Discursos de preconceito de gênero em publicações
da mídia e sua relação com a construção da imagem
da ex-presidente do Brasil Dilma Rousseff
Rosiane Alves Palacios*
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
rosiane.palacios@edu.pucrs.br
Carolina Freddo Fleck**
Universidade Federal do Pampa
carolinafleck@unipampa.edu.br
Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza***
Universidade Federal do Pampa
marciaabbondanza.aluno@unipampa.edu.br
Recibido: 21/10/2020
Aceptado: 25/2/2021
doi: https://doi.org/10.26439/contratexto2021.n035.4887
RESUMO. Esse estudo traçou argumento interligando os conceitos Teto de Vidro e
Legitimidade de Poder de Max Weber, a partir da análise de textos e reportagens eletrônicos sobre a ex-presidente Dilma Rousseff. Objetivou analisar possíveis indicações de
preconceito de gênero presentes nos textos, sua relação com a construção da imagem da
ex-presidente e a possibilidade de vigência de legitimidade de poder nos seus mandatos.
O método foi a investigação narrativa com análise de documentos e de discurso. A associação dos pressupostos teóricos trouxe elementos para a análise das nuances do poder,
* Mestranda em Administração na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Brasil (https://
orcid.org/0000-0002-7588-6358).
** Doutora em Administração na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil (https://orcid.org/00000002-1595- 0100).
*** Mestranda em Administração na Universidade Federal do Pampa, Brasil (https://orcid.org/0000-00032812-6038)
Contratexto n.° 35, junio 2021, ISSN 1993-4904, pp. 199-224
Rosiane Alves Palacios, Carolina Freddo Fleck, Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza
levando-se em conta o gênero e o entendimento do papel do preconceito de gênero em
publicações da mídia que, por noticiar textos com foco em características sexistas, participou da construção da imagem da ex-presidente.
PALAVRAS-CHAVE: Dilma Rousseff / poder / gênero / mídia / política
DISCURSOS DE PREJUICIO DE GÉNERO EN PUBLICACIONES DE LOS MEDIOS
DE COMUNICACIÓN Y SU RELACIÓN CON LA CONSTRUCCIÓN DE LA IMAGEN
DE LA EXPRESIDENTA DEL BRASIL DILMA ROUSSEFF
RESUMEN. Este estudio relaciona el techo de cristal y la legitimidad del poder de Max
Weber a partir del análisis de textos de periódicos sobre la expresidenta Dilma Rousseff.
Su objetivo fue analizar los posibles indicios de sesgo de género presentes en los
textos, su relación con la construcción de la imagen de la expresidenta y la posibilidad
de legitimidad del poder en sus mandatos. El método elegido fue la investigación
narrativa con análisis de documentos y discursos. La asociación de supuestos teóricos
aportó elementos al análisis de los matices del poder si se tiene en cuenta el género
y la comprensión del papel del sesgo de género en las publicaciones de los medios
de comunicación que, al informar sobre textos centrados en características sexistas,
participaron en la construcción de la imagen de la expresidenta.
PALABRAS CLAVE: Dilma Rousseff / poder / género / medios de comunicación
/ política
GENDER PREJUDICE SPEECHES IN MEDIA PUBLICATIONS AND THEIR RELATIONSHIP
WITH THE IMAGE-BUILDING OF FORMER PRESIDENT OF BRAZIL DILMA ROUSSEFF
ABSTRACT. This study formulated an argument linking glass ceiling to Max Weber’s
legitimacy of power based on newspaper reports about former President Dilma Rousseff.
It aimed to analyze possible signs of gender bias in such reports, their connection with
the former president’s image-building, and the possibility of legitimacy of power in
her term of office. The selected method was narrative research with document and
speech analysis. The association of theoretical issues provided elements to analyze
the nuances of power when considering gender and the role of gender bias in media
publications focused on sexism, which influenced the image-building of the former
Brazilian president.
KEYWORDS: Dilma Rousseff / power / gender / media / policy
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Contratexto n.° 35, junio 2021
Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
INTRODUÇÃO
O poder é intrínseco à política e aos cargos de representação pública (Bergue, 2010).
Embora envolva vários fatores, os indivíduos que detêm certo grau de poder devem
assegurar, a fim de mantê-lo, certo nível de legitimação (Weber, 2012), o que significa ser
visto pela sociedade como alguém capaz de representá-la e com aptidão para trabalhar
em prol do país, estado ou município. Além disso, um líder legitimado, do ponto de vista
sociológico, também irá apresentar atributos que variam conforme localização, modelo
econômico, cultura, entre outros aspectos.
Neste contexto, apesar de já exercerem cargos em que podem desempenhar a figura
do indivíduo que detém o poder, as mulheres ainda enfrentam dificuldades no processo
de legitimação deste, uma vez que o acesso aos cargos/espaços públicos ainda é restrito
para elas. Existem empecilhos, muitas vezes sutis, que são suficientes para inibir o curso
do desenvolvimento de poder e ascensão de mulheres à cargos/espaços de liderança.
Um fenômeno conhecido como Teto de Vidro (Steil, 1997) e que, conforme Kroeber et
al. (2019) e Biroli (2016, 2017), as afeta individual e coletivamente, visto que, com menor
presença, a capacidade feminina de influenciar e transformar a política se vê diminuída.
Na maioria das democracias da atualidade, a distribuição é desproporcional no
poder político (Folke e Rickne, 2016). Mundialmente, as mulheres representam somente
25% dos deputados eleitos (UN Women; Inter-Parliamentary Union, 2020). No ranking
de participação das mulheres na política (composto por 193 países), o Brasil figura no
140º lugar (UN Women; Inter-Parliamentary Union, 2020). Mesmo com a Lei nº 9.504,
de 30 de setembro de 1997, que estabelece cotas para candidaturas de mulheres em
todos os pleitos eleitorais, os números de brasileiras eleitas vêm caindo, principalmente,
após o impeachment da ex-presidente Dilma em 2016 (Senado, 2016). Nas eleições de
2018, somente sete senadoras foram eleitas (Senado, 2018) e o atual governo (2020)
tem apenas duas ministras entre os 22 ministérios brasileiros, (representando 9,1% dos
ministérios chefiados por mulheres).
Os dados demonstram que as mulheres seguem à parte nos postos que podem
lhes atribuir algum poder na esfera política. De acordo com um estudo da Procuradoria
da Mulher no Senado (2015), esta ausência feminina na política pode ser explicada por
alguns elementos como: divisão sexual do trabalho com a tripla jornada; caráter sexista
da sociedade e domínio masculino dos partidos políticos. A política parece seguir a
cartilha do público para o homem e do privado para a mulher, ou seja, ainda é uma esfera
cuja participação não compete ao gênero feminino (Perrot, 1988). Uma ideia que, aparentemente, não é pensamento exclusivo de homens, uma vez que as mulheres também não
as apoiam maciçamente para garantir a representatividade eleitoral.
Ao observar essa realidade, permitimo-nos a construção do argumento de que
o conceito de Poder e Legitimidade, de Max Weber, e de Teto de Vidro podem estar
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entrelaçados ao observar que os direitos conquistados pelas mulheres, no que diz
respeito à elegibilidade e à possibilidade de provimento de cargos públicos, podem
conter rupturas no momento em que estas, em sua maioria, não são eleitas e quando
eleitas têm seus mandatos legítimos e amparados do ponto de vista legal, mas falta-lhes
legitimidade de poder do ponto de vista sociológico, pois a sociedade ainda não reconhece legitimidade no exercício de poder por uma mulher. Mesmo já na segunda década
do século XXI, o cenário no Brasil é de que as mulheres são elegíveis, mas apenas uma
pequena parcela delas consegue preencher cargos de representação política. E tem-se a
dúvida se elas conseguem de fato exercer plenamente o poder em seus mandatos.
