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Os Maias
Os Maias
Os Maias
E-book960 páginas13 horas

Os Maias

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Sobre este e-book

«A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete.
Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assimilar-se-ia a um colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do escudo de armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma data.
Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína. Em 1858 monsenhor Buccarini, núncio de S. Santidade, visitara-o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe também, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredescobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos cupidinhos.»
IdiomaPortuguês
Data de lançamento27 de abr. de 2022
ISBN9789897027482
Os Maias

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    Os Maias - Eça de Queiroz

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    Os Maias

    Título: Os Maias

    Autor: Eça de Queiroz

    © Guerra e Paz, Editores, Lda, 2022

    Reservados todos os direitos

    A presente edição não segue a grafia do novo acordo ortográfico.

    Fixação do texto, nota e revisão: Helder Guégués

    Design: Ilídio J.B. Vasco

    Isbn: 978-989-702-748-2

    Guerra e Paz, Editores, Lda

    R. Conde de Redondo, 8–5.º Esq.

    1150­-105 Lisboa

    Tel.: 213 144 488 / Fax: 213 144 489

    E­-mail: guerraepaz@guerraepaz.pt

    www.guerraepaz.pt

    índice

    Nota a esta edição

    Capítulo I

    Capítulo II

    Capítulo III

    Capítulo IV

    Capítulo V

    Capítulo VI

    capítulo VII

    Capítulo VIII

    Capítulo IX

    Capítulo X

    Capítulo XI

    Capítulo XII

    Capítulo XIII

    Capítulo XIV

    Capítulo XV

    Capítulo XVI

    Capítulo XVII

    Capítulo XVIII

    Os Maias – Breve roteiro

    Dez anos depois – Posfácio de António Eça de Queiroz

    Nota a esta edição

    Quando nos foi proposto rever mais uma edição dos Maias, de Eça de Queiroz, uma obra espantosamente sempre actual, e talvez mesmo o único clássico que permanece, que continua a ser lido, a primeira ideia foi ler ou reler o que se tem feito nos últimos anos com esta obra. Concluímos, do cotejo da edição de 1888 com algumas das actuais, que era necessário fixar o texto novamente. Com um autor morto, não podemos ter uma edição corrigida e aumentada, mas sim — permitam o paradoxo — descorrigida. Se toda a ortografia (e, como veremos, outras opções com consequências na pronúncia) usada por Eça for afeiçoada à actual, neste confuso início de século XXI, em que a nossa atenção é disputada por duas ortografias, como poderá o leitor perceber como escrevia o autor?

    Em certas edições, pudemos verificar alterações que ultrapassam em muito a simples actualização ortográfica, e que não nos parecem legítimas nem, o que é mais, necessárias. Como se sabe, em Eça tropeça-se a cada página com um ou vários termos estrangeiros. Assim, se Eça usa o termo phaeton (proveniente do inglês phaeton, e esta tirada do francês phaéton), não se nos oferecem dúvidas de que devemos «actualizar» para «fáeton» e nunca, como vemos noutras edições, «faetonte». Vejamos outros casos.

    Eça usa sempre o substantivo de dois géneros «governante» para se referir à mulher contratada para governar uma casa. Não nos parece curial alterar, como outros fizeram, para «governanta». Outro exemplo: nunca Eça usa a interjeição «hem», mas sempre «hein». Mantivemos, porque não descortinamos a razão para fazer, como outros fizeram, o contrário. Como mantivemos «descorçoado», «dignatário» (apesar de errado, mas acrescentámos uma nota de rodapé a alertar o leitor), «trespassados», «taverna», «covarde», etc.

    Repusemos também a variação original entre os ditongos decrescentes ou e oi. Se Eça escreveu «por uma dourada tarde», porquê alterar, como outros fizeram, para «doirada»? Se Eça escreveu «senhora loura», porquê alterar, como outros fizeram, para «loira»? Vejamos: se esta variação ainda é plenamente aceite (com poucas excepções, como cousa, noute...) pelos falantes do português actual, qualquer alteração ao que o autor escreveu é puro arbítrio.

    Há, noutras edições, alterações que nos intrigam. Assim, para Eça, Teixeira esperava «perfilado por trás do alto espaldar da cadeira de Afonso»; outros quiseram que fosse «por detrás». Eça escreveu «sobre as lájeas do pátio»; outros quiseram que fosse «sobre as lajes». Eça pôs o casal Pedro da Maia e Maria Monforte em Arroios, numa casa «ricamente remobilada»; outros reputaram isto excesso de luxo, e quiseram que fosse uma casa apenas «ricamente mobilada».

    Eça, que veio mudar — mas beneficiando já da verdadeira revolução que foi, décadas antes, a escrita de Garrett — quase tudo, tinha atrás de si o saber dos clássicos. Nem tudo, afinal, lhe viera pelo paquete do Havre. Ora, Eça escreveu «meia adormecida», «meia apagada», etc., como os clássicos, não de forma sistemática, mas muitas vezes, fizeram, fosse por atracção ou por qualquer outro motivo. Não podemos, sob pena de estar a falsear a obra, alterar para «meio adormecida», «meio apagada», etc.

    Finalmente, que mudámos? O estritamente necessário para a prosa de Eça de Queiroz não parecer rebarbativa aos olhos do leitor actual, ou seja, pouco. Decerto que não mantivemos, numa actualização ortográfica, «quasi», nem «cascatasinha», nem «pésinho», nem «de vagar», etc.

    Agora, e como sempre, todo o protagonismo vai para a obra e para o leitor.

    Helder Guégués

    Os Maias

    Capítulo I

    A casa que os Maias vieram habitar em Lisboa, no Outono de 1875, era conhecida na vizinhança da Rua de S. Francisco de Paula, e em todo o bairro das Janelas Verdes, pela casa do Ramalhete, ou simplesmente o Ramalhete. Apesar deste fresco nome de vivenda campestre, o Ramalhete, sombrio casarão de paredes severas, com um renque de estreitas varandas de ferro no primeiro andar, e por cima uma tímida fila de janelinhas abrigadas à beira do telhado, tinha o aspecto tristonho de residência eclesiástica que competia a uma edificação do reinado da Sr.ª D. Maria I: com uma sineta e com uma cruz no topo assemelhar-se-ia a um colégio de Jesuítas. O nome de Ramalhete provinha decerto de um revestimento quadrado de azulejos fazendo painel no lugar heráldico do escudo de armas, que nunca chegara a ser colocado, e representando um grande ramo de girassóis atado por uma fita onde se distinguiam letras e números de uma data.

    Longos anos o Ramalhete permanecera desabitado, com teias de aranha pelas grades dos postigos térreos, e cobrindo-se de tons de ruína. Em 1858 monsenhor Buccarini, núncio de S. Santidade, visitara-o com ideia de instalar lá a Nunciatura, seduzido pela gravidade clerical do edifício e pela paz dormente do bairro: e o interior do casarão agradara-lhe também, com a sua disposição apalaçada, os tectos apainelados, as paredes cobertas de frescos onde já desmaiavam as rosas das grinaldas e as faces dos cupidinhos. Mas monsenhor, com os seus hábitos de rico prelado romano, necessitava na sua vivenda os arvoredos e as águas de um jardim de luxo e o Ramalhete possuía apenas, ao fundo de um terraço de tijolo, um pobre quintal inculto, abandonado às ervas bravas, com um cipreste, um cedro, uma cascatazinha seca, um tanque entulhado, e uma estátua de mármore (onde monsenhor reconheceu logo Vénus Citereia) enegrecendo a um canto na lenta humidade das ramagens silvestres. Além disso, a renda que pediu o velho Vilaça, procurador dos Maias, pareceu tão exagerada a monsenhor, que lhe perguntou sorrindo se ainda julgava a Igreja nos tempos de Leão X. Vilaça respondeu – que também a nobreza não estava nos tempos do Sr. D. João V. E o Ramalhete continuou desabitado.

