Políticas da performatividade: Conferências
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Políticas da performatividade - Marcelo Cattoni
Viana
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira²
Começo esta exposição, procurando resgatar uma trajetória de discussão e interlocução³.
Em 2015, realizamos, com o Professor Doutor Marco Aurélio Máximo Prado, da Psicologia da UFMG, um curso na Faculdade de Direito da UFMG, sobre Política e Sexualidade
e tomamos, como ponto de partida, o texto da Conferência da Judith Butler na Turquia, hoje traduzido para o português, ‘Nós o Povo’: Considerações sobre a liberdade de assembleia
.⁴ A partir dele, procurávamos exatamente desenvolver um diálogo com a teoria da Butler, suas pretensões políticas e as questões jurídicas.
Na época, nossa primeira exposição buscava estabelecer o que seria uma relação entre Direito, Política e Filosofia a partir da discussão sobre a liberdade ou o direito de assembleia, que na Espanha foi traduzido como liberdade de reunião
. Todavia, sabemos que, na verdade, assembleia
, em inglês, possui um sentido mais amplo e, ao mesmo tempo, mais específico, em razão do que a própria Butler desenvolveu nesta Conferência. Nesse sentido, gostaria inicialmente de recuperar alguns fragmentos desse texto e relacioná-los a uma trajetória de reflexão no Direito e na Política, ou no Direito Constitucional, que reconhece o que seria um sentido performático da Constituição.
Precisamos lembrar que o início dessa Conferência fazia referência às manifestações na praça Tahrir, a partir da qual a Butler realiza um série de indagações:
A praça Tahir passou a ser emblemática destas concentrações de corpos na rua: os manifestantes começaram pedindo a demissão do regime de Moubarak, depois continuaram sob diversas formas ocupando en masse o espaço público para protestar contra as medidas tomadas pelo governo de transição, contra os nomeamentos para postos oficiais de torturadores do regime derrotado, contra a precipitação na elaboração da nova Constituição e, mais recentemente, contra o desmantelamento do sistema judicial por decisão unilateral do presidente.⁵
Uma discussão sobre o processo constituinte se coloca aqui: qual o sentido então portanto da elaboração de uma nova constituição? E continua Butler:
Qual é, pois, este ‘nós’ que se reúne na rua e se afirma – as vezes pela palavra e pela ação, mas a maioria das vezes formando um grupo de corpos civis, audíveis, tangíveis, expostos, obstinados e independentes? Se bem que frequentemente se considera que de tal assembleia emana o ato de enunciação pelo qual ‘nós, o povo’ afirma a soberania popular, talvez seja mais justo dizer que esta assembleia se expressa por si mesma, que já constitui uma manera de promulgar a soberania popular. O ‘nós’ que expressa a linguagem já está realizado pela reunião dos corpos, seus movimentos, seus gestos, sua forma de agir em concerto, para citar Hannah Arendt.⁶
Um livro que publiquei em 2006⁷ – um texto que na verdade foi um grande experimentalismo, a apresentação inicial de um projeto – possui um capítulo (Nova Ordo Seclorum e o Sentido Performativo da Constituição) em diálogo exatamente com a Hannah Arendt em sua obra On Revolution – ao qual Judith Butler faz referência. Nesse capítulo, busca-se responder qual seria o sentido performativo da Constituição, considerando também os protestos contra a precipitada proposta, no Brasil, de elaboração de uma nova Constituição. Nessa reflexão, criticava a tentativa elitista de proceder a uma revisão global da Constituição brasileira de 1988, excluindo do processo de reforma constitucional aquela característica fundamental de participação e mobilização popular, presente com toda a sua grande importância em 1987-88, em torno da Assembléia Constituinte.
