EUNICE NÓBREGA PORTELA
DIRCE MARIA DA SILVA
BRUNA BEATRIZ DA ROCHA
REBECA FREITAS IVANICSKA
AS TRANSFORMAÇÕES
PLURAIS DOS CENÁRIOS
EDUCATIVOS
© Dos Organizadores - 2022
Editoração e capa: Schreiben
Imagem da capa: Creativeart - Freepik.
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Dra. Ana Carolina Martins da Silva (UERGS)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
T772 As transformações plurais dos cenários educativos : volume 2. / Organizadoras :
Eunice Nóbrega Portela, Dirce Maria da Silva, Bruna Beatriz da Rocha, Rebeca
Freitas Ivanicska. – Itapiranga : Schreiben, 2022.
266 p. : il. ; e-book
E-book no formato PDF.
EISBN: 978-65-5440-010-7
DOI: 10.29327/569535
1. Educação inclusiva. 2. Autistas – educação. 3. Professor - formação. 3. Políticas públicas de saúde. I. Título. II. Portela, Eunice Nóbrega. III. Silva, Dirce
Maria da. IV. Rocha, Bruna Beatriz da. V. Ivanicska, Rebeca Freitas.
CDU 376
Bibliotecária responsável Kátia Rosi Possobon CRB10/1782
QUE ESCOLA? QUE JUVENTUDE?
A EDUCAÇÃO EM NOVOS CONTEXTOS1
Leonardo Freire Marino2
INTRODUÇÃO
O mundo é formado não apenas pelo que já existe,
mas pelo que pode efetivamente existir.
SANTOS, Milton. 2002.
De acordo com Foucault (2008a, 2008b e 1987) e Deleuze (1992), as instituições escolares foram constituídas em um modelo social que buscava adequar
os indivíduos aos interesses econômicos predominantes. Para eles, as escolas
não foram estabelecidas como mecanismos de democratização do acesso à cultura ou ao conhecimento, mas, fundamentalmente, como mecanismos de disciplinarização dos indivíduos as normas vigentes. Em suas análises, os pensadores
franceses, apontam que a escola, assim como o hospício, a prisão, a fábrica e a
família, representam um conjunto de instituições que caracterizariam o que foi
denominado como Sociedade Disciplinar.
Com o soerguimento da Sociedade Disciplinar, os indivíduos passaram
a ser formatados em espaços delimitados, marcados por muros institucionais.
Independentemente de suas subjetividades, aptidões e demais individualidades,
os sujeitos passaram a ser submetidos a práticas que buscavam a sujeição de
seus corpos as normas e procedimentos considerados ideais (MARINO, 2016).
Assim, os aparatos criados pela Sociedade Disciplinar carregam uma forte inscrição geográfica, uma vez que são territorialmente estabelecidos, e uma intensa
temporalidade, pois os indivíduos são submetidos a períodos de sujeição em
seu interior. A transposição dos muros e o tempo de permanência no interior
1 O texto atual é uma revisão do artigo publicado na Revista Giramundo, podendo ser acessado no endereço eletrônico http://cp2.g12.br/ojs/index.php/GIRAMUNDO/article/
view/2485/1713.
2 Professor Adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde atua simultaneamente nas turmas de Educação Básica do Instituto de Aplicação Fernando Rodrigues da Silveira (CAp-UERJ), nas disciplinas do Curso de Licenciatura em Geografia
do Instituto de Geografia (IGEOG) e em dois Programas de Pós-graduação: Mestrado
Profissional de Ensino em Educação Básica (PPGEB) e Mestrado Profissional em Ensino de Geografia (PROFGEO). E-mail: leonardo.marino@uerj.br. Orcid: https://orcid.
org/0000-0003-4492-1023.
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das instituições, constituem aspectos essenciais da Sociedade Disciplinar. É a
partir da relação espaço-temporal e, consequentemente, da imposição de normas e condutas, que os indivíduos passaram a ser normatizados. Foi por meio
do confinamento dos indivíduos, fixando-os e os submetendo a mecanismos de
sujeição e de normatização, que se consolidou a escola moderna.
