Caio Dayrell Santos
Universidade Federal de Minas
Gerais – UFMG
A Construção Subjetiva do
Atingido pela Mineração:
ORCID: https://orcid.org/00000003-3981-7272
Email: cdsantos99@hotmail.com
Cartografia Psicoterráticas e Luto
Ecológico em Lavra
Luiza Quental
Universidade Federal do Rio
de Janeiro – UFRJ
ORCID: https://orcid.org/00000002-7740-9141
Email: quentalluiza@gmail.com
The Subjective Construction of the
Affected by Mining:
Psychoterratic Cartography and Ecological
Grief in Lavra
Marco Aurélio Máximo
Prado
Universidade Federal de Minas
Gerais - UFMG
ORCID: https://orcid.org/00000002-3207-7542
Email: mamprado@gmail.com
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DAYREL, C.; QUENTAL, L.; PRADO, M. A. M.; A Construção
Subjetiva do Atingido pela Mineração: Cartografia
Psicoterráticas e Luto Ecológico em Lavra. Revista Eco-Pós,
v. 25, n. 2, 2022, p.48-72. DOI: 10.29146/ecops.v25i2.27905
ISSN: 2175-8689
Dossiê O Choque dos Acontecimentos: Retórica e Política das Comoções Públicas
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RESUMO
Lavra é um documentário híbrido que tanto mapeia os diferentes danos da atividade
mineradora em Minas Gerais quanto narra o processo de luto de uma personagem fictícia
frente a morte de um rio. Instigado pela ruptura da Barragem do Fundão em novembro de
2015, o longa-metragem executa uma cartografia “psicoterrática” da catástrofe, descrevendo
transformações no território ocupado pelo extrativismo a partir dos impactos ambientais e das
mudanças no próprio relevo da região, mas também a partir dos desejos e das subjetividades
das pessoas que ali habitam. Buscando tecer um quadro conceitual entre ecologia crítica e
psicanálise a fim de melhor descrever como desastres ambientais nos afetam no âmbito da
subjetividade política, este artigo analisa como Lavra elabora o sofrimento em sua narrativa,
performando um luto ecológico em que a categoria de atingido é constantemente revisada e
ampliada para abarcar a própria narradora, que se vê engajada com as comunidades e
paisagens que visita.
PALAVRAS-CHAVE: Mineração; Barragens de Rejeito; Documentário; Luto Ecológico;
Cartografia.
ABSTRACT
Ironland is a hybrid documentary that both maps the different damages of mining activity in
Minas Gerais and narrates the grieving process of a fictional character facing the death of a
river. Inspired by the rupture of the Fundão Dam in November 2015, the feature film performs
a psychoterratic cartography of the catastrophe, describing the transformations in the territory
occupied by extractivism both from the environmental impacts and changes in the region's
own relief, but also from the of the desires and subjectivities of the people who live there.
Seeking to weave a conceptual framework between critical ecology and psychoanalysis to
better describe how environmental disasters affect us subjectively, this article analyzes how
Ironland elaborates suffering in its narrative, performing an ecological mourning in which the
category of affected is constantly revised and expanded to include the narrator, who finds
herself engaged with the communities and landscapes she visits.
KEYWORDS: Mining; Tailings Dams; Documentary; Ecological Grief; Cartography.
Submetido em 21 de Junho de 2022
Aceito em 25 de Agosto de 2022
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Introdução
Que estamos todos emaranhados em redes múltiplas de construção de/o mundo/s, não
é nenhuma novidade. Que somos, enquanto sujeitos, constituídos por esse emaranhamento de
relações, por esses atravessamentos múltiplos, também parece um senso comum. Mas, como
provoca Donna Haraway, os detalhes importam: “os detalhes ligam seres reais a
responsabilidades reais” (2016, p. 115, trad. nossa). Os entrelaçamentos que criam o mundo
são reais e temporais, são específicos e materiais. É a partir dessas relações específicas que
nosso lugar no mundo é tecido e, em decorrência disso, a nossa responsabilidade para com o
mundo também. Se, como nos ensina Haraway, nossa tarefa, diante de um presente desafiador
como o nosso, é nos tornarmos capazes, uns com os outros, de responder ao desafio, essa
resposta é delimitada pelos entrelaçamentos dos quais fazemos parte. O problema – ou pelo
menos um deles – é que muitas vezes não lembramos ou não consideramos as existências –
vivas e não-vivas – às quais somos vinculados.
O documentário híbrido Lavra (2022), dirigido por Lucas Bambozzi e roteirizado por
Christiane Tassis, parte de um desses elos esquecidos e que só é lembrado – muitas vezes com
estranheza – quando rompido. O longa-metragem propõe uma forma de responder ao
presente; de forma mais específica, propõe uma forma de responder à morte do Rio Doce
provocada pela ruptura da barragem do Fundão em Mariana em novembro de 2015 e, de forma
mais ampla, à devastação socioambiental causado por megaprojetos de mineração em Minas
Gerais. Essas respostas passam por um re-entrelaçamento, um re-emaranhamento da
protagonista-narradora com uma paisagem, e junto com ela, todos os que ali vivem e lutam. No
gesto de criar laços com a paisagem machucada e degradada pela mineração em Minas Gerais,
Bambozzi e Tassis constroem um filme que trata o processo do luto ecológico como um
processo de elaboração de uma nova identidade através da constituição de novas relações, a
partir das quais é possível vislumbrar caminhos de resistência e de resposta política aos
desafios do presente.
Em um primeiro momento, este artigo se dedica a uma revisão teórica sobre o processo
de luto como constituidor de subjetividade a partir de contribuições da psicanálise e do
pensamento político de Judith Butler (2004; 2015a; 2015b; 2018). Expandindo a obra de Butler
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para lutas socioambientais, Barnett (2017) argumenta que o luto pressupõe uma elaboração de
vínculos do sujeito com os outros. Por consequência, o luto também promove o
reconhecimento de uma precariedade compartilhada e uma comunicabilidade ecológica que
abrange tanto seres humanos quanto não-humanos.
A partir deste quadro conceitual entre ecologia crítica e psicanálise, discorremos como
Lavra constrói uma narrativa dos desastres ambientais ancorados em uma narrativa pessoal e
ficcional. O segundo tópico introduz tanto o projeto documental de Lavra quanto as catástrofes
exploradas no filme. Caracterizamos o filme como uma cartografia audiovisual, em referência à
pragmática e ao pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995). Esse trabalho
cartográfico pode ser melhor nuançado à luz de conceitos contemporâneos que procuram
pensar manifestações de sofrimento mental provocado por danos ou perdas ambientais: a
solastalgia (Albrecht et. al., 2007) e o luto ecológico (Cunsolo; Ellis, 2018).
