Gabriel
RESENHAS
Peters
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http://doi.org/10.1590/15174522-109333
Tornar-se Beauvoir: para além dos
argumentos ad feminam
KIRKPATRICK, Kate. Simone de Beauvoir: uma vida. São Paulo:
Planeta do Brasil, 2020.
Gabriel Peters*
Resumo
Nessa inteligente biografia, a filósofa inglesa Kate Kirkpatrick rastreia, em perspectiva
histórica, a trajetória existencial pela qual Beauvoir “tornou-se” Beauvoir. O livro
acompanha como a pensadora francesa fez de sua própria personalidade-nomundo um projeto deliberado, o qual teve de enfrentar uma série de resistências
“ad feminam” oriundas de seu cenário sociocultural. Com base na leitura atenta
dos diários que Beauvoir manteve durante seus tempos de estudante, publicados
somente em 2008, Kirkpatrick lança nova luz sobre a evolução intelectual da
pensadora francesa. Quando passa da sua juventude à sua maturidade e velhice,
a biografia nunca perde de vista o complexo engajamento de Beauvoir com suas
circunstâncias socio-históricas. Tal combinação de análise biográfica com um exercício
em história cultural se mostra especialmente fecunda no trato da conturbada
recepção de O segundo sexo e das respostas criativas da autora a essa recepção.
Ademais, o livro de Kirkpatrick explora a densidade filosófica, literária e éticopolítica da obra beauvoiriana, densidade frequentemente deixada de lado por
outras biografias em favor de uma concentração sobre a vida afetiva da filósofa.
O respeito à complexidade e às nuances do pensamento de Beauvoir evidencia,
finalmente, o erro de uma lógica reputacional sexista que, tomando seu trabalho
como parasitário e derivativo em relação àquele de Jean-Paul Sartre, insiste em
negar sua originalidade e independência intelectual.
Palavras-chave: Simone de Beauvoir, biografia, feminismo, O segundo sexo,
Jean-Paul Sartre.
* Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.
Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.
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To become Beauvoir: beyond ad feminam arguments
Abstract
In this intelligent biography, the English philosopher Kate Kirkpatrick retraces in
historical perspective the existential trajectory through which Beauvoir “became”
Beauvoir. The book follows how the French thinker turned her own “personalityin-the-world” into a deliberate project, which had to face a series of “ad feminam”
resistances stemming from her sociocultural setting. Based on a keen reading of
the diaries Beauvoir kept during her times as a student, which were published
only in 2008, Kirkpatrick throws new light on the intellectual evolution of the
French thinker. When transitioning from her youth into her mature and old ages,
the biography never loses sight of Beauvoir’s complex engagement with her socialhistorical circumstances. This combination of biographical analysis with an exercise
in cultural history proves especially fruitful in dealing with the troubled reception of
The second sex and Beauvoir’s creative responses to such reception. Furthermore,
Kirkpatrick’s book explores the philosophical, literary and ethico-political density
of Beauvoir’s oeuvre, a density which other biographies often eschew in favor of
a focus on the philosopher’s affective life. Finally, the respect Kirkpatrick affords
to the complexity and nuance of Beauvoir’s thought evinces the error of a sexist
reputational logic that portrays her work as derivative and parasitic upon Jean-Paul
Sartre’s, and thus insists in denying her intellectual independence and originality.
Keywords: Simone de Beauvoir, biography, feminism, The second sex, Jean-Paul Sartre.
N
ão se nasce Beauvoir, torna-se – escreveu Djamila Ribeiro (2020)
em uma resenha dessa biografia assinada pela filósofa inglesa
Kate Kirkpatrick. O intertexto se revela tanto mais inteligente e
apropriado quando se nota que o título anglófono do livro de Kirkpatrick
é Becoming Beauvoir: “Tornando-se Beauvoir”. Para além da alusão à frase
mais famosa de O segundo sexo, a expressão captura a questão-cerne desse
esforço biográfico, a saber, o grau em que Beauvoir fez da sua própria
“personalidade-no-mundo” um projeto deliberado e autoconsciente, o
qual teve de se bater contra uma série de resistências “ad feminam” do
seu ambiente sociocultural. Talvez a eliminação do gerúndio “tornandose”, com a escolha da expressão mais anódina Simone de Beauvoir: uma
vida, responda a algum cálculo de marketing editorial, mas é certo que a
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cadeia alusiva do título original foi perdida de saída na tradução brasileira.
