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Dignidade Da Pessoa Humana

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A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

E A JURISPRUDÊNCIA DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS

Siddharta Legale
Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), no
campus de Governador Valadares/MG. Doutorando em Direito Internacional pela Univer-
sidade do Estado do Rio de Janeiro (Rio de Janeiro/RJ). Mestre em Direito Constitucional
e Bacharel pela Universidade Federal Fluminense (Niterói/RJ).

Eduardo Manuel Val


Professor de Direito das Relações Internacionais da Universidade Federal Fluminense
(Niterói/RJ), do Programa de Pós-graduação em Direito Constitucional da Universidade
Federal Fluminense (Niterói/RJ) e Chefe do Departamento de Direito Público (Niterói/
RJ). Professor do quadro docente permanente do Programa de Mestrado e Doutorado da
Universidade Estácio de Sá (Rio de Janeiro/RJ).

Resumo: O conteúdo interamericano do princípio da dignidade da pessoa humana será estudado nos
tratados de direitos humanos e na jurisprudência da Corte IDH. A dignidade aparece normalmente nos
preâmbulos dos tratados na locução “inerente à pessoa humana”. Os dispositivos preveem a dignida-
de ao lado de direitos fundamentais, como a propriedade, vida, integridade física e honra, educação
e direitos de grupos em condições de vulnerabilidade, como a mulher e os indígenas. A jurisprudência
da Corte IDH costuma empregar pouco a dignidade de forma autônoma. Em geral, a dignidade vem
acoplada a um direito humano.
Palavras-chave: Dignidade da pessoa humana. Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Sumário: 1 Introdução – 2 Da filosofia ao direito: a dignidade humana como princípio jurídico – 3 A
dignidade da pessoa humana no sistema interamericano de proteção aos direitos humanos – 4 A juris-
prudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos – 5 Conclusão – Referências

1 Introdução
A dignidade da pessoa humana adquiriu uma importância incomensurável
dentre os princípios de direito público. No Direito Constitucional, consolidou-se
como o princípio fundamental dos ordenamentos jurídicos ocidentais contempo-
râneos, que confere unidade aos direitos fundamentais. Espraiou-se pelo mundo
especialmente depois da Lei Fundamental alemã de 1949, insculpida no art. 1º

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como reação ao nazismo1 em uma clara necessidade de proteger a pessoa hu-


mana em concreto e não o indivíduo em abstrato contra graves violações aos
direitos fundamentais das pessoas, como as que ocorreram com o nazismo.2 A
dignidade tornou-se uma espécie de vedete argumentativa direta ou indireta da
fundamentação das decisões de Cortes Constitucionais como se constata em
diversos estudos de direito comparado. Nos manuais, a referência é obrigatória ao
se discorrer ou comentar minimamente sobre os direitos humanos fundamentais.
No direito internacional, constata-se fenômeno semelhante, desde a previ-
são da dignidade no preâmbulo e art. 1º da Declaração Americana de Direitos e
Deveres do Homem e da Declaração Universal de Direitos Humanos da ONU de
1948, que prevê que todos os seres humanos são “iguais em direitos e dignida-
de”.3 Há inúmeras referências nos tratados internacionais de direitos humanos à
ideia de dignidade. As Cortes Internacionais, em especial de direitos humanos,
fazem referência constante a tal noção. É cada vez mais comum nos manuais
de direito internacional público e de direito internacional dos direitos humanos.
Pairam, porém, muitas dúvidas sobre como interpretar e aplicar a dignidade da
pessoa humana nessa encruzilhada do direito constitucional e internacional, entre
direitos fundamentais e direitos humanos, em especial no sistema interamericano
de proteção dos direitos humanos. A indeterminação conceitual desse princípio,
no encontro entre os sistemas nacionais, regionais e globais de proteção aos
direitos humanos fundamentais, traz dúvidas sobre o que é concretamente exigível
dos Estados perante a jurisdição internacional.

1
PIEROTH, Bodo; SCHLINK, Bernhard. Direitos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 165 e ss.
2
Lei Fundamental de Bonn de 1949, Artigo 1 [Dignidade da pessoa humana – Direitos humanos – Vinculação
jurídica dos direitos fundamentais] (1) A dignidade da pessoa humana é intangível. Respeitá-la e protegê-
la é obrigação de todo o poder público. (2) O povo alemão reconhece, por isto, os direitos invioláveis e
inalienáveis da pessoa humana como fundamento de toda comunidade humana, da paz e da justiça no
mundo. (3) Os direitos fundamentais, discriminados a seguir, constituem direitos diretamente aplicáveis e
vinculam os poderes legislativo, executivo e judiciário. HESSE, Konrad. Elementos de direito constitucional
da República Federal da Alemanha. Porto Alegre: Sergio Antonio de Fabris, 1998, p. 109-111. Entre nós,
PIOVESAN, Flávia e VIEIRA, Renato Stanziola. A força normativa dos princípios constitucionais fundamentais:
a dignidade da pessoa humana. In: PIOVESAN, Flávia (Org.). Temas de direitos humanos. São Paulo: Saraiva,
2010, p. 422. Há quem aponte a Constituição de Weimar, como precursora por conta do art. 151 que dispõe
que “A Economia deve ser organizada baseada nos princípios da justiça, com a meta de promover uma vida
digna para todos.” Também a Constituição Brasileira de 1934 no art. 115 previa, de forma semelhante,
que “a ordem econômica deve ser organizada conforme os princípios da Justiça e as necessidades da vida
nacional, de modo que possibilite a todos existência digna” É com a Constituição de 1988, que a dignidade
da pessoa humana é erigida a princípio fundamental da República no art. 1º, III. BARROSO, Luís Roberto. A
dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a construção de um conceito jurídico
à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 20 e ss.
3
MCCRUDDEN, Christopher. Human Dignity and Judicial Interpretation of Human Rights. The European
Journal of International Law, v. 19, n. 4, 2008

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

No conhecido caso do lançamento de anão, por exemplo, a Corte Europeia


de Direitos Humanos se recusou a analisar a proibição francesa em relação à
“atração” em certos bares que contratavam pessoas com nanismo para serem
arremessadas, com base nos princípios da ordem pública e dignidade da pessoa
humana. A Corte Europeia entendeu que cada estado possui uma margem de
apreciação para conformar tais princípios e não se manifestou sobre o mérito.
Qual a norma mais favorável nesse caso? Permitir o trabalho ou proibir o arremes-
so? A decisão que permite o trabalho estigmatiza os portadores de nanismo em
geral ao equipará-los a uma bala? A privação de trabalho do anão viola a dignidade
como respeito à autonomia de suas escolhas?
A aplicação da dignidade da pessoa humana por Cortes Internacionais, sem
dúvida, desperta inúmeras questões próprias, como, por exemplo, o que é jus
cogens, se existe um jus cogens regional, como aplicar a norma pro homine mais
favorável ao indivíduo, quando a margem de apreciação nacional deve ser aplica-
da. As dúvidas que envolvem a aplicação da dignidade da pessoa humana pela
jurisdição internacional são muitas. Além de muitas, são complexos os questiona-
mentos decorrentes de suas circunstâncias. Problematizar a questão já pode ser
um bom começo, e mostrar que as questões existem já revela a importância da
temática. Não pretendemos responder a todos os questionamentos formulados.
As perguntas servem para contextualizar o debate sobre a dignidade da pessoa
humana em Cortes internacionais e, ao mesmo tempo, incitar o debate temas
subteorizados.
Não pretendemos, tampouco, estudar o sistema europeu ou africano de pro-
teção aos direitos humanos. É preciso recortar alguns aspectos para imprimir um
maior rigor e precisão. O objetivo central do texto será, por isso, mais modesto.
A abordagem restringe-se à tentativa de tatear um conceito interamericano de
dignidade da pessoa humana ou, pelo menos, como se encara esse princípio
na América Latina em especial, a partir dos tratados interamericanos de direitos
humanos e da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Antonio Augusto Cançado Trindade, a respeito, ressalta que a multiplicação
de tribunais internacionais e a expansão progressiva de sua jurisdição em nosso
tempo são sintomas da tentativa de resolver o conflito pela paz, e não pela força.
Mais do que isso, o reconhecimento mais ou menos amplo da titularidade de direi-
to internacional nesse ambiente relaciona-se à busca por realizar a justiça daque-
les que não conseguiram ver preservados os seus direitos pela justiça nacional.
Destaca a importância da coexistência e coordenação entre as justiças nacional
e a internacional e das cortes internacionais entre si para o respeito e efetivação
dos direitos humanos. A multiplicação dessas instâncias, como, por exemplo, o
Tribunal Penal Internacional, a Corte Europeia de Direitos Humanos, a Corte de

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Justiça das Comunidades Europeias, a Corte Interamericana de Direitos Humanos,


pressupõe repensar as formas de proteger à dignidade da pessoa humana4.
A Corte IDH tem utilizado de forma tímida ou comedida o conceito e, em ge-
ral, associado a outros direitos fundamentais específicos. Os casos mais comuns
relacionam-se à violação aos direitos humanos e às obrigações de reparar, rela-
cionadas à violência contra detentos, encarceramento em condições desumanas,
desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais.5 Ainda assim, há outros
casos e dimensões interessantes da proteção à pessoa humana, como, por exem-
plo, quando a dignidade se imbrica com direitos indígenas, LGBTI e das mulheres.
Preliminarmente, vale ressaltar que existem poucos trabalhos específicos
sobre a dignidade da pessoa humana na jurisprudência da Corte Interamericana,6
embora existam muitas referências laterais nas decisões da Corte Interamericana,
que demandam uma análise mais sistemática. A transversalidade dessa abor-
dagem permitirá compreender a dignidade humana além do Brasil7 e aquém do
mundo.8 Para enfrentar tais questionamentos, será percorrido o seguinte roteiro:
(i) uma exposição breve de como a filosofia do direito contemporânea tem abor-
dado a dignidade humana como princípio jurídico; (ii) uma exposição de como a
dignidade da pessoa humana aparece nos tratados do sistema interamericano de
proteção aos direitos humanos; e (iii) uma exposição de como a jurisprudência da
Corte Interamericana aborda tal princípio.