Por fim, o terceiro e último tópico se aprofunda no filme propriamente dito, recorrendo
a estudos filosóficos, antropológicos e literários para ancorar nossa leitura. A análise é
orientada pela jornada da protagonista e narradora de Lavra, a geógrafa Camila, em seu
trabalho cartográfico e fúnebre pela paisagem de Minas Gerais. Se no começo Camila se sente
deslocada, as viagens, os encontros e introspecções que vivencia a permitem entender a si
própria como uma atingida pelo extrativismo, se reconhecendo nesse processo como
constituída pelo próprio território devastado.
1. A subjetividade enlutada: precária, comunicacional e pós-humana
No canônico Luto e Melancolia, Sigmund Freud (2010 [1914-1916], p. 174) conceitua o
luto como “a reação à perda de uma pessoa amada ou de uma abstração que ocupa seu lugar,
como pátria, liberdade, um ideal”. Ou seja, para a psicanálise, a perda real do objeto de desejo
exige um desligamento por parte do sujeito, que deve trabalhar sob seu investimento libidinal
a fim de substituir essa perda. Trata-se de um trabalho sobre a falta que demanda tempo,
elaboração psíquica e esforço, mas que também é entendida como saudável e passageira. A
melancolia, ao contrário, se distinguiria do luto por um sentimento de autodepreciação em que
a perda do objeto amado se confundiria com a perda de si. Portanto, ela já pode ser identificada
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como uma condição de sofrimento mais agudo, em que o sujeito se vê estagnado em um estado
de abatimento que tende a se manter indefinidamente como se prolongasse a relação libidinal
com o próprio objeto do passado. Neste sentido, a melancolia é experienciada como uma
devassidão do sujeito, um ressentimento que, incapaz da consciência da perda, torna-se fixado
no objeto imaginado e investido de amor.
Em resumo, o pensamento psicanalítico trata o luto como um processo longo de
sofrimento afetivo que aciona as relações sociais; mais do que um sofrimento individual, ele é
uma elaboração para o reinvestimento nos laços sociais, na memória e no futuro. Mais
recentemente, a filósofaJudith Butler (2004) apropriou-se desta categoria clínica para pensar
lutas de reconhecimento, aprofundando as fortes implicações políticas, éticas e sociais de
processos de luto coletivo, especialmente os difundidos massivamente pelos meios de
comunicação.
Se opondo a um entendimento moderno e liberal, Butler parte de uma concepção do
sujeito que não é fundado em si mesmo. Antes que exista um “Eu”, um ego deliberado e
consciente, há sempre uma impressionabilidade, uma qualidade em se identificar com afetos
exteriores à própria constituição desse "Eu". É somente depois de interpelado por outros que o
sujeito começa a se formar. Frente a demandas, é mobilizado a reagir, a retrucar e a se
relacionar com o outro. Nas palavras da autora:
Se eu posso tocar, experimentar e sentir o mundo é apenas porque, antes que pudesse
ser denominado um ‘eu’, outros agarraram, sentiram, se dirigiram e animaram este ‘eu’.
[...] Disso se segue uma forma de relação que poderíamos denominar ética: certa
demanda ou obrigação incide sobre mim, e a resposta depende de minha capacidade
para afirmar o fato de que atuaram sobre mim, formando-me como alguém que pode
responder a tal chamada. Se implanta também uma relacionalidade estética: algo me
impressiona, e eu desenvolvo impressões que não podem acabar de me separar daquilo
que atua sobre mim. Só me pode comover ou deixar de comover algo exterior que me
afeta de um modo mais ou menos involuntário (Butler, 2016; trad. nossa).
A subjetividade, então, é convocada pelas alteridades e se vê obrigada a atender uma
convocatória que lhe é exterior. Um apelo que não pode ser facilmente rejeitado porque, caso
contrário, há que pagar “o preço da destruição do mundo social e relacional” (Butler, 2016,s/p).
Frente à interpelação, o sujeito é convocado a apresentar-se ao outro, dizer quem é, de onde
vem e para onde vai, desenhando assim uma posição singular em busca de ser reconhecido. Ele
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é compelido a narrar a si mesmo, contar sua história, descrever suas experiências, afirmar e
reafirmar sua própria vida. Esse “relato de si” (Butler, 2015a) não se dirige apenas para dentro,
mas é um movimento para fora, destinado ao social, a algo que transcende o próprio “eu”.
Para Barnett (2017, p. 17-18; trad. nossa), essa concepção do sujeito pressupõe uma
comunicação, entendida “não como uma forma idealizada de diálogo ou deliberação, mas sim
como um jogo complexo de forças que nos permite afetarmos e sermos afetados por outros, o
que faz todas as formas de resposta possível”. Desta forma, ainda que a comunicabilidade
dependa de uma sujeição à linguagem e suas normas, estabelecendo padrões de inteligibilidade
que condicionam o reconhecimento de uma vida como enlutável, essas normas são sempre em
alguma medida negociáveis. Aprofundando as reflexões tardias de Foucault sobre as "técnicas
de si”, Butler entende que um relato de si é, antes de tudo, uma forma de encontrar o outro,
produzindo deslocamentos e desconstruindo o próprio lugar estabelecido daquele que fala. O
relato de si, para Butler, também é compulsório, oriundo de uma relação de responsabilidade
implícita na condição humana dada a condição de vulnerabilidade do próprio corpo.
É nesse conjunto relacional que o luto requer que o sujeito reconheça e reveja vínculos
destroçados pela morte de um outro além dele mesmo: “Quem ‘sou’ eu sem você? Quando nós
perdemos alguns desses laços pelos quais somos constituídos, nós não sabemos quem nós
somos ou o que fazer. Em um nível, acho que eu perdi ‘você’ só para descobrir que ‘eu’ também
me perdi” (Butler, 2004, p. 21; trad. nossa).
No caso de Lavra, por exemplo,apesar de não ser mais habitante de Minas Gerais há
anos, a protagonista Camila vê sua própria noção de identidade destroçada devido à perda de
um senso de lugar de origem a que possa retornar. Isso a leva a procurar relatos de outros
atingidos tentando entender a sua própria condição de atingida. Na perspectiva de Butler, a
experiência de perda revela ao sujeito sua dependência de um outro para manter sua própria
noção de si: aí se instala o trabalho lento e paulatino da memória afetiva de ressimbolizar o
deslocamento do próprio eu com a despossessão que segue pela falta do outro. Uma
transformação, portanto, tem que ocorrer: “não sou mais quem eu era”. Nesses momentos, o
“corpo é desfeito pelo outro” e a existência é exposta como uma relação de interdependência,
extimidade e vulnerabilidade.
