O Nascimento Da Polícia Moderna: Uma Análise Dos Programas de Policiamento Comunitário Implementados Na Cidade Do Rio de Janeiro (1983-2012)
O Nascimento Da Polícia Moderna: Uma Análise Dos Programas de Policiamento Comunitário Implementados Na Cidade Do Rio de Janeiro (1983-2012)
O Nascimento Da Polícia Moderna: Uma Análise Dos Programas de Policiamento Comunitário Implementados Na Cidade Do Rio de Janeiro (1983-2012)
edição e propriedade
Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Av. Professor Aníbal de Bettencourt, 9
1600-189 Lisboa Portugal — analise.social@ics.ul.pt
Análise Social, 211, xlix (2.º), 2014, 272-309
I N T ROD U Ç ÃO 1
1 Este texto foi desenvolvido no âmbito do projeto “Policiamento comunitário: uma análise
sócio-histórica dos projetos desse gênero empreendidos pela Polícia Militar do Estado do Rio
de Janeiro no período democrático (1983-2011)”, financiado pelo Conselho Nacional de Desen-
volvimento Científico e Tecnológico (cnpq) por meio do auxílio 474393/2011-9, resultante do
Edital Universal 14/2011. Uma primeira versão deste artigo foi apresentada ao gt Sociologia da
Moral na xxvi Reunião anual da anpocs. Agradeço aos organizadores da sessão – Alexandre
Werneck e Luiz Roberto Cardoso de Oliveira – pelos valiosos comentários que tanto contribuí-
ram para a versão final do texto, apresentada no atual formato.
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2 Referência às mortes de civis por policiais, tornadas legítimas pela “gratificação faroeste”,
que contribuiu para que a cidade do Rio de Janeiro fosse ainda mais dividida. Afinal, de um lado
estariam os moradores das favelas, que são tomados como ilegais ou perigosos oficiais e, por
isso, não só podem como devem ser executados pela polícia para a garantia da segurança do
outro lado da cidade, composto de uma população “formal”, gradeada, blindada quando possí-
vel, desejosa de proteção, alarmada pelos media e pela criminalidade concreta (Câmara, 2009).
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3 V. Cano e Duarte (2012) sobre a atuação ilegal dos policiais em áreas de favela do Rio de
Janeiro no âmbito de organizações denominadas milícias.
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S OB R E O S P RO C E S S O S DE C ON S T I T U I Ç ÃO DA P OL Í C IA
AT É À C ON T E M P OR A N E I DA DE
4 O cel. Nazareth Cerqueira foi, segundo Beato (2001), o responsável pela chegada da catego-
ria “policiamento comunitário” ao Brasil. Foi também comandante da pmerj em dois períodos
distintos (1983-1987; 1992-1995).
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[…] uma força armada que o poder real havia obrigado a pôr em serviço no século xv
para evitar todas as consequências e as desordens que se seguiam às guerras, e ssencialmente
à dissolução dos exércitos no fim das guerras. Soldados dispensados, soldados que muitas
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vezes não haviam recebido soldo, soldados debandados, tudo o que constituía uma massa
flutuante de indivíduos que, evidentemente, se entregava a toda sorte de ilegalidades: vio-
lência, delinquência, crime, roubo, assassinato – todas as pessoas errantes, e eram essas
pessoas errantes que a maréchaussée era encarregada de controlar e reprimir.
5 Tal como destacado por Sztompka (2005), a eficiência é um dos correlatos da própria ideia
de modernidade que passa a constituir a ossatura ideológica e normativa dos Estados-nação a
partir dos séculos xviii e xix.
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[…] o modelo havia calculado mal o que os cidadãos esperam da polícia […]. Mais
importante, o isolamento da polícia em relação ao público teve um preço alto. O oficial de
patrulha, em um carro com ar-condicionado e aquecimento, não saía mais dele para fazer
patrulha preventiva ou para saber mais sobre a comunidade que estava policiando. […]
Logo, a população não tinha mais confiança de que a polícia estivesse lidando, ou poderia
lidar, com seus problemas [Reiss, 2003, p. 67].
