Aspectos Fundamentais PDF
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PÓS- GRADUAÇÃO
EM PSICOLOGIA
Niterói
Setembro de 2016
S237 Santos, Maria Aparecida dos.
Um cheiro de moxa no ar : Práticas Integrativas e Complementares no
SUS de Niterói. Que Saúde? Que Cuidado? / Maria Aparecida dos Santos. –
2016.
146 f.
Niterói
Setembro de 2016
Banca Examinadora:
__________________________________________________
Profa. Doutora Marcia Oliveira Moraes
(Orientadora) Universidade Federal Fluminense
__________________________________________________
Prof. Doutor Ronald João Jacques Arendt
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________________
Profa. Doutora Heliana de Barros Conde Rodrigues
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
_______________________________________________
Prof. Doutora Silvana Mendes Lima
Universidade Federal Fluminense
_______________________________________________
Prof. Doutora Laura Cristina de Toledo Quadros
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
AGRADECIMENTOS
Não se faz uma tese sozinha!
Muitas mãos me apoiaram de forma generosa no caminho. Isto, por si só, me fez
uma pessoa melhor. Agradeço imensamente ao meu irmão André Luiz que foi meu
principal protetor, apoiador de cada passo do caminho e me deixou estruturalmente o
mais confortável e segura para que eu cumprisse todas as oportunidades do doutorado e
amplio este agradecimento a sua esposa Arlinda. Agradeço ao meu grande amigo,
companheiro espiritual de muitas vidas, André Alfradique que cuidou da minha saúde
com acupuntura, moxa e conversas búdicas que me encheram a alma de brilho.
Agradeço, de maneira especial, a minha prima Valéria que fez longas leituras amorosas
da tese, em voz alta, nos dias em que minha visão já não estava tão boa. Agradeço a
querida Raquel Rodrigues, uma pessoa singular, lingüista que aceitou trocar cuidados
interessantes: revisão do texto por terapias naturais. Agradeço aos meus filhos Mariana,
Luciana e Ariom que me apoiaram como bons companheiros nestes quatro anos.
Agradeço aos meus sobrinhos Júlia e Arthur, ao meu irmão Kike, a minha cunhada
Idenir e aos meus amigos que tiveram a paciência e respeito de aguentar minha pouca
presença entre eles. Agradeço postumamente a minha mãe que me ensinou a ter
responsabilidade, coragem, ética e determinação. Ao meu pai “o Velho de Rio”, a
Raquel e aos meus irmãos de Curitiba sou agradecida pelas histórias contadas, os teatros
e filmes feitos em família – Ô gente criativa! Em especial, agradeço a Ana Cláudia
Figueiró, que me acolheu na sua equipe da Fiocruz, incentivou meus estudos e deu
sentido ao que é ser amiga. Agradeço a Márcia Moraes minha querida orientadora e as
companheiras do grupo de estudos das quartas-feiras que mostraram as múltiplas
versões do pensar. Obrigada colegas. Foi muito divertido!
AJ – Acórdãos Judiciário
AB – Atenção Básica
AP – Atenção Primária
MT – Medicina Tradicional
MS – Ministério da Saúde
QUADROS
Quadro 1: Relação de profissionais autorizados para a prática destes serviços
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................ 11
6. REFERÊNCIAS...................................................................................................... 138
RESUMO
SANTOS, Maria Aparecida. Um Cheiro de Moxa no Ar: Terapias Naturais, Integrativas
e Complementares nos Serviços Públicos de Saúde em Niterói-RJ. Que Saúde? Que
Cuidado? Tese (Doutorado em Psicologia) – Programa de Pós-Graduação em
Psicologia, Departamento de Psicologia, Universidade Federal Fluminense, Niterói,
2016.
INTRODUÇÃO
Buscando encontrar o cheiro da moxa no ar de Niterói, esta pesquisa de doutorado
baseou-se na memória oral, em pistas disponibilizadas por narrativas construídas por
profissionais que viveram ativamente um período em que Niterói serviu de exemplo de
envolvimento com as Práticas Integrativas e Complementares (PICs) nas policlínicas de
saúde do SUS, nas décadas de 1990 e 2000. O trabalho apresenta como, em rede e por
paixão, servidores, gestores, usuários e comunidade fizeram acontecer uma realidade
potente das PICs na saúde pública de Niterói, seu quase esquecimento e os esforços para
uma coexistência de racionalidades distintas de saúde e de cuidado na rede de saúde
brasileira.
Desta maneira, ao longo do tempo fui exercitando a escrita de textos, pois uma das
coisas que eu queria aprender no doutorado era escrever artigos. Entendo que isto não
seja algo nobre a se apreender de um doutorado. No entanto pensava: qual lugar melhor
1
Tralhas: conjunto de material importante para a pesca.
12
No caminho entre algo estabilizado e outra margem estabilizada percebi que teria de
atravessar um terreno muito instável e perigoso. Portanto, não teve desvio. Carregada
com as minhas tralhas para conduzir o texto convidei o leitor para comigo fazer uma
travessia por dentro de uma areia movediça e chegar ao outro lado, sempre com a calma
do pescador, porém sem qualquer estabilidade do solo. Uma experiência que pode ser
boa para todos. Ou não. Só passando por ela para dizer ao final. Assim, organizei a tese
em quatro movimentos.
chamou o seu saber de curandeirismo. Entre partos e discussões com padres e fiscais do
Conselho Regional de Medicina-CRM, entre São Paulo, Niterói, Colatina, Rio Quente e
o meu retorno a Niterói, dentro deste caldo movediço, as PICs borbulharam para tudo
remexer. Encontros com interlocutores como uma etnobotânica que estuda os erveiros e
mateiros da Mata Atlântica trouxe reflexões sobre como no Brasil vemos a propagação
nas clínicas do SUS das práticas tradicionais orientais e não as brasileiras. Isto nos
remete à poesia de Chico Buarque de Holanda e ao Norte colonizador que em nós
habita... “ai esta terra ainda vai cumprir seu ideal, ainda vai tornar-se um imenso
Portugal!”. E entre chás e bolos é apresentada uma conversa de amor fraternal entre as
primas Maria Dente de Leão e Valéria Estrela de Aniz que refletem como a Reforma
Sanitária , Reforma Psiquiátrica e as PICs modificaram a vida de quatro mulheres
envolvidas com a saúde.
O quarto movimento é composto por sugestões dos narradores para que as PICs
voltem a fazer parte de Niterói com uma participação mais comprometida, amarrada ao
ensino de saúde da Universidade Federal Fluminense (UFF). Apresenta as inscrições
construídas durante a tese deixando marcas como pistas pelo caminho e novos
encontros com sinais para o futuro. As considerações finais levam o leitor novamente à
terra firme. Ao menos momentaneamente.
14
Venho trabalhando com Terapias Naturais há trinta anos. Um tempo onde a idéia
sobre estes terapeutas (terapeutas alternativos) era atravessada pela referência dos
“médicos dos pés descalços”. Esses foram terapeutas orientais, camponeses, da China
pós revolução de 1966, que cuidavam da sua comunidade e não tinham formação
acadêmica, pois, recebiam ensinamentos sobre cuidados na forma tradicional:
oralmente, de mestre para discípulo. Tais terapeutas tiveram um papel importante na
sociedade chinesa porque estavam mais próximos das comunidades e conseguiam
manter uma referência cultural de cuidado em saúde (JAYASURIYA, 1995).2
2
Ver JAYASURIYA As Bases Científicas da Acupuntura. Rio de Janeiro: Sohaku-in Edições, 1995
3
Ver Nelson Felice de Barros, A Construção da Medicina Integrativa, 2006.
4
Para aprofundar o conhecimento ver a tese de doutorado de GUFINKEL, E. da Escola Paulista de
Medicina, 2001.
15
projeto de pesquisa para o doutorado. Pretendia olhar mais de perto, desta vez como
pesquisadora e mostrar para a academia e outros interessados em saúde e cuidado, os
efeitos da Política Nacional das Práticas Integrativas e Complementares (PNPICs)
aplicadas no sistema de saúde da cidade de Niterói-Rio de Janeiro. Portanto, o local
ponto de partida da pesquisa de campo deste trabalho foi uma policlínica comunitária e
minhas memórias.5
Convido o leitor a olhar uma imagem, chamo sua atenção para uma construção
destacada da Avenida Ary Parreiras, em frente à Universidade Federal Fluminense -
Veterinária, no bairro Vital Brazil, em Niterói. Trata-se de um prédio de três andares,
concreto cinza aparente se contrapondo com algum branco na pintura das paredes e os
vidros das janelas. Nesta construção, blocos de concreto retangulares e quadrados se
misturam aos jardins por toda volta e no vão central. Possui um estilo que lembra arte
em arquitetura, lembra Oscar Niemayer em Niterói. Está inserido em uma das pontas de
uma praça. Possui corredores abertos ao ar livre, com bancos de cimento liso
incrustados nas muretas frontais às portas dos consultórios e ambulatórios. Permite que
as pessoas, em espera, permaneçam em contato com a claridade, ar livre,verde das
folhas das árvores, o marrom da terra exposta e o canto dos passarinhos. Tudo
misturado a conversas de gente...muita gente!
5
Achei por bem não nomear a policlínica porque o que aconteceu nesta pode estar acontecendo em outra,
portanto, a relevância está nos acontecimentos, processos e caminhos, conexões e controvérsias das PICs
em Niterói: em rastrear o “cheiro de moxa no ar”.
6
A moxa é feita a partir do veludo da planta Artemisia (Artemisia vulgaris, família Compositae) que
queimada produz um calor mais penetrante. Seu efeito é semelhante à acupuntura, que age estimulando
pontos no corpo para fortalecer a circulação do Qi (energia). Para saber mais sobre moxa ver a tese de
doutorado de GUFINKEL, E. da Escola Paulista de Medicina, 2001.
16
É possível contemplar o que acontece na parte interna de uma destas salas. Porta
aberta cuidadosamente, se vislumbra um ambiente em penumbra, suficientemente
silencioso, algum sinal de fumaça que exala dos bastões de moxa. Os quadros nas
paredes lembram símbolos orientais do Yin e do Yang; canais dos meridianos da
acupuntura desenhados no corpo humano; flores da cerejeira e traços de escritas em
nanquim confundindo movimentos corpóreos com símbolos da comunicação oriental
escrita à mão e pincel, talvez um poema. Os cheiros se misturam entre a suavidade seca
da Artemísia queimada e algum óleo de cravo, cânfora e sândalo. Talvez cinco macas
espalhadas no espaço, pessoas deitadas com agulhas de acupuntura fixadas nos pontos
da pele; outras recebem massagem nos pés (reflexoterapia plantar) e aparentam
relaxamento. Um profissional postado ao lado de outra maca possui um bastão de moxa
em brasa na mão direita. Ele aproxima a moxa da pele do usuário deitado na maca. Tal
aproximação, a menos de dez milímetros do contato com a pele, cria uma espécie de
tensão - entre se deixar levar pelo calor curativo e o medo de ser queimado. Será este
um ato de cuidado gerador de saúde; um ataque que leve a lesão; um ato de fé e crença?
Nesta fronteira, entre a pele e a moxa em brasa, entre as lembranças e aquilo que
foi produzido no encontro das PICs com a racionalidade da biomedicina com o passar
do tempo em Niterói, aconteceu a reflexão do meu trabalho. Será que a saúde
vivenciada neste lugar é atravessada pela circulação da energia vital (Qi), ou seja, pela
racionalidade da filosofia da Medicina Oriental? Será que o cuidado leva em
consideração a potência criativa dos modos de viver saúde? Existe o reconhecimento da
cultura dos conhecimentos locais/populares em saúde e cuidado? Como essas pessoas
tomam doença e adoecimento? A doença é positiva, faz parte do vivo e não é exceção
ou algo que deva ser extirpado como maléfico, maldito, indizível? Poderei encontrar
pessoas que vivenciam outras formas de cuidado, saúde e de se sentir saudável ou
encontrarei uma situação na qual o uso das terapias diferenciadas não passe de repetição
e utilização mecânica de uma tecnologia sem questionamentos filosóficos sobre saúde e
cuidado, mas, com o único intuito de alcançar os padrões de normalidade instituídos?
Por fim, na visita. a conversa caminhou inicialmente para perguntas sobre como
apareceu o meu interesse em pesquisar sobre este assunto e o porquê da escolha do
lugar. De pronto notei que a pessoa que me recebia não tinha conhecimento do meu
projeto de pesquisa de doutorado que enviara semanas antes, junto ao pedido da carta de
autorização do trabalho de campo. Estranhei e respondi ser frequentadora como usuária
do lugar desde a minha adolescência até os dias de hoje. Bem como que acompanhara
de perto a vida da policlínica em seus inúmeros momentos, incluindo a entrada das
Terapias Naturais Integrativas e Complementares com suas práticas da acupuntura,
moxa, terapias corporais, homeopatia, etc. Expliquei que eu mesma havia atuado no
local com irisdiagnose (leitura e análise da iris – parte colorida dos olhos), dando
supervisão de estágio do curso que desenvolvia na época, incluindo inúmeras palestras
para funcionários e usuários sobre o tema.
7
O Projeto Gugu é um programa de ginástica e incentivo à qualidade de vida voltado para
idosos, idealizado pelo médico ortopedista Carlos Augusto Bittencourt Silva com início em abril
de 1995, na Praia de Icaraí, em Niterói. Maiores informações em
http://www.funcab.org/gugu.php
18
Em algum momento dos olhares e movimentos de corpo entre nós, ela falou que
só no dia anterior havia baixado o arquivo e lido aquele “calhamaço” da Política
Nacional sobre as Práticas Integrativas e Complementares do SUS (PNPICs) e que não
havia gostado! Justificou dizendo que era homeopata e que colocaram a homeopatia no
meio destas “terapias”. Disse estarem bagunçando com a homeopatia, assim como na
Alemanha o fizeram, deixando quem não é médico prescrever. Onde já se viu leigo
prescrever! Neste momento retruquei que não só na Alemanha, mas em toda a Europa e
em países de outros continentes a homeopatia não era exclusividade médica e que as
pessoas não eram leigas em homeopatia, pois estudavam para isso. A pessoa retrucou,
disse saber desta informação e se irritar deveras com ela, pois acredita que este trabalho
deveria ser feito apenas por médicos. Para não seguir em frente com a disputa, informei
que nas PNPICs, a homeopatia estava prevista para ser efetuada apenas com atuação dos
médicos. Afirmou não ser assim e eu afirmei - Sim, eu tenho a portaria do SUS que faz
a recomendação de quem pode atuar em cada prática das Terapias Naturais, Integrativas
e Complementares; enviarei por email.
Após meia hora de conversa percebi que a pessoa da policlínica não conhecia
nada da história do lugar e menos ainda da forte relação que o lugar tivera com as
terapias naturais. Saímos da sua sala para que me mostrasse onde o serviço de
acupuntura estava sendo feito. Neste caminhar fui apresentando as salas que já haviam
sido ocupadas pela acupuntura8, moxabustão, ventosas9, Shiatsu10, Tui-Na11 e o local
8
Criada há mais de dois milênios, a acupuntura é um dos tratamentos médicos mais antigos do
mundo. Consiste na estimulação de locais anatômicos sobre ou na pele – os chamados pontos de
acupuntura.