Partindo deste pressuposto, este estudo, que segue uma abordagem qualitativa
de pesquisa, é caracterizado como descritivo-exploratório em função de seu objetivo e
busca contribuir teórica e empiricamente com estudos de gênero que analisem a relação
das mulheres com a política. Desta forma, entende-se que o estudo, que segue o método
Narrativo de pesquisa, poderá trazer elementos teóricos de análise que podem ser
replicados em outros estudos, bem como, maior compreensão a respeito dos eventos
expostos na mídia sobre a ex-presidente do Brasil, Dilma Rousseff, que demonstram a
deslegitimação dela como líder e representante máxima do país e também como o país
tem como característica da esfera política a manutenção do Teto de Vidro.
O estudo Narrativo é um método adequado para pesquisas nas quais os pesquisadores envolvem-se mais com a narrativa dos temas, podendo os indivíduos e/ou
organizações serem relevantes ou não (Creswell, 2014). Neste caso, a ex-presidente
Dilma Rousseff e a presidência da República no Brasil (indivíduo e organização) fazem
parte do contexto de análise, porque são objetos chave para a compreensão de como a
teoria do Teto de Vidro e a teoria de Poder e Dominação de Max Weber se relacionam
para explicar a falta de acesso e suporte das mulheres em cargos políticos.
O estudo teve como objetivo identificar discursos de preconceito de gênero publicados pela mídia brasileira sobre a ex-presidente Dilma Rousseff e de que forma estes
impactaram para a manutenção de um modelo político que tem as mulheres como indivíduos não aptos para o poder, utilizando a teoria do Teto de Vidro e a teoria de Poder
e Dominação de Max Weber como base de reflexão, analisando o que as reportagens
trazem sobre mulheres no poder, especificamente no caso de Dilma Rousseff.
As técnicas de coleta de dados foram fundamentalmente documentos, ou melhor,
textos relacionados à Dilma Rousseff em sites de jornais e revistas eletrônicas utilizando-se os filtros “Dilma Rousseff”, “mulher” e “gênero”. Os sites de jornais e revistas
foram eleitos por popularidade de circulação e acesso, considerando especialmente às
mídias virtuais e a época de circulação das notícias. Inicialmente, foram listados: Revista
Veja, O Estadão, a Folha de São Paulo, Correio Brasiliense, ClicRBS, Diário do Comércio e
Revista Isto É. O site do ClicRBS, Diário do Comércio, e a Revista Isto É foram excluídos
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Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
da pesquisa por não apresentarem reportagens efetivamente relacionadas à temática pesquisada. Com os filtros Dilma, mulher e gênero, no espaço eletrônico da Veja
foram encontrados 1.590 resultados entre os elencados em primeira página de busca;
no Correio Braziliense, 315 publicações; no Folha de São Paulo, 310 publicações; e no O
Estadão, 668 publicações, totalizando 2.883 reportagens. Considerando o tempo de
pesquisa e a possibilidade de análise adequada, optou-se por selecionar quatro reportagens de cada site. As reportagens foram selecionadas por ordem de exibição na página
de busca dos jornais, ponderando a questão de importância/relevância que costuma se
atribuir neste caso1. Feito esse filtro, as reportagens foram revisadas mais uma vez com
o intuito de garantir que ficassem apenas reportagens publicadas entre os anos em que
Dilma Rousseff esteve à frente da presidência da República. Assim, ao final, ficamos com
17 reportagens para a análise.
Toda a pesquisa foi construída utilizando uma composição entre análise interpretativa e análise de discurso. A escolha por esta mescla se deu porque em algumas
reportagens (no caso de colunas de opinião) era mais acessível a análise de discurso,
uma vez que eram as falas/opiniões do próprio colunista que estavam expostas; já
em outras, eram relatos de situações associadas a ex-presidente e, por isso, caberia
mais uma interpretação do que estava apresentado do que propriamente uma análise
do discurso. Optou-se por uma análise não categorizada como a análise de conteúdo,
porque no estudo em questão não se considerou pertinente a necessidade de categorização, mas sim uma reflexão crítica sobre o que foi exposto e os impactos para a
manutenção de um cenário de exclusão das mulheres dos cargos de poder na política.
O estudo divide-se, na sequência, em dois momentos distintos: a parte da reflexão
conceitual que contempla a relação estabelecida entra as teorias do Teto de Vidro e da
Legitimidade de Poder de Max Weber e, na sequência, a reflexão a partir das reportagens
veiculadas na mídia que permitem corroborar os argumentos teóricos apresentados.
OS CONCEITOS DE DOMINAÇÃO E LEGITIMIDADE DE MAX WEBER
JUNTO AO FENÔMENO TETO DE VIDRO
Max Weber (2012) entende a dominação como um tipo singular de poder, concebida
quando um propósito pertencente a um dominador ou a agentes dominantes é evidenciado para que intervenha em ações e práticas dos indivíduos dominados. O dominador
atinge seu objetivo, a dominação, quando os dominados se apropriam do propósito
explicitado e o praticam tal qual um propósito próprio, sem ter dimensão de que este é
privativo do dominante. O domínio é operativo sobre os mandados conforme elementos
1
Na apresentação das reportagens serão apresentados, em detalhes, os números de reportagens
encontradas por veículo de comunicação.
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como intuição, inspiração ou persuasão racional e a combinação de tais fatores é determinante para o sucesso dos mandatários (Weber, 2012).
É essencial que ocorra fundamentação de práticas típicas do dominante conforme
as concepções da legitimação do poder para que a dominação possa firmar-se (Weber,
2012). O valor do poder e da dominação é posto por meio do agrupamento de diretrizes
coesas que são definidas ou pactuadas. O mandatário é legitimado por um conjunto de
preceitos e seu poder concebido como genuíno no tempo em que o estiver praticando em
conformidade com o roteiro estipulado. Há um respeito muito maior às regras do que
à pessoa do mandatário, porém, o poder pode ser respaldado pela autoridade pessoal
verificada (Weber, 2012).
Weber delimitou três tipos de dominação. O dominante pode ser carismático, tradicional ou racional-legal, conforme pode ser visualizado na Tabela 1. É por meio destas
três categorias que o dominador impõe legitimidade ao dominante. Tais arquétipos dos
líderes configuram os tipos fundamentais puros da estrutura de dominação (Weber,
2012). A fusão desses tipos puros origina perfis e contribui para a consolidação da
dominação.
Tabela 1
Tipos de poder e suas características de acordo com Max Weber
Tipos de Poder
Características
Carismático
Predicados distintos, tidos como extraordinários; se manifesta quando são outorgados
atribuições, poderes ou características sobrenaturais a certo sujeito. De uma forma
geral, líderes e governantes dos meios políticos dispõem de apurado carisma, que
figura como importante artifício de dominação de povos e grupos
Tradicional
Crença na primazia dos costumes. A conformidade e a obediência são conferidas
ao sujeito que melhor simboliza a tradição e exprime os costumes próprios de uma
localidade. As influentes famílias tradicionais; cujo posto se origina da via histórica na
conjuntura econômico-financeira e política de determinado local, são espécimes da
figura deste tipo de poder. A lealdade dos discípulos do líder tradicional determina o
gênero das regras a serem estipuladas
Racional-legal
Crença do povo na licitude; no campo do direito; nas normas e nas leis. O sujeito que
cumpre tal padrão de dominação o exerce em razão da racionalidade. A fé comunitária
na legalidade das normas e atos da administração, tanto as leis desenvolvidas pelos
mandatários quanto às normas que sustentam sua condição de liderança são o que
dão legitimidade ao poder racional-legal
Fonte: Adaptado de “Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva” de M.
Weber, 2012, (4a ed.).
Um dominador não exerce, exclusivamente, um tipo de dominação; pois, ao ocorrer a
dominação manifestam-se, mesmo que tênues, características dos demais tipos (Weber,
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Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
2012). O poder de mando em autoridade pessoal fundamenta-se na tradição; no que é
costumeiro, clássico, habitual e capaz de manter acato perante alguns sujeitos ou, do
contrário, está apoiado na fé no sobrenatural; em carisma através de pessoas que sejam
capazes de conferir amparos ou benefícios; tidos como profetas paladinos ou heróis
(Weber, 2012).
