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FORTIFICAÇÕES E TERRITÓRIO NA PENÍNSULA IBÉRICA E NO MAGREB I ISBN 978-989-689-374-3 FORTIFICAÇÕES E TERRITÓRIO NA PENÍNSULA IBÉRICA E NO MAGREB (SÉCULOS VI A XVI) Coordenação de Isabel Cristina F. Fernandes Vol. I Biblioteca Nacional de Portugal – Catalogação na Publicação FORTIFICAÇÕES E TERRITÓRIO NA PENÍNSULA IBÉRICA E NO MAGREB (SÉCULOS VI A XVI) Fortificações e território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI) / coord. Isabel Cristina Ferreira Fernandes. – (Extra-colecção) 1º v. – 472 p. – ISBN 978-989-689-374-3 I – FERNANDES, Isabel Cristina F., 1957CDU 904 Título: Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI) – Volume I Coordenação: Isabel Cristina Ferreira Fernandes Edição: Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola Capa e separadores: DCCT – Câmara Municipal de Palmela Revisão dos textos: I. C. Fernandes; J. F. Duarte Silva; Patrice Cressier Depósito legal: 368 239/13 Lisboa, Dezembro de 2013 Memórias escritas do castelo e das muralhas de Óbidos MANUELA SANTOS SILVA Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa A INDA hoje, a quem penetra as muralhas da vila de Óbidos, ocorre a sensação de estar recuando muitos séculos e de estar pisando as mesmas calçadas que os nossos longínquos antepassados dos séculos XIV, XV e XVI. No entanto, tal sensação é relativamente enganadora, pois como escreveu Teresa Bettencourt da Câmara no seu livro sobre Óbidos, Arquitectura e Urbanismo. Séculos XVI e XVII1: em Óbidos muitos vestígios do passado se encontram irremediavelmente comprometidos pelos resultados dos restauros na vila levados a cabo durante a década de sessenta do nosso século [XX]. [...] Pontificam as cópias de “casas medievais”, de portais góticos, dos alpendres renascentistas e de “estilo chão”. Apesar disso, a vila de Óbidos tem marcas medievais que subsistem, reconhece a mesma autora: ao nível da matriz urbana (com alterações em séculos posteriores), da cintura de muralhas que cerca o casario e de um ou outro vestígio gótico nas aberturas de residências particulares. Ora, a característica mais atraente da vila de Óbidos é, precisamente, o facto de manter, em pleno século XXI, uma forte e longa muralha – indicador privilegiado de uma vila ou cidade medieval – rodeando o casario. É certo que, em muitos locais, estas cercas, ou partes delas, são apenas reedificações de outras mais antigas de fundação romana ou visigótica2. Ao longo da Baixa Idade Média, as movimentações populacionais e o renascimento das trocas comerciais e da vida urbana levaram a que a população aumentasse na maior parte das vilas e cidades obrigando ao alargamento da zona destinada à habitação. Nos locais onde tal era possível, cresceu também o perímetro amuralhado. No entanto, a maioria dos autores que consultámos intentavam conferir a Óbidos um carácter imutável que não nos parece possível sustentar. Como reconheceu o próprio Raúl Lino, que atribuía uma origem mourisca ao castelo de Óbidos, houve sucessivas remodelações e, acrescentaríamos nós, ampliações das muralhas em praticamente todas as dinastias reinantes em Portugal3. É nossa convicção, de facto, que no período anterior ao que normalmente se designa por Reconquista Cristã as muralhas de Óbidos não se estenderiam para além do espaço que, mais tarde, se tornaria a alcáçova, onde haviam de ser construídas várias torres e, mais tarde, pelo menos um paço do alcaide. Toda a restante vila cercada terá surgido, paulatinamente, em época subsequente à ocupação ordenada pelo rei de Portugal e de forma crescente até ao fim do século XIV. A existência nesta área ocidental a norte de Lisboa de uma civitas romana era um facto assente há muito, embora a descoberta da sua localização se tenha dado em período relativamente recente. Existia quase que um consenso entre os estudiosos de que Eburobrittium poder-se-ia ter localizado junto à povoação da Amoreira, perto da capela de Aboboriz4. Porém, eram muitos os autores de monografias, corografias, roteiros ou