Teixeira de Queirós-O Salustio Nogueira
Teixeira de Queirós-O Salustio Nogueira
Teixeira de Queirós-O Salustio Nogueira
O SALÚSTIO NOGUEIRA
Posfácio de David Mourão-Ferreira
Apoio:
Título
O Salústio Nogueira
Autor
Teixeira de Queirós (1849-1919)
Editor
Victor Domingos
editor@arcosonline.com
Fotografia da Capa
Fátima Antunes
(aspecto interior do Palácio Nacional da Ajuda)
Data de edição
3 de Maio de 2006
Agradecimentos
A Mário G. L. de Barros Pinto, pelo seu apoio incondicional a esta publicação;
aos herdeiros de David Mourão-Ferreira, pela cedência do texto do posfácio;
e à Sociedade Portuguesa de Autores, por tornar fáceis algumas coisas difíceis.
Edição
Este e-book é distribuído gratuitamente nos termos permitidos pela lei. É permitida e encorajada a sua impressão
e redistribuição em papel ou em formato digital, desde que isso seja feito sem propósitos comerciais e todo o seu
conteúdo e forma se mantenham inalterados. Nos termos da legislação em vigor, a presente revisão e
actualização ortográfica da obra, bem como todos os aspectos relativos à organização editorial são propriedade
intelectual do editor, Victor Domingos. Por esse motivo, o eventual aproveitamento da presente versão do texto
para qualquer re-publicação – quer impressa, quer digital – só poderá ser feito mediante o seu consentimento
por escrito. O texto de David Mourão-Ferreira não é do domínio público, pelo que a sua utilização para
quaisquer fins requer autorização por escrito por parte dos detentores dos respectivos direitos.
Muito se tem dito e escrito sobre os livros em formato digital, e uma das sentenças mais
frequentes e mais demolidoras será talvez a de que estes novos livros não poderão nunca substituir a
sensação de ler e desfrutar da leitura de um bom livro em papel. Cá por mim, acredito que realmente a
maior parte dos leitores habituais goste de sentir o livro como um todo e de o apreciar em cada
detalhe, desde o toque da capa e das folhas até ao aroma do papel impresso – sempre únicos, afinal,
como o texto que guardam no seu seio. Diz-se que o livro digital não pode ocupar o lugar do livro em
papel porque é também um formato cansativo, ou porque não há boa literatura em formato digital.
Em todos estes argumentos, haverá certamente uma parte de verdade e uma outra parte de
exagero ou de simples resistência cega à mudança. Mas animem-se aqueles que ainda suspiram pelos
livrinhos em papel: o livro digital pode ser imprimido e encadernado, e depois lido como qualquer
outro livro. Pode ser imprimido no seu tipo de papel preferido – até em papel colorido ou perfumado!
Não, não é o mesmo. Claro que não. Mas agora pensemos nas outras vantagens que estes novos livros
trazem até nós. Livros a preços mais acessíveis, livros gratuitos, livros copiáveis, livros cuja divulgação
e circulação que não ficam limitadas por fronteiras geográficas, livros que se podem facilmente
adquirir e ler em qualquer computador, em qualquer parte do mundo, sem ter de levar uma única
folha no bolso... E também livros que não existem nas livrarias, livros que as livrarias esqueceram
porque entretanto deixaram de dar lucro, livros de autores que merecem ser sempre lembrados – é
precisamente o caso do autor deste romance.
À data em que escrevo estas palavras, pode com segurança dizer-se que o formato digital veio
para ficar e não é uma coisa para o futuro, mas sim uma realidade já do presente, aqui e agora. É uma
grande revolução que se está a realizar, não só no meio editorial, mas em todos os domínios, do
mundo do lazer ao do trabalho, do universo da ciência ao das belas-artes; na música, na fotografia, na
pintura... na literatura. No âmbito literário, onde uns destacariam os blogs, eu optaria antes por destacar
as editoras alternativas e os livros alternativos. Editoras alternativas, as que publicam em formato
digital, gratuitamente ou não, mas sempre sem aquela submissão à tirania anti-estética, baseada num
modelo economicista, que caracteriza a generalidade do panorama editorial actual. Livros alternativos,
aqueles que não são escritos com o objectivo quase exclusivo de irem de encontro ao público menos
exigente, que se contenta com qualquer livro que consiga inserir-se na moda do momento.
Francisco Teixeira de Queirós (n. Arcos de Valdevez 03-05-i1849, f. 22-07-1919) formou-se em Medicina pela
Universidade de Coimbra em 1880. Era militante do partido republicano, tendo ocupado diversos cargos políticos: foi
vereador em Lisboa, por volta de 1885; foi deputado na legislatura de 1893; fez parte das Cortes Constituintes, em 1911,
como deputado pelo círculo de Aldeia Galega (actual vila do Montijo), tendo vindo a renunciar ao cargo ainda nesse
mesmo ano; integrou o primeiro governo presidido por José de Castro, em 1915, como ministro dos Negócios
Estrangeiros. Foi também sócio efectivo da Academia das Ciências de Lisboa.
Foi ainda durante os tempos de estudante que demonstrou o seu interesse pela literatura e a sua vocação de
escritor, encetando a publicação (sob o pseudónimo Bento Moreno) de duas séries de contos e romances, intituladas
Comédia do Campo e Comédia Burguesa. Essa organização, escolhida pelo autor para o conjunto mais significativo da sua
obra, reflecte uma evidente e assumida inspiração no modelo balzaquiano, a qual está também presente ao nível do
conteúdo, de cariz predominantemente realista/naturalista. Apesar da relativamente recente re-edição do volume de
contos intitulado Arvoredos, O Salústio Nogueira é talvez ainda hoje a sua obra mais conhecida, e certamente um dos
melhores romances portugueses de todos os tempos. Entre os pontos fortes deste romance, destaca-se a profundidade
da caracterização das personagens femininas, às quais o autor, de forma pioneira na literatura portuguesa, dedica as
melhores das suas melhores páginas. António José Saraiva e Óscar Lopes, na sua História da Literatura Portuguesa,
comparam o génio deste escritor ao do talento consagrado de Eça de Queirós, e vão ao ponto de sugerir que na sua
obra “a sátira da vida política nacional é talvez mais verosímil e corajosa que a de Eça”.
Principais obras:
Outras obras:
O Grande Homem (1891) – teatro
Arvoredos (1895) – contos
Corrigir um livro que se julga imperfeito é caso de gosto artístico e dever de carácter moral para o seu
autor; mudar-lhe o fundo, alterar-lhe a concepção inicial, equivaleria a edificar imaginado edifício moderno, sobre
paredes velhas a derruírem-se. Tais reconstruções poéticas, só se consentem para revivescência de lendas, em que
a alma colectiva tenha colaborado acrescentando prestígio e encantos.
Melhorei o romance O Salústio Nogueira até onde me foi dado reconhecer-lhe os seus defeitos. Todo o
trabalho teve como propósito dar impressão cabal do meu pensamento, aspirando a criar na alma do leitor um
estado equivalente ao estado da minha alma. A simplificação do estilo, joeirando-o de futilidades pretensiosas,
infantis e enganadoras, tem sido a preocupação constante do meu estudo. Esse esforço só me tem feito
compreender as belezas dos grandes mestres. A transparência luminosa da palavra humana deve cingir-se
intimamente e com harmonia musical ao pensamento com nitidez concebido: – esta é a regra; quem melhor a
aplicar será o escritor máximo. A ideia no seu brotar é obscura, mas pela reflexão aclara-se. Neste momento
especial deve ser vestida, dar-se-lhe forma tangível. Sucede à nossa ideia o mesmo que à nascente de água, quando
emerge da terra: o primeiro jacto é turvo de impurezas, mais tarde corre límpida, e nesse estado deverá ser colhida
para nos apagar a sede. No trabalho de escrever é sempre proveitoso, quanto amor se empregue em obter a gota
translúcida.
O que vulgarmente se chama processo literário dum romancista consiste no desenho ou traço para tornar
prático o pensamento global. Cada um tem o seu; porém a experiência própria e alheia trazem conselhos
atendíveis, que devem ser aproveitados, como nos aconteceu ao rever O Salústio Nogueira, em que desprezámos ou
acrescentámos particularidades, consoante a impressão que procurávamos dar. O que era estrutura geral ficou a
mesma nos personagens e seus carácteres, nos conflitos e cenas em que a vida do livro corre, e até no número dos
seus capítulos e conclusão. Repito: o que procurei nesta nova edição, com entranhado carinho pela verdade
estética, foi dar mais firme, vigoroso e claro o meu pensamento inicial. Onde reconheci confusão e obscuridade
metodizei, onde a fórmula da linguagem não era exacta ou era desarmónica substituí-a por outra, que me pareceu
melhor. Terá sido tempo mal empregado, porque as melhorias não correspondam à diligência?... Talvez, mas não
me arrependo do que fiz, mormente pelo gozo experimentado ao descobrir novas maneiras de me exprimir; por
dispensar pormenores desnecessários e encontrar outros, que acrescentaram o relevo dos lances do drama.
Lisboa, 1909.
TEIXEIRA DE QUEIROZ
Nota. – Apesar da cuidadosa revisão, é certo aparecerem nesta nova edição d'O Salústio
Nogueira erros lamentáveis, por serem simples e até grosseiros: comprimento em vez de cumprimento,
expontaneo por espontâneo2 e outros ainda. A que devem ser atribuídas tais culpas? À tipografia que não
observasse as emendas, ou à última revisão? Talvez às duas. Porém, como a sentença latina diz que o
erro é próprio do homem, ao leitor, que é inteligente, se pede a substituição. Para as graves faltas do
autor, que serão por certo de superior monta, para essas, não se pede nem perdão, nem desculpa.
Atirem-lhe.
OS EDITORES.
A primeira vez que Salústio Nogueira entrou na câmara dos deputados, como eleito do povo,
foi sob o patrocínio de uma senhora, D. Josefa Lencastre, que num baile de caridade, no Club, disse ao
ministro da guerra:
– Tenho um grande favor a pedir-lhe, general.
O conselheiro da coroa adorava-a. Inclinou-se cheio de respeito, pronunciando em voz
comovida:
– Que prazer, minha senhora, que grande prazer! Ainda que fosse preciso vencer uma batalha!
A sobrinha da viscondessa de Águas Santas, afectando engraçadamente certo medo, observou:
– Não diga isso! Agora que se fala tanto de guerra, poderão julgar que eu também sou contra os
franceses como a minha tia. O meu caso é mais simples...
– Ouvirei – disse o general com a voz séria de um homem ponderado.
– Mas faz-me o que lhe vou pedir?
O ministro da guerra ficou pensativo. Só depois de muita reflexão pronunciou:
– É negócio de política interna, ou de política externa?!
A sobrinha da viscondessa de Águas Santas pareceu um tanto enleada. Passado um silêncio,
certificou resolutamente:
– Ah!... é de política interna.
O general, com ar mais penetrante, ainda perguntou:
– Vossa excelência sabe dizer-me se será coisa dependente do ministério a meu cargo?!...
– Ah!... deve ser – disse D. Josefa Lencastre com alguma incerteza.
Em virtude desta resposta o conselheiro de estado afirmou com voz decisiva:
– Seja o que for. Porei sobre esse negócio a minha pasta.
– Então aí vai o meu pedido: eu quero que o senhor me faça um deputado.
Durante um minuto olharam-se muito sérios... O general, porém, rompeu numa gargalhada
4 Na versão a que aqui nos reportamos, a primeira e a segunda parte correspondem, respectivamente a cada
um dos dois volumes em que a obra se apresentava. (Nota do Editor)
Ao fundo da sala, ainda sentados nos fauteuils carmesins, os membros da família real
cavaqueavam, planeando uma caçada a Vila Viçosa. Seria um divertimento pacato, sem o fausto dos
antigos duques, sem os monteiros e as grandes matilhas. Simples distracção motivada pelo desejo de
sair de Lisboa e com o fim de matar algum gado, que nesse ano abundava, faltando pastagens. Do
O ministro da guerra saiu do gabinete radioso, vivaz e ligeiro. Atravessou o salão, arqueando as
pernas para suportar melhor as malditas botas de polimento, que lhe apertavam cruelmente os
joanetes. Com um dos seus ajudantes, que encontrou no caminho, desafogou:
– Tenho estes calos a ferver! Maus raios!
Continuou aos pulinhos, como se tivesse um calcanhar doente. A vista de Josefa Lencastre deu-
lhe nova coragem; aproximando-se dela comunicou-lhe:
– El-rei quer que eu lha apresente. Onde estará sua tia...
Mas ela não respondeu. Sempre tão pronta, tão sagaz, tão viva na réplica, emudeceu perante
esta exigência. O ministro da guerra presumira que a sua amada se levantaria contente, orgulhosa por
ter de ir à presença do monarca! Mas ela continuava a julgar-se inferior, humilhada pelo que poderia
suceder, olhando com desprezo para a sua toilette incapaz! Chegou a odiar severamente este
importuno...
– Mas disse-lhe que já tinha par!? – perguntou ao general.
– Pois se ele já o sabia!... Eu não sei quem foi. Não sei quem diabo foi! Sabe tudo!...
Então Josefa Lencastre observou, aludindo ao seu vestido:
– Mas eu não estou em termos!...
– E eu?!... – pronunciou o general dando um relance de olhos aos pés oprimidos. – Venha daí...
Onde estará sua tia que também devia vir. Demais a mais el-rei conhece-a. Disse-mo.
O ministro da guerra ofereceu o braço a sua noiva que o não aceitou logo. Ele insistiu:
– Venha, ande. Verá que não é de cerimónias... Muito chão. Grande coração! Fica-se encantado.
Porém, como a sobrinha da viscondessa continuasse a conservar-se sentada, oferecendo
resistência passiva, suplicou:
– Não faça esperar. Palpita-me que este convite até foi por sua causa. Não sei quem foi que lhe
disse... Sabe tudo. Um homem assim...
O assombro de Josefa foi completo! Como poderia acreditar que tivesse sido por sua causa que
el-rei tivesse convidado o general para seu vis-à-vis?! Sua majestade decerto, apesar de conhecer a tia
viscondessa, nunca pensara nela. Era esta a primeira vez que se encontrava num baile, onde
compareciam as pessoas reais. Sua mãe falecera quando Josefa ainda estava no “Bom Sucesso”. Seu
pai, com quem passara os últimos anos, era um velho coleccionador de livros e de conchas, que só a
deixava ir a algumas “soirées” de famílias inquestionavelmente pacatas. Depois que ele morrera, havia
Em todas as salas correu voz deste acontecimento momentoso. Não era distinção que el-rei
costumasse fazer a toda a gente, esta de pedir para lhe ser apresentada uma pessoa. Tiravam-se ilações:
uns diziam que fora um meio de confirmar o casamento, ao qual a sobrinha da Águas Santas ainda
não tinha anuído definitivamente; outros emprestavam intenções reservadas a sua majestade, notando
que prodigalizara a Josefa Lencastre palavras amáveis, durante a quadrilha... O caso fizera impressão e
dava-se como provável que, por uma graça especial do monarca, suas majestades assistissem
pessoalmente ao casamento do seu ministro, na qualidade de padrinhos.
Certo é que, a futura noiva, depois da quadrilha ficara radiante. Ungida das palavras do rei, que
deviam ter para ela uma como perpetuidade de gozo, sentia-se maior que as outras, que a invejavam. A
sua vaidade de mulher formosa remexia-se-lhe brandamente dentro do seio, como uma cobra entre
tépida folhagem em dia de primavera criadora. Não podia ocultar o sentimento exuberante de
ostentação que a enchia. O seu rosto animado, a vivacidade estranha dos seus olhos eram sinais que a
comprometiam... que a denunciavam. Durante as horas memoráveis, que passou no baile, teve alguns
espaços em que sentiu necessidade de apaziguar os nervos inquietos, e por isso foi procurar descanso
no gabinete reservado às senhoras, para sozinha se entregar a uma meditação agradável... Ali, em
frente das criadas anónimas, deixou voar a sua fantasia imaginando loucuras. Enterrada num fauteuil,
com a cabeça apoiada na mão esquerda, enquanto que com a direita abria e fechava maquinalmente o
leque, soltou os seus pensamentos... Fora, o sussurro ondeante do baile continuava, enquanto Josefa
se apartava, cada vez mais de tudo, voando numa atmosfera de gozos desconhecidos e quase
incompreensíveis, formada de grandezas humanas! Uma das criadas, vendo-a muito tempo nesta
posição fixa, cuidando que estaria incomodada, aproximou-se para lhe perguntar:
– Vossa excelência tem alguma coisa? Quer que lhe traga chá?...
– Não, muito obrigada. Estava cansada, já descansei.
E saiu para o salão, radiante e feliz, indo sentar-se junto da condessa de Frazuela, que nesta
noite a considerou com atenções especiais.
Porém, algumas das senhoras das que mais viviam do que se diz no Paço e na atmosfera
temperada das conversas maliciosamente discretas, faziam troça do que se passara, sorrindo por detrás
dos seus leques. Aquela distinção de el-rei fora um desfrute. Era preciso conhecer bem o monarca,
para se apreciar o seu espírito picante e sagaz, naquela aparência de bom homem. E falando
animadamente para darem interesse às palavras, encareciam os altos dotes de raça e de elevada cultura,
que possuía sua majestade com o seu valioso saber de cinco línguas!
