na forma de se produzir a história. Conforme destacado
pelo autor
Uma situação social muda ao mesmo tempo o modo de trabalhar e o tipo de
discurso. Isso é um "bem" ou um "mal"? Antes de mais nada, é um fato que se detecta
por toda parte, mesmo onde é silenciado. Correspondências ocultas se reconhecem
em coisas que começam a se mexer ou a se mobilizar juntas, em setores inicialmente
tidos como estranhos. É por acaso que se passa da "história social" à "história
econômica" durante o entreguerras, por volta da grande crise econômica de 1929, ou
que a história cultural leva vantagem no momento em que se dispõe por toda parte,
com os lazeres e o mass media, a importância social, econômica e política da
"cultura"?
629
Cabe ressaltar que o recorte de gênero não se insere isoladamente no campo
historiográfico, mas faz parte de um conjunto com outras perspectivas que questionam velhos
paradigmas históricos. Como exemplo desses novos questionamentos, pode-se destacar a obra
de Michelle Perrot, intitulada Os excluídos da história630. Nela, a autora lança olhares sobre
grupos comumente invisibilizados no debate historiográfico: mulheres, operários e prisioneiros.
A história que até então era dominada pelas elites, pelos “grandes líderes”, pelos generais,
avança com a possibilidade de novos olhares com a história vista debaixo631.
As irmandades religiosas no Brasil
As irmandades religiosas foram associações populares na América Portuguesa e no
Brasil oitocentista. Como associações coletivas, eram responsáveis por concentrar diversos
628
SCOTT, Joan Wallach. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.
Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 93.
629
CERTEAU, Michel de. A escrita da história, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 59.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história. 4ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006.
631
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p. 280-300.
630
691
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aspectos importantes da vida social: as festas, o catolicismo, a solidariedade, o “bem morrer”,
etc. De forma geral, existiram diversos tipos de irmandades religiosas, e os critérios de
pertencimento variavam de acordo com o grupo social; assim, havia associações para brancos,
pardos e negros, e diversas irmandades aceitavam associados de diferentes etnias. Além do
critério fenotípico, é importante destacar que muitas irmandades surgiram a partir da condição
do ofício ou da classe dos associados. Apesar de se constituírem como espaços plurais, pode-se
estabelecer alguns elementos comuns a elas: a fé católica, a devoção a um santo escolhido pelos
associados, a existência de um compromisso regulador (espécie de estatuto com os
regulamentos da irmandade), a mesa regedora (grupo eleito pela própria associação para
administrá-la), as práticas de fraternidade cristã e o acúmulo de bens materiais.
Para Vainfas , as irmandades religiosas eram
632
Exemplo do catolicismo herdado do período colonial, as confrarias eram
associações organizadas por leigos e sediadas nas igrejas. Denominavam-se
irmandades ou ordens terceiras, sendo que as últimas se diferenciavam das
primeiras por estarem ligadas às ordens religiosas. Podiam reunir membros
de diferentes origens sociais, estabelecendo solidariedades verticais, mas
também servir como associações de classe, profissão, grupo étnico ou cor.
[...]
As festas organizadas pelas irmandades em homenagem aos santos
padroeiros, ou a outros, eram o momento máximo na vida dessas associações.
Nesses momentos, afirmava-se a força daquela devoção, e a de seus próprios
membros, criando-se uma oportunidade de arrecadação dos fundos
necessários para a assistência, pois se aproveitava a ocasião para a cobrança
das mensalidades atrasadas.
Conforme destacado pelo autor, as festas religiosas configuravam-se como os pontos
altos de sociabilidade para a sociedade oitocentista. Muitos autores atribuem, inclusive, o
surgimento de novas sociabilidades no início do século XX como um dos motivos para o
declínio das associações religiosas.
As mulheres nas irmandades religiosas no Brasil
632
IRMANDADES. In: Dicionário do Brasil Imperial. Rio de Janeiro: Objetiva, 2008, p. 390.
692
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Sendo a vida pública o espaço de atuação masculino, a participação das mulheres nas
irmandades e na vida religiosa popular também foi objeto de estudos na historiografia. Alguns
historiadores problematizaram a ação feminina nas associações a partir dos espaços de poder
nelas contidos. João José Reis afirmou que nas irmandades africanas a participação feminina
633
era desejada provavelmente para “aumentar o estreito mercado afetivo dos homens”. Dessa
forma, segundo o autor, a presença feminina era incentivada para atender as necessidades de
socialização masculinas. Problematizando outro aspecto da presença feminina nas associações,
o autor destacou que os cargos diretivos ocupados por mulheres não passavam de “cargos
honoríficos”. Muitas irmandades possuíam cargos para serem ocupados por homens e
mulheres na mesa regedora. Corroborando com a visão do autor, algumas pesquisas apontam
que, enquanto os diretores possuíam direitos a decisões importantes dentro das associações, as
mulheres ingressavam nesses espaços com a função de cuidar das festas e eventos.
Considerando a importância desses aspectos para a vivência do catolicismo, não se deve
desprezar a importância das mulheres nesses espaços. A experiência das festas muitas vezes
poderia constituir o catolicismo vivenciado pela população. Dilermando Ramos destacou a
634
importância das instituições na fé popular, ressaltando que muitas características a respeito do
vivencial da religiosidade católica estavam ancoradas nas irmandades religiosas:
(...) o católico brasileiro não lia a Bíblia, pouco participava dos sacramentos
(exceção feita ao batismo), e assistia esporadicamente à missa, celebrada em
latim, incompreensível para a quase totalidade dos presentes, (...). Coube
então às procissões e novenas a função de darem o caráter vivencial a religião,
(...).
Cabe ressaltar também os apontamentos feitos por Juliana Sampaio, que estudando a
presença feminina na Irmandade do Rosário de Santo Antônio em Pernambuco, destacou que
o espaço para atuação de mulheres era mais aberto nas irmandades de pretos e pardos, se
comparado ao espaço ocupado nas irmandades de brancos. A autora também enfatizou o
discurso religioso do século XVIII sobre o papel ideal a ser seguido pelas mulheres:
633
REIS, João José. A Morte é uma Festa: Ritos Fúnebres e Revolta Popular no Brasil do Século XIX. São
Paulo: Companhia das Letras, 1991. p. 70-71.
634
VIEIRA, Dilermando Ramos. O processo de reforma e reorganização da Igreja no Brasil: 1844-1926. São
Paulo: Santuário, 2007, p. 182-183.
693
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A mulher perfeita, na visão católica, deveria assemelhar-se à Virgem Maria,
símbolo de pureza e castidade, em oposição à imagem da Eva, detentora do
mal e do pecado. Maria era considerada emblema da perfeição humana.
Imaculada, diferentemente do restante da humanidade corrompida pelo
pecado original, e afetada em sua alma pela dor do Cristo, era o ser mais
próximo do Criador, sendo escolhida por Ele para ser mãe de seu filho e,
consequentemente, segundo a Igreja, mãe do próprio Deus. Todas as
mulheres possuíam então a obrigação de seguirem o modelo mariano e o
culto às suas mais diversas manifestações se tornou fervoroso e popular, tanto
nas metrópoles européias católicas quanto em suas possessões, colaborando
inclusive na conversão dos colonizados.635
Irinéia Maria Franco dos Santos fez uma importante indicação quanto as relações de
gênero dentro da irmandade do Rosário de Anadia: no ano de 1880, após as eleições para
cargos da irmandade, foram escolhidos como rei e rainha José e Anna, ambos escravizados;
como juiz e juíza, Joaquim e João, ambos também escravizados . O curioso é que nesse caso
636
específico, um homem ocupou o cargo que deveria ser destinado a uma irmã. Segundo a
autora, tal procedimento pode ter sido adotado devido à falta de associadas. Contudo, a falta de
documentação não permite um apontamento conclusivo.
Alguns dados sobre a participação feminina na Irmandade
Analisando a documentação específica a respeito da Irmandade dos Martyrios da
cidade das Alagoas, é possível identificar alguns pontos a serem problematizados. Seu
compromisso é breve e de fácil leitura, apontando a constituição da mesa da seguinte maneira:
CAPITULO II
Da mesa, sua eleição e obrigações.
SAMPAIO, Juliana da Cunha. Irmãs do rosário de Santo Antônio: gênero, cotidiano e sociabilidade em Recife
(1750-1800). 2009. 160 f. Dissertação (Programa de Pós-Graduação em História) – Universidade Federal Rural de
Pernambuco, Recife. p. 27
SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. A caverna do diabo e outras histórias: ensaios de História social das
religiões (Alagoas, séculos XIX e XX). Maceió: Edufal, 2016, p. 123.
635
636
694
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Art. 5.º A irmandade será representada por uma mesa composta de um juiz,
um escrivão, um secretario, um thesoureiro, quatro procuradores e doze
irmãos de mesa; todos terão o voto deliberativo nas respectivas sessões, e a
mesa não poderá funccionar sem que se achem reunidos pelo menos oito
irmãos, inclusive o seu presidente.
No capítulo VIII do Compromisso, intitulado Disposições Gerais, o artigo 37 destaca que
Art. 37. Haverá na nossa irmandade, além dos empregados mencionados no
artigo 5.º uma juiza que pagará a joia de trinta mil réis e uma escrivã, a qual
dará a joia de quinze mil réis. Si estas empregadas não forem irmãs, serão
admittidas sem mais formalidades, não pagarão quota alguma a titulo de
entrada, e si o forem ficam isentos de pagar annual no anno que servirem
estes empregos.
Como se pode observar, os cargos ocupados por mulheres são destacados fora do
capítulo que trata sobre a mesa regedora. A juíza e a escrivã não eram parte integrante da mesa
regedora? Essa disposição dos termos no compromisso pode indicar que os cargos para
mulheres existiam à parte em relação aos cargos para os homens. Há, nesse caso, um indício da
participação feminina em segundo plano.
Outro aspecto importante a ser observado é o número de cargos ocupados por homens
e mulheres. Há uma discrepância na quantidade de cargos. Contudo, para que não se realize
uma análise descuidada, precisa-se levar em consideração as taxas de participação da irmandade
divididas por sexo, como demonstrado no gráfico abaixo:
695
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Fonte: Arquivo pessoal.
Assim, enquanto os homens constituíam 64% da irmandade em discussão, as mulheres
constituíam 36%. A análise objetiva do livro de entrada pode indicar aspectos importantes de
uma associação religiosa, mas é necessário um cuidado com a interpretação dos dados, uma vez
que o cotidiano pode ultrapassar a dimensão do registro oficial. Assim, o livro de entrada pode
fornecer indícios, mas não dados objetivos de uma realidade concreta.
Ao observar a porcentagem de cargos destinados de acordo com os sexos, obtém-se a
tabela abaixo:
Cargos
Homens
Mulheres
Juiz
Juíza
Escrivão
Escrivã
Secretário
-
Tesoureiro
-
Procurador
-
Irmão de Mesa
-
Fonte: Arquivo pessoal.
Organizando as informações da tabela acima em um gráfico, pode-se compreender
melhor a divisão dos “espaços de poder” por sexo:
696
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Fonte: acervo pessoal.
Nesse sentido, enquanto as mulheres representavam 36% da irmandade, os cargos
ocupados por elas em relação aos homens constituíam apenas 25% do total, enquanto os
homens constituíam 75% dos cargos diretivos. Há ainda a forte possibilidade de os cargos
direcionados para mulheres não possuírem o mesmo nível de poder que os cargos exercidos
por homens, conforme problematizado anteriormente, colocando-os com 100% do comando
da associação.
Cabe ainda uma última problematização, a respeito do estado civil das mulheres. De
acordo com os dados obtidos pelo livro de entrada, a condição civil das associadas se distribui
da seguinte maneira:
Fonte: Acervo pessoal.
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Inicialmente, pode-se problematizar o motivo da baixa adesão (ou pelo menos do baixo
registro) de mulheres viúvas. Enquanto as mulheres casadas constituíam 57% da irmandade, as
solteiras formavam 36% e as viúvas apenas 7%. Esse dado pode ressaltar o papel protecionista
masculino na sociedade oitocentista, já que até mesmo as mulheres solteiras geralmente eram
associadas a um homem, como por exemplo, ao pai.
As mulheres da irmandade nos jornais de Alagoas
Como as mulheres associadas deixaram registro de seus nomes no livro de entrada, é
possível buscar informações sobre elas nos jornais de Alagoas. É importante destacar que a
pesquisa por mulheres nesses jornais é bastante problemática, pois pode-se perceber de
maneira geral que a individualidade feminina era suprimida, e isso se deu justamente pela visão
sobre a mulher do período. No periódico Gutenberg, publicado em 1911, lê-se a seguinte nota
fúnebre
Missa funebre
Realizar se-há na proxima segunda-feira, na igreja do Livramento, missa em
suffragio da alma de d Crecencia Sinhorinha da Gama Leite.
Há o registro de Crecencia Sinhorinha da Gama Leite no livro de entrada, datado de
1850, com os anuais pagos até 1866. Há ainda a informação de seu local de origem: Alagoas
(cidade das Alagoas). Apesar de não haver a confirmação por fontes de que trata-se da mesma
pessoa, pode-se supor essa possibilidade a partir do recorte temporal e territorial. Uma nota em
jornal sobre a missa de sétimo dia pode indicar uma condição social privilegiada por parte da
família de Crecencia.
Analisando outros dados sobre as mulheres da irmandade, pode-se perceber um
conflito bastante interessante, possivelmente envolvendo uma associada, chamada Candida
Maria do Espírito Santo, cuja entrada data de 1870, com anuais pagos até 1896. O conflito foi
noticiado pelo periódico O Orbe em 1879:
[...] A’ 27 do mez passado, Alexandre, - subdelegado da Colonia, prendeu a
Candida Maria do Espirito Santo, bem como tres mallas com roupa, um
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cavallo e silhão pertencentes àquella, que foi remettida do Delegado deste
Termo, o qual mandou recolhel a á disposição da Chefatura de policia,
ficando em poder d’aquella subdelegacia os ditos objectos.
Detida a paciente já ha um mez, sem legalidade alguma, (senão o poderio e
vontade dos homens da situação) recorreu ao nosso amigo, Tenente Marinho
o qual requereu e obteve em seu favor uma ordem de habeas-corpus, e
procura haver agora pelos meios legaes os bens ali conservados em poder da
policia!
O Justo.
Com a prisão aparentemente ilegal de uma mulher detida sem justificativa e com seus
objetos retidos pela polícia, apesar do habeas corpus, o jornal denuncia um abuso de poder das
autoridades. Infelizmente, até o momento não foram encontrados registros sobre o motivo da
prisão ter ocorrido ou maiores detalhes do caso, que ajudem a compreender se Candida Maria
era de fato acusada erroneamente ou quais as razões para o conflito. É importante também
destacar que se tratando da mesma pessoa, nesse período a associada estava diretamente ligada
à irmandade. É interessante questionar de que forma a associação pode ter agido em socorro
da acusada, inclusive com a denúncia no jornal, uma vez que tais espaços tinham como base de
sua formação a ajuda mútua. Infelizmente, os limites estabelecidos pelas fontes trabalhadas até
o momento não permitem maiores afirmações.
Conclusão
Como discutido com as fontes e a bibliografia, a presença das mulheres na irmandade é
uma problemática que desperta mais questões do que respostas. Parte desse problema se dá
pela escassez de fontes sobre o período, mas parte disso se deve a própria produção
documental de uma época que se preocupou em destacar o homem e invisibilizar a mulher no
espaço público, gerando silenciamentos.
Apesar disso, é relevante o questionamento sobre o próprio silenciamento e qual o seu
significado para a historiografia. Um silenciamento histórico também comunica algo, pois revela
características, personagens e problemáticas que foram evitadas ou propositalmente
699
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invisibilizadas por determinadas sociedades. Esse fato é extremamente relevante, uma vez que a
história também é constituída por silenciamentos, conforme ressaltou Trouillot .
637
Os dados iniciais permitem concluir que na irmandade religiosa do Bom Jesus dos
Martyrios da Cidade das Alagoas, os papéis femininos e masculinos reforçavam os papéis dados
pela estrutura social do Brasil oitocentista em geral. Mulheres e homens eram divididos de
acordo com os sexos, e os menores espaços eram reservados para as mulheres. Até o
momento, não se pode encontrar espaço para o contraditório, ou ainda algo que fuja as regras
estabelecidas na sociedade em geral.
Sem espaço de destaque nas irmandades, a imprensa também atuou como um agente
silenciador dessas mulheres, visto que nessas produções, elas eram tratadas de forma genérica,
com notas de enterros ou missas de sétimo dia. A outra possibilidade de elas serem citadas nos
jornais é mediante problemas de desordem social, como no caso da prisão de Candida Maria,
citada anteriormente. Cabe ressaltar, contudo, a importância de novas pesquisas que permitam
aprofundar o olhar sobre tais aspectos, problematizando as questões de gênero na sociedade
oitocentista.
Referências:
Fontes:
Fundação Biblioteca Nacional: Hemeroteca Digital Brasileira. Gutenberg, ano XXXI, Maceió –
1911, nº 75.
Fundação Biblioteca Nacional: Hemeroteca Digital Brasileira. O Orbe, ano I, Maceió –1879, nº
66.
Compromisso da Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios de 1861. Compilação das Leis Provinciais de
Alagoas de 1835 a 1872 por Olympio de Arroxelas Galvão e Tiburcio Valeriano de Araújo. Legislação e
actos dos annos de 1860 a 1867. Tomo IV. Maceió, 1872. – Arquivo da Cúria Metropolitana de
Maceió.
Livro de entrada da Irmandade do Bom Jesus dos Martyrios das Alagoas - Arquivo da Cúria
Metropolitana de Maceió.
Bibliografia:
CERTEAU, Michel de. A escrita da história, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017.
637
TROUILLOT, Michael-Rolph. Silenciando o passado: poder e a produção da história. Curitiba:
huya, 2016.
700
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701
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
““Ou cismas, ou prisões, ou apostasia ou cadeia”: Administração das freguesias da
província no contexto de embate entre o regalismo e o ultramontanismo em
Alagoas (1859-1868)
Lydio Alfredo Rossiter Neto
*
Resumo: Esta comunicação tem como objetivo estudar as atuações dos membros do
episcopado olindense e do clero Alagoano, sob a tutela do Padroado Régio, na gestão das
freguesias de Alagoas e a restauração ultramontana enquanto representação de gradual reforma
institucional no fim do segundo reinado. Em particular, observar de que forma os aspectos
econômicos, políticos e sociais do período influenciaram a interiorização dos preceitos
eclesiológicos, regalista e ultramontano na província.
Palavras-chave História de Alagoas, Documentação Eclesiástica, Relações de poder.
Introdução
Esta é uma breve análise das fontes oficiais, ofícios e correspondência da Igreja Católica
– episcopado olindense e das vigarias da província de Alagoas, com recorte temporal de 18591868, com objetivo de estudar as atuações desses agentes clericais, sob a tutela do Padroado
Régio, na gestão das freguesias. Em particular, investigar a “denúncia” de ingerência feita pelo
Pe. Domingos José da Silva (1800-1870), enviada ao vice-presidente da província, Silvério
Fernandes de Araújo Jorge (1817-1893), com o intuito de averiguar de que forma este conflito
contribui para a compreensão das mudanças de cunho jurídico e administrativo e seu impacto
social nas vilas e cidades.
Foram contemplados o estudo das instituições do Império Brasileiro, por meio da
averiguação dos ofícios obtidos no Arquivo Público de Alagoas – APA. Esta opção deu-se pela
capacidade do conhecimento de seu aspecto técnico ser “frequentemente indispensável para os
estudos dos fenômenos sociais” (HESPANHA, 1982, p. 36). Baseando-se no conceito da
secularização
638
do Estado brasileiro, faz-se necessário: compreender de que maneira as
Mestrando do programa de pós graduação em história pela universidade Federal de Alagoas – UFAL;
Membro do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER).
O termo secularização aqui utilizado parte do seguinte preceito: “Por secularização entendemos o processo pelo
qual setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das instituições e símbolos religiosos. Quando
falamos sobre a história ocidental moderna, a secularização manifesta-se na retirada das Igrejas cristãs de áreas que
*
638
702
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
mudanças de cunho eclesiológico nas esferas da gestão pública, ordenadas pelos agentes do
poder eclesiástico, se modificaram após a iniciativa de restauração romana (SANTIROCCHI,
2015), em particular confronto entre as posturas regalistas e ultramontanas, a primeira
enquanto uma vertente vinculada ao padroado régio, onde a crescente reforma do Estado
atrelava cada vez mais sujeição da instituição eclesiástica ao Governo, além de fortalecer sua
própria autoridade por meio da Igreja; enquanto a segunda vertente, ao contrário, buscava
aumentar a liberdade e independência da Santa Sê em relação ao Estado, bem como afirmar a
própria autoridade sobre a hierarquia católica, num processo de centralização eclesiástico em
torno da infalibilidade Papal (SANTIROCCHI, 2015.). Coube também, considerar os canais
de comunicação entre a Igreja e a presidência da província como alcance das influências
políticas de uma instituição sobre a outra; visto que estes documentos oficiais, “[...] carregam o
conhecimento detalhado da competência e processo burocrático dos órgãos ou instituições
donde provieram esses corpos.” (HESPANHA, 1982, p. 36).
É precisamente nas vivências dos membros do clero, enquanto agentes religiosos no
serviço da fé cristã e da hierarquia eclesiástica, ao mesmo tempo, servidores públicos do Estado
Imperial na administração das freguesias; por diversas vezes, proprietários de terra e/ou de
escravos, além de agentes políticos atuantes nas câmaras legislativas – que é possível constatar
uma realidade complexa e repleta de contradições. A exemplo do Vigário da freguesia de
Alagoas, Domingos José da Silva (1800-1870) proprietário de terras e dono de escravos, que
durante sua longa carreira envolveu-se em diversos conflitos com autoridades civis e
eclesiásticas, dentre eles a longa e infrutífera disputa contra o Guardião do Convento de São
Francisco, Frei João das Chagas de Cristo - de dezembro de 1864 até sua morte em novembro
de 1870 - acarretada pelo que acreditava ser uma afronta à sua autoridade (ROSSITER
NETO, 2019).
Após a proibição dos enterramentos no interior das igrejas, passou-se a ser necessário a
construção de cemitérios públicos para alocação dos cadáveres em todo território nacional
(FIGUEIRA JÚNIOR, 2018), (REIS, 1996). Contudo, devido à precariedade econômica das
vilas e cidades, além da terrível epidemia presente no Brasil desde o final da década de 1850,
não havia cemitério público apropriado na Cidade de Alagoas. (ROSSITER NETO, 2019).
639
Por este motivo, a câmara municipal achou apropriado que o espaço do claustro do Convento
antes estavam sob seu controle ou influência: separação da Igreja e do Estado, expropriação das terras da Igreja, ou
emancipação da educação do poder eclesiástico, por exemplo.” (BERGER, 1985, p. 119)
639
Atual Cidade de Marechal Deodoro.
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de São Francisco fosse utilizado para realização dos enterros até que um cemitério adequado
fosse construído, para a insatisfação do Vigário (ROSSITER NETO, 2019)
Embate com o guardião do convento
Em ofício de 31 de agosto de 1868, o Vigário de Alagoas, Pe. Domingos José da Silva,
respondeu um oficio do vice-presidente da província, Silvério Fernandes de Araújo Jorge,
datado de 11 de agosto de 1868, no qual havia pedido informações acerca do encaminhamento
das obras da matriz. Estas deveriam ser expostas de forma detalhada e com presteza; o vigário
deveria também, comunicar quais dessas obras ainda estavam em construção e quanto do
investimento público já havia sido despendido. Ainda, outra demanda da presidência era o
esclarecimentos acerca da construção do cemitério público da cidade e seu estado, assim como
“[...]quaisquer planos e projetos que a tal respeito haja na minha freguesia” . Em seu parecer, o
640
vigário responde:
[...] Quanto a primeira parte cumpre-me declarar a Vossa Excelência que
minha Matriz, sendo reedificada a 08 anos pouco, mais ou menos
presentemente de nada carece, só sim a sacristia que precisa de forro pois que
está um “trovejamento”, e mais alguns pequenos reparos, pois que estando a
porta da sacristia virada ao norte, é muito arriscado, quando os reverendos
acabam [..] de qualquer ato podem sofrer um ataque o que já tem acontecido
a alguns.641
É possível notar que a pequena obra citada no oficio do padre poderia orçar, segundo
ele, aproximadamente quatrocentos mil réis (400$000) . Tal quantia, destoava dos valores
642
atribuídos à reforma da Matriz em ofícios similares, tal qual no ofício de seu antecessor, o Pe.
Conrado Alves de Moura, datado de agosto de 1859 , onde este estipulava um orçamento de
643
640
Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT,
1868.
641
Idem.
642
Idem.
643
Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 377; IT,
1859.
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sete a oito mil réis (7-8$000) para reparos similares. Contudo, o próprio Domingos José, reitera
que sua estimativa, parte da supracitada reedificação da Matriz, realizada no espaço de tempo
entre, 1860-1862, quando se ausentou da vigaria. Não sabendo, ao certo se o tesouro havia
despendido tal valor, pois lhe constava um donativo de quinhentos mil réis (500$000) com que
se acabou a obra . Apesar disso, esta informação permite ponderar a respeito da significância
644
das obras de restauração para a administração da freguesia e realização do culto público.
Inclusive, é possível perceber uma quantidade substancialmente maior de verbas destinadas
para a preservação desses edifícios na década de 1860 (NUNES, 2020), a exemplo da fala de
José Martins Pereira de Alencastro, no relatório da Assembleia da província de julho de 1867.
Em sua ata, mencionava a aprovação de cotas para diversas matrizes e capelas, totalizando o
valor de trinta milhões de réis (30.000$000) .
645
É importante salientar que, a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, e sua gestão, são
elementos perenes nas fontes oficiais, devido à sua importância no contexto da hierarquia
eclesiástica, mas também devido aos tenebrosos percalços pelos quais sua manutenção passou.
Apesar de ser o assento da vigaria na cidade das Alagoas, “ao logo de todo o século XIX foi
alvo de insistentes solicitações dos párocos para a realização de serviços, dos mais, variados,
desde a manutenção predial, segurança do patrimônio” (MAGALHÃES, 2018, p. 228). Sabese ainda que, durante as celebrações religiosas, tais como a Semana Santa, a integridade do
edifício era indispensável para os festejos, devido Igreja da Matriz representar uma parada
indispensável para o fluxo de pessoas que trafegavam pela cidade em procissão
(MAGALHÃES, 2018) De fato, a impossibilidade de realização das celebrações devido à
ingerência dos recursos destinados à preservação desses patrimônios, implicaria na direta
interrupção do ato religioso. Entende-se a preocupação destes agentes, especificamente, na
gestão do cotidiano e a administração das vilas, conexas ao fenômeno religioso enquanto uma
forma de preservação do costumes, destacando a relação com os espaços de poder provincial.
É possível, compreender que a relação entre o religioso e o político dar-se, ao mesmo tempo
em dois âmbitos: em primeiro lugar:
644
Vigário de Alagoas. Ofício ao vice-presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT,
1868.
645
Cf. ALENCASTRE, José Martins Pereira de – Relatório de 10 de julho de 1867. Maceió: Typographia do
jornal<http://ddsnext.crl.edu/titles/163#?c=0&m=56&s=0&cv=6&r=0&xywh=248%2C470%2C2271%2C1602> consultado em 02 de setembro de 2021.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
A crença religiosa se manifesta em Igrejas, que são corpos sociais dotados de
uma organização que possui mais de um traço em comum com a sociedade
política. Como corpos sociais, as Igrejas cristãs difundem um ensinamento
que não se limita às ciências do sagrado e aos fins últimos do homem”
(COUTROT, 2003, p. 334).
Em segundo: a religião vivenciada dentro das Igrejas cristãs excede os limites do espaço
delimitado e manifesta-se coletivamente nos hábitos dos praticantes, tornando sua influência
portadoras de um conteúdo cultural e agentes de socialização (COUTROT, 2003) A exemplo
do histórico da Matriz como um dos primeiros templos a receber os sepultamentos dos
moradores da cidade e das povoação adjacentes, inclusive dos pardos, quando estes ainda não
possuíam capela própria (MAGALHÃES, 2018); assim, como os elementos relacionados à
morte e morrer existentes na matriz, que eram destacados com nas fontes oficiais, com enfoque
em suas condições de conservação. Partindo deste lugar de prestígio, sendo o mais antigo dos
templos, símbolo da eloquência política e administrativa que a cidade tivera até bem pouco
tempo (MAGALHÃES, 2018) diante dessa constante precariedade, pondera-se a respeito do
estado das outras edificações de gestão religiosa, especialmente a serviço da população, tal qual
os cemitérios, abordados na segunda parte do oficio do Pe. Domingos.
[...] bem quisera nada dizer porem para cumprir a determinação de Vossa
Excelência a passo a informar o que tenho visto e sei. Não me posso
persuadir de [que] um Governo Constitucional se lembrasse de criar um
privilégio exclusivo dos Reverendos Franciscanos, mandando a Ilustríssima
Câmara designar o lugar do Cemitério, visto que o Provisório estava
arruinado, esta designou algumas sepulturas dos Claustros e o pouco terreno
que fica entre o Convento e a Ordem Terceira de S. Francisco.646
Como afirmado, este conflito entre os dois religiosos tem sua origem na primeira
metade da década de 1860, quando o vigário de Alagoas deflagrou suas primeiras acusações
contra o guardião e contra o convento (ROSSITER NETO, 2019), especificamente sobre o
sepultamento da população. Em outro ofício, de 26 de outubro de 1864, com o conflito em
646
Idem.
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curso, comunicou sua insatisfação quanto à decisão da Câmara Municipal. Incluso, citava a
quantia de quinhentos mil réis (500$000) dada pela Secretaria do Ministério do Império para o
princípio de ereção de um cemitério geral na freguesia, quantia aquela que, segundo ele,
constava um montante de aproximadamente um Conto de réis (1:000$000 ) por ter-se dado
647
juros; além de uma quantia entregue pela Assembleia Provincial de três milhões e quinhentos
mil réis (3:500$000), ao assegurar lugar apropriado para construção do cemitério . Entretanto,
648
no oficio de 1868, o Padre esclarecia que tal projeto desandou, tendo apenas o alicerce da
frente sido erguido; ainda, a quantia de quinhentos mil reis para o cemitério público havia sido
empregada na Caixa comercial de Maceió, pelo cidadão José Fernandes de Oliveira Santos,
“que os meteu a juros”, por ordem do Governo. Subsequentemente, mandou vender as ações,
de maneira que, tendo-se despendido com o alicerce, apenas um conto de réis, foi deduzido do
donativo e seus juros chegavam, aproximadamente quatro mil réis(4$000) do que fora
acordado .
649
[...] a partir dessas e de outras leituras em fontes oficiais, é possível saber que,
embora as câmaras estivessem desde 1828 com as suas atribuições
esclarecidas pelo governo imperial, em Alagoas, as cidades se mantiveram
durante muito tempo carentes de uma regulamentação quanto ao seu
ordenamento e atendimento às necessidades do espaço habitado e da sua
população, inclusive no que diz respeito ás providências para a construção de
cemitérios públicos (MAGALHÃES, 2018, p. 239).
Neste caso, a tutela da atividade por parte de agentes seculares e clericais, não garantia
seu cumprimento, que dirá a qualidade deles. Além disso, é evidente que a constante presença
desses conflito, exprime que a escrita das regulamentações e do emprego das verbas não
implicava, necessariamente, na concretização das obras à serviço da população.
Apesar do processo de construção que se deu até aquele ponto, da determinação da
Câmara Municipal, e a aprovação do Governo para as obras de conclusão do cemitério
público, a gestão das almas, permaneceu sob gerência dos reverendos do convento de São
Francisco. Ainda no ofício de 1868, o Pe. Domingos José acusou os franciscanos de exigirem
647
Vigário de Alagoas. Ofício ao Deão da Catedral de Olinda Dr. Joaquim Francisco de Farias; Arquivo Público
de Alagoas
648
Idem.
649
Vigário de Alagoas. Ofício ao vice presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT,
1868.
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cinco mil réis (5$000) pela sepultura; “isto é sendo pobre o finado, pois sendo rico pode chegar
a mais de seis mil reis (6$000)” . Anexo ao oficio de 1868, o vigário remeteu à vice-presidência
650
uma cópia da conta paga para uma “infeliz que nada tinha para sepultar-se”; a finada Romana
do Nascimento, sepultada no Convento de São Francisco no dia 21 de agosto de 1868. Desta
651
conta, possuidora de todos os custeios do sepultamento, com recibo do Frei Luis da Divina
Pastora datado de 26 de agosto de 1868, é possível compreender qual destino esses recursos
atendiam. Além dos custeios, esperados: caixão e sepultura, dois mil e cinco mil réis,
respectivamente, pode-se evidenciar o custo reservado para os direitos paroquiais e celebração
da cerimônia e ritos fúnebres, neste caso: mil e oitocentos (1$800) réis, que compunham pouco
mais de 20% do orçamento total custeado. O Vigário, conclui seu oficio fazendo uma
contundente reclamação:
Eis aqui o privilegio, e da conta se depreende que é melhor ser Guardião de
S. Francisco que vigário das Alagoas; porque este tem responsabilidade e
aquele por nada responde, tanto mostrado com clareza o privilégio exclusivo.
Falarei agora sobre a finta levada sobre o povo, de maneira que a quatro anos
tendo-se sepultado mais de quatrocentos cadáveres é um dinheiro exímio que
tem entrado para aquela casa sem utilidade alguma. Não contando ainda as
visitas de covas privativas do Convento652.
Considerações finais
Conflitos como o este, carecem de uma questão: onde se iniciava a jurisprudência do
Estado e terminava a da Igreja? Para além da eloquência com que estes grupos beligerantes
propagavam suas acusações, injurias, defesas, martírios, etc. O que fica claro é a obstinação com
que eles lutaram nas esferas institucionais para estender sua influência. Ao considerar que os
conflitos ocorridos na gestão pública se deram devido a adaptação de seus membros às
mudanças de cunho filosóficos, científicos e eclesiológicos (regalismo e ultramontanismo), é
possível ver que este fenômeno de crescente afastamento, já consolidado em meio as estruturas
do Estado Imperial, apontava para uma crescente insustentabilidade do padroado Régio, visto
que: segundo Coutrot,
650
Vigário de Alagoas. Ofício ao vice presidente da província; Arquivo Público de Alagoas. Caixa 1681; IT,
1868.
651
Idem.
652
Idem.
708
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O religioso informa em grande medida o político, e também o político
estrutura o religioso. Colocando questões que não se pode evitar,
apresentando alternativas, ele força as Igrejas a formularem expectativas
latentes em termos de escolha que excluem toda possibilidade de fugir do
problema. (COUTROT, 2003, p. 335)
Inclusive, esta abordagem permite também estudar os efeitos dessa transição na
província de Alagoas em meio a crescente pluralização de crenças do final do século XIX,
assim como de que forma a elite eclesiástica prevaleceu após a separação oficial do poder
temporal. [...]sem contar as remanescências e as permanências. A religião continua a manter
relações com a política, amplia mesmo seu campo de intervenção e diversifica suas formas de
ação, de tal forma que o assunto é de grande atualidade.”. (COUTROT, 2003, p. 335).
A presente análise buscou esmiuçar a rica gama de informações disponíveis nas fontes
oficiais da Igreja católica, assim como sua relevância para a história social de Alagoas. Apesar de
seus limites, foi possível ponderar a respeito da gestão do cotidiano da província, da
precariedade das vilas e cidades, e sobretudo dos conflitos oriundos do choque entre os
diversos agentes clericais e suas repercussões para a população. Por exemplo, a decisão do
governo civil que acabou subjugando a jurisprudência do vigário, responsável pelos ritos
fúnebres dos cristãos de sua freguesia, à deliberação do Guardião do Convento.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
“Subversão para êles é tudo o que êles querem. Ou melhor tudo o que êles não
querem”: relação entre Igreja Católica piauiense e regime militar no O
DOMINICAL (1964-1972)
Mariana Rita de Paula
*
Resumo: O trabalho propõe-se a analisar como a Igreja Católica piauiense reforçava ou
criticava o que era propagado pelo regime militar, principalmente através do jornal religioso O
DOMINICAL. Pretende-se analisar através das fontes hemerográficas como o regime
estabeleceu seu controle e repressão não só no campo das leis, mas no nível micro, nos
discursos, nos comportamentos, nas manifestações de gênero – entendidas através de Scott
(1995) –, a partir da noção de Utopia Autoritária apresentada por Carlos Fico (2004); e como a
Igreja Católica se posicionava quanto a esses discursos e intervenções.
Palavras-chave: História. Regime Militar. Igreja Católica.
Introdução
Este trabalho pretende compreender como o discurso repressor que o regime militar
utilizou para estabelecer um controle dos indivíduos em certos pontos reverberava, positiva e
negativamente, dentro do discurso religioso veiculado no jornal O DOMINICAL, dentro do
recorte estabelecido pelas fontes encontradas e analisadas, de 1964 a 1972. Pretende-se
entender como se posicionaram os membros da Igreja Católica Piauiense sobre aquilo que o
regime militar defendia, e como eles expuseram e debateram isso por meio da mídia.
Metodologia
A metodologia desta pesquisa funda-se num casamento entre uma abordagem
qualitativa de estudos bibliográficos sobre obras que discutem acerca do tema e a investigação
das fontes hemerográficas, matérias dos jornais O DOMINICAL, especialmente, e do A
HORA.
O jornal O DOMINICAL foi um periódico criado e construído por membros da Igreja
Católica Piauiense e, por esse motivo, é visto como capaz de oferecer, enquanto fonte, as
*
Graduanda do curso de História pela Universidade Federal do Piauí.
712
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visões, representações e percepções dos diferentes membros da Igreja e sua diferentes opiniões.