inventários artísticos que nos falavam de vestígios romanos em Óbidos, propriamente dito5. Quase todos o faziam reportando-se a uma tradição e não apresentando provas concludentes. Gustavo de Matos Sequeira, entre outros, notara sinais de fabrico romano na chamada Torre do Facho6. De facto, não descartámos a hipótese da construção desta torre ser mais antiga do que a das restantes estruturas ainda hoje remanescentes. A descoberta de importantes vestígios arquitectónicos romanos que vieram a revelar que a procurada Eburobrittium se situava bem mais perto de Óbidos, a oriente da vila medieval7, veio acentuar a nossa ideia de que se poderia buscar na Torre do Facho, uma estrutura bélica de apoio àquela cidade, que fora implantada em terreno menos íngreme8. Como demonstrou Mário Jorge Barroca9, a expressão “castellum” – que perdura na época medieval, vindo a ter preponderância sobre todas as restantes designações de redutos fortificados – podia indicar somente uma torre defensiva. Mas a fazermos derivar o nome de Óbidos de oppidum – como o faziam inclusivamente os escrivães da corte no século XII – teríamos de considerar que, no sítio onde esta povoação amuralhada se localizará mais tarde, já poderiam existir os fundamentos de um assentamento similar em épocas passadas. É claro que, como também averiguou Mário Jorge Barroca, “oppido e civitas, nalguns casos, também aparecem como designativos da antiguidade do castelo em causa, sobretudo como expressão da memória de ali ter existido uma ocupação castreja ou romana” de dimensões apreciáveis10. Sendo assim, a manutenção da memória do oppidum relacionar-se-ia com a civitas estremenha? Recordaria uma estrutura ainda mais antiga, de tipo castrejo, que Eburobrittium tinha vindo substituir? Ou teria Óbidos surgido durante o ocaso de Eburobrittium, após o século III, altura em que muitas das antigas cidades romanas, normalmente abertas, tiveram de se entrincheirar em fortes muralhas defensivas ou foram abandonadas pelas populações assustadas, de novo em busca de locais alcandorados? Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (Séculos VI a XVI), Lisboa, Edições Colibri & Campo Arqueológico de Mértola, 2013, p. 101-108. Manuela Santos Silva 102 Como já vos dei conta, a insistência dos historiadores e cronistas do passado no estabelecimento de uma conexão entre um oppidum romano e a vila amuralhada da época medieval tem alguma razão de ser. É que tanto na doação de Atouguia (da Baleia) ao cruzado “franco” Guilherme de Cornibus – cuja data Ruy de Azevedo estabeleceu em 114811 – como na doação de Alcobaça feita a Dom Bernardo de Claraval em 115312, o topónimo aparece já citado. Mas apesar do interesse dos historiadores e das aturadas pesquisas documentais realizadas, pelo menos desde a segunda metade do século XIX, não foi ainda possível provar a existência durante o período anterior à chamada Reconquista Cristã de qualquer agregado populacional, bem como de qualquer castelo ou povoação fortificada, na região compreendida entre o castelo de Leiria – implantado por volta de 1140 por Afonso Henriques – e o Vale do Rio Tejo. As fontes árabes, bem como as cristãs contemporâneas do processo reconquistador, escusam-se a dar pormenores de toda a região compreendida entre os campos de Balata situados, segundo as descrições, entre Lisboa e Santarém, e o novamente povoado Vale do Rio Mondego. em enumerar as povoações fortificadas e os castelos aí existentes a que atribuíam grande longevidade. Não é ainda o caso das crónicas mais antigas como a do bispo D. Pelayo ou a de Adefonsi Imperatoris – também chamada de Crónica de Afonso VII. Na primeira, o cronista, narrando as campanhas de Afonso VI de Castela e Leão, refere apenas que ele tomou Lisboa, Sintra e Santarém, e “povoou toda a Estremadura”16. A segunda limita-se a afirmar que o castelo de Leiria havia sido edificado “em frente de outro castelo que pertencia aos mouros, chamado Santarém, para combater tanto Santarém como Lisboa e Sintra e outros castelos dos Sarracenos que estão na região”17. Mas