Os que bem conheciam el-rei não ignoravam que às vezes era observador como Luís XI,
noutras conheciam-se-lhe audácias cavalheirosas de Richelieu. Nos factos triviais da vida interior do
Paço, tinha malícias como Talleyrand e como o senhor D. João VI, seu avô, de quem contavam
anedotas e frases memoráveis. Ora – rematavam – não era um homem desta têmpera, grandemente
letrado e artista, com o espírito eivado de todos os brilhantes defeitos de um céptico, que iria dar
A orquestra, do alto da varanda, fazia ouvir o som ronceiro dos violinos, gastando-se na valsa
magnetizadora. Os rabequistas, homens magros, alguns idosos, muitos de luneta na ponta do nariz,
barba bem feita, os magros pescoços amparados em colarinhos altos, olhavam por cima dos lentos
arcos para os valsistas, que passavam rápidos levando nos braços magníficas mulheres, num ímpeto de
loucura e de amor. Alguns conheciam-nos eles perfeitamente e até os tratavam por tu: – era o Fonseca
da alfândega, grande parceiro na Perna de Pau, em dias de pândega. Nesta noite de luxo burocrático,
misturava-se galhardamente às melhores distinções da corte, da política e da finança; era outro o
Torres do ministério do reino, crítico teatral de polpa, que em S. Carlos se sentava perto deles e lhes
falava trivialmente da sua especialidade, que era a música. Ambos rapazes levados de mil diabos,
gabarolas, namoristas e sedutores, tendo na vida histórias interessantes, ricas em adultérios.
Principalmente o Fonseca, que melhor conheciam, era um verdadeiro leão. Estivera para fugir com a
filha de um fidalgo morador na Junqueira, rapariga formosa e louca, que depois casou com um
brasileiro rico, tornando-se amante de um médico, pelo que o marido a levou para França. A um dos
músicos parecia-lhe que o Fonseca se correspondia com esta dama, pois que no último ano esteve
para ir a Paris, e não foi por não ter cem libras para despesas. Podia muito bem levar menos dinheiro;
– opinava o do violoncelo conversando num intervalo com o da flauta – mas o Fonseca era gastador
como mil demónios e queria passar bem, gastar à grande!
Alguns músicos mais obscuros escutavam isto atentamente, sem falarem. Limitavam-se a
contemplar com certa amargura aqueles homens felizes, que iam gozando a vida de um modo tão
estrondoso. Ah! As desigualdades sociais! Aqueles prazeres não eram para eles, tristes párias no meio
deste mundo dissoluto, destinados na enfadonha viagem da vida a moer perpetuamente valsas, através
de bailes de máscaras no entrudo. Que terríveis sonhos não sonhavam às vezes, vazios de gozos reais e
que se esvaíam ao primeiro acordar da
manhã!........................................................................................................................................................................
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Os braços amantes iam-se dando reciprocamente, num assentimento público. O requinta e o
trompa, dois músicos da municipal, beirões de sangue escandecido, enviavam para a sala catadupas de
ideias sensuais junto com as notas estridentes dos seus instrumentos. Um celibatário adunco e severo, que
tocava clarinete, não tirou em toda a noite a vista da Josefa Lencastre. Seguia-a avidamente em todos os
momentos e, às vezes, de tal frémito se sentia possuído em todos os seus nervos, que os sons tirados do
instrumento se amorteciam num silêncio espasmódico, conservando-se ele com o clarinete pendurado, o
olhar embrutecido como um fanático! Não que a conhecia muito bem, era sua vizinha... Ele morava na Rua
de S. Bento em frente da casa da viscondessa de Águas Santas e quase todos os dias contemplava Josefa
pela fenda da janela calculadamente entreaberta, gozando-a, gozando-a no incompleto resguardo da toilette
da manhã! Quantas vezes isto acontecera, quantas vezes procurara surpreendê-la em momentos de
descuido! Só ele o sabia! Só ele, Deus e a velha criada, sua confidente!...
O casamento da sobrinha da viscondessa de Águas Santas recebeu, como disse o próprio noivo,
a régia aprovação no baile do Club e verificou-se meses depois. Estava todo o ministério, um ajudante
de el-rei e um camarista da rainha representando suas majestades, amigos da família da noiva e do
general. Salústio Nogueira, já então deputado, apareceu com o seu ar imponente, falando com
animação a toda a gente: – era um rapaz vivo e de aproximação fácil, e por isso bem depressa se
familiarizara com pessoas importantes, depois de ter sido apresentado a vários políticos pela
viscondessa. Em seguida à cerimónia do casamento houve lunch na casa da Rua de S. Bento, servido
pelo Ferrari, que se esmerou. Cerca das quatro horas da tarde, os noivos, num discreto coupé de
cortinas azuis corridas, partiram para Sintra, onde tinham quartos prevenidos. Como ainda não era a
estação, o general e sua gentil esposa passaram naquele local quinze dias, quase sozinhos. O seu único
companheiro de hotel, durante esse tempo, foi um inglês velho e rijo, que estava em casa o tempo
propriamente necessário para comer e dormir. Logo ao amanhecer, com o seu pau ferrado, que
trouxera do Monte Branco, e com o guia debaixo do braço, saía a dar um largo passeio, voltando para
o almoço. Depois desaparecia até ao jantar, que era à noite, e adormecia profundamente, tendo
acabado de ler com paciência alguns dos artigos do Times e da Saturday review.
A notícia do casamento do ministro da guerra foi dada com grande pompa pelos jornais afectos
ao governo. Frisava-se a circunstância valiosa de os monarcas serem os padrinhos, fazendo-se
representar na cerimónia. Afirmavam ser este um sinal de quanto o ministério tinha a confiança da
coroa. Entendiam que um largo futuro de venturas estava reservado ao general Gonçalo e a sua esposa,
e faziam votos para que os dois cônjuges tivessem a estrada da vida sempre juncada de flores primaveris.
Estas palavras inocentes provocaram fartura de ironias. Largo futuro o de um velho repintado, que
poderia morrer, sem surpresa, na primeira semana de noivo. Estrada juncada de flores primaveris a de
um homem que devia usar flanela junto à pele e decerto dormia com botija! Que riso! Ele que às vezes
estava semanas inteiras preso na cama com fortes ataques de gota, sendo depois dessas crises
encontrado no Jardim da Estrela, a passear ao sol pelo braço do camarada, devia ter na realidade um
largo futuro e uma linda estrada, juncada de flores primaveris – sublinhavam.
Josefa Lencastre, aquela mulher de sangue quente, aquela formosa doida, havia de ser a botija e
o camarada do general!... Ora adeus!... O que ela devia continuar a ser era uma mulher adorável, um
Na abertura das cortes, que dessa vez aconteceu em Maio, Salústio foi de véspera alugar uma
carruagem ao Largo de S. Jorge. Queria dar a este primeiro acto da sua vida pública uma solenidade
positiva, e certa grandeza. Desejava um coupé novo, boa parelha, cocheiro bem vestido e com
aparência. No escritório da companhia fez recomendações especificadas, concluindo, depois de dizer
onde morava:
– E que esteja à porta à uma hora em ponto, para não chegar tarde à câmara.
Sublinhou esta palavra com imponência, abrindo muito a boca para lhe dar sonoridade ampla.
Enquanto falava ia calçando as luvas devagar, dando pouca importância aos que o escutavam.
Desceu depois a rua com passo lento, fumando o seu charuto e olhando para as janelas com fixidez.
No Chiado, à porta da Havanesa, um deputado da oposição, homem de linguagem violenta, disse-lhe
com rudeza:
– Verá, é uma maioria de cavalgaduras.
E para adoçar a intenção agressiva acrescentou:
– Se ao menos trouxessem mais alguns rapazes de talento, como você!...
Salústio, em voz pouco contraditória, entendeu, dando um jeito de desafogo ao colarinho:
– Não é tanto assim... Vêm rapazes de mérito.
– Quem, diga você?! O Nunes? O José Antas?!... Uns pulhas, uns jumentos... O que querem é
comer.
– Pois sim – admitiu Salústio – mas são influentes locais. Eu bem disse ao marquês que se
precisava de gente para falar, batalhar... mas ele coitado não podia, estava preso.
No dia seguinte acordou às dez horas. Até às quatro da madrugada andara pelas redacções dos
jornais, falara com o Frazuela e estivera em casa da Águas Santas, para se pôr ao facto do que havia.
Diante dos adversários advogava ideias conciliadoras de paz. Sentia-se forte com ser do governo e
achava bonito mostrar benevolência para com a minoria, dar-lhe mesmo a consideração de parecer
que a temia. Desejava tréguas para que o governo e a oposição fizessem alguma coisa útil, em bem do
país. O azedume, nas paixões políticas, leva a extremos injustos. Diante de dois ex-ministros do
partido contrário, que tinham saído do poder debaixo de uma chuva de impropérios e fama de ladrões,
disse com voz sincera:
– Em Portugal todos os políticos são honestos. Já viram algum enriquecer?
Não tinham visto. Em Portugal há uma grande probidade nos homens públicos. Não é assim
em toda a parte, nem mesmo na grande república norte-americana, onde frequentemente se verificam
actos de concussão.
– É por isso que não sou republicano na prática, ainda que o seja, um bocado, na teoria. Não
gosto de violências. A linguagem dos jornais desse partido extremo não me agrada e não é justa.
Foi aplaudido. O conselheiro Maurício Pontino, que sobre este ponto tinha as mesmas ideias,
chegou-se a ele com a mão amplamente aberta e disse-lhe:
Toda a comitiva se apeou junto da poeirenta grade beneditina, sobre um bocado de tapete
usado, expressamente estendido desde a porta da entrada até à sala. A grande comissão de pares e
deputados recebeu os soberanos com característicos sinais de respeito. Os monarcas precedidos da
sua corte tomaram a dianteira do cortejo. E seguiam todos a direcção determinada pelo velho tapete,
passando no claustro e subindo a escada de madeira que dava ingresso no corredor rodeado de celas.
A camareira-mor da rainha apanhava nos braços o manto de sua majestade. O rei ia silencioso,
sorrindo com os olhos. Ao aparecimento do cortejo algumas rebecas e outros instrumentos que
estavam na galeria tocaram por sua vez o hino. Depois, quando o corredor ficou vazio, produziu-se
um silêncio lúgubre. Os reis, pares e deputados tinham entrado na sala da representação nacional. Aí
suspenderam-se momentaneamente as conversas encetadas. Os monarcas nas cadeiras doiradas que
estavam sob o dossel. A rainha caminhava altiva, ao lado do seu esposo, que por seu turno pisava
Salústio, antes de entrar na carruagem, fez sentir ao seu amigo Gabriel Besteiros que nas
tribunas tinha estado grande número de senhoras formosas, e gabou com pompa de gestos e de
palavras aquela cerimónia da abertura das cortes, que era na realidade imponentíssima. Depois,
afastando o ombro do seu amigo à distância de um braço, interrogou-o:
– E a rainha?!...
– Muito magra... – respondeu desdenhosamente o grosseiro transmontano.
– Mas elegante!... – Todos o confessam, tanto nacionais como estrangeiros.
Gabriel importava-se bem com o que pensavam os estrangeiros acerca de mulheres. Desde a
infância, em toda a sua vida provinciana, se habituara a encontrar-lhes abundância de carne e isso era
tudo. As raparigas da sua província, àquelas que amara impetuosamente, costumava dar-lhes cada
palmada nos ombros nus, que as arrasaria se elas não fossem tão valentes como ele.
– És um materialão – resumiu Salústio, já dentro do coupé, que rodava pela Rua de S. Bento.
– Não é isso. Quando se trata de mulher, quero mulher – afirmou Gabriel repuxando a longa
barba.
– Também eu. Mas... não somos da mesma opinião.
Tinham chegado junto da rampa da Calçada de S. João Nepomuceno e mandaram parar.
Salústio queria deixar a casaca. Eram somente cinco minutos e Gabriel escusava de sair da carruagem.
– Então não te demores – observou este.
– Cinco minutos. Marca no relógio.
Pouco mais foi. Angelina ainda o quisera demorar para ele lhe referir como tinha sido aquela
festa para a qual passara tanta gente e regimentos da tropa; porém o seu amante não tinha tempo,
esperava-o um deputado na carruagem e não podia agora... À noite, quando voltasse, teria bastante
tempo para lhe contar tudo. A rapariga ficou triste; mas resignou-se, vindo à janela para o ver na
calçada, descendo com o seu imponente ar de grande-homem... no futuro.
Angelina era uma boa natureza provinciana, trabalhadeira e saudável. Em Braga, em casa de seu
pai, que padecia do fígado, e de sua mãe, sempre doente do reumático, ela era a ordem, a economia, o
riso e a felicidade. Aos seus pequenos irmãos prodigalizava carinhos maternais, com o seu precoce
instinto de mulher meiga e afável. Pelas cartas que recebia de uma companheira de mestra, as quais
Que tristeza, que saudades intumesciam o seio da amante de Salústio, ao recordar estes factos
do seu passado! Como ela julgava perdida a sua boa alegria de rapariga nova e jovial! As lágrimas
vinham-lhe espontâneas. Em Lisboa não encontrara nenhum desses afectos desinteressados e simples
que perdera. Havia ruas compridas e de uma grande ostentação, que a tinham deslumbrado nos
primeiros dias. Havia grandes palácios, melhores que o do Carvalho, no Campo de Santa Ana. Havia
carruagens, onde se recostavam em atitudes soberbas senhoras vestidas de seda – uma riqueza
superior à do brasileiro Raio. Mas que benefício lhe vinha de todas essas grandezas!... Ficara mais
acompanhada, mais feliz, só porque pudera um dia ver no Aterro sua majestade a rainha num landau a
quatro, com batedores que galopavam adiante, chamando a si a curiosidade vulgar dos transeuntes?!...
Nos últimos oito dias, é certo que adquirira as relações duma pessoa, uma alma viva com quem podia
trocar sentimentos e palavras. Era a vizinha do terceiro andar, a D. Maria Gomes, antiga mestra de
piano, que tinha um filho tenente. Pobre mulher, andava com a vida um pouco atrapalhada; mas
resignava-se. O ofício estava-lhe rendendo pouco, o dinheiro que o seu Augusto ganhava mal chegava
para luvas, para engomadeira e para botas de polimento! Um rapaz muito janota, viam-no sempre em
soirées, onde era grandemente estimado por causa da magnífica voz de barítono que possuía. Isto trazia
despesa, e grande despesa; mas a benévola mãe vivia feliz da glória musical de seu filho tenente. Assim
ele fosse bom para ela, e não lhe estivesse sempre a dar desgostos, por causa dum namoro
desvantajoso! D. Maria falava frequentemente no grande favor que fizera, em ter dado algumas das
suas discípulas a uma rapariguinha magra, a Ermelinda Travassos, que morava na Rua de S. José e
Esta cena deu à filha de Pedro Alves a coragem que vem sempre dos infortúnios alheios.
Compreendeu num momento que, na grande cidade que a fascinara a princípio, havia misérias
obscuras, sentidas e invencíveis! Como é que uma pobre rapariga de vinte e dois anos pode assim
afrontar a vida, correndo Lisboa de um extremo a outro, de botas cambadas chapinhando na lama em
dias de chuva, com o fim de ganhar o sustento a ensinar piano! E eram tristes as confidências que lhe
fizera Ermelinda. Às vezes cansada, os pés húmidos, a tosse sintomática de tuberculose iminente a
apoquentá-la, tinha de subir a um terceiro andar, mostrar-se risonha quando sofria dores, tocar sem
vontade, mas com perícia, uma valsa para agradar ao pai da sua discípula... Tremenda situação, à qual
Angelina se prendia simpaticamente, com a fascinação dos fortes, daqueles que têm em si poder de
resistir, lutar, afrontar a existência desventurosa!... Por isso, nas diferentes conversas que teve a sós
com a mestra de piano mostrou-lhe grande simpatia, abriu-se em confidências, patenteando-lhe a
situação em que se encontrava, as esperanças íntimas num futuro risonho, quando fosse legítima
mulher de Salústio! E num a-propósito, contou-lhe a sua vida de província, as circunstâncias do seu
namoro: – Tinha sido uma das raparigas mais requestadas da cidade de Braga. Passavam-lhe à porta,
para a verem, os primeiros janotas da terra – o Falcão, o António Maria de S. Pedro e muitos
estudantes do liceu e do seminário... Alguns destes sabia que já tinham ordens sacras e estavam para
dizer missa!... Repelira-os a todos com um desdém honesto, e a um deles, dos tais que já eram quase
padres, que numa noite lhe foi tocar violão à porta, o Joaquim, caixeiro da mercearia de seu pai,
desancou-o com uma tranca. Fora uma grande desordem! O do violão aliciara amigos, que vieram
armados de paus, de navalhas e pistolas com o propósito de arrombar a porta e matarem o caixeiro.
Salústio era então administrador do concelho. Chegou com alguns cabos de polícia, prendeu os
estudantes desordeiros, desagravando assim os brios de seu velho pai, que tomara abertamente o
partido do rapaz, vindo à varanda descompor os malcriados. Por este simpático procedimento de
Salústio, Angelina ficara-lhe muito obrigada, e quando o via passar para S. Victor, onde ele morava,
correspondia-lhe sempre aos cumprimentos... Foi assim, sem ninguém perceber, que o namoro
principiou. Quando recebeu a primeira carta, que o administrador em pessoa lhe meteu na mão ao
saírem da missa de S. Vicente, Angelina sentiu grande perturbação. Ficou num estado, que não podia
bem explicar, contente e receosa, ao mesmo tempo. Foi para casa pensar no que devia fazer e, depois
Para o deputado, o dia seguinte foi como o deu uma batalha para um general.
Eram duas horas e meia, quando o presidente abriu a sessão. As galerias estavam apinhadas,
havia muitas senhoras. A voz de Salústio Nogueira era geralmente estimada, pelo seu som cavo e
solene. Grande número de pessoas gabavam-lhe o gesto amplo; outras tinham predilecção pela sua
estatura de transmontano sadio..
