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Cantiga Ao Desafio e Estetização Da Fala Natureza, Modalidades, Funções

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CANTIGA AO DESAFIO E ESTETIZAO DA FALA: NATUREZA, MODALIDADES, FUNES

CARLOS NOGUEIRA

RESUMO

Prope-se neste artigo uma teoria da cantiga ao desafio portuguesa quer no plano individual, enquanto acto criativo pessoal, quer no plano comunitrio, equacionando o fenmeno como processo sociocultural. A interdisciplinaridade multivectorial do enfoque evidencia a complexidade de uma especificidade potico-musical que no se esgota em componentes tcnico-literrias e musicais. Exerccio ldico-inventivo com muito de antropolgico e sociolgico, poesia em aco, o desafio concretiza-se como macropoema dialgico constitudo por dois poemas orais individuais que se cruzam numa alternncia de foras, tenses e distenses variveis. A dimenso textual a materialidade mais visvel de uma orgnica que obedece a leis de improvisao em que participam elementos lingustico-literrios (arte potica, gramtica, retrica, estilstica, temas e remas), mas tambm factores extratextuais com os quais os contendores interagem de forma muito estreita (a audincia e o aparato tecnolgico que envolve algumas actuaes, com vista sua mediatizao).

A complexidade e a diversidade das relaes entre tradio e criao, voz e escritura encontram-se exemplarmente actualizadas no conjunto potico cantado, recitado, improvisado, a que em Portugal se d sobretudo a designao de cantiga ou cantar ao desafio, desafio, cantiga ou cantar desgarrada, desgarrada, despique ou cante a despique. Nestes contextos de competio potica ritualizada de viva voz, antes de mais de natureza ldica ou evasiva, mas tambm pragmtica e psicanaltica 1, cada cantador aspira ser declarado vencedor, aps conseguir o agrado e os aplausos do pblico. Espaos e situaes de interaco como os largos das aldeias, as feiras, as tabernas, os cafs2, as festas e as romarias so os mais apropriados para a manifestao destas contendas, acesos espectculos ao vivo, com muito de demanda de afirmao social, capazes de atrair a ateno apaixonada de inmeros assistentes. Pierre Sanchis nota que, com diferentes exigncias formais de acordo com a regio, o tema tradicional deste duelo de cincia e de poesia era outrora a histria bblica3. A partir deste ncleo, em que os participantes demonstravam a sua competncia exegtica e histrica, assente nos conhecimentos adquiridos no antigo Ensino Primrio, passava-se quase sempre para outros temas, que diramos conformarem hoje os pontos cardinais dos bons cantadores, daqueles que so exmios 1 Sobre as funes da poesia oral, cf. o nosso artigo Funes da poesia oral, in Brigantia, vol. XIX, n.
3-4, Bragana, 1999, pp. 67-78. 2 Num artigo exemplar com o ttulo Da taberna ao caf: a casa dos homens (in AA. VV., Tradies, Lisboa, Pomo, s.d., pp. 176-181), Miguel Vale de Almeida reflecte sobre as interaces geradas nestes espaos, suas funes, continuidades e descontinuidades, em correlao com o tema da masculinidade. 3 Arraial: Festa de um Povo, 2 ed., Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1992 (1 ed., 1983), p. 162.

2 na mudana de assunto, estratgia com que conquistam ainda mais vantagem sobre o adversrio j em posio desfavorvel ou intentam recuperar algum terreno perdido para o oponente: a vida pessoal dos antagonistas, principalmente no que se relaciona com a prestao sexual de cada um, em especial quando medem ou articulam foras um elemento, que simultaneamente representante, do sexo masculino e outro do sexo feminino, a Histria de Portugal, os astros, o bem e o mal, a morte e a vida, o amor e o desamor, a riqueza e a pobreza, as profisses e os ofcios, a f e a caridade, a cidade e o campo, a biografia do cantador (ou da cantadeira) e o desafio, o pai e o filho, o empregado e o patro, o homem e a mulher. Esta ltima dicotomia constitui um operativo ensaio e um reflexo aberto do poder dos homens e do poder das mulheres na sociedade portuguesa (e Ocidental), poder de tipo econmico e social mas tambm sexual (Tu no me cantes de galo/ porque o galo sou eu;/ mulher que cante de galo/ no entra em poleiro meu4), campo em que mais facilmente a mulher consegue perturbar a contumaz dominao masculina (Tu no s homem normal,/ ouve l, Soalheira;/ se eu fosse pr cama contigo,/ podes crer, ficavas mal. // No tens jeito nem feitio,/ Domingos, pr amor;/ a nica coisa que tens/ jeito pra cantador). Embora decerto com imbatvel tendncia para o desaparecimento, ainda h encontros em que avulta a importncia da escritura, quer dizer, dos ensinamentos livrescos passveis de enquadramento nos desafios. Num interessante depoimento recolhido por Ana Paula Guimares, um cantador afirma que as cantigas valem pelo escrito, para mais frente explicar que cantar escrito cantar sobre a Histria de Portugal, as vidas de santos, lendas como a Maria da Fonte, sobre a Terra, sobre o Mar, sobre a Lua... 5. A definio temtica compete aos cantadores, antes do desafio ou, mais correntemente, logo no incio da arte dialogal que esses obreiros da fala se propem erigir, ainda que por vezes os temas sejam impostos pela comisso de festas e anunciados apenas com os intervenientes j em palco, depois de aberto um envelope. Cantar por obra, cantar com fundamento ou, no Alentejo, cantar por afundamento so apenas algumas das denominaes atribudas a esta modalidade de desafio que se constri a partir de um nico tema predefinido. Mas h tambm As Velhas da ilha Terceira, cujo travejamento consiste na ridicularizao (mesmo se com muito de afeio e compreenso) de velhos e de velhas, particularmente os que casam, herdeiros de uma antiga tradio de velhas personagens presas volpia imediata, aos amores serdios, ao culto do dinheiro e da aparncia, marcadas a cada passo, como o velho peralta dos entremezes setecentistas, pelo burlesco cmico ou tragicmico6. Apesar de alguns estudiosos considerarem que As Velhas no configuram propriamente um canto ao desafio, no h dvida de que a situao risvel desenhada por cada cantador estreita uma resposta e, mais do que isso, uma rplica que se pretende mais arrojada e original do que a do interlocutor, a quem so igualmente endereados motejos personalizados. Tambm a formalizao, a dcima, desdobrada numa sextilha e numa quadra, com rima final entre o terceiro e o sexto versos, constante e exclusiva dos Aores. A outra grande tipologia da cantiga ao desafio admite desvios mais ou menos constantes de assunto. Alberto Pimentel define imprpria e parcelarmente a cantiga ao desafio, nos mecanismos textuais que a caracterizam e nos intervenientes envolvidos. Sem chegar a dizer o que entende por improvisao, escreve: Um dos piques que mais relevo do aos
4 Os textos citados sem indicao de fonte, ouvidos a cantadores do Minho, foram recolhidos por ns nos Aores, na Ilha Terceira, entre 11 e 15 de Agosto de 2002, durante o II Encontro de Cantigas ao Desafio na Lusofonia, no qual participmos como conferencista. 5 Conversas a cantar, 4. Desafios, in Ns de Vozes. Acerca da Tradio Popular Portuguesa, Lisboa, Edies Colibri, 2000, p. 247. 6 Cf., entre muitos outros, Francisco Sabino dos Santos, Entremez Intitulado O Velho Peralta, Lisboa, Offic. de Francisco Sabino dos Santos, 1776.

