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UNIVERSIDADE DOS AÇORES FACULDADE DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA, FILOSOFIA E ARTES CURSO DE HISTÓRIA 2022-2023 (S1) DISCIPLINA DE HISTÓRIA DOS EUA Analise do Filme " O último dos moicanos" Representação e Identidade PEDRO MELO Nº.104287 PONTA DELGADA 06 DE JANEIRO DE 2023 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Índice James Fenimore Cooper ............................................................................................................. 4 “O último dos Moicanos” ........................................................................................................... 4 Principais personagens ............................................................................................................... 5 Enredo .......................................................................................................................................... 6 O contexto histórico e suas implicações para o pioneiro americano....................................... 7 Representação e identidade ........................................................................................................ 9 Inserções e mudanças no contexto cultural dos povos indígenas .......................................... 10 O cristianismo ........................................................................................................................ 10 O cavalo .................................................................................................................................. 11 O álcool................................................................................................................................... 12 Armas de fogo ........................................................................................................................ 13 Miscigenação e hibridismo ................................................................................................... 14 A caracterização do pioneiro americano ................................................................................. 18 Idolatração tardia do indígena ................................................................................................. 19 Conclusões finais ....................................................................................................................... 21 Bibliografia: ............................................................................................................................... 23 2 " O último dos moicanos" Representação e Identidade 3 " O último dos moicanos" Representação e Identidade James Fenimore Cooper Cooper foi um dos autores mais populares do séc. XIX. Era admirado em todo o mundo, por exemplo, Franz Shubert e Honore de Balzac eram abertamente admiradores do seu trabalho. Também foi o primeiro grande romancista americano a incluir personagens africanos, afro-americanos e nativos americanos nas suas obras. Em particular, os nativos americanos desempenham papéis centrais nos seus “Leatherstocking Tales”. No entanto o tratamento que ele dá a este grupo é complexo e destaca a relação ténue entre colonizadores fronteiriços e índios americanos. Muitas vezes, o autor dá visões contrastantes de personagens nativos para enfatizar o seu potencial para o bem, ou inversamente, a sua tendência para o caos. O último dos moicanos inclui tanto o personagem de Magua, que é desprovido de quase todas as qualidades redentoras, bem como Chingachgook, o último chefe dos moicanos que é retratado como nobre, corajoso e heroico. Provavelmente o livro mais conhecido “O último dos Moicanos” pertence à série Leatherstocking tales. Todos os livros da série representam datas na história americana, mas não correspondem necessariamente às datas reais dos acontecimentos, o mesmo acontece com os nomes das personagens históricas, os sobrenomes foram mantidos, mas o primeiro nome foi alterado. Isto pode ter sido feito por conveniência literária. “O último dos Moicanos” O romance histórico publicado em 1826 é o segundo volume da série “The Leatherstocking tales”. A ação desenrola-se em 1757 durante a Guerra dos Sete Anos, quando a Grã-Bretanha e a França lutaram pelo controlo da América do Norte. Este romance tem sido um dos romances mais populares da literatura inglesa. O facto de o livro ter sido adaptado inúmeras vezes para filmes, séries e desenhos animados, influenciou a opinião popular sobre os nativo-americanos e o período fronteiriço da história da América Oriental. A imagem romantizada do forte, destemido, e sempre engenhoso homem da fronteira fronteiras, bem como o estoico, sábio e nobre "red man" foram noções derivadas das caracterizações de Cooper mais do que de em qualquer outro lugar. A frase, "o último dos Moicanos", chegou a representar o único sobrevivente de uma raça nobre. 