Felizmente, o próprio livro continua com muito a oferecer na tradução.
Por que mais uma biografia sobre Beauvoir? Ela escreveu prodigamente
sobre sua própria vida em publicações de variados gêneros discursivos, os
quais incluíram desde o memoir intimista até os diários de viagem, sem
contar o que houve de autobiográfico em ficções literárias como A convidada
ou nos exercícios fenomenológicos de O segundo sexo. Se é quimérico
tentar produzir algo que ultrapasse em densidade intelectual e sofisticação
estilística as narrativas autobiográficas da própria autora, biografias escritas
por outrem se justificam, ainda assim, como potenciais contrapesos aos
conhecidos vieses inerentes ao gênero “autobiografia” – por exemplo, o
interesse consciente ou inconsciente na projeção de certa imagem de si para
a posteridade, interesse que comumente leva à seletividade, à estilização
e mesmo à distorção na narrativa da própria vida. A desconfiança é válida,
aliás, ainda que a mera não identidade entre biógrafo e biografado não
garanta, por óbvio, que uma biografia escape aos riscos mencionados,
caminhem eles no sentido da idealização hagiográfica ou, ao contrário,
dos chamados “hatchet jobs” e “assassinatos de caráter”.
Distante desses extremos, a atitude de Kirkpatrick em relação a Beauvoir
comporta um imenso respeito ao seu legado intelectual e ético-político,
mas também uma disposição honesta a confrontar seus erros – como, por
exemplo, os sofrimentos infligidos aos “outros contingentes” que orbitaram
ao redor do seu “amor necessário” com Sartre. Ao contrastar seu livro
com esforços anteriores dirigidos à vida e à obra de Simone, Kirkpatrick
não chega a afirmar que a enorme biografia publicada por Deirdre Bair
em 1990 é uma hagiografia, mas adverte: por estar firmemente ancorada
em diversas conversas com a própria Beauvoir, de onde derivam sua
riqueza de detalhes e sua compreensão multidimensional da trajetória da
autora de O segundo sexo, a obra de Bair terminou por recontar, em larga
medida, “a história que Beauvoir já havia tornado pública” (p. 31). Becoming
Beauvoir se volta, então, à apreensão de aspectos da história beauvoiriana
insuficientemente publicizados, valendo-se de material documental que
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ainda não havia sido utilizado em quaisquer outras biografias, como as
cartas que Beauvoir escreveu para Claude Lanzmann (“o único amante
com quem morou” (p. 20) e, principalmente, os diários que Beauvoir
manteve durante seus tempos de estudante, publicados em 2008 com o
título Cahiers de jeunesse: 1926–1930.
Ao lado da descoberta de elementos biográfico-intelectuais menos
conhecidos sobre a autora, como o fato de que o abandono de suas
convicções religiosas de infância e adolescência foi mais sinuoso e dolorido
do que Beauvoir sugerira em suas memórias, o estudo daqueles diários
por Kirkpatrick também serve a outras duas tarefas entrelaçadas de seu
livro: acompanhar a evolução das ideias filosóficas da pensadora francesa,
ideias cuja densidade foi frequentemente deixada de lado, mesmo por
observadores simpáticos, em prol de sua vida afetiva e, especialmente, das
peripécias do “casal” inconvencional e anticonvencional que ela formou
com Jean-Paul Sartre; combater a também frequente opinião de que
a filosofia dela seria parasitária e derivativa em relação à filosofia dele,
mediante demonstrações da independência relativa do percurso intelectual
de Beauvoir, da influência profunda que o pensamento de Sartre deveu
às reflexões dela e, finalmente, dos aspectos em que as teses filosóficas
beauvoirianas discrepavam conscientemente daquelas esposadas por ele.