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Se a morte do outro desfaz o sujeito, ele, por sua vez, precisa ser refeito. Através do
relato de si, a vida precisa ser elaborada discursivamente diante da falta de um outro que até
então o constituía. Daí emerge uma experiência ambígua e opaca, em que através do luto laços
relacionais com os outros são elaborados, iluminando nossa interdependência complexa entre
comunidades e, por sua vez, nossas responsabilidades políticas e éticas com esses mesmos
laços (Cunsolo; Ellis, 2018). Barnett (2017) destaca que essa perspectiva extrapola um
entendimento da subjetividade como meramente social, sendo também inerentemente
ecológica. Por ecologia, se refere a muito mais do que apenas uma atenção às consequências
ambientais de uma ação ou processo.
Um pensamento ecológico reconhece não apenas como diferentes coisas estão
interconectadas, mas também como se articulam relações entre humanos e agentes não
humanos, como coisas, objetos e lugares. Ecologia, nesse sentido, procura incluir “todas as
formas que imaginamos como vivemos juntos. Ecologia é profundamente sobre coexistência”
(Morton, 2010, p. 4). Não se trata, entretanto, da manutenção de uma harmonia relacional ou
um ponto de equilíbrio idealizado, mas de práticas concretas que orientam como lidar com a
alteridade em um conjunto determinado de condições. Nas palavras de Barnett (2017, p. 3;
trad. nossa), “nenhum relacionamento está simplesmente dado; todas as formas de relação são
moldadas por atores de várias formas que interagem e intra-agem entre si”.
Nesse sentido, a enlutabilidade para Butler nunca está restrita àquilo tido como
“normativamente humano”. Todo ser vivo, incluindo a própria espécie humana, depende de
outros seres vivos de outras espécies para garantir sua sobrevivência. Nossa existência é
extremamente vulnerável à agência de humanos e não humanos, desde pequenos micróbios a
todo o ecossistema que nos rodeia. Por isso, como ela mesmo explicita (2015a, p. 34),
precisamos reproduzir e manter “relações com o meio ambiente e com formas não humanas de
vida”.
O luto, portanto, também pode vir a construir o que Rosi Braidotti (2019) nomeia de
“subjetividade pós-humana”. Atenta às aceleradas revoluções tecnológicas e agressivos
impactos no meio ambiente do capitalismo global, Braidotti argumenta que o pensamento
crítico contemporâneo requer uma concepção de sujeito que seja “pós-humano”. Para a autora,
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a subjetividade extrapolaria a atribuição de nomes a determinado corpo, incluindo processos
tanto sociais quanto materiais. Somos, sim, sujeitos sociais, formados pelas relações mútuas
com outros humanos; porém, nossa sociabilidade humana não desfaz nossa condição de
organismo vivo cuja sobrevivência depende de múltiplos intercâmbios químicos, biológicos e
físicos com o ambiente à nossa volta. Portanto, assim como somos subjetivamente constituídos
por uma trama de interações com outras pessoas mediadas pela linguagem, nossa existência no
mundo é igualmente atravessada por trocas com seres de outras espécies e substâncias
orgânicas e inorgânicas1.
É neste complexo relacional, simbólico, material e afetivo que se dá o processo de
enlutamento e reconstrução dos laços, da memória e das interações sociais. Neste sentido, o
social é muito mais que o outro, mas igualmente muitos outros entre humanos e não humanos
que constituem este cenário ético da sustentação de um possível mundo entre nós.
2. Uma cartografia psicoterrática da mineração
No dia 5 de novembro de 2015, ocorreu o rompimento da barragem de Fundão, em
Mariana (MG). Considerado um dos piores desastres ambientais do Brasil e do mundo (Zhouri
et. al., 2016), o crime cometido pela mineradora Samarco, uma joint venture da brasileira Vale
S. A. com a anglo-australiana BHP Billiton, liberou 55 milhões de metros cúbicos de lama,
dando origem a uma onda de aproximadamente dez metros de altura que soterrou os vilarejos
de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, deixando cerca de 350 moradores desabrigados e
matando 19 pessoas. Dias depois, os rejeitos de minério contidos na barragem se misturaram
às águas do Rio Doce, foram carregados por mais de 600 km até o litoral do Espírito Santo e lá
lançados ao mar. Pelo caminho, dezenas de cidades capixabas e mineiras foram afetadas. O
Governo de Minas estima que pelo menos 311 mil pessoas foram atingidas pelo desastre
(Sedru, 2016).
Lavra toma esse acontecimento como um “incidente incitante” (Mckee, 1997) que
rompe com a continuidade da vida da geógrafa Camila, interpretada pela atriz homônima
Exploramos melhor o pensamento de Rosi Braidotti e seu entendimento de subjetividade pós-humana em uma publicação
anterior (Santos; Quental, 2021).
1
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Camila Morta. Sensibilizada pela notícia, ela abandona os Estados Unidos, país para onde
migrou e onde vive há décadas, para voltar à sua terra natal em Minas Gerais, onde pretende
fazer um mapa da catástrofe da mineração. A partir dessa premissa, o documentário registra
uma pesquisa de campo em áreas afetadas pelo extrativismo, assim como entrevistas com
vítimas do desastre, pessoas realojadas pelas mineradoras, militantes de movimentos
socioambientais e moradores de municípios mineiros.
Conforme conversa com pessoas de interesse e visita diferentes cidades, Camila percebe
que seu objetivo inicial de mapear o território minerado é um trabalho sisífico2. O extrativismo
mineral é tão violento que o próprio relevo se torna efêmero, sendo escavado, exportado e
desfigurado pelas cadeias de produção do capitalismo global. A “amputação da paisagem”
(Milanez, 2019, p. 390) torna qualquer mapa imediatamente obsoleto assim que é produzido.
Essa inconstância espacial obriga Camila a buscar um método alternativo que a permita
compreender as transformações do ambiente sem totalizar o desastre, valorizando pontos de
vista singulares do território possam vir a tona através de múltiplos encontros com sujeitos
que o habitam.
Ao documentar a complexidade de mapear, Lavra pode ser descrito como uma
cartografia audiovisual do desastre. Definida por Suely Rolnik (1989, p. 15) como o “desenho
que acompanha e se faz ao mesmo tempo em que os movimentos de transformação da
paisagem”, a cartografia é um conceito originalmente da geografia mas que foi apropriado por
Deleuze e Guattari (1995) pensar uma prática de pesquisa e de trabalho em outras áreas do
conhecimento, como a psicologia, a filosofia e as artes. Mais do que a simples produção de um
mapa que pretende representar graficamente uma totalidade espacial supostamente estática,
essa abordagem pensa o próprio território em sua contingência, como uma área em
permanente construção através do encontro e do embate de diferentes forças e subjetividades.