Quando o deputado entrou na sala, das galerias olharam para ele com interesse. Salústio afectou
certo ar de indiferença, como o de um domador de leões, quando entra na jaula das suas feras. Parecia
quase despreocupado, fingia ignorar que toda aquela gente viera ali por sua causa e de Jorge
Agualonga, que replicava nesse dia ao ministro das obras públicas, na questão das ostreiras. Ele estava
marcado para responder ao violento orador da oposição. Enquanto corria a leitura da acta, alguns
deputados tentaram a sua facúndia em questões insignificantes «antes da ordem do dia». Os dois
adversários conservavam-se parolando um com o outro, junto do fogão da esquerda da presidência,
aparentando certa naturalidade e abandono, para significar diante do público que se não temiam.
Salústio falava com excessiva afabilidade, sorrindo para Jorge, gesticulando com moderação, quando
lhe dirigia a palavra. Palmira viera com seu pai para o ouvir e estava na galeria a observá-lo. Porém ele,
apresentando-lhe de frente o seu busto de apoteose, fingia não ter intenção de se mostrar, ainda que
fora quem lhes escolhera os lugares, para verem tudo à vontade. Encontrara dificuldade em conseguir
que Leôncio, em dia de tanto aperto, ficasse na galeria das senhoras, perto de sua filha. Aos homens
não eram concedidos aqueles lugares, mas como tivesse ido acompanhado de Salústio e o capitalista se
contentasse em permanecer de pé, encostado à parede, perto de Palmira, não houve reclamações.
Permanecerem os dois adversários numa conversação aparentemente íntima, maravilhou alguns
espectadores, que reconheceram neste facto um toque simpático, um sinal de elevada cultura e
educação. Houve no entanto alguém que aventou estarem eles combinando os argumentos com que
deviam brilhar mutuamente; esta opinião, porém, não foi compartilhada. Muitas pessoas disseram
«isso não é possível»; alguns amigos dos dois oradores acrescentaram como testemunho: «logo os
verão».
Quando o presidente, depois de se anunciar por um cerimonioso toque de campainha, disse
que eram horas de entrar na ordem do dia, Salústio e Jorge separaram-se com um aperto de mão
Jorge Agualonga sentou-se extenuado. Vieram alguns amigos da oposição apertar-lhe a mão e
na galeria popular perpassou um suspiro de carroça rodando. Em baixo, na sala, enquanto Salústio
dispunha os seus papéis, como um general e os seus soldados para um combate, conversava-se alto e
distraidamente. O presidente, que era obeso, aproveitou as circunstâncias para se remexer na cadeira, e
num tom desvalioso deu a palavra ao deputado do governo. Um ligeiro rumor, vindo da tribuna
diplomática, chamou as atenções de muitos deputados, que logo se voltaram para lá. Salústio já estava
de pé, com o lápis tribunício na mão e as palavras «senhor presidente» à flor dos lábios; mas também
levantou os olhos, para averiguar... Entraram naquele instante a condessa de Frazuela, a viscondessa
de Águas Santas e sua sobrinha, esposa do general Gonçalo. Isto produziu boa impressão em toda a
sala. O deputado reconheceu-o e sentiu-se orgulhoso com este facto, que era uma consagração da sua
Foi muito cumprimentado. A condessa de Frazuela, D. Josefa e sua tia enviaram-lhe parabéns,
num ligeiro e inteligente sorriso. Palmira confessou ter gostado muito de ouvir Salústio. Porém,
Leôncio, que se não satisfazia inteiramente com estes processos de polémica, sentindo profunda
indignação contra Jorge, disse limpando o suor da testa:
– Era de outra maneira, que eu lhe responderia ao tal senhor Agualonga, Água curta, ou que
diabo é! Que bom marmeleiro!
O ministro da guerra acedeu pressuroso ao convite de Josefa, que ele adorava, cada vez mais
lascivo. O casamento tinha-lhe feito bem – diziam. Parecia outro homem, caminhava na rua e nas salas
com tal ímpeto de juventude que maravilhava... Parecia ter adquirido, no contacto da pele fina de sua
mulher, a frescura e o vigor de uma nova mocidade. Tornara-se menos rigoroso e disciplinador para
os próprios inferiores, sorrindo-lhe às vezes com delicadeza e condescendência, o que desmentia os
seus antecedentes de militar rigoroso e grosseiro. A felicidade amolecera-o. Os primeiros tempos de
noivo vivia-os como se estivesse sonhando numa poltrona flácida, depois de longa marcha.
Aquela carne velha tinha adquirido tonicidade e macieza. O bigode repintado e o chinó
brilhavam como azeviche... Porém, os maledicentes assinalavam-lhe, quando o viam de braço dado
com a encantadora Josefa, enfraquecimentos instantâneos, inconsciências de organização caduca,
denúncias de velhos reumatismos, tantas vezes gritados na cama.
A esposa calculava essas ironias pontiagudas, que lhe vinham em sorrisos amáveis. Como
mulher altiva, nos primeiros tempos planeou passar sobre elas triunfantemente, esmagando-as como
cabeças de serpe. Por isso nunca se esquecia de afirmar, quer publicamente, quer em conversas
particulares e íntimas, quanto era feliz no seu novo viver.
– Olha, minha querida – dizia à Frazuela – tu bem sabes o que se ouve dos maridos novos.
Todos têm fora de casa mulheres a quem sustentam. Com um marido como este a gente vive mais
descansada.
– É verdade, é... Porém eu nunca me importei. Sei que o Paulo tem tido amantes e... até gosto,
sabes? Fica a gente mais livre.
– Não digas isso! – retorquiu Josefa. – Se tal me acontecesse, dou-te a minha palavra que me
separava.
– Ah! não tenhas medo, não te acontecerá... O general adora-te.
E colhendo uma rosa, pois estavam no jardim, pôs-lha junto da cara dizendo:
– Como te vai vem esta cor! Rosas com rosas, costuma-se dizer.
O comportamento de Josefa era conforme às suas palavras. Mostrava-se infinitamente, quase
infantilmente, amorosa do general. D. Cesária, a malévola D. Cesária, esposa do magro ministro da
marinha, disse um dia que ela fazia todas estas coisas com medo de que os outros não acreditassem na
Bem cuidei que este ano te encontraria em Lisboa! O papá muito o desejava e já tínhamos tudo
preparado para nos demorarmos aí três meses, com o fim de ouvirmos música em S. Carlos. Rodolfo
A mulher do ministro da guerra percorreu as três folhas de papel escritas por Angélica, com
diferentes expressões fisionómicas. Depois ficou minutos silenciosa, conservando a carta na mão.
Entregava-se a uma corrente de pensamentos incaracterísticos; mas o seu olhar era enérgico e nas
linhas do rosto, um tanto apanhadas, denunciava-se luta e aborrecimento... Ainda estava sentindo a
impressão de desgosto, que lhe causara um beijo do general!... Os seus beiços moles e salivados de
velho amoroso tinham-lhe deixado na pele fresca e bem tratada uma espécie de nódoa viscosa! O ter
sido um beijo de marido não destruía o desagradável abalo recebido pelos seus nervos delicados e
limpos. Josefa explicava, a si mesma, por doença, este mau humor instintivo que, algumas vezes, a
indispunha contra o general. A leitura da carta de Angélica Agramonte aumentara-lhe a irritabilidade
em que se encontrava!... Aquela ventura simples e verdadeiramente sentida, comparada com a sua,
marcava um ponto de alta injustiça divina! Ela também era formosa como a sua amiga, também tinha
fantasia e desejos de amar um homem novo! Apossou-se-lhe da alma um forte sentimento de revolta
contra o destino! Apesar da sua poderosa vontade, não podia impedir-se de pensar na felicidade
risonha da sua companheira de colégio!... Rodolfo tinha vinte e sete anos, o general Gonçalo mais de
sessenta!... Examinava, com um olhar fixo de espírito ausente, o retrato que Gélica lhe enviara. Era
bela toda aquela mocidade, toda a fortaleza que ressaltava do aspecto, ao mesmo tempo meigo e forte,
de Rodolfo. Que fina barba, que pele lisa e cetinosa! Como devia ser bom tocá-lo, fazer-lhe carícias,
receber um beijo dos seus lábios frescos! «Ah! Gélica, Gélica! Como és cruel na tua carta, como serás
ditosa na tua vida futura! Como eu te amo e te invejo!» – pronunciou numa prostração dolorida, com
Que feliz me tornou a tua carta! Bem sabes que sempre sofri com as tuas dores, que sempre
gozei com os teus prazeres. Isto já vem das nossas intimidades do colégio, quando as outras se riam,
por nos verem sempre abraçadas! Espero beijar-te antes de ires para Inglaterra. Teu marido não há-de
ser tão mau e tão egoísta, que te queira só para ele, excluindo do teu excelente coração todas as
amizades verdadeiras, ternas e afectuosas!... Tu podes vir a Lisboa tomar o vapor e demorar-te aqui,
pelo menos, oito dias, antes de embarcarem. Atendendo às preocupações do meu marido, e a esta
maldita política, que tão pouco me deixa gozar da sua companhia, não estranhes que eu te faça o
pedido de vires despedir-te de mim a Lisboa, quando o razoável seria que eu partisse para o Porto a
assistir à tua festa. Mas não posso, crê que não posso. Como tu és ditosa em não escolheres um
P.S. – Rasga esta carta. Não a deixes ler ao teu noivo. Pode julgar que me sinto namorada do
barão de Cerdeiral, o que não é verdade. Além disso, pode também não gostar dos meus gracejos
acerca dos maridos rapazes. Tudo o que disse é brincadeira e Rodolfo há-de desmentir o meu
pessimismo. Mas não lhe deixes ler a carta. Proíbo-to.
Toda tua
Finha
Josefa encontrou-se mais tranquila depois que escrevera. Tinha consumido o seu negro humor.
Dobrou o papel com todo o vagar, tendo nos olhos visões tristes, melancolias esbatidas num céu
cinzento!... Fechou o sobrescrito azul pálido. Chamou com um toque de campainha a sua criada.
– Para o correio – disse simplesmente; e recostou-se de novo na poltrona de seda.
O conde de Frazuela estava no seu gabinete, quando lhe anunciaram o deputado. Mandou-o
entrar para ali, recebendo-o como amigo entre os seus papéis e livros. Veio recebê-lo ao meio da sala
estendendo-lhe a mão.
– Conversemos – disse designando-lhe o sofá.
No dia seguinte, uma sexta-feira, apesar de haver partida em casa da Águas Santas, a condessa de
Frazuela não saiu à noite. Esperava as suas íntimas, mrs. Cross, e madame Trèvan, que conhecera em Spa,
havia seis anos. Era a segunda vez que madame Trèvan vinha visitar a sua amiga a Lisboa, viajando
sempre em companhia de uma velha criada e de um escudeiro alemão. Estava hospedada no Hotel
Bragança.
O conde despediu-se das visitas de sua mulher, porque tinha de falar ao ministro da justiça na
transferência de um parente, juiz em Évora, que apetecia uma das varas de Lisboa. E como fosse pelo
Grémio, para ver os jornais estrangeiros, encontrando-se ali com Salústio Nogueira, perguntou-lhe
num relance:
– Onde se poderá encontrar o Carlos de Mendonça?
– Em casa da viscondessa de Águas Santas certamente, meu caro conde.
Foram juntos. Cerca das onze horas, subiam ambos lentamente a Rua de S. Bento, quando se
encontraram com o visconde da Carregueira, juiz do Supremo, e com Júlio Clóvis, que levavam
idêntico destino. Por isso, entraram os quatro ao mesmo tempo no salão da viscondessa, cuja mobília
em damasco carmesim e paredes em papel cinzento com frisos doirados denunciavam pretensões de
elegância. Ao fundo, no sofá presidencial, mesmo em frente da porta, sorrindo amavelmente aos que
iam chegando, via-se logo a dona da casa, senhora idosa, mas com artifícios de juventude na
expressão. O Frazuela, com o seu hábito de homem do mundo, primeiro se dirigiu a ela, curvando-se,
beijando-lhe a mão e dizendo:
– A Gabriela manda-me como seu emissário para explicar o motivo porque não pôde vir. A
maldita enxaqueca... A viscondessa sabe...
– Tão poucas vezes me vem ver a amável condessa! Nem por isso deixo de a ter sempre no
lugar do coração reservado às melhores amigas.
Estendendo a mão aos companheiros do Frazuela acrescentou:
– Já hoje nos vimos, visconde da Carregueira. Com V. Ex.ª, senhor conselheiro Júlio Clóvis, é
que tenho de falar.
E para Salústio familiarmente:
– E este nosso Benjamin Constant, que não há quem lhe tenha posto a vista em cima, há três
Logo depois da meia-noite principiou a retirar-se muita gente. O sinal de levante foi dado pelo
conselheiro Maurício Pontino, que, ouvindo no relógio do corredor a sua hora, fez um aceno de cabeça a D.
Clementina, para que se preparasse, indo ele envolver num lenço de lã escuro a garganta doente,
enquanto um criado o cobria com a capa antiga. Saíram também, ao mesmo tempo, as duas sobrinhas
do marquês do Tornal, Lúcia e Florinda, acompanhadas da tia Juliana, viúva do general Trigoso.
Palmira Freitas, que era seguida de seu pai, o capitalista Leôncio, segredou na escada a uma destas
meninas, aludindo aos que ficavam:
– Que terá esta gente que fazer aqui até de manhã?!
– Ora... divertem-se, é o que é! – respondeu Florinda, desconsoladamente. – E nós aqui vamos
para o aborrecimento da cama!...
Imaginavam estas inexperientes que, altas horas da noite, se passariam, em casa da viscondessa
de Águas Santas, factos só experimentáveis por gente de vida saciada. Sabiam, por terem ouvido, que
dali se saía de manhã, quando o sol brilhava magnificamente sobre Palmela. Que promiscuidade seria
esta, a desoras, de tantos homens e senhoras conhecidas, que na vida comum se comportavam de
modo circunspecto e comedido?!... Perdiam-se em conjecturas, em conversas íntimas, aventando
opiniões extravagantes! Aquilo deviam ser liberdades defesas aos seus verdes anos. Oh! como é
desagradável essa época em que, vendo-se considerada uma criança, a mulher começa a sentir
desenvolver-se dentro em si uma amálgama de desejos indefinidos!
Na realidade, nessas faladas partidas da viscondessa de Águas Santas, depois da meia-noite só
ficavam pessoas responsáveis pelos seus actos... Era Carlos Mendonça e sua esposa; Júlio Clóvis, um
solteirão; o ministro da marinha e D. Cesária! O general Gonçalo, Josefa, o barão de Cerdeiral; madame
Augustine Lagrant, uma francesa viúva, residente em Lisboa havia anos e a quem na sociedade
Salústio Nogueira engrandecia-se a seus próprios olhos: – vivia feliz no engodo das relações
que adquirira entre homens de vulto na política e orgulhava-se principalmente da intimidade com que
era tratado pelo conde de Frazuela. Quem lhe diria, poucos anos antes, que ele, filho de um obscuro
camponês, havia de, com tanta sorte, adquirir importância e ingresso entre políticos e pessoas da
corte, íntimos de el-rei!... Bons tempos, os tempos de infância, passados no meio de árvores e
penedias, tempos alegres, simples e despreocupados! Não tinha deles a mínima saudade, não apetecia
voltar a essa época simpática, cuja memoração amesquinhava o seu engrandecimento actual! Conhecia
demais a província, a sua vida farta de coisas pueris e estúpidas. Recordava tudo isso com benévolos
sentimentos de afeição; mas, retroceder às caturrices dos políticos cabisbaixos e barbudos, homens
tremendos, que por causa de uma mísera questão de junta de paróquia, escangalhavam sólidas mesas a
murro – por Deus! – não o apetecia!... O seu espírito tinha-se alargado amplamente na convivência de
homens como o marquês de Tornal, o Frazuela e outros. Sentia-se um civilizado. Em Lisboa, numa
agitação de ideias e interesses, que lhe enchiam a existência de cuidados pomposos, achava-se bem.
Gostava de ver as coisas de alto, com um franzir de lábios desdenhoso, a pálpebra ligeiramente caída.
Para ele, o encarar o facto mais grave, sorrindo com ar intencionalmente maquiavélico, era sinal de
superioridade intelectual, que imitava para dar de si, a si mesmo, uma ideia alta! Pensava em se mostrar
homem de penetração arguta, aproveitava todas as ocasiões, até diante dos mais íntimos, para se
arrogar importância de político consultado por outros políticos.
Em casa do Frazuela encontrara, nas próprias mobílias e nas cores dos estofos, um gosto
discreto e premeditado que o maravilhara! Concentrou-se em longa reflexão, compreendendo
longinquamente, na vida desta sociedade que não conhecia, certo espírito de agudeza e subida
educação, que só lhe fora permitido presumir, até ali, na leitura de alguns romances franceses e no
teatro de D. Maria, quando via o actor Santos representar dramas de Sardou, ou de Dumas. Nesse
meio famoso até os próprios criados, aprumados e atenciosos, tinham magnificência para engrandecer
as pessoas a quem serviam. Poderiam lá, os da sua terra transmontana, imaginar sequer um homem
como Fabrice, o criado particular do Frazuela, alto, barba escrupulosamente feita como a dum cónego,
meia de seda preta, sapato de verniz com fivela de prata, calção de cetim, a oferecer-lhe cerimonioso
charutos numa bandeja de prata! Isto, nem em sonhos provincianos da maior opulência! Fabrice
Dias depois, Salústio Nogueira estava ainda na cama, saboreando, encostado à travesseira, um
bem pensado artigo do Jornal do Comércio, quando Angelina entrou no quarto para lhe entregar uma carta,
trazida por um homem, que, vendo-a assim formosa, cofiara majestosamente a suíça. Logo pelo
sobrescrito, o deputado, que nesse dia almoçara na cama, conheceu a letra do conde de Frazuela; mas
quando leu, numa folha de papel azul com o brasão no alto, estas simples palavras: «Venha-me falar
impreterivelmente às duas horas» sobressaltou-se, exclamando: «Que diabo será?!»