2  Da filosofia ao direito: a dignidade humana como princípio


jurídico
A dignidade da pessoa humana é um conceito que tem raízes no pensa-
mento de Immanuel Kant. Gradativamente, suas ideias se difundiram a partir da

4
CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. L´expansion de la juridiction internationale et la sauvegarde de la
dignité humaine. In: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto; LEAL, César Barros (Coord.). Le respect de la
dignité humaine: IV Cours Brésilien interdisciplnaire em Droits de l´homme. Fortaleza: IBDH, 2015.
5
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a
construção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 32 e ss.
6
CASSETTI, Luisa. Il diritto di “vivere con dignità” nella giurisprudenza della Corte Interamericana dei Diritti
Umani. Disponível em: <http://www.unipv-lawtech.eu/lang1/files/vivereCONdignita.pdf>. MONSALVE,
Viviana Bohórquez; ROMÁN, Javier Aguirre. As tensões da dignidade humana: conceituação e aplicação no
direito internacional dos direitos humanos. SUR, v. 6, n. 11, p. 41-63, 2009.
7
Para um trabalho exaustivo sobre as dimensões da dignidade com foco no Brasil, sem prejuízo dos excelentes
aportes de direito comparado. Cf. SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana na ordem constitucional
brasileira: conteúdo, trajetórias e metodologia. Rio de Janeiro: Tese de Titularidade de Direito Constitucional
da UERJ, 2015.
8
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a cons-
trução de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014. BARROSO,
Luís Roberto. Aqui, lá e em todo lugar: a dignidade da pessoa humana no direito contemporâneo e no
discurso transnacional. Revista dos Tribunais, v. 919, p. 127 e ss, 2012.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

simplificação do imperativo de tratar as pessoas como fins e nunca como meios,


passando a estar prevista nos Tratados de Direitos Humanos e nas Constituições
nacionais. Pretende-se, no presente item, discorrer sobre alguns elementos que
integram a noção de dignidade da pessoa humana a partir de uma perspectiva da
filosofia do direito. Nesse encontro, a dignidade da pessoa humana pode tanto ser
empregada como reforço argumentativo e diretriz hermenêutica, quanto de forma
autônoma como princípio fundamental.
Trata-se de um princípio de profunda vagueza semântica, não raro acusado
justamente (ou injustamente) por essa amplitude de ser inútil, porque já existiria
outra norma de direito fundamental mais específica a ser aplicada. Nesse cenário,
alega-se que a dignidade adquire um caráter de mero adorno retórico moral em
todas as decisões. Naturalmente, se tudo envolver a dignidade da pessoa hu-
mana, nada representará uma proteção da dignidade da pessoa humana. Nesse
aspecto, conferir mais precisão ao conceito tende a servir para proteger o que é
efetivamente importante. No direito constitucional, isso é particularmente relevan-
te, diante da banalização do uso desse princípio por parte do Poder Judiciário, em
especial no Brasil.9 No direito internacional, o uso parece mais comedido, pelo
menos na Corte IDH. Ainda assim, espera-se que a investigação contribua para
que a dignidade ganhe mais consistência no sistema interamericano, ao invés de
ser utilizada como mero argumento de reforço.
Superando tais críticas, a doutrina constitucional contemporânea vem pro-
curando refinar os aspectos conceituais, construir parâmetros para racionalizar
a sua aplicação e conferir normatividade ao princípio da dignidade da pessoa
humana. Destaca que o princípio da dignidade da pessoa humana desempenha,
pelo menos, três funções: interpretativa, negativa e direta.
A eficácia interpretativa condiciona o sentido e o alcance das normas jurídi-
cas em geral à “filtragem constitucional” a partir da lente da dignidade da pessoa
humana ou, adaptando as reflexões, a partir do direito constitucional internacio-
nal, da norma mais favorável ao indivíduo (pro homine).
A eficácia negativa, por sua vez, permite paralisar a eficácia de certas normas
por meio da declaração da inconstitucionalidade da norma (controle de constitucio-
nalidade), ou a inconvencionalidade das mesmas (controle de convencionalidade).
A eficácia direta possibilita ao princípio atuar como se regra fosse, por meio
do reconhecimento da proteção suficiente ao núcleo de certos direitos fundamen-
tais. Essa dimensão, ainda, é particularmente sensível no sistema interamericano

Para um excelente panorama do princípio do Brasil Cf, SARLET, Ingo. Comentário ao art. 1º, III. IN:
9

CANTOTILHO, J.J. et al. Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva-Almedina, 2013, p. 121
e ss.

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que, em regra, utiliza a dignidade acoplada como desdobramento de outro direito


fundamental, como, por exemplo, a vida, honra ou propriedade.
A propósito, vale a pena conferir o conteúdo mínimo para a dignidade da pes-
soa humana, proposto pelo prof. Luís Roberto Barroso, a partir de três elementos:
(i) valor intrínseco; (ii) autonomia; e (iii) valor comunitário.10 Uma compreensão do
conteúdo mínimo poderá servir para fortalecer a eficácia da dignidade da pessoa
humana tanto pela via interpretativa, quanto da eficácia direta.
O valor intrínseco da pessoa humana significa que o ser humano vale por si
só e não por uma circunstância, uma habilidade especial ou por um pertencimento
a uma casta, dinastia ou grupo social. Decorre da diferença kantiana entre as pes-
soas e as coisas.11 As coisas têm preço, porque podem ser trocadas por outras de
igual preço. O ser humano, contrário, não possui preço, não tem outro equivalente
que possa substituí-lo. Em outras palavras, o ser humano possui dignidade, um
valor incomparável, incondicionado, sem equivalentes, ou seja, um valor. Possui
uma dignidade inalienável que impõe dever de respeito à dignidade da humani-
dade dentro de nós. Tal valor intrínseco proíbe que o ser humano seja utilizado
como meio para fins alheios. Nessa linha, Kant constrói uma doutrina das virtudes
não apenas como uma doutrina dos deveres, mas como uma doutrina dos fins,
“de maneira que um ser humano tem a obrigação de considerar a si mesmo,
bem como a todo outro ser humano, como seu fim. Trata-se do que é chamado
usualmente de deveres do amor a si mesmo e de amor ao próximo”.12 Segundo
Kant, nem mesmo a punição imposta por um Tribunal tem a faculdade de retirar
tal, como se constata na seguinte passagem:

Precisa ser a ele infligida porque cometeu um crime, pois um ser


humano nunca pode ser tratado apenas a título de meio para fins

10
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a constru-
ção de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 72 e ss.
11
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2008, p. 66: “Uma pessoa é um sujeito
cujas ações lhe podem ser imputadas. A personalidade moral não é, portanto, mais do que a liberdade de
um ser racional submetido a leis morais (...). Uma coisa é aquilo ao que nada pode ser imputado. Dá-se,
portanto, o nome de coisa (res corporalis) a qualquer objeto o livre arbítrio que seja ele próprio carente
de liberdade.” Em passagem mais ao final da obra, Kant coloca ainda: “Mas um ser humano conside-
rado como um pessoa, isto é, como um sujeito de uma razão moralmente prática, é guindado acima de
qualquer preço, pois como pessoa (homo noumenon) não é para ser valorado meramente como um meio
para o fim de outros ou menos para seus próprios fins, mas como um fim em si mesmo, isto é, possui
dignidade (um valor interno absoluto) através do qual cobra respeito por si mesmo de todos os outros
seres racionais do mundo. Pode avaliar a si mesmo conjuntamente a todos os outros seres desta espécie
e valorar-se em pé de igualdade com eles” (op. cit, p. 276.) A distinção é retomada ainda ao final do livro,
quando Kant afirma que “humanidade ela mesma é uma dignidade” que coloca o ser humano acima das
coisas (op. cit., p. 306).
12
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2008, p. 252-253.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

alheios ou ser colocado entre o objeto do direito das coisas: sua


personalidade inata o protege disso, ainda que possa ser condenado
à perda de sua personalidade civil.13

É verdade que esse valor do ser humano em Kant ainda é compreendido


essencialmente como uma decorrência da sua capacidade de exercer vontade
racionalmente.14 O argumento destaca a capacidade de pensar como um elemen-
to que nos coloca em posição de igualdade. Todos somos membros do gênero
humano. Daí decorre o imperativo de respeito à humanidade em qualquer pessoa
como um fim em si mesmo e nunca como meio.15 Por óbvio, o valor da humani-
dade transcende os aspectos racionais para incluir a inteligência, comunicação,
sensibilidade, sentimentos, características e outros traços igualmente inerentes à
natureza humana. A inviolabilidade de sua dignidade impõe o respeito dos direitos
à vida, à igualdade, à integridade física e à integridade moral ou psíquica, mas
requer mais do que isso.
A autonomia da vontade constitui outro componente central da dignidade.
Pressupõe o respeito à capacidade de autodeterminação e livre capacidade de
escolha de cada um. Possui tanto uma dimensão privada, quanto pública.16 No as-
pecto privado, envolve o respeito aos projetos individuais de vida boa, normalmen-
te associados aos direitos individuais, como liberdade de expressão, consciência,
crença, etc. No aspecto público, essa autonomia pública se desdobra na possibi-
lidade de influir nos rumos coletivos do país no qual a arena política desempenha
um papel central.17 Participar, ouvir, ser ouvido na esfera pública é uma expressão
da autonomia dos cidadãos no processo de deliberação coletiva sobre as políticas
públicas e direitos fundamentais. Essa possibilidade deve concorrer para o amor
de si e do próximo, para a felicidade de todos.

