Registros
Denise Guimarães
Glaucia Davino
Jefferson Barcellos
Juliana Gobbi Betti
Laís Margadona
Laura Piaggio
Maria João Antunes
Natalia Martin Viola
Organizadores
Ria Editorial - Comité Científico
Abel Suing (UTPL, Equador)
Alfredo Caminos (Universidad Nacional de Córdoba, Argentina)
Andrea Versutti (UnB, Brasil)
Angelo Sottovia Aranha (Universidade Estadual Paulista – W, Brasil)
Anton Szomolányi (Pan-European University, Eslováquia)
Carlos Arcila (Universidad de Salamanca, Espanha)
Catalina Mier (UTPL, Equador)
Denis Porto Renó (Universidade Estadual Paulista – UNESP, Brasil)
Diana Rivera (UTPL, Equador)
Fatima Martínez (Universidad do Rosário, Colômbia)
Fernando Ramos (Universidade de Aveiro, Portugal)
Fernando Gutierrez (ITESM, México)
Fernando Irigaray (Universidad Nacional de Rosario, Argentina)
Gabriela Coronel (UTPL, Equador)
Gerson Martins (Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS, Brasil)
Hernán Yaguana (UTPL, Equador)
Jenny Yaguache (UTPL, Equador)
Jerónimo Rivera (Universidad La Sabana, Colombia)
Jesús Flores Vivar (Universidad Complutense de Madrid, Espanha)
João Canavilhas (Universidade da Beira Interior, Portugal)
John Pavlik (Rutgers University, Estados Unidos)
Joseph Straubhaar (Universidade do Texas – Austin, Estados Unidos)
Juliana Colussi (Universidad do Rosario, Colombia)
Koldo Meso (Universidad del País Vasco, Espanha)
Lorenzo Vilches (UniversitatAutònoma de Barcelona, Espanha)
Lionel Brossi (Universidad de Chile, Chile)
Maria Cristina Gobbi (Universidade Estadual Paulista – UNESP, Brasil)
Maria Eugenia Porém (Universidade Estadual Paulista – UNESP, Brasil)
Manuela Penafria (Universidade da Beira Interior, Portugal)
Marcelo Martínez (Universidade de Santiago de Compostela, Espanha)
Mauro Ventura (Universidade Estadual Paulista – UNESP, Brasil)
Octavio Islas (Pontificia Universidad Católica, Equador)
Oksana Tymoshchuk (Universidade de Aveiro, Portugal)
Paul Levinson (Fordham University, Estados Unidos)
Pedro Nunes (Universidade Federal da Paraíba – UFPB, Brasil)
Raquel Longhi (Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, Brasil)
Ricardo Alexino Ferreira (Universidade de São Paulo – USP, Brasil)
Sergio Gadini (Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG, Brasil)
Thom Gencarelli (Manhattan College, Estados Unidos)
Vicente Gosciola (Universidade Anhembi Morumbi, Brasil)
Registros. Denise Guimarães, Glaucia Davino, Jefferson Barcellos, Juliana Gobbi Betti,
Laís Margadona, Laura Piaggio, Maria João Antunes & Natalia Martin
Viola (Orgs.). - 1a Edição - Aveiro: Ria Editorial, 2020.
363 p.
Livro digital, PDF.
Arquivo Digital: download e online
Modo de acesso: www.riaeditorial.com
ISBN 978-989-8971-20-3
1. Arte. 2. Audiovisual. 3. Cinema. 4. Comunicação. 5. Ecologia dos Meios.
6. Fotografia. I. Guimarães, Denise. II. Davino, Glaucia. III. Barcellos, Jefferson.
IV. Betti, Juliana Gobbi. V. Margadona, Laís. VI. Piaggio, Laura. VII. Antunes, Maria
João. VIII. Martin Viola, Natalia. IX. Título.
Copyright das imagens pertencem aos seus respectivos autores.
© Design de Capa: Denis Renó
Diagramação: Luciana Renó
© Ria Editorial
Aveiro, Portugal
riaeditora@gmail.com
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Licença:
>: Atribuição - Não Comercial - Sem Obras Derivadas 4.0 Internacional
>: Você é livre para:
- copiar, distribuir, exibir, e executar a obra
Baixo as seguintes condições:
- Atribuição. Você deve atribuir a obra na forma especificada pelo autor
ou o licenciante.
- Não Comercial. Você não pode usar esta obra com fins comerciais.
- Sem Obras Derivadas. Você não pode alterar, transformar ou criar sobre esta obra.
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ESSA OBRA FOI AVALIADA INTERNAMENTE E
EXTERNAMENTE POR PARECERISTAS
Todos os textos foram avaliados e seleccionados pelos organizadores da
obra. Os comentários dos organizadores foram enviados aos autores, que,
mediante a aprovação, receberam tempo hábil para eventuais correcções.
O livro foi posteriormente avaliado e aprovado pelo avaliador externo
Dr. Vicente Gosciola, que informou parecer positivo à publicação
“Os estudos sobre imagem e som são altamente relevantes na atualidade,
dada a participação dessas linguagens no cotidiano midiático. Isso é
reconhecidamente observado no ebook Registros, que apresenta capítulos
relacionados à fotografia, ao audiovisual, à comunicação sonora e às
manifestações artísticas. Recomendo a publicação do livro com esse
conteúdo, pois considero-o altamente valioso para os estudos nestas
áreas”. O parecer foi enviado previamente ao lançamento.
Autores
Alice Fátima Martins
Bárbara Cezano Rody
Bárbara Pina de Cabral
Bárbara Stela Oliveira
Bruno Araujo
Bryan Patricio Moreno-Gudiño
Carolina de Oliveira Silva
Denis Porto Renó
Denise Guimarães
Diana Caridad Ruiz-Onofre
Érika Savernini
Gabriela Santos Alves
Helena Maria de Castro
Ingrid Estíbaliz Sánchez Diez
Jefferson Alves de Barcellos
João Paulo Hergesel
Joedy Luciana Barros Marins Bamonte
Laís Akemi Margadona
Laís Miguel Lacerda
Lorena da Silva Figueiredo
Marina Soler Jorge
Matheus Martins
Natalia Martin Viola
Pablo Calvo de Castro
Regilene A. Sarzi Ribeiro
Rosângela Fachel de Medeiros
Tayane Abib
Índice
Apresentação ................................................................................................................................ 12
Parte 1 - Instante
O Feminino na Fotografia: Interpretações Pessoais ....................................... 16
Joedy Luciana Barros Marins Bamonte
Fotografia Mobile e Mobgrafias: uma Experiência em Várias
Camadas. Uma Prática Baseada em um Novo Universo Ecólogo
Midiático na Rua e em Movimento ............................................................................ 35
Jefferson Alves de Barcellos
Denis Porto Renó
A fotografia na Nova Ecologia dos Meios: Aspectos e Práticas ........... 51
Laís Akemi Margadona
Denis Porto Renó
Primeiras Fotógrafas: a Ocupação do Espaço Feminino na
História da Fotografia ............................................................................................................ 63
Denise Guimarães
Parte 2 - MovIMento
Artemídia e Ativismo na América Latina: o Feminino na
Videoarte de Ximena Cuevas .......................................................................................... 83
Regilene A. Sarzi Ribeiro
Laís Miguel Lacerda
A Série Las Chicas de Cable e os Limites do Melodrama
Feminista ...................................................................................................................................... 107
Marina Soler Jorge
Corpo Feminino e Ficção Científica: uma Perspectiva de
Leitura para o Cinema Brasileiro............................................................................... 131
Carolina de Oliveira Silva
La Representación de la Mujer en los Documentales sobre
Ejecuciones Extrajudiciales en Colombia. Resultados
Preliminares a través de Impunity (2010), de Hollman Morris y
Juan José Lozano................................................................................................................... 156
Pablo Calvo de Castro
Ingrid Estíbaliz Sánchez Diez
Reflexões sobre a Ecologia do Cinema na Era Digital a partir de
Obras de Vibeke Sorensen .............................................................................................. 176
Érika Savernini
A Comunicação Poética como Proposta Teórico-Metodológica
para os Estudos Televisivos ........................................................................................... 197
João Paulo Hergesel
A Invisibilidade dos Corpos Femininos: a Cidade e os Afetos no
Filme A Vida Invisível ........................................................................................................ 215
Bárbara Pina de Cabral
Lorena da Silva Figueiredo
Territórios, Mulheres e Encontro: os Espaços Femininos do
Cinema e da Prisão ............................................................................................................... 231
Gabriela Santos Alves
Cici Pinheiro: Entre as Cenas dos Palcos e do Audiovisual .................. 255
Alice Fátima Martins
Helena Maria de Castro
Adélia Sampaio (Nos) Ensinando a Transgredir ............................................ 271
Bárbara Cezano Rody
Rosângela Fachel de Medeiros
Parte 3 - LInguageM
O Protagonismo do Reporterismo no Quadro Radiofônico Carreteras
Secundárias, do Programa A Vivir que son Dos Días ................................ 293
Tayane Abib
Presença Feminina nos Games Online: Visualidades, Papéis e
Outras Questões ...................................................................................................................... 309
Alice Fátima Martins
Bárbara Stela Oliveira
Bruno Araujo
Matheus Martins
Da Pintura à “Pintura” ....................................................................................................... 326
Natalia Martin Viola
Denis Renó
Aplicación de los Videojuegos como Metodología de
Enseñanza de las Ciencias Naturales en Primaria:
Estudio de Caso “Poliniza Bichos” (gameplay).............................. 343
Bryan Patricio Moreno-Gudiño
Diana Caridad Ruiz-Onofre
Transformações
Apresentação
Compreender as mutações do ecossistema midiático tem sido uma
prática na academia, especialmente no campo das ciências sociais aplicadas. As transformações têm sido constantemente observadas e podem
ser vistas em publicações de diversas formas midiáticas. Entretanto,
pela liquidez desse cenário, os estudos não se esgotam e tornam-se
fundamentais para que a relação sociedade e meios exista de maneira
harmônica e eficaz.
Mas essa preocupação não é algo de hoje. No início da década de 1970,
na cidade de Nova Iorque, surgia pelas mãos de Neil Postman e
Marshall McLuhan o programa de doutorado em Ecologia dos Meios,
impulsionado pela preocupação em desenvolver as teorias relacionadas
a essa corrente e, em seguida sustentar estudos futuros. No escopo,
encontravam-se olhares direcionados à rádio, à fotografia, ao cinema,
aos jornais, às revistas, aos livros, à televisão e a todos os ambientes e
processos aos quais esses canais ou meios estavam relacionados. Processos que compunham uma galáxia composta por uma, ou algumas,
aldeias globais. Uma aldeia onde o meio era a mensagem.
Porém, nos dias atuais, os estudos sobre ecologia dos meios tornam-se
ainda mais relevantes. As estruturas comunicacionais são construídas
a partir de novas tramas de atores midiáticos. A potencialização dos
processos comunicacionais cresceu exponencialmente. O poder midiá-
12
tico, por sua vez, ganhou outro status. Com isso tudo, novas linguagens
comunicacionais passaram a ser adotadas pela sociedade.
Com essa preocupação, organizamos a obra Registros, que reúne
18 textos organizados em três partes, assim denominadas e ordenadas:
Instante; Movimento; Linguagem. Essa estrutura vem a sustentar uma
fundamental análise relacionada a linguagens, papeis e estruturas midiáticas contemporâneas. Os textos, previamente avaliados por pares
em processos peer review sem identificação de autoria, compõem um
panorama rico em termos de inovação acadêmica, observação analítica
e proposição de formatos resultantes da prática científica que circundam
pela ecologia dos meios e fotografia, cinema, audiovisual, rádio, arte,
gamificação e, finalmente, estudos sobre as narrativas complexas. Depois
de concluída, a obra passou por uma avaliação geral, sendo avalizada
de maneira séria.
Para garantir o êxito do projeto, distribuíram-se as temáticas entre
vários organizadores oriundos do Brasil, Portugal e Argentina. De igual
maneira, os textos originam-se de diversos países e universidades.
Dessa forma, a obra assume um papel importante no rol de livros acadêmicos publicados pela Ria Editorial, que leva a cabo essa publicação
em parceria com o GENEM – Grupo de Estudos sobre a Nova Ecologia
dos Meios, realizador do 2º. Congresso Ibero-americano sobre Ecologia
dos Meios, de onde originaram os textos. Trata-se de uma contribuição
à disseminação da ciência de maneira gratuita, livre e comprometida
com a construção do conhecimento.
Como diretora acadêmica da Ria Editorial, apresento este livro e
ofereço-o à comunidade científica. Nosso anseio é que possamos, através
desta obra, colaborar com a compreensão sobre as ciências humanas
13
e sociais aplicadas, num momento em que o iluminismo revitaliza-se
mundialmente, quando a ciência passou a ser reconhecida, ainda que a
luta contra o negacionismo também esteja presente na agenda planetária.
Boa leitura, e frutíferas investigações científicas.
Luciana Renó
Diretora Acadêmica
Ria Editorial
14
Parte 1 - Instante
O Feminino na Fotografia: Interpretações
Pessoais
Joedy Luciana Barros Marins Bamonte1
O objeto de estudo aqui apresentado tem origem em pesquisas desenvolvidas desde 1995. Nelas, o têxtil é resgatado juntamente ao elo de
ligação entre gerações sequentes de mulheres em minha família, como
fruto de observação do processo de aprendizagem anterior, inclusive
à alfabetização.
Nas diversas possibilidades que o tema permite, o interesse está
não somente na sustentabilidade matérica, como também nas relações
humanas e na valorização do patrimônio imaterial, no caso das tradições têxteis manuais. Observa-se atualmente a diluição da memória
desses fazeres nas mais diversas culturas, a exemplo da portuguesa e
brasileira, nas quais tenho me aprofundado. Em um mundo globalizado,
aproximamo-nos enquanto nações, mas igualmente temos o desafio de
valorizarmos as especificidades de cada cultura, de cada povo para não
esquecermos de quem somos.
1.
Professora no departamento de Artes e Representação Gráfica (Universidade
Estadual Paulista - UNESP)
Doutora em Ciências da Comunicação (ECA – USP, São Paulo-SP).
Mestre em Comunicação e Poéticas Visuais (Universidade Estadual Paulista –
UNESP).
joedy.bamonte@unesp.br
16
Com base na topofilia2, o sensível, afetivo que aproxima a pessoa e o
espaço, configurando-o enquanto lugar, procuro encontrar os traços das
mulheres que legaram as tradições têxteis, o que faço desde meu doutorado com a tese “’Legado’ – gestações da arte contemporânea: leituras de
imagens e contextualizações do feminino na cultura e na criação plástica.”3
Diante do resgate da cultura regional, considero a importância da
produção proveniente das mãos das mulheres no decorrer de nossa história frente à perda da memória das práticas artesanais têxteis. Por meio
da trama em assemblages e da fotografia como linguagem têxtil, busco
a valorização da delicadeza do têxtil artesanal e o respeito à produção
espontânea, dentro da ressignificação nas artes visuais. Essas questões
constituem focos para a poética transcender as linguagens das artes
visuais, fazendo do hibridismo poético um veículo para o desenho, a
pintura, a escultura ou o têxtil.
2.
3.
“A palavra ‘topofilia’ é um neologismo, útil quando pode ser definida em sentido
amplo, incluindo todos os laços afetivos dos seres humanos com o meio ambiente
material. Estes diferem profundamente em intensidade, sutileza e modo de
expressão. A resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética: em
seguida, pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação
de beleza, igualmente fugaz, mas muito mais intensa, que é subitamente revelada.
A resposta pode ser tátil: o deleite ao sentir o ar, água, terra. Mais permanentes
e mais difíceis de expressar, são sentimentos que temos para com um lugar, por
ser o lar, o locus de reminiscências e o meio de se ganhar a vida.
A topofilia não é a emoção humana mais forte. Quando é irresistível, podemos
estar certos de que o lugar ou meio ambiente é o veículo de acontecimentos
emocionalmente fortes ou é percebido como um símbolo.” (Tuan, 1980, p. 107)
Este trabalho teve início em uma pesquisa desenvolvida a partir de minha
experiência pessoal como artista plástica, da qual surgiram algumas obras. Dentre
elas, destacou-se “Legado”.
Produzida em 2002, “Legado” é uma colcha de retalhos sobre a qual foram
aplicados objetos diretamente relacionados ao universo feminino. Eles constituem
os retalhos da colcha. O trabalho é visto como objeto de estudo a partir do qual
é tecida a tese, como sua metalinguagem - uma investigação sobre a influência e
a utilização de elementos da produção têxtil artesanal nas artes visuais, no final
do século XX e início do XXI, por alguns artistas brasileiros.
17
Percepção de Espaço e Configuração de Lugar
A percepção de espaço constitui um dado preponderante para compreender a atuação da mulher na história. Nas abordagens sobre a geografia,
sejam elas física, biológica, ou humana, observa-se um conjunto de
relações e intervenções que dizem respeito diretamente à formação dos
grupos e de como as culturas foram caracterizadas na interpretação e na
transformação da natureza para suprir as necessidades do ser humano.
À medida que os grupos foram se fixando nas diversas regiões, a
mulher teve seu papel fortalecido como referência da permanência, a
administradora dos cuidados pessoais cotidianos. Na configuração de
espaço em lugar, nasce a concepção de lar. No aproveitamento do que é
colhido, na aproximação de rios e lagos, na domesticação dos animais,
na forma de preparar o alimento, usos e costumes são delineados.
Para prover a proteção do frio e do calor, bem como a sobrevivência
em geral, tecnologias foram desenvolvidas para transformar a natureza
em matéria-prima, ferramentas e suprimentos. A experiência de cada
povo diante desses procedimentos veio a delimitar distinções e afinidades entre culturas e diante disso, enfatiza-se a atuação das mulheres
no recôndito de seus lares enquanto propulsoras da preservação e do
desenvolvimento das sociedades. As atividades mencionadas, apesar de
não terem sido narradas pela história por serem julgadas insignificantes,
delinearam registros a partir de ações, procedimentos e produções caseiras, a partir dos quais podemos compreender a dinâmica e importância
das matriarcas enquanto “regentes” dos lares.
Independente das conquistas feitas e ainda a serem feitas pelas
mulheres no decorrer dos séculos, o que se pontua aqui é a constante
18
presença e as marcas que se estendem até os dias de hoje quando o espaço se configura em lugar e no quanto a intimidade gerada na moradia
é caracterizada pela figura materna. Cita-se Tuan e Bachelard para as
reflexões.
Para o geólogo sino-americano, “Os lugares íntimos são lugares
onde encontramos carinho, onde nossas necessidades fundamentais são
consideradas e merecem atenção sem espalhafato.” Tuan (1983, p. 152).
Já para o filósofo francês Gaston Bachelard,
a casa é o nosso canto do mundo. Ela é, como diz amiúde, o nosso
primeiro universo. É um verdadeiro cosmos. Um cosmos em toda a
acepção do termo. Vista intimamente, a mais humilde moradia não
é bela? ... a casa não vive somente no dia-a-dia, no curso de uma
história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos, as diversas
moradas de nossa vida se interpenetram e guardam tesouros dos
dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as lembranças das
antigas moradas, transportando-nos ao país da Infância Imóvel,
imóvel como Imemorial. Vivemos fixações, fixações de felicidade.
Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de proteção. Algo fechado deve guardar as lembranças, conservando-lhes seus valores de
imagens. (Bachelard,1996, pp. 24-25)
Interessa aqui estabelecer vínculos entre essas abordagens e as
imagens produzidas enquanto processo criativo e o fazer que se refaz constantemente. Nelas, o toque é identificado como um meio de
expressão, de comunicação, seja por meio do sabor na combinação
de temperos, na maneira de produzir roupas pessoais, no adorno, no
enlaço, nos pormenores.
Ao produzir um casaco, uma meia ou colcha, as mãos femininas
traziam a expressão das atividades mencionadas acima. E ainda o fazem.
No entrelaçar fios, prensar a lã, fiar o algodão, organizar os cantos, o
19
aconchego e a afeição são pronunciados. Essa pode ser uma possível
resposta à questão levantada pela arqueóloga Elizabeth Barber: For
millennia women have sat together spinning, weaving, and sewing. Why
should textiles have become their craft par excellence, rather than the
work of men? Was it always thus, and if so, why? (1995, p. 29)
A Metáfora do Fazer
No processo de elaboração de vestimentas estão os indícios do labor
e da intenção de quem trabalhou. Podemos reconhecer nos pontos e
tramas, a dedicação de alguém a alguém, a tradução do zelo e do afeto.
O empenho rotineiro pode ser cansativo, mas não é à toa que se busca
a excelência no que se produz, pois o despertar para a contemplação
envolve algo que vai além do simples fazer. Nesse viés, alcança-se o
objetivo para a ação que excede o cansaço de horas de trabalho: o objeto
de afeição. Como diria a artista francesa Louise Bourgeois:
As meadas de lã são um refúgio amistoso, como uma teia ou um
casulo. A larva tira a seda da boca, constrói o casulo e quando termina ela morre. O casulo exauriu o animal. Eu sou o casulo. Não
tenho ego. Sou meu trabalho. O movimento repetitivo de uma linha,
acariciar um objeto, lamber feridas, o vaivém de um balanço, a infinita repetição das ondas, embalar uma pessoa para dormir, limpar
alguém de quem você gosta, um gesto infinito de amor. (Bourgeois,
Bernadac, & Obrist, 2000, p. 173)
Tendo como aporte a fala de Bourgeois, apresenta-se o corpo como
meio, sujeito e suporte para a afeição pelo lugar - topofilia, onde o feminino é perscrutado pela retina da câmera fotográfica e metaforizado nos
elementos compositivos. Ao reconhecer e instaurar o corpo feminino
20
em interpretações pessoais, recorta-se sua manifestação enquanto toque
afetivo, em instantes nos quais o lugar é instaurado. A seguir será feita
a abordagem das fotografias autorais.
O Tecido como Corpo
Em uma produção que mais se ajusta a um ensaio fotográfico,
apresento duas imagens que dialogam por priorizarem o tecido como
objeto de investigação plástica. Nelas, as dobras de uma calça e de um
lençol pendurado desenham caminhos.
Na figura 1, o cruzamento de pernas constrói uma concentração de
linhas no moleton monocromático, instigando a sensualidade da forma
na malha acinzentada, sem contrastes de cor ou tons. Os estereótipos
relacionados à mulher parecem diluídos, entretanto eles somente são
sutis. A estrutura compositiva se detém nos frisos da malha, em uma
textura perceptível somente a olhares mais atentos.
Figura 1. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins, 2014
21
Na proximidade entre as duas imagens, a metáfora da aparente
invisibilidade da figura 1 parece ser contraposta à figura 2, na qual a
cor quente do vermelho queimado possivelmente possui maior apelo
visual do que o cinza. Entretanto, ironicamente, os contrastes tonais que
compõem a imagem e que demonstram maior movimento, sinuosidade e
profundidade, são somente um registro de um tecido improvisadamente
disposto como uma cortina provisória em uma casa recém habitada,
ainda sujeita às improvisações da mudança. Pontua-se o quanto o lugar
de afeição é evocado nessa composição, daí trazer uma atração maior
para o olhar. Nesse caso, o tecido não cobre um corpo humano. O tecido
é o próprio corpo, vermelho e mais volumoso.
Figura 2. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2015.
22
Germinação
As figuras 3, 4 e 5 fazem parte da série Exsistère. São resultantes
de um período de observação da germinação de bulbos, associados à
resistência de uma planta extremamente resistente, capaz de armazenar água e nutrientes o suficiente para não precisar ser regada por um
longo período.
No interesse pelas ciências da vida (já manifesto em outros momentos
de meu processo de criação), as pesquisas da área de artes visuais foram
aguçadas pelas práticas de quantificação e comprovação, envolvendo
várias espécies e fases durante um mês, aproximadamente. A partir de
dezenas de imagens, o crescimento das plantas foi registrado e utilizado
como referência para a escultura apresentada na figura 5. Galhos e cipós
também foram observados para tanto.
Figura 3. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2013.
23
Figura 4. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2013.
Figura 5. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2013.
Para a elaboração dessa escultura foram utilizados sessenta quilos de
argila e, em torno, de cem horas de trabalho. A organicidade da peça e
das fotos dos bulbos constituiu o principal fio condutor para as investigações plásticas, estando diretamente relacionada à proliferação biológica,
enfatizada pela sinuosidade e pelos encadeamentos rizomáticos. Na
24
própria ação em desenvolver essas obras, identifico-me como potência
geradora de vida, identificada igualmente como potência feminina.
Ações Afetivas
Para a série “Vestígios”, as imagens foram feitas a partir da captação
das marcas deixadas por minha família no dia a dia, as quais limpamos
ou apagamos a cada organização ou limpeza. O tema gerador teve a
casa como espaço de intimidade, a partir de “A poética do espaço”, de
Bachelard , investigado no grAVA – Grupo de pesquisa em Artes Visuais
e Audiovisual, do qual sou líder e no qual me debruço, junto aos alunos
sobre nossas próprias produções artísticas a partir de reflexões específicas.
No procedimento poético escolhido para a produção das fotos
(figuras 6, 7 e 8), encontrei-me como observadora de minha própria
intimidade enquanto mãe, esposa, mulher, em momentos em que as
marcas, consideradas inconvenientes, da “desarrumação” e “bagunça”
foram congeladas para ir em busca das pessoas que por ali passaram.
Cito Bachelard:
O armário e suas prateleiras, a escrivaninha e suas gavetas, o cofre e
seu fundo falso são verdadeiros órgãos da vida psicológica secreta.
Sem esses “objetos” e alguns outro igualmente valorizados, nossa
vida íntima não teria um modelo de intimidade. São objetos mistos,
objetos-sujeitos. (Bachelard, 1996, p. 91)
Parece haver nesse contexto um “universo criado” que atrai o olhar
e instiga-me a reconhecer o quanto a experiência é negligenciada diante
dos afazeres mecânicos que apagam a existência e os pormenores onde
podemos ser encontrados. Reconhecemo-nos neles. E, nesse aspecto, o
25
excesso de assepsia contemporânea pode ser um recurso para a diluição
do que faz de cada um de nós, um ser diferente e único.
Figura 6. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2011.
Figura 7. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2011.
26
Figura 8. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2011.
A Poética como Objeto
As figuras 9 e 10 têm como referências, obras produzidas em 2002
e 2003, tratando-se de conteúdos referentes a minha tese de doutorado,
já citada anteriormente.
As fotos foram produzidas utilizando as obras mencionadas como
referências imagéticas, como um contexto criado para possibilitar inúmeras interpretações a partir do estranhamento que possa ser desperto
ao se ter uma criação como motivadora para outra criação. Há um viés
hermético nessa leitura que impele a um mergulho mais intenso nos
elementos compositivos das peças como se novas lentes ampliassem
recortes na dinâmica para ressignificar objetos.
Na figura 9, um dos retalhos de Legado foi fotografado em macro
para enfatizar o contraste de materiais em vários aspectos, inclusive
como objetos que não constituem adornos, mas estão inseridos sobre o
tecido para gerar questionamentos, características da arte na contem27
poraneidade. A esse ato de fotografar Legado, denominei “Revisitando
Legado”. Cito trecho da tese para melhor compreensão:
Pessoais e higiênicos, absorventes são objetos que não costumam
ser expostos, nem tão pouco o que se passa com eles. Foram criados
para substituírem pedaços de pano e para assegurarem um maior
conforto e segurança para quem os usa.
Dispostos sobre um dos retalhos em vermelho intenso de “Legado”,
dois absorventes foram costurados com linha vermelha , valorizados
como um adorno feminino. Sobre eles, os 84 alfinetes estão perfurados, marcando relevos no algodão.
Tanto a costura com a linha quanto os alfinetes furam sua superfície,
criando uma continuidade, um ritmo. Não há sangue sobre eles,
mas objetos metálicos e o vermelho da linha que cria marcas. Sua
utilidade não existe mais; foi transformada em metáfora; uma dor
está registrada. (Bamonte, 2004, p. 91)
Figura 9. Sem título. Fotografia digital. Joedy Marins. 2011.
Na figura 10, a lente da câmera é exposta a outra obra: Dote. Refere-se à herança recebida e passada geração após geração, assim como
a elaboração de um novo ser, o potencial a ser explorado e multiplicado como células, pontos e o fazer artesanal, como uma metáfora da
28
produção têxtil. Fazem parte de “Dote”, três lençóis bordados com
espermatozoides, óvulos e o percurso do embrião dentro dos órgãos
reprodutores femininos.
Apesar de ter sido produzida em 2003, a foto remete a uma outra
série que nasceu durante a lavagem das peças para manutenção em 2010.
A essa ação (que li como performática) intitulei “Preparando o enxoval”,
em alusão ao ato de bordar, lavar, passar e guardar as peças para uso
no casamento. No caso, o lençol foi fotografado pendurado no varal
para secagem.
Figura 10. “Preparando o Enxoval” nº 10. Joedy Marins. Fotografia
digital. 2010
A Presença do Orgânico e o Processo Criativo
Diante das obras apresentadas, observa-se que a proximidade dos
elementos compositivos e dos temas abordados destacam estruturas
29
orgânicas presentes tanto nos seres humanos quanto em insetos, animais
e vegetais. A elaboração de casulos, de teias ou o estudo de imagens do
sistema reprodutor feminino constituem símbolos da vida, ao mesmo
tempo em que os materiais, suportes e ferramentas, principalmente do
têxtil são inseridos no fazer artístico.
A cada fotografia produzida, a organização existente para a preservação do ninho é associada à casa e à manutenção da vida nos atos de
tecer, coser, bordar, fiar está a atitude de criar, fecundar, gerar a vida,
proteger. No próprio conceito de renovação da vida e potencial da própria criação de se preservar, assim como a essência da sustentabilidade,
que por sua vez está atrelada à necessidade do ser humano de sentir
afeto e ser amado.
A atitude de fotografar o lar, a própria produção, a germinação, valorizar as pequenas coisas e maneiras de se demarcar o ambiente familiar
está diretamente relacionada ao ato de tecer o casulo, a teia, preparar o
ninho, amamentar, ter o prazer de fazer uma manta ou qualquer outro
tipo de cuidado com quem se ama. Nesse sentido é que se estabelecem
as relações do proteger e do cuidar das imagens apresentadas, com o
têxtil artesanal. Cito, como exemplo, a narrativa de Bourgeois e do
quanto as influências apreendidas no contexto familiar por meio de sua
mãe e avó foram relevantes para a formação da artista:
Minha mãe tinha uma saúde delicada e queria que eu seguisse na
sua profissão o mais rápido possível. Desde cedo ela me iniciou nas
questões de desenho e cor e nos vários estilos históricos das tapeçarias
antigas. Também havia as questões químicas de encontrar tinturas
indesbotáveis, que minha mãe achava que eu tinha que trabalhar mais
30
Mamãe tinha ajudado minha avó em sua oficina, mas jamais saía
de casa e não tinha senso comercial. Vivia apenas para tingir a lã e
fazer restaurações. Minha mãe era cientista por natureza e decidiu
que só restauraria tapeçarias feitas antes de 1830. Antes dessa data
as tapeçarias eram tecidas sobre trama de lã, mas depois passaram
a ter trama de algodão. A fábrica de Gobelins fazia as de algodão, e
segundo mamãe estavam arruinando as tapeçarias com isso e usando
tinturas químicas, em vez de naturais. Ninguém deu atenção. Mas
ninguém melhor que minha mãe para saber que ela estava certa.
A lã, quando vem do animal, cheira a um quilômetro de distância.
Primeiro era preciso remover a gordura em banhos alcalinos. Depois a fianderia preparava a lã manualmente, tirando a lã do monte
e torcendo-a entre os dedos num fuso espiralado. Ainda restava
gordura na lã, por isso o fio, agora enrolado em meadas de cerca
de sessenta centímetros, era banhado em barris de amônia na beira
do rio (se ficar alguma gordura as traças comerão a lã). Depois ela
era enxaguada no rio por causa do tanino. (Bourgeois, Bernadac, &
Obrist, 2000, pp. 119-120)
Meu processo criativo ou o método que utilizo pode ser relacionado
ao que Júlio Plaza descreveria como “o caminho pelo qual se chega a um
determinado resultado, ainda que este caminho não tenha sido fixado de
antemão de modo deliberado e refletido.” Plaza e Tavares (1998, p. 87).
O caminho narrado é intuitivo, à medida que houve uma adaptação aos
materiais disponíveis, seja em formatos bidimensionais quanto tridimensionais. As técnicas são observadas, mas revistas, reinventadas ao
passarem por testes e anseios para que atendam à expressão, como reações abertas ao despertamento dos sentidos, percepções e experiências.
A reutilização é bem-vinda pois pode trazer a vivência do outro,
como resposta ou confirmação ao que foi intuído para a produção. Ao
mesmo tempo, agrega o intervalo para a reflexão diante do descarte
e do imprescindível. Essa parece ser outra característica que adere à
concepção do sensível. O artista necessita tanto disso quanto da figura
31
materna. O que pode ser descrito como “velho”? O que pode ser imposto
como procedimento se antes não for experienciado?
O fazer de cada um dos processos descritos no presente texto possibilita observar os valores atribuídos ao que pode ou deve ser revisto,
conservado ou renovado. Olhar com certo distanciamento para o próprio
ambiente íntimo, usar as próprias criações como referências permite
o novo olhar e a persistência da busca pela importância devida a cada
fato e ao tempo que dedicamos a cada coisa e a quem dirigimos nossa
atenção. Isso é sustentabilidade.
Considerações Finais
Para Tuan,
A experiência é constituída de sentimento e pensamento. O sentimento humano não é uma sucessão de sensações distintas; mais
precisamente a memória e a intuição são capazes de produzir impactos sensoriais no cambiante fluxo da experiência, de modo que
poderíamos falar de uma vida do sentimento como falamos de uma
vida do pensamento. Tuan (1983, p. 11.)
Na valorização da experiência concedida pelo autor em suas pesquisas, verifico minha busca pelo que é constante, algo já abordado
e investigado não só em pesquisas plásticas como também teóricas.
A especificidade do afeto na adaptação do ser humano ao local onde
sua segurança e necessidades primordiais serão garantidas, aproxima
o geólogo do filósofo Bachelard. E nos dois reconhecemos os aspectos
do mínimo, do essencial: condições para continuar.
32
Atualmente, vive-se um momento na história da artes visuais em
que o têxtil vem sendo extremamente valorizado em várias partes do
mundo. As questões levantadas sobre a presença da mulher nos lares são
comumente abordadas a cada obra produzida em crochê, tricô, tecelagem,
costura. Essas são tecnologias ainda utilizadas e revistas sob aspectos
contemporâneos e a presença de mulheres também é preponderante nas
mostras que trazem essas artistas.
Nessas observações, a contribuição, a história da mulher e escrita
pela mulher está em andamento. Vivemos em um momento da história
no qual muito se fala em respeito e preservação de direitos, mas as artes
visuais têm feito isso na prática, ao tocar exatamente em tecnologias
ancestrais e tradicionais. É sobre isso que essas linhas e imagens trata.
Uma pequena parcela, uma intenção a contribuir e a valorizar papéis
que muitas vezes são desvalorizados.
Referências
Bachelard, G. (2008). A poética do espaço. (A. Danesi, Trad., 2a ed.).
São Paulo: Martins Fontes.
Bamonte, J. (2004). Legado: contextualizações da arte contemporânea
– leituras do feminino na cultura e na criação plástica (Tese de
Doutorado). Universidade de São Paulo (ECA – USP), São Paulo, SP.
Barber, E. (1995). Women’s Work: the first 20000 years – women, cloth,
and society in early times. New York, London: W. W. Norton &
Company.
33
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destruição do pai, reconstrução do pai. São Paulo: Cosac & Naify.
Marandola Jr., E. (org.). (2014). Qual o espaço do lugar?: Geografia,
epistemologia, fenomenologia. São Paulo: Perspectiva.
Plaza, J. & Tavares, M. (1998). Os processos criativos com os meios
eletrônicos: poéticas digitais. São Paulo: Hucitec.
Tuan, Y-F. (1983). Espaço e lugar: a perspectiva da experiência.
(L. Oliveira, Trad.). São Paulo: DIFEL.
Tuan, Y-F. (1980). Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores
do meio ambiente. (DIFEL, Trad.). São Paulo: DIFEL.
34
Fotografia Mobile e Mobgrafias: uma
Experiência em Várias Camadas. Uma Prática
Baseada em um Novo Universo Ecólogo
Midiático na Rua e em Movimento
Jefferson Alves de Barcellos1
Denis Porto Renó2
A Rua como Palco, a Rua como Construção de uma Linguagem
A primeira imagem de rua que somava aspectos arquitetônicos e
um ser humano, onde se dá início aspectos importantes discutidos nesta
tese. Um dos marcos significativos da fotografia de rua está vinculado,
historicamente, a um dos seus seminais autores. Daguerre, em suas
observações e testes no princípio da fotografia, realizou um primeiro
registro que hoje é considerado a primeira imagem com a presença de
um ser humano. Nesse registro, as questões arquitetônicas e a interação
1.
2.
Jornalista e fotógrafo.
Professor no Centro Universitário Barão de Mauá.
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Tecnologia, na
Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil).
jefferson.alves@baraodemaua.br
Jornalista e fotógrafo
Livre docente pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil).
Professor associado na Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil).
denis.reno@unesp.br
35
do ser humano com o espaço público tornam-se bastante evidenciadas.
Percebe-se a preocupação do registro e também a inserção dos primeiros
aspectos de uma fotografia de rua, o que veio a se consolidar com o tempo.
Figura 1. Boulevard du Temple e o primeiro ser humano registrado em
um suporte sensível a luz. Recuperado de http://100photos.time.com/
photos/louis-daguerre-boulevard-du-temple
Na figura 1 é possível observar, no canto esquerdo, dois personagens
importantes de qualquer centro urbano. Um engraxate e seu respectivo
cliente aparecem nessa imagem por uma questão técnica bastante simples: o tempo em que o registro foi realizado. É importante considerar
que o tempo de obturação nesse período era longo. Entendemos um
obturador de uma câmera fotográfica como um dispositivo que controla
36
o tempo em que a luz irá atingir o suporte utilizado (metal, no caso desse
registro fotográfico) para que a imagem se realize por completo. Esse
princípio foi fundamental para toda a técnica fotográfica desenvolvida
nos períodos subsequentes (Adams, 2001; Busselle, 1986; Trigo, 2001).
Pioneiros - Alfred Stieglitz (Photo Secession) , Paul Strand e
Jean-Eugène-Auguste Atget
Alfred Stieglitz, fotógrafo estadunidense, começou seu trabalho no
século XIX se aproximando dos Pictorialistas, mas seu desejo por uma
fotografia que demonstrasse sua ligação com a cidade e também com os
aspectos climáticos, e características da luz de cada cena que escolhia,
o levaram a seguir por um caminho que de certa forma deu início ao
seu encantamento com a rua, propriamente dita.
Figura 2. Wet day on the boulevard (Alfred Stieglitz, 1894). Recuperado
de http://biografiadefotografos.blogspot.com/2014/10/biografia-alfredstieglitz.html
37
Stieglitz formou a galeria 291, nos Estados Unidos da América, e teve
como experiências as primeiras exposições com imagens consideradas
fotografias de rua, pelas características do tema que envolveu a captura
dessas imagens, bem como a maneira como elas foram processadas e,
por conseguinte, expostas em sua galeria (Freund, 2015).
O fato de possuir uma galeria o aproximou de outros fotógrafos que
também desenvolviam trabalhos semelhantes e assumiam a rua como
um tema constante (cf. figura 2). É importante lembrar que adentramos
o século XX e o processo de industrialização das cidades caminhava a
passos largos. Temos, então, um novo tipo de cidadão e novas interrelações entre o homem e a cidade.
Outro fotógrafo de destaque é Paul Strand, que surge no começo
do século XX trabalhando na fotografia das ruas e estabelece relações
com a galeria de Stieglitz, que o vê com entusiasmo e lhe convida
para expor. Strand era aluno de Lewis Hine, reconhecido fotógrafo de
cunho social que havia feito um mapeamento da situação de trabalho
infantil no fim do século XIX e começo do século XX nos Estados
Unidos da América.
Strand destacou-se como um teórico das imagens produzidas na rua,
existem uma série de artigos publicados por ele, sendo a revista Camera
Work uma publicação importante naquele momento, transformando-se
no fim do século XIX e início do século XX uma referência tanto para
fotógrafos como para apreciadores deste ofício/arte.
Ainda que fortemente influenciado pelo Cubismo, Strand propôs
uma objetividade naquilo que se pensava fotografar e utilizar a forma e
a geometria das cenas para construir uma fotografia capaz de chancelar
toda sua experiência de fotógrafo de rua.
38
Figura 3. Trabalho do fotógrafo Lewis Hine, que foi professor de Paul Strand.
Recuperado de http://www.pavlospavlidis.photography/paul-strad.html
Figura 4. Trabalho nas ruas, Paul Strand, Nova York, 1933. Recuperado
de http://www.pavlospavlidis.photography/paul-strad.html
39
Também apontado como um dos pioneiros na fotografia de rua, o
fotógrafo Jean-Eugène-Auguste Atget, fotografou as ruas de Paris, na
França (figura 5), sempre com o intuito de criar uma documentação
artística que ao seu propósito seria utilizada por museus e galerias do
início do século XX para romper com as barreiras da cidade e suas
manifestações imagéticas e artísticas. Tornou-se fotógrafo após os 40
anos de idade, o que não o impediu de realizar centenas de fotos de
uma Paris pouco vista. Atget teve uma produção grande, mas morreu
em 1927 sem que quase nada do que fotografou viesse a público, sendo
descoberto posteriormente. Mesmo assim, marcou seu nome na história
da fotografia de rua. Uma parte considerável do seu trabalho mostra uma
Paris sem habitantes, imersa em sombras, porém remetendo diretamente
à produção humana. Ou seja, a presença do homem está fortemente
presente em toda a imagem produzida, signos e edificações, sua produção de sujeira, sua iluminação artificial, a imagem se encarrega de
vir permeada por toda essa atmosfera no trabalho de Atget.
40
Figura 5. Atget e o vazio carregado de humanidade. Recuperado de
https://mariajuliabraz.wordpress.com/2013/11/27/a-paris-fantasmade-atget/
Antes de nos atermos ao crescimento dessa característica da fotografia
e seus desdobramentos, cabe uma reflexão em uma figura identificada
e proposta por Walter Benjamin, em seus estudos sobre fotografia e
cinema. O flâneur é este novo observador.
Com seu passo lento e sem direção, ele atravessa a cidade como
alguém que contempla um panorama, observando calmamente os
tipos e os lugares que cruza em seu caminho. Com esse seu jeito de
passear, como se recolhesse espécies para uma verdadeira tipologia
urbana, ele está “a fazer botânica no asfalto”. Ele faz “um inventá41
rio das coisas”: o trabalho de classificação característico da época.
(Benjamin, 1994, p. 83)
Esse “flâner” encontrou no século XX seu lugar de existência claramente no universo da fotografia, em decorrência do surgimento de
novas possibilidades tecnológicas com o surgimento de suprimentos
fotográficos mais sensíveis e câmeras de formatos menores.
Para corroborar a ideia do Flâner e sua flanerie, cabe salientar a importância do surgimento do Colódio seco e, posteriormente, a fotografia
realizada com película (filme), que reduziu de maneira significativa o
tamanho dos equipamentos fotográficos no início do século XX, dispensando, por exemplo, o uso de luzes auxiliares (flash) em fotografias de
áreas internas (Ermanox) e da consolidação do formato 35 milímetros
como um suporte ideal para se sair às ruas e fotografar.
Uma Pós Fotografia e o Surgimento de Novos Atores, novos
Ecologias e Novos Ecólogos
O resgate histórico apontado acima vem de encontro às possibilidades disponibilizadas pelo advento da fotografia digital no universo
do cotidiano das pessoas, essa possibilidade vem de encontro a uma
expectativa que anteriormente era disponível apenas a pessoas que
poderiam disponibilizar quantias razoáveis de dinheiro para realizar
registros imagéticos do seu cotidiano. Com o surgimento das primeiras
imagens digitais e dos primeiros aparelhos telefônicos portáteis com
recurso de captura de imagem foi possível iniciar um processo parecido
com o que se observa com os pioneiros da fotografia de rua em países
europeus e nos EUA.
42
Fontcuberta (2016) narra a complexidade de se conseguir realizar uma
simples transmissão de uma imagem fotográfica já com equipamentos
compactos de fotografia digital e captura e instantaneidade, ao descortinar
o périplo que um pai ao registrar o nascimento do filho utilizando um
aparelho celular como fonte de transmissão (modem) e um laptop em
plena maternidade e em 1997 consegue de maneira “amadora” realizar
uma transmissão e através de correio eletrônico enviar a imagem do seu
recém nascido filho para uma série de amigos e parentes.
Pienso, entonces en una utopía, la posibilidad de tomar fotos y
transmitirlas inmediatamente tan solo pulsando un botón. Se puso a
trabajar allí mismo. Durante las dieciocho horas que duró el parto de
la pequeña Sophie, Kan permaneció en la sala de espera de neonatos
dándole vueltas al asiento hasta dar por fin una solución. Primero
tomaría el retrato del bebé con la cámara digital y luego lo descargaría
en su portátil. Al no disponer conexión inalámbrica (aún no existía
wifi) utilizó la señal de su móvil para enviar la fotografía del portátil
al ordenador que tenía en casa y que permanecía siempre conectado
a Internet. Una vez la fotografía llegó a su PC, se reenvió por correo
a sus contactos en tiempo real. Ese día nacieron al unísono Sophie
Kahn y la comunicación visual instantánea. (Fontcuberta, 2017, p. 20)
Essa possibilidade de envio imediato abrirá um caminho de instantaneidade e também de abarcamento possível para uma leitura através
da teoria de Nova Ecologia dos Meios. A figura de alguém que dirige
um carro em velocidade de 120 km por hora se orientando pelo espelho poderia ser uma metáfora interessante se a reflexão assumisse
ares de nostalgia em relação à fotografia como uma tecnologia quente
(McLuhan, 2005). Mas ainda que seja possível em uma imagem fotográfica visualizar tudo que ali se coloca, em um objeto bidimensional,
é possível também ter acesso a vários significados implícitos ali que
43
constituem um Pluctum como proposto por Barthes (1996) em que o
residual do bidimensional possa sugerir a existência de um tridimensional ou que seja possível encontrar significados escondidos ou sugeridos pouco usuais em uma ideia clara de construção de um repertório
imagético. A metáfora também encontra sentido quando imaginamos
que é possível, ainda que resguardando a ideia acima de que não se
pode tomar a nostalgia como âncora mas sim como uma referência de
passos a serem dados em um presente futuro. Já que admitimos que os
smartphones são gadgets que transcendem a questão das suas primeiras
funções, ou seja, de serem instrumentos de comunicação, e assumem
atualmente a função de serem extensões corporais.
E onde a fotografia encontra essa nova Ecologia? Se pensamos que
tudo de fato como aponta Bauman (2003) se encontra líquido, tudo em
movimento, e a novíssima teoria do estudos desses meios coloca em
rota de leitura o que essas extensões propõem quando se faz uso delas.
Ao se permitir uma deriva (aos moldes do Flanêur, de Baudellaire,
revisitado por Benjamin (1994)) a fotografia feita por esses novos
aparelhos se coloca como uma possibilidade de intercâmbio como os
autores e também como uma possibilidade de intersecções tão presentes
em teóricos como Renó (2017) e Scolari (2015) que buscam através da
pluralidade das imagens seus diálogos com todos os meios possíveis
de interações midiáticas. O protagonismo da imagem com o uso desses
novos gadgets carrega até em sua forma seminal os avanços de uma teoria
que irá discutir e embasar os trâmites desses novos conceitos midiáticos.
Seus ecólogos trazem para o primeiro plano convergências, questões
transmidiáticas pouco ou quase despercebidas dentro do universo dos
estudos das mídias e dos seus sistemas comunicacionais. E a fotografia
44
com seus saltos das questões argênticas as questões binárias digitais
se coloca como figura importante no arcabouço da Nova Ecologia dos
Meios propondo com isso possibilidades que busca, como comum a essa
corrente de pensamento, possibilidades de remediação com linguagens
tão distintas como o cinema (fotografia em movimento) com a fotografia
estática por assim dizer. A fotografia rompe e se comprova também,
através das Novas Ecologias dos Meios. O seu lugar destinado em um
primeiro momento pela semiótica com seu papel de signo, significado e
significante, bem como transcende as questões filosóficas propostas por
Flusser (2007) e Barthes (1996) em que se realizava a leitura dos seus
aspectos residuais e vai encontrar com as possibilidades de abarcar não
só as possibilidades acima como também abraçará os estudos relativos
aos aspectos étnicos e culturais propostos pela antropologia visual e
suas vertentes, que buscam através da fotografia um recorte que lê as
questões do homem e seu meio como suporte. A que se afirma aqui é
de uma cultura ampla, que possa abarcar as mais frequentes e possíveis
teorias que se debruçam a pensar a cultura visual através da fotografia
como um espaço de construção de um saber múltiplo e por que não,
líquido, em que seja possível abarcar estudos amplamente consolidados
e servir como um satélite para ampliação desses estudos. A proposta
de uma teoria que possa transitar, de maneira fluída, por possibilidades
de interpretação bem como pelo estofo de seus mais variados teóricos.
Uma ecologia que se propõem a ser colaborativa.
As figuras 6, 7, 8 e 9 foram tomadas de um smartphone e obtiveram tratamento básico (inversão de cor para preto e branco, ajuste de luminosidade
e nitidez) que demonstram como a fotografia de rua se insere em um debate
enquanto uma nova possibilidade de leitura através das Novas Ecologias dos
45
meios midiáticos e também como o fotógrafo no exercício de sua função
passa a ser um Ecólogo a realizar construções imagéticas profundas.
Figuras 6. Exemplos de fotografia de rua tomadas por smartphone aos
moldes de produções clássicas dessa linguagem. Jefferson Barcellos, 2020.
Figuras 7. Exemplos de fotografia de rua tomadas por smartphone aos
moldes de produções clássicas dessa linguagem. Jefferson Barcellos, 2019.
46
Figuras 8. Exemplos de fotografia de rua tomadas por smartphone aos
moldes de produções clássicas dessa linguagem. Jefferson Barcellos, 2019.
Figuras 9 Exemplos de fotografia de rua tomadas por smartphone aos
moldes de produções clássicas dessa linguagem. Jefferson Barcellos, 2018.
47
Considerações Finais
Com o advento das novas tecnologias e, sobretudo, com a consolidação
do smartphone como uma extensão dos nossos membros e facilitador dos
afazeres do nosso dia-a-dia, é possível afirmar claramente que a fotografia
que sempre teve um protagonismo no universo midiático, agora salta à
frente como um instrumento comunicacional de bolso facilitador de uma
linguagem imagética em constante mutação. Todas as transformações
sofridas pela fotografia com passar dos tempos tornaram-se ainda mais
evidentes nos dias de hoje. Essa reflexão em primeira pessoa abarca a
possibilidade de transitar pela cidade, essa mesma cidade que Augé (1992)
determinou como um não-lugar, com seus hermetismos e lugares de não
pertencimento e assumir pra si a leitura de Baudellarie em Benjamin (1986)
e seu “flanerie” como algo de forma ainda mais intensa com o smartphone.
Esse gadget viabiliza algo que demandava muito mais tempo e o uso de
infinitos equipamentos fotográficos para ser realizado. A rua em si nos
obrigava tanto a carregar e câmeras e operá-las como também a ser o
tempo todo identificado como fotógrafo. O que o smartphone nos propõe
é um voyeurismo imagético onde o fotógrafo desaparece na multidão e na
arquitetura das cidades. Com isso, podemos, com essa mistura, construir
um arcabouço de imagens profundas que dialogam com a cidade e seus
pontos de referência, resistência e ressignificação, sendo um personagem
que captura imagens e se insere no universo delas.
A Nova Ecologia dos Meios possibilita o surgimento desse fotógrafo
ecólogo, que devolverá através do seu trabalho, imersão, construção
e produção imagética contribuindo com isso com uma nova categoria
de análise teórica. Isso contribuirá com áreas que já tratam a fotografia
48
como alicerce de suas análises, dentre elas a Antropologia Visual, a
Semiótica, os Estudos Culturais e também as Poéticas Visuais, bem
como outras que utilizam dessa linguagem como ferramenta.
Referências
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Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
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Brasiliense. (série Obras Escolhidas, Vol. 1).
Benjamín, W. (1986). Coleção Grandes Cientistas Sociais. São Paulo:
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Fontcuberta, J. (2014) A caixa de pandora. Barcelona: Galaxia Gutenberg.
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postfotografía. Barcelona: Galaxia Gutenberg.
Freund, G. (2015). La Fotografia como Documento Social. São Paulo:
Gustavo Gilli.
49
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Renó, D. 2011). Cinema documental interativo e linguagens audiovisuais
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Barcelona: Gedisa.
Trigo, T. (2007). Medida da qualidade de imagens de câmeras digitais
usando entropia informacional. São Paulo: T. W. Trigo Júnior.
50
A fotografia na Nova Ecologia dos Meios:
Aspectos e Práticas
Laís Akemi Margadona1
Denis Porto Renó2
Ao longo de sua história, da materialidade do grão à virtualidade do
pixel, a imagem fotográfica foi incorporada a um pulsante ecossistema
midiático, em que convivem diversos suportes para sua visualização
– do físico e tátil, como os impressos dos meios de comunicação e a
tradicional fotografia físico-química; ao imaterial e virtual, da imagem
construída por bits. No contexto da Nova Ecologia dos Meios, tais
suportes coexistem em um ambiente veloz e conectado. Neste cenário,
argumenta-se sobre “a inserção definitiva da fotografia na lógica de
produção e distribuição de imagens por meio das telas” (Souza e Silva,
2015, p. 331), como também, em menor uso, nota-se a exploração do tátil
da fotografia em filme por fotógrafos e artistas, que, entre diversas motivações, buscam a estética e o processo típicos da prática físico-química
1.
2.
Doutoranda em Comunicação na Universidade Estadual Paulista - UNESP.
Mestre em Mídia e Tecnologia pela Universidade Estadual Paulista - UNESP
laisakemi.ma@gmail.com
Jornalista e fotógrafo
Livre docente pela Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil).
Professor associado na Universidade Estadual Paulista – UNESP (Brasil).
denis.reno@unesp.br
51
(Henriques, Margadona, & Gadotti, 2015). Considerando-se também
a fotografia impressa dos meios de comunicação de massa, pode-se
dizer que neste novo ecossistema fotográfico convivem grão, retícula
e pixel. Todavia, frente à franca emergência do aplicativo Instagram,
representando a fotografia virtual, e a queda da mítica Eastman Kodak,
gigante da fotografia analógica, ambos eventos discutidos amplamente
por Silva Junior (2014), é possível que tenha havido um ocaso da fotografia material, física, ampliada ou impressa, frente à vultosa produção
fotográfica digital, móvel, imaterial.
No ecossistema da Nova Ecologia dos Meios, a imagem fotográfica está sobretudo localizada nas nuvens de dados e alocada em uma
diversidade de mídias – ou “novas novas mídias”, conceito cunhado
por Levinson (2012) para definir os novíssimos meios em que criador,
receptor e publicador de conteúdos se confundem. De maneira semelhante, o fotógrafo, professor e ensaísta Fontcuberta (2012, 2014, 2016)
define que o papel do artista se confunde com o de curador, colecionista,
docente, teórico – um aspecto cambiante que pode ser relacionado às
“novas novas mídias” de Levinson (2012). Ainda, Fontcuberta define que
a circulação e gestão da imagem prevalece sobre seu próprio conteúdo
e são privilegiadas, agora, práticas lúdicas em detrimento do “solene +
o chato” (Fontcuberta, 2014, pp. 122-123). Tais postulados, contidos no
decálogo pós-fotográfico erigido pelo autor, elucidam as novas práticas
relativas ao pensar e fazer da imagem fotográfica no contexto conectado
da Nova Ecologia dos Meios.
Ademais, tendo em vista a miríade de mídias digitais em que as
fotografias podem ser armazenadas e visualizadas – assunto que será
discutido mais adiante –, a Nova Ecologia dos Meios é capaz de ofere52
cer um arcabouço teórico capaz de permitir uma visão integrada de tais
meios, e a partir desta perspectiva, pensar-se as novas questões erigidas
da fotografia virtualizada disseminada em tal ecossistema.
Dessa forma, espera-se que esta investigação possa motivar a elucidação de alguns aspectos e práticas que concernem à fotografia contextualizada na Nova Ecologia dos Meios, dada à escassez de material
específico que una as duas teorias. Este estudo não busca esgotar ou
sistematizar características e práticas, mas elucidar caminhos para que
novas pesquisas e reflexões possam ser pensadas e executadas.
A Nova Ecologia dos Meios
Ao falarmos sobre nova ecologia dos meios, é fundamental compreender a relação entre a sociedade e os meios. Neste compêndio relacional,
encaixa-se a fotografia, antes usada para materializar uma lembrança, e
agora para compartilhar sentimentos através de suportes binários. Mesmo
imagens originalmente materializadas em papel fotográfico agora são
digitalizadas e distribuídas através de redes sociais. Nessa distribuição,
o Instagram assume papel de curador imagético (Manovich, 2017).
Ainda sobre o ecossistema midiático contemporâneo, vale ressaltar
a importância da imagem nas narrativas atuais. Antes consideradas
complementares às narrativas textuais, as imagens assumem agora um
protagonismo jamais observado na ecologia dos meios. Cada vez mais
pessoas enviam suas mensagens através de imagens. Os dispositivos tecnológicos, em especial os smartphones, colaboraram de maneira especial
nesse crescimento do uso das imagens. Porém, o uso da narrativa imagética ganhou força por outra razão: a pressa da sociedade contemporânea.
53
Nesse contexto amplo, a metáfora ecológica na Comunicação nos
ajuda a compreender o cenário em que as fotografias estão inseridas.
Tida como “o estudo de sistemas complexos de comunicação como ambientes” (Nystrom, 1973), a Ecologia dos Meios empresta da Biologia
um termo que designa um conjunto formado por todas as comunidades
que vivem e interagem em determinada região. Os estudos na teoria
tiveram início nos anos 1960 e culminaram na criação do primeiro
programa acadêmico em Ecologia dos Meios por Neil Postman, na
Universidade de Nova York (1971), e na fundação da Media Ecology
Association (1998).
Scolari (2015) afirma que os discursos científicos sobre a comunicação manifestam uma tendência a tratar os meios de forma isolada: se
estuda “a televisão”, “o rádio”, “o cinema”. Sendo assim, sugere que
a Ecologia dos Meios seja uma teorização expandida capaz de abarcar
quase todos os aspectos dos processos de comunicação, desde as relações entre os meios e a economia, até as transformações perceptivas
e cognitivas que sofrem os indivíduos a partir de sua exposição às
tecnologias de comunicação (Scolari, 2015, pp. 17-18).
A Fotografia na Era das “Novas Novas Mídias”: Diversidade e
Velocidade
Negroponte (1995) já previa os efeitos da transformação dos átomos
do entretenimento em bits. Jogos, filmes e música, desvinculados de
seus suportes físicos como CDs, CD-ROMs e fitas de videocassete,
circulam livremente na superestrada da informação (Negroponte, 1995,
pp. 17-18). Já as fotografias se desvincularam de seus suportes físicos
54
como álbuns de família e ampliações para habitar na contemporaneidade
as nuvens de informação (Silva Junior, 2014, p. 126). Tal fato também é
observado por Braga (2015), o qual pontua que as fotografias domésticas
que antes se acumulavam em caixas de sapato, contemporaneamente,
habitam os computadores e sistemas de internet (Braga, 2015, p. 55).
Tais visões são também compartilhadas por Joan Fontcuberta, ao mencionar que o autor das imagens fotográficas, agora, encontra-se nas
nuvens (Fontcuberta, 2014, p. 125).
Infere-se que a fotografia habita também as “novas novas mídias”,
termo cunhado por Levinson (2012), o qual é citado por Scolari (2015)
como um teórico da Nova Ecologia dos Meios. Anteriormente, as “novas
mídias” são definidas pelo autor como aquelas provindas de gigantes
como a Apple (iTunes), Amazon (Kindle) e o New York Times online,
em que o receptor da informação tem pouco ou nenhum poder de
emissão de conteúdo. Já as “novas novas mídias”, como o Facebook,
Twitter e YouTube, são tidas como aquelas em que o criador, receptor
e publicador de conteúdos são, quase sempre, a mesma pessoa. Nessas
plataformas interativas, basicamente todo consumidor é um produtor
de conteúdo e seu uso é gratuito (Levinson, 2012, pp. 2-3).