O soerguimento do aparato escolar, seu imenso alcance espacial e suas
práticas e conhecimentos hierarquizados, determinou a uniformização cultural.
No interior das escolas, apoiados em normas de conduta e em procedimentos
formativos comuns, as diversas manifestações culturais que não se enquadravam
na visão hegemônica, foram, gradualmente, desqualificadas e abandonadas. A
imposição de símbolos pátrios, tais como línguas, bandeiras e hinos, representam
exemplos deste processo, uma vez que são expressões dos métodos empregados
na construção das identidades nacionais (MARINO, 2018). Foi com a força da
coação disciplinar presente nos espaços escolares, que diversos dialetos utilizados nos tempos pré-modernos foram abandonados e condenados a desaparecer.
Ler, escrever e calcular, princípios basilares do modelo escolar tradicional, não
representam valores universais e atemporais, não são marcas da vida humana,
pelo contrário, constituem a consequência direta dos processos de formatação
ocorridos no interior das escolas.
Ao longo do século XX, a escola alcançou uma maior centralidade, constituindo uma instância capaz de dar sentido a existência de outras instituições
disciplinares. Neste percurso, a prisão, por exemplo, nos discursos oficiais, passou
a representar um contraponto ao ambiente escolar, o lugar de destino para aqueles
indivíduos que não se adaptam as normas estabelecidas nas instituições de ensino,
que não se moldam aos procedimentos escolares. Desta forma, a escola assumiu
o papel de instituição salvadora, capaz de construir um futuro próspero para os
indivíduos disciplinados, afastando-os do interior das instituições prisionais e da
miséria material (PATTO, 2007). No Brasil, o amplo movimento de expansão da
escolarização, iniciado nas primeiras décadas do século XX, foi ao encontro desses
anseios, prometendo, especialmente, para as camadas empobrecidas, a ascensão
social. Assim, foi construída a ideia de que o caminho para o progresso material
passa pelos bancos escolares. Em nossos dias, parte dos discursos que apontam
a importância da escola, se apoiam nesta visão e consideram a escola como um
contraponto à pobreza e a criminalidade (MARINO, 2019).
Atualmente, as possibilidades reais de cumprimento dessa promessa tem
sido cada vez menor. A ascensão social e econômica pelo sistema de ensino se
tornou mais reduzidas do que foi no passado. Estudos recentes evidenciam que
o aumento dos níveis de escolaridade dos indivíduos empobrecidos não acompanha, automaticamente, uma melhoria de renda. De acordo com a pesquisa
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‘Um olhar sobre a Educação’, publicada em 2018 pela OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e disponível na rede mundial de computadores, seriam necessárias nove gerações para que os brasileiros,
situados entre os 10% mais pobres, atingissem o nível de médio de rendimento
existente em nosso país. De acordo com este levantamento, 35% dos filhos das
famílias que se encontram entre os 20% mais pobres, terminam a vida nesse
mesmo estrato social. Apenas 7% deles, ao final de suas vidas, conseguem atingir o nível econômico dos 20% mais ricos. Se o significado atribuído a escola
como instrumento de mobilidade social e econômica não está completamente
esgotado, certamente, em alguns territórios, essa representação passa por um
intenso processo de corrosão.
Neste cenário, muitos jovens não reconhecem a permanência na escola
como uma estratégia de ascensão social e econômica. A escola não constitui para
esses jovens um espaço significativo, um lugar em que desejariam estar. A escola
não pertence ao conjunto de seus interesses pessoais (MARINO, 2019). Ao lado da
gradual corrosão do projeto escolar, ocorre a progressiva deterioração da concepção da escola como instituição responsável pela reprodução de saberes tradicionais (ARROYO, 2001). A capacidade uniformizadora de saberes estabelecida desde as suas origens, tem sido, cotidianamente, colocada à prova, abrindo caminho
para um movimento de contestação de suas práticas, normas e funcionamento.
É sobre este cenário que o presente ensaio se apresenta. Seu objetivo
reside em discutir alguns aspectos que explicam o ‘abandono’ do modelo escolar
por alguns jovens e apontar alguns caminhos possíveis para a sua superação
desta questão. Contudo, uma ressalva deve ser feita, não pretendemos apontar
as razões que explicam a crise da escola moderna, assim como, não buscamos
apontar uma solução definitiva para a sua superação. O que buscamos é elencar
uma possibilidade, um dos muitos caminhos possíveis, para serem percorridos
na construção de um novo modelo escolar.
