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DOSSIÊ “GLOBALIZAÇÃO”

REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

A QUESTÃO DO DESENVOLVIMENTO À LUZ DA


GLOBALIZAÇÃO DA ECONOMIA CAPITALISTA

Francisco Luiz Corsi


Universidade Estadual Paulista

RESUMO

O artigo busca realizar, a partir de uma perspectiva histórica, um balanço da situação dos países periféricos
nos últimos trinta anos, abordando especificamente os impasses do desenvolvimento na atual fase da chamada
globalização do capital. O trabalho baseia-se fundamentalmente em estudos de extensa bibliografia publicada
recentemente. Em que medida a retomada do desenvolvimento para diversas áreas estagnadas da periferia
coloca-se como uma possibilidade palpável? Em torno dessa questão, que reportamos central na atual
conjuntura, buscamos tecer algumas reflexões. Pretendemos mostrar que a estagnação econômica vivida
por inúmeros países não desenvolvidos decorre, em parte, de uma crise social e econômica aberta na
década de 1970 e que se estende até os dias de hoje, apesar das tentativas de reestruturação da sociedade
capitalista. As estratégias e as políticas de cunho neoliberal também teriam contribuído sobremaneira para
essa situação à medida que reforçaram as amarras financeiras que sufocaram boa parte das economias
periféricas. Sobrepondo-se a esses problemas, esses países também se defrontariam com os limites ecológicos
do capitalismo. A retomada do desenvolvimento em um novo patamar, que requer crescimento econômico,
justiça social e preservação da natureza, implicaria rupturas com o capitalismo.
PALAVRAS-CHAVE: desenvolvimento; globalização; projeto nacional; crise econômico-social.

I. INTRODUÇÃO hegemônicos. Embora as questões relativas à


estabilidade, à desregulamentação das economias
A situação de miséria vivida por parcela consi-
nacionais etc. continuem ocupando um enorme
derável da humanidade e a estagnação econômica
espaço nos debates, a problemática do desenvolvi-
de vastas regiões da periferia do capitalismo têm
mento, em virtude da severa crise social e econô-
tornado cada vez mais premente a retomada da
mica, vem novamente ganhando importância, não
questão do desenvolvimento. A discussão acerca
apenas no Brasil. Até mesmo os setores mais
desse tema perdeu terreno nas últimas décadas.
conservadores passaram a preocupar-se com o
Esse recuo vincula-se ao avanço do neoliberalismo,
problema, como ficou evidente no último Fórum
à abertura das economias nacionais, à crise da
Econômico Mundial, realizado em Nova York.
dívida externa dos países subdesenvolvidos, à
Entretanto, a retomada dessa discussão tem que
busca da competitividade a todo custo e ao fra-
romper com os termos estabelecidos por esses
casso de vários projetos de desenvolvimento em
setores. Isso implica assumir uma postura crítica.
países subdesenvolvidos.
Dessa forma, pretendemos, a partir de uma inves-
O caso do Brasil é ilustrativo. A partir da década tigação de caráter histórico, fazer um balanço da
de 1980, a questão do desenvolvimento, que tinha situação dos países periféricos abarcando os
ocupado um lugar central no debate econômico últimos trinta anos.
desde o período Vargas, perdeu espaço ante os
II. O FRACASSO DOS PROJETOS NACIO-
problemas da crescente inflação e da crise fiscal
NAIS, A PERDA DE DINAMISMO ECONÔ-
do Estado, que passaram a galvanizar as atenções
MICO E A GLOBALIZAÇÃO
da mídia, da academia e da política. O avanço da
ideologia neoliberal em escala mundial, que acabou A necessidade de repensar o desenvolvimento
atingindo o Brasil, também corroborou, e muito, funda-se, em parte, na constatação do esgotamen-
para essa reversão de prioridades. Preocupar-se to da maioria dos chamados projetos nacionais de
com o problema do desenvolvimento, até pouco desenvolvimento no contexto de mundialização da
tempo atrás, significava contrapor-se aos temas economia capitalista. A Grande Depressão e a

Recebido em 24 de março de 2002.


Aprovado em 6 de setembro de 2002.
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 19, p. 11-29, nov. 2002
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A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

Segunda Guerra Mundial, ao acarretarem uma ria do sistema entre as décadas de 1930 e 1970,
relativa desarticulação da economia mundial, como vieram em sua maioria a ruir a partir dos anos
nossos estudos tinham sugerido (CORSI, 2000; 1980. O fracasso dos projetos socialistas também
2001), abriram novas possibilidades de desenvolvi- pode ser visto sob essa ótica, pois eles, entre outros
mento para alguns países subdesenvolvidos que aspectos, representavam alternativas de desenvol-
já tinham alcançado certo patamar de desenvolvi- vimento ao sistema capitalista. Embora tivessem
mento capitalista. obtido êxito parcial no tocante à industrialização,
ao desenvolvimento tecnológico e à melhoria do
A reorganização da economia mundial no pós-
nível de vida de suas populações, o fracasso desses
guerra, sob a hegemonia dos EUA, não fechou
projetos reforçaria, segundo vários autores, as
essas possibilidades. As dificuldades dos EUA em
enormes dificuldades de um desenvolvimento eco-
levar a cabo seu projeto de reorganizar a economia
nômico, social, político e cultural fora do âmbito
mundial sob a égide do livre comércio e da livre
da sociedade capitalista global.
circulação de capital forçaram-no a aceitar a
permanência, por longo tempo, dos controles de Acerca desse ponto, Ianni (1992, p. 46-47)
câmbio e dos fluxos de capital, especialmente os assinala que “O alcance mundial do capitalismo
de curto prazo. As dificuldades das economias des- no século XX tem sido tão forte que todos os
troçadas pela guerra, as lições da Grande Depres- projetos de desenvolvimento nacional, com preten-
são, a correlação de forças favorável aos trabalha- sões de soberania, têm sido frustrados. Os proje-
dores no centro e o avanço dos movimentos de tos do cardenismo no México, do peronismo na
descolonização, muitos deles de inspiração marxis- Argentina e do varguismo no Brasil não se rea-
ta, no contexto da Guerra Fria, abriram espaço lizaram a não ser limitadamente [...]. Na época do
para a economia mundial organizar-se com base grande capital monopolista, ou do capital finan-
em fortes economias nacionais, sendo que nos ceiro, já não é mais possível o capitalismo nacional
países desenvolvidos contribuíram para o flores- que teve êxito na época do capitalismo competitivo.
cimento do Estado de Bem-Estar Social. A grande Os modelos bismarkiano ou bonapartista, que ha-
finança internacional, enfraquecida pela Depres- viam tido êxito na Alemanha, França, Itália e Japão
são, teve que se adaptar à nova situação. do século XIX, já não são mais possíveis no século
XX [...]. No século XX, em escala cada vez mais
Contudo, observou-se também, nesse período,
acentuada ao longo de seu transcurso, parece não
a retomada do processo de internacionalização do
haver qualquer possibilidade de desenvolvimento
capital. A retomada dessa tendência, nos anos
econômico-social, político e cultural autônomo,
1950, marcou o fortalecimento dos grandes oligo-
nacional, independente, soberano. A reprodução
pólios e da grande finança, o que seria um dos
ampliada do capital, compreendendo a concentra-
fatores da crise da ordem econômica internacional
ção e a centralização, o desenvolvimento das forças
de Bretton Woods, na década de 1970.
produtivas e das relações de produção em escala
Esse processo também teve conseqüências mundial, tudo isso reduz drasticamente, ou mesmo
para os países subdesenvolvidos. A forte expansão elimina, qualquer possibilidade de projetos nacio-
das empresas multinacionais em direção às regiões nais. Isto é, qualquer projeto nacional somente
periféricas redefiniu a divisão internacional do pode ser proposto e realizado a partir do patamar
trabalho e colocou novas questões para os projetos estabelecido por uma economia política de âmbito
nacionais de desenvolvimento, que, em muitos mundial”.
casos, estavam em um beco sem saída, em virtude
Contudo, não foram somente os projetos na-
de sérios problemas de financiamento interno e
cionais de desenvolvimento, que buscavam um
externo. Para alguns países, abriu-se a possibilidade
desenvolvimento autônomo, que ruíram em sua
de um desenvolvimento associado ao capital es-
maior parte. As experiências de desenvolvimento
trangeiro. Nessa fase, começaram a ficar evidentes
associado, particularmente aquelas baseadas no
as crescentes dificuldades de projetos de desenvol-
receituário neoliberal, também se mostraram catas-
vimento com autonomia nacional, embora alguns
tróficas. O caso da Argentina é emblemático. Essas
países continuassem a desenvolver-se nessa di-
considerações levam-nos a indagar se o desenvol-
reção.
vimento para os países periféricos não seria uma
Os projetos voltados para a industrialização mera ilusão, como sugere Arrighi (1997).
com soberania nacional, que proliferaram na perife-
Para o referido autor, o sistema capitalista es-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