Segundo a historiadora Luciana de Lima Pereira (2015, p. 148) “O jornal O DOMINICAL foi
criado por Dom Severino Vieira de Melo, em 21 de fevereiro de 1937”, se pretendia um
“Semanário de Orientação Católica”, como apresentava em seu corpo, um guia, e tinha como
“plano de ação [...] ‘levar o pão da doutrina’ ao indivíduo, ao lares, às famílias e à sociedade.”
(p. 149).
Resultados e discussão
Percebeu-se através da análise da bibliografia e das fontes que o regime militar
alimentou representações de indivíduos que não se encaixavam com um modelo ideal que os
militares aceitavam/cultivavam e pretendiam na época, por meio da noção de uma “Utopia
Autoritária” sonhada que, segundo Carlos Fico (2004, p. 30), se constituía na “crença de que
seria possível eliminar quaisquer formas de dissenso (comunismo, ‘subversão’, ‘corrupção’)
tendo em vista a inserção do Brasil no campo da ‘democracia ocidental e cristã’” ; e
assentava-se na crença em uma superioridade militar sobre os civis, [...] se
realizava em duas dimensões: a primeira, mais óbvia, de viés saneador, visava
“curar o organismo social” extirpando- lhe fisicamente o “câncer do
comunismo”. A segunda, de base pedagógica, buscava suprir supostas
deficiências da sociedade brasileira. [...] Enquanto os primeiros eliminavam,
mesmo fisicamente, comunistas, “subversivos” e “corruptos”, as duas últimas
buscavam “educar o povo brasileiro” ou defendê-lo dos ataques à “moral e
aos bons costumes”. (FICO, 2004, p. 38-39)
O que indicava os dois caminhos de onde partiam as repressões dos militares no
contexto da ditadura, aos campos em que eram percebidas possíveis ameaças ao regime: a
atuação no âmbito político-ideológico e no âmbito moral.
Essa ação dos militares era direcionada aos indivíduos que se enquadravam nas
representações que se tinha no momento dos comunistas e subversivos, e, dessa maneira, como
aponta Chartier (1990, p 17),
as representações do social não são de forma alguma discursos neutros:
produzem estratégias e as práticas (sociais, escolares, políticas) que tendem a
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impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar
um projeto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas
escolhas e condutas.
Assim, compreende-se que os perfis dos indivíduos que eram vistos como ameaça ao
regime militar nesse caso eram representações de um grupo específico com uma gana
saneadora e pedagógica que buscava se impor e que geravam ações, reações, práticas, como
eram os casos dos inquéritos e das prisões desses indivíduos.
Já no âmbito local piauiense, sobre o ponto de dissidência encontrado entre os
discursos, através da pesquisa pode-se compreender que os membros da Igreja Católica que
redigiam O DOMINICAL discordavam do alargamento que o regime dava ao termo
subversão, e o medo que isso gerava, uma associação com a representação, a imagem, do
indivíduo subversivo e/ou comunista.
As pessoas que se envolviam com temas, com discussões, com pessoas que eram vistas
como subversivas e/ou comunistas poderiam ser preso ou seria chamado a depor. O problema
era que na época a Igreja Católica Piauiense sob chefia e atenção do Arcebispo Metropolitano
Dom Avelar Brandão Vilela se relacionava muito diretamente com os problemas do campo e
com a construção de sindicatos rurais. Na época tinha-se medo de que as Ligas Camponesas se
infiltrassem no meio rural e influenciassem os indivíduos que moravam no campo, por conta
de eram vistas por alguns membros da Igreja como “comunistas” – algo que a Igreja Católica se
opunha fervorosamente porque acreditava que o comunismo influenciava uma ideologia ateia
que atacava os preceitos da Igreja. Então, alguns indivíduos membros da Igreja foram
associados como comunistas e subversivos por conta dessa relação feita pelos militares no
contexto piauiense, mesmo quando os próprios indivíduos se declaravam claramente contra o
comunismo e não emitiam discursos subversivos, de desagrado ao regime e aqueles que
estavam no poder na da época. Como foi o caso de Manuel Emílio que trabalhava na
Organização Sindical no meio rural, no Piauí, e também era cronista do jornal O
DOMINICAL. Em uma de suas publicações no periódico ele aborda o episódio de sua prisão:
Devido às minhas atividades justo ao trabalhador rural, fazendo sindicalismo,
assessorando sindicatos, de forma a participar do processo de concretização e
politização doo pequeno lavrador para dar-lhe possibilidades de uma vida
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
condizente com sua dignidade de pessoa humana, estive prêso, após a
Revolução de Março, 12 dias. Acusado, ao que me parece, de atividades
subversivas ou comunizantes, não me lembro bem.
Como as acusações e denúncias que me foram feitas eram desprovidas de
quaisquer fundamentos e ate ridículas para as pessoas de bom senso, no dia
em que ouvido pelo chefe do IPM, major Nogueira Diógenes, fui posto em
liberade e devolvido ao convívio dos meus.
Na verdade, nunca fui comunista. Nem mesmo simpatizante do comunismo.
Simplesmente porque sempre acreditei em Deus. [...] (OLIVEIRA, 1964, p.
2)
Assim, torna-se visível que arbitrariamente por conta de condutas percebidas como não
condizentes às características, às inclinações pessoais que os militares afirmavam como as
corretas, os indivíduos, mesmo que não se posicionassem contra o governo; mesmo que fossem
declaradamente contra o comunismo, como queriam os militares; ainda assim eles poderiam
ser alvos de suas repressões, da ação dos tentáculos locais do regime. A opressão e o controle
do regime militar sobre os indivíduos iam além da condição política, todos aqueles que
ameaçavam minimamente a “utopia autoritária” do regime – que, como foi abordado
anteriormente, se baseava na eliminação da subversão e da corrupção para alavancar o Brasil –
encontrava-se na mira dos militares. E essa necessidade saneadora excessiva era um ponto de
discordância entre membros da Igreja Católica Piauiense e o regime militar no âmbito local.
Como a historiadora piauiense Marylu Oliveira expôs em sua obra “Contra a foice e o
martelo”, onde a autora busca compreender as representações dos indivíduos vistos como
comunistas veiculadas nos jornais, e propagadas/utilizadas pelo discurso militar:
Era muito fácil ser identificado como comunista na década de 1960, no Brasil,
mais especialmente no Piauí, e mais particularmente ainda na capital do
Estado. Bastava que o indivíduo apoiasse as Ligas Camponesas, ou a reforma
agrária; que se identificasse com o nacionalismo; militasse em movimento
estudantil e organização de bairros; participasse de movimentos eclesiais de
base; reivindicasse mais urbanização para o centro da cidade. Eis o perfil do
comunista construído pelos discursos dos jornais e instituições oficiais da
época. (OLIVEIRA, 2007, p. 47)
715
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Sobre essa perseguição específica a aqueles que se relacionavam com o âmbito rural e
com os processos de politização e de construção de um amparo intelectual e econômico para
estes, na coluna “Em tôrno de tudo” o Pe. Luís Soares declarou “Antes, camponêses era
manchete; agora, é palavra proibida.”. E, assim, ao tratar sobre a Doutrina Social da Igreja,
principalmente por meio da Encíclica Mater et Magistra, uma matéria traz a manchete no
jornal: “Doutrina Subversiva?” (DOMINICAL, 1967, p. 2), possivelmente pelo fato da
encíclica tratada na coluna tratar sobre as problemáticas do campo, mesmo de maneira não
acusatória, como aponta Manuel Diégues Junior (1961, p. 1) “propõe um programa de revisão
das estruturas rurais”, embora “sem se referir diretamente a uma reforma agrária”. O discurso
veiculado pelo O DOMINICAL, dessa maneira, ia de encontro à visão do apoio aos
trabalhadores do campo, e atenção aos problemas no contexto rural, como comunistas e/ou
subversivas.
Sobre essa ampliação arbitrária e exagerada da noção de comunismo e, principalmente,
de subversão, e de vontade de uma adequação dos indivíduos em uma conduta inofensiva irreal
que acusou diversas pessoas, o jornal O DOMINICAL publicou diversos artigos e crônicas.
Entre elas, está a discussão minuciosa da palavra Subversão que Pe. Raimundo José fez em sua
coluna,
[...] Ela se tornou bifronte. [...]. Assumiu 2 faces. Uma face fantasma. E uma
face fantoche. [...]
A face fantasma se tornou temida. Quem vê apenas êste aspecto não dorme
mais direito. Vive sobressaltado. Com receio de ser acusado de subversão.
Muitas vêzes com mêdo de ser descoberto de subversão. Mas de ser
encoberto com sua máscara. Porque quase tudo é possível principalmente no
campo dos fantasmas. E é terrível ser taxado de subversivo. É fatal. Não há
taboa de salvamento.
A face fantoche revelou se temerária. É a face usada por muitos oportunistas
contemporâneos.
Subversão para êles é tudo o que êles querem. Ou melhor tudo o que êles
não querem. (AYREMORAES, 1964, p. 6)
O que demonstra a indignação com as ações e os discursos proferidos pelos militares –
mesmo que não dito explicitamente, mas o contexto e os acontecimentos nos permitem
716
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interpretar dessa forma – em nome de uma “defesa”, em nome da tão idealizada “segurança
nacional” e da “utopia autoritária” que serviam arbitrariamente para atender suas vontades de
controle, seus interesses próprios, e não os do povo.
E sobre essas práticas repressivas, o regime não se limitou à repreensão de uma
representação de individuo no âmbito político e ideológico, mas também agiu como censora à
moral, ao que diz respeito aos valores, ao campo micro dos usos do corpo, dos cabelos. Sobre
isso, Carlos Fico expõe:
A censura moral e política integrou o aparato de repressão política da ditadura
e também expressava a existência das dimensões saneadora e pedagógica da
utopia autoritária que temos mencionado – pois é evidente que a censura
moral tinha uma pretensão pedagógica quando procurava evitar que os
‘atentados à moral e aos bons costumes’ corrompessem a sociedade brasileira.
(FICO, 2019, p. 84-85)
Esse, por outro lado, era um ponto de encontro, de coro do discurso dos militares e o
discurso da Igreja Católica Piauiense no O DOMINICAL. Ficou perceptível pela análise dos
jornais que no campo da moral, na pretensão de controle e vigilância dos corpos os discursos
da Igreja presentes no DOMINICAL e os discurso do regime militar se encontravam.
Entendeu-se a partir da análise, que se tinha na época no discurso do O DOMINICAL
um modelo adequado de comportamento e expressão e um modelo inadequado, execrado,
criticado, “transviado”. Sobre isso, Dom Avelar Brandão em sua coluna afirmava:
Entre os jovens, existem aquêles que se apresentam como filhos-família,
dentro de uma linha tradicional e elegante, mas discreta. E também aquêles
que se sentem atraídos pela revolução, das idéias sociais mais avançadas, na
sêde de tudo reformar, de tudo modificar, como se a salvação consistisse
apenas em mudar a face da terra. Enquanto isso, surgem aquêles que se
apresentam, com ou sem idéias, mas de acôrdo com o figurino dos últimos
tempos, com vestimentas, cabelos e modos exóticos, a despertarem
curiosidades, a provocarem reações, a atraírem solidariedade.
717
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
[...] Gostaria de ver a juventude mais tranqüila, menos extravagante na sua
apresentação, mais ordenada em seus movimentos, mais preocupada com os
grandes problemas da nossa realidade. (VILELA, 1966, p. 8)
Entre esses indivíduos que não se encaixavam com o ideal proposto pela Igreja e pelo
regime militar estavam os homens que utilizam os cabelos grandes, estes citados por Dom
Avelar no trecho acima como “aquêles que se apresentam, com ou sem idéias, mas de acôrdo
com o figurino dos últimos tempos, com vestimentas, cabelos e modos exóticos, a despertarem
curiosidades, a provocarem reações, a atraírem solidariedade.” oposto ao filho-família. Esses
que por vezes eram chamados também de “cabêludos” eram homens que naquela época
adotavam os cabelos compridos – algo considerado próprio do gênero feminino - como
maneira de expressar sua inconformidade com os padrões sociais anteriores, ou como forma
de se expressar esteticamente de acordo com os novos grupos juvenis culturais. Uma das
notícias abordava a ideia de um “problema dos cabeludos”, como uma questão a ser debatida
politicamente em Teresina, no qual a juventude deve ser direcionada em seus caminhos, pois
“Os jovens de hoje são os homens de amanhã. Não precisamos tanto de jovens ‘originais’ como
de jovens conscientes.” (O DOMINICAL, 1966, p. 4). Outra falava da confusão e transparecia
o desconforto com indivíduos do sexo masculino de cabelos compridos e calças apertadas
(MONTE, 1965, p. 5).
Esse discurso propagado pelo jornal, segundo Luciana Pereira (2015, p. 149) se
encaixava no papel que esse periódico possuía de
Nesse contexto [do período de circulação do jornal], a instituição eclesiástica,
por meio de um aporte da imprensa O DOMINICAL, maximiza o seu poder
de influenciar os costumes e os valores sócio-religiosos praticados pelos
teresinenses, além de contribuir para a construção de identidades. Assim, ela,
no intuito de adequar os fiéis ao modelo de sociedade cristã, tentava construir
e controlar os corpos e mentes de homens e mulheres, os quais poderiam ser
forjados por práticas, produzindo modos de ser feminino e masculino na
neocristandade para adequar ao modelo de família católica.
Esse desagrado com esses indivíduos era algo compartilhado com os militares no
contexto da época, segundo a notícia do jornal A Hora:
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POLÍCIA QUER CORTAR CABELO DOS “HIPIES”
O Capitão Astrogildo Sampaio, da DOPS, prendeu, ontem pela manhã,
quatro “Hipies” em poder deles apreendeu cerca de um quilo de maconha
que eles dizem haver adquirido dos índios “guajajara”, no Maranhão. [...] os
quais vão ter as malenas cortadas pelo barbeiro da Polícia. Aliás, é
pensamento do Capitão Astrogildo prender, cortar o cabelo e deportar do
Piauí todo “hipie” que aqui chegar. (A HORA, 1972)
A matéria traz a notícia de apreensão de indivíduos considerados “hipies”, outra forma
de existência que a juventude experimentava naquele período para se pôr contra os padrões
sociais esperados, e a declaração do Capitão do Dops no estado sobre ter cortado as malenas
(ou melenas), os cabelos compridos, dos sujeitos apreendidos em sua ação. Como foi
explorado, a exibição da cabeleira comprida nos homens da época era vista como uma
manifestação de afronta às normas sociais, morais e de gênero da época, a ação do capitão de
cortar os cabelos dos hippies naquele momento, e, principalmente, a alegação de
intenção/ameaça de cortar os cabelos de todos os outros que viessem ao Piauí demonstra o
desagrado com o posicionamento político e moral exposto pelos hippies e sua expressão
política corporal de gênero. Apresentando neste discurso e na ação a dimensão moral do
regime.
Conclusão
Dessa maneira, foi possível perceber que o discurso de repressão do regime ditatorial
pretendia se fazer amplo para cercear aqueles que fossem vistos como uma ameaça, aqueles
que se ligavam a ideia de comunismo, seja pela ideologia e pela atuação social, seja pelo
comportamento e as noções de moralidade. O discurso da Igreja Católica Piauiense se
desencontrava do regime em sua noção de subversão, porém sobre o ideal moral do indivíduo,
da juventude, dos corpos e expressões de gênero, a Igreja acabava reforçando os discursos
pedagógicos de controle e padronização.
Bibliografia
CHARTIER, Roger. A história cultural: entre prática e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
719
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
DIÉGUES JÚNIOR, Manuel. O problema rural na encíclica “Mater et Magistra”. Revista
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_________. Versões e controvérsias sobre 1964 e a ditadura militar. Revista Brasileira de
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OLIVEIRA, Marylu. Contra a foice e o martelo: considerações sobre o discurso anticomunista
piauiense no período de 1959-1969: uma análise a partir do jornal “O Dia”. Teresina:
Fundação Cultural Monsenhor Chaves, 2007.
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Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, p. 88.
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DOUTRINA Subversiva. O DOMINICAL, Teresina, 25 abr. 1967. Editorial. p. 2.
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OLIVEIRA, Manuel Emílio. Reflexões de Prisão. O DOMINICAL, Teresina, 8 nov. 1964. p.
2.
POLÍCIA quer cortar cabelo de “hippies”. A Hora. Teresina, 13 jun. 1972.
SOARES, Luís. Homens do Campo. O DOMINICAL, Teresina, 8 ago. 1965. Em tôrno de
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VILELA, Avelar Brandão. Oração por um dia Feliz. O DOMINICAL, Teresina. 21 ago. 1966.
p. 8.
720
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
“A mulher sábia edifica a sua casa” – Imprensa maçônica, mulheres e o combate
ao jesuitismo no periódico Labarum (1874-1875)
Marney Garrido
*
Resumo: O presente artigo tem por objetivo identificar as motivações que levaram a imprensa maçônica,
na província de Alagoas, a adotar um discurso que pretendesse alinhar as mulheres e convertê-las à
militância da causa maçônica. Para isso, observa-se as medidas adotadas e os elementos presentes no
discurso, veiculados no periódico Labarum – Órgão da Maçonaria, em circulação na província no
século XIX, abrangendo os anos de 1874 e 1875.
Palavras-chave: Maçonaria, Mulheres, Imprensa, Alagoas.
Introdução
O versículo bíblico presente no título, que faz a introdução deste artigo, é bem
conhecido atualmente. Mais do que um provérbio, ele representa o ideal de mulher que parte
da sociedade valoriza. Hoje, principalmente, em âmbitos mais conservadores, é possível
observar a permanência desse ideal, que delineia, que demarca a mulher “boa esposa”, da
chamada “mulher de vida fácil” (dentre outros termos pejorativos utilizados).
Perpassando a discussão sobre o papel da mulher na sociedade, é necessário
demonstrar como esse papel se dá frente as tensões relacionadas ao poder.
Entende-se o poder, especificamente, como a capacidade de ação política e social,
geralmente ligado a homens; às mulheres se costuma legar papel secundário no exercício desse
poder. Como se verá neste artigo, ao tratar da relação entre a estratégia da Maçonaria e as
mulheres da sociedade alagoana do século XIX, em que se buscou recrutá-las para o seu lado
no conflito da Questão Religiosa que se seguia, tal poder feminino era visto como um apoio,
força auxiliar, geralmente desempenhando seu papel no âmbito privado (na medida em que o
lar era o meio de ação da mulher), e deveria estar alinhado com um determinado projeto
político/social (costumeiramente masculino), que tenderia à manutenção de valores tradicionais
defendidos ou a alguma visão tida naquele período como progressista. Conforme diz Perrot: “A
ação das mulheres no século XIX consistiu sobretudo em ordenar o poder privado, familiar e
*
Mestrando em História pela Universidade Federal de Alagoas (UFAL).
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materno, a que eram destinadas (PERROT, 2020) . Tendo como base esse ponto de vista e
653
levando-se em consideração as nuances da sociedade alagoana do período (1874-1875), buscouse analisar como esta modalidade de poder atribuído a mulher pôde auxiliar a causa da
Maçonaria, contra o chamado movimento jesuíta e/ou ultramontano, num debate em que as
duas ideologias tentavam se manter dominantes .
654
A imprensa maçônica alagoana
Para situar o objeto desse estudo dentro da questão proposta, é preciso antever o perfil
da imprensa regional no período.
Palco de conflitos políticos, a imprensa alagoana do século XIX, era marcada por tons
de protesto e defesas de causas específicas, defendidas por segmentos de intelectuais da
província, geralmente ligados a elite local, e se debruçavam sobre variados temas e assuntos.
Segundo Goulart Andrade:
O jornalismo alagoano teve sempre, desde os primeiros tempos de seu
estabelecimento, feição essencialmente político-partidária; algumas vezes o
calor e o exagero da linguagem na defeza do interesse dos partidos, tocaram
aos excessos655.
Dentro desse cenário de predominância de uma imprensa com caráter político
militante, o periódico Labarum – Órgão da maçonaria, surgiu para dar conta do conflito gerado
pela Questão Religiosa no território de Alagoas, na época sob jurisdição eclesiástica do bispado
de Olinda, em Pernambuco.
Alvo das excomunhões praticadas por parte do papado, os maçons utilizaram como
principal meio de propagação das suas ideias (assim como outros órgãos sociais, partidos
Para uma discussão mais aprofundada sobre o tema mulheres e poder ver: As mulheres, o poder, a história. In.:
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: Operários, mulheres e prisioneiros. PARTE II: - Mulheres. Pp.
177-196. – 9ª ed. – Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2020.
Tendo-se como base a definição de ideologia como “uma função da relação de uma elocução com seu contexto
social.” (EAGLETON, Terry. O que é ideologia? In.: Ideologia. Uma introdução. Pag.: 22. São Paulo. Editora da
Universidade Estadual Paulista: Editora Boitempo, 1997).
ANDRADE, Goulart. ESTUDOS SOBRE O JORNALISMO ALAGOANO. In.: COSTA, Craveiro;
CABRAL, Torquato (org.). Indicador Geral do Estado de Alagoas. Maceió/AL: EDUFAL; Imprensa Oficial
Graciliano Ramos, 2016. p. 158.
653
654
655
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políticos principalmente) os folhetins e jornais. Grande parte da estratégia do Labarum,
consistia em questionar o poder papal, principalmente a infalibilidade:
E tudo isto devido a inconsideração ultramontana, que não trepida de agitar
no ultimo concilio questões as mais graves e difíceis – como a infalibilidade
essa moderna praça de Gréve da razão e da liberdade! (Labarum, Maceió, p.
1, 31 de out. 1874).
O princípio da Infalibilidade do Papa, reforçada por Pio IX na bula Syllabus errorum,
era alvo das principais críticas por parte dos maçons, tida como a principal causa da
intolerância que sofriam todas as demais denominações religiosas ou filosóficas, não abarcadas
pelo catolicismo. Ainda, em uma edição do ano seguinte, dizia o periódico:
Intolerantes, que não vêem o abysmo que cavam, insuflados pelos brados da –
infalibilidade, a mais monstruosa imposição dos tempos modernos, o maior
sacrilégio contra as doutrinas do Crucificado, aspirando o levantamento da
teocracia papal com o seu cortejo de crimes – estabelecendo o horroroso
império sobre o cidadão e sobre o homem! (grifo do autor). (Labarum,
Maceió, p.1, 11 de março de 1875).
Além disso, contradizer os ensinamentos da Igreja e desacreditar a moral do clero
diante da população e das autoridades políticas eram elementos presentes no discurso da
imprensa maçônica.
Na medida em que se desenrolava o conflito religioso e político/social, os embates entre
a Maçonaria e a Igreja desembocaram na esfera do privado. Organizar a população e alinhá-la a
prática de um catolicismo reformado, fazia parte do avanço do clero ultramontano; contradizer
essa organização católica tida como intolerante e angariar apoio da população era a estratégia da
maçonaria. Nesse ínterim, a esfera da vida privada, na qual o papel atribuído a mulher
(especificamente a mulher esposa) era a de mantedora da harmonia no lar, acabou sendo
levada, em certa medida, para o plano do conflito.
As mulheres na imprensa do século XIX
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Ligada as transformações que ocorriam nos espaços urbanos nacionais no século XIX, a
imprensa se tornou o lugar para discussão e representações diversas. Servindo aos interesses de
grupos e ideologias que dela se serviam para propagar seus ideais, a imprensa logo se tornou
uma atividade de alta produtividade, sendo inúmeros os periódicos que circularam na nação no
período.
Dentro dessa diversidade de temáticas, a ocupação das mulheres nesse ambiente, ligado
à vida pública, em específico um espaço dominado por homens, se deu de forma um tanto
sufocada:
A constituição da esfera privada, enquanto aquela cabível às mulheres, e a
pública, enquanto espaço masculino, carrega consigo inúmeras consequências
que, a longo prazo, acabaram desencadeando a institucionalização de práticas
imperiosas, nas quais as desigualdades de gênero são característica marcante.
De acordo com Biroli (2014) “é uma forma de isolar a política das relações de
poder na vida cotidiana, negando ou desinflando o caráter político e conflitivo
das relações de trabalho e das relações familiares” (BIROLI, 2014, p. 31)656.
No decorrer do século XIX, esse era o cenário em voga no Brasil. Ultrapassar
a barreira do privado ia de encontro à toda uma conduta institucionalizada. A
imprensa,
nessa
conjuntura,
enquanto
espaço público,
tardiamente
incorporou elementos “cotidianos” em suas discussões. As mulheres, salvo
algumas exceções, também demoraram a se inserir nesse espaço.657
Nessa observação feita por Rodrigues (Rodrigues, 2017, p. 58), a qual perpassa também
a problemática do papel de gênero na sociedade, e do que se esperava da mulher nesse quesito,
é ressaltado como as mulheres demoraram a se inserir nesse espaço. Porém, com a crescente
demanda das transformações sociais que ocorriam, a esfera do privado, onde atuava a mulher,
logo passou a ser alvo de interesse da imprensa.
Nesse ínterim, em conformidade com o ideal da nação sobre o papel da mulher, a
imprensa da província de Alagoas atuou com um reforço dessa concepção da mulher como
boa esposa e administradora do lar. Segundo Silva (2019, p. 128), no que diz respeito à
656
BIROLI, Flávia. O Público e o Privado. In: MIGUEL, Luis Felipe. BIROLI, Flávia. Feminismo e Política:
uma introdução. São Paulo: Boitempo. 2014.
657
RODRIGUES, Dayanny. Escritos de e para mulheres no século XIX: o conceito de emancipação e a
representação feminina no jornal das senhoras. In: Revista Outras Fronteiras. Vol. 4, n 1, jan/jul., 2017. p. 58.
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concepção da mulher ideal na imprensa, em contraste com outras formas de comportamento
feminino relatadas:
Não havia espaço para o diferente, para o contraditório. Todas as mulheres
deveriam permanecer no espaço privado, cuidar de seus filhos, sonhar em
casar, dentre tantas outras características discutidas anteriormente. A
imprensa, como um espaço de poder discursivo dentro da sociedade, acabou
endossando em suas publicações o ideal de mulher submissa, perfeita, quase
que separada de características inerentemente humanas.658
Tal visão era predominante não só numa vertente mais conservadora como também
659
numa vertente dita liberal. Como se verá no presente artigo, mesmo com a bandeira hasteada
do progressismo e se julgando sua defensora, a Maçonaria, ao inserir no debate o âmbito do
privado como campo em disputa com o avanço das ideias ultramontanas, reforçava tal visão de
mulher ideal.
As mulheres na imprensa maçônica alagoana do século XIX e o combate ao jesuitismo
Ao trabalhar com o periódico Labarum, nota-se a presença de certos casos de
intolerância relativos aos sacramentos (nascimento, casamento e falecimento). Como caberia
aos padres ofertá-los à população, não raros são os casos, no periódico, de vigários que se
negaram a dispensar os sacramentos para os declarados fiéis maçons.
Tal atitude tinha por objetivo encorajar os católicos (especificamente homens, já que
mulheres não eram aceitas na fraternidade maçônica) a abjurar à Maçonaria. Nesse âmbito
havia como estratégia complementar o apelo que os frades católicos faziam às esposas dos
maçons. Há no periódico notas como a seguinte:
Fra Cattaniceta fazendo brilhaturas.
- Escreve-nos das Alagoas:
Nesses últimos dias o ilustrado Fra Cattaniceta, em suas predicações, com a
lingoagem verbosa e algaravica que lhe é peculiar, tem derramado sua bílis
SILVA, Élida Kassia Vieira da. “Boa esposa, recatada e do lar”: o padrão de mulher ideal nos periódicos
de Alagoas (1870-1899). In.: Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 11, Set/2019. p. 128.
659
Entendendo-se por conservador uma concepção, muitas vezes de cunho religioso, que ordenava os papéis dos
sexos na sociedade, na qual a mulher/esposa deveria ser obediente ao homem/marido.
658
725
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furiosa contra os maçons. Não sabemos qual o damno que os maçons
causarão a esse frade! Espalhando, como tem por digno costume, as doutrinas
mais perniciosas, calumniando a respeitável ordem maçônica, induzindo as
mulheres a fugirem, logo que saibão que seus maridos a ella pertenção, os
filhos a faltarem com as devidas atenções á seus pais, esse aza negra (tenha
paciência o Reverendissimo) breve será o motor de anarchia seria, antifamiliar, social e religiosa. (Labarum, Maceió, Ano I, Nº 4, 2 de Outubro de
1874).
O fragmento acima se refere a um frade (figura recorrente nas críticas do periódico) que
estaria encorajando as esposas a fugirem dos seus maridos, ao descobrirem que eles estavam
vinculados à Maçonaria. Cabe ressaltar que a figura da mulher estava estritamente ligada à
esfera do privado no período estudado. Compreende-se que a acusação do periódico ligava a
fala do frade, em encorajar a fuga das mulheres do lar onde há um maçom, a uma ameaça à
família, a ordem social e a própria religião. Cabendo a mulher a tarefa de organizar o lar, o
incentivo ao abandono desse ambiente pelas mesmas podia ser encarado como “o motor de
anarchia” que ameaçaria a ordem social. Era esperado da mulher (e ambas as instituições, a
Igreja e a Maçonaria, afirmavam isso em seus discursos) que apoiasse o seu marido e prezasse
pela unidade de seu lar.
Outras acusações feitas pelo periódico eram relativas à negação do casamento:
Facto, porém, mais horroroso acaba aqui de ter logar com o infeliz súbdito
portuguez José Domingues da Cunha.
Accommettido de varíola, e sentindo a morte aproximar-se, pede aos amigos
confissão e estes trouxeram-lhe o vigário, que o confessou e absolveo.
Querendo, porem, José Domingues unir-se com os laços do matrimonio a
uma infeliz que o acompanhava em todos os transes de sua vida, e cuja união
nutria desejos de legitimar nessa hora extrema, o Rvmº Vigario declarou que
o não fazia, nem lhe dava a comunhão porque Domingues era maçon, e só o
faria se abjurasse.
José Domingues sorprehendido por essa exigência do Vigario, vio despertarse-lhe nesse momento os grandes estímulos que o alimentaram n’uma vida
cheia de nobres acções, e repelindo esse ministro, que lhe exigia na hora da
morte, nesse momento tão solemne, um acto ignóbil e repugnante à santidade
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dos princípios que como christão havia abraçado, declarou-lhe firmemente
que não desceria a abjurar, porque pretendia perante Deos apresentar-se sem
essa macula, que pretendiam necessária para morrer como christão.
O Rvm.º Vigario, recorrendo a companheira de José Domingues da Cunha,
pede-lhe então instantemente que faça intervir perante Cunha a autoridade de
seu compadre Antonio Thomaz Pereira a quem o enfermo muito estimava,
para faze-lo compreender a necessidade da abjuração.
Chegando então Thomaz Pereira, fez sentir ao Rvm.º que não se prestava a
aconselhar semelhante infâmia ao seu amigo, porque além d’outras razões
que não eram extranhas ao Vigario, devia este estar lembrado que quando há
pouco o havia cazado, conhecendo-o como maçon, não se escusara de fazel-o
atenta a esportula que recebera.
Em meio do todo esse borborinho, dessa luta da sordidez, da hypocrisia e do
interesse conta a honra e a probidade, contra a fé e a sinceridade,
appareceram algumas pessoas, entre ellas Antonio Gaspar, que conduzindo
um crucifixo, o apresentou ao moribundo e pedio lhe que cresse n’aquelle
Senhor, que se sacrificára por nos salvar.
O imenso povo que nesse momento acudio ao logar do acontecimento,
unanimemente reprovou o procedimento do Vigario, que vae assim alienando
as sympathias que creara e destruindo a confiança que nelle tinha a
população.
É assim que vão procedendo esses ministros de Jesus! É assim que se
desmoraliza a obra gigante desse martyr, que dizia aos seus discípulos. Curae
os enfermos, ressucitae os mortos, alimpae os leprosos, expelli os demônios:
dae de graça, o que de graça recebestes, S. Math> X, 8.
Pilar, 30 de setembro de 1874.
Feliz Peretti. (Labarum, Maceió, ano 1, Nº 4, 2 de outubro de 1874).
A negação dos sacramentos foi notícia recorrente nos chamados casos de intolerância
expostos no Labarum. No entanto, vale ressaltar a estratégia do vigário de recorrer à figura
feminina para interceder em favor da abjuração por parte de José Domingues a Maçonaria.
Além de outras acusações, cabe pôr em evidência também a recusa: se tratar de um casamento
não aprovado pelo vigário, com base no fato de José Domingues ser maçom. Essa seria uma
outra forma de controle da esfera do privado, na medida em que, ao desencorajar as pessoas a
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casarem com maçons e viverem em concubinato, os clérigos conseguiam tornar inviável a união
entre maçons e mulheres, que estivessem sob responsabilidade de suas paróquias. Uma forma
de angariar as mulheres possíveis esposas para a causa ultramontana.
Com isso, tem-se a estratégia maçônica de tentar impedir o avanço do ultramontanismo
na mentalidade feminina da província. Passou a fazer parte do discurso presente no periódico
uma seção dedicada às mulheres, intitulada “A Mulher na Maçonaria”. O objetivo dessa seção
era firmar um ideal de mulher, agente alinhada com o discurso maçônico:
De facto. A mulher antiga e a mulher moderna é a parte brilhante e sensível
da humanidade, ao passo que o homem é a parte severa e imponente que se
prevalecia da supremacia natural de suas inclinações e força para interceptar a
luz que resplende na fronte da mulher. Onde há mais sensibilidade,
indubitavelmente, há mais inspiração: e onde há mais inspiração, há mais
brilhantismo e levantamento de idéas grandes. (Labarum, Maceió, ano 2,
Nº10, 29 de agosto de 1875).
Sendo esse o ideal de mulher que os maçons evocavam em seu discurso, logo:
A iniciação da mulher na maçonaria, especialidade emergente para a grandesa
e sanidade d’alma, é um golpe ousado que rompe de frente os inimigos do
bem, o jesuitismo, esse parto monstruoso das iras infernaes: é um fim de
manifesta vantagem em beneficio da mulher, do homem, da família e da
sociedade; porque como diz o ilustrado órgão que citamos, se o jesuitismo
lança mão da mulher por todos os modos a seu alcance, por meio do
confessionario, para plantar a desordem na família, devemos chamal-a para
nós, não por meio de arguciosos embustes e sacrílegas insinuações, sim, pelo
meio da verdade, - e aos seus fulgores, que não pode a mentira jesuitia
contrabalançar, erguer-se ostensiva e modesta a paz familiar. (Labarum,
Maceió, ano 2, Nº 10, 29 de agosto de 1875).
Iniciar a mulher na Maçonaria, não de forma institucional, mas ideológica, chamá-la
pela “verdade”, não por embustes. Estas foram as argúcias presentes no discurso do periódico.
728
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Uma tentativa de angariar uma aliada na esfera do privado, onde visava-se impedir que o
discurso do catolicismo reformado adentrasse.
Conclusão
Cabe ressaltar que estes espaços aos quais a mulher era chamada a combater, no caso, a
esfera do privado e da vida religiosa, ainda assim deveriam ser delimitados de acordo com o
que ambas as instituições esperavam dela. Vê-se no discurso, em muitas vezes, uma pretensa
pontada de progressismo ao se pretender “iniciar a mulher” na Maçonaria, alinhá-la com suas
demandas, num “golpe ousado” que teria por objetivo frear a ação jesuítica (entenda-se
ultramontana) nos lares e confessionários. No entanto, a partir do discurso presente no
periódico, mesmo com a pretensão de ceder espaço às mulheres, tal era ofertado com um
papel muito bem definido a seu sexo; a mulher/esposa ordenadora do lar.
O embate entre as duas instituições, logo, não deve ser confundido com qualquer
progresso real que visava dar protagonismo de fato às mulheres, e sim como um instrumento
de controle na esfera do privado. Mesmo que começassem a despontar já na época algumas
reivindicações por parte do público feminino (inclusive a existência de uma imprensa voltada
para as mulheres), o paradigma cultural da época ainda era a predominância de uma
hierarquização, de uma relação de dominação do homem para com a mulher. Mesmo as
próprias ferramentas de que dispunham as vertentes tidas como as mais progressistas da
sociedade, elas estavam condicionadas por essa mentalidade organizadora do meio social.
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730
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Sacerdócio, ação social e repressão na implantação do regime civil militar: a
trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti
Séfora Junqueira dos Santos
*
Resumo: O objetivo deste artigo é apresentar a pesquisa, em andamento, sobre o padre
Humberto de Araújo Cavalcanti, com a qual se pretende investigar sua trajetória, através da
análise de documentação do Serviço Nacional de Informações (SNI) disponível no Sistema do
Arquivo Nacional e dos arquivos da Cúria Metropolitana de Maceió, a fim de melhor
compreender o interesse dos agentes do sistema repressivo do regime civil militar nos
sacerdotes brasileiros e, em especial, alagoanos, logo após a instalação do regime.
Palavras-chave: Igreja católica. Sacerdotes. Regime civil militar. SNI. Investigação.
Introdução
Instalado o regime civil militar, em abril de 1964, teve início, por todo país, uma
perseguição aos “inimigos do regime” através de uma série de inquéritos policial-militares
(IPMs). Um dos investigados, o então padre Humberto de Araújo Cavalcanti, é o objeto deste
artigo, no qual se pretende investigar sua trajetória, através da análise de documentação do
Serviço Nacional de Informações (SNI) referente à Alagoas, disponível no Sistema do Arquivo
Nacional, e ainda não estudada.
Humberto Cavalcanti faz parte de um conjunto de sacerdotes progressistas, também
investigados à época, envolvidos com questões político-sociais, segundo orientação da Igreja,
que, a partir da década de 1950, com a criação dos grupos laicos da Ação Católica Brasileira
(ACB), aproximou a atuação do sacerdócio do dia a dia de estudantes e trabalhadores urbanos
e rurais. Esta trajetória foi reforçada pelas encíclicas Mater et Magistra e Pacem in Terris,
publicadas em 1961 e 1963, no papado de João XXIII, e, principalmente, pelo Concílio
Vaticano II (1962-65) que ressaltou a importância do envolvimento dos eclesiásticos com as
questões de justiça social e dos direitos humanos.