– Aconteceu alguma coisa? – perguntou com interesse a boa rapariga.
– Nada. Traz-me água morna depressa – respondeu Salústio preocupado.
Depois de se lavar pediu as meias de fio de Escócia, uma camisa bem engomada, os sapatos de
polimento. Angelina apresentou-lhe todas essas coisas, não ousando interrogá-lo. Como mulher
amante e sensível, reconhecia intuitivamente que na vida do pai de sua filha se passava um momento
de gozo e não queria minorar-lhe a preocupação que o tornava feliz.
– Luvas, não tenho nenhumas? – inquiriu, enquanto Angelina lhe escovava a sobrecasaca no
corpo.
– Não tens nenhumas novas – respondeu sem se distrair.
E ao sair da porta, Salústio, falando de lado, disse sobranceiramente, como quem deixa cair as
palavras:
– Se eu não vier à hora de jantar, não esperes por mim.
– Pois sim – concordou Angelina resignando-se.
Continuavam a ser tão frequentes e tão longos os seus dias de isolamento! Cobria-lhe toda a
existência um negro véu de tristeza, ao sentir-se em frente de mais doze horas, sem falar a ninguém, a
não ser ao Bento aguadeiro e à D. Maria Gomes, que estava doente! Com os olhos rasos de água,
escutou atentamente as passadas de Salústio descendo... Ainda foi à janela para o ver na calçada, que
subia com lentidão. No alto de Santa Catarina, o deputado deitou de relance um olhar soberbo à larga
bacia do Tejo e, antes de ir a casa do Frazuela, dirigiu-se à Rua Nova do Carmo, para fazer a barba.
Quando Fabrice, o invejado Fabrice, com o seu aspecto de embaixador, o anunciou ao conde,
abrindo amplamente a porta do gabinete, o diplomata escrevia cartas para o estrangeiro. Pediu-lhe
sorrindo que entrasse e ofereceu-lhe e ofereceu-lhe a poltrona que estava ao lado da secretária.
Salústio reconheceu que era esperado com interesse e isto fez com que nele crescesse a preocupação
da sua importância. O Frazuela ameigou com demora e em silêncio o que ia dizer.
– Grandes novidades, meu caro...
– Grandes novidades?! – repetiu o deputado cheio de curiosidade.
– Sim. Nada menos que... u-ma cri-se mi-nis-te-ri-al!
– O ministério cai?! – perguntou assustado, dando um pulo na cadeira.
– Não, homem – volveu o diplomata – recompõe-se. Está combinado com el-rei.
E ficou-se sorridente a apreciar o efeito desta novidade. Ela continha uma esperança
Porém, de novo fortemente preso do pensamento do que levaria o Frazuela a ir falar com el-rei,
sem lhe ter dado palavra de explicação, sentia no cérebro nova onda sanguínea de revoltado, revoltado
contra esse mistério que o envolvia. O presidente do conselho, a dois passos dele, conferenciara com o
diplomata e não o chamaram; o diplomata em caminho do paço, certamente que se encontraria aí com
o presidente do conselho e ambos discutiriam com o chefe do estado a crise política!... Talvez a
resolvessem nesse dia, ao menos assentariam as bases da nova combinação ministerial.
E ele desconhecedor até da suma de todas essas conferências, para escutar as quais seria capaz
de cometer baixezas! Sentia despeito, amargura dolorosa a adoentar-lhe o coração, já doente, como
água lodosa que entrasse na bacia dum pântano para aumentar a turvação. E monologou tristemente
ralado:
– Isto é só para eles, para esses grandes magnates!...
Julgavam-no incapaz de entender das artimanhas da política elevada? Seria por desconfiança na
sua discrição, ou não lhe atribuiriam inteligência para tais combinações?!... Era então só meterem-lhe
debaixo do braço uma pasta, como a um manequim?!... Pois enganavam-se redondamente: para
intrigas e planos cavilosos é que se sentia impelido; era a sua verdadeira paixão. Da política o que mais
o encantava era poder achar-se envolvido em acontecimentos defesos ao maior número; era guiar com
mão firme os homens, como os cocheiros governam cavalos. Dispor em caprichoso alvedrio dos
outros, eis toda a sua ambição. A sua vaidade ostentosa gostaria que lhe atribuíssem força e poder
dominantes, ainda que fosse mentira. Atraíam-no irresistivelmente as manhas, os raciocínios
complicados, o proceder enigmático e labiríntico dos estadistas de nomeada no estrangeiro. A astúcia,
o ardil, o engano, eram qualidades que desejava possuir, por serem, no seu entender, as que
distinguem os governantes dos governados.
– Tudo o mais pouco vale! – afirmou com jactância.
Sentia-se esvaído no seu entusiasmo, picado no seu orgulho, pelo Frazuela nem a consideração
lhe ter dado de lhe revelar para onde ia. Por acaso é que lhe ouvira dizer ao trintanário «Para a
Ajuda...» Abandonara-o no meio da rua, com o vulgar aperto de mão, que se dá a toda a gente. Tal
procedimento magoava-o e era incompreensível. Tê-lo-ia na conta dum simples verbo de encher,
duma criatura de quem podia dispor a seu talante?!...
A tenacidade de Salústio nesta ideia dominante era tal que, a princípio, nem deu pela presença
Salústio Nogueira entrou na câmara, com aspecto altivo, atirando um olhar valioso por cima de
toda a representação nacional. Alguns segundos lhe bastaram para cumprimentar o grupo de
deputados e pares do reino, que estavam junto do fogão, à esquerda. Depois subiu as escadas indo
Na noite desse dia, as pessoas reunidas em casa do Frazuela foram sobressaltadas pelo sinal de
fogo dado em grande número de torres da capital! A sensibilidade das senhoras comoveu-se, muitos
homens preparavam-se para ir ver se o incêndio seria em suas casas!... Das janelas apreciava-se uma
claridade de aurora, para os lados do Aterro. Algumas pessoas raciocinando avulsamente calculavam
onde o pavoroso sinistro se localizaria, quando D. Agostinho, que tudo observara por sobre o ombro
do general Gonçalo, disse com voz quase indiferente:
– Aquilo pode muito bem ser no Paço da Ajuda!
Empalideceram subitamente, entreolhando-se mudos e estupefactos! Aquela palavra serena e
breve teve os ribombos estrondosos da dos antigos profetas anatematistas, quando anunciavam a
ruína da santa Jerusalém!... Podiam morrer suas majestades e não se salvarem os príncipes!... Havia
cuidados preventivos em volta do palácio real – sabia-se – mas essa incalculável fatalidade seria
impossível?!... Salústio pegou comovidamente no chapéu e desapareceu sem se despedir. Muitas
pessoas o seguiram e houve tropel na escada. Porém, o deputado, que a todos se adiantara, na rua
principiou a andar num passo perturbado. Encontrando uma carruagem que recolhia, precipitou-se
dentro e só teve força de dizer sufocado: «Para a Ajuda!» O cocheiro principiou a chicanar o preço,
por causa da hora adiantada da noite, e Salústio, atirando-lhe com a desprezível palavra canalha, correu
desorientado para o lado abaixo, no propósito de ir a pé e, se tanto fosse necessário, clamando com o
fim de acordar o generoso sentimento popular.
No Aterro, um polícia que fumava tranquilo, vendo-o naquele fugir, deteve-o, julgando ter ali
um criminoso ou um louco. Porém, depois de se explicarem mutuamente e informado Salústio de que
o fogo, que dali se via distintamente, era no populoso bairro de Alcântara, ficou mais tranquilo.
Aquele sinistro havia perdido todo o seu alcance de cataclismo social. Voltou à rua da Emenda, com o
fim de sossegar os ânimos alterados, tornando a sair imediatamente a pedido da condessa e doutras
senhoras, que desejaram saber, antes de se recolherem às suas camas, se nessa catástrofe haveria
vítimas a lamentar. D. Agostinho foi muito censurado pelas palavras pronunciadas, de que resultara
todo aquele alvoroço!...
– Ora que infeliz ideia havia de ter! Sempre nos pregou um susto!
A Águas Santas acrescentou:
Que estivera el-rei montado num cavalo castanho, conversando com o presidente do conselho,
com o governador civil e com o comandante das guardas municipais a quem oferecera um charuto,
sabia-o todo o mundo; porque o jornal que melhor informado se mostrara mencionava o facto com
todas as suas valiosas minuciosidades, como, por exemplo, a de ter sua majestade tossido, a ponto de o
julgarem constipado! Também pelas revelações da gazeta se sabia que, no dia seguinte de manhã, o
Toda a sociedade andava contente na perspectiva do espectáculo protegido pela rainha. Porém, a
mulher do ministro da guerra, para a qual os ensaios tinham o encanto de uma festa nova, é que se
mostrava mais interessada. As sensações inesperadas que daqui lhe vinham, a espécie de
independência de que gozava por este facto, recordavam-lhe a liberdade das suas manhãs de cricket, na
quinta do marquês de Viana, ou na tapada da Ajuda, quando no mês de Setembro estava fora do
colégio.
Num dia, depois do almoço, já a carruagem estava à porta para ela sair, teve grande acesso de
alegria, pela simpática novidade que acabava de receber. A sua querida Angélica Agramonte,
actualmente Mrs. White, chegara de Inglaterra, achando-se hospedada no hotel Durand. Na carta que
Gélica lhe escrevia, perguntava-lhe o modo de se verem, antes de partir para o Porto. Josefa Lencastre,
logo depois do ensaio, haviam de ser quatro horas, foi procurá-la. Como o marido de Angélica tivesse
saído, as duas amigas recordaram, com intimidade de raparigas, coisas passadas; falaram das antigas
companheiras de que não tinham notícia, muitas espalhadas por terras de província; aludiram no meio
de risos, que voavam como pássaros, à vida do convento:
– Lembras-te da mother Mary, com os óculos de oiro e a voz fanhosa?... – disse chasqueadora a
mulher do ministro.
– É verdade, lembro. E aquela menina Torres, que nós detestávamos, por andar sempre a
bajulá-la com o fim de ter melhor sobremesa? Tem-la encontrado?
– Ah!... Casou com um homem pobre e teve de ir para o Brasil com o marido. Disseram-mo,
que eu, quando a via em Lisboa, quase não lhe falava... Bem vês, que não era da nossa roda –
pronunciou com desvalor.
Angélica Agramonte não gostou de lhe ouvir aquilo. Recordava-se perfeitamente de ver aos
domingos o pai de Josefa, quando a ia visitar. Era um modesto empregado, de longa sobrecasaca, ar
fastiento, mas empertigado. Nunca lhe parecera homem de posição, nem por esse tempo a sua amiga
pensava em toleimas. Enfim os tempos mudam e as pessoas também.
– Estás linda – observou Mrs. White, depois de um silêncio. – Vives feliz, pelo que vejo...
Josefa Lencastre, abaixando reservadamente os olhos, num recato de timidez e acinte, responde
sem encarar o interlocutor, mostrando-se-lhe por este modo hostil e melindrada:
Teve aplauso unânime a inflexão da rainha. Todos concordaram em que nessas duas palavras
dum significado humilde, ditas como Josefa as dissera, se podiam condensar volumes de despeitos
femininos; todos reconheceram quanto nelas se indicava que a gentil princesa estava magoada pelo
procedimento do seu rei. Mas para conseguir o prodigioso efeito era indispensável acompanhá-las de
É então que Luísa de Sabóia, com velada ironia, acentua a sua amargura e despeito, sorridente e
esquiva:
– Muito bem, assim mesmo – aplaudiu com benévola superioridade o actor Rosa, indo
lentamente para o fundo da sala sentar-se na sua poltrona de juiz.
– Muito bem, muitíssimo bem – repetiram outras pessoas, batendo cerimoniosas palmas.
– Bonsoir donc... – pronunciou a Frazuela imitando Josefa. – Magnifique!
– Superbe! – acrescentou o visconde de Pomarini.
A mulher do ministro, animada pelos aplausos, sentiu grande calor no rosto! Aquela
organização emocional teve, neste momento, forte impulso para as regiões livres da arte. A sua
existência monótona, na convivência de um marido sem paixão de coisas sublimes, foi de repente
arejada pelos repetidos bravos, que o seu talento provocara. O dia da representação, quando diante de
público mais numeroso renascessem os entusiasmos uniformes, devia ser para ele de grande
contentamento!... Já sentia que nos ensaios estivesse pouca gente para a aplaudir. Na realidade a
condessa, a todos os estranhos que lhe pediram licença, (já porque isto fora convencionado e talvez
presumindo que pudesse haver ligeirezas e amabilidades de bastidores, que não desejava sabidas cá
fora) respondera inflexivelmente: «Esperem pelo dia. Até lhe encontrarão mais graça.»
Além dela, que assistia como dona da casa e senhora de alto critério, poucas mais pessoas havia.
Entre essas poucas estava Salústio Nogueira, que representava o aquecimento do entusiasmo exterior
a respeito desta festa galante. Pelos seus amigos dos jornais, fazia aparecer diariamente notícias
excitadoras da opinião! Com a sua verbosidade magnífica, nos sítios onde aparecesse, encarecia tudo
quanto estava em projecto, dando a factos insignificantes alcance literário, valor determinante de
progresso intelectual do país, representado pela iniciativa da melhor sociedade. A quem lhe pedia
informações dava-as acrescentadas; porém, como sempre as julgasse incompletas, aditava:
– No dia verão! Ainda se não fez em Lisboa coisa semelhante!
E concluía, condoído e humilde:
– Eu é que não sei como descalçar a minha bota!...
A sua bota era o discurso que prometera pronunciar na abertura do espectáculo. Preocupava-o
imenso o delicado trabalho. Era caso novo e sentia-se em dificuldades, por falta de modelo. Deveria
ser uma peça oratória, apropriada ao lugar e à intenção daquela festa de caridade: – exigia carácter ao
mesmo tempo mundano e religioso. O elogio da sublime virtude que protege os fracos e indefesos,
cobrindo os nus, alimentando os esfomeados, consolando os tristes... era tema brilhante, digno da
eloquência de um Lacordaire. Porém, atendendo às circunstâncias do lugar e do público a quem era
destinada a sua palavra, Salústio premeditava acentuar-lhe o carácter político, elegante e literário, como
de conferência sobre tema social e filosófico de altruísmo. Era indispensável calcular tudo, para chegar
ao efeito desejado, por isso durante quatro noites sucessivas se recolheu às dez horas, com o
propósito de compor o discurso. Que momentos de amargura e desconsolação, se se sentia estúpido, a
cabeça vazia de ideias grandiosas e a boca seca para expressões sublimes! Mas lá vinham instantes de
melhor felicidade compensá-lo: era quando lhe arquejava dentro do crânio o demónio da inspiração,
saindo-lhe da pena, como dum reóforo eléctrico, correntes de períodos vigorosos, amplos e cheios de
majestade tribunícia. Então sozinho no quarto ou casualmente na presença de Angelina, batia
orgulhosamente na testa com sorriso de triunfador e olhar violento de inspirado, dizendo:
– Que diabo! Tenho talento. Às vezes não me parece; mas tenho talento.
Lia Castellar, a eloquência sonora da Península; lia Bossuet, o pomposo ornamento da tribuna
católica; lia o padre Vieira, fino e audaz argumentador, de uma fecundidade surpreendente com
subtilezas de alcance filosófico e social! A ornamentação pomposa do estilo de Latino Coelho, nos
seus elogios académicos, desejava Salústio imitá-la, por lhe parecer perfeitamente adequada às
circunstâncias e ao género de oratória que preferia. Era ambicioso de celebridade, tinha desejo de
impressionar aquele público,o melhor de Portugal, por isso procurava nos livros e na imaginação
comparações e imagens selectas. Estudava frases e gestos especiais: – curvaria ligeiramente a cabeça,
baixando as pálpebras de modo respeitoso, quando se dirigisse à rainha; seria com o braço direito
estendido e a mão amplamente aberta que havia de designar a comissão de senhoras, «dilectas filhas de
S. Vicente de Paula» que organizaram tão simpática quão profícua festa.
O êxito diante dos homens estava-lhe assegurado, porém às senhoras é que principalmente
queria agradar. São elas que fazem a opinião, que marcam os maiores triunfos aos que têm a missão de
falar em público. – Coisa de que as mulheres gostem... – pensou.
A quem, a que espécie de senhoras entregaria ele a apreciação do seu trabalho?... À condessa de
Frazuela?... A Josefa Lencastre com a tia viscondessa?... Nada!... Perante essas, justamente, queria
Salústio passar como orador de inspiração ocasional e pujante, queria que o tivessem no conceito de
improvisador com arrebatamentos e cintilações! Fora da roda escolhida, só lhe lembrou Angelina, a D.
Maria Gomes e a Ermelinda Travassos. O bom Molière lera as suas comédias à própria criada, que era
sua cozinheira.
Decidindo-se por esta prova, que lhe conservaria a fama de repentista no conceito do público a
que destinava o seu discurso, incumbiu a Angelina de convidar as mestras de piano, para o ouvirem. A
ingénua rapariga ficou satisfeita, pois atribuía às suas amigas primores de gosto literário e educação,
que nela minguavam.
