Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (de 12)
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Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (de 12) - Camilo Ferreira Botelho Castelo Branco
The Project Gutenberg EBook of Noites de insomnia, offerecidas a quem não
póde dormir. Nº2 (of 12), by Camilo Castelo Branco
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Title: Noites de insomnia, offerecidas a quem não póde dormir. Nº2 (of 12)
Author: Camilo Castelo Branco
Release Date: January 31, 2008 [EBook #24464]
Language: Portuguese
*** START OF THIS PROJECT GUTENBERG EBOOK NOITES DE INSOMNIA ***
Produced by Pedro Saborano
BIBLIOTHECA DE ALGIBEIRA
NOITES DE INSOMNIA
OFFERECIDAS
A QUEM NÃO PÓDE DORMIR
POR
Camillo Castello Branco
PUBLICAÇÃO MENSAL
N.o 2--FEVEREIRO
1874
PORTO
TYPOGRAPHIA DE ANTONIO JOSÉ DA SILVA TEIXEIRA
68--Rua da Cancella Velha--62
1874
AQUELLA CASA TRISTE...
(1872)
I
A casa grande das quinze janellas branqueja no espinhaço do monte.
As janellas fecharam-se ha seis mezes, ao mesmo tempo que duas sepulturas se abriram.
A sepultura do Africano que chegava ao cemiterio, quando a filha expirava; e a sepultura de Deolinda, quando o sino dobrava ainda nos funeraes do pai.
*
* *
Ao homem, que morreu n'aquella casa triste, chamavam o Africano.
Estou-a vendo d'aqui.
As vidraças reberveram o sol poente.
Eu, ha hoje dez annos, vi abrir os alicerces d'aquella casa.
Lidavam operarios a centenares.
Entre os alveneis estava um sujeito, na pujança dos annos, magro, macilento e tostado pelo sol da Africa.
Disseram-me que era homem muito rico, e viera do cabo do mundo, e se chamava o «Duque» por appellido, e o Africano por alcunha.
Avisinhei-me d'elle com o semblante risonho de cortezias para lhe perguntar como ia, em monte assim agro e ermo, fabricar edificio tão grandemente cimentado.
Respondeu que tinha em Benguela uma filha, com quem andára viajando na Suissa. E que a sua Deolinda, estanciando nas empinadas serras de S. Gothard, lhe dissera que seria feliz se morasse no topo d'uma montanha, em casa imitante de outra onde pernoitára, e d'onde vira levantar-se o sol do seu leito de neve.
E elle, pai extremoso, rico e saudoso da patria, disse á filha que, por cima da casinha onde nascera, em um outeiro do Minho, sobranceava um alto monte, golpeado de regatos que derivavam por entre arvoredos fresquissimos.
E a filha, cingindo-se-lhe ao pescoço, exclamára:
--E quando vamos?
--Irei fazer a casa no alto do monte, e depois irás tu, e levaremos para a capella os ossos de tua mãi. E eu descançarei d'esta labutação em que pude grangear mais que o preciso ao teu passadío, visto que preferes a viver em Paris uma casa nas serras de Portugal.
E sahiu de Benguela, provido de dinheiro para edificar o ostentoso chalet que a filha phantasiára.
Ora, os architectos do Minho, como não percebessem a planta do Africano, construiram-lhe um palacio aldeão, espécie de dormitorio monastico, um leviathan de granito zebrado de vidraças enormes e portas alterosas.
Perto d'alli, na outra lombada do mesmo outeiro, está o antigo solar torreado dos senhores de Farelães.
E eu que, n'aquelle tempo, me embrenhava nas ruinarias grandiosas do paço senhorial de Ruivães, a decifrar a lenda meio historica dos Corrêas de Sá nos frescos do tecto apainelado, ao perpassar pelas grossas cantarias do Africano, dizia entre mim: «O palacio cavalleiroso que desaba, e o palacio industrial que se levanta. Aquelle recorda as manhas epicas do peito illustre lusitano, a industria da lança que atirou da India para alli, na ponta ensanguentada, a pedraria dos reis de Chaul, de Calecut e Mombaça. Ergue-se o novo palacio para assignalar á posteridade que o peito moderno lusitano é ainda illustre e emprehendedor, differençando-se do antigo sómente no que vai entre adaga e azorrague, entre acutilar o indio pela frente, ou verberar o ethyope pelas costas.»
Mas eu não sabia se aquelle homem, tão entranhadamente pai, amealhára os seus haveres por entre os perigos do cruzeiro. Talvez que não. A riqueza não é sempre o estipendio generoso dos homens crueis. E, em corações afistulados por peçonha de cubiça--sêde execravel que se apaga em lagrimas--não cabe o exaltado e santissimo sentimento do amor paternal. Quem chora por um filho não tem olhos que vejam, enxutos, arrancar escravos dos braços de suas mães. Verdade é que os praticos d'estes ultrajes a Jesus--ser divino em que Deus se manifestou no mais elevado grau da consciencia humana--dizem que lá, nas cubatas, não ha mães, nem filhos: ha individuos bestialmente rebanhados, e inconscientes de laços de familia. Se assim é, meu Deus, porque não déstes á vossa creatura de epiderme negra o amor maternal que dulcifica as meiguices da hyena enroscada nos filhos?
*
* *
Aprumadas as paredes, delineados os repartimentos, os patins, as portas, a capella e o jardim, Duque, o Africano, saudoso da filha, deixou a obra em meio, e dinheiro de sobra ao seu feitor, pautando-lhe que, no prazo de doze mezes, a casa estaria feita.
E voltou a Benguela, onde tinha centenas de escravos, armazéns de café, de marfim, de gommas, e as suas vastas sementeiras sobre dez leguas circulares de terra, onde o suor da pelle fusca, porejado pelo sol a pique, era um como adubo forte, um guano de sangue estillado por entre febras vigorosas e distendidas pelo latego.
Vendeu as fazendas, enfeirou as bestas e os negros, abarrotou a galera de carregação sua, esquipou a tolda, decorou de frouxeis de sêda o camarim da filha, e proejou á patria. Parecia um dos antigos viso-reis que voltavam da India, d'uns que não se chamavam João de Castro nem Affonso de Albuquerque.
--Vale duzentos contos a carga da Deolinda!--diziam os amigos do Africano, quando as velas da