13
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2008, p. 175.
14
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2008, p. 235: “A faculdade de fixar-se um fim
– qualquer que seja – é o que caracteriza a humanidade (enquanto distinta da animalidade). Por conseguin-
te, está vinculada também ao fim de humanidade em nossa própria pessoa a vontade racional, e assim o
dever de tornar a nós mesmos dignos da humanidade pela cultura em geral, no sentido de procurar obter
ou estimular a faculdade de realizar todas as modalidades de fins possíveis, na medida em que isso é
para ser encontrado num ser humano ele mesmo”
15
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Trad. Paulo Quintela. Coimbra: Edições
70, 1948, p. 69.
16
KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru: Edipro, 2008, p. 83: “A liberdade (a independência
de ser constrangido pela escolha alheia), na medida em que pode coexistir com liberdade de todos os ou-
tros de acordo com uma lei universal, é o único direito original pertencente a todos os homens em virtude
da humanidade desses”.
17
É interessante a passagem em que Kant destaca que os animais podem ser propriedade do soberano,
mas o ser humano, não, porque a qualidade de cidadãos impõe que sejam considerados “membros co-
legisladores de um Estado (não meramente como meios, mas como fins em si mesmo) e devem oferecer
seu livre assentimento através de representantes” KANT, Immanuel. A metafísica dos costumes. Bauru:
Edipro, 2008, p. 188.

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Essa noção kantiana da dignidade da pessoa humana em seu aspecto nu-


clear pode ser traduzida, em termos jurídicos, como o “mínimo existencial” que
consubstancia, a um só tempo, pressuposto e finalidade do Estado Democrático
de direito que tem a justiça social como fim da ordem econômica.18 Nessa encruzi-
lhada do direito constitucional internacional, há uma tensão e reforço mútuo entre
autonomia privada e pública.
Por fim, o valor comunitário representa, para Luís Roberto Barroso, os com-
promissos, valores e crenças do indivíduo inserido em determinado grupo social,
envolvendo a comunidade, a Administração pública e o próprio sistema demo-
crático. Em suas próprias palavras, “a dignidade, por essa vertente, não tem na
liberdade seu componente central, mas, ao revés, é a dignidade que molda o
conteúdo e o limite da liberdade”.19 A dignidade, como valor comunitário, possui
uma dimensão heterônoma. Destina-se a promover objetivos diversos, dentre os
quais se destacam: a) a proteção do próprio indivíduo contra atos autorreferentes;
b) a proteção de direitos de terceiros; e c) a proteção de valores sociais, inclusive
a solidariedade.
Trata-se de uma proposta extremamente clara, objetiva e operacional para a
jurisdição constitucional e para a jurisdição em geral: valor intrínseco, autonomia
e valor comunitário. Não concordamos, contudo, em integrar o valor comunitário,
como elemento constitutivo da dignidade da pessoa humana. O valor comunitário
representa muito mais um limite à autonomia e, portanto, à própria dignidade
humana. Por outro lado, as reflexões presentes nesse item não podem simples-
mente ser descartadas sem levar em consideração a dimensão intersubjetiva ou
construída socialmente da dignidade que transcende a dimensão simplesmente
ontológica da dignidade (valor intrínseco e autonomia).20
Mais consistente nesse aspecto, por isso, revela-se a tese de titularidade de
Daniel Sarmento, quando propõe os seguintes elementos centrais para dignidade
da pessoa humana: (i) valor intrínseco; (ii) autonomia; (iii) mínimo existencial; e
(iv) reconhecimento.21 Em linhas gerais, Daniel Sarmento destaca como, histori-
camente, a dignidade deixa de ser um privilégio de uma minoria e se torna um
princípio universal, preocupado, não com o sujeito abstrato, mas com a pessoa

18
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. In: Poder
Constituinte e poder popular. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 144 e ss.
19
BARROSO, Luís Roberto. A dignidade da pessoa humana no direito constitucional contemporâneo: a cons-
trução de um conceito jurídico à luz da jurisprudência mundial. Belo Horizonte: Fórum, 2014, p. 28.
20
Sobre as dimensões ontológica e intersubjetiva, Cf. SARLET, Ingo. As dimensões da dignidade da pessoa
humana: construindo uma compreensão jurídico constitucional necessária e possível. Revista Brasileira
de Direito Constitucional n. 09, 2007.
21
SARMENTO, Daniel. Dignidade da pessoa humana na ordem constitucional brasileira: conteúdo, trajetórias
e metodologia. Rio de Janeiro: Tese de Titularidade de Direito Constitucional da UERJ, 2015, p. 87 e ss.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

concreta e socialmente enraizada. A ideia originalmente religiosa e filosófica torna-­


se uma norma jurídica vinculante com os elementos mencionados. Os dois primei-
ros elementos já foram abordados de forma suficiente para a limitada pretensão
desse trabalho. Vejamos os dois últimos.
O mínimo existencial é apresentado a partir de três visões.22 A primeira, na
linha do Pensamento de John Rawls, compreende o mínimo como mínimo so-
cial, uma condição para o exercício das liberdades primárias.23 A segunda, na
linha de Jürgen Habermas, descreverá o mínimo como condições para participa-
ção em uma sociedade democrática.24 A terceira, perfilhando o pensamento de
Ernest Tugendat, descreverá o mínimo como necessidades básicas. O prof. Daniel
Sarmento pontua que as duas primeiras condicionam o mínimo existencial à li-
berdade ou à democracia, enquanto a última trata o mínimo como um argumento
independente. Rejeita tentativas de definir com precisão o conceito de mínimo
existencial25 com objetivo de, mantendo a sua natural abertura, preservar neces-
sidades vitais básicas variadas, como até mesmo o meio ambiente, sem o qual
não há vida digna.
O direito fundamental ao reconhecimento nasce como um desdobramento
da dignidade humana, igualdade e solidariedade. Em sua faceta negativa, veda
práticas que desrespeitem a identidade das pessoas ou as estigmatizem. Em seu
aspecto positivo, impõe medidas para combater, vedar e superar esses estigmas,
preconceitos e discriminações. Trata-se de um imperativo de adaptação ou aco-
modação razoável das minorias ou grupos vulneráveis, como deficientes, minorias
religiosas ou povos indígenas. Como bem destaca Daniel Sarmento, a “falta de
reconhecimento oprime, instaura hierarquias, frustra a autonomia e causa sofri-
mento”. Essa falta de reconhecimento sistemática traz reflexos para as relações
econômicas e sociais, ao reduzir oportunidades a certos grupos e a dificultar o
acesso a posições. Note-se que essa dimensão do princípio da dignidade da pes-
soa humana acentua o que há de intersubjetivo na dignidade a partir da noção de
reconhecimento.
É verdade que alguns elementos comuns entre as análises de Barroso e
de Sarmento, como o mínimo existencial que, para Barroso, estaria no interior

22
Para uma visão mais ampla sobre o mínimo e seus aspectos conceituais, Cf. LOBO TORRES, Ricardo. O
Direito ao mínimo existencial. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 35 e ss.
23
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 239-488. RAWLS, John. Justiça
como equidade: uma reformulação. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 12-18 e p. 30 e 33.
24
HABERMAS, Jurgen. Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia. In: A inclusão do outro,
estudos de teoria política. São Paulo: Edições Loyola, 2007, p. 293-298.
25
Concebendo o mínimo como educação fundamental, saúde básica, assistência social e acesso à justiça,
Cf. BARCELLOS, Ana Paula de. A eficácia jurídica dos princípios constitucionais: o princípio da dignidade
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 305 e ss.

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

da autonomia como elemento da dignidade. Ainda assim, a arrumação proposta


por Sarmento tem o mérito de construir um conceito de dignidade da pessoa
humana de forma mais coerente do ponto de vista filosófico, a partir da noção de
dignidade como autonomia em bases menos individualistas. O destaque conferido
pelo autor ao mínimo existencial e ao reconhecimento, nesse sentido, acentua a
dimensão intersubjetiva da dignidade e atenta para violações ao igual respeito e
consideração de todos os seres humanos, o que é particularmente relevante para
o Brasil e para América Latina.
Adotaremos uma combinação entre o pensamento de Barroso e Sarmento
para ler a dignidade na pessoa humana no sistema interamericano: (i) valor intrín-
seco; (ii) autonomia; e (iii) reconhecimento.26 Em primeiro lugar, a abordagem se
justifica, porque no plano interno da jurisdição constitucional, a dignidade humana
como mínimo existencial é utilizada para judicialização de direitos sociais com
mais intensidade do que no plano internacional das Cortes de Direitos Humanos.
Em segundo lugar, a ideia de reconhecimento traduz melhor do que a expressão
valor comunitário as preocupações contemporâneas dos tratados interamericanos
de direitos humanos com a proteção de minorias ou grupos em situação de vulne-
rabilidade, como crianças, deficientes, negros, índios, mulheres, gays, lésbicas,
transexuais e intersexuais.

3  A dignidade da pessoa humana no sistema interamericano


de proteção aos direitos humanos
A dignidade da pessoa humana é um princípio que possui uma importante
função interpretativa no sistema interamericano de proteção aos direitos huma-
nos. É o que se constata pelo fato de a “dignidade”, a “pessoa humana”, “direi-
tos da pessoa”, “dignidade da pessoa humana”, “dignidade inerente à pessoa
humana” ou apenas o “ser humano” aparecer de variadas formas na maioria dos
preâmbulos de variadas Convenções interamericanas destinadas à proteção dos
direitos humanos.
Os preâmbulos, embora desprovidos para alguns de normatividade,27 pos-
suem geralmente relevante função hermenêutica por desvelar as intenções
subjacentes às Constituições. Em relação aos tratados, costumam auxiliar na

Optei por diluir o mínimo existencial dentre uma dessas três facetas.
26

No Brasil, compreende-se que o preâmbulo não tem força normativa, mas apenas interpretativa, conforme
27

ficou decidido em conhecido caso que não se declarou a inconstitucionalidade do preâmbulo da Constituição
do Acre que não reproduziu o “sob a proteção de Deus”, optando por empregar a expressão “inspirados
nos heróis da revolução acreana”. Cf. STF, ADI nº 2076, Rel. Min. Carlos Velloso, J. 15.08.2002.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

compreensão de seu contexto, conforme prevê o art. 31 da Convenção de Viena.28


A partir dos preâmbulos e dos dispositivos do corpo das Convenções que preveem
a dignidade explicitamente, destacaremos inicialmente como o sistema interame-
ricano dispõe sobre as diferentes dimensões da dignidade da pessoa humana
quanto ao (i) valor intrínseco; (ii) autonomia; e (iii) reconhecimento.
Em primeiro lugar, o valor intrínseco da pessoa humana está presente em
diversos preâmbulos das declaração e convenções interamericanas. Em geral,
designa-se o valor intrínseco pelas expressões “dignidade inerente à pessoa hu-
mana”, “inerente a todo ser humano” e das expressões “iguais em dignidade”,
presente sistematicamente nas convenções interamericanas, como a Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948,29 Convenção Interamericana
para Prevenir e Punir a Tortura de 1985,30 Convenção Interamericana para a
Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas Portadoras
de Deficiência de 199931 e na Convenção Interamericana contra o Racismo, a
Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância de 2013.32