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QUADRO 1
Comparação entre a metodologia de trabalho policial tradicional e a comunitária
Én ecessária uma burocracia estruturada para que a ação policial seja substan-
tivamente previsível, mas é necessária ainda certa flexibilidade para a definição
de cursos de ação diferenciados a fim de viabilizar o atendimento às variadas
demandas da comunidade.
As organizações policiais contemporâneas devem ser capazes de empreen-
der tanto práticas reativas quanto preventivas. Devem estar preocupadas em
aplicar a lei de modo universal e, ao mesmo tempo, responder às demandas
específicas de cada comunidade. Devem estar atentas à prestação do serviço
de forma impessoal e universal, mas sem se esquecerem da satisfação dos
cidadãos que recebem o serviço. Em suma, as organizações policiais devem,
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O S P RO G R A M AS DE P OL I C IA M E N TO C OM U N I TÁ R I O
DA C I DA DE D O R I O DE JA N E I RO
Este artigo é derivado de uma pesquisa sociohistórica que tem como objetivo
reconstituir a trajetória dos programas de policiamento comunitário imple-
mentados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro (pmerj) no período
de 1983 a 2012. Assim, a fim de que as estratégias utilizadas para alcançar esse
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QUADRO 2
Referências documentais mapeadas e consultadas na atividade de produção de uma
análise sociohistórica dos programas de policiamento comunitário
18 fev. 1983 Cel. PM Nazareth Leonel Dez. 1983, mar. 1984, out.
Disponível
15 mar. 1987 Cerqueira Brizola 1984, out. 1985, ago. 1986
A ressalva de que a ação da polícia deveria ser guiada de acordo com regu-
lamentos reforça a tese de que a aproximação com a comunidade era, na ver-
dade, uma forma de criar laços suficientemente fortes para que esta viesse a
exercer a função de controlo externo da atividade policial. Essa atividade esta-
ria circunscrita aos regulamentos que seriam produzidos ao longo dos primei-
ros anos do governo Brizola com o objetivo de limitar a discricionariedade do
polícia de ponta, que, no período anterior, era utilizada para arrombamento de
casas, revistas e prisões sem o devido respaldo legal.
Utilizando-se das prerrogativas para o estabelecimento de um novo regu-
lamento policial que pudesse orientar os polícias no processo de aproximação
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com a comunidade, o cel. Cerqueira decide conduzir uma tentativa que, depen-
dendo dos resultados, levaria ao desenho de um novo modelo de policiamento
a ser expandido para todas as demais unidades da pmerj. Trata-se do Centro
Integrado de Policiamento Comunitário (cipoc), inaugurado em 1983 na área
do 18.º Batalhão.11 Nessa experiência, os polícias e os representantes comuni-
tários reunir-se-iam para a discussão dos problemas que mais afetam a ativi-
dade de manutenção da ordem pública e, em seguida, construiriam estratégias
para a solução das causas do fenómeno de tal maneira que ele não mais acon-
tecesse e a comunidade pudesse ficar em paz.
No entanto, quando os documentos que retratam essa experiência são
analisados, é evidente desde o primeiro momento, que a adoção do policia-
mento comunitário não visava uma reforma do modelo profissional, mas a sua
própria institucionalização. Desde o primeiro parágrafo, destacava-se como a
unidade recém-batizada de cipoc tinha como objetivo garantir o provimento
de serviços de policiamento em áreas que, tradicionalmente, não o recebiam
por serem “pobres”:
erigosas”, isto é, sobre os pobres. O objetivo mais imediato de tal ação era
p
impedir que essas classes e, por conseguinte, os seus problemas transbordassem
para o restante da sociedade, o que poderia criar especialmente conflitos e cri-
mes, nos quais os pobres assaltariam os ricos para garantir a sua sobrevivência.
Assim, longe de assegurar a soberania do Estado em áreas carentes, o que a
polícia fazia era impedir que essas pessoas circulassem nas áreas mais “saudá-
veis” da cidade.