trutura-se em três categorias quanto ao desenvol- aprofundou-se a distância que separa as regiões
vimento (centro, periferia e semiperiferia). Ele ricas das subdesenvolvidas. O avanço de alguns
busca mostrar, com base na distribuição do PNB países periféricos nas décadas de 1950-1970, que
(Produto Nacional Bruto) per capita, que, nos úl- parecia sugerir, à época, uma redução dessa
timos 60 anos, não ocorreram alterações signifi- distância, retrocedeu nas duas décadas seguintes.
cativas na distribuição dos países entre essas três Para os coevos, contudo, parecia que, pelo menos
categorias. Verifica-se uma grande estabilidade em para alguns países subdesenvolvidos, a
cada uma delas, e as exceções confirmariam a possibilidade de superar o atraso e a miséria era
regra. Os casos mais relevantes seriam o do Japão palpável. Entretanto, confirmou-se a tendência de
e o da Itália, que teriam passado da semiperiferia desenvolvimento desigual e combinado do sistema
para o núcleo do sistema, e o da Coréia, que teria capitalista1.
passado da periferia para a semiperiferia. A cada
Fiori (1999, p. 13-14), com base em um rela-
alteração na distribuição dos países pelas
tório da UNCTAD (Conferência das Nações Unidas
categorias, as estruturas da economia mundial
para o Comércio e o Desenvolvimento) que mostra
ficariam mais rígidas, dificultando sobremaneira
o aumento das desigualdades entre os países desen-
novos deslocamentos. Para o conjunto dos países
volvidos e os em desenvolvimento, e também den-
pobres não haveria alternativa (idem).
tro de cada um desses blocos, afirmou: “Em 1965,
Essas observações sugerem não haver a renda média per capita dos 20% dos habitantes
possibilidade de desenvolvimento para os países mais ricos do planeta era 30 vezes maior que a
pobres dentro do capitalismo. Conclusões desse dos 20% mais pobres (U$ 74 contra U$ 2 281),
tipo não representam, contudo, novidade alguma. enquanto em 1980 essa diferença já havia pulado
André Gunder Frank (1980), entre outros, já nos para 60 vezes (U$ 284 contra U$ 17 056). A renda
anos 1960 defendia que dentro do capitalismo os per capita dos latino-americanos, por exemplo,
países pobres estariam condenados ao que em 1979 correspondia a 36% da renda per
subdesenvolvimento. Sem desconsiderar suas capita dos países ricos, baixou para 25% em 1995.
importantes contribuições, os problemas dessas Até o fim da década de 1970, três países na
análises preocupadas com as tendências de longo América Latina mantiveram crescimento da sua
prazo, como as de Arrighi (1997), residem no fato renda per capita: Brasil, Colômbia e México. Mas,
de tornarem as estruturas sociais algo muito rígido, a partir de 1980, o crescimento destes países
transformando a história em um processo sem despencou e eles perderam as posições que haviam
sujeito. Assim, o destino dos países periféricos conquistado em termos de participação na renda
seria determinado, em grande medida, pela mundial. No caso do Brasil, por exemplo, as taxas
dinâmica das estruturas da economia mundial, médias de crescimento do seu PIB (Produto
deixando em segundo plano as determinações Interno Bruto) per capita passaram de 6% na
sociais, políticas, econômicas e culturais, assim década de 1970 para 0,96% na década de 1980 e
como as lutas sociais internas a cada país, que algo em torno de 0,6% entre 1990 e 1998 [...].
também são de suma importância para enten- Essa evolução perversa adquiriu novas dimensões
dermos a situação dessa região. As exceções a partir de 1985, com a aceleração exponencial do
levantadas por Arrighi – Itália, Japão e Coréia – processo de ‘financerização’ acompanhado de
são importantes demais e mereceriam um estudo sucessivas crises, cada vez mais freqüentes e com
mais detido que comparasse suas trajetórias e que
desse conta da intrincada articulação das dimen-
sões internas e externas do problema do desen-
volvimento. 1 Arrighi (1997, p. 59), comparando o PNB per capita de

O aumento da miséria em escala mundial, diversas regiões do mundo com o PNB per capita do núcleo
orgânico do capitalismo (países desenvolvidos), mostra a
embora corrobore as conclusões de Arrighi, tendência de aumento das desigualdades mundiais. Em 1960,
obriga-nos a refletir mais detidamente acerca das o PNB per capita da América Latina correspondia a 14,4%
possibilidades históricas de desenvolvimento na PNB per capita do núcleo orgânico; subiu para 19,8%, em
atual fase do capitalismo. 1980, e caiu para 10,6% em 1988. A situação da África
subsaariana é pior: em 1960, o PNB per capita da região
Nos últimos 25 anos, justamente quando nau- representava 5,1% do do núcleo orgânico e caiu para 2,5%
fragaram os programas de desenvolvimento, em 1988.

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A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

efeitos cada vez mais devastadores sobre as eco- 1979-1990: 2,5%, e 1990-1996: 1,6% (FIORI,
nomias da periferia capitalista mundial [...]. A sim- 1999, p. 12-13). É óbvio que ocorreram exceções:
ples competição intercapitalista em mercados o caso do bom desempenho da economia norte-
desregulamentados e globalizados não assegura o americana na década de 1990 é ilustrativo. O de-
desenvolvimento, nem muito menos a convergên- sempenho dos países pobres acompanhou essa
cia entre as economias nacionais do centro e da tendência. Nas regiões pobres, no entanto, as con-
periferia do sistema capitalista mundial”. seqüências sociais e econômicas foram mais da-
nosas em virtude da frágil estrutura econômica e
A questão do incremento das desigualdades
da inserção subordinada desses países na econo-
sociais em escala mundial é, sem dúvida, bastante
mia mundial. Mas isso não significa que seja, como
complexa e não pode, de maneira simplista, ser
veremos, a única razão para a estagnação eco-
reduzida ao incremento da desigualdade entre re-
nômica de vastas áreas da periferia e para o au-
giões pobres e ricas do mundo. O aumento da
mento do fosso entre as regiões pobres e ricas do
miséria não é apenas observado nas regiões peri-
mundo. O PIB latino-americano cresceu em mé-
féricas, mas também ganhou relevância em vári-
dia por ano 5,5% na década de 1960 e 5,6% na
as regiões nos próprios países que compõem o
década seguinte. Entre 1981 e 1990, esse cresci-
núcleo do sistema capitalista (ALTVATER, 1995;
mento foi de 0,9%. Entre 1990 e 1997, o cresci-
HOBSBAWM, 1995). Muitos autores, entre eles
mento médio anual do PIB foi de 3,3% (CANO,
Castoriadis (1982), consideravam, até há pouco
1999, p. 294-311). Em parte, como resultado desse
tempo atrás, com base na experiência da chamada
quadro, observa-se relevante incremento das ta-
“Era de ouro” do capitalismo (1945-1973), que
xas de desemprego. Segundo Pochmann (1999,
esse problema estaria superado nos países desen-
p. 39), estima-se que, de uma população econo-
volvidos, mostrando que o sistema capitalista
micamente ativa de 2,5 bilhões de pessoas em todo
poderia vencer a pobreza. Estavam enganados. As
o mundo, cerca de 35% encontra-se desempre-
contradições e desigualdades, que estão presentes
gada ou subempregada.
de forma marcante em um mundo cada vez mais
integrado, também aparecem no interior de cada A razão fundamental para o comportamento
país e de cada cidade do mundo. Mesmo no centro declinante da economia mundial nas últimas
do sistema. Ou seja, o contraste entre os ricos e décadas parece residir, como aponta Chesnais
os pobres presente em quase toda grande cidade (1998, p. 18), na queda das taxas de investimentos
do mundo é similar ao que se manifesta entre as nas principais economias do mundo a partir de
regiões pobres e ricas do planeta. meados da década de 1970. A diminuição no ritmo
da acumulação de capital significa que o sistema
“No Harlem a expectativa de vida média é
não consegue produzir valor e mais-valia capaz
inferior à de Bangladesh: ali, somente 40% da
de sustentar a valorização do capital, embora as
população masculina atinge 65 anos, enquanto em
grandes empresas tenham recuperado a
Bangladesch são 55%. Los Angeles é considerada
lucratividade a partir de meados da década de
simultaneamente uma pomopolis (postmodern city)
1980. Não é de se estranhar, portanto, o contínuo
e uma capital do Terceiro Mundo com todas as
inchaço dos mercados financeiros globais.
contradições e os conflitos correspondentes [...].
O contraste entre o rico e o pobre em quase toda Ultrapassaria os limites do presente artigo dis-
a ‘cidade global’ se reproduz na aldeia global, entre cutir detalhadamente as razões do baixo dinamis-
Norte e Sul [...]. O mundo unificado é um mundo mo do capitalismo nas últimas décadas. De ma-
dividido” (ALTVATER, 1995, p. 24-25). neira sintética, parece que tal desempenho decor-
re de uma crise geral da sociedade capitalista, ini-
O aprofundamento da miséria, do desempre-
ciada no final dos anos 1960 e que abriu uma fase
go e das desigualdades sociais vincula-se intima-
de “crise continuada” (HOBSBAWM, 1995, p.
mente à relativa fase de estagnação vivida pelo
393-420).
capitalismo desde a crise de 1973. Se comparar-
mos a média anual das variações do PNB dos sete De um lado, como assinalam Chesnais (1998,
países mais ricos do mundo, podemos verificar p. 18-19) e Brenner (1999, p. 37-47), o capitalis-
uma nítida tendência para o declínio da atividade mo entrou em uma crise de superprodução a par-
econômica: 1960-1973: 4,8%; 1972-1979: 2,8%; tir do início dos anos 1970, que teria se tornado

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

crônica2. O forte incremento da produção e da cia uma cultura anticapitalista. Surgiram vários
capacidade produtiva mundial, decorrente, em movimentos sociais setoriais, alternativos aos bu-
parte, da entrada maciça de produtos alemães e rocratizados movimentos da esquerda tradicional,
japoneses no mercado mundial a partir do início que lutavam pelos interesses de minorias especí-
da década de 1960, ao incrementar a concorrên- ficas. Na periferia, os EUA foram derrotados no
cia intercapitalista, acabou afetando a lucratividade Vietnã e os movimentos nacionalistas e de esquerda
das empresas e gerou capacidade ociosa acima pareciam tomar conta da região. Os produtores
da planejada. Agravando a situação, o ímpeto do de petróleo, como desdobramento da Guerra do
movimento sindical empurrava para cima os salá- Yom Kippur, impuseram um choque nos preços
rios, impedindo que os capitalistas recompuses- do produto, eliminando um dos pilares que sus-
sem a lucratividade por meio do arrocho salarial. tentaram a fase áurea de crescimento econômico
A economia norte-americana foi a mais afetada. A capitalista (FIORI, 1999, p. 34-38). A União So-
sua perda de competitividade contribuiu sobrema- viética parecia, nesse contexto, ganhar terreno.
neira para minar a posição do dólar, comprome- Muitos contemporâneos sonhavam com o fim pró-
tendo os acordos de Bretton Woods. Dessa forma, ximo do capitalismo, ou, pelo menos, da hegemo-
sobrepôs-se à crise de superprodução a crise do nia norte-americana. A possibilidade de profundas
sistema financeiro internacional. transformações sociais à época era palpável.
De outro lado, entre meados dos anos 1960 e Entretanto, as possibilidades de revolução so-
meados dos anos 1970, aprofundou-se o conflito cial em pouco tempo se dissolveram no ar. A par-
social na Europa, com o avanço das forças de tir da crise de 1973, a correlação de forças pas-
esquerda. Os EUA também foram varridos por sou a pender gradativamente para o lado dos con-
fortes movimentos de contestação social. Flores- servadores. Embora não caiba aqui discutirmos
esse ponto em detalhe, dados os limites deste arti-
go, é preciso, mesmo que de maneira demasiada-
2 Em um contexto dominado pela oligopolização dos prin- mente esquemática, assinalar o início de uma rea-
cipais setores da economia, que foram dominados por em- ção capitalista naquele momento. No embate com
presas gigantes – sólidos blocos de capital –, a destruição do os trabalhadores, dadas as circunstâncias sociais,
capital excedente parece cada vez mais difícil, estendendo políticas, culturais e econômicas do momento, os
assim a duração das crises, como já tinha ficado evidente na setores capitalistas acabaram levando a melhor e
Grande Depressão dos anos 1930. Segundo Brenner (1999, fizeram prevalecer os seus interesses3. Os gran-
p. 37-47), a superprodução tem persistido, até hoje, devido
des capitalistas, associados principalmente aos
a uma série de fatores: 1) a existência de enormes montantes
de capital fixo não totalmente depreciados em vários ramos governos conservadores dos EUA, da Grã-Breta-
de produção. Seria irracional destruir esse capital já pago nha e da Alemanha, buscaram reorganizar o siste-
enquanto fosse possível auferir retornos razoáveis sobre o ma para enfrentar a contestação social, o avanço
capital circulante; dessa forma, as empresas não saem dos do socialismo soviético e a crise econômica.
ramos em superprodução; 2) as grandes empresas que domi-
nam os mercados mundiais possuem vasta experiência em A superprodução não levou a uma crise que
seus ramos e, portanto, um enorme capital intangível (cone- queimasse o excesso de capital, recompondo as-
xões com fornecedores e consumidores e conhecimento sim as suas condições de valorização. Contudo, a
tecnológico), que as levam a permanecer nos ramos em que ofensiva da burguesia contra a classe trabalhado-
atuam e a reinvestir pelo menos parte dos lucros nesses mes-
mos setores; 3) a existência de monopólios tecnológicos per-
ra fez-se presente como no passado, buscando
mite às empresas auferir temporariamente taxas de lucros recompor a taxa de exploração e, dessa forma, a
elevadas, desestimulando a saída do setor; 4) a relativa es- rentabilidade. A reestruturação produtiva e a
tagnação (reduzidos aumentos de investimentos e salários) desregulamentação do mercado de trabalho são,
restringe o crescimento mais acelerado de novas linhas de em parte, aspectos dessa ofensiva dos capitalis-
produtos que poderiam atrair maiores montantes de investi- tas contra os trabalhadores. Sem dúvida que a crise
mentos, e 5) a Alemanha e particularmente o Japão (nas
décadas de 1970 e 1980) e os países do leste asiático (1970-
econômica, a elevação do desemprego, a burocra-
1997), continuaram a investir pesadamente, contando com tização dos partidos de trabalhadores e dos sindi-
as vantagens da associação de mão de obra barata com alta
tecnologia, e abocanharam crescentes parcelas do mercado
mundial, embora agravassem a crise de superprodução glo- 3 Cabe mencionar, no entanto, que muitos movimentos se-
bal. Todos esses fatores parecem dificultar sobremaneira a toriais, que floresceram a partir daquela época, como o mo-
solução da crise de superprodução. vimento feminista, alcançaram expressivas vitórias.