28
No plano internacional, o tratado deve ser interpretado de boa-fé e à luz de seu contexto, objetivo e
finalidade, incluindo-se no “contexto” não só o texto, anexos e instrumentos conexos, mas também o
preâmbulo, conforme dispõe o art. 31 da Convenção de Viena de Direito dos Tratados de 1969.
29
Perceba-se, que, no preâmbulo da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948,
a dignidade aparece como uma característica de todos os homens que nascem livres e iguais e cujos
deveres exprimem a dignidade dessa liberdade. Confira-se: Preâmbulo: “Todos os homens nascem livres
e iguais em dignidade e direitos e, como são dotados pela natureza de razão e consciência, devem proceder
fraternalmente uns para com os outros. O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito de todos.
Direitos e deveres integram-se correlativamente em toda a atividade social e política do homem. Se os direitos
exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade”.
30
Note-se, que, no preâmbulo da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura de 1985, a
dignidade humana repele todo ato de tortura ou tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradan-
tes, reafirmando a “dignidade inerente à pessoa humana” e a necessidade de assegurar o exercício
pleno de liberdades e direitos fundamentais. Confira-se: “Reafirmando que todo ato de tortura ou outros
tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes constituem uma ofensa à dignidade humana
e uma negação dos princípios consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos e na Carta
das Nações Unidas, e são violatórios dos direitos humanos e liberdades fundamentais proclamados
na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos do
Homem; Reiterando seu propósito de consolidar neste Continente as condições que permitam o reco-
nhecimento e o respeito da dignidade inerente à pessoa humana e assegurem o exercício pleno de suas
liberdades e direitos fundamentais”.
31
Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Pessoas
Portadoras de Deficiência (1999), Preâmbulo: “Reafirmando que as pessoas portadoras de deficiência
têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que outras pessoas e que estes direitos,
inclusive o direito de não ser submetidas a discriminação com base na deficiência, emanam da dignidade
e da igualdade que são inerentes a todo ser humano”.
32
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância
de 2013, Preâmbulo: “OS ESTADOS PARTES NESTA CONVENÇÃO, CONSIDERANDO que a dignidade ineren-
te e a igualdade de todos os membros da família humana são princípios básicos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial”.

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Vale a pena conferir, ainda, o preâmbulo da Convenção Interamericana sobre


Desaparecimento Forçado de Pessoas de 1994. A dignidade inerente à pessoa
humana possui caráter irrevogável e impõe o reconhecimento de que o desapare-
cimento forçado viola múltiplos direitos fundamentais, constituindo um crime de
lesa-humanidade.33
Dentre as Convenções, merece destaque pela clareza o preâmbulo da
Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, também conhecida como
Pacto de São José da Costa Rica. É nele que o valor intrínseco da pessoa humana
fica melhor expresso, porque exibe uma declaração de que a exigência de prote-
ção dos direitos do homem deriva não de ser nacional de determinado Estado,
mas sim pelo “ fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana”.34
Decorre desse imperativo a proteção convencional, coadjuvante ou complementar
ao direito interno pelo único fato de existir e não porque a pessoa possui um
talento especial ou porque integra uma casta, etnia ou grupo. Em outras palavras,
a dignidade não é construída, mas sim é inerente à pessoa humana.
Nesse sentido, a dignidade consta, no corpo da Convenção, explicitamente
relacionada ao direito à integridade pessoal e à vedação à tortura, a penas cruéis,
desumanas ou degradantes (art. 5º35), à proibição da escravidão, da servidão e a

33
Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas de 1994, Preâmbulo: “REA­
FIRMANDO que o verdadeiro sentido da solidariedade americana e da boa vizinhança só pode ser o de
consolidar neste Hemisfério, no quadro das instituições democráticas, um regime de liberdade individual
e de justiça social, fundado no respeito dos direitos essenciais do homem;
CONSIDERANDO que o desaparecimento forçado de pessoas constitui uma afronta à consciência do
Hemisfério e uma grave ofensa de natureza hedionda à dignidade inerente à pessoa humana, em contra-
dição com os princípios e propósitos consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos;
CONSIDERANDO que o desaparecimento forçado de pessoas viola múltiplos direitos essenciais da pessoa
humana, de caráter irrevogável, conforme consagrados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos,
na Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem e na Declaração Universal dos Direitos
Humanos;
RECORDANDO que a proteção internacional dos direitos humanos é de natureza convencional coadjuvante
ou complementar da que oferece o direito interno, e tem como fundamento os atributos da pessoa humana;
REAFIRMANDO que a prática sistemática do desaparecimento forçado de pessoas constitui um crime de
lesa-humanidade”.
34
Convenção Americana sobre Direitos Humanos de 1969, Preâmbulo: “Reconhecendo que os direitos
essenciais do homem não derivam do fato de ser ele nacional de determinado Estado, mas sim do
fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção
internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno
dos Estados americanos”.
35
Convenção Americana Sobre Direitos Humanos de 1969, “Artigo 5. Direito à integridade pessoal 1. Toda
pessoa tem o direito de que se respeite sua integridade física, psíquica e moral. 2. Ninguém deve ser
submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes. Toda pessoa privada
da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano. 3. A pena não
pode passar da pessoa do delinqüente. 4. Os processados devem ficar separados dos condenados,
salvo em circunstâncias excepcionais, e ser submetidos a tratamento adequado à sua condição de
pessoas não condenadas. 5. Os menores, quando puderem ser processados, devem ser separados dos

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

necessidade de preservar a dignidade humana do recluso (art. 6º36), à proteção


da honra, vida privada e reputação contra ingerências e ofensas ilegais (art. 1137).
Em relação à autonomia como elemento da dignidade humana, vale atentar
para o preâmbulo do Protocolo adicional à Convenção Americana sobre Direitos
Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1988, tam-
bém conhecido como Protocolo de Salvador. Ele chama atenção para a interde-
pendência que existe entre direitos ditos de primeira geração (civis e políticos) e
de segunda geração (econômicos, sociais e culturais). Destaca, expressamente,
que “as diferentes categorias de direito constituem um todo indissolúvel que en-
contra sua base no reconhecimento da dignidade da pessoa humana”, bem como
a necessidade “de consolidar na América, com base no respeito pleno dos direitos
da pessoa, o regime democrático representativo de governo, bem como o direito de
seus povos ao desenvolvimento, à livre determinação e a dispor livremente de suas
riquezas e recursos naturais”.
Em outras palavras, tanto a autonomia privada, quanto a pública são fun-
damentais para a proteção da dignidade da pessoa humana. De um lado, a dig-
nidade como autonomia privada encontra consistente formulação na Declaração
Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948 que associa a “dignidade
da pessoa e do lar” ao direito de propriedade apto a manter as “necessidades
essenciais de uma vida decente” (art. XXIII38).

adultos e conduzidos a tribunal especializado, com a maior rapidez possível, para seu tratamento. 6. As
penas privativas da liberdade devem ter por finalidade essencial a reforma e a readaptação social dos
condenados”.
36
“Artigo 6. Proibição da escravidão e da servidão 1. Ninguém pode ser submetido a escravidão ou a ser-
vidão, e tanto estas como o tráfico de escravos e o tráfico de mulheres são proibidos em todas as suas
formas. 2. Ninguém deve ser constrangido a executar trabalho forçado ou obrigatório. Nos países em que
se prescreve, para certos delitos, pena privativa da liberdade acompanhada de trabalhos forçados, esta
disposição não pode ser interpretada no sentido de que proíbe o cumprimento da dita pena, imposta por
juiz ou tribunal competente. O trabalho forçado não deve afetar a dignidade nem a capacidade física e inte-
lectual do recluso. 3. Não constituem trabalhos forçados ou obrigatórios para os efeitos deste artigo: a. os
trabalhos ou serviços normalmente exigidos de pessoa reclusa em cumprimento de sentença ou resolução
formal expedida pela autoridade judiciária competente. Tais trabalhos ou serviços devem ser executados
sob a vigilância e controle das autoridades públicas, e os indivíduos que os executarem não devem ser pos-
tos à disposição de particulares, companhias ou pessoas jurídicas de caráter privado; b. o serviço militar e,
nos países onde se admite a isenção por motivos de consciência, o serviço nacional que a lei estabelecer
em lugar daquele; c. o serviço imposto em casos de perigo ou calamidade que ameace a existência ou o
bem-estar da comunidade; e d. o trabalho ou serviço que faça parte das obrigações cívicas normais.”
37
“Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao
reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em
sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais
à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais
ofensas.”
38
Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem de 1948, “Artigo XXIII. Toda pessoa tem direito à
propriedade particular correspondente às necessidades essenciais de uma vida decente, e que contribua
a manter a dignidade da pessoa e do lar”.