2 seres o cantar ao desafio, um duello de improvisos entre uma cachopa e um moo, que teem bossa de repentistas7. Mais frente, cedendo a um explcito impressionismo sem convincente espessura analtica, discorre sobre questes formais e de contedo, de novo num tom amador muito pouco exaustivo e incorrecto. Desconhece regras to elementares como a do isossilabismo e a da estrutura dicotmica da quadra heptassilbica de p quebrado (conhecimento que deveria passar, pelo menos, por uma apreenso intuitiva), a forma preferida do desafio portugus (embora sejam tambm frequentes outras arquitecturas, em especial a quintilha, a sextilha e a oitava) 8: As trovas revelam ordinariamente espontaneidade de improvisao, mas o verso raras vezes deixa de ser defeituoso. E de quando em quando h quebra de sentido, desconnexo de pensamento. Todavia o auditorio, to ignorante como os cantadores, attende unicamente promptido da rplica9. No Brasil, a designao genrica cantoria recobre o conjunto da poesia oral cantada e improvisada segundo modalidades e regras poticas muito precisas, com uma forte participao da performance oral a interpretao / actualizao de um texto perante um pblico , que condiciona em larga medida a expresso, por fora de uma troca dinmica entre os dois cantadores e o seu pblico. Para se distinguir sem equvocos da peleja de cordel, que conforma uma representao por escrito de cantorias do passado, conservadas durante muito tempo nas memrias exercitadas dos cantadores estetas da palavra, denomina-se cantoria de repente (de improvisao), no Nordeste, com cerca de sessenta modalidades; jogar versos, no Norte de Minas, com cerca de quinze modalidades; trova ou trovar, no Rio Grande do Sul, com cerca de dez modalidades; cururu, em So Paulo, com cerca de dez modalidades; tirar versos, no Centro-Oeste, com cerca de quatro modalidades; e partido alto, no Rio de Janeiro, com cerca de trs modalidades. Na maior parte das ocorrncias, a peleja implica uma reescrita subsequente ou uma construo ao jeito da cantoria, da autoria de um cordelista (poeta que escreve histrias rimadas e metrificadas, mas no canta de improviso) ou de um repentista10 que seja simultaneamente cordelista. Mrio de Andrade chamava desafio a qualquer manifestao potica oral improvisada,
7 As Alegres Canes do Norte, edio fac-similada, Lisboa, Publicaes Dom Quixote, 1989, p. 127 (1 ed., Lisboa, Livraria Viuva Tavares Cardoso, 1905). 8 Antes de se institucionalizar o recurso a agrupamentos de cinco ou mais versos, mais consentneos com a naturalidade de um discurso oral sem restries que pretende tornar as ideias e as emoes visveis e audveis, os repentistas brasileiros tambm estruturavam as suas produes em quadras. F. Coutinho Filho nota que, at 1870, pouco mais ou menos, quando Romano da Me dgua e Incio da Catingueira viviam sua poca de ouro nos tronos da poesia sertaneja, a quadra turbilhonava na arena dos desafios memorveis, nas pelejas ainda hoje lembradas pelo povo (Violas e Repentes Repentes Populares, em Prosa e Verso. Pesquisas Folclricas no Nordeste Brasileiro , 2. edio melhorada, s. l., Editora Leitura S/A, em convnio com o Instituto Nacional do Livro (MEC), 1972, p. 48). 9 As Alegres Canes do Norte, p. 129. 10 O repentista recebe denominaes diferentes em funo dos instrumentos de que faz, ou no, uso, de requisitos de natureza formal e da no utilizao do canto: poeta cantador, quando improvisa ao som da viola (com rima correcta ou perfeita); coquista ou embolador, se improvisa ao som do pandeiro ou da ganza (atende sobretudo rima do som); aboiador, quando, sem se munir de qualquer instrumento, improvisa ao som do aboio, fazendo aboios com as vogais nos intervalos dos versos e usando as duas formas de rima; e glosador, quando improvisa sem cantar, utilizando tambm os dois tipos de rima. Comuns s vrias especificidades do repentismo so as exigncias tcnico-estilsticas e a observncia da coerncia do contedo, numa tripartio a que os repentistas no podem deixar de obedecer com rigor (a mtrica, a rima e a orao). To Azevedo, um dos mais famosos repentistas brasileiros da actualidade, caracterizou-nos assim aquele ltimo parmetro, numa conversa que desenvolvemos com ele durante o congresso Literatura de Cordel A Imprensa do Povo , em Santos (So Paulo, Maio de 2002): Orao o mesmo que enredo. Durante uma cantoria, se um dos cantadores falar em elefante, o outro no poder falar em caminho, a no ser que ele diga nos seus versos que o caminho serve para carregar o elefante.

2 integrada numa cantoria ou como parte constitutiva de uma dana dramtica ou de outra manifestao popular (designao que alis ainda hoje comum em certas reas do Brasil). A terminologia peleja, desafio remete de imediato para a ideia de combate, de violncia, omniprsente dans les joutes chantes traditionnelles, rivalit qui tend ssttnuer, sinon disparatre, dans les actuelles sessions de cantoria o les chanteurs se prsentent plus en partenaires quen adversaires11. No poema Cantadores do nordeste, Manuel Bandeira explora a tcnica da literatura popular em verso, nomeadamente o ritmo prprio da cantoria e da correspondente poesia de cordel, actualizando assim os seus propsitos programticos de realizao de Todos os ritmos sobretudo os inumerveis12:
Anteontem, minha gente, fui juiz numa funo de violeiros do Nordeste. Cantando em competio, vi cantar Dimas Batista e Octaclio, seu irmo. Ouvi um tal de Ferreira, ouvi um tal de Joo. Um, a quem faltava um brao, tocava cuma s mo; mas como ele mesmo disse, cantando com perfeio, para cantar afinado, para cantar com paixo, a fora no est no brao: ela est no corao13.

Vrios folcloristas advogam para o desafio origens gregas, apoiando-se no funcionamento dos cantos amebeus ou alternados dos pastores. Mas a estabilizao do modelo poema dialgico que nasce do encontro, emprico ou fictivo, de pois poetas que esgrimem capacidades inventivas, criativas e emocionais, que se auto-elevam e reciprocamente se provocam, injuriam, quase sempre perante testemunhas coube aos trovadores medievais, que muito apreciaram a teno, uma das formas mais conhecidas dos nossos Cancioneiros, atravs da qual trovadores e jograis melhor podiam evidenciar a sua mestria na arte de trovar. As inmeras tenes de carcter satrico travadas entre jograis e trovadores parecem no deixar dvidas de que a teno figuraria uma espcie de prova, como sucede com o clebre ciclo em torno do jogral Loureno. Exceptuando algumas tenes que constituem mais um dilogo irnico do que um confronto, visando geralmente uma terceira pessoa e no os prprios poetas, o cnone das tenes determina a ocorrncia de duas posies antagnicas (tpica dos
11 Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, La Littrature de Cordel au Brsil. Mmoire des Voix, Grenier dHistoires, Paris, LHarmattan, 1997, p. 29. 12 No texto bandeiriano, a osmose erudito / folclrico processa-se sem complexos, gerando uma nova dico esttica que surgir nos modernistas e se manter no Bandeira autor de poemas como O anel de vidro, que assume como intertexto uma afamada quadra tradicional portuguesa (quadra solta, por vezes absorvida, nas tradies portuguesa e brasileira, em modas e em cantiga infantis de roda): Aquele pequenino anel que tu me deste, Ai de mim era vidro e logo se quebrou Assim tambm o eterno amor que me prometeste, Eterno! Era bem pouco e cedo se acabou. (Manuel Bandeira, Poesia e Prosa, v. 1, Rio de Janeiro. Ed. Jos Aguilar, 1958, p. 72). 13 Poema do livro Estrelas da Tarde: Poesia Completa e Prosa, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1990, pp. 341-342.

