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Sotaque: a voz da identidade

2018, Filosofia Comunicação e Subjetividade Volume 1

Sob uma perspectiva que parte da superação da narrativa do perigo da perda na linguagem, eu gostaria de propor uma reflexão em particular: pensar o traço essencial de nossa identidade na linguagem, a partir do fenômeno do sotaque, mesmo que difundido e difuso com a intensifcação dos epifenômenos da transnacionalidade e informacionalidade. Assim, na aparição da identidade encenada pelo sotaque, a parentalidade de lugar e linguagem que se expressa na língua e que não se dissolve na sua miscigenação, nem na sua ‘contaminação’, se deixaria ver privilegiadamente. Neste ensaio, o fenômeno do sotaque para ilustrar a questão da identidade na linguagem diante das transformações de mundo vai ser pensado de maneira ainda mais particular, pois se refere, como demonstrarei a seguir, à própria palavra com a qual o designamos tão unicamente na língua portuguesa. Volume Completo: http://labcom-ifp.ubi.pt/book/318?fbclid=IwAR0dRhVvE9UTKatfiy79wp6EiRTHOtR9cTZIXQwrTCUSrY0DgaNDHZnGreI

FILOSOFIA, COMUNICAÇÃO E SUBJETIVIDADE VOLUME 1, LINGUAGEM, CULTURA E SOCIEDADE ANABELA GRADIM JOÃO CARLOS CORREIA ELISA ZWICK FRANCISCO XARÃO (ORGS.) LABCOM.IFP Comunicação, Filosofia e Humanidades Unidade de Investigação Universidade da Beira Interior Ficha Técnica Título Filosofia, Comunicação e Subjetividade: Volume 1, Linguagem, cultura e sociedade Organização Anabela Gradim, João Carlos Correia, Elisa Zwick e Francisco Xarão Editora LabCom.IFP www.labcom-ifp.ubi.pt Coleção Livros de Comunicação Direção Gisela Gonçalves Design Gráfico Cristina Lopes Cefas Garcia Pereira (Ilustração da capa) ISBN 978-989-654-526-0 (papel) 978-989-654-528-4 (pdf) 978-989-654-527-7 (epub) Depósito Legal 450025/18 Tiragem Print-on-demand Universidade da Beira Interior Rua Marquês D’Ávila e Bolama. 6201-001 Covilhã. Portugal www.ubi.pt Covilhã, 2018 © 2018, Anabela Gradim, João Carlos Correia, Elisa Zwick e Francisco Xarão. © 2018, Universidade da Beira Interior. O conteúdo desta obra está protegido por Lei. Qualquer forma de reprodução, distribuição, comunicação pública ou transformação da totalidade ou de parte desta obra carece de expressa autorização do editor e dos seus autores. Os artigos, bem como a autorização de publicação das imagens, são da exclusiva responsabilidade dos autores. Índice Apresentação 11 Prefácio 15 CONFERENCISTAS 23 O impacto da globalização na Comunicação: Para uma abordagem pós convencional do conceito de redes culturais 25 João Carlos Ferreira Correia Transformações pós-modernas das humanidades e da comunicação: da paideia ao interculturalismo 45 Anabela Gradim Sotaque: a voz da identidade 75 O imperialismo da imagem e o fetiche da sensação 93 Soraya Guimarães Hoepfner Flademir Roberto Williges Os estudos culturais de Raymond Williams: a cultura como elemento de subjetividade? 119 André Luiz Sena Mariano Desatenção: uma das consequências mais graves da “sociedade excitada” 135 Christoph Türcke COMUNICAÇÕES 149 A reversão dialética da tecnologia digital e a emancipação da consciência no rap 151 Mônica G. T. do Amaral A formação do orador ciceroniano: do domínio da linguagem à Filosofia Isadora Prévide Bernardo 167 Hiphopnagô: letramentos rítmicos e sonoros 179 Cristiane Correia Dias e Maria Teresa Loduca Astúcia ou malandragem: uma reflexão sobre a fenomenologia do brasileiro 195 Tiago Lazzarin Ferreira A formação do gênero feminino em sites de jogos on line para crianças 209 Ana Paula Ferreira O conceito de comunicação presente/ausente em Vilém Flusser 225 Ana Cecília Aragão Gomes Bullying na escola: a percepção de um grupo de alunos do 9º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública em Poços de Caldas 237 Verônica Danziger Gomes A experiência de leitura no presídio de Poços de Caldas: como é ler no presídio? 253 Davidson Sepini Gonçalves, João Pedro Pezzato e Maíra Leda de A. Carvalho Epistemologia multicultural e a questão do sujeito em Charles Taylor 267 Willian Martini Em Cartaz: a guerra dos super-heróis pelo mercado na indústria cultural do cinema 287 Igor Rafael de Paula e Jhonatan da Silva Corrêa Um debate sobre os rumos da cultura popular negra e o seu reconhecimento na era globalizada 303 Elaine Cristina Moraes Santos Televisão: linguagem, imagem e comunicação no contexto da indústria cultural Rosangela Trabuco Malvestio da Silva 319 A convalescença da linguagem em Clarice Lispector 335 Dênis Ribeiro de Souza A comunicação empresarial e a produção do consenso na relação entre empresa e trabalhador 349 Maria Isabel Braga Souza Utilização de cotas na universidade: o caso do curso de graduação do Bacharelado Interdisciplinar em Ciência e Tecnologia da UNIFAL-MG 367 Kênia Eliber Viera e Betânia Alves Veiga Dell’Agli A (Ciber)Literatura na Formação de Professores Fabiano Correa da Silva 385 SOTAQUE: A VOZ DA IDENTIDADE Soraya Guimarães Hoepfner1 1. Introdução Comumente, quando buscamos refletir sobre a nossa identidade, logo a pensamos através da conjunção de duas referências: de onde viemos e em que língua aprendemos a falar. Pátria e língua materna surgem respectivamente, assim como pai e mãe, como doadores de uma origem, uma base de onde nos lançamos na aventura de ser alguém. Esse traço binário