Esta tarefa não implica em abrir mão de mapas provisórios. Em sua pesquisa de préfilmagem, Lucas Bambozzi fez curtos vídeos reunidos em um projeto intitulado Paisagem
Danada (Fig. 1).Produzido com a ferramenta Earth Studio do Google, Paisagem Danada agrega
imagens aéreas de diferentes fontes, desde vídeos produzidos com drones até imagens de
2
Relativo a Sísifo, personagem da mitologia grega condenado a eternamente empurrar uma pedra para o cume de uma montanha
apenas para vê-la inevitavelmente retornar a sua base.
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satélite, e as mescla a partir de coordenadas de latitude e longitude. Desta forma, Bambozzi
torna visíveis áreas em que o acesso e a gravação são interditados por mineradoras3.
Ainda que recorra a representações gráficas do espaço, o trabalho cartográfico de Lavra
se foca na constituição das subjetividades, delineando o território para além da superfície
material e, desta forma, abarcando o próprio desejo, entendido como força criativa que
propulsiona o sujeito a agir e, portanto, como linha constituinte do território. O encontro em si,
“elemento fundamental da prática cartográfica” (Costa, 2014, p. 72), toma o protagonismo da
escrita documental do filme, demandando uma abertura com o inusitado e o imprevisto.
Figura 1 –Vídeo Danação, da série Paisagem Danada (2020), por Lucas Bambozzi.
Fonte: Revista Select4.
A cartografia do documentário é, portanto, marcardamente psicoterrática, isto é, se
preocupa com o estresse psicológico provocado pelas relações do sujeito com o território. O
termo foi cunhado por Gleen Albrecht et. al. (2007) e originalmente procurava conceituar
3Lavra
chega a expor essa censura quando Fernando e Elizete, moradores de Conceição do Mato Dentro, veem sua fala interrompida
por um funcionário da Vale, que proíbe Camila de fazer qualquer registro da mina, mesmo estando apenas na margem de uma
estrada e não dentro da propriedade da empresa.
4
Disponível em: https://www.select.art.br/video-de-artista-paisagem-danada-de-lucas-bambozzi/ , acesso 05/09/2022.
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diversas perturbações na saúde mental relacionadas com o reconhecimento de riscos e danos
causados pelas mudanças climáticas. Conforme os impactos ecológicos da atividade humana se
demonstram cada vez mais amplos, mais perceptíveis e em alguma medida irreversíveis, uma
intensa sensação de desamparo também se torna cada vez mais generalizada. Para Albrecht,
apesar de provocar disrupções intensas nas vidas das pessoas, esse mal estar não se configura
como uma patologia, mas sim como uma reação normal diante do estado anormal do planeta e
do meio que habitamos.
No caso de Lavra, o documentário descreve o sofrimento psicoterrático de solastalgia,
uma condição definida como “a dor ou estresse causado pela perda de ou inabilidade de
derivar consolo (“solace”) devido a percepção negativa do estado do meio em que habita”
(Albrecht, 2007, p. 96). A solastalgia se contrapõe à nostalgia, o estado melancólico causado
pelo afastamento da pátria ou da terra natal. Na solastalgia, a tristeza ou angústia não é
provocada pela incapacidade de retornar ao lar, mas sim devido ao próprio lugar entendido
como lar perder a capacidade de oferecer refúgio e conforto.
Em geral, a mineração provoca essa inospitabilidade ambiental de várias formas, como a
poluição do ar com a fuligem siderúrgica, o ruído incessante por obras ou pela escavação, o
excesso de trânsito nas rodovias, além de efeitos danosos nas comunidades como a fratura do
tecido social e perda de modos tradicionais de vida (Milanez, 2019; Muñoz-Duque et. al. ,
2020). Minas Gerais, no entanto, é um contexto ainda mais grave devido à insegurança
estrutural de suas barragens de rejeitos.
As filmagens de Lavra são atravessadas por uma segunda tragédia: em 25 de janeiro de
2019, três anos depois de Fundão, outra barragem se rompe, desta vez em Brumadinho, região
metropolitana da capital Belo Horizonte. Foram 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos da
mina do Córrego de Feijão despejados no Rio Paraopeba, afluente do Rio São Francisco,
contaminando rios e córregos e destruindo casas, pousadas e cultivos agrícolas. Apesar de, em
termos de abrangência ambiental, o impacto ser menor que a ruptura de Fundão, o desastre
provocou muito mais perdas humanas: 272 pessoas mortas, dez das quais continuam
desaparecidas (Quintão, 2021).
Além do sofrimento tradicional causado por esses grandes desastres, o episódio de
Brumadinho escancarou o problema sistêmico das barragens de rejeito em Minas Gerais.
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Meses depois, em junho de 2019, o risco de ruptura da barragem Sul Superior, em Barão de
Cocais, fez com que 457 pessoas tivessem que ser evacuadas. No mesmo ano, a Agência
Nacional de Mineração (ANM) teve que interditar 54 barragens em todo o país que não
atestaram estabilidade. Ainda assim, as rupturas anteriores aconteceram em barragens cujos
relatórios estavam em dia (Zhouri et. al., 2016), o que torna a eficácia dessa medida um tanto
quanto duvidável.
Desta forma, se generaliza a sensação de que, se já houve uma solução para a crise,
talvez seja tarde demais para executá-la. À mercê destas estruturas não confiáveis, a população
se angustia, antecipando com temor pelo próximo colapso que o Estado e as mineradoras terão
fracassado em prevenir. Mesmo sem um desastre espetacular como Brumadinho e Mariana,
emerge a consciência de que a qualquer momento o seu modo de vida – e talvez suas próprias
vidas – pode ser brutalmente interrompido.
Lavra toma essa desolamento ambiental como ponto de partida, porém não se resume a
ele. Mais do que apenas retratar a melancolia psicoterrática, o filme propõe um trabalho
narrativo desse sofrimento, elaborando as perdas humanas e não humanas provocadas pela
mineração, mas também mostrando alternativas para convencer o espectador a se engajar em
lutas socioambientais. Se, ao visitar a Serra do Espinhaço, o filme mostra os danos do
empreendimento da Anglo American em Conceição de Mato Dentro, emblemático pelas
violações de direitos humanos e ambientais, em seguida conhecemos o caso da cidade vizinha
do Serro, onde movimentos sociais foram capazes de conter o avanço do extrativismo e
assegurar o modo de vida da comunidade local. Sem deixar de denunciar a devastação, o filme
nunca se permite flertar com a desesperança.