A CRISE DA ESCOLA MODERNA E O DESENCAIXE DA JUVENTUDE
O modelo escolar estabelecido na modernidade vem sofrendo profundas
críticas. No entanto, as intensas críticas não se reduzem as instituições de ensino,
envolvendo o conjunto institucional criado pela Sociedade Disciplinar. De acordo
com Deleuze (1992), encontramo-nos numa crise generalizada de todos os meios
de confinamento, prisão, hospital, fábrica, escola, família. A escola, pela sua centralidade, despertaria uma maior atenção, porém a crise não se reduz a ela, envolvendo todas as instituições que alicerçam suas práticas no confinamento, na
hierarquia de saberes e em técnicas que determinam a produção de corpos dóceis.
A crise estabelecida tem provocado uma multiplicação de conflitos no interior
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das escolas, levando a ampliação do número de discentes e docentes infelizes com
suas práticas cotidianas. Parte desses conflitos reside nas antiquadas normas e procedimentos disciplinares e na incompatibilidade deles em relação aos jovens do século XXI. A escola, como concebida e perpetuada ao longo dos séculos XIX e XX,
constitui um artefato inadequado aos novos tempos e que precisa passar por profundas modificações. O que é descrito por Sibilia (2012, p. 197) ao afirmar que a escola
representaria uma máquina antiquada, com componentes e funcionamento cada
vez mais conflitantes com as juventudes. Vivemos uma transição entre modos de ser
e estar no mundo, entre modos de vida que eram mais compatíveis com o modelo
escolar, que se adaptavam mais facilmente as diversas tecnologias disciplinares, e novos modos de vida, que apresentam dificuldade de se adequarem ao confinamento,
que não se encaixam facilmente as moldagens disciplinares.
Deleuze (1992) aponta que vivemos a passagem da Sociedade Disciplinar
para a Sociedade de Controle. Para Deleuze, as antigas estruturas de confinamento e disciplinarização perderam importância. De acordo com suas formulações, os
muros institucionais, os limites físicos das instituições disciplinares, se tornaram
obsoletos, uma vez que os processos de sujeição e disciplinarização dos indivíduos
não dependem mais de momentos de confinamento para se realizarem, estando
dispersos por todo o tecido socioespacial. Para o pensador francês, os mecanismos
de disciplinarização, que se encontravam contidos no interior das instituições, se
espraiaram pelo tecido socioespacial. Assim, as antigas noções de interno e externo, de intramuros e extramuros, de privado e público, de próximo e distante, fundamentais para o funcionamento das instituições disciplinares, perderam sentido.
Deleuze (1992) acreditava que as sociedades podem ser descritas por meio
dos artefatos tecnológicos existentes, uma vez que as ‘máquinas’ exprimem
materialmente expressões sociais que lhes deram nascimento. Assim, a antiga
Sociedade de Soberania manejava máquinas simples, com alavancas e roldanas;
os relógios e o controle do tempo, assim como as máquinas energéticas, caracterizariam a Sociedade Disciplinar. Atualmente, a virtualidade emanada das redes
informacionais assinalaria a existência da Sociedade de Controle. A conjuntura
vivenciada no século XIX, marcada por uma forte concentração espacial, determinou que a fábrica passasse a ser entendida não apenas como um espaço
produtivo, mas, como uma insígnia, do modelo social vigente. No entanto, em
nossos dias, a economia não é mais dirigida pela produção fabril, mas pelos
fluxos econômicos, pelas redes produtivas e, sobretudo, pela ampliação do sistema financeiro; características que tornaram as estruturas normativas fluidas,
espraiadas e móveis (SANTOS, 2002).