em relatos cuja escrita se deve poder reportar já aos fins do século XIII ou mesmo ao XIV, determinadas versões da conquista da Estremadura devem ter feito escola dando origem a diversas descrições em diferentes crónicas. Transcrevemos aqui as mais significativas a que tivemos acesso: – Portugal Nas suas costas assinala-se Sintra, Lisboa, que dependem do Andaluz, bem como Coimbra13. – Ao longo do continente há, desde o Porto até esta ilha [de Peniche], rios e castelos. Há o castelo chamado de Santa Maria (Feira), entre o rio Douro e um bosque que se chama Mesão Frio [...], depois do bosque encontra-se o rio Vouga, e mais adiante, sobre o Mondego, a cidade de Coimbra, além da qual fica o castelo de Soure; a seguir o de Montemor, depois o de Leiria, à margem de um rio que separa o bispado lisbonense do conimbricense, e adiante acha-se um bosque que na linguagem deles se chama Alcobaça e em volta do qual se estende um vasto ermo que vem até ao castelo de Sintra, distante de Lisboa oito milhas14. (Chronicas Breves, II, in Scriptores, p. 25, col. 2) Estes dois relatos, ambos bem conhecidos e estudados, lançam-nos a derradeira e definitiva dúvida sobre a existência de povoações ou pelo menos de castelos no espaço litoral que mediava entre o vale do Mondego e o do Tejo. Muitas vezes têm sido estudados e interpretados os diplomas oriundos dos scriptoria de Santa Cruz de Coimbra e mesmo da Chancelaria do rei D. Afonso Henriques que afirmam o estado desértico da região de Leiria em 113515, tendo quase todos os autores modernos duvidado destas informações tão redutoras. Há muito que são conhecidas as obras cujos excertos aqui transcrevi. Coincidem nas mesmas informações: não existiam na primeira metade do século XII, povoações ou castelos de importância na área ocidental do território de Balata então ainda em “poder” dos Muçulmanos Contrariamente aos contemporâneos do processo reconquistador, os cronistas dos séculos seguintes, herdeiros da obra dos monarcas cristãos e dos seus exércitos e coexistentes com uma situação decerto bem diferente da vivida por aqueles, coincidem e insistem em fornecer dados sobre a conquista da região nos anos subsequentes à tomada de Lisboa e Este muito nobre Rey [Afonso I] foy o que primeiramente tomou a mui leal cidade de lixboa aos mouros, e santarem, leirea, alemquer, obidos, e torres uedras com todos outros lugares da estremadura. Conta a estoria que quando el Rey dom affomso comprio XXIIIIº anos de sua hidade que entom tomou aos mouros leirea e torres nouas a el Rey ismar, que era rey da estremadura, e andaua entom a era em mil anos. (Chronicas Breves, III, p. 28, col. 2) Depoys da tomada de Samtarem, desque el Rey chegou a Cojnbra esteue hy alguns di(as). [...] e ajumtou loguo todo seu poder, para comqujstar a parte que lhe ficou de Samtarem ata o mar. Quando el Rey chegou aquela terra, pensou de a guerear antes que a çerquase, e tomar os castelos aredor dela, por fazer, quando vyese ao çerquo, que os seus ouvesem majs pouquo trabalho […] E tomou logo o castello de Mafrra [...]. E depojs foy çerquar Cintra. (Crónica dos Sete Primeiros Reis de Portugal, Crónica do Rei D. Afonso Henriques, Capítulo XXI, p.77). Des que el Rey D. Afonso teve tomada Lisboa como ja ouujstes em seu lugar, loguo naquele ano segujnte, amdando a Era em MCLXXXVI, foi sobre Alemquer, e Obidos, e Torres Vedras, e sobre todolos outrros castelos da Estremadura, que ajnda não tynha tomados, e tomou os todos. E durou em os tomar seys anos. E desque os ouue asegurados e toda a terra da Estremadura, juntou todas suas jentes e passou ao Alentejo. (Ibidem, Capítulo XXVI, p. 85) Conta a estoria que, quando el rey dom Affonso compria XXIII anos de sua idade, que entom tomou aos mouros Leiria e Torres Novas, a el rey Ismar que era rey da Estremadura. (Crónica Geral de Espanha de 1344, volume IV, Capítulo DCCXI, p. 230) Memórias escritas do castelo e das muralhas de Óbidos [...] no mês d Octubro na era de mil e (...) anos [el rey dõ Affonso] cobrou delles [mouros] a cidade de Lixboa