de nossa identidade é o que de maneira geral nos permite afirmar uma determinada pertença, uma identificação. Assim e quase sempre, não importa o quanto migremos ou quantas novas línguas aprendamos: lugar e linguagem perfazem existencialmente uma espécie de arco de sustentação da narrativa que construimos de nós mesmos. No entanto, diante das transformações na configuração de mundo ocorridas no último meio século, poderia se argumentar, que, assim como o binômio pai-mãe perdeu sua hegemonia como referência de núcleo familiar, pensar uma origem baseada em lugar-linguagem únicos já não mais corresponderia totalmente à realidade; essa não seria mais a matriz única de um indivíduo; se não biologicamente, decerto, socialmente. A formação dos novos blocos econômicos, o encurtamento das distâncias, por fim, aquilo que poderia se resumir no fenômeno da transnacionalidade, ou seja, a desfronteirização dos Estados a substituir paulatinamente a sólida 1. Jornalista/Tradutora - Berlim-Alemanha. ideia de nação – de onde se nasce – poderia ser apontada como um dos fatores de transformação da ideia de identidade, o que sem dificuldade podemos reconhecer nas novas gerações, tornadas mosaicos de culturas. Um segundo fator seria caracterizado pela informacionalidade, cujo um dos aspectos na língua reflete-se precisamente na adoção do inglês como língua franca. Esse idioma, como se sabe, constitui massivamente o campo semântico da nova tecnologia em seus infinitos acrônimos, expressões e termos que não mais se deixam traduzir ou que até dispensam localização2. Deste modo, mesmo que aqui pareça que eu os elenque arbitrariamente, um novo binômio transnacionalidade-informacionalidade surge à primeira vista como capaz de abalar a estrutura parental sagrada do binômio lugar-linguagem, esse historicamente defendido pela tradição. A defesa da tradição à qual me refiro diz respeito ao icônico apelo à essência da linguagem nutrido pelo pensamento ocidental, notadamente aquele encampado na filosofia de Martin Heidegger. De maneira geral, apoia-se fortemente na premissa da existência de uma crise, pensada a partir de uma determinada língua, o alemão. A linguagem3 seria algo que está sempre em perigo, sob ameaça de perda essencial, de pulverização e apagamento, e somos, portanto, urgidos a proteger e a preservar tal essência, conforme ela se deixa experienciar na língua alemã. No caso específico de Heidegger, a defesa da linguagem (Heidegger, 2003), que se torna colateralmente defesa da língua e, ao menos inicialmente, esteve sempre acompanhada de uma defesa da “pertença ao solo”, vai se intensificar em sua relação direta com a poesia a partir do final dos anos 404. De modo geral, esse discurso sobre a 2. No campo da tradução, denomina-se localização a “adaptação linguística e cultural de conteúdo digital aos requisitos e locale de um mercado estrangeiro.” (Schäler, 2010). Locale é um termo que se estabelece com a informática e representa os fatores geolinguísticos que determinam o conjunto de normas e formatações para uma determinada variante linguística. Um mesmo idioma pode possuir várias locales, assim como uma locale pode ser compartilhada entre idiomas distintos. O fato de conceitos como locale e localização surgirem no âmbito da tecnologia da informação é extremamente relevante, mas infelizmente não cabe ser aprofundado neste ensaio. 3. É importante frisar que língua e linguagem não são o mesmo, embora a limitação de vocabulário em alguns idiomas (alemão, inglês etc.) possa contribuir para obliterar os sentidos. Em todo o caso, a distinção não só é conhecida, mas crucial em Heidegger, muito embora ele cultive conscientemente ambiguidades. 4. A questão da linguagem atravessa todo o pensamento de Heidegger e não é possível abordá-la em detalhe neste ensaio. De maneira sintética, pode se dizer que ela passa por diversas fases, desde os escritos iniciais concernentes à lógica; a ênfase no discurso em Ser e Tempo; a maturação dessa pers- 76 Sotaque: a voz da identidade essência da linguagem iconizado por Heidegger vai ser, em diversas facetas, herdado pelos seus sucessores (Merleau-Ponty, Gadamer, Derrida etc) e levado adiante, tendo sua influência estendida a todas as esferas do discurso das humanidades. Nesse mesmo momento de mundo acontece também a chamada “virada linguística”5 que dá corpo a uma ‘filosofia da linguagem’ como campo independente da analítica6. No tocante ao discurso heideggeriano sobre a linguagem, que a sombra do nacionalismo nele existente tenha se dissipado no discurso de seus herdeiros, ao menos conscientemente, não quer dizer, porém, que a continuidade do argumento da perda/ameaça/necessidade de preservação na língua tenha ultrapassado com sucesso uma posição que permanece problemática: pois, como pode o essencial comportar a possibilidade de degradação? Não seria o caso de se pensar tão somente a sua fragmentação cuja possibilidade, precisamente, já estaria engendrada nessa própria essência? Essa perspectiva crítica sobre o discurso de crise da linguagem é o meu ponto de partida neste ensaio, que visa pensar especificamente a identidade na linguagem a partir de um de seus componentes mais explícitos: a língua e, nela, a partir de um de seus elementos mais misteriosos: o sotaque. Assim, era importante começar por dizer que esse exercício de pensar o sotaque prescinde de uma perda essencial e, ao contrário, tem uma premissa fundamental: a ameaça de perda, essa que é sempre iminente, sempre devastadora, é algo que, em verdade, jamais ou sempre existiu. Jamais ou sempre quer dizer aqui: devido a sua própria natureza, a perda do essencial, deve também ser essencial, ou seja, deve habitar e partir da essência. Aquilo que pertence à essência, ou seja, uma perda essencial não pectiva como um dizer de ser; e, mais tardiamente, a ênfase na relação com a poesia até, por último, a sua problematização no contexto da técnica. 