4 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Principais personagens Hawkeye – “The Long Rifle” é o homem do mato, o protagonista principal do romance, é um homem branco que passou a maior parte da sua vida na companhia dos moicanos. Uma estranha mistura de intolerância e humanidade, Hawkeye é capaz de renunciar a maioria da sua herança europeia, mas nunca é considerado um verdadeiro índio. Uncas – o jovem moicano que é um dos companheiros de Hawkeye. Uncas é o símbolo de um povo em extinção. Orgulhoso e egocêntrico, apaixona-se por Cora, uma europeia. Tem a natureza de um índio, mas mais suave do que o estereótipo que os europeus lhes atribuem. É a representação do nobre selvagem. Chingachgook – o pai de Uncas, e amigo de Hawkeye. Este personagem exemplifica a reverência da idade nas culturas indígenas. Ele é uma figura quase divina, cheia de sabedoria e imperturbado pelos eventos que se desenrolam. A única coisa que o deixa emotivo é o filho. Magua – da tribo Huron, é o antagonista do romance. A sua natureza maligna existe em contraste com a bondade dos moicanos. É um vilão devido aos infortúnios que tem sofrido ás mãos dos conquistadores europeus. O seu objetivo é vingança. Duncan Heyward - um major no exército inglês cuja missão é proteger as filhas do seu superior. Duncan é um jovem bem-intencionado que valoriza as donzelas, especialmente Alice. Mas totalmente despreparado para lidar com a vida na fronteira e as suas vicissitudes. É um homem branco que tenta lutar batalhas índias. Esta incompatibilidade resulta quase sempre em incumprimento dos seus deveres. Ducan existe em contraste com Hawkeye, um homem branco que é muito mais adaptado à guerra e ao meio selvagem da fronteira. Cora Munro -a irmã mais velha, é uma voz da razão e força. Como uma mulher mestiça, é cobiçado por Uncas e Magua. É um símbolo do choque de culturas, bem como um símbolo do orgulho europeu. De longe é uma das personagens mais admiráveis, de natureza altruísta que se preocupa apenas para manter a irmã segura independentemente do custo. Alice Munro, a irmã mais nova, ama e respeita a Cora tremendamente. Alice é a típica donzela, de coração claro e fraco, propenso a desmaiar e chorar. Sua inocência e pureza capta a simpatia do leitor, mas não é uma personagem tao bem desenvolvida como Cora. 5 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Enredo A ação da história se passa em 1757 durante a Guerra dos Sete Anos nas montanhas de Adirondack no que era então a colônia britânica de Nova York. Três homens estão viajando para o oeste para encontrar um novo lar. O mais velho é Chingachgook, o último chefe da tribo dos moicanos. Com ele, estão seu filho Uncas e um filho adotivo, um homem branco chamado Nathaniel Poe, que também atende pelo nome de Nathaniel Hawkeye. Enquanto isso, o major Duncan Heyward, do exército britânico, chegou a Albany. Ele foi enviado para servir o coronel Edmund Munro, o comandante do forte William Henry, no Lago George, um ponto importante da defesa contra os franceses. A Heyward, também foi dada a tarefa de escoltar as duas filhas do coronel, Cora e Alice, até o forte onde seu pai está no comando. Ele é um amigo da família, e pede Cora em casamento antes de sair. Ela não lhe dá uma resposta. O major Heyward, as duas mulheres e uma unidade de soldados britânicos, em seguida, marcham pelo campo direto para o forte. Eles são liderados por um único guia, Magua, um guerreiro da tribo Huron. Inesperadamente, Magua conduz o grupo a uma emboscada, onde todos são mortos exceto Heyward, as mulheres e dois soldados feridos. A luta, no entanto, é interrompida pela chegada de Chingachgook e seus filhos, que matam os guerreiros inimigos, mas permitem que Magua fuja. O major e as mulheres agora estão sem guia. Os moicanos e Hawkeye concordam em acompanhá-los pelo resto do caminho. Durante esta caminhada, Cora começa a formar um vínculo com Hawkeye, o que preocupa Heyward. Quando eles chegam perto do forte, eles percebem que este está sitiado pelos franceses. Eles conseguem entrar na fortaleza durante um bombardeamento e são recebidos pelo coronel Munro. O coronel admite, para Heyward e os outros, que o forte está prestes a cair. O forte cai, mas o general francês, Louis-Joseph de Montcalm, garante, aos soldados britânicos, passagem segura para Albany. É revelado que Magua e seu exército de nativos huron estão com os franceses. Em uma reunião secreta, Magua revela seu ódio pelo Coronel Munro, e seu desejo de vingança pelo assassinato de sua família. No dia seguinte, o Coronel Munro e todos presentes marcham com a guarnição britânica do forte. No campo, Magua e seus guerreiros emboscam os britânicos, e Magua mata o Coronel Munro. 6 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Hawkeye e os moicanos lutam e conseguem retirar Cora, Alice e Heyward da batalha, embora Magua, depois, capture o major e as mulheres, levando-os como prisioneiros. Em uma aldeia de Huron, Magua apresenta as mulheres e o oficial a um sachem, um chefe, na esperança de ganhar o reconhecimento como um líder de guerra. Mas seus apelos são interrompidos por Hawkeye, que veio para defender a vida dos prisioneiros. Finalmente, o sachem ordena que Heyward seja vendido para o francês, Alice seja dada a Magua e Cora queimada viva. Em um último gesto de afeto, Heyward se dispõe ser executado no lugar de Cora. Mais tarde, ao longo de trilhas íngremes da montanha, Chingachgook, Uncas e Hawkeye seguem e atacam o grupo de Magua para liberar Alice. Uncas é morto e jogado para baixo da montanha e Alice salta em desespero. Num único combate com Chingachgook, Magua é, rapidamente, derrotado e morto. No fim, durante um ritual fúnebre com Hawkeye e Cora, Chingachgook reza para o Grande Espírito em nome de Uncas, observando que ele é, agora, o último dos moicanos. O contexto histórico e suas implicações para o pioneiro americano Cooper ambienta O último dos Moicanos no ano de 1757, terceiro ano da Guerra dos Sete Anos, conflito internacional ocorrido no período compreendido entre 1756 e 1763. O conflito existente entre França e Inglaterra, que foi denominado Guerra FrancoIndígena ou Guerra dos Sete Anos, era fundamentado pelo interesse que os dois países tinham nas colônias americanas. Dentro desse contexto, colonos americanos e soldados ingleses lutaram ao lado de índios aliados, contra os franceses, no território americano. O massacre do Forte William Henry, executado pelos indígenas aliados da França, faz parte dos fatos históricos. Este Forte foi