Nesse sentido, apesar de partir de um sentimento de solastalgia, Lavra procura
performar um luto ecológico. Conceito concebido por Ashlee Cunsolo em parceria Neville Ellis
(2018, p. 275), luto ecológico é definido como “o luto sentido em relação a perdas ecológicas
experienciadas ou antecipadas, incluindo perdas de espécies, ecossistemas ou paisagens
significativas devido a mudanças ambientais crônicas ou agudas”. Os autores observaram esse
estado a partir de trabalhos etnográficos na comunidade Inuit em Labrador, extremo leste do
Canadá. Esses indígenas esquimós, autodenomidados como “o povo do mar de gelo”
experienciam um profundo sentimento de perda de identidade devido ao aquecimento global.
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O derretimento do gelo no Ártico implica na disrupção de sua subsistência através da caça e da
pesca e a consequente inviabilização de seu modo de vida tradicional. Apesar de estar
relacionado com o conceito de Albrecht et. al. (2007), o luto ecológico extrapola o puro
diagnóstico de estresse psicoterrático e instiga a procura por formas de habitar a terra apesar
da desolação.
3. A perda da terra demanda reencontro de si
“A pergunta inicial era: o que morre quando matam um rio?” A frase que abre Lavra,
longe de ser uma reflexão filosófica abstrata, é uma pergunta pessoal. O filme mistura
documentário e ficção na medida em que é narrado em primeira pessoa por uma protagonista
fictícia, a geógrafa Camila. No início de sua Jornada, ela se apresenta natural de Minas Gerais,
mas que migrou aos Estados Unidos buscando uma melhor perspetiva de vida. Comovida por
imagens dos noticiários da ruptura da barragem de Fundão em 2015, confessa ser tomada por
um sentimento de desorientação após o desastre. Nas suas palavras, a perda do Rio Doce a
transformou “de uma estrangeira em busca de seu lugar no mundo a uma geógrafa tentando
encontrar o seu lugar”.
Em uma voz introspectiva e reflexiva, a protagonista-narradora nos diz: “Quando o Rio
Doce foi declarado morto, eu estava a mil quilômetros e trinta anos de distância, mas aquela
lama me atingiu em cheio”. Como a lama a atingiu? Por que ela, tão longe do rompimento,
sentiu aquela perda? O ponto de partida de Lavra é a percepção de um estranhamento em se
ver afetada, atravessada, por um outro não-humano fisicamente distante. A fala é uma pequena
pista do que vai se consolidar ao longo do filme, de que, tal como defende Butler, “o eu é uma
categoria instável, em permanente atravessamento pelo outro” (Rodrigues, 2020, p. 61). Mas
esse outro, como vimos anteriormente, não precisa ser humano. Portanto, o rompimento da
barragem foi também o rompimento de um elo que, em maior ou menor grau, é constitutivo
para toda uma rede de seres. A lama atinge a protagonista porque ela faz parte dessa rede,
ainda que de forma distante. É o rompimento desse elo que desperta na protagonistanarradora uma necessidade, ainda inconsciente naquele momento, de constituir novos laços,
de reconstituir-se. Imagens aéreas nos mostram a assombrosa dimensão da catástrofe, e, em
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seguida, a lama refletida num olho castanho, atravessando-o, chamando-o (Fig. 2). É preciso
voltar para, nas palavras de Camila, “ver aquilo de perto.”
Quando Camila chega a Governador Valadares, ela diz em off que já não tem mais
ninguém em sua cidade natal, só a paisagem. A câmera também se relaciona com essa
paisagem, que está sempre no campo de visão. Nesse ponto do filme, Camila ainda ocupa um
lugar de estrangeira, de alguém que partiu. "Valadares não exporta minério de ferro, exporta
pessoas”,comenta ela em frente ao Monumento dos Emigrantes: “Sou uma dessas milhares de
migrantes que foram para os Estados Unidos em busca do sonho americano. A praça
homenageava nossa coragem e bravura, hoje acho que coragem era ter ficado no Brasil”. Nessa
fala, há uma provocação aos poucos comprovada ao longo do filme: não é apenas a terra que é
tratada como mercadoria, como explorável até o último grão de minério e abandonado depois
que tudo que pode ser vendido é extraído, mas também a própria população humana. Ao se
identificar enquanto mineira, isto é, oriunda de Minas Gerais, Camila também acaba se
descobrindo inevitavelmente um tanto quanto minério, mais uma commodity massificada e
amorfa extraída dos territórios do Sul Global e enviada aos países do Norte. Essa relação é
explorada visualmente no filme através das repetidas imagens de trens. Os trens que cruzam e
cortam o estado carregam tanto minério de ferro quanto pessoas, e acabam por demarcar o
tempo e o espaço da paisagem mineira. Ao capturar, de dentro de um trem, a imagem de outro
trem, aparentemente interminável, a narradora lembra dos versos do poema O maior trem do
mundo, de Carlos Drummond de Andrade: “O maior trem do mundo/ Leva minha terra/ Para a
Alemanha/ Leva minha terra/ Para o Canadá/ Leva minha terra/ Para o Japão”.
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Figura 2 – Detalhe do olho de Camila assistindo notícias do desastre de Mariana.
Fonte: Lavra (2022), dirigido por Lucas Bambozzi.
Para a filósofa Rosi Braidotti (2019), essa comodificação de tudo o que vive é o que
caracteriza a economia política contemporânea. Segundo ela, serve ao capitalismo avançado
criar uma indistinção entre vida humana e vida em geral, entre animado e inanimado, entre
vida e máquina. Apoiando-se numa série de convergências tecnológicas, o mundo se constitui
como quantificável e manipulável na escala mais básica e, assim, tudo se torna mercadoria. A
antropóloga Anna Tsing (2015) descreve esse fenômeno em termos de alienação. Ela
argumenta que ao transformar tanto humanos quanto não-humanos em recursos, o
capitalismo imbui pessoas e coisas de alienação, descrita como a habilidade de se isolar do
contexto originário, “como se os entrelaçamentos do viver não importassem” (2015, p.25; trad.
nossa).
Por meio da alienação, pessoas e coisas se tornam ativos móveis; eles podem ser
removidos de seus mundos num transporte que desafia a distância para serem trocados
com outros ativos de outros mundos, em outros lugares... A alienação evita o
emaranhamento do espaço vital. O sonho da alienação inspira a modificação das
paisagens em que apenas um ativo autônomo importa; todo o resto se torna erva
daninha ou lixo. Aqui, cuidar dos emaranhamentos do espaço vital parece ineficiente, e
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talvez arcaico. Quando seu ativo singular não pode mais ser produzido, um lugar pode
ser abandonado. A madeira foi cortada; o óleo acabou; o solo da plantação não suporta
mais as colheitas. A busca por ativos continua em outro lugar. Assim, a simplificação
para alienação produz ruínas, espaços de abandono pela produção de bens (Tsing, 2015,
p. 25; trad. nossa).