2 cantares ao desafio). Na Arte Potica fragmentria com que o Cancioneiro da Biblioteca Nacional principia, preconiza-se, sobre esta maneira de trovar a dois, que um diga aquelo que por ben tever na prima[eir]a cobra, e o outro rresponda-lhe na outra dizend[o] o contrayro. Outros investigadores preferem conectar a origem do desafio com a tradio repentista rabe, muito frequente em todo o Mediterrneo 14. Seja qual for a teoria mais correcta, e independentemente das variantes nacionais, certo que se trata de uma prtica artstica com razes longnquas e de muitos povos, como o inga fuka do ndico Oriental, o pantun malaio, o haikai japons ou as vrias modalidades prprias dos pases sul-americanos. Na payada argentina, por exemplo, comum focalizar-se muito mais a desenvoltura dos conhecimentos patenteados do que a fora da improvisao. Esta aptido para cantar cincia tambm existe no Brasil, embora muito menos explorada e apreciada. O cantador mais aplaudido no necessariamente o mais culto ou sapiente, mas aquele que improvisa de modo gil, vivo, e respeita com fidelidade os modos e os gneros consagrados pela tradio 15. Segundo Ral Eduardo Gonzlez jovem estudioso mexicano com vrias obras publicadas sobre literatura oral, popular, tradicional, e discpulo, por assim dizer, da escola de Margit Frenk e Araceli Campos Moreno , que amavelmente nos facultou esta actualizada informao por escrito (depois de um colquio muito produtivo em Espanha, onde pudemos trocar fecundas impresses) , Los desafos poticos, en Mxico, son llamados, en general, controvrsias; en la regin de la Sierra Gorda de Guanajuato, se les llama topadas; en ellas, los poetas se enfrentan durante toda la noche, acompaados de la msica de violines, guitarra y vihuela, enfrentados en un baile popular. Ambos poetas (que junto con sus msicos se sientan en bancos de madera dispuestos muy alto sobre el suelo, digamos, a unos dos metros) cantan y recitan sus poemas (generalmente glosas) en los cuales hablan sobre diversos asuntos de inters comunitario. A cierta hora de la madrugada inician el ataque directo entre ellos; a eso se le llama bravata o aporren. O sucesso do desafio na captao da ateno e emoes do auditrio depende em grande parte da forma mais ou menos hbil como os cantadores exibem a sua flexibilidade mental e verbal, executantes que nunca podero reconfortar-se sombra de um playback ou que cairo no descrdito se banalizarem a cantoria 16. Como nos descantes17, os desafios suscitam a manifestao dos improvisadores, cuja aco vital para o enriquecimento da literatura de transmisso oral. Nos desafios improvisados, autnticos, a composio coincide com a performance, pelo que o executante tambm compositor. Esclarea-se desde j que a improvisao cuja importncia e dificuldade reside na celeridade da resposta, na organizao dos materiais e no ajustamento s condies e vicissitudes inesperadas deve ser entendida numa perspectiva de liberdade
14 Luis Soler, As Razes rabes na Tradio Potico-Musical do Serto Nordestino , Recife, Editora Universitria/UFPE, 1978. 15 Para uma descrio das linhas essenciais desta posie de linstant, muito mais diversificada e codificada do que a tradio congnere portuguesa, cf. Idelette Muzart-Fonseca dos Santos, La Littrature de Cordel au Brsil. Mmoire des Voix, Grenier dHistoires, pp. 27-41 e Julie Cavignac, La Littrature de Colportage au Nord-Est du Brsil. De lHistoire crite au Rcit Oral, Paris, CNRS ditions, 1997, pp. 77-102. 16 Arnaldo Saraiva, Cantigas ao desafio, in Jornal de Notcias, 26/10/85. Cf. tambm, do mesmo autor, Assim se fazem as cousas (populares) ou os grandes desafios de um pequeno desafio, in Rurlia, n 2, Arouca, 1992, pp. 35-39. 17 No nosso povo ha diversos improvisadores, que apparecem no s nos desafios como nos descantes. () As cantigas nos descantes so cantadas ao som de musica. Um descante, na Beira-Alta, um ajuntamento de povo que geralmente dana a chula ao som da rabeca, da viola, dos ferrinhos e do bombo (Jos Leite de Vasconcelos, Poesia Amorosa do Povo Portugus , Lisboa, Viuva Bertrand & C. Sucessores Carvalho & C., 1890, pp. 20-21).

2 condicionada, no sentido de que nunca absoluta. Mesmo nos casos em que h coincidncia entre criao e prolao/transmisso, a composio oral obedece a regras preestabelecidas, cujo peso varia de executante para executante. O improvisador deve organizar rapidamente os materiais preexistentes culturais, temticos, poticos, retrico-estilsticos, musicais , matizando-os com elementos novos, ou nunca ditos ou quase-j-ditos, processo de que resulta uma textualidade original. O paralelismo, enquanto reiterao, em estrofes sucessivas, de sentidos ou de construes sintcticas, ou enquanto simples repetio de versos, quase sempre os dois primeiros ou os dois ltimos mas tambm um ou outro verso solto, de que provm a dilatao da estrofe como espao de matria significante, o dispositivo tcnico mais caracterstico de uma arte verbal que estetiza a voz, os gestos, o corpo. Essa estruturao rtmica muitas vezes apurada pela utilizao do leixa-pren, que, no obstante as restries discursivas que impe, autoriza uma progresso ponderada do pensamento e do discurso dos cantadores, distendendo gradualmente estados emotivos, constrangimentos, incmodos, antipatias ou empatias; como apurada por engenharias rmicas que passam, por exemplo, pela recuperao, no primeiro verso da resposta, da ltima rima final do adversrio, o qual, se no prosseguir com o mesmo apuro tcnico, , pelo menos neste plano, superado; ou pelo uso, na replicao, como terceiro e quarto verso, dos dois primeiros versos invertidos da quadra antecedente, prescrio a que sobrevem, para no se pisar o ponto, o impedimento de repetir o vocbulo que rima; ou ainda, entre outras, pelas particularidades tcnicas de, ao longo da prestao, no se repetir qualquer uma das palavras utilizadas no fim do segundo verso, a par da obrigatoriedade de, quase sempre, no se fugir ao ponto (a terminao predefinida do segundo verso), caractersticas do cantar que A. Machado Guerreiro designa de despique, exclusivo, segundo o autor, do Baixo Alentejo, da Meia-Serra e da Serra do Algarve, tanto do lado que desce para o Baixo Algarve como do que desce para o Alentejo 18. Mesmo se a pormenorizao contextual e tcnico-estilstica apresentada por este estudioso , para a modalidade em estudo, formulada de modo convincente, preferimos continuar a aceitar tambm para o termo despique um significado mais genrico, dado o seu emprego um pouco por todo o pas; mas com a reserva de que, na zona especificada, a denominao possa ter um alcance mais circunscrito a uma modalidade de desafio 19 (tal como sucede, por exemplo, com o baldo), embora o autor no nos diga se tal designao empregue por especialistas ou pelos poetas e utentes, ou por uns e outros. De facto, nem o argumento de que a estrofe, no despique, pessoal e por assim dizer intransmissvel basta para validar a denominao (em Baio, clebre um cantador que responde sempre em cinco versos, mesmo que o outro autor-intrprete utilize a quadra, residindo nessa particularidade tcnica, com incidncias desde logo ao nvel dos cdigos fnicortmico e lxico-gramatical, uma parte substancial do seu orgulho de poeta-cantador competente e singular, inimitvel; e nem por isso h uma designao distinta para este caso, que, decerto, no nico no concelho nem no pas, neste ou noutros moldes): h, para qualquer tipo de desafio, poetas-cantadores que no usam seno estrofes improvisadas ou criadas por si prprios (apesar de, obviamente, nenhum poeta rejeitar frmulas mnimas, quer dizer, versos ou fraces versficas, expresses idiomticas,
18 O cante a despique, in Revista Lusitana Nova Srie, 2, Lisboa, Centro de Estudos Geogrficos / Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1981, p. 61. 19 No cante a despique, nota A. Machado Guerreiro, a estrutura diferente no s das quadras de todos os cantares populares mas ainda de toda a poesia portuguesa que conhecemos. De facto, cremos que debalde se procurar na nossa poesia, desde a dos Cancioneiros at actual, composies com a estrutura estrfica do cante a despique ABCA + BA, em que o primeiro verso rima com o quarto, o segundo e o terceiro versos so brancos, o segundo se repete como quinto e o primeiro figura como sexto (idem, p. 63).