Na Sociedade Disciplinar os indivíduos eram submetidos a permanências
temporais, a confinamentos que se sucediam ao longo dos dias, dos meses, dos
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anos e que produziam instantes de condicionamento ao longo de uma vida. O
objetivo era garantir que as normas fossem internalizadas, criando um modo de
ser e estar no mundo próprio de seu tempo. Atualmente, os processos formativos
e disciplinares se tornaram permanentes, o que reduz a importância dos instantes de sujeição produzidos no interior das instituições disciplinares. O controle
passou a fazer parte do ser e se encontra disperso por todo o tecido socioespacial.
Contudo, o espraiamento dos mecanismos de sujeição, não representa a perda
de eficácia ou de potência dos processos de normatização, mas a sua generalização, uma vez que eles assumiram uma forma dispersa e totalizadora. Desta forma, o momento atual, de soerguimento da Sociedade de Controle, apresentaria
uma intensificação dos mecanismos disciplinares, não o seu oposto.
Em uma sociedade fortemente midiatizada, fascinada pela visibilidade,
as moldagens que colonizavam os indivíduos entraram em colapso. Atualmente,
os dispositivos eletrônicos e digitais, com que convivemos cotidianamente, provocam os processos de sujeição. De acordo com Lipotevsky (2015), vivemos
em um sistema apoiado pelo marketing virtual e pela publicidade exposta de
maneira velada, pela imposição do consumo ancorado em mecanismos de normatização de costumes e por redes informacionais que determinam dinâmicas
sociais cada vez mais efêmeras. Nos novos tempos, para que a disciplinarização
se estabeleça não é mais preciso que os indivíduos adentrem as instituições.
A atuação das redes informacionais constitui uma marca do nosso tempo,
especialmente, no que diz respeito ao tempo de existência dos indivíduos mais
jovens. Não por outra razão, é sobre a utilização de equipamentos eletrônicos,
especialmente dos aparelhos de celular, que residem alguns dos mais significativos
conflitos registrados no ambiente escolar (VEIGA-NETO, 2008). Diariamente,
obrigamos nossos jovens e crianças, indivíduos que nasceram em ambientes fortemente influenciados pelas novas tecnologias e pela existência de redes informacionais, a se submeterem aos arcaicos, envelhecidos e enferrujados procedimentos
escolares, assentados em sua maioria em metodologias de ensino ultrapassadas,
em conhecimentos hierarquizados e dinâmicas marcadas pelo autoritarismo. Para
a infelicidade de jovens e adultos, nossas escolas continuam funcionando pautadas em estruturas e procedimentos criados há vários séculos (CANÁRIO, 2008).
O mundo mudou, os jovens mudaram, as tecnologias evoluíram, no
entanto, as instituições de ensino continuam operando por meio de processos
criados no passado. No mundo interconectado nossa relação com os saberes
mudou. A internet e as conexões produzidas pelas chamadas ‘redes sociais’ tornaram o acesso ao conhecimento muito mais democrático do que foi no passado.
Atualmente, guardada as devidas limitações provocadas pela desigualdade de
acesso as novas redes e tecnologias, cada indivíduo, dotado de um equipamento
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eletrônico, como por exemplo, um telefone celular (smartphone), sem realizar
qualquer deslocamento físico, pode participar dos debates que inflamam nossa
sociedade, conectar-se com fóruns de discussões que envolvem indivíduos de
todo o globo terrestre e produzir e acessar conhecimentos e conteúdos variados;
uma nova forma de espaço público nasceu e nele a praça física convive harmoniosamente com a praça virtual.
Nossas atividades diárias são cada vez mais alicerçadas em mecanismos
virtuais, vivemos cada vez mais online. Nesse contexto, a hora e o local de conexão não são mais determinados pelas instituições, ocorrendo em qualquer momento e em qualquer lugar. Graças à proliferação das possibilidades de conexão,
as possibilidades de acesso ao conhecimento são multiplicadas. Fato que retira das
aulas a exclusividade de transmissão de conhecimento e de informações. Neste cenário, de subjetividades geradas e renovadas em múltiplas e transitórias conexões,
a escola se apresenta como um espaço rígido, estandardizado e ultrapassado.