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A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

catos, a segmentação da classe trabalhadora, o relativamente frouxos entre o trabalhador e a em-


fracasso das estratégias reformistas e a desilusão presa, a realocação espacial entre alguns países
com o socialismo soviético e posteriormente a de vários segmentos produtivos e a marginalização
debâcle da União Soviética contribuíram para al- de inúmeras regiões caracterizam o atual momen-
terar a correlação de forças em favor da burgue- to. Essas mudanças se deram sob a égide do libe-
sia. Sem essa alteração teria sido impossível a ralismo, que ressurgiu das cinzas depois de um
implementação da reestruturação produtiva, que, longo inverno, sob o rótulo de neoliberalismo.
somada ao baixo crescimento, acabou gerando um
Outro elemento essencial para entendermos a
enorme exército industrial de reserva, essencial
reação do grande capital à crise foi a tentativa de
para dobrar os trabalhadores.
recompor, a partir do governo Reagan, a hege-
A resposta que as grandes empresas, os gran- monia norte-americana, que estava em questão nos
des bancos, os fundos de investimento e pensão e anos 1970, depois da derrota no Vietnã, do avan-
importantes governos deram à crise, como é am- ço de movimentos nacionalistas e socialistas no
plamente conhecido, foi, de um lado, procurar, chamado Terceiro Mundo e do avanço das forças
no centro do capitalismo, desmontar o Estado de de esquerda no próprio núcleo do sistema. A polí-
Bem-Estar Social, que, juntamente com os sindi- tica do dólar forte, a desregulamentação dos mer-
catos, era considerado pelos neoliberais como a cados, a intensificação da Guerra Fria, que seria
raiz última da crise do capitalismo. O resultado um dos fatores do posterior colapso da União So-
foi o redirecionamento dos fundos públicos, que viética e o ataque às “indisciplinas” de vários paí-
outrora eram direcionados para os gastos sociais, ses subdesenvolvidos completam esse quadro
para a sustentação da valorização financeira do (FIORI, 1999, p. 49-83).
capital, sobretudo por meio da ampliação da dívi-
Nesse contexto, abriu-se espaço para a prepon-
da pública (OLIVEIRA, 1998, 223-230).
derância de um capital financeiro rentista com a
Na periferia, como veremos, buscou-se im- consolidação de um mercado de câmbio, de capi-
por políticas voltadas para o pagamento das dívi- tais e de títulos de âmbito mundial (CHESNAIS,
das externas e, posteriormente, políticas voltadas 1996, p. 237-322). Esse capital rentista, inchado
para a abertura e desregulamentação das econo- sistematicamente pelos capitais formados na pro-
mias nacionais, o que contribuiu para o fim das dução, mas que não encontram aí condições favo-
políticas desenvolvimentistas até então em moda ráveis de valorização, é muito sensível a qualquer
na região. É óbvio que o resultado desses proces- alteração nas variáveis reais da economia. O in-
sos não foi homogêneo, variando de país para país cremento da inflação, os desequilíbrios mais acen-
de acordo com as lutas sociais internas, com as tuados das contas externas ou das contas do gover-
estratégias adotadas pelos diferentes governos e no e a queda da rentabilidade das empresas podem
com a situação geopolítica de cada país. Alguns, acarretar intensos movimentos de fuga de capitais,
como a Coréia, conseguiram preservar uma mar- o que pressiona os Estados a adotar políticas or-
gem de manobra maior e continuaram a implemen- todoxas, visando a controlar a demanda agregada
tar seus projetos de desenvolvimento. Hoje, são e assim a evitar pressões inflacionárias e desequilí-
esses países que se encontram em melhor situa- brios externos e fiscais que poderiam levar a re-
ção e isso se deve, em parte, às decisões e às es- pentinas mudanças cambiais.
tratégias políticas adotadas por seus governos, que
Esse processo tende a pôr em questão a capa-
conseguiram reduzir a vulnerabilidade externa.
cidade de os Estados controlarem suas economi-
De outro lado, os capitalistas buscaram espa- as na medida em que o capital financeiro busca
ços mais amplos e desregulamentados de acumu- impor políticas de abertura das economias nacio-
lação, além de reestruturar e reorganizar a produ- nais e políticas deflacionistas. A existência de um
ção. A constituição de oligopólios internacionais mercado financeiro global, sem coordenação e sem
em importantes setores, a ampliação da abertura padrão monetário estável, coloca difíceis proble-
das economias nacionais, a formação de merca- mas para países subdesenvolvidos adotarem polí-
dos regionais, a utilização intensa de novas ticas de desenvolvimento (COUTINHO, 1996, p.
tecnologias, a organização de processos produti- 219-238). Isso não significa, porém, que os paí-
vos mais flexíveis, a redução da força de trabalho ses devam adequar-se passivamente à chamada
empregada, a introdução de vínculos variados e globalização nem que esse processo atinja de ma-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

neira homogênea e integradora o conjunto do pla- capital e o bloqueio ao desenvolvimento na maio-


neta. ria dos países subdesenvolvidos. É óbvio que não
pretendemos esgotar o problema. Os projetos de
A perda de graus de liberdade na definição da
desenvolvimento voltados para uma industrializa-
política econômica por parte dos Estados depende
ção com autonomia nacional, que proliferaram
da situação econômica, social e política de cada
com maior ou menor sucesso na periferia do
país. Os EUA parecem não sofrer maiores cons-
sistema capitalista desde o final dos anos 1930,
trangimentos. Em situação diversa encontram-se
parece que tiveram, em muitos casos, sua última
os países da América Latina ou da África. Esse
chance na década de 1970. As condições pareciam
aspecto também depende da posição ideológica
propícias. De um lado, a hegemonia norte-ame-
de cada governo. Muitos governos atuam como
ricana estava em questão depois da derrota no
agentes da globalização, criando “vantagens
Vietnã e do desmoronamento do sistema monetário
comparativas”, desregulando a economia e agindo
internacional estabelecido em Bretton Woods. De
como parceiros das grandes empresas multina-
outro, os movimentos de esquerda e/ou
cionais. A diversidade de respostas à nova situação
nacionalistas pareciam avançar de modo irresistível
da economia mundial aponta para a necessidade
pela periferia e os trabalhadores conquistavam cada
de estudos de caráter histórico comparativo que
vez mais espaço nos países mais desenvolvidos.
abordem as experiências particulares, o que
Também florescia uma cultura de contestação da
permitiria aprofundarmos nossa compreensão
sociedade burguesa. O preço das matérias-primas
sobre o assunto.
vinha subindo persistentemente. Esses eventos
A utopia liberal de uma economia baseada em indicavam existir, à época, uma possibilidade de
mercados auto-regulados continua sendo uma romper com o subdesenvolvimento. Não se podia
miragem. O capitalismo não vive sem uma forte prever que em poucos anos o quadro mudaria
presença estatal na economia. Observam-se substancialmente.
mudanças nas formas dessa intervenção. Verifica-
Muitas forças políticas sonhavam ainda poder
se, por exemplo, uma alteração na natureza do
construir sociedades modernas com autonomia
gasto público. Observa-se também a redução dos
através da industrialização e manter a independên-
gastos sociais em nome do controle do déficit
cia nacional por meio de políticas de não-alinha-
público e da inflação, ao mesmo tempo em que
mento com os blocos dominantes do Ocidente ou
ocorre uma explosão da dívida pública, relaciona-
do Leste. E isso, naquele momento, parecia ple-
da, em grande medida, à sustentação da especula-
namente factível. Predominavam políticas de
ção financeira. Os mercados, mesmo o exterior,
planejamento econômico visando a uma rápida
continuam sendo regulados pelo Estado, embora
industrialização tanto nos países socialistas como
o livre comércio tenha avançado.
nos capitalistas. O governo militar brasileiro, por
A constituição de uma economia mundial cada exemplo, lançou, em 1974, um megaprojeto de
vez mais integrada, delineada a partir da segunda industrialização centrado na ação estatal na eco-
metade da década de 1970, abarcou inicialmente nomia, o II PND (Plano Nacional de Desenvolvi-
o núcleo do sistema capitalista (Europa Ocidental, mento), com o objetivo de completar a industria-
Japão e EUA) e mais alguns outros países, lização brasileira. A Coréia também implementava
particularmente os “tigres asiáticos” e a China. um largo planejamento visando a industrializar-se.
Até o final dos anos 1980, os fluxos de capitais, a Muitos países seguiam essa receita. Ou seja, “Na
introdução de novas tecnologias, a reestruturação África, na Ásia e na América Latina iniciava-se
organizacional da produção e dos processos de uma renovada iniciativa de recuperação do atraso
trabalho concentraram-se nessas regiões (ibidem). na industrialização” (ALTVATER, 1995, p. 13).
Muitas outras permanecem à margem desses
Um dos problemas centrais residia na questão
processos.
de como países pobres, ou relativamente pobres,
III. O PREDOMÍNIO DO CAPITAL FINAN- iriam financiar um salto quantitativo e qualitativo
CEIRO E OS OBSTÁCULOS AO DESEN- em suas economias de tal forma que fossem ca-
VOLVIMENTO pazes de superar o subdesenvolvimento, garan-
tindo, ao mesmo tempo, a predominância do ca-
A questão que nos preocupa é discutir mais
pital nacional e a definição da política econômica
detidamente a relação entre a mundialização do

