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Por que filosofar?

2010, Fides Revista De Filosofia Do Direito Do Estado E Da Sociedade

FIDΣS POR QUE FILOSOFAR? Marco Bruno Miranda Clementino São 16:56 horas, numa quarta-feira. Hoje o expediente até está tranquilo aqui na 3ª Vara Federal do Rio Grande do Norte, da qual sou juiz titular, paralelamente à atividade docente. Estão marcadas vinte e duas audiências para o período da tarde, sendo doze minhas e dez do juiz substituto. Em quase três horas (considerando que a primeira audiência estava marcada para as 14:00 horas), ainda não fui chamado à sala de audiência, já que o Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), réu em todos os processos, formulou propostas de transação em todos os processos até agora. Para uma tarde que se previa cansativa, as notícias são excelentes. Tive tempo de me dedicar à administração da vara, de me reunir com o juiz substituto e o diretor de secretaria, de debater com os assessores sobre o conteúdo jurídico das sentenças a serem minutadas. Se isso não bastasse, o serviço está rigorosamente em dia, à medida que nosso tempo médio entre o ajuizamento e o julgamento das causas está próximo de cinquenta dias, o que não deixa a desejar aos padrões internacionais. A rigor, os motivos para comemorar são muitos. Tão tranquila está a tarde que estou me dando ao luxo de atender à solicitação que me foi feita para escrever algumas breves palavras à primeira edição da Revista FIDES. Procurando inspiração, parei para pensar durante cinco minutos e me indaguei: por que filosofar? uma atividade a priori intelectual, porém somente agora parei cinco minutos para pensar, numa jornada que se iniciou na manhã de hoje. Em seguida, meu espanto aumenta. É que, se não estivesse me atendo a cumprir este compromisso com a Revista FIDES, provavelmente não teria saído um segundo sequer da rotina e estaria trabalhando, como sempre faço, no câmbio automático, apreciando questões surgidas nos quinhentos processos distribuídos mensalmente à 3ª Vara. Não seria essa uma atividade intelectual? Aí reside o problema! Às vezes o profissional imiscuído na rotina não se dá conta de que figura como mero autômato num Doutorando em Direito Penal (UFPE). Mestre em Direito Constitucional (UFRN). Especialista em Direito Tributário (IBET). Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Juiz Federal da 3ª Vara da Seção Judiciária do Rio Grande do Norte. Membro do Tribunal Regional Eleitoral do Rio Grande do Norte (TRE/RN). Membro do Conselho Científico da Revista FIDES. FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. ISSN 2177-1383. De logo, veio-me à cabeça uma constatação difícil de ser assimilada: desenvolvo 28 FIDΣS sistema que o impede de contribuir decisivamente para a mudança do estado de coisas e ainda de refletir sobre as vicissitudes desse mesmo estado de coisas. Como juiz, fui mergulhado numa avalanche burocrática e sou refém dum modelo irracional que não me permite fuga. Sim, modelo irracional. Na verdade, não há nada a comemorar na tarde de hoje, mesmo quanto aos dados aparentemente positivos. Ora, não faz o menor sentido de que se marquem doze audiências contra uma autarquia e haja conciliação em todas, sem a necessidade de o juiz sequer colocar os pés na sala de audiência. Embora seja louvável a conciliação, inclusive do ponto de vista filosófico, 100% de conciliações mostram a verdadeira falência (quiçá farsa) de um sistema. Falência que se inicia na própria administração pública, que indiscutivelmente está trabalhando muitíssimo mal, a ponto de rever em juízo todos os posicionamentos que tomou administrativamente. Igualmente, é até ilógico se falar em administração de vara. No entanto, a massificação permissiva do nosso sistema vem transformando unidades jurisdicionais em empresas, em linhas de produção, a tutelar conflitos meramente aparentes e, muitas vezes, interesses que transcendem o ideário republicano. A repetição de causas idênticas cria um aparato comercial informal em torno das partes, deslocando os valores pagos por determinação judicial dos virtuais destinatários em favor de “atravessadores”. Nesse sentido, mesmo o dado relativo à celeridade pode ser posto em xeque. Faço essa afirmação porque é humanamente impossível que um magistrado julgue com qualidade quinhentos processos por mês. Certamente ele não está analisando com o máximo cuidado todos os processos, todos os expedientes que assina. É verdade que, para isso, conta com intelectual seja aquela que o magistrado tem menos tempo de realizar. Não faz sentido que nenhuma sentença da 3ª Vara tenha sido minutada por mim hoje. Nem hoje, nem ontem, nem anteontem... Não precisa ser muito inteligente para se perceber que a profundidade reflexiva é relegada a segundo plano nesse contexto. Não há tempo para pensar. Por isso, é mais prático, mais eficiente, mais produtivo, repetir o que vem sendo feito: reproduzir a jurisprudência. Mas seria o ideal reproduzir o que já vem sendo construído sob o mesmo formato? Como consequência, o juiz brasileiro tem um preparo técnico invejável, acima da média, quando se trata do domínio da dogmática, o que remonta à competição acirrada nas faculdades de direito e aos concorridíssimos concursos públicos. No entanto, numa busca por mais e mais informação jurídica, sempre de conteúdo dogmático, que se inicia ainda na FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. ISSN 2177-1383. competente assessoria, mas se convenha que é uma absoluta distorção que a atividade mais 29 FIDΣS graduação (talvez antes, com o vestibular), o juiz se esquece da importância de parar, de parar e refletir, de usar o tempo em seu favor. O tempo é o maior desafio do jurista contemporâneo. Parar a rotina e se ver diante dela sobranceiro. Proust dizia que “os dias talvez sejam iguais para um relógio, mas não para um homem”. Hoje talvez Proust estaria preocupado com a veracidade dessa afirmação. Estaria preocupado em ver a vida transformada em ponteiro, que se locomove a partir de uma lógica previamente determinada, portanto sem um desígnio específico. Parar para pensar, debruçado sobre a realidade e não guiado por ela. Filosofando. Refletindo. Parando para “perder” um precioso tempo, mas tornando um dia diferente do outro. Parando para pensar sobre o que deveria escrever para a Revista FIDES, cheguei à conclusão de que parar para pensar é uma boa solução para o direito. Mas como é difícil parar para pensar e mais ainda parar para pensar para se chegar a conclusão sobre como é bom parar para pensar, penso que a mudança do estado de coisas não ocorrerá sem uma mudança de postura na formação do profissional desde a faculdade de direito. Mudança de postura que deve abranger tanto o ab(uso) da dogmática quanto a própria objetividade no estudo da filosofia. Ora, de nada adianta a reflexão estéril e, talvez por isso, veio-me a ideia de refletir sobre o cotidiano, sobre o dia de hoje, para mostrar como a filosofia tem um vasto campo a ser explorado de modo a ser útil. Para conquistar o jurista, a filosofia não pode ser egoísta, tem que ser útil, tem que (tentar) melhorar a vida das pessoas, tem que enfrentar a realidade. Lembro, a propósito, a singeleza de Jostein Gaarder em sua magnífica obra “O como esta tem o poder de modificar a visão de mundo mesmo de uma criança, de lhe abrir a mente. Acho que devemos aprender com Gaarder. O direito brasileiro está precisando de Sofias, de gente disposta ao desafio de tornar um dia diferente do outro, para si e para seus semelhantes. Um viva à Revista FIDES! FIDES, Natal, v. 1, n. 1, fev./jul. 2010. ISSN 2177-1383. mundo de Sofia”, por meio da qual conseguiu literalmente popularizar a filosofia e mostrar 30