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Apresentação Da Obra

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Apresentao da obra Encomenda a Stravinsky, de J. T.

Parreira

A POESIA SEM ENCOMENDA (em J. T. Parreira)


Brissos Lino Aula Inaugural do ano lectivo da UNISETI, Clube Setubalense, Setbal, 19/9/11

A mais recente obra do poeta Joo Tomaz Parreira Encomenda a Stravinsky persiste na linha daquilo que j conhecemos da arte potica do autor, nosso amigo pessoal h cerca de 40 anos. Os seus interesses essenciais esto centrados na interaco entre a divindade e a humanidade, mas as suas preocupaes so invariavelmente com o ser humano, na sua relao com Deus, mas tambm em tudo o que tem que ver com a profundidade, os valores, a beleza e o sofrimento dos homens, como o prprio bem expressou em entrevista concedida a um programa de televiso em 2002. Na sua j significativa bibliografia, o autor, que publica desde 1966, revisita, nos poemas que agora nos oferece, nomes relevantes da literatura e da cultura universal, como Cervantes e os seus famosos D. Quixote de La Mancha e Sancho Pana, o clssico Homero, e sua Penlope aguardando Ulisses, assim como o prprio heri e outras figuras da Odisseia, mas tambm vultos relevantes da msica, como Stravinsky (que d o ttulo presente obra) e da pintura, como Van Gogh.