Assim, lendo Hannah Arendt a partir de Jürgen Habermas, procurei trazer o sentido performativo da Constituição como ato de fundação. Se me permitem, cito Arendt a partir do meu livro:
o que salva o ato de iniciação de sua própria arbitrariedade é que ele traz dentro de si mesmo a sua própria norma, ou, mais precisamente, que o princípio e a norma, o principium e o preceito, além de se relacionarem um com o outro, são também contemporâneos. O absoluto, do qual o começo deve derivar sua própria validade e que deve salvá-lo de sua inerente arbitrariedade, é a norma, que aparece no mundo ao mesmo tempo em que o começo.⁸
Em sequência, fazendo breve referência ao texto de Derrida, Force de Loi,⁹ foi retomada, em Arendt, a ideia de fundação como promessa:
para Arendt, a ‘solução norte-americana’, diferentemente da aparente solução apresentada por Sieyes (em sua conhecida teoria do poder constituinte distinto dos poderes constituídos, a origem comum do poder e da autoridade na Nação), envolveu, justamente, a questão do (duplo) significado atribuído pelos norte-americanos à Constituição dos Estados Unidos da América, como ‘ato de fundação’, principium, princípio e preceito, ao mesmo tempo, começo e norma, a partir do qual o povo (the People, que em inglês é uma palavra no plural) constitui-se como um novo corpo jurídico-político, formado por cidadãos que, no exercício de sua autonomia política, assumem o compromisso permanente, a mútua promessa, de reciprocamente reconhecem-se iguais direitos de liberdade; promessa mútua, essa, que cria laços com o futuro, sendo, pois, renovável e alargada, a cada decisão judicial, que possui a autoridade para reinterpretá-la, ou a cada emenda constitucional que venha a desenvolvê-la resgatando o sentido performativo do processo constituinte de elaboração e de ratificação. Adianto, também, que, pelo menos, um conceito, em Arendt, é fundamental para a compreensão do sentido performativo do ato de fundação, o conceito de ‘promessa’.¹⁰
Adiante, há uma citação que realizei em 2006 e que foi recuperada na minha Tese de Titularidade,¹¹ em que Jürgen Habermas afirma o seguinte:
Como qualquer prática comunicativa, o processo constituinte possui um significado performativo. Ele provê uma perspectiva normativa a partir da qual as gerações posteriores podem criticamente apropriar-se da missão constitucional e de sua história (…) Minha versão do significado performativo implícito na prática de elaboração de uma Constituição é o seguinte: Os membros do povo fundam uma associação voluntária de cidadãos livres e iguais, e prosseguem no exercício do autogoverno, por mutuamente acordarem, uns com os outros, certos direitos fundamentais, regulando, assim, sua vida em comum por meio do Direito positivo e coercitivo, de um modo legítimo. Graças a esse conhecimento intuitivo do que significa elaborar uma Constituição, qualquer cidadão pode se colocar, a qualquer momento, na posição de um constituinte e verificar se, e em que medida, as práticas e as regulações da deliberação e da tomada de decisão democráticas encontram no presente as condições requeridas para procedimentos que conferem legitimidade.¹²
E Habermas continua:
O ato de fundação da constituição é sentido como um corte na história nacional, e isso não é resultado de um mero acaso, pois, através dele, se fundamentou um novo tipo de prática com significado para a história mundial. E o sentido performativo desta prática destinada a produzir uma comunidade política de cidadãos livres e iguais, que se determinam a si mesmos, foi apenas enunciado no teor da constituição. Ele continua dependente de uma explicação reiterada, no decorrer das posteriores aplicações, interpretações e complementações das normas constitucionais. Graças a esse sentido performativo, que permanece disponível à intuição de cada cidadão de uma comunidade política democrática, ele pode assumir duas atitudes: referir-se criticamente aos textos e decisões da geração dos fundadores e dos sucessores; ou, ao contrário, assumir a perspectiva dos fundadores e dirigi-la criticamente contra atualidade, a fim de examinar se as instituições existentes, as práticas e procedimentos da formação democrática da vontade preenchem as condições para um processo que produz legitimidade (…) Sob essa premissa, qualquer ato fundador abre a possibilidade de um processo ulterior de tentativas que a si mesmo se corrige e que permite explorar cada vez melhor as fontes do sistema dos direitos.¹³
Esse trecho torna-se importante no diálogo com a Butler no sentido trazido na minha Tese de Titularidade, Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição, em que defendo que uma constituição é legítima e efetiva enquanto o próprio sentido de e da constituição for objeto de disputas interpretativas e, então, políticas, na esfera pública¹⁴. Cabe, assim, chamar atenção para o sentido dessas disputas. Nesse sentido, eu me utilizo de uma filosofia da linguagem que reconhece a inevitabilidade, do ponto de vista pragmático, de certos pressupostos dos quais todas e todos nós partimos quando interagimos em sociedade:
E, assim, na medida em que o que está em questão é um problema de correção normativa, essas controvérsias podem reforçar o caráter normativo da constituição, sobretudo se o problema acerca de uma resposta correta, com Dworkin, for compreendido adequadamente como uma questão de postura ou de atitude em face do Direito como integridade e não em termos meramente semânticos. Todavia, a exigência de correção somente encontra plausibilidade sobre o pano de fundo de uma inevitável exigência intercompartilhada no interior da sociedade, de integridade; ou seja, uma exigência de princípio que permite, inclusive, reconstruir uma história institucional que reflita um processo de aprendizado social, com o direito e com a política, em longo prazo.¹⁵
É claro que essa questão é pensada não do ponto de vista de um progresso inexorável, mas de um processo falível, sujeito a tropeços e retrocessos, porém capaz de reflexivamente se autocorrigir, através das lutas políticas e sociais por reconhecimento que possam tensionar o caráter aberto da interpretação do sentido dos princípios que pretendem legitimidade e justiça. Do ponto de vista da sua negatividade, para falarmos com Adorno, poderíamos dizer que, ao longo dessa história, somos antes capazes de afirmar o que não é liberdade, o que não é igualdade, o que não é justiça, o que não é legitimidade, o que não é legalidade, do que uma afirmação da sua positividade. Sim, embora não citada expressamente ali, uma recuperação da dialética negativa
de Theodor Adorno perpassa toda essa discussão.