Ao transformar humanos e não humanos em mercadoria e todo o resto em lixo, a
aceleração capitalista constrói ruínas cada vez mais rápido, e com essa política de abandono,
desfaz os laços vitais entre os seres vivos e não vivos que habitam determinadas localidades,
minando a capacidade de regeneração desses lugares. Ao matar o Rio Doce e abandonar a
população à própria sorte, a mineradora age como se o entrelaçamento daquele rio com os que
ali vivem não importasse5.
Com a chegada de Camila a Governador Valadares, a paisagem rapidamente começa a
mostrar sinais do desastre recente: pessoas formam filas para encher galões d’água, uma
conversa com o taxista revela que as pessoas estão usando água mineral para cozinhar com
medo de usar a água encanada, e um jovem vendedor de água usa como mote “tá cinco reais
mas vale mil, a Vale matou o rio”. É um primeiro sinal aparente no filme das consequências da
mineração sobre as pessoas e suas vidas, e, à medida que Camila continua sua jornada, essas
consequências vão se revelando mais e mais graves.
Já na zona rural de Valadares, Joelma Fernandes, agricultora do distrito de Baguari,
escava a superfície cor de ferrugem para demonstrar como o desastre afetou o cultivo de
plantas. Devido a presença de ferro e manganês nos rejeitos represados, a lama de rejeitos se
tornou uma crosta dura que dificulta a infiltração da água e o crescimento da vegetação local,
tornando o solo improdutivo. Conhecemos também Seu Zezinho, que teve sua casa destruída
pela lama e ficou desalojado. Camila comenta em off: “Nas margens do rio, os que estão à
margem, os destroços de um modelo de desenvolvimento.”
Do ponto de vista da jornada da protagonista-narradora fictícia, esses encontros são
essenciais porque são o que começam a, pouco a pouco, transformá-la. Ao conhecer essas
pessoas afetadas diretamente pelo desastre, ao se tornar próxima delas e ver em primeira mão
5 Talvez isso seja melhor simbolizado no termo “Zona de Auto-Salvamento” (ZAS), nome técnico para áreas em que, no caso de
ruptura de barragem, a onda de inundação demora até 30 minutos para chegar. Não há dados públicos informando quantas
pessoas habitam nessas áreas, mas a terminologia já atesta como empresas desconsideram a responsabilidade de seus
empreendimentos com seus vizinhos que, implicitamente, devem garantir a própria sobrevivência sem esperar por socorro
alheio.
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o que elas perderam e o quanto sofreram com a morte do rio, Camila aprende com elas, se
coloca em seu lugar, e começa a se sentir mais pertencente àquela paisagem destruída. Ela vai
deixando de ser estrangeira, deixando de ser alienada, deixando de ser ignorante e, desta
forma, se reata à paisagem, se entrelaçando com os que vivem ali, os novos laços se tornando
cada vez mais constitutivos no processo.
Ao mesmo tempo, sua jornada a leva a aprender mais sobre o valor da paisagem em si.
Em suas andanças, Camila chega a Itabira, cidade natal do poeta Carlos Drummond de Andrade.
Lá, ela se depara com uma ausência na paisagem: o Pico do Cauê, que, após a mineração pela
Vale na região, desapareceu. Um morador da cidade lhe conta sobre um plano de fazer uma
réplica do Pico, uma prótese da montanha que um dia habitou aquele quadro. Aqui, a poesia de
Drummond começa a entrar mais em cena também, explicitando a resistência do próprio poeta
à mineração, uma posição em geral desconhecida pelo público comum. José Miguel Wisnik
(2018) demonstra que a mineração, enquanto temática, sempre foi uma preocupação no
trabalho e na vida do poeta modernista. Como colunista em diferentes jornais, Drummond se
posicionava contra a exploração desenfreada dos governos estaduais que, orientados pela
promessa de modernização e progresso, não asseguravam o retorno pecuniário à região de
Itabira. Por trás do subjetivismo melancólico que marcava seu verso, havia um cuidado com
todo um município, assim como a disposição em denunciar uma modernidade que procura não
transformar a vida dos pobres, mas sim aprimorar sua exploração.
Camila cita os conhecidos versos de “No meio do Caminho” para se referir à própria
montanha que foi minerada, desintegrada e vendida pela ação da Vale. A perda da própria
paisagem é feita explícita através da justaposição de um antigo arquivo fotográfico à paisagem
gravada diretamente pela câmera digital, trazendo ao olhar uma perda do lugar que
dificilmente poderia ser imaginado por quem é de fora (Fig. 3 e 4). Neste trabalho de
montagem, a “pedra no meio do caminho”, uma figura de linguagem drummondiana para os
obstáculos inevitáveis e interrupções recorrentes que marcam a vida, não é exatamente
superada, mas velada. O morro onde ficava o Pico do Caué foi tomado pelo pasto, sem deixar
nenhum rastro visível de sua existência. Ainda assim, a população local mantém a promessa do
poeta viva, não se permitindo esquecer “que no meio do caminho tinha uma pedra”.
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Figuras 3 e 4– Antes e depois do desaparecimento do Pico do Cauê em Itabira, MG.
Fonte: Lavra (2022), dirigido por Lucas Bambozzi.
Camila continua suas reflexões em off: “A tarefa do mapa estava cada vez mais complexa.
O minério de ferro que está em tudo que a gente consome também consome paisagens,
montanhas e pessoas”. Essa passagem do filme é importante por chamar atenção ao vazio que
fica quando uma montanha some da paisagem e à ligação afetiva e emocional que as pessoas
têm às paisagens de onde vêm, mas também à forma como a paisagem conta a história de
Itabira.
Dentro da vertente acadêmica da ecocrítica material, Serpil Oppermann chama essa
ideia de que a “matéria não é apenas vivaz, agêntica e generativa, como é teorizado no novo
paradigma materialista, mas também densamente histórica" (2018, p. 411; trad. nossa). Para
Oppermann, a matéria é histórica (storied matter) na medida em que a matéria também é capaz
de narrar, de contar histórias. Em suas palavras:
A matéria histórica nos compele a pensar para além do antropocentrismo e sobre nossa
coexistência e coevolução na história da própria terra. É, portanto, importante
reconhecer a matéria em sua ampla gama de expressões como um ‘lugar de
narratividade’ com configurações de signos e significados em andamento e que
interpretamos como histórias. Essas histórias se materializam na forma de histórias de
evolução, narrativas climáticas, memórias biológicas, registros geológicos, tragédias de
espécies e poéticas do DNA. O que torna a matéria histórica é sua ‘agência narrativa’, isto
é, uma performance não-linguística inerente a toda ação de forma material, desde corpos
até seus átomos, tornando-os contadores ou contados. Seja uma célula, uma baleia que
canta, um vento sussurrante, uma pedrinha na praia, um vulcão em erupção, um furacão
ou um saco de plástico, a matéria é codificada com narrativas significativas, ou agência
narrativa através da qual o mundo se torna eloquente. ‘A matéria histórica é repleta de
narrativas’, concorda Jeffrey Cohen, ‘algumas vívidas, algumas pouco legíveis, outras
impossíveis de traduzir’ (Oppermann, 2018, p. 412; trad. nossa).