palco de uma das maiores atrocidades cometidas no período da Guerra dos Sete Anos. O forte era ocupado e defendido pelos britânicos, que após um cerco de uma semana e intensas batalhas, aceitaram o termo de rendição proposto pelos franceses. Esse termo concedia aos oficiais e aos colonos ingleses que ocupavam o forte, autorização para dirigir-se ao forte Edward, localizado a quinze milhas de distância, levando consigo armas e pertences pessoais. Pelo termo, os índios que ajudaram no cerco não teriam autorização para saquear o forte como retribuição por terem ajudado os oficiais franceses, que nos termos vigentes na época pertenceria a eles por direito. Inconformados com a decisão francesa, esses índios atacaram os ingleses que permaneceram no forte, por motivos de doença e/ou ferimento, bem como os que 7 " O último dos moicanos" Representação e Identidade deixavam o forte, matando-os e apropriando-se de suas posses. Estima-se que o número de vítimas anda em torno de 69 a 185 pessoas. O Forte, localizado no lado sul do George Lake, em Nova York, foi construído com o objetivo de proteger as fronteiras de Nova York. Quando nos referimos às fronteiras americanas no século XIX, não podemos pensá-las apenas como espaços divisórios entre países ou regiões, torna-se essencial o entendimento delas enquanto construções históricas, resultando as fronteiras de complexos processos de ocupação e transformação da natureza, carregadas, portanto, de determinações econômicas, sociais, políticas e culturais muito variadas. As zonas fronteiriças assim pensadas assumem características ímpares, revelando miscigenações culturais próprias, bem como práticas económicosociais e políticas originais características destas zonas de fronteira.1 A fronteira permite que os colonos busquem novas condições de vida nas terras livres, o que é um incentivo para o espírito de iniciativa e para a defesa da igualdade de oportunidades. A dinâmica do processo não é explicada apenas pelas oportunidades abertas pela terra livre, mas também porque o pioneiro, ao buscá-las, entra em contato com a simplicidade da sociedade primitiva, sendo obrigado a se adequar a padrões nativos de relação com a natureza. Pouco a pouco ele transforma a selva e deserto em algo mais familiar, mas o resultado não é a velha Europa.2 Nesse contexto vivia o pioneiro americano, que era um homem comum, que surge como o representante dos ideais de liberdade, independência e trabalho, associados aos peregrinos ingleses, bem como da afirmação de um destino a ser cumprido. O pioneiro era exaltado “por seu espírito de aventura na expansão de novas fronteiras para o cultivo e exploração da terra, com seu espírito empreendedor, transformaram a natureza e ampliaram o alcance da civilização ocidental.3 As disputas entre França e Inglaterra pelas terras norte americanas permitiram que esses homens, adaptados à fronteira como caçadores, mercadores de peles e conhecedores do GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. Representações em conflito: a construção literária dos fronteiriços nos Estados Unidos da América e no Rio da Prata durante o século dezanove. 2008; P249 In: Textos de História, vol. 16, nº 2, 2008, pp. 249-274. 2 WERNER, Robert. A conquista do Oeste: a fronteira na obra de Sérgio Buarque de Holanda. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2000.P 98 3 THIÉL, Janice Cristine. Pele silenciosa, pele sonora: a construção da identidade indígena brasileira e norte-americana na literatura. Tese de Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Letras de Universidade Federal do Paraná, 2006.P.137 1 8 " O último dos moicanos" Representação e Identidade local – dos caminhos, costumes e rotas - desempenhassem a função de guia de tropas das metrópoles e/ou participassem de negociações com grupos indígenas. As questões relacionadas às fronteiras americanas existiram desde a chegada do europeu no continente americano. Para ele essas questões produziram a miscigenação cultural, que resultou em sociedades peculiares, onde as atitudes dos fronteiros eram também fronteiriças, ambíguas e que geravam muitas desconfianças nas autoridades competentes e demais representantes da civilização4. O fronteiro, ou homem de fronteira pode ser entendido como um processo de transculturação, ou seja, o processo de transito de uma cultura para outra. Representação e identidade Em “O último dos Moicanos”, o narrador aponta características geográficas e idealiza o índio como herói imbatível, destemido e dotado de autossacrifício pelo outro – uma das mais nobres virtudes na perspetiva da cultura norte-americana. Apresenta-nos também os povos brancos como invasores das terras dos povos indígenas, mostrando como heróis os índios aliados dos ingleses, e como vilões, os aliados dos franceses, o que pode ser visto até como uma característica do nacionalismo presente na estética do romantismo. Nesse sentido, a narrativa que envolve o nacionalismo é dotada de imagens, símbolos e representações relevantes à compreensão da cultura de cada povo5. Tais características são explícitas na obra de James Fenimore Cooper ao retratar o choque cultural entre índios e brancos na guerra e sua posição: - os vilões são os europeus. Tal postura sugere ao leitor a perspetiva de heroísmo indígena. Em muitas partes da obra, o autor exalta os costumes indígenas, apontando seus feitos fantásticos: os heróis escapam com facilidade ou, como que por uma tramoia do destino, derrotam inimigos invencíveis, contam com ajuda dos deuses, dos elementos da natureza etc. Porém, e isto é um importantíssimo, porém, eles são sempre vistos na obra como fugitivos ou sobreviventes, nunca como os dominadores. 