Assim, a par da concentração sobre dimensões faltantes na “biografia
autorizada” de Bair, Kirkpatrick busca se diferenciar de empreitadas
biográficas anteriores pela recuperação da profundidade da Beauvoir
pensadora, contra a ilusão “de que sua vida amorosa era o que havia de
mais interessante nela” (p. 14). Embora essa última ideia não chegue a ser
premissa expressa de livros como Tête-à-Tête, a biografia que Hazel Rowley
dedicou a Beauvoir, Sartre e seus “amores tumultuosos” (2006), não resta
dúvida de que os insights biográficos desse último livro foram conquistados
ao preço de uma discussão um tanto rala do conteúdo filosófico das obras
de uma e outro. O propósito de Kirkpatrick é, pois, muitíssimo bem-vindo,
sobretudo na medida em que ela também rejeita sensatamente a tentação
antípoda de postular um divórcio radical entre a vida (inclusive amorosa)
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e a obra. Tal divórcio seria especialmente inapropriado no caso de uma
autora como Beauvoir, que não apenas tentou “viver” suas concepções
filosóficas na prática, mas também sublinhou, de modo bem existencialista,
que as decisões pelas quais os indivíduos procuram moldar suas biografias
são “escolhas filosóficas” (p. 14, 66), independentemente de serem ou não
vivenciadas como tais. Kirkpatrick respeita a complexidade que esse enlace
adquiriu na trajetória da escritora francesa, evitando tanto as reduções
brutais do pensamento à biografia, de um lado, quanto a idealização da
biografia como realização perfeita de um projeto filosófico de vida, de
outro. Não havendo espaço aqui para uma revisão de ponta a ponta dos
eventos narrados no livro, tratarei seletivamente do que me parecem as
suas principais contribuições: complexificar e matizar imagens herdadas
sobre Beauvoir mediante o exame dos diários que ela manteve enquanto
estudante; rastrear os caminhos reflexivos de Beauvoir como “ser-emsituação”, i.e., em termos da sua complexa relação com o cenário históricocultural em que ela estava imersa, com particular ênfase sobre a conturbada
recepção de O segundo sexo e os efeitos dessa recepção nos rumos tomados
pelo pensamento engajado da autora.
Diários de uma estudante bem-comportada
Beauvoir nasceu em 1908, o ano mesmo em que escolas francesas
foram autorizadas pelo estado a preparar mulheres para o baccaulauréat, a
prova que facultava acesso a universidades. Ao tratar do ambiente familiar
da “moça bem-comportada”, Kirkpatrick nota que a paixão dela pela
leitura foi intensamente encorajada tanto por sua mãe quanto por seu pai.
O contraste entre a devoção católica da primeira e o ateísmo decidido
do segundo, contraste refletido nas suas respectivas recomendações de
leitura, a instigou desde cedo a tomar questões metafísicas como objeto
de interrogação. Transbordando para um respeito inflexível aos ditames da
convenção social, o compromisso de Françoise de Beauvoir com o decoro
moral e religioso se expressava também na recusa de ser transparente
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com suas filhas, Simone e sua irmã Hèléne, quanto à corporeidade e à
sexualidade femininas (p. 41).
De posse dos diários da jovem Beauvoir, Kirkpatrick sublinha que a
perda de suas convicções religiosas cultivadas pelo convívio com a mãe foi
mais hesitante, prolongada e angustiosa do que a filósofa havia indicado em
suas memórias, nas quais escreveu que, uma vez instalada em sua mente,
sua “incredulidade nunca vacilou” (p. 73). Nos diários, por outro lado, “em
linguagem que lembra...Agostinho...e Pascal”, ela narrara...
a experiência de perder Deus como acompanhada pela descoberta abrupta
de que tudo havia “caído em silêncio”. Pela primeira vez, ela sentiu o “terrível
significado’ da palavra ‘sozinha’” (p. 73).