O espectáculo determinou-se que fosse no salão da Trindade. Seria mais brilhante e mais
rendoso se escolhessem o teatro de D. Maria; mas quis-se evitar a comparação ocasional, de senhoras
com actrizes de profissão. Bilhetes pessoais a libra, encarregando-se a Frazuela de distribuir os das
primeiras filas de cadeiras, às principais famílias de Lisboa, era meio de arranjar público selecto e bom
rendimento. Assim se dava à sala aspecto familiar, íntimo e aristocrático, e ao mesmo tempo se
conseguia tornar populares os sentimentos de caridade da rainha e da alta sociedade. As cadeiras
restantes seriam ocupadas por gente menos que, ainda assim, a libra cada bilhete, deviam ser pessoas
de certa cultura mundana e gosto pelas coisas elevadas da arte.
Os jornais, dirigidos nesta campanha por Salústio Nogueira, proclamavam o valor intelectual e
o exemplo democrático de tão requintada festa. Em que época se vira a melhor gente da capital,
aquela que em si resume o que Lisboa possui de inteligente, rico e bem nascido, dar esta prova de
deferência pelo público, expondo-se ao seu julgamento?! Só pelo sagrado impulso de minorarem as
mágoas e aflições dos humildes, na vida tão impiedosamente experimentados pela sorte é que tal se
concebia! Seria também (ninguém o contestava) um triunfo para as ideias niveladoras do século, e tal
facto só podia servir de louvor aos que assim procediam. «Bem hajam (escrevia o jornal a que temos
aludido), bem hajam esses nobres e levantados corações, para quem a caridade é uma religião e o amor
da arte um decidido enlevo!» Para sustentar bem quente e vibrátil o entusiasmo, que se avolumava dia
a dia, o mesmo poderoso órgão da opinião envolvia em palavras da mais requintada cerimónia e
respeito todas as nobres damas que, cheias de abnegação, andavam «na bela cruzada em prol dos mal-
aventurados, para os quais a vida é inferno» conglobando nos epítetos mais facetados – a rainha, para
quem lembrava o cognome de «consoladora dos aflitos»; a nobre condessa de Frazuela; a virtuosa
esposa do general Gonçalo de Moura; a simpática sobrinha do ilustre marquês de Tornal, D. Florinda;
e, finalmente, «a distinta estrangeira (madame Augustine Lagrant) que nos faz a grande e nunca
esquecida honra de considerar esta a sua verdadeira pátria!»
Mas, apesar do seu grande respeito e mesmo temor da imprensa, o ministro da guerra
continuava a nutrir surdas preocupações acerca desta exibição da formosura de Josefa, num palco!...
Não tinha mais na sua mão e, ainda que fossem formidáveis os esforços que fazia para se conformar,
não lhe era possível... Seria honesto, irrepreensivelmente honesto, o papel que tinham distribuído a
BENEFÍCIO
A favor das vítimas do fogo de Alcântara, promovido por uma comissão de senhoras,
sob a alta protecção de SUA MAJESTADE A RAINHA, e em que tomam parte distintos amadores.
—
PRIMEIRA PARTE
Discurso de abertura, apropriado às circunstâncias, pelo notável orador, o Il.mo e Ex.mo Sr.
Salústio Nogueira.
II
Quarteto de violino, violeta, violoncelo e flauta, sobre motivos da ópera Faust de Gounod,
executado pelos notáveis amadores MM. Le Vicomte de Mambra, le Baron Test, Grasset e
Carlos Afonso.
III
L'ERMITAGE
—
Intervalo de meia hora
—
SEGUNDA PARTE
Luz e Caridade poesia composta e recitada pelo I.mo e Ex.mo Sr Alberto da Cerveira.
LE BIJOU DE LA REINE
III
Sessão de prestímano, dada pelo distinto amador, o Il.mo e Ex.mo Sr. Albano de Melo.
—
O espectáculo principia às nove horas da noite, depois da chegada de SUAS MAJESTADES.
Antes desta hora já a sala se sentia cheia do ouou... das conversas animadas. Havia muita gente e
a linha movediça de um público inquieto desenhava-se sucessiva e inconstantemente no ar, como
acontece às ondulações das vagas, que se repetem sem descanso. A condessa de Frazuela, à maneira de
Paris, procurava reunir neste espectáculo, que a rainha se empenhava que fosse brilhante, tudo que se
pudesse encontrar com um nome conhecido e estimado em Lisboa, e conseguira-o.
Viam-se na sala homens descobertos, mostrando as largas frontes emolduradas em belas
cabeleiras de talento, e que tinham a intenção de se mostrar vaidosamente em público: – eram
escritores, jornalistas, actores, músicos, pintores... as reputações intelectuais, mais ou menos
consagradas.
A viscondessa de Águas Santas lá estava do lado direito, em frente ao camarote real, sempre de
pé para ver quem entrava, animando o público com o seu riso perpétuo, atraente e de boa educação.
Até as pessoas que a não conheciam, que lhe não falavam, se sentiam agradadas com a sua presença,
que era de uma senhora, que distinguia cordialidade em toda a sala. Mulheres de ministros e de
influentes na política, iam-se agrupar em volta dela, por uma convenção tácita, inculcando-se
subordinadas e aceitando gostosamente o seu protectorado. D. Cesária, com a sua cara sumida de
invejosa, dirigia-se-lhe frequentemente, com o fim de transmitir as suas impressões de pessoa
insaciável. O que ela melhor apanhava no binóculo sempre assestado, eram as toilettes caras de algumas
senhoras de vida aparentemente normal e bem estabelecida, mas cujos gastos ninguém sabia explicar.
Aquele luxo, claramente superior às posses de cada uma delas, tinha decerto origem impúdica, que D.
Cesária envenenava com palavras ácidas. E como se reconhecesse isenta de todo o pecado,
Toda a sala escutou de pé o hino real, como fórmula de vassalagem e respeito. Os monarcas, ao
tomarem os seus lugares, exprimiram num sorriso e numa ligeira curvatura quanto se sentiam
agradecidos por esta ruidosa atenção. Os espectadores corresponderam sentando-se, sem despregarem
os olhos do camarote real. Depois, quando a aparatosa figura de Salústio Nogueira veio colocar-se
diante de uma pequena mesa, que estava à boca do palco, estabeleceu-se silêncio precioso, seguido de
imponente salva de palmas, restabelecendo-se após digno e interessado sossego. O deputado mostrou-
se reconhecido, numa inclinação de cabeça, e mudou o copo de água, coadjutor da eloquência, da
esquerda para a direita. A expressão do seu rosto era vivaz, sem deixar de ser modesta!...
A cabeleira abundante e negra, penteada para a nuca, deixava-lhe a fronte espaçosa numa
evidência clara. Os seus olhos pardos abraçaram rapidamente a plateia num rasgo de ambição, indo-se
amortecer submissos nas augustas pessoas reais. Repuxou os punhos e desafogou o curto pescoço,
dando aos largos ombros o movimento de quem sustentasse o peso duma glória imensa! Ia falar:
estendeu o braço direito e com a mão aberta indicou hipoteticamente qualquer coisa, que estaria
longe, numa região de luz...
Senhor.
Senhora.
«Na poética e melancólica paisagem da Judeia, apareceu outrora um homem, com a palavra
redentora correndo-lhe a flux dos lábios! – «Deixai que os pequeninos se cheguem para mim!» – disse ele, e
esta frase de uma simplicidade divina correu o mundo levada na língua dos Apóstolos galileus, que de rudes se
tornaram – oh! Maravilha! – rapidamente em sábios, que de humildes pelo nascimento foram depois grandes pela
virtude. Singular e extraordinária transformação, que em si resume e por si atesta quanto é celestial esta
religião de caridade e de fraternidade, que o Homem-Deus proclamou e estabeleceu! Facto novo e
superior às nossas míseras inteligências, que se engrandecem com a verdadeira crença religiosa, se os
sublimes preceitos do evangelho as fecundam! (Rumor aprovativo).
O quarteto de violino, violeta, violoncelo e flauta, sobre motivos da ópera Faust de Gounod, foi
muito aplaudido e bisada a última parte. Evolavam-se os sons amorosos de canções ternas no jardim
de Margarida! A música ondulava no ar, com a cadente tremura de murmúrio de fonte campestre!...
Logo depois, as notas infernais das gargalhadas mefistofélicas assobiavam irrompendo num escárnio,
ou então, resumindo a cena à porta da catedral, eram sons profundos e serenos, de uma amplitude
cabalística, como os esconjuros das feiticeiras à boca das cavernas, nas lendas escandinavas! A seguir
tocaram uma valsa de Strauss: aquela música nervosa, salpicada de notas altas de tom estridente e
áspero, a cortar a melodia de efeitos adormecedores, atirava-se para o ar, alegre e espantada, como as
asas de um pombo, escorraçado de sobre a seara! Depois o pano abriu-se para os dois lados, como os
cortinados de um leito... Um quadro de parque, com antigas árvores comprimidas em espaço restrito,
apareceu por baixo da bambinela cor de céu, que ficara a ondular, agitada pelo último repelão das
cortinas. Percebia-se ao fundo um vale, em que fortes pinceladas de azul e branco designavam
irregularidades da superfície de um lago; em que, ainda mais longe, certas manchas negras, acumuladas
num sentido de despenhadeiro, fingiam de penedos suspensos de colinas... Por entre gargantas escuras
caíam cataratas de água, cuja corrente era significada em filetes de papel prateado, que reflectiam a luz
5 Esta palavra aparece grafada, no original, de formas distintas (“Mayran”, “Mayram”). Não sabendo ao certo
se terá sido gralha ou antes alguma intenção do autor, decidimos manter essas variações na presente edição.
(Nota do Editor)
O mais interessante acontecimento da noite seria, por certo, a representação do Bijou de la Reine,
em que entravam Josefa Lencastre e o Cerdeiral. Nos dias antecedentes ao da festa desejada, em
palestras e jornais, muito se falou e aludiu a isto. Salústio Nogueira, com a magnificência da sua voz
baritonal disse numa reunião de pessoas selectas: «Verão: não se representa melhor em Paris, nem em
D. Maria» – opinião que se divulgou em salas e botequins, como vinda de pessoa que tinha autoridade
e assistira aos ensaios.
Mas o que verdadeiramente acirrava a curiosidade era saber-se das presumidas relações
amorosas entre os dois principais intérpretes. Consideravam o barão homem perigoso e bom táctico
em conquistas que a moral proíbe; Josefa, nova, fresca, bonita, era uma provocação, um óptimo
morango para aquela boca de guloso. Além disto, cabecinha leve de lavandisca, que em solteira muito
doidejara na procura dum marido, novo e elegante, que não encontrara por não ter um dote. O
general Gonçalo definiam-no como velha nau em que a viscondessa de Águas Santas embarcara a
sobrinha, para viagem incerta. Tudo isto se rememorara no correr do espectáculo, e foram muito
binoculados Josefa e o marido, quando no começo estiveram juntos, mesmo em frente de El-rei, onde
o ministro se colocara de propósito, para fazer de modo assinalado os cumprimentos à família real.
Troçavam-no por entre risadinhas, chalaçavam do seu aspecto de móvel velho envernizado de novo;
as malícias atingiam-lhe a honra doméstica. No intervalo que precedeu o abrir do pano, para principiar
a representação do Bijou, crescera a malevolência, o sussurro das conversas envenenadas ia pela sala,
forte e galhofeiro, como zumbido de milhões de abelhas. O maldoso folhetinista Cerveira certificava a
um grupo de amigos aludindo ao general:
– Ele sabe-o perfeitamente, mas não lhe faz conta dar-se por entendido.
– O homem ignora-o – disse circunspecto o crítico Torres.
– Então é burro – rematou Cerveira.
O Fonseca, da Alfândega, sempre no propósito de se mostrar, ao corrente do que se passava
nas alcovas lisboetas, esclareceu, afirmando de modo a não consentir dúvida, que tudo era verdade:
que o general estava bem instruído por cartas anónimas que recebera. E concluiu como
esclarecimento:
– Os dois já estiveram para se bater. A coisa apaziguou-se, para não serem desagradáveis àquele.
Filipe de Anjou acha incompreensível que Luísa evite os seus ternos carinhos. Não a quer assim
inimiga, neste momento em que tanta formosura o inebria! Aqueles seus olhos são feixes de luz
brincando com flores, brilham como o fogo, desse fogo que lhe incendeia os nervos. Aos madrigais
do esposo, exprimindo fremente sensualidade, a rainha responde como quem sente no coração a
ponta de um espinho e, ao mesmo tempo irónica e repreensiva, pronuncia a célebre frase, cuja
interpretação tão discutida fora nos ensaios:
Sente-se ofendido o esposo com tal desprendimento. Pede-lhe a mão, que Luísa lhe estende
com simpleza conjugal. Conservam-se ambos silenciosos, o barão com o braço de Josefa num
contacto, que na plateia se principiou a julgar demorado. Palpá-la-ia ele com sensualidade, deixar-se-ia
ela possuir com deleite?!... Josefa com entoação, que parecia conter malícia, pergunta:
Pareceu pergunta, esta, menos própria de senhora casada. Duvidou-se que fosse correcto,
mesmo no teatro, uma esposa honesta dizer a um homem, que não era seu marido, se ele queria mais
alguma coisa, do que possuir dela um braço de pele fina, orvalhada de desejos!...
O conselheiro Maurício Pontino perguntou ao visconde de Carregueira, que ficara a seu lado:
– Acha aquilo decente?
O juiz do Supremo, que entretinha toda a sua vista e atenção a binocular a magnífica carnadura
de Josefa, não respondeu e o pai de Clara insistiu:
– Ela, mulher do general Gonçalo, já consente que o barão lhe tome um braço, o qual possui muito
à sua vontade, como vê... Não vê?!...
– Vejo, é teatro.
– É teatro, é teatro! Daqui se vai ao mais. Atenda como ele se demora. Acha decente?
– Acho, conselheiro, e peço mais; porque estou a gostar.
– Pois o meu caro amigo é de bom comer! Se um dia tiver mulher, deixe-a com ele, que ficará
bem arranjado. Olhe que lha prega...
O severo olhar de Maurício encontrou-se com o do ministro da guerra no momento em que
este afastava a vista da cena, que o incomodava.
O barão, enquanto ia ameigando graciosa e demoradamente a cetinosa pele de Josefa, inquiria
dos motivos ocultos de tanto agastamento. A rainha, irónica e adversa, censura-lhe a linguagem, os
olhares ternos, que mais parecem de estudante amoroso do que dum marido e dum rei! Filipe
responde, dando às palavras inflexões de amante surpreendido duma recusa, que tanto lhe está
aumentando o apetite da carne:
D. Cesária, triunfante por ver corroboradas as suas denúncias, segredou à mulher do ministro
da justiça:
– Pudera! É noite... não ouve ninguém... amam-se... e toca. Ora, a pouca vergonha!...
O general Gonçalo, na galeria, afastara o busto de modo a não ser visto da plateia. Tinha o
cérebro batalhado de funestas apreensões! A sua cólera crescia!... Uma nuvem sanguínea lhe passou
diante dos olhos, ao ouvir um escandaloso beijo que o barão deu em Josefa! Do seu espírito
apoderaram-se com força ideias tremendas de vingança! Tudo tranquilo, assim começado, poderia
redundar num verdadeiro ultraje ao seu nome. Tinha a pobre alma repassada de ciúme e vergonha.
Considerava-se o verdadeiro culpado de sua mulher receber em público beijos daquele canalha, que
lhe estava enodoando a vida austera. Aquele seu ódio era de brasas e escaldava-lhe dolorosamente o
coração. Poderiam dizer-lhe: «Isto é fingido, isto é simulação de comédia.» Com tais coisas não se
brinca; não se dão em público beijos numa senhora casada! Aquele que o Cerdeiral dera em Josefa
fora muito verdadeiro e Josefa aceitara-o com naturalidade e quem sabe se o recebera com gozo!
Quantas pessoas o teriam comentado malevolamente! Bem vira que muitos olhares irónicos o
procuraram na galeria, quando ele se subtraíra à tremenda flagelação, retirando-se para não ser visto.
Pois deu lugar a que o miserável do Cerdeiral respondesse com transporte, que muito bem
poderia não ser fingido:
«..............................................Avec délire!»
Para se distrair e patentear que tinha toda aquela cena como dever de representação simulada,
perguntou a um dos seus ajudantes:
– Então que lhe parece?
– Admirável! São dois verdadeiros actores!
Também este achava magnífico! Ora não ter a liberdade de lhe dizer que trouxesse para ali a sua
mulher, que era igualmente nova e bonita, sujeitando-a a receber publicamente beijos dum mariola
como o barão! Havia de saber-lhe a pimenta, se é que a amava como ele amava Josefa. E resumiu com
secura o estado da sua alma:
– Muito palavreado. Não acho natural.
– Oh!... – discordaram os dois oficiais. – O mais natural possível...
Ao mesmo tempo, o Fonseca, da Alfândega, à vista das palavras de paixão do simulado Filipe
d'Anjou, que metia excessivo calor e sensibilidade nos seus juramentos, dizia para Alberto da Cerveira,
ratificando as suspeitas anteriores:
– Então qué-lo mais claro?
– Tudo uma desmoralização! – rugiu o poeta, apanhando num relance as cadeiras de frente. –
Aquelas são piores do que as que se vendem, porque se entregam por vício e não por necessidade de
viver.