Mestre em Modelagem Computacional do Conhecimento, bacharelanda em História pela Universidade Federal
de Alagoas e pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Estudo das Religiões (LIER).
seforajunqueira@gmail.com.
*
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Tal atuação, como vários autores defendem, tornou os sacerdotes alvos do sistema
repressivo do regime, considerados agentes subversivos ou comunistas.
Espera-se, com este trabalho, parte de uma pesquisa mais ampla cujo objetivo é o
estudo das relações entre as diferentes religiões e o Estado brasileiro, colaborar com a
compreensão das relações entre o estado autoritário de 1964 e a igreja católica alagoana.
O contexto nacional e a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti
Os anos entre 1945 e 1964, instalados entre dois períodos de governos autoritários, de
mínima liberdade de expressão e representação política, caracterizaram-se por disputas políticas
e ideológicas em gradativa radicalização. Em um contexto econômico e social marcado por
processos de industrialização e urbanização crescentes, tramam-se, em paralelo, projetos de
democratização da cidadania e inclusão social e o projeto de “um outro modelo político e
ideológico de sociedade e de Estado, esboçado bem antes do golpe: a modernização
socioeconômica do país e a construção no longo prazo de uma democracia plebiscitária,
tutelada pelos militares com nome do ‘partido da ordem’” .
660
Na instalação do regime militar, logo nas primeiras semanas, muitos foram
denunciados, investigados e presos. Isso mostra que já havia todo um sistema repressivo em
construção nos anos anteriores. Havia antes um órgão de informações, o “não muito
prestigioso” SFICI – Serviço Federal de Informações e Contrainformações. O processo se
acelerou. O SNI foi criado por lei apresentada em 11 de maio e aprovada em 13 de junho.
661
Entre as diversas categorias profissionais espionadas e citadas nos relatórios dos órgãos
de informações, estão os bispos.
662
Desde o início do século XX, a Igreja Católica vinha se engajando nas questões sociais,
em reação à separação entre Igreja e Estado, quando os bispos brasileiros, na esteira da
orientação do Papa Leão XIII, começaram a “recristianizar a sociedade.”
663
Uma das
características deste processo foi a valorização do laicato, através da criação de entidades como
a Ação Católica Brasileira – ACB, em 1935, que, a partir da década de 1950, passou a contar
com subdivisões como a Juventude Estudantil Católica (JEC), a Juventude Operária Católica
660
NAPOLITANO, Marcos. 1964: história do regime militar brasileiro. Editora Contexto, 2014, p.17-18.
GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de
Janeiro: Record, 2014, p.93.
662
Op. Cit. p.113.
663
Op. Cit. p.31.
661
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(JOC) e a Juventude Universitária Católica (JUC), que aproximaram o clero dos trabalhadores e
dos estudantes e, em consequência, das questões políticas com as quais estavam envolvidos .
664
Em 1952, criada a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a liderança
empreendida por Dom Hélder Câmara, secretário-geral da entidade por 12 anos, imprimiu à
agenda da instituição a prioridade das questões político-sociais, sua preocupação pessoal.
Na década de 1960, algumas reformas importantes promoveram os posicionamentos
mais progressistas da instituição. As encíclicas Mater et Magistra, publicada em 1961, e Pacem
in Terris, de 1963, ambas do papado de João XXIII (1958-63), foram importantes marcos da
doutrina social da Igreja, pois buscaram sintonizar as orientações das encíclicas anteriores que
tratavam das questões sociais com o mundo secular moderno.
665
Mais tarde, foi o Concílio Vaticano II (1962-65) que pôs a questão da justiça social e dos
direitos humanos em primeiro plano. [...] Em linhas gerais, nele se discutiu a importância de o
clero não manter suas funções alheias à realidade sócio político-econômica [...].
666
A Arquidiocese de Maceió, na trilha deste movimento, encabeçada por Dom Adelmo,
arcebispo coadjutor a partir de 1955, se dedicou à construção de uma rede de apoio social, que
a aproximará, principalmente, do homem do campo, em função do contexto econômico e
político do Estado.
667
Ao mesmo tempo, vinha-se reforçando, dentro da Igreja, um discurso anticomunista,
cujos traços remontam ao final do século XIX, quando a “instituição vivia um grande temor
com relação ao crescimento dos movimentos operários e, sobretudo, ao comunismo presente
nestes movimentos” . Tal discurso era indicador de uma instituição enfraquecida, preocupada
668
com a possibilidade de uma perda ainda maior de poder diante das emergentes ideologias
socialistas e comunistas.
669
Nesta Igreja que se pretendia “social”, mas não “socialista”, encontram-se muitas
“igrejas”. Atitudes progressistas em meio a atitudes conservadoras.
664
Op. Cit. p.32.
Op. Cit. p.37.
666
GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de
Janeiro: Record, 2014, p.37.
667
Op. Cit. p.32. e MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja católica, ação social
e imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007, p.29.
668
GOMES, Paulo César. Os bispos católicos e a ditadura militar brasileira: a visão da espionagem. Rio de
Janeiro: Record, 2014, p.26.
669
MEDEIROS, Fernando Antônio Mesquita de. O homo inimicus: Igreja católica, ação social e imaginário
anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007, p.39.
665
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Paradoxo que explica, em parte, o comportamento das autoridades eclesiásticas diante
da instalação do regime militar. Apoio às políticas do Presidente João Goulart, sob lideranças
mais progressistas, em seguida apoio à tomada de poder pelas autoridades militares, sob
lideranças mais conservadoras, e mais à frente, o gradual afastamento de um regime que se
mostrava indiferente, quando não contrário, às bandeiras sociais que a Igreja vinha defendendo
havia décadas. Até se tornar, nos anos 1970, um dos principais opositores do regime.
Paradoxo que pode explicar, também, por que, embora oficialmente a Igreja Católica
tenha apoiado a intervenção dos militares, alguns de seus membros estavam entre os primeiros
alvos do sistema repressivo que se deflagrou naquelas semanas.
Os relatórios encontrados nos arquivos do SNI mostram que, além de bispos, também
muitos padres eram observados. Sua vida foi acompanhada de perto, por muitos anos. Alguns
foram denunciados e processados.
São informações, listas, relatórios, dossiês que, estudados, podem ajudar a compreender
os pressupostos teológicos e políticos, expressos em práticas organizadas nos diferentes
movimentos eclesiais, que motivavam a perseguição daqueles sacerdotes, ou seja, quais atitudes
e comportamentos do clero eram focos de preocupação e atenção dos agentes do governo e
conduziam a identificação daqueles que deveriam ser vigiados.
Parte de uma pesquisa mais ampla , cujo objetivo é o estudo das relações entre as
670
diferentes religiões e o Estado brasileiro, em que se configurem as lutas pelos espaços sociais de
poder em diferentes temporalidades e espaços geográficos, este trabalho focaliza a igreja
católica durante o regime civil militar de 1964, dirigindo atenção aos padres atuantes em
Alagoas, cujos documentos do SNI fornecem a possibilidade de reexaminar a forma e as bases
do processo persecutório do regime militar, a partir de uma diferente perspectiva. “A
elaboração do conhecimento histórico consiste precisamente neste permanente reexame do
passado com base em determinadas fontes e a partir de determinados pontos de vista.” [Barros,
2015, p. 144] A abordagem ainda inédita destas coleções com foco nos agentes da
Arquidiocese de Maceió oportuniza conhecer um pouco melhor o papel social e político da
Igreja Católica em Alagoas, o sistema repressivo do regime civil militar e as relações entre a
Igreja e o Estado durante o período referenciado.
Esse artigo é parte do projeto de pesquisa em andamento “Agentes e movimentos católicos alagoanos nos
arquivos do Serviço Nacional de Informação (SNI), 1964-1979”.
670
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Um dos sacerdotes alagoanos encontrados nos documentos produzidos pelo SNI,
custodiados no Fundo BR_DFANBSB V8, recolhidos ao acervo do Arquivo Nacional entre
2007 e 2009, em consequência do Decreto 5.584/2005, é o padre Humberto de Araújo
Cavalcanti.
Natural de Viçosa, Alagoas, Humberto Cavalcanti fez o seminário no Colégio Pio
Brasileiro, em Roma, entre 1947 e 1950, quando foi ordenado padre. Ainda na Itália, cursou
671
Teologia e Direito canônico na Universidade Gregoriana de Roma , antes de voltar ao Brasil,
672
em 1951.
673
De volta a Maceió, em poucos meses, Padre Humberto se envolveu com atividades
relacionadas à Ação Católica, orientando senhoras nas manhãs de formação e participando de
encontros como a Semana Jecista do Nordeste, presidida por Dom Hélder Câmara , como
674
675
mostram registros encontrados no Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió, já nos anos de
1952 e 1953.
Abraça, à época, também, a carreira acadêmica, prestando concurso para as cátedras de
Filosofia, em 1953, e Português, em 1958, no Colégio Estadual de Alagoas . Lecionou, ainda,
676
no Liceu Alagoano e no Colégio Estadual Moreira e Silva.
A tese defendida no concurso ao Colégio Estadual, “Filosofia da Existência em Thomaz
de Aquino”, publicada em livro pela Casa Ramalho, dá início a uma carreira literária, sendo
seguida pela obra “Presença do transcendente em Jorge de Lima”, publicado pela Imprensa
Oficial, em 1958.
Após um par de anos, aparentemente afetados por questões pessoais delicadas , os
677
registros do SNI apontam para o gradativo envolvimento de Humberto em atividades de
conotação político-social, como conferências, palestras e a gestão de jornais, sendo apontado
671
Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Caderno 1 - Episcopado de D. Ranulpho: Informes, Resenha,
Relação, Resumo.
672
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de
Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979.
673
Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Livro do Tombo nº 12, 30v.
674
Relacionada à Juventude Estudantil Católica.
675
Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió. Livro do Tombo, nº 12, 1952, 138.
676
Suruagy, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Jornal Tribuna do Sertão. Notícias. Maceió, AL, 8/10/2014
677
Recorte de número do Jornal Diário de Alagoas, de 30 de janeiro de 1961 comenta o assassinato de uma
mulher pelo marido, no bairro do Farol, em Maceió, repercutindo sobre a presença de Dom Adelmo Machado e
do Padre Humberto durante o depoimento do criminoso. Documento BR_DFANBSB V8.MIC,
GNC.III.79000033, posterior, menciona ter sido o padre Humberto flagrado em “crime de adultério” com a
Senhora Ivone Barbosa, no dia 4 de julho, pelo próprio esposo da mesma, Senhor Deoclécio Barbosa, tendo este,
naquela ocasião morto sua mulher.
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como orientador do Jornal Estudantil do Colégio Estadual de Maceió, diretor do
Departamento de Jornal Falado da Rádio Difusora de Alagoas e diretor geral da mesma rádio.
Uma relação de autores alagoanos, cujas obras são mantidas no Arquivo Público de
Alagoas, publicada pela página ABC das Alagoas, que registra a peça “O Valor Social da
Educação”, conferência pronunciada por ele, no Rotary Club de Santana do Ipanema, em 28
de agosto de 1963, é a única fonte alternativa encontrada até agora, que parece corroborar com
a tendência identificada nos documentos do SNI.
A informação contida no documento BR_DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033,
678
menciona como antecedentes do padre Humberto:
Quando Padre, compareceu, como conferencista ao I SEMINÁRIO
OPERÁRIO ESTADUAL CAMPONÊS, organizado por elementos
esquerdistas. Declarava-se favorável à FRENTE ÚNICA no País, como
solução para a resolução dos problemas sociais. Recebia publicações
comunistas, nomeou elementos subversivos para o Departamento de Jornal
Falado da Rádio Difusora de ALAGOAS, onde era então Diretor. Como
orientador do Jornal Estudantil, do Colégio Estadual de MACEIÓ fez
publicar uma edição em termos que, obrigaram o Diretor daquele
Estabelecimento de Ensino a apreender toda a tiragem. Promoveu palestras
no SINDICATO RURAL DO PILAR/AL, junto com elementos
reconhecidamente comunistas, conforme apurado em IPM a que respondeu.
O texto traz alguns sinais: “elementos esquerdistas”, “publicações comunistas”,
“elementos subversivos”.
Expressões que podem ajudar a compreender a sequência dos
acontecimentos.
Instala-se o regime. Inquéritos militares são abertos por todo país, envolvendo pessoas
suspeitas de “subversão”, “agitação” e “comunismo”. Políticos, estudantes, jornalistas,
678
Produzida em agosto de 1977, a informação contém uma apuração das informações colecionadas ao longo
dos anos sobre o, à época, ex-padre, casado com Neise Annibal Cavalcanti, assessora de segurança e
informações do INAMPS/AL, cuja possibilidade de ascensão na carreira preocupou o SNI, por sua relação com
Humberto.
736
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escritores, sindicalistas, assistentes sociais, sacerdotes, entre outros, foram processados, alguns
presos e/ou colocados sob constante vigilância, outros torturados, desaparecidos e mortos.
679
O dossiê do SNI mencionado registra que o padre Humberto recebeu
prontuário nesta Agência por ter se envolvido em atividades subversivas,
tendo sido indiciado em IPM instaurado pela Comissão constituída pela
Resolução nº 06/64 em Maceió/AL, encaminhado à Auditoria da 7ª RM em
1964/; que remeteu à Auditoria de Correição da GB com o Processo nº
77/64. Foi incurso no inciso 4º do Art. 2º; Artigos 7º, 9º e 10º, letra "b" do
Art. 11º; Artigos 12º, 17º e letra "a" do Art. 34º da Lei 1802/53.680
O documento contém, ainda, o Termo de Assentada do interrogatório ao qual foi
submetido em 26 de maior de 1964, em que relata desconhecer o teor da investigação e quem
seriam os demais investigados ou testemunhas.
Respondendo às perguntas formuladas, Humberto Cavalcanti negou participar de
sindicatos rurais, admitindo prestar colaboração intelectual ao Serviço de Orientação Rural, ter
feito pronunciamentos e conferências e participado como convidado de reuniões e seminários
sobre a “solução humana e cristã dos problemas sociais” , seguindo a orientação da doutrina
681
social da Igreja, de acordo com a Encíclica Mater e Magistra do Papa João XXIII. Afirmou ser
contrário a totalitarismos de esquerda ou de direita e a favor do regime democrático.
Ouvidas as testemunhas, que confirmaram seu depoimento, o inquérito foi encerrado
sem seu indiciamento.
Após um silêncio nas fontes, encontra-se, em 1968, no Arquivo da Cúria, o registro da
excardinação do padre Humberto da Arquidiocese de Maceió e sua incardinação na
Arquidiocese de São Paulo. E no ano seguinte, o dossiê do SNI contém certidão de seu
casamento com Neise Annibal Cavalcanti, em 26 de fevereiro de 1969.
679
SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar do padre
Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da autora).
680
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de
Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979.
681
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço Nacional de
Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979.
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Depois de outro breve período de ausência de informações, o dossiê o registra de volta
a Maceió, segundo o então governador Divaldo Suruagy, tendo retornado por sugestão sua. A
682
partir de então, o ex-padre Humberto foi empossado sócio do Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas _IHGA, ocupou cargos de assessoria e consultoria no governo do Estado e na
Universidade Federal de Alagoas, continuou sua carreira acadêmica e literária, tornou-se
membro da Academia Alagoana de Letras e formou-se bacharel em Direito, em 1974.
A conclusão da Informação nº 655/300/ARE/77, em 1979, fecha o dossiê sobre
Humberto Cavalcanti informando que:
Embora tendo prestígio com determinadas autoridades do Estado de
ALAGOAS, teria mantido após 1964 uma conduta político--ideológica
discreta e declarado, quando Chefe de Gabinete do Reitor da UFAL, estar
integrado ao Movimento revolucionário de 1964; não possui idoneidade
moral, não goza de bom conceito junto a ASI/UFAL e Comando do 59º
BI/MACEIÓ/AL e não inspira confiança.
Nos primeiros anos da década de 1980, seu nome ainda pode ser encontrado em
informes do SNI, relacionado à infiltração comunista e atividades de conotação esquerdista.
Outros sacerdotes alagoanos estiveram envolvidos em investigações nos meses seguintes
à instalação do regime e permaneceram nos radares do SNI, durante toda a ditadura. Entre eles
estavam Theóphanes Augusto de Barros, Luiz de Oliveira Santos e o cônego Hildebrando
Veríssimo Guimarães. Luiz Santos foi, entre eles, o único a ser processado. Dados sobre eles
683
podem ser encontrados nos documentos do fundo BR_DFANBSB V8.
O cotejamento das informações sobre o padre Humberto demonstra que a análise
destes documentos, antes não estudados com método, pode corroborar as teses das pesquisas
que procuram demonstrar o vínculo existente entre a atuação dos membros da Igreja na Ação
Social Católica e a desconfiança dos agentes do sistema de informações do regime militar.
Pode, também, acrescentar informações específicas que auxiliem na compreensão das relações
mantidas entre a Igreja e o Regime em Alagoas.
682
Suruagy, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Tribuna do Sertão. Artigos. 8 de outubro de 2014. Disponível em
https://tribunadosertao.com.br/2014/10/humberto-cavalcanti-2/. Último acesso em 29 de maio de 2021.
683
SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar do padre
Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da autora).
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Considerações Finais
A análise dos documentos encontrados no Fundo do SNI no Sistema do Arquivo
Nacional, ainda em andamento, já permite resgatar, com ajuda do Arquivo da Cúria
Metropolitana de Maceió, a trajetória de Humberto de Araújo Cavalcanti.
Os documentos, via de regra, dão destaque ao padre Humberto Cavalcanti em sua
relação com elementos tidos como “subversivos” ou “esquerdistas”, participando de reuniões
de trabalhadores, recebendo publicações “comunistas”, exprimindo opiniões “progressistas”
quanto às questões sociais, corroborando as teses que defendem o vínculo entre a atuação
eclesial na Ação Social Católica e a repressão do regime militar.
As informações encontradas até agora parecem mostrar que o interesse dos agentes do
sistema repressivo por Humberto se devia as suas opiniões progressistas, identificadas em sua
fala e seus escritos.
Outros sacerdotes alagoanos, contemporâneos de Humberto Cavalcanti, aparecem nos
documentos encontrados, levando a crer que a ampliação do universo de análise, incluindo
outros padres, pode fortalecer (ou não) estas primeiras conclusões, além de enriquecer a
compreensão sobre a atuação dos membros da igreja católica alagoana durante o regime civil
militar.
Referências
(A)
Fontes
Arquivo Nacional
BRASIL. Ministério da Justiça e Segurança Pública. Arquivo Nacional. Fundo Serviço
Nacional de Informações, BR DFANBSB V8.MIC, GNC.III.79000033 – Neise Annibal
Cavalcanti – Dossiê – 30/1/1979.
Arquivo da Cúria Metropolitana de Maceió
Caderno 1 - Episcopado de D. Ranulpho: Informes, Resenha, Relação, Resumo.
Livro do Tombo nº 12, 30v.
Livro do Tombo, nº 12, 1952, 138.
(B)
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imaginário anticomunista em Alagoas. Maceió: EDUFAL, 2007.
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SANTOS, Irinéia Maria Franco dos. Padres agitadores em Alagoas: o Inquérito Policial-Militar
do padre Luiz de Oliveira Santos (1964-1969). Original em curso de publicação (gentileza da
autora).
SURUAGY, Divaldo. Humberto Cavalcanti. Tribuna do Sertão. Artigos. 8 de outubro de
2014. Disponível em https://tribunadosertao.com.br/2014/10/humberto-cavalcanti-2/. Último
acesso em 7 de julho de 2021.
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Memória, Identidade e História: por uma reflexão acerca da produção
historiográfica dos festejos de Nossa Senhora do Rosário em Delmiro Gouveia
(Alagoas), 1951-2021
Thiego da Silva Barros
*
Resumo: A presente proposta visa discutir as relações que se construíram a partir da realização
dos festejos de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Vila da Pedra (atual Delmiro
Gouveia). Os festejos foram iniciados em 1951, após a criação da sede paroquial do distrito.
Este trabalho visa pensar as memórias e as identidades que se estabelecem no plano espacial,
geradas na participação nesses festejos, a fim de compreender a formação da identidade
histórica, local e práticas sociais. A celebração está associada à conquista da autonomia distrital,
assim, este estudo em fase inicial, busca refletir sobre a ideia de pertencimento da comunidade
com os festejos, refletindo as relações entre sujeitos, grupos e o mundo social de uma paisagem
sertaneja. À luz dos referenciais teóricos como Maurice Halbwachs (memórias coletivas), Joel
Candau (memória enquanto geradora de identidade), bem como, no diálogo com as fontes, na
compreensão das memórias que vivenciam estes momentos de festividades e suas expressões
no campo social. Para além dos teóricos utilizados, a pesquisa fará uso de fontes orais, fontes
visuais, livros de memórias que expõem aspectos do cotidiano na vertente social, cultural e
política do munícipio de Delmiro Gouveia, no sertão do São Francisco.
Palavras-chave: memórias, identidades, religião, sertão.
Introdução:
Em 7 de outubro de 1951, a comunidade católica do então distrito de Vila da Pedra684,
realizou a primeira festividade dedicada a Nossa Senhora do Rosário, esse acontecimento
marcou a vivência dos fiéis católicos do distrito, hoje denominado Delmiro Gouveia685
(Alagoas). Foi também neste ano, em 30 de março, que a organização eclesiástica católica
assumiu um novo direcionamento em sua área pastoral, com a presença de um padre residente
Professor de História da Rede Municipal de Educação de Ouro Branco/AL e Major Izidoro/AL; mestrando em
História pelo PPGHIS – UFAL.
684
Somente em 14 de fevereiro de 1954, é que o Distrito é emancipado e torna-se Delmiro Gouveia (Alagoas).
685
Munícipio localizado há 306 km da capital alagoana Maceió/AL.
*
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na comunidade para atender aos membros do catolicismo686, e ganhou autonomia em relação à
Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca687.
A comunidade católica é constituída em paróquia, sendo desmembrado da Paróquia de
Nossa Senhora da Conceição, município de Água Branca, “Com o intuito de atender ao bem e
progresso espiritual dos fiéis confiados a nossos cuidados pastorais”,· em 30 de março de 1951.
A primeira festa dedicada a Nossa Senhora do Rosário ocorreu em 7 de outubro de 1951
(NASCIMENTO, 2001, p.05), ou seja, os festejos ocorrem após a criação da Paróquia de
Nossa Senhora do Rosário, sob a organização do primeiro padre da recém-criada paróquia,
Fernando Soares Vieira, o qual exerceu o ofício de pároco de 1951 a 1980, por trinta anos
(ROSÁRIO, 2011, p.4-5).
A construção da capela de Nossa Senhora do Rosário, no distrito de Vila da Pedra,
ocorreu a pedido de Mariêta Ionas (1887-1925), esposa do italiano Lionelo Ionas (1866-1931),
sócio de Delmiro Augusto da Cruz Gouveia (1863-1917) que, por devoção, desejava construir
uma capela dedicada à referida santa. O pedido ocorreu em 1917, no mesmo ano, em 10 de
outubro de 1917, o empresário Delmiro Augusto da Cruz Gouveia foi vítima de assassinato, ele
que fundou a primeira fábrica de tecidos da região, denominada Companhia Agro Fábril
Mercantil, mais tarde Fábrica da Pedra.
A construção da capela ocorreu com o financiamento direto da indústria de tecidos nos
anos que se seguem (CORREIA, 2013, p. 08). No ano seguinte, ocorreu a inauguração da
capela de Nossa Senhora do Rosário, iniciando assim, a criação do primeiro templo religioso
católico neste território, localizado no sertão de Alagoas. (ROSÁRIO, 2011, p. 6-7).
Após a inauguração da capela, em 1918, passou a ocorrer cerimônia religiosa na
localidade. Até esse período àqueles que desejavam participar de alguma atividade religiosa
católica, como batismo, casamentos, festividades religiosas, dirigiam-se ao munícipio de Água
Branca, que era sede pastoral e administrativa do distrito de Vila da Pedra. Apenas no período
de Natal, em 25 de dezembro, é que ocorria celebração de missa na escadaria da Fábrica da
Pedra, anterior a construção da capela (NASCIMENTO, 2001, p.08).
Com a inauguração da capela de Nossa Senhora do Rosário, os moradores da
localidade passaram a ter um espaço físico para a vivência dos momentos religiosos católicos,
ROSÁRIO, 1951, p. 03 – Livro de Tombo.
Munícipio sede administrativa do então Distrito de Vila da Pedra e sede pastoral da Capela de Nossa Senhora
do Rosário, a cidade de Água Branca fica há 326 km da capital alagoana Maceió/AL.
686
687
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próximo de suas residências. Quem prestava assistência religiosa era a Paróquia de Nossa
Senhora da Conceição do munícipio de Água Branca, na pessoa do padre Manoel José de
Oliveira, um dos padres que prestou amparo religioso aos que frequentavam a capela de Nossa
Senhora do Rosário, localizada no espaço denominado de Vila Operária688, recebendo o ofício
de capelão689. Também, exerceu o ofício de vigário paroquial690, na paróquia de Nossa Senhora
da Conceição de Água Branca, auxiliando o padre Nicodemos da Rocha (SILVA, 2016, p. 4950).
O distrito de Vila da Pedra não tinha um pároco até então, todavia, o padre Manoel
permaneceu auxiliando os trabalhos religiosos por dois anos. Quem respondia juridicamente
na Vila da Pedra era o padre Nicodemos da Rocha, pároco691 de Água Branca (SILVA, 2016, p.
13).
No tocante a capela da Vila da Pedra, que recebe o nome de capela de Nossa Senhora
do Rosário, vale ressaltar que a mesma pertenceu, em seu aspecto administrativo, pastoral e
territorial, a paróquia de Nossa Senhora da Conceição do município de Água Branca, até 30 de
março de 1951. Naquele município, havia uma confraria692 denominada de Confraria do
Rosário, composta por diversos membros da comunidade católica do lugarejo que transitavam
para Vila da Pedra, o que nos leva a observar à existência de uma devoção a referida santa
católica por habitantes do distrito, anterior a construção da capela no local.·.
É notável, que a festividade dedicada a Nossa Senhora do Rosário tem um significado
diferenciado para a comunidade católica em sua dinâmica histórica. Mas, para além desses
aspectos, há as relações que se estabelecem no plano espacial com os sujeitos envolvidos nesse
processo. Trata-se de uma celebração que também está associada à conquista de autonomia
distrital e à construção da identidade local. Essas dinâmicas históricas desempenham papel
fundamental que merecem uma atenta pesquisa a fim de qualificar as reflexões sobre as
relações entre sujeitos, grupos e o mundo social de uma paisagem sertaneja que se
reconfigurava.
688
Ao falar sobre Vila Operária estamos nos referindo ao espaço criado em 1912, em que era local de moradia de
trabalhadores e operários da Fábrica da Pedra.
689
Sacerdote responsável pelos serviços religiosos de uma capela sem Sede pastoral e administrativa.
690
Sacerdote, que exerceu o papel de auxiliar do pároco numa paróquia de grande extensão territorial.
691
Padre responsável por uma paróquia, com Sede administrativa e pastoral independente.
692
Associação laica que funciona sob princípios religiosos, fundada por pessoas piedosas que se comprometem a
realizar conjuntamente práticas caritativas, assistenciais etc.; congregação, irmandade.
743
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A festividade de Nossa Senhora do Rosário e a produção da narrativa histórica.
Neste sentido, a partir do percurso histórico mencionado acima, convém refletirmos
sobre a produção do conhecimento histórico, as relações que se estabelecem e a dinâmica
envolvida, é pertinente refletir sobre o lugar de produção, o lugar de fala na produção
historiográfica, sobretudo, ao buscar compreender o objeto de pesquisa, que neste caso
específico, é uma festividade religiosa católica, dedicada a Nossa Senhora do Rosário, principal
evento católico, que ocorre no munícipio de Delmiro Gouveia, no sertão alagoano, anualmente
no mês de outubro. Dessa forma, busca-se questionar como este fenômeno religioso contribuiu
para as relações sociais construídas na localidade, a partir de 1951, ano em que é criada a
Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, e com isso a expansão desse festejo religioso com o
desenvolvimento de uma nova dinâmica religiosa católica no então distrito de Vila da Pedra.
A criação da Paróquia de Nossa Senhora do Rosário, que marca o desmembramento
com a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Água Branca/AL, ocorreu em 30 de março
de 1951, antes da emancipação política do então distrito de Vila da Pedra, assim, neste
percurso buscaremos refletir sobre as relações construídas em meio à dinâmica histórica, a
partir da formação das identidades e das experiências sociais (MARTINS, 2011) que
cooperaram para a construção da ideia de pertencimento da comunidade com a festa de Nossa
Senhora do Rosário, que passa a ocorrer a partir de 1951 com a presença de um padre
residente na localidade.
Neste interim, entendemos que tal celebração religiosa católica, é uma celebração
identitária, observando que essa festividade, possibilita um discurso que deve ser refletido na
compreensão da trama histórica, em suas expressões de sentimentos e sensações. Assim, pensar
essa produção histórica, é compreender que o conhecimento histórico é relativo às condições
históricas de sua produção (MUNIZ, 2011, p. 22).
Ao falarmos sobre essa festividade religiosa, que também impulsiona a movimentação
econômica do município, no período de realização festiva, além de ser um dos eventos mais
aguardados pela comunidade católica e pelo comércio local, em decorrência da movimentação
realizada. Ao longo dos dez dias de festejos religiosos, ocorrem o novenário e missa na praça
multieventos Nossa Senhora do Rosário, com a presença do parque de diversões, em frente à
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capela da Vila Operária693, além da realização de festividades patrocinadas pelo poder público
municipal nos últimos dias dos festejos.
Por isso, essa reflexão deve nos levar a dialogar com as fontes existentes para ampliação
do leque interpretativo, numa feitura da interpretação e recomposição histórica, de modo a
compreender os significados dessa festividade para o munícipio de Delmiro Gouveia,
entendendo que as fontes envolvidas nesse processo investigativo, é fruto de seu tempo,
contexto e realidade, e para tanto, se faz necessário um olhar atencioso, com relação às lacunas
e os silêncios. Tendo em vista que o ato de escolha já supõe algum silenciamento, daí a
necessidade de se refletir sempre sobre essas problemáticas na dinâmica da pesquisa histórica,
buscando compreender como se dá a elaboração e como se adquire sentido nos agentes
históricos em sua temporalidade e contexto social.
Memórias, identidades e experiências vivenciadas nos festejos de Nossa Senhora do Rosário de
Delmiro Gouveia/AL.
Este texto reflexivo nos leva a pensar as vivências e as experiências a partir dos festejos
de Nossa Senhora do Rosário, com um olhar direcionado sobre o sertão, assim ao discutir
sobre as memórias e as experiências vividas, o diálogo com Maurice Halbwachs (2006) e Joël
Candau (2012), se faz necessário, pois esta memória individual só pode existir dentro dos
quadros sociais da memória, em sua dinâmica coletiva, a qual deverá ser problematizada dentro
de seu contexto social, na ideia de memória enquanto geradora de identidade, numa reflexão
essas memórias católicas e as relações construídas a partir dos festejos de Nossa Senhora do
Rosário em Delmiro Gouveia (Alagoas).
Vale salientar, que ao refletirmos sobre as memórias, num diálogo teórico,
compreendemos a memória numa perspectiva de construção coletiva, não como verdade
absoluta, mas enquanto múltiplas formas de leituras e representações do passado que incidem
diretamente na vida social, política, econômica e cultural dos sujeitos dentro do contexto de
ação.
693
Capela circunscrita à vila operária, em que diversos moradores eram trabalhadores da fábrica da Pedra. Essa
capela dedicada a Nossa Senhora do Rosário foi erguida em outubro de 1918, antes da criação canônica da
Paróquia de Nossa Senhora do Rosário. A criação canônica da paróquia ocorre em 31 de março de 1951. Até
esse período a localidade em seu aspecto católico pertencia a Paróquia de Nossa Senhora da Conceição no
munícipio de Água Branca/AL
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Nisto reside, a importância de se refletir sobre as identidades, diferenças e memórias
em que sua transmissão está condicionada ao contexto histórico em que é inserida, nas relações
que se constroem, com os interesses envolvidos, e nas participações que geram significados
sociais e culturais a partir das experiências vividas. Sendo assim, ao se estudar esta festividade,
percebemos também, que é uma celebração que também está associada à conquista de
autonomia distrital e a construção da identidade local em seu processo histórico de
desenvolvimento social.
Assim, compreendermos como essas práticas culturais ocorrem, é identificar os modos
como em diferentes lugares e em diferentes momentos, a realidade social é construída,
pensada, dada a ler em sua dinâmica histórica, e para tanto, é necessário perceber que as
representações do mundo social e suas percepções não são discursos neutros, como nos
advertiu Roger Chartier (1988, p.16). Ou seja, num estudo atento das experiências vivenciadas
pela comunidade, as mudanças sociais e culturais no tempo construindo uma historiografia
pensada, crítica, que permita compreender a experiência dos sujeitos em seu tempo, de modo a
percorrer um itinerário investigativo que nos possibilite compreender o não dito, por meio de
uma leitura problematizador das fontes num olhar a contrapelo (BENJAMIM, Walter, 2013).
Nessa perspectiva de sentimento e pertencimento num diálogo com Maurice
Halbwachs, em sua obra Memória Coletiva (2006), nos mostra que a memória passa a existir à
medida que se criam laços afetivos de pertencimento a um determinado grupo.
Para Michel Pollak (1990), o sentimento de pertencimento contribui para o
estabelecimento de uma identidade, a qual também é construída por meio dos espaços, os
lugares e objetos da memória que circundam a realidade material dos grupos que se envolvem
com o objeto em sua movimentação econômica e cultural. Ou seja, no sentido de construção
de significados, nas reflexões sobre as experiências sociais vividas no e com o espaço, em seu
ato celebrativo em um aglomerado de significados e imaginários que sustentam as práticas e as
representações atribuídas a este evento religioso católico.
Num olhar atento e minucioso, podemos compreender as relações que são construídas
com o objeto e o seu entorno, em que se moldam identidades ao redor da celebração,
contribuindo para a compreensão de um traço da cultura e das práticas sociais de parte da
comunidade delmirense na reflexão sobre as memórias e as identidades dessa festividade
religiosa católica.
Assim sendo, Pozenato (1990, p. 10), nos dirá que a identidade não é buscada no
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“plano das manifestações externas, mas no uso que existe por trás dessas manifestações”, indo
além dos momentos celebrativos, mas na compreensão crítica dessa possibilidade que reside na
percepção das pessoas e da comunidade.
Desta feita, interpretar, desvendar as relações forjadas, construídas com o patrimônio
cultural imaterial, é compreender a gama de significados e simbolismos advindos das relações
de afeto e das práticas sociais que são articuladas entre o sujeito e o patrimônio histórico,
cultural imaterial que também são produções humanas. (LEÃO, 2009).
Assim, os estudos sobre as memórias e práticas sociais e culturais em Delmiro Gouveia,
insere-se numa história que não é isenta de configurações, mas que se constrói na teia social do
trajeto social e político (CANDAU, 2012, p.35-38), visto que não há busca identitária sem
memória. Para tanto, se faz necessário pensar nesse emaranhado existente, nas várias camadas
de silêncios, que se podem examinar meios e o processo de produção histórica, observando as
desigualdades nesse processo e na narrativa histórica (TROUILLOT, Michel-Rolph, 2016, p.
73-74).
Com isso, buscamos contribuir para a compreensão dos usos e percepções das práticas
culturais e sociais da Festa de Nossa Senhora do Rosário numa qualificação das reflexões sobre
as relações entre sujeitos e o mundo social, de uma paisagem sertaneja que se reconfigurava,
impulsionando a emancipação política do distrito de Vila da Pedra em 14 de fevereiro de 1954,
passando a receber o nome de Delmiro Gouveia.
O uso das fontes e o percurso investigativo
Balizado pelas reflexões desenvolvidas neste texto, percebemos que estudar a história,
pensar o lugar de produção, é compreender uma leitura do passado com base nas indagações,
nos problemas que são postos pelo presente, e neste objeto específico pensar as relações
construídas em seu contexto e dinâmica social, visto que a história é um conhecimento
dinâmico, com uma dedicação a interpretar as experiências da humanidade com base em
diversos tipos de registros (documentos escritos, pinturas, fotografias e vestígios materiais e
imateriais).
Neste percurso podemos falar um pouco sobre as fontes históricas ou documentos
históricos, definindo-o como tudo aquilo que, de algum modo, está marcado pela presença
humana; como por exemplo, discursos orais, escritos, monumentos, obras literárias, pinturas,
obras de arte, objetos cotidianos.
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Com relação às fontes históricas temos que ter clareza que estas informações que nos
chegam através da pesquisa, são as presenças ou ausências encarnadas em fontes, que não são
neutras e tampouco isentas, e sim culturais, criadas, produto da sociedade, com menções ou
silêncios de vários tipos e níveis, visto que fontes implicam escolhas no processo de produção
histórica (TROUILLOT, Michel-Rolph, 2016) na construção interpretativa e de sentido.
Com este objeto específico será importante o uso metodológico da história oral, visto
tratar-se de uma festividade religiosa, a qual ainda se tem pouca documentação escrita, além de
se fazer necessário compreender, as formas de percepção dos festejos pelos sujeitos envolvidos
de modo direto ou indireto; sejam eles o devoto e o não devoto, pois a festividade ocorre
ainda, numa praça denominada de praça de eventos Nossa Senhora do Rosário, local em que
esta instalada a primeira igreja católica do munícipio, inaugurada em outubro de 1918.