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De acordo com essa perspectiva, o Pico do Cauê, em sua ausência, além de em
decorrência do seu encontro mortífero com a Vale, conta história. Conta mais uma história, que,
junto aos poemas de Drummond, aos planos dos moradores de Itabira de construir uma
prótese do relevo, aos adolescentes contando sobre a depressão dos habitantes e à própria
operação do filme em resgatar e remontar esses fios, tecem a complexa tapeçaria que é história
de um lugar, de uma paisagem, de um povo.
A narradora-protagonista, então, começa a encontrar nas vozes de resistência popular à
mineração uma esperança. Após entrevistar Juliana Deprá e Paola Félix, duas ativistas do
Movimento pela Soberania Popular na Mineração na região do Serro, Camila diz que as duas lhe
despertaram para a sua “própria alienação de uma ideia de comunidade, de coletividade, que
eu havia perdido.” Imagens de atos e passeatas públicas contra a mineração enchem a tela de
corpos em luta e de esperança. Ela começa a vislumbrar uma saída pelo coletivo, mas é tomada
mais uma vez pela lama quando acontece um segundo crime ambiental: Brumadinho. O filme,
nesse momento, testemunha em primeira mão a tragédia. Já não de longe, mas de bem perto,
Camila nos diz, “dessa vez, eu já não me sentia estrangeira. Eu finalmente me sentia parte do
mapa. Eu era feita daquele barro”. Do ponto de vista do roteiro, esse seria o ponto baixo, o
momento de crise, em que a protagonista se vê paralisada, sem saber para onde ir. Camila
narra um sonho recorrente, em que ela se afoga na lama do Rio Doce. O sonho, o afogamento, é
um símbolo desse momento, que é um tipo de morte. Mas é também, como são os sonhos, uma
mensagem, uma carta do inconsciente.
Em busca de respostas sobre seu sonho, Camila busca conselho junto ao pensador e
importante liderança indígena Ailton Krenak. Atingidos pela mineração desde pelo menos as
primeiras explorações de ouro no período colonial, os indígenas da etnia Krenak acabaram se
dispersando pelo Brasil. No entanto, a maior parte de sua população habita as margens do Rio
Doce no município de Resplendor (MG). A cosmologia krenak não imagina o Rio Doce como um
“recurso natural” para sua sobrevivência. Chamado de Watu – ou “avô” – pelos indígenas, mais
do que proporcionar alimentação, lazer, água para os animais e para irrigação, é um parente
com quem estabelecem relações. O Watu, como explicam Pascoal e Zhouri (2021, p. 360), é “um
familiar que acolhe, aconselha, protege e contribui para a construção da pessoa Krenak”.
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O desastre da Samarco implica para esses indígenas sofrimentos tanto psicoterráticos
quanto somaterráticos (Albrecht, 2007) – isto é, estresse no corpo do sujeito provocado por
suas relações com o ambiente. A subjetividade Krenak é tradicionalmente constituída através
de sua interação com o Watu. Ao nadar, pescar, remar e caçar nas suas águas, ao aprender a
identificar as plantas úteis para a medicina tradicional, eles constroem sua identidade pessoal.
Além disso, cuidam da saúde do corpo e do espírito a partir rituais de purificação em que se
banham coletivamente no rio. A própria tristeza, “pensada como uma espécie de doença pelos
Krenak” (Pascoal; Zhouri, 2021, p. 381), era tratada às margens do Watu.
No documentário, Ailton Krenak explica para Camila que, para ele e as pessoas de sua
aldeia, a lama da mineração deixou o rio “em coma”. Seu povo vela esse seu estado de coma. Ele
explica:
No pensamento mais estável desse povo indígena da beira do rio, esse lugar tem outra
dimensão para além dessa paisagem machucada aqui, ferida, e do Watu em coma. Nós
estamos aqui velando o estado de coma dele. A gente não desiste dele. E ele tem reagido
de uma forma muito boa: ele tem saído de si e entrado nos nossos sonhos. O Watu cura a
gente, temporariamente não podemos entrar nele, mas ele cura (LAVRA, 2022; grifo
nosso).
Velar o rio é uma atividade de cuidado do rio, e esse cuidado, para os Krenak, é o que faz
com que Watu comece a reagir e sair de seu coma, ainda que num primeiro momento, através
dos sonhos6. O luto, aqui, é verbo, é público e é coletivo. Como explica Carla Rodrigues, “a
condição de enlutável não é algo que se dê apenas quando a morte acontece, mas bem ao
contrário, ser enlutável é condição para que uma vida seja cuidada desde o seu nascimento, é
condição para que uma vida seja reconhecida como vida” (2020, p.69). Para os Krenak, que
sempre entenderam o rio como vivo, como digno de cuidado, tem uma reação que é de cuidado
quando esse rio aparece em coma. Em seu livro Ideias para adiar o fim do mundo, Ailton Krenak
(2019, p.24) chega a descrever como a nossa facilidade de ver o rio como mais uma coisa do
mundo separada de nós mesmos é o que permite sua destruição:
6 Em resposta à crise hídrica que já os assola há anos e agravada com o desastre de 2015, os Krenak iniciaram projetos de
recuperação de algumas nascentes da Terra Indígena, ativamente agindo para a recuperação do Watu(Pascoal; Zhouri, 2021)
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Quando nós falamos que o nosso rio é sagrado, as pessoas dizem: “Isso é algum folclore
deles”; quando dizemos que a montanha está mostrando que vai chover e que esse dia
vai ser um dia próspero, um dia bom, eles [os brancos] dizem: “Não, uma montanha não
fala nada”. Quando despersonalizamos o rio, a montanha, quando tiramos deles os seus
sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses
lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativista. Do nosso
divórcio das integrações e interações com a nossa mãe, a Terra, resulta que ela está nos
deixando órfãos, não só aos que em diferente graduação são chamados de índios,
indígenas ou povos indígenas, mas a todos.