No ecossistema das “novas novas mídias”, encontra-se uma série
de plataformas para o compartilhamento e visualização de registros
imagéticos, com maior ou menor exclusividade à mídia fotográfica. Em
mídias sociais, cita-se: Facebook, Instagram, Twitter, Whatsapp, Happn,
Tinder; em sites para portfólio: Flickr, 500px, Behance, Unplash; em
repositórios de imagem: Google Drive, OneDrive, Dropbox, Photobucket.
Tais mídias interativas, à maneira de Levinson (2012), são capazes
de estabelecer relações simbióticas, tais quais os organismos vivos
55
de Darwin, em que mídias diferentes trabalham e agem em benefício
mútuo (Levinson, 2012, p. 4). Em cada uma de tais mídias, é possível
observar uma narrativa fotográfica hegemônica, um papel distinto
para a fotografia publicada em cada uma de tais mídias. Além disso,
elas se retroalimentam: imagens do Instagram podem ser republicadas
no Facebook; um aviso de nova imagem no postada Instagram pode
ser postado via Twitter; as fotos do perfil no Instagram podem estar
disponíveis na conta do usuário no Tinder, um aplicativo de paquera,
entre outros links.
Tal variedade foi possibilitada pela “hibridação câmera-rede dos
gadgets, aliada ao surgimento de canais específicos para a sua fruição”
(Souza e Silva, 2015, p. 331). Porém, as inovações vão além, chegando às narrativas. Hoje em dia, ao pensar na fotografia com as novas
mídias, observamos uma gamificação da forma como as fotografias
são articuladas. Uma simples publicação na rede social nos convida a
uma navegação gamificada. Isso as potencializa quando reportagens
fotográficas passam a ocupar espaços digitais. Diante dessa realidade,
Renó, Barcellos e Viola (2019) nos posicionam frente a esse ecossistema
midiático contemporâneo.
Delineando Aspectos e Práticas
Alguns conceitos-chave podem ser aplicados à prática fotográfica
na Nova Ecologia dos Meios: ubiquidade, das câmeras e dos canais de
distribuição da imagem; velocidade, na captura e compartilhamento
dos registros; virtualidade, das interfaces de manipulação da imagem,
compartilhamento e visualização dos registros imagéticos prontos; e
56
pluralidade de narrativas e gêneros imagéticos: de selfies a fotografias
ressignificadas em memes, imagens analógicas digitalizadas a exposições de fotografia fine art divulgadas por mídias digitais.
Em cada um desses meios, de maneira articulada e quase inconsciente, o fotógrafo veste a sua imagem, o seu produto fotográfico, com
a roupagem conveniente às interações sociais exigidas em cada uma
das plataformas: o cotidiano fugaz, nos stories do Snapchat e agora,
do Instagram; o humor e o meme, nos posts do Twitter; a recordação
familiar e afetiva, nos álbuns do Facebook; a prática da conquista e do
flerte, nos matches do Tinder.
Um gênero fotográfico comum aos novos ambientes digitais é o
autorretrato em rede, a selfie. De fato, essa prática tornou-se tão popular
a ponto da versão eletrônica do Dicionário Oxford consagrar o termo
“selfie” como a palavra do ano em 2013 (Braga, 2015, p. 56).
Carrera (2012) descreve a dinâmica de construção identitária feita
pelos usuários do Instagram. A captura de selfies e seu compartilhamento
de maneira pública “são formas de reafirmar a construção da subjetividade como uma prática social, na qual a colaboração do outro não só
influencia como é determinante para a sua existência” (Carrera, 2012,
p. 162). Camargo e Stefaniczen (2016) argumentam que a selfie trouxe
um renovado poder de atração para a fotografia, em uma dinâmica
definida Braga (2015) como “uma profunda imbricação em querer ver
e ser visto” (Braga, 2015, p. 55).
Dos retratos fotográficos em 35mm às selfies contemporâneas, é
possível observar uma mudança na relação entre a fotografia e o tempo.
Tempo, no sentido da execução das etapas do fazer fotográfico, e também na dinâmica de se recuperar memórias do passado. Braga (2015)
57
argumenta que a fotografia em ambientes digitais tem se voltado cada
vez mais para o presente, numa função de registrar momentos cada vez
mais breves e fugazes. O ecossistema de novos amplos e velozes canais
de distribuição da fotografia permite o compartilhamento instantâneo
do registro fotográfico, superando-se a barreira de tempo do laboratório
analógico, no caso do filme fotográfico, ou da transferência das imagens
da câmera a um computador, como no caso da fotografia digital fora dos
dispositivos móveis. Além da publicação, a interação com a comunidade
do ciberespaço também pode ser realizada de maneira quase instantânea.
Nesse panorama de interatividade, a fotografia assume novos papéis. Camargo e Stefaniczen (2016) observam que a prática do autorretrato em rede, a selfie, não deve ser observada somente em sua
materialidade imagética: além de sua dimensão como imagem técnica, deve ser entendida como experiência e performance identitária
(Camargo & Stefaniczen, 2016, pp. 36-37), visão também confirmada
por Fontcuberta (2012, p. 32), que define a fotografia como extensão
de certas vivências. Ainda, a fotografia passou a ser um mecanismo de
práticas sociais numa contemporaneidade que “solicita ao indivíduo
compartilhar suas experiências cotidianas por meio das fotografias”
(Braga, 2015, p. 55).
Em outros termos, com o fácil acesso a diferentes tecnologias de
registro, de upload de imagens e mídias sociais, os sujeitos saem do
anonimato e tornam-se fotógrafos potenciais, em constante vigia do
mundo, prontos para traduzir, em objeto fotográfico, infinitas experiências com a realidade. (Camargo & Stefaniczen, 2016, p. 35).
Assim, a captura rápida por dispositivos móveis como smartphones,
compartilhada em velozes canais de distribuição e consumo dessas ima58
gens, alterou drasticamente a relação do tempo com o fazer fotográfico.
Se no analógico alguns segundos a mais no banho químico do processo
de revelação poderia inutilizar o filme fotográfico, o tempo sequer é
mensurado e considerado no caso da captura por smartphones na era
da Nova Ecologia dos Meios.
Considerações Finais
A difusão de uma nova geração de meios digitais interativos, em
convivência – ou então, competição – com a mídia tradicional, renovaram a necessidade de um enfoque integrado dos meios de comunicação.
Dos meios de massa impressos às mídias sociais interativas, a fotografia
tem encontrado novos nichos e espaços para ser consumida e veiculada.
No panorama da Nova Ecologia dos Meios, a fotografia assume
novos papéis além do de eternizar momentos solenes para resgate posterior, como visto na tradicional fotografia com filme 35mm. O processo
fotográfico no contexto das “novas novas mídias” passou a regimentar
práticas sociais, como a da construção identitária do usuário em meio à
comunidade da mídia social em que compartilha suas imagens. Além da
função de registro e memória, a fotografia assume o papel de fazer parte
da experiência vivida pelo fotógrafo no tempo presente, num fluxo de
imagens instantâneas cada vez mais numeroso. A imagem fotográfica
é agora ubíqua e atua como extensão de certas experiências.
Uma coisa é clara: somos cidadãos imagéticos. Nos comunicamos
por imagens. Nos manifestamos por imagens. E nesse crescimento do
protagonismo imagético, a fotografia, ao contrário do que consideram
diversos fotógrafos tradicionais, conta viva como nunca. Podemos con-
59
siderar essas opiniões sobre o fim da fotografia como mais uma crise
da profissão, vivida a cada chegada de uma novidade tecnológica. Foi
assim com a câmera portátil, com o filme 35mm, com a câmera digital,
e agora com os dispositivos móveis e as redes sociais. Enquanto isso, a
fotografia continua ocupando os seus espaços no cotidiano.
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62
Primeiras Fotógrafas: a Ocupação do Espaço
Feminino na História da Fotografia
Denise Guimarães1
Não é novidade que muitos registros históricos minimizaram a atuação da mulher, isso quando não simplesmente ignoraram seu papel.
Há diversos casos que hoje são conhecidos graças a pesquisas recentes,
muitos deles relatados na literatura e no cinema, trazendo à tona as
discussões sobre gênero e dominação masculina.
Na ciência, literatura, música ou arte, as mulheres ocupam ainda um
espaço pequeno em relação aos homens, uma realidade que aos poucos,
e felizmente, começa a mudar. Na fotografia, a história ainda reconhece
poucas mulheres, embora alguns números encontrados em livros sobre
sua história revelem uma quantidade surpreendente de fotógrafas mulheres no final do século XIX. De acordo com Hacking (2012), em 1861
haviam no Reino Unido 168 fotógrafas; dez anos depois esse número
já teria alcançado 694 mulheres. Na virada do século já eram mais de
7 mil fotógrafas apenas no Reino Unido e Estados Unidos. Mas chama
a atenção o número de fotógrafas citadas no livro da autora durante este
1.
Doutoranda em Comunicação na Universidade Estadual Paulista - UNESP.
Fotógrafa na Universidade de São Paulo e professora nas Faculdades Integradas
de Bauru - FIB, SP.
denise_guimaraes@outlook.com
63
período: apenas 12, em meio a muitas dezenas de exemplos masculinos.
E, dessas 12 fotógrafas, apenas Julia Margaret Cameron tem seu trabalho
apresentado com evidência, ao lado de outros 36 fotógrafos. O desafio
para estabelecer-se diante de um mundo com costumes prioritariamente
masculinos é abordado por Vicente (2016):
Neste período, era muito comum a crítica de arte ou de literatura
julgar o trabalho criativo das mulheres tendo em conta o seu género:
quando era considerado de qualidade, a artista era considerada uma
excepção ao seu sexo, ou uma mulher com características masculinas; quando era criticado negativamente, os seus limites – fossem
eles quais fossem –, eram então atribuídos à sua condição feminina.
(Vicente, 2016).
Outro fator observado é que as poucas mulheres que se destacaram
eram pertencentes às famílias tradicionais, com relativa ascensão econômica e, de acordo com Silva (2018), por ser uma forma de expressão
restrita e elitizada, a maioria delas iniciou na fotografia por meio de
algum incentivo familiar.
1. Precursoras
Assim como em outras áreas, o trabalho das mulheres fotógrafas,
amadoras ou profissionais, frequentemente aparece relacionado nos
registros históricos a atividades desenvolvidas por seus companheiros.
É o caso de Constance Mundy Talbot. Casada com William Henry
Fox Talbot, Constance fez alguns registros fotográficos, mas de acordo com o site Luminous-lint, Constance não prosseguiu na fotografia.
Porém, Constance Mundy fez, em 1839/40, o que pode ter sido o pri-
64
meiro registro fotográfico feito por uma mulher. Tal fato dificilmente é
encontrado nos relatos históricos sobre fotografia.
Figura 1. The Leaf. Sara Anne Bright, 1839. Recuperado de https://
thefirstphotos.tumblr.com/post/123363983664/the-intriguing-story-ofthe-damned-leaf-until
Em pesquisa recente, o especialista em Fox Talbot, O’Meara (2015),
da Universidade de Lincoln, apresentou em uma conferência suas
conclusões acerca de uma das mais antigas imagens fotográficas preservadas, um negativo do fotograma “The Leaf” (Figura 1) reconhecido como parte das imagens de Fox Talbot, mas que, após minuciosa
avaliação, teve a autoria atribuída à artista plástica Sara Anne Bright.
A imagem de uma folha estava preservada em um álbum que pertencera à Henry Bright, seu irmão, como base para seus desenhos, e foi
descoberta graças a um leilão no ano de 2008, em que o cientista foi
contatado para expressar suas considerações sobre uma possível imagem
produzida por Talbot. Através das iniciais SAB escritas no verso do
65
fotograma, foi possível identificar a autora, a artista plástica inglesa,
e a data provável da imagem, 1840. Não foram encontrados outros
registros fotográficos da artista, ao menos até o momento, e pouco se
sabe sobre a autora da imagem.
Os casos apresentados podem ser o indício de que outras obras tenham sido creditadas equivocadamente em nome de outros autores, ou
ainda, que existam mais mulheres autoras e desconhecidas na história
da fotografia.
Mas há também as fotógrafas que tiveram seu nome gravado na
história e que, como nos relatos anteriores, pouco se sabe sobre sua
trajetória. Na maioria das vezes são chamadas amadoras, sugerindo uma
desvalorização da atividade fotográfica quando executada por mulheres.
Para Sontag (2004), no entanto,
Uma vez que não haviam fotógrafos profissionais, não poderia
tampouco haver amadores, e tirar fotos não tinha nenhuma utilidade
social clara; tratava-se de uma atividade gratuita, ou seja, artística,
embora com poucas pretensões a ser uma arte. (Sontag, 2004, p. 18)
A obra de grande parte dessas mulheres fotógrafas é ainda desconhecida, embora tenham participado ativamente dos processos fotográficos.
Mesmo a biografia dessas mulheres não tem muitas informações, o
que sugere que não tiveram grande destaque na história da fotografia,
independentemente de sua produção.
2. Fotografia e Subversão
Alguns países possuem em seus registros históricos os nomes das
primeiras mulheres fotógrafas de sua história, mas países em que as
66
mulheres começaram a fotografar ainda no século XIX não são muitos.
Há alguns portais na internet que se preocupam em resgatar as histórias das fotógrafas que não estão nos livros. É possível compor, com
pesquisa e unindo informações, a história das precursoras em diversos
países, principalmente ocidentais.
A participação feminina era incentivada no século XIX, como mostra
um artigo publicado no Ladies Home Journal, em 1897, pela jornalista
e fotógrafa americana Frances Benjamin Johnston. O texto, intitulado
“O que uma mulher pode fazer com uma câmera”, apresenta sugestões
para que as mulheres invistam na profissionalização da fotografia, valendo-se de características como bom senso, paciência, tato, talento para
detalhes, olhar rápido e disposição para o trabalho duro. Ao dirigir-se às
mulheres, Johnston não as coloca em um patamar inferior aos homens em
momento algum. Ressalta que a atividade fotográfica profissional atrairia
“especialmente” as mulheres e as incentiva a buscar oportunidades em
áreas diversas, como a fotografia de cães, cavalos ou casas de campo,
destacando que a fotografia não é uma atividade puramente mecânica
e que o interesse pelas referências artísticas é mais importante do que a
simples reprodução de fórmulas químicas. Para ela, o sucesso, embora
difícil, é possível com dedicação, treinamento e originalidade. Por fim,
Johnston oferece sugestões técnicas sobre equipamentos e incentiva o
empreendedorismo. A autora destacou-se também como uma das primeiras fotógrafas americanas; seu acervo de cerca de 3700 negativos
de vidro e filme encontra-se no Prints and Photographs Division, órgão
ligado ao Library of Congress, nos EUA. Durante 50 anos fotografou
ricos e pobres, brancos, negros e índios, atuou como fotojornalista
67
(possivelmente a primeira da história, nos EUA), deixando um extenso
material fotográfico sobre sua época.
As contribuições de Johnston ultrapassam o legado fotográfico, pois
mostrou-se revolucionária e desafiadora em um mundo dominado pelos
homens. Viveu a boemia e teve em seu círculo de amigos os artistas,
poetas, dramaturgos e atores. Não se encaixava nos padrões sociais
impostos a uma mulher da virada do século XIX, sendo considerada
uma rebelde, embora não haja indícios de sua participação em movimentos feministas. Aparentemente as ideias sobre a experimentação e
profissionalização fotográfica entre as mulheres estavam presentes em
diversos locais do mundo, como uma forma de emancipação profissional, contestação dos papeis sociais tradicionais e de reapropriação
pelas mulheres de sua imagem, a partir do momento em que começam
a também fotografar mulheres.
A exposição Qui a peur des femmes photographes? realizada em 2015
no Musée de l’Orangerie (s.d.), em Paris, abordou tais questões ao
apresentar o trabalho de 75 fotógrafas que atuaram entre 1839 e 1919,
buscando quebrar paradigmas e confrontar expectativas e preconceitos
associados ao gênero feminino.
De acordo com o texto de apresentação da exposição, as ilhas britânicas foram um importante cenário para a experimentação fotográfica
feminina. A partir dos fotogramas desenvolvidos por Fox Talbot, o novo
meio foi considerado apropriado para as mulheres, naquele momento,
por aproximar-se do desenho e localizar-se entre a ambição científica
e decorativa. Em geral, o trabalho feminino era direcionado às tarefas
manuais de laboratório, impressão e retoques e apenas esposas e filhas
dos fotógrafos ou mulheres com recursos financeiros suficientes para
68
adquirir um equipamento podiam dedicar-se à fotografia; as primeiras,
como assistentes dos fotógrafos e as últimas, de maioria solteira ou
viúva, trabalhando em locais fechados – estúdios - locais seguros e
longe dos espaços públicos.
Naquele período os círculos fotográficos, ou clubes de fotografia, foram importantes para o desenvolvimento da fotografia entre as mulheres,
que eram incentivadas a participar de reuniões, excursões e exposições.
Mas ainda assim, os ambientes sociais da fotografia eram predominantemente masculinos e poucas mulheres foram efetivamente aceitas.
Entre as fotógrafas, nesse período, prevalece a fotografia de mulheres
e crianças, o papel social das mães e o encanto da infância. Possivelmente reflexo da vida familiar a que estavam imersas ou mesmo porque
seria uma maneira de dar visibilidade ao seu universo, registrado pela
visão feminina. A nova mulher, que fuma, bebe ou anda de bicicleta
também está representada nas imagens, assim como os primeiros nus
feitos por mulheres, desconstruindo a imagem até então idealizada pelo
olhar masculino. As pessoas fotografadas também estão diante de uma
mulher que as fotografa, e não mais um homem, o que altera a relação
modelo-fotógrafo.
Nesse contexto, a fotografia pode ter sido um instrumento para a
construção da igualdade entre gêneros, ferramenta para superar barreiras
psicológicas, sociais e culturais, subvertendo os cânones da época. Muitas
das fotógrafas dedicaram-se aos registros do movimento sufragista, no
início do século XX, cujas fotografias podiam contradizer as imagens
ilustradas que difamavam o movimento e eram abundantemente transmitidas pela imprensa ilustrada.
69
3. Algumas das Primeiras Fotógrafas
Nas últimas décadas, pesquisas tem sido realizadas com o propósito
de resgatar a história da fotografia em que as mulheres também são protagonistas. No entanto, as informações são ainda fragmentadas, sendo
necessário juntar documentos de diversas fontes. Alguns países possuem
levantamentos oficiais em livros publicados e sites institucionais sobre
as fotógrafas nativas.
3.1 Reino Unido
O Reino Unido, por exemplo, é um dos países com mais relatos
encontrados sobre a experiência feminina. Por ser um dos berços da
fotografia ou talvez pelo variedade e organização das pesquisas históricas, algumas das fotógrafas que desenvolveram seus trabalhos no Reino
Unido são reconhecidas dentro do universo da história da fotografia e
também da história da arte. É o caso de Julia Margaret Cameron, uma
das precursoras do pictorialismo, que começou a fotografar em 1864,
aos 48 anos, e especializou-se em retratos. Sua obra é destacada nos
principais livros de história mas, de acordo com Calvo (2005), o reconhecimento veio apenas duas décadas após sua morte, com o auxílio de
apoiadores como Alfred Stieglitz, através da publicação de seu trabalho
em revistas como a Camera Work.
A botânica inglesa Anna Children, conhecida como Anna Atkins,
soube das pesquisas fotográficas de Fox Talbot e de Sir John Herchel
através da associação de seu pai com os membros da Royal Society
(The Public Domain Review). Utilizando a técnica de fotogramas,
produziu impressões em cianotipia (Figura 2) de algas (The Editors
70
of Encyclopaedia Britannica. (2020). Atkins é considerada por alguns
como a primeira fotógrafa feminina a estabelecer a fotografia como um
meio válido para a documentação científica (Artnet, s.d).
Figura 2. Cianotipia. Anna Atkins, 1843. Recuperado de https://
publicdomainreview.org/collection/cyanotypes-of-british-algae-byanna-atkins-1843
No círculo de relações de Fox Talbot, a britânica Jane Martha St. John,
fez, durante uma viagem com o marido para a Itália, cerca de 100 estudos
fotográficos no ano de 1856. Em um tempo em que a técnica era mais
valorizada que a expressão pessoal, as fotografias de Jane St. John demonstram autoconfiança, o que lhe garantiu imagens incomuns. De acordo com Taylor (2007), é improvável que ela seja considerada uma ótima
fotógrafa, mesmo sendo uma das mais interessantes e originais fotógrafas
amadoras da metade do século XIX. O autor destaca que a preocupação
de Jane estava muito mais relacionada à captura do momento de uma
exploração turística do que à preocupação com princípios artísticos, o
71
que lhe possibilitou liberdade e espontaneidade, se comparada a outros
fotógrafos de seu tempo. Utilizou a câmera para explorar e satisfazer
suas curiosidades, fotografando frente e costas de um monumento
(Figuras 3 e 4) (Church of Santa Maria Maggiore, 1856) ou realizando
sua composição de maneira incomum, dando a uma palmeira a mesma
importância que a torre de um monumento (Palm Tree, from St. Pietro
in Vincoli, 1856). Atualmente suas fotos estão no Metropolitan Museum,
em Nova Iorque.
Figura 3. Frente da Church of Santa Maria Maggiore, 1856. (Taylor,
2007) Recuperado de https://bit.ly/2TebBPr
Figura 4. Costas da Church of Santa Maria Maggiore, 1856. (Taylor,
2007) Recuperado de https://bit.ly/2TebBPr
72
Também no Reino Unido, Ann Cooke foi a primeira a mulher a
abrir um estúdio de fotografia, em 1843, após a morte de seu marido
(Hull Firsts Trail, 2017). Ela é também conhecida como a primeira fotógrafa profissional britânica e a primeira mulher a obter uma licença
para executar o processo do daguerreótipo.
3.2 Estados Unidos
Além do Reino Unido, a fotografia alcançou rapidamente outros países e continentes, ocupando também o interesse feminino.
Nos Estados Unidos, Eliza Withington começa a fotografar em 1857,
em seu estúdio na Califórnia (Palmquist, s.d. b). Uma de suas filhas
juntou-se a ela no trabalho fotográfico. Em 1873 Withington viajou para
fotografar em áreas montanhosas e criou um kit com algumas invenções
para facilitar seu trabalho em campo, como saias “grossas e escuras”,
usadas como barracas improvisadas e um guarda sol bengala, usado
para proteger as lentes e escalar montanhas. Era considerada habilidosa
e excelente artista na época. Segundo Palmquist (s.d. b), há indícios de
que Eliza Withington e seu marido viveram separados a partir de 1871.
Também na Califórnia, Abigail E. Dean Cardozo trabalhou como
fotógrafa comercial entre 1864 e 1907. Segundo Palmquist (s.d. a), era
considerada uma mulher independente, enérgica e inteligente. Divorciou-se em 1889 e teve um segundo casamento anos depois, que também
resultou em divórcio. Com três filhas sob sua guarda, trabalhou como
balconista e depois em um estúdio fotográfico. Montou seu próprio
estúdio em 1898 e estabeleceu-se em um meio majoritariamente masculino com sucesso. Inovou oferecendo penteados gratuitos nas sessões
73
de fotos de estúdio. Em 1905 alugou seu estúdio para outra fotógrafa
e dedicou-se à pintura em cerâmica.
Figura 5. Eleanor Brown washing a child’s hand. Frances and Mary
Allen, 1905. (Deerfield Arts and Crafts, s.d.)
Figura 6. Calls in Cranford. Frances and Mary Allen, ca. 1900. (Johnson,
1897).
74
Em Massachusetts, as irmãs e professoras Frances e Mary Allen
começaram a fotografar após perderem a audição, em 1884. A atração
pela fotografia se deu pelo fato de ser uma das poucas atividades socialmente aceitas para uma mulher atuar fora do ambiente doméstico.
Dentre seus trabalhos estão fotografias de paisagens, retratos, crianças
(Figuras 5 e 6) e a visão do passado colonial de Deerfield. Foram consideradas pela fotógrafa Francis Johnston “as principais fotógrafas da
América”, o que lhes trouxe reconhecimento, sucesso e convites para
participar de exposições fotográficas em Nova Iorque, Paris e Londres,
dentre outros. Fizeram safaris fotográficos, acamparam no Grand Canyon,
comercializaram catálogos com fotos. eram boas mulheres de negócios.
Boa parte de seus negativos em vidro ainda está preservada. São reconhecidas principalmente por seu importante trabalho de documentação
fotográfica do movimento Arts and Crafts de Deerfield e por utilizar
a câmera com a mesma essência e senso de composição com que um
pintor utiliza o pincel, preocupadas com a manipulação da luz e com o
foco suave (Moonan, 2002).
3.3 Canadá
Pesquisas indicam que a primeira mulher a abrir um estúdio fotográfico e atuar profissionalmente na fotografia no Canadá foi Hanna Maynard.
Em 1862, ela abriu, com seu marido, Richard Maynard, um estúdio na
cidade de Victoria, extremo sul de Vancouver, e especializou-se em retratos. Produziu experimentos fotográficos, como múltiplas exposições,
autorretratos e, de acordo com Gewurtz (2013), seu trabalho experimental
poderia ser considerado uma antecipação dos movimentos de vanguarda
Dadaísmo e Surrealismo, se fosse mais amplamente conhecido.
75
4. E a História Continua
Durante a presente pesquisa, foi possível observar que a história da
fotografia é, com exceção dos textos oficiais sobre os primeiros e mais
importantes inventores da fotografia, um apanhado de relatos distribuídos de maneira desigual. As experiências de mulheres fotógrafas são
encontradas em materiais diversos e que na maioria das vezes trazem
diferentes personagens. Apenas alguns países possuem publicações
específicas sobre as fotógrafas pioneiras.
Para montar uma história da fotografia que inclua também as personagens do sexo feminino, é preciso buscar os fragmentos espalhados nesses
materiais, compondo o que parece ainda uma grande colcha de retalhos.
A momento atual tem sido terreno de importantes reflexões sobre
o papel da mulher na sociedade e de discussões sobre a igualdade de
gênero. Mais de 180 anos após a invenção da fotografia, a luta pelo
reconhecimento dos avanços femininos na história aponta que há um
longo caminho a ser percorrido. Diversas publicações, principalmente
na internet, revelam que o assunto desperta interesses em todo o mundo,
alimentando expectativas de que, aos poucos, as diferenças históricas
possam, enfim, serem minimizadas em direção a um mundo mais justo.
No entanto, pesquisa realizada pela organização Women Photograph
em 2019 revela quão díspares são os números de homens e mulheres na
fotografia ainda hoje, quando comparados a participação nos principais
veículos de imprensa escrita do mundo (Figura 7).
76
Figura 7. Pesquisa Women Photograph, 2019. Recuperado de https://
www.womenphotograph.com/data
A pesquisa aponta que nos 8 jornais investigados, o maior índice de
mulheres no quadro de fotógrafos é de 40,2% no San Francisco Chronicle.
Nos demais jornais, o índice de mulheres corresponde a 31,6% (New York
Times), 25% (Washington Post), 20,4% (Los Angeles Times), 12,8%
(The Guardian), 11,8% (Le Monde), 10,7% (Globe &Mail) e 7,7%
(Wall Street Journal). Tal resultado evidencia que a atuação feminina
na fotografia profissional é ainda pequena comparada à masculina, o
que não significa que as mulheres fotografam menos, mas que há uma
diferença histórica que não foi resolvida até o momento.
Conclusão
As mulheres, ao longo da história, foram lentamente conquistando
seu espaço, muitas vezes sem o reconhecimento da história oficial, o
77
que não foi motivo para intimidação ou desistência. A cada período,
contornaram dificuldades, julgamentos, opressão. Os avanços femininos
na fotografia se confundem com a luta feminista pelo trabalho, pelo
voto, pela igualdade.
Nesse sentido, a fotografia foi um instrumento que esteve relacionado
à emancipação da mulher e, de certa forma, à subversão dos valores sociais vigentes no século XIX. Grande parte das fotógrafas desse período
eram mulheres empreendedoras, autônomas e muitas delas solteiras ou
divorciadas, algo incomum para a época.
Diferentemente dos pesquisadores e fotógrafos do sexo masculino,
não há um consenso ao citar os nomes das expoentes femininas na
fotografia do século XIX. Muitas das pesquisas sobre as fotografas
autoras ainda estão em desenvolvimento e certamente há muito o que
descobrir na história.
É possível que ainda existam fotografias feitas pelas mãos e olhos
de mulheres que ainda não tenham sido devidamente identificadas e,
consequentemente suas autoras continuam desconhecidas. É importante
que as pesquisas sobre as autoras da história seja contínua para que, mais
do que provar a autoria, a mulher ocupe seu espaço como protagonista
na história em todas as áreas e, assim, tenha o reconhecimento devido
na nos capítulos da história da fotografia, pois a história a ser contada
amanhã está sendo escrita hoje.
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81
Parte 2 - MovIMento
Artemídia e Ativismo na América Latina: o
Feminino na Videoarte de Ximena Cuevas
Regilene A. Sarzi Ribeiro1
Laís Miguel Lacerda2
1. Artemídia e Ativismo na América Latina
A partir da perspectiva que investiga de que forma vozes particulares
carregam consigo todo um coletivo de mulheres artistas para edificação
de novas visões na história da arte e o impacto da produção de artistas
latino-americanas na sociedade contemporânea, este ensaio introduz uma
interpretação das linguagens experimentais em arte, mídia e tecnologia
associadas ao ativismo e luta pela diversidade e respeito as questões de
gênero, etnia, identidade. O tema em comum é a representação de um
corpo político e emancipado. A proposta discorrer sobre novos pontos
de vista através do corpo e do audiovisual para a construção de uma
história da arte latino-americana livre da visão eurocêntrica.
1.
2.
Pós-Doutora em História da Arte do Vídeo pela Univ. Estadual Paulista - UNESP.
Docente Permanente do Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia na
Univ. Estadual Paulista - UNESP.
regilene.sarzi@unesp.br
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia na Universidade
Estadual Paulista – UNESP.
laismlacerda@yahoo.com.br
83
Para tanto, é necessário questionar, principalmente as perspectivas
essencialistas sobre o feminino, promovendo uma abordagem de novas
perspectivas que considerem os contextos específicos de cada obra,
principalmente os contextos violentos em que a América Latina esteve
inserido por muitos anos, feridas históricas que perpetuaram nos trabalhos
e os corpos dessas mulheres. A pesquisa em andamento, pretende um
estudo histórico de obras audiovisuais de mulheres que por frequentes
exclusões se tornaram invisíveis ao longo da história, faz-se necessário
um estudo sobre a presença de seus corpos e a descolonização deles.
Com a arte estabelecida pelos diferentes contextos sociais, culturais
e políticos na modernidade e na contemporaneidade, essas produções
audiovisuais são contribuições significativas para o campo da arte
contemporânea, reconsiderando e revisitando temas e linguagens da
arte latino-americana. Novos estudos se fundamentam principalmente
em novas perspectivas transversais, complexas, ativas, decoloniais e
contra modelos, sistemas e culturas cristalizadas pelo eurocentrismo.
É preciso olhar para outros horizontes ao se tratar de temas tão
profundos e contemporâneos como as lacunas que envolvem a história
que foi ensinada até hoje. Em seu livro Culturas Híbridas (2003), o estudioso argentino Néstor Garcia Canclini, que vive no México, propõe
um interessante caminho de reflexão sobre o fenômeno de hibridação
cultural nos países latino-americanos. A cultura na América Latina é
pensada tendo em vista a complexidade das relações que a configuram
na atualidade, tradições que coexistem com a modernidade que ainda não
terminou de chegar por aqui. Por isso Canclini afirma que precisamos
sair da modernidade na América Latina. São as práticas hibridas que
promovem as misturas, fusões e o sincretismo cultural, que dão força ao
84
pensamento decolonial que rompe com sistemas hegemônicos. Canclini
trata ainda da desterritorialização do conhecimento e das práticas culturais, as quais acreditamos ser um caminho para a construção de uma
nova história da arte que reconheça a arte feminina e a arte midiática
como elementos chave.
É necessário compreender a história da arte dominante, patriarcal
e canônica legitimada por homens, brancos e europeus, para propor
novas maneiras de (re)pensar a história a partir de novas perspectivas e
pontos de vista baseados no contexto político e histórico que compõe as
histórias dos povos da América Latina. As teorias decoloniais permitem
essa introdução a novas maneiras de pensar o que foi por tanto tempo
introduzido e tido como história única. Salienta-se o esquecimento e a
necessidade de reconhecimento de um pensamento crítico- teórico de
pensadores e pesquisadoras latino-americanas.
A historiadora argentina Zulma Palermo, professora emérita da
Universidad Nacional de Salta (Argentina), entre outras pesquisadores,
articula as propostas decoloniais com o feminismo, na busca de unir
essas perspectivas e pensamentos.
Los discursos circulantes desde la segunda mitad del s. XX
coinciden en la afirmación de que el pensamiento y las prácticas de
la modernidad se encuentran en crisis, junto a la crisis del capitalismo
euronorteamericano. En ese orden, las disciplinas sociales han
centrado su interés en la cuestión del poder en sus distintas formas
de acción como vertebrador de esa crisis, buscando comprender
los procesos que han dado forma a las sociedades en el tiempo. Esa
toma de posición produjo, simultáneamente, una profunda crítica a
las ciencias sociales y a las disciplinas humanas como dispositivos
a través de los cuales ese poder actuó para imponer globalmente su
hegemonia (Palermo, 2013, p. 238).
85
Os estudos decoloniais propõe sobretudo, uma reflexão sobre a desconstrução de paradigmas impostos, abrangendo além do conhecimento
e sua construção, a natureza, identidade e gênero.
Estudos decoloniais podem ser referidos ao conjunto heterogêneo
de contribuições teóricas e investigativas sobre a colonialidade. O
que cobre tanto as revisões historiográficas, os estudos de caso, a
recuperação do pensamento crítico latino-americano, as formulações
(re)conceitualizadoras, como as revisões e tentativas de expandir
e revisar as indagações teóricas. (Quintero, Figueira, & Elizalde,
2019, p. 8).
É a partir de novas perspectivas de estudo e novas bibliografias que
a investigação se constrói. A decolonialidade permite que a história
seja investigada e contada de maneira transversal e própria à maneira
de cada povo. Os estudos decoloniais permitem uma expansão teórica
abrangente e mais próxima na qual é possível que todo sujeito seja
pertencente e contribua com seu ponto de vista. Além disso provoca a
recuperação e atualização de um pensamento crítico latino-americano
dentro de sua própria história.
É importante pensar que o contexto crítico e histórico da América
Latina é intrínseco às obras das artistas que fizeram de seus corpos, o
cenário e a materialidade para expressão do que viveram. Partindo dessa
perspectiva, as mulheres artistas fazem do seu próprio corpo um locus por
excelência das situações políticas de violência, torturas, exílios e medos
vividos por elas e outras mulheres. Como é o caso das performances
das artistas Anna Maria Maiolino (itálo-brasileira), Figura 1, Leticia
Parente (brasileira), Sônia Andrade (brasileira) e Maris Bustamante
(mexicana) e Mônica Mayer (mexicana), Figura 2.
86
Figura 1. É o que sobra. Ana Maria Maiolino. 1974. Da série
Fotopoemação. Fotografias de performance. Recuperado de https://
www.catalogodasartes.com.br/obra/BAUGz/
Figura 2. Madre por um dia. Maris Bustamante e Mônica Mayer. 1987.
Performance em programa de tv. Recuperado de http://cral.in2p3.fr/
artelogie/spip.php?article271&afficher_introduction=oui
As performances somadas a um dos campo da Artemídia, ações
registradas em fotografia e vídeo, relatam perseguições e controles contra o feminino, temas relacionados a maternidade e ao corpo feminino
como a menstruação e aos cuidados com o outro, com filhos e maridos,
afazeres domésticos, e consigo mesmo, exigências de padrões de beleza
impostos pela indústria de cosméticos (cabelo, unha e roupas) e estere87
ótipos do feminino e as relações de gênero e as relações entre homens
e mulheres. Envolvem ainda questões de identidade, reconhecimento e
ruptura de estereótipos do feminino, encontradas nas obras de Celeide
Tostes (brasileira) e Diana Mines (uruguaia), Ana Mendieta (cubana),
Figura 3, e Rosa Navarro (colombiana), Figura 4, entre outras artistas
latino-americanas.
Figura 3. Facial Hair Transplante. Ana Mendieta. 1972. Performance.
Recuperado de https://www.phillips.com/detail/ana-mendieta/
NY000212/7
88
Figura 4. Nacer y morir de uma rosa. Rosa Navarro. 1982. Performance.
Recuperado de https://hammer.ucla.edu/radical-women/art/art/nacer-ymorir-de-una-rosa-birth-and-death-of-a-rose
É importante destacar que na América Latina as relações entre
violência e corpo é tema central não apenas nas obras que exploram o
campo da arte e da política, do engajamento e do ativismo, mas também de obras cujo mote é a sensibilidade e a reflexão sobre o feminino.
Ditaduras, aparatos de poder e meios de tortura submeteram o corpo a
princípios de punição que eram indiferentes aos quadros determinados
pelos conceitos de humanidade que foram dominantes na Europa a
partir do século XVIII, segundo análises de Michel Foucault em Vigiar
e Punir (1987). Disciplina e punição foram usadas nas ditaduras latino-americanas, a violência descontrolada sob esses corpos era cotidiana
89
durante os períodos de repressão, que tiveram marcas profundas e que
nunca devem ser esquecidas.
Os castigos sempre tiveram como objeto o corpo, com a intenção
de controlar suas forças. Por meio de várias estratégias, com múltiplas
origens, o corpo está inserido em um campo político, no qual “as relações
de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o
dirigem, o supliciam sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias,
exigem-lhe sinais” (Foucault, 1987, p. 28).
Os corpos femininos trazem consigo o exílio, a violência, a tortura,
a censura, a clandestinidade, o encontro com essas feridas históricas
nunca estancadas, a reflexão sobre o sentido da resistência aos regimes
ditatoriais, que atravessam os corpos que resistiram, viveram e produziram arte nesse período. Por isso, buscamos em Foucault a compreensão
do complexo sistema de representação do corpo social e político e da
análise das práticas de controle do corpo, edificadas pelo referido filósofo francês, dos quais começou-se a se tomar consciência pós-guerra.
Atuações punitivas analisadas por Foucault de maneira estrutural e
histórica na sociedade, assim como a relação entre a sexualidade e o
controle do corpo, evocam os debates sobre o tema a partir de 1960.
Neste debate, o corpo se torna um espaço de reflexões, perpetuado até
os dias atuais. Por meio de suas análises éticas, Foucault estabelece um
paralelo entre os corpos desse período de repressão e controle, dispondo
os processos de subjetivação em um campo de luta entre as resistências
ao controle e o próprio controle em si:
O corpo se tornou aquilo que está em jogo numa luta entre os filhos
e os pais, entre a criança e as instâncias de controle. A revolta do
corpo sexual é o contra efeito desta ofensiva. Como é que o poder
90
responde? Através de uma exploração econômica (e talvez ideológica) da erotização, desde os produtos para bronzear até os filmes
pornográficos... Como resposta à revolta do corpo, encontramos um
novo investimento que não tem mais a forma de controle-repressão,
mas de controle-estimulação: ‘Fique nu..., mas seja magro, bonito,
bronzeado!’ A cada movimento de um dos adversários corresponde o movimento do outro. É preciso aceitar o indefinido da luta
(Foucault, 2011, p. 145).
Ao estabelecer um pensamento sobre a disciplina e os sistemas de
vigilância e punição infligidos sobre o corpo e as reverberações de tais
reflexões na contemporaneidade, Foucault cria um campo de reflexão
filosófica e social sobre a modernidade que coloca o corpo como o centro
das ações e reações humanas. Os corpos dessas mulheres artistas são,
parafraseando o trabalho de Barbara Kruger (Seu corpo é um campo de
batalha, 1989), campos de batalha. A metáfora estabelece essa relação
de poder a que foram submetidos e resistiram. Ao pensar na história das
mulheres e da arte, é possível perceber o enraizamento desde os próprios
modelos de escrita, estruturas que buscam desvalorizar as produções
femininas, tidas desde sempre como avaliadas em termos inferiores.
Para a crítica de arte sul africana Griselda Pollock, teórica, analista
e intelectual dos estudos feministas pós-coloniais nas artes visuais e
conhecida por suas metodologias inovadoras de estudo e análise da
história da arte, as classificações e os critérios utilizados durante séculos explicitam o desprezo pelas obras de arte de mulheres. Além disso,
este modelo desqualifica a arte feminina e a torna um oposto perante
a valiosa arte produzida por mestres e gênios masculinos e escolhidos
para edificarem a história da arte.
91
O estereótipo feminino, sugerimos, opera como um termo necessário
de diferença, pelo qual o privilégio masculino, nunca reconhecido pela
arte, se mantém. Nunca dizemos homem artista ou arte de homens;
simplesmente dizemos arte e artista. Essa prerrogativa sexual escondida
se encontra assegurada pela asserção de uma negativa, um “outro”, o
feminino como um ponto necessário de diferenciação. A arte feita por
mulheres tem que ser mencionada e logo depreciada, precisamente para
assegurar essa hierarquia. (Pollock, 2003, p. 52.)
A categoria gênero encontra-se dentro de um contexto ideológico,
é parte de um processo de construção social e cultural que percorre
desde sempre a sociedade, abrangendo a problemática do poder que
deixa em evidência a assimetria ainda existente e a desigualdade entre
os gêneros. Assim sendo, na América Latina as questões de gênero remetem para a dominação patriarcal, excedente do período colonialista,
corpos que foram apagados, desqualificados e invisibilizados. Assim
buscamos conhecer e divulgar as artistas latino-americanas e suas obras
visando compreender o contexto teórico-crítico complexo do qual elas
participam e de igual forma, conferir autoria à sua contribuição para
a Arte Contemporânea. Muitas mulheres abordam além da misoginia,
mas também questões como a xenofobia e o racismo como é o caso da
obra da videoartista mexicana Ximena Cuevas.
2. O Feminino na Videoarte de Ximena Cuevas
Neste artigo analisamos as obras Cuerpos de Papel (1997) e Natural
Instincts (1999) da cineasta e artista visual mexicana Ximena Cuevas,
nascida em 1963, na Cidade do México, México. A obra de Cuevas,
92
uma das pioneiras da arte do vídeo mexicano, está pautada em diálogos
com o cotidiano, na fronteira entre realidade e ficção e em questões de
identidade e gênero. Exibida em diversos festivais nacionais e internacionais de arte eletrônica, como o Sundance Film Festival e o Berlin
International Film Festival, seu trabalho integra o acervo permanente
do MoMA e do Museu George Pompidou, em Paris.
Ximena Cuevas, estudou cinema na New School for Social Research
e na Columbia University, em Nova York, e trabalhou em equipes de
produções de mais de 20 filmes entre os anos 1980 e 1990, cumprindo
funções diversas. Sua produção tanto em cinema quanto em vídeo se
fixa no cotidiano, na fronteira entre realidade e ficção e em questões
de identidade e gênero. A artista é um dos nomes mais importantes
da videoarte e do ativismo na arte mexicana que assume os canais e
meios artísticos para tratar de questões de identidade, gênero, etnia e
diversidade. Cuevas também é conhecida no cenário do audiovisual
experimental contemporâneo e participa de mostras e festivas de filmes,
curta-metragem, documentários e videoarte. A artista é pioneira na arte
do vídeo no México e começou sua carreira como cineasta até encontrar
na câmera de vídeo um meio mais intimista e pessoal de criar com o
audiovisual. Não apenas conteúdos que expressam seu ponto de vista
pessoal sobre a arte e a vida, mas também para propor diálogos com o
cotidiano do público, para falar mesmo com o outro.
Cuevas é conhecida por sua reflexão crítica e humor ácido acerca
das questões de identidade do povo mexicano e hábitos e costumes os
quais ela analisa, por meio de seus vídeos, o caráter autêntico ou estereotipado do modo de ser mexicano, sobretudo na cidade do México onde
a artista mora e trabalha. Os temas de seus trabalhos tratam diretamente
93
da identidade cultural e de tudo que é imediato, urgente, efêmero associando essa velocidade e a passagem do tempo ao meio videográfico.
Este por sua vez é um meio que serve perfeitamente à artista dando-lhe
suporte, som e imagem, para sua poética da intimidade. A partir dos
anos 2000, a artista mexicana começa experimentar o espaço e as relações entre som, imagem e espaço por meio de videoinstalações, assim
Cuevas inicia produzindo em vídeo monocanal ou circuitos fechados
para expandir suas experiências com elementos videográficos em obras
maiores de videoinstalações que lhe dão uma dimensão outra da relação
público versus privado.
Figura 5. Cuerpos de Papel. Ximena Cuevas. 1997. Farme do vídeo. 4
min. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=pDink-hYBu0
Em Cuerpos de Papel, Figura 5, a artista se apropria de imagens
e sobrepõe sobre corpos e objetos cotidianos para criar uma reflexão
visual sobre sexualidade, perda, ciúme e intimidade. Cuevas propõe
uma metáfora visual entre um retrato íntimo cujo contorno é desenhado por uma moldura que tem dentro de si mesmo cenas e imagens em
movimento compostos por diferentes estéticas e recursos da linguagem
94
audiovisual. O corpo feminino nesta videoarte é a metáfora de uma
identidade em conflito, mas também da necessidade de encontrar-se e
de igual forma de buscar-se no outro.
Tão logo o vídeo começa, já se ouve uma música romântica, mexicana, saudosista que fala sobre lar, casa, vive junto. Em cena, vemos
um quadro, emoldurado, vermelho e dourado, em estilo rococó. Em seu
interior surgem imagens do interior de uma casa onde vemos objetos,
um telefone, mesa, sofás, relógio, esculturas de mármore branco, esculturas de vênus, mulheres, parede pintada de verde, e acompanhamos um
espanador de pó que ligeiramente espana a poeira dos objetos, a música
fala da casa e do lugar da casa que tanto tempo te prometi e cheias de
margaridas para mim e para ti, agora seremos felizes.
Na sequência, surgem duas mulheres deitadas, uma beijando a
boca da outra delicadamente, mais adiante, duas bonecas vestidas de
noiva segurando lindos buques de flores brancas e vestindo grinaldas
delicadas aparecem uma ao lado da outra, e uma delas tem uma tiara na
testa. Aos poucos estas “noivinhas” são sobrepostas pela imagem de um
toca-discos cujas imagens são alteradas por filtros azuis, o toca-discos
em movimento parece tocar o som que estamos ouvindo, mas também
as vozes que começam a surgir na sequência. Vemos lábios femininos
falando, a boca entreaberta, lábios vermelhos. O enquadramento é fechado nos lábios, em um grande zoom, que só dá a ver os lábios falantes.
Logo, os lábios são interrompidos por flashes de cenas nas quais uma
mulher quebra um disco de vinil, dobrando o disco ao meio. Voltam em
cena, as noivinhas sobre um fundo azul. Após a saída das noivinhas,
o disco surge novamente sendo dobrado e quebrado, aos murros e em
uma ação forte e violenta, e ainda sobreposto a imagens de esculturas
95
femininas gregas, as vênus. A música é substituída por sons de trovoadas
e tempestade, chuva e raios e trovões, surge também a imagem de um
céu e raios. A seguir, vemos a pintura de dois corações vermelhos que
na edição das imagens são sobrepostos dando a ver apenas um único
coração. Na cultura imagética latino-americana, este coração tem forte simbolismo e aparece em diferentes culturas e povos, associado a
crença e a senda do coração, a cordialidade e afetividade. Surgem em
cena novamente, as duas mulheres que agora vestem roupas íntimas e
estão se beijando. Uma olha para a outra. Mas a câmera focaliza uma
delas, que é substituída em cena pela imagem de uma atriz de cinema
hollywoodiano que está sendo exibido na televisão vermelha.
Uma das mulheres olha para a outra que está a sua frente e olha
para a atriz na TV e enquadramentos ora de parte do rosto a direita,
ora a esquerda toma todo quadro do vídeo. A mulher parece tirar de si
mesmo uma máscara. Surgem imagens de um telefone e o som de uma
ligação sem linha, de um telefone com o som como ocupado. Quando
as duas surgem em cena, podemos ver um pouco mais de seus corpos.
Uma delas está sentada e tem em seu colo, o corpo da outra cujos olhos
estão fechados e a boca aberta. A mulher segura em seu colo a outra, a
amada, falecida, sem vida. E ouvimos o barulho de uma porta que se
abre e notamos a entrada no quadro de um corpo, o qual vemos apenas
seus sapatos. Os sapatos femininos, marrons e delicados, cortam o quadro de um lado a outro, da direita para esquerda na transversal de baixo
acima do quadro. Mais adiante, surgem imagens de um fundo abstrato
azul que mistura o céu, raios e cenas do ambiente com ruídos da porta
da casa com as mãos que seguram o aparelho de telefone. Ao centro as
duas mulheres têm seus corpos sobrepostos. Ao fundo, o corpo deitado
96
com a cabeça a direita do quadro e a frente, a outra mulher sentada
sem braços aparece tendo um aspecto de escultura mais avermelhado,
sobreposto ao corpo da mulher deitada.
Vemos essa cena por alguns segundos enquanto o corpo da mulher
sem braços vai desaparecendo e saindo de cena por baixo do quadro
como se estivesse sendo sugada ou retirada do quadro pela parte inferior
do vídeo. Até que vemos apenas a sua cabeça em cena e sobreposta
ao centre da outra mulher que permanece imóvel deitada. O corpo da
mulher deitada agora se encontra acuado, com as pernas dobradas, na
forma fetal, ela segura seus pés e fecha seu corpo. Surge em cena o
toca-discos e a música da casa que no início do vídeo abre o sonoro. E
o enquadramento fechado no disco que roda de um sentido a outro dá
espaço para a casa do começo do vídeo e suas paredes verdes e seus
objetos como as esculturas de mármore de mulheres, as vênus. Mas
agora está diferente, vemos uma pessoa que embala os objetos e os
coloca em uma caixa, inclusive as noivinhas que vimos no vídeo, agora
estão embaladas em sacos plásticos e são colocadas dentro de caixas cm
outros pertences e objetos da casa. As esculturas brancas de mulheres
feitas em mármore, também vão para dentro das caixas. Revistas e o
relógio. O vídeo termina.
Estamos diante de uma artista que se apropria do vídeo para tratar do
público e do privado e refletir sobre as questões de gênero e sexualidade
com sutileza e poesia, mas também com criticidade e um humor ácido.
Ximena é ainda uma representante legitima da arte contemporânea que
buscou no vídeo um meio de expressão autoral associado a procura por
sua identidade e para isso, assim como muitos artistas de sua geração, ela
explora imagens de sua vida pessoal, seu cotidiano e sua rotina dando a
97
elas um novo sentido, estético e integrado ao audiovisual experimental
como no caso de suas videoartes, mas também como recursos de sua arte
ativista, engajada que reflete aspectos políticos e de luta pela liberdade
das mulheres de serem quem elas assim o desejarem.
Cuevas relata que quando ela era criança ela gostava de escalar os
muros e as cercas das casas de outras pessoas no bairro onde morava
para ficar espiando e ou se esconder, por exemplo, em baixo da mesa
para ficar ouvindo as conversas dos adultos ou estranhos e que se lembra
muito dos sapatos das pessoas e que na sua imaginação, ela recriava
as estórias das vidas das pessoas. Para ela o vídeo continua exercendo
sobre a sua imaginação esse mesmo fascínio pelo outro, pelos segredos
e mistérios alheios e reitera que o que mais a atrai no vídeo é o seu
caráter particular, intimista e reservado que de forma muito próxima
conversa, dialoga e leva as pessoas a se sentirem íntimas.
Cuevas explora a linguagem da videoarte como poucos artistas.
Além do conteúdo e da sua narrativa não linear cabe ressaltar aspectos
da estética da videoarte presentes em suas obras como a cor alterada por
filtros, a aceleração e o alterado das imagens, o enquadramento fechado
e o arranjo das cenas por meio de zoons e registros de fragmentos, e a
riqueza de textura proposta pelo tratamento das imagens que ora ganham
aspecto de antigo em constante conexão com o novo ou presente.
Em Natural Instinctis (1999), Figura 6, a crítica é sobre a beleza
como construção social e a imagem homogeneizadora de uma estética
europeia que tem sido alvo dos estudos decoloniais.
98
Figura 6. Natural Instinctis. Ximena Cuevas. 1999. Farme do vídeo. 3’12
min. Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=L19jo4DTl-8
As obras de Cuevas associam aspectos críticos e reflexivos às imagens
do corpo, do feminino e relações de gênero e sexualidade cristalizadas
pelo senso comum visando romper com estereótipos, rumo ao respeito
e a visibilidade da diversidade, tendo a arte audiovisual como canal de
discussão e expressão.
Num cenário urbano, em meios a fios elétricos e postes, vemos um
outdoor que faz as vezes de um aparelho de televisão. Um semáforo
surge em uma travessa da rua “Morena” e de verde, o sinal passa a
vermelho. Raios ou flashes de luzes e tintas coloridas caem por sobre
a imagem do vídeo.
No outdoor surge o nome do videoarte Natural Instincts. Trata-se
de uma marca norte-americana de tintura para cabelos femininos. O título assim como tudo o que veremos tem um sentido, nada é ao acaso
e a crítica a questão de etnia é bastante potente. Aqui, antes, cabe uma
99
reflexão sobre a metáfora da TV no outdoor que são dois veículos, um
dentro e outro fora das casas das pessoas, que veiculam peças publicitárias responsáveis por perpetuar uma imagem do corpo ideal feminino
vendido pelas indústrias de cosméticos e consumido pela grande maioria
das mulheres.
Nas primeiras cenas do vídeo, vemos uma mulher loira deitada na
cama de um hospital, ela olha várias vezes para o lado esquerdo da tela
e a cena se repete como um looping. A câmera se afasta e vemos que ela
tem ao seu lado, o filho recém-nascido. A mulher volta seu rosto para a
criança e ao levantar a manta que cobre o rebento, a mulher chora desesperadamente e coloca as mãos no rosto em sinal de desespero quando
vê diante de seus olhos, o rosto de uma criança negra. A cena se repete
por algumas vezes para reiterar o impacto que à primeira vista pode ser
visual, mas que de fato o que está em jogo é o embranquecimento das
pessoas na sociedade contemporânea.
Raios de luzes coloridas fazem a passagem da cena do hospital
para a cena de um salão de beleza no qual aparece uma mulher e seus
cabelos sendo pintados. Os movimentos acelerados mostram o processo de tintura e coloração do cabelo que paulatinamente fica loiro. Por
meio de tomadas e enquadramentos inusitados, do alto e ou em planos
detalhes, os cabelos são transformados diante da câmera e o vídeo
colorido deixa visível que se trata de um tingimento de cor clara, nos
tons de loiro platinado, como se diz em termos técnicos. Enquanto os
cabelos tingidos passam pelo processo de fixação da cor, notamos ao
fundo uma fotografia de uma mulher linda e de cabelos ruivos claros
na parede do salão de beleza.
100
Na sequência, vemos a mão de uma mulher que toca e acaricia uma
mecha de cabelo de catálogos de tintura na cor 9. rubio claro claro.
E assim são sobrepostas imagens de pontos de tintas que explodem por
sobre a fotografia de uma criança, menina, loira vestindo um chapéu
laranja decorado com uma flor de girassol amarelo enorme na lapela.
A menina olha para nós aqui fora de cena e sorri delicadamente. Os vários
flashes de tinta coloridos continuam explodindo por sobre a imagem
da menina até que a câmera abre e se afasta abandonando o outdoor,
para mostrar a cidade ao fundo. Entra em cena uma jovem mulher loira
dançando e cantando com voz infantilizada, um refrão que tem a tônica
na palavra Hallelujah. A jovem loira cantora veste uma saia curta azul e
camisa branca com golas marinheiro e seus cabelos loiros estão presos
na forma de “maria-chiquinha” penteado infantil tradicional. A figura
feminina da cantora nos remete a apresentadoras de programas infantis
cujo estereótipo físico é muito frequente no meio televiso e as cantoras
Britney Spears, Spice Girls ou Lucero, a famosa cantora mexicana.
O tratamento dado ao som e a imagem no vídeo nos remete a um
filme de terror com a multiplicação da figura feminina dançando com as
mãos dadas em sinal de prece. A música de terror predomina e ao fundo
surge uma outra referência as tinturas de cabelo, agora na numeração
10. rubio extra claro e na forma de uma cortina, saem as garotas de
cena para entrar uma imagem da tintura 10. rubio extra e abaixo como
se fosse uma legenda, a frase: blond extra light.
Em 2008, a tv mexicana exibiu a série La rosa de Guadalupe, de
Carlos Orduña, cujo personagem Lucena também renega seu filho por
ele ter nascido negro e o vídeo de Cuevas pode ser relacionado com a
crítica da artista com relação a identidade dos mexicanos, submetidos a
101
hegemonia e embranquecimento que o mercado da beleza vende e que é
consumido mundialmente, não apenas pelos mexicanos. Cuevas afirma
que este vídeo foi concebido com uma estética grotesca par exatamente
levar os mexicanos a refletirem sobre o racismo internalizado, enraizado
pelo apagamento das próprias raízes e a fantasia de muitos mexicanos
que sonham em acordar brancos.
O vídeo Natural Instinctis faz parte da série de vídeos Dormimundo.
A série é um grande conjunto de vídeo e o volume 1 é Incomodidad
compostos pelos vídeos: Cama, Estamos para servir, Artista Contemporâneo, Havaí, Destino, Instintos Naturales, Almas Gemelas, El Diablo
Na Paz, Calzada de Kansas. Trata-se de uma obra em processo, um
work in progress, no qual a artista afirma ter a intenção de explorar as
mídias digitais, sobretudo a linguagem videográfica, para criar algo
como um laboratório da vida. Cuevas declara ainda que são como
cartões postais, ou videopostais, que documentam e registram a vida
cotidiana. Isso resulta em pequenos documentários experimentais nos
quais a artista experimenta a linguagem do vídeo, mas também se posiciona socialmente e culturalmente assumindo um papel de ativista.
Nesta série, a artista opera a câmera e o dispositivo se dirige e olha
diretamente para momentos privados, não há roteiro nem filtros e tudo é
mostrado como realmente é, em estado bruto. Não há encenação e nem
atuação. Mas o que é experimental e o que difere de um documentário
ou filme tradicional, o olhar do artista, o enquadramento, o recorte e
o tratamento imagético que é muito específico e inclui a ruptura de
estruturas clássicas da linguagem videográfica. O processo de pós produção é essencial para a artista que explora diferentes possibilidades da
imagem e do som digitais para destacar estados emocionais e afetivos
102
específicos que nos levam não apenas a reconhecer o caráter cotidiano
das cenas mas também a estesia e ao sentido que afeta o nosso corpo e
o nosso ser mais sensível.
Quando o vídeo surgiu como arte e os artistas passaram a se apropriar do vídeo nos anos de 1960 e 1970, a crítica e historiadora da
arte Rosalind Kraus relacionou a prática do vídeo ao mito de Narciso.
Krauss (1978) faz uma análise acentuada do comportamento psicológico
e cultural da autorreferencialidade nas obras de vídeo cujos protagonistas
são os próprios artistas. Krauss levanta algumas questões pertinentes à
presença do artista e sua relação com os dispositivos eletrônicos e discute porque o vídeo pode ser considerado um “médio” potencialmente
mais mediador entre o sujeito e o mundo do que as demais linguagens
artísticas. No texto Vídeo: the aesthetics of narcissism (1978), Krauss
ressalta o fenômeno do espelhamento causado pela câmera de vídeo
e pelo nível de mediação gerado pelo corpo que se posiciona entre os
dispositivos tecnológicos, a câmera, o corpo do artista e o monitor
(Sarzi-Ribeiro, 2013).
Aliás o vídeo tem sua especificidade na capacidade de despertar
múltiplas sinestesias e isso Cuevas sabe muito bem como operar em
sua poética videográfica. A sensibilidade e a percepção da beleza ou
do grotesco são associadas a sentimentos ou ações externas que nos
afetam, nos transformam e nos contagiam internamente pois é o corpo
que reage aos impulsos estésicos. A estesia está diretamente associada as
relações do inteligível, despertado pela expressão plástica da linguagem
cujos processos de composição despertam o corpo, como por exemplo,
por meio da sinestesia.
103
Neste sentido, entendemos que na arte midiática, sobretudo aquela
que tem o vídeo como meio acaba por despertar a sinestesia por meio
do contágio ou contaminação que a imagem e som em movimento provocam no corpo, levando o sujeito a sentir o sentido em ato, durante o
evento enquanto ele está ocorrendo, e neste contexto ele pode ser uma
rasura, algo novo mas também efêmero.