    Este inútil pardieiro (como lhe chamava Vilaça Júnior, agora por morte de seu pai, administrador dos Maias) só veio a servir, nos fins de 1870, para lá se arrecadarem as mobílias e as louças provenientes do palacete de família em Benfica, morada quase histórica, que, depois de andar anos em praça, fora então comprada por um comendador brasileiro. Nessa ocasião vendera-se outra propriedade dos Maias, a Tojeira; e algumas raras pessoas que em Lisboa ainda se lembravam dos Maias, e sabiam que desde a Regeneração eles viviam retirados na sua quinta de Santa Olávia, nas margens do Douro, tinham perguntado a Vilaça se essa gente estava atrapalhada.

    – Ainda têm um pedaço de pão – disse Vilaça sorrindo –, e a manteiga para lhe barrar por cima.

    Os Maias eram uma antiga família da Beira, sempre pouco numerosa, sem linhas colaterais, sem parentelas – e agora reduzida a dois varões, o senhor da casa, Afonso da Maia, um velho já, quase um antepassado, mais idoso que o século, e seu neto Carlos, que estudava Medicina em Coimbra. Quando Afonso se retirara definitivamente para Santa Olávia, o rendimento da casa excedia já cinquenta mil cruzados: mas desde então tinham-se acumulado as economias de vinte anos de aldeia; viera também a herança de um último parente, Sebastião da Maia, que desde 1830 vivia em Nápoles, só, ocupando-se de numismática; – e o procurador podia certamente sorrir com segurança quando falava dos Maias e da sua fatia de pão.

    A venda da Tojeira fora realmente aconselhada por Vilaça: mas nunca ele aprovara que Afonso se desfizesse de Benfica – só pela razão de aqueles muros terem visto tantos desgostos domésticos. Isso, como dizia Vilaça, acontecia a todos os muros. O resultado era que os Maias, com o Ramalhete inabitável, não possuíam agora uma casa em Lisboa; e se Afonso naquela idade amava o sossego de Santa Olávia, seu neto, rapaz de gosto e de luxo que passava as férias em Paris e Londres, não quereria, depois de formado, ir sepultar-se nos penhascos do Douro. E com efeito, meses antes de ele deixar Coimbra, Afonso assombrou Vilaça anunciando-lhe que decidira vir habitar o Ramalhete! O procurador compôs logo um relatório a enumerar os inconvenientes do casarão: o maior era necessitar tantas obras e tantas despesas; depois, a falta de um jardim devia ser muito sensível a quem saía dos arvoredos de Santa Olávia; e por fim aludia mesmo a uma lenda, segundo a qual eram sempre fatais aos Maias as paredes do Ramalhete, «ainda que (acrescentava ele numa frase meditada) até me envergonho de mencionar tais frioleiras neste século de Voltaire, Guizot e outros filósofos liberais...»

    Afonso riu muito da frase, e respondeu que aquelas razões eram excelentes – mas ele desejava habitar sob tectos tradicionalmente seus; se eram necessárias obras, que se fizessem e largamente; e enquanto a lendas e agoiros, bastaria abrir de par em par as janelas e deixar entrar o sol.

    S. Ex.ª mandava: – e, como esse Inverno ia seco, as obras começaram logo, sob a direcção de um Esteves, arquitecto, político e compadre de Vilaça. Este artista entusiasmara o procurador com um projecto de escada aparatosa, flanqueada por duas figuras simbolizando as conquistas da Guiné e da Índia. E estava ideando também uma cascata de louça na sala de jantar – quando, inesperadamente, Carlos apareceu em Lisboa com um arquitecto-decorador de Londres, e, depois de estudar com ele à pressa algumas ornamentações e alguns tons de estofos, entregou-lhe as quatro paredes do Ramalhete, para ele ali criar, exercendo o seu gosto, um interior confortável, de luxo inteligente e sóbrio.

    Vilaça ressentiu amargamente esta desconsideração pelo artista nacional; Esteves foi berrar ao seu centro político que isto era um país perdido. E Afonso lamentou também que se tivesse despedido o Esteves, exigiu mesmo que o encarregassem da construção das cocheiras. O artista ia aceitar – quando foi nomeado governador civil.

    Ao fim de um ano, durante o qual Carlos viera frequentemente a Lisboa colaborar nos trabalhos, «dar os seus retoques estéticos» – do antigo Ramalhete só restava a fachada tristonha, que Afonso não quisera alterada por constituir a fisionomia da casa. E Vilaça não duvidou declarar que Jones Bule (como ele chamava ao inglês) sem despender despropositadamente, aproveitando até as antigualhas de Benfica, fizera do Ramalhete «um museu».

    O que surpreendia logo era o pátio, outrora tão lôbrego, nu, lajeado de pedregulho – agora resplandecente, com um pavimento quadrilhado de mármores brancos e vermelhos, plantas decorativas, vasos de Quimper e dois longos bancos feudais que Carlos trouxera de Espanha, trabalhados em talha, solenes como coros de catedral. Em cima, na antecâmara, revestida como uma tenda de estofos do Oriente, todo o rumor de passos morria: e ornavam-na divãs cobertos de tapetes persas, largos pratos mouriscos com reflexos metálicos de cobre, uma harmonia de tons severos, onde destacava, na brancura imaculada do mármore, uma figura de rapariga friorenta, arrepiando-se, rindo, ao meter o pezinho na água. Daí partia um amplo corredor, ornado com as peças ricas de Benfica, arcas góticas, jarrões da Índia e antigos quadros devotos. As melhores salas do Ramalhete abriam para essa galeria. No salão nobre, raramente usado, todo em brocados de veludo cor de musgo de Outono, havia uma bela tela de Constable, o retrato da sogra de Afonso, a condessa de Runa, de tricorne de plumas e vestido escarlate de caçadora inglesa, sobre um fundo de paisagem enevoada. Uma sala mais pequena, ao lado, onde se fazia música, tinha um ar de século XVIII com seus móveis enramelhetados de ouro, as suas sedas de ramagens brilhantes: duas tapeçarias de Gobelins, desmaiadas, em tons cinzentos, cobriam as paredes de pastores e de arvoredos.

    Defronte era o bilhar, forrado de um couro moderno trazido por Jones Bule, onde, por entre a desordem de ramagens verde-garrafa, esvoaçavam cegonhas prateadas. E, ao lado, achava-se o fumoir, a sala mais cómoda do Ramalhete: as otomanas tinham a fofa vastidão de leitos; e o conchego quente e um pouco sombrio dos estofos escarlates e pretos era alegrado pelas cores cantantes de velhas faienças holandesas.

    Ao fundo do corredor ficava o escritório de Afonso, revestido de damascos vermelhos como uma velha câmara de prelado. A maciça mesa de pau-preto, as estantes baixas de carvalho lavrado, o solene luxo das encadernações, tudo tinha ali uma feição austera de paz estudiosa – realçada ainda por um quadro atribuído a Rubens, antiga relíquia da casa, um Cristo na Cruz, destacando a sua nudez de atleta sobre um céu de poente revolto e rubro. Ao lado do fogão Carlos arranjara um canto para o avô com um biombo japonês bordado a ouro, uma pele de urso branco e uma venerável cadeira de braços, cuja tapeçaria mostrava ainda as armas dos Maias no desmaio da trama de seda.

    No corredor do segundo andar, guarnecido com retratos de família, estavam os quartos de Afonso. Carlos dispusera os seus, num ângulo da casa, com uma entrada particular, e janelas sobre o jardim: eram três gabinetes a seguir, sem portas, unidos pelo mesmo tapete: e os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico – mas de dançarina!