19
onde antes fora a horta de ervas terapêuticas. Servi de guia e fui guiada. Tive a
impressão de estar tendo uma conversa controversa. Passamos pela tal sala do terceiro
andar de onde o cheiro da moxa tomava o ambiente há tempos atrás marcados na minha
memória e a pessoa espantou-se quando contei que era naquela sala que outro modelo
de saúde e cuidado era repartido com as funções biomédicas do posto de saúde. Disse-
me que nunca soube disto! Que esta sala era o almoxarifado e precisam desta sala para
guardar coisas!
Perguntei “Onde está o pessoal do Projeto do Gugu? Eles há anos têm parceria
com esta policlínica e sempre assíduos”. A resposta foi que a parceria havia sido
cancelada este ano! Comentei que no lugar onde acontecia o projeto com a terceira
idade estava lotado de carros. Ela retrucou que sim, pois precisavam de estacionamento,
pois os carros corriam risco de serem roubados se estacionados no em torno da praça.
Algum tempo depois deste encontro de tom cinza escuro, após receber a carta de
autorização do Comitê de Ética para dar início à pesquisa de campo, escrevi um email
para os interessados da policlínica e novamente fui chamada para uma reunião .
9
É uma técnica milenar que usa a sucção da pele com aplicação de copos de vidro, acrílico ou
bambu e que tem como finalidade criar um vácuo para eliminação de toxinas do sangue e
tratamento da saúde.
10
O Shiatsu é uma terapia de reequilíbrio energético que consiste em pressionar
determinados pontos (da acupuntura) que formam linhas ou canais de energia pelo corpo.
11
O Tui-Na, é uma das mais antigas formas de medicina chinesa que usa as mãos em
automassagem ou em outras pessoas como instrumento para tratar a saúde.
20
matrícula para acupuntura, portanto, o faz como terapêutica complementar à sua atuação
como cardiologista. Esclareceu que os médicos só podem ter duas matrículas na
policlínica e que, este médico teve que escolher entre acupuntura e homeopatia, pois
além de cardiologista e acupunturista, também é homeopata. Suspirei e perguntei para
mim mesma: Onde foram as PICs que estavam aqui?
Percebi que teria que seguir outro rumo para conseguir respostas e desta vez
seria seguir o cheiro da moxa onde quer que ela estivesse. Até onde ela me levaria? A
quais conexões? E assim, nesta toada, seguindo em frente, um pouco abatida com o que
vira, decidi postar-me mais como um pesquisador de fronteira, mais pelas bordas, mais
da terceira margem do rio (ROSA, 1994) e seguir os fluxos, os pequenos caminhos
(MOL, 2002). E assim, segui em frente buscando encontrar fios, que ao final, me
apresentasse uma amostra da rede das PICs na saúde de Niterói e seus nós, em
encontros e desencontros.
1.2 METODOLOGIA
“Um pesquisador interceptado-intercedido
embriagado torna-se imperceptível, em lugar de
transcendente-soberano, ou seja, ao invés de postado
em recuo quanto aos pontos de problematização
vigentes e/ou emergentes. Correlativamente, esses
pontos colorem o mundo a explorar (bem como
aquele que o explora) de sua própria cor, instaurando
univocidade, isto é, ausência de hierarquia nos
modos de ser” (RODRIGUES, 2011, p.237).
Tal como para Haraway (1995), que sugere ser nas fronteiras que se delimitam e
instauram o que conta ou não como objetividade, assim pude perceber, nos dois
encontros com a pessoa do centro de saúde , que em um dado momento, a homeopatia
(ou a biomedicina e o Ato Médico) era indicada para ser reafirmada como a
objetividade marcada e escolhida por alguém que estava no poder de dizer.
Na TAR, um fim pode sempre ser modificado em função de desvios, através de
mediações imprevisíveis (LATOUR, 2005). E, no processo do fazer fazer não cabe
estabelecer causalidade. Como afirma Ronald Arendt , a questão está sempre nos
vínculos estabelecidos que proporcionam boas ou más articulações (ARENDT, 2014)
Fiz uso da História Oral, pois já havia trabalhado com esta metodologia por
ocasião do mestrado e achei confortável e necessário incluí-la no manejo das narrativas.
Pensava que seria importante encontrar pessoas do passado, aquelas que atuaram na
mesma época que eu na policlínica e ouvir delas suas histórias e memórias, suas versões
do que havia ocorrido. Pois, poderia eu estar sendo “enganada por um gênio maligno”
que me confundia! Todavia, neste ponto de dúvidas em que me encontrava, triangular
metodologias de pesquisa me favoreceu o encontro com as respostas. Portelli (1996)
afirma que “ (...) Se considerarmos a memória um processo, e não um depósito de
dados, poderemos constatar que, à semelhança da linguagem, memória é social,
tornando-se concreta apenas quando mentalizada ou verbalizada por pessoas.” (p.4).
Assim sendo, eu precisava resgatar estas memórias e as narrativas - minhas e dos
colegas - as tornariam presentes e vivificadas; e, por fim, alguma coisa ficaria marcada
na tese escrita que serviria para outro alguém que lesse o trabalho. Seriam memórias
compartilhadas em encontros à beira do fogão, envoltos por atmosfera de chás, bolos,
pães e cafés. Em vista desta possibilidade de encontros, o autor destaca que “as
recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese
alguma, as lembranças de duas pessoas são – assim como as impressões digitais, ou, a
23
bem da verdade, como as vozes – exatamente iguais.” (ibidem, p.7). Ao trabalhar com
narrativas orais, uma visão de mundo está mais para uma colcha de patchwork do que
para padrões coerentes e organizados de representações pré-estabelecidas. Não importa!
Seja qual for a (jamais garantida) verdade factual, o que importa, para a história oral é a
versão dos narradores (ibidem, p. 20). E esta posição da História Oral se alinhava
fortemente com as contadoras de histórias da Teoria do Ator-Rede.
Portanto, pesquiso este campo da saúde por interesse em criar mundo, em fazê-
lo variar, pois aposto em novas possibilidades de inscrever na saúde e nas práticas de
cuidado em saúde um outro trato, longe do destrato, como sugere Santos (2002), mais
perto de outras gramáticas possíveis, alternativas, múltiplas, mais perto da fronteira e
mais afastado do centro, para melhoria de condições do atendimento de quem depende
do sistema público de saúde.
“A fronteira enquanto espaço, está mal delimitada,
física e mentalmente (...). Por este motivo, a
24
Para mapear como e quem decide quem fica de fora da ciência, o pesquisador
de fronteira segue em movimentos de composição e rodeio, de idas e vindas, ao
redesenhar a todo momento a área investigada, de permanentes ajustes (negociações).
Era o que eu tinha que fazer, buscar na memória sem temer, as histórias que me
ajudariam a compor o cheiro que queria seguir “da moxa no ar de Niterói”, mas, para
isto buscaria uns anos mais longe com memórias da minha infância e do meu tio médico
que trabalhava com acupuntura nos anos de 1960, em São Paulo e outras histórias que
haviam ficado entre as margens da história oficial. Sem dúvida uma ação trabalhosa,
difícil, complexa, extenuante e divertida.
É preferível procurar ir pelas periferias e olha-las como zonas de fronteira, como
define John Law (2004), olhar para a fronteira supõe-se olhar para a negociação, porém,
fronteira é local de conflito onde se encontra controvérsias, não é um lugar cômodo. O
que tomo por lugar cômodo é aquele lugar onde aparentemente tudo está estabilizado,
seguro e, portanto, pouca energia de trabalho é mobilizada para se chegar ao final: um
lugar previsível. A fronteira é lugar vibrante, vivo, efervescente onde a qualquer
momento pode-se romper a estabilidade.
Fronteira é o que está à frente, tem a ver com o front - que se traduziu num
sentido de batalha, muitas vezes. Logo, o que marca a fronteira é justamente a sua
capacidade de fricção, de atrito, de porosidade, o que faz passar, o que se negocia.
Podemos pensar fronteiras como projeto e projeto como algo não dado, não delimitado,
mas tecido, feito e refeito, negociado.
O deslocamento daquilo que parece estável, já dado, naturalizado para uma nova
conformação, quer seja no conhecimento sobre algo, quer seja sobre as técnicas
utilizadas a partir do conhecimento sobre algo, leva a modificação das estruturas e
estratégias praticadas anteriormente; portanto, desestabiliza. Como efeito, a modificação
afeta, inquieta, desassossega o estabelecido e por isto produz perigosas possibilidades.
Estamos falando de possibilidades de polifonia, onde pesquisar é ter que ouvir todas as
vozes, é feito de encontros inusitados e transgressores, encontros de condições potentes.
Por este lado, já vejo como um encontro promissor o meu com a pessoa da conversa
controversa!
12
Para saber visite FREITAS, Eduardo De. "Areia Movediça"; Brasil Escola. Disponível em
<http://brasilescola.uol.com.br/geografia/areia-movedica.htm>.
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De tal jeito que, para encontrar o que realmente interessa (inter-esse) é preciso
saber coexistir como nômade, na área de fronteira, mutável, invisível, pouco explorada,
caótica e conspirar com as controvérsias criando pontes. Tal disposição exige um estilo
de pesquisador que vai ao encontro do desconhecido com jeito enamorado, se
implicando com as evidências e principalmente com aquilo que não está aparente. Às
vezes, como no texto de Guimarães Rosa, se postando na terceira margem do rio, no
28
limbo entre fronteiras, lugar onde, aparentemente, seria o seu fim. E de lá enxergar o
que acontece nas fronteiras: negociações, sempre políticas. Dessa subjetivação mutante
que se dá com o pesquisador de fronteira advêm possibilidades de novas gramáticas, as
formas alternativas de conhecimento. E assim pude seguir a pesquisa. Com medo da
terra que desapareceria dos meus pés, confiando numa memória que seria flutuante
como pisar em nuvens e feliz por estar um aprendiz pesquisante.
Com a experiência junto ao grupo da Fiocruz, pude vivenciar como a Teoria do
Ator-Rede vem sendo utilizada nas pesquisas em saúde. Participei de algumas pesquisas
avaliativas e aprendi sobre os modos e usos da avaliação, que segundo Figueiró
(FIGUEIRÓ at all, 2012, 2014) podem ser: a) instrumental (para orientar a política e a
prática), b) conceitual (para gerar novas ideias ou conceitos que sejam úteis para prover
de sentido o cenário político), e c) político (ou simbólico – para justificar preferências e
ações preexistentes). Assim, este encontro, com as pesquisas avaliativas e seus
caminhos, fizeram-me perceber e ficar atenta aos modos políticos que insistiam em
aparecer na minha pesquisa do uso das PICs em Niterói. Ao reconstruir a rede
sóciotecnica das PICs em Niterói, pude deixar visível alguns problemas que convocam
para alguma solução mais estratégica.
Busquei uma entrada na rede pelo fio puxado das memórias das PICs em uma
policlínica de saúde de Niterói, mas, penso que sejam problemas que estejam em outras
cidades e outros estados do Brasil e que esta metodologia possa ser replicada na idéia de
se construir um SUS com as PICs e suas ferramentas e modos de cuidar.
Como nos diz Heliana Conde (2011), referindo-se a Deleuze e Guattari (1995)
sobre as árvores imperativas das verdades epistemológicas da ciência e a produção de
ervas e musgos na cabeça dos cientistas sociais “(...) as ciências ditas “duras”, qual as
neurociências, podem também tornar-se intercessoras – não por cânones de verdade
frente aos quais deveríamos nos curvar, mas pelas eventuais linhas de fuga que sejam
capazes de propiciar” (p. 237). Deste modo, este trabalho poderá trazer reflexividade
para todos os envolvidos.
29
Nesta fronteira, entre a pele e a moxa em brasa, reflete-se que a convivência das
Terapias Naturais, Integrativas e Complementares com a medicina ortodoxa dentro do
sistema oficial de saúde proporciona uma zona na espera do que virá a ser, onde nem
mais se pertence ao território de origem e nem se é aceito totalmente pelo novo
território, trata-se de um estado de transição, que poderá durar por muito tempo.
Por fim pensei em navegar na areia movediça por analisadores que descobertos
pelo caminho ( gestores – práticas judiciárias – ideário do SUS – servidores – usuários –
imigrantes – economia- indústrias – colonizadores – sabedoria cultural – academia),
todos relacionados as PICs e ligados em um “e” que na análise mostraram uma
estabilização momentânea e aqui no texto fez uma rede aparecer. Convido o leitor a
navegar nesta areia movediça comigo, sem esquecer-se de manter a calma.
13
Atualmente, afiliado a The Open University, com sede administrativa em Colombo, Sri Lanka, com
representação em 120 países. .
33
A saúde passou a ser vista como o maior recurso para o desenvolvimento social,
econômico e pessoal, assim como uma importante dimensão da qualidade de vida.
Fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, comportamentais e
biológicos podem tanto favorecer como prejudicar a saúde. Portanto, as ações de
promoção da saúde objetivam, através da defesa da saúde, fazer com que as condições
descritas sejam cada vez mais favoráveis (Otawa, 1986).
Como esclarece Barros (2007), em relação aos objetivos da PNPIC para o SUS,
foram enfatizados: (i) a prevenção de agravos e a promoção e recuperação da saúde,
com ênfase na atenção básica, voltada para o cuidado continuado, humanizado e integral
em saúde; (ii) a contribuição ao aumento da resolubilidade e a ampliação do acesso,
35
Por ocasião da 10ª Conferência Nacional de Saúde, seu relatório final aprovou a
"incorporação ao SUS, em todo o País, de práticas de saúde como a fitoterapia,
acupuntura e homeopatia, contemplando as terapias alternativas e práticas populares"
(MS/ 10ªCNS, 1996). Três anos após esta conferência de saúde ocorreu a inclusão das
36
Termalismo/crenoterapia Médicos.
saúde. Deixando de fora aqueles, que realmente são práticos constituídos na cultura e
racionalidade desta prática de cuidado em saúde e que não passaram pela formação
acadêmica. Dessa maneira, ocorrerá a manutenção do discurso desqualificador do
curador formado na cultura popular sob o poder da hegemonia científica do especialista.
de outra racionalidade que não a biomédica traz apoio à comunidade para que leve sua
vida mais ativa, de forma continuada, evitando afastamentos, paralisias ou rompimentos
com o processo de viver (MINAYO & SOUZA, 1993).
Por fim, uma série de patologias contemporâneas que levam a uma espécie de mal-
estar geral e que não necessitam de serem tratadas com medicamentos alopáticos, mas,
que obstaculizam os sujeitos. Tais patologias formadas pelo atual modo de existência,
do mundo globalizado e consumista, são carentes de tratamentos mais sutis, mais
globais, mais indiretos, mais humanizados, disponíveis nesse tipo de terapêutica
proposta pela Organização Mundial de Saúde e sistematizada pelo Sistema Único de
Saúde (SOUZA E LUZ, 2009).
14
Este trabalho deixará os termos utilizados sobre estas práticas exatamente como foram utilizados no
tempo para que o leitor perceba suas modificações .
41
...
42
Assim racionalizando, como tecer rede com os fios puxados da cultura oriental
versada aqui, com a lógica do cuidado, de Mol e a normatividade da vida em
Canguilhem? De que saúde e de que cuidado estamos falando aqui?