Esse processo que está sujeito a tropeços e retrocessos, mas que é capaz de reflexivamente de se autocorrigir, também está submetido a pressões, o que nos exige realizar determinadas ressalvas genealógicas, para dizer com Axel Honneth. Ou seja: é necessário chamar atenção para o risco permanente de que nessa própria controvérsia, por meio de um uso parasitário ou patológico da constituição, se caracterizem casos de abusos de direito e de tentativa de se lançar o próprio projeto constitucional contra ele mesmo, aquilo que na Teoria Constitucional chamamos de fraude à constituição¹⁶.
Nesse sentido, alguns dos exemplos contemporâneos de tentativa de fraude à constituição são os denominados neogolpes, entre os quais podemos citar os casos de golpe de Estado em Honduras em 2009 e no Paraguai em 2012. Tratam-se de casos em que os neogolpes pretendem se legitimar por meio de uma tentativa fraudulenta de apropriação do discurso constitucional e legal, todavia que se contradizem no seu próprio uso, revelando a si mesmos como abusos. E se estamos falando de precedentes, aqui estava me referindo ao processo de Impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, que é um caso típico de fraude à Constituição e de fraude à legalidade¹⁷
O que quero chamar atenção é que uma Constituição, ou ainda, as controvérsias constitucionais, não devem ser tratadas como uma questão de especialistas, pois elas não são monopólio de ninguém, nem mesmo de um Supremo Tribunal Federal. O sentido de e da Constituição é uma questão da cidadania em geral, ou seja, toda disputa acerca de como devemos compreender enquanto cidadãs e cidadãos os direitos fundamentais é uma disputa interpretativa pública e política na qual o que está em questão é quem nós somos e quem gostaríamos de ser enquanto sociedade política e diz inclusive respeito a como nos posicionamos responsavelmente aqui e agora em relação à gerações passadas e futuras¹⁸:
Democracia é conflito e diálogo, exigindo, portanto, o respeito a posições divergentes, todavia, na base do compromisso comum acerca de o que a própria constituição venha a representar e expressar, como projeto de uma comunidade de cidadãos livre e iguais. A democracia é, como afirmamos em trabalho anterior, contra todo discurso conservador e mesmo reacionário da ‘democracia possível’ (Ferreira Filho), uma democracia sem espera, que ao mesmo tempo não se esgota nas instituições existentes, mas que exige, aqui e agora, uma atitude responsável quanto ao passado e ao futuro.¹⁹
Partimos, então, para a discussão do que chamei, em um trabalho anterior, de democracia sem espera²⁰, fazendo um contraponto daqueles discursos que, por um lado, pretendem reduzir os potenciais de legitimidade e justiça, contraditoriamente presentes na própria realidade político-social, ao meramente existente, ou seja, uma leitura conservadora e fechada dos potenciais democráticos – uma questão que a Butler também critica na conferência da Turquia – em torno daquilo que, sobretudo durante a ditadura civil-militar no Brasil, um importante constitucionalista chamava de democracia possível. Contudo, a democracia possível de Manoel Gonçalves Ferreira Filho era a própria… ditadura! Então, contra todo discurso conservador e mesmo reacionário de uma democracia possível, propõe-se a ideia de uma democracia sem espera, que ao mesmo tempo não se esgota nas instituições existentes, que está aberta ao por vir, mas que exige aqui e agora uma atitude responsável para com o passado.