Neste espaço central também ocorrem diversos eventos locais, além de ao redor possuir
diversos estabelecimentos comerciais do munícipio, o que torna a realização deste evento
religioso, um dos mais aguardados pelo comércio local, pois ao longo dos dez dias de festejos
diversos eventos tanto por porte do poder público quanto do poder religioso ocorrem
mobilizando um número significativo da população delmirense em seus grupos sociais.
Desta feita, a diversidade de estabelecimentos comerciais circunscritos a este espaço, os
quais se apropriam desse recinto de diferentes formas, não apenas como um lugar no todo
religioso, mas um ambiente de vivências sociais e experiências múltiplas, nos leva a percorrer
um caminho interpretativo em busca de problematizar o significado no aspecto econômico e
cultural, enquanto fenômeno cultural para o munícipio e para a região. A partir da presença de
visitantes diversos que impulsionam o turismo local, bem como a vinda daqueles que nasceram
em Delmiro Gouveia, construíram suas vidas em outros locais e aproveitam a realização dessa
festividade para também visitar os familiares que residem no munícipio.
Com esta reflexão buscaremos enriquecer os estudos acerca da dinâmica que
impulsionou o vicejar do lugarejo denominado de Vila da Pedra, que mais à frente deu origem
a hoje, cidade de Delmiro Gouveia, em suas reconfigurações e dinâmicas sociais e culturais.
Ainda no tocante as fontes, vale salientar que elas não falam por si só e não trazem a
“verdade” pronta. Mas, são as inquietações do percurso investigativo, método e refinamento
teórico que nos levará a desenvolver uma narrativa sobre o passado. O olhar interpretativoproblematizador atento aos rastros deixados por cada fonte, observando o processo de escolha
e de organização documental, percebendo que a história não é uma narrativa única e definitiva
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de tudo que aconteceu, mas embasada em teoria e método para o percurso investigativo da
pesquisa histórica.
A narrativa histórica é construída com base em vestígios, fontes e documentos. Vale
salientar que essas informações têm autores e intenções; por isso, é necessário, neste processo
investigativo, compreender o contexto de produção, pois, o documento é também produto da
sociedade (LE GOFF, 2010). Por isso, interrogar o sentido dos fatos, dos acontecimentos e das
relações de força existente para pensar o objeto em questão, com um refinamento teórico que
iluminará o caminho metodológico e permitirá a construção de uma narrativa sobre o objeto
pesquisado.
Sendo assim, o que fortalece a pesquisa, a investigação é a percepção de que a operação
histórica se refere à combinação de um lugar social, de práticas “científicas”, e de uma escrita
(CERTEAU, 1982, p. 61-62). Articula-se neste lugar de produção socioeconômico, político e
cultural, num conjunto de práticas, produto de um lugar, tornando possíveis as pesquisas em
decorrência de conjunturas e problemáticas comuns pensando historicamente o objeto de
pesquisa e o pesquisador.
Considerações finais sobre o processo investigativo e interpretativo.
“A história não vive fora do tempo em que é escrita”
(Michelle Perrot)
Neste percurso investigativo, interpretativo da história e sua produção historiográfica,
sobretudo, pensando este objeto de pesquisa, buscaremos compreender as relações que
construíram historicamente os festejos dedicados a Nossa Senhora do Rosário de Delmiro
Gouveia, como um marco da memória coletiva e da identidade cultural, por meio da análise
dos sentidos e práticas evocadas e produzidas no entorno da festa, numa reflexão sobre as
memórias e as identidades construídas em seus múltiplos aspectos e suas vivências sociais em
seu contexto.
Sendo assim, pensar a produção historiográfica sobre este evento religioso, é
problematizar as experiências vividas incorporando aspectos da vida social e cultural,
percebendo a ideia de cultura como algo dinâmico, numa reflexão sobre as memórias na
formação das identidades, (JOEL CANDAU, 2012) numa ideia de cultura enquanto um modo
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de vida, de uma comunidade em relação às vivências e experiências com os festejos religiosos
católicos locais. A dinâmica causada pela Festa de Nossa Senhora do Rosário nos diversos
espaços, como as reuniões de diversas comunidades tanto da área rural quanto urbana para
vivenciar os momentos religiosos, até pagamentos de promessas, a presença de diversos
visitantes e devotos de outras localidades próximas.
Isso nos levará a compreender a construção de significados nas elucubrações sobre as
experiências sociais do munícipio sertanejo de Delmiro Gouveia/AL nas devoções e práticas
religiosas dos festejos de Nossa Senhora do Rosário e suas representações.
Neste trajeto, Carlo Ginzburg nos dirá que, “o objetivo do historiador é a narração,
historiador é aquele que narra e explica, o historiador explica as ações que os próprios homens
fazem, não inventa, mas explica” (GINZBURG, 2007, p. 27). Ou seja, a produção
historiográfica em seu percurso investigativo deverá nos levar a destrinchar o emaranhado
existencial do estar no mundo, em sua ação temporal, com os instrumentos que lhe são
próprios.
Desta feita, pensar este conhecimento produzido pelo historiador é perceber que a
produção está inserida num lugar social em que agimos e nos desenvolvemos enquanto
pessoas, em que suas formas históricas são estabelecidas, suas experiências sociais
desenvolvidas, em sua articulação com o real que busca representar, produzindo um
pensamento com base na visão histórica de mundo.
Assim, todo conhecimento nasce das escolhas, e estão inseridas num lugar social, e sua
produção histórica enquanto um saber social, numa relação com as memórias compartilhadas,
daí a importância de analisar os processos de construção dessa memória em sua temporalidade.
Por fim, a produção do conhecimento histórico-científico reflete acerca das relações de
poder e das práticas sociais e representações culturais produzidas pela sociedade. A partir de
uma compreensão acerca do objeto em questão, que perpasse as vivências e as permanências,
como a religiosidade e as crenças, com a transmissão da memória condicionada ao contexto
histórico em que está inserida, numa disciplina histórica feita de espaço, tempo e gente, por
meio das ações de homens e mulheres no tempo e no espaço, em seu ato de dizer e de
representar.
Referências bibliográficas:
ALVES, José Ricardo. Camargos: Festas, Cultura e Religiosidade. Mariana: UFOP, 2004,
750
Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Entre pesos e batinas: a participação do padre Ibiapina no Quebra-Quilos
Wellington Luís de Albuquerque Espíndola
*
Resumo: A revolta do Quebra-Quilos ocorrida no início da década de 1870 em algumas
províncias do Norte, teve como objetivo a não aceitação dos novos padrões de pesos e medidas
que o governo imperial tentou implantar no Brasil, seguindo o modelo francês. Em várias
províncias os populares se levantaram contra essas medidas. No caso específico aqui desse
estudo analisaremos essa revolta nas províncias da Paraíba e de Pernambuco, que além do
levante social contra os novos padrões de medidas teve as questões religiosas que deram
combustível a mais nessa revolta. Nessas duas províncias os populares assimilaram a Questão
Religiosa e o Quebra-Quilos como uma afronta do governo Imperial contra a população. É
nesse contexto que o padre Ibiapina após realizar uma missão em Campina Grande/PB, à
convite do seu amigo padre Calixto, em dezembro de 1873, realiza prédicas contra a Maçonaria
e todo aquele universo da Questão Religiosa que estava ocorrendo. Para algumas autoridades
do período essas prédicas foram as responsáveis pela ocorrência de tanta desordem.
Palavras-chaves: Padre Ibiapina – Quebra-Quilos – Questão Religiosa
A década de 1870 foi sacudida por dois movimentos: a Questão Religiosa e a Revolta
do Quebra-Quilos. Com relação à primeira foi um embate entre a Igreja, o Império e a
Maçonaria, sendo que desde a colônia o Brasil, assim como Portugal, a Igreja estava submetida
ao Império, no sistema de padroado, onde o rei era quem comandava os assuntos religiosos.
Essas instituições vão entrar em choque quando o papa Pio IX decretou a Bula Syllabus, que
em sua essência determinava a infalibilidade do poder papal, era uma tentativa da Igreja
combater os avanços de ideias liberais em uma instituição conservadora.
A Maçonaria, que era contra o ultramontanismo, teve seus seguidores afetados com
694
essa Bula. Muitos participavam da Maçonaria, a exemplo de alguns clérigos e pessoas do
Mestre em História pela UFCG.
De acordo com Lemaitre (1999, p. 273), conforme citado por Bezerra (2010, p.150), o fenômeno consiste
num “conjunto de doutrinas e atitudes favoráveis à centralização da igreja romana e opostas à autonomia das
igrejas nacionais. Nascido no século XIX, o ultramontanismo foi defendido por Lamennais (1802-1861) e seus
discípulos, e depois por Luís Veuillot (1813-1883). Reafirmado pelo concílio Vaticano I (1870), permitiu que às
igrejas nacionais defenderem a sua independência em relação aos Estados.” O termo tem origem francesa e
significa para além dos Alpes (em direção a Roma).
*
694
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governo, inclusive D. Pedro II e o Visconde do Rio Branco, que era seu ministro, os quais não
irão acatar a decisão papal. Esse fato vai dividir os membros da Igreja, uns apoiando a decisão
do imperador e outros seguindo a decisão de Pio IX.
Em Pernambuco, por exemplo, haverá uma repercussão bem maior desses
acontecimentos, pois o bispo de Olinda, Dom Frei Vital, defenderá as determinações da Igreja
e isso o levará para a prisão assim como o seu colega Dom Antônio de Macedo, bispo de
Belém/PA. Todos esses acontecimentos não passaram despercebidos no interior da província,
uma vez que a Questão Religiosa chegará às pessoas mais pobres do interior e alguns sacerdotes
tiraram proveito da situação para manipular as mesmas.
Já o Quebra-Quilos foi uma revolta popular, que eclodiu em decorrência da Lei
Imperial 1.157, de 26 de junho de 1862, que determinava a substituição dos velhos métodos de
pesos e medidas, pelo sistema métrico decimal francês. “Havia no Brasil uma grande variedade
de pesos e medidas, e que variavam de um lugar para outro, como: braça; légua, arroba; o
côvado; o feixe; a libra; o grão; o móio; a onça; o quintal; a vara; o pão de forma cônica, para
medir açúcar e outros produtos” (LOPES, 2004. p. 101). A lei previa um prazo de dez anos
para a implantação gradual de transição até o sistema ser totalmente implantado.
Em setembro de 1872 é editado novas instruções com base nas quais “determinou-se,
então, que, do dia 1º de julho de 1873 em diante as mercadorias oferecidas no comércio
deveriam ser medidas ou pesadas de acordo com o novo sistema de pesos e medidas”
(SOUTO MAIOR, 1978. p. 22). Esse fato ocorre por conta do governo imperial não ter
tomado as medidas que lhe cabia para executar a referida lei, que tinha sido criada em 1862.
Ainda nessas novas instruções diminuiu as penalidades para quem descumprisse a nova lei, a
prisão poderia ser de cinco a dez dias e as multas variavam de 10$000 a 20$000 (dez a vinte mil
reis).
Mesmo com essa extensão de prazo, às pessoas não estavam preparadas para uma
mudança total, na forma de negociar que vinha desde a colônia. E apesar do adiamento, o
governo em algumas localidades não fornece, por exemplo, tabelas com o valor dos novos
pesos e medidas. Em muitos lugares as Câmaras Municipais se aproveitam do ensejo para criar
novos impostos ou aumentar algumas tarifas já existentes. A nova lei de pesos e medidas,
aumento de impostos e devoção religiosa, serão a base para o início da revolta do QuebraQuilos, ou a “sedição maçônico-decimal”, como se referiu o então Ministro da Justiça do
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Império, se referindo ao movimento. A Paraíba será o epicentro da revolta que se espalhará
para Pernambuco, Rio Grande do Norte e Alagoas.
A respeito do envolvimento do padre Ibiapina na Revolta do Quebra-Quilos, um dos
seus principais biógrafos, Celso Mariz, não dá a atenção devida ao fato, no mais o que ele tenta
mostrar é “a figura do missionário, já alquebrado e doente, carismático, dando bênçãos,
perorando contra mancebias, falando dos castigos do inferno e das delícias do céu” (SOUTO
MAIOR, 1978. p. 32). Porém, os jornais da época mostram a efetiva participação do
missionário. Aqui analisaremos dois jornais: um ligado à Igreja Católica e outro à Maçonaria,
que noticiam a missão em Campina Grande em 1873.
Na cidade de Campina Grande, é instalada uma loja maçônica Segredo e Lealdade, que
é denunciada ao padre Calixto Corrêa da Nobrega, vigário do lugar. Esse expulsa da igreja
matriz pessoas que são acusadas de pertencerem à referida loja. O fato chamará a atenção da
imprensa, onde lemos:
Fanatismo – Pessoa fidedigna vinda de Campina Grande, nos afirma que indo
assistir a missa parochial, em um domingo desses passados, na matriz d’aquela
cidade, o vigário não quis celebrar, em quanto não foram lançados fora da
igreja dous indivíduos que supôs ser maçons; o que conseguio concitando a
ignorância do povo para tal fim (A PÁTRIA, 05/11/1873, p. 2).
Tal fato ocorre em agosto de 1873, com a notícia ganhando repercussão em vários
jornais, de Pernambuco ao Rio de Janeiro. Inclusive alguns jornais descrevem o padre Calixto
com um certo furor clericalis, haja vista que naquele momento a Questão Religiosa era o
principal assunto, e Campina Grande torna-se palco de alguns embates a respeito. Algumas
autoridades campinenses não gostaram da atitude do padre, como foi o caso do capitão Pedro
Américo de Almeida “a denunciar do acto do mesmo vigário ao presidente da província e ao
governador do bispado mais tarde, não obtendo a resposta” (A NAÇÃO, 2/04/1875, p. 3).
A ausência de resposta nos faz crer que as referidas autoridades apoiavam a decisão do
padre Calixto. Além do mais, em outro artigo de jornal extraímos esse fragmento: “E poderia o
coadjutor pensar de diversos modo quando, apesar da decisão de 12 de junho, o Sr. Bispo
ordenou ao vigário de Campina Grande, que intimasse por três vezes a irmandade, que fizesse
expelir de seu seio os maçons” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 27/08/1873, p. 3). Como
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percebemos, o padre Calixto tinha apoio do Bispo, nesse caso era a irmandade do Santíssimo
Sacramento que estava passando por uma análise, para saber se os seus membros eram
maçons, e se fossem tinham que ser expulsos, por determinação do Bispo.
O padre Calixto convida o padre Ibiapina para realizar missão e conquistar mais apoio
popular, uma vez que as referidas missões tinham uma grande aceitação no meio social.
Prontamente Ibiapina aceita o convite, ressaltando que já tinha estado em Campina Grande em
outras oportunidades, sempre a convite do seu amigo padre Calixto. A missão ocorre entre os
dias nove e vinte de dezembro, como podemos perceber nesse trecho: “durante esse tempo
missionára ao povo em grande latada, que para esse fim foi levantada, aconselhando ao povo,
que os filhos não obedecessem aos pais, as mulheres aos maridos, e o mesmo povo em geral ao
governo por este ser maçon.” (DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO, 27/08/1873, p. 3). Podemos
perceber que o tom do discurso de Ibiapina já mostra o quão a Questão Religiosa já estava bem
difusa no interior da província. Observamos também que a cidade de Campina Grande estava
numa grande efervescência nesse embate entre Igreja Católica e Maçonaria.
Ainda a respeito dessa missão em Campina Grande, extraímos esse fragmento do jornal
A Família Maçônica, que nos diz:
O povo não é dos mais culpados, porque o seu fanatismo o faz acreditar no
que lhe pregão esses dois degenerados padres Ibiapina e Calixto, o primeiro
missionando com uma mulher, o segundo, além de suas imoralidades,
deixando agora um liberto abrir missões pregando nos cemitérios e até dentro
da própria matriz!!! É muito escândalo: é muito abuzar ... (16/12/1874, p. 2).
Podemos observar que a cada notícia, o tom é elevado, e o conflito existente entre a
Maçonaria e a Igreja Católica em Campina Grande fica cada vez mais acirrado. Na perspectiva
da maçonaria o povo estava sendo levado pelos padres, observando que os dois são colocados
como “charlatões”, pois estaria conduzido o povo ao “fanatismo”. Com relação à mulher que
acompanha Ibiapina, o restante do artigo não dá mais detalhes de quem seria essa mulher, isso
faz com que se abra um leque de possibilidades de quem seria essa mulher, uma Irmã da
Caridade? Uma beata? Uma companheira? Ou mera intriga do jornal maçônico para tentar de
alguma forma manchar a imagem do padre em torno da sociedade campinense e,
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consequentemente, o mesmo perder apoio ou ter a sua credibilidade abalada entre os seus
fiéis?
A respeito ainda da missão em Campina Grande, a imprensa Católica, através do jornal
O Apostolo, do Rio de Janeiro, traz em uma das suas edições o relato desse acontecimento
“missionando o Revd. Padre M. Ibiapina com muito proveito espiritual para aquelle povo, que
em numero de cerca de cinco mil pessoas rodeam a cadeira da verdade e ouve com
recolhimento a palavra de Deos” (O APOSTOLO, 22/02/1874, p. 4). O jornal ainda afirma
que Ibiapina tinha a pretensão de criar uma sociedade católica, no dia seguinte mil pessoas já
estavam inscritas, para tal fim, sendo a maioria analfabetos e escravos.
Essa missão será colocada no Relatório da Polícia da Paraíba, pelo então chefe de
polícia Manoel Caldas Barreto, que foi incumbido para realizar a investigação, pelo presidente
da província o Dr. Silvino Cunha. Eis um trecho a respeito de Ibiapina:
Pregou doutrinas as mais subversivas da ordem social, expondo o povo,
increpando o – <por não se levantar como um só homem contra o governo a
que chamou de herético > - dizendo-lhe que nada tinha a receiar porque entre
os defensores da religião e os do governo a proporção era de um para cem, aconselhando-o ainda á nada comprar nem vender aos maçons, e, finalmente,
que não obedecesse as autoridades, porque eram ellas maçônicas. (A
NAÇÃO, 23/02/1875, p. 2).
Essa fala de Ibiapina, transcrita pelo delegado, mostra que para defender o seu ideal, os
católicos estavam dispostos a tudo e que a qualquer momento católicos e maçons entrariam em
conflito corporal, fato que quase ocorreu, após a saída de Ibiapina de Campina Grande no final
de dezembro. Nos primeiros dias de janeiro de 1874 ocorre uma discussão entre dois
senhores, acerca do catolicismo romano e da maçonaria, desse fato aglutinou-se cerca de
cinquenta pessoas que estavam dispostas a lutar para defender o seu ponto de vista, porém não
se chegou às vias de fato. Observamos que os ânimos estavam à flor da pele e que toda essa
discussão servirá de combustível, meses depois, para iniciar a revolta do Quebra-Quilos.
Em novembro de 1874 no povoado de Fagundes, pertencente ao termo de Campina
Grande, ocorre as primeiras notícias de um conflito entre o povo e a polícia. Um conflito que
inicia-se uma agitação na feira livre do lugar, quando o “matuto” Marcolino se nega a pagar o
imposto do chão que era de cem mil reis, alegando que “era imposto criado por maçom,
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imposto excomungado, ímpio, contra a religião e até contra Deus” (SOUTO MAIOR, 1978. p.
42). Observamos que a revolta contra o novo sistema métrico-decimal, já estava interligada com
a Questão Religiosa, e sobretudo, com os discursos proferidos pelos padres Ibiapina e Calixto
em Campina Grande. O próprio Secretário de Polícia da Paraíba, afirma em seu relatório
sobre esse movimento, que “essas missões foram as sementes que, mais tarde, germinarão a
sedição, latente desde aquela época” (A NAÇÃO, 23/09/1875, p. 2). Mesmo que a Questão
Religiosa e o Quebra-Quilos sejam movimentos distintos, no norte do Brasil eles se entrelaçam,
e se fundem em um só movimento, assimilado por muitos sertanejos.
As notícias correm o Brasil chegando à capital do Império. Em telegrama enviado de
Pernambuco, em vinte e seis de novembro, se ler: “Diz-se que os amotinados, em numero de
1,000 pouco mais ou menos, se sublevaram a instigações do padre Dr. Ibiapina, que lançando
mão de predicas, os fanatisou” (A NAÇÃO, 27/11/1874, capa). A esse telegrama segue-se
outros que mostram uma preocupação das autoridades no tocante a possibilidade do
movimento ganhar maiores proporções, razão pela qual tropas são enviadas da Bahia em
socorro das vilas da Paraíba e Pernambuco. Nos dias seguintes as notícias relatam a volta da paz
e ordem pública nos lugares atingidos.
Mesmo que as notícias fossem de tranquilidade, deve se perceber que manifestações
desse tipo ainda iriam repercutir em Pernambuco, como veremos mais adiante, e o
envolvimento do padre Ibiapina é notório, pois os sermões proferidos em Campina Grande
foram o início de todas as “perturbações” registradas entre 1873-1875 na Paraíba e
Pernambuco. Ibiapina se resguarda na Casa de Caridade de Santa Fé, na Paraíba, onde recebe
notícias do desenrolar da revolta através de correspondências, ele mesmo relata às Irmãs da
Caridade com certa preocupação,
Minhas filhas, vocês não se perturbem com o que eu vou dizer, porque eu
estou conformado e só quero o que Deus quiser. Agora recebi uma carta
dizendo-me que me acautelasse porque queriam me prender, porém, eu não
tenho para onde me esconder e, ainda que tivesse não me esconderia,
porque, se me prenderem, estou muito consolado, porque é por amor de
nosso bom Deus, que tudo nos acontece (CARVALHO, 2008, p. 119-120).
Essa fala de Ibiapina ocorre cerca de um ano depois daquela missão de Campina
Grande e um mês depois do levante em Fagundes, em que se percebe que o seu nome já estava
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na lista dos envolvidos no movimento. A esse fato Ibiapina escreve uma carta ao seu amigo
capitão Pedro Lôbo, na qual afirma:
Lutamos infelizmente com a maçonaria, que tem decretado a prisão,
perseguição aos catholicos, que se pronunciam contra Ella em favor da
religião não podia eu por isto ser esquecido. Tive um aviso de ser preso, mas
isso ainda não realizou, pelo abalo que causou no povo, comtudo estou
tranquilo em sofre por Deos a prisão ou a morte. (LIMA, 2014, p. 297).
Nessa carta, Ibiapina coloca a Maçonaria e o governo como sinônimos, porém
podemos notar que o referido padre não foi preso por conta do medo das autoridades de uma
nova revolta, que seus fiéis fariam para defendê-lo.
Em outra carta endereçada ao jornal A Província, do Partido Liberal (PE), é descrito a
tropa que chegou a sair para prender Ibiapina: “seguiram 200 praças de linha para Campina,
onde as cousas não estão boas. Diz-se que levam ordem de prender o vigário Calisto e o
missionário Ibiapina” (A PROVÍNCIA, 16 /12/1874, capa). O padre Calixto chega a ser preso,
o que não ocorre com Ibiapina que continuará agindo.
Mesmo com esse alerta, Ibiapina prossegue com movimentações “subversivas”, só que
agora através de cartas e com ligação direta com jesuítas em Pernambuco, onde o movimento
vem em uma crescente. A respeito dos jesuítas, eles vieram para o Brasil desde o início da
colonização, na missão de catequisar os nativos, mas ao longo dos anos tomaram outras
funções, como a educação da colônia e a realização de missões no interior do Brasil. Porém,
após os decretos pombalinos eles acabam sendo expulsos, regressando ao Brasil em 1866.
Eles também estarão envolvidos no Quebra-Quilos. Segundo palavras do ministro Rio
Branco: “As autoridades não devem recuar. Os jesuítas de Triunfo são os mais perigosos;
prepararam o movimento da Paraíba e de Pernambuco, de inteligência com Ibiapina e outros
missionários” (SOUTO MAIOR, 1978, p. 70). Em Pernambuco, várias localidades se
levantaram no Quebra-Quilos, porém nesse trabalho atentaremos para a questão em Triunfo,
pois para as autoridades da época era um dos principais pontos da organização do movimento,
uma vez que ela faz divisa com a Paraíba.
A história de Triunfo durante o século XIX é marcada fortemente pela presença de
alguns religiosos na localidade, com alguns trabalhos prestados à comunidade, entre os quais
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podemos destacar Frei Caetano de Messina, que empenhou na construção de um açude.
Também os jesuítas Antonio Onoratti e Antonio Aragnetti, que se empenharam na edificação
da matriz, além do padre Ibiapina, que construiu uma Casa de Caridade. Com relação a esses
últimos padres a sua estadia nas terras da Baixa Verde não só foram marcadas por essas obras,
mas também por atitudes ditas “subversivas”.
As autoridades policiais pernambucanas encontram correspondências dos jesuítas que
por inúmeras vezes citam o padre Ibiapina. Em correspondência enviada para a redação do
jornal A Nação, do Rio de Janeiro, tem-se uma carta, “um cavalheiro digno de fé,” segundo o
mesmo jornal que diz: “cheios de ódio, tem percorrido esses dous sacerdotes o sertão da
Parahyba, procurando excitar o fanatismo a população ignorante. Entre os seus sermões e os
Dr. Ibiapina há perfeito acordo de vistas” (A NAÇÃO, 28/11/1874, p. 2). Então podemos
perceber que existia entre ambos uma sintonia que levaram muitas pessoas a seguir seus
sermões.
A chegada dos jesuítas Onoratti e Aragnetti, no sertão pernambucano, ocorre em
meados de 1874. Vindos do Recife, esses sacerdotes passam os meses de março e abril, na casa
do professor Manoel Joaquim Xavier Ribeiro em Vertentes/PE, afirmando que estavam indo
para Triunfo/PE, cuidar da Casa de Caridade de Ibiapina e de outras coisas que o mesmo
desejava. Esse professor será o responsável por várias informações durante o inquérito que será
instaurado pela polícia de Pernambuco.
Essas ações em Pernambuco ocorrem paralelamente aos levantes da Paraíba, pois
enquanto Ibiapina tinha “saído de cena” em terras paraibanas, ele trocava correspondências em
Pernambuco. Entre a documentação que será apreendida na residência dos padres jesuítas, há
uma carta do padre Antônio Onoratti, já em Triunfo, do dia 18 de junho de 1874, enviada ao
vigário Francisco de Araújo, de São Lourenço da Mata/PE, onde o mesmo descreve com certa
decepção a resposta negativa que recebe de Ibiapina,
porém, duvido muito que venha, por varias razões, que ele nestes últimos dias
deu em resposta a sua vinda. Parece que, cansado por seus grandes trabalhos
na vida de missionário, com sua idade tão avançada de 70 annos queira cuidar
do governo de suas 20 casas, que de outras missões (A NAÇÃO, 30/12/1874,
p. 2).
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Existia todo um interesse do vigário de São Lourenço quanto à presença de Ibiapina,
com o pretexto de buscar uma imagem e dessa forma trazer vários seguidores para a localidade.
Mas como dito na resposta de Onoratti, isso não ocorreu. Percebe-se também nessa fala do
jesuíta no final da mensagem a palavra missões, em que fica subentendida de qual missão está
sendo falada. A missão de evangelizar as pessoas ou a de “fanatizá-las”, haja vista que na ótica
das autoridades policiais, transcorre uma investigação a respeito do envolvimento de Ibiapina
no movimento. Também se coloca a questão do estado de saúde e da idade avançada para o
mesmo não ir a São Lourenço da Mata, mas Ibiapina fará a sua última viagem “missionária” a
Triunfo no final de 1875, ou seja, cerca de um ano depois da expulsão dos jesuítas.
A respeito ainda desse episódio da ida a São Lourenço da Mata, o professor público de
Vertentes, o Sr. Manoel Joaquim, em carta enviada ao vigário desse lugar, relata que não
esqueceu da pretensão do amigo vigário de convencer Ibiapina a ir para São Lourenço, porém
ele diz:
Mas desde já lhe advirto que faz-se necessária a ida do dito padre a Baixa
Verde primeiro do que ahi a S. Lourenço. Convem irmo-nos firmando acolá
de maneira que possamos (embora a operação seja de tempo) atingir ao
desiderato que almejamos. Em conclusão, declaro a V. Rvma que vou
empenhar-me com o Ibiapina para este ir a S. Lourenço, apenas acabar a
santa missão de Baixa Verde. Para outros lugares também há os mesmos
desejos, entretanto os taes que tenham paciencia (A NAÇÃO, 30/12/1874, p
2).
Parece não haver exagero na fala do ministro Rio Branco, onde ele coloca os jesuítas de
Triunfo como os “mais perigosos.” Podemos perceber, nesse trecho, que apesar da tentativa de
mudar um pouco o foco de ir para mais perto da capital pernambucana, no caso São Lourenço
da Mata, o professor Manoel Joaquim fala por mais de uma vez que é necessário ir a Triunfo
terminar a missão, e percebemos também a existência de uma ideia de expansão do
movimento para outros lugares.
O governo imperial determina a expulsão dos jesuítas estrangeiros do país, sob acusação
dos mesmos serem uns dos responsáveis pelas agitações que a província estava sofrendo. A
respeito desse fato o delegado de Triunfo/PE, ao receber a ordem de intimação para com os
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jesuítas, escreve uma carta ao Dr. Antônio Francisco, Chefe da Polícia de Pernambuco, em
outubro de 1874, em que ele afirma:
Este ofício chegou precisamente no tempo em que os ditos Padres Jesuítas
estão dando as Santas Missas a uma imensa multidão de pessoas concorridas
de todo o distrito do Pajeú para esta nossa Vila de Triumpho [...] V. Sª. bem
sabe da veneração ou amor e adoração que os sertanejos prestam aos
missionários. Por isso V. Sª. com o seu aclamado juízo bem pode entender
que tal intimação seria sobre nós o mais certo sinal de revolução. Ainda mais
que correm por cá uns folhetos incentivadores excitam os povos a revolução
sob pretexto das novas leis dos impostos e do recrutamento e dos pesos e
medidas. [...] Se o governo insistir nesta determinação que eu julgo injusta e
contrárias a todos os interesses de minha Pátria, faço desde já a minha
demissão (LOPES, 2004, p. 107-108).
A recusa do delegado tem a ver com o fato de que não via crime algum para com os
dois jesuítas, mas sim tinha medo do povo se levantar contra a ordem pública e realizar atos
como os ocorridos na Paraíba. Apesar dessa recusa, o governo de Pernambuco, em dezembro
de 1874, determina a expulsão dos jesuítas Onoratti e Aragnetti, os quais serão presos, sendo
que alguns populares tentam impedir a decisão, porém sem sucesso.
Após a expulsão dos jesuítas, as autoridades se esforçam para capturar, julgar e prender
criminalmente os envolvidos na sedição, sendo que 34 indivíduos foram julgados e absolvidos,
entre os quais o padre Calixto. O fato que chama atenção é o nome de Ibiapina não estar
presente na lista dos envolvidos, mas para esse fato o deputado geral Sr. Tarquínio de Souza,
em discurso na Assembleia Geral, afirma: “O vigário de Campina Grande fez o que outros
muitos padres tem feito, o que fez o Dr. Padre Ibiapina, esse distinto sacerdote, que também
foi incluído no processo de sedição, e que só não foi pronunciado: porque a sua prisão podia
trazer sérias dificuldades a ordem pública” (JORNAL DO COMMERCIO, 14 /04/1875, capa).
Meses depois na mesma Assembleia Geral, o Sr. Leandro Bezerra diz: “A gana do governo
contra o clero foi tanta, e tanto desejou dar caráter religioso ao movimento do norte, que dalli
vierão telegramas oficiais, dizendo que o padre Ibiapina achava-se a frente dos sediciosos, e
nem sei mesmo porque não o envolverão em algum processo” (JORNAL DO COMMERCIO,
30/06/1875, p. 2). Como se percebe o próprio governo temia que a população se levantasse em
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defesa do referido sacerdote e assim colocasse de novo as províncias do norte em
efervescência. O governo preferiu não correr esse risco.
Em novembro de 1875 o padre Ibiapina chega à vila de Triunfo/PE. O próprio
Ibiapina em carta endereçada a uma Irmã da Caridade na Paraíba, escreve: “E com alguns dias
mais passarei eu com direção a Baixa-Verde, que está com a Casa de Caridade em desmantelo
e há outras razões poderosas em favor da Religião que ali vai sofrendo. Não me demorarei por
ahi, visto a pressa com que vou” (LIMA, 2014, p. 292). Se percebe uma certa preocupação para
se chegar rápido ao lugar, um dos motivos é algum fato na Casa de Caridade, porém o que
seriam “razões poderosas em favor da Religião”, algum fato referente a Questão Religiosa? Ou
sobre os jesuítas? Ou outro fato novo?
Ainda sobre esse assunto o padre Francisco Sadoc, outro biógrafo de Ibiapina, se
apoiando no relato da Irmã Vitória de Santa Júlia Ibiapina, residente na Casa de Caridade de
Triunfo, afirma que a Casa “estava sofrendo oposições e contrariedades, bastantes para em
breve desmoronar-se” (ARAÚJO, 1996, p. 315). A referida Irmã não dá maiores explicações
sobre essas oposições existentes, porém em Triunfo estava o Frei Estevão que era capuchinho,
contrário à adoração das imagens dos santos e que foi enviado pelo governo. Recaiu sobre o
mesmo a acusação que era maçom, o referido Frei se retira de Triunfo em Outubro e Ibiapina
chega em meados de Novembro. Apesar de não terem se encontrado, percebemos que existia
uma disputa em torno da fidelidade dos devotos.
Durante essa missão é feita a leitura da Carta Pastoral, a respeito da libertação do Bispo
Dom Frei Vital que estava preso desde janeiro de 1874. E Ibiapina aproveita para mais uma vez
atacar a maçonaria. No final de 1875, Ibiapina adoece e se retira junto com alguns fiéis para
Santa Fé/PB. No ano seguinte o envolvimento do padre ainda era notícia: “Si como se
propalou, teve o padre Ibiapina parte activa no movimento que deu-se em 1873 n’aquelas
paragens, é porque fervoroso catholico e longe do theatro da luta episcopal, deixou-se arrastar
pelo inquebrantável zelo religioso” (BRAZIL AMERICANO, 26/02/1876, p. 2).
O referido fragmento afirma a participação de Ibiapina no movimento um tempinho
depois que as coisas foram resolvidas, e que a culpa maior caiu para alguns leigos sendo o
nome de Ibiapina citado nos autos, mas não pesou nenhuma acusação formal contra ele.
Fontes
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
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humanidade. nº 15, Ano III, Rio de Janeiro. 16/12/1874.
A Pátria – Folha da Província do Rio de Janeiro, 05/11/1873, nº 242.
A Nação: Jornal Político, Commercial e Literário (RJ), 02/04/1875, ed. 65.
____________________________________________, 23/02/1875, ed. 61.
____________________________________________, 23/03/1875, ed. 61.
____________________________________________, 27/11/1874, ed. 264.
____________________________________________, 28/11/1874, ed. 265.
____________________________________________, 30/12/1874, ed. 288.
Brazil Americano: Publicação Semanal (RJ), 26/02/1876, ed. 28, ano II.
Diário do Rio de Janeiro, 27/08/1873, nº 235.
Jornal A Província: Orgão do Partido Liberal (PE), 16/12/1874, ed. 468.
Jornal do Commercio, 14/04/1875, ed. 13.
___________________, 30/06/1875, ed. 180.
O Apostolo (RJ), 22/02/1874, ed. 22, ano 9.
Bibliografia
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CARVALHO, Ernando Luiz Teixeira de. A missão Ibiapina. Passo Fundo: Bertheir, 2008.
COMBLIN, Joseph Jules. Padre Ibiapina. – São Paulo: Paulus, 2011.
BEZERRA, Osicleide de Lima. Trabalho, pobreza e caridade: as ações do padre Ibiapina nos
sertões do Nordeste. / Osicleide de Lima Bezerra. Tese. UFRN, Natal/RN, 2010.
LIMA, Danielle Ventura Bandeira de. Devoção e santidade nas casa de caridade: a idealização
mariana do Pe Ibiapina. / Danielle Ventura Bandeira de Lima. Tese. PUC-GO, Goiânia/GO,
2014.
SOUTO MAIOR, Armando, 1926 -. Quebra-Quilos: lutas sociais no outono do Império/
Armando Souto Maior. – São Paulo: Ed. Nacional; [Brasília]: INL; [Recife]: Instituto Joaquim
Nabuco de Pesquisas Sociais, 1978.
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O Caminho do Direito e o Sagrado no Ilê Asé Sogbô Aganjú da Yalorixá Zefinha
de Aganjú
Wellington Ricardo Felix dos Santos*
Resumo: Este artigo tem como tema o caminho do direito e o sagrado no Ilê Asé Sogbó Aganjú da
Yalorixá Zefinha de Aganjú, é um estudo de cunho epistemológico sobre o Candomblé. O Ilê Asé
Sogbô Aganjú está localizado no Município de Garanhuns – Pernambuco – Brasil. Trata-se de território
que traz consigo a ideologia e rituais nos Ilês de Candomblé, como sua própria identidade através da
linguagem tanto verbal quanto corporal, também nas suas zuelas, vestimentas, nos rituais de passagem e
suas divindades, representadas pelos Exus, Pombogira, até os Orixás. Em meio a está explanação surge
a indagação: Como país dito “laico”, ainda hoje a intolerância religiosa é tão presente no meio social?
Nessa perspectiva dar-se-a uma discursão teórica sobre o caminho do direito e o sagrado na Religião de
Matriz Africana, mais precisamente o Candomblé. O campo metodologico deu através da revisão
bibliográfica, na busca de dialogar dentro da Religião de Matriz Africana no meio urbano, que almeja o
respeito no exercício da cidadania. Sendo à mesma resguardada perante a Constituição brasileira de
1988, o direito de ir e vir manifestando sua fé abertamente, seus preceitos, representações nas
simbologias. Assim, como os outros segmentos religiosos são contemplados e reconhecido pela
Constituição brasileira de 1988, no que refere-se a Resolução nº 36/55. A ONU em 1981, já havia
proclamada a Declaração sobre a Eliminação de todas as formas de Intolerância e Discriminação com
base em Religião ou Crença, reconhecendo dessa forma os povos da Religião de Matriz Africana,
contudo grande são os desafios apresentados ao longo dos anos, principalmante com as perseguições
religiosas, violência física e simbólica, vem colocando a Religião de Matriz Africana em situações de
vulnerabilidade. Dessa forma, este artigo buscou realizar uma breve explanação sobre o espaço onde a
cultura dos negros escravizados permaneceu guardada, preservada e transmitida.