Oposto a isso, entender a vida como a normalidade tomada como um ideal a ser
alcançado, traz insegurança e medos. Afasta a possibilidade de melhor convivência com
as desordens, acontecimentos inesperados, pedras no caminho e diferenças. Diminuiu a
capacidade de produção de novos sujeitos e novas práticas, de ser tal qual água que
aceita o desvio do encontro com a pedra do rio, tomando a vida em seu movimento, de
produção de novas normas.
Logo, na saúde, tanto Canguilhem como Mol buscam evidenciar que “doentes” e
“crises” são momentos de vida, na sua lógica. Diferente seriam as pessoas saudáveis.
Pois, os “modos de ordenar” a saúde para Mol e a “normatividade vital” para
Canguilhem derivam mais de uma ação como verbo, envolve esforço contínuo em
auscutar-lhe a vida em movimento; e mesmo assim, pode falhar.
serpente que morde o rabo): em algum momento encontrará nova crise, outro obstáculo
e nova ação criativa, em um quantum constante de criação. Na lógica do cuidado, assim
como na normatividade ou no pensamento da MTC (Medicina Tradicional Chinesa)
não se quer o retorno ao estado anterior e sim a possibilidade de continuar,
amadurecendo na criatividade.
48
Percebi que pelo lado de dentro de uma família como a minha: misturada, um tanto
confusa, nada ortodoxa, formada de histórias de ciganos contadas pela avó paterna,
viajantes inquietos, por vezes ocultos, secretos, subterrâneos, outras vezes instituídos,
seria possível desvendar pequenos detalhes do cotidiano. Falar de um lugar ao mesmo
tempo secundário por se tratar de uma família não tradicional e central ao mesmo tempo
por estarmos envolvidos com a temática da saúde e com as terapias naturais. Para
Michel de Certau (2008), “(...) a narrativização das práticas seria uma maneira de fazer
textual, com seus procedimentos e táticas próprias” (CERTAU, 2008, p.152). É um
„saber dizer‟, „arte de dizer‟, „arte de fazer‟, são táticas e „sutis cá e lá‟ no tempo
oriundo do trabalho, da culinária às lendas, das astúcias das histórias vividas, às
histórias narradas (ibidem, p.151).
49
Por conseguinte, quando Certeau (2008), refere-se aos jogos e artes do dizer, traz
a idéia de que a linguagem está submetida à lógica dos jogos de ações, relativos aos
tipos de circunstâncias. Argumenta que narrativa não se trata de descrição e observa que
se o discurso produz efeitos e não objetos, então é narração e não descrição. Portanto é
uma arte de dizer.
“Fui criada com apreço ao conhecimento brasileiro sobre saúde. Minha bisavó
materna era parteira em Belém do Pará, recebeu todos os filhos de sua filha em casa e
por suas mãos; minha mãe quando menina teve crupe (doença infectocontagiosa grave)
e foi desenganada pelos médicos para ser curada com embrocações (pinceladas direto
na garganta e amígdalas) de óleo de copaíba feitas pela avó (memórias 2014,MARIA
dente-de-leão)”.
18
Os sobrenomes dos entrevistados estão dados a partir da escolha dos mesmos. Foi sugerido que dessem
o nome da erva ou fitoterápico de maior sinergia consigo. Dente-de-leão (Taraxacum officinale) é uma
erva desintoxicante para o fígado. Maria Dente de Leão é quem escreve esta tese.
50
“Na minha família tínhamos um médico e minha avó paterna (que contava histórias de
quando foi roubada por ciganos aos 12 anos de idade... e eu adorava e estranhava tais
histórias) fazia a vez de enfermeira dele. Era bem engraçado, pois o que acontecia na
minha família era uma espécie de reflexo do que acontecia no Brasil: existia um
conhecimento da cultura nacional sobre saúde, inegavelmente forte e bem sucedido nos
seus efeitos terapêuticos. Por outro lado, meu tio médico também trazia para seu
campo os aprendizados do momento, ou seja, a acupuntura, a hipnose, a ortomolecular
51
da Dra. Aslan. Ele treinava comigo estas práticas. Às vezes fazia demonstrações em
família dos poderes da hipnose e me fazia inclinar para frente, até a um ângulo
provavelmente impossível de estabilidade. Outras vezes, aplicava agulhas de
acupuntura em mim e mostrava para o meu pai (que temia), como aquilo não doía. Em
outros momentos recebi injeções de polivitamínicos, antibióticos e aqueles recursos da
biomedicina que ele também fazia. O meu tio era um médico multifário, complexo ou
era confuso? (memórias 2014,MARIA dente-de-leão)”
Assim era o Brasil, naquela época. Possuía uma imensa sabedoria popular de
saúde que havia dele cuidado até aquele momento e estava em mudança para o
desenvolvimento que contava com a industrialização dos medicamentos e insumos para
esta „evolução‟ do rótulo do que era considerado como científico.
São Paulo, capital, era recheada de novidades e uma delas era a acupuntura,
passada de mestre para discípulo oralmente e, a cidade estava cheia deles. Mestres
oriundos da grande imigração chinesa, japonesa e coreana, fugidos das misérias do pós-
guerra e vendo no Brasil um bom lugar para tudo acontecer. Esses imigrantes trouxeram
e mantiveram fortemente a sua maneira e cosmovisão de saúde e conseguiram
transladar19 seus conhecimentos para os nacionais. Para Madel Luz (1996), a busca
social de culturas médicas orientais, intensificada a partir dos anos setenta, sobretudo
das medicinas chinesa e hindu, com suas visões da saúde estava mais enraizada no
sentido de serem espiritualizadas. Afirma a autora que se tratava de um sintoma de um
abalo sísmico de natureza ideológica que se propagava, desde então, na cultura
ocidental, com maior ou menor intensidade nacional ou conjuntural (p. 361).
19
Aqui no sentido da translação do conhecimento que é um processo que promove mudanças nas relações
entre os atores envolvidos e novas formas de conciliação entre diferentes saberes, pois possui a
capacidade de não somente trocar como transformar maneiras de conceber, conhecer e agir. Para saber
mais sobre o assunto consultar Clavier & Potvin (2011); Callon (2008) e Latour (2005).
52
Por outro viés, Carvalho (2005) aponta que no período dos anos 1950 a 1980
ocorreram mudanças culturais significativas quanto aos hábitos e valores vigentes na
sociedade brasileira. Transformações na estrutura produtiva formando de maneira
crescente uma “sociedade de consumo”, com desdobramentos na área da saúde,
aplicando uma reeducação da população com vistas a incorporar novos hábitos e
53
Não obstante, naquela época, cada vez mais era tido como moderno e superior
usar medicamentos da indústria farmacêutica com influência européia e norte-
americana. As marcas do colonialismo se refaziam na demonstração de como a ciência
do norte (Europa e Estados Unidos da América) era séria e culta, separando e impondo
um saber fazer de práticas de saúde, onde cada vez mais a imagem do caboclo, do índio,
do negro, do caipira estaria vinculada à crendice e ignorância. Como nos diz Boaventura
de Souza Santos, “(...) O que há de específico na dimensão do colonialismo é a
violência apresentada na ideia da inferioridade do outro (...)” (Santos, 2006). Desta
maneira, os saberes da cultura nacional ficariam guardados em casa, nas zonas rurais,
nas beiras dos rios e nas matas. As pessoas que ousavam exercer os cuidados naturais,
populares, tradicionais e culturais brasileiros poderiam ser presas.
A década de 1980 foi marcada por longos períodos de aprendizagem sobre as práticas
de conhecer e cuidar do corpo inseparadas da natureza. Fazia-se conexão com a terra em
cataplasmas, com as águas em banhos, com as árvores (quem nunca abraçou ou quis
abraçar um Jequitibá centenário?). No uso das ervas nós aprendíamos sobre garrafadas,
unguentos e chás; com os cristais desbloqueávamos os chakras; com a acupuntura
fazíamos mover a energia fluida dos meridianos, com as benzeduras e impostação das
mãos fazíamos circular a energia do corpo. Maria dente-de-leão conta-nos deste
momento,
lugares com menos poluição do ar e sonora. Buscávamos água da fonte para beber,
cozinhar e tratar” (memórias 2014, MARIA Dente-de-leão).
“foi um tempo muito curioso, em que os embates aconteciam publicamente nos jornais,
rádios e revistas. Por vezes, mostrando como a meditação, o Tai-Chi-Chuan, a Yoga
ofereciam benefícios para a saúde de estudantes e trabalhadores. Por outras vezes, tais
elogios se contrapunham a um forte lobby da classe biomédica que anunciava em
veículos publicitários, revistas populares e televisão a charlatanização dos terapeutas e
destas práticas. Em Colatina tive minha segunda filha e foi outra condição estranha,
pois foi considerado por muitos profissionais médicos uma aberração ter um parto
natural na cidade onde quase cem por cento dos partos eram cesáreas. O médico que
aceitou fazer o meu parto me disse que foi chamado por colegas para ser alertado que
estava cometendo uma irresponsabilidade, uma loucura! Sim, foi parto normal! De
Colatina eu viajava para Belo Horizonte, duas vezes por mês, de trem, passando por
cidades do interior, por oito horas seguidas, para estudar acupuntura e naturopatia.
Em certo momento, recebi aulas com o mestre chinês Wu, que havia recém chegado ao
Brasil e um tanto aflito buscava apoio para trazer a mulher e filha da China de onde
estava exilado por conta da época de protestos da Praça Celestial de 1989. Entretanto,
o período de Colatina terminou e ao final de quatro anos de rica atividade e grandes
debates, quando deixei a cidade, ela contava com uma farmácia homeopática, um
farmacêutico especializado em homeopatia, uma loja de produtos naturais e dois
médicos especialistas em homeopatia. Influenciados pela vertente naturalística que
ocupava as nossas vidas. (memórias 2014, MARIA dente-de-leão)”
Neste período, mestres chineses davam aulas pelo Brasil, muito por conta desta
fuga dos intelectuais e profissionais da China, por serem perseguidos em seu país. A
56
esta altura o mestre Liu Pai Li já era chamado para congressos e mantinha um grande
centro de Tai Chi e escola de acupuntura na cidade de São Paulo. Os mestres orientais
eram convidados a Brasília para administrar aulas na UNIPAZ – Universidade
Internacional da Paz, coisa que os fez muito conhecidos e fortalecidos na disseminação
dos seus conhecimentos. Neste tempo, a busca por medicinas naturísticas ganhava
adesão de camadas, por vezes elitizantes, das populações urbanas e além da importação
de antigos sistemas médicos, como a medicina tradicional chinesa e a ayurvédica, por
conseguinte tal fato podia ser evidenciado no crescimento de farmácias e lojas de
produtos naturais (LUZ, 1997).
O assunto parto natural entra neste trabalho porque ocupa um importante espaço
na narratividade que compõe o terreno em rede por onde as PICs passam. Uma das
entrevistadas que fez parte do movimento das PICs no centro de saúde que inicia este
trabalho também atuou com a saúde feminina em Niterói. Assim, as coisas se
mesclaram: PICs, mulheres, partos, cadeira de parto de cócoras, etc. Humanos e não
humanos em um importante agenciamento de mediação e translação do conhecimento.
da Bahia (em 1818) e do Rio de Janeiro (em 1812). Neste sentido, o discurso e
intervenção anatomo-patológico do parto tornou-se potente e a obstetrícia uma
especialização médica que passou a incluir toda a gestação, a sexualidade, higiene e
moral feminina (BRENES, 1991 in TORRES, 2014). Desta maneira, a parteira ficou na
ilegalidade no Brasil até 1973, quando o ensino de obstetrícia passou do curso de
medicina para o curso de enfermagem (COSTA, 2002).
20
A medicalização é o processo onde problemas não médicos são definidos e tratados como problemas
médicos. Tais como define doenças, condições de alcoolismo, menopausa, fadiga, tristeza, nervosismo
com conseqüente prescrição de medicamentos. A gestação e o parto não são doenças, porém esteve cada
vez mais associado a potenciais riscos (CORDEIRO, 1980).
58
http://conexaoto.com.br/2013/12/12/parteiras-
tradicionais-integram-o-sus-e-melhoram-atendimento-a-
mulheres-e-recem-nascidos. Consultado em 14/09/2014,
A OMS destaca que as medidas são pactuadas com estados e municípios, para
que as mulheres possam contar com orientação sobre direitos reprodutivos e que o
acompanhamento pré-natal, além do parto seguro, se enquadram dentro de programa
mais amplo de atenção à saúde da mulher, o Rede Cegonha.
Neste sentido, para que o sistema público possa avançar mais rapidamente, uma
das estratégias é favorecer o parto natural, em centros de natureza não-hospitalar, com
acompanhamento de profissionais de enfermagem qualificados em obstetrícia. Segundo
Pache, o modelo é o sistema inglês, em que 85% dos partos são “absolutamente
fisiológicos”.
21
Ver assunto http://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2014/05/27/debate-sobre-parto-humanizado-e-marcado-por-
criticas-ao-alto-numero-de-cesarianas sobre humanização do parto Programa Rede Cegonha.
59
“(...) uma vez a gente convidou o Moysés Paciornik, porque eu sabia que ele viria ao
Rio. Eu li em algum lugar que ele viria ao Rio. Eu falei: Eu vou convidar o velho pra ir
lá na Maternidade Santa Rosa.
Porque era lá que a gente fazia o nosso laboratório (de saúde da mulher e
humanização do parto), porque a gente era amigo de todo mundo e fazia o que queria,
né23? E fazia na rede pública. As minhas clientes do centro de saúde eu acompanhava o
22
Marapuama (Ptychopetalum olacoides) erva indicada para esgotamento físico e mental como
tônico em geral, antifadiga e antidepressivo suave; para síndrome da fadiga crônica como
estimulante do sistema nervoso central; para impotência sexual como afrodisíaco masculino e
feminino.
23
Esta frase “naquela época nós fazíamos o que queríamos” não foi retirada para deixar o texto limpo ou
jogada para debaixo do tapete ou fechada em uma espécie de caixa preta. Na TAR ela é uma pista a seguir
que me fará compreender melhor as conexões da rede de saúde evidenciadas em um tempo e lugar.
60
parto no Hospital Santa Rosa. Nessa época a gente podia fazer tudo o que bem
entendia. E aí como Moysés vinha, aí eu falei com uns amigos:
Gente, vamos trazer o Moysés (Parcionik) e vamos encher a platéia. Vocês
tragam todos os alunos e coloquei todo mundo para trabalhar na divulgação do evento.
E aí chegou aquele velhinho lindo de morrer de gravata borboleta e tinha muita gente,
todo mundo se acotovelando. Mais de 100 pessoas no auditório do centro de saúde.
Ai eu liguei pro filho (filho do Parcionik), porque eu sabia que ele tava
produzindo a cadeira para parto de cócoras. Ele tinha produzido 4 cadeiras, as
primeiras 4 cadeiras dele, tudo vendido. (...). Foi uma negociação difícil mas consegui!
E o valor foi dividido entre amigos médicos interessados em atuar com o parto de
cócoras. Foi a primeira cadeira de parto de cócoras de Niterói, esta comprada quando
o Parcionik esteve aqui e ficou na Maternidade Santa Rosa, onde seu filho nasceu!
(Vânia Marapuama).