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Indo muitas vezes buscar inspirao a outros autores e poetas, que transcreve em epgrafe, J.T. Parreira reflecte nos seus versos tambm sobre a vida quotidiana do comum dos mortais. Nesta linha se inserem poemas como Momento no centro comercial, Jogo nos espelhos, Espelho partido, O condomnio, Linha 4, O facto meteorolgico e O banho de mar. O poeta v, nos passos repetidos do dia, na monotonia dos gestos, na ocupao habitual dos espaos e na liturgia dos procedimentos, significncias que escapam ditadura da exegese tradicional dos hbitos adquiridos. O universo bblico tambm uma linha de inspirao e opo literria que acompanha o autor desde sempre, e que mantm num conjunto de poemas desta obra, como Passagem por Samaria, Samaritana, O que viu a mulher de Lot e Quando David comps um Aleluia. Mas Joo Tomaz Parreira aborda ainda a ruralidade e o buclico (Era um homem da terra e O beijo no bosque), a inspirao das artes plsticas, rea que lhe interessa particularmente (Rapariga janela), o mundo da msica, que tanto aprecia (Para danar um tango, A orquestra, O violinista, Trio de cmara e Um leque na pera), ou mesmo certos momentos inscritos na Histria, como o caso do poema O mensageiro. E h ainda espao para questes mais profundas como a morte (A antiesttica), as angstias humanas (Despejo), ou uma certa espiritualidade (O anjo indispensvel), entre outras.
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O autor, que no se limita a escrever mas que surge igualmente como esforado divulgador do trabalho de poetas estrangeiros, que regularmente traduz para a lngua lusa, tem, por sua vez, poemas seus traduzidos noutras lnguas, alm do castelhano de que exemplo a presente edio bilingue como o caso das lnguas inglesa, italiana e turca. Joo Tomaz Parreira, que tem ganho vrios prmios literrios, e presena assdua na blogosfera e na internet, assim como colaborador regular na imprensa, sendo autor de verbetes em dicionrios, prefcios de obras de outros autores, textos para catlogos de exposies de pintura e para livros sobre artes plsticas. Tem ainda integrado jris de concursos literrios e proferido palestras e conferncias sobre literatura e cultura portuguesas. Foi a primeira figura agraciada com o ttulo de doutor honoris causa, pela Universidade Snior de Setbal, em Julho de 2010. A poesia no se inventou para cantar o amor esclarece Ea de Queiroz em A Correspondncia de Fradique Mendes, resistindo talvez a uma certa tendncia sua contempornea para a lamechice, uma espcie de pecado original do Romantismo. Pelo contrrio, o escritor defende que a Poesia nasceu com a necessidade de celebrar magnificamente os deuses, e de conservar na memria, pela seduo do ritmo, as leis da tribo. Talvez por isso o autor se dedique a celebrar a divindade, mas faa tambm questo de passar em revista as memrias de infncia que o marcam, em poemas como 1953 ou Regresso. Uma questo de conservar vivas tanto a f como a memria. Sabendo-se que o homem inseparvel da sua circunstncia, como dizia Ortega y Gasset, as memrias no nos pertencem, como uma espcie de sto das velharias, ou como peas de uma moblia antiga que nos
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habitumos a ver num dado espao fsico que habitamos. As memrias no s fazem parte da massa humana de que somos feitos como a determinam, em larga medida, da a sua importncia. Da o interesse que a Poesia tem por elas. J Pablo Neruda, em Nasci para Nascer (o seu discurso na entrega do Prmio Nobel da Literatura, em 1971), que se recusava terminantemente a dar orientaes a outros sobre a arte potica, dizia pensar da Poesia que uma aco passageira ou solene em que entram em doses medidas a solido e solidariedade, o sentimento e a aco, a intimidade da prpria pessoa, a intimidade do homem e a revelao secreta da Natureza. Isto , tanto o fortuito como o pensado, tanto o profano como o sagrado, tanto o ser humano na sua solido e interioridade como na relao e interaco com os outros e com o mundo, tanto a reflexo como a aco, constituem o espao privilegiado e vocacional da Poesia. Talvez por isso, J. T. Parreira vai desde momentos intimistas vida quotidiana e comunitria, desde a histria judaico-crist mitologia grecoromana, do homem da rua aos artistas, msicos e poetas, do lado mais negro da Europa hitleriana pureza de uma criana ou ao voo de uma ave num lmpido cu azul. de facto difcil, para no dizer inglria, a tentativa de compartimentar o produto potico de um autor. Ou mesmo, diria at, classific-lo de forma rgida. De certa forma isso que defende Eugnio de Andrade no Rosto precrio: O acto de criao de natureza obscura; nele impossvel destrinar o que da razo e o que do instinto, o que do mundo e o que da terra. Tudo se mistura, se confunde e se faz presente no universo do sentir potico.