Nesse contexto, o objetivo do cipoc era alterar a “cultura policial” de
emprego de categorias construídas na prática profissional, constituintes de
uma “lógica em uso”, que identificava criminosos por meio de avaliações da
cor da pele e das roupas maltrapilhas (Paixão, 1982). Para aniquilar essas prá-
ticas vigentes e transformar a polícia numa instituição prestadora de serviço, o
foco da instituição deveria deixar de ser o “bandido” e passar a ser a “comuni-
dade”, com a qual a polícia trabalharia em parcerias, disciplinando a sua ação
nesse espaço e, dessa forma, garantindo segurança para os que residiam dentro
ou fora da área de atuação do programa.
Algumas questões devem ser destacadas em relação ao argumento da insti-
tucionalização do modelo profissional. Para garantir que os polícias lotados no
cipoc de facto não usariam a força de forma discricionária e arbitrária, foram
editadas distintas Notas de Instrução que regulavam a rotina desses funcioná-
rios públicos. Além disso, os polícias eram obrigados a redigir relatórios diá-
rios e pedir que comerciantes e outros transeuntes o assinassem, certificando
assim a veracidade das informações prestadas.
Para garantir que os polícias encarregados do policiamento comunitário
não seriam desvirtuados nem empregariam padrões de conduta “viciados” com
os ideais autoritários do período anterior, apenas seriam lotados no cipoc os
polícias recém-admitidos. A avaliação da ação desses indivíduos, bem como a
satisfação da população com os serviços prestados, seria auferida por meio de
pesquisas de monitorização e avaliação dessa unidade policial, as quais seriam
executadas por agências externas à própria polícia, evitando, dessa forma, pos-
síveis corrupções do avaliador e, por conseguinte, perda de legitimidade dessa
experiência inovadora.
Mesmo assim, o diagnóstico que o próprio cel. Cerqueira fez dessa expe-
riência no final do governo foi de um programa mal sucedido. Em parte, isso
teria acontecido porque o pressuposto para o desenvolvimento do modelo
profissional de polícia não se fazia presente. Isso porque, se o pensamento
histórico de Foucault (2008) for retomado, é possível afirmar que o pressu-
posto básico para a constituição de uma polícia moderna é a capacidade dessa
agência de garantir a soberania do Estado-nação em todo o seu território. Ape-
nas após essa etapa, é possível instalar unidades de policiamento nas quais os
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12 Como o Community Patrol Officer Program (cpop), implementado pela polícia de Nova
Iorque com a assessoria do Vera Institute of Justice.
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Muita coisa mudou na maior favela do mundo 54 dias depois que a polícia expulsou de
lá os traficantes – que ditavam ordens e impunham uma cumplicidade forçada aos 120 mil
moradores. Sem esconder a sensação de alívio, os moradores da Rocinha agora se unem
para formar uma grande escola de samba, comemoram a “invasão social” através de obras e
trabalho para desempregados e temem que a polícia abandone o local. Com a desarticulação
do bando de traficantes, eles passaram a sair de casa à noite e comerciantes reabrem as portas
de casas fechadas por ordem dos bandidos. […] Depois da ocupação policial, aumentou o
número de registros do que os policiais chamam de feijoada: brigas de marido e mulher e
conflitos entre vizinhos em geral causados por construções irregulares. Quando os trafi-
cantes dominavam o morro, a delegacia registrava, em média, dez agressões a tiro por mês;
desde o dia 1.º de junho, porém, não foi feito nenhum registro desse tipo [Revista da pmerj,
1988, ano v, n.º 8, p. 40, itálico nosso].
Deste trecho se infere ainda que, uma vez garantida a soberania do Estado-
-nação nesse território, a segunda preocupação é com a disciplina da popula-
ção que ali reside; dessa forma, a ação da polícia deu-se no sentido de registar
todas as ocorrências criminais que tinham lugar na área, fazendo com que os
residentes percebessem que esse tipo de conduta já não seria tolerado e, por
conseguinte, seria necessário conter de modo mais efetivo os instintos violen-
tos.