per força d’armas. E em este meesmo ano, tomou este rey dom Affomso Allanquer, e Sintra, e Almadãa, e Palmela. (Ibidem, volume IV, Capítulo DCCXIII, p. 232-233) Conta a estoria que este duque dom Afonso foy muy boo et muy esforçado en nas fazendas [...] et tomou dos mouros Santarem et Lisboa et Evora et Alãquer et outros lugares que aviã lõgamente estado hermos. Et çercou as vilas dos mouros (sic). [Capítulos relativos à história dos Reis de Portugal da Crónica de Castela (2ª parte da Variante Ampliada), segundo o texto da Tradução galego-portuguesa dessa Variante, ms A (8867 da B.N. Madrid), in Ibidem, volume I, CDLXXIV] Como podemos constatar, apesar de os cronistas enumerarem profusamente os castelos da Estremadura que conheciam para a sua época, não são unânimes em determinar quais os que tinham sido tomados pelo rei conquistador e nem sequer a ordem e o momento exacto em que tais castelos tinham passado para as mãos dos guerreiros cristãos. Ou seja, os cronistas tardo-medievais também não possuíam, e tal como os actuais, dados concretos sobre os eventos, mas incapazes de imaginar a povoada e bem administrada Estremadura do seu tempo sem os importantes concelhos e povoações que conheciam, passaram-nos informes, em grande parte fruto de suposições. Seguindo o mesmo espírito lógico, criado a partir dos documentos fidedignos que até nós chegaram, os historiadores da era contemporânea aproveitaram, todavia, de um modo que consideramos demasiado acrítico, muitas destas ilações tardias e tomaram pouco em consideração as informações coevas ou o significativo silêncio das fontes mais antigas. O que terão encontrado então no sítio de Óbidos, aqueles que o povoaram – aparentemente de forma rápida – a partir da segunda metade do século XII? Acreditamos que o primeiro núcleo populacional extramuros deve ter surgido a Ocidente, em redor da Igreja conhecida como São João do Mocharro, na encosta sobranceira à Várzea designada pelo mesmo topónimo até meados do século XVI18. Realmente, pode ter-se localizado aí a primitiva povoação servindo de embrião à vila de Óbidos. Um autor eclesiástico de inícios do século XVIII – Frei Agostinho de Santa Maria – afirma que Esta Igreja de S. João do Mocharro era a mais antiga, & não falta quem diga que no tempo dos Godos era a primeyra, & a principal Paroquia daquella villa, & alli recorrião os Christãos, que alli se conservárão em tempo dos Mouros; chamava-se este sitio a Ponta do Mocharro; para cima para a parte do Nascente do Sol se levantava o terreno, ou huma cordilheyra de rocha viva, & sobre esta se fundarão, ou levantarão os muros, e a villa hia descendo para a mesma parte de Leste, & no direito da mesma Igreja19. Américo Costa, baseando-se em corografias antigas, expressa a coincidente 103 opinião: A parochia de São João Baptista do Mocharro foi a primeira que existiu na villa, sendo por alguns séculos a unica, feita no tempo dos godos. Durante o domínio mourisco sempre n’ella se celebraram os officios divinos, mediante certo tributo pago aos moiros, e aqui vinham os christãos das visinhanças cumprir os preceitos da sua religião20. De facto, a existência de comunidades moçárabes sobreviventes à margem das fortificações muçulmanas está comprovada21 e segundo Pierre David, as igrejas que lhes serviam de núcleo aglutinador foram mesmo o único elemento de continuidades que subsistiu durante a época muçulmana22. Após a chegada dos cristãos do Norte, e subsequente ocupação ou construção da área amuralhada por estes, o Mocharro foi-se tornando cada vez mais num arrabalde de pouca importância. Frei Agostinho de Santa Maria afirma que Com a nova povoação, & circunvalação da Villa se vierão recolhendo a ella os moradores, que por lá vivião23. Qualquer um que subisse pela encosta de São João do Mocharro deparava-se com os muros da alcáçova, intransponíveis, do lado esquerdo. Mas é curioso notar como se desenhava uma linha quase recta entre este arrabalde e o que viria a nascer no sopé oposto. O mais natural terá sido, no caso de existir em Óbidos