2 provrbios, etc., pertencentes comunidade); ou, mais frequentemente, pela aplicao de rimas fracas ou fceis (as terminaes o e ar e so as mais comuns) e rimas fortes ou difceis (como em er). Compor, cantar e actuar so assim facetas do mesmo acto, no qual a msica vocal, acompanhada ou no por instrumentos que apoiam o canto (a viola, a guitarra, o cavaquinho e, mais modernamente, o acordeo), se submete at certo ponto ao texto lingustico, servindo-lhe de suporte valorativo, o que no anula a importncia da seduo esttica que dela emana. O desafio um jogo dialogado, mais cantado do que falado ou recitado, residindo alis no canto20 e no por acaso que Portugal se afirma como pas das cantigas, nas palavras do memorvel e inesquecvel trovador moderno Jos Afonso e na msica instrumental a parte mais sensorial, ntima e ininteligvel da sua vibrao persuasiva: uma aptido encantatria e irruptiva dos sentidos dos intrpretes e dos assistentes, produtora de coerncia social por via da regulao poticoverbal de tenses e de sofrimentos reprimidos e do estabelecimento de vectores de sociabilidade. As formas poticas convivem geralmente com formas musicais j antigas, tradicionais, construtoras, ambas, de um produto potico-musical sempre renovado e irrepetvel. O vira, o malho e a cana verde so as principais estruturas musicais do desafio, que, dependendo dos tocadores, ora surge acompanhado por uma sequncia musical que se repete ciclicamente, ora por um tom rtmico que acompanha as diferentes modulaes prosdicas da voz dos cantadores. A dimenso esttica dos desafios, ordinariamente ignorada por um certo senso comum de elite e pelos discursos histrico-literrios ou crticos, alis escassos no nosso pas, apresenta a particularidade de, em muitas ocorrncias, jogar com componentes que convocam anlises de natureza por assim dizer racionais. que, mesmo admitindo a relativa frequncia de momentos lricos cannicos, no restam dvidas de que os apontamentos considerados pela ideologia oficial prosaicos, grosseiros ou obscenos representam o capital mais proeminente desta poesia, sem que isso obste emergncia de indefinveis sentimentos estticos nos executantes e no auditrio. Essa fruio depende, numa percentagem considervel, no s da arte potica que codifica o gnero, mas tambm da convocao de elementos de substncia extralingustica e cinsica (altura, timbre e tom de voz, gestos, expresses do rosto, etc.). A este processo acresce o imperativo de uma escuta atenta, pelo que o bom desafio vale tambm por aquilo que compreende de paradigmtico em termos de modelo de comunicao. Essa articulao no se verifica nos desafios preconcebidos, imaginados, preparados, que constituiro o maior nmero daqueles que se encontram registados em folhas volantes e folhetos de cordel. A presena de um folclorista num desafio, apto a proceder gravao, s ocasionalmente se verifica, a no ser nos encontros combinados, embora, nestas circunstncias, o desafio no possa ser considerado absolutamente autntico. Ou melhor, para no entrarmos em purismos: trata-se de um tipo particular de desafio, cada vez mais enquadrado na sociedade tecnolgica e ultramediatizada que a nossa (referimo-nos, por exemplo, aos desafios
20 No isento de ambiguidades, o termo canto recobre uma forma muito particular de fonao e de entoao que tem suscitado interessantes debates sobre a dificuldade de distino entre falado e cantado, duas formas de produo vocal em torno das quais se situam inmeros fenmenos vocais tendendo, ora para a melodia falada, ora para a melodia recitada, ora para o Sprechgesang, ora ainda para a melodia cantada. Tanto assim que, ainda que no seja considerada propriamente msica por um determinado grupo cultural, toda a produo vocal, independentemente da definio falado/cantado, considerada musical [segundo George List, na obra The Boundaries of Speech and Song , de 1963, citado por Charles L. Boils, Canto, in Enciclopdia Einaudi, n. 32, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1987, p. 269] (Ana Paula Guimares, Conversas a cantar, 2. Cantar/Falar, in Ns de Vozes. Acerca da Tradio Popular Portuguesa, p. 225).

2 organizados por acadmicos, dentro de conferncias nacionais ou internacionais). No por isso de estranhar que muitos dos desafios com fixao tipogrfica procedem inequivocamente apenas de um autor que fingiu o encontro dramtico 21. Arnaldo Saraiva fala na fico do desafio: um poeta tenta transcrever o que ouviu num desafio autntico, um poeta escreve o desafio atribuindo ao adversrio, ou aos intervenientes, as palavras e versos que quer atribuir-lhes22. Na cultura urbana, a sugesto do desafio liga-se indissoluvelmente ao rap23 e a outras canes dialogadas contemporneas, quase sempre envolvendo uma voz masculina e outra feminina, de que o grupo irlands The Pogues nos d talvez dos registos mais perfeitos e sedutores. Os desafios no surgem exclusivamente de um acordo pacfico entre os cantadores. Desenquadrados de um ambiente programado, podem ser motivados por questes pontuais relacionadas com o quotidiano e servir para comparar foras e resistncias, procurando cobrir o vencedor de glria e o adversrio de ridculo. Em tais casos, o que suscita o confronto no propriamente a ideia de desafio enquanto jogo entre iguais; jogo atravs do qual se mede a criatividade e a integridade de cada um na resposta adequada boa pergunta, num quadro de valores e actos axiolgicos por todos assumido de um modo ou de outro. A quadra seguinte sobreviveu a um desafio que ops dois laureados cantadores da Teixeira (concelho de Baio); um deles, por estar no s a ser vencido mas tambm humilhado, foi ajudado pelo irmo, que se apresentou desta forma:
Eu nunca cantei festa, Nem foi minha criao; Canto agora aqui Por ser por meu irmo.