4 GUAZZELLI, César Augusto Barcellos. Representações em conflito: a construção literária dos fronteiriços nos Estados Unidos da América e no Rio da Prata durante o século dezanove. 2008; P249 In: Textos de História, vol. 16, nº 2, 2008, P.127. 5 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006; P.52 9 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Os povos indígenas são vistos como portadores de uma cultura rica e de grande dignidade no porte e na linguagem, conceção que pode ser relacionada com a ideia do “nobre selvagem”. O conceito de “identidade”, é marcado por diferenças que variam em cada ambiente cultural e é construída por meio do “simbólico”. O “simbólico” são peculiaridades culturais adotadas por um grupo que geram a diferença, como: músicas apreciadas por um grupo específico, marcas de cigarro, roupas etc. Na análise, a convivência percebida do índio com o branco encaixa-se nesse ponto: seu simbólico (roupas, armas, crenças, danças, lutas etc.), dentro de um contexto social e histórico específico, que é a guerra, é diferente e misturado aos novos povos, originando novos seres e novos símbolos que acarretam a mudança da identidade indígena e branca6. Inserções e mudanças no contexto cultural dos povos indígenas Para entender a mudança ocorrida na vida dos índios norte-americanos, é preciso analisar as inserções culturais trazidas pelos brancos e que foram o gatilho das mudanças. Podemos enumerar cinco tópicos-chave que foram as grandes “novidades” na transformação da cultura indígena: o cristianismo, o cavalo, o álcool, as armas de fogo e a própria miscigenação de raças. O cristianismo As discussões religiosas sobre Deus e o homem presentes na obra acontecem em diferentes diálogos sempre enfatizando a crença religiosa dos povos indígenas como pecaminosa. Os nativos, politeístas, tinham diferentes crenças e adotavam importantes valores dotados de simbolismo e que eram tabus para os puritanos. Os povos europeus tinham uma posição religiosa forte contra tais crenças indígenas; David, uma das personagens, é um poeta meio místico, meio pregador itinerante que acompanha os heróis, refletindo constantemente sobre Deus e o destino, alegando sobre o destino do homem nas mãos e na natureza divina, princípio fundamental dos calvinistas:7 WOODWARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: SILVA, T. T. da. (Org.). Identidade e diferença: a perspetiva dos estudos culturais. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2007.P.29 7 SMITH, L. C. Cross-Cultural Hybridity in James Fenimore Cooper’s The last of the Mohicans. American Transcendental Quarterly, v. 20, n. 3, p. 527-552, 2006. 6 10 " O último dos moicanos" Representação e Identidade “Disseste bem”, respondeu David, “e captaste o verdadeiro espírito do cristianismo. E aquele que é destinado a ser salvo será salvo e aquele destinado a ser condenado será condenado. Esta é a doutrina da verdade que consola (…) o verdadeiro crente”8 A discussão ocorre em relação à tomada de decisões de algumas das personagens vista como correta. O contraste histórico é importante nesse momento para mostrar como cada qual defende sua cultura. Os missionários viam ou sentiam-se na obrigação de romper com o que consideravam ser paganismo, dando educação e religião aos índios, e isso gerou confusão na mente dos povos, apagando muitas histórias, lendas e rituais indígenas; ou seja, tal posição destruiu, e muito, parte da cultura daqueles povos. O branco impôs uma nova religião, sendo essa muito forte, o que trouxe consequências desastrosas para as nações indígenas:9 A imposição de uma nova religião aos índios contribuiu significativamente para a destruição de um dos principais pilares de sustentação da sociedade indígena. No momento em que os valores cristãos mostraramse incapazes de substituir com êxito os antigos valores religiosos dos índios, ou de integrar as funções da vida social, a sociedade e as instituições indígenas, perderam toda a sua razão de ser.10 O cavalo Outra inserção importante que contribuiu de maneira positiva e negativa para o processo de confronto e dominação cultural foram os cavalos. Em alguns momentos, os cavalos são mencionados na obra de Cooper, passando através de trilhos, sendo utilizados em perseguições ou fugas. Os cavalos, para os índios, foram fundamentais e muito utilizados em algumas regiões. Não haviam burros, bois ou cavalos no continente americano, os espanhóis os trouxeram e soltaram-nos no “novo mundo”. Com o tempo, eles foram multiplicando-se e foram adotados pelos índios para diferentes finalidades. Na obra, eles aparecem de forma COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P117 SOLA, J. A. Os índios norte-americanos: cinco séculos de luta e opressão. São Paulo: Moderna, 1995.P.29 10 Idem; P31 8 9 11 " O último dos moicanos" Representação e Identidade discreta e é não menos importante ressaltar que nesse contexto de “mato fechado” eles não eram muito utilizados, sendo vistos como inapropriados em certos momentos. O cavalo parece ter sido uma dádiva, no entanto, como efeito negativo, os índios abandonaram vários costumes de atividades sedentárias, perdendo grande parte de suas produções agrícolas. Como instrumento de viagem, ele facilitou a migração dos povos de modo a acelerar o processo de fragmentação cultural. Na guerra o uso do cavalo veio a alterar o modo dos povos indígenas guerrearem, elevando a mortandade dos conflitos. Foi também fonte de conflitos, por um lado eram um bem cobiçado, e conflitos com o objetivo de “roubar” os cavalos ás tribos vizinhas tornaram-se de certo modo recorrentes, por outro lado temos a questão de fronteiras territoriais, com o cavalo tornou-se possível viajar