Trata-se a seguir do colar tão desejado pela rainha. É uma insignificante jóia, de valor não muito
subido. Um capricho dos dezassete anos, juvenis e fogosos, da duquesa de Sabóia. O rei, apesar do seu
amor, recusa-se a satisfazer o apetite da esposa, em nome dos interesses da nação! Os seus deveres de
príncipe, sentado num trono estrangeiro, impõem-lhe, com maior força do que se nascera espanhol, a
necessidade de poupar o seu povo, que sendo de carácter brando e submisso, não deve ser
insensatamente expoliado. Luísa não compreende tais motivos, só sabe que, quando era solteira, em
casa de seus pais, lhe satisfaziam as vontades. Via que a troca da coroa ducal pela coroa de soberana
não era tão vantajosa como lhe tinham feito acreditar!... Que proveito tirava ela de compartilhar as
rudes fadigas de um esposo, todo envolvido nas intrigas da diplomacia e nas aventuras da guerra!...
Com ser rei não se julga tão feliz como o mais humilde dos seus vassalos! Àquela hora da noite,
quando, até na mais pobre choupana, todos se sentem compelidos a viver para o amor, o jovem
monarca, sem a mulher que adora, vai gastar horas, que desejaria empregadas no prazer, folheando
papéis de negócios de estado!... Mas ele se vingará encontrando meio de punir aquela estranhável
recusa. Quando Luísa perceber que o esposo já não é o amante, o seu orgulho de rainha se abaterá
diante das necessidades da mulher! O rei Filipe V recolhe-se, assim mal humorado, aos seus
aposentos!
A cena fica vazia por alguns instantes, durante os quais na plateia cresce o sussurro dos
comentários. Na roda da Frazuela manifestavam entusiasmo pela superior interpretação da comédia.
Salústio disse com entono: «Admirável, admirável!» A condessa acrescentou, aludindo a Josefa:
«Parece que nasceu no Louvre!» D. Cesária, apesar dos sinais de assentimento e admiração, que fazia
para serem vistos pela viscondessa de Águas Santas, segredou ao Carregueira, indicando o ministro da
guerra:
– E aquele grande palerma sem perceber!... Mete-me uma raiva!
– Há-de ser o último! – considerou, todo contente, o juiz do Supremo, esfregando as mãos com
íntima satisfação de confesso pecador.
Entra de novo Josefa Lencastre. A sua presença altiva e preocupada conquista o Fonseca, da
Alfândega, que exclama entusiasmado para os seus amigos: «Digam vocês o que quiserem, é uma
Josefa sublinhou de tal maneira as últimas palavras, que uma parte da plateia lho conceituou de
exagero, e até propósito de dar mau sentido a uma frase inocente. Uma princesa de dezassete anos
poderia sentir tanta malícia, como ela inculcara?! – comentavam.
– Mas se aquilo é do papel!... – defendia incendiado o visconde da Carregueira.
Porém, a formosa Luísa, com a ideia fixa de conhecer o conteúdo do cofre, afasta de si todas as
ideias de humilhação e chama em voz alta à porta do quarto do rei: «Sire!... Sire!...» Filipe de Anjou
aparece-lhe já em robe-de-chambre, de veludo encarnado, bordado a matiz. Consente benevolamente que
a rainha examine aquela caixa, que contém simplesmente um milhão! A princesa diz com ironia
mordente, aludindo à desculpa que seu esposo lhe dera, para não comprar o colar:
Então o rei, em tom nobre e altivo, censura, justiceiro, o procedimento de seu avô, de Carlos
VII, de Luís XII, que exauriam o povo submisso e bom com tributos, para entreter faustosamente
impúdicas amantes. E tendo falado, veemente e nervoso, termina com esta frase, que fez com que
muita gente olhasse a medo para o camarote real:
Filipe V responde:
E com tão significativa malícia o barão de Cerdeiral formulou esta delicada questão, que o
austero carlista D. Nicolas disse a um seu compatriota:
– Pero, es una obscenidad!...
A mulher do ministro da guerra, de cada vez mais excitada pela sucessão de frases amorosas,
ciumentas, de duplo sentido, que tivera de pronunciar, e também pelos sinais aprovativos, que percebia
no público ao escutar-lhas, observou, agora com meiguice encantadora:
e deu-lhe outro beijo mais demorado ainda do que o primeiro, o que fez com que o general Gonçalo
se tornasse rubro até às orelhas.
– Bravo, bravo! – aplaudiu Albano de Melo com fogo.
– Luísa promete tacitamente satisfazer o pedido do rei. Porém como ainda duvidasse que a sua
amiga íntima, madame de Luys, a atraiçoe, quer que o esposo pague caro, se perder. Filipe, seguro das
suas informações, promete.
Evidentemente era assim mais desejada do que anteriormente, quando trazia o pesado vestido
de rainha! Sem diadema, os seus longos cabelos espalhavam-se em caudal de oiro, leves sobre as
mimosas espáduas, cobertas de fina cambraia e rendas!... A transparência do tecido deixava perceber a
pele criadora de desejos!... Os braços nus, de um rosado carnal, macios e aveludados, viam-se-lhe até
acima do cotovelo, pela largura da manga do roupão. O soberbo corpo de Josefa, na sua atitude de
deusa, por todos era adivinhado, numa espécie de nudez de estátua grega! A tremura contente daquela
carne nova e bem tratada, presumiam-na os que tinham pensamentos lascivos!... Os seus olhos negros,
fixando-se amorosamente no barão de Cerdeiral, envolviam-no em magnético fluído, que lhe percorria
todas as fibras do corpo. A mulher do general afectava o ondear de serpente tentadora, aumentando
assim a sedução e o império do seu amor. Dramond, ao apreciá-la, exclamou:
– Oh! qu'elle est belle!... Charmante!...
– Et vous êtes un imbécile! – retorquiu-lhe a ciumenta viúva Joujou.
O Cerdeiral, outra vez de posse de Josefa, disse com dolente meiguice:
E apanha-a com efusão, com ternura copiosa, conservando-a muito tempo contra o seu corpo
de mancebo ardente, desejando confundi-la em si mesmo.
pergunta a esposa.
O rei, depois de a beijar amantissimamente pela terceira vez, responde com graciosa ironia:
Este proceder generoso apaga toda a imoralidade da peça, que as circunstâncias do instante
dirigiam para um final claramente obsceno. O próprio general desafogou, recebendo aquelas palavras
como indispensável satisfação ao seu pundonor de marido!... Mas a simpática expectativa desvanece-
se!... Josefa, com uma candura ideal, embebe a sua linda voz na mais inocente e terna meiguice de
mulher apaixonada, passa, agora ela, amoravelmente o braço em volta do tronco do Cerdeiral,
oferecendo-se:
E os dois assim enlaçados, como se estivessem longe de vistas interessadas, entram no quarto
da rainha, ao mesmo tempo que as cortinas do proscénio se unem para melhor os separar da plateia
curiosa.
Angelina esperava com ansiedade a notícia do espectáculo, em que tão seriamente vira
empenhado Salústio. Ouvira-lhe dizer enquanto se vestia: «Esta noite decide-se a minha sorte»... Logo
que ele entrou radiante, interrogou-o com vivo interesse. À pergunta que a sua amante lhe fez, o
deputado, de pé no meio da casa de jantar, o rosto expansivo a rebentar de orgulho, chapéu para a
nuca, respondeu:
– O rei mandou-me cumprimentar por um dos seus camaristas... Cáspite! Isto sobe!...
Angelina, rapariga simples e natural, não compreendia em todo o seu significado tais palavras,
que decerto conteriam grande valor. No entanto arfava de gozo, ao estender a toalha na mesa, para
Salústio comer alguma coisa, pois quase não jantara de preocupado com o êxito do discurso que tinha
de pronunciar. Agora impando de vaidade, em mangas de camisa, à vontade, comia famelicamente
carne fria e ovos, emborcando copos de vinho. Sentia-se feliz e verboso, ia narrando as magnificências
dessa festa, como Lisboa não presenciara ainda outra: o brilho das jóias e a sumptuosidade dos
vestidos das senhoras; os reis no camarote, olhando para ele com apreço; os ministros e diplomatas
tendo nos peitos condecorações! O seu discurso, extraordinariamente aplaudido, toda a gente a
festejá-lo com palmas e abraços!... Falou a seguir do interesse, que por ele tomaria o monarca,
interesse revelado numa palavra que ao ouvido lhe dissera o conde de Frazuela. Mas voltou a
descrever o espectáculo abrindo os braços para significar a grandeza do que vira!... A comédia de
Dumas, tão ricamente posta em cena, tivera superior interpretação. O barão de Cerdeiral admirável,
verdadeiramente admirável! Josefa Lencastre encantadora, soberba de inteligência e formosura!
Mulher divina, os homens na plateia sorviam-na com os olhos! O Cerdeiral, que era seu amante, sentia
todas as palavras de amor e paixão que lhe dirigia. Ele, Salústio, não percebera tudo por não estar bem
calhado no francês, que falado assim, como ele o ouvira, era uma música, uma deliciosa música...
Apesar dessa sua incapacidade de compreender tudo, a perfeição do representar apreciara-a pelo gesto,
pelo jogo fisionómico, pela voz comovida, ora apaixonada, ora risonha. Um encanto, uma maravilha,
felicíssimo aquele Cerdeiral, gozando uma das mulheres mais encantadoras de Lisboa! Pobre general,
pobre amigo! Tinha pena dele; mas evidentemente não merecia Josefa. Casos da vida social... –
rematou desprendido.
Angelina não podia alcançar o verdadeiro valor das confidências de Salústio, contidas neste seu
parolar de homem bem comido! Eram coisas que se passavam num mundo que desconhecia. Mas a
palavra ministro, sempre misturada nas conversas mais íntimas, revelava-lhe qualquer coisa, em que o
seu amante resumia todo um imenso sonho de grandezas! Seria ministro mui brevemente e tudo obra
do maravilhoso conde, que lhe aparecera na existência, como um desses inapreciáveis génios, que nos
contos de fadas são príncipes sob roupagens de pegureiros. A filha de Pedro Alves, com tanta coisa
que nesta noite lhe ouvira, deitou-se confusa, a cabeça batalhada por maravilhas, que lhe tiraram o
sono. Salústio, a seu lado, de costas na cama, ressonava com majestade! Ela adormeceu tarde e apesar
disso, como o dia seguinte fosse santo, levantou-se cedo para ir ouvir missa a S. Paulo, deixando o
deputado ainda a dormir. A modesta rapariga trazia agora a sua alma mais agitada e triste do que
nunca! Rezou com fervorosa devoção a Nossa Senhora do Sameiro, para que lhe metesse claridade na
Quando resolvera, em Braga, vir empregar-se em Lisboa, nos sistema de forças que o atraíam
para a capital entrava o sentimento de obscura dedicação por Angelina.
Podia ser-lhe útil numa terra onde ela pouca gente conhecia. Rapaz simples, saudável e forte,
desejava empregar todo o préstimo que tivesse em favor da única criatura que ainda lhe ocupava o
coração. Este sentimento protector era desinteressado, tinha muito de pureza e renúncia. A capital,
vista lá de longe, aparecia-lhe como um grande forno onde a virtude se consome no meio de gemidos,
onde o crime e o vício se engrandecem como empolas.
Por ter cessado a correspondência entre as duas amigas, é que Joaquim Neves também explicou
o não ser conhecida em Braga a grande novidade do casamento de Angelina.
– É mulher dele!... Foi melhor assim, foi assim muito bom – disse, procurando absolver e
estimar Salústio, pelo acto de nobreza que praticara.
Mas, apesar desta aparente conformidade com a sorte, conservava-se macambúzio e enleado.
Passava indiferente, junto à muralha do Aterro, olhando para a vastidão do rio. Já se arrependia de ter
vindo para Lisboa, visto não servir ali de nada. O casamento de Angelina inutilizava toda a sua
dedicação. Até lhe veio a lembrança de regressar a Braga, a terra da sua mocidade, onde um sonho
querido lhe engrinaldara a fantasia.
Se voltasse (ideia que principiava a verrumar-lhe o cérebro) levaria consigo uma novidade de
preço, que serviria de consolação aos que amassem Angelina. Entre todos esses só ele ficava infeliz;
porque perdia toda a esperança. Mas de que servia pensar em si, quando os outros estivessem
contentes!...
No entanto continuava a repreender o procedimento da filha de Pedro Alves, por não ter
mandado dizer nada a seus pais. Ao menos não lhe parecia bonito. Devia ser coisa do marido, o tal
Salústio, sujeito emproado, um basófia, que não dava confiança a ninguém, e só tirava o chapéu por
favor. Em Braga, embirravam com ele. Pudera, um presunçoso daqueles!... Contudo, apesar deste
secreto ódio, a imagem do antigo administrador de concelho impunha-se-lhe! Via-o em imaginação,
passando à porta da loja de todo os dias, quando ia para S. Victor, onde morava!... Botas de polimento,
brilhando como espelhos; calça de caxemira clara; andar autoritário, de quem podia mandar prender
os outros! As mulheres perdem-se por estas coisas – pensou amargurado Joaquim Neves! Muito
grande que fosse o seu amor por Angelina, ainda que o patrão estivesse, como estava, apostado em
fazer-lhes o casamento, ele havia necessariamente de ser vencido, logo que aparecesse um concorrente
como Salústio, – janota, bem parecido, doutor e autoridade, indo sempre nas procissões atrás do pálio,
ao lado do governador civil. Achava natural a preferência, humilhava-se até a reconhecer, ainda que a
não pudesse aplaudir, pois que isso lhe repugnava... E dum modo doloroso confessou pensando em
Salústio:
– É bem feliz! Tem a mulher mais linda do mundo! E agora uma perfeita senhora... Aquele
chapéu, aquela redinha pela cara... davam-lhe uma graça!...
Neste momento ouviu um garoto apregoar o Diário de Notícias. Para se distrair de tantas ideias
melancólicas e visões antigas, comprou o jornal.
Ainda tinha mais duma hora de liberdade, antes de se abrir a loja; precisava de enchê-la com o
que lhe contassem da vida dos outros, da vida da multidão que passava. Foi percorrendo a primeira
página do jornal, lentamente, com a atenção esparsa... Porém ao deparar com o nome de Salústio
Nogueira, em parangona a marcar notícia de importância, sobressaltou-se-lhe o coração. Sempre, mais
ou menos, a lembrança de tal homem lhe fazia correr o sangue ao cérebro, lhe incendiava as faces...
Nas circunstâncias actuais, em que esta pobre alma estava tão cheia de amargura, o interesse e emoção
foram mais acentuados. Com olhos sôfregos leu o seguinte:
«Diz-se estar tratado o casamento do ilustre parlamentar, o dr. Salústio Nogueira, com a
filha dum rico negociante da nossa praça, senhora de rara formosura e muito prendada.
Parabéns ao nosso amigo.»
Deveria subir as escadas de Angelina e exigir-lhe explicações da sua vida?! Com que direito e
sob que pretexto?!...
Começou a passear em frente à casa, remoendo ideias, a ver se a filha de seu amigo patrão
chegaria casualmente à janela. Esperava debalde, pois a amante de Salústio, mal este saiu, tinha descido
para falar à D. Maria Gomes, acerca do encontro que tivera nessa manhã com o caixeiro de seu pai!
Ao deputado não comunicara coisa nenhuma, apesar de ser uma novidade que os interessava. A
familiaridade entre ambos tinha diminuído muito. Angelina apenas lhe respondia, quando ele falava.
Havia dias em que não trocavam meia dúzia de palavras; viviam numa separação de casados que se
odeiam. Mas a perturbação, que no espírito lhe lançara a presença de Joaquim Neves, precisava
comunicá-la a pessoa que lha apreciasse com sagacidade; desejava desabafar com alguém que lhe
pudesse dizer se aquele rapaz traria alguma intenção reservada, para intervir na sua vida.
– Porque ele sempre foi um perdido por mim! – afirmou.
A D. Maria Gomes, sentada no seu fauteuil cor de borras de vinho, a cabeça encostada à mão
direita, ouviu Angelina com ar de tanta piedade, que esta lhe perguntou:
– Dói-lhe alguma coisa? O seu filho continua a não ser bom para si?
– Não é isso... São outras histórias!...
A amante de Salústio respeitou essa dor, que se concentrava, que não pedia consolações.
Entrou de novo no assunto que a enchia e sobre o qual procurava conselhos. Referiu factos da sua
vida passada, de como desprezara o caixeiro, preferindo-lhe Salústio; mas, insistindo sempre em que o
Joaquim concentrara nela incalculáveis esperanças de felicidade.
– Como já lhe disse, minha senhora, meu pai queria-nos casar – recordou.
– E teria feito bem – opinou D. Maria Gomes com melancolia.
– Mas se eu não gostava dele!... – resumiu a filha de Pedro Alves.
– Não é preciso gostar-se de um homem, para a gente casar com ele. Ponha os olhos aqui –
designou-se. – No fim da minha vida, sem um amparo, só porque tinha o mesmo modo de pensar...
Se eu seguisse os conselhos de meu pai!...
– Sim... mas a gente...
A D. Maria Gomes acompanhara a amante de Salústio, que subiu a escada sossegada, mas
abatida. Avaliando-lhe o parecer de quase indiferença, como de pessoa que vivesse ausente da própria
infelicidade, julgou que da memória de Angelina se varrera como um fumo a notícia do jornal. Não
seria ela quem lha recordaria; bem lhe bastara a primeira experiência de que tão dificilmente saíra...
Porém, pouco depois, do peito oprimido da amante de Salústio saiu um ai! Denunciativo de que
a sua dor se conservava profunda e inolvidável. D. Maria compreendeu imediatamente que se
enganara e logo se preparou para novo golpe! Com piedoso intento de valer à pobre rapariga,
assentou em não a abandonar enquanto a visse naquele mau estar. Com voz cheia de carinho suspirou:
A amante de Salústio, logo que ficou só, principiou a sondar a profundidade da sua desgraça. A
existência apresentava-se-lhe como confusão inextrincável! Num dos romances do Jornal do Comércio,
lera (e este quadro ficara-lhe na memória) que surgiam no alto mar nevoeiros tão densos, que os
navios permaneciam quietos durante dias e noites, por não conhecerem o rumo a seguir, nem os
perigos mais próximos. Assim se sentia era na vida. Que devia fazer? Interrogar altivamente
Salústio?... Procurar abrandar-lhe o coração com rogos e lágrimas? Matar-se na sua presença, no caso
de ser verdadeiro e irrevogável o tal casamento?