alguma população muçulmana, que esta tenha sido obrigada abandonar – ou apenas proibida de habitar – o interior das muralhas, à semelhança do que sucedeu em quase todos os centros urbanos conquistados aos muçulmanos na Península Ibérica24. Assim, poderá não ser ficção a identificação que ainda hoje fazem os obidenses da Mouraria com este eixo exterior à muralha da alcáçova, uma rua íngreme calcetada onde, pelo menos no século XIV, se instalou a Judiaria em torno do edifício da sinagoga25. Os muros da alcáçova alargavam-se, porém, bastante mais para o corpo da vila do que agora sucede. A chamada Torre do Relógio pertencia, decerto, a essas muralhas que poderão ter formado a primitiva cerca da vila, conhecida, aliás, mesmo na Idade Média, por Cerca Velha26, como recorda mais tarde o autor das Memórias Históricas que afirma: tem [se] serem os muros do recinto da cidadela mais antigos que os da Vila e o primeiro cerco que os Celtas fizeram e, por isso, tanto os Romanos como os Moiros lhe chamaram o cerco velho, e em nossos documentos antigos a pequena diferença de “Cerca Velha27. O castelo só veio a surgir mais tarde: D. Dinis passa por ter mandado erguer uma forte torre de Menagem28, substituída ou acrescentada por uma outra construída em tempo de D. Fernando I29. À semelhança de muitas outras povoações medievais, esta zona incluía ainda uma Igreja, dedicada a Santiago, e que à medida que se dava o crescimento da vila, extravasando a área construída para fora dessas muralhas primitivas, se foi tornando na Igreja dos poderosos. Numa visitação em 1479 à Igreja de Santiago de Óbidos, o visitador informa-se sobre a correição do templo junto de ho Senhor Dom Joham [de Noronha] que he ho principal fregues com outros 104 fregueses30. Em caso de estadia da família real na localidade também seria esta a igreja frequentada. Supomos que o alargamento das muralhas para sul não deve ter tardado. A população nortenha não tardou a chegar à Estremadura e Óbidos conheceu durante a segunda metade do século XII um aumento populacional que o ritmo de fundação das suas quatro igrejas demonstra inequivocamente31. O facto de se ter como certo que a fundação da Igreja de Santa Maria se deu o mais tardar na segunda metade do século XII, sugere-nos, de imediato, que as muralhas da povoação não terão demorado muito a envolver o novo templo e, com ele, a calçada dos judeus que vinha da “serventia da Porta da Telhada”32 e ia até à oposta Porta do Vale. Ao surgir, ainda no mesmo século ou no máximo, nos primeiros anos da centúria de Duzentos uma nova igreja33, situada ainda mais longe da primitiva cerca, apercebemo-nos de como terá sido rápido o crescimento demográfico obidense. Mas notícia sobre grandes obras restruturantes em Óbidos só nos chegam associadas ao reinado de D. Dinis34 e têm como símbolo máximo a abertura de uma Rua, a posteriormente designada Rua Direita. Entrando na Rua Direita chegava-se a todo o lado. À zona das igrejas – a de Santa Maria e à de São Pedro, à alcáçova, à Judiaria. Nela desembocavam quase todas as outras ruas, ligando-a aos locais mais excêntricos e às vias que lhe seguiam paralelamente. Na Manuela Santos Silva extremidade contrária ao local onde o mesmo rei ergueu uma Torre de Menagem e o Rei D. Fernando uma outra, veio a abrir-se, somente neste último reinado na chamada Cerca Nova, mais uma porta – a que chamamos da vila – remate correcto para tão meritória obra. De facto, foram levadas a cabo obras de tal envergadura que mesmo os habitantes de algumas povoações dos coutos de Alcobaça foram, durante algum tempo, obrigados a servir “per corpos e per adua na cerca nova que ora mandamos fazer em Óbidos”, como se informava numa carta de D. Fernando enviada a João Eanes do Pó, vedor da construção dessa mesma cerca, em Julho de 137635. Só então os obidenses se devem ter aventurado a construir deste lado da vila de Óbidos. Para além de São Pedro apenas havia terrenos cultivados. E a ligação da antiga Torre do Facho às restantes muralhas urbanas deverá ter ocorrido numa época muito