Na perspectiva da gestão, parte de que seja qual for o tipo de administração, é vital
que exista algum tipo de dominação, pois para gerir é necessário que o poder esteja
nas mãos de algum indivíduo. Referimo-nos à dominação no sentido da compreensão
de que o dominante é uma figura de poder onde o dominado o legitima como tal, onde
um representante político é agente dominante quando é eleito porque entende-se que é
legitimado, ou posteriormente à investidura em cargo público, por ser figura tradicional
ou carismática. Nesse sentido, percebe-se uma dificuldade de legitimidade feminina na
política, sendo esse espaço marcado por sexismo e constrangimentos estruturais à sua
participação, já que se trata de uma área social e culturalmente exercida por homens
(Miguel e Biroli, 2010). Com Dilma Rousseff não seria diferente, pois o fato de ser mulher,
abala a ordem estabelecida que se baseia na dominação masculina (Lima, 2020).
Ao ser naturalizada, a exclusão das mulheres da esfera pública, especialmente dos
cargos políticos eletivos, torna-se um elemento de legitimação da política como “negócio
de homens” (Biroli, 2018). Para que se possa refletir sobre qualquer oposição entre as
esferas públicas e privadas, o fator “gênero” se torna necessário uma vez que os papéis
de gênero na sociedade foram construídos com notória diferença entre atribuições femininas e masculinas. Historicamente, os homens estiveram à frente das atividades que
envolviam prestígio, como a função política, enquanto às mulheres restavam os trabalhos servis e de pouca valorização (Veblen, 1983).
Sendo assim, a divisão sexual do trabalho é a base fundamental na qual assentam-se as hierarquias de gênero das sociedades contemporâneas, acionando
restrições e desvantagens que produzem uma posição desigual às mulheres (Biroli,
2016). Objetivando elucidar a existência de desigualdades recorrentes entre homens e
mulheres no mundo do trabalho, os estudos de Glass Ceiling (Teto de Vidro) começaram a
surgir nos Estados Unidos na década de 1980 (Steil, 1997). Tal fenômeno diz respeito às
disparidades vivenciadas pelas mulheres ao longo da evolução do processo de ascensão
ao mercado de trabalho; as barreiras discriminatórias são baseadas no sexo biológico
em vez de considerar-se experiência laboral, currículo ou méritos (Folke e Rickne, 2016).
No caso de Dilma Rousseff; mesmo tendo vasta experiência na vida pública, em que
desde os 16 anos de idade inseriu-se em movimentos sociais, além de ter ocupado os
cargos de Secretária de Estado, bem como Ministra de Estado; como é possível afirmar
que ela não era apta ao cargo de presidente por nunca haver concorrido a um cargo
eletivo?! (Amaral, 2011).
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No geral, a maioria das mulheres encontra-se em cargos que exigem um raso grau
de autoridade e proventos (Morrison e Von Glinow, 1990). Esta realidade não é exclusiva
de organizações privadas, pois tal cenário não é raro em organizações públicas (Vaz,
2013), mas a resignação feminina em relação aos homens é uma concepção ativa da
sociedade e não depende de profissão ou ocupação; desde os subordinados aos mais
elevados cargos, geralmente, as mulheres são menos valorizadas (Chies, 2010).
Os entraves que alimentam o teto de vidro ainda dificultarão a prosperidade do
gênero feminino, pois longo é o caminho a ser alcançado se comparados aos direitos
e espaços conquistados pelos homens (Morrison e Von Glinow, 1990). Um país com
uma liderança feminina tampouco significa o fim da discriminação de gênero, pois não
é possível correlacionar presença feminina e “voz feminista” (Biroli, 2010). Ademais, o
processo de desconstrução ou privação de legitimidade política nas candidaturas femininas ocorre quase sempre sob a lógica sexista presente na sociedade (Lima, 2020), o
que claramente pode ter ocorrido com Dilma Rousseff.
Diante do exposto, é possível relacionar Teto de Vidro, considerando a dificuldade
da valorização e naturalização das mulheres na vida política, com a carência de requisitos estabelecidos por Weber como imprescindíveis para o exercício do poder e sua
legitimação. O próximo tópico intenciona elucidar, brevemente, sobre o quanto diferentes
tipos de violência ganhavam legitimidade quanto à tentativa de estigmatizar e desacreditar a imagem pública de Dilma Rousseff.
A MÍDIA E A IMAGEM PÚBLICA DE DILMA ROUSSEFF
Além de noticiar fatos, a mídia apoia a população na formação de opinião, e converteu-se
em influente estação de aprendizado, motivando e parametrizando pautas de conteúdos
públicos para expectadores entenderem política, mundo e globalização; ela também
impacta a imagem que líderes políticos e sociais têm para a sociedade (Guazina, 2007). A
mídia é empregada para relatar os episódios que derivam do processo político; para tentar
demonstrar a influência institucional e a atuação dos meios de comunicação no meio político (Ibid). No Brasil, após o fenômeno Collor, estudiosos de diversas áreas passaram a
assentir a dimensão da influência da comunicação de massa no sistema político.
Lima (2020) analisou como Dilma Rousseff sofreu preconceito de gênero durante
suas campanhas políticas, governo e processo de impeachment com base em discursos
e imagens atribuídos a ela em redes sociais como Facebook, além de blogs e revistas. De
acordo com a autora, já em 2010 no primeiro mandato, Dilma Rousseff teve o machismo
como um dos seus grandes desafios. Entretanto, em 2014 os ataques foram intensificados, onde o uso exacerbado das mídias sociais foi utilizado para desqualificar sua
imagem pública. Biroli ressalta que “em revistas semanais, a estigmatização de Rousseff
como incompetente politicamente se deu no recurso a estereótipos convencionais
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Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
de gênero, nos quais a mulher é associada ao destempero emocional” (2018, p. 78). É
comum encontrar observações que corroborem à anterior, pois, a imagem vinculada a
Dilma Rousseff relativa à sua personalidade, de modo geral, foi de “mau-humor, impaciência e inflexibilidade” (Corrêa, 2014).
A produção de humor político contra a autoridade, anônima ou não, é prática recorrente; porém, difere contextualmente em relação a seus alvos, formatos e conteúdo
(Berger, 2017). Nesse sentido, “a dimensão generificada do humor político mobilizou
estereótipos sexistas e misóginos que não apenas atingiram Dilma Rousseff, mas reforçaram o próprio lugar simbólico das mulheres na política nacional” (Carniel, Ruggi e
Ruggi, 2018, p. 523). Tais autores categorizaram os seus achados em despersonalização ou invisibilização; humilhação ou ridicularização; objetificação ou sexualização; e
agressão ou violência. O que pode ser visto em relação a Dilma Rousseff foram sátiras,
“memes” e todo tipo de constrangimentos associados não somente à sua postura como
também à sua idade, aparência física e vestimentas.
O preconceito de gênero direcionado a Dilma Rousseff não ocorreu somente por
parte dos veículos midiáticos, como também por parte dos “leitores” (Stocker e Dalmaso,
2016). As autoras também atentam para a falta de responsabilidade do jornalismo sobre
reações e desdobramentos gerados por suas notícias publicadas, sobre a importância do
monitoramento de comentários de usuários do Facebook, sendo preocupante a expressiva recorrência de comentários violentos e desrespeitosos direcionados não somente à
ex-presidente, como também a todas as mulheres, dos quais “denotam a urgência de se
discutir e problematizar a desigualdade de gênero em nossa sociedade, principalmente
no campo da comunicação” (Stocker e Dalmaso, 2016, p. 688).
Assim, após a exposição do argumento teórico e uma síntese de estudos que tornaram
explícitas algumas dificuldades enfrentadas pela ex-presidente Dilma Rousseff, principalmente, durante seus mandatos, apresenta-se o tópico de discussão e análise dos
resultados seguindo a metodologia empregada pelo estudo.
APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A legitimação das mulheres como indivíduos atuantes e capazes de desempenhar plenamente as funções dos altos cargos e manterem-se no poder está longe de ser alcançada,
como pode ser visto a partir dos resultados dos estudos apresentados no tópico anterior.
Bem como perpetuam a ideia do fenômeno do Teto de Vidro, mantendo as mulheres em
cargos que as impossibilitem de ascender tanto em nível hierárquico, como por poder.
Considerando esta perspectiva, pode-se analisar que, em 2011, Dilma Rousseff parecia
começar a quebra dessa barreira ao ser eleita a primeira mulher presidente da República
no Brasil. Passaria ela a ser sinônimo da ascensão das mulheres, de maior igualdade de
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gênero nas diferentes esferas do poder, de quebra do fenômeno do Teto de Vidro e da
Legitimação do poder feminino? Os resultados que serão apresentados na sequência
demonstram que não.
As ofensas e o pensamento machista que buscaram desqualificá-la para o cargo,
realmente estiveram presentes na mídia, não apenas no ano que levou ao seu impedimento como presidente, mas desde o primeiro ano de seu primeiro mandato. Como
forma de trazer maior coerência para as análises, as reportagens serão apresentadas
em dois blocos distintos: um considerando os anos de 2011 a 2015, conforme a Tabela 2,
período em que Dilma Rousseff esteve à frente da presidência da República; e outro
considerando 2016, conforme a Tabela 3, ano de seu impedimento, no qual ela foi alvo
constante de matérias que a questionavam como presidente, como líder, como mulher e
que reforçaram ainda mais os estereótipos que levam à deslegitimação das mulheres na
política, em cargos de poder e acabam por reforçar o fenômeno do Teto de Vidro.
Tabela 2
Reportagens sobre Dilma Rousseff quando esteve à frente da presidência do Brasil de 2011 a 2015
Título
Síntese
Ano
O ano em que elas
governaram o mundo
Correio
Braziliense
Relata acontecimentos que deram
destaque às mulheres na política e na
economia no cenário mundial e fala das
críticas do movimento feminista à atuação
de Dilma
2011
Quem manda sou eu
A Folha de
São Paulo
Critica Dilma por nomear elevado número
de mulheres para cargos importantes
do governo e usar o termo presidenta,
discorrendo exemplos em que o termo se
torna motivo de zombaria e menosprezo
2014
Em entrevista, Dilma atribui
críticas a preconceito de
gênero
Veja
Comenta entrevista concedida por
Dilma ao Washington Post denunciando
preconceito de gênero à comunidade
internacional
2015
Dilma deveria ter lido em
março de 2010 o aviso
mediúnico de Celso Arnaldo:
Homo Sapiens vale para
os dois gêneros. Não tente
inventar uma ‘Mulier Sapiens’
Veja
Aborda o modo de Dilma expressar-se
em discursos, citando Celso Arnaldo e seu
livro “Dilmês: o idioma da Mulher Sapiens”,
no qual satirizou os discursos de Dilma
como presidenciável e presidenta.
2015
Ministro Marco Aurélio: “Eu
não queria estar na pele da
presidente Dilma”
Correio
Braziliense
Entrevista sobre a solidão da presidente
Dilma, a operação “Lava-Jato” e os 25
anos de atuação no Supremo Tribunal
Federal
2015
Fonte: Elaboração própria
208
Veículo
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Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
No período que compreende os anos de 2011 a 2015, foram cinco reportagens que
apresentaram destaque no material selecionado neste estudo. É possível perceber, a
partir das informações sintetizadas na Tabela 2, que já existia um discurso crítico na
mídia, com relação à, então, presidente Dilma Rousseff. Os textos questionam seu modo
de expressão; a forma como precisa, a todo momento, se impor como autoridade e seu
posicionamento como mulher, inclusive com críticas do próprio movimento feminista que,
em uma análise simples de contexto, deveria apoiá-la porque certamente uma mulher
eleita presidente da República seria um dos símbolos máximos para um movimento que
luta por igualdade de direitos e oportunidades para mulheres e homens.
A primeira publicação analisada, datada de 2011, é reportagem de capa do Correio
Braziliense intitulada “O ano em que elas governaram o mundo”. Uma reportagem que
cita feitos inéditos e positivos para avanços femininos em representatividade, como a
inclusão de número significativo de mulheres em ministérios e o fato de Dilma ter sido a
primeira mulher a discursar na ONU. Mas, ao mesmo tempo que enaltece, a reportagem
atenta para críticas que Dilma Rousseff recebeu dos movimentos feministas tendo feito
pouco pelas mulheres em seu primeiro ano de mandato, parecendo que se esperava
mais sobre gênero, da primeira presidente do Brasil. Considerando o argumento de que
a deslegitimação mantém o fenômeno do Teto de Vidro, infelizmente essa reportagem
demonstra que as críticas do movimento feminista, que deveria ser um movimento de
apoio à primeira mulher eleita presidente, acabavam por impactar justamente como um
dos primeiros exemplos de deslegitimação desta mulher no poder.
As outras reportagens remetem aos anos de 2014 e 2015, demonstrando que o final
do primeiro mandato e início do segundo foram os momentos em que os discursos se
intensificaram de forma contrária à Dilma Rousseff e ao espaço que estava ocupando
como presidente da República. São reportagens e textos de colunistas (opinião)2 que
relatam aspectos sobre a personalidade e forma de expressão de Dilma Rousseff. Ou
ainda, analisam o isolamento e falta de legitimidade dela (como a entrevista com o Ministro
Marco Aurélio), demonstrando que os espaços de poder estavam limitados, justamente,
para aquela que seria o exemplo máximo de poder no país, a presidente da República.
Algumas frases, como o trecho extraído da reportagem da Veja escrita por Gabriel Castro,
em 2015 (destaque na sequência), demonstram que a própria ex-presidente sentia o
reflexo das análises sobre seu comportamento como forma de diminuí-la no cargo.
Você já ouviu alguém dizer que um presidente homem põe o dedo em tudo? Eu nunca
ouvi isso. Eu acho que existe um pouco de preconceito de sexo, ou preconceito de
2
Entende-se neste estudo que, por ter respaldo da equipe editorial do veículo de comunicação, os textos
de opinião também podem e devem ser analisados como material que vai impactar na formação da
imagem pública de Dilma Rousseff, uma vez que estes textos também recebem atenção do público
leitor e podem influenciar a formação de sua opinião a respeito de algo ou alguém.
Contratexto n.° 35, junio 2021
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Rosiane Alves Palacios, Carolina Freddo Fleck, Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza
gênero. Eu sou descrita como uma mulher dura e forte que mete o nariz em tudo
em que não deveria, eu sou (descrita como) rodeada de homens meigos
A fala reproduzida reforça um estereótipo que vem ao encontro do que a teoria
do fenômeno do Teto de Vidro demonstra, que as mulheres vivenciam cotidianamente
barreiras para ascender ao poder e que as que eventualmente ascendem, são rotuladas
por estereótipos associados a comportamento masculinos e femininos. Neste caso, não
apenas Dilma Rousseff é apontada como alguém de comportamentos masculinos, como
os homens que estão à sua volta teriam comportamentos femininos e isso poderia ser
uma justificativa para ela estar no cargo. Os homens à sua volta não seriam capazes.
Ou seja, Dilma Rousseff foi eleita, mas as dificuldades no desempenho das atribuições presidenciais são claramente expostas. E, em meio a um período conturbado
como aquele que o Brasil vivia à época, um cenário caótico com a operação Lava Jato
expondo constantemente novos casos de corrupção e desvelando uma rede corrupta
que abarcou boa parte, para não dizer a maior parte, do grupo político então presente no
congresso e no senado federal. Um presidente homem também sofre críticas, a crítica
acompanha uma pessoa que assume um cargo de poder. Mas o que tem sido identificado,
não apenas neste estudo, como em outros já mencionados aqui, não do mesmo calibre.