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Por outro lado o poeta indissocivel da sua Poesia, muito embora por vezes o eu-potico que se apresenta expresse sentimentos que no o animam enquanto pessoa no momento em que escreve, porque o poeta vive tambm pelos outros. Observa o sofrimento dos homens e das mulheres, reflectindo sobre ele mas sem se conformar passivamente com a sua fatalidade e aceitao passiva. De acordo com Teixeira de Pascoaes em A Saudade e o Saudosismo, sem Poesia no h Humanidade, j que ela constitui a mais profunda manifestao da nossa alma. Todavia, de uma forma geral, inevitvel que o poeta vai nascendo com o poema como acrescenta Eugnio de Andrade para a mais efmera das existncias, j que so as palavras e a sua circunstncia que vo criando o poeta, de modo a que este se extinga para dar lugar fulgurao do poema, ou que deixe de ser para que o poema seja, e dure, e o seu fogo se comunique ao corao dos homens. Mas a originalidade de J. T. Parreira provavelmente no advm do seu instinto ou de qualquer intuio secreta que lhe assista. Edgar Poe, na sua Filosofia da Composio, diz que necessrio perseguir essa originalidade, procur-la com afinco, mas defende que tal princpio exige menos inveno do que negao. Quer o escritor dizer que as opes e rejeies longamente ponderadas, as to difceis emendas e acrescentos, afinal, constituem o modus operandi do poeta. Essa uma das dificuldades e angstias de quem escreve, deixar para trs uma parte de si, em detrimento de outras, naquele dado momento do acto criador, por efeito das tais opes, negaes e rejeies, como quem se
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obriga a escolher um nico caminho, quando tem vontade de seguir por dois ou trs ao mesmo tempo, sob pena de no sair do mesmo stio. O facto de uma temtica recorrente nos escritos do autor ser o holocausto nazi, como o caso do poema Endlsung der Judenfrage (Soluo Final), sem esquecer o seu ltimo livro de poemas, Os sapatos de Auschwitz, porque a temtica lhe interessa muito, enquanto demonstrao eloquente mas sempre surpreendente da bestialidade humana, devidamente documentada pela histria do sculo vinte, tal no implica que Joo Tomaz Parreira ou algum seu prximo a tivessem vivido directamente. curioso que Fernando Pessoa, em Herstrato, afirma ser muito mais fcil escrever um bom poema a respeito de uma mulher que lhe interessa muito do que a respeito de uma mulher pela qual est profundamente apaixonado, j que a grande emoo egosta e deixa as mos demasiado frias para escrever. O distanciamento quanto baste ser, portanto, bom conselheiro, quando se trata de escrever sobre momentos e experincias de vida que invocam profunda comoo ou inusitado sofrimento. Para os que ainda pensam que a intelectualidade portuguesa tem menos contedo do que a da Europa do norte por exemplo, a alem porque a histria e a cultura literrias na lngua de Cames se estribam preferencialmente na Poesia, ao contrrio de outros, de tradio mais filosfica, direi como Aristteles, que a poesia mais profunda e filosfica do que a histria. Provavelmente, para o velho filsofo grego, a Histria ser um registo interpretativo da complexidade de factos e intenes do j vivido, mas a Poesia ser um registo sempre presente dos sentimentos e emoes, sendo que o mundo sensorial explica e implica muitas vezes mais do que a pura e fria racionalidade.
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E Plato parece concordar com a ideia, quando afirma que a poesia est mais prxima da verdade vital do que a histria. A universalidade temtica observada na poesia do autor diz-nos alguma coisa, no apenas sobre a sua vasta cultura literria, e a sua riqueza como pessoa permanentemente atenta ao mundo dos homens, mas sobretudo sobre as suas preocupaes como ser humano, com os outros seres humanos, seus irmos, tendo em conta os seus sofrimentos, as suas angstias existenciais, as circunstncias de vida que experimentam, incluindo as lutas, fracassos e vitrias, contingncias tpicas de quem no se consegue salvar a si mesmo. Mas o facto que tambm a esttica, a beleza, a espiritualidade e a esperana habitam simultaneamente a sua poesia, na revelao de algum que, sendo conhecedor das sombras da existncia humana, ainda assim consegue abrir-nos uma janela oportuna de ar e luz, de forma a podermos ver os pssaros no seu voo matinal. Esta Encomenda a Stravinsky demonstra que a arte potica do autor no feita por encomenda, mas genuna, ostentando a sua marca pessoal, no aprofundamento da linha daquilo que j se lhe conhece. Quanto a mim, posso dizer que aprendi a entrar e trabalhar na minha prpria oficina de poesia com Joo Tomaz Parreira, e com ele tenho percorrido inmeras milhas nas veredas poticas. Por isso mesmo receio que tal circunstncia no faa de mim, talvez, a pessoa mais isenta para discorrer sobre a sua pessoa e obra.

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At porque, se como nos diz Florbela Espanca, ser poeta, ser mais alto, ser maior / do que os homens! / Morder como quem beija!, e outras radicalidades do gnero, convenhamos que se trata de um ofcio exigente e at perigoso... Mas creio que vale bem a pena prestar ateno arte potica e darmo-nos o direito de nos deliciar, quando a poesia de J. T. Parreira nos ajuda a ver que, e cito extracto do poema Encomenda a Stravinsky:

Stravinsky acende pssaros A partitura de onde os anjos puxam as rdeas dos cmbalos e pastores sobem com os rebanhos nas viglias do cu A partitura de onde um arco de cello cerra o silncio.

Setbal, 1 de Setembro de 2011

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