    A casa, depois de arranjada, ficou vazia enquanto Carlos, já formado, fazia uma longa viagem pela Europa; – e foi só nas vésperas da sua chegada, nesse lindo Outono de 1875, que Afonso se resolveu enfim a deixar Santa Olávia e vir instalar-se no Ramalhete. Havia vinte e cinco anos que ele não via Lisboa; e, ao fim de alguns curtos dias, confessou ao Vilaça que estava suspirando outra vez pelas suas sombras de Santa Olávia. Mas, que remédio! Não queria viver muito separado do neto; e Carlos agora, com ideias sérias de carreira activa, devia necessariamente habitar Lisboa... De resto, não desgostava do Ramalhete, apesar de Carlos, com o seu fervor pelo luxo dos climas frios, ter prodigalizado de mais as tapeçarias, os pesados reposteiros e os veludos. Agradava-lhe também muito a vizinhança, aquela doce quietação de subúrbio adormecido ao sol. E gostava até do seu quintalejo. Não era decerto o jardim de Santa Olávia: mas tinha o ar simpático, com os seus girassóis perfilados ao pé dos degraus do terraço, o cipreste e o cedro envelhecendo juntos como dois amigos tristes, e a Vénus Citereia parecendo agora, no seu tom claro de estátua de parque, ter chegado de Versalhes, do fundo do grande século... E desde que a água abundava, a cascatazinha era deliciosa, dentro do nicho de conchas, com os seus três pedregulhos arranjados em despenhadeiro bucólico, melancolizando aquele fundo de quintal soalheiro com um pranto de náiade doméstica, esfiado gota a gota na bacia de mármore.

    O que desconsolara Afonso, ao princípio, fora a vista do terraço – de onde outrora, decerto, se abrangia até ao mar. Mas as casas edificadas em redor, nos últimos anos, tinham tapado esse horizonte esplêndido. Agora, uma estreita tira de água e monte que se avistava entre dois prédios de cinco andares, separados por um corte de rua, formava toda a paisagem defronte do Ramalhete. E, todavia, Afonso terminou por lhe descobrir um encanto íntimo. Era como uma tela marinha, encaixilhada em cantarias brancas, suspensa do céu azul em face do terraço, mostrando, nas variedades infinitas de cor e luz, os episódios fugitivos de uma pacata vida de rio: às vezes uma vela de barco da Trafaria fugindo airosamente à bolina; outras vezes uma galera toda em pano, entrando num favor da aragem, vagarosa, no vermelho da tarde; ou então a melancolia de um grande paquete, descendo, fechado e preparado para a vaga, entrevisto um momento, desaparecendo logo, como já devorado pelo mar incerto; ou ainda durante dias, no pó de ouro das sestas silenciosas, o vulto negro de um couraçado inglês... E sempre ao fundo o pedaço de monte verde-negro, com um moinho parado no alto, e duas casas brancas ao rés da água, cheias de expressão – ora faiscantes e despedindo raios das vidraças acesas em brasa; ora tomando aos fins de tarde um ar pensativo, cobertas dos rosados tenros de poente, quase semelhantes a um rubor humano; e de uma tristeza arrepiada nos dias de chuva, tão sós, tão brancas, como nuas, sob o tempo agreste.

    O terraço comunicava por três portas envidraçadas com o escritório – e foi nessa bela câmara de prelado que Afonso se acostumou logo a passar os seus dias, no recanto aconchegado que o neto lhe preparara ternamente, ao lado do fogão. A sua longa residência em Inglaterra dera-lhe o amor dos suaves vagares junto do lume. Em Santa Olávia as chaminés ficavam acesas até Abril; depois ornavam-se de braçadas de flores, como um altar doméstico; e era ainda aí, nesse aroma e nessa frescura, que ele gozava melhor o seu cachimbo, o seu Tácito, ou o seu querido Rabelais.

    Todavia, Afonso ainda ia longe, como ele dizia, de ser um velho borralheiro. Naquela idade, de Verão ou de Inverno, ao romper do Sol, estava a pé, saindo logo para a quinta, depois da sua boa oração da manhã que era um grande mergulho na água fria. Sempre tivera o amor supersticioso da água; e costumava dizer que nada havia melhor para o homem – que sabor de água, som de água e vista de água. O que o prendera mais a Santa Olávia fora a sua grande riqueza de águas vivas, nascentes, repuxos, tranquilo espelhar de águas paradas, fresco murmúrio de águas regantes... E a esta viva tonificação da água atribuía ele o ter vindo assim, desde o começo do século, sem uma dor e sem uma doença, mantendo a rica tradição de saúde da sua família, duro, resistente aos desgostos e anos – que passavam por ele, tão em vão, como passavam em vão, pelos seus robles de Santa Olávia, anos e vendavais.

    Afonso era um pouco baixo, maciço, de ombros quadrados e fortes: e com a sua face larga de nariz aquilino, a pele corada, quase vermelha, o cabelo branco todo cortado à escovinha e a barba de neve aguda e longa – lembrava, como dizia Carlos, um varão esforçado das idades heróicas, um D. Duarte de Menezes ou um Afonso de Albuquerque. E isto fazia sorrir o velho, recordar ao neto, gracejando, quanto as aparências iludem!

    Não, não era Meneses, nem Albuquerque; apenas um antepassado bonacheirão que amava os seus livros, o conchego da sua poltrona, o seu whist ao canto do fogão. Ele mesmo costumava dizer que era simplesmente um egoísta: – mas nunca, como agora na velhice, as generosidades do seu coração tinham sido tão profundas e largas. Parte do seu rendimento ia-se-lhe por entre os dedos, esparsamente, numa caridade enternecida. Cada vez amava mais o que é pobre e o que é fraco. Em Santa Olávia, as crianças corriam para ele, dos portais, sentindo-o acariciador e paciente. Tudo o que vive lhe merecia amor: – e era dos que não pisam um formigueiro, e se compadece da sede de uma planta.

    Vilaça costumava dizer que lhe lembrava sempre o que se conta dos patriarcas, quando o vinha encontrar ao canto da chaminé, na sua coçada quinzena de veludilho, sereno, risonho, com um livro na mão, o seu velho gato aos pés. Este pesado e enorme angorá, branco com malhas louras, era agora (desde a morte de Tobias, o soberbo cão de S. Bernardo) o fiel companheiro de Afonso. Tinha nascido em Santa Olávia, e recebera então o nome de Bonifácio: depois, ao chegar à idade do amor e da caça fora-lhe dado o apelido mais cavalheiresco de D. Bonifácio de Calatrava: agora, dorminhoco e obeso, entrara definitivamente no remanso das dignidades eclesiásticas, e era o Reverendo Bonifácio...

    Esta existência nem sempre assim correra com a tranquilidade larga e clara de um belo rio de Verão. O antepassado, cujos olhos se enchiam agora de uma luz de ternura diante das suas rosas, e que ao canto do lume relia com gosto o seu Guizot, fora, na opinião de seu pai, algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rousseau, Volney, Helvetius e a Enciclopédia; em atirar foguetes de lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao Supremo Arquitecto do Universo. Isto, porém, bastara para indignar o pai. Caetano da Maia era um português antigo e fiel que se benzia ao nome de Robespierre, e que, na sua apatia de fidalgo beato e doente, tinha só um sentimento vivo – o horror, o ódio ao Jacobino, a quem atribuía todos os males, os da pátria e os seus, desde a perda das colónias até às crises da sua gota. Para extirpar da nação o Jacobino, dera ele o seu amor ao Sr. infante D. Miguel, Messias forte e Restaurador providencial... E ter justamente por filho um jacobino, parecia-lhe uma provação comparável só às de Job!

    Ao princípio, na esperança que o menino se emendasse, contentou-se em lhe mostrar um carão severo e chamar-lhe com sarcasmo – cidadão! Mas quando soube que seu filho, o seu herdeiro, se misturara à turba que, numa noite de festa cívica e de luminárias, tinha apedrejado as vidraças apagadas do Sr. Legado de Áustria, enviado da Santa Aliança – considerou o rapaz um Marat e toda a sua cólera rompeu. A gota cruel, cravando-o na poltrona, não lhe deixou espancar o mação, com a sua bengala da Índia, à lei de bom pai português: mas decidiu expulsá-lo de sua casa, sem mesada e sem bênção, renegado como um bastardo! Que aquele pedreiro-livre não podia ser do seu sangue!