Apesar dos avanços, persistem diversas barreiras para a plena ascensão das mulheres
(Steil, 1997). As declarações da mídia contribuem para a construção da imagem pública
da governante (Weber, 2009), que é importante para a legitimação do poder (Weber, 2012).
Após ser eleita para seu segundo mandato, Dilma Rousseff passou a receber críticas
mais duras e a perceber o preconceito de gênero de maneira mais intensa. Mas, o ano de
2016 foi o período em que mais reportagens sobre ela foram publicadas e reforçaram
a reflexão teórica apresentada. A barreira do Teto de Vidro foi imposta a ela pela deslegitimação para o cargo. Dilma Rousseff foi eleita presidente do Brasil duas vezes, mas
não foi considerada apta o suficiente para permanecer no cargo e exercer o poder a este
atribuído. Para realizar uma análise mais detalhada das informações referentes à 2016,
a Tabela 3 exibe as publicações que se relacionam aos períodos de antes, durante e pós
impeachment, sendo colocadas por ordem cronológica de publicação. Nas análises referentes a 2016, optou-se por apresentar com mais detalhe os textos das reportagens, de
forma a exemplificar mais os estereótipos de deslegitimação reproduzidos.
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Contratexto n.° 35, junio 2021
Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
Tabela 3
Reportagens sobre Dilma Rousseff no ano de seu impeachment
Título
Veículo
Síntese
Ano
Valentina de botas: negligente com a língua e o país,
Dilma Rousseff inaugurou o
populismo de gênero
Veja
Critica a forma como Dilma referia-se ao cargo que 2016
ocupara (presidenta), e como se intitula para criar
figura populista, ironizando colocação mais antiga
em discurso onde ela afirmou que teria nascido e
crescido em todos os estados brasileiros
Em novo uso ilegal do
Palácio do Planalto, Dilma
tenta privatizar as mulheres
Veja
Critica o “Encontro com Mulheres em Defesa da 2016
Democracia” onde Dilma recebeu mulheres para
debater democracia
Dilma Rousseff diz, em
entrevista, que país tem
“veio golpista” adormecido
Correio
Braziliense
Comenta entrevista concedida por Dilma sobre 2016
machismo na política, histórico de pedidos de
impeachment em todos os mandatos de presidentes
brasileiros, apoio à ditatura no processo de
impeachment
Deputados aprovam abertura do processo de impeachment de Dilma
A Folha de
São Paulo
Noticia a aprovação do processo de impeachment de 2016
Dilma
A importância dos símbolos
O Estadão
Escreve sobre os desafios do presidente interino 2016
Michel Temer, ausência de mulheres em ministérios
e coloca que, com Dilma, as mulheres já tiveram sua
chance na política e a desperdiçaram
Análise: Por que ser mulher
na política é (e não é) um
fator importante
O Estadão
Sobre a aptidão de homens e mulheres para a 2016
política, baixa representação feminina em cargos
como ministérios e ativismo de grupos feministas e
LGBTQI+
Pensam que nos venceram
mas estão enganados
O Estadão
Remete às esperanças de Dilma de não ser cassada, 2016
atribui a possível cassação também a machismo e
misoginia
Dilma, o feminismo e o
machismo
O Estadão
Questiona as alegações de Dilma sobre sofrer 2016
impeachment por ser mulher e ser de esquerda.
Critica uma possível vitimização da mulher, muitas
vezes feita por feministas.
Desvio de autoria
O Estadão
Fala das vitórias de Dilma e do pedido de condenação 2016
por impeachment atribuindo suas vitórias a
apadrinhamentos políticos de homens e a um
marqueteiro eleitoral
Ruim pra elas: 2016 nunca
será esquecido por líderes
como Hilary e Dilma
Correio
Braziliense
Aponta resultados considerados negativos para 2016
mulheres no cenário político internacional, em que
vinham se revelando líderes mundiais e sofreram
derrotas políticas, demonstrando que o preconceito
de gênero pode estar aparente ou velado
Gênero, Número e Grau
A Folha de
São Paulo
Analisa dificuldades históricas enfrentadas pelas 2016
mulheres, enfatizando atuais desafios da política
brasileira, aborda estereótipos femininos e situações
enfrentadas por Dilma desde o primeiro mandato
Pode uma mulher governar?
A Folha de
São Paulo
Comenta os desafios das três principais líderes
mulheres da América Latina: Dilma Rousseff, Cristina
Kirchner e Michele Bachelet
2016
Fonte: Elaboração própria
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Rosiane Alves Palacios, Carolina Freddo Fleck, Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza
Na publicação da Veja, “Valentina de botas: Negligente com a língua e o país, Dilma
Rousseff inaugurou o populismo de gênero” de 2016, novamente, a opção de Dilma por
ser referida como presidenta é criticada pela mídia. O colunista volta a atribuir juízo
pessoal de valor tratando com deboche a metáfora da presidente, questionando sua
moral e inteligência.
A essa farsante, não basta ser presidente, isso qualquer uma pode ser: ela é ‘presidenta. ... Autoritária como toda figura erigida na mentira, manipuladora como todo
populista e de dentro do seu raquitismo intelectual e moral, na confluência de suas
26 reencarnações simultâneas geridas pelo único neurônio, jamais renunciará à
construção mistificadora para compreender o Brasil e tornar-se tudo o que não é:
apenas uma brasileira decente e, então, uma presidente decente.
A palavra farsante denota total ausência de legitimidade (Weber, 2012). Uma representante política eleita democraticamente, mesmo não tendo a simpatia de todos, não
deve ser injuriada e julgada farsante. O autor pode não ver legitimidade em Dilma por
não reconhecer nela características próprias da dominação (Weber, 2012; Lima, 2020),
e inúmeras podem ser as motivações para tal, até mesmo a questão de gênero, por
ser a primeira mulher a ocupar tal cargo, mas não caberia a um veículo de comunicação reproduzir tais palavras se não fosse com o intuito de demonstrar e reforçar um
discurso de falta de aptidão da então presidente para permanecer no cargo.
Novamente na Veja: “Em novo uso do Palácio do Planalto, Dilma tenta privatizar as
mulheres”. O autor do referido texto, Reinado Azevedo, diz que Dilma tenta “privatizar”
as mulheres, termo que pode ser interpretado no sentido de vender ou tornar particular.
Se aquele era o encontro das mulheres “em defesa da democracia”, deve-se supor
que as que defendem o impeachment ou são contrárias à democracia ou mulheres
não são. ... [Márcia Tiburi] disse que as críticas sofridas por Dilma são “do nível
do estupro político”. Esta senhora só apelou a tal metáfora porque Dilma é mulher.
Assim sendo, seus adversários, se homens, são potenciais estupradores; se
mulheres, condescendentes com o estupro.
O autor do texto tenta ainda desprestigiar outra mulher, como profissional, ao
ironizar declarações justamente contrárias ao que a mídia vinha expondo, à época, sobre
a ex-presidente. O autor parece reprovar a mescla de questões políticas com questões
de gênero, porém, acaba as associando, disparando que Dilma aceitou ser serva de um
“macho alfa”, considerando isso degradante. “Dilma aceitou ser a serva do macho alfa,
naquele que é, sim, o mais triste papel que uma mulher, diante de suas semelhantes,
poderia desempenhar no poder”.
Para Morrison e Von Glinow (1990) ficam evidentes entraves que compõem o Teto
de Vidro que dificultariam profissionalmente as mulheres por muito tempo, pois muito
é degradante que mulheres precisem de homens para exercer poder, mas não podem
fazê-lo sem a validação de um.
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Contratexto n.° 35, junio 2021
Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
Já no período de instauração e da primeira etapa do processo de impeachment,
votado na Câmara de Deputados, a Coluna Política do Correio Brasiliense publicou: “Dilma
Rousseff diz, em entrevista, que país tem ‘veio golpista’ adormecido”:
Ela fez a colocação ao dizer ter certeza de que não houve um único presidente no país que não tenha sido alvo de pedidos de impeachment entregues à
Câmara dos Deputados desde a redemocratização. ... o impeachment “se tornou
um instrumento sistematicamente usado contra presidentes eleitos”, desde
o governo Getúlio Vargas. Dilma não mencionou que em 1992 o PT, à época na
oposição, apoiou o impeachment do então presidente Fernando Collor de Mello.