Algum tempo de vai e vem entre dúvidas céticas e a vontade de acreditar
ainda seria necessário para que ela concluísse, enfim, que “era mais fácil
pensar em um mundo sem um criador que com um criador sobrecarregado
com todas as contradições do mundo” (p. 75). Obviamente, o papel do
catolicismo e de outras religiões na legitimação das desigualdades entre
homens e mulheres seria insistentemente sublinhado por Beauvoir ao longo
de boa parte da sua obra, no mínimo desde a referência de abertura, em
O segundo sexo (2014, p. 10), ao mito de Adão e Eva no Gênesis como
ilustração da condição da mulher qua “outro” do homem, identificado
ao humano genérico.1 Por outro lado, tal qual convém a um intelecto
tão atinado com ambiguidades, Beauvoir também sublinhou que a ideia
religiosa de “alma” como um “domínio completamente assexuado” (p. 46)
operou positivamente, em sua infância e adolescência, como um impulso
às suas crenças igualitárias quanto aos sexos nas esferas moral e espiritual.
Sem abandonar sua admiração pela coragem e pela energia graças às
quais Beauvoir trilhou sua existência como intelectual contra barreiras sociohistóricas diversas, Kirkpatrick revela o quanto a personalidade autoassertiva
dela se construiu também pela influência de mulheres menos conhecidas. É
Aliás, lembra Kirkpatrick, não demorou para que “o Vaticano colocasse o livro em sua lista
de obras proibidas” (p. 239) – o que não deixa de ser uma honra tão significativa para uma
escritora como o Prêmio Nobel rejeitado por Sartre.
1
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o caso de Léontine Zanta, primeira francesa a se tornar docteur d’etat: ao ler
uma matéria de revista sobre essa intelectual independente, a adolescente
Beauvoir sonhou “em um dia ver essas coisas escritas sobre ela” (p. 57).
Considerando-se que, se tivessem nascido apenas alguns anos antes, nem
Zanta nem Beauvoir sequer poderiam prestar os exames de qualificação
necessários a uma carreira docente, resta o lembrete de quantas potenciais
pensadoras geniais foram privadas daquela oportunidade.2 Outras figuras
decisivas para Beauvoir incluíram, por exemplo, Stépha Awdykovicz, cuja
fala livre sobre a sexualidade chacoalhou o puritanismo da jovem Simone,
e Geraldine Pardo, com quem Beauvoir aprendeu que o pertencimento
a uma classe social repleta de restrições e desvantagens não impedia o
cultivo de uma individualidade genuína (p. 68).3
Os diários documentam a origem de preocupações e ideias filosóficas
que, embora florescendo antes e independentemente do diálogo de Beauvoir
com Sartre, foram comumente atribuídas à originalidade dele, não dela.
Kirkpatrick mostra que várias anotações naqueles diários possuem uma
espécie de conteúdo existencialista avant la lettre, ainda mais se traduzidos
na linguagem que ambos popularizariam posteriormente. Para dar apenas um
exemplo: sem falar explicitamente em angústia ou contingência, Beauvoir
descrevia seu futuro como impregnado de diversas vidas possíveis que seriam
todas, com exceção de uma, eventualmente mortas por ela (p. 66). Os
diários também se dedicavam à complexidade das relações intersubjetivas,
em particular ao problema ético concernente ao equilíbrio entre o que se
deve dar para si e para os outros. Ainda que romances como A convidada
Cf. as reflexões de Virginia Woolf (2014) sobre Judith, a hipotética irmã de Shakespeare
em Um teto todo seu.
3
Obviamente, também presentes estão os encontros com personagens mais conhecidos,
como a breve conversa de Beauvoir, na juventude, com Simone Weil. Colocando em contato
duas inteligências geniais, porém marcadamente discrepantes em temperamento, “o encontro
teve uma reviravolta decepcionante”: “Weil concluiu a conversa com as palavras: ‘É fácil ver
que você nunca passou fome’. Segundo Beauvoir, Weil a olhou de cima a baixo e a julgou
‘uma pequena-burguesa pretensiosa’. Na época, Beauvoir achou isso irritante; afinal, Weil
não conhecia suas circunstâncias e estava fazendo suposições equivocadas. Mas, em sua
maturidade, ela passou a concordar com esse julgamento acerca de seu jovem eu” (p. 71).