Recorda-se, pois, o que tem significado num arquivo oral, cujos eventos, verbais ou no-verbais, apresentam uma escala de significado. O resultado o enriquecimento da tradio, a partir da recordao e da transmisso dos fragmentos poemticos de maior valor emotivo. Nestes contextos de aco, portanto, a hostilidade aberta se bem que em alguns contextos substituda por uma apurada cortesia que leva o cantador mais forte a auxiliar e a animar o mais fraco24 uma marca por excelncia dos textos de concretizao
21 Cf., por exemplo, Joo Zero, Novas Cantorias para Serem Cantadas ao Desafio entre Manuel e Maria, 15 ed., Porto, propriedade do Bazar Feniano, Diamantino da Silva Cardoso, s.d. 22 Arnaldo Saraiva, Cantigas ao desafio, in Jornal de Notcias, 26/10/85. 23 Sobre esta actividade criadora de ressonncia folclrica, cf. Richard Shusterman, LArt ltat Vif La Pense Pragmatiste et lEsthetique Populaire, Paris, Minuit, 1982 e, sobretudo, Jos Augusto Mouro, Poticas da comunicao: literatura tradicional e rap, A Seduo do Real, Lisboa, Vega, 1998, pp. 259269. Eminem , neste aspecto, um cone de grande parte daqueles que participam nas batalhas, cujo apresentador instiga, com toques de humor, ironia e stira, a audincia, que, ao som de hip-hop, dana e canta efusivamente, durante e sobretudo entre cada actuao (cada rapper dispe, regra geral, de 45 segundos para se debater com um adversrio). Como nos desafios de que aqui tratamos, o pblico quem, atravs de uma ostensiva e variada semitica do corpo, declara o vencedor, que deve escolher novo adversrio, at se chegar esperada final, em que cada interveno de 1 minuto e meio. Talvez mais do que no desafio portugus e respectivos congneres internacionais, ocorre aqui uma evidente expurgao de energias disfricas e uma consequente preveno de violncia fsica (mesmo se, por vezes, o efeito precisamente contrrio). 24 Estas palavras de um executante ilustram bem esses princpios ou esse cdigo deontolgico dos cantadores: A ideia agradar e tentar enrolar o parceiro, medir foras mas no com a fora, com a fora do improviso. Se o parceiro for mais fraco e no tiver pedalada (pode cantar mal mas canta o que sabe...), vou-lhe dando a mo, vou segurando esse adversrio at aparecer um mais forte (Ana Paula Guimares, Ns de Vozes. Acerca da Tradio Popular Portuguesa , p. 246). Alguns testemunhos mostram mesmo como o eufemismo (perifrstico, no caso aduzido a seguir), aplicado a

2 pblica a concebidos. Maria Lusa Carneiro Pinto relata-nos uma oposio entre dois indivduos, motivada por questes amorosas: Uma noite, um rapaz, que estava doente, suspeitou que tinha no baile preferido rival. Levantou-se (...) e foi da porta ver o que se passava, supondo que no seria descoberto. O outro, porm, lobrigou-o e no desprezou a ocasio de o vencer pelo ridculo25. O embate, que poderia ter sido fsico, traduziu-se numa construo verbal engenhosa, organizada em tercetos, estrutura relativamente rara, com obrigatoriedade de rima final entre os versos finais de cada estrofe, o que produz uma sextilha construda pelos dois contendores: Vou cantar uma cantiga,
Ouam todos, meus senhores, Eu nisto no fao mal...

Tambm quero dar um viva,


Tambm quero dar um viva, Ao enxerto do portal...

Eu era de boa cepa,


Ouam-me tambm agora, Por isso fui enxertado.

S a ti ningum te enxerta,
S a ti ningum te enxerta, Meu catrapeiro arejado...26

A violncia fsica latente dilui-se no acometimento verbal do desafio (e na gestualidade controlada que ele implica), em formas poticas que agem como engrenagens de controlo da agresso. Carmelo Lisn j frisou bem a relevncia deste mecanismo para a armona comunal27, a propsito das expressivamente designadas disputas galegas. O fim matricial comum ser, ressalvando os casos em que o desafio, inversamente, acende momentos de concusso corporal, se no a plenitude de uma paz duradoura e sincera, pelo menos o esclarecimento recproco, conducente a um exorcismo individual e colectivo. Na dramatizao codificada configurada pelo desafio, a adaptao do texto ao ouvinte faz-se durante a performance. Na execuo do poema, diversas marcas lingusticas, paralingusticas ou gestuais assinalam as interaces entre o emissor e a assistncia, contribuindo para o arranjo dramtico da performance, estabelecendo um ambiente de conivncia entre as duas partes. A incluso no desafio do nome de um ouvinte ou ouvintes particulares um dispositivo retrico ao qual se recorre com frequncia, como na cantiga que se segue, gravada num encontro de cantadores que organizmos em Baio: J que tanto me pediu,
E vou-le fazer a vontade; E julga que no pecado Fazer cantar quem no sabe. ()

E vou cantar uma cantiguinha,


conceitos e a termos relativamente incuos, pode constituir um procedimento retrico-estilstico de base: O que preciso no se ser directo, nem dizer palavras feias (explicava-me Bernardino Carvalho), por exemplo, em vez de dizer mentiroso, dizer ele no fala verdade (idem, p. 247). 25 Maria Lusa Carneiro Pinto, Por Terras de Baio, Porto, Ed. da Autora, 1949, p. 152. 26 Idem, pp. 151-152. 27 Perfiles Simbolico-Morales de la Cultura Gallega, Madrid, Akal, 1974, pp. 53-54.

2
Olha, mas olhe pr banda, Alegrar o seu corao, no, Vamos alegrar o senhor Miranda.

E um viva s senhores professores,


Um viva com alegria; Comear pelo professor Andrade, Ao senhor Miranda, e ao Carlos Maria.

E vou a dar a despedida,


J no posso mais cantare; Vou fazer as minhas cestas, Est o carro da Cmbra a chegare.

O poeta-intrprete altera o discurso, o tom, a entoao, o timbre de voz e os gestos, de acordo com a recepo que pressente ou percebe no auditrio. A instabilidade da audincia requer um apurado grau de concentrao por parte do cantador, para que possa actuar sem constrangimentos, sustentado por um complexo conjunto de sintonias. Testa-se at ao extremo a sua habilidade dramtica e a sua capacidade inventiva para manter a audincia interessada. Os cantadores actuam at que, por cansao, por motivos diversos de ordem pessoal ou influenciados pelo desassossego dos ouvintes, julguem oportuno terminar: Mas esta pra terminar/ isto est a chegar ao fim;/ por isso, termina pra ti/ e, Joaquina, pra mim. Frequentemente, ao constatarem que a audincia no est receptiva (pode mostrar-se crtica, impaciente, intransigente), abreviam a disputa ou interrompem-na. O pblico avalia, selecciona e comenta as prestaes dos disputantes, durante e aps os dilogos cantados. No raro a fama de um cantador implicar a sua deslocao a outros lugares, o que acaba por enriquecer os esperados encontros pblicos, devido sobretudo motivao acrescida que recai sobre os cantadores locais. Nas cantigas ao desafio, a audincia, claramente separada dos executantes, est presente para assistir actuao, mas dela resultam por vezes novos participantes, entusiasmados com as prestaes dos cantadores. Os assistentes apreciam os impulsos repentistas, a perspiccia verbal, o adestramento tcnico, a fora da rplica, as confidncias e inconfidncias, o inesperado, o segundo sentido, o chiste, a provocao e o humor picante, ingredientes impreterveis nestes confrontos. No excerto que transcrevemos a seguir, a cantadeira empregou o termo calcanhares em vez de saia, que previsivelmente rimaria com Maia, no sentido de gorar as expectativas dos ouvintes, instaurando assim um efeito de surpresa, que contribui para o estabelecimento do cmico. Apoiada numa metfora, que, com significado dplice, parece a princpio bvia, alargada, por outro lado, numa sugestiva imagem (o bicho que mata os homens), a referncia sexual activada para ser imediatamente obstruda (Anda dubaixo dos calcanhares): J que tanto me pede,
Eu no sei quhei-de dizere, Se le vou cantar das vermelhas, O senhor manda-me prendere.