De outro modo, a série Dormimundo é para Cuevas uma espécie
de documentário sobre os desconfortos que envolvem o ser mexicano,
ou a mexicanidade, contra toda e qualquer imposição de referencias ou
visualidades de outras culturas que não a mexicana. Por isso trata-se
de uma reflexão sobre a identidade mexicana, sobretudo da mulher
mexicana. Cuevas afirma que sua intenção é desvelar, é retirar o véu
que cobre comportamentos como servidão e vergonha de um povo
sobrepujado que se espelha em culturas como a norte-americana com
medo de envelhecer, com medo da solidão e ainda com sonhos e desejos
de fama que são norte-americanos.
A partir desta descrição conceitual de Cuevas podemos entender
por que em Natural Instinctis ela se apropria de cenas de filmes de
mulheres de Hollywood e salões de beleza e cantoras loiras vestidas de
marinheiro, na cor branca, vermelha e azul que cantam com as mãos
unidas como em prece diante do público, mas se comportam mais como
cheerleaders, comandadas pela grande indústria da beleza. No final do
vídeo, o clima de terror é tão evidente que sentimos um desconforto e
um estranhamento que nos levam a refletir sobre o feminino, sobre a
mulher e as questões sobre a beleza e o corpo impostas as mulheres.
A som de terror acentua a imagem da jovem loira que se transforma
em uma figura bizarra, de efeito grotesco. Em suma, nos convoca a
104
refletir sobre a construção da beleza e da identidade feminina como
construção social cuja imagem homogeneizadora é herança de uma
estética europeia patenteada pela imposição de outras culturas, como a
norte-americana, na América Latina.
Referências
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da modernidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.
Cuevas, X. (2018). Ximena Cuevas. ADN Opinón. [Canal do YouTube]
Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=y19lPA7Q-tI
Foucault, M. (1987) Vigiar e punir: nascimento da prisão (R. Ramalhete,
Trad.). Petrópolis, Vozes.
Foucault, M. (2011) Microfísica do poder. (R. Machado, Trad.). Rio
de Janeiro: Graal.
Krauss, R. (1978). Video: the aesthetics of narcissism. In G. Battock
(Ed.), New Artists Video. (pp 43-64). New York: E.P. Dutton.
Palermo, Z. (2013). Desobediencia epistémica y opción decolonial.
Cadernos de estudos culturais, 5, 237-254.
Pollock, G. (2003). Vision and difference: feminism, feminity and the
histories of art. New York: Routledge.
105
Quintero, P., Figueira, P., & Elizalde, P. C. (2019). Uma breve
história dos estudos decoloniais. Arte e descolonização. Masp
Afteral. Recuperado de https://masp.org.br/uploads/temp/tempQE1LhobgtE4MbKZhc8Jv.pdf
Sarzi-Ribeiro. R. A. (2013). Body, video art and role of media languages
in meaning and visibility construction of visual arts. Revista
Comunicação Midiática, 8(3), 87-107.
106
A Série Las Chicas de Cable e os Limites do
Melodrama Feminista
Marina Soler Jorge1
Las Chicas del Cable (lançada como “As Telefonistas no Brasil”)
é uma série espanhola produzida e distribuída pela Netflix, que estreou
sua primeira temporada em 2017. A série começa na Madrid do final
dos anos 20 e avança até o final da Guerra Civil espanhola, em 1939.
É a primeira série da Netflix produzida na Espanha, e destaca o tema
da luta feminista por direitos civis e políticos, como o divórcio, igualdade e o sufrágio universal (que as mulheres espanholas conquistaram
em 1931). Também são abordados assuntos como a violência física e
simbólica contra a mulher, opressões masculinas de diversas ordens,
a luta pela inserção no mercado de trabalho, maternidade, homossexualidade, identidade de gênero e prazer sexual. Na temporada final a
série adquire um tom abertamente anti-fascista, com a participação de
mulheres nas frentes republicanas. É um dos produto de massas mais
diretamente engajado na discussão de pautas feministas na atualidade e,
ainda que muito claramente dentro dos limites do feminismo liberal. A
1.
Doutora, Professora Associada do Departamento de História da Arte e do Programa
de Mestrado em História da Arte da UNIFESP – Universidade Federal de São
Paulo.
marina.soler@unifesp.br
107
série foi criada por uma mulher, Teresa Fernández-Valdés, e tem diversas
roteiristas mulheres, mas todos os diretores são homens.
O design de produção da série procura reproduzir a decoração art déco
do período, bem como figurinos e penteados típicos dos anos 20 e 30.
A trilha sonora no entanto é contemporânea, seja a extradiegética, que
visa embalar uma sequência sentimental, seja a diegética, em uma sequência de festa ou acompanhando uma performance de Charleston em
um cabaré. A música em Las Chicas del Cable procura reforçar certos
estados emocionais, apelando abertamente aos sentidos do espectador
de modo a incentivar sua adesão aos momentos de alegria e, sobretudo,
dificuldade, das personagens. A palavra “melodrama” une as palavras
“melos” (música, melodia) e “drama”, de modo que desde sua inserção na narrativa, com o teatro, a música funcionou como componente
emocional. As características musicais da série nos levam de imediato
a um elemento fundamental de nossa análise: o estilo narrativo da série
é, despudoradamente, o melodrama.
O que é interessante nesse sentido é que, se considerarmos as produções recentes originais Netflix, veremos que a maioria de suas séries
recusam o melodrama, sobretudo pela tradicional identificação deste
gênero a produtos televisivos tradicionais, como as telenovelas. Há uma
tentativa de adesão a uma estética elegante, de inspiração realista, com
roteiro sofisticado, que procura evitar simplificações, exageros narrativos, ou quiproquós rocambolescos. Essa estratégia de diferenciação
em relação ao conteúdo tradicionalmente produzido pela TV aberta não
surgiu com a Netflix e é abertamente proclamada como um diferencial
positivo pelos serviços de assinatura – lembremos que o slogan da HBO,
por exemplo, quando de seu surgimento, era: “não é TV, é HBO”.
108
Já Las Chicas del Cable se coloca conscientemente dentro de um
gênero associado à TV tradicional e também ao público feminino, o
melodrama. É preciso tentar entender essa estratégia, bem como analisar
de que modo ela emoldura, configura e transforma as pautas feministas
apresentadas.
O argumento da série gira em torno de quatro jovens amigas que
trabalham juntas na primeira companhia telefônica espanhola e da solidariedade que se estabelece entre elas: Lídia, Angeles, Marga e Carlota.
Cada uma delas representa um tipo feminino diferente, seja pela história
de vida, classe social ou personalidade. Em diversos momentos da série elas moram juntas em uma pensão feminina, o que funciona como
elemento de estreitamento de vínculos. A série reforça a importância
do companheirismo feminino, de modo a colocar a amizade entre elas
acima do amor por um homem.
Lídia é a personagem principal. Ela esconde um segredo do passado:
é na verdade Alba, moça de origem humilde presa pela polícia injustamente quando muito jovem e criada na vida de pequenos golpes e crimes,
tendo se transformado em uma talentosa trambiqueira. Chantageada por
Beltrán, um policial, é obrigada a se empregar na companhia telefônica
para roubar o cofre da empresa. No entanto lá ela encontra Francisco, o
grande amor de seu passado, separado dela quando de sua prisão, e que
a reconhece e ainda a ama. Disposta a seduzir Carlos, homem rico, filho
do dono da telefônica, para conseguir o dinheiro exigido por Beltrán,
acaba se apaixonando por ele de verdade. Francisco e Carlos disputam
o amor de Lídia. Nos primeiros episódios ela reluta em aceitar o amor
de quem quer que seja, acreditando que seus anos de golpista não a
fazem merecedora da felicidade. Finalmente, ao final da temporada,
109
resolve ficar com Carlos. No entanto, rouba um segredo industrial do
rapaz para defender o emprego de suas amigas. Na segunda temporada,
Carlos a odeia por isso, e Lídia vai consolar-se com Francisco. Eles
decidem retomar a relação do passado. No entanto, ela se descobre
grávida de Carlos. Ciente da gravidez, desesperado de amor e desejo,
Carlos confessa a Lídia que nunca a odiou, e que não pode viver sem
ela. A terceira temporada começa com o casamento entre Lídia e Carlos,
que agora são pais de um bebê, Eva. Um incêndio ocorre na igreja e a
menina desaparece. Carlos pensa que a menina morreu sob os escombros, mas Lídia acredita que sua sogra, Doña Carmen, roubou o bebê.
Carlos e Lídia se desentendem por isso e ela quase cai nos braços de
Francisco novamente. Ao final, Carlos e Lídia se unem e recuperam o
bebê com a ajuda de Francisco, que aparentemente morre no resgate
de Eva declarando a Lídia amor eterno. Na quarta temporada vemos
que Francisco não morreu, mas está em coma. Quando acorda, Carlos
tenta de tudo para que ele não recupere o amor de Lídia. Enquanto isso
Carmen tenta sequestrar Eva pois precisa do sangue da neta para se curar
de uma doença. Na quinta temporada Lídia muda-se para Nova York
com Francisco para ficar livre da vilania de Carmen, mas tem de voltar
à Espanha para salvar a filha de uma amiga em meio à Guerra Civil.
Angeles é a mais experiente das telefonistas. É casada e tem uma
filha. É muito competente no trabalho, mas seu marido não quer que
ela trabalhe fora. De modo a obrigá-la a ficar em casa, ele passa a espancá-la. A partir da situação de Angeles, discute-se a subordinação
legal das mulheres aos maridos na Espanha do começo do século XX:
ela não tem o direito de se divorciar, não tem acesso à conta bancária
do casal, e teme perder a guarda da filha caso fuja do marido. Angeles
110
decide assassiná-lo envenenando-o aos poucos. O plano não dá certo e,
por fim, ela é obrigada a matá-lo com um taco de beisebol para salvar a
vida de Lídia. As amigas ajudam-na a se livrar do corpo. Chantageada
por um policial que desvendou o assassinato, é obrigada a colaborar
com a polícia para não ser presa. De esposa angelical, ela se torna uma
excelente espiã. Passa a se relacionar amorosa e sexualmente com o
policial que a chantageia, até que se dá conta de que, ao obrigá-la a se
envolver com a criminalidade, ele também a submete a um relacionamento abusivo.
Marga é uma moça do interior incentivada pela avó a ir para a cidade
grande ser uma mulher independente. Ela é muito tímida e ingênua, e
também uma amiga de lealdade incondicional. Marga se apaixona pelo
contador da companhia telefônica, Pablo, e na relação entre os dois se
constroem os momentos cômicos da série, embalados por trilha sonora
bufa e situações bastante leves. Nesse sentido, a série reforça o estereótipo
da personagem interiorana engraçada e sincera. As situações cômicas
terminam na terceira temporada, quando o irmão gêmeo de Pablo, Júlio,
aparece. Eles são idênticos, mas tem personalidade muito diferente.
Marga, a essa altura já casada com Pablo, não consegue ter orgasmo
com seu marido e, após ler O Amante de Lady Chatterley, resolve tentar
uma relação sexual mais desreprimida, na qual ela finalmente alcança
o prazer sexual. No entanto, por uma série de equívocos propiciados
pelo enredo, ela acaba fazendo sexo com Júlio e separa-se de Pablo.
Finalmente, Carlota é filha de um rico general que considera inadequado que uma mulher de sua classe social trabalhe. Desapegada
dos bens materiais, ela prefere sair de casa a ter que deixar o emprego
de telefonista. Gosta de festas, de política, e é uma ativista feminista.
111
Namora um engenheiro da companhia telefônica, Miguel, mas, em
certo momento da primeira temporada, apaixona-se por Sara, também
colega de trabalho. Estabelece-se uma relação a três, com Carlota,
Sara e Miguel morando junto e relacionando-se sexualmente, até que,
na segunda temporada, Sara assume-se como transgênero, o que leva
Miguel a abandonar a relação. Na terceira temporada Carlota recebe
uma herança de seu pai falecido e decide criar um programa de rádio
feminista. Ela passa a ser agredida e quase é estuprada, mas não desiste da luta. Carlota usa sua herança para financiar um grupo feminista.
Na quarta temporada ela se candidata a prefeita de Madrid.
As histórias dessas mulheres são entremeadas por inúmeras pequenas
narrativas, suas e de outras personagens, de modo a preencher cinco
temporadas com amores e separações, equívocos e encontros, enganos e revelações, momentos de drama e de comédia. A disputa entre
Francisco e Carlos pelo amor de Lídia ocupa grande parte da narrativa.
Porém, um aspecto importante da série é que, ainda que aborde o amor
romântico e a maternidade, em nenhum momento a valorização da
condição feminina das personagens está condicionada ao casamento
ou a ter filhos. As chicas não se realizam com seu par romântico ou um
bebê nos braços, mas no trabalho e na amizade.
Durante toda a série, Lídia ocupa também o papel de narradora
meta-diegética, ou seja, tece comentários que se encontram dentro do
universo da história, mas fora da cena representada. Esses comentários inicialmente situam o espectador na narrativa, informando sobre
fatos anteriores ou sobre o momento histórico. Logo, no entanto, eles
passam a ter outra função, a de reflexão pessoal e moral sobre os acontecimentos. Lídia discorre sobre amor, amizade, vingança e realização
112
pessoal. Seus comentários visam menos narrar os acontecimentos do
que interpretá-los a luz de sua própria compreensão.
Falas femininas no cinema com teor de autoconhecimento, as talking
cures, segundo Kaja Silverman, eram comuns nos “filmes para mulheres” (woman’s films) estadunidenses dos anos 40, porém eram vozes
sobretudo intra-diegéticas, cujo local de produção era a própria narrativa
que se desenrolava (Silverman, 1984, p. 59). Esse tipo de voz reforça a
ideia que a interioridade é um aspecto feminino, conectado a seu corpo
– emanando de seu aspecto biológico – e conectado à diegese. Assim,
a subjetividade feminina fica restrita aos limites do corpo feminino,
não extrapolando o espaço da narrativa à qual a personagem feminina
está inserida. A voz do homem, por outro lado, para Silverman, ocupa
muito mais frequentemente este lugar meta e extra-diegético, falando de
algum lugar de fora da cena representada ou ainda fora do universo da
narrativa. Segundo a autora, portanto, enquanto a subjetividade feminina
está presa à narrativa, a masculina pode desconectar-se dela, assumindo
um lugar de autoridade sobre os eventos narrados e identificando-se ao
aparato cinematográfico, à origem da produção textual e imagética. Em
Las Chicas del Cable as falas de Lídia estão fora da narrativa, ainda
que dentro do mundo representado, comentando a história como alguém
que assiste a si mesmo de fora de seu corpo, em outro tempo e lugar.
Sua voz tem a autoridade daquele que fala de um lugar fora da narrativa, claramente extrapolando os limites de seu corpo físico, ocupando
um espaço tradicionalmente dominado pela voz masculina, ainda que
mantenha uma textura sonora eminentemente feminina.
Parte indispensável do gênero melodrama é o personagem do vilão
e sua implacável perseguição ao herói ou heroína. Segundo Jean-Marie
113
Thomasseau, “o vilão, pela perseguição que exerce sobre suas vítimas,
é o agente principal do melodrama. Sem suas manobras, a intriga perde
o essencial de sua natureza: o desfecho sem castigo não contenta um
público ávido de compensação” (Thomasseau, 2005, p. 42).
Em Las Chicas del Cable temos dois vilões claramente identificados:
na primeira temporada o investigador Beltrán, que chantageia Alba e a
obriga a roubar a companhia telefônica, sob ameaça de processá-la pelo
assassinato do marido de uma amiga – acusação da qual ela é inocente.
Nas temporadas subsequentes, com Beltrán morto, Doña Carmen, mãe
de Carlos e esposa do dono da companhia telefônica, torna-se a nova
vilã. Muito rica e orgulhosa do pertencimento à elite da sociedade espanhola, ela fará tudo o que for possível para destruir Lídia e impedir
que ela se case com seu filho.
Analisando os tipos mais gerais de vilões dos melodramas, Jean-Marie
Thomasseau identifica de modo bastante preciso as personagens citadas
acima: ele menciona tanto “a chegada inopinada de um vilão detentor de um segredo que comprometeria o herói ou heroína” quanto o
“‘fidalgo malvado’, que ... frequentemente traz todas as aparências de
honestidade e de grandeza” (Thomasseau, 2005, p. 40). Para o autor,
a base do melodrama sob a qual “se apoiaram todos os melodramas
passados, presentes e futuros” é a existência “de um opressor e uma
vítima, um poderoso celerado que abate a fraqueza e a virtude até o
momento em que o céu se manifesta a favor do inocente e fulmina o
culpado” (2005, p. 34).
Thomasseau, em seu estudo sobre o gênero, trás diversos outros
elementos que identificamos em Las Chicas del Cable. Embora a vítima
preferida do vilão no melodrama tradicional seja a personagem inocente,
114
cuja opressão nos causa ainda mais revolta e maior desejo de reparação,
a partir da década de 1830 “os cúmplices, os marginais, os bandidos que
no último ato dos melodramas tradicionais eram expelidos do círculo
dos bem-aventurados, transformam-se em heróis (2005, p. 65). Lídia
será esta heroína (aparentemente) decaída que esconde, sob a aparência
de vigarista, um coração bondoso temporariamente endurecido pela
vida. Nesse sentido, ela é duplamente vítima: vítima de Beltrán, que a
chantageia, mas também vítima da sociedade, que roubou sua inocência
e a transformou em uma mulher trapaceira e sedutora.
Da mesma forma, no melodrama moderno, as paixões tornam-se mais
intensas, as ligações “menos estáveis e mais passionais” (Thomasseau,
2005, p. 67), dando origem a uma moda de relações extra-conjugais
que o autor denominará “adulterolatria”, acompanhada de filhos bastardos, mães solteiras e crianças perdidas como consequência. Todos
esses elementos estarão presentes em Las Chicas del Cable: Francisco é
casado com Elisa mas deseja Lídia que, quando finalmente se compromete com o rapaz, descobre estar grávida de Carlos e decide que será
mãe solteira. Na terceira e na quarta temporada, sobretudo, o drama se
obscurece e se torna mais adulto: temos o adultério de Marga; Carlota
escapando por pouco do estupro e encomendando uma surra contra os
agressores; Doña Carmen revelando-se assassina de seu próprio genro
e sequestrando sua neta, Eva; Sara sendo condenada injustamente à
pena de morte. Então, não se trata mais do melodrama leve de garotas
em busca de liberdade e igualdade, temperado de situações cômicas,
mas de uma narrativa cujas desventuras se tornam agudas e a vilania
atinge graus de psicopatia. A fotografia passa a fazer clara referência
ao filme noir e sua visão pessimista de mundo, com personagens vio115
lentos e corrompidos identificados a estruturas de poder (a burguesia,
a Igreja, a polícia).
O mais intenso sofrimento é sem dúvida o de Lídia, disposta a tudo
vingar sua filha, inclusive encomendar o assassinato de sua sogra. Nesse
momento, a personagem principal não é mais a jovem sedutora e radiante
de cabelos curtos e roupas de melindrosa, mas uma mãe desesperada,
vestida sempre de roupas escuras e ávida por vingança. As emoções
se intensificam, sobretudo em situações do roteiro nas quais Lídia por
pouco recupera a criança, e o espectador passa a torcer pela resolução
de um drama percebido como pungente e real. A câmera na mão e o
design de produção mais sofisticado ajudam a intensificar o sentimento
de inquietude do espectador, e a sequência na qual acompanhamos as
emoções de Lídia ao descobrir onde está sua filha são de grande comoção. O final, com Francisco sacrificando-se por Eva, é construído para
finalmente levar o espectador às lágrimas.
Mencionar o uso da câmara na mão e o design de produção da
terceira temporada é importante pois nos remete a outra característica
importante do melodrama, segundo os autores que se debruçam sobre
o assunto: a importância de mostrar, com a maior carga de intensidade
possível, os dramas que se desenrolam. A terceira temporada não é
apenas mais adulta e melodramática pelos episódios de intensa vilania
que se desenvolvem, mas pela forma mais elaborada através do qual
eles são mostrados. Thomasseau descreve o melodrama como um “local
de comunhão numa ilusão teatral completa, que beira a fascinação”.
Segundo ele, “a intriga de um melodrama não é jamais bem escrita,
mas é sempre bem descrita” (2005, p. 139). Trata-se de um “espetáculo
‘ocular’” (2005, p. 127), que dá origem, inclusive, ao próprio termo
116
mise-en-scène (2005, p. 128). Thomas Elsaesser teoriza na mesma direção, opondo a visualidade do melodrama à construção mais cerebral de
gêneros como a tragédia e o realismo: “Considerado como um código
expressivo, o melodrama poderia ser descrito como uma forma particular de mise-en-scène, caracterizada por um uso dinâmico de categorias
espaciais e musicais, em oposição às categorias intelectual e literária”
(1987, p. 51). Ismail Xavier discorre no mesmo sentido, enfatizando a
importância da construção da intensidade visual e emocional das cenas
no melodrama:
Em seu gosto por um ilusionismo visual de impacto, de resto embalado por uma sonoridade melodiosa (o melos do drama), o gênero
sempre se pautou pela intensidade, pela geração de estados emocionais catalisadores da credulidade (…). O mundo visível torna-se
uma superfície de enorme plasticidade, espécie de fisionomia natural
onde se expressam a interioridade dos indivíduos e mesmo ordens
maiores do universo (2000, p. 87).
Outros elementos do melodrama citados por estes e outros autores reforçam de maneira bastante intensa a afiliação de Las Chicas
del Cable ao melodrama. Silvia Oroz nos fala sobre a recorrência dos
amores interclassistas no gênero (Oroz, 1999, p. 40), que na série em
questão fundamenta grande parte da dificuldade da união entre Lídia e
Carlos. O casal precisa enfrentar a violenta objeção de Doña Carmen,
que rejeita a origem social da moça. A existência de um amor interclassista permite a vitimização do casal protagonista e o desenrolar de uma
série de situações de encontros, desencontros, enganos e desenganos
que ora os junta, ora os separa. Em Las Chicas del Cable, as desventuras do casal se dão principalmente na segunda temporada, verdadeira
117
narrativa rocambolesca na qual nada é o que parece: ao longo de toda
a temporada Carlos junta-se a Doña Carmem na vilania contra Lídia e
a seduz da maneira mais vil para roubar sua ideia de construir cabines
de telefone públicas. Quando, após causar inúmeros desgostos a Lídia,
o espectador está convencido de que a moralidade de Carlos decaiu
de maneira irrecuperável, ele joga-se aos pés da moça implorando seu
amor. A terceira temporada retoma em alguma medida os quiproquós
enredados e quase inverossímeis, trazendo uma série de reviravoltas
de roteiro relacionados aos desaparecidos no incêndio: mortos que são
dados como vivos, depois dados como mortos novamente, para enfim
descobrirmos que estavam na realidade vivos. Ao analisar o “fazer
rocambolesco”2, Marlyse Meyer resume algumas características do
folhetim que tem grande proximidade com o gênero melodramático e
descreve parte importante da estrutura de Las Chicas del Cable: “uma
vertiginosa construção em abismo estruturada em embuste e ardil como
forma de articulação do enredo: embuste de verdade, embuste de mentira,
vítimas de verdade, vítimas de mentira (cúmplices e pré-informados)
etc” (Meyer, 1996, p. 159).
Poderíamos continuar elencando uma série de características do
melodrama descritas pelos autores que vemos na série espanhola, das
mais estruturantes às mais pontuais. No entanto, consideramos que já
fomos bastante incisivos neste argumento, e é preciso passar para a
próxima etapa de nossa análise sobre a série: ao inserir-se orgulhosamente no melodrama para tematizar assuntos femininos e feministas,
Las Chicas del Cable remete à história de identificação entre o gênero
2.
Adjetivo inspirado pelo folhetim As Aventuras de Rocambole, de Ponson du
Terrail.
118
e o universo da mulher, bem como ao preconceito que muitas vezes
decorre desta associação.
Silvia Oroz, estudando o cinema de melodrama na América Latina,
escreve: “A interpretação do gênero melodrama foi caracterizada por uma
análise valorativa dos padrões estéticos do século XIX, sem que fosse
considerada sua relação com o público nem a revolução que significou
o surgimento da novela de folhetim”. (Oroz, 1999, p. 17). Segundo a
autora, no cinema latino-americano a partir da década de 1960, o gênero
melodrama foi “repudiado com aversão”, pois “padeceu a ditadura da
política de ‘autor’. Qualquer manifestação cinematográfica que excluísse
o autor não servia” (Oroz, 1999, p. 24). A autora remete constantemente
à relação entre o cinema de melodrama e seu público para demonstrar
a incompreensão da qual padeceu o gênero. Sabemos que o sucesso de
público é visto muito comumente como um compromisso do artista
antes com as fórmulas de fácil aceitação popular do que com a estilo
artístico. Assim, a suposta ausência do “autor” no melodrama significava que se tratava antes de um produto padronizado, sem qualidades
individualizadas e artísticas, e sem uma visão pessoal que lhe trouxesse
originalidade.
As críticas e preconceitos associados ao melodrama que surgem
quando do nascimento do gênero no século XIX são encontradas sem
dificuldades até hoje. Em artigo recente sobre melodrama e teledramaturgia, Yuri de Andrade Magalhães, por exemplo, escreve:
O melodrama nos acostumou com sua estrutura maniqueísta, com
sua “missão educadora”, com seus personagens estereotipados, com
necessidade do triunfo do bem sobre o mal, ao ponto de chegarmos,
muitas vezes, a estabelecer como ideais as tramas que atendam a
esses requisitos melodramáticos (Magalhães, 2018, p. 425).
119
Grande parte desses “diagnósticos” são feitos sem nenhuma análise
efetiva da obra, ou com análises muito superficiais de roteiro. Ismail
Xavier condensa as críticas que poderíamos considerar mais imanentes
ao melodrama:
ao melodrama estaria reservada a organização de um mundo mais
simples, em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar
a termo e o sucesso é produto do mérito e da ajuda da Providência,
ao passo que o fracasso resulta de uma conspiração exterior que
isenta o sujeito de culpa e o transforma em vítima radical. (Xavier,
2000, p. 80).
Ainda que este autor considere que o melodrama possa ter diversos
vieses ideológicos, subjaz no argumento do autor a ideia de que, ao
simplificar os problemas, o gênero não daria ao espectador condições
suficientes para a análise da realidade em toda a sua complexidade:
Há melodramas de esquerda e de direita, contra ou a favor do poder
constituído, e o problema não está tanto numa inclinação francamente
conservadora ou sentimentalmente revolucionária, mas no fato de
que o gênero tradicionalmente abriga e, ao mesmo tempo, simplifica
as questões em pauta na sociedade, trabalhando a experiência dos
injustiçados em termos de uma diatribe moral dirigida aos homens
de má vontade (Xavier, 2000, p. 86).
Nas últimas décadas, diversos estudos vêm revelando que grande
parte do preconceito em relação ao melodrama advém da aproximação
deste gênero com o universo feminino, sobretudo o da telenovela e do
woman’s film. Heloisa Buarque de Almeida reflete sobre este assunto
a partir do que denominou “feminilização da telenovela”. Segundo a
autora, durante muito tempo a associação entre mulher e telenovela não
120
foi questionada. “Mulheres teriam prazer especial em assistir às novelas
porque elas falam de histórias de amor e de família, de conflitos amorosos
e familiares, de final feliz, com beijos, casamento e, se possível, filhos”
(Almeida, 2002, p. 173). Ela explica que a associação entre telenovela e
o universo feminino é um desdobramento de uma outra associação, que
“aproxima o feminino do mundo familiar e doméstico” (2002, p. 174),
que permanece a despeito da presença das mulheres no espaço público
e no mercado de trabalho.
Nesse sentido, é interessante pensar que em nossa série, Las Chicas
del Cable, as protagonistas em nenhum momento cogitam permanecerem
no lar, ao contrário. Elas expressam a plena realização no ambiente de
trabalho, inclusive até o limite da verossimilhança, tendo em vista que
a maioria delas passa toda sua jornada de trabalho desempenhando uma
atividade repetitiva e pouco desafiadora. Em diversos momentos as
telefonistas mencionam o quanto amam seus trabalhos, não hesitando
em enfrentar seus pais e maridos para permanecerem no emprego. Não
há, como era de se esperar em produto massificado, nenhuma reflexão
sobre o trabalho doméstico feminino não-remunerado como criador
de valor no capitalismo. Também não há nenhuma discussão sobre,
na quarta temporada, Lídia ter de recorrer a uma outra mulher – uma
babá – para poder voltar ao mercado de trabalho.
Segundo Esther Hamburguer, a associação entre o gênero feminino e as telenovelas é parte de uma associação maior, que identifica a
cultura de massas ao universo feminino (Hamburguer, 2007, p. 155).
Para Patrice Petro, a discussão sobre a cultura de massas é quase sempre
acompanhada de metáforas de gênero que associam valores femininos à
cultura de massas e valores masculinos à verdadeira arte, opondo distra121
ção a atenção, passividade a atividade, e assim por diante (Petro, 1986,
p. 6). Essa associação é motivadora de uma série de pressupostos com
relação ao gosto e ao repertório cultural das mulheres, uma vez que,
seja na vertente de esquerda de Adorno e Horkheimer seja na de direita
de Ortega y Gasset, a cultura de massas é considerada desprovida de
originalidade, esteticamente conservadora, dirigida a um público pouco
criterioso que rejeita o esforço intelectual. Na versão de esquerda da
crítica, a cultura de massas é tida como tendo uma função ideológica
de manutenção da ordem e alienação do trabalhador.
Em Las Chicas del Cable as telefonistas são caracterizadas como
trabalhadoras em grande medida conscientes e organizadas. Há um esforço bastante claro para construí-las como não-alienadas, sobretudo em
certo momento na segunda temporada, quando elas lideram uma greve
contra novas regras de segurança e circulação impostas pela irmã do
novo diretor da empresa. Ainda que sejam ameaçadas com a demissão,
todas as telefonistas da empresa defendem-se bravamente. Os homens
trabalhadores da companhia juntam-se a elas, o que resulta em total
paralisação da empresa. Lídia coloca-se como mediadora do conflito,
e consegue negociar parte substancial das reivindicações. Esse é o momento mais claro de tomada consciência de classe das telefonistas mas,
no final da primeira temporada, há ainda outra situação nesse sentido:
Miguel, namorado de Carlota e engenheiro da companhia, projeta um
roteador automático, que possibilitará que as ligações telefônicas sejam feitas sem a necessidade das telefonistas. Carlos empolga-se com
a ideia e planeja colocá-la em prática. Quando as quatro protagonistas
descobrem o plano do dispositivo, percebem que não apenas o emprego
delas, mas o próprio futuro da profissão de telefonista, está ameaçado.
122
Lídia então rouba o projeto no exato momento em que Carlos o está
apresentando ao Rei da Espanha. A ação pode ser considerada um tanto
ludista e, portanto, ingênua em relação à natureza do capitalismo, uma
vez que destruir os planos de construção dos roteadores não interromperá o avanço da tecnologia e o consequente desaparecimento da
função. No entanto, para efeitos da série, funciona para estabelecer a
inquebrantável solidariedade entre as chicas, que supera o sentimento
de Lídia por Carlos. Desta forma, ao minimizar a importância do amor
romântico, submetendo-o à solidariedade de uma categoria de mulheres trabalhadoras, a série acaba por estabelecer um comentário irônico
e crítico sobre o gênero melodrama, diminuindo neste momento a
desventura individual da vítima e valorizando os problemas coletivos.
Como mencionamos anteriormente, o feminismo da série sofre dos limites da maioria dos feminismos liberais, no sentido de que pressupõe
como horizonte da emancipação feminina a participação no mercado
de trabalho capitalista.
O chamado woman’s film, ou “filmes de mulher”, também padece
em grande medida dos preconceitos relacionados ao universo feminino.
Trata-se de um tipo de filme que não se identifica apenas a um gênero,
mas que tem como característica o tom melodramático, apelando fortemente às emoções e muito frequentemente levando os espectadores às
lágrimas – tanto que, nos Estados Unidos, ganhou o termo pejorativo
de “the weepies”. Segundo Judith Mayne, em artigo sobre os “filmes
de mulher”, estes filmes foram populares nas décadas de 1930, 1940 e
1950 (Mayne, 1981, p. 27). Para Molly Haskel, em From Reverence To
Rape (2016), o woman’s film é típico da cinematografia estadunidense,
e bastante incomum na Europa continental, ainda que no Reino Unido
123
encontremos algumas aproximações, como Desencanto (David Lean,
1945). Um tema típico desse cinema é sacrifício de uma mãe por seu
filho/filha aos custos de si mesma (Mayne, 1981: 28). Um dos filmes
mais conhecidos nesse sentido é Stella Dallas (King Vidor, 1937), que
narra a história de uma mãe da classe trabalhadora que decide desaparecer da vida da filha fingindo-se alcoólatra para que ela tenha uma
chance de casamento com um homem rico. Em Las Chicas del Cable
o sacrifício materno é tematizado na terceira temporada, quando Lídia
tenta a todo custo encontrar sua filha, dada como morta no primeiro
episódio e reencontrada apenas no último.
No livro Melodrama and Meaning Barbara Klinger (1994) faz uma
análise da recepção dos filmes de Douglas Sirk, em especial All That
Heaven Allows. Nos textos recolhidos pela autora é possível observar o
preconceito da crítica de cinema pelo filme, sobretudo por se tratar de
filme “de mulher”. Trata-se de obra que, ainda que tenha sido dirigida
por um homem, tem ponto de vista francamente feminino. A história
se passa em uma pequena cidade dos Estados Unidos, na qual Cary,
uma viúva ainda jovem, bonita e de classe média alta entedia-se no
lar. Seus filhos e suas amigas lhe empurram homens velhos, chatos
ou grosseiros, e ela recusa todos educadamente. Ela e seu jardineiro,
Ron, mais jovem que ela e de outra classe social (interpretado por Rock
Hudson), se apaixonam, o que gera escândalo entre os amigos e filhos
de Cary. Chatageada pelos filhos, que ameaçam abandoná-la, Cary opta
por deixar Ron. No Natal, ela descobre que seu filho irá estudar fora e
sua filha irá se casar. Para compensá-la pela solidão, eles decidem lhe
dar de presente uma televisão. Cary continua triste e infeliz, e decide
voltar para Ron. O filme tem uma mise-en-scène abertamente excessiva,
124
tematizando o descompasso entre a moralista sociedade estadunidense,
feita de aparências e de consumo supérfluo, e a realização feminina.
Segundo Klinger, com o advento das análises de cinema feministas
e psicanalíticas nos anos 70, a obra de Douglas Sirk é recuperada, e
percebe-se o potencial crítico de seus melodramas na tematização da
condição da mulher na sociedade dos EUA dos anos 50, seja através
das suas histórias focadas em dramas femininos seja através da mise-en-scène que remetia à superficialidade mercantil dessa sociedade.
Las Chicas del Cable, ao adotar a fórmula melodramática e o woman’s
film para colocar em pauta temas feministas, explorando diversas facetas
desse gênero popular na cultura de massas, faz uma opção consciente e
provocativa, ainda que eivada de ambiguidade. Trata-se de tematizar o
feminismo dentro de um gênero tradicionalmente rejeitado por parte da
crítica, seja pelas supostas simplificações na visão de mundo oferecida
seja por ser considerado um produto destinado ao consumo das mulheres.
Por um lado, é possível enaltecer essa escolha, que nos parece
bastante consciente, como uma tentativa de revalorização do gênero, dessa vez em um ambiente – a Neflix – que, assim como outras
produtoras de séries, não padece do mesmo preconceito que sofre a
televisão aberta. Com efeito, as séries hoje são produtos cultuados por
um público que não se identifica com a telenovela e são considerados,
no senso comum e também na crítica, como formas narrativas relativamente sofisticadas. Além de exigirem mais da atenção do espectador,
as séries contemporâneas também o motivam a uma atitude mais ativa
através dos ambientes virtuais de discussão como Twitter e Youtube,
nos quais os fãs se encontram. Las Chicas del Cable insere-se nesse
tipo de plataforma, contemporânea, transmídia e atualmente valorizada,
125
“contaminando-a” com uma linguagem bastante aproximada da TV
tradicional e da telenovela, e utilizando-se dessa estratégia para tratar
de temas relevantes do feminismo.
Por outro lado, as convenções do gênero melodrama podem explicar a existência, na série, de elementos que comprometem parte de seu
potencial feminista. Em outras palavras, ainda que seja interessante e
provocativo utilizar um gênero desprezado, considerado pejorativamente
de mulher, para tematizar as lutas feministas, por outro lado essa escolha traz consigo algumas simplificações narrativas que, não obstante
encontrarem-se perfeitamente adaptadas ao gênero, acabam reforçando
alguns estereótipos relativos à própria mulher.
Refiro-me principalmente ao fato de que a série coloca em oposição,
muito reiteradamente, duas mulheres, que interpretarão a heroína da
obra, Lídia Aguillar, e a vilã, Doña Carmen. Como já analisamos acima,
o vilão ou a vilã é a grande força narrativa da série na perseguição ao
herói ou heroína, e está presente em muitos melodramas. Em Las Chicas
del Cable o primeiro vilão, Beltrán, não se equipara a Doña Carmen
em maldade e vilania. Enquanto este só queria dinheiro, Doña Carmen
quer a destruição de Lídia.
O figurino de Doña Carmen é composto de roupas e jóias que deixam clara sua inserção social na alta burguesia, e na terceira temporada
ela usa sempre uma estola de pele que não para de ajeitar no pescoço,
enfatizando o bem de luxo, traço que a deixa particularmente antipática.
Ela é toda aparência e falsidade enquanto Lídia é autêntica e natural
– Doña Carmen, por exemplo, tem uma cor de cabelo avermelhada
muito artificial e desempenha gestos e falas afetados, enquanto Lídia
é a morena franca, natural e sincera. Lídia é altruísta e pensa sempre
126
nos outros, ainda que isso a prejudique, enquanto Doña Carmen trai
todos a seu redor, inclusive seus próprios filhos, pensando apenas em
si mesma. Ainda que diga que age por sua família, o espectador sabe
que suas motivações são egoístas. Sobretudo, elas contrastam em idade:
enquanto Lídia é jovem e bonita, cuja aparência trás todas as marcas
da jovialidade – lábios cheios, corpo curvilíneo, cílios alongados artificialmente que lhe dão um olhar suplicante e bondoso – Doña Carmen
é uma mulher idosa cuja idade faz-se notar não apenas no corpo e na
voz, mas também no tradicionalismo de suas opiniões anti-feministas.
A personagem em diversas ocasiões diminui as conquistas femininas
e é contra mulheres em posição de comando na companhia telefônica,
mesmo que seja sua filha. Quando da apresentação das inéditas cabines
públicas de telefone, que democratizam o meio, ela quer omitir do Rei
da Espanha que uma mulher foi a responsável pelo invento. Ao se dar
conta disso, o Rei tece efusivos elogios à criadora, o que torna Doña
Carmen uma personagem mais antiquada do que a própria monarquia
espanhola. Particularmente abjeta é a maneira como ela trata sua própria
filha, mantendo-a internada sem necessidade em um manicômio e diminuindo suas capacidades intelectuais. Como esposa, ela é também um
anti-modelo feminino, na medida em que aceita as traições do marido
desde que isso não atrapalhe a posição social do casal. Como mulher e
mãe, alguém desprezível afinal.
Nossa crítica em relação a esse personagem relaciona-se também à
forma como mulheres mais velhas tendem a ser construídas nos produtos
audiovisuais mais tradicionais. Molly Haskell, ao analisar a imagem
da mulher no cinema das décadas de 1920 a 1980, nos mostra alguns
atributos comuns na construção imagética da mulher mais velha: ela é
127
muito frequentemente dessexualizada (enquanto homens mais velhos
mantem o charme no cinema), ridicularizada quando se interessa por
homens mais novos (como em Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder,
1950), e sua imagem está associada muito frequentemente ao “terror
para ambos os sexos” (Haskell, 2016, p. 20). Deserotizada no cinema,
a mulher mais velha “volta sua energia ao filho homem, estragando-o,
pressionando-o excessivamente, e possivelmente incapacitando-o para
o amor” (Haskell, 2016, p. 60). Esta é uma situação construída de maneira bastante enfática por Las Chicas del Cable: Doña Carmen é uma
mãe excessivamente edípica, procurando influenciar as ações de Carlos,
tentando protegê-lo dos contragostos da vida e afastá-lo do amor.
Ao estabelecer como inimiga de Lídia uma personagem assim caracterizada, que não só despreza nossa heroína mas a emancipação
feminina que ela representa, Las Chicas del Cable acaba estabelecendo
um embate de mulher contra mulher e desvia a atenção do papel masculino no estabelecimento e manutenção do patriarcado. A série cria
situações narrativas nas quais uma mulher coloca-se contra a outra na
luta pela igualdade de direitos e oportunidades. Nesse embate, as mulheres jovens são valorizadas em oposição à mulher idosa, o que nos
sugere que a série falha em discutir alguns dos estereótipos femininos
mais frequentes e nocivos no audiovisual, que valoriza sobremaneira a
juventude da mulher e os padrões de beleza convencionais.
Não concebemos a cultura de massas e seus produtos como essencialmente alienantes ou essencialmente emancipadores. Em cada
um deles, residem as contradições do capitalismo e do patriarcalismo
contemporâneo. Cada produto demanda uma análise individualizada,
de modo a revelar de que maneira pode oferecer aspectos simulta128
neamente progressistas e conservadores na construção imagética do
mundo social. Las Chicas del Cable, série de temática explicitamente
feminista, nos enseja uma importante reflexão sobre de que forma gêneros menos valorizados podem ser veículo de ideias emancipatórias,
de maneira a transformar aquilo que era negatividade – a feminilização
do melodrama – em positividade. Da mesma forma, a série nos permite
vislumbrar de que maneira as convenções de gênero podem limitar o
completo desenvolvimento das ideias emancipatórias a partir do reforço
dos estereótipos encontrados nas convenções genéricas e na cultura de
massas de modo geral.
Referências
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feminilização da telenovela. Cadernos Pagu, (19), 171-194.
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129
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130
Corpo Feminino e Ficção Científica: uma
Perspectiva de Leitura para o Cinema Brasileiro
Carolina de Oliveira Silva1
Para os rumos da nova história, pensada na década de 1970 a partir
de uma perspectiva mais expansiva, o corpo destaca-se como uma,
dentre as inúmeras formas de interpretação do mundo. Em A Escrita
da História: Novas Perspectivas (1992), Roy Porter é responsável pelo
segmento intitulado História do Corpo (pp. 291-326), já introduzido em
uma polêmica: uma pintura de Cristo que, durante a Renascença fora
retratado chamando a atenção para o seu pênis, detalhe que promove a
marca de sua humanidade e um claro exemplo do quanto a história do
corpo, devido aos componente clássicos e judaico-cristãos dentro da
cultura ocidental, foram negligenciados.
No entanto, a revolução cultural e sexual da década de 1960, o
feminismo e o capitalismo consumista redirecionaram estudiosos em
busca de intitulada “cultura material”, da qual o corpo faz parte. Por
meio da história científica e biológica, a antropologia cultural e outras
formas de saber, o corpo foi ganhando cada vez mais espaço para as
1.
Doutoranda do curso de Educação, Arte e História da Cultura da Universidade
Mackenzie.
coralinacarol@gmail.com
131
discussões e as explicações acerca de suas representações e simbolismos.
Uma questão bastante abordada por Porter é a metodologia para isso:
como é feito o estudo do corpo e por meio de quais registros? O autor
aponta que é um empreendimento arriscado esperar que os registros
médicos nos proporcionem uma história confiável – afinal, documentos que versam sobre índices de natalidade, mortalidade, fertilidade ou
fecundidade podem ser tão válidos como as investigações baseadas
em dados físicos, fotográficos e da própria arte: e é nesta última que
aprovamos a nossa empreitada.
Historiadoras brasileiras como Denise Bernuzzi Sant’Anna, conhecida pelo seu trabalho sobre a história do corpo e o embelezamento feminino, afirma em entrevista realizada no III Simpósio Corporeidade: uma
abordagem transdisciplinar (2004), que o corpo é um campo imenso de
possibilidades que ainda não foram exploradas. Ao destacar que no Brasil
essas possibilidades também são infinitas, devido aos seus contrastes
geográficos, culturais e sociais, a ideia de cultura gestual torna-se muito
contundente. Contudo, mesmo que erroneamente considerado como o
primo pobre do conhecimento mental, essa dualidade coloca-se em uma
encruzilhada: quando o sujeito é desobediente as formas de controle
vigente, por exemplo, os regimes e punições voltam-se para o corpo
e, consequentemente, tal subordinação acaba por degradá-lo2. Nesse
sentido, o sofrimento relegado ao corpo não confirma a sua fragilidade,
2.
Segundo Porter, uma pessoa deprimida nos EUA deve consultar um psicoterapeuta,
já na China, essa mesma pessoa teria o caso atribuído a uma enfermidade física,
concluindo que, os tratamentos destinados ao corpo promovem relações que
estão diretamente ligadas a cultura.
132
mas a força que a ele é atribuída, reconhecendo que o seu uso também
implica em uma forma de pensamento3.
Ao especular uma série de mitos que estão na base da divisão entre
o corpo e o espírito: o corpo dionisíaco na dança, como bem aponta
Linda Hutcheon e Michael Hutcheon em O corpo perigoso (2003) ou o
corpo no teatro como expressão única e independente da palavra, como
defende Antonin Artaud em O teatro e seu duplo4 (1938), o cinema
não poderia ficar de fora. Estudiosos como Hans Ulrich Gumbrecht5
atentam para um duplo regime do qual o campo cinematográfico ainda
é enquadrado: o espectador sério e que domina o controle interpretativo
daquilo que assiste e o espectador passivo, voltado para a diversão ou o
passatempo. Nesse sentido, o que se postula novamente para o cinema
é uma separação essencialista – como naquela do corpo e espírito – e
que desconsidera as inúmeras complexidades de uma história que deve
ser considerada como resultado de implicações estéticas, políticas e
culturais, igualmente contraditórias em sua construção.
Ao explorarmos o terreno do cinema brasileiro, em especial aquele
que investiga as formas aparentemente rarefeitas da FC, nos deparamos
3.
4.
5.
Na mesma entrevista, Sant’Anna reivindica um rigor do pensamento quando nos
referimos ao corpo, por exemplo, a dança – uma das expressões atribuídas ao
corpo – não se configura como a compensação de um esforço mental, ou seja,
um tipo de extravasamento ou relaxamento, mas como um meio de expressão e/
ou transgressão, nesse exemplo a autora afirma que para existir a dança é preciso
haver o pensamento.
Nesta obra, Artaud fala brevemente sobre o cinema sob um ponto de vista bastante
penoso, afirmando que ele nada mais é do que a “visualização grosseira daquilo
que existe, o teatro, através da poesia, opõe as imagens daquilo que não existe.
Aliás, do ponto de vista da ação não se pode comparar uma imagem de cinema
que, por mais poética que seja, é limitada pela película, com uma imagem de
teatro que obedece a todas as exigências da vida” (p. 114), todavia, utilizo o seu
pensamento sobre o corpo para destacar, justamente, a magnitude do assunto,
tendo em vista o teor destemido de suas ideias.
Ver a Introdução do livro Cinema de Bordas (2006).
133
com filmes construídos a partir de um hibridismo narrativo – comédias, chanchadas, produções trash ou de baixo orçamento, o cinema
mainstream, o terror e o terrir, o cinema de bordas, o cinema marginal
e o experimental, o romance, as formas híbridas de documentário e
outros – quando comparados, por exemplo, às estruturas mais clássicas
do cinema estadunidense ou europeu, onde a tradição do gênero é mais
homogênea e estabelecida. Assim, a aproximação entre FC e corpo,
torna-se mais evidente em seu desafio e válida para o nosso tempo:
essas narrativas não pretendem descrever o futuro, mas o seu tempo6,
reverberando não o estático, mas o movimento concedido a algo que
está vivo. Dedicamos ao cinema essa vida, são filmes que respiram e
que, aos olhos de uma guinada acadêmica que se volta para o excêntrico
– mesmo daquelas produções pensadas para atingir o grande público
e hoje estão esquecidas ou subvalorizadas por isso. Nossos olhos em
mutação são surpreendidos por cenas fantásticas que atravessam os
tempos, por isso, somos presenteados por algo que é extremamente
familiar e ao mesmo tempo estranho.
6.
Tal definição do gênero é creditada a Ursula K. Le Guin, autora estadunidense
que ficou conhecida por ambientar as suas histórias em mundos alternativos
e abordar assuntos como política, filosofia, religião, sexualidade e gênero.
Usualmente inserida na soft ficção científica, que previa o tratamento de assuntos
e abordagens relacionadas a antropologia e a sociologia, diferente da hard SF,
mais interessada no rigor tecnológico – Le Guin publica, em meados da década
de 1970 – momento em que a perspectiva da mulher, o feminismo e os estudos de
gênero começam a ganhar território no gênero literário, duas obras importantes:
Os Despossuídos (1974) e A mão esquerda da escuridão (1979). Ambas tratam
de sociedades distintas e seus comportamentos, o individual e o coletivo, assim
como as diferenças sexuais entre os habitantes: homens e mulheres são um só
e nenhum ao mesmo tempo, além disso, o tratamento dado as relações sexuais
compreende questões de experimentação e autoconhecimento, revelando assim,
aspectos de uma sociedade em que os vínculos humanos são muito mais flexíveis.
134
1. Corpos como Narrativa
Ao designar para o corpo a sua devida parcela performativa não apenas
dentro da história específica do feminismo, mas na história, afirmações
como, por exemplo, de uma arte feminista, também acabam por oferecer
rotulagens das quais a história a contrapelo vem tentando defender-se.
Se o corpo está anterior à sua inscrição cultural, significa que sua análise é o “resultado de uma estruturação difusa e ativa do campo social”
(Butler, 2017, p. 226). Nessa linha de pensamento, os gestos configuram-se
como uma expressão primeira, anterior a qualquer outra coisa que exista
a partir do momento em que, de fato, existimos no mundo.
Resgatando autores como Aurtaud (1938), tomamos de empréstimo
sua reflexão sobre o corpo no teatro e, parte de sua crítica, por vezes
ferrenha, ao uso da palavra em uma arte que denota a poesia do espaço.
Como um tipo de bruxaria, uma preciosa ciência que deve reconhecer
os pontos a serem tocados no corpo, é necessário cultivar as emoções
que o corpo carrega, respiração a respiração. O curso da história está
vinculado tanto a cultural material como a cultura sensível, podendo
ser entendido como um entrelaçamento de seus tempos. Por isso, ao
imprimir um interesse por diferentes filmes de épocas distintas e tão
amplas, a narrativa sobre os corpos torna-se uma perspectiva coletiva
dos afetos, ainda que, todos esses filmes não consigam auferir uma
representação total de seu tempo – longe dessa intenção, afinal, não
pretendemos trancafiar as inúmeras possibilidades de interpretação,
mas emancipá-las.
Neste momento, o delineamento dos filmes percebe não a sua divisão em tempos, mas em corpos que serão revestidos de personagens,
135
portanto, como uma primeira contemplação dos filmes. A lista a seguir
atenta-se em identificar as figuras femininas como atrizes e personagens, descrevendo-as não apenas como corpos, mas inseridas em sua
construção social – ou seja, qual o papel atribuído a elas dentro de cada
história? Essa primeira cartografia7 visa, como um tipo de radiografia
imagética, estabelece quais as representações designadas às personagens
femininas dentro das histórias, para mais tarde, ponderar suas relações
com aspectos não apenas da historiografia do cinema, mas de seus corpos carregados de significado e amplamente capazes de oferecer outras
perspectivas para essas narrativas.
– Uma aventura aos 40 (1947) de Silveira Sampaio
Gêneros: comédia.
Atrizes/Personagens: Nilza Soutin ( ), Ana Lúcia ( ), Aída Carmen ( ).
– O homem do Sputnik (1959) de Carlos Manga
Gêneros: comédia.
Atrizes/Personagens: Zezé Macedo (Cleci), Neide Aparecida
(Dorinha), Norma Bengell (Bebe), Heloísa Helena (Dondoca),
Laura Galano, Maria Acyr e Riva Blanche.
– Os Cosmonautas (1962) de Victor Lima
Gêneros: comédia.
Atrizes/Personagens: Neide Aparecida (alienígena – Krina Iris)
e Telma Elita (cientista – Alice).
– O 5° poder (1962) de Alberto Pieralisi
Gêneros: policial e crime.
Atrizes/Personagens: Eva Wilma (pesquisadora química – Laura
Leal) e Jurema Magalhães.
7.
As informações foram retirada de, pelo menos três fontes distintas: o site da
Cinemateca Brasileira, o site IMDb e o Dicionário de Filmes Brasileiros (2002)
de Antônio Leão da Silva Neto, para assim, garantir uma consulta mais abrangente
no que se refere às possíveis classificações concedidas aos filmes.
136
– A espiã que entrou em fria (1967) de Sanin Cherques
Gêneros: comédia.
Atrizes/Personagens: Carmen Verônica (espiã – Jane Bond),
Esmeralda Barros (sequestradora), Flávia Balbi (sequestradora),
Noira Mello (sequestradora), Yaratan (sequestradora), Zélia
Martins (sequestradora), Liliana Renata (jornalista), Helenice
Alves Ribeiro, Tânia Scher (secretária/empresária - Léa) e Norma
Bengell (espiã).
– Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968) de Roberto Farias
Gêneros: aventura e comédia.
Atrizes/Personagens: Rose Passini (empresária musical), Márcia Gonçalves (fãs), Ana Levy (fãs), Marisia Levy (fãs), Grace
Lourdes (fãs) e Elizabeth Faria (fãs).
– O homem que comprou o mundo (1968) de Eduardo Coutinho
Gêneros: ficção científica e comédia.
Atrizes/Personagens: Marília Pera (noiva - Rosinha), Márcia
Rodrigues (bancária), Dilma Mariani (secretária) e Marília Carneiro (secretária)
– Brasil ano 2000 (1969) de Walter Lima Jr.
Gêneros: comédia e drama.
Atrizes/Personagens: Anecy Rocha (filha), Iracema de Alencar
(mãe) e Aizita do Nascimento (mulata).
– O jardim das espumas (1970) de Luiz Rosemberg Filho
Gêneros: drama e ficção.
Atrizes/Personagens: Fabíula Francaroli (estudante) e Grecia
Vanicori (recepcionista do planeta pobre).
– Quem é Beta? (1973) de Nelson Pereira dos Santos
Gêneros: experimental, drama e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Sylvie Fennec (guerreiras-artilheiras –
Beta), Regina Rosemberg (guerreiras-artilheiras – Regina),
Noelle Adam (guerreiras-artilheiras – mulher da estrada), Regina
Leclery, Isabel Ribeiro, Ana Maria Miranda e Noelza Guimarães.
– A noite do espantalho (1974) de Sérgio Ricardo
Gêneros: drama e musical.
137
Atrizes/Personagens: Rejane Medeiros (andarilha – Maria do
Grotão), Eneida Valença, Diva Pacheco, Claudia Furiati, Georgia
Maria e Tereza Mello (mulheres da elite e mulheres do povo).
– Parada 88 – O limite de alerta (1977) de José de Anchieta
Gêneros: ficção científica.
Atrizes/Personagens: Regina Duarte (menina cega – Ana), Yara
Amaral (mãe), Rosinha (seguidora da pregadora), Mariana (stripper-teaser), Sidnei Maria Costa (bailarina), Cleide Yaconis
(pregadora) e Maria Viana (Susy Margareth).
– Excitação (1977) de Jean Garret
Gêneros: drama, suspense, terror, horror e thriller.
Atrizes/Personagens: Kate Hansen (esposa – Helena), Betty
Saddy (vizinha/amante – Arlete), Zilda Mayo (prima jovem de
Arlete – Lu) e Liana Duval (empregada doméstica).
– As filhas do fogo (1978) de Jean Garret
Gêneros: drama, suspense, horror e thriller.
Atrizes/Personagens: Paola Morra (jovem dona da casa – Diana),
Karin Rodrigues (visinha que trabalha com captação de vozes –
Dagmar), Rosina Malbouisson (amiga de Diana – Ana), Maria
Rosa (empregada doméstica – Mariana), Selma Egrei (mãe de
Diana – Sílvia), Maria Hussemann (estilista/costureira – Tia
Gertrudes), Karin Haas (costureira).
– Fruto do amor (1980) de Milton Alencar Jr.
Gêneros: drama e sexo explícito.
Atrizes/Personagens: Ruth de Souza (cientista – Dra. Elza),
Margot Morel, Tânia Kukel, Sônia Matos, Ordália Aparecida,
Gerusa Amaral, Cecília de Paula, Rosane Soli, Maria Lúcia Dahl
(prostituta – Ana Maria) e Jacyra Silva.
– O inseto do amor: Anophelis Sexualis (1980) Fauzi Mansur
Gêneros: comédia e erotismo.
Atrizes/Personagens: Angelina Muniz (repórter – Zuleica), Lola
Brah (madre), Henriqueta Brieba (sra. do quarto do Hotel), Misake Tanaka (garota da cela), Mara Hussemann (mãe da noiva),
Nadia Destro (garota do Bucão), Cinira Capucci (miss), Clarice
Ruiz (miss), Fátima Fonseca (miss), Ilse Marques (miss), Tereza
Rodrigues (cliente do médico), Carmem Ortega (lavadeira), Vera
138
Lúcia (enfermeira do paralítico – Aurora), Ariadine de Lima
(garota do halterofilista – Olga), Celina Castro (miss), Carmem
Goulart (telefonista), Iolanda Silva (gorda do chuveiro), Júlia
Veloso (sra. Moreira), Lilian Leila (camareira mulata), Divina
Cheroto (tia da noiva), Marli Palauro (camareira), Roseli Dias
(miss), Fafá (empregada de Moura), Rosecler (garota nua), Aparecida de Castro (índia), Hilda Ribeiro (índia), Simone (índia),
Silvia Regina (índia), Walderez Pires (índia), Marcia Montiel
(noiva), Helena Ramos (garota do Moura – Doris), Rossana
Ghesse (esposa de Miguel), Ana Maria Kreisler (Dadá), Claudete
Joubert (viúva granfina), Liza Vieira (recém casada), Zélia Diniz
(esposa de Galvão) e Alvamar Taddei (miss).
- Abrigo nuclear (1981) de Roberto Pires
Gêneros: ficção científica.
Atrizes/Personagens: Conceição Senna (comandante – Avo),
Bárbara Bittner (membro da equipe médica – Ima), Sandra Valença (membro da equipe – Nic), Marília Araujo (membro da
equipe – Mar), Maria Teresa Soares (membro da equipe – Tel)
e Norma Bengell (geóloga – Lix).
- Punk’s os filhos da noite (1982) de Levy Salgado
Gêneros: ficção científica e ação.
Atrizes/Personagens: Lady Francisco (líder dos Lady’s), Sirley
de Almeida (namorada de Gatão – Lorna), Cláudia Celeste
(mãe de um dos integrantes da gangue), Lia Farrel, (líder de
outra gangue) Mariza Jones, Léa Leandro e Maria José Macedo
(integrantes de gangues e/ou dançarinas).
- As ninfetas do sexo selvagem (1983) de Wilson Silva e Izat
Surman
Gêneros: ficção científica.
Atrizes/Personagens: Kristina Keller (Lilith - relacionamento
em trio), Marleide Vidal (ilhada – filha do casal), Eva de Oliveira (ilhada – filha do casal), Tatiana Dantas (ninfeta – escrava
sexual), Teka Lanza (Lúcia – relacionamento em trio) e Dineia
Dantas (ninfeta – escrava sexual).
- A mulher de proveta (1984) de José Rady
Gêneros: comédia e comédia erótica.
139
Atrizes/Personagens: Monique Lafond (candidata), Wilza Carla
(candidata), Maristela Moreno (mulher de proveta – Gel), Kassandra Wilee (candidata), Dineia Ramos (candidata).
- Amor voraz (1984) de Walter Hugo Khouri
Gêneros: drama, suspense e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Vera Fischer (dona da casa – Anna), Marcia
Rodrigues (amiga de Anna que encabeça a casa – Silvia), Bianca
Byington (jovem adotada que ajuda a cuida da casa e de Anna –
Julia), Cornélia Herr (irmã de Anna – Mariana), Beth Martinez
(amiga de Anna que é química – Beatriz), Lucinha Lins (médica
de tratamento alternativo – Clea) e (empregada – Lurdes).
- A quinta dimensão do sexo (1984) de José Mojica Marins
Gêneros: sexo explícito e erótico.
Atrizes/Personagens: Zilda Mayo (dama da noite), Maristela
Moreno (Marina), Michelle Berthon (Estudante) e Débora Muniz.