Posteriormente, também pediu o impedimento do tucano Fernando Henrique
Cardoso. ... A presidente foi questionada sobre o que achou do voto do deputado
federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), que dedicou ao general Carlos Alberto Brilhante
Ustra a posição favorável ao impeachment. “Eu acho lamentável. Eu fui presa nos
1970. De fato, conheci bem esse senhor ao qual ele se refere, foi um dos maiores
torturadores do Brasil. Recai sobre ele não só acusação de tortura, mas de morte.
É só ler os papéis da Comissão da Verdade e outros relatos. Lastimo que esse
momento tenha dado abertura à intolerância ao ódio ou outro tipo de fala. A aventura golpista levou a uma situação que não vivíamos no Brasil, que é a de raiva,
ódio, perseguição”, respondeu, com a voz embargada. ... Questionada, Dilma disse
haver um componente de machismo no processo que corre contra ela. “Tem misturado nisso tudo um grau de grande preconceito com uma mulher. Tem atitudes
comigo que não teriam contra um homem”, avaliou.
Dilma Rousseff demonstra que a instauração do impeachment decorre de um sentimento e heranças políticas e culturais dos políticos brasileiros em tentativas de praticar
golpes de estado para conquistar a presidência. Indica que o Brasil culturalmente ainda
não aprendeu a lidar com a democracia e com a existência da oposição. Fala dos sentimentos de ódio, raiva e perseguição, envoltos sob aspectos aos quais alega ser vítima
colocando que as injustiças sofridas também decorrem de herança cultural machista e
afirma que seria diferente caso fosse homem, o que corrobora com os estudos de Teto de
Vidro. A ex-presidente do Brasil levanta a questão do preconceito de gênero que alegou
sofrer, do qual poucos no Brasil negam, mas que muitos não consideram de grande
impacto para cassação presidencial. Em O Estadão, a Coluna Opinião de 2016, fala sobre
desafios do presidente interino Michel Temer, e ausência de mulheres em ministérios:
Pode-se argumentar, sem que isso implique machismo, que a questão de gênero
não interfere necessariamente no nível de qualidade de uma equipe. Pode-se
argumentar, aí, sim, com despudorado machismo e tendo em vista o fiasco de
Dilma Rousseff, que as mulheres já tiveram sua chance e a desperdiçaram.
Fica evidente a opinião de que mulheres não devem mais pleitear o cargo político
ocupado por Dilma Rousseff. Pode ser que para a Coluna, as mulheres tenham ainda
que encarregarem-se dos espaços privados, deixando a vida pública aos homens, o que
Contratexto n.° 35, junio 2021
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Rosiane Alves Palacios, Carolina Freddo Fleck, Márcia Vanessah Pacheco Abbondanza
conforme Perrot (1988) vêm historicamente acontecendo e transparece que mulheres
carecem de permissão para inserirem-se na política.
Reportagem do Estadão parece complementar tal argumento: “Análise – Porque ser
‘mulher’ na política é (e não é) um fator importante”, destacando no texto que a questão
de gênero não deveria ser determinante para escolher políticos. Porém, após expor
panorama de participação feminina na política, bem como avanços e contribuições de
feministas para a agenda, a publicação propõe que feministas e movimentos LGBTQI+,
devido à forma como conduzem os debates, não colaboram para avanços, pois desafiam o atual sistema e se contradizem em seus objetivos, centrando o debate apenas em
gênero. A reportagem apenas reforça que as questões de deslegitimação estão fortemente enraizadas na forma como a sociedade brasileira perpetua estereótipos.
Ser mulher não é tudo que uma pessoa é. Diz muito pouco da trajetória individual
e não deveria ser elemento significativo para a escolha (ou não) de um representante. ... Não se pode comparar duas mulheres ou mesmo dois homens. ... Há uma
evidente deformação na democracia representativa. ... menos mulheres deputadas e senadoras do que o Oriente Médio, ficando com a vergonhosa posição 116
no ranking com 190 países.
Em sociedades igualitárias o gênero não influencia qualquer tipo de diferenciação,
ideologia ou meritocracia, porém, estas são minorias e o gênero ainda é determinante na
maioria dos grupos sociais. Por vezes, considera-se que grupos progressistas possam
errar o tom se segmentando, distorcendo, radicalizando ou incluindo outros elementos
na agenda que não são pertinentes ao debate.
Em notícia de pronunciamento de Dilma em 2016, após o Senado aprovar o impeachment, Fausto Macedo traz relatos da ex-presidente para O Estadão: “‘Pensam que
nos venceram, mas estão enganados’, afirma Dilma”. A nomeação da matéria parece
remeter às esperanças de Dilma, mas ao longo do texto atribui-se a cassação também a
machismo e misoginia, enfatizando o fato da primeira presidente ser deposta sem crime
de responsabilidade.
O projeto nacional progressista, inclusivo e democrático que represento está sendo
interrompido por uma poderosa força conservadora e reacionária, com o apoio de
uma imprensa facciosa e venal ... Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta
do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment ...
O golpe é contra o povo e contra a Nação. O golpe é misógino. O golpe é homofóbico. O
golpe é racista. É a imposição da cultura da intolerância, do preconceito, da violência
... Esta história não acaba assim ... Às mulheres brasileiras, que me cobriram de
flores e de carinho, peço que acreditem que vocês podem. As futuras gerações de
brasileiras saberão que, na primeira vez que uma mulher assumiu a Presidência do
Brasil, a machismo e a misoginia mostraram suas feias faces.”.
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Contratexto n.° 35, junio 2021
Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
Supondo que as declarações de Dilma sobre o peso da questão de gênero em seus
mandatos e no processo de impeachment sejam consideradas, os dogmas da dominação e da
superioridade poderiam estimular pensamentos negativos sobre as aptidões de mulheres
em relação a homens e se converterem em caminhos falhos (Chies, 2010). Equivocada, a
questão de gênero é pouco relacionada à estrutura da sociedade, restringindo-se aos
empecilhos corporativos (Schipani et al., 2009), onde Dilma somente teria sido cassada por
crime de responsabilidade, interesses políticos, oposição e investigações de corrupção sem
considerar gênero; porém, mesmo tendo o Brasil elegido uma mulher e tendo legislação
de cotas eleitorais de gênero, os números da participação feminina na política são pouco
expressivos e não se sabe se as eleitas conseguem, de fato, exercer o poder nos mandatos.
As reportagens analisadas a seguir foram todas publicadas logo após o impedimento
de Dilma Rousseff e focam a análise nas razões pelas quais o preconceito de gênero teve
ou não reflexo em todo o processo. No Estadão, Marco Aurélio Nogueira analisa e opina
sobre: “Dilma, o feminismo e o machismo”.
Muitos acreditaram que Dilma estaria pagando alto preço por ser de esquerda e
por ser mulher, uma vítima da misoginia que impera na política nacional. E todos os
que a criticaram, no caso daquela frase, estariam perfilados entre seus carrascos.
Machistas, portanto. ... Dizer que o impeachment está associado ao machismo é
dessas boutades que não honram nenhuma causa. Impede que se veja a realidade, a escamoteia e distorce. Converte a mulher num subcidadão, um ser passivo
sempre submetido à exploração e à dominação masculina. Apresenta a política
como uma luta entre sexos e gêneros, não entre classes e indivíduos. Seu mote
principal — estou a ser afastada por um bando de homens reacionários por ser a
primeira presidenta eleita pelo voto popular no Brasil — mostra bem como falta
uma explicação política razoável para o que se passa no Brasil. Há que se fazer
algum desconto aqui, contextualizar a fala, relativizar o tom passional. Afinal, há
machismo em tudo o que respira nessa terra Brasilis, portanto, também no impeachment ... Como Dilma não é uma pessoa qualquer, não deveria tropeçar demais.