17
A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

a partir de interesses internos, pois é justamente Uma outra característica, presente em vários
isso que caracteriza o desenvolvimento autônomo. projetos de desenvolvimento, residia em uma
Dada a existência de grande liquidez no mercado mudança de estratégia em relação ao período an-
internacional, muitos acreditaram ser possível fi- terior. Buscava-se desenvolver o país enfatizando
nanciar o desenvolvimento com base em créditos as exportações, como no caso da Coréia, que, em
privados externos, que seriam pagos com as recei- virtude de sua dotação de fatores de produção,
tas provenientes das exportações dos produtos tentava fazê-lo desde os anos 1960. Mas é preci-
primários, cujos preços então estavam em ascen- so lembrar que esse país, especialmente na déca-
são no mercado mundial. Além disso, com as da de 1950, também levou a cabo uma política de
transformações em curso em suas economias, ampla substituição de importações, que era mais
passariam também a exportar produtos industriali- consistente que as implementadas na América
zados e diminuiriam as necessidades de financia- Latina, à medida que condicionava a proteção e
mento externo. os incentivos às metas de nacionalização e quali-
dade do produto estabelecidas nos planos qüin-
A questão é obviamente mais complexa, pois,
qüenais. As duas estratégias de desenvolvimento
desde os anos 1950, vários países da periferia
caminharam juntas. A Coréia seguiu esse caminho
vinham industrializando-se a partir de substancial
mantendo forte presença do Estado na economia
contribuição do capital estrangeiro, seja na forma
e privilegiando o capital nacional, criando as
de empréstimos, seja na forma de investimentos
condições para constituição de fortes empresas
diretos. As empresas multinacionais já tinham forte
nacionais, os chamados chaebols, grandes conglo-
presença nas economias dos países mais desenvol-
merados de capital.
vidos da periferia, o que colocava de há muito em
questão as possibilidades de desenvolvimentos Muitos autores, entre eles Goldenstein (1994),
autônomos. É o caso típico do Brasil. Ou seja: a ressaltam que a posição da Coréia na Guerra Fria
evolução da economia mundial após os anos 1950, teria sido fundamental para entendermos o seu
caracterizada, entre outros aspectos, pela expan- desenvolvimento, pois a ajuda financeira norte-
são mundial das grandes empresas oligopolistas americana e o acesso privilegiado aos mercados
norte-americanas, européias e japonesas pelo dos EUA e do Japão teriam sido peças importantes
mundo e pela crescente integração financeira e daquele processo. Ao ressaltarem esse ponto,
comercial, colocava novas questões. Para alguns acabam criticando análises que enfatizam as
autores, como Benayon (1998), o crescente volu- determinações internas na compreensão do desen-
me de investimento externo direto, ao criar cone- volvimento, como as realizadas por Mello (1982)
xões e alianças entre o capital estrangeiro e setores e Tavares (1986) para o caso do Brasil. A crítica
das classes dominantes e ao influir na definição de Goldenstein é, sem dúvida, relevante, mas
das políticas econômicas, limitava a possibilidade temos que tomar cuidado para não cairmos na
de desenvolvimento autônomo4. posição oposta, que só vê as possibilidades de
desenvolvimento como que determinadas funda-
mentalmente pelas forças externas, pois conside-
4 Como mostrou Francisco de Oliveira (1989, p. 76-113), o
ramos que o desenvolvimento só pode ser enten-
Plano de Metas, rompendo com o projeto de Vargas de
dido se levarmos em conta as múltiplas e com-
enfatizar o desenvolvimento da infra-estrutura e da indús-
tria de bens de produção, buscou implantar um padrão de plexas condições internas e externas5.
acumulação de capital calcado na produção de bens de con-
sumo duráveis, o que estava de acordo com os interesses das
Em outras palavras, esse tipo de crise é radicalmente distinto
empresas multinacionais à época, que almejavam penetrar
da crise tradicional dos balanços de pagamentos das economi-
nos fechados mercados da periferia justamente nesse setor.
as dependentes, pois o padrão agroexportador das fases
De repente, problemas que se arrastavam por décadas foram
anteriores gerava, ao produzir a mercadoria exportável, os
resolvidos. “Essa inversão restaurou [...] um padrão de rela-
meios de pagamento do capital internacional; as crises desse
ções centro-periferia num patamar mais alto da divisão in-
padrão eram, rigorosamente, crises da circulação internacio-
ternacional do trabalho do sistema capitalista, instaurando
nal de mercadorias. Agora, sob o novo padrão, as crises são de
por sua vez – e aqui constitui sua singularidade – uma crise
circulação internacional do dinheiro-capital” (idem, p. 87).
recorrente de balanço de pagamentos, que se expressa na
contradição entre uma industrialização voltada para o mer- 5 A ênfase de Conceição Tavares (1986, p. 102-108 et passim)
cado interno mas financiada ou controlada pelo capital es- nas determinações internas é clara: “Nossa proposição [...]
trangeiro e a insuficiência de geração de meios de pagamento privilegia [...] os aspectos internos do movimento de acumu-
internacionais para fazer voltar à circulação internacional. lação do capital, pondo ênfase no andamento cíclico carac-

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

Façamos um paralelo com o caso brasileiro. O veredar o Brasil no caminho de um processo de


II PND representou para uns uma ambiciosa e endividamento externo que, anos mais tarde, junta-
para outros uma irrealista tentativa feita pelo mente com a crise fiscal do Estado e a exacerbada
governo Geisel visando a completar a industrializa- elevação da inflação (processos também vinculados
ção brasileira por meio do desenvolvimento dos ao endividamento externo), acabaria sufocando a
setores de máquinas, siderúrgico, petroquímico, economia brasileira6. Desta maneira, essa saída
informática, nuclear, alumínio, papel e celulose e pôs fim ao modelo de desenvolvimento perseguido
do desenvolvimento da infra-estrutura de trans- desde os anos 1930, ao Estado desenvolvimentista
portes, energia e comunicações. Esse ambicioso que o sustentava e talvez a possibilidade de um
plano, que pretendia transformar o Brasil em uma desenvolvimento mais extenso. A possibilidade de
potência, tinha, no entanto, pés de barro, pois não um desenvolvimento autônomo tinha, aparente-
contava com o apoio de parte significativa das mente, ficado para trás, nos idos do Estado Novo
classes dominantes e nem das multinacionais, à (CORSI, 2000, p. 51-194).
medida que implicava priorizar o departamento
O Brasil não foi o único a seguir esse cami-
produtor de meios de produção em detrimento do
nho. As dívidas externas de toda a periferia cres-
departamento de bens de consumo duráveis, como
ceram assustadoramente nessa década: na Améri-
vinha acontecendo desde o Plano de Metas. Parte
ca Latina de US$ 16 bilhões para US$ 130 bilhões
considerável da burguesia brasileira associada ao
entre 1970 e 1980; na África e Oriente Próximo,
capital estrangeiro não via com bons olhos essa
de US$ 9 bilhões para US$ 97 bilhões; na Europa
mudança, que feria os seus interesses e os de seus
Oriental, de US$ 3 bilhões para US$ 47 bilhões;
sócios. Além disso, dada a inexistência de um mer-
na Ásia, de US$ 17 bilhões para US$ 83 bilhões
cado financeiro e de capitais robustos ou de outros
no mesmo período (ALTVATER, 1995, p. 13-14).
esquemas internos de financiamento consistentes,
A crise da dívida, que acabou configurando-se nos
não restava alternativa senão recorrer ao capital
anos 1980, jogou boa parte da periferia na estagna-
externo para financiar o plano (FIORI, 1995, p.
ção econômica, o que deteriorou ainda mais a já
57-84). A dívida externa brasileira, entre 1970 e
1980, cresceu de US$ 5,3 bilhões para US$ 53,9
bilhões. Embora parte considerável desse cresci-
mento tenha tido um caráter meramente financei- 6 A política de endividamento externo, particularmente a
ro, parcela não desprezível financiou o II PND estatização da dívida externa, levada a cabo pelos dois últi-
(CRUZ, 1984, p. 11-27; CASTRO & SOUZA, mos governos militares, contribuiu bastante para o cresci-
1985, p. 11-97). mento explosivo da dívida interna, em virtude do seguinte:
1) implicava crescente emissão de títulos públicos para neu-
Essa saída contribuiu sobremaneira para en- tralizar o aumento do meio circulante decorrente do
endividamento necessário para fechar o balanço de paga-
mentos, objetivando, com isso, não alimentar o processo
terístico das estruturas industriais que incorporam empresas inflacionário, e 2) a crescente emissão de títulos visando a
nacionais, públicas e estrangeiras com poder desigual de acu- cobrir os gastos decorrentes das resoluções que possibilita-
mulação”. Em relação ao aparente grau de autonomia no vam às empresas privadas protegerem-se de desvalorizações
período, afirmou: “Essa maior autonomia não se deve, ao do câmbio. Essa política também contribuiu para asfixiar
nosso juízo, nem ao nacionalismo de Vargas, nem a uma financeiramente as empresas estatais, obrigadas a endivida-
possível ‘hegemonia’ da burguesia industrial nacional. Signi- rem-se no exterior para ajudar a fechar as contas externas.
fica, sobretudo, a impossibilidade de articular o processo de Esse processo, somado à política pouco criteriosa de subsídi-
acumulação interna com a entrada de capital estrangeiro os e à política de juros altos, que exacerbava ainda mais o
novo” (idem, p. 108). Acerca desse ponto, concordamos, em crescimento da dívida interna, acabou gerando uma crise
parte, com as críticas de Lídia Goldenstein (1994) a essa fiscal do Estado. A explosão da inflação a partir do início
corrente. Essa autora, ao comentar o debate econômico dos dos anos 80 também vinculava-se ao problema da dívida
anos 1970, particularmente as obras inspiradas em visões externa, pois as maxidesvalorizações da moeda, observadas
próximas às de Conceição Tavares, assinalou: “[...] a preocu- no período, que tanto impacto tiveram sobre a inflação,
pação com a ‘dinâmica interna’ acabou eclipsando a ‘dinâ- visavam a melhorar a competitividade das exportações bra-
mica externa’ e comprometeu as conclusões. A análise do sileiras, ponto importante no quadro de deterioração do
movimento do capital internacional foi relegada a um plano setor externo da economia brasileira O explosivo endi-
secundário e a estrutura industrial dos países avançados to- vidamento interno e externo corroeu o esquema interno de
mada como paradigma, um modelo estático a ser alcançado. financiamento da acumulação, baseado sobretudo em fundos
Criou-se, assim , uma ilusão sobre os limites da nossa indus- públicos, inviabilizando a forma de desenvolvimento
trialização” (idem, p. 48). centrada no Estado (CRUZ, 1984; OLIVEIRA, 1998).