Tudo escuro, tormentoso e desesperado! O sol do dia seguinte amanheceria para ela triste e
sem esperança de novos risos. Só poderia ver aumentados os seus desgostos, já enormes! Assim, por
uma espécie de reminiscência inconsciente, própria das pessoas extremamente sensíveis, lançou-se no
vago das crenças religiosas, que tinham enchido toda a sua infância e mocidade.
Foi a uma gaveta da cómoda buscar a imagem da virgem do Sameiro, da qual fora sempre
excepcionalmente devota. Tinha-a guardada com outras e com o retrato de Salústio numa caixa, cofre
das coisas preciosas, estimadas do seu coração: eram veneras de santos e santas, estampas coloridas
representando virgens de rostos menineiros, suspensas num céu azul, com flocos de nuvens ao redor.
Santa Úrsula e Santa Teresa tinham olhares denunciativos de cilícios ocultos, revelados nas lágrimas de
aspiração celestial. Santa Cecília, conceituada mestra de música em toda a cristandade, estava em
atitude de êxtase, tocando órgão, ainda que entre os pregadores de Braga corresse que o seu
instrumento predilecto era a harpa, a qual se via a um lado, para atestar o valor histórico desta opinião.
Santa Cecília tivera sempre, entre as meninas minhotas, apreciáveis cantoras de novenas, considerável
reputação musical.
Porém, só as imagens suas familiares prendiam, neste momento doloroso, o coração de
Angelina – a da senhora de Guadalupe e a do Sameiro, que lhe sorriam cercadas de anjos. Como todas
estas divinas criaturas eram felizes, tendo passado a sua vida de pureza, no santo amor de Deus!
Nenhuma das baixas misérias terrenas haviam maculado as suas reputações e os seus corpos. Existir
nesse invejável estado virginal, nesse meigo estado de sensibilidade, que gera o sereno equilíbrio de
alma, em que se criam as aspirações cândidas e sublimes da ventura eterna, considerava-o a antiga
confessada do padre Martinho, como prazer único e sublimado, sempre puro, sempre grande!...
Depois de tamanha luta, Angelina encontrou-se abatida, num desconsolo marasmático, mas
raciocinador. Era indispensável aclarar a situação, pedir explicações a Salústio, logo que ele chegasse.
Porém que palavras empregaria para o interrogar?... Todas as que lhe vinham à mente, acariciando-as
com esperança de que lhe assegurariam o amor do amante, em breve as rejeitava por inconvenientes
ou precipitadas. Podiam-lhe trazer um desengano, que ela mais temia do que o desejava... O seu receio
justificava-se pelo abandono em que se encontrava: era só no mundo, Salústio o seu único arrimo,
pois coragem não tinha de voltar à família, com o testemunho queridíssimo da sua vergonha nos
braços. O deputado entrou alta noite, deitou-se alegre, almoçou risonho no dia seguinte, saiu calçando
as luvas, com a bengala debaixo do braço; ela ficou, sem ter tido o valor de soltar um só gemido que
conduzisse ao melindroso assunto.
D. Maria Gomes, essa, no andar de baixo, conservara-se todo o santo dia com o ouvido alerta,
numa ansiedade maternal, que lhe oprimia o coração. Calculara que poderia haver altercação violenta,
que fosse necessário acudir a alguma desordem, pois julgava aquele malvado capaz de maltratar a
pobre rapariga, mesmo de a matar, se a cólera a isso o levasse! Estava-lhe com raiva desde que o
deputado não fizera caso do seu pedido, para que ela conseguisse chegar à presença de el-rei!...
Além disto consubstanciara-se com a imensa infelicidade de Angelina, a sua imaginação vivia
dentro desse drama obscuro e tremendo, sentindo-o vigorosamente, com tanta força como a
desventurada protagonista. Na inquietação de saber os pormenores e de acompanhar a sua desditosa
amiga, andou toda a manhã à escuta, aparecendo na janela da cozinha, nas da rua, saindo à escada e
subindo até à cancela, numa ansiedade de mãe. O seu olhar era perturbado, apreensivo, nem tempo
tivera de almoçar, metendo apenas na boca duas colheradas de açorda. Ao meio-dia, ainda
despenteada, o vestido roçado e velho, toda condoída pela tristeza que lhe dominava o ânimo,
esperava seu filho que viria da guarda do Paço... Logo que ele chegasse contar-lhe-ia tudo pelo miúdo
e havia de convencê-lo a que ficasse em casa, até que Salústio saísse, pois a sua presença poderia ser
necessária para intervir em qualquer conflito ou desgraça. O infame poderia espancar a mãe de seu
filho, quando esta lhe exigisse a reparação à sua honra, e tal é que ela não podia consentir, ainda que
tivesse de chamar socorro da janela, num alarido capaz de alarmar a cidade!...
Por isso, quando sentiu descer o deputado com passadas lentas, cantarolando, ficou mais
Angelina, logo que Salústio entrou em casa, de parecer tão prazenteiro, disse-lhe:
– Vens muito contente...
– Pudera! As coisas correm... – retorquiu, atravessando a sala de jantar, com a bengala ao
ombro, na inclinação das espadas dos soldados da ópera, quando voltam contentes da guerra.
Depois, parando, explicou:
– O ministério em crise por estes dias... certa a minha entrada para a pasta da marinha...
Leôncio de Mértola amigo cá do rapaz!...
Suspendeu rapidamente a informação, como quem se arrependesse...
Angelina observou a medo:
– Bem sei... É o pai da tal formosa Palmira...
– Formosa Palmira! Como é que tu a conheces!
– Não conheço, não... Tu é que um dia falaste nela... e ontem, cá em baixo, em casa de D. Maria,
também me leram num jornal...
Salústio atalhou:
– Ah! sim, uma coisa que vinha no Diário de Notícias! Acreditaste naquilo?
– Não é verdade?... – perguntou com sorriso de súplica.
– Não sei...
– Se não sabes... é porque o é...
– Talvez seja...
A filha de Pedro Alves, como já tinha o espírito prevenido, suportou corajosamente a
declaração... Porém no seu rosto exprimiu-se tamanha tristeza dizendo: «Bem, fico abandonada», que
o próprio Salústio, ao ouvir-lhe estas palavras, foi invadido por um sincero sentimento de piedade...
Veio para ela meigo e carinhoso, abraçou-a com extremo afecto, prometendo:
– Mas eu serei sempre o mesmo para ti, podes crer! Suceda o que suceder, nunca te deixarei.
A Angelina rebentaram-lhe lágrimas com mais força do que se ele a tivesse injustamente
esbofeteado! Deixou-se cair numa cadeira, escondendo o rosto nas mãos, para ocultar a grande aflição
que a dominava e não ver o homem cruel, que assim lhe esmagava o coração. A sua dor enchia aquela
casa, enchia a terra e o céu com soluços, que eram caudais de choro. Salústio procurava consolá-la;
sentou-se junto dela, pegou-lhe na mão, falava-lhe com ternura de namorado... Eram exigências sociais
que a isto o levavam; bem sabia que ele não podia amar outra mulher, senão ela! Porém... era pobre,
neste mundo não se vive unicamente de palavras, estava farto de andar sempre com precisões de
dinheiro a pedir a este, a pedir àquele... Se ia ser ministro em breves dias devia-o ao conde de Frazuela;
devia-o a Leôncio de Mértola, que o empurrava com a sua influência de capitalista. O dinheiro pode
tudo, pelo dinheiro tudo se move – considerava com certa pronúncia desolada e descontente. Mas
nunca a abandonaria, – repetiu – havia de considerá-la sempre como a única mulher a quem amava...
Este casamento, que estava tratado e já agora era indubitável, concedia-lhe meios para a poder
Angelina ficou só na escuridade imensa! Não se sentia e não se lamentava: era uma pobre coisa
esquecida num sítio ermo, só acarinhada pelo olhar inocente das aves do céu. Mas depois, num
protesto cheio de lágrimas, começou a evocar baixinho, para não ser pressentida de Salústio, os nomes
queridos de seus pais. Agachada, a face coberta com as mãos, conhecia-se perdida, mísero ponto num
espaço infinito. O risco de luz marcado na porta do quarto, onde Salústio, estranho àquela dor, lia
sossegado o seu jornal, era o único sinal de realidade exterior. Como um fogo que fosse rebentando
dum rescaldo, a sua consciência principiou a surgir com um sentir de forte dignidade, e o seu corpo
erguia-se, vibrando duma altivez heróica. A sua desgraça era incomparável, o desamparo em que
ficavam, ela e sua filha, completo; porém pelo homem que tanto mal lhes estava fazendo, sentia
desprezo. Neste momento lúgubre, sem pesar o que ia fazer, cedendo ao impulso gerado num estado
cerebral anómalo, encaminhou-se para a porta da escada, agarrando-se às paredes, como guia. Andava
cautelosa para não ser pressentida e parou subitamente ouvindo tossir Salústio. Por fim deu com a
saída, abrindo a cancela devagarinho. Estava no patamar e ao contacto do corrimão sofreu
perturbador abalo, como se tivesse encontrado o começo dessa eternidade pavorosa de trevas, com
que a tinham ameaçado em criança!
Fixara a sua ideia numa decisão tremenda e dolorosa!... Abandonava de vez aquela casa, onde
tivera tantos contentamentos e desgostos. Nunca mais voltaria, não desejava tornar a ver o verdugo da
sua existência, o consumidor luxuriento da sua virtude e castidade. Tinha-o por mais nojento do que
um sapo. A sua vontade era possuir um punhal, para lho enterrar no coração! Grande acto de
vingança e merecido castigo, como os haviam executado com justiça, muitas heroínas dos romances
que lera na Revolução de Setembro e no Jornal do Comércio. Mas não lhe cabiam na índole branda, nem se
lhe demoravam no peito generoso, sentimentos de ira e com olhar piedoso assentou em fazer o
sacrifício da sua vida, dar morte a si mesma, para que todos sobre a terra continuassem felizes!...
Desceu a escada com o maior cuidado para não ser pressentida... Parecia um criminoso que
procurasse evitar um castigo, parecia o gozo humilde a fugir da matilha fidalga... Demorou-se um
minuto junto da porta da D. Maria Gomes, reflectindo... Tirou do seio a carta que escrevera, antes da
chegada de Salústio. No sobrescrito ia o nome da antiga mestra de piano, que, neste instante supremo,
Angelina com o xaile pela cabeça, ao reconhecer que não era perseguida, parou, entrando
depois no pequeno jardim, D. Luís, onde se escondeu entre os arbustos. Já passava da meia-noite, a
chuva diminuía; mas o vento continuava a ulular varrendo as ruas, como metralha em campo de
combate. O barulho das águas do rio sentia-se como frémito de estertor de milhões de homens. Os
lumes da longa fila de candeeiros paralela à muralha do Aterro amorteciam-se à passagem das lufadas.
Os pequenos faróis, marcando ancoradouro das embarcações espalhadas no Tejo, eram como os
olhos esgaseados de feras a tornarem de maior pavor a escuridade misteriosa da noite. Os raros
transeuntes, chapinhando lama, passavam como sombras. O céu caliginoso fazia medo, a terminação
em fogo rubro, da alta chaminé da fábrica de gás, semelhava um bólide suspenso no ar, um olho
aberto na densa negrura, a qual gerava receios, enfraquecendo o sentir real da própria existência.
Espreitavam das suas guaritas os guardas da alfândega, passavam os últimos americanos atulhados de
passageiros, o áspero ramalhar das árvores tinha uma estridência de risada cruel.
No meio desta confusão formada de sons que se somavam e de frouxos cambiantes de luzes,
permanecia a amante de Salústio, tremendo como se estivesse num cemitério com a visão de mortos a
saírem das campas. Dominada pela obsessão do próprio fim da sua vida, escondida entre o arvoredo,
todo aquele cortejo de terrores lhe preanunciava a eternidade, em que ia entrar... Por vezes faltava-lhe
o ânimo para seguir na via dolorosa, que marcara ao seu destino; tímida e fraca pedia tréguas à dor
que a impelia para a morte, com o pensamento de ainda se demorar alguns instantes entre os vivos...
Sentou-se num banco, por lhe fraquejarem as pernas. Lembrou-se com sentir piedoso da sua
filha, que a essas horas estaria dormindo tranquila. Que formoso sonhar o da inocente, num céu
povoado de pombas brancas e sorrisos de anjos tão formosos como ela! Feliz convivência a desses
entes, que moram nas doiradas regiões da ventura perfeita! Angelina, cujo sentimento maternal era
forte, vivo e grande para encher a terra vazia de todo o bem, acreditava que sua filha sonhava assim.
Seria ainda este amor, se nele continuasse a pensar, que a poderia deter contra a força do demónio,
que a atraía para o eterno e insondável abismo... Tornar a ver a sua Amelinha... beijá-la... estremecê-la
contra o seio... sorria-lhe à imaginação!... Mas teria depois ânimo de se desapegar daquele frágil
corpinho, que era um maravilhoso tesouro?... Afastou com fortaleza a lembrança sedutora. A sua vida,
depois do desengano dessa noite, era detestável, uma vida de misérias e vergonhas, que não poderia
O coração de Joaquim Neves minguava, ouvindo isto. Quis captar a benevolência deste
homem, que lhe parecera insensível, transformá-lo de mau que aparentava, numa força de protecção
para Angelina. Sempre era uma criatura que ficava ali de dentro e que tinha a possibilidade de a ver
alguma vez. Por isso, à saída, chamou-o a si, metendo-lhe na mão duas coroas, e segredou-lhe
suplicante:
– Se lhe puder fazer alguma coisa... Recomende à senhora enfermeira, que não há-de perder
nada comigo. Eu lho pagarei...
– Deixe que eles cá em casa estão melhor do que na sua própria – respondeu consolador. –
Tem bons caldos e boa cama que é o mais preciso para doentes. Se eu fosse médico metia-lhes caldos
para aquele buxo, até arrebentarem, e haviam de melhorar. A rapariga é sua?... Olhe que me pareceu de
truz, apesar do estado em que vinha por causa do tal banho. Adeus, amor; apareça amanhã que talvez
a encontre já boa. Aquilo foi friage. O senhor director chega pela volta do meio-dia. Adeus, amor.
Estou-lhe com um sono. Raio de vida!...
O portão de entrada bateu com estrondo ressoando a forte pancada pelo edifício. Joaquim
Neves, acompanhando o polícia e os catraieiros, ainda se voltou para contemplar aquela massa
compacta, que avolumava no denso ar pluvioso. Os quadrilongos das janelas onde se via luz,
aviventando a negrura do edifício, pareciam olhos de um grande monstro de fantasia, dum animal
extraordinário, cujo ventre misterioso escondesse, só dores, infelicidades e amarguras!... O peito de
Joaquim Neves mais se confrangeu com esta visão de morte, sentia a garganta apertada por não mão
poderosa e cruel! Como tudo na vida se lhe apresentava escuro e indecifrável! Quem conhecera
Joaquim Neves foi interrogado pelo comissário de polícia cerca das onze horas da manhã. A
sua situação não era bastante clara. A extraordinária coincidência de se encontrar àquela hora da noite
e por um tempo tempestuoso, no lugar onde o acontecimento se dera, punha de sobreaviso a
autoridade. O que tinha a simples aparência dum suicídio vulgar podia muito bem encerrar um crime!
Quando percebeu esta ideia pavorosa nas perguntas que lhe faziam, rompeu num choro irreprimível.
Santo Deus! Poderia alguém considerá-lo assassino de Angelina, da sua querida Angelina, da alma
sorridente em cuja fotosfera ele vivia como numa glória!... Quando pôde falar, contou a história
singela de tudo quanto sabia, desde os tempos de Braga até àquela noite desgraçada! Logo que
apareceu na narrativa o nome de Salústio Nogueira, deputado influente e futuro ministro, o
comissário, temendo escândalo e responsabilidades, amansou a palavra despótica e castigadora,
abreviou o interrogatório e a breve trecho deixou-o em paz. Joaquim também não desejava outra
coisa; porque todo o seu empenho era ir ao hospital saber do estado da sua amada... Sem comer,
febril, apressado, o rosto num desejo vivo, chegou junto do edifício dentro do qual residia o maior
interesse do seu existir. Como tudo aquilo para ele fosse desconhecido, lugar e pessoas, conservou-se
na entrada encolhido, humilde, à espera de lhe darem licença de ver a doente. Passavam pessoas de
diferentes aspectos e categorias, todas andando com o desembaraço de quem é conhecedor do
edifício, pois nele penetravam sem especial permissão... Invejava-as, eram bem mais ditosas do que ele,
poderiam sem obstáculo chegar onde ele queria ir, saber notícias de Angelina, vê-la no quarto onde
ficara na noite precedente. Olhava para todos esses felizes com rosto de súplica, desejaria que o
levassem consigo, que protegessem a sua imensa dor, a qual ninguém adivinhava, nem presumia... Um
empregado que passou e a quem quis deter, pedindo informações, abandonou-o bruscamente
dizendo: «Nada sei, meu caro senhor». Porém o criado, que na véspera gratificara com dez tostões e
que casualmente ali compareceu, consolou-o, apontando-lhe a porta fechada: «O director, quando
chegar, é que lhe pode dar licença» – explicou-lhe.