- As sete vampiras (1984) de Ivan Cardoso
Gêneros: terror, comédia, horror e mistério.
Atrizes/Personagens: Nicole Puzzi (mulher do cientista e coreógrafa – Sílvia), Andréa Beltrão (secretária do detetive – Maria), Simone Carvalho (garota-vampira – Ivete), Zezé Macedo
(responsável pela chapelaria – Rina), Suzana Mattos (professora
de dança – Clarice), Daniele Daumeri (bailarina vampira), Alvamar Taddei (bailarina vampira), Dedina Bernardelli (bailarina
vampira), Olívia Castro (garçonete), Neuzinha Brizola (público
na boate), Katia Spolavori, Susie Hahn (Garçonete), Patrícia
Bromirsky (vítima), Claudia Castelli, Adriana Salituro, Mara
Pelegrini, Rosana Soares, Cecília Marinho, Cecília Badase,
Lucélia Santos (atriz e dançarinha – Elisa Machado) e Tânia
Boscoli (bailarina vampira).
- Areias escaldantes (1985) de Francisco de Paula
Gêneros: comédia e musical.
Atrizes/Personagens: Regina Casé (bandida – Verônica Pinheiro),
Cristina Aché (bandida – Cristal Pinheiro), Liane Monteiro (odalisca), Mayara Norbim (odalisca), Patrícia Marques (odalisca),
Marise Farias (odalisca), Denise Mayer (odalisca), Christina
Stege (maritimoça), Virginie (inglesa), Cristiane Couto (cliente
do banco), Duse Nacaratti (cliente do banco), Lidoca (cliente
140
do banco), Virgínia Campos (cliente do banco), Elizabeth Leporage, (recepcionista) Monica Castro (tripulantes do navio),
Suzana Badin (tripulantes do navio), Monica Tereza (tripulantes
do navio), Monica Biel (tripulantes do navio), Sílvia Holmes
(policial).
- Por incrível que pareça (1986) de Uberto Molo
Gêneros: comédia e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Ângela Rebelo (mulher do bancário),
Cláudia Costa, Vera Figueiredo, Francinete e Tereza Mascarenhas (Denise).
- Oceano Atlantis (1991) de Francisco de Paula
Gêneros: aventura e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Danielle Daumerie (musicista), Maria
Monteiro (menina que sonha), Andréia Menezes, Carla Sabah,
Marita D’Olne, D’Marina, May East, Camila, Ingrid, Dercy
Gonçalvez (moradora de Atlantis).
- O monstro legume do espaço (1995) de Petter Baiestorf
Gêneros: comédia, horror e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Loures Jahnke e Onesia Liotto.8
- Acquaria (2003) de Flávia Moraes
Gêneros: aventura, ficção cientítica e drama.
Atrizes/Personagens: Julia Lemmertz (cientista e mãe – Nara),
Sandy Léah (andarilha – Sarah), Ciça Simões, Liris da Costa,
Tânia Fortes, Priscila Azzini e Thaís Coutinho.
- Um lobisomem na Amazônia (2005) de Ivan Cardoso
Gêneros: terror, suspense, comédia e horror.
Atrizes/ Personagens: Danielle Winits (viajante – Natasha),
Karina Bacchi (viajante – Samantha), Djin Sganzerla (viajante
– Carol), Joana Medeiros (rainha das Amazonas – Pentesiléia),
Daiane Amêndola (amazona – Alma), Analú Silveira (amazona
– Mary) e Tânia Bôscoli (amazona – Maria).
8.
Informações sobre as atrizes que participaram do filme não estão disponíveis em
nenhuma das referências citadas, o acesso foi apenas pelos créditos do filme, do
qual não há como saber exatamente quais os papéis designados.
141
- Centopeia (2005) de Daniell Abrew
Gêneros: ficção científica e drama.
Atrizes/Personagens: Jeanne Feijão (cosmonaura - Suzana),
Camile Queiroz (espécie de fazendeira amiga de Joel - Taciana),
Wanessa Araújo (Rita), Andréia Cibele (repórter), Rosemeira
Rocha (repórter) e Teresa Reine (presidenta do Brasil).
- O homem do futuro (2001) de Cláudio Torres
Gêneros: comédia, fantasia e romance.
Atrizes/Personagens: Alinne Moraes (estudante de física e modelo
- Helena), Maria Luísa Mendonça (estudante de física e empresária do ramo científico – Sandra), Malu Rodrigues (aluna), Lída
de Bueno (Daise) e Giordana Forte (garota do terreno baldio).
- Área Q (2011) de Gerson Sanginitto
Gêneros: ficção científica e thriller.
Atrizes/Personagens: Tania Khalill (jornalista – Valquiria), Leslie Lewis (mãe de Peter -Carol Matthews), Lise Crilley (mãe
jovem), Jenny Vilim (Cynthia) e Ana Kelly (Luz).
- Branco sai, preto fica (2014) de Adirley Queirós
Gêneros: drama e documentário.
Atrizes: Gleide Firmino (comandante de operações).
- Deserto Azul (2014) de Eder Santos
Gêneros: romance e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Maria Luísa Mendonça (Alma) e Michelle
Castro (aeromoça).
- Brasil S/A (2014) de Marcelo Pedroso
Gêneros: aventura.
Atrizes/Personagens: Maracatu Estrelha Brilhante (grupo de
dança), (Wilma Gomes (responsável pela bandeirada), Marivalda
Maria dos Santos e Giovanna Simões (motorista).
- A repartição do tempo (2016) de Santiago Dellape
Gêneros: comédia e ficção científica.
Atrizes/Personagens: Bianca Müller (funcionária - Carol), Rosanna Viegas secretária do chefe - Shirley), Selma Egrei (senadora), Bidô Galvão (funcionária administrativa), Dina Brandão
(funcionária da limpeza) e Yasmin Sant’Anna.
142
2. Por um Cinema do Corpo: Gesto, Pensamento e História
Em 1895 surge o raio-X, uma descoberta atribuída ao físico alemão
Wilheem Conrad Rontgen, ano que se determina como o do nascimento
do cinema pelos irmãos Lumière, do ponto de vista, claro, da historiografia francesa. É curioso: um pequeno laboratório e apenas três trabalhos
publicados sobre o assunto renderam a Rontgen um Prêmio Nobel de
Física, quantidade inexpressiva quando comparada a outros laureados.
Já o dito primeiro cinema, quase tão despretensioso em sua produção
quanto a quantidade de escritos do cientista, surge em meio a uma série
de formas culturais como “os espetáculos de lanterna mágica, o teatro
popular, os cartuns, as revistas ilustradas e os cartões-postais” (Costa,
2006, p. 17). O raio-x nasce para ver o corpo por dentro, para desvelar
cientificamente o que se passa em nossas entranhas, enquanto o cinema
revela a fixação do movimento desse mesmo corpo: números de dança,
acrobacias e esportes – o gesto é novidade.
Ao prescrever uma ligação íntima com os divertimentos populares
nas metrópoles, o dito primeiro cinema previa um grande interesse pelos
espetáculos de vaudeville no final do século XIX que se configuram, em
um primeiro momento, como uma experiência dentro de um modelo do
comportamento trivial e do lazer. Essa experiência aborda o corpo como
algo que pode ser estimulado e experimentado enquanto temas de novos
discursos: Tom Gunning exemplifica por meio de fotogramas, como o
intitulado A Subject for the Rogue’s Gallery, filme de 1904 da Biograph, filmado pelo cinegrafista A. E. Weed, como a câmera acompanha
a dramaticidade em relação ao espetáculo feminino. Neste fotograma,
a mulher colocada em primeiro plano apresenta uma careta que, como
143
ele descreve, vai se repetir ao longo do resto do filme. Expressa-se
assim, um drama implícito no exercício do poder sobre um corpo que,
segundo a imagem, acaba de ser capturado.
Se até meados da década de 1910 a institucionalização do cinema
ainda não havia acontecido, entre 1895 e 1908 o que era oferecido aos
espectadores estava muito ligado ao espaço em que esses pequenos
filmes sem grandes preocupações narrativas eram exibidos: convivia-se com o barulho e a gritaria. A censura, inexistente nesses locais que
eram vistos com maus olhos, proporcionava uma desregulação dos
comportamentos que ali aconteciam. Outra questão interessante e ligada
em algum grau à história do corpo, como aponta a historiadora Miriam
Hansen, é o fenômeno dos filmes de boxe, gênero profícuo do período9.
Hansen afirma que, em sua grande maioria, os filmes de boxe eram
assistidos pelo público feminino, já que estavam em ambientes onde
a mulher poderia participar, exercitar o seu olhar e curiosidade pelos
corpos parcialmente desnudos. Este é um dado profundamente esclarecedor sobre a cultura da época, afinal, o espaço desregrado concedia
à mulher de classe social mais desfavorecida, uma certa liberalidade e
participação na vida pública. Ao observamos, por exemplo, as imagens
analisadas por Ben Singer em Modernidade, hiperestímulo e o início
do sensacionalismo popular (2004), sejam as fotografias ou ilustrações
que já preconizavam o cinema e preparavam o espectador para outras
sensibilidades, nos deparamos com um interesse que exacerba o corpo
9.
Para mais informações do assunto ver América Purificante: Mulheres, Reforma
Cultural e Ativismo Pró-Censura, 1873-1933 (Mulheres na História Americana)
(1997) de Alison M. Parker e Babel and Babylon: Spectatorship in American
Silent Film (1991) de Miriam Hansen.
144
e o seu reconhecimento ou a sua representação, como um dos principais
alvos atingidos pela emergência da modernidade.
As temáticas corporais, principalmente aquelas ligadas ao feminino,
foram e ainda são recorrentes nas artes, tópico inesgotável e capaz de
criar discussões sobre a igualdade de gênero no universo artístico, ou
seja, a mulher artista e a mulher como material de um processo criativo - a falsa e romântica ideia das musas, por exemplo, é um exemplo
de umas das vertentes que a discussão poderia tomar. Em uma breve
rememoração dos estudos realizados por Michelle Perrot e Georges
Duby10 sobre as diversas representações do feminino na história da arte,
encontramos desdobramentos: a objetificação, a sexualidade como meio
de subversão da submissão ou como confirmação dela, o silenciamento,
a crítica social, a contestação dos estereótipos ou a aplicação ferrenha
deles; a lista de abordagens é extensa, o que confere ao surgimento da
história das mulheres como campo de estudos, um assunto profundo
e surpreendente. Mas, ao promover a retomada das figuras estáticas
apresentadas pela pintura e a fotografia, o que nos faz pensar que com
o cinema, em sua ilusão de movimento proporcionada pela sequência
de imagens paradas, a tratativa seria diferente?
A possibilidade de retratar o movimento configura-se, também,
como uma política do corpo. Não à toa, grande parte dos primeiros filmes da época que ocupavam salas quentes e imundas, onde multidões
10. Aqui me refiro, principalmente a sequência dos livros História das Mulheres no
Ocidente, que são divididos em cinco volumes de acordo com o período abordado.
Porém, no que se refere à extensa produção de Michelle Perrot, uma das mais
importantes figuras intelectuais quando o assunto é história da mulheres, a sua
contribuição se fortaleceu principalmente na década de 1970, ao apresentar
temas e recortes que até então tinham sido negados, revelando o desinteressa da
história por preocupações teóricas androcêntricas.
145
de operários e trabalhadores de baixa renda procuravam abrigo para o
corpo cansado. Mais tarde, em Cinema de Bordas (2006), Bernadette
Lyra e Gelson Santana vão propor que essas primeiras experiências se
encaixam muito bem no modelo de comportamento trivial do lazer,
trazendo essa mesma configuração para uma série de filmes que vão
identificar como as produções feitas às margens do cinema mainstream.
No entanto, ao estabelecer o conceito de cinema de bordas como
filmes associados a esse tipo de experiência encontrada no primeiro
cinema, a relação atribuída é reverberada para além dessas definições.
Como propõem os autores, as visões teóricas acerca do assunto são
limitantes e por esse motivo, não devem ser compreendidas em função
da oposição, afinal o seu movimento não está somente na narrativa
diegética, mas na sua transformação enquanto produto de uma época
que pode ser problematizado em diferentes tempos. Nesse sentido, as
subculturas valorizadas e heterogêneas, como acredita Lyra (2009)
quando se refere ao cinema brasileiro de bordas, consegue estabelecer
uma estética próximo do que hoje se nomeia de paracinema, conceito
que, apesar de oscilante, promove seu sentido quando “dentro da concepção de contraste com obras que as entidades legitimadoras consideram
centrais à constituição da cultura cinematográfica” (2009, p. 35).
A catalogação do paracinema, segundo autores como Sconce (1995)
é capaz de reunir filmes de horror artístico, exploitation, pornográficos,
ficção científica, badfilm, splatterpunk, mondo films, sword-and-sandal
epics, Elvis flicks, government hygiene films, japanese monster movies,
beach party musicals, ou seja, uma série diversificada de gêneros. Essa
grande salada cinematográfica faz muito sentido quando pensamos no
inusitado gênero da ficção científica no cinema brasileiro: sua composição
146
híbrida e paródica, como bem aponta Suppia (2015) em seus estudos
dedicados ao tema, é o resultado de uma cultura altamente complexa e
diversificada, que pretende dizer muito sobre nosso ímpeto antropofágico.
Nesse sentido, a ideia de um cinema do corpo não pretende se ater
somente ao cinema de bordas, do qual identificamos algumas produções da FC brasileira11, mas expandir-se a ponto de compreender, como
bem apontam Shohat e Stam (2006) sobre o papel das paródias12, que
favorecem aquilo que os autores vão chamar de imagens “negativas” e
grotescas, mas que podem levar a cabo críticas profundas e não apenas
as repetições de um modelo intolerante. A partir deste recorte, o que
exatamente os filmes teriam para dizer sobre o corpo feminino? Será que
o discurso de filmes distantes dos pressupostos enraizados do gênero da
FC teriam algo a contribuir para a história das mulheres? Será subversiva a temática somente por ter em vista um delineamento, a princípio,
11. Em Cinema de Bordas (2006) e (2008) a temática dedicada a possibilidade de
existência de uma cinema de FC no Brasil é encabeçada por autores como Alfreddo
Suppia com Ficção científica no cinema brasileiro: que bicho é esse? (pp. 16-41),
Rogério Ferraraz com Da ficção científica à comédia: o (des)arranjo dos gêneros
em O Homem do Sputinik e Por incrível que pareça (pp. 140-153) e novamente
Suppia com Venceu a conta de ar: a distopia ecológica no cinema brasileiro de
ficção científica (pp. 14-39) em Cinema de Bordas 2 (2008). Todavia, quando
olhamos para os ditos filmes de FC no cinema brasileiro, nos deparamos com
produções que vão além da coceituação de bordas, o que configura uma extensa e
diversificada forma de apresentação desse filmes. Seguindo aquilo que é apontado
em Cinema de Bordas 2 (2008), por exemplo, que invoca uma produção gestada
por amadores e não profissinais, destacaríamos dentro dessa lógica os filmes O
monstro legume do espaço (1995) de Petter Baiestorf e Centopeia (2008) de
Daniell Abrew.
12. Aqui, refiro-me a definição de paródia concedida por Linda Hutcheon em Poética
do Pós Modernismo (1991) que, não se refere a imitação ridicularizada, mas uma
prática que sugere a “repetição com distância crítica que permite a indicação
irônica da diferença no próprio âmago da semelhança” (p. 47), assim, ela vai
totalmente na contramão de definições dadas por, por exemplo, Frederic Jameson
(1984), que substituí tudo por pastiche e compreende tal processo como um tipo
de canibalização aleatória dos estilos do passado.
147
improvável? As personagens identificadas acima, afinal, teriam algo
de subversivo ou repetitivo dentro da história do cinema braisleiro?
3. Um Enunciado: o Corpo Feminino Fantástico
Não podemos negar que, independente dos gêneros impostos para
os filmes e dos quais, muitas vezes, despendemos tempo tentando identificá-los, o corpo é um elemento que está praticamente presente em
todas as histórias. Essa corporificação tem aberto espaços de discussão
em torno da relevância filosófica que o corpo implica, afinal, como
acredita o existencialista Merleau-Ponty, o corpo é a nossa maneira de
ser e estar no mundo. Por meio dele conseguimos desvelar algo que está
em movimento, mesmo quando estático, o corpo biológico é regido por
partículas invisíveis aos nossos olhos. Essa instabilidade identificada
nos gênero fílmico e no corpo hmano são passíveis de promover um
paralelo às próprias questões de gênero, extremamente relevantes no
que seria a quarta onda feminista13 que contesta a tentativa de se referir a todas as mulheres de forma igualitária. Com relação aos gêneros
cinematográficos:
foram, em seguida, transformados, seja pelo excesso e pela paródia ..., seja pela extinção ou pela decrepitude ..., seja ainda pelas
próprias modificações dos referentes aos quais eles estão ligados
.... Ao contrário de uma opinião muitas vezes emitida, não parece
que o fenômeno do gênero tenha enfraquecido; mas é verdade que
13. A quarta onda feminista, amplamente discutida no livro Explosão feminista:
arte, cultura, política e universidade (2018) organizado por Heloísa Buarque
de Hollanda, discute os novos contextos pelos quais o feminismo tem passado,
principalmente no que se refere a tomada das ruas e das redes socais que deslocam
as reflexões sobre o gênero, a identidade, as diferenças e as desigualdades para
mais uma plataforma construtora de sentido: o corpo.
148
vários gêneros evoluíram bastante, que outros apareceram ..., que
frequentemente os filmes de gênero mostram uma certa ironia para
com seu pertencimento de gênero, e que vários cineastas importantes
... procuraram dar, no interior mesmo dos gêneros, uma redefinição
ou, ao menos, uma reflexão que institui, também ela, uma espécie
de distância. (Aumont & Marie, 2003, p. 142)
Ao transferir esse pensamento para o gênero da FC no cinema
brasileiro, fica claro que as bases deste cinema estão longe de se organizarem em categorias muito claras. Da mesma maneira, os debates
contemporâneos em torno do gênero como categoria de análise dentro
das teorias feministas, sofre do mesmo mal - ou melhor, bem. À exemplo
das discussões proposta por Butler (2017) que questiona o entendimento
da mulher como o Outro, em função da definição do homem como o
sujeito universal e, em outra visão, como a da compreensão das mulheres constituídas pelo irrepresentável, ou seja, uma ausência. Para nos
ater apenas a essas duas visões que, partem ainda das oposições e da
exclusão, a ideia é de que, ainda que a elucidação do termo esteja longe
de uma resolução, o ponto de convergência ainda acontece no corpo.
Em ambos os casos, o corpo é representado como um mero instrumento ou meio com o qual um conjunto de significados culturais é
apenas externamente relacionado. Mas o “corpo” é em si mesmo
uma construção, assim como o é a miríade de “corpos” que constitui
o domínio dos sujeitos com marcas de gênero. Não se pode dizer
que os corpos tenham uma existência significável anterior à marca
do seu gênero; e emerge então a questão: em que medida pode o
corpo vir a existir na (s) marca (s) do gênero e por meio delas? Como
conceber novamente o corpo, não mais como um meio ou instrumento passivo à espera da capacidade vivificador de uma vontade
caracteristicamente imaterial? (Butler, 2017, p. 30)
149
Com a necessidade de promover o corpo não mais como meio de
uma conversão imaterial – ele deveria esperar, portanto, a agilidade da
mente para se tornar algo? A inclinação concedida a ele promoveria a sua
utilização não somente como um instrumento, mas um fim em si mesmo.
Novas perspectivas, já retratadas pelo feminismo contemporâneo que
pretende incluir estratégias autônomas e que desprezem as mediações
representativas ou lideradas por protagonistas fixadas, também caminham na mesma corda bamba. Talvez, as narrativas baseadas cada vez
mais na própria experiência individual e que passam a valorizar mais a
insurgência que a própria revolução, sejam, em um primeiro momento,
o que existe de mais assustador, já que não são capazes de delimitar
essencialmente as universalidades.
Retornamos mais uma vez ao gênero fílmico, incorporando agora – a
despeito do título – o fantástico conjugado como um item significativo
para a compreensão desses corpos. Se utilizado em sua compreensão
mais comumente aceita, quando as histórias são centradas em elementos
não existentes ou reconhecidos pela realidade ou ciência de seu tempo, o
fantástico acaba por ir contra a ideia de corpo – como algo que existe, é
palpável e comprovável. Todavia, ao nos presentearmos com narrativas
capazes de descrever um tempo sem o compromisso de reivindicá-lo, o
imaginário previsto dentro da FC brasileira especula sobre o já vivido,
o que se vive e o devir em seu caráter iminentemente relacional, o que
acaba promovendo um tipo de regime de historicidade14 profundamente
contemporâneo: uma material vasto de análise de nosso tempo.
14. O conceito de regime de historicidade utilizado aqui, é entendido a partir das
leituras de François Hartog sobre a nossa contemporaneidade, levando em
consideração, principalmente, a nossa relação com o tempo ou melhor, os diferentes
tempos.
150
Historiador, por lidar com vários tempos, instaurando um vaivém
entre o presente e o passado, ou melhor, passados, eventualmente bem
distanciados, tanto no tempo quanto no espaço. Este movimento é
sua única especificidade. Partindo de diversas experiências do tempo,
o regime de historicidade se pretenderia uma ferramenta heurística,
ajudando a melhor apreender, não o tempo, todos os tempos ou a
totalidade do tempo, mas principalmente momentos de crise do
tempo, aqui e lá, quando vêm justamente perder sua evidência as
articulações do passado, do presente e do futuro. (Hartog, 2013, p. 37)
Proponho aqui que o fantástico estaria ligado a hesitação provocada por essas histórias que podem tratar de fenômenos inexplicáveis
e desafiam nossa capacidade em correlacionar os universos às nossas
vivências. Em Introdução à Literatura Fantástica (1992), Tzvetan
Todorov explica que a hesitação leva a três caminhos diferentes: o
fantástico-maravilhoso, o puro e o estranho. No fantástico-maravilhoso,
pode-se confirmar a existência do sobrenatural e questionar as leis da
ciência; no puro, pode-se ficar sem resposta satisfatória, o que leva a
um processo de insanidade, e no estranho se concede uma explicação
racional que desmascara ou traduz o fenômeno desconhecido em termos
científicos. Nos três caminhos, somos indubitavelmente relegados às
incertezas, ou seja, nada é definitivamente concluído e tudo está em
constante movimento.
Tal movimento relembra o próprio movimento do corpo que é único
e coletivo ao mesmo tempo, graças às ações prefixadas pelo “re”: relembrar, reler, rever, rememorar, ressignificar e outras da mesma gramática.
Na ação de (re) - mais algo, é possível desenvolver outras abordagens,
como bem prevê o alinhamento promovido pela nova história. Por isso
o corpo fantástico que, não só existe na imaginação – para bem contrariar o significado que encontramos no dicionário – é capaz de discorrer
151
sobre um cenário já apresentado, mas nunca antes visto, ou melhor,
categorizado. Em Saudades do Futuro - ficção científica no cinema e o
imaginário social sobre o devir (2013), Alice Fátima Martins discorre
sobre a compreensão do fantástico.
muitos críticos literários e de cinema não consideram ser uma categoria, mas um certo tipo de narrativa que pode ser classificada nas
diversas categorias ou gêneros cinematográficos. De modo que,
nos catálogos diversos, podem ser encontrados filmes de ficção
científica cujas histórias envolvam fantasia, ação, terror, romance,
drama ou cujo tom seja de comédia, dentre outras possibilidades.
(Martins, 2013, p. 22)
Dessa forma, quase como uma sublime história de FC que, na visão de muitos autores começa com um “e se?” e desdobra-se para o
deslumbramento, a extrapolação do que conhecemos por realidade, o
estranhamento sobre o que é apresentado ou um (re)enxergar o mundo
por meio de algo novo está intimamente ligado ao conhecimento que,
muitas vezes renegamos sobre o corpo. A especulação de um corpo que
é impossível categorizar, assim como o gênero, talvez se reverta como
um dos maiores incômodos da humanidade, como afrontar algo que ali
já esteve, não está mais e ainda assim é presente?
Primeiras Considerações
Ao aprovarmos o corpo e os gestos provindos dele como um campo
extenso de possibilidades significativas e que podem servir como ponto
de partida para compreendermos outros aspectos da história, até então
não comumente abordados, admitimos não apenas a extensão de um
152
campo de pesquisa, mas o florescimento de possibilidades narrativas
que foram escondidas, silenciadas ou simplesmente ignoradas.
Nesse sentido, a primeira radiografia desses corpos - identificados a partir de seu papel social no mundo, ou seja, quem são, o que
fazem e como são enxergadas dentro da história – alienígenas, mães,
bandidas, índias falsas, secretarias, etc – não se pretende comprovar
um tipo de subversão ou avanço em suas representações, o que acaba
culminando em uma ideia evolutiva e que prevê julgamentos de valor.
A argumentação deve acontecer simplesmente – não de forma simples,
mas, por isso, complexificada – pelo fato de esses corpos existirem e,
consequentemente, aprovarem a sua história.
Com uma abordagem do fantástico no gênero da FC e das problemáticas de gênero e corpo tão inerentes ao debate feminista, o que se
conclui é: a partir de filmes tão híbridos em temáticas que prefiguram
o uso de artifícios da FC clássica, o gênero, quando transportado para o
terreno brasileiro, está longe de configurar-se apenas como uma cópia
daquilo que já existe, mas aponta para uma dinâmica faminta inerente
a nossa história cultural.
Já o corpo feminino, como elemento presente nessas histórias, profere
um tipo de identificação que não acontece somente pela distância, mas
por aproximações possíveis com o nosso tempo – se a dita história das
mulheres em seu âmbito mais amplo, ainda pretende ter muito para dizer,
o seu corpo não poderia ser diferente. Da mesma forma que a história
é viva, o corpo que a produz também está em constante transformação,
garantindo que as individualidades sejam materializadas em cada respiração e gesto. Essas particularidades, felizmente presentes por meio
do cinema, conseguem e ainda conseguirão agir sobre nossos próprios
153
corpos de forma extremamente íntima, afinal, estudar esses corpos vai
além da catalogação fílmica que se explica pelas representações, estudá-los significa examinarmos a nós mesmas.
Referências
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Campinas: Papirus Editora.
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identidades. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
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vida moderna. São Paulo: Cosac Naify.
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do tempo. Belo Horizonte: Autêntica Editora.
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e o imaginário social sobre o devir. Brasília: Editora UNB.
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subjetividade contemporânea. São Paulo: Estação Liberdade.
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brasileiro (Vol 1 e 2). São Paulo: Edições Sesc São Paulo.
154
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multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify.
Suppia, A. (Org.). (2015). Cartografias para a ficção científica mundial:
cinema e literatura. São Paulo: Alameda.
Todorov, T. (1992). Introdução à literatura fantástica. São Paulo:
Editora Perspectiva.
155
La Representación de la Mujer en los
Documentales sobre Ejecuciones Extrajudiciales
en Colombia. Resultados Preliminares a través
de Impunity (2010), de Hollman Morris y Juan
José Lozano.
Pablo Calvo de Castro1
Ingrid Estíbaliz Sánchez Diez2
Colombia ha vivido los últimos 60 años de su historia inmerso
en un conflicto armado. Este ha tenido como contendientes a grupos
guerrilleros, la fuerza pública -conformada por el ejército y la policíagrupos paramilitares y autodefensas. Además, la influencia del narcotráfico, sobre todo a partir de la década de los 80 del siglo pasado, ha
sido un factor de desestabilización que ha contribuido a complicar más
si cabe un intrincado escenario social. Este conflicto ha modelado un
Estado que, desde la firma de los acuerdos de paz en 2016, afronta la
construcción de un sistema de convivencia en paz en un clima social
1.
2.
Doctor en cine documental en la Universidad de Salamanca.
Profesor PhD a tiempo completo en la Universidad de Medellín.
pcalvo@udem.edu.co
Doctora en Derecho de la Seguridad por la Universidad de Salamanca (España).
Profesora PhD de tiempo completo en la Institución Universitaria Tecnológico
de Antioquia.
sigrid@usal.es
156
fuertemente polarizado entre quienes aceptaron la implementación
de los acuerdos y quienes los niegan por considerar a la guerrilla de
las FARC-EP -firmante junto al Gobierno de Juan Manuel Santos- un
interlocutor inválido.
En este contexto, uno de los hechos vinculados al conflicto que ha
tenido una mayor trascendencia social ha sido el de los comúnmente
denominados como falsos positivos, cuyo término correcto atendiendo
a las definiciones del hecho es el de ejecuciones extrajudiciales, que son
casos reportados por unidades de la fuerza pública como resultados
positivos en la acción contra grupos armados ilegales y que son
reportados en los informes oficiales como muertes en combate ...
pero que posteriormente debido a las denuncias de organizaciones
sociales y defensores de los derechos humanos, de víctimas directas
de los hechos, de familiares de las víctimas […] se han develado
como acciones contra la población civil no combatiente (Centro de
Investigación y Educación Popular, 2009, p. 5)
Sobre los datos referentes a esos casos en el país, aunque existen
distintas bases de datos, el número final de víctimas de esta conducta
no está claro. Se reportan casos desde 1984, fecha de inicio a la sistematización de los reportes de víctimas del conflicto en Colombia. Así,
distintos estudios sitúan el número de personas víctimas de ejecuciones
extrajudiciales por encima de las 5.000 (Bonilla, 2017; Rojas Bolaño
y Benavides Silva, 2017).
Si bien el proceso de paz está visibilizando casos que se remontan
décadas atrás, durante el periodo de vigencia de la Política de Seguridad Nacional -entre 2002 y 2010-, la tasa promedio de estos casos se
incrementó un 154% mientras que la tasa de guerrilleros dados de baja
se incrementó un 52% (Cárdenas y Villa, 2013, p. 65). Este incremento
157
coincide con un aumento de la intensidad del conflicto armado y una
mayor victimización de la sociedad civil, reflejada en el incremento de
las ejecuciones extrajudiciales, que señalaban personas que no pertenecían a ningún grupo guerrillero y eran asesinadas para contabilizarlos
como bajas en combate.
La implantación de la Política de Seguridad Nacional, a partir de
mediados de 2002, tiene como objetivo la protección de la población
y el fortalecimiento del Estado de derecho y la autoridad democrática en todo el territorio mediante la presencia permanente y efectiva
de la autoridad y el fortalecimiento del sistema judicial. No exento
de polémica, en 2003 se propone en el Congreso de la República un
estatuto antiterrorista que amplió las capacidades coercitivas de las
Fuerzas Armadas en el cumplimiento de su deber. Pero sobre todo,
este cambio de paradigma introduce un fuerte viraje en la denominación misma del conflicto armado. Esta denominación es sustituida por
el concepto de terrorismo, y los contendientes del conflicto armado
pasan a ser consideradas como organizaciones terroristas. El contexto
internacional cambió con los atentados del 11 de septiembre de 2001,
que modificaron los parámetros de lucha contra el terrorismo, lo que
afectó al desarrollo del conflicto colombiano, muy condicionado en ese
momento por la financiación y los lineamientos establecidos por Estados
Unidos tras la firma del Plan Colombia. Se produce un fracaso evidente
de los diálogos de paz entre el gobierno de Pastrana y las guerrillas de
las FARC-EP. El gobierno colombiano cede ante las presiones de los
sectores militaristas y los medios de comunicación masivos inician
una campaña de desprestigio de la guerrilla y de apoyo a las medidas
más contundentes y alejadas del diálogo. Estados Unidos cambia los
158
objetivos en la orientación de las ayudas del Plan Colombia, que se
centran en la lucha contrainsurgente y pasa a considerar a la guerrilla
de las FARC-EP como una organización terrorista, calificación que en
el momento de la elaboración de este texto sigue vigente.
El gobierno de Álvaro Uribe Vélez -2002 a 2010- alimenta el mito
de la democracia garantista y el de la inexistencia de un conflicto armado y social. Se señala el terrorismo como la principal amenaza a la
estabilidad democrática y se apuesta por la derrota militar proyectando a la sociedad, a través de los medios de comunicación, los éxitos
militares como el aumento de los caídos en combate (Rojas Bolaño &
Benavides Silva, 2017, p. 23). Así, el incremento de los casos de ejecuciones extrajudiciales es continuo desde 2003 hasta 2007, debido al
vacío institucional derivado de la falta de un mecanismo apropiado de
control sobre las acciones del ejército (Cárdenas & Villa, 2013, p. 65).
En el presente trabajo pretendemos observar -a través la película
Impunity (2010), de Hollman Morris y Juan José Lozano- cómo el cine
documental trabaja intensamente como herramienta de memoria. En
ese necesario ejercicio de generación de memoria, las mujeres como
colectivo inserto en una sociedad estructuralmente machista experimenta
un proceso de representación sobre el que pretendemos arrojar luz, en
tanto asumen una serie de roles como víctimas que contribuyen a una
invisibilización sociales y una homogeneización en cuanto al desempeño
de sus actividades vinculadas al conflicto y al posconflicto.
Las mencionadas ejecuciones extrajudiciales tuvieron como víctimas fundamentalmente a hombres y son las mujeres familiares de esos
hombres las que ejercen las acciones en busca de la verdad y la justicia.
159
A continuación, analizamos la manera en la que son representadas a
través del cine documental.
Marco Teórico
En este escenario, las mujeres han sido parte implicada del conflicto
colombiano, agentes activos, pero sobre todo víctimas de una guerra
inserta en una sociedad estructuralmente machista (Sisma, 2008). Cuando
han sido víctimas, lo han sido de manera múltiple. Víctimas directas de
la violencia, de los desplazamientos forzados, de los asesinatos y las
desapariciones. En los últimos sesenta años, las mujeres colombianas
han sido familiares de desaparecidos, madres, hijas, hermanas, sobrinas...
pero además, víctimas integrantes de las partes del conflicto. Las mujeres
han integrado mayoritariamente las filas de los grupos guerrilleros -de
los que las FARC-EP es el más numeroso-, así como de la fuerza pública. Como integrantes de grupos paramilitares hay registros de apenas
dos centenares de casos (Calvo Camargo, Conde Murcia, & Salcedo
Camargo, 2018) por lo que su presencia en este bando es meramente
residual, aunque las dinámicas son las mismas, ya que
las mujeres hicieron parte de la organización de las Autodefensas ...
cumpliendo el papel de relacionistas públicas, financistas, recaudadoras de impuestos y extorsiones, gestoras de iniciativas sociales, o
informantes. Simultáneamente, algunas se forjaron una reputación
de despiadadas y ejercieron su autoridad de manera vertical y violenta, como cualquier comandante paramilitar. (Centro Nacional de
Memoria Histórica, 2016, p. 44).
La revisión de la presencia y los roles de las mujeres en el conflicto es
amplia (Barros & Rojas, 2015; CNMH, 2016; Diaz, 2008; López, 2009;
160
Marón, 2003; Observatorio de Paz y Conflicto, 2015). Tanto en la
guerrilla como en la fuerza pública las mujeres han tenido que sufrir
la desigualdad y la implementación de estructuras hetero-patriarcales
mediante la jerarquía castrense o directamente a través del abuso. Además, han sido tradicionalmente infrarrepresentadas en la construcción
del discurso histórico a través del audiovisual (Everly, 2016) al que
contribuye el cine documental como también lo han hecho el resto de
formatos, géneros y soportes que hoy alimentan los imaginarios sociales.
El documental en el siglo XXI se desenvuelve en un ecosistema en el
que la denuncia sobre hechos de especial trascendencia y sensibilidad
social son transmitidos en convivencia con fenómenos como el de las
fake news o con lo que Villarroya (2019) denomina como burbuja narrativa, en la que se ofrece una visión unificada y excluyente sobre una
cuestión. Aquella es ingerida por la masa de manera acrítica y firme.
Como contrapeso a estos fenómenos se consolida el documental de autor
que, desde la variedad formal y discursiva, propone enfoques críticos,
reflexivos y personales. Así, el cine documental se ha configurado como
un antídoto contra la amnesia social, un contrapeso de los discursos del
poder, que atesora “recursos y dominio social que, además, requiere del
olvido para legitimarse en su posición de privilegio” (Mendoza, 2005,
p. 10). Y es que la construcción de la memoria histórica implica que
los hechos narrados no sean “meros correlatos de la verdad, sino más
bien que cada individuo se defina en su memoria; es decir, somos una
recopilación de hechos y recuerdos que se entremezclan con lo que
queremos ser o quisimos ser” (Torres Ávila, 2013, pp. 146-147). La
memoria histórica, por tanto, está en poder de “grupos vivos y por ello
[…] en permanente evolución, abierta a la dialéctica del recuerdo y de
161
la amnesia” (Cheroux, 2013, p. 61), dentro los denominados pretéritos
presentes (Huyssen, 2002), que se configuran “como la preocupación
central de la cultura en las sociedades occidentales desde los años
ochenta” (Ortega, 2010, p. 89).
En el momento histórico actual las cuestiones de género están siendo
analizadas en distintos contextos sociales a fin de abordarlas de una manera estructural y salir de esa deuda histórica que arrastran los Estados
de derecho desde el citado modelo heteropatriarcal. En las representaciones que en el presente texto nos ocupan, en las que el cine documental
describe, analiza y reflexiona sobre un hecho de fuerte relevancia social
en un momento crucial para la sociedad colombiana, se corre el riesgo
de construir discursos de la memoria a partir de narrativas y estructuras
modales que perpetúan los cánones de infrarrepresentación femenina,
por lo que este tipo de análisis son de gran importancia para interpelar
dichos discursos en favor del desarrollo estructuras que permitan la construcción de imaginarios sociales desde un plano de igualdad de género.
A partir de este marco el presente trabajo pretende indagar sobre
la manera en la que se produce la representación de las mujeres en el
discurso de la memoria histórica en Colombia y más concretamente
la manera en la que se produce la representación de las mujeres en
los documentales sobre ejecuciones extrajudiciales en Colombia. Por
esta razón, el presente texto desgrana las conclusiones de una película
central del análisis, pero sobre todo aspira a convertirse en un espacio
de discusión sobre los retos que se plantean a la hora de desarrollar
estrategias de representación y espacios de reflexión sobre la memoria
histórica de Colombia a través de una herramienta tan útil como lo es
el cine documental.
162
Así, nuestra hipótesis de partida se sustenta en el hecho de que las
mujeres han sido parte implicada del conflicto colombiano, agente activo, ciudadano, pero sobre todo víctima de una guerra inserta en una
sociedad estructuralmente machista; y de esta forma es representada
en el cine documental colombiano. A partir de este planteamiento de
partida, indagamos sobre la manera en la que se configuran los discursos
narrativos en la generación de memoria histórica sobre las aristas que
conforman uno de los fenómenos históricos más complejos y poliédricos
que han existido.
Metodología
La metodología utilizada parte de un enfoque cualitativo (Flick, 2002)
que, por la especial naturaleza del objeto de estudio así como de la
realidad histórica abordada, tiene un anclaje directo en los Estudios
Culturales (Grossberg, 2010), en tanto estas realidades se conectan
con procesos activos sobre los que las políticas públicas dominantes
parecen impulsar preferentemente proyectos de memoria y reparación
de manera simbólica o puntual, pero sin integrar en el enfoque global
de país-región-ciudad una consideración real de las víctimas ante un
conflicto que ha afectado de manera transversal y cronificada a Colombia
durante más de 60 años.
A través de este enfoque cualitativo se utiliza el análisis fílmico
como herramienta para abordar el cine documental como unidad de
análisis. Si bien el análisis fílmico tiene una amplia trayectoria en el
abordaje de obras de ficción, no ocurre de manera similar en el cine
documental. Por ello, y partiendo de las aportaciones de autores de refe-
163
rencia como Aumont y Marie (1990) Gómez Tarín (2006, 2011), Marzal
Felici (2006), Montiel (2002), Bordwell, Staiger y Thompson (1997),
Martínez-Salanova Sánchez (2003) y Cerdán Los Arcos (2015), ha
sido necesario adaptar esas propuestas analíticas a la idiosincrasia del
cine documental. Para ello tomamos como referencia a autores que han
abordado el cine documental con una concepción latinoamericanista
Burton (1990), Paranaguá (2003), Ruffinelli (2012), Pérez Murillo
(2013) o Gumucio Dagron (2014), partiendo de la concepción regional
del cine documental en la región motivada por la denuncia de las injusticias en un contexto de desigualdad (Calvo de Castro, 2019). Aquí
es donde situamos las películas analizadas, poniendo el énfasis en el
análisis textual, formal y del contexto -tanto argumental como de producción- y aplicando la perspectiva de género (Bengoechea & Calero,
2003; Varela, 2014, 2017).
Como última acotación metodológica, el planteamiento del proyecto de investigación con el que se conecta el presente texto se ancla
en los postulados de la Investigación-creación (Daza Cuartas, 2009;
Arqueros, 2015), en tanto toda la revisión teórica y analítica de contenidos concretos está conectada con el desarrollo de un cortometraje
documental que también utiliza los resultados como parte del desarrollo
argumental.
Como ya hemos comentado, este texto arroja resultados preliminares de un estudio de mayor espectro compuesto por una muestra
de seis títulos documentales. La selección de la muestra parte de un
rastreo sistemático por las bases de datos que incluyen producciones
audiovisuales en formato documental vinculadas con la temática de las
ejecuciones extrajudiciales y los falsos positivos dentro del contexto de
164
representación audiovisual del conflicto en Colombia y las reflexiones
sobre la configuración de mensajes en la generación de memoria histórica
sobre las aristas que conforman uno de los fenómenos históricos más
complejos y poliédricos de la historia reciente del país.
Resultados del Análisis
Impunity (2010) está diseñada como una película documental
con fuerte vocación internacional. Producida por Dolce Vita Films,
Intermezzo Films S.A. - ambas empresas radicadas en Francia- con
el apoyo de Radio Télévision Suisse, relata el conflicto armado en
Colombia a través de los testimonios de distintas familias inmersas en
procesos judiciales sobre los casos que les afectan. Pero, además, frente
a un tema tan complejo y con tantos matices -debido a la cantidad de
actores participantes en el conflicto y a la gran cantidad de tiempo que
ha durado- los directores apuestan por introducir datos que ayuden al
espectador a comprender mejor el contexto en el que se desarrollan los
hechos mediante la narración en off. Esta estrategia aleja la película de
las tendencias asumidas por el documental del siglo XXI, pero fortalece
su capacidad pedagógica y ayuda a entender el tema.
Bajo esta dinámica, la película se estructura en distintas secuencias
construidas a partir de imágenes de archivo de la guerra en Colombia,
los testimonios de las víctimas y los victimarios -en diferentes audiencias en las que las víctimas preguntan por sus casos a los responsables
directamente implicados-, la búsqueda de cuerpos y la situación del
Ejército como fuerza armada encargada, en teoría, de proteger a sus
ciudadanos.
165
En lo relativo a los resultados obtenidos tras el análisis de los aspectos
formales, se observa un tratamiento fotográfico clásico que alterna el
mencionado material de archivo con imágenes de las audiencias registradas con estilo directo y entrevistas de corte canónico -mediante un
plano medio estático, cámara fija y una iluminación sencilla a través
de tres puntos-. La narración introduce el contexto mediante la voz en
off de un locutor con imágenes aéreas del país, sobre todo de las zonas
rurales aisladas en las que solo se percibe selva y bosque, acompañando
el discurso de la impunidad de las acciones de grupos al margen de la
ley ante la incapacidad del Estado para controlar el territorio que está
bajo su responsabilidad. El uso de las imágenes de archivo a menudo
muestra imágenes de violencia explícita y tiene una función descriptiva,
apoyando el contexto en el que se desarrollaron las historias descritas.
A partir de este estilo clásico en cuanto a la estructura narrativa,
cabe destacar la primera secuencia. Propone la confrontación directa
del espectador con el testimonio de una víctima que narra los hechos
relacionados con el brutal asesinato de su hermano menor. A continuación, se aporta información general sobre el conflicto en Colombia para
pasar a la exposición de los hechos cronológicos a partir de las vistas
judiciales y de la tarea del CTI -Cuerpo Técnico de Investigación de la
Fiscalía General de Colombia- en la búsqueda de cuerpos de víctimas,
enterrados en fosas comunes en distintas zonas rurales del país. Las
últimas secuencias conectan las audiencias públicas con la entrega a
los familiares de los restos de los desaparecidos y asesinados.
Esta estructura narrativa que, como hemos mencionado, responde a
patrones clásicos, no incluye un modelo de autorreferencialidad concreto
(Calvo de Castro & Marcos Ramos, 2018) que defina la asunción de
166
un punto de vista determinado en el tratamiento de la historia. Si bien
está claramente definida la postura a favor de las víctimas ya desde el
mismo título de la cinta, es quizá la profundidad, complejidad e intensidad emocional derivada de los testimonios la que excluye una mirada
personalista que genere mayores espacios de reflexión.
En todo caso, se observa claramente la definición del punto de vista
de los cineastas en favor de las víctimas, pero sobre todo en contra de
la impunidad de los victimarios. El rol del victimario es otorgado a la
figura del Estado. Un Estado débil, corrupto y negligente que durante
un periodo determinado colaboró a que distintos sectores políticos,
económicos y militares prestaran ayuda a los grupos paramilitares,
encargados de garantizar la seguridad en territorios donde no tenía
presencia y la guerrilla había tomado el control.
Ese punto de vista de los cineastas plasmado en la película contribuye a la generación de un discurso de la memoria que trata de contrarrestar el discurso oficial. Desde este enfoque y teniendo en cuenta el
momento que vive la sociedad colombiana en cuanto a su relación con
el conflicto armado, Morris y Lozano contribuyen a la elaboración de
un relato primordial que “no puede entenderse como una descripción
de la realidad objetiva externa, sino como una interpretación subjetiva
que dé sentido a la persona que lo elabora” (Villarroya, 2019, p. 166).
Así, se posicionan frente a un tema de gran trascendencia social contribuyendo a la consolidación del cine documental como una herramienta
fundamental para la generación de memoria histórica. En esta fase de
evolución de la construcción del discurso documental, Impunity (2010)
se ocupa de lo urgente abordando el análisis y la descripción de un
conflicto social complejo dentro de un marco histórico que también
167
implica retos a la hora de ser narrado a un espectador neófito. Y esto lo
hace a través de casos particulares en los que las víctimas se encuentran
en pleno proceso de búsqueda de la verdad. Sin hacerlo de una manera
evidente, por lo que no podemos afirmar que los directores desarrollen
una estrategia narrativa ad hoc para cumplir este objetivo, el discurso
descansa sobre la cercanía de las mujeres, para transitar de la voz en
off que se ocupa de los datos generales que permiten al espectador
comprender la realidad descrita, a las historias personales, enunciadas
por las propias mujeres víctimas.
Conclusiones
El discurso desarrollado por Hollman Morris y Juan José Lozano en
Impunity (2010) incluye los tres niveles de desarrollo discursivo propuestos desde el presente texto. Por un lado, ofrece un contexto suficiente
para la comprensión por parte del espectador de un tema complejo y
lleno de aristas. A partir de ahí, los testimonios sobre la situación de las
víctimas se insertan en el encuentro con sus victimarios, en el marco de
los procesos judiciales que se desarrollan a finales del primer decenio del
siglo XXI. Una estrategia narrativa atrevida desde el propio registro de
los testimonios, pero que consigue un levantamiento de evidencias que
contribuye a enriquecer el imaginario colectivo vinculado al conflicto a
la vez que asume una postura de denuncia en apoyo de las víctimas, pero
también de la sociedad colombiana en su proceso frente a los retos que
presenta el camino hacia la paz. Y es precisamente en ese punto en el
que Morris y Lozano introducen ese tercer nivel discursivo, abriendo el
168
discurso hacia espacios de reflexión para los espectadores que acceden
a la obra a nivel nacional e internacional.
Este es un caso en el que la narración documental, como ejercicio de
memoria histórica, conecta los procesos judiciales y de esclarecimiento
de la verdad con ese otro proceso, tan necesario para las víctimas, que
es el de la reparación, sea simbólica o real, entregando los cuerpos y
permitiendo así el proceso de duelo de las familias.
Estos relatos, fundamentales en la generación de la memoria histórica
y de la búsqueda de la verdad, complementan, interpelan y fiscalizan los
discursos que plantean otras verdades como la judicial o la del discurso
oficial que mana desde los estamentos del estado. En un país donde
el conflicto armado ha generado tasas alarmantes de impunidad sobre
actuaciones contra los derechos de los ciudadanos, la verdad judicial
es en ocasiones incompleta y tiende a la generalización de los hechos.
Esa tendencia propicia la propagación del revisionismo histórico para,
finalmente, invisibilizar las historias personales e impedir que las víctimas puedan emprender procesos de normalización.
En cuanto al papel de las mujeres y su representación en este discurso documental que, como hemos mencionado en reiteradas ocasiones, contribuye de manera fundamental a la generación de memoria,
podemos concluir que, si bien tienen un papel protagónico, el discurso
no tiene en cuenta la especial trascendencia de las mujeres en el papel
de víctimas del conflicto. Impunity (2010) deja claro que las mujeres
son agentes del cambio en tanto, como víctimas, mayoritariamente
se configuran como la cara visible del activismo social. Son madres,
hermanas, hijas de desaparecidos y asesinados, pero también engrosan
la lista de efectivos de la fuerza pública y de la guerrilla, por lo que
169
dentro de estas estructuras también sufren el machismo y la discriminación. Lo que no está tan claro es que este discurso tenga en cuenta el
plano de desigualdad estructural del que parte la mujer en el marco del
conflicto dentro de una sociedad también estructuralmente machista.
Sin pretender generalizar datos sobre la generación de discursos de la
memoria a través del cine documental, será interesante observar cómo
en el resto de películas que forman parte de la muestra seleccionada se
desarrollan estos discursos de representación de las mujeres partiendo
de la premisa en de ellas, como víctimas y agentes del cambio, van a
generar nuevas estrategias de representación a través de una herramienta
tan necesaria como es el cine documental.
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Reflexões sobre a Ecologia do Cinema na Era
Digital a partir de Obras de Vibeke Sorensen
Érika Savernini1
1. A Ecologia do Cinema numa Abordagem Arqueológica
Desde seu nascimento, o cinema participa da construção de novas
relações espácio-temporais do homem no mundo. A fragmentação e a
aceleração do mundo, assim como a subjetivação da percepção, chegaram a um ponto crucial na modernidade, especificamente na passagem
do século XIX para o XX, coincidindo com a invenção dos aparelhos
de captura e exibição de imagens em movimento. Nesse momento,
formas de narrativa e entretenimento passaram a organizar a experiência do mundo para o homem, transformando-o, então, em espectador e
consumidor de produtos, mas também do mundo. O cinema é apontado
recorrentemente como sintetizador desse estado de coisas, talvez pelo
fato de seu nascimento estar condicionado à vida moderna.
Acreditamos que o cinema, ao sintetizar espaço e tempo, possa ser
tomado como um tipo de texto sobre o ser e o estar no mundo, tendo
1.
Doutora em Artes – Cinema (EBA – UFMG).
Professora Adjunto IV da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF).
erika.savernini@ufjf.edu.br
176
atuação fundamental na transformação do modo de ser e de estar no
mundo (o habitar) do espectador, durante todo o século XX e a preparação do homem para o habitar do momento atual da tecnologia digital.
Essa leitura é tributária da articulação de duas abordagens da mídia,
a da ecologia e a da arqueologia das mídias.
Segundo Neil Postman (1980), a ecologia da mídia é seu estudo
como ambiente. “A ecologia da mídia analisa a questão de como a mídia
da comunicação afeta a percepção, a compreensão, o sentimento e o
valor humanos, e como nossa interação com a mídia facilita ou impede
nossas chances de sobrevivência. ... Um ambiente é, afinal, um sistema
de mensagem complexo que impõe aos seres humanos certas maneiras
de pensar, sentir e se comportar.”. Postman afirma que em ambientes de
mídia, como rádio, televisão, cinema, etc., as especificações (imposições
humanas) tendem a ser transparentes, e a ecologia da mídia deve tornar
isso explícito. Em relação especificamente ao cinema, destacamos que
a transparência é uma característica fundamental do cinema dominante,
pelo qual o sistema formal do filme é organizado de acordo com os
princípios canônicos – convenções do dispositivo (aspectos técnicos,
arquitetônicos, de linguagem) que foram sendo construídas desde o
final do século XIX (marco do nascimento do cinema) e apagando-se
como convenções. Assim, nos primeiros anos, a linguagem testada e
incorporada de acordo com a resposta do público é naturalizada, assim
como o espaço apropriado de exibição (a sala escura, poltronas, escurecimento etc.) e também as formas de produção se tornando sinônimo
de cinema, quando seria apenas uma de suas possibilidades.
Por outro lado, a arqueologia da mídia é uma metodologia da historiografia que estuda a mídia, não como uma linha evolutiva avançando ao
177
longo do tempo (que organizaria fases da mais primitiva, o nascimento
de tal mídia, à mais avançada, que seria o momento atual). No caso do
cinema, a historiografia tradicional estabelece cada nova tecnologia e/ou
técnica como um estágio passado que inevitavelmente levaria o cinema
ao digital. Em contrapartida, para a arqueologia do cinema, filmes, cineastas, movimentos e até inovações tecnológicas são organizados como
uma árvore genealógica, que se abre em várias direções, que transcorre
no tempo, mas estabelecendo relações entre diferentes momentos, até
revelando as alternativas deixadas para trás, que, no entanto, encontram
ecos no presente. Essas alternativas na historiografia cinematográfica
tradicional são vistas como experiências superadas por formas narrativas de maior sucesso - ou seja, aquelas adotadas pela indústria e pelo
público em geral. Para a arqueologia das mídias, experiências passadas
podem reverberar em diversos outros momentos, inclusive no atual, não
são simplesmente superadas e entendidas apenas como curiosidades
históricas de algo “morto e enterrado”. Vemos, por exemplo, em certas
experiências expandidas de audiovisual contemporâneas, uma retomar
de propostas e/ou formas de trabalhar a imagem em movimento ou sua
forma de exibição que aproximam o início do cinema (fim do século
XIX e início do século XX) com o atual (século XXI).
Leo Charney e Vanessa Schwartz (2001) propõem que não é o Cinema que é moderno, a modernidade seria cinematográfica. Com isso, os
autores entendem que o cinema emerge como uma síntese de transformações impactantes na vida do homem comum nos séculos XVIII e XIX
que o cinema absorverá e transformará. Um dos mais impressionantes
é o divórcio do “casal de fetiche ocidental” (Paquot, s1999), espaço e
tempo. A experiência do trem é exemplar: diante da pessoa imóvel e
178
sentada no vagão, as paisagens passam e são vistas através da moldura
da janela. Pluralidade de visões e movimentos gerados por um aparato
tecnológico; fragmentação e profusão de imagens, gerando incapacidade
de apreender o mundo em experiência direta; o deslocamento temporal ocorre mais curto que o espacial. A experiência do trem prefigura
a do cinema canônico. Talvez por isso, a obsessão do Cinema com o
trem - alguns dos filmes mais importantes dos primórdios mostram os
trens que, por sua vez, representam o momento em que as tecnologias
de deslocamento e comunicação transformaram continuamente a vida
do homem.
Propomos em nossos estudos o conceito de cinema como um local
com evidências de sua própria existência, mas sem existência “concreta”
- concreta dentro de um conceito fisicalista de espaço amplamente aceito
durante grande parte do século XX. Esse conceito está incorporado na
representação do espaço em perspectiva nas Artes, incluindo fotografia
e Cinema. A imagem em perspectiva é tomada como a forma realista de
representação do espaço, pois seria a mais próxima de nossa experiência
sensível do mundo. Como afirma Wertheim (2001), o Renascimento
italiano consolidou, no Ocidente, a representação do espaço em perspectiva como sendo a forma realista. Essa técnica, no entanto, deve ser
vista como a personificação de um conceito de espaço que é amplamente
aceito e se torna o fundamento da percepção ocidental do mundo. Em
suma, a perspectiva (assim como outras formas de representação do
espaço) é um modelo de conhecimento do mundo. Por isso, dizemos
que, ao sintetizar espaço e tempo, o cinema propõe um novo conceito
de homem e de mundo – não só através da narrativa ou da representação
do mundo, é experiência criada pela forma fílmica do espaço-tempo.
179
O que nos leva a noção de Julio Cabrera de que o cinema opera uma
razão logopática (do grego: “logos” - “razão” e “páthos” - “sentimentos”),
por “conceitos cognitivo-afetivos”. Ou seja, o sistema formal fílmico
não apenas representa ideias e o mundo, não apenas ilustra questões
filosóficas, o cinema propõe e expõe conceitos com essa natureza dual,
que apela não apenas às emoções como também, concomitantemente, à
razão; é uma experiência filosófica. Por isso, Cabrera afirma (e com isso
nomeia seu livro principal sobre o assunto): O Cinema Pensa. Ao apresentar sua proposta, Cabrera assinala, embora aborde especificamente
o cinema, que essa razão logopática opera também na literatura, bem
como numa filosofia “dos rebeldes” (os raros filósofos ocidentes que
Cabrera diz que poderiam, inclusive, serem chamados cinematográficos, que “fogem” da tradição da filosofia “profissionalizada”, apática).
Algumas condições permitem-nos afirmar que, desde a sua criação,
o cinema é considerado fundamentalmente realista, tendo o espaço
como um fator determinante. Primeiro, a visão é um dos sentidos mais
importantes para nossa própria percepção de estar no mundo e nossa
existência; relacionado a isso, o cinema é a imagem fotográfica em
movimento mais o som (outro sentido fundamental em nossa percepção
espacial cotidiana). O cinema dominante, refinando suas técnicas de
captura de som e imagem com alta qualidade em um discurso transparente e narrativas “envolventes” (alguns diria, hipnóticas), produziu
(e ainda produz) o envolvimento de um espectador nesse outro mundo
que tem evidências discursivas de existência, mas não é palpável, um
lugar inexistente2. A materialidade peculiar, fluida, da imagem e do som
2.
Que vem a ser a definição de Utopia em Thomas More.
180
cinematográficos, introduzem de forma envolvente, pode-se dizer, de
certa forma imersiva, o espectador em um espaço de natureza [i]material
similar ao que viria a ser o ciberespaço. Em suma, já nos seus primeiros
anos (desde o marco de sua invenção, em 1895, até o início da segunda
década do século XX), o cinema já prefigura o ciberespaço, uma vez que
levou o homem a se projetar em outro mundo ao qual seu corpo físico
não acessa diretamente, mas para onde seus sentidos, mente e pathos
se projetam ativamente. Nesse sentido, o cinema utópico3.
No entanto, grande parte da mística do realismo inerente ao cinema
dependia de uma construção gradual de um cânone: o que geralmente
pensamos e chamamos cinema seria apenas uma de suas formas mais
bem-sucedidas ao longo do tempo. Nos seus primeiros dias, o Cinema
era uma construção coletiva baseada na recepção do público a cada
experiência dos realizadores. Por um lado, é crucial perceber que o
cinema sintetiza o espírito de seu tempo - é um texto “vivo” sobre as
concepções do mundo e do ser do homem ocidental. Por outro lado, a
construção da “linguagem e forma narrativa do cinema” pode ser vista
como um processo de acomodação. Segundo Jean Epstein, o cinema
“se perdeu” quando foi jogado pó de ouro em seus olhos. O diretor
francês se referiu à constituição do modelo canônico de narrativa e,
consequentemente, dos modos de produção, exibição e distribuição,
que fizeram do cinema um meio de comunicação potente. Potente, no
entanto, ao mesmo tempo, disciplinado, relegando à margem (da história
da linguagem e da narrativa, do modelo de produção, exibição e distri-
3.
Essas questões foram desenvolvidas mais longamente na tese de doutorado que
defendemos em 2011, “Cinema utópico: a construção de um novo mundo e um
novo homem”. (Savernini, 2011).
181
buição) a experimentação e a possibilidade de explorar seu potencial
além da espetacularizada forma fotográfica.
O cinema foi insistentemente chamado de grane arte do século XX,
no entanto, o que é/era celebrado restringe-se quase inteiramente à forma
espetacular e fotográfica - a canônica. Segundo Philippe-Alain Michaud
(2014, p. 13) “O filme não se confunde com o espetáculo permitido pela
projeção de imagens em movimento: é, antes de tudo, uma conversão
na maneira de pensar e produzir imagens, não mais baseada na fixidez
e imobilidade, mas com base no movimento e na pluralidade”. Os movimentos de vanguarda/experimentais do cinema em vários momentos
da história, as chamadas novas ondas (a mais famosa, mas não única,
a francesa), o cinema expandido (proposto por Gene Youngblood na
década de 1960) são manifestações bem conhecidas de um cinema
não canônico. O cinema de animação e um cinema experimental mais
radical, além de explicitar (opaco) o que o cinema tradicional torna
transparente, questionam a teoria do cinema como um todo. Essa teoria
seria baseada no cinema como espetacular tanto em termos narrativos e
pelo ritual de ir ao cinema tanto quanto arquitetonicamente e na projeção
de imagens representadas em perspectiva em uma tela bidimensional.