    As lágrimas da mamã amoleceram-no; sobretudo as razões de uma cunhada de sua mulher, que vivia com eles em Benfica, senhora irlandesa de alta instrução, Minerva respeitada e tutelar, que ensinara inglês ao menino e o adorava como um bebé. Caetano da Maia limitou-se a desterrar o filho para a quinta de Santa Olávia; mas não cessou de chorar no seio dos padres, que vinham a Benfica, a desgraça da sua casa. E esses santos lá o consolavam, afirmando-lhe que Deus, o velho Deus de Ourique, não permitiria jamais que um Maia pactuasse com Belzebu e com a Revolução! E, à falta de Deus Padre, lá estava Nossa Senhora da Soledade, padroeira da casa e madrinha do menino, para fazer o bom milagre.

    E o milagre fez-se. Meses depois, o jacobino, o Marat, voltava de Santa Olávia um pouco contrito, enfastiado sobretudo daquela solidão, onde os chás do brigadeiro Sena eram ainda mais tristes que o terço das primas Cunhas. Vinha pedir ao pai a bênção, e alguns mil cruzados, para ir a Inglaterra, esse país de vivos prados e de cabelos de ouro de que lhe falara tanto a tia Fanny. O pai beijou-o, todo em lágrimas, acedeu a tudo fervorosamente, vendo ali a evidente, a gloriosa intercessão de Nossa Senhora da Soledade! E o mesmo Frei Jerónimo da Conceição, seu confessor, declarou este milagre – não inferior ao de Carnaxide.

    Afonso partiu. Era na Primavera – e a Inglaterra toda verde, os seus parques de luxo, os copiosos confortos, a harmonia penetrante dos seus nobres costumes, aquela raça tão séria e tão forte – encantaram-no. Bem depressa esqueceu o seu ódio aos sorumbáticos padres da Congregação, as horas ardentes passadas no café dos Romulares a recitar Mirabeau, e a República que quisera fundar, clássica e voltairiana, com um triunvirato de Cipiões e festas ao Ente Supremo. Durante os dias da Abrilada estava ele nas corridas de Epsom, no alto de uma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurras medonhos – bem indiferente aos seus irmãos de Maçonaria, que a essas horas o Sr. infante espicaçava a chuço, pelas vielas do Bairro Alto, no seu rijo cavalo de Alter.

    Seu pai morreu de súbito, ele teve de regressar a Lisboa. Foi então que conheceu D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa, uma linda morena, mimosa e um pouco adoentada. Ao fim do luto casou com ela. Teve um filho, desejou outros; e começou logo, com belas ideias de patriarca moço, a fazer obras no palacete de Benfica, a plantar em redor arvoredos, preparando tectos e sombras à descendência amada que lhe encantaria a velhice.

    Mas não esquecia a Inglaterra: – e tornava-lha mais apetecida essa Lisboa miguelista que ele via, desordenada como uma Tunes barbaresca; essa rude conjuração apostólica de frades e boleeiros, atroando tavernas e capelas; essa plebe beata, suja e feroz, rolando do lausperene para o curro, e ansiando tumultuosamente pelo príncipe que lhe encarnava tão bem os vícios e as paixões...

    Este espectáculo indignava Afonso da Maia; e muitas vezes, na paz do serão, entre amigos, com o pequeno nos joelhos, exprimiu a indignação da sua alma honesta. Já não exigia decerto, como em rapaz, uma Lisboa de Catões e de Múcios Cévolas. Já admitia mesmo o esforço de uma nobreza para manter o seu privilégio histórico; mas então queria uma nobreza inteligente e digna, como a aristocracia tory (que o seu amor pela Inglaterra lhe fazia idealizar), dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a literatura, vivendo com fausto e falando com gosto, exemplo de ideias altas e espelho de maneiras patrícias... O que não tolerava era o mundo de Queluz, bestial e sórdido.

    Tais palavras, apenas soltas, voavam a Queluz. E quando se reuniram as cortes gerais, a polícia invadiu Benfica, «a procurar papéis e armas escondidas».

    Afonso da Maia, com o seu filho nos braços e a mulher tremendo ao lado – viu, impassivelmente e sem uma palavra, a busca, as gavetas arrombadas pela coronha das escopetas, as mãos sujas do malsim rebuscando os colchões do seu leito. O Sr. juiz de fora não descobriu nada: aceitou mesmo na copa um cálice de vinho, e confessou ao mordomo «que os tempos iam bem duros...» Desde essa manhã as janelas do palacete conservaram-se cerradas; não se abriu mais o portão nobre para sair o coche da senhora; e daí a semanas, com a mulher e com o filho, Afonso da Maia partia para Inglaterra e para o exílio.

    Aí instalou-se, com luxo, para uma longa demora, nos arredores de Londres, junto a Richmond, ao fundo de um parque, entre as suaves e calmas paisagens de Surrey.

    Os seus bens, graças ao crédito do conde de Runa, antigo mimoso de D. Carlota Joaquina, hoje conselheiro ríspido do Sr. D. Miguel, não tinham sido confiscados; e Afonso da Maia podia viver largamente.

    Ao princípio os emigrados liberais, Palmela e a gente do Belfast, ainda o vieram desassossegar e consumir. A sua alma recta não tardou a protestar vendo a separação de castas, de jerarquias, mantidas ali na terra estranha entre os vencidos da mesma ideia – os fidalgos e os desembargadores vivendo no luxo de Londres à forra, e a plebe, o exército, depois dos padecimentos da Galiza, sucumbindo agora à fome, à vérmina, à febre nos barracões de Plymouth. Teve logo conflitos com os chefes liberais; foi acusado de vintista e demagogo; descreu por fim do liberalismo. Isolou-se então – sem fechar todavia a sua bolsa, de onde saíam às cinquenta, às cem moedas... Mas quando a primeira expedição partiu, e pouco a pouco se foram vazando os depósitos de emigrados, respirou enfim – e, como ele disse, pela primeira vez lhe soube bem o ar de Inglaterra!

    Meses depois sua mãe, que ficara em Benfica, morria de uma apoplexia: e a tia Fanny veio para Richmond completar a felicidade de Afonso, com o seu claro juízo, os seus caracóis brancos, os seus modos de discreta Minerva. Ali estava ele pois no seu sonho, numa digna residência inglesa, entre árvores seculares, vendo em redor nas vastas relvas dormirem ou pastarem os gados de luxo, e sentindo em torno de si tudo são, forte, livre e sólido – como o amava o seu coração.

    Teve relações; estudou a nobre e rica literatura inglesa; interessou-se, como convinha a um fidalgo em Inglaterra, pela cultura, pela cria dos cavalos, pela prática da caridade; – e pensava com prazer em ficar ali para sempre naquela paz e naquela ordem.

    Somente Afonso sentia que sua mulher não era feliz. Pensativa e triste, tossia sempre pelas salas. À noite sentava-se ao fogão, suspirava e ficava calada...

    Pobre senhora! A nostalgia do país, da parentela, das igrejas, ia-a minando. Verdadeira lisboeta, pequenina e trigueira, sem se queixar e sorrindo palidamente, tinha vivido desde que chegara num ódio surdo àquela terra de hereges e ao seu idioma bárbaro: sempre arrepiada, abafada em peles, olhando com pavor os céus fuscos ou a neve nas árvores, o seu coração não estivera nunca ali, mas longe, em Lisboa, nos adros, nos bairros batidos do sol. A sua devoção (a devoção dos Runas!) sempre grande, exaltara-se, exacerbara-se àquela hostilidade ambiente que ela sentia em redor contra os «papistas». E só se satisfazia à noite, indo refugiar-se no sótão com as criadas portuguesas, para rezar o terço agachada numa esteira – gozando ali, nesse murmúrio de ave-marias em país protestante, o encanto de uma conjuração católica!

    Odiando tudo o que era inglês, não consentira que seu filho, o Pedrinho, fosse estudar ao colégio de Richmond. Debalde Afonso lhe provou que era um colégio católico. Não queria: aquele catolicismo sem romarias, sem fogueiras pelo S. João, sem imagens do Senhor dos Passos, sem frades nas ruas – não lhe parecia a religião. A alma do seu Pedrinho não abandonaria ela à heresia; – e para o educar mandou vir de Lisboa o padre Vasques, capelão do Conde de Runa.