5. Sobre o termo, ver a antologia organizada por Rorty (1967, 1992). 6. Ambos os momentos do pensamento ocidental, a consagração da filosofia da linguagem e o papel central da linguagem na filosofia de Heidegger e seus sucessores devem ser interpretados em conexão com um outro acontecimento de mundo crucial da época: o alvorecer da cibernética. O surgimento da ciência da comunicação e controle, conforme sintetizado por Norbert Wiener (1894-1964) vai influenciar decisivamente a narrativa heideggeriana da linguagem a partir do final dos anos 40. O interesse explícito de Heidegger pelo advento da cibernética, comumente relativizado ou até subestimado pela pesquisa acadêmica heideggeriana, foi o tema de minha tese de doutoramento (Hoepfner, 2011). Soraya Guimarães Hoepfner 77 pode, portanto, exigir de nós enfrentamento; talvez, no máximo, um confrontamento com a questão, qual seja: pensar essa perda que, em termos heideggerianos expressa-se como um desarraigar-se, como um diluir-se no outro e também na língua e no lugar do outro, mas sem em nada macular o essencial da linguagem. Seria, portanto, pensar que o essencial tenha estado sempre guardado, inquebrantável, e que mesmo a dita pasteurização, homogeneização e o dito desenraizamento em escala mundial, esses epifenômenos sintetizados na informacionalidade e transnacionalidade, seriam tão somente um problema menor ou problema nenhum; e o sotaque, aliás, se mostra como prova disso. O essencial na linguagem que se expressa na língua não se esvai na transformação das línguas nem nos refazeres do dizer. Nessa linha de pensamento, podemos vislumbrar a linguagem cada vez mais desnudada de suas vestes culturais rotas e pesadas para pensar o que ganhamos com essa ‘perda’. A perspectiva seria, para resumir, abraçar a perdição, ou talvez o que intui a filósofa Marcia Schuback: pensar a linguagem como “vibração de começo”, “desvencilhar a ideia de linguagem tanto das noções de instrumento, ingrediente, veículo de comunicação, como de convenção” (Schuback, 2011, p. 93). 2. O essencial além da perda: o sotaque imperdível Sob essa perspectiva, de desvencilhamento e vibração que parte da superação da narrativa do perigo da perda na linguagem, eu gostaria de propor uma reflexão em particular: pensar o traço essencial de nossa identidade na linguagem, a partir do fenômeno do sotaque, mesmo que difundido e difuso com a intensificação dos epifenômenos da transnacionalidade e informacionalidade. Assim, na aparição da identidade encenada pelo sotaque, a parentalidade de lugar e linguagem que se expressa na língua e que não se dissolve na sua miscigenação, nem na sua ‘contaminação’, se deixaria ver privilegiadamente. Neste ensaio, o fenômeno do sotaque para ilustrar a questão da identidade na linguagem diante das transformações de mundo vai ser pensado de maneira ainda mais particular, pois se refere, como demonstrarei a seguir, à própria palavra com a qual o designamos tão unicamente na língua portuguesa. 78 Sotaque: a voz da identidade Sotaque é aquilo que de maneira geral entendemos pela pronúncia característica, a entonação peculiar, o modo de falar de uma língua em uma determinada região geográfica. Em seu caráter revelador, o sotaque é um pronunciar que anuncia ao mesmo tempo diferença e pertença. Sendo único e próprio de cada língua-local, manifesta-se sempre como um espelho de si, pois este soar que é próprio do meu lugar-linguagem aparece para mim e me faz aparecer como um soar ‘estranho’ quando eu incorporo uma língua diferente da minha. Entre conterrâneos, o sotaque não desaparece, mas também não transparece, resta latente para então aflorar a partir do outro ou no lugar e/ou língua do outro. É decerto muito mais que uma simples expressão cultural. Não se pode confundi-lo com o dialeto, o qual se caracteriza por ser uma variedade linguística demarcada por um vocabulário próprio. Também não se pode reduzi-lo a uma questão puramente de icto, o qual se limita à acentuação e ênfase regidas e acordadas gramaticalmente dentro de cada língua, e que devem ser em geral respeitadas sob pena de ininteligibilidade. O sotaque transcende as tradicionais caracterizações lógico-gramaticais saussurianas7: como entoamos o nosso dizer perfaz a melodia própria, é o elo essencial de lugar-linguagem, que comumente revela consequentemente e, sobretudo, derivativamente pátria e língua materna. O sotaque, o levamos conosco; é quase impossível perdê-lo, extirpá-lo, pois enquanto locus na locução, se guarda numa região muito mais ao fundo de nosso modo de ser e, por isso mesmo, não importa quão bem dominemos a estrutura gramatical e a dicção de uma língua estrangeira, ele sobressai-se, sublinha e entrelinha o nosso dizer-se. O sotaque nos