Pasolini diria, em seus escritos sobre cinema, no início dos anos 1970,
que até então, apenas as teorias aplicadas do cinema haviam sido escritas,
uma vez que todas seriam teorias poéticas dos filmes feitos até aquele
momento, enquanto ele diferenciava o cinema (um conceito abstrato e
inacessível) em relação ao filme (que é concreto e apreensivo), numa
relação simétrica à que guardam entre si a Poesia e o Poema. Michaud,
de certa forma, faz um exercício de teoria pura do cinema – que busca
o cinema que está além dos filmes existentes.
182
Refletimos que, embora esteja em todo lugar, estreitamente relacionada a vários momentos da vida das pessoas, a linguagem audiovisual
tradicional (cinema, televisão, vídeo - formas do século XX) não responde mais à experiência de mundo do homem.
A ecologia do cinema que expressa o século XXI apresenta uma
mudança no dispositivo em vários de seus aspectos definidores. Hoje,
observamos que, ainda que sob forte suspeita quanto à sua veracidade, as
imagens em movimento continuam a fornecer (potencial e experimentalmente) uma experiência reconhecível e experenciável de espaço e tempo
pelo espectador. Esse cinema escapa da tela 2D, possui uma imagem
compósita (na construção de personagens compostos por animação e
captura de movimento), não mais configurada dentro dos parâmetros do
espetáculo (aspectos arquitetônicos, narrativos). Pode até não ser mais
chamado de cinema, como alguns autores argumentam, mas acatamos
a proposição de Michaud de que, de fato, nossa concepção de cinema
até agora tem sido muito limitada. Em obras contemporâneas, com
destaque do nosso estudo de caso, a da Vibeke Sorensen, vemos esse
tipo de cinema “expandido” (na concepção de que seria a forma de arte
do movimento e da pluralidade - não apenas em sua forma fotográfica
e canônica) que rompe os aspectos arquitetônicos, técnicos, narrativos
e canônicos do espetáculo.
2. Cinema Digital Além da Forma Canônica
Segundo Parente (2007, p. 05), entende-se a “forma cinema” ou
“cinema convencional” como “um dispositivo complexo que envolve
aspectos arquitetônicos, técnicos e discursivos”. Ou seja, o dispositivo
183
deve ser pensado não apenas quanto aos aspectos técnicos do cinema,
mas nesse conjunto de fatores que envolvem tanto a linguagem e a
narrativa, como os modos de produção, de exibição e de distribuição.
Ramos (2016) propõe que esse conceito (o de dispositivo), bastante em
voga ultimamente por causa do impacto ainda não bem dimensionado
da tecnologia digital sobre a “forma cinema” ou “cinema canônico”, põe
em discussão a própria teoria do cinema e a definição mesma do que é o
cinema, discussão que se estabelece desde o final do século XIX até os
dias atuais, passando por momentos icônicos das vanguardas do início
do século XX, pelo cinema expandido (nos anos 1960), pela videoarte,
pelo cinema experimental de vários momentos. Se o dispositivo do
cinema canônico sustenta-se na projeção de imagens objetivamente
construídas em uma tela, em uma espaço arquitetônico especificamente
construído para esse fim, onde um público acorre para assistir a um
filme, com duração em torno de 1h40 e 2 horas, com uma estruturação
narrativa com princípio, meio e fim na qual prevalece a inteligibilidade da história e a “transparência do discurso”, continua sendo cinema
quando não há mais projeção, ou a projeção acontece fora da sala, ou
quebra-se o transcorrer ininterrupto do filme, ou quando não se narra
“nada”? Retomando, para Michaud (2014), o cinema fotográfico (que
podemos tomar como sinônimo da forma cinema e do cinema canônico)
confundiu-se de tal forma com a definição do que seria cinema, que as
teorias do cinema não dão conta de formas que fogem a esse modelo,
como os momentos das vanguardas, do cinema expandido e do cinema
experimental contemporâneo.
Para Michaud, esses momentos do cinema experimental forçam a
redefinição do que seja cinema, não mais pensado unicamente em sua
184
forma canônica. Temos observado, nos últimos anos, a imagem digital
em movimento ultrapassando as telas do cinema ou propondo a transformação da tela. Talvez por que o digital tenha trazido mais intensamente o audiovisual para a vivência do espectador em seus múltiplos
universos (espaços da realidade sensível, bem como do ciberespaço);
talvez a simulação do tridimensional na tela da sala de cinema tenha
já se esgotado (observemos, inclusive, o esgotamento da produção
contemporânea de filmes em 3D, que se reduziu desde antes do meio
da década de 2010 e não tem agora a mesma projeção comercial dos
anos anteriores).
Em 2017, o premiado diretor mexicano Alejandro González Iñarritu
lançou o projeto Carne e areia, “instalação que ocupa três salas num
híbrido de exposição de arte interativa e simulação de realidade virtual”
(FFW, 2017), que cria para seu público a experiência do imigrante ilegal
na fronteira dos Estados Unidos detido nos freezers (local onde ficam
confinados, muitas vezes, com temperaturas baixas, sem colchão, sem
condições mínimas de conforto). Munido com óculos de realidade virtual e fones de ouvido e uma mochila, o público entra um por um para
passar pelas 3 salas, em cada qual vivencia uma experiência sensorial
(o tato da areia, por exemplo) associada à audiovisual. “Neste cenário,
a simulação em 360º ganha vida nos óculos com o curta de sete minutos
dirigido por Iñarritu, que conta com a direção de fotografia de Emmanuel
Lubezki” – o usuário passa, então, pela situação cotidiana dos imigrantes
de serem surpreendidos e presos na fronteira. Essa instalação mobiliza
concomitantemente razão e emoção para informar e sensibilizar sobre
a situação vivida pelos imigrantes ilegais. Seja entendido como cinema expandido (nos termos de Youngblood e de Michaud, é o cinema
185
que extrapola os limites da forma cinema convencional, não apenas a
expansão das telas) ou como outra experiência, o audiovisual é parte
essencial desse experimento de Iñarritu. Através dos “dispositivos”
de entrada na realidade virtual, do audiovisual subjetivo, associados a
objetos (como a areia) cenográficos, o projeto propõe uma experiência
do corpo físico para dentro um universo de “imaterial”. Também em
2017, o Festival Varilux de Cinema Francês promoveu uma mostra de
filmes de realidade virtual – indicando que esse tipo de experimentação
está acontecendo com cada vez mais frequência. (Festival Varilux de
Cinema Francês, 2017)
Outra forma de transformação da tela e da experiência de ser e de
estar no mundo, foi a campanha “Europe. It’s just next door” (TBWA
Paris, 2013 da SNCF – companhia ferroviária da França - , que distribuiu
portas em espaços públicos em cidades europeias para as quais faz/fazia
viagens regulares. As portas, de diversas cores, tinham apenas o nome
de uma outra capital – sem qualquer instrução ou indicação quanto ao
que se tratava. Ao abrir a porta, no entanto, as pessoas deparavam-se
com uma tela (no formato e tamanho da porta) onde se via, ao vivo,
imagens (também ao vivo) de outra capital e através da qual as pessoas
de cada lado interagiam. Dessa forma, o audiovisual ao vivo (anteriormente característico da televisão e atualmente tornado corriqueiro pelas
conexões em vivo via aplicativos como Whatsapp ou Skype) é deslocado
para o espaço público, em formato e tamanho que busca tornar a tela
“invisível” – as portas são como portais espácio-temporais surpresa.
O mapping, por sua vez, tem permitido que toda superfície seja suporte da imagem (em movimento usualmente, mas não necessariamente),
quebrando a bidimensionalidade e convencionalidade da tela de projeção
186
(uma das características que persiste desde o início do cinema convencional). Em dezembro de 2014, por exemplo, em Sevilha, foi apresentado
o espetáculo multimídia Sonhos da Água (ACCIONA Producciones y
Diseño, 2015 ), durante o qual uma face em arame emerge da fachada
do edifício e fala para o público (é o narrador de uma história natalina),
depois há projeção de cenas lúdicas com a personagem de uma menina
(em animação), a fachada é combinada como se fossem peças de um
brinquedo de montar e no qual um dragão move-se pelas reentranhas
da fachada do edifício e cospe fogo “real” (sincronizando a imagem em
movimento com o lança-chamas) – o espetáculo continua com outras
cenas no mesmo estilo e termina com a face em arame despedindo-se
do público.
Esses são apenas alguns exemplos de experimentos que tencionam a
delimitação do cinema, ainda que entendido como um cinema expandido.
3. Cinema Expandido no Trabalho de Vibeke Sorensen
A obra da dinamarquesa Vibeke Sorensen estende-se ao longo de
mais de 4 décadas de experimentação, de desenvolvimento de projetos
e obras de forma interdisciplinar, no âmbito da arte-tecnologia e uma
preocupação ecológica. Em seu website , Vibeke define-se como “artista, compositora e professora que trabalha com multimídia e animação
digital, estereografia, instalação arquitetônica interativa e performance
de música visual em rede”.
Tomamos sua obra como exemplar de uma produção potencializada
pela tecnologia digital que questiona a própria definição e delimitação do
que seja cinema (canônico), ao realizar a ambição criativa, sem limites
187
entre meios, dos realizadores experimentais ao longo da história do
cinema e dos meios audiovisuais (desde seus primórdios, passando por
vanguardas históricas dos anos 1920, pelo cinema expandido proposto
nos anos 1960, vídeo-arte até o digital).
Em grande parte, influenciada pela noção do cinema expandido de
Youngblood, Vibeke Sorensen expressa uma visão de mundo comprometida com a ideia do planeta como um organismo vivo, da interconexão do seres humanos e de que todas nossas tecnologias também são
natureza – alinhando-se com a Teoria de Gaia e divergindo da tradição
ocidental, que coloca o homem, particularmente graças à tecnologia,
fora da natureza e em oposição. Assim, em seus trabalhos, veremos um
forte caráter multimídia, de criação de imagens sintéticas e compósitas
(que Denis [2010] define como sendo a imagem que mantém integridade/
unidade embora composta por materiais heterogêneos), muitas vezes
em instalações interativas, algumas delas realizadas em tempo real. As
mais recentes instalações, da década de 2010, incorporam além de tudo
dados da web. Essas formas de experimentação expressam as preocupações da artista. Retomando a razão logopática, segundo Cabrera, as
obras não são representações de ideias da artista, as formas artísticas são
o pensamento da artista mobilizando nossos sentidos e racionalidade.
Na instalação Santuário (2005), as imagens produzidas em várias
partes do mundo, tratadas digitalmente para que cada uma seja uma
composição (sobreposição de fotos, interferência gráfica, inclusive
palavras/frases) num espaço interativo.
188
Figura 1. imagens de Sanctuary / Santuário – instalação de Vibeke
Sorensen, 2005. Recuperado de http://vibeke.info/sanctuary/
A concepção de Santuário é assim expressa por Vibeke Sorensen:
O santuário é um ambiente multissensorial dinâmico, onde indivíduos
e grupos podem contemplar e interagir de maneiras alternativas. Ao
incluir plantas vivas, as pessoas são lembradas de que elas também
estão vivas, parte de um ecossistema, e que as ações têm consequências que afetam o todo. E, como as plantas e toda forma de vida,
as pessoas são frágeis e precisam de um lugar de paz e segurança
para sobreviver. O mundo inteiro é um santuário. (Sorensen, 2014)
Reforçando nossa análise da obra de Vibeke como exemplar da nova
ecologia do audiovisual (ou do cinema expandido, conceito caro à artista), destacamos em que aspectos extrapola a forma canônica. A começar
da arquitetura, como instalação, o Santuário quebra a estaticidade da
189
sala de projeção; não há uma narrativa pré-definida ou mesmo uma
narrativa em estrito senso, mas algo está sendo dito, ao mesmo tempo
que proposto como experiência sensorial (não apenas visão e audição,
uma vez que o tato é uma das formas de acionar respostas do sistema);
as imagens, captadas pela artista em várias partes do mundo, passaram
por tratamento, realizando tecnicamente o conceito da conexão planetária defendida por Vibeke.
Santuário tem um princípio parece com uma instalação de 1999,
Morocco Memory II, que também criava um espaço (como uma tenda,
com superfícies de projeção de imagens como paredes) dentro do qual a
presença humana aciona / dispara uma experiência sensorial de imagens,
sons, cheiros das viagens da artista ao longo dos anos, evocando um
conceito sobre a experiência da memória e da cultura visitada.
Na instalação de 2015, Mood of the Planet / Humor do Planeta (que
tem versões de instalações mais móveis – Mood of New York e Mood
of Singapore), e em In Other Wor(l)ds (Em Outros Mundos/Palavras),
de 2018, as instalações contam com a presença humana para o disparar
das imagens e dos sons, mas estes são gerados também pelo software
Pure Data, que transforma informações da web em formas selecionadas.
O Humor do Planeta é uma escultura interativa, uma instalação arquitetônica dinâmica que tem como peça central um grande “arco”
ou “porta” que emite luz colorida e anima em reflexo das emoções
vivas expressas por pessoas de todo o mundo que se comunicam
através redes como o Twitter. Repensa o termo “arte pública” no
contexto da transmídia social transmodal global. O “arco” ou “porta” é icônico e faz referência à transformação do desenvolvimento,
a passagem metafórica de um estado para outro, de crescimento e
mudança que é análoga ao efeito transformador que as tecnologias
de comunicação global têm sobre nossa condição humana coletiva.
O arco também significa transformação humana do meio ambiente,
190
hoje físico e digital, já que essa forma icônica foi usada em culturas
ao longo da história da humanidade. Essa ‹porta› é refletida dentro
de uma sala espelhada na parede, onde é repetida em uma forma de
túnel, uma infinidade de portas que existem como um ciclo sem fim,
ou eco, de passado e futuro no espaço e no tempo, e desmoronando
na presente eterno. (Sorensen, 2014)
Figura 2. Imagens das instalações Mood of the Planet / Humor do
Planeta, 2015 (esquerda) (Recuperado de http://vibeke.info/mood-ofthe-planet/) e In Other Wor(l)ds / Em outros Mundos/Palavras, 2018
(direita) (Recuperado de http://vibeke.info/in-other-worlds/)
Usando o Pure Data, Mood of the Planet, transforma a informação
sobre o estado de espírito predominante do planeta, medido constantemente, em cores, conforme o seguinte código:
191
1. Medo: branco / preto
2. Nojo: marrom / amarelo
3. Felicidade e prazer: verde / ouro
4. Tristeza: azul / cinza
5. Raiva: vermelho / preto
6. Surpresa: padrões e várias combinações de cores
Dessa forma, há uma programação, a construção de um espaço e
dos seus mecanismos, mas a experiência depende da presença de quem
visita a instalação, mas principalmente dos dados coletados na web,
conectando as pessoas e seus estados de espírito. Não há uma narrativa,
ainda que aberta, programada. Como as portas, da “Europe. It’s just next
door” da SNCF, um portal conecta pessoas, mas, no caso de Mood of
the Planet, as pessoas têm uma experiência com dados sob a forma mais
amigável das formas das cores – ou seja, uma conexão entre humanos
entre si e com não-humanos.
A última obra que selecionamos, propõe uma forma de experienciar
formas em ambiente imersivo; Vishwaroop, é um filme curto (com pouco
mais de 4 minutos), criado para projeção em domo (na Universidade de
Nanyange, Cingapura). Sem que haja uma efetiva migração do corpo
para dentro da narrativa, a tela é que se torna a integridade do ambiente
para experiência sem narrativa e sem imagem fotográfica.
O título Vishwaroop (vishwa: universo e roop: forma) é da filosofia
hindu e significa o aparecimento de Deus ou Brahma em formas
que incorporam a criação de mundos e o universo dentro deles. Os
cinco principais elementos do universo na filosofia hindu são fogo,
192
terra, ar, água e éter (espaço). Essa animação é produzida usando o
Pure Data / GEM, e o processo é um sistema emergente em tempo
real que gera continuamente novas formas e inclui esses elementos
como fontes de dados. (Sorensen, 2014)
Figura 3. imagens da animação para domo, Vishwaroop, 2014.
Recuperado de http://vibeke.info/vishwaroop/
4. Breve Apontamento Final
Acreditamos, assim, que, como nos primórdios do cinema na passagem do século XIX para o XX, vivemos um momento de redefinição
da imagem em movimento que reflete e prefigura um novo conceito de
espaço e, consequentemente, um novo modo de estar e de ser no mundo contemporaneamente – que o sociológo Massimo Di Felice (2009,
p. 291) define como o habitar atópico: “O habitar atópico se configura,
assim, como a hibridação, transitória e fluida, de corpos, tecnologia e
paisagem, e como o advento de uma nova tipologia de ecossistema,
nem orgânica, nem inorgânica, nem estática, nem delimitável, mas informativa e imaterial”. O habitar atópico só pode ser pensado sob uma
193
perspectiva ecológica interativa, que descreve uma relação complexa
entre seus membros (orgânicos e inorgânicos) e de indistinção entre si
(em oposição à tradição ocidental de origem europeia “de separação
entre homem-ambiente, homem-técnica, homem-natureza”). Nos termos
de Wertheim (2001), a utopia digital é realmente um outro mundo – as
narrativas fundadoras do imaginário do digital são utopias de migração,
de superação de supostos limites do corpo físico para imersão em um
outro mundo ideal (onde tempo e espaço são controláveis). Assumindo,
como cremos, a proposta de Di Felice de que as redes conectivas, formas
do digital para o Ocidente (embora esse ecossistema conectivo, sem
internalidade ou exterioridade, já esteja presente em algumas culturas
originárias), seriam a forma formante de um habitar atópico. Acreditamos, no entanto, que a imagem compósita do cinema digital (ou cinema
expandido, como vimos na obra de Vibeke Sorensen) já concilia o material e o imaterial em uma unidade, prefigurando esse novo conceito
espacial. A persistência da utopia da migração, da superação do corpo,
revela ainda um pensamento do habitar em sua forma exotópica, da vivência mediada (típica da eletricidade e do cinema). São características
da ecologia do audiovisual, atualmente, as imagens em sobreposição,
a mobilização de sentidos outros (além da visão e da audição), de uma
experiência sensorial que expressa conceitos relacionados à conexão
entre humanos e não-humanos, da natureza/planeta como organismo
total, sem a separação do homem e de suas tecnologias, presentes na
obra de Vibeke Sorensen (como em outras experiências contemporâneas). As frustrações da rede como espelho do mundo físico seriam os
sintomas da persistência de se pensar o digital como um mundo à parte,
ideal, para onde poderíamos migrar e sermos melhores.
194
Referências
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vida moderna (R. Thompson, Trad.). São Paulo: Cosac & Naify.
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urbana e as formas comunicativas do habitar. São Paulo: Annablume.
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(V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Contraponto.
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Trad.). Rio de Janeiro: DIFEL.
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195
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Wertheim, M. (2001). Uma história do espaço; de Dante à Internet
(M. L. X. de A. Borges, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
196
A Comunicação Poética como Proposta TeóricoMetodológica para os Estudos Televisivos1
João Paulo Hergesel2
Em 18 a.C., o filósofo romano Horácio (65 a.C.-8 a.C.) fez uso da
poesia para aconselhar os poetas em suas composições líricas e dramáticas, constituindo assim a Ars Poetica, uma epístola dirigida aos
Pisões. Nas palavras de Lúcia Sá Rebello (2014, p. 272), “para ele não
basta ao poeta apenas o talento; faz-se necessário, também, a presença
da técnica, do trabalho, da prudência e da sabedoria, para que o ideal
poético seja atingido”.
As percepções acerca do poético, no entanto, transformaram-se com
o passar dos anos: acreditamos, nesse sentido, que é inviável estipular
normas sobre como fazer poesia, pois a poesia surge da afronta às regras.
Além disso, é sensato considerar que a poesia não se restringe ao poema;
1.
2.
Capítulo vinculado ao projeto de pesquisa Arte e inovação na televisão brasileira:
discursos, poéticas e tecnologias da TV Cultura, em desenvolvimento no Programa
de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e Arte (PPG-LIMIAR) da Pontifícia
Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) desde 01/02/2020.
Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguagens, Mídia e
Arte da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas).
Doutor em Comunicação (UAM).
joao.hergesel@puc-campinas.edu.br
197
a poesia não pode ser limitada a versos e estrofes, a rimas e métricas, a
formas textuais pré-estabelecidas ou estruturas linguísticas inflexíveis.
Como exemplo da poesia que se manifesta no cotidiano, na fala
coloquial, descomprometida de qualquer gramaticalidade normativa,
Jakobson (1976, p. 128) registra:
Uma moça costumava falar do ‘horrendo Henrique’ ‘Por que horrendo?’ ‘Porque eu o detesto.’ ‘Mas por que não terrível, medonho,
assustador, repelente?’ ‘Não sei por que, mas horrendo lhe vai melhor.’
Sem se dar conta, ela se aferrava ao recurso poético da paronomásia.
A paronomásia, enquanto recurso estilístico, é a aproximação sonora
de palavras com sentido distintos – no caso do exemplo: “horrendo”
harmoniza-se fonologicamente com “Henrique”. O estudo do estilo vem
ao encontro desse raciocínio, uma vez que, de acordo com Bally (como
citado em Delas & Filliolet, 1975, p. 33): “A estilística abrange o domínio inteiro da linguagem ..., não é o estado de uma parte da linguagem,
mas da linguagem como um todo, observada de um ângulo particular”.
Isso nos leva a questionar: existem relações entre poesia e televisão?
Se sim, que relações são essas? Elas ocorrem apenas em produtos específicos ou se estendem às obras convencionais, consideradas corriqueiras,
focadas em entretenimento e sem compromisso com o caráter artístico
e/ou experimental? Tais inquietações foram o estopim para uma pesquisa acerca dos elementos poéticos na produção televisiva brasileira.
O objetivo geral deste trabalho, portanto, é investigar a presença
do poético na comunicação televisiva, a partir de cenas extraídas de
reportagem veiculada no programa Fantástico (Rede Globo, 2020).
Especificamente, objetiva-se: revisitar os conceitos acerca de comuni-
198
cação poética; resgatar mecanismos de análise focados na narrativa e
no estilo de programas televisivos; e aprofundar as observações acerca
da cultura audiovisual no Brasil.
Para essa empreitada, propõe-se um diálogo entre as reflexões sobre
o poético nas mídias, as estruturas narrativas e os recursos estilísticos
voltados aos programas televisivos. Aparentemente inédito no campo,
este estudo mostra-se pertinente para ampliar as possibilidades de compreensão das produções televisivas, tendo em vista o impacto social que
tais produtos estimulam na sociedade latino-americana.
1. Como Conceituar o que se Entende por “Comunicação Poética”?
Definir poesia não é tarefa objetiva, especialmente por se tratar de um
fenômeno mais abstrato do que concreto, mais íntimo do que coletivo,
mais afetivo do que intelectual, mais áureo do que físico. De acordo com
o dicionário Le Robert (como citado em Delas & Filliolet, 1975, p. 9),
poesia é a “arte da linguagem, geralmente associada à versificação, que
visa exprimir ou sugerir alguma coisa através de combinações verbais
onde o ritmo, a harmonia e a imagem têm frequentemente muito mais
importância do que o próprio conteúdo inteligível”.
Ao expandir essa definição para outras instâncias comunicacionais
e dissertar sobre o que seria a “comunicação poética”, Pignatari (2011,
p. 17) recorre à teoria jakobsoniana para registrar: “Fazer poesia é transformar o símbolo (palavra) em ícone (figura)”. E acrescenta: “Mesmo
quando parece estar veiculando ideias, ele está transmitindo a qualidade
do sentimento dessa ideia. Uma ideia para ser sentida e não apenas
entendida, explicada, descascada” (Pignatari, 2011, p. 18).
199
Silva (2011), amparada pelos estudos de Lotman (1978), defende
que o poético transcende a arte, estando presente em outros tipos de
texto, inclusive o texto midiático, o que o permite ser polissêmico –
portanto, complexo – e, ao mesmo tempo econômico – portanto, com
grande densidade informacional. Ainda segundo a autora, o texto poético, sendo de maior complexidade que a língua natural, contém uma
estrutura própria, sendo sua forma inseparável de seu conteúdo, e ambos
inexistindo fora dessa estrutura.
Explorando essa ideia de complexidade, que não deve ser entendida
como sinônimo de dificuldade de decodificação, mas com uma forma
de plurissignificação, Silva (2011) caracteriza o texto poético como
aquele que transcende a linguagem verbal, transcende os suportes,
multifacetada, que se desvela e logo se re-vela.
Com o apoio dessas visões, fundamentamos a comunicação poética
como um processo que extrapola as formas, rompe as estruturas, inova o
conteúdo, rebela-se perante a dureza da objetividade simplista e recorre
a elementos sonoros, lexicais, imagéticos, semânticos, motivando as
estripulias expressivas e estimulando os sentidos múltiplos. É por meio
comunicação poética que se promove tanto o efeito de leveza quanto o
de angústia, tanto o de aconchego quanto o de perturbação; enfim, que
suscita a afetividade pelas diferentes modalidades linguísticas.
2. Como Estudar a “Textura” das Produções Televisivas?
Estudar televisão é um esforço recente nas ciências, principalmente
por essa mídia não ser tão longeva quanto o rádio, o teatro ou o livro.
Além disso, por ter conteúdos que circulam em fluxo contínuo (progra-
200
mas seguidos de programas, imagens em movimento constante, sons
que não se paralisam; a cada milésimo de segundo, milhares de pixels
de informação), o volume de material é praticamente impossível de
quantificar com exatidão.
Uma possibilidade racional de compreender as produções televisivas
é selecionando corpus, isto é, programas ou atrações que se destacam à
vista do pesquisador por algum motivo especial. Dentro desse corpus,
selecionam-se recortes, ou seja, momentos que merecerão uma observação
mais aprofundada, a fim de destacar fatores pertinentes ao campo dos
estudos televisivos (e consequentemente, ao antro científico e à sociedade).
Para Machado e Veléz (2018, p. 17) “teoricamente qualquer programa
de televisão [pode] ser objeto de análise, pela simples razão de que fio
para o ar e, portanto, deve ter sido visto por um certo número de espectadores”, o que o faz se constituir como fenômeno comunicacional e
cultural. Ressaltamos, com isso, que desde o mais corriqueiro comercial
de panela de pressão até a mais concentrada minissérie artística, todas
as produções televisivas podem se tornar material para estudo científico.
Variados são os procedimentos e métodos utilizados para entender os
fatos e fenômenos da televisão, que costumam variar de instituição de
pesquisa para instituição de pesquisa, de pesquisador para pesquisador.
O olhar adotado para este trabalho é o da Narratologia combinada com a
Estilística – em outras palavras, enxergamos as produções televisivas como
narrativas que se constroem de forma independente, com estilos próprios,
que podem coincidir de acordo com a equipe envolvida na sua criação.
Em se tratando de narrativa de ficção seriada, um dos métodos
para seleção das cenas a serem estudadas é descrito por Pucci Jr. et al.
(2013, p. 97): “basta que se analisem os pontos nodais da trama, isto é,
201
aqueles que podem conter os elementos necessários para que se atinja
o objetivo da investigação”. Rocha (2017, p. 304) sugere uma observação dos eventos narrativos da obra, “tais como casamentos, romances,
negociações empresariais, traições, disputas de poder, etc. – que podem
ou não durar vários capítulos”.
Seguindo uma linha de raciocínio semelhante, Ferraraz e Magno (2019)
recorrem à visão de análise do estilo: adotam como base sua aplicação
ao cinema, como proposta por Bordwell (2013), e a transpõem para a
televisão. Para os autores, que aplicam esse método a uma série norte-americana, essa técnica se torna “uma possibilidade de se tratar estratégias narrativas e temáticas recorrentes como propriedades estilísticas
também” (Ferraraz & Magno, 2019, p. 152).
Torna-se necessário, porém, levar em consideração o alerta de Machado
e Vélez (2018, p. 18): “É preciso deixar que o produto audiovisual se
revele para o analista com a força de seus próprios enunciados”; nesse
sentido, fica claro que diferentes programas televisivos tendem a “requerer
métodos diferenciados de abordagem” (Machado & Vélez, 2018, p. 18).
A discussão da comunicação poética em produções televisivas, portanto,
será útil somente para objetos que apresentem parcelas de poeticidade.
3. Como Observar a Presença do Poético na Televisão?
Se a poesia surge do desvio, da quebra de regras, do que se escapa
à regularidade do rotineiro, surge uma problemática quanto à criação
de uma estrutura para identificá-la ou de categorias para classificá-la.
O que costuma acontecer é sentirmos o poético, saber que ele se faz
202
presente, mas não encontrar uma explicação concreta de onde exatamente ele está ou por que ele se manifesta.
Essa dificuldade metodológica relacionada ao poético é pontuada
por Delas e Filliolet (1975) ao discutir sua aplicação no texto verbal:
“inexiste uma norma linguística para medir o desvio, ao passo que é
perfeitamente viável uma estilística que se proponha, como objeto de
estudo, os procedimentos expressivos de um estado da língua”. Em se
tratando de outras linguagens, os aspectos expressivos podem se manifestar nas mais distintas funcionalidades.
Restringindo a discussão aos programas televisivos, é muito comum
que, ao assistirmos a uma telenovela, a um programa de auditório, ou
ainda, a uma matéria jornalística, sintamos certo toque, certo contato
sensível, certa afetividade. Podemos não saber como nomear exatamente o que acontece, mas é fato de que existe um bailado de emoções
interagindo entre nós (no posto de consumidores do que está sendo
exibido) e a televisão.
Esse movimento de percepção, muito mais ligado ao sentir do que ao
entender ou encaixar em uma lógica pronta, é o primeiro passo para uma
observação do poético na mídia televisiva. Por mais que possa parecer
contraditório associar o subjetivismo ao estudo científico, “a metodologia de cruzar análises interpretativas livres (do pesquisador) com a
cultura objetivada, material ou imaterial (do objeto em questão) é um
procedimento que tem dado resultados criativos e sociologicamente
consistentes” (Castro & Dravet, 2014, p. 37).
Como amostragem do dissertado, selecionamos uma reportagem veiculada na revista eletrônica Fantástico (Rede Globo), em 01 de março de
2020. Trata-se do documentário Mulheres trans presas enfrentam precon203
ceito, abandono e violência (Fantástico, 2020a), comandado pelo médico
oncologista Dráuzio Varella. Com pouco mais de 13 minutos, o conteúdo
jornalístico criou uma narrativa que repercutiu positivamente nas redes
sociais virtuais, em especial quanto à reeducanda Susy Oliveira Santos.
Após confessar a Dráuzio que está detida há 8 anos e que nunca
recebeu qualquer visita, diversas pessoas se movimentaram para escrever cartas (G1 SP, 2020) e juntar dinheiro para ajudar a reeducanda
(Marques, 2020). Essa movimentação é uma amostra de como a linguagem audiovisual, por meio da mídia televisiva, atingiu a afetividade
das pessoas (inclusive a do pesquisador enquanto público) – o que nos
dá um indício de que os elementos poéticos se fizeram presentes de
alguma forma e merecem ser observados.
Até o momento, então, tivemos a percepção de que algo provocador
de sensibilidades esteve presente na reportagem veiculada pela Rede
Globo, o que nos levou a selecioná-la como corpus. A partir do conhecimento de que determinado momento da narrativa criada – a entrevista
com Susy Oliveira Santos – repercutiu de modo favorável na sociedade,
localizamos nosso recorte.
A partir de então, cabe-nos discorrer sobre esse objeto de estudo
para compreendermos o que se está contando, o modo como é contado
e o contexto em que se contou. Verifica-se, portanto, que o programa
consistia em apresentar o cotidiano contemporâneo (tempo) de mulheres
transgênero que vivem em penitenciárias (enredo), tendo como foco o
Centro de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo (espaço), por
meio de entrevistas entre algumas delas (personagens) e comentários
do Dráuzio Varella (narrador).
204
Tal empreitada ocorreu em um momento histórico-social no qual vem
se falando acerca das culturas ativistas, do enfrentamento às práticas
de apagamento cultural, de lutas contra o silenciamento das minorias.
Nesse contexto, a transgeneridade, segmento do grupo LGBT+, entra
em evidencia para contribuir com discussões contra o preconceito e
instituir uma cultura de respeito entre a humanidade.
Entre personagens que relatam suas experiências (escolares, profissionais, conjugais) dentro das celas em que vivem, destaca-se Susy,
que se tornou a protagonista dessa história, ao iniciar sua fala com a
revelação: “Na cadeia, você é obrigada a se prostituir por uma pasta de
dente, um sabonete, um prato de comida”. Nesse momento, o registro
audiovisual é feito com a mulher em primeiro plano, cabelos amarrados, uniforme da detenção, expressão facial vazia e sofrida (Figura 1).
Figura 1. Susy se apresenta a Dráuzio Varella. (Fantástico, 2020b).
Direção de Bruno Bernardes.
A frieza das cores, a saturação mais voltada ao cinza, a maquiagem
discreta e a ausência de trilha musical de acompanhamento são fatores
205
estilísticos que tendem a enfatizar o efeito de distanciamento, exclusão,
melancolia. A narrativa segue com a mise-en-scène revelando o ambiente
em que narrador e personagem se encontram: entre um maquinário,
representação do proletariado, da mão de obra industrial, do trabalho
pesado (Figura 2).
Figura 2. Susy e Dráuzio conversam próximos a uma máquina de
produção industrial. (Fantástico, 2020b). Direção de Bruno Bernardes.
Quando interrogada sobre haver alguma forma de a travesti não
precisar se prostituir ao entrar na cadeia, Susy é direta: “No início,
não, porque nós não tem oportunidade. O preconceito é muito grande”.
No registro de sua fala, a variação linguística voltada ao coloquial, ao
desconhecimento da norma padrão do idioma, tende a acentuar a simplicidade da personagem, denotando uma pessoa de origem humilde.
Com corpo fragilizado, Susy revela outra verdade: “A partir do
momento em que você assume que você tem alguns problema de saúde,
o preconceito ainda aumenta um pouco mais”. A personagem se expõe
como soropositiva e sobrevivente de tuberculose, mas esclarece que
206
sempre teve, na prisão, acompanhamento de médicos. Como forma
de endossar sua fala, o vídeo nos mostra Susy realizando exames com
uma médica (Figura 3).
Figura 3. Susy realiza exames junto à médica da instituição. (Fantástico,
2020b). Direção de Bruno Bernardes.
Até o momento, o que se percebe é que a narrativa que vem sendo
construída apela para a elegia, uma forma de construção textual voltada aos eventos tristes, possivelmente com a finalidade de fazer com
que o espectador estabeleça certo nível de ternura com a personagem
retratada. Os recursos estilísticos, tanto na forma como as cenas são
registradas como no modo em que a montagem é realizada, visa ao
pleonasmo visual do que está sendo contado, reforçando, sobretudo,
as características frágeis da personagem.
Percebemos as nuances do poético, mas sentimos que ele ainda
não se manifestou por completo. O que nos parece é que ocorre uma
preparação de atmosfera e ambiência – que, de certa forma, também
fazem parte da poesia – para que a instância se desperte mais adiante.
207
E é após a exibição de outras cenas que Susy volta ao foco da narrativa:
ela é reapresentada em uma câmera que se move da esquerda para a
direita, mas que a registra entre engradados, sugerindo sua privação de
liberdade (Figura 4).
Figura 4. Susy é reapresentada, atrás de um móvel engradado (Fantástico,
2020b). Direção de Bruno Bernardes.
Questionada por Dráuzio, Susy reafirma que precisou se prostituir
até conseguir um emprego, o que levou em média quatro anos e meio.
Posteriormente a isso, explica ao médico como é o trabalho que realiza
na penitenciária, à medida que imagens revelam os processos executados
pela reeducanda (Figura 5): ela junta algumas borrachas, coloca-as na
forma e prensa, para resultar numa placa para vedação de cano.
Ainda que a edição de vídeo tenha optado por escolhas técnicas para
transformar em imagem o que a fala da personagem descreve, o enquadramento em câmera baixa, o brilho do suor na face de Susy, as luvas
grossas ocupando até metade de seus braços finos, o cenho franzido,
indicando esforço e atenção, o maquinário de metal ocupando quase
208
metade do quadro, a dimensão de um galpão frígido, o barulho do aço
batendo são alguns aspectos estilísticos que tendem a dizer: Susy é uma
mulher dedicada e trabalhadora.
Figura 5. Susy é reapresentada, atrás de um móvel engradado (Fantástico,
2020b). Direção de Bruno Bernardes.
A narrativa explora as outras linhas de enredo iniciadas e, quando
retorna à entrevista com Susy, descobrimos que ela está separada, mas
não por vontade própria, e sim por força maior: “Transferiram meu
marido para outro presídio”. Adentramos o campo do sentimentalismo,
das relações afetivas, de explorar as emoções internas da personagem em
relação ao que elas podem provocar de identificação em quem assiste.
Dráuzio vai a fundo e questiona há quanto tempo ela não recebe
uma visita. As mãos de Susy ficam inquietas e ganham um registro em
plano detalhe (Figura 6). Sua fala se torna embargada e ela responde:
“Oito ano, sete ano, bastante tempo”. Ela é registrada em primeiríssimo
plano: seus olhos ficam marejados, sua expressão releva um choro preso,
e há um silêncio total da trilha sonora (Figura 7).
209
Figura 6. As mãos de Susy ficam inquietas (Fantástico, 2020b). Direção
de Bruno Bernardes.
Figura 7. A expressão de Susy demonstra comoção (Fantástico, 2020b).
Direção de Bruno Bernardes.
Surge, aqui, o clímax da elegia criada: além de sofrer preconceito
social por sua orientação de gênero, Susy – que também passou por
diversos abusos sexuais, sobreviveu a doenças graves, foi afastada do
amor conjugal, dedica-se a trabalhos pesados – revela viver em solidão:
sem amigos ou parentes que possam visitá-la e lhe dar um conforto. É o
210
momento que a narrativa arremessa reflexões sobre o caráter humanitário que existe em cada um de nós, atravessando as emoções, gerando
comiseração.
O silêncio de um Dráuzio sem respostas, possivelmente impactado
pela realidade com que Susy precisa lidar, é quebrado com o lamento:
“Solidão, né, minha filha?”. A reeducanda consente cabisbaixa. O entrevistador, que até então colocava-se na posição de narrador observador,
apenas guiando a trajetória de vida das personagens, dissolve as barreiras
invisíveis e torna-se um personagem intruso, invade a história, assume-se homodiegético, e propõe um desfecho calcado na demonstração
de afeto: um abraço.
Figura 8. Dráuzio e Susy se abraçam ao final da entrevista (Fantástico,
2020b). Direção de Bruno Bernardes.
A toalha cor-de-rosa nas mãos de Susy, usada para enxugar o suor da
labuta e as lágrimas do sofrimento, destaca-se em meio à camisa branca,
de Dráuzio; uma árvore de sentimentos humanos invade o deserto da
neutralidade jornalística. Existe uma mescla de conexões simples, mas
211
infinitas; líricas e, ao mesmo tempo, lúgubres; potências comunicativas
em desencontro consigo próprias, mas que se (re)encontram nos múltiplos sentidos gerados. Podemos, inicialmente, não entender muito bem
o que acontece, mas sabemos, de pronto, que algo está acontecendo.
Instaura-se, aí, o poético.
Considerações Finais
Falar de poético na mídia é solicitar a intervenção de diversas áreas
do conhecimento: Linguística, Literatura, Filosofia, Comunicação, Sociologia, Artes, entre outros espaços possíveis. Neste trabalho, acreditamos ter investigado a presença do poético na comunicação televisiva,
a partir da construção estilística de uma personagem-sujeito em uma
narrativa-reportagem veiculada pelo Fantástico (Rede Globo), sobre o
cotidiano das mulheres transgênero em penitenciárias brasileiras.
Num primeiro momento, revisitamos os conceitos acerca de comunicação poética, para que pudéssemos compreendê-la como um processo
que extrapola formas, rompe estruturas, inova conteúdos e desconstrói
objetividades. Em seguida resgatamos alguns mecanismos de análise
oriundos da Narratologia e da Estilística, pontuando que entendemos
as produções televisivas como narrativas que se constroem de forma
independente, com estilos próprios, que podem coincidir de acordo com
a equipe envolvida na sua criação.
Por fim, analisamos o recorte proposto, com base no que veio sendo
discutido acerca da composição do poético e do modo como as análises
narrativas e estilísticas podem colaborar com esse tipo de abordagem.
Esperamos que, com essas reflexões, tenhamos ampliado as observações
212
acerca da cultura audiovisual no Brasil e motivado trabalhos futuros
envolvendo a instigante relação entre poesia e televisão.
Referências
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da comunicação: trajetórias investigativas (pp. 273-291). Porto
Alegre: EdiPUCRS.
214
A Invisibilidade dos Corpos Femininos: a Cidade
e os Afetos no Filme A Vida Invisível
Bárbara Pina de Cabral1
Lorena da Silva Figueiredo2
Corpos Femininos e os Devires Afetivos
Este artigo se propõe a refletir sobre a invisibilidade dos corpos
femininos presente na obra cinematográfica A vida invisível (2019), do
diretor Karim Aïunouz, e as relações entre as mulheres na cidade do
Rio de Janeiro durante os anos 1950. A análise busca compor uma cartografia afetiva dos devires ao fazer conexões entre as ideias propostas
por Michel Foucault, Jacques Rancière e Simone de Beauvoir com o
objetivo de compreender os modos de existência e aparência dos corpos
femininos na sociedade brasileira daquela época.
O filme é uma obra baseada no primeiro romance de ficção de Martha
Batalha com o nome original de A vida invisível de Eurídice Gusmão. A
adaptação para o audiovisual teve a princípio a primeira mudança com
o título ao ampliar as vozes dessas mulheres presentes na narrativa. A
1.
2.
Mestre em Comunicação Social pela linha de Imagem e Som pela UnB.
barbara.pcabral@hotmail.com
Mestranda em Comunicação Social pela linha de Imagem, Estética e Cultura
Brasileira pela UnB.
lorena5.figueiredo@gmail.com
215
obra cinematográfica narra a história de Guida e Eurídice, duas irmãs
de família de imigrantes portugueses moradoras do Rio de Janeiro.
Enquanto Guida se muda para a Grécia em busca de viver um grande
amor, Eurídice se casa, e as irmãs terminam separadas pelos princípios
conservadores referentes àquele período.
Neste sentido, a narrativa salienta aspectos assimétricos em relação
aos modos de existência do feminino e do masculino ancorados principalmente na moral, isto é, em um código de conduta fixo que busca
delimitar a liberdade de cada gênero. Observa-se que esses aspectos
não são apenas demarcados na esfera pública, em relação aos direitos
civis das mulheres, por exemplo, mas na esfera privada (o sexo, a maternidade, o âmbito doméstico), aquela parte da vida que ninguém vê,
que não serve ao mundo das aparências, típica dos anos 1950 no Rio
de Janeiro3. “As mulheres, que estão na maior parte do tempo ausentes
desses lugares [públicos], desaparecem consequentemente do relato
histórico. Há, nessa história, uma espécie de encobrimento do âmbito
privado e do cotidiano” (Perrot, 1995, p. 14). A exclusão das mulheres
da vida pública é justificada pela maternidade, esta serviu ao patriarcado
como desculpa para que as mulheres ficassem no espaço doméstico,
distante das decisões, quando, na verdade, o inverso acontecia: não
podiam participar da política, do trabalho ou das discussões, e, então,
acabavam optando pela maternidade. É desta forma que o filme A vida
invisível salienta diretrizes coerentes com a teoria feminista, ao mostrar
como narrativa principal a vida cotidiana de mulheres daquela década.
3.
O casamento de Eurídice parece perfeito para os de fora: amigos, família,
conhecidos. Quando se entra na intimidade, destaca-se fortemente a assimetria
entre os desejos da esposa e do marido.
216
Destaca-se ainda a presença do corpo feminino como prisão, haja
vista que é a partir dele que o constructo social referente às mulheres é
formado, engendrando papéis, cerceando a liberdade, inclusive a sexual,
momento talvez de maior potência criativa de um corpo, potência que
se limita à condição biológica imposta: a maternidade – no caso de
Eurídice, a maternidade foi resultado de um ato sem prazer. De Beauvoir,
contemporânea à personagem principal da obra analisada, afirma que:
Essa frustração sexual da mulher foi deliberadamente aceita pelos
homens, vimos que eles se apoiavam em um naturalismo otimista
para resignar-se facilmente aos sofrimentos dela: é seu quinhão, a
maldição bíblica, confirma-os nessa opinião cômoda. As dores da
gravidez – esse pesado sacrifício exigido da mulher em troca de um
rápido e incerto prazer – chegaram a ser o tema de muitas piadas.
“Cinco minutos de prazer, nove meses de desgraça... Entra mais
facilmente do que sai” ... Compreende-se , portanto, que os homens
não tenham tido nenhum escrúpulo em negar a sua companheira a
felicidade sexual. (de Beauvoir, 2016, p. 198)
Nessa perspectiva, uma mulher é um corpo destinado ao casamento,
ao prazer do marido e à maternidade. Enquanto o homem é uma alma,
um sujeito, repleto de subjetividade e desejos. Essa distinção binária
entre mente (alma) e corpo (matéria) ancora-se na perspectiva falocêntrica, em que um se sobrepõe ao outro: a mulher enquanto corpo seria
inferior ao homem enquanto mente, ser.
Em uma leitura calcada na teoria feminista pós-estruturalista
(Butler, 2016, p. 36), o corpo não corresponde a uma simples matéria
passiva, pronta para ser tomada por uma substância superior (mente/
alma). O corpo é substância desejante e ativa, capaz de afetar e ser
afetado, de produzir significado e de romper limites constitutivos.
217
Levando em consideração essa premissa, a narrativa analisada não
se prende apenas à crítica do status quo estabelecido pela moralidade
daquela época – demonstrando os vários atos de opressão em relação às
mulheres seja no trabalho ou em casa –, mas busca mostrar rompantes
que são respostas à essa opressão. O exercício do poder é calcado na
coerção e na resistência (Foucault, 1989). Dessa forma, o objetivo desta
análise é entender onde se encontram os afetos dos corpos femininos
nesse filme e como eles foram invisibilizados – seja no discurso, seja
na linguagem. Para isso, é necessário entender a relação desses corpos
não só com os outros, mas, principalmente, com o espaço que ocupam,
tendo em vista que é por meio do espaço que os encontros e desencontros
acontecem, mote principal do filme.
O longa-metragem ocorre em meados dos anos 50, quando o Rio de
Janeiro era a capital do país. O imaginário coletivo criado em relação à
cidade apresenta uma visão tropical, o desenvolvimento da Bossa Nova4
e os conceitos de exportação da imagem do Brasil fundamentados em
uma classe elitista presente na época. No entanto, o Rio de Janeiro sofria
com a falta de planejamento e o aumento de áreas ocupadas nas regiões
dos morros, resultantes do crescimento desordenado. A população se
via órfã do Estado e sem possibilidade de partilhar o sensível.5
4.
5.
Bossa Nova foi um movimento musical brasileiro com origem na segunda metade
dos anos 50 no Rio de Janeiro. Teve como precursores os nomes de Vinícius de
Moraes, Tom Jobim e João Gilberto.
Denomina-se partilha do sensível o sistema de evidência sensíveis que revela,
ao mesmo tempo, a existência de um comum e os recortes que nele definem
lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa, portanto, ao mesmo
tempo, um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e
dos lugares se funda numa partilha de espaços, tempo e tipos de atividades que
determina propriamente a maneira como um comum se presta à participação e
como uns e outros tomam parte nessa partilha (Rancière, 2005, p. 5).
218
Em esfera global, após o fim da Segunda Guerra Mundial, o mundo
se reconfigurou em dois sistemas político-econômicos, capitalismo
versus socialismo, que compunham a Guerra Fria. O Brasil aderiu ao
sistema capitalista e a expansão urbana se torna um sinônimo de desenvolvimento em algumas regiões do país, com a inserção da indústria
automotiva, mas atrelada à segregação de direitos à cidade. Observamos
a trajetória dessas mulheres no filme subjugadas desde o nascimento até
a morte aos moldes patriarcais, corpos invisíveis a qualquer conquista,
normatizados e sem chances de vazão ao seus desejos, o que restringe
toda a potência de agir e, consequentemente, a presença de afetos.
Fundamentados na Ética de Spinoza, os afetos se tornam um elemento
essencial à vida do homem e de seus comportamentos de acordo com
a maneira de individualizar essas vivências. “Por afeto compreendo
as afecções do corpo, pelas quais sua potência de agir é aumentada ou
diminuída, estimulada ou refreada, e, ao mesmo tempo, as ideias dessas
afecções” (Spinoza, 2009, p. 98).
A própria palavra “afetar” designa efeito da ação de um corpo sobre
outro, em seu encontro. Os afetos, portanto, não só surgiam entre
os corpos – vibráteis, é claro – como, exatamente por isso, eram
fluxos que arrastavam cada um desses corpos para outros lugares,
inéditos: um devir, ou seja, o que as linhas de fuga faziam na vida de
nossas personagens era, exatamente, desindividualizá-las. (Rolnik,
2011, p. 57).
Compõe-se um devir dos corpos femininos, em contraste, pelos entres
da cidade carioca. As personagens Guida e Eurídice são movidas pelos
afetos de explorar novas vivências, dentro ou fora do Rio de Janeiro.
O espaço da cidade, em alguns momentos do filme, termina por com-
219
partilhar um espaço de sensações e especificidades que concretiza os
desejos e sonhos dessas personagens por meio da experiência estética.
Entretanto, em outros momentos, a cidade, como dispositivo disciplinar, isto é, organizando o espaço por setores – o trabalho, a casa, a rua,
etc. –, delimita espaços, separa corpos6, cerceia vivências, transforma o
corpo em matéria cabível apenas a ações e espaços específicos, engendra
corpos dóceis, que obedecem aos horários, às funções.
O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha,
o desarticula, e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também
igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como
se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente
para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer,
com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina.
A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos
“dóceis”. (Foucault, 1999, p. 119).
É com essa docilidade que o corpo da mãe é moldado – corpo este
exclusivo à cria e ao progenitor, corpo “livre” de desejos autônomos,
corpo pertencente à economia patriarcal. Este é disciplinado a obedecer,
sem questionar. Este é o corpo das mulheres contemporâneas à Guida e
à Eurídice: mães, esposas, amantes, trabalhadoras, cuidadoras. A docilidade vem através do vigiar e punir, conforme coloca Foucault (1999)
– a punição está para além das questões judiciais ou prisionais, ela se
caracteriza enquanto punição moral, carregada pela culpa cristã presente
na cultura ocidental7.
6.
7.
Guida e Eurídice moram na mesma cidade, Rio de Janeiro, mas jamais se
encontram.
A figura de Maria como mãe de Jesus Cristo, virgem e imaculada, reforça a ideia
da maternidade como aspecto livre dos desejos sexuais ou individuais da mãe,
paradoxalmente, todo nascimento é resultado de uma relação sexual.
220
Eurídice, pianista, dá à luz uma menina, fruto do estupro do próprio
marido, enquanto Guida dá à luz um menino depois de ser deixada pelo
companheiro. A pianista acolhe o bebê e se encontra dentro dos moldes
esperados para uma mulher da época: casada, com filhos e uma casa –
obedecendo às ordens do marido, ela cozinha e se ocupa dos deveres
domésticos. O piano deixa de ser seu principal sonho para se tornar um
agrado aos ouvidos do marido, que pede a ela para tocar uma música
vez ou outra. Do outro lado da cidade, Guida pensa em deixar o filho
para adoção. Ela sai para um baile no mesmo dia do parto, beija um
homem, ela o masturba, mas, aparentemente, não sente prazer no ato
– o seu corpo a alerta de que passou por uma transformação: os seios
jorram leite, vem a culpa.
Tanto Guida quanto Eurídice pode ser definida como mulher de
corpo dócil, que obedece às disciplinas impostas. O corpo não é delas:
é do marido, do filho, ou mesmo de um desconhecido.
Ressalta-se que a narrativa se desenvolve na busca pelo encontro
entre as duas irmãs, que vivem na mesma cidade, mas nunca se encontram. Ao mesmo tempo em que Eurídice se casa e constitui uma família,
ela rebate as ironias do marido ao criticar sua irmã. A voz masculina
provoca sempre um descaso sobre indagações sobre a história de Guida
(fugas e abandonos). Muitas vezes, os comentários são infortúnios ao
criticar essa personagem movida por desejos e, consequentemente, um
“perigo” ao modelo familiar presente na sociedade. O Rio de Janeiro
levanta vários elementos normatizadores ao consolidar o sistema capitalista, de modo que o afeto do não-pertencimento se torna um ponto
crucial ao desencontro constante das personagens pela cidade e a busca
movente na trajetória delas ao longo do filme.
221
O Corpo Afetivo da Cidade do Rio de Janeiro
O término da Segunda Guerra Mundial resultou no fim da ditadura
do Estado Novo de Getúlio Vargas (1930-1945). O governo brasileiro passou por mudanças, como a outorga de uma nova Constituição.
Assim, seguem os anos da República Populista (1945-1964) com uma
alternância de presidentes. A política econômica do país se fundamenta
na manutenção do setor industrial, com o reforço no investimento de
infraestruturas. Entretanto, o agravamento da dívida externa proporcionou sucessivas crises aos estados brasileiros. A partir de 1955, com as
novas eleições presidenciais, o candidato Juscelino Kubitschek é eleito
e propõe a transferência da capital do país para Brasília.
O processo de urbanização da cidade do Rio de Janeiro foi reflexo
de uma postura segregadora do governo brasileiro. A cidade foi definida
por uma região central baseada no modelo arquitetônico europeu e as
moradias restritas à elite local. A população mais humilde foi realocada
para regiões mais periféricas e próximas aos morros. Iniciam-se as primeiras favelas, que são consequência do mal planejamento habitacional
provocado pelo dispositivo estatal. O autor Antonio Risério, no livro
As cidades no Brasil, nos lembra a palavra-chave usada ao ambiente
urbano carioca: “embelezamento”.
No Brasil, esse modelo se amparava na remodelação de áreas urbanas
centrais, eleitas para constituir os novos polos de prestígio e poder,
e na consequente renovação da ocupação imobiliária. O saneamento
dos centros urbanos, mote dessas operações, priorizava a eliminação das habitações populares e demais usos estigmatizados como
inconvenientes e insalubres, substituindo-os por usos comerciais,
institucionais ou residenciais mais elitizados. (Risério, 2013, p. 197).
222
Baudry (2006) diz que:
Tratar-se-ia de reencontrar o equilíbrio, de regenerar o socius, pois
descobriu-se, a cidade não é somente um local onde as pessoas vivem, mas a própria sociedade, enraizada de sua história, assim como
sempre, em construção. Assim, é preciso saber antecipar. Prever, e
não somente planejar, se torna tão mais urgente pelo fato do futuro
ser incerto e do presente não escapar apenas por sua fugacidade,
mas devido à incerteza de um futuro que o contamina. (Baudry,
2006, p. 26).
A cidade do Rio de Janeiro atua como um corpo afetado composto por inúmeras camadas resultantes do dispositivo estatal, mas que
possui áreas de passagem para os afetos. “Seu corpo vibrátil é tocado
pelo invisível, e sabe: aciona-se, já, um primeiro movimento do desejo.
No encontro, os corpos, em seu poder de afetar e serem afetados, se
atraem ou se repelem” (Rolnik, 2011, p. 31). Nesse caso, consideramos
os agenciamentos, essas zonas de passagem para viver esses desejos
e como os corpos femininos agem nessa sociedade tradicional e quais
os seus direito à cidade.8
As transformações da cidade não são os resultados passivos da globalidade social, de suas modificações. A cidade depende também e
não menos essencialmente das relações de imediatice, das relações
diretas entre as pessoas e os grupos que compõe a sociedade (família, corpos organizados, profissões, corporações, etc); ela não se
reduz à organização dessas relações imediatas e diretas, nem suas
metamorfoses se reduzem às mudanças nessas relações. Ela se situa
num meio termo. (Lefebvre, 2001, p. 51).
8.
Henri Lefebvre, no livro Direito à cidade, apresenta uma reflexão sobre uma das
teorias urbanísticas mais importante do século XX e reverberadas no pensamento
contemporâneo. “Na direção da entrada para a prática de um direito: o direito à
cidade, isto é, à vida urbana, condição de um humanismo e de uma democracia
renovados” (Lefebvre, 2001, p. 7).
223
O filme A vida invisível transcorre o tempo narrativo junto às mudanças espaciais das personagens Guida e Eurídice. Jovens e solteiras,
as irmãs vivem com a família em uma casa humilde no morro. Após a
separação delas, Eurídice se casa e muda de bairro. Percebemos a presença de espaços culturais, jardins, área de lazer e o acesso ao transporte.
Os enquadramentos abertos compõem uma espécie de “distância” ao se
ver o Cristo Redentor mais longe e mais próximo dessas personagens
em seus momentos de contemplação. Guida, ao retornar para o Brasil,
é expulsa da casa dos pais e termina por viver em um lugar humilde,
dividindo a casa com uma senhora , que possui uma espécie de creche
no morro carioca. A cidade se torna um corpo entrelaçado por distintas camadas moldadas pelo dispositivo estatal. Essas personagens ao
morarem no Rio de Janeiro dos anos 1950 apresentam as fissuras e as
indagações morais e sociais sobre a cidade-corpo e as sensibilidades
refletidas desse período no Brasil.
Figura 1. Eurídice fumando um cigarro na entrada de casa.
224
Figura 2. Guida buscando moradia na favela após ser expulsa de casa.
Figura 3. Eurídice observando o Pão de Açúcar
Eurídice e Guida vivenciam a cidade de diferentes pontos de vista:
uma como mulher casada e outra como um mulher mãe solo. Segundo
Rancière (2005), “ter esta ou aquela “ocupação” define competências
ou incompetências para o comum. Define o fato de ser ou não visível
num espaço comum”. Os espaços urbanos são delineados de acordo com
o camadas sociais e a permissão de ocupá-los em comum, mas, nesse
caso, independentemente do status social, a invisibilidade do corpo
feminino se mantém na sociedade apresentada na narrativa.
225
A Invisibilidade dos Corpos Femininos
Durante o desenrolar narrativo de A vida invisível, percebe-se como
a construção do corpo masculino é delineado nos espaços da cidade
ressaltando o controle sobre as mulheres. O dispositivo disciplinar é a
base para o domínio e a invisibilidade dos corpos femininos, bem como
dos afetos referentes a esses corpos. O masculino é quase sempre representado por um “pai” que legitima as decisões apenas na autoridade
e na moral.
Este “pai” que determina o destino das mulheres no longa-metragem
está caracterizado nos processos judiciais, quando a mulher precisava
da autorização do marido para abrir um negócio ou uma conta corrente9,
viajar etc. Em A vida invisível, Guida não consegue tirar o passaporte
do filho por não ter a autorização do pai do menino, que está do outro
lado do mundo e não registrou o seu filho.
Figura 4. Guida vai à polícia na tentativa de tirar o passaporte do filho.
9.
Até 1962, no Brasil, as mulheres não poderiam abrir uma conta corrente sozinhas.
226
Figura 5. Guida é renegada pelo pai, e a mãe é condescendente.
A invisibilidade dos corpos, entretanto, não acontece apenas em
relação às questões judiciais referentes aos direitos civis da mulher,
ela é reproduzida dentro dos espaços domésticos, onde novamente
só a palavra do pai é legítima, é aquela que não pode ser contestada.
Na Figura 5, o quadro mostra as duas mulheres à borda, como molduras, o pai está no centro, na passagem entre a casa e a porta, ele tem
a possibilidade de entrar e sair quando quiser, enquanto Guida como
filha, tem o “direito” apenas de sair. A mãe – que parece ter empatia
pela filha - nada pode fazer, porque também se localiza na borda, seja
no quadro cinematográfico, seja no papel como mulher.
Depois da justiça e da família, o outro dispositivo disciplinar que se
apropria do corpo feminino, desta vez de Eurídice, é a medicina. Após
uma catarse ao saber da morte da irmã – a pianista acaba queimando
o piano –, Eurídice é levada pelo marido ao médico, que em nenhum
momento fala diretamente com a paciente, apenas com o marido. Nos
quadros que compõem a cena, o corpo de Eurídice aparece sempre
desfocado e com a cabeça cortada.