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

Por outro lado, o Protocolo de San Salvador consigna, em afinada harmonia


com a autonomia privada, a dignidade como autonomia pública a partir do direito
à educação. Determina que a educação deve capacitar todos as pessoas para o
pleno desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade,
bem como para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista
(art. 13, 2).39
Por fim, quanto à dimensão mais intersubjetiva, relacionada especialmente ao
reconhecimento, é possível destacar situações específicas de direitos humanos
relacionados às mulheres, aos negros, aos índios e outros grupos em situações de
vulnerabilidade. Destaca-se, inicialmente, o preâmbulo da Convenção Interamericana
para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher de 1994, também co-
nhecida como Convenção de Belém do Pará. Pontua-se, aqui, a violência contra a
mulher como uma ofensa à dignidade humana e de relações historicamente desi-
guais. Perceba-se que, a partir dessa Convenção, a dignidade começa a adquirir
um caráter mais concreto e palpável, que busca empoderar o ser humano em suas
circunstâncias concretas, na construção de sua identidade intersubjetivamente e
não mais de forma abstrata.40
A Convenção de Belém do Pará de 1994, sem dúvida, representa um marco
muito relevante no sistema interamericano na compreensão da dignidade humana,
especialmente, quando trata do tema diretamente em dois artigos que dispõem
sobre a dignidade da mulher. O art. 4º positiva o direito ao reconhecimento, desfrute,
exercício e proteção de todos os direitos humanos e liberdades, destacando o
direito à vida, segurança e integridade física, mental e moral. É interessante notar
a alínea “e” como um chamamento ao respeito à “dignidade inerente à sua pessoa
e a que se proteja sua família”.41 O art. 8º, por sua vez, destaca os programas e

39
Protocolo Adicional à Convenção Americana Sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos,
Sociais e Culturais, de 1988, “Artigo 13 Direito à educação 1. Toda pessoa tem direito à educação.
E 2. Os Estados Partes neste Protocolo convêm em que a educação deverá orientar-se para o pleno
desenvolvimento da personalidade humana e do sentido de sua dignidade e deverá fortalecer o respeito
pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela
paz. Convêm, também, em que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente
de uma sociedade democrática e pluralista, conseguir uma subsistência digna, favorecer a compreensão,
a tolerância e a amizade entre todas as nações e todos os grupos raciais, étnicos ou religiosos e promover
as atividades em prol da manutenção da paz”.
40
Convenção de Belém do Pará de 1994, Preâmbulo: “PREOCUPADOS por que a violência contra a mulher
constitui ofensa contra a dignidade humana e é manifestação das relações de poder historicamente desiguais
entre mulheres e homens”.
41
Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra A Mulher, de 1994, “Artigo 4
Toda mulher tem direito ao reconhecimento, desfrute, exercício e proteção de todos os direitos humanos e
liberdades consagrados em todos os instrumentos regionais e internacionais relativos aos direitos humanos.
Estes direitos abrangem, entre outros: a. direito a que se respeite sua vida; b. direito a que se respeite sua
integridade física, mental e moral; c. direito à liberdade e à segurança pessoais; d. direito a não ser submeti-
da a tortura; e. direito a que se respeite a dignidade inerente à sua pessoa e a que se proteja sua família; f.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

as medidas específicas dirigidas às instituições de educação, ao Poder Judiciário,


à polícia e aos meios de comunicação para combater preconceitos, costumes e
práticas baseadas na premissa da inferioridade ou superioridade de qualquer dos
gêneros ou nos papéis estereotipados para o homem e a mulher. O art. 8º “g”
incentiva que os meios de comunicação formulem diretrizes que contribuam para
erradicação da violência contra a mulher e enalteçam o “respeito pela dignidade
da mulher”.42
No mesmo sentido, o preâmbulo da Convenção Interamericana contra o
Racismo, a Discriminação Racial e formas Correlatas de Intolerância, de 2013,
reafirma a dignidade inerente e a igualdade de todos os membros da família hu-
mana, vedando o racismo, a discriminação e a intolerância por representarem a
negação de “valores universais e de direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa
humana”. O ponto mais interessante do preâmbulo da Convenção, porém, refere-­
se ao reconhecimento de que certos grupos, minoritários ou não, vivenciam for-
mas múltiplas e extremas de racismo, discriminação e intolerância por conta de
fatores, como “raça, cor, ascendência, origem nacional ou étnica”, que prejudicam
a possibilidade de “expressar, preservar e desenvolver sua identidade” individual
ou coletivamente, de modo que é necessário “proteger o projeto de vida de indiví-
duos e comunidades em risco de exclusão e marginalização”.43

direito a igual proteção perante a lei e da lei; g. direito a recurso simples e rápido perante tribunal competente
que a proteja contra atos que violem seus direitos; h. direito de livre associação; i. direito à liberdade de
professar a própria religião e as próprias crenças, de acordo com a lei; e j. direito a ter igualdade de acesso
às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões”.
42
“Artigo 8 Os Estados Partes convêm em adotar, progressivamente, medidas específicas, inclusive progra-
mas destinados a: (...) g. incentivar os meios de comunicação a que formulem diretrizes adequadas de
divulgação, que contribuam para a erradicação da violência contra a mulher em todas as suas formas e
enalteçam o respeito pela dignidade da mulher;”
43
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância
de 2013, Preâmbulo: “OS ESTADOS PARTES NESTA CONVENÇÃO, CONSIDERANDO que a dignidade ineren-
te e a igualdade de todos os membros da família humana são princípios básicos da Declaração Universal
dos Direitos Humanos, da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, da Convenção
Americana sobre Direitos Humanos e da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial;
REAFIRMANDO o firme compromisso dos Estados membros da Organização dos Estados Americanos
com a erradicação total e incondicional do racismo, da discriminação racial e de todas as formas de
intolerância, e sua convicção de que essas atitudes discriminatórias representam a negação dos valo-
res universais e dos direitos inalienáveis e invioláveis da pessoa humana e dos propósitos e princípios
consagrados na Carta da Organização dos Estados Americanos, na Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem, na Convenção Americana sobre Direitos Humanos, na Carta Social das Américas,
na Carta Democrática Interamericana, na Declaração Universal dos Direitos Humanos, na Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial e na Declaração Universal
sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos;
CONVENCIDOS de que determinadas pessoas e grupos vivenciam formas múltiplas ou extremas de racis-
mo, discriminação e intolerância, motivadas por uma combinação de fatores como raça, cor, ascendência,
origem nacional ou étnica, ou outros reconhecidos em instrumentos internacionais;

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

Nessa Convenção, a dignidade é associada à proteção contra a intolerância e


a discriminação racional direta, indireta ou múltipla, baseadas em características,
opiniões ou convicções das pessoas, que possam operar em relação a certos
grupos, especialmente os em condições de vulnerabilidade, num processo de
marginalização e exclusão da participação nas esferas da vida pública ou privada
(art. 1º44). A dignidade aparece, ainda, como uma vedação à realização ou uso de

LEVANDO EM CONTA que uma sociedade pluralista e democrática deve respeitar a raça, cor, ascendência
e origem nacional ou étnica de toda pessoa, pertencente ou não a uma minoria, bem como criar condições
adequadas que lhe possibilitem expressar, preservar e desenvolver sua identidade;
CONSIDERANDO que a experiência individual e coletiva de discriminação deve ser levada em conta para
combater a exclusão e a marginalização com base em raça, grupo étnico ou nacionalidade e para proteger
o projeto de vida de indivíduos e comunidades em risco de exclusão e marginalização;
ALARMADOS com o aumento dos crimes de ódio motivados por raça, cor, ascendência e origem nacional
ou étnica;
RESSALTANDO o papel fundamental da educação na promoção do respeito aos direitos humanos, da
igualdade, da não discriminação e da tolerância; e
TENDO PRESENTE que, embora o combate ao racismo e à discriminação racial tenha sido priorizado em
um instrumento internacional anterior, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Racial, de 1965, os direitos nela consagrados devem ser reafirmados, desenvolvidos,
aperfeiçoados e protegidos, a fim de que se consolide nas Américas o conteúdo democrático dos princípios
da igualdade jurídica e da não discriminação”.
44
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância
de 2013, “Artigo 1 Para os efeitos desta Convenção: 1. Discriminação racial é qualquer distinção, exclusão,
restrição ou preferência, em qualquer área da vida pública ou privada, cujo propósito ou efeito seja anular
ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em condições de igualdade, de um ou mais direitos
humanos e liberdades fundamentais consagrados nos instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados
Partes. A discriminação racial pode basear-se em raça, cor, ascendência ou origem nacional ou étnica. 2.
Discriminação racial indireta é aquela que ocorre, em qualquer esfera da vida pública ou privada, quando
um dispositivo, prática ou critério aparentemente neutro tem a capacidade de acarretar uma desvantagem
particular para pessoas pertencentes a um grupo específico, com base nas razões estabelecidas no Artigo
1.1, ou as coloca em desvantagem, a menos que esse dispositivo, prática ou critério tenha um objetivo
ou justificativa razoável e legítima à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos. 3. Discriminação
múltipla ou agravada é qualquer preferência, distinção, exclusão ou restrição baseada, de modo
concomitante, em dois ou mais critérios dispostos no Artigo 1.1, ou outros reconhecidos em instrumentos
internacionais, cujo objetivo ou resultado seja anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em
condições de igualdade, de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais consagrados nos
instrumentos internacionais aplicáveis aos Estados Partes, em qualquer área da vida pública ou privada.
4. Racismo consiste em qualquer teoria, doutrina, ideologia ou conjunto de ideias que enunciam um
vínculo causal entre as características fenotípicas ou genotípicas de indivíduos ou grupos e seus traços
intelectuais, culturais e de personalidade, inclusive o falso conceito de superioridade racial. O racismo
ocasiona desigualdades raciais e a noção de que as relações discriminatórias entre grupos são moral
e cientificamente justificadas. Toda teoria, doutrina, ideologia e conjunto de ideias racistas descritas
neste Artigo são cientificamente falsas, moralmente censuráveis, socialmente injustas e contrárias aos
princípios fundamentais do Direito Internacional e, portanto, perturbam gravemente a paz e a segurança
internacional, sendo, dessa maneira, condenadas pelos Estados Partes. 5. As medidas especiais ou de
ação afirmativa adotadas com a finalidade de assegurar o gozo ou exercício, em condições de igualdade,
de um ou mais direitos humanos e liberdades fundamentais de grupos que requeiram essa proteção
não constituirão discriminação racial, desde que essas medidas não levem à manutenção de direitos
separados para grupos diferentes e não se perpetuem uma vez alcançados seus objetivos. 6. Intolerância é
um ato ou conjunto de atos ou manifestações que denotam desrespeito, rejeição ou desprezo à dignidade,