    O Vasques ensinava-lhe as declinações latinas, sobretudo a cartilha: e a face de Afonso da Maia cobria-se de tristeza, quando ao voltar de alguma caçada ou das ruas de Londres, de entre o forte rumor da vida livre – ouvia no quarto dos estudos a voz dormente do reverendo, perguntando como do fundo de uma treva:

    – Quantos são os inimigos da alma?

    E o pequeno, mais dormente, lá ia murmurando:

    – Três. Mundo, Diabo e Carne...

    Pobre Pedrinho! Inimigo da sua alma só havia ali o reverendo Vasques, obeso e sórdido, arrotando do fundo da sua poltrona, com o lenço do rapé sobre o joelho...

    Às vezes Afonso, indignado, vinha ao quarto, interrompia a doutrina, agarrava a mão do Pedrinho – para o levar, correr com ele sob as árvores do Tamisa, dissipar-lhe na grande luz do rio o pesadume crasso da cartilha. Mas a mamã acudia de dentro, em terror, a abafá-lo numa grande manta: depois lá fora o menino, acostumado ao colo das criadas e aos recantos estofados, tinha medo do vento e das árvores: e pouco a pouco, num passo desconsolado, os dois iam pisando em silêncio as folhas secas – o filho todo acobardado das sombras do bosque vivo, o pai vergando os ombros, pensativo, triste daquela fraqueza do filho...

    Mas o menor esforço dele para arrancar o rapaz àqueles braços de mãe que o amoleciam, àquela cartilha mortal do padre Vasques – trazia logo à delicada senhora acessos de febre. E Afonso não se atrevia já a contrariar a pobre doente, tão virtuosa, e que o amava tanto! Ia então lamentar-se para o pé da tia Fanny: a sábia irlandesa metia os óculos entre as folhas do seu livro, tratado de Addison ou poema de Pope, e encolhia melancolicamente os ombros. Que podia ela fazer!...

    Por fim a tosse de Maria Eduarda foi aumentando – como a tristeza das suas palavras. Já falava da «sua ambição derradeira», que era ver o sol uma vez mais! Porque não voltariam a Benfica, ao seu lar, agora que o Sr. Infante estava também desterrado e que havia uma grande paz? Mas a isso Afonso não cedeu: não queria ver outra vez as suas gavetas arrombadas a coronhadas – e os soldados do Sr. D. Pedro não lhe davam mais garantias que os malsins do Sr. D. Miguel.

    Por esse tempo veio um grave desgosto à casa: a tia Fanny morreu, de uma pneumonia, nos frios de Março; e isto enegreceu mais a melancolia de Maria Eduarda, que a amava muito também – por ser irlandesa e católica.

    Para a distrair, Afonso levou-a para a Itália, para uma deliciosa villa ao pé de Roma. Aí não lhe faltava o sol: tinha-o pontual e generoso todas as manhãs, banhando largamente os terraços, dourando loureirais e mirtos. E depois, lá em baixo, entre mármores, estava a coisa preciosa e santa, o Papa!

    Mas a triste senhora continuava a choramigar. O que realmente apetecia era Lisboa, as suas novenas, os santos devotos do seu bairro, as procissões passando num rumor de pachorrenta penitência por tardes de sol e de poeira...

    Foi necessário calmá-la, voltar a Benfica.

    Aí começou uma vida desconsolada. Maria Eduarda definhava lentamente, todos os dias mais pálida, levando semanas imóvel sobre um canapé, com as mãos transparentes cruzadas sobre as suas grossas peles de Inglaterra. O padre Vasques, apoderando-se daquela alma aterrada para quem Deus era um amo feroz, tornara-se o grande homem da casa. De resto Afonso encontrava a cada momento pelos corredores outras figuras canónicas, de capote e solidéu, em que reconhecia antigos franciscanos, ou algum magro capuchinho parasitando no bairro; a casa tinha um bafio de sacristia; e dos quartos da senhora vinha constantemente, dolente e vago, um rumor de ladainha.

    Todos aqueles santos varões comiam, bebiam o seu vinho do Porto na copa. As contas do administrador apareciam sobrecarregadas com as mesadas piedosas que dava a senhora: um Frei Patrício surripiara-lhe duzentas missas de cruzado por alma do Sr. D. José I...

    Esta carolice que o cercava ia lançando Afonso num ateísmo rancoroso: quereria as igrejas fechadas como os mosteiros, as imagens escavacadas a machado, uma matança de reverendos... Quando sentia na casa a voz de rezas, fugia, ia para o fundo da quinta, sob as trepadeiras do mirante, ler o seu Voltaire: ou então partia a desabafar com o seu velho amigo, o coronel Sequeira, que vivia numa quinta a Queluz.

    O Pedrinho no entanto estava quase um homem. Ficara pequenino e nervoso como Maria Eduarda, tendo pouco da raça, da força dos Maias; a sua linda face oval de um trigueiro cálido, dois olhos maravilhosos e irresistíveis, prontos sempre a humedecer-se, faziam-no assemelhar a um belo árabe. Desenvolvera-se lentamente, sem curiosidades, indiferente a brinquedos, a animais, a flores, a livros. Nenhum desejo forte parecera jamais vibrar naquela alma meia adormecida e passiva: só às vezes dizia que gostaria muito de voltar para a Itália. Tomara birra ao Padre Vasques, mas não ousava desobedecer-lhe. Era em tudo um fraco; e esse abatimento contínuo de todo o seu ser resolvia-se a espaços em crises de melancolia negra, que o traziam dias e dias mudo, murcho, amarelo, com as olheiras fundas e já velho. O seu único sentimento vivo, intenso, até aí, fora a paixão pela mãe.

    Afonso quisera-o mandar para Coimbra. Mas, à ideia de se separar do seu Pedro, a pobre senhora caíra de joelhos diante de Afonso, balbuciando e tremendo: e ele, naturalmente, lá cedeu perante essas mãos suplicantes, essas lágrimas que caíam quatro a quatro pela pobre face de cera. O menino continuou em Benfica dando os seus lentos passeios a cavalo, de criado de farda atrás, começando já a ir beber a sua genebra aos botequins de Lisboa... Depois foi despontando naquela organização uma grande tendência amorosa: aos dezanove anos teve o seu bastardozinho.

    Afonso da Maia consolava-se pensando que, apesar de tão desgraçados mimos, não faltavam ao rapaz qualidades: era muito esperto, são, e, como todos os Maias, valente: não havia muito que ele só, com um chicote, dispersara na estrada três saloios de varapau que lhe tinham chamado palmito.

    Quando a mãe morreu, numa agonia terrível de devota, debatendo-se dias nos pavores do inferno, Pedro teve na sua dor os arrebatamentos de uma loucura. Fizera a promessa histérica, se ela escapasse, de dormir durante um ano sobre as lájeas do pátio: e levado o caixão, saídos os padres, caiu numa angústia soturna, obtusa, sem lágrimas, de que não queria emergir, estirado de bruços sobre a cama numa obstinação de penitente. Muitos meses ainda não o deixou uma tristeza vaga: e Afonso da Maia já se desesperava de ver aquele rapaz, seu filho e seu herdeiro, sair todos os dias a passos de monge, lúgubre no seu luto pesado, para ir visitar a sepultura da mamã...

    Esta dor exagerada e mórbida cessou por fim; e sucedeu-lhe, quase sem transição, um período de vida dissipada e turbulenta, estroinice banal, em que Pedro, levado por um romantismo torpe, procurava afogar em lupanares e botequins as saudades da mamã. Mas essa exuberância ansiosa que se desencadeara tão subitamente, tão tumultuosamente, na sua natureza desequilibrada, gastou-se depressa também.