227
Considerações Gerais
Partindo do pressuposto que a invisibilidade é resultado dos desencontros, da falta de aparição e das delimitações espaciais, excluindo
indivíduos de certos locais, pode-se afirmar que o lugar – como espaço
para afecção – é responsável pelo os fluxos afetivos.
A cidade do Rio de Janeiro é um dispositivo para todos os afetos em
desenvolvimento da narrativa. As relações humanas entre as personagens
são movidas pelo desejo do encontro, porém se chocam com a disciplina
normatizante e controladora presente no sistema patriarcal. A cidade
se torna um corpo e uma personagem com todas as suas estruturas e
modelos, mas este corpo também é composto de fissuras, onde se encontra como um canal de passagem afetivo que amplia a conexão com o
espectador por meio da linguagem cinematográfica – que, ao mostrar a
cidade como espaço para descobertas, desestabiliza a sua própria estrutura normatizante: favelas x elite, casa x rua, trabalho x vida doméstica.
Ao entender a invisibilidade dos corpos femininos como um resultado do contexto patriarcal, pode-se afirmar que este modelo calcado
nos desejos masculinos acaba não só por tornar “invisíveis” os corpos,
mas também os afetos das mulheres que vivenciaram (e ainda vivenciam) esse sistema. No entanto, como afirmado ao largo desta análise,
os sistemas de poder são sempre calcados em uma relação – dentro da
perspectiva foucaultiana, a coerção e a disciplina sempre suscitam algum
tipo de resistência, esta não necessariamente irá acabar com a estrutura
dominante, mas demonstra rompantes que podem ser compreendidos.
228
Figura 6. Irmãs dançam sozinhas após casamento.
Figura 7. Irmãs passeiam pela mata.
Dessa forma, conclui-se que apesar de presas a um sistema patriarcal em que os desejos femininos são aniquilados, Eurídice e Guida
demonstram de alguma forma a sua resistência: seja ao tocar o piano10,
seja ao trabalhar em uma fábrica. Elas se encontram nos sonhos, em
meio à mata atlântica do Rio de Janeiro – o espaço que ainda não foi
delimitado, demarcado pelo o “homem” –, lugar aberto à criação, onde
os seus corpos não são apenas visíveis, mas potências criativas.
10. Eurídice para o marido: “Quando eu toco, eu desapareço”. Eurídice desaparece
para esse sistema patriarcal, limitante e aquém dos afetos.
229
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230
Territórios, Mulheres e Encontro: os Espaços
Femininos do Cinema e da Prisão
Gabriela Santos Alves1
Que territórios ocupam as mulheres no cinema contemporâneo brasileiro de não ficção, desde uma perspectiva que contemple a relação entre
mulheres que realizam filmes e as que são protagonistas das histórias?
Guiada por este questionamento, inquietação maior trazida pela proposta
da mesa “Cinema e audiovisual” do 2º Congresso Ibero-americano sobre
Ecologia dos Meios — mulher e gênero no ecossistema midiático, redigo
este ensaio a partir de um lugar que é ao mesmo tempo o da realizadora
audiovisual e o da pesquisadora em teoria feminista, e que busca, em
ambas as narrativas, trazer a mulher e a representatividade feminina
para o primeiro plano. Assim, trato aqui do que informalmente classifico
como cinema com mulheres e do entendimento que ele promove uma
ação ímpar, que é a de ressignificar esse território que ainda hoje, no
Brasil, é de exclusão e silenciamento, dado o pequeno percentual de
mulheres que roteirizam e dirigem filmes no país.
1.
Pós doutora em Comunicação e Cultura (Eco/UFRJ).
Professora do Departamento de Comunicação Social e do Programa de Pós
graduação em Comunicação e Territorialidades da Universidade Federal do
Espírito Santo - UFES.
gabriela.alves@ufes.br
231
Nessa linha, esta reflexão retrata o processo de realização do curta-metragem C(elas), documentário de dezoito minutos que trata da relação
entre maternidade e sistema prisional no Brasil a partir da experiência
e do encontro entre uma equipe de set constituída exclusivamente por
realizadoras e, como protagonistas da narrativa, mulheres que vivenciam a privação de liberdade em um momento muito significativo: a
gravidez e o puerpério. Assim, equipe e protagonistas abordam uma
temática importante para a teoria feminista, a maternidade, e em um
ambiente específico: a prisão, especificamente a ala materno infantil da
Penitenciária Feminina de Cariacica, localizada no estado do Espírito
Santo, Brasil. O roteiro do documentário, bem como sua direção, foram
realizados por mim e são sobre essas etapas da realização fílmica que
discorrerei. Desse encontro entre mulheres, especialmente a partir de
suas conversas, o filme foi construído. Para a equipe, ouvir grávidas e/
ou mães com filhos recém-nascidos foi a principal ação narrativa – o
que essas mulheres em situação de privação de liberdade tinham a dizer?
O dado que impulsionou a escrita do argumento e do projeto do filme
foi o crescimento alarmante e contínuo da população prisional feminina
no Brasil nas últimas duas décadas, em mais de quinhentos por cento.
Sobre o aporte teórico que assumo, ele parte da percepção do patriarcado como uma estrutura social e cultural excludente e que constrói
práticas cotidianas a fim de favorecer sua perpetuação e, por consequência, as relações desiguais entre os gêneros, estabelecidas muitas
vezes a partir de situações de violência, física e/ou simbólicas, contra
as mulheres. Na luta pelo fim dessas desigualdades e discriminações, o
feminismo constrói-se como um empenho ético e um movimento social
que objetiva evidenciar as múltiplas formas em que essas práticas, ao
232
que comumente chamamos de machismo, se entrelaçam e se reforçam
mutualmente: leis, costumes, universo simbólico, instituições, categorias
conceituais, organização econômica, mensagens midiáticas, conteúdo
audiovisual (Monteiro & Navarro, 2002). O feminismo é, portanto, a
luta por um direito humano universal.
Território, Cinema e Relações de Poder
Território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as
paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é,
onde a história […] plenamente se realiza a partir das manifestações
da sua existência (Santos, 1999).
As noções de território, em especial a partir de reflexões em torno
da tríade território, territorialidade e re/des terriorialização tem ganhado visibilidade e volume nos debates acadêmicos contemporâneos,
contribuindo para a construção de conhecimento nas mais diversas
áreas do saber, em especial nos campos das ciências humanas e das
artes, dado seu potencial teórico e metodológico que propicia tanto
a compreensão mais complexa sobre o sentido do território quanto a
ampliação do entendimento sobre a ação de ocupar determinado lugar,
além da construção de subjetividades territoriais e da ressignificação
de determinados espaços, em especial os simbólicos.
Território, então, pode ser compreendido como partes ou divisões
do espaço, e esse espaço é constituído a priori, como uma espécie de
materialidade ou uma matéria prima que pré existe à ação, ao conhecimento ou à prática humana. É no território onde as relações de poder se
constroem e se tornam evidentes e é nele também onde o poder constrói
233
malhas nas superfícies do sistema territorial para delimitar campos
operatórios (Raffestin, 1993). Dentre as possibilidades desses campos,
o cinema é aqui considerado como espaço de vivência, como a matéria
prima, o ponto de partida para construção da reflexão sobre participação
e representatividade feminina nas telas e por trás das câmeras, a fim
de evidenciar as relações de poder que estão em jogo nesse cenário de
realização de narrativas com sons e imagens.
Além da relação entre território e relações de poder, assinalo outra contribuição para o entendimento do conceito, proposta por Haesbaert (2007)
e que aponta para três vertentes: política, econômica e simbólico-cultural. Essas vertentes examinam tanto as relações de poder, inclusive
as institucionalizadas, e consiste na abordagem do território como um
espaço delimitado e controlado, com ênfase no poder político do Estado
e nas fontes de recursos para as relações econômicas, além do foco no
embate de classes sociais e na relação capital-trabalho. Em especial, a
vertente simbólico-cultural é aquela que “prioriza a dimensão simbólica
e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como produto de
apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido” (2007). Nesse sentido, como as mulheres tem se apropriado
desse território simbólico? Quais narrativas são valorizadas a partir da
lógica das relações de poder instituídas no território cinematográfico?
Como tem se constituído a ressignificação de espaços e territórios do
cinema e da prisão a partir da experiência de mulheres?
Nesse território do cinema e da participação e representatividade
feminina, julgo importante destacar duas ausências: a das mulheres em
situação de privação de liberdade e a das mulheres que roteirizam e dirigem filmes. Segundo dados da Agência Nacional do Cinema (Ancine), a
234
partir de um levantamento inédito no Brasil, das 2.583 obras audiovisuais
registradas na agência em 2016 apenas 17% foram dirigidas e 21% roteirizadas por mulheres, embora mais da metade da população brasileira
seja feminina. Além disso, mostra que mulheres negras não dirigiram ou
roteirizaram um filme sequer entre os de maior bilheteria no período de
1995 a 2016. O percentual de homens negros nas duas categorias não
passou de 2% na direção e 3% no roteiro, enquanto homens brancos
dirigiram 85% e roteirizaram 75% das principais produções nacionais.
A pesquisa foi feita apenas em obras comerciais do chamado conteúdo
de espaço qualificado, que exclui produções jornalísticas, esportivas e
publicidade e evidenciou que tanto no cinema quanto na TV predomina
a visão masculina, o que significa que o olhar que contribuirá para a
formação do imaginário coletivo das futuras gerações no Brasil será o
do homem (Ivanov, 2016).
Territórios em que Transito: Pesquisa Acadêmica e Realização
Audiovisual
Es desde esta experiencia desde donde se posiciona en torno al
feminismo, en el que cree profundamente, colocando su proprio
standpoint [punto de vista]. Este es uno de os marcos fundamentales
(…) la experiencia como autoridad analítica, desde una posición
crítica, construtiva y vivencial (Hooks, 2017).
A temática da maternidade na prisão tem sido presente em meus
estudos desde 2014, quando a partir das reflexões sobre teoria feminista, cultura audiovisual e violência contra a mulher me deparei com
o altíssimo e crescente número de mulheres encarceradas no Brasil.
O tema, então, passou a ser o objeto de minha pesquisa acadêmica, cujo
235
projeto de pesquisa se intitula Clausuras — territórios e sentidos dos
claustros femininos, e também de minha produção artística, na realização de documentário e roteiros que tratam da temática. O objetivo,
nos próximos anos da pesquisa acadêmica e artística, é refletir sobre
territórios e sentidos de outras clausuras femininas, institucionalizadas
ou não e em ambientes além da penitenciária: o hospital psiquiátrico,
o espaço urbano e o espaço doméstico.
Esta reflexão é, assim, um recorte dessa pesquisa e foi construído a
partir da minha experiência com as mulheres presentes na ala materno
infantil da Penitenciária Feminina de Cariacica (PFC/ES), em setembro
de 2016, durante as gravações do filme C(elas), documentário de curta
metragem que produzi o roteiro e dirigi e que trata da relação entre
maternidade e ambiente prisional a partir das experiências e sentimentos das mulheres grávidas ou recém mães que estavam em período de
privação de liberdade na ala.
Sobre o aporte teórico que assumo, ele parte da percepção do patriarcado como uma estrutura social e cultural excludente e que constrói
práticas cotidianas a fim de favorecer sua perpetuação e, por consequência, as relações desiguais entre os gêneros, estabelecidas muitas
vezes a partir de situações de violência, física e/ou simbólicas, contra
as mulheres. Na luta pelo fim dessas desigualdades e discriminações, o
feminismo constrói-se como um empenho ético e um movimento social
que objetiva evidenciar as múltiplas formas em que essas práticas, ao
que comumente chamamos de machismo, se entrelaçam e se reforçam
mutualmente: leis, costumes, universo simbólico, instituições, categorias
conceituais, organização econômica, mensagens midiáticas, conteúdo
236
audiovisual (Monteiro & Navarro, 2002). O feminismo é, portanto, a
luta por um direito humano universal.
Na obra Los cautiverios de las mujeres, a antropóloga Marcela
Lagarde aponta o que entende e classifica como cativeiro, categoria
teórica que expressa o funcionamento e o reconhecimento das formas
de ser mulher em várias culturas: apesar das conquistas obtidas até hoje,
a vida de todas nós no mundo contemporâneo ainda está condicionada
à hegemonia patriarcal, estejamos na condição de mães-esposas ou
religiosas, prostitutas, presas ou loucas. A partir dessas referências
simbólicas de estereótipos sociais e culturais e que sintetizam normas
paradigmáticas de gênero, a autora constrói sua análise não só dos cativeiros femininos mas também das formas de sobrevivência das mulheres
em situação de opressão (2014). A reflexão apresentada por Marcela
é fundamental para uma das questão chave que examino neste artigo:
o extremo da clausura feminina vivido pelas mulheres em situação de
privação de liberdade e, especialmente, nesse universo, as mulheres que
vivenciam no cárcere um dos períodos mais simbólicos da condição
feminina: a gravidez e o puerpério.
Além da reflexão de Lagarde, recorro à proposta de Foucault (1999)
sobre a sociedade disciplinar, na qual o autor destaca os espaços considerados por ele como aqueles em que a disciplina e a docilidade das
relações e dos corpos se constitui: a fábrica, o quartel, o hospital, a
escola e a prisão, em especial esse último, acrescentando aí o papel
do espaço doméstico como território onde essa disciplina também se
constitui, especialmente em relação ao corpo feminino e à prática da
maternidade. Nessa mesma linha de abordagem, Bordo (1997) chama
237
a atenção para a disciplinarização do corpo feminino, cujas forças e
energias estão constantemente submetidas ao controle externo.
Um dado importante e impulsionador desta reflexão é o aumento,
entre os anos de 2000 e 2014, da população carcerária feminina no
Brasil, que cresceu 567,4%, o que corresponde a 37 mil presas, segundo
dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) – neste mesmo período, o aumento do número de homens presos foi de 220,20%.
Para além desse dado, acredito ser importante refletir sobre questões
de gênero no sistema prisional brasileiro, que trata as mulheres exatamente como trata os homens, não atentando para práticas cotidianas e
necessárias, como por exemplo, maior quantidade de papel higiênico,
exames pré-natais e preventivos e fornecimento de absorventes. Além
disso, a experiência feminina no sistema prisional é marcada por enfrentamentos e por uma lógica de punição próprios, como afirma Angela
Davis (2017), com o objetivo de feminilizar a punição a partir de ações
que foram concebidas ideologicamente para restituir a essas mulheres
os princípios morais aquilo que se crê fundamental da feminilidade:
culinária, costura, limpeza e criação dos filhos.
Mulheres em Território de Privação de Liberdade
As mulheres presas materializam a prisão genérica de todas as
mulheres, tanto concreta quanto abstrata. A sua casa é a prisão,
a detenção e a privação de liberdade para essas mulheres em seu
próprio espaço vital. O extremo da clausura é vivido pelas mulheres
no cárcere, re-presas pelas instituições do poder (Lagarde, 2014).
Na estrutura quase invisível que é o patriarcado, o próprio uso do
conceito é pouco difundido, até mesmo para demarcar a necessária
238
diferença entre machismo e patriarcado: enquanto o primeiro é uma
atitude ou uma conduta, que pode ser tanto individual quanto coletiva,
o segundo está ligado a toda uma estrutura social, evidente desde ações
cotidianas, como a responsabilidade pelas tarefas domésticas e a criação
dos filhos e até a diferença salarial no mercado de trabalho, que hoje
no Brasil é de 30%, ou seja, as mulheres recebem em média 70% dos
salários pagos aos homens para executarem as mesmas tarefas e funções.
Certamente constituído desde a pré-história, esse sistema de dominação que valoriza e sobrepõe homens em relação às mulheres chega
a ser tão universal que várias de suas ações são consideradas naturais,
inclusive presentes na nossa linguagem: quem nunca pensou ou disse,
ao ver uma criança em ato de rebeldia, birra ou choro: “onde está a mãe
dela/e?”. Por que não se diz: “onde está o pai?”, ou então quando mãe e/
ou pai em idade avançada ficam doentes, que imagem é criada no imaginário coletivo associada à ideia do cuidado? A da filha ou a do filho?
Esses são exemplos pontuais de manifestações do sistema patriarcal
mas é possível pensá-las em várias outras instâncias, como a sócio-econômica (trabalho não remunerado e a dependência econômica), a cultural
(educação androcêntrica - quantos livros assinados por mulheres há
nas bibliotecas das universidades brasileiras?) e a psicológica (falta de
expectativa de sucesso e limitação de seus próprios interesses). Todas
elas são, no fundo, ações de cerceamento das condutas femininas, com
o objetivo de criar padrões, muitas vezes únicos, de comportamento,
pensamento e ação para as mulheres. São demarcações tão invisíveis e
naturalizadas quanto o próprio patriarcado mas que trazem às mulheres limitações expressivas. É o que Marcela Lagarde classifica como
cativeiro, categoria teórica apresentada acima (2014).
239
O quadro teórico construído por Marcela é de extrema relevância
para os estudos feministas, já que possibilita reflexões das mais variadas
sobre as condições e cotidianos das mulheres, presas em tantas normas
de conduta. O que caracterizo neste texto é o cativeiro institucional, ou
seja, mulheres que vivem em penitenciárias, o que pode ser entendido
com a situação de mulheres re-presas, ou presas duplamente, cuja casa
é a prisão. A prisão como casa e as tarefas cotidianas que envolvem os
cuidados com os filhos são também questões presente no filme C(elas).
Nessa condição paradigmática de re-prisão, o cárcere feminino físico no Brasil é composto por números alarmantes: os dados levantados
pelo Depen e expressos no relatório de 2014 apontam para uma curva
ascendente do encarceramento em massa de mulheres no Brasil: houve
um salto espantoso, entre os anos de 2000 a 2014, período em que a
população carcerária feminina subiu de 5.601 para 37.380 detidas, o
que significa um crescimento de 567% em quinze anos.
Pelos dados do World Female Imprisonment List, relatório produzido
pelo Institute for Criminal Policy Research da Birkbeck, University of
London, existem mais de 700.000 mulheres presas em estabelecimentos
penais ao redor do mundo: “em números absolutos, o Brasil tinha em
2014 a quinta maior população de mulheres encarceradas do mundo,
ficando atrás dos Estados Unidos (205.400 mulheres presas), China
(103.766), Rússia (53.304) e Tailândia (44.751)” (Depen, 2014, p. 8).
Os dados do Depen permitem, também, compreender a maior vulnerabilidade da mulher encarcerada no Brasil: jovem (metade tem até
29 anos), solteira (57%), negra (67%), com escolaridade extremamente
baixa (50% não concluiu o ensino fundamental). Mostram, ainda, que
as detidas são, em geral, chefes de família e responsáveis pelo sustento
240
dos filhos, sendo que 80% delas são mães. Essas mulheres representam,
justamente, o perfil mais vulnerável à opressão de gênero no Brasil.
Os dados do Depen sobre a infraestrutura das penitenciárias femininas e mistas (as que recebem homens e mulheres) também oferecem
informações relevantes: a existência – primeiro passo para garantia
de acesso – de equipamentos e espaço que tornem a maternidade, no
ambiente prisional, minimamente viável, ou seja, a existência de cela
específica para gestantes, de berçário, de creche e de centro de referência
materno-infantil nas prisões. Em relação à infraestrutura das unidades
que custodiam mulheres, menos da metade dos estabelecimentos femininos dispõe de cela ou dormitório adequado para gestantes (34%). Nos
estabelecimentos mistos, apenas 6% das unidades dispõem desse espaço.
Quanto à existência de berçário ou centro de referência materno
infantil, 32% das unidades femininas dispunham do espaço, enquanto
apenas 3% das unidades mistas o contemplavam, sendo que apenas
5% das unidades femininas dispunham de creche, não sendo registrada
nenhuma creche instalada em unidades mistas. O número total de detentas grávidas ou recém mães nas penitenciárias brasileiras é de difícil
mensuração, já que devido ao baixo número de celas ou dormitórios
adequados, as chamadas alas materno-infantil recebem mulheres que
cumprem pena e também as que ainda não foram julgadas, o que torna
a rotatividade desses espaços muito alta.
Nascer nas prisões é o primeiro estudo a descrever, a nível nacional,
exclusivamente o perfil da população feminina encarcerada que vive
com seus filhos em unidades prisionais femininas das capitais e regiões
do Brasil, assim como as características e as práticas relacionadas à
atenção, à gestação e ao parto durante o encarceramento. Realizado
241
pela Fundação Fiocruz entre os anos de 2012 e 2014 a partir de um
censo nacional e sob coordenação das pesquisadoras Maria do Carmo
Leal e Alexandra Roma Sánchez revela, por exemplo, que mais de
um terço das mulheres presas grávidas relataram o uso de algemas na
internação para o parto, 83% tem pelo menos um filho, 55% tiveram
menos consultas de pré-natal do que o recomendado, 32% não foram
testadas para sífilis e 4,6% das crianças nasceram com sífilis congênita
(Castro, 2017).
Ainda segundo dados do estudo, na maioria dos estados brasileiros
a mulher grávida é transferida no terceiro trimestre de gestação da sua
prisão de origem para unidades prisionais que abrigam mães com seus
filhos, geralmente localizadas nas capitais e regiões metropolitanas. Essas
mulheres são levadas para o hospital público para o parto e retornam à
mesma unidade onde permanecem com seus filhos por um período que
varia de seis meses a seis anos: a maioria, contudo, permanece com a
criança entre seis meses e um ano, dada a falta de estrutura dessas alas
para abrigarem crianças. Depois desse período, geralmente as crianças
são entregues aos familiares maternos/paternos, ou, na ausência destes,
vão para abrigos e a mãe retorna à prisão de origem.
Cinema com Mulheres: Reivindicar o Território
Para onde quer que olhemos, podemos observar que os trabalhos
executados por mulheres são meras extensões da condição de donas
de casa em todas as suas facetas. Não apenas nos tornamos enfermeiras, empregadas domésticas, professoras, secretárias — todas
as funções para as quais fomos treinadas dentro de casa —, mas
estamos no mesmo tipo de relação que dificulta a nossa luta dentro
242
de casa: isolamento, o fato de que a vida de outras pessoas depende
de nós (…) (Federici, 2019).
O curta metragem C(elas) nasceu como uma proposta de realizar uma
narrativa audiovisual sobre mulheres grávidas e/ou mães em situação
de privação de liberdade que traduzisse, minimamente, o que pensam
e sentem essas mulheres, a partir de suas experiências na ala materno
infantil da Penitenciária Feminina de Cariacica/ES (PFC) e da vivência
da maternidade nesse espaço, com uma proposta estética que evidenciasse
um olhar positivo em relação a elas e às suas experiências. Acredito
que o audiovisual, em especial o documentário, é uma narrativa potente
para a construção de visibilidade de temas, pessoas e situações que não
encontram espaço de representatividade na mídia tradicional (telejornais,
jornais impressos, portais de notícias) ou quando encontram, deparam-se
com narrativas marcadas por linguagens e propostas estéticas muitas
vezes preconceituosas e excludentes, como por exemplo, a cobertura
jornalística sobre rebeliões em presídios brasileiros, centrados na ideia
da dor, morte e violência.
O filme foi gravado durante o mês de setembro de 2016, em sete
visitas (diárias de gravação) que duravam quatro horas cada e que
foram supervisionadas pela equipe da PFC e também pela equipe de
Assessoria de Comunicação da Secretaria de Justiça do Espírito Santo.
A ala materno infantil recebe mulheres que estão nos últimos meses
de gravidez e/ou com filhos recém-nascidos de todo o estado do ES, já
que a PFC é uma, entre duas, que conta com estrutura para receber as
mulheres em situação de privação de liberdade que estão vivenciando
a reta final da gravidez e /ou o puerpério.
243
A fim de atender à orientação dada pela Secretaria de Justiça do
Espírito Santo, os rostos das mães, bem como os das crianças, não são
mostrados no filme, bem como nas imagens que apresento a seguir. Essa
orientação busca atender ao Estatuto da Criança e do Adolescente no
que tange ao direito de preservação da imagem e da identidade — nesse
contexto, identificar a mãe é uma forma de, indiretamente, identificar
o bebê. O que a princípio mostrou-se como um impedimento para a
construção estética da narrativa, com o tempo configurou-se em um
trunfo: a fotografia do filme foi elaborada de forma a evidenciar essa
preservação e, do ponto de vista criativo, optamos por imagens em
que o espaço da prisão fosse notado e sentido de maneira indireta, com
planos em que é possível perceber a presença das grades em 2º plano
e também através de sombras, como evidenciado nos frames a seguir.
Figura 1. Pátio da ala materno-infantil. Frame do filme C(elas), direção
de Gabriela Santos Alves e fotografia de Ursula Dart
A ala materno infantil está instalada em um pavilhão exclusivo da
PFC e conta com 6 quartos, sendo que cada um deles pode abrigar duas
244
mulheres e dois recém-nascidos. Cada quarto possui duas camas, dois
armários, dois berços e um banheiro próprio. Na entrada da ala há uma
brinquedoteca, com alguns brinquedos, pequenas mesas e cadeiras.
Seguindo na direção de seu corredor, há três quartos do lado esquerdo e
três do lado direito e ao final da ala há um pátio, com tanque, varal para
roupas e cadeiras de plástico. Há também uma gaiola com dois periquitos,
provenientes de doação. Ainda na entrada da ala há mais um quarto, em
frente à brinquedoteca, destinado a mulheres que cumprem um tipo de
punição ainda mais severa, geralmente por mau comportamento, e que
ficam, portanto, privadas do contato com as demais mulheres da ala.
Figura 2. pátio da ala materno-infantil sombreado. Frame do filme
C(elas), direção de Gabriela Santos Alves e fotografia de Ursula Dart
A imagem abaixo (Figura 3), assim como todas as que são apresentadas neste artigo, são frames do filme e possuem, portanto, autorização
para serem exibidas. Nela é possível visualizar o corredor da ala, no
sentido contrário ao de sua entrada principal, que está no fim do cor-
245
redor. Veem-se, também as entradas de acesso aos quartos e uma das
protagonistas do curta:
Figura 3. corredor da ala materno-infantil. Frame do filme C(elas),
direção de Gabriela Santos Alves e fotografia de Ursula Dart
As imagens correspondentes às figuras 1 e 2, além de evidenciarem
a proposta de fotografia do filme, referem-se ao espaço da ala em que
as mulheres, e nós da equipe de filmagem, passávamos mais tempo: o
pátio, ou quintal, espaço da ala de acesso livre e onde as mulheres e as
crianças realizavam várias das suas atividades cotidianas, como lavar
as roupas dos bebês, estendê-las, estar com as crianças nos carrinhos,
brincarem — como a maioria são bebês recém nascidos, costumam ficar
menos tempo nos colos das mães e mais nos carrinhos e berços. Foi lá
onde conversávamos sobre vários assuntos, desde a amamentação, o
parto, a relação entre as mulheres da ala, até o assunto mais delicado
de todos, que é a questão principal do filme: o que pode ser considerado uma melhor mãe? É aquela que, ao ter a criança, entrega-a para
que seja de imediato criada do lado de fora, não amamentado-a e, por
246
conseguinte, não gerando um vínculo ainda maior entre mãe e bebê ou
é considerada uma melhor mãe aquela que após o nascimento permanece com a criança e decide amamentá-la, passando alguns meses com
o bebê na ala e entregando-o em seguida, garantindo a amamentação
mas por outro lado quebrando esse vínculo fundamental de maneira
ainda mais brusca e violenta?
Não há resposta simples para essa questão. O melhor caminho,
acredito, é o do abolicionismo penal e, num contexto em que as prisões
ainda persistem, a prisão domiciliar, em que mãe e bebê possam estar
juntos. O cotidiano de mulheres grávidas e/ou com filhos recém-nascidos
que vivem na ala é duro e marcado por várias violências, tanto físicas
quanto simbólicas, que vão desde a realização deficitária de exames pré
natais até à permanente e cruel dúvida sobre o que fazer em relação ao
bebê que nascerá.
Esse duro questionamento enfrentado por essas mães possibilita que
encaremos a situação vivida por essas mulheres como uma re-prisão,
já que elas vivenciam duas espécies de claustros: o institucional e o
social, esse último ligado aos padrões e normas de comportamento
impostas sobre o corpo feminino em relação ao ideal da maternagem.
Foucault (1999), ao construir a sua teoria sobre a sociedade disciplinar, normatização do comportamento e docilidade dos corpos, atribuiu
importância a espaços como a escola, o hospital, o quartel, a fábrica e
especialmente a prisão como territórios determinantes no ato disciplinador da sociedade moderna.
As instituições modernas apontadas por Foucault continuam presentes, bem como suas práticas de controle e disciplina, ao mesmo tempo que
reforçam e reelaboram seus mecanismos de poder – o encarceramento
247
em massa de mulheres no Brasil é uma prova disso. Para além delas, a
instituição “família” e por consequência as relações intrafamiliares, apesar de apontadas pelo autor, não foram suficientemente problematizadas,
em especial o poder disciplinador do aparelho administrativo “casa”,
que denomino aqui como “espaço doméstico”. Nessas relações, papéis
de gênero são construídos e normatizados, hierarquias são construídas,
“essencialmente na célula pais-filhos” (1999) e relações desiguais de
gênero se perpetuam, como a histórica atribuição quase que exclusiva às
mulheres das atividades domésticas e dos cuidados e criação dos filhos.
Nessa linha, proponho pensar o privado como público e, assim,
assumir o espaço doméstico como território de crítica, já demarcado
pela perpetuação de relações desiguais de gênero. No filme C(elas),
quando uma das mulheres protagonistas se questiona sobre como deve
agir para ser considerada uma melhor mãe, é possível notar em sua fala
um grande receio, que por sua vez é resultado de uma construção social
comum a grande parte das recém mães, que mesmo não estando presas
em instituições, vivem sob a égide do controle de suas ações perpetuadas
no imaginário e na ação coletiva e que norteia a prática feminina na
tarefa da maternidade: idealização, sonho, santificação e medo de errar.
Bordo (1997) chama a atenção para a disciplinarização do corpo
feminino, cujas forças e energias estão constantemente submetidas ao
controle externo. Sua concepção reforça o que Foucault chamou de
corpos dóceis: além de sujeitos a esse controle, os corpos femininos
são alvo constante de transformações e modificações na busca por um
ideal de perfeição, postos em prática através de alguns dispositivos
disciplinares específicos: dietas rigorosas, ideais de magreza e definição
muscular e regras sobre maquiagem e vestuário que propõem um ideal
248
de feminilidade homogeneizante e sempre em mutação, levando a uma
busca sem fim por resultados próximos aos padrões estéticos vigentes.
Para além dos aspectos físicos e estéticos, mais voltadas para a
modificação do próprio corpo e o autoflagelo, a disciplina reguladora
dos corpos femininos busca converter as mulheres em sujeitos menos
inseridos na esfera pública, nos meios sociais e na vida política. Induzidas por essas disciplinas rigorosas, é comum que as mulheres passem
desde a infância até a vida adulta acreditando na ideia do fracasso, entregando-se às sensações de carência e insuficiência, com a convicção
de que não são tão boas quanto deveriam ser e, como consequência
desse quadro, voltando-se à ocupação do espaço doméstico como único
território possível de ação e realização.
A vivência e prática da maternidade por mulheres em regime de
privação de liberdade não foge à essa lógica. Durante o período em
que estive na Penitenciária e convivi com elas, o assunto mais presente
em nossas conversas era sobre o ideal materno a ser seguido e sobre o
receio de não serem corretas ou suficientes em sua escolha de ficar ou
não com a criança, além da constante dúvida sobre o futuro julgamento
social quanto ao fato de ser ex presa. A experiência da maternidade no
cárcere reproduz crenças e ideais comuns a quem está do lado de fora
das grades, como dúvidas sobre a amamentação e a respiração do bebê,
e impõem outros, caracterizados por uma maior carga de disciplina e
exclusão: como uma mulher, em uma de suas fases considerada mais
sublimes, está presa, cumprindo pena? Pode uma mãe, essa figura mítica
e santificada, ter cometido um crime? Que direitos tem uma mulher que
cometeu um crime de amar seu filho?
249
Tais questionamentos remetem ao que Angela Davis (2017) caracterizou em suas reflexões sobre o sistema prisional feminino como a
feminização da punição. Em sua crítica à forma como o gênero estrutura
o sistema prisional, Davis sustenta que o ambiente carcerário adota
uma lógica de punição para as mulheres muito próxima àquela do sistema de treinamento doméstico, onde as tarefas ligadas ao cotidiano e
funcionamento do lar e à responsabilidade pela criação dos filhos são
responsabilidades atribuídas exclusivamente à mulher. Resumidamente,
as formas feminizadas de punição foram concebidas ideologicamente
para restituir a essas mulheres os princípios morais considerados fundamentais da feminilidade:
(…) formar as prisioneiras no “importante” papel feminino da domesticidade. Assim, um papel importante do movimento de reforma
nas prisões para mulheres foi encorajar e inculcar papeis de gênero
“apropriados”, como treinamento vocacional em culinária, costura
e limpeza. Para acomodar esses objetivos, as casas reformatórias
foram normalmente projetadas com cozinhas, salas de estar e até
mesmo alguns berçários para prisioneiras com bebês (Belknap como
em Davis, 2017).
250
Figura 4. mães na ala materno-infantil. Frame do filme C(elas), direção
de Gabriela Santos Alves e fotografia de Ursula Dart
Considerações Finais: Ressignificar o Território
O ascendente e alarmante número da população carcerária feminina
no Brasil, que cresceu mais de 500% nas últimas duas décadas é, sem
dúvida, um fenômeno que demanda reflexão e ação. Marcadas por um
cotidiano de invisibilidade, exclusão e abandono, essas mulheres vivem
o extremo das várias clausuras que o patriarcado nos impõe diariamente,
em prisões institucionais mantidas por um Estado que ignora as especificidades de gênero no sistema prisional do seu país. Elas são, justamente,
o perfil mais vulnerável à opressão de gênero no Brasil. Os dados do
Infopen Mulheres e do Portal Fiocruz mostram como a pesquisa sobre
a questão é recente e essa ausência histórica de informações reafirma
a invisibilidade do tema e das mulheres.
251
O conceito de invisibilidade é central quando se trata das mulheres
e do feminismo. E quando se trata da mulher em situação de privação
de liberdade essa invisibilidade é ainda maior, dada toda a carga de
preconceito que esse espaço carrega: quantos homens estão na fila
para o dia de visita de um presídio? Onde fica a penitenciária feminina
mais próxima da sua casa, você saberia chegar nela? O que pensam
e dizem essas mulheres? Como tornar esse tema visível, em especial
o das mulheres grávidas e recém mães que vivem hoje em prisões?
Como mulheres realizadoras podem contribuir para a construção de
narrativas com mulheres, ressignificando não apenas a ocupação do
território cinematográfico brasileiro mas também a representatividade
feminina nas telas?
Acredito que o audiovisual é uma narrativa potente para a construção dessa visibilidade. E o cinema com mulheres que propusemos
com a realização do C(elas) foi uma ação que buscou contribuiur tanto
para a inserção de mulheres nas principais funções de realização de um
filme — roteiro, direção, fotografia, produção executiva e som direto
— quanto para a construção de uma narrativa sobre experiências de
mulheres protagonistas sobre a maternagem, ressignificando também o
ambiente prisional. Inseridos em uma sociedade onde o aparato de sons
e imagens está presente em praticamente todos os ambientes públicos
e privados, desde a televisão na sala ou nos quartos da maioria das casas, até o telefone celular sendo manuseado em transportes coletivos,
escolas e hospitais, seja com meio de informação ou de entretenimento,
investir na realização de um documentário sobre mulheres grávidas e
recém mães foi a forma que encontramos, e aqui falo por toda a equipe do filme, de contribuirmos para que nossa narrativa protagonizada
252
por mulheres em privação de liberdade pudesse chegar a plateias que
certamente nunca haviam parado para pensar sobre essa questão. Especialmente no contexto brasileiro atual, onde para muitas pessoas
a máxima “bandido bom é bandido morto” é a forma com a qual se
referem e se relacionam com as pessoas encarceradas, acredito que há
muito a ser feito, seja na academia ou fora dela, para que a população
privada de liberdade, em especial as mulheres, possa ser vista, ouvida
e tratada com maior respeito e dignidade.
Referências
Alves, G. S., Simonetti, M. G., & Jesus, D. de. (Produtor) & Alves, G.
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Nacional, Ministério da Justiça. Recuperado de http://www.justica.
gov.br/noticias/estudo-traca-perfil-da-populacao-penitenciariafeminina-no-brasil/relatorio-infopen-mulheres.pdf
254
Cici Pinheiro: Entre as Cenas dos Palcos e do
Audiovisual
Alice Fátima Martins1
Helena Maria de Castro2
1. O Cinema em Goiás
Em 1909, em Goiás, foi inaugurada a primeira sala de cinema no
Cine-Teatro São Joaquim, na cidade de Goiás, então capital do Estado.
No entanto, somente em 1968 foi exibido O diabo mora no sangue,
primeiro filme realizado em território goiano: um longa-metragem feito
em película, com produção, argumento e atuação de João Bennio (19271984) e direção de Cecil Thiré.
João Bennio conseguiu financiamento do Banco Mineiro do Oeste
para a produção do filme, que, finalizado, ganhou grande repercussão.
Ficou 40 dias em cartaz no antigo Cine Capri, no centro da Cidade de
1.
2.
Doutorado em Sociologia.
Professora no Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual e no curso
de Licenciatura em Artes Visuais, na UFG.
Bolsista de produtividade em pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico/CNPq.
profalice2fm@ufg.br
Doutorado e Mestrado em História.
Professora na UFMa, em parceria para atuar com pesquisa pela UFG.
helenamariadecastro1@gmail.com
255
Goiânia (GO), além de ter sido exibido em 39 países. O empreendimento
resultou em lucro que propiciou até mesmo a aquisição de um carro
de luxo, conforme revelou o próprio Bennio em entrevista ao então
jornalista Beto Leão (1958 – 2010).
Um ano depois, Bennio dirigiu seu primeiro filme, Simeão, o Boêmio,
que não logrou o mesmo sucesso. No mesmo ano, 1969, dirigiu também
Tempo de Violência, e em 1973 dirigiu O Azarento – Um homem de
sorte. Entre amigos e conhecidos, Bennio costumava dizer que, quanto
ao trabalho com cinema, no Estado de Goiás, não se tratava de abrir
passagem, mas de dinamitar o caminho.
As décadas de 1970 e 1980 foram marcadas pelo fechamento das
salas de cinema, tanto na Capital quanto no interior, seguindo uma
tendência observada nos centros urbanos em geral. O primeiro cinema
de Goiânia, inaugurado em 1936, o Cine Campinas, passou a abrigar
uma loja comercial. Esse foi o mesmo destino de diversas salas de exibição, como o Cine Presidente, Cine Goiás, Cine Eldorado, Cine Frida,
entre outros. Algumas salas passaram a exibir filmes eróticos, como o
Cine Santa Maria, o primeiro da região central de Goiânia, inaugurado
em 1939, com o nome de Cine Popular. E como em outros estados brasileiros, muitos cinemas se “converteram” em igrejas evangélicas, tais
como o Cine Rio, Cine Capri, Cine Casablanca (que teve também sua
fase erótica) e o Cine Ouro, antes de se transformar em Centro Cultural.
No decurso dessas décadas, a produção cinematográfica em Goiás
foi descontínua e pouco estruturada, além de não ter contado com estratégias de preservação sistematizada dos trabalhos realizados, o que
resultou na perda de muito material, gerando prejuízos irrecuperáveis.
Desse modo, boa parte do seu legado histórico está perdido.
256
O documentarista Beto Leão fez registros sobre a história do cinema em
Goiás, o que resultou em publicações de livros e artigos. É ele quem relata
ter sido a partir da década de 1940 que Goiás passou a ter uma produção
mais significativa, no âmbito da fotografia, com o trabalho do fotógrafo
Jesco Von Puttkammer, que atuou junto com os irmão Villas Boas no
Centro Oeste e na Amazônia registrando o contato com comunidades de
diversas etnias indígenas. Ele cita também os chamados cinejornais de Jamil
Marjane, Atualidades do Planeta, exibidos nos cinemas na década de 1950.
Nas últimas décadas do século XX, alguns realizadores goianos,
em sua maioria profissionais atuantes na publicidade, investiram em
suas próprias produções cinematográficas. O publicitário Hugo Brocks
(OM&B Propaganda), por exemplo, além de atuar no filme “O diabo mora
no sangue”, assinou o roteiro do filme juntamente com o ator e diretor
polonês Ziembinski. Em 1978, José Petrillo (Truka Filmes), também
publicitário, trouxe para Goiás o Troféu Candango no 11º Festival do
Cinema Brasileiro de Brasília pelo documentário em curta-metragem
“Cavalhadas de Pirenópolis”.
Na década de 1970, o interesse pelo cinema como expressão artística e política levou alguns jovens a se reunirem no Cine Rio, no bairro
de Campinas, para as sessões do “Cinema de Arte”. Na ocasião, eram
exibidos filmes então considerados raros, que não entravam em exibição
no circuito comercial. É possível notar aí o princípio do cineclubismo
em Goiás. Essa nova geração de cinéfilos, também engajados no movimento estudantil, foi responsável pela criação do Cineclube Antônio
das Mortes mais tarde, em 1977. Entre fundadores e participantes
estavam Ricardo Musse, Lourival Belém, Herondes Cesar, Lisandro
Nogueira, Eudaldo Guimarães, Divino José, Noemi Araújo, Luiz Cam,
257
Pedro Augusto de Brito, Ronaldo Araújo, Márcio Belém, Hélio Brito,
entre outros. É digna de nota a ausência de mulheres nesse grupo, bem
como nas diversas iniciativas referidas, e sistematizadas nos registros.
Esse grupo promovia mostras de filmes, seminários temáticos e debates
com atenção aos aspectos estéticos e políticos das obras. Nesse período,
vivia-se acirrada repressão decorrente do regime militar.
Na década de 1980 a Take Filmes, uma das maiores produtoras de
filmes de ficção, documentários e vídeos publicitários foi fundada por
Antônio Eustáquio, João Bennio e Ronan Carvalho, tornando-se uma
das maiores produtoras de filmes de ficção, documentários e vídeos
publicitários da região. Ainda nessa mesma década, em seus últimos
anos, foi registrada a primeira produção cinematográfica com direção
assinada por uma mulher. Trata-se do filme de curta metragem, feito em
35mm, “André Louco”, estréia de Rosa Berardo como cineasta, em 1989.
No entanto, o pioneirismo na produção cinematográfica no estado
de Goiás foi protagonizado por Cici Pinheiro que, embora se dedicasse
prioritariamente ao teatro, investiu, na década de 1960, esforços para
a realização do primeiro filme de longa metragem. A dificuldade para
viabilizar financiamento, contudo, inviabilizou a sua finalização. Esta
questão será retomada, em seguida, neste texto.
Ainda na década de 1980, alguns cineclubistas passaram também à
condição de realizadores, dando impulso à implantação da seção Goiás
da ABD – Associação Brasileira de Documentaristas e Curta-Metragistas, em 1985. Atualmente, o Cineclube Cascavel, uma promoção
da ABD-GO, constitui um espaço de reflexão e debate, assim como o
Cineclube Laranjeiras, da UEG, e iniciativas independentes como o
258
Desbitola, ciclo de debates que, entre os anos de 2007 e 2009, buscou
difundir e discutir o cinema goiano.
Em 2012, a cidade de Anápolis sediou o I Encontro Anápolis de
Cineclubes Goianos. O evento realizado pelo Cineclube Xícara da Silva,
de Anápolis, contou com a participação de cineclubes de Goiânia, Jataí e
Acreúna, além de cineclubistas de outros estados numa mostra de que, a
despeito das facilidades de difusão da era digital, o cineclubismo segue
existindo como um espaço de compartilhamento.
A produção literária de Bernardo Élis inspirou muitos projetos cinematográficos e trouxe para Goiás diversos profissionais do audiovisual
atraídos pelo cenário local e pelos incentivos financeiros do Governo do
Estado. Como exemplo, podemos citar o longa de 1981 “Índia, a filha
do Sol”, estrelado por Glória Pires e dirigido pelo carioca Fábio Barreto
e “O tronco”, dirigido pelo mineiro João Batista de Andrade, em 1999.
Em 1992, Wilmar Ferraz, da Universidade Federal de Goiás, dirigiu
“Tropas e Boiadas”, baseado na obra de Hugo de Carvalho Ramos. Com
101 minutos, possivelmente é um dos primeiros vídeos universitários
brasileiros de longa-metragem.
A ausência de um festival ou mostra para dar visibilidade à produção local, congregar os realizadores, socializar suas obras e garantir
o registro e a conservação das mesmas perdurou até 1999 quando foi
criado o FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – evento promovido pelo Estado, com realização anual na Cidade
de Goiás. O festival recebe inscrições de diversos países e prioriza a
temática ambiental. Paralela ao FICA ocorre a Mostra ABD, aberta a
filmes goianos de temáticas variadas.
259
A partir de 2001, a Goiânia Mostra Curtas, festival de curtas-metragens nacionais promovida pelo Icumam – Instituto de Cultura e
Meio Ambiente, passou a compor a agenda de eventos audiovisuais
de Goiânia. Em 2002, a mostra “O amor, a morte e as paixões”, com
coordenação e curadoria de Lisandro Nogueira trouxe para Goiânia filmes de diversas nacionalidades, recém exibidos nos principais festivais
de cinema do Brasil e do mundo. Essa mostra foi descontinuada, mas
retornou em 2012 em sua 5ª edição. O circuito itinerante “Cinema Popular”, organizado pelo Icumam, tem promovido desde 2004 exibições
de filmes nacionais em praças públicas de cidades do interior de Goiás.
Em 2005, a prefeitura de Goiânia lançou o FestCine Goiânia, festival
de filmes nacionais de longa-metragem e mostras paralelas de filmes
de curta-metragem goianos, vídeos universitários e caseiros.
O vídeo universitário teve o seu espaço com a MIAU – Mostra Independente do Audiovisual Universitário, promovida pela Estação Filmes,
entre 2008 e 2010. Ainda com espaço para a produção universitária, porém
buscando um diálogo com produções de outros países da América Latina,
o Perro Loco, um projeto de extensão da Universidade Federal de Goiás,
esteve presente no calendário cultural de Goiânia, entre 2007 e 2010. A
Mostra Trash, uma produção da Monstro Discos, cujo foco era a exibição
de filmes independentes, teve sua última edição em 2010. O II Anápolis
Festival de Cinema, realizado em 2012, é uma promoção da prefeitura de
Anápolis, e tem como particularidade uma mostra competitiva de filmes
anapolinos, além da exibição de filmes regionais e nacionais.
Não é difícil notar que a criação e manutenção da maioria dos festivais e
mostras de cinema em Goiás, bem como o incremento à produção na última
década tem uma relação direta com a implantação das leis de incentivo.
260
No ano 2000, entraram em vigor duas leis de incentivo, sendo uma
de âmbito estadual e outra municipal, respectivamente a Lei Goyazes
(Lei 13.613) e a Lei Municipal de Incentivo à Cultura (Lei 7.957). Há
também o “Prêmio para roteiros originais de curta-metragem do FestCine
Goiânia” que destina uma verba à produção de cinco curtas por ano.
Em âmbito nacional, a produção cinematográfica contou com o financiamento direto da Embrafilme entre 1969 e 1990. A partir de 1991,
com a Lei Rouanet e em 1993 com a Lei do Audiovisual mudou-se a
dinâmica de investimento. Por meio de isenção fiscal, empresas privadas são incentivadas a investir em cultura e cinema. Em 2003, é criada
a Ancine – Agência Nacional do Cinema, com o objetivo de regular,
fiscalizar e fomentar o setor audiovisual.
Como as etapas de produção, distribuição e exibição vêm sofrendo
mudanças estruturais com a digitalização, é possível notar que o Governo Federal tem lançado editais com o intuito de favorecer a produção
audiovisual para as novas mídias e evidencia-se também um incentivo às
iniciativas que conseguem conjugar inclusão digital com inclusão social.
Com os equipamentos digitais para captação de imagens cada vez mais
baratos e portáteis, e as possibilidades de compartilhamento de vídeos pela
internet, verifica-se uma demanda crescente por conteúdo audiovisual.
2. Mulheres do Cinema em Goiás, e o Pioneirismo de Cici
Pinheiro
Mulheres têm deixado sua marca na produção cinematográfica e de
audiovisual, em Goiás, embora haja tão poucos registros a respeito, na
mesma tendência mais ampla observável na narrativa da história oficial
261
do cinema. No caso goiano, desde os anos 1950, é possível ressaltar a
atuação de Cici Pinheiro no teatro, e desde ali, nas primeiras telenovelas
realizadas no Estado, chegando ao cinema.
Floracy Alves Pinheiro (1929-2002), conhecida como Cici Pinheiro,
foi atriz, roteirista e diretora de grande importância na história do teatro
goiano. Nascida em Orizona, no dia 5 de junho de 1929, travou uma
verdadeira batalha para conquistar espaço no meio artístico. É necessário
se ter em conta que a sociedade goiana em meados do Século XX era
marcadamente machista e conservadora, oferecendo toda sorte de obstáculos a mulheres cujos projetos as levassem a ocupar protagonismos
no ambiente público.
Acompanhando a capacidade também exercida pela mãe, durante
quatro décadas, Cici atuou como atriz, mas também como produtora
e diretora, realizando atividades pioneiras no teatro, rádio, televisão e
cinema em Goiânia e em São Paulo. Sua carreira iniciou-se em 1949,
quando a irmã Florami Pinheiro, também dedicada ao campo das artes,
a apresentou à Agremiação Goiana de Teatro (AGT). Ali, ela conheceu
Otavinho Arantes (1922-1991). Considerado por muitos como seu mestre, este a convidou, no ano de 1950, a realizar seu primeiro trabalho
como atriz, na peça Vila Rica, de R. Magalhães Júnior. Ali, ela pode
atuar, também, como assistente de direção, construindo aprendizagens
basilares para os trabalhos que viria a realizar.
Em 1951, a atriz recebeu um convite do jornalista Pimenta Neto,
para atuar na rádio, que nessa época havia escrito um programa para
que ela apresentasse. Afirmava, assim, seu pioneirismo, por ter escrito,
produzido e interpretado a primeira radionovela realizada no Estado,
intitulada “Uma Senhora Mais Brilhante Que o Sol”. Tratava-se de uma
262
narrativa que articulava referências da religiosidade com elementos da
história brasileira, abordando a passagem da imagem de Nossa Senhora
de Fátima por Goiânia.
Floracy Pinheiro recebeu uma bolsa do governo do Estado para
estudar no Teatro Brasileiro de Comédia. Também foi premiada na
Escola de Arte Dramática, de São Paulo. No entanto, a atriz também
protagonizou o primeiro beijo amoroso em cena aberta, numa peça
de teatro. A cena causou repercussão negativa junto à sociedade goianiense. A atriz chegou a ser rotulada como “prostituta”. Afinal, aquele
comportamento não era recomendável a moças consideradas de família.
O mal estar experimentado, então, foi um dos motivadores para que
a atriz se afastasse de Goiânia, buscando ampliar sua experiência no
contexto cultural paulistano.
3. Cici Pinheiro em São Paulo: uma Experiência Renovadora
Em 1950 Cici Pinheiro mudou-se para São Paulo indo ao encontro
da irmã Florami Pinheiro. Alice, pôde conviver com nomes consagrados do teatro. Atuando, assumiu diversos papéis, o que lhe possibilitou
aperfeiçoar sua capacidade de interpretação e trabalho em outras frentes
do teatro. Na capital paulista, trabalhou na Companhia Graça Mello
encenando “A mulher sem pecado”, de Nelson Rodrigues. Também
apresentou programas no rádio, fazia locuções e atuava na TV Tupi e
TV Paulista.
Em 1953, de volta a Goiânia, ela criou o próprio grupo de teatro. Em
depoimento, Antenor Pinheiro (comunicação pessoal à Helena Maria
de Castro, 2020) ressalta que ela tinha muita força, estabelecendo co-
263
nexões entre vários campos de atuação. Assim, nesse período também
deu início à atuação na rede de televisão, instaurando a produção no
âmbito das telenovelas. Pinheiro ressalta que seu percurso gerou muitos
frutos mas também diversas frustrações. E acrescenta:
Tia Cici era uma mulher forte e contraditória. Ao mesmo tempo
que era uma pessoa muito a frente de seu tempo, que desafiava
a sociedade em termos comportamentais, politicamente era uma
conservadora. (Pinheiro, 2020).
Ao seu relato, confirmado nas observações de outros artistas que
com ela conviveram, ela reconhecia, no campo artístico, uma potência
importante para a formação e os projetos educativos. Nesse sentido,
não foram poucos seus embates com o poder público ao longo de sua
carreira profissional. Nesses termos, produziu espetáculos para crianças
de caráter educativo, bem como material audiovisual também. De um
lado, na peça de teatro Goianinho Visita a Flora (1978), mostrava uma
vontade de convocar as crianças ao respeito e cuidados com a natureza. Ao mesmo tempo, nos anos 1980, produziu material audiovisual,
articulando slides, som e performance, para tratar de questões relativas
a doenças sexualmente transmissíveis junto a estudantes de escolas
públicas de educação básica.
4. Entre Goiânia e São Paulo: Ensaios e Erros, Produções
Diversas
Entre os anos 1950 e 1960, Cici trabalhou com teatro, entre Goiânia
e São Paulo, para onde retornou, chegando a trabalhar, em 1961, com
Amir Haddad, no elenco da peça Quarto de despejo, dirigida por Amir
264
Haddad, baseada no livro homônimo de Jesus (1960), ex-catadora de
papel que escrevia em seu diário pessoal o cotidiano das favelas cariocas.
Tendo retornado à capital goiana em 1963, não demorou para assumir a direção e produção da primeira telenovela realizada em Goiás,
“A família Brodie” baseada no livro “O castelo do Homem sem Alma”,
de Cronin (1966). Exibido em 45 capítulos, com seis semanas de duração,
a transmissão era ao vivo, pois à época havia recursos para gravação.
A experiência com a telenovela aliada ao conhecimento no campo
do teatro lhe deu as ferramentas necessárias para que, em 1967, ela se
lançasse à aventura de realizar o primeiro filme de longa-metragem
goiano. “O ermitão de Muquém” teve todas as cenas gravadas em
Goiás. No entanto, repetia-se, ali, o desafio enfrentado pelas mulheres
em geral nos processos de realização cinematográfica, do mesmo modo
que de consolidação na atuação no campo das artes. A despeito de sua
experiência anterior, e de sua indiscutível capacidade, Cici não conseguiu financiamento ou patrocínio suficientes para finalizar o filme. Em
contrapartida, foi nesse mesmo ano que se iniciaram as gravações do
filme O diabo mora no sangue, com João Bennio como protagonista e
produtor, dirigido por Cecil Thiré.
As películas se perderam no decurso do tempo, de modo que não é
possível recuperá-las, ou restaurá-las. Do mesmo modo, não há registros audiovisuais das telenovelas que ela dirigiu e nas quais atuou. Seu
arquivo pessoal, sob a guarda de seus herdeiros, é composto por fotos,
jornais, folhetos de peças, fitas de áudio, além da trilha sonora que
tocou no Teatro Goiânia na peça Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri,
seu último trabalho nos palcos.
265
Embora o teatro tenha constituído o eixo principal de sua atuação
profissional, a inserção social e o audiovisual permaneceram como referência motivadora de ações. De maneira que em 1980 Cici assumiu
o Centro de Observação e Orientação Juvenil (Cooj), órgão ligado à
Fundação Estadual do Bem Estar do Menor/ FEBEM. Nesse período
também desenvolveu um projeto audiovisual para trabalhar com o tema
das doenças sexualmente transmissíveis junto a estudantes nas escolas
públicas. No final dessa década, montou o último espetáculo de teatro,
Gimba, de Gianfrancesco Guarnieri.
Muitos consideram que a temática do espetáculo tem uma relação
muito estreita com sua experiência no trabalho com menores infratores,
e educação social. Trata-se da história de um malandro condenado socialmente, mas aceito no morro onde morava. Um espetáculo cujo pano
de fundo era segregação das camadas menos favorecidas da população.
O argumento da narrativa denunciava, em alguma medida, que a própria
sociedade é responsável pela formação de marginais.
Nessa montagem, Cici prestou uma homenagem à irmã Floramy
Pinheiro e ao “mestre Otavinho Arantes”, dedicatórias datilografadas
pela teatróloga em um livreto da peça. Sua montagem envolveu um
cenário complexo, com grande estrutura, construído por Martins Muniz,
artesão hábil que também tinha experiência com direção e atuação no
teatro e no cinema (comunicação pessoal à Helena Maria de Castro,
2019). O elenco contou com cerca de 50 atores goianos. O palco do
Teatro Goiânia se transformou literalmente em uma favela do Rio de
Janeiro, onde transcorreu toda a história da marginalidade, vivida por
seus moradores. (Ferreira, Helenice, & Silva, 1989). Gimba, o perso-
266
nagem principal, é um malandro condenado socialmente, mas aceito
na sua comunidade.
Para Rangel
Gimba é uma beleza. Não sei se será rigorosamente um espetáculo
teatral, naquele sentido restrito que os críticos entendem um espetáculo teatral. Mas, sobretudo, é um quadro palpitante, real, da vida
brasileira, uma fotografia do morro, do malandro, do crime. E tudo
isso com uma nova movimentação que traz ao palco dezenas de mulatinhos rosados e cabrochas sacudidas para exaltar a habilidade de
chorar a morte do presidente dos valentes. (Ferreira, 1959, pp. 3-4).
Cici estreou a peça em 8 de setembro de 1989. Nesse dia, houve um
acidente que marcou a memória da comunidade goiana. O ator Luciano
Aiola, que interpretou o protagonista, teve o supercílio direito ferido
por uma bala de festim, numa cena que, embora planejada para ser
executada com segurança, acabou mal realizada. Suspensa a temporada,
o espetáculo só retornou em 14 de setembro de 1989.
Nas entrevistas feitas, à época, Cici Pinheiro (1989) ressaltava o
cunho social do espetáculo. Argumentava que, com Gimba, era possível
chamar a atenção da sociedade, de sua responsabilidade com quantas
pessoas que, ante as poucas oportunidades, poderiam vir a se tornar
também marginalizados.
Na antiga residência de Cici Pinheiro, um quadro com a peça publicitária de Gimba chama atenção. Uma pietá tupiniquim sentada sobre a
bandeira nacional, com o filho Gimba, morto no colo. A mãe segurava
um revólver na mão esquerda e fazia um gesto com a direita, de forma
a dar um basta à violência.
267
Em 1991, Cici ganhou o prêmio O Jaburu pela peça Gimba. Foi o
último trabalho da teatróloga nos palcos e, devido a problemas de saúde,
permaneceu reclusa na chácara onde morava, no Setor Criméia Leste,
em Goiânia até o seu falecimento em 2002.
Conclusão
O percurso cumprido por Cici Pinheiro ressalta, em primeiro lugar, a potencialidade de uma mulher inquieta, em busca de exercitar e
experimentar todos os recursos técnicos e tecnológicos de seu tempo,
bem como as linguagens artísticas possíveis. Sobretudo, destaca seu
engajamento com as questões sociais de seu tempo. Por outro lado,
evidencia-se, também, o contexto pouco favorável à atuação feminina
em espaços públicos, no campo das artes, do cinema, particularmente
à frente de produções que implicavam maiores valores orçamentários,
e poder de liderança sobre grupos e instituições.
Essas marcas na trajetória artística de Cici não diferem da trajetória
de outras mulheres que, no âmbito do cinema e de outras áreas das artes, enfrentaram dificuldades redobradas e, quantas vezes, tiveram seus
esforços bem como suas realizações apagadas das narrativas oficiais
históricas.
Neste caso, chama a atenção sua capacidade adaptativa a condições
adversas, bem como a possibilidade de trânsito entre diversas linguagens,
e campos de atuação. Claramente, à sua atuação no teatro, na televisão
e com audiovisual, aliam-se suas preocupações de natureza educativa
e de políticas públicas voltadas para as questões sociais.
268
Por certo, os desafios que tomou para si envolveram dificuldades
extras somadas à sua condição de mulher num contexto discricionário
em várias facetas. Resta-nos aprender com os relatos de seu percurso,
para avançarmos diante dos desafios com que ainda hoje nos deparamos: um percentual muito reduzido de diretoras assinando de filmes de
maiores custos financeiros, o sistema da arte ainda altamente resistente
à atuação mais efetiva de artistas mulheres, uma sociedade que ainda
afirma-se sobre valores marcadamente patriarcais.
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Manhã, Goiânia, p. 16.
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São Paulo: Coletânea Teatral, (53), 1959. Tiros na realidade.