apresenta, nos entrega. Qualquer tentativa de eliminá-lo, além de muito provavelmente em vão, é no mínimo ignorante – ignora justamente esse confim que, de dentro do nosso corpo, evoca nossa identidade. Me fazer ouvir em minha pertença, por exemplo, no meu ‘falar cantado nordestino brasileiro’, não importa 7. Mesmo apesar da célebre distinção feita por Saussure entre linguagem, língua e fala, e que ele tenha observado com admiração como os gregos antigos criaram uma notação de fonemas “perfeita”, onde cada som na cadeia fonêmica possui uma notação única e determinada, o que seria diferente nas línguas neolatinas, as questões saussurianas não se aproximam do que propriamente o que aqui se entende por sotaque (Saussure, 1995). Soraya Guimarães Hoepfner 79 quantas línguas eu fale, é o resguardo involuntário da minha identidade, incorporado, materializado na minha voz. 3. O soar da voz no pensamento do mundo Para pensar o sotaque, é preciso, portanto, pensar a voz, que de há muito é um tema da filosofia. Já Aristóteles em sua História dos animais (2006), a descreve como algo distinto do ruído e igualmente distinto da linguagem: “Os homens emitem todos o mesmo tipo de voz [φωνή, phōné], mas não a mesma linguagem.” (536b). “A voz é certo som com significado...”, diz ele em De Anima (420b, 2010). Uma cadência particular na voz de uma determinada língua não estava obviamente no contexto da investigação aristotélica, mas certamente não era algo ignorado ou desconhecido para ele nem para os gregos. De modo geral, é possível que a ideia moderna e acabada de sotaque não existisse apreendida em uma única palavra grega, mas em uma variedade de formas de expressar o caráter desse ‘soar estranho’. Nas Coéforas (2002), Ésquilo narra o plano de Orestes de disfarçar-se na aparência de um estrangeiro, dizendo “imitaremos a linguagem empregada próximo do Parnaso e o sotaque da língua de Fócida” (II, 560)8 para ultrapassar os portões e por fim assassinar sua mãe Clitemnestra e o seu padrasto Egisto, vingando assim a morte de seu pai, Agamenon. O soar estrangeiro, o sotaque como traço da identidade é, por sua vez, algo diferente do tom9 da fala, a entonação expressa na acentuação gramatical que, sabidamente, já na língua grega era deveras importante e fundadora de sentidos. Em Crátilo (Platão, 1988), Sócrates ressalta a Hérmogenes que “Inicialmente, no estudo do significado dos nomes, deves sempre contar com a hipótese de não ser raro acrescentarmos letras, ou suprimi-las, quando vamos designar uma coisa, ou deslocarmos os acentos” (399a). Essa observação é justamente ilustrada com a explicação sobre a origem da palavra ‘homem’ [antropos], que de acordo com Sócrates é uma transformação 8. O uso do termo ‘sotaque’ é obviamente uma interpretação apresentada pelo tradutor e adotada em diversos idiomas para o sentido de glossa (γλῶσσα) no contexto do original. 9. Palavra originada em τόνος (tónos), que por sua vez, de acordo com dicionários etimológicos, deriva de τείνω (teínō), que tem o sentido de alongar, prolongar, estender. Ver Etyma Graeca (1890, p. 122). 80 Sotaque: a voz da identidade da frase “o que contempla e vê” [anathrôn ha ópôpe], em um substantivo, devido à “supressão de uma letra e acentuação [ὀξύτης, oxútēs] da última sílaba” (399c). O acento gramatical que desloca-se e produz novos significados corresponde à modulação de tons agudos e graves, existente na estruturação gramatical de cada idioma. Essa acentuação é o que Aristóxeno, na Harmônica (1902) chama de continuidade [συνεχής, synechís], não sendo para ele simplesmente aleatória, mas sim uma regência de acentos que “segue uma lei natural” (p. 185, versão nossa), ou seja, surge como necessidade da própria língua e não primariamente como convenção, sendo partilhada mesmo entre sotaques. No livro As línguas do paraíso, o historiador Maurice Olenders (1989), em um estudo profundamente detalhado que toca as relações entre língua, religião e ideologia de raça, aborda a questão entre sentido e sonoridade no hebraico, no contexto da eterna discussão sobre a autenticidade dos textos da Bíblia Sagrada. O fato de o hebraico ser uma língua na qual “nenhum caractere de vogal é inscrito”, resulta em que “a compreensão da bíblia hebraica é ligada às vogais” (p. 57). “Muda, a palavra hebraica se apresenta como um corpo obscuro, de significação oculta, que só pode ser descoberta no estalar da voz” (idem). Olenders evoca a ideia de “melodia dos acentos” do padre e teólogo Richard Simon (1638–1712) ou de vogais como “alma das letras” (p. 56) na concepção de Spinoza (1632-1677) para falar das vogais como a alma no corpo da língua e apontar para o fato de a questão vocálica ter, portanto, “consequências teológicas e históricas” (p.57). O soar e o entoar que confere, altera e, na transferência da oralidade para a escrita, atesta sentidos é o elo de ligação entre filologia e filosofia, que Olenders faz sucitar. No que diz respeito não somente à entonação que doa sentido, mas propriamente ao modo de soar, uma ideia aproximada de sotaque ainda entre os gregos encontra-se em uma das oratórias de Demóstenes, na qual Eubúlides pleiteia ser legítimo cidadão de Atenas, status concedido pela lei ateniense apenas àqueles filhos de pai e mãe atenienses. Eubúlides precisa, então, refutar como falsa e maldosa a