É preciso adaptar a escola, suas práticas e seus saberes aos novos tempos,
as novas subjetividades, garantir que ela consiga desempenhar novas funções, se
afastando dos processos de disciplinarização hierarquizantes que muitas instituições persistem em estabelecer. Precisamos construir uma nova visão a respeito
dos processos de ensino e aprendizagem. É preciso construir uma visão que não
continue confundindo Educação com Escolarização, sendo capaz de compreender os processos educativos para além de uma sala de aula e da regência de um
professor. Segundo o psiquiatra chileno Claudio Naranjo (2015), convivemos
com um sistema que usa de forma fraudulenta a palavra Educação, uma vez que
a utilizamos para designar o que é apenas a transmissão de informações ou, em
nossos termos, Escolarização. O termo Educação tem sido utilizado para designar procedimentos que se apoiam em moldagens, que despreza as potencialidades intelectuais, amorosas, naturais e espontâneas dos estudantes, em nome da
formatação, da imposição cultural alienante.
A crise das instituições construídas na modernidade aponta para o necessário abandono das práticas disciplinares de confinamento, de enquadramento
e de vigilância. É preciso a construção de novas abordagens, de práticas formativas que sejam centradas no movimento, na multiescalaridade, que reconheça
as diferentes territorialidades e que sejam capazes de encarar os jovens em sua
complexidade. Para tanto, é preciso que os currículos escolares sejam renovados, que novas abordagens dos conteúdos e temas sejam estabelecidas e que o
novo, com suas diversas possibilidades, que ainda não nasceu, seja estimulado e
incentivado a se desenvolver. Vivemos uma transição, a construção de uma nova
sociabilidade e, consequentemente, de um novo espaço escolar. Neste sentido, é
preciso discorrermos a respeito da existência da escola em nossos dias.
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AS INSTITUIÇÕES ESCOLARES AINDA SÃO NECESSÁRIAS?
A consequência da crise do modelo escolar e de seu descompasso em relação as juventudes, tem levado ao surgimento de diversas estratégias nos setores
público e privado, em diferentes níveis de ensino, para tornar as práticas escolares mais atraentes. Neste cenário, diversos profissionais, alimentados pela angústia, têm se debruçado a respeito dos problemas cotidianamente vivenciados
nos ambientes escolares e produzido novas abordagens de ensino. Para Deleuze
(1992) esse movimento está condenado ao fracasso. Como discutido, o pensador
francês acredita que as instituições escolares, da mesma forma que as demais
instituições construídas na Sociedade Disciplinar, constituem artefatos gerados
em uma conjuntura que não existe mais. Portanto, as reformas e o esforço para
atualizar as escolas, seriam apenas formas de gerir sua agonia enquanto as novas
forças se instalam.
Embora concordemos que a escola constitui um artefato em crise, não
confiamos no seu desaparecimento ou em seu abandono. Pelo contrário, acreditamos que a escola deve ser refundada, uma vez que ela ocupa uma posição
central no conjunto de instituições estatais, possuindo um grande valor social,
sobretudo, por potencializar o acesso ao conhecimento historicamente construído e por apresentar imensas possibilidades de fomentar novas manifestações
culturais. Contudo, para que as escolas cumpram o papel que acreditamos, é
preciso que ela seja refundada e ganhe uma importância que ultrapasse a sua
função ‘lecionadora’, assentada em ‘salas de aula’ e em professores detentores dos
saberes e dos conteúdos. É preciso que o entendimento de que as escolas são
locais, exclusivos, de transmissão de conhecimento seja abandonado.
Para tanto, é fundamental que exista a compreensão do ser humano como
um sujeito total, cujo conhecimento envolve diferentes habilidades que se articulam com valores éticos, estéticos, culturais, relacionais e emocionais. Valores
que a escola tradicional tem negligenciado em prol de conhecimentos formatados e associados a condições econômicas. Acreditamos que é preciso estabelecer
a compreensão da Educação como um processo integral, permanente e que se
realiza em múltiplos espaços. Desta forma, não podemos reduzir a ideia de uma
Educação Integral a construção de escolas de tempo integral ou de turno único.
A permanência de jovens por mais tempo no interior de espaços disciplinares,
definitivamente, não contribui para a refundação das escolas, pelo contrário,
aprofunda a crise vivenciada por esta instituição e multiplica a infelicidade de
quem é obrigado a estar em seu interior.