rapidamente e a maiores distancias do que em qualquer altura anterior na historia dos povos indígenas norte americanos, isso levou a um alargamento da área de influencia e de controlo de certas tribos, que entraram em conflitos com os vizinhos. O álcool O álcool, visto hoje em nosso quotidiano como um problema, para os índios gerou uma rápida degeneração. Os europeus, ao introduzir o álcool entre as comunidades indígenas, geraram diversos problemas àquela sociedade, como a desorganização social, o estímulo à delinquência e à violência excessiva11. Na obra temos o álcool como justificativa do vilão Magua para sua rebeldia e desejo de vingança, o que é um elemento importante no romance para contribuir com os estudos culturais. Naquela época e contexto as consequências foram devastadoras para os povos indígenas. Magua, o vilão principal do romance, em virtude do álcool, cometeu ações vergonhosas e foi punido pelos brancos, o que provocou sua ira. “…Magua não era ele mesmo; era o álcool que agia por ele! Mas Munro não acreditou nisso. O chefe Huron foi amarrado perante todos os guerreiros cara-pálida e chicoteado como um cachorro (…)12” A introdução repentina do álcool nestas culturas veia a desestabilizar a sua dinâmica. O consumo foi descontrolado, a embriagues levava-os a estados de espírito alterados, muitas SMITH, L. C. Cross-Cultural Hybridity in James Fenimore Cooper’s The last of the Mohicans. American Transcendental Quarterly, v. 20, n. 3, p. 527-552, 2006. 12 COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P120 11 12 " O último dos moicanos" Representação e Identidade vezes tornando-os violentos e inconsequentes. O uso de substâncias alteradoras do estado de espírito, nomeadamente opiáceos, não era uma novidade para os indígenas norte americanos, mas normalmente o seu uso estaria reservado ou a membros específicos da tribo ou a situações especiais, e não eram utilizados numa base regular como aconteceu com o álcool. O relativo fácil acesso a bebidas alcoólicas, principalmente as destiladas, como o whiskey também veio a agravar o problema. O álcool tornou-se um vicio tao grande e fora de controlo nas comunidades indígenas, que muitas vezes as trocas comerciais com estes eram pagas em whiskey e rum. Este problema do álcool é ainda hoje um dos maiores problemas das comunidades indígenas da américa do Norte, contribuindo para a imagem estereotipada do “drunken indian”.13 Armas de fogo Estas aparecem em toda a obra, até certo ponto de modo exacerbado, colocadas pelo autor de maneira minuciosa, descritas como forte elemento de construção de identidade. As armas de fogo são utilizadas quer pelos indígenas quer pelos brancos, e na sua utilização por cada uma das partes podemos assumir uma posição ideológica das mesmas. Os “bons”, de um modo geral, utilizam armas inglesas, enquanto que os “maus” utilizam armamento francês. Aqui convém fazer um á parte histórico. Por norma os ingleses reservavam o seu melhor armamento para as suas tropas regulares, os colonos, que constituíam o exército auxiliar, ficavam com o armamento inferior e praticamente sem acesso a artilharia ou apenas tinha acesso a peças de calibre reduzido. Em relação aos índios, os ingleses sempre foram, muito relutantes em arma-los e quando o faziam era com o que de pior tinham. Os franceses por outro lado sempre armaram os indígenas com o melhor que tinham e não lhes sonegavam qualquer tipo de armamento, no filme inclusive é feita alusão á queda de alguns fortes ingleses á mão de forças exclusivamente indígenas, o que revela que teriam poder de fogo suficiente para o fazer, inclusive artilharia. Os franceses não faziam isso por qualquer tipo de superioridade moral, mas apenas por necessidade, á altura da guerra dos 7 anos, os ingleses na américa já perfaziam um total de um milhão e duzentos mil SMITH, L. C. Cross-Cultural Hybridity in James Fenimore Cooper’s The last of the Mohicans. American Transcendental Quarterly, v. 20, n. 3, p. 527-552, 2006. 13 13 " O último dos moicanos" Representação e Identidade colonos, enquanto que os franceses eram apenas cerca de 250 mil, necessitavam dos índios para “engrossar” as suas fileiras. Aquando da inserção das armas de fogo pelos europeus, os indígenas rapidamente perceberam a precaridade das suas armas, e vendo o poderio e a eficácia das armas de fogo europeias decidiram aderir a elas, com diferentes objetivos. Uma forma de obterem estas armas era a partir de alianças com franceses ou ingleses, graças às hostilidades entre colonos. Á medida que se intensificavam a rivalidade e as guerras entre os colonos pelo domínio dos territórios e do comércio de peles com os índios cada lado procurava estabelecer suas próprias alianças com tribos também rivais. Através dessas alianças, os índios receberam inúmeros suprimentos de armas de fogo.14 As armas foram de fogo foram adotadas pelos nativos tanto em virtude da sua eficácia para resistir contra os outros povos índios, brancos, franceses etc. quanto para caça. Em termos de identidade, a arma de fogo é um instrumento, um “símbolo” de poder. Apesar das diferentes utilidades das armas, o seu uso inconsequente gerou grandes problemas para os indígenas. Eles abatiam mais animais para venda e obtenção de produtos do que para sobrevivência, o que acarretou o desaparecimento de parte da fauna local e, dessa forma, também dos meios de sobrevivência, bem como sua alimentação e vestimentas, que eram geradas a partir desses animais, e isso levou á precaridade de algumas tribos que acabaram se dissolvendo. Miscigenação e hibridismo A miscigenação foi um dos principais fatores que abalou a estrutura social indígena. A migração gerou decadência na sociedade e