19
A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

grave situação social dessa região, e pôs fim à Entre 1980 e 1990, os preços dos produtos manu-
maioria dos projetos de desenvolvimento. faturados subiram 36,8%, enquanto os dos pro-
dutos minerais caíam 37,7% e os dos agrícolas
Esse desfecho não pode ser entendido sem le-
40%. Isso dificultava sobremaneira o pagamento
varmos em conta as transformações em curso na
das dívidas externas (ALTVATER, 1995, p. 14).
economia capitalista no período. Em primeiro lu-
gar, grande parte dos empréstimos contraídos Boa parte dos países endividados, como o Brasil,
pelos países subdesenvolvidos ocorreu nos cha- entrou em um período de estagnação. A adoção
mados euromercados de dólares a juros flutuantes. de políticas recessivas, inspiradas ou impostas
Esses mercados foram os precursores do mercado pelo FMI – que só podem ser entendidas a partir
financeiro global. Surgidos na década de 1960, da interação do quadro internacional com a situa-
no bojo da crise do sistema monetário internacio- ção social e política desses países – levou as suas
nal, eram mercados supranacionais, fora do con- economias a girar em torno do pagamento das
trole das autoridades monetárias de qualquer país, dívidas externas, do combate à inflação e da crise
que se expandiram aceleradamente depois da crise fiscal do Estado. O emprego de políticas recessi-
do petróleo em 1973 com os chamados petro- vas, baseadas no corte do gasto público, no arro-
dólares. A sua capacidade de criar liquidez tornou cho dos salários, no corte do crédito, no aperto
os créditos internacionais baratos e abundantes, o monetário e na desvalorização da moeda, resultou
que acabou induzindo muitos governos a endivi- em estagnação econômica e agravamento da
darem-se até o pescoço. inflação e da crise fiscal do Estado, embora melho-
rasse a situação das contas externas, permitindo
Quando no final dos anos 1970, o governo
o pagamento dos juros das dívidas. Preservavam-
Reagan, preocupado com os enormes déficits ex-
se, assim, os interesses dos credores estrangeiros.
ternos norte-americanos e buscando recuperar a
Dessa forma, inviabilizou-se o desenvolvimento
supremacia dos EUA, então em xeque, imple-
de boa parte da periferia, que passou a ser expor-
mentou uma política de fortalecimento do dólar
tadora de capitais para o centro. Segundo dados
por meio da majoração acentuada das taxas de
apresentados por Cano (2001, p. 23-41), a América
juros, que subiram de um patamar de 6% ao ano
Latina exportou, na forma de remessas de juros e
para cerca de 20%, ao mesmo tempo em que leva-
amortizações da dívida externa na década de 1980,
va a cabo, juntamente com o governo inglês, a
cerca de US$ 200 bilhões – recursos que contri-
desregulamentação dos mercados financeiros e de
buíram para sustentar a valorização do capital
capitais, a situação dos países periféricos deterio-
financeiro no período.
rou-se rapidamente. Os serviços da dívida sofre-
ram forte aumento, o que levou muitos países a Mesmo países como o Brasil, que já não eram
endividarem-se ainda mais para pagarem as dívidas exportadores de produtos primários e, portanto,
contraídas anteriormente, gerando assim um cres- tinham uma pauta de exportação diversificada, não
cimento financeiro das mesmas. Esse processo conseguiram sair desse círculo de ferro. Os países
levou a periferia a uma situação de insolvência do leste asiático conseguiram fugir dessa situação
generalizada. A crise da dívida iniciada no México, e acelerar o seu desenvolvimento até meados da
em 1982, rapidamente atingiu inúmeros outros década de 1990, quando também entraram em
países. crise, em virtude de uma série de peculiaridades:
1) estratégias de desenvolvimento voltadas para
Entre 1980 e 1990 as dívidas da periferia cres-
as exportações criaram uma economia mais com-
ceram assustadoramente: na América Latina, de
petitiva e avançada tecnologicamente; 2) políticas
US$ 130 bilhões para US$ 319 bilhões; na África,
levadas a cabo em períodos anteriores consegui-
de US$ 97 bilhões para US$ 257 bilhões; na Ásia,
ram criar fortes grupos nacionais e consistentes
de US$ 87 bilhões para US$ 264 bilhões, e no
esquemas de financiamento interno (caso da Co-
Leste europeu, de US$ 47 bilhões para US$ 140
réia); 3) o preço das suas exportações não caiu no
bilhões. Paralelamente, observou-se o declínio dos
período; 4) o endividamento externo não foi tão
preços dos produtos primários em relação aos dos
dramático; 5) essas economias conseguiram esta-
produtos industrializados no mercado mundial, em
belecer fortes vínculos com a economia japone-
virtude da crise aberta pela política de juros altos
sa, que então crescia a altas taxas. Dessa forma,
dos EUA. Queda que já vinha se delineando desde
essas economias não ficaram alijadas do mercado
a década anterior com a crise de superprodução.
financeiro internacional e não sofreram grandes

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

carências de capitais para financiar seu desenvol- e à retomada do crescimento econômico. Essas
vimento, podendo, então, acompanhar as discussões culminaram em seminários realizados
profundas transformações em curso na econo- em Washington, em 1989. As conclusões desses
mia capitalista (COUTINHO, 1999, p. 219-235). seminários, que ficaram conhecidas como o
“consenso de Washington”7, propunham, ao lado
A América Latina, como assinalou Coutinho
de políticas de estabilidade econômica, um plano
(1996, p. 219-238), ao contrário dos países do
de reformas para os países da região.
sudeste asiático, não se integrou a essas mudanças
no período. As razões disso residem no fato de a O esgotamento do modelo de desenvolvimen-
região ter mergulhado, a partir de 1982, em uma to baseado na ampla ação do Estado na economia
fase de estagnação, marcada por baixos índices e em mercados nacionais relativamente fechados
de crescimento, graves crises inflacionárias e gra- seria, segundo essa visão, a causa básica dos gra-
ves problemas de endividamento externo. A pre- ves problemas econômicos enfrentados pelos paí-
dominância de governos conservadores impediu, ses latino-americanos a partir dos anos 1980. De
naquele momento, uma ruptura com o grande maneira geral, esse modelo de desenvolvimento
capital internacional. Nessas circunstâncias, os teria desembocado em um sistema produtivo ine-
países latino-americanos, de um lado, não desper- ficiente e não competitivo e no que os liberais
tavam interesse do grande capital – que, aliás, não chamavam de populismo econômico. Ou seja, os
estava disponível em virtude da crise do endivi- governos latino-americanos teriam criado um
damento externo – e, de outro lado, não tinham terreno fértil para majoração de salários acima da
condições de implementar com um maior grau de produtividade do trabalho, para a expansão de
autonomia programas de desenvolvimento para empresas ineficientes, para a alocação ineficiente
incorporar as novas tecnologias e enfrentar as mu- dos recursos públicos, para a corrupção desen-
danças em curso na economia mundial. De maneira freada etc. Tudo isso feria a lei sacrossanta da
geral, os modelos de desenvolvimento perseguidos teoria neoclássica segundo a qual os mercados
desde pelo menos os anos 1930 pareciam esgo- seriam a forma mais eficiente de alocar recursos
tados. e tenderiam para o equilíbrio. Portanto, os dese-
quilíbrios econômicos seriam, em última análise,
Para a América Latina a situação começou
fruto de desequilíbrios do setor público.
aparentemente a mudar no início da década de
1990, quando o Japão, a Europa Ocidental e os Vários planos de estabilização implementados
EUA entraram em crise, o que para as duas pri-
meiras regiões abriu um período de estagnação e
7 Esse termo já vinha sendo utilizado desde o final da
baixo crescimento econômico, respectivamente.
A falta de boas oportunidades de investimento, década de 1980 por J. Williamson para designar o programa
liberal de reformas que propunha para a América Latina
associada à queda das taxas de juros dos países (FIORI, 1997, p. 11-23). Em linhas gerais, as propostas
centrais, gerou um volume significativo de capitais eram as seguintes: 1) estabilização macroeconômica pela
ávidos por melhores condições de valorização em adoção de planos monetários que atrelassem as moedas naci-
outras regiões do mundo. A América Latina então onais ao dólar e de políticas monetárias, creditícias e fiscais
voltou a chamar a atenção das grandes empresas contracionistas. Um dos pontos centrais seria a questão do
e do capital financeiro (ibidem). ajuste fiscal, que deveria obter-se por meio de um superávit
primário. A reforma dos sistemas de previdência social e a
Concomitantemente a esses acontecimentos, reforma administrativa seriam fundamentais para alcançar
como assinalou Fiori (1997, p. 11-23), no FMI, essa meta; 2) introdução de reformas estruturais visando à
abertura das economias nacionais, o que implicava reduções
no Banco Mundial, no Banco Interamericano de
de tarifas e desregulamentação dos mercados financeiro e de
Desenvolvimento e no mundo acadêmico travava- capitais, e 3) redução da presença do Estado na economia,
se um intenso debate acerca das políticas de centrada em um vasto programa de privatização das empre-
estabilização das economias latino-americanas. sas estatais. Considerava-se que só depois de implementado
Chegou-se à conclusão de que as políticas orto- esse conjunto de reformas seria possível retomar o cresci-
doxas recomendadas pelo FMI e adotadas ao longo mento de maneira mais sustentada. Considerava-se também
que, para implementar programas dessa natureza, seriam
da década de 1980 tinham sido um fracasso,
precisos governos estáveis e com larga base de sustentação
embora tivessem evitado uma onda de moratórias política e social, pois os ônus das reformas seriam pesados
das dívidas externas. Tinham sido insuficientes para o grosso das populações dos países latino-americanos
particularmente no tocante à redução da inflação (ibidem; os próximos parágrafos baseiam-se nessa obra).