Para a construção de uma Educação Integral é preciso pensar as práticas escolares a partir das experiências vivenciadas em espaços exteriores.
Atualmente, parte das aprendizagens mais significativas estabelecidas pelos
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VOLUME 2
jovens ocorre fora dos muros institucionais, de modo informal e diverso, e será
fecundo que a escola possa ser contaminada por essas práticas formativas. Para
que isso ocorra é preciso que retornemos as praças, físicas ou virtuais, que a escola derrube seus muros e cercas, se abra para o diferente, para o contraditório,
que encare os espaços que compõem o tecido urbano como ambientes ricos de
experiências, como espaços educativos totais (GADOTTI, 2006).
Não podemos continuar reproduzindo dinâmicas pretéritas, que apartam
os jovens dos saberes sociais, que se assentam em conteúdos formatados, de caráter unidirecional e massificantes. As condições históricas que determinavam
um conhecimento pré-moldado, formatado e alijado não existem mais. Nossos
jovens procuram cada vez mais conectar saberes, espaços e redes existenciais
em circuitos cada vez mais complexos e globais. Eles exigem constantemente
novas formas de aprender, ensinar e de ver o mundo. Assim, os problemas e os
desafios enfrentados pelas escolas fazem parte de uma evolução histórica e não
serão solucionados com a elevação dos muros ou do tempo de confinamento.
Docentes e discentes, no seu conjunto, não podem continuar como prisioneiros
das antigas moldagens, manifestando-se como vítimas cotidianas de um artefato disciplinar fadado ao insucesso. Precisamos derrubar esses muros, e para
que isso ocorra, torna-se fundamental, construirmos uma outra relação com os
saberes, por parte das juventudes, e de uma nova forma de viver à docência, por
parte dos profissionais que atuam nas escolas.
A Educação Integral ocorre quando os saberes e as práticas estabelecidas
no interior das escolas se relacionam com os territórios usados, com as comunidades, e quando existe um profundo diálogo entre a escola e o seu entorno. No
processo de construção de uma Educação Integral é fundamental que os múltiplos territórios sejam levados em consideração, que as abordagens de ensino e a
elaboração das estruturas curriculares sejam pautadas pelas questões que emergem da sociedade. Assim, é imprescindível que sejam estabelecidas discussões
que envolvam os processos formativos que ocorrem fora dos muros escolares.
Precisamos entender que as comunidades educam, e tal fato independe do reconhecimento das instituições de ensino e de seus profissionais.
O entendimento do mundo, com suas múltiplas possibilidades, positivas
ou negativas, atingem o interior dos espaços escolares, independentemente do
tamanho do muro construído ou de suas normas de acesso. Sendo assim, é preciso encarar esses processos, aprender com eles e contribuir para que os sujeitos
passem a atuar nos territórios em que estão inseridos. Os territórios dispõem de
inúmeras possibilidades formativas. Mas, é preciso que os mesmos sejam encarados como espaços culturais de aprendizagem e de construção permanente de
saberes e práticas; é preciso que os sujeitos se apropriem dos conhecimentos que
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são produzidos nas comunidades.
Na construção de uma Educação Integral, é preciso que as escolas promovam o protagonismo, não apenas o protagonismo juvenil, mas de todos os sujeitos que compõem a comunidade escolar. É fundamental que as escolas eduquem
e sejam educadas com base nas Comunidades e que os territórios sejam reconhecidos como instâncias formativas (GADOTTI, 2006). As Comunidades, quando
reconhecidas como educadoras, potencializam os processos educativos que são
estabelecidos no interior das escolas, contribuindo para a democratização do
que se aprende, do acesso à cultura e dos saberes historicamente constituídos.
Neste sentido, ao encararmos os processos educativos para além dos muros escolares, entendemos que a escola pode contribuir para consolidar uma maior
participação dos indivíduos na resolução dos problemas socialmente compartilhados, no reconhecimento das potencialidades locais e na formulação de políticas públicas. Nas Comunidades Educativas, os sujeitos caminham sem medo,
observando e interagindo com todos os espaços, por isso é preciso que sejam
retomados os espaços que se encontram além dos muros escolares, precisamos
caminhar, física ou virtualmente, pelas ruas e pelas infovias, é preciso observar
aspectos que não são reconhecidos como significantes e valorizar os saberes comunitários como fundamentais para os processos educativos.