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

pesquisas sobre o genoma humano para seleção ou clonagem humana que gere
discriminações fundadas em características genéticas (art. 4º45).
Nesse ano de 2016, a OEA aprovou a Declaração Americana sobre os direi-
tos dos Povos Indígenas, que destaca a importância da jurisdição de cada Estado
conduza o direito das pessoas indígenas com direito de plena representação com
dignidade e igualdade frente à lei (art. XXI), bem como que os direitos da conven-
ção sejam um standard mínimo para sua sobrevivência, dignidade e bem-estar
(art. XLI). Essa declaração e a jurisprudência em matéria de direitos indígenas co-
locam em evidência os limites, dado o caráter inevitavelmente antropocêntrico, de
pensar a dignidade da pessoa humana como chave central dos direitos humanos
fundamentais. É preciso de um lado acentuar a dimensão do reconhecimento para
incluir a proteção desse grupo vulnerável e, de outro, pensar em outras chaves
que incluam cosmologias biocêntricas ou geocêntricas.46

4  A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos


Humanos
A maioria dos casos da Corte Interamericana de Direitos Humanos que em-
prega explicitamente a “dignidade da pessoa humana” como argumento versam
sobre a violência contra detentos, o encarceramento em condições desumanas,
desaparecimentos forçados e execuções extrajudiciais. A pesquisa até abril de
2016 com o critério “dignidad” revela 158 manifestações da Corte IDH, dentre
as quais há 48 casos contenciosos, 16 medidas provisórias e 65 supervisões de
sentença. Não pretendemos realizar uma análise exaustiva do uso da dignidade
da pessoa humana em cada uma dessas decisões. Tomaremos apenas algumas

características, convicções ou opiniões de pessoas por serem diferentes ou contrárias. Pode manifestar-
se como a marginalização e a exclusão de grupos em condições de vulnerabilidade da participação em
qualquer esfera da vida pública ou privada ou como violência contra esses grupos”.
45
Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância
de 2013, “Artigo 4 Os Estados comprometem-se a prevenir, eliminar, proibir e punir, de acordo com suas
normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, todos os atos e manifestações de racis-
mo, discriminação racial e formas correlatas de intolerância, inclusive: (...) xiii. realização de pesquisas ou
aplicação dos resultados de pesquisas sobre o genoma humano, especialmente nas áreas da biologia,
genética e medicina, com vistas à seleção ou à clonagem humana, que extrapolem o respeito aos direitos
humanos, às liberdades fundamentais e à dignidade humana, gerando qualquer forma de discriminação
fundamentada em características genéticas”.
46
A esse respeito, seria positiva uma maior aproximação da Corte IDH com a experiência das Constituições
e jurisprudência da Corte Constitucional do Equador e do Tribunal Plurinacional da Bolívia com a pachama-
ma, a mãe terra nesse sentido é promissora. A Corte IDH deveria ampliar o diálogo com essa literatura
e jurisprudência quando se deparar com direitos dos povos originários. Cf. LEGALE, Siddharta. O que é
a vida nas Cortes do novo constitucionalismo latino-americano. Publicum, n. 2, 2016. Disponível em:
<http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/publicum/article/view/23684>.

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

decisões como metonímias da compreensão da Corte Interamericana em suas


múltiplas dimensões.
Destacamos, preliminarmente, apenas que é possível achar outros temas
além dos mais comuns mencionados acima. Os temas escolhidos envolvem de
forma indissociável as três dimensões apontadas para a dignidade, quais sejam,
valor intrínseco, autonomia e reconhecimento de direitos de certos grupos vulne-
ráveis. Apenas para fins didáticos, agruparemos a seguir os casos nesses três
eixos da dignidade, ressaltando o elemento preponderante em cada um deles.
Selecionaremos casos sobre temáticas, anos, relatores e espécies de decisão
diferentes, que sejam capazes de fornecer uma visão geral da forma como a Corte
Interamericana aplica a dignidade da pessoa humana.
Em relação ao valor intrínseco, é possível destacar o caso Velazquez
Rodriguez vs. Honduras (1988).47 A Corte IDH vedou o tratamento cruel e desu-
mano, com base no art. 5º da Convenção Americana, por entender que a prática
sistemática do Estado de desaparecer com as pessoas violava a dignidade huma-
na. Afirmou que “Nenhuma atividade do Estado pode fundar-se sobre o despre-
zo à dignidade humana”. O isolamento e a total falta de comunicação do preso
constituem uma ofensa à dignidade que lhe é inerente. O valor inerente à pessoa
humana, portanto, pressupõe o respeito e proteção permanente pelo Estado. Não
se trata de uma exigência episódica, pontual ou circunstancial. Nem mesmo o fato
de alguém haver cometido um crime, por mais grave que seja, permite ou deve
permitir que o Estado lhe dispa da dignidade. Reitere-se: dignidade essa que é
inerente a qualquer ser humano.48
No caso Presídio Miguel Castro vs Peru (2006), a Corte IDH responsabilizou
o Estado peruano pela violação dos direitos humanos em prejuízo de 42 deten-
tos que faleceram, 175 detentos que ficaram feridos e 322 detentos que foram
submetidos a tratamento cruel, desumano e degradante, inclusive em relação às
reclusas que permaneceram durante prolongado período de nudez forçada. Os
detentos e seus familiares foram tratados como terroristas, havendo uma inter-
venção policial desproporcional, sem que sequer houvesse rebelião ou motim.
Em denso voto concorrente, refletindo sobre a violência crônica e generali-
zada do caso que envolveu a prisão de integrantes do grupo chamada Sendero
Luminoso, Cançado Trindade discorre sobre a importância para se atribuir o pri-
mado do direito em relação à força, da justiça em relação à vingança privada.
Destacou o acesso direto à justiça como um imperativo do jus cogens. Talvez

Em sentido semelhante, confira-se: Neira Alegría e outros vs. Peru (1995).


47

MONSALVE, Viviana Bohórquez; e ROMÁN, Javier Aguirre. As tensões da dignidade humana: conceituação
48

e aplicação no direito internacional dos direitos humanos. SUR, v. 6, n. 11, p. 53, 2009.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

esse seja o voto que melhor reflete expressamente sobre o conceito de dignidade
da pessoa humana no sistema interamericano. A partir do pensamento kantiano,
afirma:

Se pode daqui extrair algumas ilações. Em primeiro lugar, o impera-


tivo kantiano está sempre presente, quando se trata de defender e
preservar a dignidade da pessoa humana, a dignidade de sua própria
humanidade. Em segundo lugar, incide em todas as esferas de rela-
cionamento humano, tanto nas relações de um com agentes do poder
público ou estatal, como com outros seres humanos, com particula-
res. Em terceiro lugar, pode ser invocado na proteção de cada pessoa
humana isoladamente, assim como de grupos de pessoas ameaça-
das ou lesionadas. E, em quarto lugar, pode ser invocado na salva-
guarda de distintos direitos humanos a ser protegidos. (Tradução livre)

Perceba-se que as três dimensões, pontuadas pelo Juiz Cançado Trindade,


identificam-se perfeitamente com as dimensões referidas anteriormente: (i) valor
intrínseco com a “dignidade de sua própria humanidade”; (ii) autonomia para as
relações “com agentes do poder público ou estatal, como com outros seres huma-
nos, com particulares”; e (iii) reconhecimento com “grupo de pessoas ameaçados
ou lesionados” para salvaguarda de diferentes direitos humanos.
Em passagem particularmente sensível do voto, Cançado Trindade destaca
que um Tribunal Internacional como a Corte Interamericana não diz apenas o di-
reito, mas realiza a justiça e restaura a dignidade das vítimas. Para tanto, porém,
deve ser capaz de permitir o acesso às vítimas, que falem livremente, que sejam
ouvidas, como uma forma de restaurar a justiça. Atente-se para o fato de que o
acesso à justiça nessa hipótese não é apenas instrumental, mas uma das formas
próprias de reparação da dignidade das vítimas ao serem ouvidas. A vítima vê
reconhecida a sua condição de sujeito de direito a partir de sua própria voz.
Em 2014, a Corte deferiu uma medida provisória em relação ao Presídio
de Pedrinhas no Maranhão onde estavam acontecendo violações gravíssimas à
dignidade da pessoa humana em sua dimensão nuclear. Houve decapitações,
dissecação de uma perna, perfurações, disseminação de AIDS, tuberculose e le-
pra no ano de 2013. Poderíamos ser levados a crer que estamos em uma “mas-
morra medieval”49 pelas condições aviltantes ao valor inerente ao ser humano.

Como bem destacou o prof. Daniel Sarmento, lembrando a fala do Ministro da Justiça José Eduardo
49

Cardoso, a situação dos presídios no Brasil é sem exagero semelhante às “masmorras medievais” ou
“infernos dantescos”. O cenário é composto por “celas superlotadas, imundas e insalubres, proliferação
de doenças infectocontagiosas, comida intragável, temperaturas extremas, falta de água potável e de

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

O local, porém, é mesmo um Presídio no Maranhão. Os fatos foram amplamente


noticiados na mídia inclusive com vídeos e fotos. Infelizmente, não se trata de
um caso atual ou isolado. O Brasil já foi condenado por violação de direitos pela
Corte Interamericana no caso do Presídio Urso Branco em Rondônia por conta de
uma chacina em 2002, bem como por mortes decorrentes de uma rebelião no
Presídio de Curado em Pernambuco em 2013, que inclusive estão sendo também
objeto de medidas provisórias pela Corte Interamericana. Onze anos se passaram.
Mudou o presídio, mas permanece – ou talvez tenha se agravado – o dramático
quadro de violação aos direitos humanos fundamentais.
O caso teve ensejo com pedido da Comissão Interamericana de Direitos
Humanos à Corte Interamericana para que fossem adotadas medidas provisórias,
nos termos do art. 63, 2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com o
objetivo de preservar os direitos fundamentais à vida e à integridade física dos
presos em função da superlotação, assassinatos, torturas, atos de extrema vio-
lência e violações graves à integridade física dos presos pelos próprios presos,
por agentes privados responsáveis pela vigilância e monitoramento dos presídios
e por agentes públicos.
A Comissão Interamericana solicitou a adoção de medidas que logrem o
efetivo controle do Centro Penitenciário em respeito aos direitos humanos das
pessoas privadas de liberdade, como, por exemplo, a identificação e eliminação
do tráfico de armas no interior do presídio, a diminuição dos elevados índices
de superlotação e, ainda, a prestação de serviços de saúde, especialmente aos
reclusos portadores de enfermidades contagiosas de modo a evitar a propagação
das mesmas.
Por essa razão, a Corte Interamericana determinou que fossem adotadas
e monitoradas as providências para garantir a vida, integridade pessoal e “con-
dições de detenção mínimas compatíveis com sua dignidade”, inclusive com a
obrigação de o estado informar os avanços a cada três meses.
Em relação à autonomia, destaco o caso Artavia Murillo Y Otros vs. Costa
Rica (2012) pelas importantes reflexões sobre a dignidade humana e a autonomia
privada da mulher. A Corte IDH analisou demandas de uma série de casais que se
viram proibidos de realizar “fertilização in vitro” por um decreto do Poder Executivo
na Costa Rica. O Estado alegou que permitir o procedimento violaria a vida e a
dignidade dos embriões descartados no processo. Ao analisar a questão, recor-
rendo à literatura médica e aos tratados preparatórios da Convenção Americana
de Direitos Humanos, a Corte Interamericana explicitou o significado de pessoa

produtos higiênicos básicos.” SARMENTO, Daniel. Constituição e sociedade: as masmorras medievais e o