Palavras-chaves: Candomblé. Direito. Ilê Asé Sogbô Aganjú.
Considerações Iniciais
A construção deste artigo tem como base o percurso histórico da Religião de Matriz
Africana, mais precisamente o Candomblé que veio sendo transpassada ao longo da história,
SANTOS, Wellington Ricardo Felix dos. Mestrando do Programa de Mestrado Profissional em Culturas
Africanas, da Diáspora, e dos Povos Indígenas – PROCADI, pela Universidade de Pernambuco – UPE / Campus
Garanhuns – PE.
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permintindo assim uma agregação de costumes e elementos culturais para o processo de
construção do Brasil, vindo a ser incorporada pelos primeiros negros escravizados do século
XVI, desde a culinária, idiomas bem como, a musicalidade e expressões de movimentos de
danças.
Diante dessa percepção, a população negra notabilizou-se através da produção de sua
religiosidade viva e dinâmica, onde com sua complexidade o Candomblé, ainda hoje, ou mais
do que nunca, vem sofrendo perseguições há décadas no Brasil.
É dentro dessa contextualização que deparamos com alguns aspectos que almejamos
abordar através deste artigo, do direito e o sagrado no Ilê Asé Sogbó Aganjú da Yalorixá
Zefinha de Aganjú, localizado no Município de Garanhuns – PE, perante as questões
tradicionais da religião de Matriz Africana que ao longo do tempo foram fixando e se
adaptando em territórios urbanos.
Através do percurso histórico, com a vinda dos negros escravizados para o Brasil no
século XVI, vem com eles uma nova cultura e hábitos, sendo agregados com a cultura já
existente no Brasil, colaborando com o processo de hibridação695 cultural. Fenômeno este que
no processo histórico-social existe desde que o homem começou a se deslocar e ter contato
com outros povos.
O campo religioso da época diferenciava das culturas africanas, enquanto a
uma buscava a sociabilidade como uma maneiro de grande importância, a
religião dos negros escravizados trazia consigo tradições tanto da África
Central quanto da África Ocidental, partindo assim a origem de uma gama de
diversidade que foram sendo agregadas ao logo dos tempos, como as crenças,
os rituais, a mitologia, se apresentando através da aprendizagem adquirida no
Brasil [...] (SAMPAIO, 2001, p.6).
O que em outras palavras podemos compreender é que a Religião de Matriz Africana,
mais precisamente o Candomblé vem a ser uma forma de representatividade identitária dos
negros escravizados que perpetuam na constução ao longo da história brasileira. Essas
Canclini (2019), traz os termos hibridação, sincretismo. Nós aqui usaremos o termo hibridação. É o diálogo
do passado com o presente, o encontro do antigo com o novo. O autor em questão, acredita que as
movimentações evolutivas socioculturais, agregam entre se para a partir desta concepção a originar novas
práticas permeando entre as estruturas e os objetivos.
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identidades em seu processo de afirmação, sofrem grandes alterações provocadas pela
globalização. Que ao logo do tempo, ao se fundir com o sincretismo das religiões europeias, e,
assim, incorporando novos elementos de outras crenças, originando desta forma às Religiões de
Matrizes Africanas, como é o caso do Candomblé, Umbanda, Xangô, o Catimbó entre outras.
É importante ressaltar que atualmente o campo religioso vem sofrendo adaptações em
sua construção social, cultural em todo o país, perpetuando a Religião Católica como a
tradicional e a Religião de Matriz Africana como minoritária perante a sociedade.
Transformações Historial das Religiões de Matriz Africana
As religiões de matriz africana se tornam ao longo do tempo de fundamental
importância para a socialização, agregando diferentes culturas da África teve assim sua
participação na construção da história do Brasil. Partindo desta ideia nações como Angola,
Beni e Congo agregaram muito de sua cultura para o país, onde cada uma delas com sua
singularidade diante dos cultos em contato com os Orixás orientavam de acordo com seus
preceitos e fundamentos.
Com base tanto nas tradições da África Ocidental como na Central, os
preceitos religiosos estão presentes tanto em suas ações de vida quanto nos
momentos de celebração dos rituais. Permeando assim, o surgimento de
diversas representações simbolicas, ritualisticas, perante as crenças tradicionais
vindas de outros continentes e aprendidas no Brasil (SAMPAIO, 2001, p.6).
Regidas pelos Orixás, a Religião de Matriz Africana, tem como responsáveis às
entidades como os Caboclos, Exus, Mestres, Eres, e é claro os Orixás (seres da natureza) tendo
em suas resposabilidades o equilibrio do mundo. Ou seja, o Candomblé vem a ser de Matriz
Africana tendo consigo os fundamentos prioritário o respeito a natureza, ao “sangue verde”,
pois tudo inicia-se pelas folhas, pelas ervas; é a fonta vital, o alicerce dos Terreiros, dos Ilês, dos
Barracões, das Casas de Axés para as realizações desde os Ebós, sacudimentos, assentamentos
de Santos, iniciação dos filhos e filhas de Santo, ou seja, esta presente em todos os movimentos
ritualisticos.
O século XVIII, por exemplo, viu a produção mineira dominar junto ao
regime das grandes plantações; o século XIX, o desenvolvimento da
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urbanização; enfim, a miscigenação e a ascensão do mulato modificaram,
pouco a pouco, a antiga estratificação de castas, no fim do Império
(BASTIDE, 1971, p.30).
É através deste processo histórico, com a participação dos negros escravizados, ou seja,
a mão de obra escrava que inicio o processo de desenvolvimento urbano, permitindo um
acúmulo financeiro através dos ciclos econômicos do açúcar, do gado, da mineração, do café.
Ainda dentro do processo histórico e cultural a relação do religioso torna-se o primeiro espaço
de culto aos deuses africanos surge no pátio das senzalas, apesar de sofrerem com as proibições
dos senhores de escravos e seus feitores.
As manifestações também estiveram muito presente nos quilombos, estruturadas na
reorganização das nações, alocados em novos meios biogeográficos, e por vezes estabelecendo
o intercâmbio com os povos indígenas locais, o que provocou a incorporação de novos
elementos espirituais, culinários e fitoterápicos.
Com tamanhas agregações religiosas e culturais, alguns preceitos da Religião de Matriz
Africana são agregados no seio das irmandades negras católicas, mantendo o oculto sob o
manto dos Santos Católicos dissimulando suas divindades bem como também seu cunho
abolicionista.
As irmandades religiosas, com o apoio da Igreja Católica, atuavam com a
separação das etnias africanas. Dessa forma, deu origem à respeitável Ordem
Terceira do Rosário de Nossa Sra. Das Portas do Carmo, constituída pelos
negros escravizados de Angola, fundando assim, em 1685 a Igreja de Nossa
Sra. do Rosário do Pelourinho, também conhecida como a Igreja do Rosário
dos Pretos. Já os negros escravizados daomeanos – gêges, os mesmos
pertenciam a nação Ketô, conglomeravam na devoção de Nosso Sr. Bom
Jesus das Necessidades e Redenção dos Homens Pretos, do século 18, a
Igreja, também conhecida como a Capela do Corpo Santo, localizada na
cidade Baixa, Salvador – BA. Originando, portanto, duas fraternidades, são
elas: a das mulheres, devotas de Nossa Senhora da Boa Morte; e a dos
homens que devotos de Nosso Senhor dos Martírios (VERGE, 1985, p.28).
Diante do processo de colonização, os europeus ao chegar na África com sua
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concepção do cristianismo se depararam com um leque de deuses cultuados. Onde os
colonizadores acreditavam em apenas um deus, fundada em preceitos religiosos que estavam
escritos na Bíblia, não tinha mais nada a ser revelado, apenas realizar o cumprimento e
vivenciar o que já havia sido escrito. Sendo totalmente diferente da fé dos negros escravizados
com sua religião africana, onde todos os dias existiam novas manifestações com revelações
atuais, onde cada nação possuía sua liberdade de culto e assim, seguiam seus deuses de acordo
com as revelações.
Nessa linha de pensamento, Cappelli (2010), a injustiça que os negros escravizados
viviam sua fé aos Orixás escondidos, transpassando simbolicamente a representatividade dos
Orixás aos Santos Católicos. Fica claro que em nenhum momento os negros escravizados
negaram ou começaram a praticar a fé dos colonizadores, no caso à Religião Católica, como é
sabido que muito ainda hoje alastram dentro do sincretismo religioso. Mais que na verdade
eles, os negros escravizados acolheram à ajuda através de novos deuses, devido as condições
que estavam, ou seja, escravizados, em terra desconhecida.
Revertendo a concepção de que os negros escravizados praticavam a fé Católica devido
ao medo que eles tinham dos colonizadores, mais o que aconteceu na verdade foi uma
ampliação da fé, pois, eles tinham o entendimento de diferenciar os Orixás dos Santos cristãos,
e em seu entendimento concluíram que tanto os Orixás quanto os Santos cristãos trabalhavam
de formas distintas para auxiliá-los em seus desígnios do cotidiano.
A identidade negra se conserva através da Religião de Matriz Africana, vindo a fundir-se
com outras Religiões, tais como as europeias sofreu uma transformação, passando a agregar
novos elementos de outras crenças, originando assim às Religiões Afro-brasileiras, ou seja, o
Candomblé, Umbanda, Xangô, o Catimbó entre outras. Atualmente sendo vistas como parte
agregadas a cultura brasileira.
A construção identitária, que o processo de território dar-se como o papel de
pertencimento, ou seja, a formação das irmandades registra-se os grupos étnicos a elas
pertencentes, pois, apartir das configurações dos grupos étnicos e religiosos o poder das elites
constituído na figura do Estado, tinha como identificar os grupos e seus respectivos territórios.
As nações africanas tinha sua estruturação como base na Religião Católica a partir da
sua conversão, contudo as características marcantes da Religião de Matriz Africana estava
presente no sincretismo, permitindo assim, de certo modo uma aceitação social, onde as
tradições africanas pudessem se expressar com visibilidade e fora da clandestinidade e,
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sobretudo, permitiam a formação de ampla teia de apoio e amparo tanto aos negros
escravizados quanto aos negros libertos.
Compreendemos que o esquecimento do “outro” e sua alteridade pode revelar o não
reconhecimento de sua identidade e até significar uma afloração de feridas que serão cada vez
mais evidenciadas e marcadas na construção de uma sociedade democrática.
As nações africanas foram de fundamental importância na luta da libertação e na
abolição, através da compra da alforria e com estratégias coordenadas na busca de resgatar e
libertar os negros
escravizados, tendo Antônio Bento como líder (ROLNIK, 1997;
QUINTÃO, 2007).
Não se tratando apenas da identificação permanente dos Ilês de Candomblés, mais do
processo de adaptação que vinheram passando ao longo do tempo. Onde a Religião de Matriz
Africana, como o Candomblé foram agregando novos elementos de diversas nações trazidas
pela acestralidade em seus fundamentos, rituais, segredos que somente os Voduns, Inkices e
Orixás poderiam transmitir para os seus Babas e Yas. Sendo possível identificar a partir de suas
nações de procedência ritualísticas tais como: Angola, Ketu, Ijesá, Jeje e Efon.
Através dos preceitos, dos segredos, veio se consolidando dentro dos rituais de
Candomblé, agregando e preservando toda a sua ancestralidade e decendência africana, no
Brasil através da missigenação das diversas nações dos negros escravizados, ao longo da história
o Candomblé na verdade é uma Religão de Matriz Africana, e dentro desse fenômeno
histórico, a Religião Candomblé passa a ser vista como uma instituição que está ligada de
questões religiosas, sociais e culturais, uma vez que a mesma é cosntituida com seus próprios
segredos, fundamentos, movimentos ritualisticos, tudo seguindo as orientações desde os Exus,
aos Caboclos, Mestres e os Orixás696, sendo eles os que dão sentido a existência do Asé do Ilê,
Terreiro, Barracão, Roça ou Casa de Santo.
O Candomblé segue um caminho hierarquico, na busca de manter os segredos,
fundamentos, cultura, conceito da nossa fé, estando sempre dentro do processo identitário afrobrasileiro. Dessa forma temos como líberes o Babá ou a Ya (Babalorixá/Yalorixá), estes são os
que fazem à ponte aos Orixás, aos nossos ancestrais.
Por ser uma religião afro-brasileira, alguns antropólogos defende a ideia que o
Candomblé foi constituído na Bahia sendo considerado como um ato de resistência cultural na
696
Jagum (2013), define o Orixá (do Iorubá Òrìṣà) são divindades da religião Iorubá representados pela
natureza. Olodumaré os enviaram para o processo da geração do mundo, logo em seguida tinha a função de
ensinar a humanidade a viver no planeta.
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busca da preservação étnico afro-descendente dos antigos negros escravizados. É preciso
lembrar que o Candomblé nasce, também, com sua ligação ao catolicismo, uma vez que os
negros escravizados buscava reconstruir a África através dessa religião, os mesmos sentiram a
necessidade de participar da sociedade brasileira, por meio da conversão à religião
dominantemente, ou seja, o catolicismo como a única forma que possibilitaria sua
sobrevivência.
Segundo Prandi (2006) em seus estudos, o Candomblé era tida como a religião de
negros e mulatos que se formavá numa reação à segregação racial em uma sociedade
tradicional, contudo, em meados de 1960, a Religião do Candomblé passou a se oferecer aos
outros seguimentos da população não-africana. Prandi relata que foi em São Paulo que o
Candomblé passou por um período da história brasileira, onde as antigas tradições
encontraram condições econômicas para a reprodução e, assim, se mutiplicar pelo sul do país,
o Candomblé se deparou em condições sociais, culturais e, principalmente, econômicas para o
renascimento em um novo território.
Prandi (2006) explana ainda que foi apartir daí que o Candomblé passou a ganhar
clientela, ou seja, pessoas passaram a procurar a religião com a intenção de trabalhos mágicoreligiosos no qual através do jogo de búzios, é possível identificar qual o Orixá que rege o orí697
da pessoa, e, assim, seguindo as orientações das Yalorixás ou dos Babalorixás sobre os banhos,
ebós , oferendas etc, vindo, ainda, a participar/assistir das festas e colaborar com seus gastos,
698
dessa maneira o cliente não estaria comprometido com a religião diretamente.
O cliente se destaca a partir da necessidade de buscar ajuda nos Ilês, através
de consultas com algumas entidades, tais como: Exu, Pombogira, Mestres,
Pretos (as) velhos (as), assim como ao realizar oferendas aos mesmos e aos
Orixás; gerando um vericidade dos acontecimentos ocorridos no Ilê e no
meio religioso, permeando o reconhecimento no meio social. Bem como, é
através da clientela que provém, em alguns
terreiros, a manutenção e
despesas necessarias para as atividades sacrificiais (PRANDI, 2006, p. 6).
697
Orí: cabeça.
Ebós: É são trabalhos ritualísticos de origem africana com diversas finalidades, à exemplo de limpeza da
pessoa, retirando todas e quaisquer má influência, energia negativa; sendo neste rito a sacralização ou não de
animais. Para saber mais acesse: <http://www.juntosnocandomble.com.br/2011/06/ebo-significadocompleto.html>.
698
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É a partir dessa transformação ocorrida no Candomblé, que deram legitimação social
através do processo de africanização, que a cultura negra passou ao longo dos tempos.
Contudo, é importante ressaltar que este processo não acontece de maneira igual em cada
local, ou seja, cada região, o Candomblé passou por transformações, na busca da sua tradição
com o processo de reaprendizado desde a língua, os mitos e os ritos que foram aos poucos se
perdendo. Um ponto de fundamental importância é que o Candomblé veio crescendo no
Brasil, e que aos poucos, está se desvinculando do catolicismo.
Sendo através dos Candomblés baianos das nações Keto e Angola, foram as principais
responsavéis pela expansão no Brasil, desse modo, sendo encontrado em todas as Regiões do
país. Ao constituir o primeiro Ilê de Candomblé como um modelo para o conjunto das
Religiões dos Orixás, com os seus ritos, mitologias, panteões que, ainda hoje, são
predominantes praticados.
Prandi (2006) afirma que o Candomblé Angola, por mais que tenha adotado os Orixás,
onde os mesmos são dinvidades da nação Nagô, sendo agregado muito das concepções
ritualísticas de origem Yorubá699. Desempenhando, dessa forma, um papel de grande
importância no surgimento de religiões afro-brasileiras tais como: Catimbó, Xangó, Pajelança,
Vodu entre outras. Contudo, vale ressaltar que foi a Religião da Umbando que ganho seu
reconhecimento, espaço entre o Rio de Janeiro e São Paulo em meados do século 20. Com
novas visões e dinâmicas internamente, o sentido da Religião de Matriz Africana passa a gerar
uma grande convivência entre grupos, permitindo novos surgimentos dentro dos valores éticos,
culturais, sociais e comportamentais que veio erriquecendo ao longo do tempo no contexto
patrimonial socio-cultural do país.
Trajetória das Políticas Públicas e a perseguição a Religião de Matriz Africana
Para começarmos a pensar o direito ao sagrado, a prática religiosa dos adeptos de
Religião de Matriz Africana é necessário pensar exatamente o contrário, quando historicamente
as leis no Brasil foram mecanismo de proibição, criminalização, silenciamento dessas religiões,
já que podemos facilmente confundir a história desses sagrados, com a dos povos que
compõem sua matriz cultural, dos negros escravizados perseguidos, foram alvos de políticas
públicas para sua extinção em vários sentidos, inclusive no religioso.
699
Yorubá: Possui diversos significados/representações. Neste caso trata de um dos maiores grupos étnicolinguísticos da África Ocidental, tendo aproximadamente 30 milhões de pessoas em toda a Região. Para saber
mais acesse: <https://escola.britannica.com.br/artigo/ioruba/487841>.
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No Brasil desde o princípio de sua história colonial com Portugal, e desse com outras
colônias sob seu domínio, mostrou que as questões religiosas eram fundamentais para garantia
e manutenção das conquistas. A Igreja Católica se torna uma das peças centrais da máquina
colonial, inclusive, em forte parceria com o Estado, no que diz respeito a elaboração de
políticas para expansão da fé cristã e demonização de qualquer outra perspectiva que fuja a
lógica católica.
Por essa linha destacamos as Ordenações Filipinas, que foram as primeiras leis que
regeram o Brasil enquanto extensão de Portugal. Como nesse período o saber estava
intimamente ligado à igreja, pode-se dizer que o catolicismo influenciou consideravelmente
esses ordenamentos. Por ele, escravos eram obrigados a se converterem e recebiam após o
batismo um nome cristão, também se proibia qualquer manifestação cultural-religiosa de
africanos e descendentes, assim como criminalizava a feitiçaria. (PAES, 2011)
As Ordenações Filipinas, foram modelo de direito no Brasil até meados de 1916
(PAES, 2011), e entre seu estabelecimento até a constituição de 1824 não houve alterações no
que diz respeitos a religião no Brasil. E mesmo com o surgimento do país tupiniquim com a
proclamação da independência e a primeira constituição, a de 1824, no que diz respeito as
religiões que existiam no Brasil de então se estabeleceu o catolicismo como religião oficial do
Império, dispondo sobre todas as outras a condição de cultos domésticos. Enquanto no seu
Código Criminal todas as religiões não oficiais estavam proibidas, dispondo no seu Art. 276,
que “celebrar em casa, ou edificio, que tenha alguma forma exterior de Templo, ou
publicamente em qualquer lugar, o culto de outra religião, que não seja a do Estado.”
(BRASIL, 1830) estariam sujeitos as penalidades da lei.
Somente na Constituição de 1891, a primeira da proclamanda República dos Estados
Unidos do Brasil, aparece algo substacial para essa relação com a religião. Esse ordenamento
estabelecia o estato laico, separando a Igreja do Estado e proclamando a liberdade religiosa no
país. (PAULY, 2004). Por outro lado, em 1890 se estabele o Código Penal que em seus artigos
matinham a criminalização de manifestações de magia, curandeirismo e a prática do espiritimo.
Giumbelli (2008), essas caracteristicas apresentadas nos artigos estavam em consonancia com as
práticas das religiões de matriz africana, bem como do espitismo Kardecista que começa a
aparecer por essas terras. Logo, podemos perceber a perseguição, disciminação e
criminalização das religões que não fossem cristãs.
Essa mesma orientação constitucional para o Estado laico, perdura até a Constituição
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Republicana atual (1988) porém algumas políticas também perpeturam as perseguições as
religiões fora da lógica cirstã, como exemplo, basta pensarmos a Carta de 1937, do
estabelecimento no governo de Getulio Vargas, da ditadura do Estado Novo, lá o texto garante
a laicidade do Estado e leberdade religiosa, porém é nesse mesmo momento que se incia uma
grande perseguição a Religião de Matriz Africana, em nome da moral e principios cristãos.
De acordo com Costa (2009), fica ainda mais evidente quando pensamos o Código
Penal de 1940, que matinha a criminalização do curandeirismo e estabelecia o crime de
chalantanismo, apresentando como caracteriscas a essas práticas “Art. 283, Inculcar ou
anunciar cura por meio secreto ou infalível [...], Já no Art. 284, Exercer o curandeirismo: I prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando
gestos, palavras ou qualquer outro meio e ou III - fazendo diagnósticos.” (BRASIL, 1940) Fica
evidente quais religiões se tornaram alvos dessas leis.
Podemos seguramente dizer que tais prática legais se mantém até a atualidade, mesmo
que pós Constituição de 1988, a liberdade religiosa tenha sido mais respeitada, e o Estado
venha se assumindo como laico em vários posicionamentos, o que vemos são manifestações de
intolerância, de perseguição, de demonização das religiões fora da lógica cristã, a prova disso se
dá ao termos uma bancada católica-evangelica nas câmaras. Ao ser ilustrado quando pensamos
que até 1976 no Brasil havia a obrigação de registro em delegacias policiais para as Religiões de
Matriz Africana, para permissão que suas festas podessem acontecer, além de pagamento de
taxas as delegacias, bem como da obrigação de suas lideranças, Babas e/ou ìyawó, de se
submeterem a exames de saninade mental periodicamente. (COSTA, 2009)
Por fim, precisamos ter em mente que muitas outras políticas públicas foram criadas,
implicitamente, para sileciar as Religiões de Matrizes Africanas, como aponta o trabalho de
Márcio Glauberto (2011) “Mapa da Intolerância Religiosa: violação ao direito de culto no
Brasil” que dispõem sobre essa perseguição legal as religiões, e alerta para leis com outros
direcionamentos mas que funcional como silenciadores, destruidores das religões negras no
Brasil.
Em contra partida ao exposta anteriormente o Brasil tem se empenhado, através da luta
de movimentos sociais, ações partidarias, e de outras entidades ao combate as intolerâncias
religiosas, nesse sentido a Carta Magna de 1988, em seu Art. 5º, garante a liberdade de crença e
de não crença, bem como a liberdade de expressar seus pensamentos dentro do limete da lei.
Outra coisa muito importante considerada por a Contituição foi a garantia que o Estado não
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interferirá nas questões religiosas. (BRASIL, 1988) Essas garantias, se respeitadas, coloca as
entidades religiosas numa condição de segurança para sua existência. Mesmo com os contras
apresentados nos parágrafos anteriores.
Glauberto (2011), ressalta a existência de diversos tratados internacionais que em seus
ordenamentos tem por finalidade a liberdade e respeito as religiões, bem como a diversidade
cultural, seria o caso da Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto Internacional
pelos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Contudo, sabemos que não só um
ordenamento jurídico que garante o respeito, mas uma construção, baseada principalmente na
educação doméstica e escolar, para a eleminação de tantas intolerâncias.
Ilê Asé Sogbô Aganjú e o Direito ao Sagrado
O percurso da construção histórica do Ilê Asé Sogbô Aganjú, surge através do relato da
Yalorixá
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Zefinha de Aganjú701, onde a mesma nos conta que o primeiro Babalorixá702 no
Município de Garanhuns, deu-se através de dos pais de “Pai Fernando de Oyá Ygbalé Gun703”,
como o seu primeiro Ilê da Nação Jeje704, localizado na Rua Manuel Clemente, bairro Santo
Antônio. Vindo logo em seguida ser transferido para a Rua Severiano Peixoto, também
localizado no mesmo bairro.
Com o falecimento do Babalorixá Fernando de Oyá Ygbalé Gun, não houve sucessão
do Ilé , e assim, sendo o mesmo encerrado. Contudo, os (as) Yaôs706, bem como os Ogãs707, as
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Ekedes , os (as) Ebômis , Abiãs , dentre outros passaram a fazer parte da mão da Yalorixá
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Jagum (2013), o termo Yalorixá é matriarca, sacerdote feminino, cargo mais alto da Religião de Matriz
Africana.
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Aganjú: É uma das qualidades do Orixá Xangô, tendo como representação um vulcão, pois é uma das
qualidades do Orixá mais forte, explosivo.
702
Jagum (2013), apresenta como definição para Babalorixá sendo o patriarca, sacerdote masculino, cargo mais
alto da Religião de Matriz Africana.
Oyá Ygbalé (Ìgbàlè) Gun: É a digina, ou seja, o nome de iniciação do filho de Santo, sendo este filho de Iansã,
Oyá Ìgbàlè é uma das qualidades de Iansã, neste caso tem por significado Significa a Senhora da Floresta Sagrada
dos Ancestrais. Para saber mais acesse: <https://ocandomble.com/2008/09/11/qualidades-de-oya-iansa/>.
Parés (2018), apresenta a Nação Jeje no Candomblé Jeje, é o culto aos Voduns do Reino do Daomé levados
para o Brasil pelos africanos escravizados em várias regiões da África Ocidental e África Central. Essas divindades
são da rica, complexa e elevada Mitologia Fon.
Ilê: casa, terreiro, barracão, roça.
Iaô: é a denominação dos filhos-de-santo já iniciados, que ainda não completaram o período de sete anos da
iniciação.
Jagum (2013), Ogã é uma patente do sexo masculino do Ilê escolhido pelo Orixá para ser responsável por algum
cargo/função de grande importância dentro do Ilê, o mesmo não incorpora, porém tem influência espiritual.
Jagum (2013), explica que Ekede Ebômi do sexo feminino, que não entra em transe e tem funções de auxílio ao
orixá, tendo como obrigações principais vesti-lo, cuidar de suas roupas, dançar com ele, estar permanentemente ao
seu lado quando entra em transe, atendendo a seus pedidos, enxugando o suor do rosto de seu "filho" durante a
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Zefinha de Aganjú – Ilê Asé Sogbó Aganjú, por ser a Yalorixá mais antiga e filha da mão do
“Pai Fernando de Oyá Ygbalé Gun”. Sendo atualmente o Ilê de Candomblé “aberto” mais
antigo no Município de Garanhuns – PE.
É importante ressaltarmos que todos os Ilês, Terreiros, Roça, Barracão “abertos”, ou
seja, que funcionam seguem todos os instrumentos de funcionamento desde o alvará obtido
pelas Prefeituras, como a inscrições nas Associações de Religiões afro-brasileiras (Matriz
Africana), seguindo assim os regimentos de cada estado que o mesmo faça parte. Isso ocorre
porque muito acreditam que sua existência é tida como um meio financeiro, uma atividade
econômica.
Considerações Finais
A construção deste artigo nos leva por caminhos da história da Religião de Matriz
Africana, neste caso o Candomblé. Religião está rica de sentimentos, de manifestações,
representações socioculturais que ao longo do tempo foi passando por processo de
ressignificação, e assim agregando novos valores culturais de outras religiões, e culturas já
existentes aqui no Brasil.
Nesse campo a Religião de Matriz Africana vem construindo uma resistência árdua em
meio a tantas perseguições, e a intolerância religiosa declarada, bem como étnico-racial. Foi
nesse percurso histórico que o Brasil constituiu sua nação, através da exploração de negros
escravizados de África trazem consigo todos os seus costumes, tradições, religiosidade e assim,
agregando à cultura já existente no Brasil.
Não sendo diferente o processo de inserção da religiosidade de Matriz Africana e Afrobrasileiras, nesse percurso temos a Religião do Candomblé, esta rica em seus preceitos,
fundamentos, segredos ritualísticos vem sofrendo constantemente perseguições declaradas.
Perseguição esta inaceitável a partir do momento em que na Constituição brasileira, assim
como nas Resoluções pelas quais foram aprovadas na Assembléia Geral, como é o caso da
36/55, onde a mesma exclui todas e quaisquer forma de intolerância e discriminação que tenha
base seja na Religião ou na crença. Assim como está estabelecido no Art. 5º da Constituição
dança. Para saber mais acesse:< http://jornalismo.iesb.br/2015/08/16/babalorixa-explica-o-significado-das-cores-eroupas-candomble/>.
Jagum (2013), Ebômis é o título de senioridade que se dá a quem já tenha dado a "obrigação" de sete anos ou às
pessoas que não entram em transe e se iniciam no candomblé, como é o caso dos Ogãs e das Ekedes..
Abiã, é o indivíduo que ainda não passou pela cerimônia de iniciação, propriamente dita, mas que já "deu"
(realizou) o borí pré-iniciático.
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brasileira, os direitos fundamentais à liberdade religiosa dos cidadãos.
Podemos concluir a grandiosidade e riqueza cultural inserida no Brasil, mas também
percebemos a necessidade dá população começarem a enxergar e a respeitar as diferenças, as
culturas e religiosidades dos outros. Em um país tão miscigenado, é inaceitável tamanha
crueldade, quando tratamos da intolerância religiosa, da perseguição sofrida brutalmente com
as Religiões de Matriz Africana e seus adeptos. Por mais que esteja garantida na Constituição
brasileira de 1988, o direito a liberdade religiosa, é marcante e presente a criminalização em
um país dito “laico”.
A realidade é totalmente outra, é notório que o país ainda está preso ao período da
escravidão, entranhado à uma sociedade racista, preconceituosa e a discriminatória, fazendo
ligações há tudo que vem dos negros não presta. Assim, acontece também com a Religião de
Matriz Africana por originarem dos negros escravizados é uma religião marginalizada em todos
os aspectos. Para se manter viva e presenta tanto a religiosidade negra quanto a cultura negra
vem se disfarçando, se ressignificando para sua sobrevivência nos dias atuais.
Vale realçar que a declaração sobre os direitos as pessoas pertencentes ou étnicas,
religiosas e linguísticas minoria nacional, busca da anular de qualquer forma de intolerância e
discriminação que esteja ou não ligada à Religião de Matriz Africana, a Organização das Nações
Unidas em 1981, deixa bem claro ao assegurar que todas as religiões, convicções fazem parte
da construção social e cultural na vida das pessoas que a professam, sendo às mesmas
protegidas e respeitadas de forma integra pelo Estado. É papel do Estado sua atuação na prática
da laicidade, gerando uma reformulação do mesmo na busca de que seja aplicado sua real
função e papel perante a sociedade.
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As guerras sexuais no Anglicanismo contemporâneo: um histórico das rupturas
na Diocese Anglicana do Recife (2002-2018)
Wilton da Silva Rocha*
Resumo: O presente estudo busca analisar o reconhecimento, ou não, das expressões não
heterossexuais no ambiente religioso e a extensão do acesso aos ritos públicos da ordenação e
do casamento no Anglicanismo brasileiro, particularmente a partir das disputas ocorridas nas
últimas duas décadas na Diocese Anglicana do Recife. Acompanho estes embates em torno das
questões sobre sexualidade no Anglicanismo nordestino a partir da análise da documentação de
três momentos significativos que resultaram em rupturas institucionais e reconfigurações nas
relações de poder. Como resultado dos embates/debates internos e da reconfiguração das
forças políticas no Anglicanismo no Brasil, em 2018, é aprovado o casamento igualitário entre
pessoas do mesmo sexo, ainda que em um cenário de crescente discurso autoafirmado como
conservador nos segmentos políticos e religiosos.
Palavras-chave: Anglicanismo; Sexualidade; Rupturas.
O presente trabalho se constitui em uma análise sobre as reconfigurações institucionais
e das políticas sexuais no anglicanismo na região Nordeste do Brasil. Para tanto, enfocamos os
eventos que se dão na Catedral Anglicana da Santíssima Trindade por ser o centro das
principais discussões e disputas políticas-sexuais dentro do Anglicanismo no Brasil desde o
começo do século XXI sobre o acesso ou não de pessoas não heterossexuais aos rituais da
ordenação e do casamento. Essas discussões levaram a três cisões da Diocese Anglicana do
Recife-DAR, em 2002, 2005 e 2017, a qual a Catedral era filiada. Esses conflitos, como se
demonstrará adiante, vão além da Catedral ou do Anglicanismo no Brasil, mas imbricam uma
série de relações políticas locais, nacionais e internacionais que se mostraram bastante
dinâmicas.
Carrara (2015), a partir da sua leitura quanto às políticas sexuais propostas por Weeks
(1989), entende que é pela via jurídica, mediada pela ação da sociedade civil organizada –
Mestre em Antropologia Social (2020) pela Universidade Federal de Alagoas. Atualmente é Professor do
Ensino Básico, Técnico e Tecnológico do Instituto Federal de Alagoas.
*
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particularmente o movimento LGBT, feminista, pelos direitos humanos - e a intervenção do
Estado, no caso brasileiro em especial do judiciário, que uma série de direitos são debatidos,
reivindicados e conquistados.
Nesse cenário de mudanças as religiões são instigadas a (re)pensar suas posições e,
surgem uma série de reações que vão desde o acolhimento institucional, surgimento das “igrejas
inclusivas” e a organização de ministérios relacionados à diversidade nas denominações
evangélicas, até a organização de novas frentes de restauração da heterossexualidade dentro das
igrejas e da atuação política contra esses direitos.
Assim, em um contexto de crescente visibilidade da causa LGBT e suas conquistas de
direitos, o Anglicanismo se coloca frente a essas questões. Também, a ordenação de um bispo
homossexual nos Estados Unidos em 2003 foi o estopim das reações no cenário anglicano,
mobilizando os mais variados grupos dentro da instituição e levando-os a revisitar suas posições
teológicas, políticas, sociais e morais.
A ruptura de 2002 e o surgimento da Igreja Episcopal Carismática do Brasil
Frente à visibilidade dos debates sobre a inclusão de LGBT ́s nas igrejas cristãs no
começo dos anos 2000 e os movimentos de ação/reação que se desenvolvem em plano
institucional, político e até jurídico, o Anglicanismo no Nordeste se posicionou fortemente,
tendo destaque no debate nacional e, mesmo internacional, no interior da Comunhão
Anglicana. Esse destaque, porém, precisa ser considerado à luz das relações políticas locais, das
disputas envolvendo as lideranças dentro das comunidades, além de projetos individuais de
prestígio e autoridade religiosa.
Segundo a interpretação propagada dentro da Diocese Anglicana do Recife (DAR), o
cerne que iria iniciar a gestação das rupturas de 2002 e 2005 seria a substituição primeiro bispo
da Diocese, Dom Edmund Sherill, em 1984. O então titular da diocese tinha como plano fazer
com que o Revdo. Paulo Garcia, que ele havia colocado como Deão (presbítero responsável)
da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade e que tinha feito um trabalho de expansão da
igreja entre os brasileiros, fosse eleito como novo bispo.
Com a eleição de Dom Clóvis em 1984, esses planos foram frustrados. Ainda assim,
Revdo. Paulo Garcia mantém seu prestígio e sua atuação junto à Catedral. Segundo relata o
atual bispo diocesano da DAR-IEAB, Dom João Câncio, Revdo. Paulo Garcia tinha uma
postura centralizadora que o fazia “dono da Catedral”. Enfatizou que o bispo de então chegava
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a ser impedido de frequentar o tempo ao critério do seu líder. Cristiany Queiroz (2004), dá a
dimensão de como era vista a atuação do reverendo por alguns segmentos da Catedral como
uma figura desagregadora e que teria lançado a diocese a divisão interna sem ter uma base
teológica consistente, mas apenas por uma questão de poder e prestígio pessoal.
Na eleição subsequente, em 1997, Dom Robinson Cavalcanti tornou-se bispo diocesano
da DAR-IEAB. Conforme relato de bastidor o então bispo e Paulo Garcia teriam um acordo
mútuo, firmado em um encontro realizado na cidade de Paudalho, Pernambuco. Segundo esse
acordo, Paulo Garcia daria seu apoio a Robinson Cavalcanti que, uma vez eleito, renunciaria
em favor do primeiro. Ambos integravam o ramo evangélico do Anglicanismo no Nordeste,
vindos originalmente do Presbiterianismo e do Luteranismo, respectivamente.
Uma vez que o acordo não foi comprido, abriu-se espaço a hostilidade aberta entre as
partes. Em entrevista, um interlocutor informou que a construção da igreja em Boa Viagem,
atual sede da DAR, aconteceu pelo fato de o bispo Dom Robinson Cavalcanti ser impedido de
frequentar a Catedral da Santíssima Trindade. Ele aponta para as “coincidências” da vida, pois
segundo ele o templo de Boa Viagem construído para servir de Catedral do bispo impedido de
frequentar a catedral oficial acabou cumprindo seu destino, ainda que anos mais tarde.