Afinal, o que se espera dela é que defenda seu mandato, e o faça com competência,
pensando no futuro, nos ajudando a prepará-lo.
Embora reconheça que em tudo, no Brasil, existe um pouco de machismo, Nogueira
parece ver exagero nas alegações de Dilma sobre impeachment e machismo. Considera
importante diminuir o peso do sexismo, criticando uma possível vitimização da mulher,
muitas vezes feita por feministas. Contesta também a ex-Presidente por não explicar
melhor seu afastamento para além das questões de preconceito de gênero, indicando
que Dilma Rousseff excluiu de sua reflexão argumentos outros que a levaram à destituição do cargo.
Dora Kramer para O Estadão escreveu a reportagem “Desvio de autoria”. A repórter
parece propor que não foi Dilma quem venceu as eleições que concorreu; protagonizou
as vitórias, porém, as atribui a homens.
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Um dos argumentos de defesa apresentado por Dilma Rousseff aponta o preconceito de gênero para o afastamento dela. “Querem condenar injustamente uma
mulher que ousou ganhar duas eleições consecutivas”. Feito protagonizado, mas
não construído por ela. Os engenheiros das obras foram dois homens. A primeira
erguida por Luiz Inácio da Silva. A segunda com base nas ilusões marqueteiras
elaboradas por João Santana.
Apesar do legado político de seu antecessor, e de bom marketing eleitoral, não seria
Dilma, pessoa com considerável formação acadêmica e experiência em cargos da gestão
pública, alguém capaz de vencer uma eleição por si mesma? Quais seriam as motivações
para tal afirmação? Provavelmente, algumas das políticas eleitas façam sucessão a
homens, pois eles são a maioria como, e sucedam pais, cônjuges ou personalidades partidárias; tenham apadrinhamento, mas pode ser que demandem permissão de homens
para pleitear cargos políticos, pois historicamente a política é espaço masculino e as
relações de poder são prevalecentes entre os gêneros (Perrot, 1988). O senso comum
trata Dilma como figura coadjuvante de homens, trazendo elementos que mostram a
relação das teorias do teto de vidro e da legitimação.
“Ruim pra elas: 2016 nunca será esquecido por líderes como Hilary e Dilma”, reportagem do Correio Brasiliense que faz uma análise sobre o espaço das mulheres na política
em 2016 e as repercussões dos acontecimentos, demonstrando que, mundialmente, foi
um ano em que as mulheres perderam espaço, voz e força política.
Em 31 de agosto passado, com a voz embargada, Dilma Rousseff declarou:
“Acabam de derrubar a primeira mulher presidenta do Brasil, sem que haja qualquer justificativa constitucional para este impeachment”. Ela denunciou um golpe
contra o direito das mulheres. No primeiro ano após não eleger um sucessor, a
argentina Cristina Kirchner se viu às voltas com vários problemas na Justiça, os
quais minaram seu capital político. Nas eleições regionais de 23 de outubro, a líder
de centro-esquerda chilena Michelle Bachelet viu os rivais da direita vencerem na
maior parte dos municípios. ... Definitivamente, 2016 não foi o ano das mulheres na
política internacional. Para a britânica Rainbow Murray, especialista em políticas
de gênero da Queen Mary University of London, apesar de o gênero não ter sido o
único fator dos contratempos, ele acabou por não ajudar as líderes. “Os problemas
que elas enfrentaram são, em parte, reflexos do fato de que não existem mais
mulheres líderes no mundo. No turbulento clima político global, os governantes
de ambos os sexos enfrentaram batalhas. As mulheres são, frequentemente,
avaliadas com menor valor e mais negativamente, independentemente de sua
performance atual, o que as torna vulneráveis politicamente”, admitiu ao Correio.
Considerando a onda conservadora que se instaurou no mundo político de 2016 para
cá, não seria a questão da deslegitimação da mulher um fator intrinsicamente ligado à,
justamente, retomada do poder em muitos países de grupos fortemente conservadores
e com perfil voltado para a manutenção da baixa participação feminina na política? Fica
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Contratexto n.° 35, junio 2021
Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
uma reflexão para outros estudos que possam aprofundar as questões do conservadorismo e machismo, associando ao fenômeno do teto de vidro e a deslegitimação do poder
das mulheres. As reportagens a seguir trazem elementos que podem contribuir para
este futuro debate.
Ambas do Folha de São Paulo, ainda no ano de 2016. Primeiro, Angela Alonso escreveu
“Gênero, número e grau”. O texto mostra visão desanimadora sobre a realidade feminina,
lutas e expectativas de novas conquistas, esmiuçando a questão das violências contra
as mulheres no Brasil e no mundo, e revelando o quão forte são preconceito e violência
de gênero, independente da classe econômica. Com mulheres tendo rebaixamento intelectual e emocional por parte da sociedade; um percentual de 90% dos parlamentares
brasileiros sendo homens (com remuneração maior), fica difícil que mulheres possam
chegar à presidência. Alonso diz que Dilma atreveu-se a colocar-se na posição de um
homem e relembra o “tchau querida” (repetido nas manifestações pró Impeachment)
propondo que o bordão foi proposital, pois o país aparenta ficar mais confortável sob
ministério masculino.
É assim desde Adão e Eva, Bentinho e Capitu. ... A dominação patriarcal é traço
da cristandade em geral e de nossa sociedade em particular. O fenômeno causa
consternação episódica, quando descamba violência física extrema, vide o espancamento que converteu Maria da Penha – a homenageada no nome da lei – em
paraplégica, ... Casos assim chocam. Mas logo a mídia e a opinião pública se enfastiam. Sobram as feministas, apenas toleradas e tidas por chatas recalcadas. No
cotidiano sem graça, longe das câmeras, volta a toada, que pouco mudou desde os
tempos de Machado de Assis. ... Supremacia física, moral, profissional, financeira
dos homens sobre as mulheres. ... Fugir do roteiro é perigoso ... O fenômeno
cliva a vida pública. Em outdoors, revistas, propagandas de televisão, o jovem é o
predador, a moça o objeto de sedução e domínio, duas coisas confundidas. Já as
mulheres mais velhas ou com filhos aparecem como chiliquentas. ... É assim na
economia como na política. O congresso está lotado de machos: perfazem 90% dos
parlamentares. Assim fica difícil ter uma presidente. Não é atoa o “tchau querida”.
O país parece mais confortável sob o ministério masculino – de provectos, brancos,
em maioria, suspeitos de corrupção. A ausência de mulheres é a cereja do bolo de
um governo anti-moderno. ... Mas como todos os assuntos, este é complexo. Parte
das mulheres contribui para a reprodução do esquema que as subjuga. É o caso
de mocinhas como a primeira-dama temporária, ex-miss e do lar, que se casam
com senhores endinheirados e poderosos. Desde a primeira posse de Dilma, as
duas foram comparadas, uma Barbie, outra cafona; uma flor, outra trator. Eis aí os
estereótipos se repondo. Ou executiva sexy, ou a carreira ou os filhos, ou anjo ou
puta, ou do lar ou a rua. Escolhas que nunca se colocam para os homens. ... Temer
segue na Idade Média. Neste tempo residem muitos de seus apoiadores, crentes
na hierarquia de gênero como mandamento divino. Vociferam em favor da moralidade pública desde que ela reproduza a que perpetram na vida privada. Contra a
dominação masculina não baterão panelas. O utensílio serviu contra uma mulher.
Decerto pensam que as outras todas devem se restringir a usá-las na cozinha.