acusação de que seu pai “falaria como estrangeiro [ἐξένιζεν, exénizen] (1304, 6, versão nossa)”. O sotaque estrangeiro Soraya Guimarães Hoepfner 81 de seu pai é segundo Eubúlides a base para a falsa acusação feita contra a autenticidade de sua cidadania e, por conseguinte, de sua identidade. A mesma passagem é usada como referência no famoso léxico inglês-grego LSJ para o verbete sotaque (accent): “ser um estrangeiro, falar com um sotaque estrangeiro” (1846, p. 1016). Na filosofia contemporânea, seguindo a primeira ideia de diferenciação em Aristóteles, mas sobretudo investigando a conexão essencial entre voz e linguagem, Derrida (1967), por sua vez, retoma o problema da interpretação husserliana da relação entre logos e phoné para pensar a voz exterior e interior, mas sobretudo para pensar o que ele chama de a voz do ‘querer-dizer’10, o expressar-se que é “animado por uma voz” (p. 36, tradução nossa). Derrida não está interessado, obviamente, em dissertar sobre a particularidade do sotaque na voz, mas ao descrever o fenômeno da ‘voz fenomenológica’, que corresponde à possibilidade derradeira da consciência e que não se dá sem a corporeidade física constituída pela voz, o pensador francês indica de certo modo um caminho fenomenológico para pensar a identidade na voz: “A unidade do som e da voz, o que permite que essa se produza no mundo como autoafecção pura, é a única instância que escapa à distinção entre intramundanidade e transcendentalidade; é o que ao mesmo tempo a torna possível.”(p. 89). A voz que fala e que ouve a si: “A voz é a consciência” (ibidem). De volta a Heidegger e no que se refere à questão da voz, não se pode dizer que o soar não seja de nenhum modo relevante para ele. Em um texto de 1960 e intitulado “linguagem e terra natal” (Heidegger, 1983), o filósofo elege a poesia de Johann Peter Hebel (1760-1826) para dissertar sobre o caráter essencial da linguagem. Hebel não é uma escolha ao acaso; esse foi um poeta que escrevia no dialeto alemânico, falado, entre outras regiões, no sudoeste da Alemanha. É o caráter particular de sua poesia escrita em dialeto que o torna, assim, especial para Heidegger. No referido texto, o filósofo frisa uma importante distinção entre duas palavras na língua alemã que em 10. Sua tradução radical para o termo alemão Bedeutung, comumente traduzido como ‘significado’. 82 Sotaque: a voz da identidade geral significam o mesmo, dialeto: Dialekt e Mundart. Curiosamente, é a primeira, em sua relação direta com o grego dialegestai, que para Heidegger teria “mais a dizer” do que a última, contrariando sua habitual, ou mesmo cliché, predileção por palavras alemãs, não calcadas no latim. Em bom português, seguindo a diferenciação heideggeriana, eu poderia fazer a tentativa de traduzir então Mundart como um ‘linguajar’, em diferenciação ao Dialekt, dialeto. O linguajar, de acordo com Heidegger, designaria mais restritivamente “a anunciação e o caráter sonoro da língua” (p. 156). O Dialek enquanto dialeto, por sua vez, seria “a origem da essência da linguagem”; o linguajar, enquanto modo de falar nativo, “não é somente a língua da mãe, mas a mãe da língua”. Esse caráter sonoro da língua pode ser muito bem entendido como sotaque. Mas nem tudo são flores, para Heidegger, já à época, as relações entre “linguagem, linguajar e língua materna, e terra natal” estariam “fora de ajuste”. O homem contemporâneo, “parece perder-se da linguagem para ele destinalmente atribuída e, nesse sentido, torna-se sem-palavras [sprachlos], muito embora nunca tenha se falado tanto e incessantemente ao redor do globo.” (p. 156-157). Que Heidegger evoque versos em alemânico para ilustrar a propriedade com que, por fim, se pode entender “linguagem como terra natal” (p.180) pode ser muito bem entendido como traço do seu nacionalismo exacerbado; mas, em última instância, me atenho a observar que muito embora o filósofo tenha maestralmente ilustrado, através do pensamento sobre a essência da linguagem, a grandeza da dificuldade de pensar o sentido de ser, sua visão da modernidade e, consequentemente das grandes cidades como solo infértil em oposição à pertença ao solo da terra natal, deve ser colocada entre parênteses. Na melhor das hipóteses, o pensamento de uma pertença ao solo assolada pelos estrangeirismos da modernidade ou pelo discurso raso da esfera pública é, se muito e se visto com bons olhos, um recurso de retórica. Reproduzi-lo ainda hoje e, sobretudo acriticamente, é fomentar um discurso no mínimo bizarro: vinculamos muito restritivamente a aparição do essencial da linguagem a uma determinada língua e, mais ainda, a um de seus modos. Além disso, nos inclinamos à ideia de que as transformações no uso e sentidos de Soraya Guimarães Hoepfner 83 cada língua teriam o poder destruidor. Ora, que nunca se tenha falado tanto para não dizer coisa nenhuma de essencial na esfera pública é precisamente o que garante a exclusividade do dizer poético. Não obstante, a rejeição ao discurso da banalidade, não pode nos levar a pensar que, porventura, somente dentro dessa estrutura rígida de condicionantes se expresse o sentido de ser. A reserva de Heidegger para com a modernidade é, para concluir o comentário, retórica, datada e, arrisco dizer, sintomática de certo senso comum que ele mesmo incessantemente critica; tem a ver com um típico