Durante as entrevistas vocês verão que várias entrevistadas falaram a mesma frase referindo-se àquele
tempo. Discutiremos isto mais adiante.
61
de Julho, a Casa do Parto foi inaugurada 18 de Janeiro. Então ela mudou em dois, três
meses, nós inauguramos em dois, três meses. (Vânia Marapuama)24
24
A Casa do Parto, à princípio, foi pensada para o município de Niterói, que, na época, não bancou. E,
foi aí, que alguns “loucos” já cansados de colocar cadeiras em hospital para acolher gestantes e
sensibilizar equipes médicas, resolveram que não podiam mais. (...) queriam provar que não era
necessário ser frio, intervencionista, para ser respeitado como obstetra. A Lua Nova celebra a vida; as
nove luas, o processo... A Casa do Parto Nove Luas, Lua Nova acolheu ambas... Grupos de gestante e
casais, consultas de pré-natal, acompanhamento terapêutico durante o trabalho de parto, partos (normais,
cócoras, água e cesáreas necessárias ), orientação no pós-parto e amamentação, cursos e reciclagem
profissional... foram algumas das ofertas oferecidas por esse espaço.. Consultado em 28-04-2016. Fonte:
http://casadopartonoveluasluanova.blogspot.com.br/
25
O Programa de Saúde da Família vem sendo implantado pelo MS/SUS desde 1994, com a expectativa
de imprimir nova dinâmica na organização dos serviços e ações de saúde, com maior integração e
racionalidade. O princípio operacional do PSF visa estabelecer um vínculo das unidades básicas de saúde
da família com a população, possibilitando, em tese, o resgate da relação de compromisso e co-
responsabilidade entre profissionais de saúde e usuários dos serviços. Reafirma os princípios do SUS –
universalização, descentralização, integralidade e participação da comunidade (CAETANO e DAIN,
2002). Para maior conhecimento ver “Saúde da família: uma estratégia de organização dos serviços de
saúde” (BRASIL, 1997).
26
A doula é uma prestadora de serviços que recebeu treinamento básico sobre parto, estando
familiarizada com uma ampla variedade de procedimentos de assistência. Tem como atividades, fornecer
apoio emocional por meio de elogios, reafirmações, contato físico, como friccionar o dorso da parturiente,
segurar suas mãos, como atendê-la em suas necessidades básicas; enfim, dar-lhe explicações sobre o que
está acontecendo durante o trabalho de parto; sendo assim, uma presença amiga constante. E um elemento
importante no elo entre a parturiente-família-equipe de assistência (OLIVEIRA, 2002).
62
Para o movimento da TAR este actante não humano foi um mediador que
transformou e não deixou nada igual. Vânia Marapuama, no seu ideal de fazer uma
casa de parto para facilitar às suas clientes a terem um momento de parto mais
humanizado e de cócoras,implantou uma cadeira para parto de cócoras em uma
maternidade do serviço público de saúde de Niterói, influenciou médicos e outros
profissionais a outro tipo de relação com o nascer das crianças.
Na busca por boa qualidade de vida para a família, junto à natureza, fui trabalhar
na região central do Brasil. Atuava na Pousada do Rio Quente, em Goiás, na década de
2000, com prestação de serviços em promoção de saúde, bem-estar com terapias
naturais (acupuntura, massagens, iridologia, florais de Bach, cataplasmas, orientações
do uso dos banhos termais e orientação sobre sucos terapêuticos). Naquela ocasião,
recebia algumas visitas de representantes do Conselho Regional de Medicina (CRM) de
Goiás com ameaças sobre o que fazia como prática. Naquele momento, ocorria um
enfrentamento bem tenso entre a medicina e os praticantes não médicos da acupuntura,
em todo o Brasil. No interior de Goiás não era diferente e representantes do CRM
ameaçavam-me.
- A senhora está fazendo uma prática proibida, clandestina, de falsa medicina. Apenas
médicos podem fazer acupuntura. A senhora pode ser presa! - Diante desta fala eu no
mesmo instante telefonava para São Paulo e pedia orientações legais para lidar com
aquela interferência e baseada no aconselhamento respondia: Pois os senhores
ponham-se daqui para fora e me processem. Não existe legislação sobre acupuntura.
Ela não pertence à biomedicina, nem a nenhuma classe. É uma prática livre. E assim,
os homens iam embora, para voltarem em menos de um ano para uma nova tentativa de
constranger meu trabalho (memórias 2014, MARIA Dente-de-leão)”.
Chamo a atenção para este tipo de governança focada no gestor ser deveras
controversa. Pois, se, uma pessoa é posta em uma missão de gerir um serviço público de
saúde, suas convicções não deveriam estar de fora da sua administração e missão?
Afinal, o foco de uma administração de saúde para o SUS seria privilegiar e promover o
bem estar e saúde dos usuários, estamos falando de uma administração municipal
inserida em um estado democrático.
Um gestor “de fora”, que desconhece as atividades locais anteriores à sua gestão,
poderia ser criativo ou inovador apenas tirando ideias da sua cabeça sem consultar as
bases sociais que constituem o local de sua recomendação? Esta é uma atitude comum e
que vem dando problemas onde quer que seja praticada. Uma gestão participativa, nos
moldes democráticos e sanitaristas estaria com melhores possibilidades de acertar no
seu propósito.
Outro problema que aparece com certa frequência nos textos sobre a gestão de
saúde foi o despreparo dos gestores municipais. Mesmo com o SUS fornecendo cursos e
apostilas como orientadores para os gestores, ainda é apontado uma defasagem a
eficácia destes programas28.
Por exemplo, nos estudos de André e Ciampone (2007), que mostra a análise
referente a percepção do gestor sobre as competências necessárias para a gestão de
28
Curso de Qualificação de Gestores do SUS (MS, 2009).
http://faa.edu.br/portal/PDF/livros_eletronicos/medicina/19_qualificacao_gestores_sus.pdf
66
Unidades Básicas de Saúde, o primeiro tema emergente dos estudos referiu-se aos
conhecimentos gerenciais necessários para desempenhar o seu papel de maneira
eficiente e eficaz.
“Todo serviço depende muito da gestão. Nenhum, nenhum serviço se sustenta se não
houver o apoio da gestão. (...) uma coisa é você desconhecer (as PICs), outra coisa é cê
não querer conhecer” (Fátima Camomila).
“(...) a Estela fazia acupuntura nas pessoas todas aqui do Largo da… ali no Bairro de
Fátima Camomila. Aí (o gestor) falava assim: - Ela é muito mais importante no
atendimento público do que fazendo isso” (Vânia Marapuama).
68
Desta maneira, a partir de uma época em que a regulamentação via NOB passou
à normatizar a entrega financeira aos centros de saúde vinculada à produção, uma
cobrança mais acirrada aos atendimentos de consultórios, de forma mais hegemônica e
ortodoxa foi enrijecendo a relação dos gestores com as PICS. Muito por se tratar de uma
prática de cuidado ainda não mensurável o suficiente no seu valor epidemiológico; outra
por não haver interesse político do seu fazer, uma vez que por diversas vezes nas
entrevistas escutei a queixa de que os gestores cobravam dos profissionais que
utilizavam as PICS, questionando a homeopatas e acupunturistas, que estes estavam
fazendo com que os usuários deixassem de freqüentar os atendimentos de consultório e
visitas aos médicos. Coisa importante, uma vez que a racionalidade administrativo
70
financeira estava e ainda está vinculada à produção, ou seja, controlado por uma
contagem do número de atendimentos em consultórios.
Por exemplo, ao perguntar a uma das entrevistadas sobre a posição dos gestores
e sua importância nas PICs, Fátima Camomila responde assim:
“E aí a gente tinha a gestora, que é uma médica que cê deve lembrar, né? Eu já
entrei com a Mônica lá, porque quando eu entrei a Mônica tava assumindo, tinha
acabado de sair de uma gestão que era de uma enfermeira (...). E a gestora era uma
pessoa que dava muita carta branca, sabe? Desde que você fizesse o seu trabalho e
esse trabalho tivesse um desempenho com resultado, mas se eu quisesse um usar uma
técnica de, sei lá:
- Então vamos lá, vamos conseguir esparadrapo, vamos ver recurso pra isso.
Pergunto de onde seria a origem desta gestora e deste movimento das Terapias
Alternativas (PICs) naquele lugar, sanitaristas? Fátima Camomila responde:
“Ela era sanitarista e depois ela fez formação em homeopatia. É, uma pessoa
muito bacana, ela ficou muito tempo lá com a gente, aí depois quando ela saiu, e aí ela
saiu também porque não tava aguentando a pressão política de, das gestões que
vinham na, no governo e que mandavam arrochar é, produção, mandavam arrochar,
não pro posto, o posto tinha uma produção muito grande, mas isso ia descaracterizar o
bom atendimento. Se ao invés de fazer 8 atendimentos por turno, tivesse que fazer 14,
então assim, e aí ela começou a se sentir, assim, como se as pessoas tivessem invadindo
muito a gestão dela, nesse meio tempo ela também recebeu esse convite pra trabalhar
na secretaria de saúde de Itaboraí, era uma coisa nova.” (Fátima Camomila).
psicologia, era equivalente a 10 salários mínimos, então a gente não ganhava mal.
Quando eu saí pra ir pra universidade meu salário chegava, não chegava a 3, então
com essa desvalorização do salário as pessoas começaram a fazer outros concursos ou
investir em consultório, porque ninguém dava conta de trabalhar 16 horas pra ganhar
2 mil Reais, né? Que é o que tá hoje pagando a fundação, né?” (Fátima Camomila)29.
29
Matricaria chamomilla, também conhecida como Camomila-vulgar, Macela-nobre, Macela-galega ou
Camomila, muito utilizada no tratamento da ansiedade, devido a seu efeito calmante.
72
a visão do movimento energético (do Yin e do Yang), o médico precisa antes de tudo,
despir-se dos conceitos que embasam a biomedicina (não existiriam doenças conhecidas
por sua nomenclatura), para então pensar de outro jeito, por outras versões de saúde.
Madel Luz argumenta:
Notadamente é algo muito difícil e angustiante para o profissional que parte para
este desafio de atravessar uma fronteira e rumar para o desconhecido. Deste modo, não
há como não reconhecer uma grande controvérsia nestas justificativas e lutas judiciais
de mais de dez anos.
Fontes jurídicas são apenas a “ponta do iceberg”, neste sentido, autores como
Mandrou (1979: 17/18) e Ginzburg (1989: 39) afirmam que estas fontes podem ser
consideradas como verdadeiras “cristalizações” e “luzes” reveladoras de complexas e
abrangentes relações sociais de uma época (in Carvalho, 2004).
Por exemplo, no ano de 2012, outra luta jurídica foi travada entre os conselhos
de medicina e de farmácia e o resultado foi:
“Nestes lugares por onde andei, pelo interior, pude perceber que os erveiros
continuavam sua função, porém, distantes da zona da cidade. Para fazer uma consulta
com esses conhecedores dos efeitos curativos das plantas, este contato era envolvido
por certo silêncio. Deixando claro que algo estava errado: o medo de ser preso, o risco
de ser considerado um fora da lei. O que primava era a força ativa da biomedicina e
por fora das vistas dos doutores as pessoas se tratavam com o senhorzinho ou
senhorinha conhecedores das ervas e garrafadas. (memórias 2014, MARIA dente-de-
leão)”
não vale como verdade em saúde? Quem decide e ao decidir, colonializa? A quem se
obedece quando se decide o que conta e o que não conta como saber responsável,
autorizável? Será possível transladar saberes culturais dos erveiros antes de se
extinguirem?
“(...) Primeiro o conceito de tradicional, que é muito difícil e... e o que seria medicina
tradicional, então cada povo teria a sua. A tradicional da Índia, a tradicional da China,
a tradicional da Tailândia, que foram as três que a gente viu muito lá no congresso e
teria a tradicional brasileira, que é aí que a gente não se fala, não se vê...” (MARIANA
rosa-branca30).
Aquelas dúvidas acessavam outras: por que as terapias orientais estavam tão
fortemente nas policlínicas do SUS e não os saberes, por exemplo, dos erveiros da Mata
Atlântica ou da Mata Amazônica? Mariana lembrou-se que no ultimo congresso sobre
as PICs em que havia comparecido, o seu trabalho era o único que versava sobre a
prática nacional do cuidado em saúde; o restante todo era sobre as terapias orientais de
saúde.
“(...) A crítica que eu levei naquele congresso é que aqui no Brasil quando a gente fala
medicina tradicional, é tradicional chinesa, é tradicional indiana, é tradicional
japonesa, mas não é tradicional brasileira (...). Então a gente não fala a medicina
cabocla, a medicina indígena um pouco, porque é aquilo que eu te falei... O trabalho
com os xamãs indígenas tem um pouco, mas bem mais ligado à planta de poder
também... ou é o Kambô, que é o sapo, ou é a Ayahuasca o máximo da nossa medicina
tradicional assim que eu vejo” (MARIANA rosa-branca).
31
Dias mais tarde, em uma conversa realizada por skype , Mariana estava
angustiada com sua pesquisa de pós-doutoramento, pois, para falar com os erveiros do
alto da Mata Atlântica, teria que passar por tantos protocolos de „proteção‟ à mata e às
pessoas dela consideradas „desprotegidas‟ que já não estava certa se conseguiria tempo
propício para fazer a pesquisa. Estava desanimada. Isso provocou em nós angústias e
controvérsias.
30
O banho de chá de rosa-branca (Rosa Alba) é passado pelos erveiros para a sinergia da paz.
Para pensar no que estava acontecendo era necessário entender de qual realidade
estávamos falando. Em seu livro Reagregando o Social, Latour afirma que as conexões
transformam os recursos em uma teia que parece se estender por toda parte (Latour,
2012: 294). Portanto, são os mediadores que performam uma realidade que não existia
antes, e nós pesquisadores, precisamos cartografar as conexões para fazer uma
realidade, que nunca é dada à priori. A saber, é uma questão política.
Além dessa rica biodiversidade, conta com rica diversidade étnica e cultual que
detém um valioso conhecimento tradicional associado ao uso de plantas medicinais e
práticas naturais em saúde.
76
Quatro dos biomas mais ricos do planeta estão no Brasil: Mata Atlântica,
Cerrado, Amazônia e Pantanal. Infelizmente, correm sérios riscos. Muitas áreas mantêm
apenas 3 a 8% do que existia inicialmente, como a Mata Atlântica, que hoje guarda 7%
de sua extensão original e o Cerrado, que possui apenas 20% de sua área ainda
intocadas32 .
“(...) é isso, vemos movimentos das parteiras, das benzedeiras, mas é de município pra
município. (...) das medicinas tradicionais, ou seja, das garrafadas, da planta, dos chás,
das infusões. (...) o grande gargalo, é onde (...) se você quiser fazer um sabonete de
aroeira você pena, tem que passar pela ANVISA etc. Mas se você quiser comprar uma
tintura chinesa, você compra. Ou sei lá, a Schering-Plough já lançou esse sabonete de
aroeira” (MARIANA rosa-branca).