21
A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

na América Latina seguiram essas análises e dire- A esse respeito Oliveira (1998, p. 169) assinalou
trizes. Assim, vários países latino-americanos con- que, “Ao lado do processo hiperinflacionário
tinuaram presos às amarras financeiras que vinham constante nos últimos dez anos, que elaborou uma
dificultando o desenvolvimento desde a crise da espécie de pedagogia perversa, a contra-revolu-
dívida externa dos anos 1980. Foi o caso do México ção tresloucada de Collor mandou ‘pro brejo’ toda
e da Argentina, que adotaram planos baseados em esperança de mudança social progressista, vale
âncoras cambiais. Essa estratégia, que acarretava dizer, mudança que tentasse varrer com as vastas
fortes déficits comerciais devido à valorização das desigualdades. Instaurou-se – e a eleição do rei do
moedas combinada com a maior abertura da eco- kitsch já era seu indício mais forte, com o forte
nomia, só foi possível graças à elevada liquidez apelo messiânico de salvação – uma espécie de
internacional e às baixas taxas de inflação nos paí- conservadorismo que pode resumir em mudança
ses centrais no início dos anos 1990. Essas condi- social regressiva, isto é, um anseio generalizado e
ções conjunturais, que garantiam um fluxo volu- difuso por estabilidade, segurança, ordem e, par
moso de recursos externos, eram intrinsecamente contre, o medo à mudança social progressista”.
instáveis (TAVARES, 1999, p. 17-123).
A queda de Fernando Collor, no entanto, não
O Plano Real também inspirou-se nessa estra- deteve a virada conservadora. Fernando Henrique
tégia e, com algum atraso, o Brasil ajustou-se à Cardoso, contando com uma base social mais
onda neoliberal. Esse atraso vinculava-se à situação ampla graças à estabilização dos preços e com forte
política do país na década de 1980. Uma guinada apoio das classes dominantes e do capital
neoliberal parecia difícil naquele momento, sobre- estrangeiro, colocou em prática um vasto
tudo devido ao intenso movimento social autô- programa de reformas inspiradas no ideário
nomo dos trabalhadores, centrado no movimento neoliberal. Ao optar por políticas neoliberais, FHC
sindical combativo dos metalúrgicos do ABC colocou, de forma subordinada, o Brasil na trilha
paulista, que culminou na criação do Partido dos da globalização.
Trabalhadores, e ao movimento pela redemocrati-
No entanto, mais uma vez a realidade parece
zação do país. A Constituição de 1988 refletia, pelo
desmentir as expectativas otimistas dos
menos em parte, esse contexto social, que
neoliberais. Embora esse novo programa tenha sido
contrastava com o clima de recuo dos setores de
adotado por vários países da região ao longo dos
esquerda vigente na maioria dos outros países da
últimos dez anos, eles não conseguiram retomar
região. O grosso da burguesia também não parecia
o prometido desenvolvimento. Pelo contrário, esses
ainda convicta da nova estratégia de desenvolvi-
países vivem uma situação de estagnação crônica
mento. Dessa forma, as políticas de ajuste
e de crises recorrentes toda vez que a economia
neoliberais não tinham base de sustentação social.
mundial entra em um período de instabilidade9.
O ponto de virada parece ter sido a derrota de
Luís Inácio Lula da Silva para Fernando Collor de
Melo em 1989, que abriu espaço para o governo
demasiado dependente de financiamento externo ou gover-
implementar políticas neoliberais8.
namental, em um momento em que essas alternativas mos-
travam-se difíceis; o tamanho relativamente pequeno das
8 Sobre esse ponto ver Oliveira (1998, p. 157-223). Pode- empresas brasileiras diante das gigantescas empresas
transnacionais, o que dificultava a concorrência com essas
mos destacar outros fatores que dificultavam sobremaneira
empresas. O problema não se reduz à defasagem tecnológica:
a integração ao processo de globalização: 1) o intenso pro-
é também uma questão de solidez financeira e de capacidade
cesso inflacionário; 2) a crise fiscal do Estado, fruto, em
de centralizar capital nas empresas nacionais.
grande medida, do endividamento interno e externo; 3) a
estagnação econômica decorrente da queda dos investimen- 9 A taxa média de desemprego aberto para o setor urbano,
tos e da adoção de políticas recessivas; 4) a inexistência de na América Latina, passou de 5,9% da PEA (População
políticas voltadas para o desenvolvimento em virtude de a Economicamente Ativa), em 1990, para 7,9% em 1998.
política econômica estar direcionada para o combate da in- Mas essas cifras não dão conta da precarização do mercado
flação e para o pagamento da dívida externa, e 5) a incapa- de trabalho, tendo a informalidade saltado de 40%, em 1980,
cidade de o governo articular internamente uma base social para 56% em 1995. Para essa região, em 1980, o nível de po-
sólida para políticas desenvolvimentistas. As fragilidades do breza correspondia a 25% da população urbana e o de indi-
Brasil decorriam também, segundo Coutinho (1996, p. 219- gência a 9%. Em 1994, esses números eram respectivamente
238), de problemas estruturais mais antigos, a saber: a 34% e 12%. Para a população rural os números são mais
inexistência de um consistente esquema de financiamento dramáticos: os pobres e indigentes, em 1994, correspondiam
interno, o que torna o avanço da acumulação de capital a 55% e 33% respectivamente (CANO, 1999, p. 317-318).

22
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

Os programas de estabilização baseados em elevação dos juros, sobretudo nos períodos de


âncoras cambiais jogaram esses países em uma instabilidade da economia mundial, é necessária,
armadilha, pois se, de um lado, conseguiram de um lado, devido à necessidade de evitar fugas
debelar o processo inflacionário, de outro de capitais e atrair capitais externos para cobrir
dificultaram a retomada do desenvolvimento. Isso os déficits em conta corrente. De outro lado, essas
porque implicam altas taxas de juros, necessárias altas taxas são necessárias para deprimir a atividade
para atrair um volume crescente de capitais para econômica e, assim, conter as importações e
fecharem os também crescentes déficits em suas incentivar as exportações, contribuindo para
contas externas, decorrentes da abertura comercial amenizar os problemas do déficit nas contas
associada à valorização das moedas locais, do externas. Mas a manutenção de taxas de juros
pagamento dos serviços da dívida externa e do elevadas impede o crescimento econômico, infla
incremento das remessas de lucros, dividendos a dívida interna e aprofunda a crise social. A lógica
etc. A entrada maciça de produtos importados a dessa política impõem a recessão crônica como
preços relativamente baixos e estáveis controlou forma de enfrentar os desequilíbrios externos e
a inflação, mas causou enormes déficits na balança garantir os interesses do capital financeiro. A
comercial. Os resultados de tudo isso, bastante redução significativa dos juros, ao estimular a
visível no Brasil e na Argentina, foram a crescen- atividade econômica, poderia exacerbar o desequi-
te vulnerabilidade das economias nacionais ante líbrio externo, o que provavelmente acarretaria
as oscilações da economia mundial, o incremento dificuldades para fechar as contas externas e forte
da dependência em relação ao capital estrangeiro desvalorização cambial com reflexos nos preços,
e a estagnação econômica, que implica crescente o que exigiria, de acordo com a lógica dos neo-
desemprego e deterioração da situação social de liberais, a retomada de medidas contencionistas.
vastas parcelas da população10. O descontentamento social crescente não possibi-
litou até o momento articular um projeto alterna-
O núcleo de sustentação dessas políticas reside
tivo, embora indícios nessa direção eclodam por
na manutenção de elevadas taxas de juros, que
toda a parte na América Latina. Dessa forma,
recompensam regiamente o capital financeiro. A
recoloca-se a questão da viabilidade do desenvol-
vimento em regiões periféricas no atual contexto
10 A dívida externa da América Latina entre 1989 e 1999 da economia mundial.
cresceu de US$ 450 bilhões para cerca de US$ 750 bilhões Os países não-desenvolvidos defrontam-se não
(CANO, 2001, p. 23-41). Em muitos países, observou-se
apenas com os entraves colocados pela atual fase
um crescimento explosivo da dívida interna, agravando a
crise fiscal. A título de exemplo podemos citar a dívida da economia mundial, mas também com um ou-
interna brasileira, que saltou de cerca de R$ 60 bilhões, em tro obstáculo, até agora não mencionado: os limi-
1995, para R$ 685 bilhões em janeiro de 2002, em grande tes ecológicos do desenvolvimento.
parte devido às altas taxas de juros e à desvalorização da
moeda a partir de 1999. A necessidade de obter recursos IV. OS LIMITES ECOLÓGICOS DO DESEN-
para fechar o balanço de pagamentos e honrar a dívida inter- VOLVIMENTO CAPITALISTA
na fragiliza os governos diante do capital financeiro
globalizado. Interessa a esse capital garantir o pagamento das O problema dos limites ecológicos do desen-
dívidas e, por conseguinte, procura, respaldado pelo FMI e volvimento parece ser relevante não só porque a
Banco Mundial, impor políticas que garantam a estabilidade distância entre a riqueza e a pobreza parece au-
de preços, a livre circulação de capitais e a saúde das finanças mentar na economia globalizada e no interior de
públicas, compreendida como a capacidade de gerar cres- cada economia nacional, mas também porque os
centes superávits primários. O não-cumprimento dessas metas
recursos naturais da terra são limitados. Se isso é
coloca os países periféricos à mercê dos movimentos volá-
teis dos capitais financeiros. Mas a situação é insustentável. verdade, poderíamos dizer que o modelo de
No caso do Brasil, embora o governo FHC tenha obtido desenvolvimento capitalista seguido pelos EUA,
superávit primário da ordem de 3,5% do PIB nos últimos pelo Japão e pela Europa Ocidental, calcado na
anos, o serviço da dívida pública corresponde a cerca de 7% industrialização e em uma sociedade de consumo
do PIB. Dessa forma, ao contrário do que apregoam os de- de massas, não só não é universalizável como ten-
fensores da atual política econômica, a trajetória da dívida é
de, mais cedo ou mais tarde, a esbarrar nos limi-
ascendente. Estagnação econômica, aprofundamento da crise
fiscal e deterioração da situação econômica e social das po- tes naturais do planeta.
pulações mais carentes é o resultado dessa política (LACER- Como expandir uma forma de desenvolvimento
DA, 2002; SINGER, 2002).
que consome um volume descomunal de energia