na cultura, o que separou famílias, tradições e costumes. Os povos que antes viviam em certas regiões tiveram de se mudar e conviver em outros locais, mesclando, assim, diferentes culturas e povos, incluindo os povos europeus.15 Essa constatação parte da perspetiva de que cada grupo contém traços, mesmo que sutis, que fazem distinção ideológica, de crenças, e que, respetivamente, em contato com outro, geram novas identidades. SOLA, J. A. Os índios norte-americanos: cinco séculos de luta e opressão. São Paulo: Moderna, 1995.P.32 14 14 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Na obra, Chingachgook ilustra seu sentimento de perda e desorientação, “identidade em crise” devido à miscigenação dos diferentes membros da sua raça. “Minha tribo é o avô das nações, mas eu sou um homem não misturado. O sangue dos chefes está em minhas veias, onde permanecerá para sempre. Os holandeses aportaram e deram para meu povo a água de fogo (álcool); eles beberam até que os céus e a terra parecessem encontrarse, e pensaram tolamente que tinham encontrado o Grande Espírito. Então eles se separaram da terra. (…) foram expulsos da costa, até que eu, (…), não mais visse o sol brilhar senão através das árvores e não mais visitasse as sepulturas de meus pais!”16 O cristianismo, o cavalo, o álcool, as armas de fogo, tudo isso contribuiu para a crise de identidade indígena, que se perdeu e fundiu-se com outras. A mescla de povos pode gerar construções identitárias positivas ou negativas, pois a nova identidade é composta de várias outras que são adotadas perante contextos específicos, e essas são constituídas de posições e crenças ideológicas distintas, e se mal administradas, geram conflito. Contudo, o individuo que surge desta mescla, tinha, na sua identidade, uma mistura de valores simbólicos que estavam sendo apagados e substituídos. Não havia entre as diferentes culturas diálogo ou discussão de igualdade em que predominasse o respeito; os índios eram tratados como se fossem animais, como membros de uma cultura pecaminosa e não cristã. Exemplificando como pequenos fatores contribuem em muito para a destruição de uma cultura, segue-se o exemplo da personagem Hawk-eye, pois esse exprime o novo sujeito composto das misturas culturais, dotado de princípios e simbologias novas que foram construídas pela interação de diferentes culturas, que resultam no fato de ele ao mesmo tempo pertencer a duas culturas diferentes e em simultâneo não ser aceite por nenhuma delas. 16 COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P37 15 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Esta “mistura” aplica-se em grande parte ao retrato cultural presente na obra de Cooper. Falar de miscigenação é falar de mesclas culturais, é um discurso que basicamente aponta como diferentes culturas interagem gerando novas, modificando-se ou, muitas vezes, desaparecendo. Na obra, quando as personagens interagem surgem posições ideológicas conflituantes, montando assim um retrato da cultura “híbrida”, ficando essa em constante modificação por meio de renúncias e abandono de tradições, divergências sobre o que é certo ou errado. Nos diálogos entre as personagens fica evidente este conflito de culturas, principalmente quando se trata de Hawk-eye, onde se nota mais o seu “deslocamento” em relação ás suas origens. Tendo em conta os elementos que se miscigenaram à cultura indígena, modificando-a, temos um novo ser dotado de construções simbólicas que o diferenciam do europeu, do índio e de qualquer outra raça ou etnia. Um ser híbrido se assim o podemos chamar. Este conceito de hibridismo adequa-se ao estudo proposto, pois essa “mistura” que a palavra suscita aplica-se em grande parte ao retrato cultural visto no romance de Cooper. Olhar para o conceito de “hibridismo” é importante, pois revela fatos importantes contribuintes da imagem construída dos povos indígenas. Nesse processo, eles assumem diferentes posições conforme o contexto, ou seja, seus personagens interagem de maneiras distintas perante o desenvolver da ação do romance. Este conceito de miscigenação de culturas, afetou não só os indígenas, mas também o homem branco. Quer por miscigenação de sangue quer apenas culturalmente, o contacto do homem de fronteira com estas culturas indígenas transformou-o em algo diferente do típico colono europeu. Esta diferença é bastante percetível na personagem de Hawk-eye. O Homem de fronteira desenvolveu um conjunto de competências e capacidades que o distinguia dos demais, a sua proficiência na caça, na sobrevivência num meio hostil, as superiores capacidades físicas condicionadas pelas dificuldades proporcionadas pelo meio transformaram-no quer num aliado quer num inimigo formidável. Historicamente falando, num período inicial, a ajuda deste homens era imprescindível ao exercito, principalmente ao exercito inglês que não confiava de maneira nenhuma nos indígenas, mesmo que fossem seus aliados, portanto ter um homem branco com as mesmas capacidades de guia e de conhecimentos do terreno que um indígena seria uma obvia mais valia, para alem disso seriam usados como intermediários nas negociações 16 " O último dos moicanos" Representação e Identidade entre os ingleses e os indígenas pois o facto de serem meio indígenas, ou meio brancos era um fator que á partida seria positivo. Mas, com o decorrer do tempo começamos a verificar que o modo de vida destes homens assemelhava-se mais ao dos indígenas do que ao dos colonos brancos, os seus interesses divergiam daquilo que era o interesse da coroa inglesa, e estes homens tinham uma perceção de liberdade muito mais abrangente do típico colono, e não estavam dispostos a renunciar desta liberdade pelo “dever” de obediência á coroa e ao rei. Ou seja, estes homens eram difíceis de controlar, difíceis de agradar pois não estavam tão dependentes da coroa quanto isso. Os seus valores morais divergiam, não na totalidade, mas eram menos abstratos do que o estabelecido. Na obra, podemos ver perfeitamente isso nas interações entre Hawke-eye e os comandantes ingleses. Ele aceita ajudá-los, mas não por lealdade, simplesmente naquele momento a sua bussola moral está alinhada com os ingleses, o que do mesmo modo tao facilmente poderia estar alinhada com os franceses e então ajudaria os franceses. Essa mescla cultural gerou o ser híbrido dotado de dúvidas e conflitos, e a obra de Cooper preserva muitos traços culturais e inserções dentro dessa nova cultura, já mestiça, de maneira a retratá-la com grande nobreza e a apresentar o povo “americano” em fase de construção. O autor constrói a representação do que seria uma identidade americana, arquiteta uma obra que abrange os povos que foram conquistados e massacrados e dá-nos uma visão dos dois lados, poluída pela sua influência europeia é claro, mas mesmo assim bastante relevante. Não somente os homens aparecem em estados “híbridos”, as mulheres na obra também se distinguem nessa condição, como Cora, filha do Coronel Munro. Cora é filha do coronel Munro com outra mulher, uma possível afrodescendente, aparecendo aqui uma mestiçagem diferente da indígena, mas que também se torna bom exemplo de mestiçagem, pois tal processo apresenta uma personagem híbrida “mais forte que a irmã”, sendo essa de origem “nobre”. A aparência de Cora distingue-se da de sua irmã Alice, puramente escocesa. Enquanto Alice é tímida e assustada, Cora é apaixonada, independente e valente, remanescente das outras, suas características definidoras estão fora da esfera doméstica17 SMITH, L. C. Cross-Cultural Hybridity in James Fenimore Cooper’s The last of the Mohicans. American Transcendental Quarterly, v. 20, n. 3, p. 527-552, 2006 17 17 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Cooper faz uso dos povos indígenas e de outras etnias para representar a formação social de um povo que luta, reage, adapta-se, torna-se cada vez mais forte e heroico, isto é, as bases da ideologia norte-americana. Hawk-eye, Cora, Chingachgook, dentre outras personagens, interagem mostrando-se sempre em conflitos, questionando-se sobre os valores e a sociedade em que estão. Nesses momentos de interação, os povos ali presentes são idealizados como sobreviventes heroicos e seus feitos são enaltecidos. A caracterização do pioneiro americano Em O último dos Moicanos a trajetória do personagem bem como a descrição de suas características, físicas e pessoais, permite inferir que o personagem passou por um processo de transculturação, que o torna um homem híbrido, que se movimenta com desenvoltura no mundo do índio e do branco, não se integrando, contudo, inteiramente em nenhum deles, sendo, contudo, respeitado e admirado em ambos. Na obra de Cooper, Nathaniel convive com os índios nativos numa relação de respeito à natureza e aos valores indígenas, mesmo aos rituais, considerados inaceitáveis pelo homem branco, como é o ato de retirar o escalpe das vítimas, que justifica dizendo “seria uma ação cruel e desumana para um branco; mas (…) é o direito de um índio, e entendo que não lhe deve ser negado (…)”18 Hawk-eye mantém um laço emocional e de amizade com os seus amigos índios Chingachgook e seu filho Uncas, o que fica evidente ao manifestar admiração pela sua coragem. Ele adota alguns de seus costumes e incute neles alguns dos seus. Uncas respeita-o e é orientado por ele em várias ações, uma delas em relação ao uso da arma. “(…) gastas pólvora demais e o coice da espingarda estraga-te a pontaria! Pouca pólvora, chumbo leve e braço comprido raras vezes deixam de produzir o grito de morte de um Mingo (…)19 No entanto, ao longo da narrativa, Nathaniel pronuncia, em várias ocasiões, palavras e expressões que sugerem o orgulho que ele tem em ser um homem de “sangue 18 19 COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P172 Idem; P.81 18 " O último dos moicanos" Representação e Identidade absolutamente branco”. Reconhece, no entanto, e envergonha-se, por julgamentos equivocados dos europeus em relação ao povo indígena. “Está enganado, no que diz respeito à natureza do índio. (…) o verdadeiro Deus é uma perversa invenção dos brancos, e nesse ponto sinto-me envergonhado pela minha cor, dizerem que os guerreiros se curvam perante imagens por eles próprios criadas (…)20 Demonstra também respeito e obediência ao império britânico, reconhecidos pelos ingleses na voz do Coronel Munro “ Conheço muito bem o Longa carabina (...) e sei que está acima de qualquer suspeita”21 , ao mesmo tempo em que reconhece e admira valores e características dos nativos. Idolatração tardia do indígena Para construir a identidade do país, volta-se às origens, ou seja, retratam-se as diferentes culturas do passado subjugadas, assimiladas e até mesmo aniquiladas em nome do mito fundacional. Cada cultura que atravessa um período turbulento de guerras e conflitos que acaba por alterar seu modo de vida, e todo e qualquer povo que se choca culturalmente com outro se modifica mesmo involuntariamente, e após o término da batalha o conquistador analisa em nova perspetiva os costumes do conquistado, alterando assim sua identidade e gerando uma idolatração tardia destes mesmo costumes, ou pelo menos parte. É significativo, que essa idolatração dos nativos do Novo Mundo tenha ocorrido somente depois que fora decidido o conflito entre os europeus e os nativos, e quando, portanto, ela não mais poderia impedir a exploração dos últimos pelos primeiros. Desse ângulo, a idolatração do homem Selvagem, a atribuição a este de poderes sobre-humanos (isto é, nobres) constitui apenas o estágio final da elaboração de uma identidade. Mais uma vez, a personagem principal, Hawk-eye é o perfeito exemplo dessa idolatração, desta apropriação de características nobres na construção de um novo individuo, de uma nova identidade. 