2
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tenham sido frequentemente interpretados como “aplicações” da perspectiva
agonística de Sartre sobre a relação entre o “para-si” e o “para-outro”, os
diários de Beauvoir, escritos antes que ela conhecesse Jean-Paul, indicam, ao
contrário, que ela chegou a diversas de suas ideias sobre a intersubjetividade
“de forma independente” (p. 69). De modo similar, ela já se dedicava a
reflexões sistemáticas sobre as ambivalências morais das relações humanas
bem antes de Sartre “descobrir”, ao final de O ser e o nada (1997, p. 765),
que precisava complementar seu retrato fenomenológico-existencial da
condição humana com uma ética.
O segundo intelecto
Como dito acima, Kirkpatrick tenta resgatar o pensamento de Beauvoir
de um sem-número de distorções frequentes de que sua oeuvre foi e é
objeto. A mais corrente dessas distorções é provavelmente a concepção
previamente mencionada de que Beauvoir não seria uma pensadora original
e independente, mas mera “discípula” e “aplicadora” das concepções de
Sartre. Como a biógrafa demonstra com um elenco deprimentemente
vasto de exemplos, o laço das ideias de Beauvoir com as Sartre tem sido
frequentemente tido por óbvio, enquanto o reconhecimento da dependência
crucial que ele deve a ela é, por seu turno, muito mais raro. A assimetria de
reconhecimento continuou seguindo a autora, por assim dizer, até o túmulo:
enquanto os obituários de Sartre em 1980 mal mencionavam Beauvoir, os
obituários de Beauvoir em 1986 não só citavam Sartre fartamente como
chegavam, por diversas vezes, a reduzir a carreira intelectual dela ao seu
elo com ele (p. 359).
Kirkpatrick evidencia, com fartura de ilustrações, que o papel de
“catalisador conversacional” ou “amigo incomparável do pensamento” (p.
98) que Sartre desempenhou na vida de Beauvoir era, sem dúvida, um
papel igualmente desempenhado por ela na existência dele. Mergulhados
em contínua conversação, lendo e editando os textos um do outro, Beauvoir
e Sartre entreteceram suas cogitações a tal ponto que é difícil elucidar
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a obra de uma sem a referência ao outro e vice-versa. Para além das
ilustrações mais pitorescas desse entrelace, como o fato de que Beauvoir
chegou a escrever artigos encomendados a Sartre e por ele assinados,
as orientações intelectuais fornecidas por ela se mostraram decisivas em
diversas encruzilhadas na trajetória do pensador existencialista. Por exemplo,
quando Sartre se encontrava deprimido por já haver chegado à casa dos
trinta sem ser celebrado mundo afora como um gênio, foi Beauvoir quem
sugeriu a ele que experimentasse exprimir suas ideias filosóficas em forma
romanesca (p. 125) – o resultado foi A náusea, romance filosófico de
1938 que tornou seu autor famoso, e que não foi somente sugerido na
sua concepção, mas também, como outros tantos manuscritos de Sartre,
minuciosamente editado pela leitura rigorosa de Beauvoir (p. 21).