É evidente que o SUS e as prefeituras têm feito cada vez mais um movimento de
aproximação das práticas naturais e tradicionais da cultura brasileira. Em 2012, por
exemplo, de forma pioneira, a prefeitura de Rebouças, no Paraná, chamou benzedeiras,
erveiros e raizeiros para oficializarem suas atuações junto à Rede Básica de saúde. Com
todo esse histórico de ameaças e lutas por poder, não poderia ter outro efeito: as pessoas
que desenvolviam estas atividades ficaram deveras desconfiadas e demoraram o
processo de aproximação, pois pensavam ser uma espécie de armadilha para prendê-los.
A proposta, que é de 2010, também permite que estas pessoas colham plantas
medicinais nativas no município livremente para o exercício do ofício. A lei
concretizou uma parceria entre a tradição e as políticas públicas voltadas para a
saúde. “O município de Rebouças reconhece os saberes e os conhecimentos
localizados realizados por detentores de „ofícios tradicionais‟ , como
instrumento importante para a saúde pública do município”, diz o Artigo 3º da
lei.[...] Para poder exercer o oficio livremente, a benzedeira deve ir à Secretaria
Municipal de Saúde e solicitar a Carta de Auto-Definição, na qual deve
descrever de que forma trabalha. Depois, o órgão emite o Certificado de
Detentor de Oficio Tradicional de Saúde Popular e uma carteirinha. [“...]”
Fonte: http://susbrasil.net/2012/05/23/benzedeiras-sao-consideradas-
profissionais-da-saude-no-parana/ . Consultado em 14/10/2014.
Essa aparente negociação de fronteiras parece, por vezes, como uma tentativa de
controle desses saberes tradicionais, para a manutenção do poder biomédico. Não se
tratando de transladar o conhecimento entre as diversas cosmovisões e interesses, e sim
de tentar fechá-los, orientá-los, formalizá-los naquilo que seja condizente a maneira de
cuidar da biomedicina. Para alguns pesquisadores o que se observa é que se, por um
lado, os organismos internacionais influenciam o processo de elaboração das políticas
públicas nacionais; por outro, o Estado se apoia nos discursos internacionalmente
veiculados para instaurar um sistema de vigilância sobre as populações adstritas ao seu
território, bem longe do propósito de transladar o conhecimento sobre cuidado em saúde
de cada região (FERREIRA, 2010).
da qualidade desses produtos deve ser feito pela Agência Nacional de Vigilância
Sanitária (Anvisa) e isto também está previsto no escopo desta política (LUZ, 2000).
Neste caso, é sabido que a pesquisa sobre medicamentos leva muitos anos para seu
credenciamento desde a entrada em pesquisa até o momento do consumo. Portanto,
talvez seja esta uma manobra controversa em que no discurso se promete agregar
saberes populares aos cuidados em saúde e por outro lado, na prática se legisla no
sentido oposto deste querer, já que um dos grandes patrocinadores das pesquisas de
medicamentos é a indústria farmacêutica, a qual não leva vantagem alguma quanto ao
uso dos tratamentos culturais a não ser a captura deste saber.
Tomando a bela letra da canção de Chico como um artefato para pensar sobre a
condição de colonizador e colonizado podemos notar a complexa polissemia desta
canção apontada no trabalho de Florent (2007), em que acontece o entrelaçamento do
fado das guitarras com a modinha das sanfonas.
Para tanto, Chico mostra em alegoria simbólica a imagem bucólica das avencas
recobrindo a dureza seca da caatinga e o cheiro doce dos alecrins camuflando o cheiro
acre do suor dos escravos na lida dos canaviais e nas danças carnavalescas.
33 Para saber mais sobre a análise das estrofes desta música consulte o artigo “Um Suave Azulejo: O
Retrato Ambivalente da Nação” de autoria da Mestra de conferências da Universidade de Paris 8 Adriana
Coelho Florent (2007). Fonte:
http://www.abralic.org.br/anais/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/complemento/AD
RIANA_FLORENT.pdf Consultado em: 03/10/2014.
81
Por fim, o Rio Amazonas se consome dominado nas suas curvas, onde a
população ribeirinha é ignorada na sua sabedoria local, exotizada nas suas maneiras de
viver e de cuidar da saúde. A colônia é capturada pelo eurocentrismo aculturalizante,
violento e devastador. Como esclarece Marilena Chauí (2000), somos um país
historicamente articulado ao sistema colonial do capitalismo mercantil como colônia de
exploração, em uma constante “dependência consentida” da elite. Nossa identidade
surge lacunar e feita de privações, definida como subdesenvolvida. Aqui fica claro o
porquê para nós cabe, passivamente consentido, a exaltação das belezas da natureza do
Brasil, do paraíso tropical, já que este é seu produto e seu lugar no sistema colonialista.
mesmo que dominada pela hegemonia instaurada. A visão é sempre uma questão do
poder de ver - e talvez da violência implícita em nossas práticas colonialistas de
visualização. Dominadores são seres auto-idênticos e não-marcados pelo outro e
infelizmente é possível que os subjugados desejem e até disputem essa posição de
sujeito (Haraway 1995, p.27).
Para escapar desse modo de olhar – olho de deus –, Santos (2006) indica que a
partir do olhar das margens ou das periferias, é por onde as estruturas de poder e de
saber são mais visíveis (p.36). Para este autor, a emancipação social exige uma atenção
à ação ética e política, que dê igual peso à ideia de indispensabilidade e à ideia de
inadequação, ou seja, de incompletude, portanto, exigente de co-dependência. De todo
o modo, ao subverter os essencialismos, a hibridez pode alterar as relações de poder
entre os sentidos dominantes e os sentidos dominados (ibidem, p.220).
Enrique Dussel (1993), por sua vez, propõe uma Filosofia da Libertação e
afirma a razão como faculdade capaz de estabelecer um diálogo, um discurso
intersubjetivo com a razão do Outro, como razão alternativa propondo um novo
momento.
34
Estrela-de-anis ou Anis-estrelado (Illicium verum) é uma planta originária da China e do
Vietnã. É considerado uma especiaria de uso medicinal e culinário. O Aroma do Anis
estrelado tem um efeito estimulante sobre várias enzimas digestivas e também promove a
produção de saliva. Um chá do Anis estrelado é um bom remédio para evitar dores de gases e
edemas.
83
Maria. As duas primas possuem fortes correntes de afinidades adquiridas com a vida.
Suas mães, Célia e Ana, oriundas de Belém do Pará sempre foram cuidadoras uma da
outra. Em certo momento da vida, Célia, que vivia em São Paulo, após uma forte crise
existencial maltratada pela perda do marido, desencadeou esquizofrenia paranóide Sua
irmã, Ana, vivendo em Niterói, decidiu pela não internação de Célia e resolveu acolhe-
la em sua casa. Célia foi morar com Ana, levando seus três filhos, duas meninas gêmeas
e um menino para o apartamento de dois quartos onde Ana já vivia com seus três filhos,
dois meninos e uma menina.
O núcleo familiar passou de quatro para oito pessoas: seis jovens adolescentes e
duas mulheres de meia idade , sendo que uma delas passava por doença mental. Ana
atuava como técnica de enfermagem e se desdobrava trabalhando em dois e as vezes
em três plantões para dar conta de apoiar financeiramente a sua família aumentada. Em
momentos especiais trazia para casa bolo de laranja que era consumido na maior
voracidade. Sua preocupação era visível: “Comam devagar, mastiguem, lavem as mãos,
silêncio eu preciso dormir” . De manhã muito cedo quando se levantava para a primeira
jornada de trabalho encontrava a porta do único banheiro fechada e mais uma vez
educava: “por favor, Kike abra a porta”. Kike era seu filho mais velho, portador de
deficiência auditiva que pela manhã ocupava o banheiro com o aparelho auditivo
desligado.
Em meio a esta loucura geral familiar Célia ficou boa (controlada com as
medicações) e todos entenderam que o acolhimento cuidadoso e amoroso da irmã fez
toda a diferença para ela e para todos os jovens. Esses, passaram pela adolescência
juntos e embolados, curtiram, aprontaram, disputaram por comida, tudo com muita
alegria. É desta cumplicidade que vem o forte laço de amizade destas duas primas,
Valéria uma das gêmeas da Célia e Maria, filha da Ana.
Essa história possui algumas conexões interessantes para este trabalho, pois
iniciamos a narrativa com mulheres que estavam sem os companheiros, que
35 Valéria é auxiliar de enfermagem orientada pela biomedicina mas que, neste momento,
convive com as práticas integrativas e complementares (PICs) – acupuntura, fitoterapia, shiatsu,
moxabustão, etc.) orientadas por outras cosmovisões – medicina chinesa, medicina ayurvédica e
medicina natural brasileira - , no serviço de saúde do estudante da Universidade Federal
Fluminense. Esta atuação a faz conviver com questões angustiantes entre o Norte e o Sul que
nela habitam.
84
sustentavam a casa, que criavam filhos, que cuidavam e eram cuidadas, como tantas
outras mulheres do Brasil e das fronteiras do sul colonizado. Três delas tinham algo em
comum: eram envolvidas com a área da saúde. Ana foi técnica de enfermagem, Valéria
é auxiliar de enfermagem e Maria é terapeuta natural há mais de trinta anos, além de
formada em Psicologia e pesquisadora assistente da Fiocruz. Nesta tríade feminina já se
percebe a existência de burburinhos entre o Norte hegemônico na área da saúde e o Sul
de saberes mais encobertos, composto de cosmovisões particulares.
36
“A Reforma Sanitária brasileira nasceu na luta contra a ditadura, com o tema Saúde e
Democracia, e estruturou-se nas universidades, no movimento sindical, em experiências regionais de
organização de serviços. Esse movimento social consolidou-se na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em
1986, na qual, pela primeira vez, mais de cinco mil representantes de todos os seguimentos da
sociedade civil discutiram um novo modelo de saúde para o Brasil. O resultado foi garantir na
Constituição, por meio de emenda popular, que a saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado."
Sergio Arouca, 1998. Fonte: http://bvsarouca.icict.fiocruz.br/sanitarista05.html Consultado em
10/10/2014.
37 A partir da segunda metade do século XX, impulsionada principalmente por Franco Basaglia,
psiquiatra italiano, inicia-se uma radical crítica e transformação do saber sobre os tratamentos nas
instituições psiquiátricas. Esse movimento tem repercussão em todo o mundo e muito particularmente no
Brasil. A luta manicomial marcada pelos direitos humanos e do resgate da cidadania das pessoas
portadoras de transtornos mentais levaram a Reforma Psiquiatrica, contemporânea da Reforma Sanitária
no Brasil. Consultar o documento “A Reforma Psiquiátrica brasileira” e o tema “A Reforma Psiquiátrica
brasileira e a política de Saúde Mental” no site: http://www.ccs.saude.gov.br/vpc/reforma.html
Consultado em 10/10/2014.
85
ocidentais, mas, também cursou técnico de fisiatria orientado pela biomedicina; e isso
proporcionou, em certo momento, estagiar no serviço de fisiatria e reabilitação no
mesmo hospital onde sua mãe trabalhava ao final da década de 1980. Isso provocava
nela angústias entre os saberes da biomedicina e os saberes de outras cosmovisões.
Maria após este período, entrou para a faculdade de Reabilitação pelos modelos
hegemônicos, para abandoná-la dois anos depois, decidindo por qual caminho seguir:
outras cosmovisões de saúde e cuidado. Só mais velha e experiente entrou novamente
para a academia, desta vez podendo versar sobre as terapias integrativas e
complementares. Maria pode cuidar das outras três mulheres desta história com seus
conhecimentos de naturopatia. Ana resistia, mas recorria à acupuntura e moxa quando
tinha dores e os medicamentos alopáticos se esgotavam na eficácia. Célia, ao contrário,
gostava de ser tratada com as terapias complementares para amenizar as dores e Valéria
foi cuidada por Maria em momentos de crises existenciais com acupuntura, sucos e
ervas.
Valéria na vida adulta saiu de Niterói e foi viver em Curitiba-PR. Lá, trabalhou
no Hospital de Clínicas da UFPR por vinte anos e exerceu as práticas da função
orientada pela biomedicina. Após este tempo se mudou para Manaus-AM.
Via nas mulheres que passavam por ela na rua, o corpo mais atarracado, as
pernas um tanto arqueadas, o pescoço curto que costumava ver nas mulheres da família
e , mais que isso, via o sorriso acolhedor, o cuidado fraterno elevado pela relação do
jeito de chamar “mirmã”. Mana, mirmã, assim se tratam os nortistas e assim se trataram
Ana e Célia por toda vida38.
Dois anos após esta experiência voltou a Niterói e foi alocada no serviço de
saúde do estudante universitário da UFF e passou a conviver com outras cosmovisões
38
Célia faleceu em Março de 2009 e sua irmã Ana, a “mirmã”, exatamente um mês depois.
86
que não a biomedicina, pois a sala de promoção da saúde onde trabalha além do serviço
de Psicologia oferece algumas ferramentas das PICs para o acompanhamento do aluno
no cotidiano da passagem pela faculdade.
Valéria e Maria, - assim como Ana viveu a dúvida entre aceitar uma coisa ou
outra -, convivem com saberes do Norte e do Sul dentro de si. Muitas vezes se
angustiam com isto. Às vezes conversam sobre isto. Porém, se sentem privilegiadas por
estarem na posição de fronteira (Santos, 2006; 2003), onde parece que algo vai mudar,
mas, ainda não mudou. Onde as notícias brotam como flores de um terreno próprio que
conversa com outras espécies diferentes sem querer sobrepujá-las. E mediante tantas
notícias, as primas amigas, em uma mesa de chá, pães e bolos, podem contar histórias e
repensar seus passos.
Contando esta história, nos damos conta de que a rede de saúde brasileira é,
neste momento, tecida com inúmeras linhas e cosmovisões numa tensão polissêmica
que poderá trazer bons encontros para fazer pensar saúde, cuidado e educação em saúde.
Poderá fazer pensar sobre o encobrimento do colonizador sobre o colonizado, suas
profundas marcas deixadas em nós, incluindo nelas o destrato dos nossos saberes
oriundos das margens ribeirinhas e das pororocas. Assim como Valéria e Maria
percebem o Norte e o Sul convivendo e brigando dentro delas causando uma angústia
que faz pensar e pesquisar, acreditamos que o mesmo aconteça com outros profissionais
da saúde, usuários destes “novos” serviços e com estudantes da área de saúde.
Desde o início deste trabalho existe um esforço para marcar ações de práticas
naturais, alternativas ou integrativas e complementares (seja qual for o nome utilizado)
para referenciar um momento na saúde pública brasileira e em especial em Niterói,
como um movimento político na saúde.
39
Mol diz que este termo foi criado por John Law (2002) e faz um agradecimento a ele no seu texto de
2007, no livro Objetos Impuros, organizado por João Arriscado Nunes e Ricardo Roque
40
Sobre os prejuízos de uma única história ver Adichie, C. O perigo de uma única história.
http://www.ted.com/talks/lang/por_br/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story.html
89
41
Movimentos teóricos e sociais em que homens, mulheres (cis e trans) assim como pessoas não-binárias
problematizam e desafiam as normatividades relativas a performatividades de sexualidades e gêneros
legitimadas e seus limites. As teorias queer pretendem desenvolver uma analítica da normalização
(Miskolci, 2009) e uma crítica aos processos de legislação não voluntária da identidade (Butler, 2004).
Louro (2001) afirma que “queer significa colocar-se contra a normalização – venha ela de onde vier [...].
Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada e, portanto, sua forma de
ação é muito mais transgressiva e perturbadora” (p. 546).
90
Assim, por intenção de criar outros modos de mundo, assinalo aqui não apenas
as lembranças, mas também, o silêncio resistente e perturbador de uma “memória
subterrânea” (POLLAK, 1989) que precisou ser elencada como agente desta política de
fazer existir realidades potentes. Com a finalidade de ressaltar a memória coletiva dos
narradores silenciados por forças de quem dita o que fica dentro e o que fica fora do
interesse da ciência, foi possível pensar com Pollak que:
Deste modo, utilizo a seguir as narrativas das histórias de Niterói sobre as PICs
envolvidas nas relações de poder entre uma força hegemônica na saúde e outras idéias,
conceitos e estratégias por vezes inovadoras e por vezes capturadas e amalgamadas no
mesmo poder que tentam combater.
“Niterói foi ponta em saúde da mulher. Ponta da ponta da ponta. Nós tínhamos grupos
de adolescentes, grupo de prevenção de AIDS, grupo de tudo que é doença
transmissível sexual, produzindo material junto com as meninas. Era super ponta.
Entendeu? Desde sala de espera até grupo continuado que só saia de lá quando sabia
botar e tirar o diafragma quantas vezes. Todas as mulheres com DIU acompanhado
não sei quantos anos de follow-up e (...). Não tô entendo que cês tão falando. Hoje eu
não consigo uma pílula. Então assim, (...) detonou com Niterói, é diferente, Entendeu?
Cada um que entra destrói o trabalho do outro, entendeu? Acha que isso tá falando de
política. Isso é ridículo. Entendeu? Se mudar o partido então? Aí ferrou geral. Mas nós
já fomos, assim, referência e a gente ia pro Brasil inteiro ensinar método
42
Não pretendo neste trabalho abarcar toda história das PICs de Niterói, mas sim, trazer em narrativas a
riqueza nas reminiscências do movimento político das PICs por Niterói, que foi referência em certo
momento para o Brasil.
92
anticoncepcional pra todos os lugares. E como que Niterói não teve? Entendeu?”
(Vânia Marapuama)
“(...) o Santa Rosa na época tinha um perfil de uma atenção muito voltada pra saúde da
mulher, então tinha várias, é, obstetras e foi feito um trabalho, saúde da mulher e
materna e infantil, e tinha um acompanhamento por sinal muito interessante que as
enfermeiras faziam, e a Vera fazia grupo pra gestantes, fazia, é, sala de antessala, fazia
uma roda de conversa, o trabalho dela era muito legal. E aí eu fiquei muito interessada
de ir pra lá, não pra trabalhar com as gestantes, mas porque lá eu sabia que tinha um,
um núcleo de terapias integrativas, na época a gente chamava de terapias alternativas,
né? É Niterói era referência neste tipo de serviço de terapias alternativas. Era assim
que chamava antes, terapias alternativas. (...) Então, chegou uma época que eu achava
que o posto tinha uma característica tão alternativa que se valorizava muito pouco a
questão da consulta médica. A gente recebia televisão, jornal, toda semana, pra falar
de todos os trabalhos que estavam acontecendo por lá, então era uma coisa assim, eu
mesmo saí na Bandeirantes, é, a, programa de rádio, vários, né? E a gente falava da
técnica, no dia seguinte tava lá uma fila de pacientes que não eram municipalizados,
que na época não tinha essa exigência e tal, né?”(Fátima Camomila).
Podemos então dizer que estes tipos de eventos são movimentos políticos,
que participam das relações de forças na construção da saúde pública que faz fazer
“aparecer e desaparecer” as realidades.
“(...) com toda aquela luta, com tantos anos fazendo aquelas coisas e tudo perdido no
tempo... a sensação que eu tive é de que nadei, nadei, nadei e morri na praia.” (Anna
Capim Cidreira)
“Fiquei muito emocionada quando você contou sobre sua ida ao centro de saúde e não
encontrar memória alguma e sua exclamação – Como puderam esquecer tudo aquilo
que foi feito? Confesso que escondi minhas lágrimas” (Vânia Marapuama).
deixar as ações das PICs esquecidas no limbo dos enunciados que importam para os
técnicos do serviço e cientistas, pois, possui a tentativa de aniquilar irrevogavelmente
sua importância para a saúde e cuidado e produz um fenômeno: faz desaparecer a
memória, valor e consideração sobre essas práticas ou as coloca na periferia da principal
relevância e racionalidade.
Fui novamente ao centro de saúde que me inspirou para realizar esta tese. Já
havia telefonado por inúmeras vezes e não atendiam ao telefone. Já sabia que a última
gestora (terceira em quatro anos) havia deixado o cargo e não queria falar mais do
assunto. Assim, fui pessoalmente, entrei pelo setor de serviço e subi ao terceiro andar.
Entrei na sala da administração, encontrei uma jovem administradora e contei minha
história. Esta moça chamou a enfermeira mais velha e me fez repetir a história para ela.
A história era a seguinte: - Estou fazendo um trabalho de doutorado em psicologia pela
Universidade Federal Fluminense, sobre uma época em que aqui no terceiro andar teve
95
A senhora, muito angustiada com o tempo, pois olhava a todo o momento para o
relógio e olhando para alguém que a chamava à porta disse se lembrar e perguntou o
que eu queria exatamente. Expliquei que queria alguém que tivesse participado deste
movimento e práticas ou que se lembrasse desta época. Então ela foi direta e disse que
ali não tinha ninguém para eu fazer esta entrevista. No entanto, ela se lembrou de uma
fisioterapeuta que havia trabalhado naquela época com a qual ainda tinha contato e
pediu que eu deixasse o número do meu telefone que ela ligaria para a fisioterapeuta
para saber se poderia dar o contato dela para mim e saiu da sala para responder às
demandas.
Ah, então, aquela sala fedia a moxa, né? O cabelo da gente era um negócio que
no final do dia falava “aí, meu Deus! Hoje foi muita moxa” (Fátima Camomila).
“É, óleos, mas, a moxa pro cabelo era o que eu mais me lembro. E a janela da
sala era um basculantezinho que nem todos funcionavam, não tinha janela aberta,
então a gente vivia naquela „bate, assim‟... Aquelas nuvens de fumaça, gente aquilo era
muito gostoso, muito legal isso!!! (brincou em tom de ironia).
96
“É, o cabelo ficava assim... e era muita moxa, porque a Isabel e o Renato eles
tinham hábito de trabalhar com a caixa de moxa, eles recortavam vários pedaços e
ficava aquela caixa igual a um dragão. É, exalando fumaça, não era só o bastão, eram
muitas, muitas moxas acesas no paciente, né?” (Fátima Camomila).
Achei este comentário muito engraçado e divertido por nossas lembranças serem
tão diferentes. Para mim, aquele cheiro que dominava o ar do terceiro andar era
delicioso e fazia-nos levar para lugares imaginários de cuidados orientais e para esta
moça era muito ruim, pois grudava nos cabelos. A moxa queimada tem um odor
aproximado ao cheiro da maconha queimada e gruda mesmo. Impregna a pele, roupas e
cabelos e leva dias para sair.
Além disso, existe um mal estar difuso que faz parte do mundo contemporâneo,
que não pode ser significado como doença, mas que, se distribui entre as pessoas de
modo geral, tanto para os usuários, como para os servidores da saúde, como para os
pesquisadores e praticamente todas as pessoas da comunidade. Este mal estar difuso
constantemente é medicalizado, quando os usuários pedem exames e medicamentos
para saberem o que tem e um jeito de retirar isto deles.
Podemos ainda pensar que este mal seja referente à complexidade da vida e a
pouco acesso ao conhecimento e habilidades para lidar com problemas da vida. Para isto
a medicalização apenas acoberta a dificuldade de lidar com fatos duros e realísticos.
Seria mesmo esta medicalização da vida a melhor forma de lidar e atingir um estado
bom de saúde ou seria apenas um modo de reforçar o Complexo Médico Industrial -
CMI?
A meu ver esta ideia de “vida saudável” refletida por Luz na entrevista acima,
comandando as ações do dia a dia não destitui o paradigma saúde/doença e sim o
reforça, numa corrida obsessiva para ser saudável e viver saudável, gerando culpa e
angústia quando não se consegue seguir as normas restritas para esta condição ou
mesmo quando tudo falha e a pessoa adoece. Estas pessoas que vivem esta busca de
estado com sacrifícios não estão preparadas para as novidades do viver.
“(...) e a gente foi trabalhando. Sendo que logo com… primeiro ou segundo ano
de trabalho nessa unidade, e aí entra a articulação com as práticas integrativas, eu e o
professor Eduardo Almeida nos vimos diante da seguinte dificuldade: a medicina que a
gente havia aprendido e que a gente sabia ensinar não se aplicava a demanda que a
gente tinha que atender. A gente tinha 75 a 80 por cento dos pacientes funcionais, sem
lesão. A clínica que a gente conhecia era do paciente com lesão, com a doença
instalada no corpo agora, e aí a gente não tinha instrumento pra lidar com aquela
realidade, então, é, a maioria na época a gente tinha que preencher um protocolo.
Mas, assim, a gente tinha que preencher um relatório mensal de atividade, né? De
trabalho feito e a gente tinha que dar o código do atendimento pra cada pessoa que a
gente atendia, não é verdade? E aí a gente viu que 75 a 80 por cento dos casos caíam
102
naquele código do Queixas Vagas e Sintomas Mal Definidos, que é o que a gente tinha
na CID 9, né?” (Anna Capim Cidreira)45
“diante da insuficiência da medicina que a gente tinha aprendido pra lidar com
aquela demanda(...). Eduardo foi pra medicina chinesa, eu fui pra homeopatia e
passamos a usar essas medicinas no atendimento a população e o posto de saúde do
Caramujo foi desenvolvendo formas de cuidado mais abrangente do que a maioria das
unidades oferecia na época.” (Anna Capim Cidreira)
Nesta direção, a Promoção da Saúde com o conceito de saúde mais positivo, não
é responsabilidade exclusiva do setor saúde e vai para além de um estilo de vida
saudável, na direção de um bem-estar global. É definida como a capacitação das
pessoas e comunidades para modificarem os determinantes da saúde e de atuar em
benefício da própria qualidade de vida, enquanto sujeitos e/ou comunidades ativas.
45
Anna diz que adora esta erva, que a tem plantada em vasos na sua casa. Cymbopogon citratus, capim-
santo, capim-limão, capim-cidró, capim-cheiroso, cidreira. É indicada para cólicas intestinais e uterinas e
como um calmante suave.
46
A Atenção Básica é um conjunto de ações, de caráter individual e coletivo, situadas no primeiro nível
de atenção dos sistemas de saúde, voltadas para a promoção da saúde, a prevenção de agravos, tratamento
e a reabilitação. (PNAB, 2006).
103
No entanto, o que as ações do SUS revelam está muito próximo ao que vimos no
caso do centro de saúde de Niterói. Quando é sugerida ou montada uma ação de
47
A Promoção da Saúde foi definida como o processo de capacitação da comunidade para atuar na
melhoria de sua qualidade de vida e saúde, incluindo uma maior participação no controle deste processo.
Onde a saúde deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver. Nesse sentido, a
saúde é um conceito positivo, que enfatiza os recursos sociais e pessoais, bem como as capacidades
físicas (WHO, 1986).
104
Por conta disto, para quebrar a distorção de como agir em beneficio do SUS
integralista e promotor de saúde, percebe-se o quanto é importante o trabalho de
comprometimento e envolvimento de todos quando um coletivo quer um conjunto de
práticas que promova melhor o bem-estar no cotidiano. Essa dificuldade de
integralidade pode ser notada em um exemplo em que as PICs são atuadas como
intermediário e não um mediador. Quando são incentivadas na Atenção Básica e PSF
com oferta de um curso gratuito de Auriculoterapia (reflexoterapia do pavilhão
auricular) aberto para dois mil profissionais do cuidado na saúde, os beneficiários do
curso são os que possuem o terceiro grau, ou seja, os especialistas, verticalizando um
saber sobre a saúde que poderia muito bem ser promovida no cotidiano como propõe a
Promoção da Saúde.
Por outro lado, nos relatos de fundo desta tese também vimos a importância dos
gestores para a existência e manutenção das PICs no serviço. Coisa que ao olharmos
podemos perceber nos esforços para a manutenção de uma realidade PICs no centro de
saúde. Sem constrangimentos, percebe-se que é necessário muito trabalho e esforço de
todos os envolvidos para que exista uma rede de interesse que se mantenha ativamente
em conexão com outras tantas outras redes para o fortalecimento e concretude (mesmo
que parcial e momentânea) de uma realidade.
Se, o mesmo curso fosse aberto para os ACSs e estes transladassem este
conhecimento na comunidade, não de maneira a medicalizar a vida e sim como algum
apoio ao cotidiano, isto ao meu entender poderia promover alguma mediação. No
48
http://auriculo.fett.digital/index.php/sobre-o-curso/informacoes-gerais
106
entanto, sem radicalismos ouso esperar alguma mediação, pois “os actantes são
inúmeros e suas ações possuem sempre um resultado inesperado e complexo”
(LATOUR, 2005).
“É, a gente ia mandando paciente pro Reiki. Isso, e aí tinha uma triagem, que
normalmente no sábado era feita pela Vânia, e a Vânia via lá quais eram os pontos que
ia energizar e quem aplicava eram os alunos, ficou muito legal. E isso ficou
acontecendo até a Vânia se aposentar... durou uns 5 anos.” (Fátima Camomila)
“Nesse, nesse tempo que tava, o serviço tava a todo vapor a gente teve
conhecimento, eu e Isabel, de uma técnica japonesa chamada Spiral Tape, é, e a gente
foi pra São Paulo fazer a formação e eu comecei a atender dentro do setor de
acupuntura só com spiral tape, que é uma terapia usando o esparadrapo. (...)e a gente
trabalhou uns 10 anos juntas nisso até que a Isabel saiu. Fizemos uma pesquisa,
publicamos um artigo, (...)a homeopatia era super integrada com a gente. A Mírian
era muito integrada, depois a Mirian foi ser médica de família (...) A Ana, que é essa
médica homeopata e acupunturista, ela dava um horário na acupuntura, um horário na
homeopatia, mas ela trabalhava muito com floral, então a gente tinha a Ana como
referência pro floral, então se a gente for pensar teve uma época que tudo funcionava,
107
a gente tinha acupuntura, a gente tinha o reiki, a gente tinha o floral, a homeopatia e o
spiral tape.” (Fátima Camomila)
Para Camargo Junior (2007), uma das linhas mais estruturadas de crítica ao
modelo biomédico, em geral, acontece no bojo da tradicional saúde pública, quando
centra seu foco nas distorções produzidas como a redução da concepção de saúde à
mera ausência de doenças, ênfase excessiva na tecnologia “dura” na produção de
diagnósticos, à redução da terapêutica (sem cuidado), à prescrição medicamentosa e à
ênfase numa perspectiva dita curativa, ou no máximo contemplando a prevenção das
ditas doenças, mas sempre excluindo de seu horizonte de preocupações toda a dinâmica
social e subjetiva produzida (no cotidiano), que dá de fato sentido à existência humana.