20 21 COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P.288 Idem; P.189 19 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Ele é sempre dotado das mais nobres virtudes e experiências, com os simbolismos já citados como as vestimentas e, em muitas partes da obra, com um comportamento diferente do das outras personagens. “A aparência dele, embora muscular, era mais atenuada que plena; mas cada nervo e músculo pareciam fortes e endurecidos pelo excesso de exposição e trabalho. Ele usava uma camisa de caça verde-floresta, com bordas de amarelo enfraquecido, e um boné de verão de peles que tinham sido tosquiadas. Ele também usava uma faca na cinta, como as que costumam amarrar o escasso vestuário dos indígenas, mas nenhum machado. (…) Uma bolsa e um chifre completavam seus atavios pessoais, embora uma espingarda de grande comprimento, que a teoria dos brancos mais engenhosos tinha lhe ensinado como a mais perigosa de todas as armas de fogo, estivesse apoiado em um galho de árvore próximo (…)”22 Chingachgook, por sua vez, é descrito usando uma faca de manufatura inglesa, apresentando mais um elemento simbólico da miscigenação de culturas do indígena/europeu. Esses elementos não aparecem somente nas personagens Chingachgook e Hawk-eye, mas em todos os demais membros inseridos em sua esfera social. Escolheu-se Hawk-eye porque essa personagem destaca-se na obra. Hawk-eye, é um ser híbrido que, simbolizando o herói romântico dotado de força e imbatível, destacase na narrativa em diferentes pontos: lutas, fugas, falas dotadas de sabedoria etc. Criado por índios, porém filho de brancos, ele mesmo se questiona sobre sua identidade. Cooper cria uma personagem que representa o herói americano, uma mescla dos índios com os europeus.23 As pessoas pertencentes a essas culturas híbridas têm sido obrigadas a renunciar ao sonho ou à ambição de redescobrir qualquer tipo de pureza cultural “perdida” ou de absolutismo 22 23 COOPER, J. F. The last of the Mohicans. London: Penguin Books, 1994.P33 HALL, S. A identidade cultural na pós-modernidade. 10. ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.P.89 20 " O último dos moicanos" Representação e Identidade étnico Tudo o que há são misturas incontáveis de culturas e movimentos sociais que criaram o que são hoje. Conclusões finais A ação da obra ocorre durante o tempo em que a luta pelo poder e pela sobrevivência constitui-se como o elemento que impulsiona o colonizador e o colonizado, respetivamente. Dentro desse contexto, constata-se que as relações do sujeito colonizado e do sujeito colonizador propiciam uma troca de valores culturais, que vem a causar modificações na identidade cultural de ambos. É interessante notar a representação que é feita quer do nativo americano, quer do colonizador, neste caso de estudo o homem de fronteira, personificado na personagem de Nathaniel ou Hawk-eye. No momento histórico em que a ação da obra decorre é já extremamente notável uma transculturação, ou seja, o indígena já apresenta muitos traços culturais europeus, sendo a utilização das armas de fogo a mais evidente, mas não o único, e o próprio europeu, no papel de homem de fronteira vai assumir também muitas características indígenas, principalmente na sua relação com a natureza e como se movimenta no meio desta. A relação entre colonizador e colonizado é também muito bem explorada nesta obra. De facto, notamos claramente que o processo de colonização da América do Norte não foi propriamente “chegar, ver e vencer”. As populações indígenas locais eram compostas por números bastante significativos, e as diferenças tecnológicas não deram uma supremacia indiscutível ao europeu. Tiveram de haver negociações e concessões de ambas as partes, e do mesmo modo que os indígenas foram utilizados para combater a guerra dos brancos, o mesmo argumento serve para o outro lado, pois os indígenas usaram também o branco para combater os seus inimigos, e este jogo de alianças foi uma parte muito grande no processo de transculturação. É interessante notar que o indígena nesta obra não é retratado nem como a vítima indefesa de uma potência colonizadora europeia, nem como o bárbaro inimigo sedento de sangue e violência. É possível em vários pontos da obra colocar quer um quer o outro como vítima ou como “vitimizador”. As suas ações desenrolam-se de acordo com as circunstâncias e acontecimentos. 21 " O último dos moicanos" Representação e Identidade A personagem de Nathaniel é utilizada como o arquétipo do que é a origem do homem americano, um ser híbrido, com as melhores qualidades de duas culturas que chocaram entre si. 22 " O último dos moicanos" Representação e Identidade Bibliografia: ABRANTES, Alômia. O último dos Moicanos, uma aventura no Estudo da América. In: Saeculum, n° 1, 1995. BAYM, Nina, “The women of Cooper’s Leatherstocking tales”, American Quarterly 23 (1971) BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2ª ed. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2003. BLANCO, Richard L. Book Review – Betrayals: Fort William Henry and the Massacre. In: The William and Mary Quarterly. vol. 48, nº 3, 1991, pp. 488-490. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. BROWN, D. A. Enterrem meu coração na curva do rio: uma história índia do oeste americano. 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