E sou do Porto, vou pr Porto,


Ai, sou da Maia, vou pr Maia. E o bicho que mata os homens Anda dubaixo dos calcanhares.

Noutras ocorrncias, figuram quadros imagticos que produzem efeitos cmicos a partir de uma potica do obsceno mais declarada, actuante apenas no mbito das coordenadas culturais da prpria comunidade. Fora dessas fronteiras, descontextualizados, sem a cumplicidade entre cantadores e ouvintes, segmentos como estes, prontos a desencadear o riso importante acto de sociabilidade e de integridade individual pelo que tem de movimento de relaxamento28 , podem ser sinnimo de mau gosto: Vou cantar uma cantiga,
E moda de l dubaixo; E uma pulga deu-me um coio, E deitou-me da cama abaixo.

Tenho uma pulga antre as pernas


E que me chigou de Bragana E que a trago no cabelho, Onde os piolhos descanso.

O palavro, quer dizer, a linguagem livre, desabrida, por preconceitos e fundamentalismos de diversa ordem, gera normalmente obstculos recolha, divulgao e estudo do desafio. No texto que introduz os Desafios do seu Cancioneiro Popular de Mondim de Basto, por exemplo, Borges de Castro confessa o seu repdio pelo obsceno e baixo humorismo, chegando mesmo a afirmar profundamente incomodado por este tipo de textos que A sujeira desta espcie de desafios no merece papel e tinta, no tem aqui cabimento 29. Os prprios executantes, perante forasteiros pouco familiarizados com o ambiente do desafio, podem reprimir a incluso do obsceno nos textos cantados ou recitados. Ora, a verdade que o prestgio do cantador no pode dispensar a ousadia verbal, a resposta acintosa e pronta, o palavro na sua dimenso mais insultuosa. O uso do calo, isto , a linguagem caracterizada por termos obscenos ou, pelo menos, considerados grosseiros, s ser por isso motivo de perplexidade para aqueles que ignoram a energia prpria das palavras. Numa sugestiva crnica intitulada O palavro, Arnaldo Saraiva comenta o uso dos palavres em Portugal, afirmando, em tom de sntese: Mas a fora de um palavro um artifcio social imposto pela hipocrisia e s quem se ofende com o uso do palavro (se este no for um insulto pessoal) garante, como um primitivo, ou um insuspeitado primrio, a sobrevivncia do palavro do tabu 30. Na poesia oral como na literatura dita culta desde a arte satrica trovadoresca a Gil Vicente, a Bocage e a Joo de Deus, a Alexandre ONeill, a Alberto Pimenta e a Adlia Lopes , o trabalho literrio vale-se com frequncia da palavra viva, corrente, desbragada, como instrumento de expresso da mentalidade e da sensibilidade do grupo social. Mas no se pense que o palavro, no texto literrio popular, da quadra oral e do desafio ao graffiti, serve apenas intuitos ofensivos ou depredativos. Pelo contrrio, o seu maior valor reside muitas vezes no que encerra de catrtico, de libertao de energias
28 Henri Bergson, O Riso Ensaio sobre o Significado do Cmico , 2 ed., Lisboa, Guimares Editores, 1993 (1. ed., 1900), p. 132. 29 Porto, Edio do Autor, 1982, p. 85. 30 In Bacoco Bacoco seus Bacocos, Porto, Lello & Irmo Editores, 1995, p. 131.

2 negativas, como fica claro tambm neste breve poema autobiogrfico e sentencioso, que surpreendemos perpetuado numa mesa, na Escola Superior de Educao do Porto, em 2001:
A vida filha da puta A puta filha da vida Mais vale a vida de puta Que a puta da minha vida.

Numa famosa e exemplar quadra da literatura de retrete, a mesma que os brasileiros denominam de literatura da latrina, latrinria ou frases da privada, vemos como a obscenidade pode pactuar com conceitos de ndole elevada, solene, animada pelo disfemismo inesperado, estrategicamente colocado no final do poema e de verso. O aproveitamento de um defeito exclusivo do Homem a vaidade , tratado de diversas formas na literatura universal desde a Antiguidade Clssica ( vanitas vanitatum), aparece neste texto suavizado por um humor saliente e fino, que advm da descrio concretizante de uma inevitabilidade fisiolgica to humana (e animal) quanto prosaica. A imagtica difusa e supostamente associada a um referente nobre que serve de suporte representao da retrete um lugar solitrio e sua funo parte dos traos fundamentais desse espao: a solido e a intimidade que rodeia o acto de defecar, geralmente ignorado, encoberto ou apenas referido por eufemismos, porque conotado com o que o ser humano tem de mais degradante ou humilhante. Pela mestria da sua arte potica (forma estrfica, mtrica, rima), pela sua retrica, pela sua estilstica, sem dvida um poema que merece figurar como epgrafe ou representante do gnero (ou do local) numa qualquer colectnea desta literatura fedorenta31:
Neste lugar solitrio, Onde a vaidade se acaba, Todo o fraco faz fora32, Todo o forte se caga.

O desafio transcrito a seguir poder funcionar como modelo do registo agressivo, chocarreiro, apesar de prescindir de vocbulos que, no uso comum, pontuam no topo da hierarquia ofensiva. Nele figuram grande parte dos instrumentos caractersticos da stira declarada, como a insistncia em defeitos fsicos, as referncias escatolgicas e os traos zoomrficos, destinados a surpreender o adversrio pelo ridculo caricatural que sobre ele recai. Todas as quadras obedecem estrutura dicotmica, na sua modalidade mais comum: aquela em que os dsticos surgem formalmente independentes, como duas frases apostas, sem qualquer elo semntico a uni-los. A primeira parte, que comporta por vezes um verso inofensivo, quase infantil como Desafio da chamin ou No pauzinho da canela , vale fundamentalmente como pretexto para a rima, mas, ao desviar ou atenuar por momentos a agressividade lxico-semntica, acaba por amplificar o arrebatamento do insulto expresso no quarto verso. Os versos migratrios Desafio, desafio e Nunca me desafiei unificam esta forma potica e inscrevem-na na tradio oral comunitria, sublinhando quer o seu tom de praxis combativa, quer a vertigem provocada pelo peso blico das palavras33:
31 Cf. Arnaldo Saraiva, Os Graffiti A propsito de O Guardador de Retretes, in Literatura Marginal/izada, Edies rvore, Porto, 1980, pp. 102-107. 32 Var.: Todo o cobarde faz fora. 33 No livro Las Malas Palabras, o psicanalista argentino Ariel C. Arango correlaciona, de forma slida e convincente, a utilizao dos palavres com o equilbrio fsico e espiritual ( apud Arnaldo Saraiva, Bacoco Bacoco seus Bacocos, p. 130). J Freud, de resto, afirmava que a libido exerce a sua aco atravs de construes lingusticas, at se operar a sua diluio no desejo. Se a lngua objecto de amor e de prazer, se as palavras pesam como pedras ou tm a leveza do inefvel, no surpreende que o ser

2 desafio, desafio,
Desafio pela navalha; Nunca me desafiei34 Com semelhante canalha.