tardia da nossa história, possivelmente já no século XVII quando D. João IV, em plena guerra da Restauração, procedeu à reforma das suas muralhas36. Só então a cerca desta vila de que tanto gostamos terá atingido o perímetro que hoje ainda nos apresenta37. No entanto, em 1372, D. Fernando ainda considerava a vila de Óbidos pequena e de pequena cerqua em que ao tempo de mester caberia pouca companha38, argumento que utilizou para lhe encurtar o termo, diminuindo assim a sua importância regional. Memórias escritas do castelo e das muralhas de Óbidos 105 106 Manuela Santos Silva Memórias escritas do castelo e das muralhas de Óbidos 107 FONTES Manuscritas Arquivo da Cúria Patriarcal de Lisboa, Caixa 8, nº9 – 1406 – 3 de Setembro. Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Mosteiro de Alcobaça, São Bernardo, Maço 25, nº. 622; Chancelaria de D. Fernando, Lº.1, fols.75v-76; Chancelaria de D. 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TORRES BALBAS, 1971: T.II:475; LACARRA DE MIGUEL, 1950: 9-14. 3 LINO, 1927: 588. 4 CENTENO, 1983: 149-212; ALARCÃO, 1973: 64; ALARCÃO, 1988: 47; GARCIA, 1971: 457-462. 5 SEQUEIRA, 1955: 80; ALMEIDA, 1976: 413; ALMEIDA, 1946: 214-215; Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Porto, nos 68-69, 1952 – Castelo de Óbidos: 6; Óbidos (Museu de Portugal), 1937. 6 SEQUEIRA, 1955: 80. 7 MOREIRA, 1998: 27-31; MOREIRA, 2002. 8 VASCONCELOS, 1936: Parte II; RIBEIRO, 1981(1): 137-138; RIBEIRO, 1981(2), p. 471-472. 9 BARROCA, 1990/91: 114. 10 BARROCA, 1990/91: 119. 11 AZEVEDO, Rui (ed.crítica), 1958: T.I, 276; T.II, 726-738. 12 AZEVEDO, Rui (ed.crítica), 1958: T.I, 297-298. 13 COELHO, 1989: 71. Conquista de Lisboa aos mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês que participou nos acontecimentos, 1989: 31. 15 BARBOSA, 1992: 69-71. 16 BARROS, Tomo IV: p. 17. 17 Utilizámos o excerto da tradução desta crónica em MATTOSO, José, 1985: 5. 18 Até a Várzea ter sido oferecida à Rainha D. Catarina, mulher de D. João III, em troca da promessa e realização de obras que trouxeram água da Usseira até à vila através de um aqueduto – “Titulo e Contrato que a Camara da Villa de Obidos fes com a Senhora Rainha Dona Catherina sobre a Varzea que esta iunto a ditta Villa” – in CÂMARA, 1990: 187. 19 SANTA MARIA, 1707: 309. 20 COSTA, 1943: 670-680. 21 TORRES BALBAS, 1971: Tomo I, p. 195. 14 DAVID, 1947: 252-255. SANTA MARIA, 1707: 310. 24 MARQUES, 1976: volume I, 114: LACARRA DE MIGUEL, 1950: 5-34. 25 SILVA, 1997: 48-55; Idem, 1994: 171-182. Arquivo da Cúria Patriarcal de Lisboa, Caixa 8, nº 9 – 1406 – 3 de Setembro. 27 Memórias Históricas e diferentes apontamentos, àcerca das antiguidades de Óbidos, 1985: 78. 28 LINO, 1927: 588; COSTA, 1943: 672; LIMA, 1935: 395; SEQUEIRA, 1955: 82; Memórias Históricas e diferentes apontamentos, àcerca das antiguidades de Óbidos, 1985: 21; ALMEIDA, 1946: 215; Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, Porto, nº 58, 1949 – “Igreja de Santa Maria de Óbidos”: 9; nos 68-69, 1952 – Castelo de Óbidos: 7; LARCHER, 1933:147. 29 LINO, 1927: 588; PERES, 1969: 306; ALMEIDA, 1976: 416; Memórias Históricas e diferentes apontamentos, àcerca das antiguidades de Óbidos, 1985: 25; ALMEIDA, 1946: 215; LARCHER, 1933: 148; Boletim da Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, 1952: 7; SEQUEIRA, 1955: 82. 30 “Visitações de Santiago de Óbidos (1434-1481)”, 1970: 217. 31 MATTOSO, 1985: 3-18. 32 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Mosteiro de Alcobaça, São Bernardo, Maço 25, nº. 622. 33 O primeiro documento que a esta igreja se refere encontra-se no Museu Nacional de Arqueologia em Documentos de São Pedro de Óbidos – Pergaminhos, I. 34 GASPAR, 1969: 198-215. 35 A.N.T.T., Chancelaria de D. Manuel, Lº. 29, fol. 10. 36 Veja-se, por exemplo, o que diz o autor das Memórias Históricas e diferentes apontamentos, àcerca das antiguidades de Óbidos (1985: 62) escritas em meados do século XIX, acerca da acção deste rei em Óbidos. 37 SILVA, 1997. 38 A.N.T.T., Chancelaria de D. Fernando, Lº.1, fols.75v-76. 26