    Ao fim de um ano de distúrbios no Marrare, de façanhas nas esperas de touros, de cavalos esfalfados, de pateadas em S. Carlos, começaram a reaparecer as antigas crises de melancolia nervosa; voltavam esses dias taciturnos, longos como desertos, passados em casa a bocejar pelas salas, ou sob alguma árvore da quinta todo estirado de bruços, como despenhado num fundo de amargura. Nesses períodos tornava-se também devoto: lia Vidas de Santos, visitava o lausperene: eram desses bruscos abatimentos de alma que outrora levavam os fracos aos mosteiros.

    Isto penalizava Afonso da Maia: preferia saber que ele recolhera de Lisboa, de madrugada, exausto e bêbedo – do que vê-lo, de ripanço debaixo do braço, com um ar velho, marchando para a Igreja de Benfica.

    E havia agora uma ideia que, a seu pesar, às vezes o torturava: descobrira a grande parecença de Pedro com um avô de sua mulher, um Runa, de quem existia um retrato em Benfica: este homem extraordinário, com que na casa se metia medo às crianças, enlouquecera – e julgando-se Judas enforcara-se numa figueira...

    Mas um dia, excessos e crises findaram. Pedro da Maia amava! Era um amor à Romeu, vindo de repente numa troca de olhares fatal e deslumbradora, uma dessas paixões que assaltam uma existência, a assolam como um furacão, arrancando a vontade, a razão, os respeitos humanos e empurrando-os de roldão aos abismos.

    Numa tarde, estando no Marrare, vira parar defronte, à porta de M.me Levaillant, uma caleche azul onde vinha um velho de chapéu branco, e uma senhora loira, embrulhada num xale de caxemira.

    O velho, baixote e reforçado, de barba muito grisalha talhada por baixo do queixo, uma face tisnada de antigo embarcadiço e o ar goche, desceu todo encostado ao trintanário como se um reumatismo o tolhesse, entrou arrastando a perna o portal da modista; e ela voltando devagar a cabeça olhou um momento o Marrare.

    Sob as rosinhas que ornavam o seu chapéu preto os cabelos loiros, de um oiro fulvo, ondeavam de leve sobre a testa curta e clássica: os olhos maravilhosos iluminavam-na toda; a friagem fazia-lhe mais pálida a carnação de mármore: e com o seu perfil grave de estátua, o modelado nobre dos ombros e dos braços que o xale cingia – pareceu a Pedro nesses instantes alguma coisa de imortal e superior à Terra.

    Não a conhecia. Mas um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado à outra ombreira, numa pose de tédio – vendo o violento interesse de Pedro, o olhar aceso e perturbado com que seguia a caleche trotando Chiado acima, veio tomar-lhe o braço, murmurou-lhe junto à face, na sua voz grossa e lenta:

    – Queres que te diga o nome, meu Pedro? O nome, as origens, as datas e os feitos principais? E pagas ao teu amigo Alencar, ao teu sequioso Alencar, uma garrafa de champanhe?

    Veio o champanhe. E o Alencar, depois de passar os dedos magros pelos anéis da cabeleira e pelas pontas do bigode, começou, todo recostado e dando um puxão aos punhos:

    – Por uma dourada tarde de Outono...

    – André – gritou Pedro ao criado, martelando o mármore da mesa –, retira o champanhe!

    O Alencar bradou, imitando o actor Epifânio:

    – O quê! Sem saciar a avidez de meu lábio?...

    Pois bem, o champanhe ficaria: mas o amigo Alencar, esquecendo que era o poeta das Vozes de Aurora, explicaria aquela gente da caleche azul numa linguagem cristã e prática!...

    – Aí vai, meu Pedro, aí vai!

    Havia dois anos, justamente quando Pedro perdera a mamã, aquele velho, o papá Monforte, uma manhã rompera subitamente pelas ruas e pela sociedade de Lisboa naquela mesma caleche com essa bela filha ao seu lado. Ninguém os conhecia. Tinham alugado a Arroios um primeiro andar no palacete dos Vargas; e a rapariga principiou a aparecer em S. Carlos, fazendo uma impressão – uma impressão de causar aneurismas, dizia o Alencar! Quando ela atravessava o salão os ombros vergavam-se no deslumbramento de auréola que vinha daquela magnífica criatura, arrastando com um passo de deusa a sua cauda de corte, sempre decotada como em noites de gala, e apesar de solteira resplandecente de jóias. O papá nunca lhe dava o braço: seguia atrás, entalado numa grande gravata branca de mordomo, parecendo mais tisnado e mais embarcadiço na claridade loira que saía da filha, encolhido e quase apavorado, trazendo nas mãos o óculo, o libreto, um saco de bombons, o leque e o seu próprio guarda-chuva. Mas era no camarote, quando a luz caía sobre o seu colo ebúrneo e as suas tranças de oiro, que ela oferecia verdadeiramente a encarnação de um ideal da Renascença, um modelo de Ticiano... Ele, Alencar, na primeira noite em que a vira, exclamara, mostrando-a a ela e às outras, às trigueirotas da assinatura:

    – Rapazes! É como um ducado de ouro novo entre velhos patacos do tempo do Sr. D. João VI!

    O Magalhães, esse torpe pirata, pusera o dito num folhetim do Português. Mas o dito era dele, Alencar!

    Os rapazes, naturalmente, começaram logo a rondar o palacete de Arroios. Mas nunca naquela casa se abria uma janela. Os criados interrogados disseram apenas que a menina se chamava Maria, e que o senhor se chamava Manuel. Enfim uma criada, amaciada com seis pintos, soltou mais: o homem era taciturno, tremia diante da filha, e dormia numa rede; a senhora, essa, vivia num ninho de sedas todo azul-ferrete, e passava o seu dia a ler novelas. Isto não podia satisfazer a sofreguidão de Lisboa. Fez-se uma devassa metódica, hábil, paciente... Ele, Alencar, pertencera à devassa.

    E souberam-se horrores. O papá Monforte era dos Açores; muito moço, uma facada numa rixa, um cadáver a uma esquina tinham-no forçado a fugir a bordo de um brigue americano. Tempos depois um certo Silva, procurador da casa de Taveira, que o conhecera nos Açores, estando na Havana a estudar a cultura do tabaco que os Taveiras queriam implantar nas Ilhas encontrara lá o Monforte (que verdadeiramente se chamava Forte) rondando pelo cais, de chinelas de esparto, à procura de embarque para a Nova Orleães. Aqui havia uma treva na história do Monforte. Parece que servira algum tempo de feitor numa plantação da Virgínia... Enfim, quando reapareceu à face dos céus comandava o brigue Nova Linda, e levava cargas de pretos para o Brasil, para a Havana e para a Nova Orleães.

    Escapara aos cruzeiros ingleses, arrancara uma fortuna da pele do africano, e agora rico, homem de bem, proprietário, ia ouvir a Corelli a S. Carlos. Todavia esta terrível crónica, como dizia o Alencar, obscura e mal provada, claudicava aqui e além...

    – E a filha? – perguntou Pedro, que o escutara, sério e pálido.

    Mas isso não o sabia o amigo Alencar. Onde a arranjara assim tão loira e bela? Quem fora a mamã? Onde estava? Quem a ensinara a embrulhar-se com aquele gesto real no seu xale de caxemira?...

    – Isso, meu Pedro, são

    mistérios que jamais pôde Lisboa

    astuta devassar e só Deus sabe!

    Em todo o caso quando Lisboa descobriu aquela legenda de sangue e negros, o entusiasmo pela Monforte calmou. Que diabo! Juno tinha sangue de assassino, a beltà do Ticiano era filha de negreiro! As senhoras, deliciando-se em vilipendiar uma mulher tão loira, tão linda e com tantas jóias, chamaram-lhe logo a negreira! Quando ela aparecia agora no teatro, D. Maria da Gama afectava esconder a face detrás do leque, porque lhe parecia ver na rapariga (sobretudo quando ela usava os seus belos rubis) o sangue das facadas que dera o papazinho! E tinham-na caluniado abominavelmente. Assim, depois de passarem em Lisboa o primeiro Inverno, os Monfortes sumiram-se: pois disse-se logo, com furor, que estavam arruinados, que a polícia perseguia o velho, mil perversidades... O excelente Monforte, que sofre de reumatismos articulares, achava-se tranquilamente, ricamente, tomando as águas dos Pirenéus... Fora lá que o Mello os conhecera...