A construção de uma Educação Integral, pautada na construção de
Comunidades Educativas, permite que a escola assuma um novo contorno e
que todos os sujeitos conquistem o espaço escolar. Integrando-se aos territórios,
considerando ruas, praças, árvores, bibliotecas, cinemas, teatros, igrejas, bens e
serviços, assim como, bares e restaurantes, empresas e lojas. Na construção de
uma Educação Integral percebemos o caráter formativo se encontra presente em
nossas relações cotidianas. A escola precisa abandonar seu aspecto territorial,
no sentido clássico que este conceito carrega na Geografia, como um espaço
delimitado e estabelecido por relações de poder, e se transformar no elo de uma
rede, de uma estrutura multiterritorial de produção de cultura e de reconhecimento de saberes, inserindo-se, definitivamente, na vida das Comunidades e dos
sujeitos, como um espaço de promoção de práticas emancipadoras.
É preciso que a escola abandone sua função disciplinadora, assumindo
a função de ‘gestora’ de informações, de saberes e de conhecimentos. Hoje, os
artefatos tecnológicos produzem uma nova relação com o conhecimento, tornando-o mais acessível e disperso. Portanto, é imprescindível que as escolas
assumam a função de articulação desses saberes, dessas informações e desses
conhecimentos. Neste sentido, é fundamental que ocorra o rompimento com os
currículos tradicionais, historicamente alicerçados em movimentos de padronização. Assim como, é preciso que os currículos reconheçam a relevância das
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AS TRANSFORMAÇÕES PLURAIS DOS CENÁRIOS EDUCATIVOS
VOLUME 2
comunidades e que expressem em suas orientações as práticas comunitárias,
saberes socialmente reconhecidos. Portanto, ao contrário do que tem sido realizado, a construção curricular deve se basear nas incertezas, ou seja, prevendo
constantes alterações em seu transcurso. É preciso que os currículos se baseiem
em um movimento constante, sendo fundamental que a flexibilidade e a fluidez,
aspectos inerentes aos novos tempos, sejam reconhecidos nestes documentos.
No novo contexto, é preciso que a escola se afaste de sua histórica dinâmica de transmissão de conteúdos, assumindo o papel de fomentadora de autonomias. O foco das práticas docentes deve estar centrado no desenvolvimento
permanente da capacidade de resolução de problemas e de intervenção social. A
centralidade no processo de ensino-aprendizagem deve ser encarada como um
processo contínuo, uma via de mão dupla, uma vez que não existe mais espaço
para verdades absolutas, ou conceitos que não consigam se vincular com uma
realidade objetiva e reconhecida. Assim, o foco de nossas práticas deve envolver
saberes socialmente referenciados e comunitários. Neste processo, o professor
ensina, mas também aprende, uma vez que ele é um dos elos de uma rede marcada por múltiplos saberes.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir este ensaio nos reportarmos a uma frase atribuída ao filósofo
e pensador italiano Antônio Gramsci, “a crise consiste precisamente no fato de
que o velho está morrendo e o novo não pode nascer. Nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Mesmo que a frase não tenha sido
originalmente empregada com foco nas questões relacionadas neste ensaio, ela se
adequa perfeitamente a realidade vivenciada em nossas escolas, quiçá nos processos educativos estabelecidos. O novo assusta, amedronta e faz com que muitos indivíduos sejam obrigados a abandonar suas verdades absolutas. Tal fato provoca o
medo e, em alguns casos, a negação. No entanto, o novo ainda não se consolidou,
ainda estamos no início deste caminho e a insegurança, provoca grandes angústias. Vivemos um período de crise das instituições modernas e, consequentemente,
de todos os processos que são empregados no interior destas instituições.