Considerado o peso do sexismo ambiente nas avaliações injustas do
legado de Beauvoir, sobretudo frente à reputação de Sartre, será que a
própria pensadora francesa, consciente ou inconscientemente, também
contribuiu para aquela injustiça? Kirkpatrick não ignora que um obstáculo
a uma apreensão mais justa da originalidade de Beauvoir foi produzido
por depoimentos nos quais ela afirmava não se conceber como filósofa,
no mesmo passo em que concedia o título, entretanto, ao autor de O ser
e o nada (p. 91): “Não sou filósofa... [Sou] uma escritora literária...Sartre é
o filósofo” (p. 18). Evitando a tentação crítica de atribuir ou, pelo menos,
de reduzir essa “modéstia” filosófica a algum sexismo interiorizado pela
heroína da segunda onda do feminismo, Kirkpatrick defende uma leitura
alternativa dessa asserção e de suas congêneres. Em vez de uma posição
autoderrogatória, o contraste entre a escrita literária e a reflexão filosófica
traçado por Beauvoir abrigava uma desconfiança crítica em relação aos
limites da filosofia como construção de sistemas à maneira de um Hegel, um
Schopenhauer ou do próprio Sartre. A contraparte dessa desconfiança crítica
consistia precisamente no recurso à literatura como ferramenta de captação
da experiência concreta em suas nuances e ambiguidades, frequentemente
sacrificadas pela propensão filosófica a encaixá-las forçosamente em molde
sistemático. Devido ao seu interesse nas complexidades da experiência
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vivida, assim como ao seu compromisso com uma escrita capaz de interpelar
as subjetividades inteiras de suas leitoras e leitores (intelecto, afetividade,
imaginação etc.), Beauvoir estaria deliberadamente mais próxima de literatos
de inclinação filosófica como um Dostoiévski, um Kierkegaard ou (rivalidade
tardia à parte) um Camus do que da filosofia “tratadística” que o próprio
Sartre encarnou em livros como Crítica da razão dialética (p. 193).
De resto, Beauvoir e Sartre também engendraram um intercâmbio
conversacional em que, no mais das vezes, ele privilegiava a ousadia
imaginativa e a radicalidade de posições em detrimento do compromisso
cognitivo com rigor e precisão, os quais acabavam frequentemente “ficando
a cargo” das intervenções dela. Kirkpatrick escreve que Beauvoir, conquanto
considerasse Sartre “filosoficamente...descuidado e impreciso”, “achava que
sua bravata tornava suas ideias mais proveitosas que os pensamentos precisos
e escrupulosos dela” (p. 109). Dotada de uma sensibilidade sociológica
(lato sensu) bem mais apurada do que a de Sartre, Beauvoir também
interpretou perspicazmente a diferença de ambições intelectuais entre
ela e ele a partir dos constrangimentos sociais de gênero que pesaram na
formação de suas expectativas acadêmicas e profissionais. A autora notou
essa discrepância desde os anos de 1930, quando ambos, aprovados no
exame de “agrégation”, começaram a lecionar. Enquanto Sartre, para quem
“passar na agrégation e ter uma profissão era algo garantido”, preocupavase com a diminuição de sua liberdade intelectual acarretada por seus
compromissos profissionais, Beauvoir, que tivera de enfrentar um semnúmero de resistências sociais (a começar pela do seu pai) para chegar
àquela condição, se viu “tonta de puro deleite: eu senti que, longe de
ter que suportar meu destino, eu o havia escolhido deliberadamente. A
carreira em que Sartre via sua liberdade decair ainda significava libertação
para mim” (p. 126-127). Finalmente, se a propensão de Sartre à “bravata”
talvez tenha contribuído, de par com uma dinâmica reputacional sexista,
para sua fama de pensador supostamente mais original, as visões mais
nuançadas de Beauvoir provavelmente concorreram para dar às ideias
dela, creio eu, maior atualidade do que as dele. No fim das contas, por
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exemplo, a concepção do relacionamento entre liberdade individual e
condicionamentos sociais em O Segundo Sexo é, precisamente devido às
suas nuances e tensões, certamente mais adequada do que “libertarismo”
subjetivista advogado quase sem peias por Sartre em O ser e o nada.
O ativismo do adeus
Como é sabido, no mesmo livro que seria um dos documentos mais
influentes da segunda onda do feminismo, Beauvoir ainda não reclamara
para si própria o rótulo de “feminista”. Paradoxalmente, a extraordinária
virulência da reação conservadora às visões defendidas por Beauvoir foi
um estímulo decisivo para que ela abraçasse expressamente, afinal, a causa
feminista. À decisão se seguiu seu envolvimento em múltiplas atividades
militantes nas décadas subsequentes, como as campanhas pela expansão
do acesso a métodos contraceptivos e pela descriminalização do aborto.