Supremo. Disponível em: <http://jota.info/constituicao-e-sociedade-masmorras-medievais-e-o-supremo>.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

nas expressões “toda pessoa”, presentes em seu interior, especialmente do art.


4º, referente ao direito à vida. Concluiu, por uma interpretação histórica e sistemá-
tica, que o embrião, resultado da fecundação entre óvulo e espermatozoide, não é
pessoa, porque essa só ocorre a partir da concepção dentro do corpo da mulher.
A Corte, sob essa premissa, entendeu que não se sustenta um direito ab-
soluto à vida do embrião em detrimento da autonomia de ter filhos por meio da
reprodução assistida como uma parte dos direitos à integridade, liberdade e vida
privada e familiar. Vale lembrar que, no art. 11 da Convenção Americana, digni-
dade e vida privada constam no mesmo dispositivo, prevendo a impossibilidade
de ingerências arbitrárias ou abusivas. Passou a analisar, por isso, a proporcio-
nalidade da intervenção restritiva estatal, rechaçando-a por propiciar um impac-
to desproporcional que, embora afete tanto homens quanto mulheres inférteis,
acaba por possuir um impacto diferenciado nas mulheres, contribuindo para uma
visão estereotipada. Consignou, ainda, que o fato de se perder alguns embriões,
como, aliás, não raro acontece na gravidez natural, não pode ser justificativa para
a proibição. Em passagem, particularmente inspirada do acórdão, fica clara essa
relação entre autonomia, vida privada e dignidade:

A proteção da vida privada abarca uma série de fatores relacionados


com a dignidade do indivíduo, incluindo, por exemplo, a capacidade
para desenvolver a própria personalidade e aspirações, determinar sua
própria identidade e definir suas próprias relações pessoais. O con-
ceito de vida privada engloba aspectos da identidade física e social,
incluindo o direito a autonomia pessoal, desenvolvimento pessoal e o
direito a estabelecer e desenvolver relações com outros seres huma-
nos e com o mundo exterior. A efetividade do exercício do direito à
vida privada é decisiva para a possibilidade de exercer a autonomia
pessoal sobre o futuro curso de eventos relevantes para a qualidade
de vida da pessoa. A vida privada inclui a forma em que o indivíduo vê
a si mesmo e como decide projetar-se para os demais, e é uma con-
dição indispensável para o livre desenvolvimento da personalidade.
Além do mais, a Corte tem destacado que a maternidade forma parte
essencial do livre desenvolvimento da personalidade das mulheres.
(Tradução livre)

Note-se, no trecho em destaque, que a dignidade pressupõe o exercício da


autonomia privada, da “capacidade para desenvolver a própria personalidade e
aspirações”, o que, no caso em questão, envolve a possibilidade de lançar mão
dos progressos científicos para aprimorar a sua qualidade de vida e exercer a
maternidade ou a paternidade.

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Quanto ao aspecto que relaciona a dignidade com a autonomia pública,


é possível ilustrar a problemática com o caso Vélez Restrepo y familiares vs.
Colombia (2012). O jornalista Luis Gonzalo Vélez Restrepo cobria uma manifesta-
ção na Colômbia em que a população se insurgia contra a política governamental
referente ao cultivo de coca. Durante protesto, houve conflito entre membros do
exército nacional e os manifestantes. Enquanto filmava a manifestação, o jornalis-
ta flagrou uma cena de abuso em que os militares violentavam um civil indefeso.
Ao perceberem, os militares se dirigiram ao cinegrafista e, de forma truculenta,
tomaram seu equipamento, destruindo-o completamente. Além disso, efetuaram
uma série de agressões físicas e morais ao ofendido. Apesar da tentativa de se
desvencilharem da fita, recuperou-se a gravação em que praticamente toda ação
foi gravada, sendo exibida em rede nacional.
Posteriormente, o senhor Vélez e sua família se tornaram alvos constantes
de intimidações e ameaças de morte. A situação se tornou ainda mais grave após
uma tentativa de sequestro contra ele. Apesar das medidas protetivas do estado,
Vélez decidiu que sua permanência, e de sua família, no país era insustentável. As
medidas protetivas atribuídas não seriam capazes de resguardar sua integridade
física e de sua família. O Estado da Colômbia reconheceu parte de sua responsa-
bilidade internacional perante a Corte Interamericana.
A CIDH decidiu que a atuação do estado da Colômbia foi negligente ao não
atuar de forma devida na investigação e condenação dos culpados. A omissão
da justiça configurou lesão direta à própria liberdade de expressão, princípio con-
sagrado pela Convenção. O interesse público está diretamente relacionado com
a necessidade de difusão de informações sem qualquer tipo de interferência,
tampouco, coerção por parte do Estado. A livre formação de opinião decorre da
autonomia individual e política do cidadão, revelando-se imprescindível para a pro-
teção de direitos fundamentais e do princípio democrático. A formação da opinião
coletiva pressupõe a garantia estatal da idoneidade e do livre desenvolvimento de
funções essenciais, como a imprensa.50 A dignidade relaciona-se justamente à
autonomia pública. A Corte determinou a indenização como medidas de reparação
pelos danos materiais e imateriais ao jornalista, mais especificamente, por viola-
ção à sua liberdade de expressão, honra, profissão e dignidade.
Em relação ao reconhecimento, vale ressaltar que a Corte Interamericana
costuma dedicar particular atenção a grupos de pessoas em situação de vulne-
rabilidade: mulheres, deficientes, pessoas em deslocamento forçado, indígenas,

Vale lembrar a Opinião Consultiva nº 3/85, segundo a qual o registro obrigatório do jornalista pode impedir
50

o acesso aos meios de comunicação social como veículo para se expressar ou para transmitir informação
é incompatível com o artigo 13 sobre os direitos humanos.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

crianças de rua etc.51 Essa é, por assim dizer, a dimensão intersubjetiva da digni-
dade da pessoa humana no sistema interamericano.
Um caso particularmente relevante para compreender essa dimensão da dig-
nidade da pessoa humana é Villagrán Morales e outros vs. Guatemala, conhecido
como Meninos de Rua vs. Guatemala (1999), que envolveu a tortura, sequestro
e assassinato de cinco jovens, dentre eles dois menores, que viviam nas ruas.
Foram colocados no porta-malas do carro e depois assassinados em uma região
conhecida como “Las casetas”. A Corte Interamericana reconheceu a omissão do
Estado na investigação para localizar os responsáveis.
Constata-se, além da violação ao valor inerente à vida humana, que veda
a tortura nos termos do art. 5º da Convenção Americana, também a violação da
dignidade humana das crianças, prevista na Convenção sobre direitos da criança,
especialmente os arts. 2852 e 37.53 Sobressaem do caso dois elementos que a
Corte tem utilizado para identificar e definir a violação à dignidade humana, quais
sejam, (i) condições especiais de vulnerabilidade das pessoas; e (ii) contexto
dos fatos violadores. Em cuidadoso voto concorrente, Cançado Trindade e Abreu
Burelli, após consignarem que o direito à vida integra jus cogens, afirmam:

O dever do Estado de tomar medidas positivas se acentua precisa-


mente em relação com a proteção da vida de pessoas vulneráveis
e indefesas, em situação de risco, como são os meninos de rua. A
privação arbitrária da vida não se limita, pois, ao ilícito do homicídio;
se estende igualmente a privação do direito de viver com dignidade.
Essa visão conceitua o direito à vida como pertencente, ao mesmo
tempo, ao domínio dos direitos civis e políticos, assim como os direi-
tos econômicos, sociais e culturais, ilustrando assim a inter-relação e
indivisibilidade de todos os direitos humanos. (Tradução livre)

51
Vale a pena conferir, a propósito, o inspirado capítulo 9 de: CANÇADO TRINDADE, Antônio Augusto. The
access of individuals to international justice. Oxford: Oxford University Press, 2011.
52
Convenção sobre os direitos da Criança (1990): “Artigo 28 1. Os Estados Partes reconhecem o direito
da criança à educação e, a fim de que ela possa exercer progressivamente e em igualdade de condições
esse direito, deverão especialmente: (...) 2. Os Estados-Partes adotarão todas as medidas necessárias
para assegurar que a disciplina escolar seja ministrada de maneira compatível com a dignidade humana
da criança e em conformidade com a presente convenção”.
53
Convenção sobre os direitos da Criança (1990): “Artigo 37 Os Estados Partes zelarão para que: (...) c)
toda criança privada da liberdade seja tratada com a humanidade e o respeito que merece a dignidade
inerente à pessoa humana, e levando-se em consideração as necessidades de uma pessoa de sua idade.
Em especial, toda criança privada de sua liberdade ficará separada dos adultos, a não ser que tal fato seja
considerado contrário aos melhores interesses da criança, e terá direito a manter contato com sua família
por meio de correspondência ou de visitas, salvo em circunstâncias excepcionais”.