    – Ah! O Mello conhece-os? – exclamou Pedro.

    – Sim, meu Pedro, o Melo os conhece.

    Pedro daí a um momento deixou o Marrare; e nessa noite, antes de recolher, apesar da chuva fria e miúda, andou rondando uma hora, com a imaginação toda acesa, o palacete dos Vargas, apagado e mudo. Depois, daí a duas semanas o Alencar, entrando em S. Carlos ao fim do primeiro acto do Barbeiro, ficou assombrado ao ver Pedro da Maia instalado na frisa da Monforte, à frente, ao lado de Maria, com uma camélia escarlate na casaca – igual às de um ramo pousado no rebordo de veludo.

    Nunca Maria Monforte aparecera mais bela: tinha uma dessas toilettes excessivas e teatrais que ofendiam Lisboa, e faziam dizer às senhoras que ela se vestia «como uma cómica». Estava de seda cor de trigo, com duas rosas amarelas e uma espiga nas tranças, opalas sobre o colo e nos braços; e estes tons de seara madura batida do sol, fundindo-se com o ouro dos cabelos, iluminando-lhe a carnação ebúrnea, banhando as suas formas de estátua, davam-lhe o esplendor de uma Ceres. Ao fundo entreviam-se os grandes bigodes loiros do Mello, que conversava de pé com o papá Monforte – escondido como sempre no canto negro da frisa.

    O Alencar foi observar «o caso» do camarote dos Gamas. Pedro voltara à sua cadeira, e de braços cruzados contemplava Maria. Ela conservou algum tempo a sua atitude de deusa insensível; mas, depois, no dueto de Rosina e Lindor, duas vezes os seus olhos azuis e profundos se fixaram nele, gravemente e muito tempo. O Alencar correu ao Marrare, de braços ao ar, a berrar a novidade.

    Não tardou de resto a falar-se em toda a Lisboa da paixão de Pedro da Maia pela negreira. Ele também namorou-a publicamente, à antiga, plantado a uma esquina, defronte do palacete dos Vargas, com os olhos cravados na janela dela, imóvel e pálido de êxtase.

    Escrevia-lhe todos os dias duas cartas em seis folhas de papel – poemas desordenados que ia compor para o Marrare: e ninguém lá ignorava o destino daquelas páginas de linhas encruzadas que se acumulavam diante dele sobre o tabuleiro da genebra. Se algum amigo vinha à porta do café perguntar por Pedro da Maia, os criados já respondiam muito naturalmente:

    – O Sr. D. Pedro? Está a escrever à menina.

    E ele mesmo, se o amigo se acercava, estendia-lhe a mão, exclamava radiante, com o seu belo e franco sorriso:

    – Espera aí um bocado, rapaz, estou a escrever à Maria!

    Os velhos amigos de Afonso da Maia que vinham fazer o seu whist a Benfica, sobretudo o Vilaça, o administrador dos Maias, muito zeloso da dignidade da casa, não tardaram em lhe trazer a nova daqueles amores do Pedrinho. Afonso já os suspeitava: via todos os dias um criado da quinta partir com um grande ramo das melhores camélias do jardim; todas as manhãs cedo encontrava no corredor o escudeiro, dirigindo-se ao quarto do menino, a cheirar regaladamente o perfume de um envelope com sinete de lacre dourado; – e não lhe desagradava que um sentimento qualquer, humano e forte, lhe fosse arrancando o filho à estroinice bulhenta, ao jogo, às melancolias sem razão em que reaparecia o negro ripanço...

    Mas ignorava o nome, a existência sequer dos Monfortes; e as particularidades que os amigos lhe revelaram, aquela facada nos Açores, o chicote de feitor na Virgínia, o brigue Nova Linda, toda a sinistra legenda do velho contrariou muito Afonso da Maia.

    Uma noite que o coronel Sequeira, à mesa do whist, contava que vira Maria Monforte e Pedro passeando a cavalo, «ambos muito bem e muito distingués», Afonso, depois de um silêncio, disse com um ar enfastiado:

    – Enfim, todos os rapazes têm as suas amantes... Os costumes são assim, a vida é assim, e seria absurdo querer reprimir tais coisas. Mas essa mulher, com um pai desses, mesmo para amante acho má.

    O Vilaça suspendeu o baralhar das cartas, e ajeitando os óculos de ouro exclamou com espanto:

    – Amante! Mas a rapariga é solteira, meu senhor, é uma menina honesta!...

    Afonso da Maia enchia o seu cachimbo; as mãos começaram a tremer-lhe; e voltando-se para o administrador, numa voz que tremia um pouco também:

    – O Vilaça decerto não supõe que meu filho queira casar com essa criatura...

    O outro emudeceu. E foi o Sequeira que murmurou:

    – Isso não, está claro que não...

    E o jogo continuou algum tempo em silêncio.

    Mas Afonso da Maia principiou a andar descontente. Passavam-se semanas que Pedro não jantava em Benfica. De manhã, se o via, era um momento, quando ele descia ao almoço, já com uma luva calçada, apressado e radiante, gritando para dentro se estava selado o cavalo; depois, mesmo de pé, bebia um gole de chá, perguntava a correr «se o papá queria alguma coisas», dava um jeito ao bigode diante do grande espelho de Veneza sobre o fogão, e lá partia, enlevado. Outras vezes todo o dia não saía do quarto: a tarde descia, acendiam-se as luzes; até que o pai, inquieto, subia, ia encontrá-lo estirado sobre o leito, com a cabeça enterrada nos braços.

    – Que tens tu? – perguntava-lhe.

    – Enxaqueca – respondia num tom surdo e rouco.

    E Afonso descia indignado, vendo em toda aquela angústia covarde alguma carta que não viera, ou talvez uma rosa oferecida que não fora posta nos cabelos...

    Depois, por vezes, entre dois robbers ou conversando em volta da bandeja do chá, os seus amigos tinham observações que o inquietavam, partindo daqueles homens que habitavam Lisboa, lhe conheciam os rumores – enquanto ele passava ali, Inverno e Verão, entre os seus livros e as suas rosas. Era o excelente Sequeira que perguntava porque não faria Pedro uma viagem longa, para se instruir, à Alemanha, ao Oriente? Ou o velho Luís Runa, o primo de Afonso, que, a propósito de coisas indiferentes, rompia lamentando os tempos em que o intendente da polícia podia livremente expulsar de Lisboa as pessoas importunas... Evidentemente aludiam à Monforte, evidentemente julgavam-na perigosa.

    No Verão, Pedro partiu para Sintra; Afonso soube que os Monfortes tinham lá alugado uma casa. Dias depois o Vilaça apareceu em Benfica, muito preocupado: na véspera Pedro visitara-o no cartório, pedira-lhe informações sobre as suas propriedades, sobre o meio de levantar dinheiro. Ele lá lhe dissera que em Setembro, chegando à sua maioridade, tinha a legítima da mamã...

    – Mas não gostei disto, meu senhor, não gostei disto...

    – E porquê, Vilaça? O rapaz quererá dinheiro, quererá dar presentes à criatura... O amor é um luxo caro, Vilaça.

    – Deus queira que seja isso, meu senhor, Deus o ouça!

    E aquela confiança tão nobre de Afonso da Maia no orgulho patrício, nos brios de raça de seu filho, chegava a tranquilizar Vilaça.