Porém, só no outro dia é que Joaquim Neves foi de novo admitido a ver Angelina. Na noite da
véspera tinham-lhe negado terminantemente o consentimento... As longas horas desse intervalo
imenso foram das mais aflitivas de toda a sua vida. Tão atormentadas como estas, só as podiam passar
os condenados do inferno, clamando por uma consolação impossível! Não se deitou. O desespero
dava-lhe o aspecto de um doido. Percorreu ruas e ruas, sem saber por onde andava, desejando
encontrar na agitação dos movimentos desvairados emprego às suas impaciências, uma perturbação à
lógica da sua dor, que o impelia para o suicídio. A incerteza acerca do estado de Angelina produzia-lhe
febre. Mais de uma vez, sem saber por onde ia, deparou consigo junto do edifício do hospital, mudo e
estático, querendo por sentimento, por adivinhação, ver através daquelas grossas paredes. Quem
poderia dizer que a sua amada não agonizava, sozinha, ao desamparo, sem uma voz condoída e terna,
que a consolasse nos últimos instantes!?... À noite e durante a manhã, esteve duas vezes em casa de D.
Maria Gomes, que encontrou em grande sobressalto, logo à primeira, pois acabava de receber a carta
de Angelina, pelo correio. Joaquim Neves leu essa folha de papel, onde se encontravam os derradeiros
pensamentos da infeliz. Tanto ele, como a mestra de piano, juntos no mesmo pensamento piedoso,
choraram a triste sorte daquela pobre rapariga, que sempre fora boa, que nunca fizera mal a ninguém,
e padecia um castigo imerecido!
– Ah! que se a senhora a conhecesse!... Toda a gente era amiga dela... Os pais não tinham olhos
para outra coisa!... E religião?!...
– Via-se que fora bem educada – concordou a mãe do tenente Augusto. – Este homem foi o
demónio que lhe apareceu! – rematou apontando o pavimento superior.
Joaquim Neves dardejou um olhar furibundo! A vista perturbou-se-lhe, parecia que rebentava
de cólera. Odiava Salústio, sempre lhe quisera mal; mas, agora, pensava nele como num verdadeiro
inimigo! Se Angelina morresse, havia de tirar uma vingança estrondosa daquele que fora o seu
carrasco! Sentia-se capaz de lhe arrancar o coração e trincar-lho. Encontraria nisso saciedade, um
refrigério ao sofrimento... Ainda que o visse nos degraus de uma forca continuaria a odiá-lo: «Ladrão!»
«Maldito seja para todo o sempre!» «Permita Deus que estoire como um demónio, no dia em que se
for casar com a outra!» – eram as suas exclamações.
D. Maria Gomes, desde a noite da fatalidade, não sentira mais ninguém em cima. Dificilmente
podia imaginar como se passara sem barulho a cena violenta que devia preceder a resolução de
Angelina. Conservara-se sempre à escuta, pois esperava a todo o momento ser necessário intervir. Mas
não houve nada. Por seu lado até adormecera profundamente (pois sentia-se muito cansada da
tormentosa luta desses dias) e julgara que Salústio tivesse dado desmentido categórico à notícia do
jornal, que ela sempre considerara verdadeira; pois conhecia muito bem os homens, e o seu feroz
egoísmo... Na manhã seguinte à da triste noite do suicídio, notara, é verdade, que o deputado saísse
muito mais cedo do que de costume; mas não lhe fez espécie, não deu ao caso importância. Depois
não houve, naquela casa, mais sinal de gente! D. Maria Gomes estava convencida de que o malvado
Quando o caixeiro foi admitido a ver a enferma, pela segunda vez, um criado é que o veio
chamar abaixo. Como não dormira um só minuto nas suas últimas noites e como se alimentara
insuficientemente, quando entrou no corredor perto das enfermarias, o cheiro especial daquela casa
causou-lhe náuseas e quase se sentiu esvaído. Caminhava como autómato atrás do homem que o
guiava. Em toda a sua pessoa se notavam sinais de abandono até na decência do vestir: – a sua camisa
Manifestara-se a crise no ministério. Não surpreendera ninguém, pois havia mais de quinze dias
que abertamente se falava de recomposição. Citava-se uma frase do monarca, para a justificar: «que não
achava conveniente excitar a opinião pública com medidas excessivamente liberais.»
– E tem razão sua majestade – disse com imponência Salústio Nogueira, diante do Fonseca da
Alfândega e de D. Agostinho, que logo o foram repetir. – O que nós precisamos é de administração,
muita administração, administração às carradas, e não de política.
Ora todos sabiam que isto se referia a Carlos de Mendonça, por causa da sua anunciada
reforma liberal, regulando as relações entre o Estado e o alto clero, restringindo a acção dos bispos
sobre os párocos, em assuntos fabriqueiros, e até dificultando a intervenção dos pastores de almas
rurais no acto eleitoral.
– Por enquanto – dizia ironicamente Salústio Nogueira – o homem limita-se (segundo consta) a
cortar pelas mitras e a pôr peias aos párocos, como se faz às bestas soltas nas bouças para não saltarem
paredes, depois virá o resto. Ainda é um favor que nos faz; porque podia acabar com tudo de uma vez!
O mesmo deputado acrescentou com seriedade e energia:
– Em suma, o que o ministro da justiça quer é a ruína do partido. Os padres podem zangar-se e
por essas províncias fora ainda são eles o principal nervo das nossas agremiações.
O padre Brito, que estava presente, interferiu:
– Não é pelos padres se zangarem, meu caro amigo. Se se bole com os bispos, se se põem
entraves à acção moral do clero sobre o povo, esta coisa de religião vai pela água abaixo e os
conservadores perdem a sua mais firme muleta. Adeus país, adeus carta, adeus tudo...
– Tem absolutamente razão, o padre Brito – concordou Salústio. – É melhor irem à carta e
tirarem-lhe o artigo sexto. A revolução sensata e moderada, que tanto sangue custou aos nossos
antepassados, perde-se. Sou partidário da protecção ao clero, que desejo respeitado e valioso, ainda
que não admitiria a volta dos conventos. Esta é que é a minha doutrina.
Pessoas consideradas louvaram muito a energia do deputado, que em toda a parte se declarava
contra Carlos de Mendonça, um talento temido. Falou-se muito de Salústio no Grémio, no Club,
debaixo da Arcada, nos camarotes de S. Carlos, nas reuniões do Frazuela e diziam que também no
Paço. Alguns cépticos comentavam esta atitude, acreditando que ele tivesse as costas quentes, pois se lhe
* *
Oito dias depois, um cortejo fúnebre passava na Rua de Santa Isabel, em direcção ao cemitério
dos Prazeres. Adiante um esquadrão de lanceiros, as bandeirolas ao vento, a charanga tocando uma
marcha triste. O féretro era transportado em majestoso coche de gala da casa real, e noutros coches
somenos iam eclesiásticos. Archeiros ladeavam o morto, levando brandões acesos e um pedaço de
escumilha preta pendurada do chapéu. Seguia-se o resto do regimento de lanceiros nº 1, de que o
morto fora coronel. Depois mais de duzentas carruagens, com convidados. A Rua de S. Miguel e a Rua
Direita dos Prazeres estavam ladeadas de gente e de tropa, ficando ao centro um claro, por onde
passava o fúnebre cortejo. Todos os regimentos da capital prestavam honras ao morto distinto, cuja
elevada categoria se procurava fazer sentir.
A infantaria e caçadores ficaram ao norte da Rua Direita dos Prazeres, costas para as terras do
Casalinho, cujos prados verdejantes se estendiam além. À esquerda do cemitério estava a artilharia, as
peças em mira para a quinta do Dourado, pois deviam ser ali as descargas. Do outro lado os
regimentos de cavalaria e lanceiros nº 2, deixando larga passagem às carruagens, que a polícia, à
maneira que fossem chegando, guiaria para os lados da Fonte Santa. O dia era brilhante de sol, um dia
de primavera, em que se sentia a vida da natureza, a agitação da seiva circulando nos troncos maciços
e nos rebentos das acácias. O Tejo rebrilhava ao longe... A torre do Bugio, saindo do meio das águas,
era como mancha de terra num espelho... Estava-se no princípio do mês de Março; rebentavam
amendoeiras e ginjeiras temporãs, alegrando com flores a paisagem mesquinha daquelas terras
barrentas. Na multidão o aspecto era pouco comovido. As músicas regimentais, atravessando a cidade,
a tocar valsas garridas, haviam atraído todos os ociosos que ali se encontravam. O grande morto
caminhava lentamente, na sua carruagem triunfal. Os vendedores ambulantes de água fresca e
limonada apregoavam os seu modesto negócio. Tinha aspecto alegre de romaria, este ajuntamento de
povo, falando, chacoteando, rindo, em conversas triviais. Logo que ao longe a charanga de lanceiros
rompeu na Rua Direita dos Prazeres, montada nos seus cavalos brancos, exclamou ironicamente um
popular que descascava e comia uma laranja: «Eh! que estadão!...» Outro, que era seu amigo, deu-lhe a
réplica: «Se te parece! O enterro de um ministro!»
Josefa viu com pasmados olhos de espanto a declaração feita com mão segura em grandes
letras... A seguir fechou esses lindos olhos, deu um único e estridente grito e abandonou-se sobre uma
cadeira num aniquilamento de toda a sua energia corpórea. Os criados, clamando entre si,
compadeceram-se dela, da sua rica senhora, exaltando a intimidade que a ligava ao marido, cuja morte
tanto sentia. Eram bem amigos: ele acarinhando-a sempre meigamente como a uma filha, ela
consagrando-lhe verdadeiro afecto, como a um pai! Nenhum dos presentes sabia explicar o acto de
desespero do general! Não podia deixar de ser filho de qualquer acesso de loucura, ou talvez algum
desgraçado acidente. Era indispensável recolherem a desmaiada viúva à cama. O cozinheiro e o criado
de mesa pegaram na cadeira em charola, as criadas compuseram-lhe o roupão, para se lhe não verem
as pernas sem meias... Em seguida foram chamar médicos, dar parte à viscondessa de Águas Santas e à
condessa de Frazuela, íntima de Josefa. Junto do cadáver só ficou o jardineiro e o ajudante de cozinha.
O velho soldado, companheiro do general em tantos lances difíceis da vida militar, cerrando um
punho e indicando o suicida, exclamou com energia:
– Não sou nenhum tolo e percebo bem as coisas!... Naquele peito havia muita honra, entendes,
Josefa Lencastre chorou ostentosamente a morte de seu marido, rodeada da tia viscondessa, da
Frazuela e de mais amigas que a acompanhavam neste lance supremo da sua vida. A espécie de
alucinação que levara o general ao suicídio, ninguém a podia compreender e quase repreendiam o
morto pelo acto inconveniente que praticara.
– Um disparate destes! Um homem que toda a gente considerava e tinha um amor de mulher
como poucos!... – dizia a Águas Santas.
Concordavam, porém, que talvez fosse por causa daquele maldito reumatismo, que o trazia
desgostoso. Sofria ataques de verdadeira gota, que o deixavam tolhido em sua cama e inválido durante
meses. Os joanetes avolumavam-se-lhe a ponto de ter de golpear as botas, e o seu andar, mesmo o dos
períodos em que se julgava com saúde, era trôpego, como dum valetudinário. Ora isto num homem
com fúria amorosa por sua mulher, elegante, formosa e cobiçada... Enfim as reticências eram o
melhor comentário das palavras e todos as deixavam no fim das suas considerações...
Porém, este final, numa existência tão considerável, fizera impressão na sociedade. No dia do
acontecimento trágico e nos seguintes só dele se falava. A família real, para dar prova clara de
consideração pela memória do falecido, privou-se de teatro uma noite. Os jornais em extensas
biografias expuseram ao público ignorante da história pátria o que fora esse homem valioso, como
militar e como político. Uma verdadeira glória e um sustentáculo da monarquia. Entre as diversas
manifestações de respeito foi muito apreciado o oferecimento dos alunos da escola do exército, que,
por turnos, quiseram velar o cadáver do seu ministro até à hora do funeral, que se verificou numa
quinta-feira, às quatro da tarde, saindo o préstito da residência do falecido. A concorrência a esse acto
foi extraordinária. Tudo quanto Lisboa tinha de notável e de saliente no militarismo, na política e no
corpo diplomático aí concorreu. O conselheiro Maurício Pontino, homem conceituoso, chegando-se
respeitosamente ao presidente do concelho, disse-lhe com acento comovido:
– Consola o coração de patriotas o que estamos presenciando!... Esta concorrência
deslumbra!... Mas quem havia de presumir, acto assim inconsiderado, em homem de tanta ponderação,
meu caro marquês...
– É bem verdade, excelente amigo. Nenhum de nós é senhor das suas acções. A Providência... –
Uma vez na câmara dos deputados, Gabriel Besteiros, que soubera, pelo tenente Augusto, do
triste fim de Angelina, encontrando no corredor o ministro da marinha, perguntou-lhe:
– E aquela rapariga que trouxeste de Braga?
– Foi para a terra – respondeu Salústio com desprendimento, despedindo-se.
– Sim, para terra fria – concluiu Besteiros com amarga ironia, censurando assim o amigo, que
nos últimos tempos se tornara orgulhoso e menos convivente para com ele.
FIM
Não se acredita hoje de modo tão peremptório como no tempo de Teixeira de Queirós se
acreditava (e como sem dúvida ele-próprio acreditaria) que a íntima estrutura de uma vocação literária
essencialmente dependa daqueles três factores – o momento, o meio e a raça – que o crítico francês
Hippolyte Taine dogmaticamente erigira em sistema e de modo decisivo havia posto em voga. Hoje
pensa-se, mais flexivelmente, que para essa íntima estrutura não menos concorrem as próprias leis
internas do género literário que se adopta, dos esquemas formais que se assumem ou escolhem, e até
as leis internas da língua em que se escreve. Mas também esta não pode considerar-se sub specie
aaternitatis, desligada de um determinado momento da sua evolução, como também os géneros e também
as formas, tendo toda uma história concreta atrás de si, são assumidos ou adaptados num preciso
momento dessa mesma história e inevitavelmente reflectem, por parte de quem os assume ou adopta, as
marcas de um meio e os estigmas de uma raça – se pelo primeiro destes termos sobretudo tratarmos de
entender, como aliás o pretendia Taine, o intrínseco enlace de dados naturais com dados sociais e,
pelo segundo, mais que os elementos étnicos que a palavra evoca, toda a carga de hereditariedade que
ela igualmente pressupõe.
Seja como for, diante de um caso literário como o de Teixeira de Queirós, e por menos
dogmaticamente que aceitemos a função determinante dos três factores apontados por Taine, a
verdade é que não poderemos menosprezá-los e que cada um deles contribui para explicar – que mais
não seja in partibus – as principais características da sua obra, no que respeita quer aos materiais que
mobiliza, quer aos modos de organização em que estes se dispõem, quer à mundividência que
subentendem ou veiculam. Se começarmos por aludir àquilo que significa a «raça» no vocabulário
tainiano – ou seja «o conjunto de disposições psicológicas inatas e hereditárias» –, facilmente
verificaremos que, em Teixeira de Queirós, a vigorosa ancestralidade rural e a profunda implantação
telúrica naturalmente o predispunham à paciente e pertinaz edificação de uma obra sólida, vasta,
coesa, incessantemente retomada e refundida, paulatinamente ampliada através de contínuos
acréscimos, oportunamente visionada como um todo, segundo uma clara noção de «espaço». Com
7 Este texto reproduz uma conferência proferida a 12 de Fevereiro de 1977 pelo conhecido poeta, ensaísta e
crítico literário, David Mourão-Ferreira. A conferência viria a ser publicada em papel dois anos mais tarde,
numa edição da Câmara Municipal de Arcos de Valdevez, intitulada Homenagem ao Escritor Teixeira de Queiroz.
Mais adiante, Teixeira de Queirós completa o retrato do insofrido arrivista através de mais estas
outras pinceladas:
Repare-se na mestria com que o autor mistura as considerações abstractas com as situações
concretas, na desenvoltura com que passa de umas para as outras e intimamente as articula, na
segurança com que escolhe – e assim as vai de caminho apresentando – certas figuras de segundo
plano, algumas das quais posteriormente reaparecerão mais desenvolvidas mas que por ora têm
sobretudo a função de ilustrar os tiques ou os móbiles do protagonista. Por outro lado, ao fazê-lo
deambular por diferentes meios, correspondentes a diferentes estratos sociais (um baile em ambiente
da nova aristocracia da Regeneração; uma sessão da Câmara dos Deputados; um confrangedor serão
de pequena-burguesia lisboeta, na modesta casa onde ele-próprio vive com a amante e onde afinal
Fevereiro de 1977.
David Mourão-Ferreira
Primeira Parte
Capítulo I ..................................................................................12
Capítulo II ............................................................................... 23
Capítulo III .............................................................................. 32
Capítulo IV .............................................................................. 42
Capítulo V ............................................................................... 50
Capítulo VI .............................................................................. 60
Capítulo VII ............................................................................ 69
Capítulo VIII .......................................................................... 77
Capítulo IX .............................................................................. 89
Capítulo X ............................................................................. 101
Capítulo XI ............................................................................ 111
Segunda Parte
Capítulo I ................................................................................124
Capítulo II ............................................................................. 138
Capítulo III ........................................................................... 149
Capítulo IV ............................................................................ 160
Capítulo V ............................................................................. 175
Capítulo VI ............................................................................ 190
Capítulo VII .......................................................................... 203
Capítulo VIII ........................................................................ 215
Capítulo IX ............................................................................ 224
Capítulo X ............................................................................. 238