O Popular. Goiânia
270
Adélia Sampaio (Nos) Ensinando a Transgredir1
Bárbara Cezano Rody2
Rosângela Fachel de Medeiros3
Este artigo surge como forma de teorização4 para entendermos as
estratégias da primeira cineasta negra brasileira, Adélia Sampaio, que
ousou5 atravessar as barreiras econômicas e simbólicas do mercado machista, classista, racista e heteronormativo da indústria cinematográfica
brasileira, produzindo e lançando seu primeiro longa-metragem, Amor
Maldito, em 1984. Àgò, pedimos licença para deixar este registro na
história, que entendemos como circular pela perspectiva afrocentrada;
1.
2.
3.
4.
5.
Correção pela revisora ortográfica Eliane de Oliveira Rubim e pela revisora
Nathaly Guatura da Silva.
Mestranda da Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal de
Pelotas e BolsistaCapes-MEC.
barbarac.rody@gmail.com
Doutora e mestra em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS/CAPES).
Professora visitante do Mestrado em Artes Visuais da Univ. Federal de Pelotas
rosangelafachel@gmail.com
A teoria, utilizada no texto, refere-se ao olhar que bell hooks traz a essa atividade
intelectual como sendo “uma prática necessária dentro de um estrutura holística
e de ativismo libertador” (hooks, 2019, p. 96). Ou seja, a experiência pessoal
e teorias orais, são levadas em consideração no processo crítico de teorização,
como formas de nos capacitar e nos fortalecer
O ousar utilizado traz como referência o texto de Evelyn dos Santos Sacramento,
“Adélia Sampaio: Uma cineasta que ousou ser”, de 2017, apresentado no Seminário
Internacional Fazendo Gênero 11 & 13th Women’s Worlds Congress.
271
ou seja, presente, passado e futuro estão todos conectados, assim trabalhamos motivadas para continuar como parte dessas conexões.
O fazer cinema possui vários desafios, dentre estes o recurso econômico é um dos fatores que mais determina a estrutura fílmica de
uma produção. Essa questão foi pontualmente exposta pelxs cineastas6 que estavam na primeira mostra do Cineclube Antônio Pitanga
(Salvador, 2020), tanto pela necessidade de equipamentos para alcançar
certos ângulos e sensações, como também pela importância de se ter
uma equipe e uma saída para resolver o impasse financeiro, que na
maioria das vezes se materializa em forma de financiamento público,
a partir de editais, como o caso da cineasta e produtora audiovisual
Larissa Fulana de Tal.
A cineasta negra baiana relata que a produção de seu curta exibido
no cineclube, Cinzas (2015), teve incentivo público no valor de 95 mil
reais, por ser contemplado pelo Edital de Apoio Curta-Metragem Curta
Afirmativo, da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura
(Sav/Minc), em parceria com a Secretaria Nacional de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) do Ministério das Mulheres,
Igualdade Racial e dos Direitos Humanos, em 2015. Larissa Fulana
de Tal ainda afirma que o recurso financeiro foi fundamental para a
estrutura de filmagem que o Cinzas teve, como por exemplo a câmera
em movimento.
6.
Essas declarações aconteceram durante o Cineclube que aconteceu no Espaço
Cultural Boca de Brasa, no Museu Nacional de Cultura Afro. Os curtas em
exibição eram Cinzas, de Larissa Fulana de Tal; Um Ensaio Sobre a Ausência,
de David Aynan; Rebento, de Vinicius Menezes; e À Beira do Planeta Mainha
Soprou a Gente, de Bruna Barros e Bruna Castro.
272
Figura 1. Frames do filme Cinzas (2015) de diferentes ângulos de uma
mesma cena gravada com câmera em movimento. Imagens retiradas
do trailer do filme disponível na internet. Recuperado de https://vimeo.
com/142628092
Conforme já mencionado, para muitos artistas negrxs a alternativa
mais viável para resolver os entraves financeiros de suas produções são
os editais de financiamentos públicos. Embora sejam de difícil acesso à
maioria de nossxs produtores negrxs, tais financiamentos, principalmente
os de ações afirmativas (mencionados e reivindicados pelo Manifesto
273
Recife em 20017) são, ou melhor, eram8 uma fonte importante para
viabilizar a produção de trabalhos que apresentassem maiores detalhes
técnicos e conseguissem circular por festivais e salas de cinema. Nossa
análise então parte da percepção da trajetória das cineastas negras que
estão realizando produções audiovisuais nas primeiras décadas do século
XXI, pistas no presente que nos levam aos vestígios do passado, que
nos remetem ao pioneirismo de Adélia, pois é rememorando o passado
que aprendemos a traçar estratégias para o futuro.
A proposta de investigação e pesquisa sobre a estética do Cinema
Negro Brasileiro, mais especificamente de cineastas negras, iniciada no
mestrado, me trouxe9 a consciência econômica da produção dos filmes,
e como ela era (e é) um fator determinante e influenciador nas estéticas adotadas nas produções. Ir ao Cineclube Antônio Pitanga e ouvir
cineastas negrxs falando sobre como o financiamento é um desafio em
suas produções confirmou minhas reflexões, que começaram quando li
7.
8.
9.
Para saber maiores informações sobre esse movimento pode ser consultado
o trabalho de Janaína Oliveira na íntegra através da descrição que segue nas
referências, neste texto ela explica tanto sobre o Movimento Recife como o
Movimento Feijoada, e fala sobre a participação das mulheres em ambos os
movimentos.
Coloco no passado, pois esses financiamentos se encontram congelados assim
como os editais LGBTQI’S.
Este trecho do artigo está em primeira pessoa, por conta da necessidade que vejo
de delimitar os espaços de atuação de pesquisadores negrxs na Academia. Não
só pela forte recorrência histórica já observada de apagamento e invisibilidade
em todas as linhas de produção que pessoas negras se inserem, como também
para que outras pessoas negras possam encontrar materiais que se identifiquem
e saibam que nesse momento se trata de uma pesquisadora negra, no caso, aqui
se trata de uma mestranda negra, produtora e pesquisadora de audiovisual com
perspectivas afrocentradas dentro do feminismo negro.
274
o Manifesto Recife10, publicado em 2001, criado após a quinta edição
da Mostra de Cinema de Recife. Esse foi o momento em que artistas
negrxs11 colocaram, pela primeira vez por meios formais, em pauta a
importância de políticas afirmativas no audiovisual. Suas pautas se
somam na história do Cinema Negro aos dogmas apresentados pelo
Manifesto Dogma Feijoada, que surgiu em 1999.
Esse manifesto foi considerado pelos pesquisadores de cinema negro
como sendo o primeiro a estabelecer os pré-requisitos para que existisse um cinema negro brasileiro. Lilían Solá Santiago, única mulher do
Movimento Cinema Feijoada, em entrevista a Janaína Oliveira (2019),
afirma que o “Cinema é uma atividade extremamente elitista”.
O cinema é branco, elitista e “macho”. “Boletim Raça e Gênero no
Cinema Brasileiro”, realizado pelo GEMAA (Grupo de Estudos
Multidisciplinares de Ações Afirmativas) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro, existem intensas desigualdades de gênero e raça
nas áreas de direção, roteiro e atuação dos filmes superiores a 500
mil espectadores entre os anos 1970-2016. (Sacramento, 2017, p. 1)
10. Em 2001, surge o Movimento do Recife, em resposta às críticas feitas durante
a premiação da 5a edição do Festival de Cinema do Recife, em que algumas
pessoas quiseram desmerecer alguns produtores negros(as) do audiovisual ao
serem contemplados nas premiações. Trouxeram à tona suas preocupações
políticas e financeiras e fomentaram o debate pela implantação de programas
de incentivo com foco na etnicidade, suas pautas eram: 1) O fim da segregação
a que são submetidos os atores, atrizes, apresentadores e jornalistas negros nas
produtoras, agências de publicidade e emissoras de televisão; / 2) a criação de
um fundo para o incentivo de uma produção audiovisual multirracial no Brasil;
3) a ampliação do mercado de trabalho para atores, atrizes, técnicos, produtores,
diretores e roteiristas afrodescendentes; 4) a criação de uma nova estética para o
Brasil que valorizasse a diversidade e a pluralidade étnica, regional e religiosa
da população brasileira. (Carvalho, 2011, p. 28).
11. Tanto os produtores de audiovisual quanto atrizes e atores.
275
Então como, em um mercado elitista como descreve Lilian Solá
Santiago, e ratifica a pesquisadora e produtora negra Evelyn dos Santos
Sacramento através da passagem apresentada acima, conseguiremos ousar
em um Brasil em que a competitividade dentro do campo cinematográfico ainda perde espaço para produções estrangeiras, em sua maioria
Hollywoodianas, e de custo mais baixo do que as produções locais?
Como ainda, competir pelos financiamentos com grandes produtoras,
como a Globo Filmes, que acessam leis de incentivo fiscais com maior
facilidade junto às empresas, como a Lei Rouanet?12 Vamos acrescentar,
ainda, a interseccionalidade temporal de gênero, raça e sexualidade,
como no caso de Adélia Sampaio, que ousou, em 1984, produzir um
longa- metragem com a temática do lesbianismo.
Conhecer a história desta mulher negra é conhecer sobre o início
da participação feminina no cinema, pois para além de ser a primeira
cineasta negra, ela também foi a primeira mulher brasileira a fazer um
longa-metragem. A produtora baiana Evelyn Sacramento explica que
Adélia também foi pioneira ao ser a idealizadora do primeiro filme que
aborda o lesbianismo no país. Sobretudo na década de 80, uma época
de crise do Cinema Nacional, produzindo seu filme antes mesmo do
período chamado de Cinema da Retomada, que foi “considerado de
grande efervescência no surgimento de mulheres cineastas, porém, há
12. A Lei nº 8.313, de 1991, mais conhecida como Lei Rouanet, instituiu o
Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac), que canaliza recursos para o
desenvolvimento do setor cultural, com as finalidades de: estimular a produção, a
distribuição e o acesso aos produtos culturais (CDs, DVDs, espetáculos musicais,
teatrais, de dança, filmes e outras produções na área audiovisual, exposições,
livros nas áreas de ciências humanas, artes, jornais, revistas, cursos e oficinas
na área cultural etc.); proteger e conservar o patrimônio histórico e artístico; e
estimular a difusão da cultura brasileira e a diversidade regional e étnico-cultural.
276
uma lacuna, seu nome foi esquecido pela história” (Sacramento, 2017).
O esquecimento ao qual a pesquisadora se refere, entendemos como o
apagamento de uma história sobre estratégias de transgressão.
O conceito de transgressão que trazemos aqui é baseado no livro de
bell hooks, Ensinando a Transgredir (2019), escrito pela primeira vez
em 1994, e que no Brasil já está em sua 4ª tiragem. Sua abordagem se
concentra em traçar reflexões a partir de suas experiências sobre processos pedagógicos, que de algum modo, desviam-se da norma de um
modelo pedagógico autoritário, hierárquico e dominador. A professora
e escritora afro- americana bell hooks apresenta o pensamento e crítica
como prática de teorizar, e tal prática como libertadora, podendo até
mesmo se tornar curativa, se assim a direcionarmos.
Neste contexto, percebemos Adélia Sampaio como uma transgressora
do audiovisual, pois sendo uma mineira radicada no Rio de Janeiro,
Adélia começou a ter contato com o audiovisual em 1969 a partir de
seu emprego como telefonista da Difilm13, indicado pela irmã Eliana
Cobbett, produtora de cinema. Em entrevista concedida a pesquisadora
Cleonice Elias da Silva, doutora em história do cinema, Adélia relata
que “sua formação como cineasta, segundo a própria, deu-se dentro
dos sets de filmagem” (Silva, 2018). E realmente, a caminhada da cineasta transgride paradigmas do status que se diria aceitável para uma
mulher negra ocupar na época (e para alguns grupos até hoje), pois de
telefonista ela se tornou continuísta, e, após fazer um curso, começou
a se especializar em produção.
13. A Difilm (Distribuidora de Filmes Brasileiros Ltda) foi criada em 1965, sua
função era a distribuição dos filmes dos cineastas do Cinema Novo.
277
Sua história segue atrelada a caminhada do Cinema Novo por ela
trabalhar dentro da distribuidora oficial dos principais nome desse
movimento. Além de continuísta, nossa cineasta atuou também como
maquiadora, montadora, câmera, produtora executiva, até diretora de
produção, chegando a trabalhar em 72 filmes. A primeira pesquisadora a mencionar Adélia Sampaio enquanto primeira cineasta negra foi
Edileuza Penha de Souza, mulher negra doutora em educação, que traz
em sua tese de doutorado a seguinte menção sobre a pioneira do cinema
negro no feminino14:
Fundou sua produtora e nela realizou não somente cinema, como
também teatro. Nesse período, dirigiu os curtas “Adulto não brinca” (1979) e “Denúncia vazia” (1979); em 1981, Adélia dirigiu os
documentários “Cotidiano” e “Agora um Deus dança em mim”; em
1982, dirigiu “Na poeira das ruas”. Ela lançou seu primeiro longa
em 1984, “Amor maldito”. Em 1987, lançou “Fugindo do passado”,
e em 2004, “AI-5 – o dia que não existiu”.(Souza, 2013, pp. 83-84)
Seu primeiro curta-metragem, Denúncia vazia (1979), conta a história, baseada em um fato real, de um casal de idosos que comete suicídio
ao receber a denúncia vazia de que o locador retomaria o imóvel em que
viviam. Essa produção foi exibida no Cinema Palácio, o que contribuiu
para sua produtora alcançar boa receita e seguir realizando os outros
14. Cinema Negro no feminino é um termo usado tanto pela pesquisadora Edileuza
Penha de Souza, como pela pesquisadora Janaína Oliveira.
278
curtas, e também foi incentivada pela Lei do curta-metragem que surgiu pela primeira vez em 193315, ainda no governo de Getúlio Vargas.
Da sua experiência em curtas, nossa cineasta ousada busca financiamento pela Embrafilme – Empresa Brasileira de Filmes S.A., empresa
da União que surge na ditadura militar com o objetivo de difundir filmes
brasileiros em território nacional e no exterior. Seu principal programa
era o de Financiamento de Filmes Brasileiros de Longa-metragem, o
que viabilizou recursos a algumas produções brasileiras, investimento
que foi amplamente acessado pelo Cinema Novo.
Tendo como base suas experiências anteriores, em 1984 Adélia
idealiza e dirige seu primeiro longa-metragem, Amor Maldito, roteirizado pelo jornalista José Louzeiro16. Esse longa se tornou polêmico por
contar uma história real sobre o julgamento de um suposto assassinato
que ocorreu no bairro Jacarepaguá, Rio de Janeiro, envolvendo uma
miss e uma executiva que viviam um caso de amor. O roteirista, por ser
jornalista, conseguiu ter acesso aos autos do julgamento, contribuindo
para trazer detalhes que Adélia descreveu como a “violência do tribunal”.
o filme, Fernanda Maia, interpretada por Lafond (1954), é uma
executiva acusada de assassinar sua companheira Suely, ex-miss, interpretada por Dias (1954-1991), mas a verdade é que Sueli cometeu
suicídio após descobrir que estava grávida de um homem casado.
15. Decreto nº 21.240 do artigo 12 de 1933, no Governo de Getúlio Varga. A partir
dessa lei, outras leis de incentivo a produção nacional foram surgindo. Para
consultar maiores informações, buscar no livro Economia da arte e da cultura,
organizado por César Bolaño, Cida Golin, Valério Brittos, de 2010. Descrição
ao fim do texto.
16. Foi jornalista, escritor, roteirista e autor de telenovela brasileiro (1932-2017).
279
Figura 2. Frames do filme Amor Maldito, 1984. Cenas intercaladas do
julgamento e de memórias afetivas da ré. Recuperado de https://www.
youtube.com/watch?v=xUcuRbdeVuE
Toda a história é intercalada com cenas do julgamento em que Fernanda é acusada, sobressaindo uma postura machista e lesbofóbica do
tribunal, em contraste com as lembranças da acusada com sua falecida
companheira em festas e momentos íntimos de amor e liberdade.
O que pesa durante todo julgamento são os valores machistas e
lesbofóbicos, em todo momento Fernanda é acusada de fazer orgias
e desvirtuar Sueli dos caminhos morais trilhados por seu pai um
evangélico moralista e fanático. O filme termina com uma cena emblemática, Fernanda anda pelo cemitério, levando flores, enquanto
ela caminha ouvimos ao fundo em voz off17, a sentença absolvendo-a
da acusação de assassinato, por fim, ela escreve sob a lápide onde
Suely está enterrada a frase, “só eu te amei”.(Sacramento, 2017, p. 5)
17. Voz exterior à cena, que comenta ou narra os acontecimentos.
280
A princípio, Adélia conseguiu três financiamentos da Embrafilme
devido ao sucesso de seus curtas, contudo, tal orçamento foi reduzido até
ser extinto, sendo vetado por completo pela empresa. Os responsáveis
pela Embrafilme alegaram que não poderiam panfletar a homossexualidade, referindo-se ao relacionamento afetivo entre duas pessoas como
uma doença.
A partir do que bell hooks conceitua enquanto paixão da experiência, percebemos que Adélia não se desmotivou com o fato de perder os
financiamentos públicos e pela não aceitação do mercado ao tema de
seu filme. A paixão de suas lembranças, acerca de experiências ímpares
que teve com sua vivência no cinema, possibilitou que nossa pioneira
desenvolvesse Amor Maldito de forma cooperativa. Sua equipe de apoio
de filmagem, e até os atores, contribuíram para a realização em troca
de ajuda de custo. Ainda, através de uma conexão que Adélia havia
feito ao dirigir um espetáculo teatral com os funcionários da empresa
Furnas, a engenheira chefe concedeu o financiamento mínimo para a
realização do longa-metragem, sem nem ao menos ler o roteiro. Suas
experiências lhe deram base para conseguir juntar uma equipe engajada
e o financiamento mínimo para, em quatro anos, finalizar seu primeiro
longa. E essa é a paixão necessária a que nos referimos para transgredir
dentro de um meio.
Quando uso a expressão “paixão da experiência”, ela engloba muitos sentimentos, mas particularmente o sofrimento, pois existe um
conhecimento particular que vem do sofrimento. É um modo de
conhecer que muitas vezes se expressa por meio do corpo, o que ele
reconhece, o que foi profundamente inscrito nele pela experiência.
(hooks, 2019, p. 124)
281
Após sua finalização, o filme ainda sofreu novas represálias, pois nenhuma distribuidora ou sala de cinema estava disposta a exibi-lo. Assim,
novamente, Adélia teve que traçar uma estratégia para conseguir que sua
produção circulasse mesmo que não fosse bem aceita, e essa estratégia
foi a proposta feita pelo dono do Cine Paulista: divulgar o filme como
pornô. Após conversar com sua equipe e com as atrizes e atores, que
concordaram com a ideia, finalmente puderam fazer o filme entrar em
circulação, cobrindo os gastos que haviam feito durante as gravações.
Atualmente, devido ao resgate do nome e história dessa cineasta
pela pesquisadora Edileuza Penha de Souza, o filme tem participado de
festivais com temáticas referentes a questões do movimento LGBTQI.
Chegou a receber homenagens como a I Mostra Competitiva de Cinema Negro Adélia Sampaio, e a exibição do filme Amor Maldito (1984)
em festivais como VII Cachoeira Doc, 16º Goiânia Mostra Curtas,
Mostra Diretoras Negras do Cinema Brasileiro. Hoje, as experiências
apresentadas por Adélia se tornam motivadoras para novas cineastas,
mesmo que essas, assim como ela, sigam tendo dificuldades para acessar
financiamentos públicos, salvo raras exceções.
Atribuímos a invisibilidade dessa história ao racismo vivenciado, que
tem suas raízes no colonialismo, no qual a estratégia em apagar nossas
histórias e nossas experiências serve como silenciamento por parte de
grupos hegemônicos, como os que podemos observar ainda serem predominantes no mercado do Cinema Nacional, homens e brancos. O fato
de haver um descaso com os materiais da pioneira no cinema brasileiro,
seja na categoria de mulher, seja como negra, também revela as formas
de apagamento dessa profissional e de um pedaço de nossa história.
282
Os negativos de seus curtas, que estavam armazenados no MAM
(Museu de Arte Moderna), sumiram do acervo, sendo difícil até para a
própria cineasta ter acesso a suas obras. Mas, apenas poder ter acesso
ao filme Amor Maldito, assim como saber da existência da cineasta, é
capaz de despertar o sentimento de pertencimento em outras mulheres
que estão iniciando no audiovisual, sobretudo cineastas negras. Esse
sentimento vem da representatividade que aquele corpo no lugar de
produtora de imagem, de arte, causa, a partir de seu lugar de fala,
termo cunhado no Brasil pela filósofa Djamila Ribeiro, em seu livro
O que é lugar de fala? (2018). A autora explica que “essa marcação se
torna necessária para entendermos realidades que foram consideradas
implícitas dentro da normatização hegemônica”. (Ribeiro, 2018, p. 33).
A filósofa bebe da fonte da feminista negra Patrícia Hill Collins, ao
escrever sobre Standpoint Feminist.
Esse lugar de fala, enquanto cineasta e negra, vem se reescrevendo
devido ao resgate feito por produtoras do audiovisual e também pesquisadoras, a fim de não permitir que essa história seja apagada novamente.
Como o caso do curta-metragem lançado em 2020, À Beira do Planeta
Mainha Soprou a Gente, por Bruna Barros e Bruna Castro, também
apresentado na primeira mostra do Cineclube Antônio Pitanga.
O desenvolvimento do curta ocorreu dentro da disciplina que uma
das cineastas cursava na Universidade, e fala sobre a relação afetiva
entre duas mulheres, no caso das próprias cineastas que o produzem,
e os afetos e desafetos desse relacionamento atrelados a vivência com
suas mães.
283
Figura 3. Frames do curta À Beira do Planeta Mainha Soprou a Gente,
2020. Mostra a predominância de imagens do acervo pessoal das
cineastas. Recupeado de https://vimeo.com/392606774
A estratégia adotada pelas cineastas foi a utilização de vídeos de
seus acervos pessoais, como interações com suas mães, e também de
vídeos de suas próprias intimidades, sendo necessário gravarem poucos materiais específicos para o curta, trazendo ritmo, e, assim como
Adélia, trazendo a questão LGBTQI como tema da narrativa. Além
de subverterem a utilização da digitalização e da internet, em que, em
geral, são os grandes capitais que se beneficiam.
É certo que a tecnologia abriu possibilidades inéditas de democratização da cultura e da produção dessa cultura, mas também é certo que,
devido aos meios de interação do mercado audiovisual, essa democratização se torna apenas uma brecha.
A segunda mulher negra no audiovisual que conseguiu fazer um
longa-metragem, documentário, foi Camila Moraes, na direção do
284
filme O caso do homem errado (2017). Sua produção durou sete anos
devido à dificuldade de conseguir financiamento, e, apesar da parceria
com uma produtora de cinema, o filme só pôde ser finalizado com o
financiamento da comunidade negra de Porto Alegre.
Figura 4. Frames do trailer O caso do Homem Errado (2017). A primeira
cena é da própria cineasta entrevistando pessoas que se lembram do
ocorrido, seguida de uma frase que contrasta verdade e mentira, implicadas
nessa história, seguida de imagem que contabiliza a quantidade de passos
que vítima estava do local que foi acusado de roubar. Recuperado de
https://www.youtube.com/watch?v=hawkVUcKbxw
Trinta e três anos depois da produção de Adélia, o racismo e preconceitos ainda são percebidos como barreiras para a produção de
cineastas negras no Brasil, e a comunidade negra e movimentos negros
seguem sendo pilares fortes para o Cinema Negro continuar existindo
e fazendo denúncias. Como o documentário de Camila Moraes, que
285
narra a história de Júlio César de Melo Pinto, um operário negro que
foi detido pela polícia confundido com um assaltante de supermercado.
Júlio havia saído sem seu RG e sofreu um ataque epilético durante
a abordagem da Brigada Militar. O filme é baseado em uma história
real que aconteceu há mais de 30 anos, em 1987, em que o suspeito
é fotografado sendo colocado dentro da viatura ainda com vida, para
meia hora depois chegar a um pronto socorro morto, baleado por
dois tiros.
Outra conquista de cineastas negras no campo audiovisual foi o lançamento do trabalho Um dia com Jerusa, de Viviane Ferreira, em 2018.
Percebemos essa conquista em dois sentidos, um por ser o segundo
longa-metragem ficcional feito unicamente por uma mulher negra brasileira, e, também, por ser a única negra “dentre os três contemplados pelo
edital para a realização de longa-metragem de baixo orçamento lançado
pela Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, em 2016, no
âmbito das ações afirmativas”, nos explica Janaína Oliveira, no começo
de seu texto Por um Cinema Negro no Feminino (2019).
A baiana Viviane Oliveira conseguiu, a partir do financiamento, desdobrar o que era o curta-metragem O dia de Jerusa, lançado em 2014,
que narra a história ficcional do encontro entre duas mulheres negras
de gerações diferentes: Silvia, uma jovem que trabalha com pesquisa de
opinião batendo de porta em porta, buscando cumprir a meta do dia, e
Jerusa, uma senhora que vive sozinha e espera pelos filhos, que nunca
chegam, para comemorar seu aniversário.
O longa-metragem segue a história do curta, mas, como Viviane
Ferreira conta em entrevista à Carta Capital (2017), a possibilidade de
trabalhar a história em longa permitiu ter “mais fôlego para explorar o
286
universo em que Silvia e Jerusa estão imersas.” Na entrevista, a cineasta
conta que o filme surge de suas experiências e observações sobre as
dinâmicas cotidianas das pessoas negras na cidade de São Paulo, local
onde reside atualmente.
Figura 5. Frames do curta O dia de Jerusa. Recuperado de https://www.
youtube.com/watch?v=7y9aNEoS7YA
Adélia nos18 ensinou a transgredir dentro do audiovisual para que
possamos nos ver atrás das câmeras19 e das possibilidades de atuação a
fim de driblar as barreiras hegemônicas do cinema brasileiro, que vem
sendo trilhado por mulheres negras em diferentes segmentos. Seja na
produção de curtas-metragens, um campo de importante atuação de cineastas negras, mas que talvez por isso sejam menos visibilizadas; seja
18. Deixo emergir novamente, em comum acordo com minha parceira de escrita, o
meu lugar de fala enquanto mulher, negra, produtora de audiovisual e pesquisadora.
19. Uma pequena referência ao livro que traz o capítulo de Janaína Oliveira, chamado
Por um Cinema Negro no Feminino.
287
com recursos de financiamento público, como no caso de Cinzas (2015),
de Larissa Fulana de Tal; ou seja no recente e independente À Beira do
Planeta Mainha Soprou a Gente (2020), de Bruna Barros e Bruna Castro.
Em longas-metragens ainda temos poucas mulheres negras atuando,
mas já podemos deixar na memória e ser vigilantes para que não se permita apagar da história novamente o nome de Adélia Sampaio; e o nome
de novas cineastas de nossa geração, como Camila Moraes, produtora
de O caso do Homem Errado (2017), que assim como nossa pioneira,
sem ter acesso a financiamentos públicos, recorreu ao crowdfunding, um
espécie de “vaquinha online”, que consiste em financiamento coletivo,
tendo sido em sua maioria apoiado pela comunidade negra local.
E Viviane Ferreira, nossa mais recente diretora de um longa ficcional,
que teve a possibilidade de transformar seu curta O dia de Jerusa (2014),
contemplado pelo Programa Municipal de Fomento Cinema, da cidade
de São Paulo, no longa Um dia com Jerusa (2018), também com financiamento público do Edital Longa BO Afirmativo, em 2016.
Não podemos dispensar que o fato de lutas passadas, como o do Movimento Recife, que iniciaram o debate sobre a necessidade e importância
de se ter editais específicos de ação afirmativa no audiovisual brasileiro,
possibilitaram que produções mais recentes obtivessem financiamentos
por parte da União, que historicamente é a maior financiadora e facilitadora da distribuição de filmes nacionais28, mas que infelizmente ainda
fica com uma pequena parcela privilegiada de produtores.
Pensar um Cinema Negro no Feminino hoje é visibilizar todas essas
histórias que trazem um olhar próprio de seu lugar de fala, falas que se
traduzem em audiovisualidades, e que retratam de forma transgressora
a realidade de sua comunidade e de sua época. Em entrevista à EBC
288
(Empresa Brasileira de Comunicação), a pesquisadora de cinema negra
Janaína Oliveira afirma que as mulheres negras estão tomando a dianteira
em questões técnicas e de qualidade. Agora, enquanto pesquisadoras,
temos a teorização como forma de deixar contada em nossa história, a
caminhada que se iniciou em Adélia, que ainda segue produzindo, e das
novas cineastas como Larissa Fulana de Tal, Camila Moraes, Viviane
Ferreira, Bruna Barros, Bruna Castro, e de tantas outras cineastas que
vêm narrando vivências e experiências a partir do audiovisual. Infelizmente não seria possível, em um artigo só, poder contar as histórias
de todas elas.
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290
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291
Parte 3 - LInguageM
O Protagonismo do Reporterismo no Quadro
Radiofônico Carreteras Secundárias, do
Programa A Vivir que son Dos Días
Tayane Abib1
Recorde de audiência da emissora radiofônica SER (Sociedad
Española de Radiodifusión) aos finais de semana, o programa A vivir
que son dos días bateu a marca de 1.922.000 ouvintes em sua edição
de sábado, e 2.033.000 na transmissão de domingo, de acordo com os
dados divulgados no último Estudio General de los Medios, referente ao
consumo midiático espanhol no terceiro quadrimestre de 2019. O programa, criado em 1988, passou por uma reformulação em 2012, sob
a liderança do jornalista Javier Del Pino, e desde então vem atingindo
índices notáveis de audiência (Cadena Ser, 2019).
Conforme relatado em entrevistado concedida à autora em dezembro
de 2019, para Del Pino o sucesso de A vivir que son dos días, em contexto de queda de audiência da imprensa, da televisão e do rádio frente
aos meios digitais, deve-se ao formato jornalístico distinto que a equipe
do programa busca desenvolver, ao investir tempo e valor na produção
1.
Mestre em Comunicação pela Universidade Estadual Paulista - UNESP.
Doutoranda em Comunicação pela mesma instituição.
tayane.abib@unesp.br
293
de conteúdos próprios e apostar pelo reporterismo enfraquecido como
consequência da crise econômica dos meios de comunicação.
De maneira específica, o quadro Carreteras Secundarias, produzido
pelos jornalistas Bru Rovira e Valentina Rojo, despertam nosso interesse
investigativo. Lançado em 2015, tem como proposta relatar histórias de
povoados espanhóis que nem sempre recebem destaque na cobertura
informativa tradicional. A expressão Carreteras Secundarias carrega,
assim, um tom provocativo e de resistência frente à noticiabilidade e
ao tratamento narrativo que orientam a prática jornalística hegemônica. E é também princípio que instiga reflexões sobre possibilidades
de renovação narrativa a partir de um compromisso profissional com
pessoas e realidades marginalizadas pelo interesse público e midiático.
A partir de um estudo da dinâmica jornalística desenvolvida pelo
quadro do programa, com base em entrevistas realizadas com esses
três jornalistas envolvidos em sua produção e em revisão bibliográfica,
buscaremos evidenciar contribuições de um Jornalismo de Carreteras
Secundarias ao atual cenário de transformação dos meios de comunicação.
A Aposta por Contar Histórias
Cabe destacar, de início, que a rádio é veículo de comunicação com
grande tradição na Espanha. Na hora de sua maior audiência, chega a ter
cifras mais altas que a televisão, em seu momento auge, como assinala
Antoni Bassas (comunicação pessoal, 9 de outubro de 2019), que hoje
é diretor do Ara, o mais recente diário impresso da Catalunha, mas
que tem uma trajetória de mais de 30 anos trabalhando em rádio: “la
voz transmite mucha verdad y mucha proximidad, es muy respetuosa
294
con la gente”, opina o jornalista, ao ser questionado sobre o porquê do
encanto do meio sobre a população. Ao que acrescenta Javier Del Pino
(comunicação pessoal, 28 de novembro de 2019), diretor do programa
aqui analisado, respondendo à mesma pergunta: “la protagonista es
la palabra, y la gente no quiere otra cosa más que la palabra. Por ella,
la integridad, la honestidad, la personalidad del comunicado llega de
manera muy más directa al corazón del oyente”.
Todos os sábados e domingos, assim, das 08:00 às 12:00, a emissora
radiofônica SER, do conglomerado midiático PRISA, que detém também
o periódico espanhol El País, transmite o programa A vivir que son dos
días, dirigido e apresentado pelo jornalista Javier del Pino desde 2012.
Com um total de 38 seções, entre informação, opinião, entrevista, humor
e cultura, A vivir que son dos días recebe contribuições de profissionais
que são referência na história recente do jornalismo espanhol pós regime
ditatorial de Francisco Franco: José Martí Gómez, Ramón Lobo, Juan
Tallón, Gervásio Sanchez, Bru Rovira, entre outros nomes dedicados a
imprimir um formato que vem dando à emissora a liderança da audiência
radiofônica espanhola aos finais de semana.
O sucesso do programa se deve, em grande medida, segundo del
Pino (comunicação pessoal, 28 de novembro de 2019), à configuração
jornalística distinta que a equipe busca implementar, investindo tempo
na produção de conteúdos próprios, a partir de uma aposta pelo exercício
da reportagem. Um modelo de jornalismo radiofónico “más trabajado,
más sosegado, consciente de su valor como sistema de comunicación,
más que como medio de comunicación de masas”, ele diz, que teve
como inspiração a rádio pública norte-americana NPR, que Del Pino
pôde conhecer de maneira mais direta em razão dos dezesseis anos que
295
viveu em Washington D.C, como correspondente da SER e colunista
do diário El País.
Durante mucho tiempo habían intentado que yo regresara a hacer
un programa, y conseguirán convencerme con la promesa de que
yo podría hacer lo que yo quisiera. El programa me lo darían y
no habría ningún tipo de obligación, o ningún tipo de cortapisa.
Entonces, yo empecé el proyecto cuando regresé a España, y la
verdad es que mi casa cumplió su promesa: me han dejado hacer lo
que yo he querido. Eso a veces ha sido un poco complicado, porque,
claro, cuando yo regresé, después de tantos años fuera, e hice un
pico de radio, que era distinto de la radio que se hacía en esta casa,
en este país, pues a principio hubo una especie de choque, por parte
de la audiencia, y, por supuesto, por parte de los directivos de esta
empresa. Sin embargo, la audiencia inmediatamente respondió y
hemos cumplido siete años en la antena con niveles de audiencia
maravillosos (Del Pino, comunicação pessoal, 28 de novembro de
2019).
As premissas de A vivir que son dos días, que acabaram se convertendo em promessas para o ouvinte, conforme conta Del Pino (comunicação pessoal, 28 de novembro de 2019), foram essencialmente
duas: afastar-se dos grandes eixos em torno dos quais se move a rádio
na Espanha – política e futebol – e “escuchar las pequeñas cosas, para
de ellas sacar grandes conclusiones”, de modo a fazer do programa
uma espécie de remanso, ou trincheira frente aos conteúdos midiáticos
hegemônicos.
A vivir, deste modo, sim que trata de temas clássicos, como política
e economia, mas não desde uma abordagem padrão, de confrontação,
como a que abunda na cobertura dos informativos tradicionais, e sem
implicar-se nos esquematismos declaratórios dos discursos oficiais –
não tendo convidado nunca um político a participar do programa, nos
296
oito anos de história em que Del Pino está à frente de sua produção.
O interesse é discutir políticas, mais que política: sociais, culturais, de
emprego – desde a perspectiva das necessidades da população.
É neste sentido que narrativa de pequenas coisas tem destaque
no modus operandi do programa, que, desde 2015, passou a contar com
o quadro Carreteras Secundarias, a partir da contratação do jornalista
catalão Bru Rovira, especializado em temas internacionais e sociais,
para reportar histórias de pequenos povoados da Espanha: “atender a
las pequeñas cosas de la vida para entender a las grandes cosas de la
vida”, explica Del Pino (2019, informação verbal).
Se a dinâmica hegemônica “apunta siempre muy alto para intentar
llamar más la atención”, a prática das carreteras secundárias – como
aprofundaremos mais adiante – prefere “apuntar muy bajo y ahí sacar
conclusiones”.
Te pongo un ejemplo: a todos los periodistas les encantaría entrevistar
a Barack Obama, o al Papa, y tal, ¿no? Pero no estamos en esta
guerra. Preferimos entender el legado de Obama, o entender el
catolicismo actual a través de gente que va a la iglesia, que conseguir
una entrevista con el papa. Y eso nos hace ir a lugares a los que nunca
ha habido un periodista, y escuchar cosas que te ayudan muy bien a
entender lo que está pasando en este país y en el mundo (Del Pino,
comunicação pessoal, 28 de novembro de 2019).
Os grandes meios de comunicação, ou aqueles que informam desde
as capitais, observou o diretor de A vivir que son dos días, muitas vezes
se esquecem de que as grandes cidades são minoria frente ao país, isto
é, que esse é formado por uma multiplicidade de pessoas que vive em
localidades cujas demandas são distintas dos que residem na capital, e
é papel do jornalismo escutar também essas necessidades, bem como
297
repercutir de que modo as decisões tomadas nos grandes centros afetam a
outras comunidades. O processo de trabalho do programa, assim, consiste
em, a partir de reuniões semanais de conteúdo, levantar, entre a equipe
– hoje formada por dez jornalistas – temas que estejam de acordo com
a proposta de reportar problemáticas sociais desde as pessoas comuns,
tomando, para isso, de semanas a meses para a apuração dos fatos.
Por Carreteras Secundárias
Especificamente na seção Carreteras Secundarias, trabalham Bru
Rovira e Valentina Rojo – uruguaia de origem, de 28 anos, que desde
2015 atua na rádio SER -, configurando um modelo de colaboração que
aposta na integração de duas gerações que viveram lógicas profissionais distintas – dado também o momento histórico do país -, mas que
compartilham o modus operandi do reporterismo de toda a vida: “ir
libre de prejuicios a cualquier lugar donde vayas, dejarte sorprender
por cualquier cosa que vayas a conocer, por mucho que creas que ya
te lo sabes” (Rojo, comunicação pessoal, 12 de dezembro de 2019).
Salir en la calle y hablar con la gente, no hacemos nada más que esto.
No hemos inventado nada, es de lo qué se trata el periodismo. No
es algo nuevo en realidad, pero es algo nuevo en la lógica general
de los medios. Mientras el día a día del periodismo va, pues, por las
grandes autopistas, nosotros lo que intentamos es ir por las carreteras
secundarias, el otro lado de las historias que no se cuentan, y que son
importantes, pero, bueno, al final el día a día de la actualidad, pues,
hace que pasen más desapercibidas, o que no tenga tanto espacio
para dedicarles a ellas. […] Creo que es un pequeño remanso de
paz. Lamentablemente ahora esta iniciativa parece que resulta algo
marginal (Rojo, comunicação pessoal, 12 de dezembro de 2019).
298
Rovira (comunicação pessoal, 14 de dezembro de 2019), que nunca
havia trabalhado em rádio em quarenta anos de carreira profissional,
enfatiza que, apesar de a voz jogar um papel importante no meio – onde,
às vezes, os jornalistas se convertem mais em locutores que em repórteres
-o mais importante é sempre ser orelha: “el periodismo, independiente
del medio que sea, es una actitud, es cómo tú llegas a un sitio y escuchas
[…] la potencia tiene que estar es la voz del otro, no en la tuya”. É o
ponto que mais se sobressai na prática de reportagem desenvolvida no
quadro Carreteras Secundárias, na opinião de Valentina Rojo (comunicação pessoal, 12 de dezembro de 2019): “prestar muy poca atención
a cómo va a quedar nosotros, los reporteros, cómo va a sonar nuestra
voz, y simplemente se limitar a conversar con la persona […] lo que yo
he aprendido es que tú es lo primero que tienes que olvidar”.
A expressão Periodismo de Carreteras Secundárias foi cunhada
por Bru Rovira, e empregada publicamente pela primeira vez em 2004,
quando o repórter recebeu o Prêmio Ortega y Gasset pelo conjunto
de seu trabalho. De maneira resumida, a história de vida do jornalista
catalão pode ser apresentada em fatos datados e diretos, como pede o
lead noticioso: nasceu em Barcelona, em 1955, trabalhou nas revistas
espanholas Arreu, Primeras Noticias e La guia del ócio, e nos diários
Tele/Exprés, El Noticiero Universal, Avui, La Vanguardia e Ara.
É importante destacar, no entanto, seguindo a linha do reporterismo
que estamos a defender neste artigo, que demanda um movimento de
aproximação para ir além dos simples dados e alcançar a complexidade
das histórias, que a trajetória profissional de Rovira está ligada ao período de resistência do jornalismo espanhol, em defesa da liberdade de
imprensa durante o regime ditatorial de Francisco Franco (1939-1975),
299
desde o Grup Democràtic de Periodistes. Está inspirada, também, no
trabalho de Ryszard Kapuscisnki, sobretudo em suas incursões pelo
continente africano, fazendo da atitude de reportar a partir de personagens anônimos a peça chave de sua conduta profissional.
Da convicção do historiador e repórter polaco “de que para tener
derecho a explicar se tiene que tener un conocimiento directo, físico,
emotivo, olfativo sobre aquello de lo que se habla” (Kapuscinski, 2002,
p. 15), Rovira aprendeu o valor da observação às pequenas coisas. Identificar aqueles detalhes que significam aos sujeitos, conferem sentido ao
seu cotidiano e acabam por conectar suas micro-realidades a dimensões
sociopolíticas mais amplas.
Uma panela, que desde uma visada de aparência não é mais que a
materialidade de um utensílio doméstico, ganha em simbologia a partir
do olhar atento de um repórter que busca significação, e vai percebê-la
como o sustento de uma vida familiar. Há uma passagem representativa
desta acepção, relatada por Rovira em entrevista aos autores, que ajuda
a ilustrar esse movimento de reportagem:
Eso ocurrió en Mozambique cuando rescatamos una señora con
un helicóptero, después de las inundaciones del 2000. Esta señora
subió, y cuando estaba en el helicóptero dijo ‘me he dejado la olla’,
pero el tío del helicóptero decía ‘bueno, cada hora de vuelo en este
helicóptero vale no sé cuántos millones’, y ella insistía ‘no, es que
yo sin mi olla no puedo vivir, necesito la olla’… El tío entonces le
contestó ‘bueno, nosotros tenemos que ir’, y la señora por fin se tiró.
Entonces, claro, la olla no es solo una olla, y nosotros periodistas
tenemos que explicar eso. Está la olla, pero también está la señora,
y está el helicóptero, y está el vuelo, y bueno, tenemos que hacer
las conexiones de las cosas (Rovira, comunicação pessoal, 2 de
outubro de 2019).
300
Os elementos aparentemente simples carregam a potência de uma
história, com sua vitalidade, suas contradições e fragilidades. O jornalismo, afinal, como ensina Kapuscinski (2002, p. 37), é também ofício de
emoções, já que “la fuente principal de nuestro trabajo son ‘los otros’”.
E, para Rovira, é pelo escopo que atrela os diminutos às subjetividades
humanas que somos capazes de alcançar a complexidade do real – como
uma espécie de porta de entrada à compreensão das redes contextuais
que formam a vida em sociedade.
Se o mundo pode ser explorado desde uma multiplicidade de rotas,
Rovira elegeu, portanto, adentrá-lo pelas vias secundarias. Essas, conforme comenta Sandra Vicente (comunicação pessoal, 3 de dezembro
de 2019), jornalista do diário Catalunya Plural, “aunque te estraguen
las rodas del coche, te hagan gastar más gasolina […] te abren la mirada
para percibir cosas que están ahí, por las cuales pasamos por delante en
la calle y que no nos fijamos”.
Alfonso Armada, presidente da seção espanhola Reporteros sin
Fronteras, com carreira nos jornais El País e ABC, viveu, nos anos
2011 e 2012, a experiência de percorrer diariamente alguns quilômetros
pelas carreteras secundárias de Espanha. Publicou, em 2018, a obra
Por carreteras secundarias, que relata suas viagens desde a madrilenha
Puerta del Sol, atravessando o interior da Catalunha, da Galícia e da
Andalucía, passando por Extremadura.
A proposição que estava em jogo era investir no caminho, sem se
preocupar com a chegada. Disfrutar, de fato, o percurso, e dedicar maior
interesse aos entornos – o que não costuma ocorrer quando se transita
pelas pistas principais.
301
Por carreteras secundarias tienes que ir más despacio, puedes parar,
puedes escuchar, puedes vivir, puedes encontrarte con lo inesperado.
[…] Sobre todo tomándose tiempo, es decir, perdiéndose por las
sombras de las cosas, por las historias […] para percibir que hay un
sentido mucho más allá de lo que vemos por las vías tradicionales
(Armada, comunicação pessoal, 27 de setembro de 2019).
Aplicada ao jornalismo, essa dinâmica assume a configuração de
uma prática contracorrente: diante dos tradicionais discursos midiáticos que se deixam orientar por interesses políticos e empresariais,
manifesta-se como provocação e modo de resistência. Uma expressão
que é uma atitude vital, “que va muy en contra del periodismo oficial”,
como comenta Josep Carles Rius (comunicação pessoal, 5 de novembro
de 2019)2, e que, portanto, sinaliza para uma espécie de jornalismo de
anti-poder: “hay un punto de compromiso social en el sentido de dar
voz a los perdedores, explicar la realidad a partir de los que están al
margen de la sociedad […] fijar un lugar en la historia para hablar de
los que sufren”.
Na ideia de carreteras secundarias também está o posicionamento
do repórter catalão em questionar o processo de produção noticiosa
acomodado nas rotinas profissionais (Traquina, 2005), extrapolando a
divergência em relação a um fazer jornalístico que se padronizou sentido à ação: assumir a conduta propositiva de resgatar o protagonismo
narrativo de pessoas e temas marginalizados pelas coberturas midiáticas
hegemônicas, de modo a convertê-los em peças centrais nas discussões
acerca das problemáticas socioculturais.
2.
Presidente da Fundación Periodismo Plural. Foi subdiretor do diário La Vanguardia
nos anos 1990.
302
Aos tradicionais saberes de reconhecimento, procedimento e narração (Traquina, 2005), que direcionam modelo informativo em função
de critérios de noticiabilidade, predileção por fontes oficiais e redação
em formatos de lead e pirâmide invertida (Lage, 2005), a proposta de
carreteras secundárias fundamenta possibilidades de coberturas de fôlego, onde o valor está na construção de sentidos tecida por cada sujeito,
no compartir entre repórter e personagens, e na tomada de uma escritura
que, antes de aplicar fórmulas, busca encontrar os pontos de cadência
entre os acontecimentos, através de uma vinculação com seus contextos.
Yo prefiero, y hago, un periodismo de carreteras secundarias en el
sentido que el mainstream no me interesa. Lo que me interesa es
circular más por los lados, por dentro, es decir, salir del discurso
oficial para enfatizar un modo distinto de hacer. […] Y ese modo
distinto es también una provocación. Periodismo es conocimiento de
lo que ocurre a través de las personas, de los sentimientos y, sobre
todo, del escuchar. La idea de carreteras secundarias, para mí, es
dar fortaleza a todo eso que se ha perdido (Rovira, comunicação
pessoal, 2 de outubro de 2019).
Kapuscinski (2002, p. 38), desde uma posição marginal, já inscrevia
o jornalismo como exercício essencialmente de relações, “saber como
dirigirse a los demás, cómo tratar con ellos y comprenderlos”. A dinâmica assumida por Rovira, ao se basear na centralidade do sujeito
e na observação aos detalhes cotidianos, depende de uma abertura à
escuta e de uma atitude compreensiva desde o movimento do diálogo:
“ponerse en el lugar de entender cómo el otro vive, por qué vive así,
con quién vive, cómo se relaciona con los otros, con los objetos, con
la naturaleza, qué sueños tiene, que ideal tiene” (Rovira, comunicação
pessoal, 2 de outubro de 2019).
303
Hans-Georg Gadamer (2002, p. 247) reflete sobre a experiência
dialogal em ensaio que compõe sua célebre obra Verdade e Método II,
e que pode se estender ao campo jornalístico precisamente por enfatizar
o potencial das interações que reconhecem o valor da humanidade de
seus partícipes: “é só no diálogo que os homens podem encontrar-se e
construir aquela espécie de comunhão onde cada qual continua sendo
o mesmo para o outro porque ambos encontram o outro e encontram a
si mesmos no outro”. Quando inscreve a entrevista jornalística como
um braço da comunicação, Cremilda Medina (2008) põe precisamente
em relevo tal procedimento em configuração de encontro com o Outro,
para além de simples técnica.
Sua crítica ao dirigismo com que se executam os processos noticiosos busca liberar o profissional da camisa-de-força do questionário
fechado, sublinhando “as possibilidades de enriquecimento informativo
de uma entrevista de tipo aberto ...: o centro do diálogo se desloca para
o entrevistado ... e esta relação tem condições de fluir” (Medina, 2008,
p. 11). Sob essa via, a entrevista assume feição compreensiva, interessada no “conhecimento de sujeito a sujeito” (Morin, 2002, p. 94), aquele
que deseja o “vínculo com a coisa que se aborda, com o outro, com a
pluralidade dos outros, com o mundo” (Sodré, 2006, p. 68).
Está, portanto, diretamente relacionada com a humanização do
contato interativo, atenta aos sentidos que emanam do ato presencial
- “a sintonia dos silêncios, dos gestos ... dos sinais sutis do corpo, o
brilho úmido da pupila, o olfato” (Medina, 2008, p. 93). O verdadeiro
carisma do diálogo, recorda-nos Gadamer (2002, p. 244), “apenas se
faz presente na espontaneidade viva da pergunta e resposta, no dizer e
deixar-se dizer”.
304
Toda boa narrativa do real só se justifica se nela encontramos protagonistas e personagens humanos tratados com o devido cuidado,
com a extensão necessária e com a lucidez equilibrada onde nem
os endeusamos nem os vilipendiamos. Queremos antes de tudo descobrir o nosso semelhante em sua dimensão humana real, com suas
virtudes e fraquezas, grandezas e limitações (Lima, 2009, p. 359).
Assim, os processos de apuração e entrevista que se conjugam no
exercício do reporterismo aqui destacado acabam por consolidar a experiência-vivência do jornalista no contexto reportado, isto é, convidam-no
a participar e se envolver com a realidade de suas fontes, “abriendo
nuevas e inusitadas posibilidades de captar, aprender, rescatar, narrar y
comprender el ser humano en su relación con el mundo” (Osório Vargas,
2017, p. 43). A prática imersiva, conforme Lima (2009, p. 373), permite
ao autor esse mergulho no real, para “viver intensamente, de corpo e
alma, a experiência de vida dos personagens”.
Considerações
Inscrito em visada propositiva, este estudo buscou reunir elementos
teóricos e interpretativos para a reflexão acerca do valor do exercício
da reportagem na cobertura informativa radiofônica. A partir de revisão bibliográfica e pesquisa de campo, dedicou-se a analisar o formato
desenvolvido pelo programa A vivir que son dos días, desde o entrecruzamento dialógico das considerações de três jornalistas que cuidam de
sua produção: Javier Del Pino, Bru Rovira e Valentina Rojo.
De modo específico, debruçou-se sobre o quadro Carreteras
Secundárias, implementado desde 2015 com a contratação de Rovira,
que já havia cunhado a expressão e se especializado neste tipo de repor305
terismo em seus anos de trabalho para o jornal espanhol La Vanguardia,
onde, inclusive, chegou a assinar uma seção homônima aos domingos
– de 2004 a 2007. Na aposta da direção do programa pela conjunção de
experiências e visões de duas gerações distintas do jornalismo, atreladas
pela essência mesma da profissão de “ver, ouvir e contar”, o quadro
investe no movimento da escuta e do diálogo para relatar histórias de
pequenos povoados do país.
Resistindo ao jornalismo declaratório que, conforme Joaquim Ferreira
dos Santos (2005, p. 243), “se tornou o grande vencedor do momento”,
a prática das carreteras secundárias é simples e ousada, a uma só vez,
por levar a cabo os valores básicos da profissão (Kapuscinski, 2003), que
se perdem nas rotinas do facilitismo tecnológico. Se o telefone ganha
protagonismo nas redações em função das necessidades imediatistas e
das restrições financeiras das organizações, não há mediação técnica,
conforme Medina (2008), capaz de abarcar a cena viva, em cheiros, silêncios, cores e paladares, que ambienta os seres em relação. Ao telefone,
comenta Gadamer (2002, p. 244), “não é possível ouvir a disposição de
abertura do outro para entrar em diálogo”, de modo que a aproximação
mútua e a dimensão da partilha tão importantes ao processo se esvaem.
Quando se assume, entretanto, o ato presencial no exercício jornalístico, mobilizando os sentidos de apuração e interação compreensivas,
o interesse noticioso passa a se fazer possível também mesmo nos
lugares mais comuns, em meio à cotidianidade que frequentemente é
marginalizada pela agenda pública e midiática. Junto aos personagens
anônimos, mulheres e homens ordinários (Certeau, 1994, p. 13) que
tecem sua resistência na “floresta dos produtos impostos” e que car-
306
regam, ademais de histórias singulares, elementos de socialidade que
“constituem o essencial da existência” (Maffesoli, 2005, p. 102).
Afinal, como escreve Rovira (2019, informação verbal), “a todo mundo
le mueve lo mismo […] y la grandeza es ver historias que tú te identificas
con ellas porque hay cosas tuyas, pero va más allá, va abriendo puertas
a la comprensión del humano” – e é ese o plano de fundo, acreditamos,
da dinâmica jornalística que perfaz o programa A vivir que son dos días
e dá o tom narrativo do quadro de reportagens aqui analisado.
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Insular.
308
Presença Feminina nos Games Online:
Visualidades, Papéis e Outras Questões
Alice Fátima Martins1
Bárbara Stela Oliveira2
Bruno Araujo3
Matheus Martins4
Para darmos início a uma discussão sobre as questões levantadas
pela diferença de gênero dentro dos games online, acreditamos que seja
interessante articular um pensamento sobre como pudemos avançar
até tal ponto, ou seja, porquê e até que ponto passamos a considerar
importante os acontecimentos nesse universo das telas e como podem
ser reverberadoras de ações fora daí.
1.
2.
3.
4.
Doutora em Sociologia, Mestre em Educação.
Professora no curso de Licenciatura em Artes Visuais e no Programa de PósGraduação em Arte e Cultura Visual da UFG.
Bolsista de produtividade em pesquisa pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico/CNPq.
profalice2fm@ufg.br
Graduanda do curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFG.
Bolsista financiada pelo programa de bolsas de licenciatura PROLICEN.
barbara.s.oliv@gmail.com
Mestre em Arte e Cultura Visual.
Professor substituto na Faculdade de Artes Visuais/UFG.
brunoemaraujo@gmail.com
Graduando do curso de Licenciatura em Artes Visuais da UFG.
Bolsista financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico/CNPq modalidade PIBIC.
martinsm.visual@gmail.com
309
Podemos começar falando um pouco mais sobre o jogo. Para tanto,
evocamos Flusser, de cuja definição mais nos aproximamos, ao pensar
o jogo em estreita relação com a arte e a cultura. Valem-nos as referências da sua breve reflexão sobre jogo a partir do “homo ludens”,
termo cunhado pelo historiador holandês Johan Huizinga (1938), no
qual ele traz a perspectiva de que o que dá sentido e diferencia o ser
humano dos animais e dos aparelhos é a capacidade de jogar e brincar.
No entanto, ele define:
Que “jogo” seja todo sistema composto de elementos combináveis
de acordo com regras. Que a soma dos elementos seja o “repertório
do jogo”. Que a soma das regras seja a “estrutura do jogo”. Que
a totalidade das combinações possíveis do repertório na estrutura
seja a “competência do jogo”. E que a totalidade das combinações
realizadas seja o “universo do jogo”. (Flusser, 1967, p. 1)
O que nos dá bases para dizer a frase “a vida é um jogo”. Talvez já
tenhamos ouvido algumas várias vezes. Mas para além disso, daremos
foco ao assunto que vai além dessa breve introdução pela perspectiva
de jogo de Flusser, usada aqui de modo muito breve, apenas para sublinhar a ideia de que o ser humano está sempre jogando, sempre sendo
fantasioso, lúdico e criador de obstáculos e superações a partir da sua
liberdade. “Em outras palavras distingue-se dos computadores e dos
aparelhos administrativos pela poesia, pela filosofia, e pela abertura a
crenças zero variáveis.” (Flusser, 1967, p. 6)
O que no decorrer da nossa existência construímos e que hoje conhecemos como história não passa de um grande jogo instituído com
todos os elementos citados acima. São esses elementos que, articulados,
constituem, para Flusser, os jogos, desde as regras até as combinações
310
realizadas. Para o autor, tão somente o ser humano é capaz de reinventá-los mesmo que superado por suas próprias criações. Criações,
inclusive, em que os games estão inseridos. O ser humano é o único que
pode propor novos jogos, novos repertórios, novas estruturas e novas
maneiras de se jogar, assim dizendo.
E é o que vimos/vemos com o avanço das ferramentas tecnológicas,
a aparição de aparelhos eletrônicos a invenção da internet, as realidades virtuais, o modelo econômico de sociedade, a transformação das
mercadorias, a fluidez cultural, os modos de ler imagens.
Assim como essas mudanças transformaram o que nós conhecíamos
genericamente como jogo transformou também o âmbito cultural e a
maneira de como nós enxergamos o mundo e consequentemente a arte,
entretanto não entraremos em uma maior discussão político econômica
colocando em questão o acesso e conhecimento de tais transformações
por uma camada contrastante da população mundial, por mais que entendemos nosso lugar de privilégio por ter conhecimento e oportunidade
de discutir tais questões.
Nesta etapa, a ideia é fazer uma breve apresentação do modelo de
jogos que já não são tão parecidos com o xadrez, a dama, as cartas, no
sentido de que se organizam através de outras plataformas e possuem
narrativas que não se limitam a uma única apresentação, e também do
que atualmente passa a se considerar arte ou até mesmo desmistificar
alguns conceitos, diluir ou deixar em suspenso algumas definições antes
preestabelecidas, assim buscando fazer uma aproximação entre os dois
campos a partir da nossa bagagem teórico conceitual.
Já que, até este ponto, defendemos a possibilidade de considerar que
todas as atividades humanas possuem a características de jogo, vamos
311
nos concentrar no que Flusser distinguiu de “jogo fechado” que seria
“quando o repertório e a estrutura estiverem imutáveis” (Flusser, 1967,
p. 3) e especificamente aos que estão inseridos nas plataformas digitais.
Os jogos digitais, que foram possíveis a partir da invenção do universo
digital, são considerados um tipo de jogo entre tantos outros e hoje tomam espaço no que diz respeito a recepção e veiculação de imagens e
competem com redes sociais, noticiários e qualquer objeto cultural que
venha operar, principalmente, através de imagens. Algumas características dos jogos não-digitais ainda contaminam os jogos digitais que com
as ferramentas que operam não possuem limitação prévia de criação e
experimentação. Os jogos digitais atuam de forma que ultrapassam as
barreiras de criação sensível, podendo também tensionar os limites do
que consideramos ver no mundo contemporâneo onde se pode explorar
os outras sentidos como matéria prima. No entanto, daremos foco aos
assuntos que estão diretamente ligados às imagens e a criação histórica
cultural de como passaram a veicular as narrativas que estão atreladas
aos jogos, em especial os digitais, como já havíamos dito.
Você com certeza já deve ter visto uma pessoa por aí com uma camiseta estampando a imagem de um personagem/cena de algum game,
encontrado alguém lendo uma HQ que narra as aventuras de um jogo,
ver um amigo assistir um filme que se baseia nas histórias de um jogo
ou até mesmo pode ter sido você a pessoa que fez todas essas coisas. Ou
seja, os games já não estão restritos às telas e as várias horas dedicadas
a desvendar seus mistérios e aprimorar nossa experiência dentro deles,
eles passaram a fazer parte da vida de forma com que não se consome
apenas o jogar, mas todos os produtos que possam surgir dos games e
que você um adepto possa encontrar um uso para esse produto.
312
Trazemos aqui o exemplo do Machinima é um termo inglês da junção
das palavras machine (máquina, nesse sentido, os computadores e os
jogos), animation (animação) e cinema (cinema) que dialoga com o que
estamos tratando aqui podendo ser um bom exemplo já que a intenção
é discutir imagens. o Machinima “não se trata apenas de um produto,
o machinima pode ser denominado como um processo de produção.”
(Maia, Regis, Marinho, & Fernandes, 2018, p. 2)
Em síntese, a prática de produzir machinima consistiria na captura
de ações em um jogo para modificar e customizar a experiência de
modo a explorar criativamente criando um novo conteúdo sobre um
determinado assunto distinto do encontrado no videogame base.