Assim sendo, em 2002, a Diocese Anglicana do Recife (DAR), ligada à Igreja Episcopal
Anglicana do Brasil (IEAB), perdeu sua maior congregação local (a Catedral da Santíssima
Trindade) para a Igreja Episcopal Carismática do Brasil (IECB). Na ocasião, Revdo. Paulo
Garcia, o deão da Catedral (que liderou a ruptura) afirmou contundentemente que sua saída da
IEAB era motivada pela “liberdade exagerada” que a mesma concedia aos homossexuais. A
mídia local deu ampla cobertura ao conflito institucional trazendo falas e explicações dos
principais atores envolvidos no embate: o deão cismático da Catedral (Paulo Garcia) e seu
opositor e antes aliado, o bispo anglicano local (Robinson Cavalcanti). (SOARES, 2002)
Paulo Garcia fazia questão de frisar que não estava abdicando do seu posto de líder
espiritual da Catedral da Santíssima Trindade, nem da eclesiologia anglicana, e nem muito
menos de sua vertente “episcopaliana”, afinal continuaria realizando suas atividades de pastor
da Catedral, agora filiado a Igreja Episcopal Carismática do Brasil (IECB), extremamente
semelhante na linguagem, gestos, culto e teologia a IEAB, pelo menos na percepção dos leigos.
Cristiany Queiroz (2004) explora essa tensão entre os dois grupos, de um lado os
episcopais carismáticos e do outro os episcopais anglicanos. Enquanto se escuta um tom
bastante acusatório do grupo que seguiu ligado a DAR quanto a postura do Revdo. Paulo
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Garcia do grupo que o seguiu, não se percebe o mesmo no que tange às suas práticas e teologia.
A grande acusação é de um rompimento motivado por questões pessoais, da quebra da
tradição, representado, entre outros sinais, pela reforma do prédio antigo da Catedral e a
descaracterização de sua arquitetura. Mas ainda que a autora, a partir dos dados e falas de
campo, expresse que episcopais carismáticos tenham práticas religiosas que cultivem um apelo
sentimental maior e que tenham posturas mais próximas a grupos pentecostais e
neopentecostais, enquanto que os episcopais anglicanos teriam uma postura mais tradicional e
racionalistas frente a teologia e prática. Porém, nas falas dos interlocutores de Queiroz, assim
como naquelas que colhi em campo, não vejo um questionamento quanto ao fato de esses
grupos separados seguirem, ao menos em seus pontos fundamentais, enquanto anglicanos.
A ruptura de 2005 e o embate entre “liberais” e “ortodoxos”
Para que se possa compreender a crise de relacionamento entre Dom Robinson
Cavalcanti e a IEAB que levou a uma nova ruptura na DAR em 2005, é preciso considerar a
sua postura frente a Carta Pastoral sobre Sexualidade Humana de 1997 (IEAB, 1997). Esta
carta trata sobre as perspectivas de interpretação bíblica com relação à homossexualidade e de
como isso vinha repercutindo no interior da Comunhão Anglicana desde a Conferência de
Lambeth realizada em 1988. A liderança recifense foi a única a não a assinar.
A crise é retomada, quando em 2003 a Igreja Episcopal dos Estados Unidos elege o
homossexual assumido Gene Robinson para bispo da diocese de New Hampshire e a Diocese
de New Westminster no Canadá aprova a benção para uniões homossexuais. A IEAB se
pronuncia a respeito referendando a decisão das Igrejas dos Estados Unidos e do Canadá
apontando as dificuldades que essas decisões traziam no cenário anglicano local e internacional.
Dom Robinson Cavalvanti, discordando da postura adotada pela IEAB frente às
decisões tomadas pelas Igrejas dos Estados Unidos e do Canadá, não apenas promove ações no
interior de sua diocese a fim demarcar uma postura dissonante, como passa a se articular de
forma independente com outros setores conservadores da igreja dentro e fora do país.
A postura combativa de Dom Robinson Cavalcanti, líder do grupo, se dá devido a sua
visão negativa sobre a homossexualidade e disso da participação de homossexuais como
lideranças na igreja. Sua postura no que concerne a homossexualidade, é de apresentá-la como
doença que necessite de tratamento – quer psicológico, quer espiritual. Em sua obra Libertação
e Sexualidade (1990), e em outros tantos artigos que circulam pela internet em especial no site
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da Igreja Anglicana-Diocese do Recife (http://anglicanadr.com.br/) e da Revista Ultimato
(www.ultimato.com.br), ele expressa esse ponto de vista. Para ele:
A leitura das Sagradas Escrituras nos leva a afirmar certos parâmetros básicos,
[...], quanto à sexualidade. Diferentemente de meros costumes ou tradições,
esses padrões quando rompidos, possuem uma dimensão patológica, de
riscos, de danos, de negatividade, em si mesmos. (CAVALCANTI, 1990, p.
26)
Assim, o referido bispo, elenca uma lista de padrões de comportamento sexual que
feririam essa ética cristã e teriam uma dimensão patológica. Logo depois da necrofilia e da
zoofilia, está o “homossexualismo”. Sendo assim: “Deus destinou o ser humano à realização
com o sexo oposto. O homossexualismo, ou atração pelo mesmo sexo, fere esse padrão.”
(CAVALCANTI, 1990, p. 27). A fala de Robinson Cavalcanti caminha na direção clara de
associar a homossexualidade a práticas classificadas como “outros transtornos da preferência
sexual” (CID 10. F65.8), ainda que desde pelo menos 1995, a OMS, tenha retirado a
homossexualidade dessa lista e o termo “homossexualismo” tenha sido superado.
É preciso ter em vista que grupos religiosos cristãos apresentam os mais variados
posicionamentos sobre sexualidade a partir de diferentes perspectivas. Sendo assim, Jurkewicz
(2005) identifica no cristianismo três posicionamentos base quanto à homossexualidade: 1.
oposição absoluta, encontrada principalmente nos grupos que interpretam a homossexualidade
como antinatural e pecaminosa. Ainda assim muitos desses grupos falam em um acolhimento
dessas pessoas no sentido de que estas reconheçam seu erro, peçam ajuda e a partir desse
ponto mudem seu comportamento, em um processo que muitas vezes envolve um tratamento
de ordem física e espiritual; 2. comportamento aceitável, ainda que essa orientação sexual seja
considerada como inferior, colocando a abstinência como uma opção para aqueles que não
conseguem se ajustar ao estilo de vida heterossexual; 3. aceitação, considerando a
homossexualidade em patamar de igualdade com a heterossexualidade, valorizando e
reafirmando valores ligados ao afeto e manutenção da conjugalidade, entendendo como pecado
não a homossexualidade em si, mas a exploração dos parceiros, fenômeno que pode ocorrer
também nas relações heterossexuais.
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A participação de Dom Robinson Cavalcanti “juntamente com outros cinco bispos num
Ofício de Confirmação, na Diocese de Ohio, nos Estados Unidos sem o convite ou o
conhecimento do bispo diocesano local”, se configura “numa total violação à constituição e aos
cânones da TEC (Igreja Episcopal dos Estados Unidos)” conforme o então bispo primaz do
Brasil, Dom Orlando Santos de Oliveira em carta-aberta de 17 de março de 2004.
Em artigo-resposta publicado a 21 de março do mesmo ano, Dom Robinson propõe
que “se há, (...) um impasse tanto canônico quanto teológico e moral, resta uma solução
negociada por um grande acordo político, no qual a minoria ortodoxa elimina a opção pelo
cisma e a maioria liberal elimina a solução pelas sanções” (IEAB, 2004), chegando a afirmar a
necessidade de uma “refundação” do Anglicanismo nos Estados Unidos, com a criação de uma
Província não territorial em contraposição a província estabelecida.
Diante do acirramento das tensões e do estabelecimento da supervisão episcopal pela
IEAB ante a DAR, Dom Robinson convoca o Concílio Diocesano e envia carta a Dom
Gregory Venable, bispo primaz da Igreja Anglicana do Cone Sul da América (IACSA), na
Argentina, pedindo asilo canônico, ainda que a IACSA não tivesse autoridade e atuação no
Brasil.
Diante da aceitação por parte do bispo argentino do asilo a DAR, a IEAB, através de
seu bispo primaz, escreve ao Arcebispo de Cantuária, expondo-lhe seu ponto de vista e o que a
levou a tomar tais decisões. Dom Robinson se coloca como perseguido político pela IEAB em
carta endereçada ao arcebispo de Cantuária, o que é rebatido pela IEAB.
Em 2005, com a expulsão de Dom Robinson, após Processo Canônico (IEAB, 2005)
movido pela IEAB, chega ao final os conflitos. Dom Robinson funda a Igreja AnglicanaDiocese do Recife, que se coloca como defensora de pretensos valores tradicionais do
Anglicanismo e contra o que ele entende ser uma postura liberalizante que a IEAB adota.
A exclusão da DAR-IEAB de Dom Robinson Cavalcanti e daqueles que o apoiavam,
que posteriormente fundaram a Igreja Anglicana-Diocese do Recife, a perda de templos e fiéis
em nível local “resolve” momentaneamente a crise. Muitos templos que ficaram com o grupo
dissidente foram reavidos pela DAR-IEAB após um processo judicial de mais de 10 anos,
dentre esses templos o de Boa Viagem, atual Catedral do Bom Samaritano.
Dom Robinson Cavalcanti que tinha liderança tão destacada entre esses anglicanos
conservadores foi brutalmente assassinado em 2012. À época acreditava-se que o grupo
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dissidente poderia voltar a DAR, mas isso não aconteceu. Logo levantaram-se outros líderes já
preparados para dar continuidade aos trabalhos que mantiveram o grupo coeso.
Chama a atenção, nos dois casos, que os grupos que se entendem como conservadores
ou ortodoxos são expulsos ou rompem com a Igreja instituída, criticam a visão liberal da IEAB
e seu alinhamento com a igreja estadunidense. Aqui questões políticas e de ordem econômica
são levantadas. Quando se discutir eventos mais recentes, muitos desses argumentos serão
novamente trazidos à tona e analisados mais aprofundadamente.
Soares (2008) adota um modelo de análise focada no conceito de drama social,
descrevendo a cisão da DAR ocorrida entre os anos de 2003 a 2005 através das fases de
separação ou ruptura; crise e intensificação da crise; ação remediadora; e reintegração
preconizadas por Victor Turner (2005). O autor opta por esse caminho, indicando, inclusive,
que esse seria um drama inconcluso, estando a quarta fase em aberto. Todavia, ele avalia que:
No contexto do conflito anglicano iniciado em 2003 e ora em curso, tudo faz
crer que a fase/estágio final se concluirá ainda este ano de 2008; seja porque
as fases anteriores já se consumaram a essa altura, seja porque 2008 no
calendário anglicano mundial, desde há muito tempo, havia sido previsto para
a realização da Conferência Episcopal da Lambeth, que é realizada a cada
década. (SOARES, 2008, p. 13)
Discordo da visão de Soares, a partir dos movimentos da Comunhão Anglicana pós2008 e pelas falas que recolhi em campo. As rupturas de 2002 e 2005 eram ainda assunto
muito presente quando estava em campo. Os debates sobre a legitimação do casamento
igualitário não arrefeceram ou geraram uma reestruturação ainda definitiva. Os eventos que
serão trazidos a seguir deixam claro que essas tensões e os desdobramentos desse processo
iniciado no começo do século XXI ainda seguiam em aberto.
A ruptura de 2017 como final do processo
Pouco menos de 10 anos após a ruptura da DAR, as discussões sobre sexualidade
dentro do Anglicanismo seguem acontecendo. Marco nesse processo é o Sínodo Ordinário da
IEAB realizado em novembro de 2013 na cidade do Rio de Janeiro. Ao final deste Sínodo
houve a convocação de um Sínodo Extraordinário a se realizar em 2016 e também ficou
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decidido que seria realizada uma série de estudos nas dioceses quanto à questão de Gênero e
Sexualidade. Para tanto, esses encontros se utilizam do método denominado Indaba.
Conforme um dos sítios eletrônicos da IEAB, Indaba é uma palavra de origem africana que
significa “roda de diálogo”. Nesses encontros se permite aos seus participantes um debate em
condições de igualdade e liberdade de expressão para partilhem seus pontos de vista na busca
de consensos para o bem comum. Logo, esse método de estudo e debate de temas variados,
geralmente polêmicos, quer ser um espaço aberto para a discussão de pontos de vista opostos, a
partir de diferentes posicionamentos, para que a partir de um processo de entendimento mútuo
se chegue a um consenso.
Esses encontros foram realizados durante o ano de 2014, contando com a presença de
representantes de grupos com visões opostas no que se refere ao casamento entre pessoas do
mesmo sexo. Como resultado foi editado uma revista de pouco mais de 40 páginas intitulado
“Documentos Indaba: Famílias e Diversidade Sexual”, buscando fazer uma síntese do que foi
discutido nos encontros e com uma série de artigos de teólogos que lideraram os encontros.
Em culminância desses estudos e a fim de se preparar para o Sínodo Extraordinário, a Diocese
Anglicana do Recife realiza um Concílio Diocesano entre os dias 26 e 29 de maio de 2016, na
Paróquia do Bom Samaritano, Boa Viagem, Recife. Neste Concílio a sinalização da DAR é de
aprovação do casamento igualitário.
No Sínodo Extraordinário de 2016, se aprovam a nova Constituição e os novos
Cânones Gerais da IEAB. A proposta da adoção da neutralidade de gênero na liturgia oficial é
aprovada, no entanto a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo causa grande
discussão entre os participantes e não obtém êxito.
Dada a falta de consenso, o bispo primaz da IEAB, Dom Francisco Silva, convoca um
Grupo de Trabalho sobre “Gênero, Sexualidades e Direitos” constituído por um bispo, três
leigos e mais dois religiosos. As dioceses de Recife e São Paulo se destacam na composição
desse GT. O objetivo do grupo é manter um canal de discussão entre os diferentes grupos e
elaborar material que subsidie a base da igreja na discussão. Assim, o tema que parece ficar em
suspenso até a realização do novo Sínodo, previsto para 2017, deixa no ar para alguns setores
um quê de certeza.
Em novembro de 2016, na cidade do Recife, baseada na Catedral Anglicana da
Santíssima Trindade é fundada a “Aliança das Comunidades Anglicanas na IEAB”. O grupo é
capitaneado pelos clérigos da Catedral da Santíssima Trindade e pelo bispo aposentado da
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DAR, Dom Sebastião Gameleira. Pode-se afirmar que o grupo surge em oposição às discussões
que viam em curso dentro da IEAB sobre as questões de sexualidade e pelo entendimento que
o próximo Sínodo Extraordinário da IEAB teria sido convocado para aprovar o casamento
entre pessoas do mesmo sexo.
A Aliança declara o compromisso com a “unidade da Igreja”, não se entendendo como
um grupo de oposição à posição majoritária dentro da DAR, mas propõe um caminho para o
diálogo. Por fim, apelando para o triple: Bíblia, Tradição e Razão – componente clássico para o
modelo de interpretação anglicano –, recorre também a “experiência do povo cristão” ou o que
se ele denomina de “sensus fidelium” (senso dos fiéis).
Frente a essa reação conservadora e a repercussão negativa dentro da IEAB, a Câmara
Episcopal emite em 02 de dezembro de 2016 uma mensagem à Igreja no Brasil condenado o
que eles entendem ser atitudes cismáticas pelo grupo formador da Aliança a partir da Diocese
Anglicana do Recife. A carta é assinada por todos os bispos que estão em exercício e foi
divulgada através do site do Sistema Nacional de Informação Anglicano. Em meio ao tom de
reprimenda e acusação de rompimento da obediência devida às instâncias superiores, são
evocados oito princípios que constituem o ethos anglicano, dentre eles, destaco o da
“Inclusividade” e a “Promoção e garantia dos Direitos Humanos”, que sempre são retomados
quando se levanta o polêmico tema das homossexualidades dentro da igreja e que é
relacionado também à questão de gênero e defesa da mulher.
Em carta-resposta endereçada aos seus colegas bispos, redigida em sua carta de 04 de
dezembro de 2016, publicizada em 10 de dezembro de 2016 pelo site da Aliança Anglicana,
Dom Sebastião apresenta uma defesa da própria existência da Aliança enquanto agrupamento
válido dentro da IEAB. Em seu texto, ele questiona o papel da autoridade episcopal, que no
Anglicanismo deveria se distinguir dos moldes do episcopado monárquico católico. Ele ainda
defende que o texto de fundação da Aliança em nada fere os princípios de unidade e
diversidade dentro da IEAB e que a leitura feita pelas lideranças da IEAB estaria “vendo
pretensões onde não existem”. Além disso, reforça o “sensus fidelium” como medida no que
tange às respostas da igreja aos desafios do presente.
Desse modo, a partir do argumento do senso dos fiéis, Dom Armando Gameleira
sustenta que se o grosso de fiéis não está preparado para aceitar o casamento entre pessoas do
mesmo sexo, não haveria motivo pelo qual aprovar tal prática. Dentro da IEAB a repercussão
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apresentada pelas lideranças da igreja indica que a interpretação quanto a esse movimento é
que ele é visto como o gérmen de um novo cisma que poderia se formar.
Em resposta às movimentações da Aliança, Dom João Câncio (PEIXOTO, 2017)
expede uma portaria ordenando que: (1) os clérigos que assinaram a petição de formação da
Aliança retirem seus nomes; (2) seja removido o site da Aliança e as redes sociais; (3) a
manifestação individual dos membros, através de uma carta, em que cada um reafirme seus
votos de ordenação; e, (4) que estes clérigos permaneceriam na IEAB, independentemente das
decisões que possam vir a ser tomadas em futuro sínodo da igreja (que será realizado em 2018).
Por fim, um prazo de dez dias é dado para que se tomem essas medidas.
Em reação a portaria diocesana, a Catedral Anglicana da Santíssima Trindade, convoca
uma assembleia geral dos membros e decide pela sua saída da DAR-IEAB. Outras
comunidades anglicanas em Recife e em outros estados do Nordeste também rompem com a
DAR, no entanto, não formam uma nova denominação, mantendo relações entre si.
A agora Paróquia Anglicana da Santíssima Trindade, independente da DAR, se
pronuncia poucos dias depois, no dia 25 de janeiro de 2017. No texto é reafirmada que a
Aliança das Comunidades Anglicanas da IEAB não é uma organização de cunho cismático,
mas tão somente uma associação de anglicanos que buscam expor um determinado ponto de
vista e que desejavam amadurecer alguns aspectos das temáticas que são atuais na vida da igreja.
Mais adiante, afirma-se que esse tema de debate tão acalorado, debate esse que vai além da
questão local, refere-se à sexualidade humana. Apontando para um entendimento tradicional
sobre a temática da celebração do casamento entre pessoas do mesmo, do risco da adoção
desse rito para a unidade da igreja e o questionamento do porque esse debate se faz tão
presente na atualidade e de forma tão apaixonada frente a outros desafios como a pobreza e a
violência, que ficariam relegados a um segundo planos. Ainda é reafirmado o clima de
acirramento de ânimos na DAR e o perigo de desintegração dessa diocese diante da divisão
que esse tema tem causado divisão na igreja.
Para a Aliança Anglicana o debate sobre a homossexualidade tem ido muito além do
que a tradição cristã e anglicana e a exegese bíblica comportariam. Citando o documento final
da Conferência de Lambeth de 1988, onde se afirmam valores tradicionais sobre o casamento e
a manutenção de relações sexuais unicamente no matrimônio heterossexual, aponta que a
prática da homossexualidade seria “incompatível com as Escrituras”. Avalia que há um
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superdimensionamento desse debate na igreja e suas consequências de divisão e excomunhões
mútuas entre diferentes Igrejas Anglicanas pelo mundo.
Considerações Finais
Nesse contexto, o papel do Estado, no caso brasileiro, do judiciário, se destaca na
medida em que ele vai encabeçar as decisões sobre sexualidade e direitos e, a partir desse dado
ativam uma série de respostas religiosas. No Legislativo, segmentos ligados às igrejas
evangélicas, trazem à tona a insatisfação de grupos que se autodenominam conservadores e
reivindicam o que entendem como valores tradicionais. Vê-se assim, o crescimento de um
movimento político de cunho conservador que coloca em xeque as conquistas até então
alcançadas pelos movimentos LGBT.
A DAR e a IEAB vão se colocar em um forte debate interno que levará a posições
antagônicas fortes, culminando em duas rupturas, em 2002 e 2005. O reconhecimento das
orientações não heterossexuais e o acesso às celebrações públicas da ordenação e do casamento
se colocam como os principais elementos em disputa, que vão balizar a discussão acerca do
lugar da diversidade no ethos anglicano.
A criação da Aliança Anglicana, em 2016, grupo que se opõe ao casamento igualitário
que se coloca em discussão em nível local-nacional, engendra não o início, mas a continuidade
de um conflito que estava adormecido, mas não morto. Afirmo isto em contraposição a Soares
(2008) para quem os conflitos de 2002 e 2005 haviam chegado ao seu fim. Entendo que os
eventos que se passaram entre o final de 2016 e início de 2017 dão continuidade àqueles
ocorridos a pouco mais de uma década.
A discussão se mostrava cada vez mais viva na medida em que o debate sobre o
casamento entre pessoas do mesmo sexo se colocava na DAR. Antigos argumentos são
advogados por novos atores, velhas cenas tomam outros cenários e o enredo das disputas por
poder tendo a sexualidade como foco se colocam mais uma vez no cenário anglicano.
A ruptura da Catedral Anglicana da Santíssima Trindade se coloca, provavelmente,
como o término deste conflito institucional no Anglicanismo brasileiro. Com a aprovação do
casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2018 pela Igreja Episcopal Anglicana do Brasil há
a saída dos grupos opositores, que se configuram em novas institucionalidades, uma vez que se
opõe a essa prática. Já no cenário internacional, o Anglicanismo está em processo de
reconfiguração e ainda não uma definição dos rumos que serão tomados.
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
Mesa de Encerramento
Epistemícidio e o silenciamento do passado: combatendo o racismo
historiográfico711
Palestrantes:
Álvaro
Pereira
Nascimento
(UFRRJ), Flávio dos Santos Gomes (UFRJ) e
Ynaê Lopes dos Santos (UFF)
Mediador: Danilo Luiz Marques (UFAL)
Transcritor(a): Ana Beatriz L. de Araújo
(UFRRJ)
Danilo Marques: Olá, Boa noite a todos, a todas, a todes! É com enorme prazer, e enorme
felicidade, que iniciamos aqui a nossa mesa três, a mesa que encerrará o nosso 12° Encontro
Nacional de História da UFAL e o nosso 1° Encontro Internacional. Esse ano, tivemos como
tema “Genocídios na História: passados, presentes, e futuros”, e, ao longo dos últimos três dias,
debatemos variados temas da História, da historiografia, bem como da atual conjuntura política
que o Brasil se encontra. Nesse meu primeiro ano de Universidade Federal de Alagoas, eu
gostaria de deixar aqui a minha felicidade de estar participando de um grupo de professores
daqui da UFAL, bastante engajados e que vem se posicionando perante essa conjuntura que a
gente vive, e uma outra felicidade de estar coordenando essa presente mesa, com convidados
que eu admiro já de longa data. Convidados que através das suas profissões foram referências
não só para mim, mas para muitos dessa nova geração de historiadores, convidados, também,
que integram a rede de historiadores negros e negras, o que é importante colocar aqui.
A existência dessa rede, que vem dessa esteira das lutas dos movimentos sociais, sobretudo, do
movimento social negro brasileiro, pontua uma questão que é crucial para a gente agora, que
são as ações afirmativas, e aqui eu gostaria de lembrar, particularmente, dos dez anos da Lei de
711
Mesa de Encerramento do 12º Encontro Nacional de História e 1º Encontro Internacional de História da
UFAL - "Genocídios na História: passados, presentes, futuros". 10/09/2021.
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Cotas, que se aproximam, agora, em 2022. A Lei de Cotas que possibilitou a entrada de
gerações, e gerações, de alunos negros e negras nas Universidades e Institutos Federais, bem
como de estudantes indígenas, e essa é uma das políticas que a gente tem um passo muito
importante, ano que vem, em direção a sua defesa, principalmente, pelos ataques que a gente
vem sofrendo nos últimos anos. Então, eu gostaria de, antes de apresentar a mesa,
rapidamente, dizer que a Universidade Federal de Alagoas tem uma tradição de diálogo com os
intelectuais negros, e com as lideranças do movimento negro, e, atualmente, eu tenho a honra e
a oportunidade de estar coordenando o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas, núcleo
esse que foi fundado há quarenta e um anos. Estiveram aqui na UFAL, estiveram aqui na Serra
da Barriga, em Alagoas: Abdias Nascimento, Lélia Gonzalez, Januário Garcia, Hamilton
Cardoso, Beatriz Nascimento, Joel Rufino dos Santos, e, se a gente fosse colocar o nome de
todos e todas que estiveram aqui, ficaríamos alguns minutos.
É a partir desse núcleo, que faz parte do curso de História da UFAL durante muito tempo, no
início com o professor Zezito de Araújo e, mais recentemente, com a professora Clara
Suassuna, e, também, com outros coordenadores como a professora Lígia Correia, de Letras, e
o professor Moisés Santana, que hoje está em Pernambuco, que se possibilitou que a
Universidade Federal de Alagoas fosse uma das três primeiras universidades a implementar as
Ações Afirmativas e a política de cotas, ainda em 2003, com a entrada no vestibular em 2004 e
2005. É válido lembrar que, naquela época, a gente conseguiu aprovar um programa de Ações
Afirmativas, onde se colocou 60% das vagas para mulheres e 40% para homens, então se
apontou o recorte de gênero. Teríamos várias histórias sobre isso, mas eu quis fazer esse
recorte para lembrar da importância de defender as Ações Afirmativas, e um pouco da tradição
de diálogo que o curso de História da UFAL tem com esses intelectuais e lideranças negras.
Então, é com muita honra que eu queria iniciar a mesa três: “Epistemicídio e silenciamento do
passado: combatendo o racismo historiográfico”, e eu vou apresentar brevemente os
convidados porque o currículo dos três são amplos. O Professor Flávio Gomes atua como
professor permanente do Programa de Pós-graduação em História comparada e História
Social, no Instituto de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro, é professor
colaborador do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal da Bahia
(UFBA), e tem publicado livros, coletâneas, e artigos em periódicos nacionais e estrangeiros,
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atuando nas áreas de Brasil Colonial e pós-colonial, Escravidão, Amazônia, Fronteiras,
Campesinato e Pós-emancipação. O professor Álvaro Pereira do Nascimento é professor da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, campus Nova Iguaçu, faz parte do corpo
docente permanente dos programas de Pós-graduação em História e do Programa de Pósgraduação interdisciplinar em Humanidades digitais da mesma universidade, seus temas e
objetivos de pesquisa preferidos são: Escravidão, Pós-abolição, História da Baixada
Fluminense, História da África, Cidadania, História Militar e Ensino de História, e, por fim,
Ynaê Lopes dos Santos, professora adjunta do Instituto de História da Universidade Federal
Fluminense, realiza pesquisas na área de História da América, com ênfase em escravidão
moderna e relações étnico-raciais nas Américas, atuando, principalmente, nos seguintes temas:
Escravidão, América Ibérica, Formação dos Estados Nacionais, Cidades Escravistas, Relações
étnico-raciais e Ensino de História, e, atualmente, faz parte do Comitê Executivo da BRASA.
Esse é o currículo resumido dos nossos convidados, e eu gostaria de iniciar, portanto, com a
professora Ynaê. Professora Ynaê, Boa noite! Seja bem-vinda e muito obrigado por aceitar o
convite para estar aqui com a gente!
Y. L.: Boa noite, Danilo! Boa noite a todos, a todas e a todes! É um prazer enorme estar aqui
nessa mesa, com essa mesa, esses professores que foram referências, e são até hoje, tanto que
eu estou aqui conversando com a minha bibliografia. É um prazer enorme, o Flávio esteve na
minha banca, enfim, o Álvaro também acompanhou parte do meu doutorado, e agora a gente
tem até uma relação de compadrio, então é algo muito importante estar aqui, muito prazeroso,
sobretudo, para falar sobre esse tema que eu acho que é um tema urgente e que já passou do
tempo. Ao mesmo tempo que eu acho que ele é urgente, tem uma parte que fala “ah, mas a
gente ainda está falando sobre isso?” Sim! A gente ainda está falando sobre isso e, infelizmente,
acho que a gente ainda vai falar por um bom tempo sobre isso, mas que bom que a gente ainda
pode também utilizar a tecnologia em favor disso, para que a gente possa falar cada vez mais e
para mais pessoas. Eu vou começar a minha fala da mesma forma que eu começo, e tenho
começado, os semestres para os meus alunos da UFF, que não chegam mais tão empolgados
como chegavam a um tempo atrás porque a gente está vivendo uma situação muito delicada
com a pandemia, com as situações de vulnerabilidade, e com o desmantelamento das
Universidades, e, eu vou falar isso, nunca foi tão difícil ser historiador, assim como professor de
história, mas também nunca foi tão importante. Então a gente precisa, também, se apoderar
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desse lugar que muitos de nós escolhemos estar, porque é um lugar fundamental e um lugar de
disputa.
A gente está aqui para disputar sentidos de Brasil, sentidos de História, e eu acho que estamos
vivendo um momento muito crucial nesse sentido porque a gente está dentro do “olho do
furacão”, em uma crise profunda das Instituições Brasileiras, da própria ideia de República, de
cidadania, do que é liberdade, dos projetos de Brasil que estão sendo colocados em prática,
enfim, a gente está disputando, inclusive, a bandeira nacional, então é uma disputa árdua,
profunda, que obriga a recuperar, no mínimo, a nossa trajetória enquanto República. Logo, é
uma tarefa e tanto, mas, ao mesmo tempo, a gente precisa fazer com que esse debate aconteça,
com que essas disputas, de fato, possam trazer benefícios, que, ao meu entender, só podem ser
traduzidos em uma experiência mais democrática, e, para mim, a democracia só existe quando
há uma luta antirracista efetiva, então é esse bolo de coisas que a gente precisa estar trabalhando
junto. Acho que o tema dessa mesa é um convite, uma provocação para, justamente, pensar nos
limites que a historiografa brasileira tem e teve, mesmo uma historiografia um pouco mais
progressista em relação, ao que eu considero, e não só eu, acredito que o que eu estou dizendo
vai ser dito, também, pelos meus colegas professores e por um grupo significativo de
historiadores, muitos deles historiadores negros, o racismo é um limite para historiografia
brasileira.
Infelizmente, o racismo ainda é um pilar a partir do qual a própria construção do saber
histórico se dá. A gente tem acompanhado, nos últimos tempos, uma profunda, e, por um lado,
interessante, discussão e debates em relação, por exemplo, a derrubada das estátuas, os
personagens que de certa maneira materializam episódios vinculados a genocídios de
populações não-brancas, sejam ameríndias, sejam africanas, ou negras, de escravização, e há um
debate em relação à eficácia ou a legitimidade, ou não, desse movimento. Eu já fui perguntada,
algumas vezes, sobre o que eu acho, e eu digo abertamente, sem problema nenhum, eu sou a
favor desse movimento, porque eu acho que a gente não está, efetivamente, pensando no que
esses homens representaram nos séculos XVI, XVII, XVIII, XVI, mas na história que se
decidiu contar a partir da vida, da biografia desses homens, e a gente está falando, basicamente,
efetivamente, de homens brancos que estiveram envolvidos, todos eles, nos processos de
escravização e de mortandade das populações não-brancas. Então, mais do que a história
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efetiva desses homens, o que está em jogo são sentidos de Brasil, sentidos de projetos de nação,
que insistem em referendar a história brasileira a partir desses personagens, a partir dessas
figuras.
Eu estava agora a pouco tempo, e foi até curioso porque o Danilo mencionou um depoimento
que o Januário Garcia deu para Comissão Nacional da Verdade em 2015, quando ele narrava
como havia sido o processo da Marcha Contra a Farsa da Abolição, uma marcha que aconteceu
no dia 11 de março de 1988, em comemoração aos cem anos da abolição, na verdade, uma
comemoração crítica, que tinha como objetivo principal questionar a falta de equidade de
condições para as populações negras no pós-abolição, mostrando que a assinatura da Lei Áurea
não significou uma inserção efetiva da população negra nessa sociedade de classes, pelo menos
não de uma forma equânime, de uma forma que de fato pudesse melhorar as condições de
vida dessa população. Nesse testemunho, ele fala justamente do momento em que ele e outras
lideranças do movimento negro estavam negociando, isso no Rio de Janeiro, com as lideranças
do Exército qual seria o percurso que seria feito, porque, em princípio, o percurso da
organização da marcha seria da Cinelândia até o monumento do Zumbi dos Palmares,
passando pelo panteão do nosso patrono do Exército brasileiro, Duque de Caxias. O coronel,
enfim, ele não lembra ao certo qual era a patente do representante do exército, disse que o
ideal seria que a marcha acontecesse da Candelária para Cinelândia, e não da Candelária para a
estátua do Zumbi, e a resposta que o Januário deu, junto com outras lideranças do movimento,
foi que a marcha caminharia até onde o racismo do Exército Brasileiro permitisse, e ela para,
efetivamente, na barricada que é feita em frente ao monumento de Duque de Caxias, que é um
homem cuja história é diretamente atravessada pelo processo de genocídio, de dizimação da
população negra e indígena do Brasil no século XIX.
Isso aconteceu no mesmo ano em que foi promulgada a nossa atual Constituição, uma
Constituição que é muito progressista por um lado, que engloba uma série de questões e
direitos civís do próprio debate racial, e talvez seja a Constituição mais progressista que a gente
tem, mas ao mesmo tempo uma Constituição que, de forma abrasileirada, foi discutida por um
grupo de parlamentares, majoritariamente, brancos, e de homens brancos, se eu não me
engano, eram 40 mulheres parlamentares e 10 parlamentares negros, em um número total de
557, então, a presença não chega nem a 10% no caso das mulheres e, enfim, eu não vou nem
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fazer a conta no caso da população negra, o que mostra que mesmo em uma perspectiva
progressista, e, ainda bem, porque a gente ainda tem que, hoje em 2021, lutar para que essa
Constituição seja preservada, essa Constituição esbarra nos limites que o racismo impõe na
história brasileira, que são limites, continuamente, escolhidos. O que eu acho fundamental
pontuar é que no Brasil essa questão vai ter uma importância maior para quem está pensando a
produção do saber histórico, e essa produção do saber histórico é muito poderosa, porque a
gente sabe que quem controla o passado, de certa forma, controla o presente, e projeta o
futuro, então o controle do passado não é só uma disputa de percepções e de interpretações,
são projetos de poder que estão em jogo, apostar em um passado que reverencia figuras
específicas, que reverencia narrativas específicas, e que silencia, sistematicamente, a participação
da população negra e da população indígena é referendar, é escolher a todo momento, um país
racista.
A única forma de mudar isso é se engajado em uma luta antirracista, uma luta que vale dizer, e
eu gosto muito de uma passagem do livro da Robin DiAngelo, que é uma estudiosa da luta
antirracista nos Estados Unidos, em que ela diz que o antirracismo não é um estado, não é algo
que você alcança, são momentos da vida em que você pode experimentar porque a estrutura é
racista, se a estrutura é racista, a única forma de você ser contra o racismo é você ter
consciência da estrutura e se movimentar contrariamente a ela, e não é sempre que você
consegue fazer isso, sobretudo a população branca, que é a população que experimenta os
privilégios criados pelo sistema de poder que é o racismo. Então fazer esse exercício, do ponto
de vista historiográfico, é, efetivamente, revisitar toda a história do Brasil, e é, de novo, uma
tarefa hercúlea, mas uma tarefa necessária que, em partes, professores como o Álvaro e como o
Flávio Gomes já fazem a muito tempo, mas uma história que, é curioso, muitas vezes entra
dentro da caixa da história negra, como se a história, a Revolta da Chibata, por exemplo, ou a
questão quilombola, ou o movimento da Imprensa Negra não fossem a história do Brasil.
Então, mesmo quando há um movimento de historiadores nesse sentido, muitas vezes é de
historiadores negros, e isso é muito importante neste momento que a gente está discutindo os
dez anos da lei de cotas no país. O que a lei de cotas traz além de um debate interessante sobre
o racismo? Porque a gente tem a polêmica até do racismo reverso quando vai falar da lei de
cotas, traz, a meu ver, o que é mais poderoso, pessoas que vão ter novos olhares sobre o
mundo, dentro da universidade.
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No caso específico do curso de História, nós vamos ter historiadores diferentes, que trazem
bagagens de lugares sociais, econômicos e políticos distintos, que até então estavam apartados
desse universo acadêmico, e que vão olhar para o mundo a partir desse lugar que eles têm, que
eles são. Isso vai trazer novas perguntas, que vão fazer com que a gente olhe para o passado de
outra maneira, então essa, é de fato, na minha percepção enquanto historiadora pensando,
especificamente, essa produção do saber historiográfico, a grande (...) Além de melhorar a
qualidade de vida desses jovens negros, assim espero, porque não basta apenas entrar na
universidade, tem que ter toda a condição para estar, permanecer e concluir a universidade, e
também conseguir um emprego na área, de preferência, e muitas vezes isso não acontece
dentro da política de cotas (...) Mas, efetivamente, pensar outros brasis e, mais do que isso,
implodir um pouco a ideia da história negra e da história indígena, como se essa história não
fosse a história brasileira também.
É muito comum, a gente ver dentro de um recorte político, que é, ainda hoje, a principal forma
de organizar o currículo brasileiro, sobretudo aquele que é ensinado nas escolas (...) Então, são
os marcos políticos que dão o tom e a referência dos conteúdos que são trabalhados, como se
fizessem um parêntese para falar da história negra e um parêntese para falar da história
indígena, como se isso não fosse história brasileira e como se fosse possível falar da história
brasileira sem falar desses personagens que, como a gente bem sabe, foram sistematicamente
silenciados. Para não me alongar tanto, porque esse é um exercício que dá para repensar a
história brasileira inteira, na verdade, eu acho que essa é a nossa tarefa aqui para repensar o
Brasil e projetar um país no qual a diversidade esteja não só nas universidades, mas também no
Congresso Nacional, nas grandes empresas, nos cargos altos das grandes empresas, mas
também nas escolhas de temas de monografia dos alunos de história, por exemplo, e não tem
como fugir muito, a gente está nessa semana pátria do 7 de setembro, a gente está a um ano da
comemoração dos duzentos anos da independência do Brasil, e a gente continua aprendendo,
e muitas vezes ensinando, e aqui eu estou falando até para além do universo acadêmico,
porque na academia já há uma crítica maior a isso, uma história brasileira cuja a soberania
nacional, começa e termina no 7 de setembro.