Assim, como Giacomo Marramao, considero também a democracia, para citar as palavras dele, como uma comunidade paradoxal
, como uma comunidade dos sem-comunidade
:
se é certo que a vocação da democracia, enquanto instituição político-cultural típica do ocidente, está dada – como bem o sabiam Tocqueville, Marx e Weber – pela cifra do desenraizamento, sua definição mais congruente será a de lugar comum do desenraizamento. Só a partir daqui – desta reativação que é também uma maneira alternativa de repensar o potencial da tradição – se abre a possibilidade de um cotejo com as ‘alteridades’ culturais em condições de escapar dos opostos e especulares riscos do universalismo hegemônico e do relativismo. A democracia – e somente a democracia – pode ser chamada comunidade paradoxal, comunidade dos sem-comunidade. Não apesar, mas precisamente em virtude de suas regras formais que, ao limitar a taxis, a esfera de exercício do poder, garantem o desenvolvimento autônomo das esferas de vida. A democracia é sempre ‘por-vir’, justamente porque nunca sacrifica à utopía de uma tradição absoluta a opacidade da fricção e do conflito. A democracia não goza de um clima moderado, nem de uma luz perpétua e uniforme, justamente porque se nutre daquela paixão do desencanto que mantém unidos – em uma tensão insolúvel – o rigor da forma e a disponibilidade para receber ‘hóspedes inesperados’.²¹
Essa questão da negatividade, a que já me referi, se faz presente mais uma vez, nesse caso, no debate. Assim, nessa discussão e nessa disputa acerca do sentido de e da constituição,
dizer ‘é inconstitucional’, para além do sentido de tomar a constituição como bandeira de luta política e jurídica, tem o sentido performativo de assumir uma atitude, uma postura, a realização mesma de uma performace na esfera pública. Afinal, dizer ‘é inconstitucional’ é uma expressão que nasceu, como se sabe, num contexto revolucionário, também inscrito no próprio DNA dessa expressão. E se dizer ‘é inconstitucional’ não garante, por si só, um manto de proteção à constituição, posto que não há, como afirma Müller, uma espécie de ‘seguro de vida em política’, isso pode trazer consigo um efeito deslegitimador que, ao mesmo tempo, pode reforçar a constituição.²²
Proponho uma ideia do constitucionalismo por vir que, depois de uma releitura crítica, está impregnada exatamente de uma teoria da performatividade²³; abordarei, em contrapartida, um constitucionalismo por vir no debate com Jacques Derrida²⁴. Isso porque, de fato, grandes autores da teoria da modernidade (como Niklas Luhmann, ou mesmo como Jürgen Habermas) vão identificar como caracterização do direito o que seria um deslocamento, do ponto de vista temporal, do fundamento de legitimidade do direito e da política do passado – até então, do direito como coisa devida, como algo que se situa numa tradição imemorial – para a ideia de uma abertura para o futuro, do direito como um dever-ser, ou como devir, ou como um por vir. Essa ideia diz respeito exatamente ao próprio modo como foi construída, ao longo do século XVIII, a noção de constitucionalidade.
Paradoxalmente, como vai nos lembrar Luhmann, a constitucionalidade – ou a ideia moderna de constituição enquanto conjunto de normas fundamentais que servem de parâmetro do direito e de legitimidade da política – foi introduzida no debate jurídico-político do século XVIII pela crítica, ou seja: pela forma negativa, pela ideia da inconstitucionalidade. São leis inconstitucionais aquelas que não garantem o direito de assembleia, que não garantem o direito à representação política, que não garantem a participação daqueles que serão afetados por essas leis em seus processos de elaboração, aplicação e modificação. É o velho princípio presente na tradição do direito inglês da não tributação sem representação (no taxation without representation) a que os revolucionários norte-americanos, aqui recuperados pela Butler em sua conferência, vão se referir.
Só se reconhece o que é constitucional, portanto, pela vivência da inconstitucionalidade – ou, como vai dizer Adorno na Minima Moralia, "o caminho da justiça é a injustiça".
Surge, então, neste contexto de discussão, a ideia do constitucionalismo por vir:
a constituição democrática seria não apenas a própria expressão da diferança (différance) entre constitucionalismo e direito, mas também entre direito e política, por um lado, e