Ao tratar daquela conturbada recepção do “escandaloso O segundo sexo”
(p. 226-244), Kirkpatrick, em um dos melhores momentos do livro, vai
além de uma biografia stricto sensu e oferece um elucidativo exercício de
história cultural.
As diversas críticas ao livro mapeadas nessa biografia ilustram um
princípio identificado pelo sociólogo estadunidense Robert Merton em
sua análise do preconceito: “damned-if-you-do, damned-if-you-don’t”. Por
exemplo, Beauvoir foi atacada como “insatisfeita”, “frígida” e “frustrada”,
mas também como “ninfomaníaca” (p. 231, 235). Filósofos acadêmicos
como Mauriac consideraram “abjeto” que ela falasse sobre sexo em um
ensaio que pretendia ser “crítica filosófica e literária séria” (p. 231), ao passo
que leitores não acadêmicos a censuraram, por seu turno, por escrever um
livro supostamente inteligível apenas “para um pequeno clube literário...
de pessoas iniciadas no jargão esotérico da metafísica e sua categoria
existencialista” (p. 243). Felizmente, essas ambiguidades na recepção de
O segundo sexo tiveram suas contrapartes positivas. Por um lado, reações
como a de Mauriac tornaram-se elas próprias documentos culturais de
sexismo disponíveis à posteridade: em um de tantos exemplos do padrão
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duplo de moralismo pornográfico que marca certo pensamento de direita
até hoje, o mesmo “respeitável pilar do establishment conservador” (p.
231) que se escandalizara com as referências de Beauvoir à genitalidade
feminina “escreveu a um dos colaboradores de Les Temps Modernes que
‘a vagina de minha patroa não tem segredos para mim’” (p. 231). Ademais,
o fato de que alguns homens se contavam entre os que rejeitavam suas
considerações sobre a maternidade, argumentando que ela nunca havia
tido a experiência em primeira mão, também serviu a ela para lembrar
a tais homens que eles próprios nunca se sentiram impedidos a opinar
sobre o assunto devido à sua falta de vivência direta (p. 235). Por outro
lado, e felizmente, Beauvoir encontraria, com o passar do tempo, uma
geração subsequente de leitores, sobretudo mulheres, que se revelariam
imensamente mais acolhedores em relação a um livro que, pela primeira vez
em décadas ou séculos, “falava francamente sobre experiências que haviam
sido tabu” (p. 239). De lá para cá, como é sabido, “O segundo sexo seria
reconhecido como um clássico e inspiraria movimentos políticos” (p. 243).
O livro também inspiraria um conjunto amplo e multifacetado de
reflexões no campo interdisciplinar da teoria feminista. Infelizmente,
Kirkpatrick não explora em qualquer detalhe questões centrais à fortuna
crítica da obra de Beauvoir no interior desses debates teóricos, como a
insuficiente atenção de seu livro seja a fatores interseccionais de raça e
classe na experiência das mulheres (ponto lembrado por feministas negras),
seja ao caráter culturalmente “construído” do próprio sexo como marcador
biológico (ponto lembrado por feministas pós-estruturalistas). Na verdade,
frente à advertência inicial que a biografia não incluiria “todos os amigos
nem todos os amantes” de Beauvoir, mas incluiria “sua filosofia” (p. 30),
a ratio final do livro de Kirkpatrick ainda sacrifica um tanto de potencial
discussão filosófica para dedicar-se ao terreno já amplamente mapeado
das relações de Simone com Olga Kosakiewicz, Wanda Kosawiecz, Bianca
Bienenfeld, Jacques-Laurent Bost e Nelson Algren, inter alios.4
Por exemplo, os ricos diálogos de Beauvoir e Sartre com seus críticos estruturalistas ganham
somente uma superficial menção en passant: “na década de 1960, [Sartre] fora criticado
por Claude Lévi-Strauss e por outros por focar demais no tema do consciente mas não o
suficiente no inconsciente” (p. 293).