    Daí a dias, Afonso da Maia viu enfim Maria Monforte. Tinha jantado na quinta do Sequeira ao pé de Queluz, e tomavam ambos o seu café no mirante, quando entrou pelo caminho estreito que seguia o muro a caleche azul com os cavalos cobertos de redes. Maria, abrigada sob uma sombrinha escarlate, trazia um vestido cor-de-rosa cuja roda, toda em folhos, quase cobria os joelhos de Pedro, sentado ao seu lado: as fitas do seu chapéu, apertadas num grande laço que lhe enchia o peito, eram também cor-de-rosa: e a sua face, grave e pura como um mármore grego, aparecia realmente adorável, iluminada pelos olhos de um azul sombrio, entre aqueles tons rosados. No assento defronte, quase todo tomado por cartões de modista, encolhia-se o Monforte, de grande chapéu panamá, calça de ganga, o mantelete da filha no braço, o guarda-sol entre os joelhos. Iam calados, não viram o mirante; e, no caminho verde e fresco, a caleche passou com balanços lentos, sob os ramos que roçavam a sombrinha de Maria. O Sequeira ficara com a chávena de café junto aos lábios, de olho esgazeado, murmurando:

    – Caramba! É bonita!

    Afonso não respondeu: olhava cabisbaixo aquela sombrinha escarlate, que agora se inclinava sobre Pedro, quase o escondia, parecia envolvê-lo todo – como uma larga mancha de sangue alastrando a caleche sob o verde triste das ramas.

    O Outono passou, chegou o Inverno, frigidíssimo. Uma manhã, Pedro entrou na livraria onde o pai estava lendo junto ao fogão; recebeu-lhe a bênção, passou um momento os olhos por um jornal aberto, e voltando-se bruscamente para ele:

    – Meu pai – disse, esforçando-se por ser claro e decidido –, venho pedir-lhe licença para casar com uma senhora que se chama Maria Monforte.

    Afonso pousou o livro aberto sobre os joelhos, e numa voz grave e lenta:

    – Não me tinhas falado disso... Creio que é a filha de um assassino, de um negreiro, a quem chamam também a negreira...

    – Meu pai!...

    Afonso ergueu-se diante dele, rígido e inexorável como a encarnação mesma da honra doméstica.

    – Que tens a dizer-me mais? Fazes-me corar de vergonha.

    Pedro, mais branco que o lenço que tinha na mão, exclamou todo a tremer, quase em soluços:

    – Pois pode estar certo, meu pai, que hei-de casar!

    Saiu, atirando furiosamente com a porta. No corredor gritou pelo escudeiro, muito alto para que o pai ouvisse, e deu-lhe ordem para levar as suas malas ao Hotel da Europa.

    Dois dias depois Vilaça entrou em Benfica, com as lágrimas nos olhos, contando que o menino casara nessa madrugada – e segundo lhe dissera o Sérgio, procurador do Monforte, ia partir com a noiva para a Itália.

    Afonso da Maia sentara-se nesse instante à mesa do almoço, posta ao pé do fogão: ao centro, um ramo esfolhava-se num vaso do Japão, à chama forte da lenha: e junto ao talher de Pedro estava o número da Grinalda, jornal de versos que ele costumava receber... Afonso ouviu o procurador, grave e mudo, continuando a desdobrar lentamente o seu guardanapo.

    – Já almoçou, Vilaça?

    O procurador, assombrado daquela serenidade, balbuciou:

    – Já almocei, meu senhor...

    Então Afonso, apontando para o talher de Pedro, disse ao escudeiro:

    – Pode tirar dali esse talher, Teixeira. Daqui por diante há só um talher à mesa... Sente-se, Vilaça, sente-se.

    O Teixeira, ainda novo na casa, levantou com indiferença o talher do menino. Vilaça sentara-se. Tudo em redor era correcto e calmo como nas outras manhãs em que almoçara em Benfica. Os passos do escudeiro não faziam ruído no tapete fofo; o lume estalava alegremente, pondo retoques de ouro nas pratas polidas; o sol discreto que brilhava fora no azul de Inverno fazia cintilar cristais de geada nas ramas secas; e à janela o papagaio, muito patuleia e educado por Pedro, rosnava injúrias aos Cabrais.

    Por fim Afonso ergueu-se; esteve olhando abstraidamente a quinta, os pavões no terraço; depois ao sair da sala tomou o braço de Vilaça, apoiou-se nele com força, como se lhe tivesse chegado a primeira tremura da velhice, e no seu abandono sentisse ali uma amizade segura. Seguiram o corredor, calados. Na livraria Afonso foi ocupar a sua poltrona ao pé da janela, começou a encher devagar o seu cachimbo. Vilaça, de cabeça baixa, passeava ao comprido das altas estantes, nas pontas dos pés, como no quarto de um doente. Um bando de pardais veio gralhar um momento nos ramos de uma alta árvore que roçava a varanda. Depois houve um silêncio, e Afonso da Maia disse:

    – Então, Vilaça, o Saldanha lá foi demitido do Paço?...

    O outro respondeu, vaga e maquinalmente:

    – É verdade, meu senhor, é verdade...

    E não se falou mais de Pedro da Maia.

    Capítulo II

    Pedro e Maria, no entanto, numa felicidade de novela, iam descendo a Itália, a pequenas jornadas, de cidade em cidade, nessa via sagrada que vai desde as flores e das messes da planície lombarda até ao mole país de romanza, Nápoles, branca sob o azul. Era lá que tencionavam passar o Inverno, nesse ar sempre tépido junto a um mar sempre manso, onde as preguiças de noivado têm uma suavidade mais longa... Mas um dia, em Roma, Maria sentiu o apetite de Paris. Parecia-lhe fatigante o viajar assim, aos balouços das caleças, só para ir ver lazzaroni engolir fios de macarrão. Quanto melhor seria habitar um ninho acolchoado nos Campos Elísios, e gozarem ali um lindo Inverno de amor! Paris estava seguro, agora, com o príncipe Luís Napoleão... Além disso, aquela velha Itália clássica enfastiava-a já: tantos mármores eternos, tantas madonas começavam (como ela dizia pendurada languidamente do pescoço de Pedro) a dar tonturas à sua pobre cabeça! Suspirava por uma boa loja de modas, sob as chamas do gás, ao rumor do boulevard... Depois tinha medo da Itália onde todo mundo conspirava.

    Foram para França.

    Mas por fim aquele Paris ainda agitado, onde parecia restar um vago cheiro de pólvora pelas ruas, onde cada face conservava um calor de batalha, desagradou a Maria. De noite acordava com a Marselhesa; achava um ar feroz à polícia; tudo permanecia triste; e as duquesas, pobres anjos, ainda não ousavam vir ao Bois, com medo dos operários, corja insaciável! Enfim demoraram-se lá até a Primavera, no ninho que ela sonhara, todo de veludo azul, abrindo sobre os Campos Elísios.

    Depois principiou a falar-se de novo em revolução, em golpe de Estado. A admiração absurda de Maria pelos novos uniformes da garde-mobile fazia Pedro nervoso. E quando ela apareceu grávida, ansiou por a tirar daquele Paris batalhador e fascinante, vir abrigá-la na pacata Lisboa adormecida ao sol.

    Antes de partir, porém, escreveu ao pai.

    Fora um conselho, quase uma exigência de Maria. A recusa de Afonso da Maia ao princípio desesperara-a. Não a afligia a desunião doméstica: mas aquele não afrontoso de fidalgo puritano marcara muito publicamente, muito brutalmente, a sua origem suspeita! Odiou o velho: e tinha apressado o casamento, aquela partida triunfante para Itália, para lhe mostrar bem que nada valiam genealogias, avós godos, brios de família – diante dos seus braços nus... Agora, porém, que ia voltar a Lisboa, dar soirées, criar corte, a reconciliação tornava-se indispensável: aquele pai retirado em Benfica, com o rígido orgulho de outras idades, faria lembrar constantemente, mesmo entre os seus espelhos e os seus estofos, o brigue Nova Linda carregado de negros... E queria mostrar-se a Lisboa pelo braço desse sogro tão nobre e tão ornamental, com as suas barbas de vizo-rei.

    – Dize-lhe que já o adoro – murmurava ela curvada sobre a escrivaninha acariciando os cabelos de Pedro. – Dize-lhe que se tiver um pequeno lhe hei-de pôr o nome dele... Escreve-lhe uma carta bonita, hein!

    E foi bonita, foi terna a carta de Pedro ao papá. O pobre rapaz amava-o. Falou-lhe comovido da esperança de ter

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