23
A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

e de outros recursos naturais não-renováveis? Estima-se que em 2025 sejam cerca de 9 bilhões
Teria o planeta condições de sustentar um nível (HIRST & THOMPSON, 1998, p. 189). Discutir
de consumo relativamente elevado para o conjunto as possibilidades de desenvolvimento dos países
da população mundial? Se isso é impossível, as periféricos implica discutir as próprias formas do
populações da periferia estariam condenadas à desenvolvimento.
miséria? O modelo de desenvolvimento perseguido
Durante muito tempo o desenvolvimento foi
nos últimos 50 a 70 anos, pelos países periféricos
identificado, particularmente pelos economistas
e socialistas, de uma maneira ou de outra, ao ba-
neoclássicos, com crescimento econômico. Ou-
searem-se na industrialização, não seria uma mera
tros identificavam o conceito à industrialização12.
ilusão? Não estaria colocado na ordem do dia a
Essas duas formas de entender desenvolvimento
busca de outras formas de desenvolvimento, mais
são inadequadas. Desde meados de nosso século,
condizentes com os recursos naturais limitados e
vários países cresceram de maneira acelerada e
com a possibilidade de uma distribuição da riqueza
industrializaram-se, como o Brasil, mas nem por
mais eqüitativa em escala mundial? Mas isso não
isso os problemas sociais (melhores condições de
colocaria em xeque o capitalismo juntamente com
vida, saúde, educação, moradia, saneamento bá-
sua sociedade de consumo de massas?
sico etc.) e os problemas relativos à distribuição
Sobre essas questões Altvater assinala (1995, da renda melhoram substancialmente. Hoje, parte
p. 28): “[A] industrialização é um luxo exclusivo considerável da população brasileira vive na misé-
de parcelas da população mundial, mas não para ria e o país tem uma das piores distribuições da
ampla maioria dos 6,25 bilhões de habitantes na renda do mundo, embora observemos a melhora
virada do milênio. É impossível simplesmente dar de uma série de indicadores sociais (mortalidade
continuidade às estratégias de desenvolvimento e infantil, expectativa de vida, escolaridade etc.).
de industrialização das décadas passadas. É uma
Não basta um país ser industrializado para
ilusão, e por isto uma desonestidade, alimentar e
considerarem-no desenvolvido. Essa relação
difundir a idéia de que todo o mundo poderia atingir
também começa a apresentar problemas porque
um nível industrial equivalente ao da Europa
se observa em vários países desenvolvidos um
Ocidental, da América do Norte e do Japão [...]. A
processo de desindustrialização. Ou seja, o setor
industrialização constitui um bem oligárquico [...].
industrial, no que se refere ao PIB, perdeu terreno,
Portanto, as sociedades industriais só podem rei-
vindicar para si as benesses da afluência enquanto
o mundo ainda hoje não-industrializado assim 12 De maneira geral, podemos identificar na teoria
permanecer”. econômica, no tocante à concepção de desenvolvimento,
De acordo com Löwy (1999, p. 102), se o duas correntes, embora não haja necessariamente
homogeneidade teórica e metodológica entre os autores que
conjunto da população mundial tivesse um con- as compõem. Uma, englobando economistas de tradição
sumo de energia igual ao consumo médio de ener- neoclássica e pós-keynesiana, que concebem o desenvolvi-
gia dos EUA, as reservas conhecidas de petróleo mento como crescimento econômico. Para esses um país é
durariam aproximadamente 19 anos11. O que está subdesenvolvido à medida que apresenta um crescimento
em questão é a própria forma capitalista de de- econômico inferior aos desenvolvidos e cresce menos do
senvolvimento. Somos céticos quanto à possibili- que seria possível, dado os seus recursos em termos de terra,
mão de obra e recursos naturais. Ou seja, o país é subdesen-
dade de um desenvolvimento sustentado, que bus- volvido, nesse caso, porque subutiliza os recursos de que
que, ao mesmo tempo, evitar a destruição da na- dispõe, observando-se recursos produtivos ociosos. A outra
tureza, garantir altas taxas de crescimento corrente considera que o desenvolvimento não pode ser iden-
econômico e superar a miséria. Essa questão é tificado a crescimento porque esse crescimento pode não
mais premente em virtude do tamanho da estar beneficiando a economia e a população como um todo,
população mundial, cerca de 6 bilhões de pessoas. seja em virtude da transferência de excedente econômico
para outros países, seja pelo fato de o excedente estar sendo
apropriado por uma parcela diminuta da população. Desen-
volvimento envolve, nessa versão, mudanças quantitativas e
11 O problema não se reduz à finitude dos recursos naturais, qualitativas na estrutura produtiva, na produtividade do
como petróleo, ferro, bauxita etc.; também pressionam o trabalho, nas instituições e no modo de vida das pessoas,
desenvolvimento os perigos da poluição: emissões de CO2, com a melhoria do nível de vida do conjunto da população.
CFCs e outros gases, extinção de espécies, esgotamento dos Enquadram-se nessa corrente, entre outros, economistas
solos, poluição dos mares, diminuição da água potável etc. cepalinos e marxistas (SOUZA, 1995, p. 13-32).

24
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

enquanto cresceu a importância dos setores o crescimento econômico e, portanto, o problema-


comercial e de serviços. Isso ocorreu em virtude chave seria o do incremento dos investimentos e
de muitas indústrias terem deixado alguns países das formas de financiá-los. Entretanto, o que
desenvolvidos em busca de regiões na periferia deveria ser explicado são as condições históricas
com mão de obra mais barata, com recursos específicas que obstam o crescimento e condicio-
naturais mais abundantes e regulamentos mais nam os investimentos. Isso só poderia ser explica-
brandos de proteção ao meio ambiente. Esse pon- do a partir da realidade concreta de cada país
to consiste em um dos mais importantes da cha- subdesenvolvido e de sua inserção na economia
mada mundialização do capitalismo. No entanto, mundial (PRADO JR., 1989, p. 12-48).
devemos ver com cuidado esse problema, pois
A crítica que a CEPAL (Comissão Econômica
esses países continuam industrializados, concen-
para a América Latina e o Caribe) e Prado Jr.
trando em suas mãos a produção de bens de capital
(idem), entre outros, desenvolveram à visão unili-
e de tecnologia. Industrialização parece ser uma
near segundo a qual todos os países passariam
condição necessária, mas não suficiente para iden-
invariavelmente pelas mesmas formas ou estágios
tificar se um determinado país é ou não desenvol-
de desenvolvimento e a diferença entre os países
vido.
nesse aspecto seria apenas de grau e ritmo de de-
Segundo Altvater (1995, p. 21), o fato de alguns senvolvimento também precisa ser recuperada,
países altamente desenvolvidos estarem transfor- pois muitos parecem tê-la esquecido. Além disso,
mando-se em países pós-industriais torna a indus- a teoria ortodoxa reduz os indicadores de desen-
trialização, “enquanto encarnação de modernização volvimento a umas poucas variáveis. Assim, a
e de progresso”, uma definição inadequada. Outros Renda Nacional, o Produto Interno Bruto, o Pro-
autores criticam de maneira mais contundente essa duto Nacional Bruto e a renda per capita passari-
identificação entre industrialização e desenvolvi- am a ser indicadores precisos do grau de desen-
mento, como Arrighi (1997, p. 209): “é preciso volvimento, deixando em segundo plano questões
abandonar o postulado de que industrialização é o qualitativas.
equivalente de desenvolvimento”.
Mais recentemente, o desenvolvimento tem
O desenvolvimento e o subdesenvolvimento só sido concebido como resultante da evolução de
podem ser entendidos a partir de uma perspectiva um conjunto de variáveis. Um dos autores que
histórica. Os modelos excessivamente genéricos tem desenvolvido essa linha é Amartya Sen (2000).
e abstratos não conseguem dar conta das espe- A obra desse autor tem exercido grande influên-
cificidades históricas de cada país ou região à cia sobre os trabalhos e as pesquisas realizadas
medida que os englobam em um todo homogêneo, pela ONU acerca do tema, particularmente sobre
como se realidades sociais, econômicas e políticas o índice de desenvolvimento humano e social.
bem diversas pudessem ser reduzidas a um
Esse autor concebe o desenvolvimento como
punhado de variáveis abstratas. Desse ponto de
um processo de expansão da liberdade desfrutada
vista, os chamados países subdesenvolvidos, que
pelos membros de uma sociedade. Ou seja, ele
mais recentemente foram denominados de mer-
ressalta a importância de as pessoas terem a
cados emergentes, não poderiam constituir uma
possibilidade de terem acesso aos meios e aos
unidade de análise consistente e as políticas eco-
recursos que lhes propiciem condições reais de
nômicas voltadas para desenvolvê-los não pode-
exercerem seus direitos e sua liberdade. Em suas
riam ser necessariamente as mesmas, como comu-
palavras, “[O] desenvolvimento pode ser visto
mente apregoam as instituições financeiras inter-
como um processo de expansão das liberdades
nacionais.
reais que as pessoas desfrutam. O enfoque nas
A dificuldade de aplicação desses modelos re- liberdades humanas contrasta com visões mais
side, sobretudo, no fato de eles serem demasiada- restritas de desenvolvimento, como as que
mente abstratos. A apreensão das condições identificam desenvolvimento com crescimento do
históricas específicas de cada país subdesenvol- Produto Nacional Bruto (PNB), aumento de
vido seria essencial para explicar a própria situação rendas pessoais, industrialização, avanço
de subdesenvolvimento. O problema do desen- tecnológico ou modernização social [...]. O
volvimento, de acordo com a teoria ortodoxa, seria desenvolvimento requer que se removam as
reduzido à questão da melhor maneira de acelerar principais fontes de privação de liberdade: pobreza

25
A QUESTÃO DO DESENVENVOLVIMENTO À LUZ DA GLOBALIZAÇÃO

e tirania, carência de oportunidades econômicas e possível expandir o desenvolvimento para o