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Eu lembro muito dos meus alunos, quando eu dava aula no Ensino Fundamental, pedindo
para eu pular a História do Brasil porque eles queriam chegar em episódios da história da
humanidade que tivessem guerras, eles queriam isso, disputa, guerra, e eu fiquei pensando
“gente! como a gente ensina errado a história do nosso país”, porque é uma história que é
ensinada como se fosse profundamente pacífica, cordata, harmoniosa em todos os aspectos,
sobretudo o racial. Então, eu acho que seria interessante a gente aproveitar essa grande
efeméride que acontecerá ano que vem para repensar o que foi o 7 de setembro, repensar
quando começa 1822 e quando ele termina, aonde, quais são os sujeitos que estiveram
efetivamente envolvidos nesse processo, na sua pluralidade, porque obviamente você tem
parlamentares, você tem o imperador, mas você também tem os escravizados que entraram em
uma luta, que em tese, talvez não lhes trouxesse nenhum tipo de benefício. Você tem, inclusive,
mulheres negras que participaram da guerra, que coordenaram ações militares, essas histórias
não chegam nas escolas, porque foi feito para que elas não chegassem.
A historiografia brasileira, e esse é um hiato que a gente precisa superar, o que é ensinado nas
escolas e o que a gente pesquisa nas universidades, a gente ainda mantém um epistemicídio
sistemático, e eu posso quase colocar a minha mão no fogo que um aluno do Ensino
Fundamental e do Ensino Médio, dificilmente, gosta da história brasileira, porque, justamente,
o conflito, que é estrutural da nossa experiência, e o Brasil é um país profundamente violento,
é retirado, justamente,
para que o racismo continue operando dessa forma silenciosa e
contínua em que ele opera a mais de 520 anos, desde que começou essa coisa, que, a partir de
1822, ficou conhecida como Brasil, de forma soberana e nacional. A minha fala é um pouco
nesse sentido de chamar os historiadores e os futuros historiadores, os estudantes de história e
nós professores, a revisitarmos nossa história a partir dessa necessidade, ao meu ver
fundamental, de combater esse epistemicídio, de combater esse silenciamento sistemático das
populações não-brancas de todo o processo histórico, e, inclusive, de convidar nossos colegas
que mantém o olhar que por um lado é progressista, mas que continua compactuando com
esse silenciamento, como se fosse possível fazer um apêndice quando eu estou estudando
Ditadura Militar para falar sobre a questão racial, como se fosse possível fazer um apêndice
quando eu estou estudando Vargas para falar sobre a Frente Negra, é fundamental e, na
verdade, é um convite metodológico sobre a produção de como fazer história e desmontar a
estrutura racista que nos ordena.
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Era um pouco isso e, enfim, na verdade, eu fiquei até com um pouco de dúvida do que
escolher, porque eu poderia falar de qualquer momento da História do Brasil, já que essa é a
nossa matriz, a gente tem uma matriz profundamente racista, e acho que a gente está nesse
movimento, a gente que está aqui hoje, sobretudo, nessa mesa, de desmontar essa matriz e de
tecer outra estrutura, mas para isso é fundamental revisitar o nosso passado. Então, eu vou
terminar da mesma forma que eu comecei, está sendo muito difícil ser historiador ou
historiadora nesse momento da história do país, mas nunca foi tão necessário que nós
tenhamos uma ação crítica, contundente, e antirracista na produção do saber historiográfico.
Era isso, obrigada!
D. M: Ynaê, muito, muito obrigado pela sua fala! Várias questões aqui na cabeça, o chat já está
se movimentando. E aí, rapidamente, eu vou passar a palavra para o professor Álvaro.
Professor Álvaro, muito obrigado por aceitar o convite, boa noite! É contigo!
Á. N.: Boa noite! Muito boa noite! Obrigada pelo convite! É um prazer estar aqui com esse
público, alguns amigos e amigas estão aqui no chat, já conversamos um pouquinho com eles e
elas, e é sempre muito importante isso. Também queria falar do meu prazer e da relevância, e
agradecer pelo convite que é fundamental (...) e da relevância dessa mesa, temos aqui dois
historiadores negros, temos aqui uma historiadora negra, nesse país extremamente racista, onde
era algo incomum, e, até hoje, é uma das situações pouco comuns na universidade, e na
historigrafia melhor dizendo. Isso não é comum, e agora está se tornando um pouco mais
comum porque nós temos grandes historiadoras e grandes historiadores já trabalhando no país
como um todo, mas até vinte anos atrás, trinta anos atrás, uma mesa como essa era
impraticável, era inviável.
Eu lembro que quando eu estava na UNICAMP fazendo o meu mestrado, quando eu entrei
estava eu e o Hobson enquanto negros naquela turma, e o Flávio estava iniciando ou
terminando o doutorado, se não me falha a memória. Então, vejam que hoje ter uma mesa
como essa, com um tema como esse, uma mesa com essa denominação, com esse título, é algo
que para mim, que entrei na universidade em 1988 como estudante, é de uma alegria, de uma
emoção incontrolável, porque isso não era possível. Eu passei a minha graduação quase toda
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sem ouvir a palavra “racismo”, tanto que uma das coisas que mais me chamou atenção quando
eu fui para UNICAMP, é que havia uma linha de pesquisa sobre escravidão e racismo,
inclusive, o Flávio foi parte dessa linha, porque não havia esse tipo de instrução.
Essa mesa aqui para quem está chegando na Universidade, para quem já esteve lá há um
tempinho não era assim, não existia isso. Então ter uma mesa como essa (..) É importante
sublinhar a particularidade dela e a total ligação com o título “Epistemicídio e o silenciamento
do passado: combatendo o racismo historiográfico”. E aí, eu venho justamente com essa ideia,
“Racismo historiográfico existe?” Eu acho que toda vez que a gente analisa as pessoas em um
tempo-espaço, em um país de maioria negra como é o nosso, e esses historiadores e
historiadoras não observam a ausência de outras pessoas, as desigualdades entre brancos e
negros, ou as desigualdades de gênero e sexuais, toda vez que eles tiverem estudando o
passado, não pararem para observar isso em nenhum momento, quantas mulheres, se tem
mulheres, se tem negros, se tem indígenas, eu penso que é a hora desses historiadores e
historiadoras perguntarem se a razão dessas questões é lhe faltarem no início da pesquisa o
“por que”. Sabe, naquela hora que a gente se pergunta “Por que eu não pensei nisso?” Eu vou
dar algumas dicas, será que foi efeito do racismo estrutural que está dentro de ti? Será que foi
fruto do racismo que te engole o tempo todo? O que aconteceu? Você está a fim de dialogar
consigo mesmo para saber de onde veio isso? Por que você ficou ausente nesse debate?
Eu acho que essa é uma questão importante para a gente começar a dialogar, “Como não vi
isso?”, “Como esqueci?” Leva isso a sério! Leva isso muito a sério! Não durma não que tem
alguma coisa muita errada aí, ou, possivelmente, o seu orientador ou orientadora nunca te abriu
os olhos para isso, o programa de Pós-graduação que você faz parte não toca nesse assunto, não
cobra e não acha que isso seja relevante, ou até pode ter “cortado as suas asas” quando você
quis discutir o assunto. O que aconteceu nessa história? Leva isso a sério! Isso é importante
porque a cobrança já está começando para quem deixou de fazer essa cobrança, ela já está aí.
Mas vamos mais a frente, vamos tocar mais o nosso barquinho! Então, eu acho que nós
estamos atravessando um período no qual a identidade humana ganhou mais destaque, e os
processos identitários tem cobrado maior participação na historiografia. Essa cobrança não é
recente, quando as coisas acontecem é porque já tem muita gente lutando há tempos.
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Então veja, muitos historiadores estavam cobrando reflexões da historiografia acerca da
condição feminina no Brasil na década de 1980, e aí começaram a sair alguns trabalhos como o
da Rachel Soihet, os trabalhos da Martha Abreu, e de outras historiadoras que já estavam
questionando como era a condição feminina na história, na década de 1980. Isso já estava
presente antes, Beatriz Nascimento, uma mulher negra, já estava discutindo essas questões, na
historiografia, essas questões já estão sendo cobradas a tempo. No que tange a história dos
negros e da África, intelectuais do jornal Quilombo, na década de 1950, já estavam
questionando, o questionamento já era uma realidade para aqueles indivíduos que estavam ali
na militância, como Abdias Nascimento, e outros, basta você ler no jornal as reivindicações que
lá estavam, inclusive, o que hoje é conhecido como cotas, e cotas em todas as áreas. Então,
essas questões identitárias não são recentes, e a historiografia agora, eu acho, está começando a
se tocar, porque veja, quando as mulheres já estavam na Universidade, na década de 1980
discutindo outras questões, raros e raras eram estudantes negros e negras na graduação, e muito
menos na pós-graduação, para realizar qualquer tipo de mudança.
A história do negro não ultrapassava a escravidão, o negro no século XX era matéria de
antropólogos e sociólogos, não tinham tantos trabalhos que se avolumassem para discutir o
assunto sobre o que aconteceu com os negros no pós-abolição ou, enfim, a vida dos negros no
século XX, isso ainda estava muito ligado aos trabalhos antropológicos e sociológicos. Nós
ficamos muito tempo fora, e a pergunta é “Por que a historiografia não se debruçou sobre o
assunto?” As coisas vão começar a explodir um pouco na década de 1980, vai se avolumar na
década de 1990, e por aí vai. A política de cotas nas universidades e a resistência de tantos e
tantas docentes com a proposta evidenciava um incômodo com a entrada de pessoas vistas
como não merecedoras de lá estar por conta de não disputarem em “igualdade” com os demais
candidatos, ou seja, não precisa de cotas, todo mundo deve ganhar a mesma nota, aqueles
pensamentos já bastante criticados, mas que teimavam de se utilizar para questionar a política
de cotas. Isso também se repetiu na política de cotas para Pós-graduação e, até hoje, inclusive,
quando a gente tenta propor bolsas para cotistas, há muitos questionamentos na pós-graduação.
Se as mulheres já estavam na universidade na década de 1930, eram raros os negros. Eu
sempre falo que hoje, olhando as universidades, aqui na Zona Metropolitana do Rio de
Janeiro, onde temos treze programas de graduação e Pós-graduação de História, existem,
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aproximadamente, duzentos e poucos professores nos programas de Pós-graduação de
História, UFRJ, UFF, UFRRJ, UERJ, PUC, FGV, e tem, aproximadamente, treze professores
negros e negras neles. Em uma cidade da Zona Metropolitana, na qual a maioria é de pessoas
negras, esse número é um absurdo, eu acho vergonhoso! Porque está indicando que o negócio
é muito esquisito, muito esquisito, no mínimo esquisito! Então, a política de cotas foi de
extrema importância para quebrar barreiras dentro da universidade, e, até hoje, essa barreira
está montada, como eu falei ainda pouco, na questão da pós-graduação.
Eu fico pensando que quem está nessas barreiras são professores e professoras brancas e
brancos, não são todos, claro! Muitos professores brancos e brancas são extremamente ligados
à política de cotas, militam, lutam e bravejam por uma política de cotas ampla. Muitas dessas
pessoas, inclusive, mudaram, desde o início dos anos 2000 até hoje em dia, falam “Caramba!”,
inclusive, essas pessoas deixaram isso documentado, porque está na mídia, então “Não tem
jeito de mudar?!”, quer dizer, houve uma mudança de lado de um grupo que era
extremamente contra as cotas e hoje é a favor das cotas. Mas a minha questão é, “Como
poderão essas pessoas que são contra as cotas e não encaram a questão racial, criar as suas
questões historiográficas, a partir das suas pesquisas, e incluir leituras que incluam pessoas
negras na história após o fim da escravidão?” Essa é uma questão que tem haver diretamente
com a nossa mesa, porque, inclusive, essas pessoas orientam trabalhos de mestrado e
doutorado, e cobram ou não seus orientandos, doutorandos e mestrandos e mestrandas.
Entendam que a entrada de negros e negras nas universidades cursa um embate contra as
formas de opressão racial vigentes em vários centros de poder, evidenciavam o privilégio,
prioritariamente uma elite branca e poderosa, em várias áreas, inclusive nas universidades,
inclusive na historiografia, muitas dessas pessoas passaram a rever as suas condições e a
participar do processo de mudança, isso tem que ser colocado, e que bom que isso aconteceu,
porque antes delas se localizarem nessa posição, muitas dessas pessoas, inclusive as que não
mudaram de posição, se perguntaram por que a história dos negros parecia afastada delas,
como se a história do negro não fizesse parte delas, e não fizesse parte da história que elas
queriam escrever. Mas não se pode negar que essas pessoas brancas, que fazem parte das elites
das universidades, são partes envolvidas no poder e na manutenção dos privilégios que o
racismo traz. Então, as questões historiográficas devem partir do que nos incomoda no
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presente, no meu ponto de vista, eu acho que a gente tem que começar a criar outras formas de
saber como perguntar as coisas.
Se, uma vez, os franceses, e os ingleses trouxeram novas questões e novos problemas para
historiografia, eu acho que está na hora de olharmos para os nossos umbigos e perguntarmos
quais questões, novas questões, podemos trazer a partir de um país no qual as diferenças raciais
são fundamentais na sociedade brasileira até os dias atuais. Agora, repito, os europeus,
franceses, enfim, criaram uma nova ideia, novas perguntas, novas questões, e novas fontes que
todo mundo leu na sua graduação, tá na hora da gente parar com esse eurocentrismo e
observarmos, olharmos para os nossos próprios umbigos, e perguntarmos, a partir de um país
no qual as diferenças raciais são fundamentais na sociedade até os dias atuais, “como é que a
gente faz esses perguntas? “Como é que a gente analisa esse país?” “Como se criam novos
problemas?”
Isso porque eu estou deixando de falar da população indígena que está sendo massacrada no
momento, e o marco temporal que estão querendo impor é, justamente, para estraçalhar parte
dessa população, a gente não pode esquecer. Então, eu fico pensando, tem vários pontos que a
gente pode (..) O caminho que eu indico é que ao contrário de nós (...) quando forem trabalhar
com o seu trabalho de conclusão de curso, seu mestrado, seu doutorado, ao contrário de mirar
no trabalho, nos objetivos do seu orientador, ou orientadora, é você partir de questões que te
incomodam no presente, assim como outros historiadores já, sempre, pensaram nisso. Nós
temos que ter esse diálogo com o presente. Eu fico pensando na história da violência quando e
a partir de pessoas negras, imagine os movimentos de revolta que existiram, porém foram
diluídos, morreram trinta e cinco mil pessoas no Pará, no que se chama Revolta Regencial.
Trinta mil pessoas! Na metade do século XIX, isso não é uma Revolta Regencial, por favor!
Uma parte imensa, incrível, da população negra e índigena morreu. Revolta regencial?!
Sabe… assim… essas coisas… trinta mil pessoas meu povo! (...) Isso não é uma revoltinha, isso é
uma guerra civil, uma guerra incrível nesse processo de construção, de formação a fórceps (...)
Nesse processo incrível de construção desse território hoje chamado Brasil, isso não foi à toa.
Da mesma forma, eu acho que outras questões poderiam ser usadas, as transformações das
tecnologias desenvolvidas e trazidas para o Brasil, naquilo que se chamou Brasil (...) Ou
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trazidas por escravizados africanos, que participaram imensamente da produção aqui no Brasil.
Quem é que cultivava arroz? Quem é que trouxe arroz para cá? Como é que se (...) Se já tem
pesquisa em relação a extração aurífera, e já tem pesquisas mostrando essa tecnologia que esses
indivíduos traziam da região da África setentrional (...) Enfim… assim.... como (...)
(barulho de trem)
Á. N. Caramba! Tá forte aí?!
Á. N.: Tá dando para ouvir, gente?
Á. N.: Tá dando para ouvir?
D. M.: Apareceu um trem aqui.
Á. N.: Ah, é?! (risos)
D. M.: Não sei se é alguma carreata.
D. M.: Ô, Álvaro?
Á. N.: Tô terminando
D. M.: Tá bom, tá bom.
Á. N.: Então, assim, eu acho que a gente tem que partir dessas questões que incomodam a
gente, mas a historiografia brasileira, muitas vezes, não gosta de partir, porque muitas vezes olha
e fala, “olha, isso aí é ativismo!”, isso aí (...) Aí fala que é ativismo, que não pode se tornar uma
questão objetiva, e esquecem-se basicamente que os historiadores que fundaram os Annales,
inclusive, partiram dessa ideia. Então, eu acho que esse tipo de provocação que tem de
mudança, ela é fundamental em termos teóricos, porque vai transformar os termos teóricos e
metodológicos, essa historiografia que tanto necessitamos sobre a história do negro no Brasil, e
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esse racismo historiográfico que se está pondo, nós precisamos ultrapassar isso. Eu lembro-me
de um artigo que escrevi em 2016, e publiquei em 2016, pela revista Estudos Históricos, e não
falei nada de muito novo não, o Flávio já tinha feito isso com o Antonio Luigi Negro, já tinha
feito isso com, não me recordo se foi antes ou depois, o Petrôneo Domingues, a Silvia Lara
(...) Enfim, alguns trabalhos já vinham falando de todo esse questionamento, de como os negros
não apareciam, ou foram retirados da história,
de como não foram encarados pela
historiografia. Então, a minha fala é no sentido de propor algo que tente modificar essa
realidade, porque nós temos muito trabalho para fazer, e é fundamental aproveitarmos esse
momento, no qual vemos tantas historiadoras, tantos historiadores negros e negras participando
na universidade. Obrigado, obrigado! Desculpa aí se me alonguei demais.
D. M.: Que isso, Álvaro! A gente que agradece a contribuição. Vou aproveitar o intervalinho e
falar pro pessoal que vocês podem deixar perguntas e comentários aqui no chat, que depois da
fala do professor Flávio, a gente abre para as perguntas Ok?! Professor Flávio, boa noite!
Obrigado por aceitar o convite! É contigo!
F. G.: Bom, muito boa noite! Muito obrigado, Danilo, pelo convite generoso! É uma grande
honra, saldar Ynaê, o professor Álvaro, é uma alegria enorme estar presente, agora que todos
somos (...) nos encontramos nesta situação, ou seja, remota, então é uma felicidade estar aqui.
Para mim, é uma felicidade ainda maior porque eu sei que o público aí não é apenas o público
da Universidade Federal de Alagoas, é um público bastante amplo. Enfim, ainda mais esse
material que fica disponível e muitas vezes alguém vai assistir durante o dia - - vai dizer boa
noite e o cara vai assistir durante o dia - -, enfim (...) Porque a minha mãe é Alagoana, a minha
mãe é Alagoana, exatamente da região que você fez o seu trabalho, professor Danilo - - eu tive a
oportunidade de ler o seu trabalho, que você generosamente me enviou - - (...) Então a minha
mãe é alagoana, a minha família é alagoana e paraibana , e a minha mãe - - coincidentemente,
eu ainda tenho a minha mãe viva - - a minha mãe tem noventa e três anos noventa e quatro, ela
nasceu em - - e ela sempre fala isso - - ela nasceu em vinte e oito, embora tenha sido registrada
em vinte e sete, exatamente nessa região aí do Quilombo dos Palmares, dos papa-méis, ela era
uma moradora. Então o convite, embora eu já tivesse uma oportunidade em outras situações de
ser convidado, também, generosamente, pelo professor Gian Carlo, para estar presente em
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alguns eventos presenciais, por uma série de fatores eu não pude comparecer, e eu fico muito
feliz de estar aqui, falando para esse evento organizado pela Universidade Federal de Alagoas.
E aí a gente faz uma brincadeira né “Uma das poucas vantagens que o historiador tem quando
envelhece, é que nem tudo ele precisa ler, algumas coisas ele só lembra”, a gente não precisa
ler, e eu fico imaginando agora os jovens historiadores, Ynaê, por exemplo, se tiver que dar
uma aula sobre Diretas Já! Ela vai ter que estudar Diretas Já! Eu e o Álvaro não precisamos,
diretamente, estudar sobre Diretas Já! Embora a gente tenha que estudar, a gente pode lembrar
também, né, Álvaro?! A gente pode lembrar também o que é que a gente estava fazendo em
oitenta e quatro, eu, por exemplo, estava no quartel, enfim. Mas por que eu falei isso? Eu
estava lembrando de duas situações, primeiro, a minha última, e eu acho que foi a minha única
ida à universidade, não à Alagoas, à Maceió, mas à Universidade Federal de Alagoas, eu não
estou me lembrando agora, exatamente, da data,
mas foi quando, por exemplo, teve o
seminário sobre quilombos e eu - - foi muito legal - - (...) Foi a professora Clara Suassuna, uma
das organizadoras, e eu tive a oportunidade de estar ali com o Décio Freitas, o falecido Décio
Freitas, o grande historiador de Palmares, que acabou, inclusive, sendo convidado pela
Universidade Federal de Alagoas para organizar a documentação de Palmares nos anos oitenta,
a gente sabe das histórias aí que ele brigou com quase todo mundo, mas enfim, esse material
saiu, publicado, e, na ocasião, eu me lembro da mesa também com Rafael Sanzio, um
historiador muito importante, um geógrafo muito importante que tem todo um trabalho de
cartografia.
Eu estava, na verdade, fazendo essas anotações aqui, eu fiz anotações porque eu vou, de alguma
maneira, comentar. Obviamente, a gente tá aqui em um grande diálogo depois dessa
apresentação da Ynaê e do Álvaro, me chamando atenção, a própria Ynaê disse, várias
maneiras de chegar até uma coisa interessante que a gente podia propor aqui (...) É que talvez
uma das discussões muito legais, é que talvez a gente não precisasse estar falando de escravidão
e pós-abolição quando a gente fala de racismo historiográfico, talvez isso fosse uma grande coisa
- - se a gente tivesse tempo eu ia falar para Ynâe, que ia falar para o Álvaro, que ia falar para
mim “Vamos fazer uma combinação?” “Vamos!” “Não vamos falar de racismo e ecravidão,” - Mas como? Se a Ynaê é grande especialista de Escravidão, o Álvaro é grande especialista de
Escravidão e Pós-emancipação, eu também conheço um pouco de escravidão, por que aí virou
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uma espécie de o quê? De um único caminho, eu diria até que, às vezes, muitas vezes, das
portas dos fundos de entrada dessa presença negra no debate sobre epistemicídio, sobre
racismo historiográfico.
Então a gente está em um grande debate aqui e eu acabei fazendo essas anotações, que me
lembram dessa presença na Universidade Federal (...) Eu acho que foi a única vez que eu estive
(...) na Universidade Federal de Alagoas, propriamente dita. (...) Mas eu me lembrei de uma
outra presença minha na Universidade Federal de Alagoas, muito importante para a minha
vida, muito importante - - por isso que eu fiz essa brincadeira que o historiador, nem tudo ele
precisa ler, muita coisa a gente lembra -- foi exatamente em oitenta e seis, em oitenta e seis eu
fui à Serra da Barriga. Naquela época, havia um movimento, e eu quero chamar atenção
quando a gente fala da historiografia, dos papéis dos movimentos sociais. Na verdade, a pauta
dessa historiografia, que está sendo feita - - e que eu já, não sou pioneiro, e nem o Álvaro, a
gente já pega esse bastão - - digamos, da primeira metade de mil novecentos e oitenta, é uma
pauta dos movimentos sociais. Lamento informar a vocês que o racismo e a luta contra o
racismo é o fundamento explicador dessa pauta historiográfica, paradoxalmente, não que nós
gostaríamos que o racismo continuasse, mas se não fosse a luta antirracista, por inúmeras
gerações, nós não teríamos essa pauta historiográfica. Hoje, nós temos uma pauta
historiográfica, uma agenda historiográfica que nós poderíamos tematizar em vários sentidos, e
ela é fundamentalmente produzida por essa luta antirracista, e a conexão com essa luta
antirracista, esteve no interior da Universidade.
Então em 1986, na década de oitenta, tinha um movimento muito interessante, um movimento
político que era “Romaria Serra da Barriga”, essas romarias começam por volta de 1983, ou
1984, parece que em 1984 foi a primeira dessas romarias, e aí quando a gente fala disso aqui, e
fala de Alagoas, não podemos esquecer de um personagem fantástico, não sei se ele está vendo
a gente aqui, mas é um patrimônio também dessa luta que é o Zezito de Araújo, professor
aposentado - - não confundir com Joelzito de Araújo, que é um intelectual, cineasta - - Zezito de
Araújo, professor da Universidade Federal de Alagoas - - e tinha esses eventos que eram as
subidas na Serra da Barriga, e os ônibus partiam de Salvador - - Em 1986, eu estava no meu
primeiro ano de graduação - - eu acabei entrando na universidade, acho que talvez semelhante,
eu me lembro de ter conversado com o Álvaro, que por uma série de fatores a gente acabou
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Anais do Encontro Nacional de História da UFAL, Nº 12, Set/2021 – ISSN 2176-284X
entrando um pouco mais velho na universidade, eu mesmo tinha servido ao quartel, tinha
ficado um tempo - - (..) A gente (...) Hoje você entrar na universidade com vinte e três anos é
entrar velho, porque nossos alunos hoje, e muitos daqui que estão assistindo, estão entrando
com dezessete, com dezoito. Eu mesmo fazia uma brincadeira com os meus alunos, a pouco
tempo atrás, que todos nós somos personagens do século passado, comecei a fazer essa
brincadeira quando dava aula a partir de 2001, agora não posso fazer essa brincadeira porque
tem um aluno de dezoito anos que pode dizer “Eu sou desse século professor”.
Em noventa e seis eu estava entrando na graduação, e aí eu fui exatamente até Salvador de
ônibus e subi a Serra da Barriga pela primeira vez, nesse movimento de jovem subindo - - talvez
eu não fosse tão jovem assim - - subindo a serra da Barriga. Foi o maior barato, acabei, tirando
uma - - maior barato - - eu entrei em uma fila para tirar uma foto e tinha um sujeito, eu sem
saber diretamente quem era o sujeito, sem saber a importância desse sujeito, era o Stokely
Carmichael, grande líder do Partido dos Panteras Negras, que subiu a Serra da Barriga também
- - era o maior barato, eram os ônibus dali, os ônibus do Olodum, eu fui em um outro - - (...)
E eu subi a Serra da Barriga, foi muito importante, depois eu subi (...) só subi depois desse
evento que eu falei para vocês aí, que foi, eu vou até lembrar mais ou menos, acho que foi em
2002 que eu, a última vez que eu estive em Maceió, e a única vez que eu estive em Maceió pela
Universidade Federal de Alagoas.
Então é muito interessante que eu, de alguma maneira, sou fruto desse movimento social, dessa
discussão, hoje a gente fala muito pouco em História Intelectual no Brasil, que é mais ou
menos conectar determinados autores, conectar a formação de determinados campos de
estudo, como eles estão surgindo, quem está trazendo as ideias. É muito legal isso, a gente hoje
comenta quem está trazendo Thompson, “A formação da classe operária” é publicado bem
depois e é, primeiro, o livro mais importante de Thompson da década de sessenta, mais do que
o “Miséria da Teoria”, que é publicado em setenta e oito no Brasil, “Senhores e caçadores” tá
entrando pela antropologia. Esse movimento de entender esses autores, essas influências e as
conexões da agenda, é isso que eu estou chamando de história intelectual. Às vezes, a gente dá
muita pouca importância a isso, quer dizer, tem uma galera fazendo uma coisa muito legal, que
é a coisa do Ensino de História, a gente fica perguntando do que se falava de história no Brasil
nos anos oitenta, o que se falava, nos anos setenta nas universidades.
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Então, eu entrei na universidade em oitenta e seis. Quais eram os temas? Isso não é difícil de
saber por que nós teríamos o quê? Nós teríamos as ementas, as pautas, teríamos até as
possibilidades de entrevistar velhos professores aposentados, para que eles pudessem falar
exatamente o tipo de tema, conteúdo, o que aparece. Eu me lembro de uma entrevista do João
Reis, em um livro chamado “Conversas de historiadores” João Reis, sem sombra de dúvidas,
um dos mais importantes historiadores brasileiros (...) Nesse livro “Conversas de historiadores”
tem um texto que foi feito pela Maria Burke, que é um texto que, de alguma maneira,
reproduzia um debate internacional entrevistando, na ocasião, um dos mais importantes
historiadores, e aí perguntaram para o João Reis, João Reis que fez um trabalho fundamental
para nós historiadores da Escravidão e Pós-emancipação, um trabalho de referência, de
inflexão (...) Perguntaram para ele “olha, você estudou na UCSAL em Salvador, e você acabou
indo estudar nos Estados Unidos, por que você não veio para USP?” - - está na entrevista Ynaê
-- “Por que você não veio para USP”? e o João Reis, o nosso grande João Reis, amigo de todos
nós, falou “Bom, naquela época, a USP era para quem era da USP” - - João Reis respondeu
isso, está no texto - - “Naquela época, a USP era para quem era da USP”, o que significa pensar
isso? o que era propor alguma agenda temática nos anos oitenta?, nos anos setenta? e ainda
fazer uma pós-graduação? É isso que a gente está falando, então o tema do Quilombo, eu diria,
foi um tema projetado pelos movimentos sociais.
Hoje, o historiador, o jovem historiador, pode se preocupar com o Pós-emancipação, com
Quilombo, porque ali a gente tem uma vasta historiografia consolidada, fundamentalmente,
também por intelectuais negros, professores negros. Mas até os anos sessenta, os anos setenta,
início dos anos oitenta, o Quilombo, por exemplo, que era um tema - - eu vou ter que falar
sobre o pouquinho do que eu sei porque eu acabei só estudando isso - - O tema do quilombo
era um tema militante, era um tema do silêncio historiográfico. Eu cheguei a fazer algumas
brincadeiras, mesmo nos anos oitenta, com a vinculação com a Constituinte e a
redemocratização, que nós também fomos invisibilizados como negros na redemocratização,
mesmo ali, apareciam temas que, por exemplo, nunca houve tantos trabalhos sobre a Alforria
no Brasil. Nós fizemos uma contabilização de números de títulos, e eu não estou falando que
isso não é um tema importante (...) Sobre Alforria, e irmandade então é um negócio
impressionante, chegou um momento que (...) tem uma piada internacional que diz que teve
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tanto trabalho sobre retornar, só que os africanos não voltam, essa é uma piada, não é minha
não, Tá, Danilo?! É uma piada internacional que tinha um historiador para cada retorno, de
tanto trabalho que tinha, e a irmandade, parecia que o africano chegava aqui e o cara colocava,
“Olha, tá aqui um cartãozinho meu, se você precisar de um irmão, tem uma na esquina. Ou
seja, o tema das revoltas, o tema dos quilombos (...)
Então o Brasil recebeu 46% dos africanos que vem para América, significando em torno de 4,
8, 5 milhões de africanos, nós tivemos uma (orc logo) das Américas a ser visto, e uma
quantidade de Quilombos, praticamente 350, era um tema do que, era um tema do silêncio,
era um tema em que sequer intelectuais, e aí é importante (...) eu quero exatamente, quer
dizer, eu quero, (..) eu não posso repetir (...) eu não posso não, eu não devo repetir o que
brilhantemente a Ynaê e o Álvaro trouxeram, porque é fundamental nessa questão do racismo
historiográfico quando a gente falar de historiografia, a gente também identificar rostos,
identificar personagens, falar desses intelectuais. “A historiografia para cá, a historiografia para
lá”, Aquela historiografia (...) Quem são? Quem é essa historiografia? Já foi falado né, a gente
fez essa brincadeira lá com a USP (..) Quem são os historiadores?
Quais eram as
preocupações?
Tem um trabalho sobre mil novecentos e trinta e dois que é “A chamada revolução”, esses
nomes são o maior barato né, a gente, nós que somos professores, a gente já gasta um bom
tempo e um bom tempo interessante em sala de aula brincando com esses temas “Revolução
de trinta”, “Intentona comunista”, “Revolução Constitucionalista”, isso não é um nome, são
apelidos, muito, muito posteriores a esses processos e experiências. Mas a chamada Revolução
Constitucionalista de São Paulo, em mil novecentos e trinta e dois, segundo o livro, que já tem
bastante tempo, esse livro deve ter uns quinze anos (...)
Um livro do Jeziel de Paula,
certamente, o Álvaro lembra desse colega lá de Campinas, ele mostra, e acho que isso ainda
vale, que a Revolução Constitucionalista de São Paulo, de mil novecentos e trinta e dois, talvez
seja um dos temas que têm maior quantidade de títulos na historiografia brasileira, ele
contabilizava à quinze anos atrás, cerca de duzentos títulos, entre livros e artigos. E a Revolução
Constitucionalista (...) Ano que vem terá noventa anos dela, vamos ter que esperar onze anos
para ela ter cem anos.
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Eu não me lembro agora, começou a aparecer, sei lá, nós não temos meia dúzia de teses e
dissertações sobre o Quilombo de Palmares. Tá legal, eu vou jogar assim, eu vou ser generoso,
porque nem sempre a gente consegue acompanhar tudo, talvez a gente tenha uma dúzia de
trabalhos, teses, e dissertações voltado para o Quilombo de Palmares. Olha só, um movimento
que, inclusive, foi expulso do grande panteão nativista, que uma certa historiografia construiu.
Revolta de Beckman é nativista, Revolta dos Mascates em Pernambuco é nativista, as revoltas
que tem em Minas Gerais, na verdade, são revoltas fiscais, eu até brinco com os meus alunos
“Revolta fiscal, galera. Alguém tá pagando vinte e sete por cento de imposto de renda, quem vai
fazer uma revolta fiscal é essa galera que está aí apoiando o presidente atual”, que o cara que tá
(...) revolta fiscal (...) e isso tudo foi colocado em um Panteon dos chamados Movimentos da
direita, Palmares, foi visto como o quê? Como uma coisa dos escravos.
A revolta dos Malês Africanos, ela entra pela primeira vez dentro do chamado período
regencial, no livro do José Murilo e, mesmo assim, o José Murilo destaca assim “Olha só, uma
revolta de escravos”. Hoje, a gente sabe que tem pelo menos mais quatro, ou cinco revoltas que
acontecem, exatamente, nesse período regencial, que a gente vai até, inclusive (...) Que a
historiografia coloca o período regencial, e, inclusive, vai indo a partir dele, porque em
quarenta e dois a Revolução liberal, não é mais período regencial, mas a historiografia coloca lá,
e a gente tem que aprender, pelo menos no vestibular, associar que a Farroupilha é no Sul, que
tem duas, e que não é para a não confundir Eu tenho um filho jovem, isso ainda cai como
pegadinha, a Cabanada no Pará, quer dizer, olha o ensino de história, o cara quer fazer uma
pegadinha com Cabanada no Pará, na verdade a Cabanada é em Pernambuco. O Pará é
Cabanagem, e o professor ainda coloca isso. A minha vontade (..) Um dia eu vi isso na prova
do meu filho e falei “pô, você tá de brincadeira colocar” (...) Quer dizer, uma pegadinha acaba
(...)
Ver, como é que é?! Ver a frase errada (...) Quer dizer a Cabanada (...) Olha a
preocupação do sujeito de colocar uma pegadinha em um movimento social fantástico, de que
(...) de camponeses negros. Minha mãe mesmo conta muito história de que ela viveu naquela
região dos chamados negros do mato que ela ainda viu jovem, quer dizer, daquela população
ali.
Então assim, eu acho que é muito importante esse movimento que a gente está falando de
epistemicídio, eu quando vi esse título, eu fiquei meio, eu fiquei meio cabreiro, né?! Porque
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vocês sabem que essa expressão ganhou muita força no debate intelectual, a partir de uma
expressão do Boaventura Santos, que, desculpa aí vocês, é chato para caramba!, mas enfim,
todo mundo usa e tal, é aquela coisa. Mas ao mesmo tempo, epistemicídio e silêncio do
passado (...) Me lembrei agora do Trouillot, tem um livro importantíssimo, agora, traduzido
para nós, que é o livro “Silenciando o passado”, do Michel Trouillot, em que ele mostra
exatamente essa dimensão do evento de não evento. Você exatamente do que (...) Exatamente
diante do que você se expressa, sistematiza como evento, como algo importante, tem o papel
também de silêncio sobre outras coisas, na medida em que você foca aquilo. E aí, eu vejo uma
reflexão para nós importante, primeiro, por que a gente tem que incorporar os negros ou a
população negra? Eu concordo exatamente com o que a Ynaê falou, embora a gente tenha que
dialogar com isso em vários aspectos e espaços, não se tem historiador ou historiadora branco.
Eu não conheço nenhum historiador ou historiadora branco, mas nós somos vários
historiadores negros, e a gente tem que ter orgulho disso, porque do ponto de vista político a
gente usa isso. Mas o racismo é tão perverso que nos credencia a ser historiadores negros com
uma importância, e ao mesmo tempo, nós não nos conhecemos. Ninguém fala assim “tem uma
historiadora branca paulista”, “tem um antropólogo branco paulista”, mas tem o antropólogo
negro baiano, sacaram isso? E não tem a história branca, nós temos a história negra.