lamentar-se pelo que acabamos de perder na história e revela muito mais a angústia típica do homem de cada época ante as transições imediatas de mundo. Assim, confere a impressão de justificável, ao lamentar intelectual de que ninguém seja mais capaz de escrever uma tese como Ser e Tempo, ou que o inglês esteja a desfigurar todas as línguas; enquanto seria risível, por outro lado, lamentar que já não sejamos capazes de escrever um ‘obra’ como A República, ou que o latim tenha, não só morrido, mas se ‘corrompido’ em diversas línguas neolatinas. O exagero da segunda lamentação torna-se mais evidente o problema em questão. A ‘deterioração’ sentida apenas mais fortemente, nas imediações do epicentro da transformação que gera a mais recente perda, naquilo que acabou de passar, não diz nada mais sobre o essencial do que, precisamente, a intuição de que nele habita e dele aflora uma espécie de perda imperdível, contra a qual nada temos a remediar. 4. O modo de ser como modo de soar O sentido do imperdível talvez se mostre no sotaque, enquanto modo de soar da língua que corresponde a um modo de ser e, nisso, guarda, portanto, um vínculo com o essencial da linguagem. O sotaque seria, então, um traço de essencialidade que, tal qual a própria poesia, supera o reino do certo ou errado, da lógica formal. Seria absurdo pensar, por exemplo, que esse ou aquele modo de soar possa ser falso ou verdadeiro, correto ou incorreto. Não obstante, é interessante observar como um determinado ‘sotaque’ pode ser instaurado como ‘padrão’, ao modo de imposição cultural, que evolui para adquirir, a ideia de naturalidade entendida como legitimidade dominante, travestida de ‘neutralidade’. Por exemplo, no caso do telejornalismo 84 Sotaque: a voz da identidade brasileiro, trata-se do famoso “padrão global”, uma forma ligeiramente abrandada do sotaque carioca que ao longo de décadas consolidou-se como estilo de locução tão onipotente, que chega a ser reproduzido mesmo por nativos de outras regiões em seus noticiários locais, ao ponto de qualquer tentativa de se fugir dele causar imediatamente ruído11 ao telespectador. Assim, a locução telejornalistíca, mesmo nos confins do sertão brasileiro é sempre empostada: uma locução deslocada que falseia (em vão) o tom para não ser fora do padrão; para não interferir na notícia. A questão do sotaque no telejornalismo, permite ilustrar a relevância do fenômeno na formação e expressão da identidade comum, como também as relações de poder que transitam no âmbito da própria voz e da fala. O abrandamento ou ocultamento de outros sotaques funciona à primeira vista como uma padronização que visa promover a igualdade através da eliminação das diferenças. O que se opera, no entanto, é um apagamento de identidades, que perdem a sua voz; tornam-se comunidades sem representatividade. O mais perturbador, porém, não é o fato de regionalidades se identificarem e se validarem a partir de um lugar matriz dominante, mas é que passem a se estranhar e desvalidar a si mesmas, além disso. Não por acaso, em alemão, aliás, a mesma palavra, Stimme, designa homonimamente voz e voto; ter voz é essencialmente um elemento de aparição e de poder. 5. Sua voz: o sotaque português E o que pode e o que faz aparecer minha voz? Pode anunciar minha identidade, entoada no meu sotaque, pode afirmar uma determinada pertença e diferença. Na língua portuguesa se passa, além de tudo, um aspecto curioso: a palavra sotaque, com a qual nos referimos a essa entonação identitária, é extremamente peculiar. Em praticamente todas as línguas ocidentais imperam variações da mesma origem no latim ‘accentus’12: francês [accent], 11. Há, obviamente, exceções. Para citar, o jornalista pernambucano Geneton Moraes Neto (1956-2016) figura entre os poucos profissionais que, já nos anos 80, ousava causar ruído em horário nobre, ao entrevistar grandes personalidades no Programa Fantástico da TV Globo, com o seu ‘carregado’ sotaque nordestino. 12. De acordo com dicionários de etimologia, ‘Accentus’ deriva de ‘accinō’ (eu canto), e tem, além do sentido de acentuação, o sentido de som estridente, como o som da trombeta. Ver: A Latin Dictionary (1879). No entanto, a palavra não consta entre as variações do verbo canere (cantar), elencadas na obra Soraya Guimarães Hoepfner 85 espanhol [acento], italiano [accento], basco [azentu] etc. O mesmo ocorre em línguas não derivadas do latim, como o inglês [accent], finlandês [aksentti], o russo [акцент], até mesmo o turco [aksan] e o próprio alemão [akzent]13 adotam correntemente a matriz latina. Também em sua maioria, essas línguas fazem uso da mesma palavra para referirem-se ao substantivo ‘acento’14 no sentido de acentuação, enquanto no português corrente sotaque e acento são claramente diferenciados. E o que significaria o fato de tantas línguas recorrerem ao latim, e como interpretar a peculiaridade do português que foge à regra e adota para si uma palavra que, de acordo com os dicionários, tem “origem obscura”15? À primeira pergunta, no tocante à adoção generalizada da matriz latina e, considerando a ausência de um equivalente exato no grego (como brevemente demonstrado anteriormente) poderia isso indicar algo sobre a própria ideia de sotaque, no sentido de se pensar como a palavra-valor se instaura num determinado tempo de mundo, a exemplo de palavra-valores como hereditariedade, também herdada dos romanos? Ou seja, o predomínio do termo latino teria algo a nos contar sobre a estrutura de formação de identidade do próprio Ocidente? No tocante à dissociação operada no português entre seminal de Varro (1938, p. 242), que por sua vez descreve canere como sedo originada em Camena (Camenas, as musas), “com a troca do M pelo N”. Accentus consta, no entanto, do dicionário de etimologia grega latina, como “sinal, explosão, acento, tom” e a palavra é atribuída ao verbo canere, que segundo essa fonte seria irmanada do grego καη [som], como em καη-αχή [som estridente]. Ver: An Etymology of Latin and Greek (p. 48, 1882). 