Estas ideias dicotômicas, muitas das vezes, não estão afastadas daqueles que trabalham
e utilizam as PICs como ferramenta. Mesmo quando tentam buscar um ideal
diferenciado do modelo criticado, acabam por relacionar qualquer ação de saúde à
remoção de doenças.
como equivalente a doença, como um objeto dado e não uma comunicação complexa
entre vários actantes51 cujos resultados são contingentes e instáveis ao longo do tempo.
Até se falava um pouco “pô, aquela cadeira tá ruim”, “Fatinha, eu acho que
fiquei assim porque foi vacinação e eu fiquei muito tempo agachado e tal”, mas em
geral as pessoas queriam mais era se conhecer, começaram a sair entre si.“Cê tem um
negócio pra me emprestar, então eu passo na sua casa”, pessoas que não tinham essa
relação antes, entendeu? Foi muito interessante, muito interessante, mas assim... Era
assim, foi começando a estreitar uma relação muito melhor no trabalho e pessoal.”
(Fátima Camomila).
51
Humanos e não humanos tais como: ambulância, estetoscópio, balanças, aparelho de medir a pressão
arterial, medidor de glicose, propagandas de medicamentos, bolsas de medicamentos ou mesmo agulhas
de acupuntura, etc.
111
“Então eu acho que não tinha uma coisa, assim, do, é, “esse serviço não
funciona bem”, pelo contrário, as pessoas encaminhavam, né? Assim como a gente
também usava bem as consultas médicas. Os médicos tinham uma afinidade muito
grande com a equipe da gente, depois as coisas foram mudando” (Fátima Camomila).
“Então, a gente tinha uma concepção de saúde muito, é... acho que a gente tinha
uma concepção do cuidado muito pra além da assistência. A gente tinha um
envolvimento, tinha, é, uma implicação de todos nós, apesar da gente não ter reuniões
de equipe.” (Fátima Camomila).
- Gente, não tá dando conta. Ele não melhora com isso, ele não melhora com
isso.
Né? E aí era uma coisa, assim, que era uma implicação, que eu me lembro que
eu ia pro trabalho e, a gente começava a atender 1 hora, eu chegava lá 11 e meia, eu
almoçava 11 horas, 11 e 15, 11 e meia eu tava lá cortando esparadrapo, porque senão
se eu começasse 1 hora cortando o esparadrapo eu não ia conseguir atender aquele
monte de paciente. Então eu e Isabel a gente ficava na hora do almoço fazendo as
tirinhas de esparadrapo, que chamava na época cross, e montando aquele monte de
papel, assim. Nunca ouvi ninguém falar “não, não tem recurso, eu não posso atender”,
“não tem luz eu não posso atender”, “não tem água eu não posso atender”, a gente
dava um jeito.
Eles (usuários) tinham uma relação de muito, de muito vínculo com a gente, até
porque a gente não tratava do joelho, nem do pé, nem do ombro, a gente tratava das
pessoas ali, né? Eles se sentiam muito bem cuidados, eles se sentiam acolhidos no
nosso serviço, né?(...) o vínculo era de tanta confiança, que se eu tivesse que enfiar um
prego ou um esparadrapo ou uma agulha ou um negócio que dá choquinho...
É. Não existia aquela anamnese, assim, do “seu joelho dói quando eu estico ou
quando dobro?”, “cê dorme bem?”, “cê tem gases?”, “seu coco é marrom?”, sabe
aquela preocupação que é pro além da queixa, né? Que às vezes o paciente traz uma
queixa que é um sintoma mais aparente e que às vezes aquele sintoma tem a ver com
um estilo de vida, um hábito, ou nem é ele que é tão importante, às vezes o
desequilíbrio do canal energético é mais importante naquele momento. Então, assim, é,
todos nós fazíamos uma anamnese muito minuciosa. Porque não é coluna que dói… é o
eixo que dói, é a estrutura que dói, né? E quais são as dores estruturais que o ser
112
humano tem? Que não são... que precisam ser ditas, ou que precisam ser sentidas, ou
precisam ser compartilhadas, né? Então, acho que todos nós tínhamos essa percepção,
não existia alguém que chegasse lá, agulhasse e tchau!
E eles entendiam que ali... Que ali a gente não tinha fragmentação no
cuidado, que a Dra. Mirian era tanto quanto nós ali, ... Não tinha é, assim, “ah, a Dra.
Mirian é mais legal que é médica”, né? “O outro é TO, não é Doutora”, não existia
isso. Então, assim, se passasse no corredor, “olha, hoje não é meu dia, mas hoje eu não
tô bem”, podia falar comigo, com a Mirian, até acho que a faxineira acolhia diferente,
né? Porque todos nós tínhamos uma percepção de que aquilo ali era um cuidado com,
assim, que não era fragmentado, ... Tinha uma visão mais integral.” (Fátima
Camomila).
“(...) assim, do quanto é preciso trabalhar na equipe mesmo, qual é o papel de cada um
nisso e tal, porque através do corpo a gente ia conversando sobre isso, foi muito legal,
foi muito legal. Mas, assim, uma coisa que chamava a atenção era quanto os
funcionários do posto eram adeptos das terapias, né? E , assim, isso diminui muito o
uso de anti-hipertensivo, de antidepressivo, né?
“Minha pressão regulou com o Dr. Cesar”, Dr. Cesar era (...), né? Muito legal. Saia
todo mundo do trabalho de negocinho na orelha.” (Fátima Camomila).
manutenção da rede, para fazer existir. Quando um serviço que vem trabalhando em
uma crescente de relação de confiança, passa a falhar, principalmente na sua oferta e
frequência, a confiança é perdida, o serviço passa a ser pouco procurado e divulgado e
pode desaparecer. Fátima Camomila dá um exemplo deste processo:
A mudança de conduta dos gestores para com os profissionais das PICs, por
conta das novas regras, cobranças, controle e avaliação do centro de saúde do SUS não
comportando metodologia que abarcasse a experiência da promoção de saúde mais
direcionada para o apoio ao cotidiano do usuário, efetivou-se como um contra-senso
importante, o que produziu o afastamento destes profissionais para outros centros e
outros estados do país.
De outro modo, o olhar para a saúde e para o cuidado do serviço das PICs,
naquele momento e contexto, era mais voltado para a saúde de modo ampliado e não
114
para a doença; e, os servidores envolvidos com as PICs não reivindicavam verbas para
material de fomento e sim, nas lutas internas, reivindicavam boas condições de trabalho.
“Ah, eu acho que a gente tinha, assim, uma união que vinha de vários lugares,
primeiro que a gente tinha um grupo muito politizado ali no terceiro andar. No terceiro
andar fazia uma greve, fazia, organizava uma, então, assim, eu fui do sindicato, Renato
foi do sindicato, Isabel foi do sindicato, não na mesma época, mas nesses anos todos,
todos (...) talvez a gente tenha se aproximado um pouco por isso, né? A gente nunca
brigou muito por salário, a gente sempre brigou muito por condições de trabalho (...)”
(Fátima Camomila).
Para além do centro de saúde que iniciou a tese, em outro bairro da cidade de
3.3 Tempos de PICs no Caramujo: Que saúde, que cuidado, que racionalidades
médicas?
Minha formação em medicina foi toda na UFF. “Então eu fiquei fora da UFF só 6
meses. Essa era minha vida aqui. Eu cheguei a ser professora de clínica médica, de
semiologia, (...). E um grupo de alunos que tava entrando no internato e que tinha
intenção de ir pra o interior, clinicar no interior, queria fazer um internato fora do
hospital, que eles acreditavam que o internato feito dentro do hospital, com base nessas
patologias mais raras, mais graves, não os prepararia para a clínica geral, no nível
primário e secundário que toda pessoa que vai pro interior tem que dar conta de fazer.
Então eles reivindicavam fazer um internato fora, na rede, e não havia isso na época.
Anna Capim Cidreira fala de uma demanda do ensino de medicina na UFF que
surgia no momento de reformas políticas na saúde. “Eram meninos (alunos)
politicamente bem articulados que queriam experiências na atenção básica”.
Segundo Madel Luz (2005), a demanda social da clientela para serviços públicos
de saúde pressionavam as instituições médicas no sentido de uma “abertura” para as
medicinas ditas alternativas nos anos 80. De tal modo que em agosto de 1985, a
homeopatia, a fitoterapia e a medicina tradicional chinesa, através da acupuntura, foram
legitimadas nos serviços médicos da previdência social, através de um convênio
116
3.3.1 Como assim? Vocês vão abandonar a medicina, ir pra uma unidade de saúde
fazer atenção primária pra fazer outra coisa que não é medicina?
“o nosso departamento de medicina clínica não aceitava nos liberar, nós eramos
professores de semiologia e clínica médica, ao sair deixaríamos uma falha, e também
porque na opinião deles, eu ouvi isso de um querido professor de clínica, que nós
éramos tão bons médicos, como é que íamos, assim, abandonar a medicina. Ele usou
essa frase, abandonar a medicina, ir pra uma unidade de saúde fazer atenção primária
pra fazer outra coisa que não era medicina.” (Anna Capim Cidreira)
52
Racionalidades Médicas (RM) é uma linha de estudos iniciada no Instituto de Medicina
Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS-UERJ) em 1991. Hoje a linha é desenvolvida
em várias unidades acadêmicas do Brasil, sendo também um Grupo de Pesquisas do CNPQ sediado na
Universidade Federal Fluminense (UFF) liderado pela Profª Drª Madel Luz. Os estudos do grupo
abrangem comparações em nível teórico e prático entre sistemas médicos complexos, como a Medicina
Ocidental (Biomedicina), a Homeopatia, a Medicina Tradicional Chinesa, o Ayurveda e outros. Ver em
http://racionalidadesmedicas.pro.br/sobre/
117
53
A proposta não é entrar em detalhes sobre as RMs, pois isto está bem documentado nos livros e artigos
da Madel Luz e do seu grupo, além do que caberia fazer outra tese. No entanto, é interessante depreender
a potência deste conceito quando se tenta compreender o descompasso dos discursos, quando todos
pensam que estão falando da mesma coisa, mas, não estão!
118
Nas buscas por histórias das PICs nos SUS descobrimos como se formou uma
homeopata:
-Professora, a senhora tem jeito de homeopata, tem cara de homeopata e não sabe o
que é homeopatia?
Bem, e aí a partir daí um aluno, um desses internos, virou pra mim e perguntou se eu
não tinha vontade de usar homeopatia na unidade. Eu falei: - Como assim? O que é
homeopatia? - Que eu nem sequer sabia o que era … e ele participava de um grupo de
estudantes de medicina, que sob a orientação de um médico homeopata já falecido,
João Emanuel, um grande homeopata, eles tinham um grupo de estudo e ele me levou
pra conhecer esse médico e virou médico da minha mãe, foi meu primeiro professor de
homeopatia, por causa deles, do aluno e desse médico, eu comecei então a fazer curso
de homeopatia..(Anna Capim Cidreira)
54
Estou consciente da existência de inúmeras formas conceituais de vitalismo, no entanto para este
trabalho e nesta passagem procurei sintetizar o conceito de vitalismo e energia vital assimilado para a
homeopatia hannemaniana. Sobre vitalismo ver Portocarrero (2009) e Luz e Scofano (2008).
120
fenômenos vitais. No Vitalismo, a força vital é definida como a unidade de ação que
rege a vida física, conferindo-lhe as sensações próprias da vida e da consciência. Este
princípio dinâmico, imaterial, distinto do corpo e do espírito, integra a totalidade do
organismo e rege todos os fenômenos fisiológicos. O seu desequilíbrio gera as
sensações desagradáveis. No estado de saúde mantém o organismo em harmonia. Deste
modo, a energia vital dos vitalistas homeopatas não é apenas aquela medida pelo
trabalho mecânico, nem tampouco a hoje denominada energia potencial da física. Eles
evocam a existência de uma energia essencial que move a vida, que antecede a atividade
mecânica e elétrica do organismo e que, na verdade, é sua mantenedora (Rosenbaum,
1996).
55
Seu significado literal seria “vapores que emanam do solo (ou da fermentação do arroz) em direção ao
céu” (FERREIRA, 1993). Ch‟i também seria para alguns "o movimento de uma substância sutil e
invisível”, e para outros equivaleria ao “movimento da água se transformando em vapor” (BARSTED,
2003).
56
Energia primordial recebida dos antepassados.
121
A partir de então e até por volta de 1995, mais de dez médicos indianos vieram a
Goiânia, em grupos que passavam de dois a quatro anos ensinando e acompanhando os
profissionais brasileiros em cursos e estágios práticos. No ano de 1988, deu-se a
criação, pelo governo do estado de Goiás, de um centro ambulatorial denominado
Hospital de Terapia Ayurvedica, hoje se denomina Hospital de Medicina Alternativa. O
HMA oferece também serviços nas áreas de Homeopatia e Acupuntura, além da
Fitoterapia e do Ayurveda (CARNEIRO, 2007).
Nunca foi fácil montar um serviço de terapias mais suaves para o público na
atenção básica e mais difícil ainda é mantê-lo ativo e produtivo.
“Então uma ex-aluna nossa, que à época era diretora médica do Hospital
Azevedo Lima, nos pediu que assumíssemos um postinho de saúde, que na época era um
subposto estadual de saúde do Caramujo. Era um subposto vinculado ao Hospital
Azevedo Lima. Nessa época essa médica, que era a Doutora Cristina Boareto, ela era
responsável pela residência médica do estado, que tinha nessa unidade do Caramujo 4
residentes e ela dava supervisão à distância, com dificuldade. Então juntando a fome
com a vontade de comer ela nisso ofereceu o espaço, em troca a gente oferecia a
supervisão para os residentes dela e pros nossos internos. E aí foi a maravilha, porque
nessa unidade de saúde nós assumimos a gestão da unidade. Contávamos com uma
confiança absoluta da Doutora Cristina que nos entregou a unidade:
E aí tudo que a gente imaginava que podia construir a gente foi construindo. Então,
gradativamente foram surgindo várias necessidades. Além da vacinação, a gente
começou a fazer grupo de floricultura, grupo de acompanhamento de mulheres, que a
gente chamava Grupo Fundo de Quintal, se reunia nos fundos dos quintais das
mulheres, que elas achavam melhor do que na própria unidade e grupo de saúde
escolar na escola que era ao lado (...)” (Anna Capim Cidreira).
“Nas reuniões entre diretores de unidade havia sempre uma certa pressão é,
em cima da unidade, que a unidade ficava inventando moda, fazendo coisas diferentes,
porque começava a repercutir na demanda das outras unidades que queriam(...). A
gente chegou a ter até, é, um horário da semana que a gente fazia harmonização
energética. E eu me lembro muito de um dia que eu cheguei e uma paciente falou
assim:
- Ô, Doutora, a senhora tá pior do que eu, acho melhor a senhora deitar que eu
que vou harmonizar a senhora.
Eu rapidamente deitei, nem discuti. Então, assim, a gente chegou a ter um, uma
situação na unidade de muito trabalho, intenso trabalho, todos os dias da semana. A
gente fechava o posto 6 horas da tarde e aí começávamos o trabalho na comunidade,
na associação de moradores, nas visitas domiciliares...” (Anna Capim Cidreira)
“Foi uma certa luta encontrar com esse moço, porque toda vez que eu ia na casa dele
a, a esposa dizia que ele não estava, porque eu me identifiquei como médica do posto, e
eu acho que ele temia algum tipo de represália. Até que um dia, numa dessas visitas,
num… numa dessas tentativas eu disse à esposa:
- Olha, eu queria deixar um recado pro seu José. Eu sou médica do posto, eu tô
vindo aqui pedir ajuda a ele, porque eu ouvi dizer que ele trata muito bem erisipela, a
que eu trato, volta, eu trato, volta, e me disseram que ele trata uma vez só e não volta,
eu queria saber se eu posso...