As escolas são construções históricas e espaciais, sendo que sua expansão
e estabelecimento envolve a consolidação da Sociedade Disciplinar. Antes da clivagem modernizadora as escolas não apresentavam as características atuais, isso
se deve ao fato de que sua função normatizadora não era necessária. Não havia
a necessidade de produzir corpos dóceis, de sujeitar indivíduos para desempenharem um papel econômico (CANÁRIO, 2008). Esse projeto histórico apresentou seu
auge ao longo dos séculos XIX e XX, configurando determinadas subjetividades,
enquanto evitava o surgimento de formas alternativas. No entanto, nas primeiras
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décadas do século XXI, as instituições criadas pela modernidade passam por uma
profunda crise, reflexo principalmente de seu descompasso com as novas tecnologias de comunicação, artefatos responsáveis pelo espraiamento dos mecanismos de
disciplinarização e de soerguimento da chamada Sociedade de Controle.
Atualmente, presenciamos a passagem de estruturas rígidas e centralizadas para uma multiplicidade difusa, aleatória e flexível nos processos de construção de subjetividades. Os procedimentos de controle não se concentram mais
em um único espaço, mas se integram as redes eletrônicas-digitais, desconsiderando as fronteiras e tornando irrelevantes a distinção entre o dentro e o fora,
entre o público e o privado (HAN, 2015). Os novos procedimentos desprezam os
confinamentos disciplinares e a institucionalização torna-se irrelevante. Neste
cenário, a escola, com seus procedimentos alicerçados em mecanismos disciplinares, perde sua função, passando a sofrer profundos questionamentos quanto
aos seus procedimentos. A crise demonstra o descompasso entre os jovens e os
velhos mecanismos disciplinares e desvela uma nova relação com os saberes.
É preciso que os procedimentos estabelecidos nas escolas se desloquem
da docilidade para o fomento de autonomias. Devemos abandonar os corpos
dóceis, para a consolidação de indivíduos que sejam autônomos, que sejam capazes de se adaptarem ao novo, as novas práticas, e que não sejam apenas seguidores de ordens. É preciso derrubar os muros institucionais e abrir as escolas
para os saberes e práticas que emergem dos territórios, das Comunidades. É
preciso reconhecer a importância de saberes que não se encontram em manuais,
diretrizes curriculares e normas oficiais. É preciso que a educação se torne integral e que se estabeleça para além dos muros escolares.
Desta forma, torna-se imprescindível que as Comunidades sejam encaradas como espaços formativos. Geralmente, ignoramos, estreitamos muito nosso
olhar e não percebemos sua relevância, em outros momentos, não consideramos
suas questões como relevantes para fazerem parte de nossos currículos. Tais práticas precisam ser abandonadas, é preciso que as escolas apresentem uma dinâmica mais analítica e reflexiva, seja em relação aos problemas locais, emanados
do cotidiano e próximos, ou em relação aos inúmeros desafios globais. Em uma
perspectiva transformadora, a escola educa para ouvir e respeitar as diferenças,
reconhecer a diversidade que compõe as sociedades e desvelar as contradições
presentes em nosso tempo. Assim, é preciso que a escola esteja aberta, que ela
abrace a realidade exterior.
Na sociedade atual, marcada pelos fluxos informacionais, o papel da escola deve ser ampliado. É preciso a construção de uma escola presente nos múltiplos territórios e que seja capaz de criar conhecimentos, sem, necessariamente,
abandonar os conhecimentos historicamente produzidos. Neste processo, os
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AS TRANSFORMAÇÕES PLURAIS DOS CENÁRIOS EDUCATIVOS
VOLUME 2
docentes devem abdicar do papel de autoridades, de detentores dos saberes, para
assumirem a função de gestores, de mentores, de mediadores. As escolas precisam ser refundadas. Para tanto precisamos transformar alunos em pessoas, em
sujeitos integrais e corresponsáveis pelos processos de aprendizagem. Só nesta
condição podemos construir uma escola mais democrática e livre, uma educação de fato integral, significativa e que seja capaz de promover a felicidade
humana como um de seus princípios básicos. Permanecer amarrado ao passado representa uma escolha, porém caminhar em direção ao futuro se apresenta
como um desafio inevitável, um desafio que necessitamos enfrentar. É preciso
desemparedar a juventude.
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