Já em artigo publicado na edição especial da Revista da pmerj de março de
1991, o cel. Elysio afirma ter procurado constituir uma polícia eminentemente
moderna e que, por isso, o eixo estruturante dos programas executados nesse
período (1987-1991) foi a ideia de disciplina a ser efetivada dentro e fora da
corporação:
Cremos ser esta a Polícia Militar que o povo fluminense quer: moderna, eficiente, pre-
parada para suas duras missões. E ao mesmo tempo vigilante da própria corporação, da
disciplina e correção de seus homens, pronta também para punir o desvio da função. Pois é
assim também que nos habilitamos ao respeito da sociedade [Revista da pmerj, 1991, ano
viii, edição especial, p. 4, itálico nosso].
Fundamentalmente, a maioria das ações executadas pelo bope são [sic] de caráter
repressivo, face ao preparo técnico, tático e psicológico de seus integrantes, e em quase
todas essas ações ocorrem prisões de delinquentes perigosos, detenções, bem como apreen-
sões de materiais (armamento, tóxicos etc.), o que demonstra a eficácia e eficiência desta
Unidade, face à destinação constitucional da Corporação [Relatório de gestão, 1991-1994,
p. 106, itálico nosso].
13 O argumento vencedor foi o de que o cargo era de secretário de Polícia Militar e, por con-
seguinte, comandante da pmerj, mas que a primeira posição tinha ascendência sobre a segunda
e, por isso, não se sujeitava aos regulamentos policiais.
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Tendo como base o modelo existente em Nova Iorque, visa inteirar-se dos problemas
criminais e outros de preservação da ordem através do permanente contato com os mora-
dores. Inicialmente o projeto atingiu os bairros da Urca, Laranjeiras, Leblon, Alto da Boa
Vista e Ilha do Governador [Realizações da Polícia Militar no ano de 1992, p. 2].
isso, assume a posição o cel. Wilton Soares Ribeiro. Apesar dessa alteração, as
diretrizes que emanavam da cúpula da pmerj apontavam para o facto de que
o policiamento comunitário seria o fio condutor dos programas que tinham
como objetivo a retomada de territórios. Essa era, portanto, a categoria esco-
lhida para identificar os programas de policiamento destinados a áreas de
favela e executados com o propósito de restabelecimento da soberania estatal
nessas regiões para posterior provimento da atividade de policiamento osten-
sivo, a qual, além de disciplinar os residentes na área, garantiria segurança aos
que residiam no seu entorno e eram constantemente amedrontados com as
disputas de criminosos pela posse do território.
No segundo semestre de 2000, foi criado o Grupamento de Policiamento
em Áreas Especiais (gpae), cujo objetivo era combater a violência urbana que
tanto afligia determinadas áreas especiais “a partir da filosofia e da estratégia
da Polícia Comunitária” (Carballo Blanco, 2002, p. 48):
Entende-se por Áreas Especiais (ae) o espaço geográfico de densa ocupação humana,
onde existam elevados indicadores de violência e criminalidade, combinado com uma des-
tacada deficiência na prestação de serviços públicos essenciais e onde também se verifica
a existência de condições inadequadas para o desenvolvimento humano e comunitário,
propiciando dessa forma um fértil campo para a proliferação de atividades desordeiras e
criminosas, em face da pouca presença, ou até mesmo, da ausência total da ação do Estado,
principalmente em termos de infraestrutura e serviços [Carballo Blanco, 2002, p. 29].
14 Podemos perceber como a pobreza e a residência em locais de pobreza são tomadas como
fatores de risco social.
POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO RIO DE JANEIRO (1983-2012) 301
Por outro lado, tal como diversas avaliações têm demonstrado (cesec,
2011 e 2012), os polícias que atuam nessas áreas passam a desempenhar uma
atividade eminentemente disciplinadora, normalizando a vida da população
que ali reside em detalhes, determinando desde o horário para a realização de
festas até à arbitragem de conflitos eminentemente domésticos.
304 LUDMILA RIBEIRO
C ON SI DE R AÇ ÕE S F I NA I S
R E F E R Ê N C IAS B I B L IO G R Á F I C AS
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