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

Note-se que o direito à vida aqui foi tomado não apenas como o direito à
existência, mas o direito de viver com dignidade e de que o seu projeto existencial
não seja inviabilizado, o que é particularmente sensível na infância e adolescência
a exigir uma concepção interdependente de todos os direitos humanos.
No caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni vs. Nicaragua (2001), a
Corte Interamericana reconheceu que a ocupação tradicional e os recursos natu-
rais da comunidade indígena deveriam ser respeitados. Condenou o Estado por
outorgar um contrato de concessão florestal de madeira em seu território sem
sequer ouvir a comunidade. O fato violou uma combinação de direitos, como, por
exemplo, o direito à vida, honra, dignidade e propriedade. Determinou-se a cria-
ção de um mecanismo efetivo para delimitar, demarcar e conferir titularidade das
propriedades das comunidades indígenas, de acordo com seu direito costumeiro,
valores e usos.
Determinou, ainda, que, enquanto não ocorrer tal demarcação, deve se pro-
ceder com a sua aquiescência e tolerância, de modo a não afetar seus valores
e gozo dos bens na região geográfica, chegando a citar, para tanto, o art. 5º da
Constituição da Nicarágua de 1995, que prevê o respeito à dignidade da pessoa
humana, o pluralismo político, social e étnico, bem como o reconhecimento das
distintas formas de propriedade. Chegou-se a reconhecer não só o dano material,
mas também imaterial à comunidade a ser reparado por meio de obras de interes-
se coletivo na comunidade.
Note-se que a delimitação da propriedade, a necessidade de aquiescência
do indígena e o reconhecimento do dano imaterial procuram proteger e modificar
a própria maneira de perceber e lidar com os indígenas, conferindo-lhes igual res-
peito e consideração, que constituem importantes elementos da dignidade como
reconhecimento.
Em interessante voto concorrente, o juiz Sérgio Ramírez relaciona o princípio pro
homine, da norma mais favorável ao indivíduo, à proteção da dignidade da pessoa
humana. Destaca esse como o objeto e finalidade da Convenção Americana, que se
concentra no reconhecimento da dignidade humana e das necessidades de proteção
e desenvolvimento das pessoas. Sopesa, que, apesar de existirem variados concei-
tos de propriedade na América, é preciso atentar para a Convenção nº 169 da OIT,
para o projeto de declaração sobre a discriminação contra populações indígenas e
para o projeto de declaração americana sobre direitos dos povos indígenas.
Esses documentos procuram preservar e fortalecer a relação própria espiritual
e material dos indígenas com suas terras, territórios, águas, mares. Estabelecer
esse respeito à propriedade comunal é relevante nos países da América Latina,
que vivenciaram um processo de liquidação desse tipo de propriedade, de gover-
nos autônomos dos povos indígenas e de desaparecimento físico e cultural, de
modo a resgatar, preservar e desenvolver um maior respeito à dignidade como
reconhecimento dos indígenas.

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

O caso Atala Riffo e filhas vs. Chile (2012), por sua vez, retrata uma impor-
tante dimensão da dignidade humana, relacionada ao reconhecimento dos direitos
da população LGBTI. Os fatos envolvem a perda da guarda da senhora Karen Atala
Riffo de suas três filhas para o pai das meninas. A ação foi proposta pelo pai logo
após a sua separação, mais especificamente após a mãe assumir uma relação
homossexual e passar a dividir a casa com a sua companheira e as três filhas.
A Corte Suprema de Justiça do Chile havia fundamentado a decisão alegando a
discriminação que as filhas poderiam sofrer em seu meio social, a confusão das
filhas sobre a sexualidade e o impacto sobre os interesses das filhas. A Corte
Interamericana destacou não se tratar de uma mera questão de custódia das
filhas, que seria um tema de direito interno. Registrou que as autoridades públi-
cas violaram os direitos humanos, em especial a igualdade e não discriminação.
Destacou que esse princípio ingressou no campo do jus cogens e que o art.1º da
Convenção americana ao listar as formas discriminação não é taxativo.
A fundamentação foi bastante densa, iniciando pela necessidade de a
Convenção ser interpretada de forma evolutiva e mais protetiva às vítimas para
incluir a proteção contra a discriminação decorrente da orientação sexual. Em
primeiro lugar, o “interesse superior da criança” não pode servir para reproduzir
um “estigma social”, tal como o de considerar a mudança de orientação sexual
da mãe, como um dano válido ao desenvolvimento da criança por supostamente
causar confusão da orientação sexual. Em segundo lugar, a Convenção Americana
não protege um modelo específico de família, não podendo essa ser reduzida à
“família tradicional” dentro do matrimônio. Em terceiro lugar, os processos de
investigação, inclusive nos locais de trabalho, para constatar a orientação sexual
da mãe, representaram uma ingerência abusiva e desproporcional em seu direito
à vida privada, honra e a dignidade, previsto no art. 11 da Convenção Americana.
Por fim, a Corte Interamericana determinou a indenização por danos mate-
riais, danos morais, assistência médica e psicológica às vítimas de discriminação.
Consignou a responsabilidade internacional do Estado, fixando a obrigação de rea-
lizar um ato de desagravo público. Impôs, ainda, mudanças na legislação, adoção
de políticas públicas e outras medidas que capacitem as autoridades públicas,
inclusive judiciais para, a um só tempo, manter um ambiente de tolerância contra
minorias sexuais invisibilizadas e promover mudanças estruturais que ajudem a
desarticular estereótipos e práticas discriminatórias contra a população LGBTI.

5 Conclusão
Em desfecho, pretende-se compendiar as principais ideias do texto em for-
mulações sintéticas.

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Siddharta Legale, Eduardo Manuel Val

Na relação entre filosofia e direito, é possível estabelecer os seguintes ele-


mentos como integrantes centrais de um conteúdo interamericano para o princípio
da dignidade da pessoa humana: (a) valor intrínseco; (ii) autonomia; e (iii) reco-
nhecimento.
Nos tratados de direitos humanos do sistema interamericano, a dignidade
aparece especialmente nos preâmbulos das declarações, o que indica que a
“dignidade”, a “pessoa humana”, “direitos da pessoa”, “dignidade da pessoa
humana”, “dignidade inerente à pessoa humana” ou apenas o “ser humano” de-
sempenha uma importância central na interpretação de todos os direitos humanos
fundamentais.
Não obstante, a dignidade consta no corpo de diversos tratados ao lado
de direitos fundamentais variados, como a propriedade (Declaração Americana
de Direitos e Deveres do homem de 1948), a vida, integridade física e honra
(Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969), educação (Pacto de San
Salvador de 1988) e direitos variados de grupos em condições de vulnerabilidade
de direitos, como a mulher (Convenção de Belém do Pará de 1994) e dos indíge-
nas (Declaração Americana sobre os Direitos dos Povos Indígenas).
A jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos costuma em-
pregar pouco a dignidade como argumento autônomo. Em geral, a dignidade vem
acoplada com outro direito fundamental específico. Ainda assim, é possível cons-
tatar contornos próprios do conceito a partir de uma leitura de sua jurisprudência.
Em relação ao valor intrínseco, costuma-se empregar normalmente como a
ideia de “valor inerente ao ser humano” ou de “dignidade de sua própria humani-
dade”, como em geral se verifica nas violações a direitos humanos dos encarcera-
dos, tal como se deu nos casos Velazquez Rodriguez vs Honduras (1988), Presídio
Miguel Castro vs Peru (2006) e as medidas provisórias em relação ao Presídio de
Pedrinhas no Brasil (2014).
Em relação à autonomia, a Corte destaca a importância do livre desenvolvi-
mento da personalidade, seja nas relações entre particulares, seja com agentes
do poder público ou estatal. Nesse sentindo, o caso Artavia Murillo Y Otros vs.
Costa Rica (2012) é particularmente relevante na construção da dignidade da
mulher como autonomia reprodutiva.
A dimensão mais interessante da dignidade da pessoa humana no sistema
interamericano é a relaciona ao reconhecimento, ao respeito aos projetos exis-
tenciais e não apenas ao direito à vida de um “grupo de pessoas ameaçados
ou lesionados” ou de grupos de “pessoas em situação de vulnerabilidade” para
salvaguarda de diferentes direitos humanos, por exemplo, das mulheres (Atala
Riffo e filhas vs. Chile de 2012), das crianças de rua (Villagrán Morales e outros
vs. Guatemala de1999) e indígenas (Comunidade Mayagna Sumo Awas Tingni vs.
Nicaragua de 2001).

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A dignidade da pessoa humana e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos

Destaque-se, por fim, que, embora os casos tenham sido escolhidos de forma
exemplificativa, eles fornecem a exata dimensão de que, para além do valor intrínseco
e do respeito à autonomia estarem presentes no discurso da Corte Interamericana, é
a ideia de vulnerabilidade (ou de situações de vulnerabilidade) que opera como o fio
condutor e diferencial interpretativo que particulariza não só a dimensão intersubjeti-
va ou de reconhecimento da dignidade da pessoa humana, mas a própria maneira de
compreender a dignidade da pessoa humana no sistema interamericano.

The Human Dignity and the Case Law of Inter-American Court of Human Rights
Abstract: The Inter-American content of the principle of human dignity will be study in human rights
treaties and in the case law of the IACHR. Human dignity normally is in the preambles of treaties in
this way: “inherent in the human person.” The human dignity appears next of other fundamental rights,
such as property, life, honor, education and rights groups in vulnerable conditions, such as women
and indigenous. The case law of the Inter-American Court of Human Rights seldom employs the human
dignity itself without reference of other human right.
Keywords: Human Dignity and Inter-American Court of Human Rights.
Summary: 1 Introduction – 2 From philosophy to law: human dignity as a legal principle – 3 The human
dignity in the inter-American system for the protection of human rights – 4 The case law of the Inter-
American Court – 5 Conclusion – References

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Justiça, Belo Horizonte, ano 11, n. 36, p. 175-202, jan./jun. 2017.

Recebido em: 01.11.2016


Pareceres: 30.11.2016 e 08.12.2016
Aprovado em: 14.12.2016

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