Aí ela:
- Pera um instantinho.
124
“Enfim, tudo isso se perdeu. Eu fico até, assim, emocionada quando me lembro
sabe. Quase choro...” (Anna Capim Cidreira)
Para ela, a experiência havia acabado ali, no Caramujo. No entanto não foi isso o
que aconteceu. Mais adiante poderemos notar que outras inscrições aconteceram na
educação dos médicos da UFF após o período de 15 anos no Caramujo revelado como
uma rica experiência. Inscrições de grande potência para influência das PICs como
mediador no campo da saúde.
“Então é isso, isso a gente tinha. E aí como é que acabou essa rica experiência,
né? Que parecia, por isso o título do relatório Desabafo de Um Náufrago, que a gente
nadou, nadou, nadou e morreu na beira da praia, porque em 98 a fundação municipal
de saúde proibiu que a gente continuasse fabricando na unidade os fitoterápicos. Por
quê? Porque a gente trabalhava numa copa de um metro por dois e meio que não era
azulejada e que não tinha a bancada própria. A gente trabalhava com um fogão assim
de duas bocas, duas panelas de inox, uns garrafões, então, o que precisava, que era
azulejar uma saletinha de um metro por dois e azulejar a bancada não, não, não foi
feito e ao invés disso preferiram proibir a produção. O Doutor Eduardo Almeida já
tinha dito que nossa unidade podia produzir aqueles 40 itens pra toda a rede. Então o
Eduardo disse:
- Olha, nós podemos produzir pra toda a rede e podemos construir uma
apostilinha e treinar as pessoas pra usar cada item. A gente tinha um item ótimo para
gastrite, úlcera gástrica com tintura de espinheira-santa. A gente tinha um xarope de
tomilho que é o melhor antitussígeno que eu já conheci. A gente tinha um creme
hidratante com óleo de gergelim a 10% que o Martuci que preparou, para aquele
pessoal catador de lixo do Morro do Céu que tinha a pele toda destruída, que a, a
escabiose graçava pra todo lado. Com aquele creme todo mundo ficou com a pele linda
e saudável. Ninguém tinha mais micose, ninguém tinha mais sarna, ninguém tinha mais
nada, pele ficou resistente e hidratada. Melhor hidratante que existe.”(Anna Capim
Cidreira)
126
57
Rosmarinus officinalis, conhecido popularmente por Alecrim, alecrim-de-jardim, erva da recordação,
erva-da-graça, erva-da-alegria, erva-mágica ou ainda erva-das-bruxas , no seu uso terapêutico é indicado
como cardio-tônico.
127
“Aí o que é que eu fiz? Eu peguei, eu comecei no Gragoatá fazendo terapia floral eu, o
meu grupo de pesquisa e bolsista indo pra lá e mais alguns enfermeiros que se
agregaram comigo. Aí a gente começou a fazer atendimento lá com esses idosos. Você
não tem noção. No ano passado a gente atendeu, ou melhor, não é atendeu mais de 200
pessoas. O que é que a gente faz? A gente ouve, a gente faz Moxa, porque eles tem
muitas dores musculares, muitos processos inflamatórios, deformidade nos pés que
prejudica a osteoartrite ... comecei a trabalhar bastante com Aurículo, bastante, com
Dança” (Fata Rosmarino).
Fata Rosmarino esclarece que em sua opinião estes serviços podem ser
considerados inovadores. Pergunto como:
“Eu acho que é inovador59 porque você rompe, você oferece uma outra possibilidade
de cuidado, entendeu? A pessoa que escolhe. Ela tem autonomia para escolher, mas ela
tem o direito de conhecer outras formas, sabe? Ela tem o direito de saber que se ela
vestir vermelho ela talvez se sinta mais ativa, sabe? Ela tem o direito de saber que um
chá de amora pode melhorar a parte, sei lá, de menopausa dela, a parte óssea,
entendeu? Acho que as pessoas têm o direito, porque esse é um saber que veio antes e
quem é que tem o poder de controlar o que você pode saber e o que você não pode
saber?” (Fata Rosmarino).
No entanto, Fata Rosmarino é mais uma profissional que se sente sozinha no seu
fazer com as PICs na universidade. As entrevistadas mostraram uma percepção de
isolamento. No entanto, as novas propostas de ação dentro da UFF, caminham para uma
integração das pessoas de todas as áreas interessadas nas PICs. Como veremos nas
inscrições. “A gente se sente sozinho sim. Mas eu acho que às vezes a gente se isola
também, não é?” (Fata Rosmarino).
58
Massagem reflexa nas mãos com a intensão de diminuir a ansiedade e relexar.
59
Sobre o tema das PICs como inovação, pretendo pensar sobre ele posteriormente.
128
Em outro caso, mais atual, mas que remete a esta discussão, o envolvimento dos
usuários e serviço com a academia, nos estudos da saúde vem utilizando a translação do
conhecimento como um caminho metodológico, tanto nas pesquisas quanto na gestão
em saúde60. São trabalhos desenvolvidos no Canadá e em Portugal, que vem sendo
aplicados e discutidos em oficinas, na Fiocruz, sobre como fazer produtos (inovadores
ou não) para o SUS, no campo da Atenção Básica e da Promoção da Saúde. As
pesquisadoras consultoras Louise Potvin (ESPUM/ Universidade de Montreal e
Institutes of Health Research) e Zulmira Hartz (IHMT/ Universidade Nova de Lisboa)
apontam para a importância do envolvimento de todos os interessados, em rede, para a
concretização de um bom sistema de saúde para um coletivo.
60
Neste sentido tenho aprendido com os trabalhos que acompanhei nos últimos três anos, como assistente
de pesquisa na Fiocruz, sobre a translação do conhecimento aplicado à saúde pública.
129
4.1 Inscrições
indicadores importantes para o MS, que geram leis da saúde e produtos para o SUS, que
retornam ao território produzindo efeitos e avaliações.
Assim sendo, a ferramenta mais interessante para compor com esta maneira de
caminhar nas pesquisas, para essas duas pesquisadoras consultoras é a Teoria do Ator-
Rede.
Outras inscrições desta pesquisa foram as pontes criadas com parcerias entre a
Divisão de Atenção à Saúde do Estudante da Universidade Federal Fluminense
DASE/PROAES e a escola de medicina da mesma universidade no seu projeto
“Cuidado Integrativo na Promoção de Saúde do Estudante”, coordenado pela médica
NEPIC/UFF. A escola de medicina, através do NEPIC, tem como objetivo principal
131
Essa ponte será concretizada em um estágio que visa oferecer uma introdução à
prática de meditação,algumas modalidades de relaxamento, yoga, toque terapêutico,
visualização dirigida, terapia expressiva, entre outras. Pretende-se, desta maneira,
despertar no estudante a motivação para o cuidado de si, fundamental para todo
profissional que pretende participar do cuidado do outro; apresentar algumas técnicas e
saberes do campo da medicina integrativa e do cuidado integrativo, incluindo suas
indicações, evidências de eficiência e segurança, de forma a tornar o estudante capaz de
apresentar, indicar , discutir esses procedimentos e oferecer ao estudante a oportunidade
de experimentar alguns processos terapêuticos em si mesmo e entre colegas, para que
possa testemunhar seus possíveis benefícios61.
Outra inscrição aconteceu com a ponte firmada entre o DASE e a Escola de
Enfermagem Aurora Afonso Costa (EEAA/UFF) na sua coordenação de Práticas
Integrativas e Complementares. Após algumas tentativas de aproximação e alguma
resistência justificada e não justificada (lembrei-me da dificuldade do encontro entre o
senhor José rezadeiro e a médica) e da quase desistência da gestão do DASE para
executar a conversa para parceria.Foi finalizado o acordo de parceria entre as áreas.
Fazendo tecer mais um nó nesta rede de saúde tendo as PICs como mediador. Ficou
evidente a necessidade de grande esforço para que estes laços sejam concretizados e
para que gerem e mantenham uma tensão tal que propicie um terreno das PICs na UFF e
em Niterói.
Foi interessante notar que os trabalhos feitos com as PICs nos diversos
departamentos da UFF eram desconhecidos entre si, mesmo estando na mesma
universidade. Isso é bem comum, um tipo de desconhecimento que também acontecia
no departamento de psicologia onde construímos esta tese. No entanto, a aproximação
61
http://www.uff.br/isc/site_2_5/index.php/noticias/todas-as-noticias/197-aprovada-proposta-para-a-
criacao-do-nucleo-de-estudos-e-praticas-integrativas-e-complementares
132
entre estes pode ser feita, enredada com grande esforço. Pois, apesar dos contatos por
email, whatsapp, mensagens, telefone, etc, o encontro real para conversas, como
aconteceu no exemplo anterior, foi negociado por meses para finalmente acontecer.
Pensava: o que acontecia por trás desta resistência? Afinal, unir trabalhos e objetivos
evitaria muitos retrabalhos, informações equivocadas repassadas e ações políticas
errôneas executadas.
Outras inscrições estão acontecendo enquanto escrevo o final desta tese. Por
exemplo, está previsto para o mês de outubro, um evento de encontro das PICs, em
Niterói, na UFF, organizado pelo NEPIC, com participação ativa de todas as pontes
realizadas durante a tese, agregando conhecimentos. A proposta do encontro é trabalhar
com GTs formas de reconexão para ações em prol do fortalecimento das PICs em
Niterói. Trata-se do Fórum “10 anos de Práticas Integrativas em Saúde Para Todos:
Trajetória em Niterói”, a ser realizado como atividade da Agenda Acadêmica, em 21 de
outubro de 2016, de 09 às 17 horas. Seu objetivo é o de celebrar os 10 anos da Política
Nacional (PNPIC) e refletir sobre a trajetória das PICs em Niterói, com vistas a
62
Revista Estudos e Pesquisas em Psicologia-UERJ v.15, n.4 (2015). www.e-publicacoes.uerj.br .
63
Aceito em 2016 para publicação na Revista Pesquisas e Práticas Psicossociais da Universidade Federal
de São João Del-Rei. www.seer.ufsj.edu.br
64
http://alice.ces.uc.pt/coloquio_alice/wp-content/uploads/2013/05/Abstracts_Book.pdf
65
II CONGRESO DE ESTUDIOS POSCOLONIALES; III JORNADAS DE FEMINISMO
POSCOLONIAL; - Instituto de Altos Estudios Sociales (Universidad Nacional de San Martín) Diálogos
Sur-sur: pedagogías descolonizadoras http://www.idaes.edu.ar/pdf_papeles/4-
11%20do%20Santos%20Moraes%20e%20Francisco.pdf
66
6º ESOCITE,BR TECSOC – VI Simpósio Nacional de Tecnologia e Sociedade realizado de 14 a 16 de
outubro de 2015. http://www.esocite.blog.br/2015/10/anais-eletronicos-web.html
133
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na busca por responder as questões iniciais deste trabalho: que saúde e que
cuidado são estabelecidos e aplicados nos usos das Práticas Integrativas e
Complementares no Sistema Único de Saúde, Niterói foi a cidade escolhida por estar
marcada nas minhas memórias, de uma intensa atividade deste movimento nas décadas
de 1990 e 2000.
Para estabilizar momentaneamente aquilo que foi trabalhado nesta tese, podemos
nas considerações finais apoiá-la em um tripé de categorias analíticas: a) Histórias
contadas; b) Interesses descobertos e c) Racionalidades médicas, Políticas ontológicas e
multiplicidades.
Foram inúmeras histórias contadas e outras tantas ficaram guardadas para outro
momento. No entanto, as histórias contadas, não oficiais, trouxeram para o campo
verdadeiras guias que apontaram para caminhos e alguns nós, que foram descobertos
algumas vezes, desatados e analisados com maior cuidado. Sempre que possível
desviados das histórias oficiais naturalizadas. Não! Não existe apenas uma forma de
saúde e de cuidado! Sejamos razoáveis. Pois, em uma tese com limites de tempo e
espaço vimos múltiplas maneiras de lidar com estes conceitos. Como saberíamos se não
abríssemos os ouvidos para as narrativas de pessoas que estavam por aqui, por esta
cidade?
Por certo, foi seguindo estes rastros, tateando estas guias das histórias contadas
que os interesses foram se revelando, de forma local e parcial. Apoiada pela TAR e pela
posição da pesquisadora de fronteira, foi possível mapear aqui e ali, ações políticas,
econômicas, de reserva de mercado e condições do viver saúde que possibilitavam ou
não o trabalho das PICs por Niterói. Foi possível também perceber ações que levaram as
135
atividades das PICs nos centros de saúde ao quase esquecimento e ao final da tese penso
que deixo uma inscrição marcada a tinta de que existiu sim este tempo forte das PICs e
pessoas fizeram isso acontecer como realidade. Também ficou evidente que houve
muita resistência de todos que participaram desta empreitada, pois aquele movimento de
práticas interessantes e contra-hegemônicas continuou sendo disseminado pelos
subterrâneos da memória, passada de forma oral ou atendendo fora dos centros de
saúde.
Por fim, ao observar o movimento destas práticas nos seus usos por terapeutas
médicos e não médicos, por especialistas de outras áreas, e atravessá-los pelo viés das
racionalidades médicas, das políticas ontológicas e da multiplicidade, pude notar que é
uma falha pensar em saúde e cuidado a partir da biomedicina e tentar encaixar nesta
base racional outras racionalidades e ontologias com cosmovisões diferentes. Ou seja,
não adianta forçar e colocar tudo dentro de uma mesma caixa, como se estivéssemos
falando da mesma coisa. Isto é impossível! Pois, tratar da saúde pelo viés da
biomedicina é lutar no corpo contra doenças e patologias que sequer são catalogadas
com o mesmo nome ou a mesma fisiologia nas outras racionalidades médicas. A idéia é
outra! Tanto na medicina chinesa, como na medicina ayurvédica, na homeopatia e em
outras cosmovisões, tudo depende de conhecer de onde se fala. Falamos do TAO, de
prana, do simillimum?
Esta tese, revela que existem inúmeros conceitos de saúde e de cuidado possíveis
e movimentos múltiplos de realidades performadas diferentemente, como nos
mostraram as políticas ontológicas trabalhadas por Mol (1999; 2010).
Ainda há muito que pensar, pois, temos problemas sérios para os centros de
saúde que comportarem as PICs. Conforme foi relatado, o sistema de repasse para os
centros de saúde no SUS, vinculado a linha de produção não acolhe as PICs como um
serviço que traga medidas positivas que possam ser mostradas pelas ferramentas de
controle do SUS, pois seu maior valor é promover saúde e a capacidade de levar a vida
menos medicalizada possível e isso afasta os usuários das filas dos consultórios.
Portanto, há que se pensar em outros métodos de monitoramento e avaliação que
coloquem força nas atuações da promoção da saúde, na assistência básica, no programa
saúde da família incluindo as PICs.
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