Além de transmitir essa outra forma de pensar sobre o rio, o encontro com Krenak, no
filme, tem mais uma função: a de reposicionar a o sonho. Longe de ser uma maneira de escapar
da realidade imediata, o sonho, para os Krenak, é uma forma de vislumbrar outros mundos e
receber mensagens importantes. A partir do encontro com Krenak, e munida de toda a
experiência acumulada no decorrer do filme, Camila toma o microfone em um encontro de
mulheres organizado pelo Movimento de Atingidos de Barragens: “Ganhei muita força
descobrindo a vida toda que tem em cada uma de vocês e cada um desses lugares”. É aqui, num
espaço de coletividade, que Camila expõe seu rosto completamente pela primeira vez para a
câmara. A escolha consolida o que o filme tenta nos dizer desde o início: que somos
constituídos pelas relações que nos atravessam. E, agora, após um reatamento de laços antigos
à terra natal e a criação de novos vínculos com as pessoas atingidas pela mineração e que
fazem resistência à mesma, Camila assume uma nova identidade. Uma identidade que pertence
a uma rede complexa de seres vivos e não vivos com quem compartilha uma relação de ética e
de responsabilidade. É nesse sentido que, retomando Haraway (2016), os detalhes importam.
As relações que Camila construiu ao longo do filme lhe implicam uma forma de
responsabilidade, isto é uma habilidade de responder. Responder a uma situação, para
Haraway, requer conhecimento, requer ver de perto e ouvir histórias. Requer transformar-se. É
esse o movimento que o filme consegue mostrar na jornada de sua protagonista. De alienada e
estrangeira a parte de uma comunidade e comprometida com a mesma. Esse
comprometimento, essa habilidade de responder é nítida em como Camila encerra sua fala no
encontro: “Essa força me dá muita alegria e muita coragem para estar junto de uma maneira
que ainda não sei como”.
O filme termina com um sonho. “Então o Watu, o Rio Doce, entrou no meu sonho. Eu
mergulhei nele e ele mergulhou em mim também” narra Camila: “Ele estava vivo, e nós
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também”. O sonho representa o nascimento de uma nova subjetividade consciente de seu
entrelaçamento com a paisagem. Essa mistura, esse atravessamento entre rio e personagem,
sintetiza o filme, que nos ensina que enlutar uma paisagem, um rio, e todos os que vivem à sua
margem, passa por reconhecer-se parte dessa paisagem, parte do rio, parte do povo na
margem. É o que Donna Haraway (2016, p. 1; trad. nossa) chama de “criar parentesco” [making
kin] em “linhas de conexão inventivas como prática de viver e morrer bem uns com os outros
no presente espesso”. É saber profundamente que quem morre quando matam um rio somos
todos nós, todos que fazemos parte de sua rede de relações, conscientes disso ou não. E é
também saber que todo mundo vai ser atingido pela lama a não ser que nos transformemos
também, que assumamos novas identidades, e façamos novas alianças.
Conclusão
Lavra introduz sua protagonista, não como corpo, mas sim como voz. No começo do
documentário, Camila está sempre com a câmera na mão, atrás dela ou, no máximo, com sua
nuca no primeiro plano. Em alguns momentos vemos seus cachos pretos, mas nunca seu rosto.
Em um primeiro momento, esse enquadramento parece atestar um compromisso em manter
um distanciamento científico, em que a pesquisadora se restringe a apenas observar e
comentar o que observa, mantendo um grau de objetividade ao trabalho. No entanto, essa
distância, mais do que meramente a obediência a um rigor técnico, é um indício do próprio
deslocamento da protagonista, que, diante da morte do Rio de sua infância, se vê incapaz de se
sentir implicada com a região que estuda enquanto geógrafa. Camila são olhos que observam e
uma voz que analisa, mas, por enquanto, não é propriamente um sujeito.
A cartografia deleuziana é uma pragmática pensada como uma “pesquisa-intervenção”.
Isso não implica necessariamente que o cartógrafo se torna um militante de uma causa, mas
que assume ser co-engendrado pelas linhas de força dos territórios que delineia e das
subjetividades que encontra. Nesse sentido, o ato de pesquisa em si mesmo deve ser entendido
como um processo de constituição do próprio pesquisador enquanto sujeito. Em Lavra, isso se
faz claro pelo uso da categoria do “atingido”. Camila, ao entrevistar diversos moradores de
regiões afetadas pela mineração, pessoas cujas vidas foram e continuam sendo diretamente
atingidas pelo extrativismo, se reconhece a si mesma enquanto atingida.
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Em resumo, nossa análise da estrutura e narrativa de Lavra, à luz de um quadro
conceitual tanto da psicologia política quanto do ecocriticismo, mostra como o sofrimento
provocado pelos desastres das barragens em um primeiro momento entendido como apenas
vicário, ou seja, experienciado de segunda mão apenas por ter assistido imagens na televisão,
adquire materialidade e intimidade a partir das trocas proporcionadas pelos encontros com
outros atingidos. Se, em um primeiro momento, ela se sente comovida, mas desnorteada pela
perda da terra natal, Camila consegue elaborar essa perda ao ponto de se confundir com o
próprio Rio Doce, com a paisagem devastada e, nessa identificação com o não-humano, se
relocalizar enquanto sujeito fundado sobre um território.
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Caio Dayrell Santos - Universidade Federal de Minas Gerais–UFMG
Doutorando em Comunicação Social na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre
em Comunicação e Cultura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, comunicólogo e
jornalista graduado pela UFMG com período sanduíche na Universidad Autónoma del Estado
de México. Participa do grupo de pesquisa MARGEM - Democracia e Justiça, onde desenvolve
pesquisa sobre catástrofes ambientais, imagens de sofrimento e subjetividades políticas.
Email: cdsantos99@hotmail.com
Luiza Quental - Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
Mestra em Comunicação e Cultura pela UFRJ e formada em cinema pela PUC-Rio. Roteirista,
escritora e pesquisadora, ela escreveu e dirigiu dois curta-metragens que passaram por
diversos festivais nacionais e internacionais. Em 2022, foi selecionada e participou do
Laboratório de desenvolvimento do Festival Cabíria com sua série “Quero ser uma montanha”.
No campo da pesquisa, tem interesse pelas áreas de estudos de ciência, tecnologia e sociedade
e humanidades digitais.
Email: quentalluiza@gmail.com
Marco Aurélio Máximo Prado - Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG
Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP, professor no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, onde coordena o Núcleo de Direitos
Humanos e Cidadania LGBT+. Possui estágio de pós-doutoramento na Universityof
Massachusetts/Amherst com apoio da Fulbright Foundation. É bolsista PQ-1D/CNPq. Atual
presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia - ANPEPP.
Email: mamprado@gmail.com
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