(Maia et al., 2018, p. 3)
Essas produções são, em geral, veiculadas pela internet. Então
é frequente que qualquer pessoa com desejo criativo possa usar seu
percurso dentro do game para recriar essa experiência por meio das
ferramentas do cinema e da animação. Há autores que discutem as
nuanças democráticas ou até mesmo anárquicas da internet. Contudo,
o que queremos ressaltar neste texto é a influência que as imagens podem imprimir na vida em sociedade e como essas imagens estão sendo
criadas e movimentadas, organizando a forma como estabelecemos as
relações entre nós. Cabe fazer algumas perguntas. Nos pautamos pela
justiça e exercitamos sensibilidade crítica quando pensamos em (re)
criar imagens? Continuamos normalizando moldes ultrapassados e que
podem ser cruéis? Essas e várias outras perguntas devem ser feitas.
É fato que de um tempo para cá as representações de nossas realidades, fantasias, desejos etc. saíram das telas, dos murais religiosos,
das galerias de arte e dos museus e invadiram nossa vida cotidiana, e
313
essas cenas passaram a ser cada vez mais comum no nosso dia a dia que
inclusive acabamos normalizando sem levar em conta a influência das
imagens sobre nós. Então se as imagens já não estão, de certa forma,
aprisionadas apenas aos grandes santuários de adoração e passaram a
fazer parte da nossa vida banal, o que podemos denominar arte?
O mundo está abarrotado de perspectivas e cada pessoa pode pensar
da forma que lhe vier a calhar. Então essa questão da arte é portadora,
sim, de variantes de ideais e conceitos, de questões éticas, estéticas e
políticas. Há quem busque segregar a Arte entre as que são produzidas
a partir de um pensamento que se pretende intelectual, a serviço dos
mesmos preceitos da arte encontrada nos livros de história da arte, e
que podem ocupar lugares em grandes museus, galerias e salões de
arte e os produtos/artefatos que são produzidos por qualquer mero
mortal, por assim dizer. Entretanto, existe uma perspectiva dos estudos
da cultura visual que visa englobar todas as produções imagéticas não
com a intenção de determinar um valor aos objetos produzidos, mas de
buscar entender qual tipo de influências esses artefatos podem causar
na cultura e no cotidiano da sociedade, assim podemos trabalhar tanto
com as imagens veiculadas nos espaços ditos específicos para a Arte
quantos com as que fogem desse padrão já que “existe uma pedagogia
cultural de Fronteira de visualidades, uma pedagogia da diferença e
dissidência porque se situa no espaço entre, no qual as coisas não são
umas ou outras, mas umas e outras.” (Fernandez & Dias. 2014, p. 101),
ou seja, aqui passamos a considerar a os jogos digitais e as imagens que
surgem de sua narrativa com a mesma intensidade que podemos tratar
de uma pintura conhecida globalmente como a Monalisa de Leonardo
da Vinci. A intencionalidade passa da mera valorização/valoração para
314
ser minuciosamente analisada como artigos que podem interferir na
nossa vida contemporânea já que estão a todo momento inseridos às
nossas ações, desejos e obrigações cada vez mais rápidos e voluptuosos.
Digamos que é chamada a atenção para essas atuais narrativas e
imagens que circulam pelo nosso imaginário e que podem moldar nossa
convivência e nos influenciar assim como os afrescos nas igrejas da
Idade Médias influenciavam os fiéis cristão, pouco ou nada letrados.
Chamamos a atenção para as visualidades:
Um termo do início do século XIX que faz referência à visualização
da história. Esta prática deve ser imaginária ao invés de perceptual, porque o que está sendo visualizado é demasiado substancial
para que qualquer pessoa individual o veja, e é criado a partir de
informações, imagens e ideias. Esta habilidade para compor uma
visualização manifesta a autoridade do visualizador. (Mirzoeff,
2016, pp. 746-747)
1. Questões de Gênero na Arte e nos Jogos
Em 2017 em São Paulo o coletivo de artistas Guerrilla Girls exibiu
um cartaz em que denunciavam a discriminação de gênero no acervo do
MASP com a seguinte frase “ As mulheres precisam estar nuas para entrar
no museu de arte de São Paulo? apenas 6% dos artistas do acervo em
exposição são de mulheres , 60% dos nus são femininos”. Questionavam
o papel da mulher no âmbito do sistema da arte, e a inviabilização das
mulheres artistas presente até hoje em muitas instituições. Não só no
meio da arte as mulheres aparecem em menor número. O mesmo ocorre
também na ciência, na academia, na tecnologia, territórios onde ainda
enfrentam diversos obstáculos em suas carreiras. À Martha Somerville,
cientista escocesa do final do século XIX, foi dito que, se continuasse
315
estudando de modo tão intenso, acabaria por se tornar estéril, ou por
ficar louca. A ela, bem como a todas as mulheres daquele contexto, não
eram assegurados os direitos à educação formal. Em vez disso, era esperado que assumissem as responsabilidades das atividades domésticas,
familiares, os cuidados com o marido e os filhos.
Na história da arte ocidental, a representação do corpo feminino
é tema recorrente. A figura se repete independente da época ou país:
corpos femininos, brancos e nus principalmente pintados por homens.
Esse fato corrobora para manutenção da imagem feminina de “passividade, de submissão a um olhar masculino, tanto de artista quanto do
espectador” (Berger, 1999, p. 286). Luciana Loponte ressalta que essas
imagens naturalizam e legitimam o corpo feminino como objeto de
contemplação, transformando em verdades essas representações, que
pouco tem relação com as mulheres. Logo, essas visualidades pouco
dizem da sexualidade feminina e sim de como a masculina se afirma
na posição de poder tanto na história da arte como em jogos, revistas,
filmes, novelas ou em qualquer mídia comercial.
Retomando as expectativas em relação à formação e atuação das
mulheres, é preciso notar que as mesmas obrigações não eram (são)
impostas aos homens da mesma maneira. Eles poderiam dedicar o tempo
aos estudos, à arte, aos esportes e às questões relativas às tecnologias
disponíveis. Esses territórios, ainda hoje, são ocupados predominantemente por homens. , que pode ser analisada a partir da quantidade de
funcionárias mulheres nas empresas e nos cursos de graduação voltados
para tecnologia. Para mulheres ainda são destinadas às áreas de educação
infantil, saúde e trabalhos domésticos, acompanhados da desigualdade
316
salarial, assédios morais e sexuais, durante a carreira profissional, com
suas habilidades constantemente questionadas.
Pensar sobre os espaços que as mulheres ocupam ou deixam de
ocupar é indispensável para refletirmos a formação do espaço dos jogos
eletrônicos. Em 2016 ocorreu a pesquisa Game Brasil, que tinha o propósito de traçar o perfil do público gamer brasileiro. Os dados levantados
revelaram que o público feminino compõe maioria dos gamers do brasil.
A pesquisa, porém, foi bastante contestada, era comum encontrar o argumento que questionava se essas mulheres saberiam jogar “bem”, e,
portanto, se poderiam ser consideradas gamers. O interesse das mulheres
pelos jogos continua crescendo, porém o universo dos jogos continua
percebido como predominantemente masculino: para uma mulher se
declarar gamer ela tem que se preparar para provar regularmente que é
uma boa jogadora (Bristot, Pozzebon, & Frigo, 2017).
Ainda Segundo Bristot, a construção da visualidade e dos discursos
articulados pelos jogos perpassam não só o jogo em si, mas também o
que antecede o produto completo, sua criação, seu design e sua jogabilidade: essas etapas não são livres de ideologias/discursos ressoando
em seus personagens a manutenção da objetificação do corpo da mulher
e a manutenção de um sistema de privilégios masculinos refletidos em
aspectos culturais.
Entendendo que as produtoras de jogos ainda tem grande parte da
equipe de funcionários formada por homens, como exemplo a empresa
americana Riot, milionário estúdio de jogos responsável por League of
Legends, que recebeu atenção da mídia por uma notícia publicada pelo
site Kotaku sobre as medidas tomadas pela empresa após denúncias de
sexismo dentro da instituição, no final de 2019, demonstrou que somente
317
22% do quadro de funcionários é composto por mulheres. Constantemente a imagem das personagens femininas no jogo League of Legends
traz características de sexualização e objetificação do corpo feminino, as
silhuetas dos corpos apresentam um padrão de magreza e fragilidade ou
sensualidade representando o ideal de feminilidade, feitas para vender
o jogo. Em a fotografia e o fetiche, (Botti, 2003, p. 108) ressalta que:
A imagem da mulher é produzida artificialmente pela sociedade
para ser desejada e aceita enquanto objeto de desejo consumível.
A fetichização da imagem da mulher é, antes de tudo, parte de uma
aprendizagem social, onde o masculino e o feminino são criações
culturais que condicionam diferentemente cada indivíduo a funções
sociais específicas e diversas. Essas construções tornam a mulher,
cada vez mais, uma imagem passível de ser fetichizada
Figura 1. Dos primeiros aos mais recentes modelos da personagem
Lara Croft, da franquia Tomb Raider: pernas à mostra e roupa justa
foram um aspecto visual marcante da personagem por quase 20 anos.
Recuperado de https://www.ps4home.com/badass-bombshell-naivestrong-heroine-evolution-lara-croft/
Boa parte das personagens femininas na história dos jogos passa
por um descaso de suas histórias, e se tornam, ainda hoje, ícones de
sensualidade ou se tornam lindas donzelas indefesa em perigo e em
318
segundo plano como par romântico do personagem masculino principal, como o caso da princesa peach, nas primeiras séries de videogame
Mario Bros. Jogos como Street fighter tem personagens femininas com
corpos desproporcionais e sexualizados, no sentido de grandes decotes,
roupas curtas, além de em versões anteriores os desenvolvedores chegaram a programar personagens femininas com quantidades inferiores
de vitalidade (Lee, 2014).
Partindo da perspectiva da cultura visual, de formadora do olhar
por meio das visualidades que nos cercam, e com a intenção de encarar
de forma comparativa as imagens produzidas para o universo gamer,
desenvolvemos um comparativo que envolve o vestuário das 145 personagens encontradas no jogo League of Legends, levantando quais
partes do corpo são mais mostradas dependendo do sexo biológico do
personagem. Nessa análise os seguintes critérios foram levantados: se
personagem utiliza barriga a mostra, se o personagem possui fotos que
valorizam os glúteos, se existe decote ou se o peitoral está a mostra, se
utiliza roupa justa, vestido e/ou armadura metálica.
A análise constata que as personagens femininas correspondem somente a 36% dos personagens do jogo e dentre elas a maioria possui as
características analisadas, menos um único item: as armaduras metálicas
são uma quase exclusividade dos personagens masculinos.. As guerreiras
do jogo não usam armadura como os homens, quando as tem são peças
metálicas muito coladas ao corpo, ressaltando seios e curvas. Segundo a
pesquisa de Rodrigues (2014), 64% das personagens femininas mostram
algum grau de nudez em 117 personagens lançados em 2014. Hoje em
2019, com 145 personagens, continuam 64% delas contendo graus de
nudez. O marcador de feminilidade mais comum no jogo como aponta
319
também Rodrigues são os seios fartos que ocorre em 57% das personagens que em geral são excessivamente magras, brancas e curvilíneas.
Figura 2. Gráfico comparativo do vestuário dos personagens de league
of legends 2019 fonte: elaborado pela autora.
No jogo é possível comprar skins (acessórios, roupas, itens que somente afetam a parte estética do jogo sem afetar a jogabilidade), com
que os personagens podem se equipar. Essas roupas foram consideradas
na coleta dos dados desta pesquisa. Essas novas roupas eventualmente
surgem com uma proposta desconexa do jogo, gerando alternativas estéticas diferentes da temática original da/ do personagem. Um aspecto que
chama atenção é que essas skins são muitas das vezes tematizadas com
fantasias eróticas nas personagens femininas. Esse tipo de produto, que
tem em sua finalidade última agradar os fãs por meio da customização da
experiência estética dentro do jogo, é a fonte maior de renda de empresas
320
como a Riot: professora sensual, enfermeira sensual, faxineira sensual,
dentre outros, estão dentre os best sellers escolhidos pelo público.
Figura 3. Lux- Personagem league of legends: armadura colada com
seios protuberantes, cintura extremamente fina e pose impraticável para
qualquer não contorcionista. (Fórum league of legends)
Figura 4. Fiora (personagem league of legend) skin de professora.
(Fórum league of legends)
321
Nenhuma imagem é inocente e toda imagem é acompanhada de
discursos. Percebendo isso podemos verificar que os desenvolvedores
de jogos utilizam todo o ferramental disponível para construir uma
experiência que replica, através de imagens, sons, movimentos, etc,
estereótipos de gênero com a finalidade última de vender produtos que
objetificam a mulher. Essa não é a realidade de todos os jogos, tampouco
de todos produtos, mas é uma prática comum e facilmente encontrada. Nos últimos anos, com a popularização dos debates sobre gênero
e sexualidade, estão se tornando mais comuns personagens diversos.
A problematização da representação hipersexualida da figura feminina
também gerou boas consequências nos últimos anos, onde personagens
que tradicionalmente hipersexualizadas tiveram seu design refeito,
apesar das esperadas acaloradas recepções de parte vocal do público.
(Princess Weekes, 2019)
Conclusão
Tendo em vista a noção de jogo proposta por Flusser (1967), retomamos a ideia de que as relações sociais como um todo podem ser
analisadas a partir desses princípios. Assim, as estruturas de poder, de
dominação, as atribuições de valor, os exercícios de linguagem são passíveis de análise a partir dessa noção ampliada dos games conhecidos
como mero entretenimento. Neste trabalho, pudemos trazer algumas
questões relativas a gênero, a partir da noção de jogo, estendida também
ao campo da arte. Nesse recorte, indagamos sobre a questão da presença
feminina nesses contextos.
322
A análise das relações de gênero que se dão no mundo gamer, tanto
dentro quanto fora dos jogos de entretenimento, explicita o fato de que
relações de poder têm sido impostas a partir das masculinidades, sendo
essa uma circunstância predominante dos jogos em seu sentido mais
amplo. Essas relações afetam não apenas as mulheres, mas homens
também, impondo modos de ver, se ver e ser visto baseados em estereótipos e preconceitos de gênero.
É importante ressaltar que existem muitas variáveis envolvidas nesse
processo de significação de gênero, envolvendo também questões de
classe, sexualidade, cultura, entre outros. Porém, ao enfatizar as questões
de gênero, e principalmente as representações das feminilidades dentro
dos jogos, é possível encontrar ligações claras entre a maneira como
mulheres são representadas dentro dos jogos, no campo das artes, em
continuidade com os modos como mulheres são tratadas na sociedade
ocidental. É gerada, assim, uma relação cíclica que se retroalimenta: a
maneira que as feminilidades são reproduzidas na sociedade influenciam
as maneiras que as mulheres são retratadas nos jogos, que por sua vez
reafirmam visões estereotipadas e sexualizadas do papel da mulher na
sociedade. As relações encontradas entre a criação da imagem feminina
nos jogos é uma consequência da representação da imagem diante dos
discursos recorrentes da história da arte eurocentrada.
A indissociação entre representações das feminilidades nos meios
culturais e comportamento social apontam que a perpetuação das violências simbólicas que mulheres enfrentam nos mais diversos ambientes
passa por um projeto hegemônico orquestrado e colocado em prática
nos mais variados meios, como na arte canônica e nos jogos, com as
mais diversas ferramentas.
323
Não restam dúvidas de que se fazem necessárias reflexões sobre como
mulheres são representadas nos jogos, que atingem massivamente os
mais diversos públicos mundialmente, principalmente o público jovem,
que está em processo ativo de formação cultural. Propomos então pensar
o papel da mulher na cultura de massa, principalmente nos jogos, com
a finalidade última de alcançar mais representatividade, dignidade e
igualdade dentro desses espaços.
Referências
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Mirzoeff, N. (2016). O direito a olhar. ETD - Educação Temática Digital,
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https://www.themarysue.com/sonya-blade-mk11-new-look/
325
Da Pintura à “Pintura”
Natalia Martin Viola1
Denis Renó2
1. A Origem na Pintura
Louis Jacques Mandé Daguerre, pintor, cenógrafo e inventor francês
do século XIX usava a câmera obscura para auxiliar na pintura de suas
obras de arte de grandes dimensões, ou para obter um contorno preciso e
perspectiva perfeita da paisagem desejada. Porém, como um exímio inventor, Daguerre começou a experimentar formas de fixação destas imagens
sem precisar desenhar sobre a mesma. Após centenas de experimentações
e uma parceria com o também inventor francês Joseph Nicéphore Niépce,
Daguere conseguiu uma forma de fixação da imagem obtida através da
luz, e chamou a descoberta de Daguerreótipo (Hacking, 2012).
Antes disso, devemos voltar ao início da história da invenção da
fotografia, e que pode ser considerada como uma evolução, tendo visto
que ela pode ser datada de 350 anos Antes de Cristo, com Aristóteles.
1.
2.
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da
FAAC-Universidade Estadual Paulista - UNESP.
natalia.m.viola@unesp.br
Livre-docente em Ecologia dos Meios e Narrativas Imagéticas.
Professor Associado na Universidade Estadual Paulista - UNESP.
denis.reno@unesp.br
326
Em um de seus livros, o filósofo descreve sobre o princípio de propagação retilínea da luz, tendo o conhecimento de que a luz, ao passar
por um orifício reflete as sombras no lado oposto. Conhecimento este,
proveniente dos homens das cavernas, podendo ser observado em diversos livros teóricos e filosóficos como a “Alegoria da Caverna” de
Platão. Podemos ainda, citar como princípio filosófico da fotografia o
conceito de imagens, que são:
superfícies que pretendem representar algo. Na maioria dos casos,
algo que se encontra lá fora no espaço e no tempo. As imagens são,
portanto, resultado do esforço de se abstrair duas de quatro dimensões
espácio-temporais, para que se conservem apenas as dimensões do
plano. Devem sua origem à capacidade de abstração específica que
podemos chamar de imaginação. No entanto, a imaginação tem dois
aspectos: se de um lado, permite abstrair duas dimensões dos fenômenos, de outro permite reconstituir as duas dimensões abstraídas na
imagem. Em outros termos: imaginação é a capacidade de codificar
fenômenos de quatro dimensões em símbolos planos e decodificar
as mensagens assim codificadas. Imaginação é a capacidade de fazer
e decifrar imagens (Flusser, 2011, p. 15).
A busca pela representação da imagem vem acompanhando o desenvolvimento do homem desde os primórdios. Das pinturas rupestres das
cavernas, passamos às pinturas com tintas provenientes de ingredientes
retirados da natureza para tintas aquarela e a óleo. O homem passou a
fazer obras de arte elaboradas do que via, mas ainda não era a representação do real. Uma obra de arte podia demorar de dias a semanas
para ficar pronta e o momento era efêmero. Com o desenvolvimento
da fotografia, esta busca pôde se efetivar. O momento, ou “instante
decisivo”, passou a ser capturado e o real pôde ser observado. Instante
327
decisivo é um termo atribuído a Henry Cartier-Bresson, pela característica
que possuía de capturar o essencial em uma só cena. Bresson dizia que
de todos os meios de expressão, a fotografia é o único que fixa o
momento preciso. Nós jogamos com coisas que desaparecem, e
quando desapareceram, é impossível fazê-las reviver. ... uma fotografia é para mim o reconhecimento simultâneo, numa fração de
segundo, por um lado, da significação de um fato, e por outro, de
uma organização rigorosa das formas percebidas visualmente que
exprimem esse fato. (Cartier-Bresson, 2004, p. 19)
Desta forma, a fotografia, proveniente de um esforço das artes em
conseguir representar em algum suporte o real começou a mudar de
forma. O que antes era usado como suporte para o desenho e pintura
com a “câmera obscura” evoluiu para uma chapa metálica, embebida
com químicas dentre elas o betume e que, ao absorver a luz revelava
sombras e realces formando a imagem quase perfeita do real, porém,
ainda passível de manipulação, uma vez que ainda alguns ajustes eram
necessários. Podemos citar os casos dos retratos. Na daguerreotipia, o
tempo médio para a elaboração de uma fotografia era de 15 minutos,
o suficiente para que uma pessoa se mexesse e desfocasse a imagem.
Com isto, os fotógrafos se viam obrigados a pintar por sobre a imagem
já revelada os olhos dos personagens, que na maioria dos casos saiam
borrados e fechados devido aos movimentos contínuos do piscar.
A pintura e a fotografia ainda se entrelaçavam. Alguns artistas continuavam utilizando a fotografia como base referencial para a composição de seus desenhos e pinturas. Um exemplo é o ilustrador alemão
Heinrich Zille que saía pelas ruas de Berlim fotografando cenas cotidianas de trabalhadores em situações comuns ou ainda de risco, bem
328
como problemas sociais e políticos e fazia cópias (à mão) exatas das
fotos ou apenas parte delas em seus desenhos. Zille recebia diversas
críticas, pois colocava em suas ilustrações a sua visão exacerbada dos
problemas registrados pela câmera fotográfica e recebeu muitas críticas
por isso. Porém, com o tempo se tornou uma figura legendária e de
grande reputação (Gee, 2008).
Figura 1. Novembro 1918. Fur Alle! Fotografia de Heinrich Zille. (Gee,
2008, p. 125)
329
Outras técnicas de utilização das fotografias como base para a pintura foram desenvolvidas ao longo do tempo, e se baseavam em intervenções prévias com fumaça e riscos gravados nas chapas de vidro e
depois eram expostas ao sol com o papel fotossensível, e o resultado
era semelhante às gravuras. No final do século XIX, o desenvolvimento
possibilitou a fotografia a ocupar lugar nas ciências e comunicação,
sendo usada em jornais, raios X, e noticiários, mas poucos aceitavam
a fotografia como arte. Críticos expressavam opiniões divergentes
sobre o valor das fotografias. Pintores aprendiam com fotógrafos e
usavam as fotografias como material de estudo, mas o contrário não
era recíproco. Aparentemente surgia uma nova classe que acreditava
na fotografia enquanto algo inerente a qualquer tipo artístico e àqueles
que pensavam o contrário não eram aceitos. Neste caso, a fotógrafa
Julia Margaret Cameron se enquadra. Ela fazia experimentações com
retratos elaborados com luzes de forma dramática e intervenções. Julia
via na fotografia uma forma de arte, porém suas fotos foram marcadas
por duras críticas (Hacking, 2012).
Britânica nascida na Índia em 1815, Julia era visionária. Aos 48 anos
de idade ganhou sua primeira câmera fotográfica. A fotógrafa iniciante
tinha admiração pela arte, principalmente pelos retratos renascentistas,
e os usava como inspiração para seus retratos fotográficos. A fotógrafa
tinha o costume de usar seus filhos, os familiares e amigos como modelos, entre eles, Alice Liddell3 e Charles Darwin4 em uma sala de sua
residência improvisada como estúdio. Julia Cameron usava de artifícios
3.
4.
Alice Liddell foi a inspiração para a personagem de “Alice no País das Maravilhas”,
escrito por Charles Dodgson (pseudônimo-Lewis Carroll).
Charles Darwin, geólogo, biólogo e cientista, criador da teoria da “seleção natural
das espécies”.
330
de longa exposição, e luz natural lateral para criar efeitos na fotografia
e principalmente desvincular a nitidez da imagem (que era tida como
elemento base para uma obra de qualidade), e a caracterizar como algo
mais dramático e artístico. Usava suas fotografias também para quebrar
barreiras sociais impostas às mulheres, como por exemplo, retratando-as
com cabelos soltos, fato que era incomum, pois as mulheres “respeitáveis” só podiam ser vistas com cabelos presos pela sociedade.
Figura 2. Julia Jackson, fotografia de Julia Margaret Cameron, 1864.
(Museu Victoria e Albert, Londres)
331
Até antes do século XX, as fotografias não tinham espaço em galerias
de arte e raramente eram vistas junto às pinturas, esculturas ou qualquer
outra obra, porém Alfred Stieglitz, um fotógrafo e colecionador de arte
abriu sua própria galeria em 1905, juntando fotografias e obras de arte
em um mesmo espaço. Stieglitz acreditava que a fotografia era tão
importante quanto qualquer pintura. Alfred acreditava que a fotografia
tinha uma expressão artística semelhante a qualquer outra forma de arte.
Defendia ainda uma crença de que a mídia possuía grande potencial
estético e difundia esta ideia junto a um jornal criado e mantido junto
a colegas fotógrafos amadores. Em suas fotografias, utilizava grande
escala tonal, além de incorporar a pictorialidade causada por intervenção
de elementos naturais como chuva em suas revelações. Mesmo Alfred
sendo considerado o primeiro fotógrafo a ter suas fotografias expostas
em um museu, sua técnica começou a mudar com a vinda da Primeira
Guerra Mundial. As práticas que se assemelhavam a desenhos e as imperfeições, mesmo que provocadas conscientemente como intervenções
nas fotografias como manifestação artística começaram a dar lugar à
busca pelo real (Danzing, 1992; Hacking, 2012)
2. A Ruptura
Em meados do século XIX, os cientistas começaram a utilizar as
fotografias com intuito de documentar os mais diversos fenômenos naturais. Os antropólogos usavam as fotografias para estudos e investigações
científicas, estas, adquiridas de fotógrafos viajantes, e eram usadas para
caracterizar os mais diferentes povos e tribos indígenas. A medicina também se apropriou da fotografia para análises e estudos do corpo humano
332
e os diferentes tipos de doenças físicas e neurológicas. A lei não ficava de
fora. As fotografias também desempenhavam importante papel no auxílio
da identificação de criminosos pela antropometria baseada em estudos
fotográficos do corpo humano. E a ciência desta forma, começou a se
apropriar da fotografia que era utilizada desde as imagens microscópicas,
de RX, até as fotografias astronômicas do Sol e da Lua (Hacking, 2012).
Com a criação do filme de rolo tudo ficou mais fácil. A câmera fotográfica diminuiu de tamanho e não era mais preciso sair com sacolas
de chapas de vidro e produtos químicos. George Eastman, criador da
Kodak possibilitou que qualquer pessoa pudesse fotografar com um rolo
de filme 35mm de 100 poses e o encaminhamento aos laboratórios de
revelação a fotografia se tornou febre. A Kodak utilizava o slogan “you
press the button, we do the rest” (você aperta o botão, nós fazemos o
resto) (Gernsheim, 1991).
As pessoas saíam às ruas para registrar o cotidiano vivido. Câmeras
fotográficas eram comercializadas com foco comercial em mulheres
e em crianças. O mercado estava a todo vapor e com isso, o rumo da
fotografia também mudou. Começaram a surgir as fotografias documentais e os registros dos diversos problemas sociais que a população
começaram a ser vistos por todos e a fotografia havia se tornado uma
ferramenta político-social. Os retratos e as composições artísticas ainda
eram feitos, porém esta nova fase da fotografia estava ganhando mercado
e visibilidade. O real era capturado quase que no seu exato momento.
Os problemas sociais eram retratados e utilizados como propaganda
para a luta da reforma social. Fotógrafos faziam retratos da população
carente, ou as condições precárias das cidades e vendiam aos jornais e
periódicos locais, ou ainda, registravam a grande massa de imigrantes e
333
trabalhadores. Cada fotógrafo abordava o tema de uma forma específica,
uns mais críticos, outros mais sentimentais, mas todos com a intenção do
registro do momento histórico e real da sociedade. Na Figura 3, fotografia
de Jacob Riis de 1889, é possível observar moradores, provavelmente
imigrantes dividindo um quarto de tamanho minúsculo com condições
precárias de instalação e acomodação.
Figura 3. Inquilinos de um cortiço na Bayard Street, cinco centavos a
vaga, 1889. (Hawking, 2012)
Esta característica de Riis, de retratar as condições precárias de trabalho
e moradia por imigrantes era reflexo de sua experiência de vida. Imigrante, o fotógrafo passou diversas dificuldades até conseguir um trabalho
em uma agência de notícias. Desta forma, passou a utilizar a fotografia
como reflexo de sua experiência de vida e sentimentos (Hawking, 2012).
A fotografia havia se transformado em ferramenta política poderosa
e em objeto de desejo para a grande massa da população. Com a tecno334
logia desenvolvida por George Eastman e a redução drástica dos custos,
as pessoas comuns podiam registrar os mais banais acontecimentos, ou
ainda, fazer um álbum inteiro só de um dos filhos. De crianças a idosos,
homens e mulheres, a fotografia não tinha mais gênero e idade, e com
isso, suas características também foram mudando. De algo pensado,
idealizado, composto, preparado, a fotografia passou para apenas um
registro. Certamente, para que uma foto seja caracterizada com qualidade,
deve possuir, ao menos, boa composição, técnica ou intenção específica
de comunicar algo a alguém. A fotografia deve passar uma mensagem,
pois é um meio de comunicação, e para isso, deve estar bem escrita com a luz - para que sua mensagem seja decodificada corretamente.
Claro, que com as revoluções, invenções e evoluções sofridas pela
sociedade, o pensamento humano tende a se modificar. As pessoas,
com a fotografia, desejam passar ao próximo tudo àquilo que elas estão
vendo ou o que as perturba, desde um simples registro de um produto,
um encontro de família que deve ser guardado para a posteridade ou
fatos históricos como as guerras. Porém nada é realmente neutro na
fotografia. Mesmo que o instante decisivo tenha sido capturado, ele foi
feito a partir de um olhar, de um pensamento, de uma visão específica
de mundo, que manipula o equipamento fotográfico no ato de fazer a
imagem ao seu gosto. Tudo é manipulado e tudo é manipulável.
3. A Volta à “Pintura”
A fotografia nunca se desvinculou da arte. Foi criada a partir da
necessidade dela, e mesmo nos momentos mais decisivos, onde o
desenvolvimento humano propiciava a captura do real e a evolução
335
científica, a arte esteve presente. Mesmo em momentos em que a política, a economia ou os meios de comunicação de massa induziram os
caminhos da fotografia, a arte sempre esteve presente. De acordo com
Wassily Kandinsky:
A Atmosfera espiritual das grandes épocas é tão prenhe de um desejo
preciso, de uma necessidade bem definida, que se torna fácil ser
profeta. É, de modo geral, o que ocorre nos períodos de mudança; a
maturidade interior que escapa ao olhar superficial provoca, então,
um abalo invisível e irresistível no pêndulo da vida espiritual. Aos
olhos do observador superficial, esse pêndulo continua a oscilar no
mesmo lugar. Ele sobe segundo sua marcha regular, detém-se de um
instante, instante extremamente curto no alto de sua curva, e toma a
direção nova, o caminho novo. É nesse instante incrivelmente breve
que qualquer um pode profetizar a sua nova direção. É curioso, quase
incrível, que a “grande massa” não acredite no “profeta. A “precisão”, o espírito de análise, as definições incisivas e rigorosas, as
leis rígidas, o que viveu durante séculos para se “desenvolver” no
XIX até dominar tudo, para o nosso grande assombro de homens
do XX, tornou-se subitamente tão estranho, tão caduco e, aos olhos
de muita gente, tão inútil, que se torna necessário violentar-se para
pensar, para lembrar que “era ainda ontem” e que… “em mim ainda
subsistem muitos traços dessa época” (Kandinsky, 2015, p. 164).
Segundo o autor, a arte tem “sua vontade natural de ser arte”. A arte
é sentimento e permeia o ser humano em toda a sua existência, em todos
os seus atos e mesmo que os indivíduos digam viver a realidade, esta
é feita a partir da percepção individual de cada um. A fotografia desde
sua criação sempre foi um meio de comunicação. Através da história
dela, é possível perceber e afirmar tal fato. Os suportes, desde seu desenvolvimento mudaram drasticamente, e de abstrata ela voltou a ser
abstrata com a imagem digital.
336
Durante o pós-guerra, diversos fotógrafos abandonaram a fotografia
documental voltando as atenções para a fotografia abstrata e para o
surrealismo como formas de expressão. Mesmo que as experiências e
experimentações eram consideradas anti-fotográficas, o movimento continuou, e paralelo à fotografia documental, a fotografia artística sempre
existiu. Com o avanço tecnológico e o desenvolvimento da fotografia
digital, a maneira de se trabalhar sofreu alterações. Agora, a fotografia
pode ser obtida com milésimos de segundos e possui diversas vantagens referentes ao armazenamento, divulgação além da manipulação
de imagens (Hedgecoe, 2005). Softwares de edição e manipulação de
imagens foram desenvolvidos, bem como os diferentes meios de comunicação de massa se atualizaram para o recebimento e divulgação quase
que instantânea da imagem. Os aparelhos telefônicos agora também
possuem capacidades fotográficas e, a cada ano, evoluem combinando
pixels para garantir a qualidade técnica da fotografia.
O termo Mobile Photography já é utilizado há quase uma década.
Cruz e Meyer (2012) citavam a utilização do telefone celular como uma
mudança positiva proporcionada pelas mudanças tecnológicas, onde a
realidade cotidiana poderia ser captada e alterada com a ajuda da “mobile
phone photography” e os aplicativos de tratamento de imagens, tornando
as imagens mais artísticas. Para Keep (2014), o celular surgiu como um
equipamento operante na produção e compartilhamento de fotografias
neste novo milênio. Este trabalho adota o conceito de mobgrafia, que
resulta do mesmo debate. O termo mobgrafia (mobile + fotografia) é
utilizado para as fotografias que são feitas a partir de aparelhos celulares,
desde sua concepção até o tratamento final. É sabido que os aparelhos
celulares têm sofrido grandes evoluções tecnológicas, e juntamente
337
com elas, as câmeras que se encontram dentro destes equipamentos.
A forma de captura da imagem é a mesma que se utilizava desde 1826
com o início da fotografia analógica, com a captura da luz através de
um orifício e uma lente, porém, do papel fotossensível passamos para
os sensores digitais que convertem a luz captada pelas lentes – os
celulares possuem conjuntos de lentes da composição da câmera- e
a converte (a luz) em elétrons que são transformados em megapixels
pelo processador.
Nas câmeras dos aparelhos celulares, os sensores possuem tamanho
reduzido, reduzindo consequentemente a captação de luz e a qualidade
da imagem, além de restrição de abertura do diafragma, porém, a tecnologia trabalha na resolução destes problemas, com o desenvolvimento de
aplicativos para a melhoria da fotografia. Desta forma, a fotografia feita
por celular, ou simplesmente a mobgrafia, tem como aliados os aplicativos de tratamento de imagens, compensando as falhas e melhorando
significativamente a qualidade das mesmas. O pós-processamento ou
simplesmente pós-edição pode transformar a foto mobile, possibilitando
além das qualidades estéticas, o redimensionamento para impressões
em grandes formatos.
Alterar o contraste, a nitidez, saturação e trabalhar pontualmente em
cada uma das cores RGB é uma característica que apenas a fotografia
digital possui. Claro, do modo mais pictórico de arte, com tintas também há esta possibilidade. Ainda existem diversos fotógrafos que não
aceitam a fotografia digital, muito menos a manipulação e tratamento
de imagens, porém diversos outros entenderam que todas as técnicas
de manipulação são formas positivas para se elevar a arte da fotografia.
Distorção, recortes, efeitos especiais, sobreposições e colagens com338
plexas com diversos elementos fotográficos são algumas das diversas
possibilidades da arte digital elaborada a partir da fotografia.
No século XIX quando a fotografia surgiu (enquanto suporte definitivo registrado pela academia com o daguerreotipo), era usada como
base para a pintura, com o passar do tempo e juntamente com o desenvolvimento humano ela foi sofrendo diversas alterações, rupturas e no
século XXI volta a ser usada como base para a “pintura”.
4. Conclusão
Evolução tecnológica, pixels, megabites, softwares e aplicativos.
Tudo isso modifica não só a imagem, mas também a forma como o
fotógrafo a faz e a sociedade a recebe. Ao longo da história da arte e da
fotografia elas se esbarram, se misturam em beleza e essência. Pintores
se baseavam em registros fotográficos para as mais diversas criações
artísticas, podendo citar o Futurismo, o Dadaísmo e a Pop Art ou ainda
o contrário, quando os movimentos artísticos que influenciavam a fotografia como o Modernismo, o Expressionismo e o Neoplasticismo. Por
um momento na história, elas seguiram caminhos distintos e enquanto
a pintura mantinha-se na ideia de representação pictórica imbricada
dos sentimentos do artista, a fotografia caminhava para o realismo
político-social, para a fotografia de rua, de guerra. Mas a história se
encarregaria de revelar que ambas se encontrariam novamente.
E é na atualidade que a fotografia e a pintura tem se encontrado
com maior ênfase. Penso que tudo é movido por ciclos. A fotografia
foi criada somente com luz, de forma abstrata e volta a isso. Simples,
linda e enlouquecedora. Abstrata. Hoje, ela (a fotografia) é feita a partir
339
de pixels, uma palavra em inglês que aglutina picture com element, ou
seja, elemento imagético, mas que em essência é a captação da luz por
um meio eletrônico. A modernidade nos permite ter toda a informação da luz na palma de nossas mãos e a manipular da forma que bem
imaginamos com a manipulação, a fotomontagem e o abstracionismo.
A tecnologia permite que o fotógrafo capite a luz e a manipule tornando
o abstrato em real e em abstrato novamente.
Por fim, por toda a evolução da fotografia, o suporte tem influenciado a captura das imagens, bem como sua distribuição. Tivemos a
origem da fotografia por uma necessidade da pintura, uma ruptura, pela
necessidade humana de capturar e mostrar os reais acontecimentos e
imediatismo permitido pela evolução tecnológica e nos dias atuais,
com inundações de informações chegando a todo o momento, nossos
sentimentos, que foram deixados de lado e trocados pelo tempo estão
batendo à porta. O ser humano está retornando ao objeto artístico, à
composição e à manipulação das imagens em benefício à beleza. O que
antes era feito com tinta, hoje, fazemos com pixels.
Referências
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Editorial Gustavo Gili.
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Recuperado de https://www.moma.org/documents/moma_
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342
Aplicación de los Videojuegos como Metodología
de Enseñanza de las Ciencias Naturales en
Primaria: Estudio de Caso “Poliniza Bichos”
(gameplay)
Bryan Patricio Moreno-Gudiño1
Diana Caridad Ruiz-Onofre2
Desde la última etapa del siglo XX y principios del XXI se han
multiplicado los esfuerzos investigativos por describir las posibilidades
narrativas de la aplicación de los juegos electrónicos en el ambiente
interdisciplinar académico. Un entorno inmersivo, en detrimento del
sistema de instrucción tradicional/conductista, que emerge de la pretensión de despertar los sentidos y las emociones del educando para crear
un ambiente dinámico de enseñanza-aprendizaje relevante.
El juego acompaña al ser humano desde hace 3000 años a.C. (Díaz
Cruzado & Troyano Rodríguez, 2013) y ha evolucionado permanentemente hasta llegar a adaptarse a las múltiples necesidades/aspiraciones
de cada época. Por ejemplo, la década de 1970 constituye el punto de
1.
2.
Maestrando en Comunicación Digital Interactiva. Universidad Nacional de
Rosario.
sr.bryan.moreno@hotmail.es
Maestranda en Didáctica de la Lengua y la Literatura en Educación Secundaria
y Bachillerato. Universidad Internacional de La Rioja.
dianysro@outlook.com
343
partida en la creación de las primeras especies electrónicas de juegos (Rodríguez, 2002); al tiempo que, esta fecha también marcaría
el principio del desarrollo de las investigaciones inspiradas en ellas
(Anyó, 2013). Sin embargo, no sería sino hasta la década de 1980 que
la literatura científica se orientaría hacia la descripción de los impactos
psicológicos y el potencial educativo de los videojuegos en la escolaridad (Roncancio-Ortiz, Ortiz-Carrera, Llano-Ruiz, Malpica López &
Bocanegra-García, 2017).
Para López (1989) hablar de juego y aprendizaje es también referirse
a una misma cuestión, por cuanto el aprendizaje se refuerza cuando hay
una actividad lúdica que consienta cumplir con dicho proyecto. De igual
forma, Minerva (2002) asegura que el juego es una actividad [lenguaje]
universal que ha acompañado al ser humano en su historia y que, conjuntamente, ha permitido su desarrollo. El adelanto de las Tecnologías
de la Información y Comunicación ha implicado un replanteamiento
conceptual del juego al haberlo trasladado hacia un ambiente audiovisual/
virtual, originando lo que autores como Pérez Porto y Gardey (2013)
definen como videojuegos: aquellas aplicaciones interactivas encaminadas a la diversión, que posibilitan la representación de experiencias
en una amplia gama de dispositivos electrónicos.
De forma paralela, el campo educativo también ha sido influenciado
por este desarrollo de sistemas interconectados, por lo que en la década de 1990 se identificó la necesidad de incorporar los videojuegos a
los entornos educativos para facilitar un aprendizaje significativo y el
desarrollo de las capacidades cognitivas de los estudiantes (Méndiz,
Pindado, Ruiz, & Pulido, 2002). Esta nueva configuración supuso que
la aplicación de los videojuegos no se limite a propósitos únicamente
344
de entretenimiento, sino que, a su vez, expanda su campo de acción
hacia la generación de -innovadores y disruptivos- procesos de enseñanza-aprendizaje (Backlund & Hendrix, 2013).
Para Frasca (2003), los estudios académicos sobre los videojuegos,
como extensiones de la narrativa y una estructura semiótica alternativa, se han ido desarrollando hasta alcanzar una escena de significativa
relevancia como una nueva herramienta didáctica, y, por ende, como
una estrategia para aprovechar de mejor manera la circulación de contenidos. Acciones que en su conjunto contribuyen a mejorar la calidad
de la educación (Bellotti, Kapralos, Lee, Moreno-Ger, & Berta, 2013).
Por lo tanto, los videojuegos no tienen que verse como una pérdida de
tiempo, sino como un medio particularmente relevante para convocar
a la atención de la población estudiantil y como una posibilidad de que
los maestros abandonen el método conductista (Montero Herrera, 2017).
Según Kerckhove (1999), los videojuegos comprenden un medio
interactivo que abarca un gran potencial de eduentretenimiento. Es así
que Calheiros Neumann (2013) describe esa interactividad como uno
de los elementos que definen al videojuego, configurándose como una
disposición para experimentar las acciones desde un punto de vista
más comprometido e invertido dentro de la narrativa. Un estado en el
que el jugador se convierte en un agente que participa y transforma la
forma de desarrollar el relato. Estos rasgos se traducen en la aplicación
de los lineamientos del aprender haciendo que, al tiempo, refuerzan las
capacidades motrices y hacen del aprendizaje una actividad personalizada, motivadora, práctica y divertida (Nordby, Øygardslia, Sverdrup
& Sverdrup, 2016).
345
Senger & Kanthan (2011) señalan que el empleo de videojuegos para
fines pedagógicos posibilita la comprensión, asimilación y apropiación
de los contenidos impartidos en las clases, puesto que entrena al estudiantado en la resolución de problemas, el aprendizaje de soluciones,
el razonamiento lógico-deductivo y la memorización (Mainer Blanco,
2006). Esto se puede resumir, asimismo, de acuerdo con Sampedro
Requena y McMullin (2015), en aquella consecución de aprendizajes
funcionales, activos y eficientes que favorezcan un clima de auténtica
implicación en las distintas diligencias escolares y desencadenen un
impacto positivo en la capacidad para solventar problemas a nivel
académico y en el ámbito de la cotidianidad.
Metodología
La presente investigación emerge de la aplicación del videojuego
denominado “Poliniza Bichos” como caso de estudio, aplicado en
estudiantes de segundo año de Educación General Básica (EGB), en
la asignatura de Ciencias Naturales, de forma concreta, la unidad de
estudio correspondiente a flora y fauna. Este juego electrónico, disponible en Google Play y App Store, está dirigido a niños y niñas entre
6 y 12 años. La idea central de este producto es estimular al aprendizaje
de la ciencia, mientras los jugadores descubren el aporte de las abejas
para la naturaleza y comprenden la amenaza de extinción que están
enfrentando (Vega, 2017). Durante el trayecto, la mosca polinizadora
debe evitar el mayor número de amenazas como aves, ranas y algunas
adversidades climáticas, para lograr distribuir una cantidad significativa
de polen en las flores.
346
En correspondencia con el pensamiento de Bogost (2007), los videojuegos, además de ser herramientas instrumentales, irrumpen como
representaciones abstractas sobre cómo debería funcionar el mundo
y, así, desarrollar actitudes fundamentales que conduzcan a un auténtico cambio social, potencialmente representativo. Experiencia que
aprovecha la posibilidad del relato electrónico y la composición de un
escenario pedagógico para introducirnos en una esfera de innovación
e indagación recreativa. En este sentido de las ideas, la clasificación
descrita por Calheiros Neumann (2013), ubicaría al videojuego “Poliniza Bichos” entre los géneros de aventura de acción (caracterizada
por la colección de elementos que comparten espacio con amenazas
constantes que requieren reflejos de jugador) y simulación (representa
cualquier aspecto de la vida real o ficticia cuyas dinámicas expresan
la necesidad de planificar dentro de sistemas de juego con el fin de
cumplir varios objetivos).
Asimismo, esta estrategia de gamificación con propósitos educativos
se halla en sintonía con los nuevos estilos individuales de aprendizaje
que, poco a poco, son tomados en cuenta por los docentes a la hora de
plantear actividades. Específicamente, de acuerdo con las teorizaciones de Méndez (2005) al respecto, “Poliniza Bichos” se define como
un medio de aprendizaje multisensorial, que estimula la captación de
conocimientos, según las preferencias de los estudiantes, determinadas por el mayor o menor nivel de desarrollo de las inteligencias
múltiples en cada uno. Por ejemplo, favorece la percepción visual,
por su composición eminentemente gráfica (video) y muy atractiva
para los niños; física, porque no necesita la mediación de controles
externos, sino que permite la manipulación directa del video a través
347
de una pantalla táctil; aural, porque acompaña la imagen con efectos
de sonido que emulan el vuelo de las abejas y marcan los aciertos y
errores mientras avanza el juego; puede apoyar también a la inteligencia
intrapersonal, cuando actúa como una especie de entorno personal de
aprendizaje (Adell y Castañeda, 2010), motivando al alumno a conocer
el videojuego y a superar sus logros; y, por último, es útil para trabajar
la inteligencia interpersonal, porque al ser una actividad compartida
por todo el grupo, suscita el interés por el debate sobre lo que están
viendo y el intercambio de opiniones acerca del juego y de estrategias
que impulsen un desenvolvimiento parejo de todos, dentro de aquella
palestra gamificada.
Estos antecedentes descriptivos vuelven necesaria una caracterización bastante integral del caso de estudio. Por ello, se considera a los
conceptos determinados por Calheiros Neumann (2013) como los más
adecuados, debido a que aborda, a partir de cinco categorías o subclasificaciones de los videojuegos, una amplia variedad de insumos que,
explícita o tácitamente, reflejan su naturaleza a través de todo aquello
que constituye la estructura formal, el contenido y uso del videojuego
analizado mediante una observación detenida y crítica.
Análisis y Resultados
Partiendo de los postulados metodológicos expuestos, los resultados
que arrojó el análisis del videojuego “Poliniza Bichos”, creado por dos
investigadores de la Universidad de Talca, se expresa de manera sucinta
en la Tabla 1:
348
Tabla 1.
Descripción de las características de “Poliniza Bichos”, en función de
la estética del videojuego
Elaboración propia, a partir de los conceptos de Calheiros Neumann
(2013).
En el primero de los parámetros señalados por Calheiros Neumann
(2013), que corresponde a la generación de sensación en el videojuego,
se destaca la capacidad de inmersión que produce en los niños, debido
a que capta completamente su atención y, simbólicamente, asumen
el rol de guiar a las abejas por el camino. Un aspecto potenciado, sin
duda alguna, por los elementos que causan emoción y, especialmente,
adrenalina en los estudiantes: la presencia de los animales que acechan
a las abejas hace que sortearla sea una experiencia donde algunos gritos ahogados y suspiros indiquen que salvaron a las polinizadoras del
peligro. La motivación, por su parte, está implícita en la forma en que,
349
a través del juego y de las más avanzadas técnicas audiovisuales, el
aprendizaje se vuelve ameno, pero también por la recompensa que el
videojuego y su resolución otorgan. En tanto que, la adaptación halla
su espacio gracias a un diseño que vuelve al producto susceptible de
ser usado con intermedio de diversos dispositivos, tales como teléfonos inteligentes, tabletas y, por qué no, computadoras; siendo los dos
primeros, los predilectos para generar una mejor experiencia.
Dentro del ámbito de la narrativa, queda en evidencia una estructura
cuidada y lógica, que adquiere sentido desde el primer momento. Asimismo, como ya se había resaltado anteriormente, “Poliniza Bichos”
favorece el aprendizaje social, ya que, a pesar de que la participación sea
individual, es posible llevar a cabo un trabajo posterior con la puesta en
común de criterios sobre el desarrollo del videojuego y, por supuesto,
sobre los conocimientos que se han adquirido, para sondearlos y contrastarlos. En adición, el atributo relacionado con la diversión resulta
fácilmente deducible, ya que la mecánica que dirige el producto es el
juego y, aunque pueda concebirse como obvia la relación entre juego
y diversión, su consumo será el que indique si verdaderamente resulta
entretenido: en este caso, la práctica y la reacción de los usuarios demuestra que sí.
También se configura como un videojuego de desafío, debido a que
funciona bajo las reglas fundamentales de polinizar flores y esquivar
enemigos. En ese mismo sentido, el objetivo principal del juego es
que los participantes ayuden a un abejorro chileno, una abeja de miel,
una mosca o un pololo –distintas especies de insectos, propias de la
región- (Vega, 2017) a polinizar la mayor cantidad de flores posibles,
mientras evaden la amenaza de otros insectos, aves, anfibios y condi350
ciones climáticas extremas, que actúan como obstáculos. La meta no
tiene un límite determinado, pero el jugador va sumando puntos por
cada flor polinizada y por cada animal evitado, lo cual motiva a generar
competitividad entre quienes recurren al videojuego.
Otra dimensión importante de “Poliniza Bichos” es su carácter de
descubrimiento, fundamentado en su objetivo pedagógico. De este modo,
la construcción del aprendizaje se efectúa otorgando el protagonismo a
los estudiantes: por medio del videojuego, los niños y niñas acceden al
conocimiento sobre la polinización de manera directa, lo descubren y
deducen a partir de los elementos visuales e informativos adicionales
que incluye. En esta misma línea, el juego proporciona herramientas
para desplegar en los discentes, diversas habilidades, es decir, su saber hacer. Aunque no es una muestra exacta de lo que conceptual y
pragmáticamente implica el Aprendizaje Basado en Retos, cumple la
misma función que los proyectos de este tipo: establecer una conexión
efectiva con la realidad (proceso polinizador) y formular planteamientos
prácticos que desafíen las destrezas de los estudiantes para dar solución
a la situación expuesta. Dadas estas particularidades, los conceptos
de gratificación y respuesta inmediata tienen cabida en los resultados
formales del juego –en este caso, la puntuación obtenida- y las repercusiones individuales –el aprendizaje- del mismo.
Por último, queda explicar la forma en que el videojuego refleja los
rasgos de un juego de expresión. En este contexto, es crucial su intervención en el entorno educativo, porque trabaja de forma transversal
al conocimiento científico, una serie de insumos intrapersonales que
conforman también el panorama de aprendizajes que la iniciativa aquí
descrita alcanza como resultado. Los sentidos de autodescubrimiento y
351
autosuperación, ligados a la autoestima, reciben influencia positiva de
los refuerzos y gratificaciones inmediatas que reciben con cada logro
acumulado, porque permite a los niños saberse capaces de aprender y
ganar al mismo tiempo e, incluso, de superar sus propios logros, adquiriendo cada vez más experticia en el manejo del videojuego. Como
consecuencia inherente a este tipo de sentimientos, queda la satisfacción
en los participantes por haber cumplido y superado el reto.
Conclusiones
Este detallado análisis permite llegar a la conclusión principal de
que “Poliniza Bichos” es una iniciativa que condensa una serie de
características que le convierten en un referente latinoamericano de la
aplicación de los videojuegos al entorno educativo del subnivel primario.
Su representatividad cobra sentido al considerarse que cumple efectivamente con los postulados fundamentales que guían la construcción
de un videojuego destinado al entretenimiento puro y que, al tiempo,
pone estos insumos tecnológicos y de alta calidad, al servicio de un área
que tampoco puede –ni debe- escapar a la modernización: la educación.
Y slo hace tomando como referencia algunas estrategias que forman
parte de la pedagogía, tales como la atención a las inteligencias múltiples, el aprendizaje por medio de los sentidos, el aprendizaje basado
en retos, un segmento del plan de estudios de la asignatura de Ciencias
Naturales y, además, la formación personal y social de los estudiantes.
Sin embargo, esta no es la única muestra de una fusión de varias
dimensiones en el videojuego, ya que también es posible determinar
una hibridación entre géneros pertenecientes a la gamificación: en este
352
caso, la aventura de acción y la simulación. Una diada que se evidencia a través de los elementos constitutivos del juego, tales como los
obstáculos o la proyección animada de un proceso biológico como tal.
En una época en la que la educación y la conciencia ambiental se
han vuelto fundamentales, este videojuego irrumpe como alternativa
para superar los métodos tradicionales como las charlas o talleres, que
olvidan el espíritu de diversión y atracción que requiere todo proceder
didáctico, para que sea efectivo. La educación debe generar emoción
y a veces debe valerse de mecanismos que, sutilmente, generen un
aprendizaje, como en el particular aquí examinado, sobre todo cuando
es imprescindible que los individuos, desde edades tempranas, desarrollen su competencia de aprender a aprender. Esto les otorga autonomía
y protagonismo dentro del proceso de construcción del conocimiento.
De manera más particular, el tema de la concientización ambiental
y la notable capacidad de recreación que alcanza el videojuego aportan
desde otra arista, que también resulta importante en la formación de
la niñez que lo usa: el cambio de actitudes frente a los problemas y
retos. Las habilidades motrices, emotivas y cognoscitivas que adquiere
el alumnado trascienden de la simulación, hacia el mundo real, para
consolidarse en acciones propositivas en favor de la sociedad.
Finalmente, es relevante acotar que la estética bajo la que se construyó “Poliniza Bichos” responde a una conjunción de herramientas
audiovisuales, sensoriales, informativas, gráficas… en su contenido,
que impulsa un proceso formativo multidimensional, que abarca desde
los saberes más explícitos relacionados con el cuidado del ambiente,
hasta la promoción de la competitividad positiva, la cooperación, el
diálogo, la autosuperación, el autodescubrimiento y lo sustancial: la
353
demostración de que los videojuegos no sólo entretienen, sino que
gracias a esa mayoritariamente innata característica, es capaz de adaptarse a propósitos de carácter social, didáctico, cultural, y llamar la
atención de las personas sobre los más diversos asuntos que rodean su
existencia cotidiana.
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357
Índice Remissivo
A
animação 182, 183, 187, 193, 195, 313
Arte 4, 83, 92, 106, 107, 131, 172, 197, 255, 257, 263, 283,
309, 314, 315, 325, 341
arte 17, 27, 33, 38, 49, 63, 64, 66, 70, 83, 84, 85, 89, 90, 91,
92, 93, 97, 98, 99, 103, 104, 121, 132, 135, 145, 148, 170,
182, 183, 185, 187, 188, 190, 199, 200, 269, 279, 283, 291,
310, 311, 313, 314, 315, 316, 322, 323, 324, 326, 327, 330,
332, 335, 336, 338, 339
Artes 16, 25, 176, 179, 196, 212, 255, 271, 309
artes 17, 23, 33, 91, 145, 172, 233, 262, 265, 268, 276, 307,
323, 328
Artista 102
artista 17, 20, 30, 31, 52, 64, 65, 66, 73, 92, 93, 94, 97, 101,
102, 103, 119, 145, 187, 188, 189, 190, 316, 339
artistas 17, 33, 51, 68, 83, 86, 88, 91, 92, 97, 98, 103, 264,
269, 273, 275, 315, 328
Audiovisual 4, 9, 25, 173, 235, 255, 260, 261, 272, 286, 325
audiovisual 5, 83, 93, 95, 98, 99, 128, 161, 165, 178, 183, 185,
186, 189, 194, 199, 202, 204, 205, 213, 215, 231, 233, 235,
358
237, 243, 252, 254, 259, 261, 264, 266, 268, 272, 274, 275,
276, 277, 283, 284, 286, 287, 288, 289, 291, 344
C
Cine 171, 174, 255, 256, 257, 282
cine 156, 159, 160, 161, 162, 163, 164, 167, 170, 171, 173, 174
Cinema 4, 8, 9, 50, 130, 131, 133, 143, 146, 147, 154, 176,
178, 179, 180, 181, 183, 186, 187, 195, 196, 231, 233,
234, 242, 255, 257, 259, 260, 261, 270, 274, 275, 276,
277, 278, 279, 282, 285, 286, 287, 288, 290, 291
cinema 41, 45, 54, 63, 93, 96, 113, 119, 124, 125, 127, 128,
130, 133, 134, 136, 143, 144, 145, 146, 147, 148, 149,
152, 153, 154, 155, 176, 177, 178, 179, 180, 181, 182,
183, 184, 185, 186, 187, 188, 189, 193, 194, 195, 202,
231, 234, 235, 252, 255, 256, 257, 259, 260, 261, 262,
266, 268, 269, 272, 274, 275, 276, 277, 278, 281, 282,
285, 287, 289, 291, 313
Comunicação 4, 8, 16, 51, 54, 63, 80, 106, 197, 199, 212, 213,
215, 231, 243, 269, 289, 291, 293, 325, 326
comunicação 5, 19, 44, 50, 51, 52, 54, 59, 62, 177, 179, 181,
190, 198, 199, 200, 202, 212, 213, 214, 263, 266, 294,
295, 296, 297, 298, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 308,
330, 335, 336, 337
Comunicación 172, 214, 343, 344
comunicación 43, 158, 159, 295
359
D
Desarrollo 356
desarrollo 158, 162, 164, 168, 344, 347, 350
desenho 17, 30, 68, 328
Desenvolvimento 255, 309
desenvolvimento 18, 69, 78, 129, 187, 190, 197, 218, 219, 228,
276, 283, 327, 330, 335, 336, 337, 338, 339
Diseño 187
diseño 350
Diversidade 54
diversidade 52, 83, 93, 99, 275, 276, 289
E
Ecologia dos Meios 4, 7, 43, 45, 48, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
59, 231, 326
F
Fotografia 4, 7, 16, 21, 22, 23, 24, 26, 27, 28, 29, 35, 42, 49,
50, 54, 62, 63, 66, 324, 329, 341
fotografia 5, 7, 17, 30, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 42, 43, 44, 45,
46, 47, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61,
62, 63, 64, 65, 66, 67, 69, 70, 71, 73, 75, 76, 77, 78, 79,
80, 87, 100, 101, 115, 145, 179, 185, 244, 245, 246, 251,
252, 257, 267, 318, 326, 327, 328, 330, 331, 332, 333,
334, 335, 336, 337, 338, 339, 340, 341
360
fotografía 43
I
inclusão 261
inclusión 356
J
Jornalismo 294, 308
jornalismo 295, 297, 299, 301, 302, 303, 306, 308
Justiça 243, 244, 254
justiça 227, 313
justicia 159
M
Media 54, 61, 195, 196, 341
media 50, 61, 106, 195
medio 166, 295, 299, 345, 347, 351, 352
Meio 260
meio 17, 19, 20, 30, 34, 45, 51, 58, 59, 64, 68, 71, 73, 90, 93,
94, 95, 97, 98, 100, 101, 103, 104, 110, 127, 131, 132, 133,
143, 145, 148, 149, 150, 152, 153, 181, 184, 185, 190, 200,
204, 208, 211, 218, 220, 223, 228, 229, 252, 261, 262, 281,
295, 299, 306, 313, 315, 319, 320, 335, 336, 340
Meios 4, 7, 43, 45, 48, 51, 52, 53, 54, 55, 56, 59, 231, 326
361
meios 34, 44, 46, 50, 51, 52, 53, 54, 57, 59, 89, 93, 99, 188,
249, 275, 284, 293, 294, 297, 323, 328, 336, 337
N
notícia 317
P
Periodismo 50, 299, 302, 303, 308
periodismo 298, 299, 302, 303, 307, 308
T
Televisão 202
televisão 54, 96, 99, 124, 125, 129, 177, 183, 186, 197, 198,
200, 201, 202, 203, 213, 252, 262, 264, 268, 275, 293, 294
V
Vídeo 83, 103, 259
vídeo 87, 93, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104,
183, 188, 207, 208, 213, 260
video 106, 347
vídeos 93, 102, 258, 259, 260, 261, 284
362