13. O equivalente germânico para ‘Akzent’ seria ‘Betonung’ (entonação). No entanto, impera o uso corrente do vocábulo de origem latina para expressar o sentido preciso de sotaque. No alemão, aliás, há também a expressão ‘gebrochene Sprache’ ou ‘gebrochenes Deutsch’ [língua quebrada, alemão quebrado, traduzindo-se literalmente], mas o sentido, contudo não é o mesmo de sotaque; refere-se mais especificamente ao domínio precário da regência gramatical. 14. Gostaria de enfatizar que neste ensaio não discuto o sentido de ‘acento’ = acentuação, designado homonimamente. O acento, que deriva do grego προσῳδία (prosódia) refere-se exclusivamente à ênfase e inflexão dada a determinadas sílabas, que produz o “som que acompanha as palavras” [ad-cano], em suas variações grave, agudo, circunflexo e também dando origem já na gramática grega ao que chamados de oxítonas, paroxítonas, proparoxítonas etc. (Smith, 1920). 15. Até o fechamento desse ensaio, não encontrei nenhum dicionário que apontasse uma origem etimológica para a palavra sotaque. A palavra é descrita de modo geral como “inflexão particular da voz que caracteriza um indivíduo, uma região” (Diccionário Manual Etymológico da Língua Portugueza, 1890, p. 1124). Há ainda outro sentido antigo, em desuso, sobretudo no Brasil, de “remoque, dito picante” (Nôvo Diccionário Da Língua Portuguêsa, 1899. p. 555). Admite-se ainda um sentido de uso no candomblé: “Conjunto de versos cantados que são dirigidos a alguém malquisto, presente no barracão, para que deixe a casa de culto” (Dicionário Houaiss, 2001). O Novo Diccionário Portuguez-Latino (1884, p. 841) é extremamente sintético e descreve o verbete apenas como “apodo” (zombaria, escárnio), sem nenhuma referência a outros sentidos O mais antigo dicionário de português traz a seguinte descrição “Sotâque: Dito gracioso, ou picante, particularmente de gente bayxa.” (Vocabulario Portuguez e Latino, 1720. p.739). 86 Sotaque: a voz da identidade acento e sotaque, o que a obscuridade etimológica dessa última pode nos fazer pensar sobre a própria identidade engendrada na língua portuguesa e, por conseguinte, brasileira? Minha investigação preliminar deparou-se com a consistente ausência de uma referência etimológica em diversas fontes consultadas e, embora uma afirmação contundente só possa surgir de um trabalho aprofundado de pesquisa filológica, arrisco apresentar a seguinte hipótese excêntrica: sotaque teria origem no árabe, como um estrangeirismo sonante adotado pelo português a partir do dizer ‫ كتوص‬16 [so: tāʾ ka-17], que significa em árabe, literalmente: “sua voz”. De modo simples: ‘sua voz’ soado em árabe teria dado origem à palavra sotaque. A ideia pode ser excêntrica, mas não de todo implausível. A influência de arabismos na formação da língua portuguesa é de há muito conhecida, embora sua verdadeira extensão continue a ser subestimada, pelo menos na visão do pesquisador Adalberto Alves, que em seu Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa (2013) reuniu mais de dezoito mil verbetes em português, segundo ele originados no árabe. É muito provável que a coletânea de Alves não possa ser cientificamente validada em seu todo18, mas o que ele descreve como um processo de “obnubilação etimológica” a qual almejaria levar a cabo o “apagamento da mácula árabe da língua dos vencedores cristãos” (p. 13) não é uma inverdade histórica. Para Alves, os dicionários portugueses “repetem acriticamente e, de um modo geral, sobretudo as falsificadas etimologias, nos tais arabins e arabregos, congeminadas a séculos pelos monges da Idade Média” (p. 14). Arabins e arabregos é a maneira jocosa como Alves denuncia os arabismos negados e atribuídos ao latim ou ao grego. 16. Esta é uma transliteração aproximada, baseada na IPA. 17. O linguista egípcio Ahmed Shalabi gravou a título de ilustração sonora para este artigo, a frase “sua voz” em árabe, acompanhada de uma breve explicação em inglês. Ver <https://drive.google.com/ drive/folders/0B6_5AoGZc8g0WUhNSEZMMXZDR2c?usp=sharing>. Ahmed Shalabi (<http://www. linkedin.com/in/ahmed-shalabi-68617924>). 