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No texto “Pode uma mulher governar?” Percebe-se uma crítica, trazendo Marcela
Temer como exemplo, ressaltando as diferenças de perfis, entre as mulheres consideradas líderes e Marcela Temer, e o que representam; fazendo paralelo entre o que
alguns idealizam como o modelo da mulher do presente e do futuro e que para outro
grupo representa a mulher do passado. Refere a ataques sofridos por Dilma desde o
início do governo; apelidos pejorativos e machistas dados a ela por outros políticos e
sátiras publicadas na mídia, justificando que, em sua opinião, tais tratamentos só aconteceram devido ao seu gênero. Passa ideia de disputa de poder entre gêneros, em que
o masculino pode perder lugar para o feminino. Se houve momento mais propício para
a ascensão feminina na política, este momento pode ter sido sutilmente suprimido por
uma onda conservadora, o que apoia o Teto de vidro e as desigualdades entre gêneros no
mundo do trabalho, sendo sutis, mas recorrentes (Steil ,1997).
Dilma não é a única mulher no continente a ser posta diante de crises políticas
entrelaçadas por discriminação de gênero, misoginia, e preconceito contra o
exercício de poder feminino. ... Dilma, Cristina Kirchner e Michele Bachelet. Três
mulheres que chegaram ao poder num momento em que parecia haver alguma
chance de superação das arraigadas hierarquias entre homens e mulheres na
América Latina. Exatamente por isso estão sob ataque. Trata-se de pensar que as
forças conservadoras crescem e se articulam – nacional e internacionalmente – ao
mesmo tempo em que percebem o avanço de forças progressistas, como um jogo
de forças ativas e reativas em movimento permanente. ... #belarecatadaedolar
expressou, de certa forma, esse jogo de forças ativas e reativas. Em contraposição à presidência da República exercida por uma mulher, uma revista semanal
veiculou perfil da mulher do presidente interino Michel Temer, cujos atributos eram
os mesmos que nos fariam voltar alguns séculos ao passado. ... Dilma esteve sob
ataque desde o início do seu primeiro mandato. Sofreu críticas por não se adequar
ao estereótipo do feminino e deputados acharam cabível chamar a chefe de estado
por denominações grosseiras como “jararaca”. De certa forma, é como se sua
figura austera tivesse encarnado a abjeção da sociedade brasileira em relação
a uma mulher no poder. Insistentemente, ela buscou responder “sim, pode uma
mulher governar”, e a cada sim produziu mais e mais reações contrárias ao seu
lugar de poder. Talvez ainda estivéssemos num jogo de forças menos desigual,
num retrocesso menos perturbador do que esse com o qual nos ameaçam os
homens brancos que tomaram o poder.
A mídia parece noticiar os acontecimentos ligados à preconceito de gênero, mas de
forma moderada, em que o ativismo caberia ao movimento feminista, cuja sociedade
apenas tolera. Também há a questão de que parte das mulheres contribuiu para a reprodução do esquema que as subjuga. Dilma recebeu inúmeros adjetivos desqualificadores
relacionados ao gênero, apresentando um conjunto de fatores que desfavoreceriam a
legitimidade de dominação. A dominação é concebida quando um propósito do agente
dominador é provado para que interfira nas ações dos sujeitos dominados; o dominador
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Discursos de preconceito de gênero em publicações da mídia
alcança seu objetivo, a dominação, quando os dominados se adaptam a intenção apontada e a fazem tal qual um fim próprio, sem que tenham a grandeza de que este propósito
é o particular do dominante (Weber, 2012). O domínio se mostra operativo sobre os
mandados conforme fatores como a intuição, a inspiração ou a persuasão racional,
também pela associação de tais fatores determinantes para que ocorra a resposta
esperada pelos mandatários. Se Dilma não tiver apresentado inspiração, identificação e
persuasão racional, a legitimação do poder dela pode não ter ocorrido. A seguir, passase a abordar as considerações finais deste estudo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao final, cabe salientar que, no livre exercício da expressão, as publicações carregam
juízos de valor sexistas e podem influenciar as concepções que o povo forma acerca
de um/a líder. Teto de Vidro e Deslegitimação se encontram, demonstrando que os
elementos apontados na reflexão entre as duas teorias permitem uma análise deste
caso, e, possivelmente, de outros envolvendo mulheres, política e poder.
Entre outros fatores, a imagem pública de Dilma Rousseff parece ter sido construída,
em grande parte, pelas declarações da mídia a seu respeito. Adjetivos como “durona”
foram empregados para descrever sua personalidade, o que, por vezes, foi visto como
positivo e, por vezes, negativo (geralmente quando levado em conta seu gênero).
As críticas mais duras são feitas por homens, porém também há mulheres que
falam sobre a falta de protagonismo de Dilma Rousseff em relação ao ex-presidente
Lula e atribuem sua vitória nas eleições ao apadrinhamento, o que de fato pode ter
ocorrido, e remete ao pensamento de que as mulheres necessitariam de permissão ou
ajuda masculina na política.
Existe a suposição de que outras líderes mulheres também só lograram êxito
devido ao suporte de figuras masculinas. Preconceito de gênero e desigualdade vividos
por mulheres governantes fica evidente. A questão de gênero em pauta, geralmente,
também acaba a atenuando, pois se acredita que em uma sociedade ideal, igual em
direitos e deveres, o indivíduo, seja homem ou mulher, seria o centro da questão e não
mais este ou aquele gênero. O preconceito de gênero ainda permeia a sociedade e seus
espaços. Colunistas e jornalistas mulheres parecem ser mais adeptas à máxima de que
o debate sobre poder e gênero ainda não está exaurido. O emprego do termo Presidenta
parece provocar descontentamento entre os colunistas. Embora possa ser considerado
ortograficamente equivocado, tal termo pode ter sido escolhido por Dilma Rousseff
como forma de afirmação da figura feminina no poder.
Conclui-se que o conceito de Poder e Legitimidade de Max Weber e a teoria do Teto de
Vidro de fato se associam e se complementam; onde a teoria do Teto de vidro traz mais
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um elemento passível de observação nas nuances do poder: o gênero. A teoria da
Legitimidade não versa sobre a influência do gênero, porém, a teoria do Teto de Vidro
cita os entraves que passam quase imperceptíveis e como muitas colocações ao longo
das publicações propuseram, são erroneamente julgados como já superados. Cabe aqui
enfatizar esta questão, pois se o preconceito de gênero já tivesse sido superado há muito,
as alegações desvinculadas de ideologias políticas não se deteriam a comparar Dilma
Rousseff com mulheres mais jovens por beleza ou vestimentas; ou mesmo sua postura
firme usando palavras como ”macho” e “durona” por exemplo; a terminologia Presidenta
provavelmente usada por Dilma Rousseff para marcar a presença feminina, como já dito,
não causaria tanto incômodo nos parlamentares, e entre outros fatores.
Mesmo a instauração do Impeachment foi vista por Dilma Rousseff e por parte
da sociedade como motivada, entre outros fatores, pela questão de gênero. Logo, se
presume que os direitos conquistados pelas mulheres em elegibilidade e possibilidade
de provimento de cargos públicos podem sim conter rupturas. Os mandatos de Dilma
Rousseff foram legítimos e amparados legalmente, mas parece que lhe faltou legitimidade de poder do ponto de vista sociológico. A política aparenta ainda não reconhecer em
plenitude a legitimidade no exercício do poder por parte de uma mulher, mesmo que
de forma encoberta essa situação pode ter sido agravada para uma mulher cujo perfil
destoa do estereótipo feminino tradicional. A associação da teoria trouxe elementos
para o entendimento do papel do preconceito de gênero em publicações da mídia que
por noticiar textos com foco em características de gênero e de preconceito participou da
construção da imagem pública da ex-presidente.
Nas limitações do estudo, não foram analisadas charges e publicações de redes
sociais e blogs onde o juízo de valor de jornalistas poderia ser mais amplamente analisado. Devido ao tempo para a realização da pesquisa e à expressiva quantidade de
material a ser analisado (o que poderia ser proposto para um estudo futuro), não foram
considerados veículos de notícias estrangeiros que também podem ter contribuído para
a imagem de Dilma bem como questões relativas as fake news. Em estudos futuros seria
interessante analisar o perfil de Dilma Rousseff: se carismático, tradicional ou racionallegal; como ocorrem os mandatos de parlamentares mulheres e como estas veem a
participação feminina na política.
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