4
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A própria audácia e originalidade demonstradas por Beauvoir em sua
discussão da ética das relações interpessoais íntimas convidaram intérpretes,
com muita frequência, a interrogar sua conduta nesse domínio, em particular
no tocante ao arranjo que ela estabelecera com Sartre, em que o “amor
necessário” dos dois conviveria com a liberdade de um e outro para travarem
“amores contingentes”. Em Tête-à-tête, Hazel Rowley (2006) não se furtou
a confrontar aspectos desagradáveis da realidade desse “amor livre” por
tantas vezes idealizado, como o fato de que a comunicação transparente
entre Beauvoir e Sartre sobre seus relacionamentos coexistia com um
cinturão protetor de mentiras dirigidas às várias pessoas que entravam
nessa órbita erótico-afetiva. Isso dito, a própria Rowley já demonstrara
amplamente, embora a mensagem tenha escapado a alguns de seus leitores,
a inverdade da suposição comum de que o arranjo não monogâmico entre
Beauvoir e Sartre teria sido algo que ela aceitara a contragosto, resignada
à circunstância de não poder, como disseram alguns, “tê-lo inteiramente”
(sic) para ela. Kirkpatrick mostra que tal arranjo foi entusiasticamente
desejado e abraçado por ela, mas também recolhe depoimentos diversos
em que Beauvoir reconheceu, nas suas palavras, que seu “entendimento
com Sartre” acarretou uma série de “perdas e transtornos pelos quais os
‘outros’ sofreram” (p. 300).
Ao mapear as relações com o amor que a cultura ocidental moderna
estimulava entre homens e mulheres, a filósofa notou o injusto contraste
entre a “soberania” daqueles e o “autossacrifício” destas:
Beauvoir acreditava que os homens permanecem ‘sujeitos soberanos’ no
amor – que valorizavam suas amadas mulheres ao lado de outras atividades,
como parte integrante – mas só parte – de toda a sua vida. Por outro lado,
para as mulheres, [...] os ideais de amor as incentivavam a viver a uma vida
de autossacrifício ou até de completo esquecimento de si mesmas pelo bem
de seus amados (p. 235).
É desconcertante pensar que tanto escândalo pôde brotar da
reivindicação de que as mulheres pudessem reclamar uma relação
igualmente soberana com o amor. Se, pelo menos para uma vasta (mesmo
Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.
Tornar-se Beauvoir: para além dos argumentos ad feminam...
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que insuficientemente vasta) porção de pessoas, tal reivindicação, longe
de espantosa, é uma espécie de um mínimo civilizatório, tão autoevidente
que não precisaria ser dito, essa própria evidência indica o quanto devemos
não somente aos escritos de Beauvoir como também às outras modalidades
de ativismo que ela continuou praticando até o seu leito de morte. (A
referência é literal: na cama do hospital onde veio a falecer em 1986, ela
tentou convencer sua massagista a não votar no nacionalista de extrema
direita Jean-Marie Le Pen [p. 358].) O livro aqui resenhado é somente uma
prova, entre diversas outras, de que sua mensagem continua viva.
Gabriel Peters é Doutor em Sociologia e professor do Departamento de Sociologia da UFPE
e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da mesma universidade, onde integra a
linha de pesquisa “Teoria e Pensamento Social”.
gabrielpeters@hotmail.com
Referências
1. BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014.
2. RIBEIRO, Djamila. Iconoclasta de si mesma. Quatro cinco um, 1 abr. 2010.
Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/biografia/iconoclastade-si-mesma.
3. ROWLEY, Hazel. Tête-à-tête: the tumultuous lives and loves of Simone de
Beauvoir and Jean-Paul Sartre. Nova York: HarperCollins, 2006.
4. SARTRE, Jean Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997.
5. WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
Recebido: 22 nov. 2020.
Aceito: 15 fev. 2021.
Sociologias, Porto Alegre, ano 24, n. 59, jan-abr 2022, p. 416-429.