18. A resenha de Brian Head (2015) faz críticas pesadas a Alves, pela falta de observação de princípios básicos de etimologia. Soraya Guimarães Hoepfner 87 Em comparação a outras línguas neolatinas, o português superaria em muito a abertura ao árabe, o que é comprovado num resumo do estudo comparativo detalhado por Kieser (1992), demonstrando a quantidade superior de arabismos no português, comparado ao espanhol, catalão e italiano. O pesquisador vai além e denota também a influência de “arabismos semânticos” e de “decalques linguísticos”, nas muitas ondas de infusão do árabe no português, em amostragens precisamente quantificadas por ele, do séc X ao séc XIX, com picos claramente visíveis nos séc. XIII e XVI. Para Kieser, a influência árabe se estende até a formas peculiares do português, como a sintaxe de nossas expressões de cortesia. Tendo essa influência em mente, a semelhança incontestável da sonoridade de “sua voz” dito em árabe com a palavra “sotaque” em português torna-se uma hipótese para uma origem etimológica que encontra eco na nebulosa relação histórica da língua portuguesa com sua herança arábica. O que me interessa, no entanto, é o fato dela servir à reflexão, ao expor o jogo identitário duplo do sotaque, no particular da palavra portuguesa: o entranhamento negado do outro dentro de si e o estranhamento afirmado de si no outro, o fenômeno conjugado performativo do sotaque. O outro, à força de sua presença indesejada e constante, é apropriado, permanece contudo estranho no soar e no imaginário, alimentado pela nossa necessidade de afirmação. O outro se demora e se habitua, entranhado e estranho. Aventurar uma origem árabe para a palavra portuguesa sotaque não carece, no contexto desse ensaio, de chegar a uma conclusão científica, pois aqui está em jogo apenas trazer à luz o curioso fenômeno do espelhamento essencial da identidade operado no modo de soar das línguas, ilustrado especialmente na ideia de que ao dizer sotaque em português, a cada vez eu entoo “sua voz” dito em árabe. Trato apenas de evocar o caráter sonoro da linguagem como a voz da identidade. Assim, a palavra que a língua portuguesa escolheu para expressá-lo, precisamente por causa de sua obscuridade etimológica, parece ilustrar perfeitamente como se guarda ainda mais profundamente a nossa identidade, desconhecida na língua ou irreconhecível na linguagem. 88 Sotaque: a voz da identidade No contexto do hoje, que as transformações de mundo operem novos entranhamentos e estranhamentos que desafiam cada vez mais a preservação pura de cada língua pode parecer assustador, mas em nada nos assola ou nos faz perder a pertença ao solo. Sempre houve e sempre haverá a manifestação do raso, do medíocre, agora apenas amplificado pelas possibilidades globalizadas do medium informacional. Sempre haverá ainda, como nos acompanha há pelo menos dois mil anos para o Ocidente, a manifestação do poético, da literatura, assim como do sagrado, do mítico, do filosófico, de cujas quantidades não se pode fazer conta, sob o pretexto de se atestar com isso um perigo. As transformações nos dizeres do mundo que, em última instância, operam transformações identitárias, são afloramentos de ser e devem portanto, também na sua precariedade, continuar a jorrar veios de sentido essencial. No sotaque imperdível, mais ainda, aflora insubordinadamente a minha recusa ao assujeitamento e à conformidade ao outro, sem que nem mesmo eu tenha domínio sobre isso. É uma espécie de rebeldia essencial que, devido à sua complexidade, desafia até mesmo o futuro do nosso processo de amalgamento, definitivo e irrefreável, com a máquina19. O sotaque permanece, portanto e através dos tempos, o meu anunciar-me no outro, o outro que se reconhece e se afirma na minha diferença, o meu anunciar da diferença da identidade que renuncia à mesmidade e, nesse entranhamento><estranhamento: a única comunidade possível. É curioso pensar que a minha voz na fala do outro quer dizer a experiência mais própria de que sou eu mesma o meu lugar, quanto mais eu me desloco para fora dele. A experiência do sotaque assemelha-se, assim, ao deslocamento e estranhamento essencial heideggeriano; o mais íntimo e próprio vibra ainda mais forte mundo afora, e assim, também ou principalmente, na palavra do outro, em outras palavras - não, nem tudo está perdido. 19. Há um número incontável de pesquisas no campo interdisciplinar da biomédica, engenharia e informática dedicadas à solução do problema da previsibilidade de algoritmos de reconhecimento de voz, componente fundamental no progresso da interação homem-máquina, diante da questão do sotaque. Para citar, no entanto, uma publicação introdutória relevante, ver The meaning of intonational contours in the interpretation of discourse (Pierrehumbert e Hirschberg, 1992). Soraya Guimarães Hoepfner 89 Agradecimentos Gostaria de expressar meus sinceros agradecimentos ao colega tradutor Ahmed Shalabi (Egito), por disponbilizar o áudio ilustrativo gravado em árabe, e à colega tradutora Sandra Flor (Portugal), pela valorosa troca de conhecimento sobre o árabe e português europeu. Referências A GREEK ENGLISH LEXICON. H. G. Lidell, R. Scott, H. S. Jones (Eds.) Londres: Oxford Press, 1996. A LATIN DICTIONARY. Charles T. Lewis, Charles Short LLD (Eds.) Oxford: Claredon Press, 1879. ARISTOXENUS. The Harmonics of Aristoxenus. Trad. Henry S. Macran. Oxford: Claredon Press, 1902. ARISTÓTELES. História dos animais. Trad. Maria F. S. e Silva. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2006. ARISTÓTELES. Sobre a alma. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2010. DEMÓSTENES. Against eubulides: private orations. Londres: Harvard University Press, 1939. p. 244-245. DERRIDA, J. La voix et le phénomène. Paris: PUF, 1967. DICCIONÁRIO MANUAL ETYMOLÓGICO DA LINGUA PORTUGUEZA. 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