Desafio, desafio,
Desafio pelo repolho; Nunca me desafiei Com semelhante mirolho.

Cala-te l, boca aberta,


Espantilho do meu nabal; Por um lado, j ests podre, Do outro j cheiras mal.

desafio, desafio,
Desafio da chamin; Nunca me desafiei Com semelhante chimpanz.

desafio, desafio,
No pauzinho da canela; Nunca me desafiei Com semelhante cadela.

desafio, desafio,
Desafio pelo cho; Nunca me desafiei Com semelhante focinho de co.

desafio, desafio,
Desafio do mantelo; Mas tu, compadre, Tens focinho de vitelo.

desafio, desafio,
Desafio da panela; Mas tu, minha comadre, Tens focinho de vitela.

E agora, para acabar,


Paleio no vou dar mais; Aquele que continuar a falar, o mais burro dos animais.

O final abrupto, superlativo, com diferentes graus de originalidade e contundncia conforme a percia individual, uma fase decisiva do protocolo performativo do desafio, uma vez que pode atribuir a vitria a um dos participantes. Ao remate anterior que consideramos muito interessante pela forma decidida como o
humano institua com a linguagem um relacionamento de orientao ertica (cf., por exemplo, Marina Yaguello, Alice no Pas da Linguagem Para Compreender a Lingustica , Lisboa, Editorial Estampa, 1990 (1. ed., 1981)). 34 Var.: Eu nunca desafiei.

2 cantador introduz a concluso, caracteriza a actuao do adversrio e inviabiliza a sua resposta juntamos este, admirvel pela apoteose delicada mas fingida, sugestivamente irnica, da figura feminina, no primeiro dstico e primeiro verso do segundo, e pela desconstruo desse cenrio atravs do prosasmo emergente do ltimo verso (estrofe cujo contedo, mesmo se lhe corresponde uma estrutura de superfcie bem menos agressiva ou crua, no muito comum nos desafios de cordel, devido aco da censura, que pode comear no prprio autor, seja pelo que nele j comedimento ou inibio, porventura s na escrita, se ele tambm cantador, seja pela projeco que ele faz dos gostos e da sensibilidade do editor e dos leitores; como no propriamente abundante nos desafios publicados em cancioneiros e monografias etnogrficas por estudiosos ou curiosos da literatura oral): Eu gosto de ti, Rosinha,
E quero-te pela vida! O encanto dos meus olhos ao fundo da barriga35.

A recepo pode, por outro lado, resultar numa interiorizao profunda conducente a uma nova performance, mais ou menos prxima do seu modelo. A produo das cantigas ao desafio depende do equilbrio entre um patrimnio de estruturas formulsticas consagradas pela tradio e um conjunto de tcnicas e de capacidades que se conciliam com a inventividade do poeta 36. Sabe-se, com efeito, que muitos dos versos e estrofes utilizados pertencem tradio oral da comunidade, como acontece com a segunda e terceira quadras deste desafio, herdeiro de mltiplas vozes que atravessam a memria colectiva; quadras que se inserem, enquanto unidades independentes, reaproveitadas, na dinmica cultural que as gerou: Canta da, rapariga,
Que o teu cantar malegra; Se no fosse o teu cantar, No vinhas aqui a esta terra.

E louvado seja Deus,


Eu j ouvi uma voz; Onde havia estar metida? Dentro da casca da noz.

minha fala brandinha,


V l bem no que te metes; No me deixes ficar mal, Em terras que no conheces.

O receptor torna-se assim emissor, funes que, no domnio da poesia oral, alternam constantemente. O ouvinte acumula, portanto, vrios papis: o de receptor e, ao tornar-se emissor, o de co-autor. Entre o intrprete e a audincia gera-se uma reciprocidade de relaes, como j vimos: pelo seu entusiasmo maior ou menor, o receptor influencia a actuao do intrprete, funcionando como incentivo ou obstculo prestao pblica. O pblico, que espera do intrprete um certo discurso, uma linguagem cujas regras conhece, interfere de modo decisivo na produo da obra durante a performance: faz a apreciao da actuao, aceitando ou recusando as
35 Jos Leite de Vasconcelos, Cancioneiro Popular Portugus, vol. I, coordenado e com introduo de Maria Arminda Zaluar Nunes, Coimbra, Por Ordem da Universidade, 1975, p. 186. 36 Cf. Michael Nagler, Spontaneity and Tradition: A Study in the Oral Art of Homer , Berkeley Los Angeles, University of California Press, 1974.

2 inovaes individuais, integradas ou no no acordo cultural em que emissores e receptores se movimentam. A rigidez da forma, como se sabe, por razes que enfoques comparatistas sobre a problemtica das culturas situadas podem ajudar a descortinar, varia de cultura para cultura ou, a um nvel mais subtil, dentro do mesmo sistema cultural, de autor para autor, mas o problema permanece essencialmente o mesmo: a acomodao do pensamento a um padro rtmico, o que no torna o desafio uma arte menor. Nele verifica-se o contrrio, porquanto o suporte formal fixo ou relativamente constante viabiliza a variao potica e temtica. Inmeros cantadores no podem recorrer a um texto modelo escrito, fixo, que lhes sirva de guia. O padro memorizado, interiorizado, contudo, suficiente. Por outro lado, na actuao existe o factor tempo: a composio contnua, ininterrupta, rpida. Alguns cantadores ao desafio so peritos em acumular, combinar e reajustar frmulas37 (pessoais ou colectivas) e temas, processo que coadjuva e enriquece a sua actuao. Preserva-se assim a tradio literria oral, atravs da recriao, da reactualizao, de reajustamentos da matria-prima tradicional. Uma estrutura formulstica como esta, de largo emprego pela sua utilidade, pode ser integrada em qualquer desafio:
desafio, desafio,

.
Nunca me desafiei .

Outra componente caracterstica prende-se com a saudao preambular do adversrio e dos assistentes, a qual, no sendo obrigatria, muito recorrente, encontrando-se cristalizada em frmulas protocolares bem conhecidas dos cantadores e ouvintes. O verso introdutrio Deus te cubra de beno, para citarmos apenas um exemplo, que figura num desafio verdico que recolhemos e noutros que ouvimos mas no pudemos registar, faz tambm parte dum desafio (imaginado) de Ablio Costa 38. Veja-se esta quadra introdutria, entre outras semelhantes que poderamos apresentar:
E o dever do cantadore, Ai, quando chega ao arraiale, Ai, progunta a todos senhores, Se passaram bem ou male.

No desfecho, retoma-se essa cortesia, que convive s vezes com pedidos de transigncia para o recurso ao palavro (E as asneiras que eu disse/ faam favor de desculpar). Donde, geralmente, uma concluso apotetica, de expansividade estticoideolgica, com a aclamao dos participantes em ambiente de harmonias e de identidades antropolgicas, simblicas e ideolgicas. Nessa fase do desafio, com efeito, resolvem-se no poucas vezes as tenses acumuladas durante a sua progresso, ou revela-se a potica do fingimento que lhe presidiu. Num meio mental e social ultramediatizado em permanente mutao, as cantigas ao desafio encontram amplo espao de manobra na aco de grupos amadores revivalistas e nos concursos de cantadores ao desafio que no raramente integram os programas de romarias, feiras francas e festivais de folclore, regidos por um misto de orgulho identitrio e fonte minuciosamente calculada de atraco turstica (como toda a poesia oral, a cantiga ao desafio no uma prtica de consumismo, mesmo se hoje beneficia
37 Cf. Carlos Nogueira, Literatura Oral em Verso. A Poesia em Baio , cap. I, Variantes, pp. 70-87. O verso Eu no dou parte de fraco, por exemplo, muito comum no Minho, salienta a pertincia do cantador que quer prosseguir o duelo potico, mau grado a supremacia do interlocutor. 38 Cf. Carlos Nogueira, Ablio Costa, poeta popular, in O Comrcio de Baio, n. 116, de 26 de Dezembro de 1997, p. 6, com apresentao de alguns poemas.