destituição social sistemática, negligência dos conjunto da população do planeta.
serviços públicos e intolerân-cia ou interferência
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
excessiva de Estados repressivos” (idem,
p. 17-18). Ao abordarmos a questão do desenvolvimento
visamos apenas a tecer alguns comentários que
A melhor forma de alcançar esses objetivos
julgamos pertinentes. A retomada da discussão
seria, segundo esse autor, por meio da expansão
acerca do desenvolvimento parece indispensável
da economia de mercado, calcada na livre
nos dias de hoje, seja em razão da situação de
iniciativa. Contudo, ele não descarta a atuação
estagnação econômica e da deterioração das
estatal na economia, como forma de suplementar
condições sociais de vastas regiões da periferia
a iniciativa privada, visando a alcançar essas metas.
capitalista nesse contexto de globalização, seja em
Suas colocações são bastante pertinentes, pois
razão dos próprios limites ecológicos da sociedade
industrialização, crescimento do PIB, crescimento
de consumo. O grande desafio consiste em
da renda etc. não significam necessariamente
repensar o desenvolvimento levando em consi-
melhora das condições de vida do conjunto da
deração esse conjunto de problemas.
população de um país. A experiência brasileira é
ilustrativa. O desenvolvimento seria fruto da A crescente integração da economia mundial
evolução de um conjunto de variáveis econômicas tornou as tendências econômicas mais
(PIB, renda per capita etc.), sociais (acesso à homogêneas, embora as desigualdades sociais e
educação e saúde, mortalidade infantil, expectati- econômicas tenham aumentado. Apesar de
va de vida etc.) e políticas (respeito aos direitos algumas exceções importantes, em geral tanto os
humanos, participação política etc.) países desenvolvidos quanto os não-desenvolvi-
dos entraram em uma fase de baixo crescimento
Entretanto, esse autor não questiona um pon-
nas últimas décadas e particularmente estes últi-
to fundamental, qual seja: a natureza do desenvol-
mos enfrentam crescentes problemas sociais. Cre-
vimento capitalista. A questão do desenvolvimen-
ditamos, pelo menos em parte, esse fenômeno à
to não pode residir somente na elevação dos ní-
crise social e econômica que se arrasta desde a
veis de consumo, no usufruto de serviços (edu-
década de 1970 e que abriu as portas para o pre-
cação, saúde, saneamento básico etc.) e no aces-
domínio dos interesses financeiros. A derrota dos
so às liberdades políticas e às oportunidades
trabalhadores abriu espaço para uma larga ofensi-
econômicas e sociais, embora esses pontos se-
va da burguesia, mas as suas tentativas de
jam de suma importância. Voltamos a indagar: isso
reestruturar o sistema até agora se mostraram
seria possível de ser alcançado expandindo-se o
bastante problemáticas: não criaram as condições
modo de produção e as formas de consumo capi-
para uma vigorosa retomada do crescimento em
talistas? O que fazer com o consumo desmedido
escala global, contribuíram para a estagnação de
da sociedade de consumo de massa?
uma vasta zona do mundo e não enfrentaram de
O problema não pode ser, aparentemente, re- maneira consistente os problemas ecológicos. As
solvido agregando o termo sustentável ao conceito enormes dificuldades enfrentadas pelos países
de desenvolvimento. Desenvolvimento sustentável subdesenvolvidos não se deveram, no entanto, ape-
entendido como uma forma de crescimento nas à tendência declinante da economia mundial,
econômico associado à integridade dos sistemas mas também ao aprofundamento dos mecanismos
ecológicos, a justiça e à igualdade entre toda a de dependência sobretudo financeira, que dificul-
população mundial, nos parâmetros da sociedade taram a adoção de políticas voltadas para o de-
capitalista, parece bastante improvável, pois, como senvolvimento e aprofundaram as crises financeiras
tentamos apontar acima, o capitalismo no seu e nas contas externas, além de terem possibilitado
movimento de expansão cria e recria, ao mesmo a drenagem de parcela do excedente econômico
tempo, uniformidade e desigualdade. Um sistema para os países ricos.
regido pelo mercado, em que o móvel das
É preciso assinalar, contudo, que esse resulta-
empresas é a busca incessante do lucro, enfrentaria
do não decorreu apenas das pressões e dos limi-
enormes dificuldades para respeitar a integridade
tes impostos pelas estruturas da economia mun-
da natureza e promover a igualdade entre os povos
dial aos países não-desenvolvidos. Decorreu tam-
da terra. Parece que dentro do capitalismo não é
bém, embora talvez não tenhamos frisado o su-

26
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 11-29 NOV. 2002

ficiente, das decisões dos governos desses países limites ecológicos do desenvolvimento capitalista.
e do contexto social, econômico e político inter- A busca cega pelo lucro tem implicado a destrui-
no a cada um deles no qual se desenrolam as lutas ção sistemática da natureza. Nada indica, até o
sociais. momento, que o capitalismo seja passível de refor-
mas que consigam dominar suas tendências des-
Dessa forma, o desenvolvimento, como ten-
trutivas da natureza. Está em questão todo um
tamos indicar, tem que ser entendido em suas com-
estilo de vida, uma civilização – exceto se ocorrer
plexas e múltiplas articulações sociais, econômicas
um brutal salto tecnológico, que permita sustentar
e políticas internas e externas. Este tipo de aborda-
a vida de bilhões de seres humanos com base em
gem implica em análises históricas das experiências
materiais recicláveis.
particulares e como elas inserem-se na economia
mundial. Tentamos sugerir também a necessidade Nesse contexto, um dos problemas centrais
de estudos comparativos mais amplos, que levem parece ser o do controle social da economia. A
em conta as diferentes estratégias de inserção no produção, a distribuição e o consumo devem su-
cenário atual do mundo globalizado. bordinar-se aos interesses, às necessidades
objetivas e subjetivas, aos valores do grosso da
Embora o problema do desenvolvimento eco-
população. Uma economia como essa só poderia
nômico com preservação da natureza e superação
existir se fosse regida pelo valor de uso e não pelo
da miséria seja um desafio para qualquer forma
valor de troca. Como diz Löwy (1999, p. 234),
de sociedade, ainda mais quando a população atinge
uma espécie de economia moral, “no sentido que
a cifra de bilhões, parece estar colocado na ordem
E. P. Thompson dava a essa expressão, isto é,
do dia, como assinalamos acima, a questão dos
uma política econômica baseada em critérios não-
monetários e extra-econômicos”.
Francisco Luiz Corsi (flcorsi@uol.com.br) é Doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de
Campinas (UNICAMP) e Professor do Departamento de Ciências Políticas e Econômicas da Universidade
Estadual Paulista (UNESP), campus de Marília.

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29
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 157-159 NOV. 2002
ABSTRACTS

Versão dos resumos para o inglês: Miriam Adelman


DEVELOPMENT AND CAPITALIST ECONOMICS GLOBALIZATION
Francisco Luiz Corsi (Universidade Estadual Paulista – Marília)
This article proposes to take an historical inventory of the situation of the countries of the periphery
over the last thirty years, looking specifically at the impasses in development belonging to the current
phase of so-called globalization of capital. It is based primarily on the study of an extensive literature
of recent publication. We ask to what extent the return to development in the various stagnated
areas of the periphery can be considered a concrete possibility and engage in a series of reflections
around this issue, which we consider as fundamental for the present conjuncture. We seek to show
that the economic stagnation that characterizes many non-developed countries is due in part to the
social and economic crisis that began in the decade of the seventies and continues to date, efforts to
restructure capitalist society notwithstanding. Strategies and policies of a neo-liberal type have also
contributed significantly to this situation, to the extent that they have reinforced the financial knots
that have suffocated a large portion of the peripheral economies. Adding to these problems, such
countries have also been faced with the ecological limits of capitalism. Reinitiating development on
another plane, involving economic growth, social justice and the preservation of nature would mean
breaking with capitalism itself.
KEYWORDS: development; globalization; national project; social and economic crisis.
* * *
SANTIAGO DE CHILE FACES GLOBALIZATION: ANOTHER CITY?
Carlos A. de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile)
This paper proposes to identify and characterize the “other city” that has sprung from the
transformations taking place in the metropolitan area of Santiago de Chile. These changes are a
result of a new macro-economic strategy adopted from the middle of 1970 in which growing economic
liberalization as well as a wide opening-up to the exterior promoted increased globalization of the
national economy. Within this context, we see that together with significant changes in the metropolitan
area´s economic base came a radical re-structuring of its labor market and a greater territorial
dispersion of productive activities and population. Against the backdrop of this new scenario, we
look at how the changes that effected this emerging city have confirmed, on the one hand, a social
morphology based on polarization and residential segregation and on the other, a territorial morphology
based on suburbanization and multiple centers. These changes correspond to the tendencies that
can be observed today in all large metropolitan areas, both within the core countries and the emerging
economies.
KEYWORDS: globalization; informality; metropolitanization; suburbanization; multiple centers;
residential segregation.
* * *
GLOBALIZATION AND DIRECT FOREIGN INVESTMENT: AN EXPLORATORY STUDY
OF THE BRAZILIAN AUTOMOBILE INDUSTRY
Ana Lucia Guedes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Alexandre Faria (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
This article presents preliminary results of research that aims to develop a theoretical framework to
analyze the antecedents and implications of economic globalization in Brazil. More specifically, the
article focuses on questions of governing and environmental sustainability related to the direct foreign

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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 19: 165-167 NOV. 2002
RÉSUMÉS

Versão dos resumos para o francês: Maria Fernanda Araújo Lisbôa


LE DEVELOPPEMENT À LA LUMIERE DE LA GLOBALISATION DE L’ECONOMIE
CAPITALISTE
Francisco Luiz Corsi (Universidade Estadual Paulista – Marília)
Cet article cherche à dresser, sous la perspective historique, le bilan de la situation des pays
périphériques dans les dernières trentes années. Pour cela, il aborde particulièrement les enjeux du
développement dans la phase de la globalisation du capital. Ce travail s’appuie surtout sur les études
de la vaste bibliographie publiée récemment. Dans quelle mesure la relance du développement
concernant plusieurs secteurs stagnés de la périphérie deviendrait-elle une réelle possibilité? Autour
de cette question, que nous trouvons centrale dans l’actuelle conjoncture, nous entamons quelques
réflexions. Nous envisageons montrer que la stagnation économique à laquelle des nombreux pays
non développés font face ne découle pas en partie d’une crise sociale et économique ouverte dans
les années soixante-dix et qui s’élargit jusqu’à nos jours malgré les tentatives de restructuration de
la société capitaliste. Les stratégies et les mesures politiques à caractère néo-liberal aussi auraient
énormément contribué à cette situation étant donné qu’elles ont renforcé les amarres financières
qui ont étranglé pour une part les économies périphériques. Outre ces difficultés, ces pays
affronteraient les limites écologiques du capitalisme. La relance du développement dans un nouveau
stade exigeant la croissance économique, la justice sociale et la préservation de la nature amènerait
à une rupture face au capitalisme.
MOTS-CLÉS: développement; globalisation; projet national; crise socioéconomique.
* * *
SANTIAGO DU CHILI FACE À LA GLOBALISATION: UNE AUTRE VILLE?
Carlos A. de Mattos (Pontificia Universidad Católica de Chile)
Ce travail a pour but d’identifier et de caractériser “l’autre ville” originaire des transformations qui
ont touché la ville de Santiago en fonction de l’assomption, à partir du milieu des années 1970, d’une
nouvelle stratégie macroéconomique, où non seulement une croissante libéralisation économique
mais aussi une vaste ouverture externe ont favorisé la progressive globalisation de l’économie nationale.
Dans ce contexte, on observe comment parallèlement aux importantes modifications de la base
économique de la ville a commencé à se mettre en place une restructuration radicale de son marché
du travail et un plus grand éparpillement territorial des activités productives et de la population. Dans
ce nouveau décor, on analyse comment les transformations qui ont touché la ville émergente ont
influencé l’affirmation, d’une part, d’une morphologie sociale où persiste la polarisation sociale et la
ségrégation résidentielle et, d’autre part, d’une morphologie territoriale où la sous-urbanisation et la
policentralité l’emportent. Ces transformations correspondent aux tendances qu’on observe
actuellement sur les aires métropolitaines non seulement dans les pays au centre mais aussi dans les
économies émergentes.
MOTS-CLÉS: globalisation, informalité; métropolisation; sous-urbanisation; policentrisme; ségrégation
résidentielle.
* * *
GLOBALISATION ET INVESTISSEMENT DIRECT ETRANGER: UNE ETUDE
EXPLORATOIRE DE L’INDUSTRIE AUTOMOBILE BRESILIENNE
Ana Lucia Guedes (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)
Alexandre Faria (Pontifícia Universidade Católica do Paraná)

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