Então esse movimento de alargar a nossa capacidade de entender a História do Brasil,
contemplando, e aí tem uma dimensão fundamental, por que nós
temos que incorporar?
porque nós temos que incorporar experiências, incorporar processos, incorporar personagens,
é isso que nós historiadores estamos de alguma maneira contaminados, mobilizados, ou seja,
ninguém está fazendo uma história do negro porque nós somos negros, porque nós temos
supostamente uma capacidade de olhar, a minha capacidade de olhar documento é igual a de
qual qualquer outro historiador, e com os meus problemas hoje, com óculos e tal, os mesmos
problemas. A minha sensibilidade de olhar não faz com que necessariamente eu (..),
necessariamente negra, sacaram isso? Ao mesmo tempo. é muito importante como uma
ferramenta política e, ao mesmo tempo, a gente tem que trabalhar isso como o discurso desse
racismo historiográfico silencioso, é um racismo historiográfico silencioso, de uma uma (jenga),
de uma formação de alunos, que a gente tem que fazer o tempo todo, e é claro, a gente tá
“puxando sardinha para nossa brasa” porque nós somos historiadores, eu Ynaê e Álvaro, somo
aqui, para começar, historiadores que tratam do século XIX, ou do que vem antes do século
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XIX em tese, então a gente tá muito mais preocupado com as experiências da escravidão, as
experiências do pós-emancipação.
Esse debate aqui pode mobilizar vários alunos e vários professores para a gente pensar,
inclusive, essa inclusão da população negra para outros temas, aí se, por exemplo, as cidades, as
cidades brasileiras, modernas-contemporâneas são fundamentalmente cidades reorganizadas a
partir das experiências negras, o que não pode ser explicado apenas a partir da história negra da
escravidão, embora possa também ser colocada. Então, eu acho muito importante esse “por
que incorporar os negros” e aí, eu finalizo o seguinte, para produção do conhecimento
histórico, e para os intelectuais negros, ainda tem uma outra questão, porque a gente está lhe
dando com o passado, o silenciamento do passado, e aí uma coisa interessante, para nós, o
passado não acabou. Para nós, o passado ainda não acabou fundamentalmente, o passado está
sendo reinventado, reproduzido, aquela coisa que Gramsci teria dito, a gente continua
perdendo do ponto de vista das nossas batalhas, então isso é muito interessante nessa espécie
de eixo dialético entre intelectuais negros, historiadores negros, o racismo historiográfico, as
temáticas da escravidão, o tema das mulheres, como o Álvaro bem chamou, o tema do pósabolição, tem que ser credenciado de alguma maneira a toda uma geração de movimentos
socais, querendo saber exatamente o que acontece com a população negra após o treze de maio
de mil oitocentos e oitenta e oito, isso é muito importante, não foi necessariamente -- quando a
gente fala de campo de estudo parece que é um grupo de historiadores que pioneiramente
resolve em uma mesa de bar, ou em um encontro da ANPUH a vinte anos atrás “pessoal,
vamos fazer um estudo sobre pós-abolição?”, -- foi exatamente o quê? essa agenda, essa pauta.
Então, dizer isso, não nos menospreza, não nos coloca em uma situação ruim, pelo contrário,
chama atenção para papel do presente, o papel da luta antirracista, o papel da luta pela
democracia, é isso que está fazendo novas agendas para produção historiográfica do
conhecimento. Então, eu queria, mais uma vez, agradecer aqui o convite, vamos dar uma
continuidade ao debate, certamente muito quente, e repito, embora eu não esteja falando só
para alagoanos e alagoanas, só para o público da Universidade Federal de Alagoas, para mim é
uma honra estar dialogando aqui com um evento organizado pela UFAL. Alagoas é a casa da
minha mãe. Tá legal?! Obrigado!
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D. M.: Muito obrigado, professor Flávio! Queria registrar aqui que o professor Zezito Araújo
está acompanhando, mandou um abraço! Axé!
F. G.: Isso! Só ele que não envelhece, mas tudo bem.
(risos)
D. M: A professora Clara Suassuna também está mandando um abraço e disse que,
provavelmente, o evento foi em 2004, ou 2005.
F. G.: Tá ótimo!
D. M.: O professor Flávio trouxe vários elementos para a gente pensar, assim como o professor
Álvaro, e a professora Ynaê, eu só queria, rapidamente, mencionar novamente a importância
desse NEAB dos anos 1980, de todas as lideranças que aqui estiveram, e também pontuar a
importância que o movimento negro local teve nos anos 1980, através da Associação Cultural
do Zumbi, que também fizeram parte o Zezito Araújo e a Vanda Menezes. Então, temos aqui
um grupo que era muito articulado junto ao NEAB da UFAL, e que, por exemplo, nos anos
1980, fazia trabalho nas escolas no dia 13 de maio, para desconstruir a representação da
abolição enquanto dádiva, o que foi muito importante para a consolidação do NEAB dentro da
Universidade Federal de Alagoas. E, a partir disso, fazer a defesa das ações afirmativas, e aí eu
deixo aqui a minha referência a todo esse pessoal que passou aqui antes de mim, e antes de
muitos que estão aqui agora. E a professora Clara continua professora do curso, participando
daqui do evento. Tem alguns projetos da gente entrevistar, inclusive, todas essas lideranças do
movimento negro local aqui dos anos 1980 para gente fazer um acervo junto com esse acervo
que o NEAB da UFAL tem com fotos, documentações dos anos 1980, em torno da formação
da Serra Barriga, e que foi muito importante, inclusive, para criação da Fundação Palmares em
1988.
Mas, enfim, a gente tem três perguntas pontuais, eu gostaria de fazer uma primeira para os três.
Então vamos logo nessa daqui do Pedro que já está projetada “Professores, entende-se que a
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história teve sua produção com pauta em quesito racial, sem se tratar da escravidão, muito
tarde, isso, porque, influenciado por um racismo estrutural se entendia que eram assuntos que
não deviam ser analisados pelos historiadores, por se acreditar (a época) serem assuntos
subjetivos e não objetivos, que era o que se cobrava a postura do historiador. Vocês acreditam
que, até hoje, há essas amarras para a produção do conhecimento racial? Essa seria a primeira
pergunta do Pedro Vinicius, vocês gostariam de fazer um bloco de três?
Y. L.: É isso que eu ia perguntar, como a gente iria fazer.
F. G.: Eu acho que as questões estão bem complexas, grandes, ou seja, legais, e que se a gente
for passando, a gente vai acabar perdendo aquela primeira.
Y. L.: Eu também concordo.
D. M.: Tranquilo! Pode começar, Ynaê?
Y. L.: Essa pergunta, na verdade, acho que de certa maneira, o Flávio já respondeu na fala dele,
mas sim. A questão é que a gente vive nessa ordenação do racismo, que estrutura todas as
instâncias da nossa vida, querendo ou não, tendo consciência disso, ou não. É uma coisa que a
gente não escolhe, a gente só escolhe não ser racista, e dentro dessa perspectiva, a produção do
saber historiográfico, ela naturaliza a experiência branca como a experiência universal, que, no
caso do Brasil, ganha esse eco de História Nacional. Então, como o Flávio falou, a gente não
fala “um historiador branco”, porque já está imputado na ideia que o historiador é branco,
diferente de quando o historiador é negro, então a exceção da História Política do Brasil, se dá,
as vezes, pelos movimentos protagonizados pelas populações negras e ameríndias, mas aí você
faz o quê? Você cria uma caixa, digamos assim, historiográfica, coloca essas histórias, e poucas
vezes articula essas histórias. E aí, é uma crítica aberta à historiografia política, sem sombra de
dúvidas, que precisa se rever, e ser revista, aqui no Brasil, que é, enfim, a negação desses
sujeitos na produção da política. Inclusive, perdendo a oportunidade de entender outras formas
de se fazer política, porque a política não é só a política que se faz no Congresso Nacional, ou a
política que era feita pelos Conselheiros do Estado do Império, a política se faz no cotidiano. A
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gente aprende isso com os gregos, mas, na hora de aplicar aqui na história racista brasileira, a
gente não aplica.
A experiência em sociedade, é uma experiência de disputas políticas, então estamos todos
disputando nos seus lugares sociais, então, obviamente, que a forma como um escravo vai fazer
isso, que um escravizado vai fazer isso, não é a mesma forma que um homem negro livre, que
também não é a mesma forma que um homem branco pobre, que não é a mesma forma que
uma mulher mais abastada, agora, isso não diminui essas experiências. Então, o que a gente
precisa efetivamente é complexificar o olhar que a gente tem para história do Brasil, e isso só é
possível, de fato, se a gente fizer uma, enfim, uma historiografia antirracista, uma historiografia
que entenda, efetivamente, a participação da população não-branca na história brasileira, e isso
ainda está longe.
O que a gente tem, na verdade, é um movimento significativo dos estudos do Pós-abolição, dos
estudos da Escravidão, dos estudos da História Indígena, mas que ficam quase dentro de um
“gueto”, que não entram nas grandes (...) eu estava agora estudando, um pouco, sobre a história
da República brasileira, porque eu estou analisando um intelectual negro desse período, e é
impressionante como a historiografia clássica da história do Brasil não trata do tema racismo é
sempre (...) não é um tema. Aí você tem que com muitos trabalhos já feitos, o Flávio tem uma
série de livros, o Petrônio tem outros. (...) A gente tem vários historiadores consagrados, eu não
estou falando aqui de pessoas que estão começando agora a vida acadêmica, e essas análises
continuam consagradas dentro da macroesfera do pensamento sobre a história política
brasileira. A gente tem que mudar isso né, seria mais ou menos isso a minha resposta.
Á.N.: Eu reitero o que foi dito por, excelente pergunta, inclusive, né?! (...) Eu ainda tenho uma
certa esperança porque, não sei se o Flávio concorda comigo, mas a presença de uma juventude
de negros e negras, cada vez maior, na graduação e na pós-graduação de História, e negros e
negras conscientes da questão racial e do racismo no Brasil, e querendo discutir diversos temas,
não somente (...) Em qualquer área, em qualquer momento histórico, Isso me traz uma
esperança de que há uma resistência, há uma possibilidade de mantermos essa produção
acadêmica e historiográfica, que vão ser muito importantes, assim como a presença dessas
pessoas que entraram por cota mexeu com a cabeça de muitos historiadoras e historiadores, e
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aí eu vou seguir o Flávio, não precisa dizer que são pessoas brancas, porque são brancas, assim
como essas pessoas foram (...) O trabalho de pesquisa (...) Tem pesquisas historiográficas
incríveis que estão modificando a cabeça de muita gente.
Ontem mesmo, várias coisas estavam acontecendo, gravação inclusive, participação, estavam
nos chamando e não é à toa, é uma questão muito importante na mídia, mas a gente também
sabe que esse é um negócio muito rápido. Precisamos aí, um convite que faço, aos jovens e as
jovens historiadores, Eu, Flávio, um dia, Ynaê, todos nos aposentaremos, e aí? E o pessoal que
está aí se formando, se preparando para assumir esses lugares, para entrar cada vez mais fundo
nisso? É fundamental que isso ocorra, porque hoje nós somos treze, aproximadamente, aqui na
Zona Metropolitana do Rio, mas daqui a pouco a gente pode ser onze. Na verdade eu não
quero isso, eu quero que a gente dobre, veja, na UFF, a Ynaê é a segunda professora negra
concursada que eu vejo na UFF, no programa de pós-graduação que deve ter quase sessenta,
setenta pessoas, não me lembro mais, não sei quantas pessoas tem hoje. Na Rural, no curso de
História, sou eu e mais um.
Sem contar a UFRJ, que o Flávio poderá falar mais ainda, o Flávio, que eu saiba, é o primeiro
negro concursado que entrou lá, que ficou lá, e que está lá a mais tempo, tem agora a Mônica,
do curso de História. Então, para vocês terem noção como a coisa é, se a gente não assumir
essas respostas, esse processo pode ser um processo de derrocada, porque esse movimento
todo que está aí, de aprovação, de Deus, Pátria e Família, ele é resultado de um processo de
mudança que culminou na Reforma trabalhista para as domésticas, e que agora está sendo
derrubado cada vez mais com reformas e reformas trabalhistas. Então se nós, respondendo a
pergunta (...) continuando a pergunta de Arthur, se nós não tivermos mais negros e negras que
se posicionem, e escrevam, e pesquisem sobre a história do negro, novamente, essas questões
podem ser ouvidas, vão ser outras, mas, é algo que a gente precisa muito atento daqui em
diante.
F.G.: Bom, eu vou pegar essa deixa aí, para eu acho até que joga a bola aí de volta, primeiro eu
queria dizer pro Álvaro deixar a Ynaê em paz porque já quer aposentar a Ynaê, Álvaro, você
vai se aposentar primeiro, vai cuidar de neto e ela vai continuar dando aula. Cara ela é jovem,
acabou de entrar agora. E aí, é importante que a Ynaê possa ver, uma coisa que, certamente ela
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vai gostar muito, ver uma geração de jovens negros entrando por ações afirmativas, que não vão
precisar estudar, necessariamente, escravidão, porque nós recebemos os alunos brancos para
estudar escravidão, só que o nosso colega que não estuda escravidão e pós-abolição não recebe
o estudante negro, e quando recebe, quer encaixar o estudante negro em uma prática racial,
porque nós estamos falando de formação de historiador. Porque eu tenho que convencer um
estudante negro? Falar “Ó, você é negro, precisa estudar o negro”, Então isso, certamente (...)
Você queria aposentar a Ynaê, a Ynaê vai ver isso. A Ynaê chegando a quê? A professora
emérita, titular, daqui a vinte, vinte e cinco anos ela vai viver essa experiência.
A outra coisa que eu não perco a oportunidade de provocar, agora nós temos um termo, que o
movimento negro constitui como análise, virou um termo, que agora está se virando contra a
gente, o racismo estrutural. Eu já estou chateado com isso porque, primeiro que os
movimentos negros lutaram e tem lutado durante anos para mostrar o racismo no Brasil, e,
agora, essa categoria fantasticamente elaborada pelo livro do Silvio de Almeida, virou uma
espécie de explicação geral, ou seja, não tem racista no Brasil, porque o racismo é estrutural.
Qualquer hora está virando peça jurídica, “porque o racismo acontece na universidade, no dia a
dia e tal”, ou seja, daqui a pouco as pessoas que mataram o homem negro lá, “ele foi vítima do
racismo estrutural. Tem racismo estrutural, mas nós não podemos (...) Eu só não queria
perder a oportunidade, eu sei que a pergunta, foi uma pergunta generosa, muito boa, e o uso da
palavra racismo estrutural não tem esse sentido.
Para responder direito a questão e não repetir o que o Álvaro e a Ynaê falaram, eu diria que é
o seguinte, eu acho que nós temos um desafio, nós professores de História da universidade
pública, da historiografia, que, aliás, não é um desafio da História do Brasil. Talvez seja um
desafio da história da própria América Latina, eu conheço um pouquinho da historiografia da
Venezuela (...) Eu queria agora investir para outros lugares (...) A Ynaê conhece a Cubana (...)
que é o seguinte, que são as historiografias nacionais, nós temos que implodir as chamadas
histórias nacionais. São essas histórias nacionais que tem como espaço de protagonismo a
Corte, o Rio de Janeiro, por isso que as chamadas revoltas regenciais são jogadas para a tal
história regional, que é um perigo, muitas vezes a pessoa não entende, “Ah, mas você é contra
então a história regional?” Não, eu não sou contra a história regional, uma coisa é entender esse
campo de estudo história regional, como ele se aplica na chamada terceira geração dos
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Annales, um estudo de caso, e como isso serviu de alguma maneira como uma grande
armadilha, porque você acaba tendo a história nacional, os principais temas, os principais
locais, os principais personagens, e a história regional.
Ou seja, a Cabanada, ela é um tema da história do Brasil? não, da história regional, A
Cabanagem do Pará, a Balaiada Maranhense, e assim sucessivamente. E são temas o que,
vamos pegar só esses três temas aí, é a formação de um campesinato no Brasil, e nós ainda
conhecemos muito pouco, se tem uma coisa que nós não sabemos no Brasil é a população livre
no Brasil do século XIX, nós não temos um estudo substantivo, que dê conta para gente
localizar no mundo Rural e no mundo Urbano, quem é essa população livre no Brasil, porque
em uma sociedade escravista, a gente sempre fica com a condição do escravizado e do senhor
de escravizado, só que o senhor de escravizado pode ser um homem livre pobre, esse senhor
de escravizado pode ser um camponês livre em uma região.
Então talvez esse seja o grande desafio, nós implodirmos, eu não sei se foi a Ynaê, ou se foi o
Álvaro que utilizou essa expressão, eu gosto muito dela, que é implodir essa imagem de uma
História Nacional, que é uma história da Corte do Rio de Janeiro, do século XIX, do café, por
exemplo, nós estamos aí em Alagoas, Alagoas era Pernambuco, é até uma piada “melhor parte
de Alagoas era quando Alagoas era pernambucana”. Todo mundo sabe a origem da Província
de Alagoas, a origem da Província de Alagoas é uma coisa interessante, Pernambuco e Alagoas,
mais Pernambuco era o maior produtor de algodão no século XIX, e a gente não fala do
algodão, a gente tem que falar do açúcar, tem que falar do ouro. O ouro não exatamente
começa em Minas Gerais, que é uma província, o ouro é descoberto no século XVII, Minas
Gerais é uma província do século XVIII, então você tem ouro no Sertão da Bahia, você vai ter
ouro em Goiás, eu acho que talvez o grande desafio seja justamente implodir essas histórias
nacionais, e aí recompor historiografias para pensar. Isso, inclusive, tem até efeitos
internacionais, porque eu me lembro de estar com um aluno da Barbara Weinstein, uma
professora dos Estados Unidos, ele estava em dúvida sobre Teba, ou ele fazia um tema sobre
tráfico de africanos de Moçambique. e ele queria, estava muito interessado na Balaiada, e eu
falei pro cara que a Balaiada era fantástica e tal, e ele já estava preocupado com o emprego. Ou
seja, o cara vira um professor de história da América Latina nos Estados Unidos, ele vai
conseguir fazer um livro nos Estados Unidos sobre Balaiada. Esse livro que ele fizer sobre
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Balaiada vai ser traduzido no Brasil? Sacou? Ou seja, como a questão é muito mais ampla, eu
não quero repetir a palavra estrutural porque já virou, então eu acho que talvez esse seja o
grande desafio, essas formatações historiográficas, essas escolhas, nós temos que implodir essas
cronologias.
O que a gente aprende hoje como história é, praticamente, a pauta do Instituto Histórico
Geográfico Brasileiro, a gente não tem, olha eu brinco com os meus alunos, eu queria dar um
curso de História do Brasil meio, deixa o cara de História do Brasil 1, depois eu queria dar um
curso de história do brasil 1 e meio, eu tô brincando com as cronologias, história do Brasil 1,
“colônia tudo”, mas o Brasil não era, depois do Reino Unido, a unificação do ponto de vista
da estrutura colonial, não era mais colônia, então tinha que ser o Brasil e meio? Então você faz
um Brasil 1 com 350 anos, um Brasil dois 67 anos, aí depois, inclusive começa uma cronologia
(...) Isso eu fui atrás, tem lugares que dão o curso de história hoje nas Universidades públicas
que já tem Brasil 6, daqui a pouco você tem lugar com Brasil 7. “Você é contra?” Não, por
mim pode ter Brasil 8, o fato é que a cronologia continua. Brasil 1 continua a colônia inteira, o
Brasil 2 continua sessenta e sete anos, aí depois começa o quê? esses recortes completamente,
o quê? Completamente, convenções da República Velha. Ninguém viveu sobre a República
Velha, República Nova, República Madura, são convenções, até o pós-ditadura, a
redemocratização, sacou?! Onde eu quero chamar atenção? Eu acho que o nosso papel de
historiador vai ter também essas implicações de demolir essas cronologias e ir atrás, inclusive,
de experiências e conexões internacionais. Conexões que a gente chama de Atlântica e tudo
mais.
D. M.: Bom, eu queria agradecer as perguntas que estão chegando aqui no chat, mas pelo
adiantamento da hora, eu acredito que, infelizmente a gente não consiga dar conta de todas as
perguntas que têm chegado, já percebi que tem alguma invasão em alguma das lives aí atrás, e
eu gostaria de saber se a gente pode fazer mais uma e as considerações finais, pode ser?! Pode
ser essa do Rafael Torres, “Qual seria a postura, ou os métodos para, em sala de aula (como
educador e educando), contornar esse silenciamento que é presente na formação contínua, mas
também no exercício da profissão docente?” Aí, eu gostaria de, rapidamente, emendar uma
questão que eu gostaria de colocar, já que a gente está falando desses temas, e, já que a gente já
citou aqui, Trouillot, “Silenciamentos do Passado” e podemos citar outros autores, outras
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autoras: Quando é que a gente vai começar a ver nas bibliografias das disciplinas de Teoria e
Metodologia da História, autores como Trouillot? Ynaê?
Y. L.: Bom, obrigada pelas perguntas! A primeira, eu acho que é o nosso grande desafio, na
verdade, é como fazer com que a experiência da produção do saber histórico, seja na escola,
seja na universidade, de fato, possa derrubar, ou implodir essa perspectiva que é eurocentrada,
que é profundamente branca sem se dizer assim, ou seja, que privilegia a história da população
branca, como se isso fosse o caminho natural a ser seguido. É isso mesmo que o Flávio falou, a
gente continua em 1838, com o IHGB, ( ) e a galera que organizou, muito bem organizado,
como que a história brasileira deveria ser contada. Tem que ter (...) Infelizmente, é isso, a gente
está nesse momento da história brasileira em que não tem (...) As políticas públicas não estão
preocupadas com isso, e muito pelo contrário, o objetivo é que nem, inclusive, tenha escola,
não tenha universidade, enfim né, então tem que ter um exercício do professor e da professora
em se instrumentalizar, atrás de outros livros, de outras histórias, e eu acho que as biografias,
elas são um convite interessante.
Porque, muitas vezes, em sala de aula, a história das pessoas, dos alunos se conectam, às vezes,
falar de grandes eventos, grandes processos, nem sempre chama atenção dos alunos, mas fazer
isso por meio de biografias, de vidas interessantes, e a gente tem várias, agora a gente tem uma
produção significativa, acho que nós três aqui temos produções nessa área, nessa pegada, que é
trazer a história também na perspectiva um pouco micro-histórica, mas também a partir das
biografias de sujeitos negras e negros, que são pouquíssimos, ou nada conhecidos pela
historiografia oficial. Eu acho que essa é uma saída interessante, porque isso pode trabalhar
com várias camadas desse ensino, que é a identificação positiva de muitos alunos negros em,
uma vez na vida, estudar a história de um homem negro, que não seja necessariamente um
escravizado, ou uma mulher negra, que não seja necessariamente, uma mulher escravizada, ou
que foi uma mulher escravizada que lutou pela liberdade dos seus filhos fazendo uma rede de
solidariedade criada depois da Lei do Ventre Livre, enfim, eu acho que existem várias formas,
mas isso depende de uma decisão do professor.
É isso, a luta antirracista não dá para ser só na verborragia, é ação. É sentar, e, infelizmente,
isso, por enquanto. Essa estrutura que a gente vive e está, enfim, parte das ações individuais - -
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eu decidi que eu vou fazer isso na minha sala de aula - , significa que eu vou ter que ler mais, ler
outras coisas, e hoje a gente tem uma facilidade, embora os livros sejam uma coisa muito cara
ainda, que são esse universo de lives, de palestras, que tem permitido uma produção
significativa no meio audiovisual, de documentários que possam ser gratuitamente acionados
pelos professores do ensino básico. Então, eu acho que tem que ter esse movimento, ele tem
que existir, não é só a gente falando de um movimento antirracista, a gente tem que fazer,
porque eu gosto muito dessa coisa que o Flávio disse, de como a ideia de um racismo estrutural
pode levar a manutenção desse próprio racismo porque parece que não tem gente, só tem
estrutura. Mas estrutura é decisão política, é disso que a gente está falando, eu quando falo de
racismo estrutural estou falando de decisão política, de um grupo de pessoas que decide
implementar as políticas públicas “xyz”, que tem como objetivo evidente da história brasileira,
geralmente, manter discriminação racial, a desigualdade racial, como forma de operar o Brasil.
É isso, e aí então a gente tem que fazer uma ação muito grande contrária, mas eu acho que a
escola é um dos melhores lugares para que isso aconteça.
Se a gente conseguir pegar, quatro, cinco, seis ou dez, meninos e meninas que ouviram a
história do João Cândido, ouviram a história do que foi a Imprensa Negra, isso pode mudar a
vida, efetivamente, de quatro, cinco ou dez, e, dependendo da escala, milhares de brasileiros, e
fazer com que as pessoas se relacionem de outras formas com as suas próprias histórias,
porque, em última instância, é disso que a gente está falando. A forma profundamente racista
com a qual a história brasileira é contada é para manter essa população que é subalterna, que é
discriminada, neste lugar, ponto, é isso. Também tem o jogo de classes, que no Brasil também
se mistura com a questão racial, mas o que existe é isso, quem está no poder, e quem não está
no poder, quem tem privilégios, e quem paga por esses privilégios. Então é um movimento
efetivamente intenso, mas que eu espero que seja feito, e, enfim, torço para que isso aconteça
de forma macro, e Danilo, tem que “chamar na chincha”, também, os nossos colegas.
Parte dos nossos alunos já fazem isso, já tem esses questionamentos, então, “Como você não
estudou Trouillot em Metodologia da História?” “Como você não lê Trouillot quando se fala
em Teoria da História, quando se pensa história?” Enfim, vão ler Trouillot nas minhas aulas de
América, quando eu falar das relações étnico-raciais nas Américas, e puxo o Trouillot, mas,
claro, que uma perspectiva distinta. Então eu acho que a academia tem que se rever, eu não
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tenho a menor dúvida em relação a isso, a gente precisa, todos nós que estamos dentro do
ambiente acadêmico (...) Quer dizer, a função da academia em um país como o Brasil, com
esse percentual muito pequeno de pessoas que podem adentrar a universidade, concluir a
universidade, mas ao mesmo tempo um ambiente que forma os professores, eu acho que é
fundamental que a gente se reveja e, se possível, dentro dessa comunhão de uma necessidade
de repensar as questões raciais no Brasil, trazendo ela, explicitamente, pro lugar que ela tem,
que é de centralidade. Ela é um dos pilares do país, então ela precisa estar ali evidente na
produção do saber histórico a respeito da história brasileira e das relações que o Brasil
estabelece, inclusive, com outros lugares, para que a gente possa, sobretudo, se tudo der certo,
e eu queria muito ver isso, porque vai demorar muito para eu me aposentar, Álvaro! Não fiz
nem conta para não entrar em desespero.
F. G.: Ele quer te aposentar! Quer te aposentar! (risos)
Y. L: Né?! e eu não vou, sei lá oitenta, não sei quantos anos (risos) não sei quantas reformas
vão ter ainda. Mas eu espero que, de fato, a gente possa implodir isso tudo e pensar a história a
partir de outros marcos, de outros sujeitos, de outras perspectivas. Então, é isso gente. Obrigada
de novo pelo convite! Obrigada pelas perguntas! E é bom que tenha outras perguntas, eu gosto
porque mostra que a gente está aqui resistindo, e disputando lugares, disputando os Brasis
possíveis. Obrigada!
D. M.: A gente vai ter que fazer a segunda edição dessa mesa presencial!
(risos)
Á. N: Tomara!
D. M: É contigo, Álvaro!
Á. N: Bom, em primeiro lugar, Ynaê! Tá certo (risos), não, claro! Por isso que eu falei assim “e
um dia Ynaê” (risos), mas eu acho que eu já comecei muito cedo, tem razão, você ainda vai
ficar muito tempo aí, como o Flávio falou, e que bom que você vai ficar aí, porque quanto mais
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tempo a gente fica, mais a gente forma, isso é fundamental, e vai ver isso que o Flávio disse,
historiador negro pesquisando qualquer outra coisa, eu acho que isso é importante,
fundamental também (...) é que a gente está em um momento, o momento também é muito
delicado que a gente está vivendo, muito delicado. E aí tem a ver com essa pergunta que foi
feita, olha, a primeira coisa que acho que a gente tem que fazer, uma das coisas além do que a
Ynaê e o Flávio já falaram, é terminar, o professor ou professora com uma visão essencializada
do negro na escola, através do 13 de maio, da capoeira, da feijoada, sabe?! Chama uma mulher
para vender acarajé, enfim, aquelas histórias que já conhecemos. Botam outra criança vestida
de Saci-Pererê, e essas coisas.
Isso é resultado, sobretudo, dessa proposta do Brasil enquanto União das três raças, que foi
levada para as escolas públicas, mas a história, é uma história em que negros e indígenas não
participam, ou participam sem nomes próprios. Participam como índios e escravos, índios e
escravos, índios e escravos, mas quando se fala da liderança, do movimento, de tudo aquilo que
a Ynaê estava dizendo, da história política, vira a história que fala dos grandes homens, e, olha
que hoje, eu participei recentemente de alguns (bancos) sobre livros didáticos, e os livros
didáticos aprovados de 2018 para cá seguem a base Nacional Comum Curricular, aprovada
recentemente. Há várias críticas, não tem discussão, mas é interessante dar uma lida dos livros
didáticos para observar alguns avanços que existem sobre implementação da lei 10.639 e
11.645, como isso está sendo trazido, desde os livros didáticos da educação infantil, Ensino
Fundamental I e Ensino Fundamental II, e do Ensino Médio, e como todos os educadores e
educadoras deveriam pegar os livros didáticos de história e lerem aquela parte, aquele manual
do professor e da professora, porque, geralmente, o professor e a professora não leem, muitas
das vezes, partem direto para os livros didáticos. Isso seria interessante de observar. Eu tô
falando assim, já em um diálogo para o Ensino Fundamental I e II, óbvio que não dá para
pensar somente no livro didático, nós temos várias ferramentas, produções acadêmicas
importantes, e vocês que estão passando pela universidade vão levar, cada uma delas, para,
enfim, complementar, questionar, ou corroborar com algum ponto questionador que você
tenha, e tem que ter mesmo, em relação ao que há na BNCC. Mas há avanços, eu participei, li
e vi, e não pode ser esquecido esse tipo de coisa, então veja, o primeiro fator, do meu ponto de
vista, é parar com isso.
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Meu filho está em uma escola municipal, ele é aluno de uma escola municipal, conservadora,
muito boa, mas a visão de história que se tem lá é assustadora. Parece que a pessoa não leu o
livro que chegou do FNDE, que explica como utilizar aquele livro, porque a pessoa está com a
cabeça, esse professor ou professora está completamente envolvido ou envolvida por uma
formação que já carrega há décadas, onde história da África e História do Brasil não faziam
parte da formação acadêmica. As recentes gerações já começam a ter, nem toda universidade,
toda faculdade de história tem isso como uma premissa básica, ensinar a história da África, e
ensinar a história do negro no brasil. Aí você fala “Pô, mas precisa ser separado?” Precisa, por
incrível que pareça. Esse país é tão racista, que teve que ter uma lei para fazer o óbvio. Falar
“Olha, tem que ter a história do negro”, como também, se essa história do negro fosse só do
negro, mas os seres, eles se relacionam. com pessoas brancas, indígenas, e por aí vai. Então daí
a importância, que Ynaê acabou de dizer, de nós enquanto doutores professores e professoras
universitários, termos esses pontos de vistas, esses questionamentos no ensino da graduação, no
ensino da Pós-graduação, na orientação da pós-graduação, e, no diálogo com a educação básica.
Isso é importantíssimo.
Eu sou o cara que antes da pandemia, quase todo mês ia em uma escola da periferia, falar com
os estudantes do Ensino Médio, não quero dizer que tenha fazer que nem eu, ir até as escolas,
inclusive, tô doido para voltar, mas ter diálogo com os docentes da Educação Básica, e
pensarmos e trabalharmos nosso produto acadêmico, nossos textos acadêmicos, pensando na
educação básica para contribuir com um diálogo mais produtivo com essa educação. Acho que
isso vai ajudar e vai ser bem importante para essa mudança que foi trazida aqui, e, no mais, eu
quero, novamente, agradecer o convite, externar o prazer que é estar aqui dividindo a mesa
com o Flávio e a Ynaê, com o Danilo, e com todos os colegas que estão aqui, de várias partes
do Brasil, pessoas que a gente só via na ANPUH, mas agora nem a ANPUH mais é presencial,
o que é triste, por causa da pandemia. Mas em breve, estaremos todos juntos e vai ser bem
bacana e bem legal, obrigado pela oportunidade Universidade Federal do Alagoas, e o
programa de pós-graduação, que nos convidou e nos permitiu fazer, obrigado!
F. G: Bom, eu não tenho muito o que falar, porque eu vou dizer, que, na verdade, agora que
eu estou entrando em contato com esse debate que é muito importante, sobre o Ensino de
História, porque na verdade são esses programas novos, foi até importante a chamada Lei
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10.639, é mais um exemplo, e ela vai fazer vinte anos daqui a dois anos, quer dizer, mais uma
lei que surge também dos movimentos sociais, da luta antirracista, de intelectuais negros e de
conexão. É um debate muito interessante agora, quer dizer, eu diria que eu estou conhecendo
agora, e eu fico até meio receoso de vir dizer “Vê isso!”, “Olha aquilo!” Porque a gente já tem
um
instrumento que produziu, em via de levar para sala de aula, com esse tipo de
preocupação, seja como material didático ou paradidático. Eu diria que do ponto de vista do
historiador, do historiador que nós formamos na universidade, eu diria para você o seguinte: a
história está muito careta, a história está muito careta, muito careta. Teoricamente careta,
metodologicamente careta, quer dizer, se você comparar com o pessoal da geografia, o pessoal
está botando para frente, está pensando em coisa e misturando, e a história, sabe?!, aqueles
campos de história. Aí a pergunta anterior sobre o Trouillot, legal a dica chegar, inclusive, olha
a dica aí! Mas a gente tem que ler o Trouillot primeiro, se mirarmos primeiro na questão racial,
claro que o Trouillot vai comparar a Revolução de São Domingos, no Haiti, com a Revolução
Francesa. A gente poderia estar lendo o Trouillot, na verdade, em teoria da História, não
precisava utilizar ele para falar de história da América, História da América colonial ou Haiti,
esse é um exemplo muito careta, e outro perigo é essa dimensão prescritiva dos teóricos.
A minha geração e a geração do Álvaro aprendeu a decorar esses caras, primeira geração dos
Annales, a gente, até hoje, acerta essas bobagens. Primeira geração, segunda geração, terceira
geração, “e daí?!” Parece coisa de computador. Então o meu medo é que essas dimensões
teóricas que cheguem (...) Porque na verdade, já que você foi falar de Trouillot, o grande barato
aí é pensar, são ferramentas para refletir, e aí eu acho - - eu falo um pouco né do meu cotidiano
em sala de aula na formação do estudantes - - a coisa também tem a ver com essas mudanças,
com essas inflexões historiográficas, e a demonstração empírica do papel do historiador, das
fontes, isso é muito interessante, porque a nossa capacidade de fazer perguntas é
impressionante, as diferentes agendas, esse é que é o grande barato de você fazer perguntas
sobre, e o historiador produzir. Eu sempre brinco com os meus alunos “Cara, se você não
gosta de fazer perguntas, você só quer obter a resposta, não faça história, a história não é o lugar
das respostas. História é o lugar para quem gosta e quer fazer perguntas." A capacidade que o
historiador tem é a de fazer perguntas a qualquer evento, a qualquer processo, misturar
situações, é colocar as dimensões do improviso, do provisório em situações. Então essas são as
grandes reflexões em um debate como esse, que discute epistemicídio e intelectuais negros. A
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gente fala muito dos intelectuais negros, a gente tem que operar mais esses intelectuais negros,
tem que ler de novo Clóvis Moura, tem que “Ai, por quê? Lélia “Ai, por quê?” Beatriz “Ai, por
quê?” Clóvis, vocês leram? Vocês leram isso? E como é que vocês conseguem pegar uma
categoria desse, ou daquele autor e, não é só porque ele é negro também, ir em direção ao
movimento de reatualizar, que é um movimento teórico muito comum? Você pega autores e
reatualiza, vê como determinados autores estavam propondo coisas, falando de coisas há 10,
20, 30 anos atrás, porque embora tenham sido reflexões incompletas, inconclusas, a gente pode
partir dessa incompletude, dessa inconclusão, para ir mais adiante. Então eu agradeço muito o
convite e essa possibilidade de estar na mesa com dois colegas, as falas deles me ajudaram a
organizar também as minhas reflexões. Então, é sempre um momento que a gente aprende
muito, que a gente é obrigado a ouvir, o professor nunca ouve só fala, então é muito legal você
ouvir e ter que falar depois sobre aquilo que você ouviu. A gente só fala, fala, fala e não ouve,
até porque os alunos estão cada vez mais silenciosos, com câmeras desligadas e tudo mais,
enfim, agradeço muito o convite, Danilo, da Universidade Federal de Alagoas, e o convívio aí
com os dois colegas que eu sempre aprendo.
D. M: Obrigado, professor! Antes de encerrar o nosso 12° encontro nacional de História da
UFAL, eu gostaria de agradecer a todos os monitores que trabalharam para que o evento
acontecesse, em particular, o Arthur Davis, que está aqui nos bastidores ajudando a gente.
Agradeço também ao professor Elias Veras, que está aqui também nos bastidores ajudando a
gente. Agradecer a todo mundo que apresentou trabalho, aos ouvintes, a toda comissão
organizadora que fez com que o evento, apesar da conjuntura política, acontecesse, e por fim,
quero agradecer novamente ao Flávio, a Ynaê, e ao Álvaro, que em pleno sextou, uma sextafeira a noite, que se fosse no presencial, o pós-mesa seria outra história, (risos), mas que estão
aqui , pontualmente, quase nove horas da noite de uma sexta-feira, pós-7 de setembro de 2021,
ajudando a gente a refletir sobre os mais variados temas. Bom pessoal, é isso, muito obrigado e
a gente se vê, no 13º Encontro de História Nacional do ano que vem, esperamos todos, todas e
todes que estão aqui, e que seja presencial! Tchau, pessoal, abraço!
Símbolos:
(hipótese)
hipótese do que se ouviu
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()
Incompreensão de palavras ou segmentos
-- --
Comentários que quebram a seqüência temática
da exposição: desvio temático
(...)
Indicação de que a fala foi tomada ou
interrompida em determinado ponto. Não no
seu início, por exemplo.
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