2 muito naturalmente dos meios de comunicao de massa. Dela no se pode dizer que necessite das promoes calculadas por publicidades engenhosas). nesses eventos construtores de memria colectiva que certamente residir o reduto e a identidade desta prtica cultural na sociedade moderna39, com consequncias j bem visveis no aumento do nmero de cantadores. Em certas reas de Espanha, mais do que at agora em Portugal, esta arte adaptou-se natural e solidamente modernidade, atravs de encontros que tm lugar em grandes espaos como campos de futebol40, procurados por um pblico muito copioso, entusiasta e socialmente diversificado. De temticas variadas pblicas, privadas, histrico-sociais, religiosas, polticas, etc. , estes espectculos, advindos de uma tradio evolutiva, funcionam como uma espcie de catarse ou de psicanlise colectiva. Os colectores de literatura oral participam neste processo enquanto produtores culturais que reenviam para a comunidade textos que de outra forma no ultrapassariam a efemeridade que lhes conatural. O que ilustra bem a producente convivncia entre o oral e o escrito, registos afinal mais complementares do que mutuamente exclusivos, e a importncia crescente da ultramediatizao televisiva, electrnica e digital, com a fixao em registos udio e audiovisuais. Os CDs, que transformam a oralidade primria em secundria, eternizando-a, so o sinal mais evidente da persistncia de um fenmeno da cultura oral portuguesa que parece vocacionado para recusar a fossilizao que muitos j lhe vaticinavam h longas dcadas atrs. Prova inequvoca, ainda, de que as essencialidades culturais de uma matriz antropolgica, respeitando as progressivas variantes locais, regionais e nacionais, permanecem intactas ao longo do curso histrico. A repetio destes produtos poticos, em suporte escrito, udio ou audiovisual, pode interessar ao antroplogo, ao etngrafo ou a outro investigador, pode seduzir ou divertir, pode at promover a vedetarizao de um ou outro cantador ao desafio, mas ter perdido a sua natureza nica enquanto expresso superior da arte da fala comunal: a comunho dos poetas com um auditrio que os entende, os apoia, os admira ou os critica, apesar de os objectos produzidos quase sempre desaparecerem irreversivelmente medida que so concretizados. Desse esbatimento decorre, alis, grande parte do valor da cantiga ao desafio, territrio no qual estudiosos de diversas reas do conhecimento podero encontrar fundamentos muito significativos para alentadas investigaes sobre os mistrios da mente humana: a sugesto, a fora da criao potica in loco, a consequente presena indelvel na memria de palavras modeladas artisticamente; palavras que so, afinal, instrumentos esttico-vivenciais, utilitrios, moralizadores, distractivos, jocosos, preventivos, coesivos ou subversivos, na linha do costume jogralesco peninsular. Mau grado essa precariedade, se registada por escrito, esta poesia torna-se reflexo de uma vocalidade (Paul Zumthor) dinmica que as letras aparentemente mortas no ocultam por completo, dada a energia pulsional dos textos (marcada de resto nos muitos ndices de oralidade patentes superfcie da verso escrita). E com uma tal estabilizao h mesmo um ganho: o desafio hoje tambm um produto de fruio e estesia em privado (mesmo para um nico indivduo, como j podia ser com a modalidade de cordel). Qualquer teoria da cantiga ao desafio deve por conseguinte atender ao plano individual, equacionando o fenmeno como acto criativo pessoal, quer ao plano comunitrio, como processo sociocultural de transvase entre a voz e a escrita, a precariedade e a
39 Pense-se, a ttulo de exemplo, nos Encontros de Improviso, Museu de Etnologia (Lisboa), 26 de Novembro de 1994. 40 Cf. Asier Barandiaran, La cultura oral vasca en su entorno: un elemento de identidad en el marco de la globalizacin, comunicao apresentada no VI Congreso Cultura Europea, Centro de Estudios Europeos Universidad de Navarra, Espanha, 25-28 de octubre 2000, Pamplona, Cizur Menor, Thomson / Editorial Aranzadi, pp. 1425-1431.

2 sugestividade da palavra dita e a permanncia material do cordel e, hoje, da cassete de vdeo e de udio e do CD. A interdisciplinaridade multivectorial do enfoque evidencia a complexidade de uma especificidade potico-musical que no se esgota em componentes tcnico-literrias e musicais. Exerccio ldico-inventivo com muito de antropolgico e sociolgico, poesia em aco, o desafio concretiza-se como macropoema dialgico constitudo por dois poemas orais individuais que se cruzam numa alternncia de foras, tenses e distenses variveis. A dimenso textual a materialidade mais visvel de uma orgnica que obedece a leis de improvisao em que participam elementos lingustico-literrios (arte potica, gramtica, retrica, estilstica, temas e remas), mas tambm factores extratextuais com os quais os contendores interagem de forma muito estreita (a audincia e o aparato tecnolgico que envolve algumas actuaes, com vista sua mediatizao). Enquanto forma de produo simblica, o desafio pois uma forma privilegiada de comprometimento dos cantadores na prtica da vida social; cantadores que, no seu papel de agentes estratgicos41, ao reflectirem e discutirem paradigmas segundo os quais o grupo se deve reger, ao contarem histrias, casos, sucessos faustos ou infaustos, esto a conferir coeso cognitiva e emocional vivncia colectiva e pessoal, edificando a identidade comunal e individual. A densidade interna e profunda da cantiga ao desafio de substncia antropolgica, funcionando como importante apoio do relacionamento entre o mundo (o social, o sagrado, o familiar) e o indivduo, na sua formao e movimentao nesse espao (onde tudo uma surpresa e um risco). Se recordarmos que a identidade tnico-cultural um importante factor de coeso e regulao do tecido social, mais sentido far verberar que, j entrados no sculo XXI, a pervivncia de culturas, paridades e gneros locais poder transformar-se numa aportao de contedos valiosos para a prosperidade da aldeia global e do ambiente globalizador em que nos movemos.

41 Na obra Aspectos do Cancioneiro Popular Aoriano (Ponta Delgada, Universidade dos Aores, 1981, p. 123), Jos de Almeida Pavo Jnior recorda que os servios de afamados improvisadores eram por vezes solicitados para peditrios organizados com o objectivo de reunir fundos destinados a obras de alcance pblico, como a reparao de igrejas paroquiais. Estes poetas-jograis ( idem, p. 122), que encontravam ambientes e cenrios propcios demonstrao da sua verve nas Festas do Senhor Santo Cristo e nas Festas do Esprito Santo, especializavam-se na palavra repentina, na revelao do grotesco social, na stira cirrgica dirigida s pequenas e grandes misrias humanas. o que carreia a contundncia explosiva desta quadra, citada pelo mesmo Pavo Jnior, da autoria de Carvalho Talaia, um dos mais celebrados cantadores aorianos do seu tempo; quadra desferida contra a avareza inabalvel de um indivduo: M porta, mau passador,/ ferrolho que no corres./ Desgraado ferrador,/ tu pensas que nunca morres? (idem, p. 123).

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